UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

MATHEUS AMILTON MARTINS

FESTAS PARA BOLÍVAR? ENTRE PROJETOS E SENTIDOS NAS COMEMORAÇÕES DEDICADAS AO LIBERTADOR EM (1827, 1842, 1883)

CAMPINAS 2018

MATHEUS AMILTON MARTINS

FESTAS PARA BOLÍVAR? ENTRE PROJETOS E SENTIDOS NAS COMEMORAÇÕES DEDICADAS AO LIBERTADOR EM CARACAS (1827, 1842, 1883)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos para a obetenção do título de Mestre em História na área de Política, Memória e Cidade.

Orientador: Prof. Dr. José Alves de Freitas Neto

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO MATHEUS AMILTON MARTINS, E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSÉ ALVES DE FREITAS NETO.

CAMPINAS 2018

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 134195/2015-9

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Martins, Matheus Amilton, 1992- M366f MarFestas para Bolívar? : entre projetos e sentidos nas comemorações dedicadas ao Libertador em Caracas (1827, 1842, 1883) / Matheus Amilton Martins. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

MarOrientador: José Alves Freitas Neto. MarDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Mar1. Bolivar, Simon, 1783-1830. 2. Cultura política - . 3. Feriados e festas cívicas - Venezuela. 4. Venezuela - Política e governo - 1830-1935. I. Freitas Neto, José Alves, 1971-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Festivities for Bolívar? : between projects and meanings in the celebrations dedicated to the Libertador in Caracas (1827, 1842, 1883) Palavras-chave em inglês: Political culture - Venezuela Holydays and civic festivities - Venezuela Venezuela - Politics and government - 1830-1935 Área de concentração: Política, Memória e Cidade Titulação: Mestre em História Banca examinadora: José Alves Freitas Neto [Orientador] Freitas Neto, José Alves Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Fabiana de Souza Fredigo Data de defesa: 21-03-2018 Programa de Pós-Graduação: História

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de março de 2018, considerou o candidato Matheus Amilton Martins aprovado.

Prof. Dr. José Alves Freitas Neto

Prof Dr. Luiz Estavam de Oliveria Fernandes

Profª. Drª. Fabiana de Souza Fredrigo

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha família, pois nenhuma página deste trabalho estaria escrita sem o apoio deles. Aos meus pais Velda e Cesar, pela guarida emocional incondicional e as críticas que me trouxeram maturidade e sensatez. Aos meus irmãos Júlia e Túlio, pela parceria, cumplicidade e risadas. Ao meu tio Flávio Marcilio, pela inspiração historiadora, compreensão e cervejas acompanhadas com músicas “devidamente qualificadas” para desopilar. Aos meus avós Antônia e Arli, Ivonte e Luiz, pela preocupação, carinho e conselhos que dispensaram. A meu primo Luiz Neto, pelas “porradas” que afetuosamente me ofertou no tatame e pelas ajudas com impressões. A minha tia Nazaré, que com tanta ternura me acolheu nas vezes que tive de visitar a cidade de São Paulo. Não posso deixar de registrar a minha gratidão aos meus amigos. Na parte nordestina, à agremiação do Seu Claúdio Cabaré e Regatas, composta por Ciço, Dy, Marquito, Balu, Laurinha, Gi, Gordo, Arruda, Victão, João e Geo. Sem o “suporte” deles eu não conseguiria sobreviver aos tempos de Campinas, muito menos conviver com a saudade de meu amado Recife. Dentre eles quero destacar Rafael Arruda, que além de grande amigo e interlocutor, também foi um dos revisores da presente pesquisa. Também agradeço a Aninha pelo carinho e incentivo ao longo da última etapa deste trabalho; aos meus amigos, que já foram alunos e que hoje me enchem de orgulho: Lucas, Sabrina e Kallebe; a Dayran, pelas caronas e por aguentar meu mau-humor nas jornadas Vitória-Nazaré; a Claudia, pelas músicas, discussões, pequenas revisões e girassóis; a João Pereira, pela árdua tarefa de revisar este trabalho; e à “jovenzinha” Maria de Fátima, pelo entusiasmo, carisma e por ter me ensinado a investigar histórias. Em seu turno, na banda sudestina, merecem menção os moradores da G2A, que me acolheram e me orientaram na minha temporada nas terras estrangeiras do Estado de São Paulo: Muriloves, Atílio, Lula e, em especial, Victor, que aguentou muitas de minhas leseiras e conversas d’água, além de me apresentar o horrivelmente bom hot dog paulista — que sigo acreditando carecer de carne moída —, base alimentar que me manteve vivo em Campinas. Lembro também do campineiro Sordi, pela brodagem e por tolerar assistir a jogos do Sport comigo. Aos companheiros do grupo de América da UNICAMP: Breno, Carol, Andresa, Pavani, Ivia, Priscila, Bruno, Mariana e Felipe. Agradeço por me proverem de debates político-

intelectuais e por ofertarem uma dimensão da multiplicidade de olhares que compõe nosso continente. Por me convencer a afastar-me da ensolarada civilização pernambucana e me mostrar a necessidade de desenvolver meu trabalho longe de casa, agradeço — ou culpo — ao meu amigo Prof. Dr. Renato Pinto, parteiro de minhas incursões ao Sudeste selvagem deste país e primeiro “cabra” a se preocupar com minhas ideias ainda na UFPE. Neste bloco, ressalto também a contribuição intelectual do Prof. Dr. Luiz Estevam Fernandes em nossas conversas, assim como os subsídios teóricos que incorporei a minha pesquisa a partir das aulas da Profª. Drª. Iara Lis Schiavinatto e da Profª. Drª. Josianne Cerasoli. Agradeço ao meu paciente orientador e amigo, Dr. José Alves de Freitas Neto, que recebeu este retirante que vos escreve, incentivando e proporcionando confiança ao longo da peleja que foi desenvolver esta investigação. Imagino as dificuldades de orientar um megalomaníaco pernambucano. Por isso que sem a sua segurança, sua crítica (leia-se seus limites) e seus ensinamentos este trabalho seria impensável. Por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que prestou auxílio financeiro fundamental a esta jornada de pesquisa.

Até que, um dia, fui acordado por golpes e estremecimentos. Estavam a mexer na minha tumba. Ainda pensei na minha vizinha, a toupeira, essa que ficou cega para poder olhar as trevas. Mas não era o bicho escavadeiro. Pás e enxadas desrespeitavam o sagrado. O que esgravatava aquela gente, avivando assim a minha morte? Espreitei entre as vozes e entendi: os governantes me queriam transformar num herói nacional. Me embrulhavam em glória. Já tinham posto a correr que eu morrera em combate contra o ocupante colonial. Agora queriam os meus restos mortais. Ou melhor, os meus restos imortais. Precisavam de um herói, mas não um qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo e região. Para contentar discórdias, equilibrar as descontentações. Queriam pôr em montra a etnia, queriam raspar a casca para exibir o fruto. A nação carecia de encenação. Ou seria o vice-versa? De necessitado eu passava a necessário. Por isso me covavam o cemitério, bem fundo no quintal da fortaleza. Quando percebi, até fiquei atrapalhaço. Nunca fui homem de ideias mas também não sou morto de enrolar língua. Eu tinha que desfazer aquele engano. Caso senão eu nunca mais teria sossego. Se faleci foi para ficar sombra sozinha. Não era para festas, arrombas e tambores. Além disso, um herói é como o santo. Ninguém lhe ama de verdade. Se lembram dele em urgências pessoais e aflições nacionais. Não fui amado enquanto vivo. Dispensava, agora, essa intrujice. - Mia Couto, “A Varanda do Frangipani”.

RESUMO

A tradição política venezuelana no século XIX esteve intimamente vinculada aos usos da imagem de Simon Bolívar numa gama de manifestações sociais. As elites governantes do país, envolvidas no exercício de “fundar a nação”, frequentemente recorreram ao Libertador como uma origem a ser celebrada, uma memória que ofertasse unidade na recordação e um suporte para seus projetos de porvir. De tanto se retomar a jornada libertadora em solenidades e efemérides, paulatinamente se consolidou um calendário de homenagens ao herói. Mais que comemorar sua narrativa de fato, as cerimônias foram arranjos polissêmicos constantemente remodelados ao sabor das demandas políticas conjunturais. Diante das barreiras de uma sociedade iletrada e acostumada ao cotidiano de guerras civis, esses rituais foram capazes de desempenhar uma comunicação social cativante, ampla e pacífica. Interessado em compreender os papéis mediativos dessa retórica/ritualística bolivariana, proponho investigar os sentidos do jogo simbólico desenvolvido nas principais festas bolivarianas da Caracas oitocentista: a Entrada triunfal de Bolívar (1827), as Honras fúnebres do Libertador (1842) e o Centenário de Bolívar (1883). Mediante a contribuição de leituras da história do discurso político e antropologia ritual, desenvolvo um olhar contextualista para as crônicas do ritual bolivariano, preocupado com os modos com que a linguagem política e o sistema simbólico do bolivarianismo foram empregados para apresentar resoluções para os dramas sociais de turno. Nesse âmbito, busco enfatizar o caráter mediativo do Culto a Bolívar, em oposição a intepretações correntes que o situam como um fenômeno de dominação socio-política.

Palavras-chave: Simon Bolívar (1783-1830); Cultura política: Venezuela; Feriados e festas cívicas: Venezuela; Venezuela: Política e governo (1830-1935)

ABSTRACT

Venezuelan political tradition in the nineteenth century was deeply linked to the uses of the image of Simon Bolivar in a range of social manifestations. The ruling elites of the country, involved in the “to found the nation” exercise, often appeal to the Liberator as an origin to be celebrated, a memory that offered unity in remembrance and a support for their future projects. From reclaim the liberating course in solemnities and ephemeris, a calendar of tributes to the hero was gradually consolidated. Besides commemorate his narrative, in fact, the ceremonies were polysemic arrangements constantly remodeled to the tune of conjunctural political demands. Faced with the barriers of an illiterate and accustomed society to the daily civil wars, these rituals were able to play a captivating, extensive and peaceful social communication. Interested in understanding the mediatic roles of this Bolivarian rhetoric/ritualistic, I propose to investigate the meanings of the symbolic game developed in the main Bolivarian festivals of Caracas in the eighteenth century: Bolívar's Triumphal Entry (1827), the Liberator’s Funeral Honors (1842), and Bolivar's Centennial (1883). Through the contribution of readings from the history of political discourse and ritual , I develop a contextualist look at the chronicles of Bolivarian ritual, concerned with the ways in which language politics and the symbolic system of Bolivarianism were employed to present resolutions to the Social Dramas of turn. In this context, I seek to emphasize the mediational character of the Cult of Bolivar, as opposed to current interpretations that situate it as a phenomenon of socio-political domination.

Key Words: Simon Bolívar (1783-1830); Political culture: Venezuela; Holydays and civic festivities: Venezuela; Venezuela Politics and government (1830-1935)

LISTA DE IMAGENS

Img. 1 Monumento a Simon Bolívar (1846) de Pietro Tenerani, na Plaza Bolívar p. 69

Img. 2 Mausoleo del Libertador Simon Bolívar (1852) Obra de Pietro Tenerani, que se encontra no Panteão Nacional de Caracas p. 69

Img. 3 Estátua de Sêneca na sua terra natal, Cordoba p. 69

Img. 4 “El Libertador Bolívar” Litogravura de Auguste Hilario Leveillé (1840) p. 130

Img. 5 “Busto de Bolívar” (1850), de Pietro Tenerani p. 130

Img. 6 Esboço do Monumento a Bolívar, de Pietro Tenerani (1846) p. 131

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Calendário de eventos baseado nas crônicas “Sucinta descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827”, de Valentin Espinal p. 90

Quadro 2 Calendário dos eventos relacionados aos funerais de Bolívar, baseado na obra “Honras Fúnebres consagradas a los restos del Libertador Simon Bolívar en Caracas” (1843), de Fermín Toro p. 109

Quadro 3 Calendário dos eventos decorridos no Centenário de Bolívar em Caracas (1883), baseado nas crônicas “Centenario de Bolívar: Informe de la comisión nacional de Bolivia de su participación en las fiestas que han tenido lugar en Caracas y reseña de ellas” (1883), da Comisón de Bolívia e “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar” (1883), de Ramón Hurtado Sánchez p. 128

Quadro 4 Transformações territoriais dos estados pós-Guerra Federal p. 142

Quadro 5 Reformas da organização militar venezuelana em 1879 p. 142

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ______5

RESUMO ______8

ABSTRACT ______9

LISTA DE IMAGENS ______10

LISTA DE QUADROS ______11

INTRODUÇÃO ______14

FESTA: UM FENÔMENO COMUNICACIONAL ______17

AS FESTAS BOLIVARIANAS NA VENEZUELA OITOCENTISTA ______21

DESCRIÇÃO DOS CAPÍTULOS ______29

CAPÍTULO 1: O CULTO ______31

1.1. AO AUTOR IMPRESCINDÍVEL, UMA PROBLEMATIZAÇÃO NECESSÁRIA: O CULTO ÀS IDEIAS EM GERMÁN CARRERA DAMAS ______33 1.1.1. Reflexões sobre o culto a Bolívar como história das ideias ______39 1.1.2. Um desvio na trajetória venezuelana? Problemas da compreensão do culto heroico como prostração nacional ______42

1.2. LEITURAS E LEITORES: DIMENSÕES E USOS DO CULTO A BOLÍVAR ______51

1.3. UM CULTO POLISSÊMICO ______66 1.3.1. Monumentalização pública ______67 1.3.2. Pedagogia e religião cívica ______70 1.3.3. Narrativas históricas ______73 1.3.4. Festas nacionais ______77

CAPÍTULO 2: AS FESTAS ______83

2.1. UM TRIUNFO DA CONCILIAÇÃO: A ENTRADA DE BOLÍVAR EM CARACAS (1827) ______87

2.2. QUE CESSEM OS PARTIDOS: AS HONRAS FÚNEBRES A BOLÍVAR EM CARACAS (1842) ______98

2.3. RITOS E RITMOS DAS FESTAS BOLIVARIANAS: UNIDADE, ORDEM E IDENTIDADE ______112

2.4. DO BOLIVARIANISMO ÀS FESTAS BOLIVARIANAS ______119

CAPÍTULO 3: O CENTENÁRIO ______123

3.1. CRONISTAS E CRÔNICAS DO CENTENÁRIO ______127

3.2. DA GUERRA FEDERAL AO CENTENÁRIO DE BOLÍVAR: AS TRAMAS DO PROJETO NACIONAL GUZMANCISTA ______135 3.2.1. Atos da convergência ritual: Venezuela em seus fragmentos ______143 3.2.2. A Caracas moderna e o profeta do progresso ______148 3.2.3. Modernidade ocidental, pan-americanismo e hispanismo: relações internacionais traçadas sob a imagem do Libertador ______153

3.3. A RETÓRICA DO PROJETO NACIONAL ______161

CONCLUSÃO ______174

FONTES ______182

BIBLIOGRÁFIA CONSULTADA ______186

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INTRODUÇÃO ______

O bolivarianismo esteve em permanente reinvenção ao longo da vida política venezuelana, não havendo outro mote nacional que fosse capaz de movimentar tanto suor, tinta e sangue. Da instalação da Segunda República (1813–1814) às sucessivas refundações e regenerações pátrias, o Libertador foi a pedra sobre a qual se edificaram diversas Venezuelas. Entretanto, em nenhum outro momento essas conexões foram tão explicitamente reiteradas quanto durante a Quinta República (1999–)1. Tendo por marco zero a eleição de Hugo Chávez à presidência, o atual contexto assiste a um transbordamento dos contornos do herói, a exemplo de que – com a Constituição de 1999 – até mesmo o Estado passa a ser designado “República Bolivariana da Venezuela”. Nos recursos à imagem do Libertador, persiste um campo possível para lidar com as tensões e as transformações da sociedade, ao ser capaz tanto de lastrear novos ou antigos projetos de governo quanto de agenciar ataques ao poder. Não à toa o prócer, no presente momento, é simultaneamente reivindicado pelos herdeiros da Revolución Bolivariana de Chávez e por sua oposição parlamentear. Em meio aos novos enfretamentos, alavancam-se debates preocupados em interpretar o fenômeno venezuelano. Não é à toa que o tema tem sido centro de amplas discussões no cenário acadêmico2. Por um lado, há um recente incremento nas publicações voltadas para as repercussões das relações, em curso, entre a narrativa do herói e o programa ideológico do chavismo. Por outro, existe uma atenção à historicidade e aos fundamentos sociológicos do bolivarianismo na Venezuela, com o interesse em abranger suas nuances ao

1 A história da Venezuela republicana pode ser dividida em 05 períodos: a Primera República se refere ao contexto entre a assinatura da ata de independência em 1811, o terremoto de Caracas e a capitulação do comandante general das forças patriotas, Francisco Miranda, em 1812; a Segunda República remete-se ao período de 1813 a 1814 imerso nos conflitos Campaña Admirable, com Simon Bolívar já a cabeceira do exército venezuelano; a Tercera República, caracterizada por uma nova campanha militar de Bolívar entre a libertação da Guayana (1817) e o Congresso de Angostura (1819), no qual se criou a República de Colômbia (Grã-Colômbia), que englobava Venezuela, Nova Granada (atual Colômbia) e Equador; a Cuarta República abarca o interregno entre a secessão da Grã-Colômbia (1830) e a Constituição de 1999; e, por fim, a Quinta República, de 1999 até a presente data, corresponde à conjuntura da Revolução Bolivariana encabeçada por Hugo Chavéz e seus sucessores. 2 A fim de ilustar essa tônica, enumero alguns autores e suas publicações deste século que serão retomadas ao longo das discussões deste trabalho: Manuel Caballero (2007); Germán Carrera Damas (2005; 2006a; 2006b); Luís Ricardo Dávila (2005), Elias Pino Iturrieta (2003); Frédérique Langue (2009); Eduardo José Reinato (2005); Yolanda Lecuna Salas (2001); José Maria Salvador Gonzaléz (2001); Thomas Straka (2009a, 2009b); e Ana Tereza Torres (2009).

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longo de diversos contextos temporais e assimilar as significações de sua sobrevivência em diversos cenários políticos. A presente dissertação está em sintonia com a segunda perspectiva, ao refletir sobre a maneira com que a imagem heroica foi conformada num idioma com a finalidade de atribuir nexos às contendas sociais do século XIX. Envolvido nesse contexto, um dos elementos do bolivarianismo que persistem dinâmicos em nosso tempo3, merece relevo: as festas bolivarianas. Diante da tarefa de fundar a nação, os rituais cívicos tributados ao Libertador — em sua configuração oitocentista — mostraram-se eficazes, estratégias para produzir sentidos ante a realidade social, disseminar projetos políticos, remanipular o passado, pacificar crises sociais e inventar paixões capazes de conquistar adesão popular. A mais acabada e consistente dentre essas celebrações foi emblemática quanto a esse aspecto. Em 1883, uma Venezuela que ainda sangrava pelas feridas abertas na Guerra Federal (1858–1863)4 — a exemplo da questão regional — comemorou suas autoimagens de sociedade modernizada, Estado unificado, povo pacífico e cidadão, e América irmanada; tudo sob o espetáculo do Centenário de Simon Bolívar. É fundamental destacar que essas referências não eram frutos do imaginário coletivo, mas sim estavam em consonância com os debates político-intelectuais que circundavam seu tempo. Tal relação pode despertar questionamentos sobre as funções comunicacionais das efemérides, por exemplo: de que modo a celebração do herói permite a conflagração de tantos significados díspares? Qual a capacidade da festa para gerir símbolos? E para enredar narrativas e tempos? Por meio de que mecanismo se produz harmonia social? Seus enunciados sobre a sociedade são pragmáticos ou só imaginados? A sacralização do herói também implica a consagração das efervescências coletivas em sua homenagem? Em suma: De que maneira — e por que — a festa produz legitimidade e aceitação social para os enunciados que contém em seu interior?

3 Um exemplo pertinente pode ser visto na cobertura da Telesur — rede de televisão multi-estatal, com sede na Venezuela — sobre as comemorações da declaração de independência da Venezuela em 05 de julho de 2017, que trazem como destaque a entrega de uma réplica da espada de Simon Bolívar ao presidente Nicolás Maduro. Cf. TELESUR. (2017). Venezuela celebra su independencia con desfile cívico-militar. Disponível em . Acessado em 10 de julho de 2017. 4 A Guerra Federal foi um enfrentamento entre liberais (federalistas) e conservadores (centralistas) na Venezuela oitocentista, considerado como o maior e mais sangrento conflito interno da história do país. Ao fim das hostilidades, com a vitória federalista, o custo político da aliança entre os liberais e as elites locais desembocou na questão regional-nacional venezuelana, que em termos rasos pode ser descrita como uma disputa de poder entre os caudillos regionais e o governo federal. No Capítulo 3 há uma discussão extensa e detalhada sobre esse contexto.

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Por meio da análise dos festejos oitocentistas, em especial, do Centenário de Bolívar em Caracas, busco compreender os predicados mediativos com os quais o rito bolivariano atuou na arena pública venezuelana. A performance pública constituía um campo em processo de disputa, onde se punham em prática tentativas de resoluções de situações- conflitos, ou dramas sociais. Observar nesses espaços as possibilidades de resistências, de discordâncias ou mesmo de fracasso dos desfechos pautados, significa pensá-los na forma de acontecimentos sociais ainda inacabados em seu momento de execução. Em atenção à variedade de suas facetas, em especial a polissemia festiva, é necessário desvencilhar-se das descrições do culto heroico como um fenômeno monolítico que atravessa de forma integral a história venezuelana. Observa-se, por exemplo, que pari passu a educação cívica bolivariana elevava o herói a um modelo moral exclusivo das elites governantes. A inauguração de monumentos públicos em homenagem ao herói relacionou-se com posse coletiva e republicana da espacialidade urbana. Isto é, movimentos coetâneos muitas vezes podiam ser contraditórios e mesmo opositores, ainda que surgissem de um lugar-comum envolvido na produção de expressões aceitas pela sociedade enquanto verdades. Consequentemente, é mais prudente sua interpretação sob a forma de um conjunto de manifestações embasadas numa mesma linguagem política, que permitia — e permite — a comunicação social em diversos âmbitos. Tal raciocínio possibilita acomodar as divergências e os antagonismos internos do bolivarianismo nas dinâmicas do debate político e não nos desvios ou nas projeções históricas concretas de um mesmo padrão ideológico. Esse ajuste, é importante salientar, não desemboca numa leitura iconoclasta em busca de um Bolívar mais mundano ou real. Ao revés, denoto aqui minha preocupação com os caminhos da sacralização ao ídolo, com a investigação das vozes e dos silenciamentos em torno da produção de suas versões e com o entendimento de suas reinterpretações como possibilidades em aberto, de um tempo que inventou o seu passado para poder inventar a si próprio. Numa sociedade iletrada tal qual a Venezuela oitocentista, o bolivarianismo ocupou um papel central na disseminação de valores. Nesse ínterim, as efemérides foram meios para a difusão de uma educação cívica relativa a paradigmas de modernidade e à assimilação de um destino coletivo comum, sob o umbral da nação. Inseridos numa comunidade oral, o dito e o feito, somados ao sentimento de unanimidade ritual, mostrou-se um recurso eficaz para a propagação informal e popular de novos paradigmas sociais. A partir dessas hipóteses, reitero minha proposta de problematizar as festas a Bolívar na Caracas do século XIX, a fim de analisar

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que sentidos foram formulados sobre a narrativa heroica com o intuito de legitimar os projetos políticos em curso: modernização, integração nacional, estabilização no mundo capitalista, etc.

FESTA: UM FENÔMENO COMUNICACIONAL

Ao estudar as festas bolivarianas, a atenção deve estar direcionada às multivocalidades de signos e linguagens, ou seja, a compreensão do que se mobiliza para a produção de sentidos e significados socialmente aceitos para a resolução de conflitos, a disseminação de valores e a comunicação social. É no embate político que minha investigação se assenta, e por suposto, exige a observação do contexto no qual é produzido. É esse sentido que destaco a pertinência de ferramentas críticas da história dos discursos políticos e da antropologia ritual. A primeira embasada nas leituras sobre história das linguagens políticas de Jonh Pocock (2003; 2011) e suas repercussões para a América Latina nas problematizações de Elias José Palti (2007; 2014). O que implica um olhar contextualista para evitar cair na lógica de desviações e atavismo que a história das ideias postulou nas interpretações da historiografia do continente5. A partir desses autores, penso tanto as festas quanto o dito nas festas, não pelo seu conteúdo em si, mas pelos sentidos e posicionamentos que suas assertivas tomam nos debates conjunturais que vivenciavam. A segunda, em seu turno, fundamenta-se na centralidade dos rituais na forma de elementos para a compreensão política da sociedade, o que retira esses fenômenos das categorias de vazios solenes, de pitoresco, ou de acessório e lhes insere no bojo das disputas sociais. Esse é o movimento que faz Victor Turner ao estudar os conflitos sociais entre os Ndembu, localizando o rito na posição de agente de transformações dentro do grupo social (TURNER, 1974, p. 204). A aplicação de sua ideia de drama social implica em segmentar as desarmonias coletivas em fases: ruptura, intensificação da crise, ação reparadora e desfecho. Entre as duas últimas, formas rituais — a exemplo das festas — aparecem propondo pautas a serem legitimadas ou rechaçadas, desembocando em reintegração ou definitiva secessão social (TURNER, 2008, p. 33-37). As pontes elaboradas entre conflito e rito são centrais para a compreensão que proponho das festas do Centenário de Simon Bolívar como ação simbólica

5 Promovo uma argumentação extensa sobre esse aspecto ao discutir Germán Carrera Damas e sua obra no Capítulo 1.

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inseridas no debate público venezuelano, mostrando que, na Venezuela, crises e festas caminham de mãos dadas. Edmund Leach, por sua vez, ao se opor à suposição que relaciona rituais de grupos ditos “primitivos” com a irracionalidade, expõe que a ação ritual não depende de elementos de fé individual daquele que nele toma parte: a exemplo da noiva no casamento cristão inglês, que tanto pode ser ateia quanto consciente da necessidade do casamento para legitimar seus filhos ante a sociedade e, portanto, sua participação no ritual não implique crença (LEACH, 1983, p. 119-121). Em nível de sociedade, um investigador pode observar muito sobre as relações sociais caso marche atento às ritualidades mais frequentes, já que “[...] as ações rituais [...] servem para ‘dizer algo’ sobre a situação social ou condição social das partes envolvidas” (LEACH, 1983, p. 124). O essencial em sua abordagem é que o comportamento simbólico público, antes que uma expressão de crença no mágico (e, portanto, irracional) é um meio de comunicação definido culturalmente: uma linguagem econômica compartilhada entre os atores que estão no palco e na plateia (LEACH, 1983, p. 140-141). Para as festas bolivarianas isso significa pensar que há uma linguagem operando a comunicação de diversos grupos sociais presentes na arena simbólica, sem que isso aluda necessariamente à fé na natureza divina ou profética de Simon Bolívar, mas possa ser atribuído a uma demonstração racional de adesão a um regime político em vigor e/ou a seu programa para o estanque das sucessivas crises sociais. A proposta de Stanley Tambiah contempla Turner e Leach, ainda que não enfatize espacialmente a profundida de nenhum dos dois. O mais significante aspecto de seu trabalho é, no entanto, a vinculação definitiva entre a ação ritual e a linguagem sob o seguinte conceito:

Ritual é um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica. É constituído por sequências ordenadas e uniformizadas de palavras e atos, muitas vezes expressas em vários meios de comunicação, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados por variados graus de formalidade (convencionalismo), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). Ação ritual em suas características constitutivas é performativa nestes três sentidos: no sentido que Austin dá ao performativo, onde dizer é fazer como ato convencional; no bem diferente sentido de uma performance encenada que usa vários meios pelos quais os participantes experimentam intensamente o evento; e no sentido de valores indiciais — derivo a este conceito de Peirce — que são vinculados ou inferidos pelos atores durante a performance.6 (TAMBIAH, 1985, p. 128)7

6 No presente trabalho, todas as citações em idiomas estrangeiros aparecerão como traduções livres no corpo do texto, com os respectivos originais indicados por notas de rodapé. Exceção feita às citações em espanhol, que serão mantidas no original, inclusive respeitando a grafia do contexto — em especial para as fontes do século XIX. 7 No original lê-se: “Ritual is a culturally constructed system of symbolic communication. It is constituted of patterned and ordered sequences of words and acts, often expressed in multiple media, whose content and arrangement are characterized in varying degree by formality (conventionality), stereotypy (rigidity), condensation (fusion), and redundancy (repetition). Ritual action in its constitutive features is performative in these three senses: in the Austinian sense of performative, wherein saying something is also doing something as a conventional act; in the quite different sense of a staged performance that uses multiple media by which the participants experience

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Na sua teoria do ritual, a ideia de eficácia aparece enredada no valor performativo que orbita na cosmologia de determinado grupo humano. Ou seja, há um contexto que precede o ritual e limita as possibilidades performativas, embora isso não signifique que as determine. As performances além de ordenamentos, integrações e continuidades, também promovem transformações, reatualizações e criações da — e na — cosmovisão (TAMBIAH, 1985, p. 130). Aqui há uma semelhança com os intercâmbios entre atos de fala e linguagens em Pocock (2003), o que permite trabalhar com os dois autores em paralelo, um em atenção à ação ritual e outro para o discurso textual. O resultado em ambos é que texto e ritual não são ações ou enunciados que correspondem ou derivam de um sistema de ideais; eles envolvem os domínios do pensar e agir, além de serem eficazes, em alguma medida, em relação ao seu contexto. A consequência dessa proposta é que, em definitivo, procuro me afastar do método de Carrera Damas, tanto para a análise das crônicas quanto para a compreensão da festa-acontecimento. Por fim, Tambiah fornece duas premissas que amarram minhas análises: 1. A indistinção entre o rito cívico e o rito sagrado, em vista da analogia entre o sacro e o tradicionalizante que desvincula a exclusividade entre sagrado e divino ou além-mundo; 2. E a ideia de que o ritual não é uma livre expressão de emoções particulares, senão um disciplinado ensaio de atitudes socialmente entendidas enquanto corretas (TAMBIAH, 1985, p. 130, 133- 134). Nas festas bolivarianas, isso se reflete na divinização de Simon Bolívar como um elemento da religião cívica venezuelana, comprometida com o funcionamento do Estado, e a integração coletiva ao rito na forma de sua procissão. De posse de tais fundamentos, é possível pensar o que diziam querer os governos ao promover as festas? O que de fato faziam quando celebravam? De que modo gestavam signos e lhes atribuíam sentidos? Qual papel social da crônica festiva? Em que proporção ela age sobre a festa? Que sentidos lhe sobrepõe? Dessa maneira, as festas bolivarianas parecem uma fonte de fartas perguntas que estimulam novos exames sobre a realidade político-social da Venezuela. Investigá-las, consequentemente, significa atentar para o substrato da política oitocentista, na linguagem que possibilitou enunciações sobre uma Venezuela em construção. Vale salientar que as incertezas estavam postas e sequer havia uma narrativa nacional consolidada. Embora o tom desses discursos se assemelhasse à retórica da unidade, caso examinados mais de perto, os festejos denotavam os paroxismos dramáticos vivenciados por essa sociedade: Bolívares, Venezuelas, elites, povos e projetos eram versões inacabadas — the event intensively; and in the sense of indexical values — I derive this concept from Peirce — being attached to and inferred by actors during the performance.”

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como ainda são — imersas no debate político-intelectual que experimentavam popularidade ao sabor do contexto e da linguagem ritual. Isto é, as festas participaram do esforço para conciliar os significados díspares de personagens da narrativa política nacional: um herói que lutara contra a gênese da Venezuela independente e morrera exilado pela mesma; uma elite governante que, cedo, fizera da guerra fratricida seu cotidiano; um povo disposto a sublevações de cunho sócio-racial contra um Estado em formação; e as promessas do progresso, em abstrato, na qualidade de objetivos de um eterno porvir. Nesse cenário, as comemorações serviam de palco para ensejar a concórdia social, de espaço para potenciais atribuições ao devir histórico nacional e de chance para a aceitação e a sacralização de um passado via aclamação coletiva e ritualização no tempo extraordinário. As festas bolivarianas foram, portanto, lugar de invenção e vivência de uma forma de coletividade, argamassa que preenchia os sentidos lacunares produzidos na arena pública ordinária. Tais quais eventos nacionais, as celebrações conformaram projeções dos debates sobre uma nação desejada. Ainda que essa aspiração deva, sempre, ser submetida aos crivos do “por quem?” e do “para quem?”, ela implicava, necessariamente, em pensar disputas protagonizadas por venezuelanos sobre deliberações nacionais. Consequentemente, não se trata da adequação ao universalismo ocidental no qual se confrontam os tradicionalismos autóctones e o drama de ser moderno fora do Ocidente. Ao revés, a análise desses eventos é uma oportunidade para ponderar, no cenário venezuelano, sobre o imperativo descolonizador que Partha Chartterjee usa para pensar Oriente (2008, p. 105). Tal reflexão demanda o compromisso intelectual com determinados exercícios: 1. Escapar à categoria de excepcionalidade, visto que nem há uma trajetória histórica preconcebida, nem a modernização é um fim inexorável; 2. Reclamar o direito de historicizar a imaginação alheio aos padrões da modernidade ocidental, ou seja, reivindicar para seu passado a possibilidade de inventar — para além do resistir — ao se defrontar com o mundo moderno; e 3. Compreender o próprio passado numa dimensão menos homogênea e linear, isto é, investigá-lo num tempo em andamento, inacabado, no qual se sobrepunham homens e contextos capazes de lhes atribuir nexos diversos. Dessa forma, inquirir as festas bolivarianas, em especial o Centenário de Bolívar, pelo prisma da história dos discursos políticos e da antropologia ritual, significa perceber as formas com que as elites governantes da Venezuela entenderam, debateram e tramaram determinados aspectos do mundo moderno, sendo capazes de lhes atribuir valores e sentidos

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próprios à sua experiência histórica. Em paralelo, os mesmos fenômenos denotam o quanto as percepções de mundo e de temporalidade foram negociadas e popularizadas em efervescências coletivas, que ao celebrarem o passado nacional consolidavam paulatinamente uma imagem de Venezuela em processos de modernização política, científica, material, etc. Visto isso, a festa não pode ser entendida enquanto fim das análises, senão como um nicho comunicacional que permite avaliar as circunstâncias dos principais debates em vigência nessa sociedade. Encarados na configuração de elementos com dimensão política, os festejos servem de chave para compreensão do contexto no qual foram formulados e os encaixes sociais que disseminaram entre futuro e passado. Entremeado nas constantes convulsões políticas da sociedade venezuelana, o rito bolivariano é o momento em que se tenta produzir a estabilidade e, portanto, diz muito sobre o enfrentamento que as elites venezuelanas destinaram às crises e que propostas imaginaram para ultrapassá-las.

AS FESTAS BOLIVARIANAS NA VENEZUELA OITOCENTISTA

Toda festa popular pode ser entendida, também, enquanto festa política, pois é a participação coletiva que transforma o mais trivial dos eventos num rito a ser associado ou assimilado por poderes. Se o carnaval com toda sua irreverência e aparente desordem — que nada mais é que a subversão da ordem cotidiana — se torna manancial para homenagear, valorizar, ridicularizar ou criticar personalidades públicas e suas ações, o que pode se pensar então de uma festa mais rigidamente orquestrada a partir de um âmbito administrativo? As festas cívicas são igualmente espaços de disputas públicas (TURNER, 1974), embora nelas se utilizem máscaras e adereços mais discretos. Fantasiados de iguais, de fraternos ou de cidadãos, os — outrora desagregados — celebrantes encontram na comunidade uma forma apropriada para se apresentarem tal e qual metáfora de pátria e/ou nação. Vale salientar que, com festas cívicas, refiro-me a qualquer ritual dirigido pelo Estado ou delegado pelo governo a organizações e/ou a particulares, imbuído de celebrar laços de pertencimento a uma esfera social cidadã: valores, normas, memórias, narrativas, personagens, entre outros. Tendo em mente sua origem nos propósitos de governos, pode-se entender, por outro lado, essas festas como dinâmicas de consagração da sociedade a si — e por si — própria, deificando no tempo extraordinário seus vínculos mais elementares. Por isso mesmo, constituem-se em espaços pertinentes para a apresentação e para a comunhão simbólica de projetos políticos.

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As comemorações cívicas são, portanto, elementos comuns à vida social moderna, que se diferenciam umas das outras de acordo com o seu objeto de culto. A festa cívica venezuelana, por exemplo, alude à produção de uma unanimidade ritual dos venezuelanos enquanto integrantes de uma mesma entidade política, isto é, são comemorações nas quais se reatualizam os laços da venezolanidad. A festa cívica bolivariana, em seu turno, escapa à Venezuela, podendo estar associada a quaisquer entidades locais, nacionais, supranacionais ou mesmo continental. Sua definição está associada a um ritual centrado no herói, o que implica no uso da linguagem e da comunicação simbólica, próprias ao bolivarianismo. Essa distinção não implica em conjuntos exclusivos ou excludentes, visto que há solenidades que transcorrem em torno de dois ou mais objetos de culto. Ao longo do século XIX, a correlação entre o Libertador e a pátria constituiu uma ritualística atuante na vida política venezuelana, isto é, as festas bolivarianas na Caracas oitocentista proporcionaram, em nível de país, tentativas de difundir expectativas e compromissos coletivos, além de proposições para desarticular conflitos sociais. Com o objetivo de compreender o funcionamento dessa semântica ritual, em especial de que modo foi capaz de estabelecer comunicação social por meio da adequação de símbolos e narrativas a diversas conjunturas, é relevante investigar festas-chave e tomar nota de seu horizonte de enunciação. Tais celebrações devem responder a certos critérios. O principal deles é a capacidade de suspender o curso prosaico do tempo, e, nesse aspecto, quanto mais esplêndido e não repetível o evento fosse, maior deve ter sido sua propensão em mobilizar paixões. Um ritual de caráter extraordinário é eficaz em incitar, com intensidade, a coletividade a se rearticular fora de padrões sociais usuais, enredando valores a serem difundidos acima de hierarquias ou condutas habituais. Parece óbvio, mas é importante que seja pontuado, que o inesperado desvia a comunidade de sua rotina, obrigando-a a apostar no que há de primordial para manter estáveis seus vínculos e sua coesão. Averiguo, portanto, ritos de passagem — não belicosos — comprometidos com as transformações de vivências coletivas, mantendo intactas ou pouco alteradas as estruturas de sociedade ao se retomar o fluxo do tempo comum. De modo sistemático, as festas que estudo respondem a três premissas: 1. Tiveram em Caracas o teatro de sua articulação simbólica e trataram desse palco pela fórmula de centro político da entidade Venezuela; 2. Estiveram imersas em situações de crises sociais e articularam, em alguma medida, respostas à sociedade sobre o conflito em questão; 3. E situaram-se fora do calendário ordinário, o que não significa dizer que foram festas sem uma organização pré-estabelecida, mas sim que foram fenômenos singulares nos quais uma

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linguagem comum foi utilizada para produzir enunciados originais e circunscritos. Nesse recorte, encontro três eventos: 1. A Entrada triunfal de Simon Bolívar em Caracas (1827); 2. As Honras fúnebres a Bolívar (1842); 3. O Centenário de Bolívar (1883). Considerando que a história da Venezuela não é um domínio usual à historiografia brasileira, parece-me prudente tomar algumas páginas para situar as festas e os demais acontecimentos que as envolvem numa narrativa cronológica. Essa tarefa, contudo, não tem pretensões de explicar a história da sociedade, mas somente oferecer uma base para compreensão dos contextos nos quais as comemorações transcorreram, tendo em mente que um debate mais aprofundado sobre os mesmos será delineado nos capítulos deste trabalho. Durante as lutas pela libertação das Américas, foi comum, nas cidades principais, receberem-se os generais vitoriosos em campanhas com entradas triunfais, numa retórica que lembra a Roma Antiga. Simon Bolívar foi especialmente agraciado com essas cerimônias, tanto pela centralidade no comando das tropas patriotas quanto pelos seus feitos militares extraordinários e a mística que paulatinamente foi construída ao seu redor. De todo modo, nesses eventos não há nada mais a observar que o louvor à vitória conquistada sem grandes requintes, debates ou enredos simbólicos. Não havia ainda uma linguagem votiva ao Libertador, que só foi desenvolvida ao longo das campanhas emancipacionistas por panegíricos, homenagens, cerimônias, leis, pelos próprios escritos do herói, etc. Ademais, a centralidade da atenção dessas comunidades, por ora, dizia respeito aos esforços da guerra contra os espanhóis peninsulares, não existindo muita margem para outros debates. Apesar de semelhante a essas primeiras celebrações, o evento que pode ser descrito como primeira festa bolivariana na Venezuela é a Entrada triunfal de Bolívar em Caracas, no ano de 1827, já em um contexto no qual a Libertação era um feito materializado. Depois do fim das guerras de independência, em especial com a vitória do Exército Libertador na batalha de Ayacucho, no Peru (1824), Bolívar permanecia nas Campañas del Sur consolidando a estrutura estatal da recém-fundada República da Bolívia. Na ausência do então presidente e de seu generalato mais próximo e leal a seus ideais, a exemplo de Antonio Sucre e Jacinto Lara, a Grã-Colômbia estava sob o comando do vice-presidente Francisco de Paula Santander e do chefe do Departamento da Venezuela José Antônio Páez, longe do olhar paternal, pronto, as tendências separatistas impeliram ambos os próceres a um conflito de autoridade. Em suma, as impossibilidades de Páez em atender o recrutamento de venezuelanos, decretado da Ley de Milicias (1824) do governo de Bogotá, o fizeram abrir mão do poder em

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Caracas. Entretanto, o general se negou a seguir até Nova Granada para prestar explicações, conforme requisitara o Senado de Bogotá. Ao invés disso, Páez instalou-se em Valência em 1826 e logo que a população local se alçou em rebelião contra o governo central, foi chamado pelos pueblos a retomar o mando do país. Juntou-se à revolta Santiago Mariño, um caudillo importante das guerras de independência, com tendências federalistas, que desagradavam a Bolívar. Reunidos, entraram em desacato às ordens da presidência interina de Santander e tentaram promover a secessão da Venezuela em relação à Grã-Colômbia. Ao receber notícias da rebelião que avançava e do perigo de decorrer dali uma aniquiladora guerra civil, o Libertador partiu às pressas do Peru para contornar a situação em sua terra natal. Em idos de 1826, desembarcou em Puerto Cabello e tratou, com sua argúcia política, de desarmar Páez e Mariño, declarando seus indultos e ofertando-lhes encargos administrativos e militares, caso ambos debelassem a revolta. A, por hora, bem-sucedida jornada de Bolívar valera-lhe a celebração de uma recepção triunfal por parte da municipalidad de Caracas no início de 1827, que curiosamente celebrava sua capacidade de pacificar a região sem o uso da força. O enredo dessa festa tratou de uma reconciliação com o programa unionista bolivariano, da harmonização da sociedade venezuelana e de fidelização à liderança heroica. O mesmo Páez que se levantara contra a Grã-Colômbia participou da homenagem de forma incisiva, em discursos e recebendo uma espada de presente de Bolívar. Mas nem toda a articulação do Libertador foi o suficiente para deter o esfacelamento da confederação. O fracasso da convenção de Ocaña, em 1828, provou a incapacidade das elites regionais e das lideranças militares de chegar a um acordo para uma legislação capaz de atender a interesses comuns. A ditadura de Bolívar, que se seguiu, foi um último suspiro de um caudillo desesperado para manter a união do Estado sob sua autoridade administrativa. Entretanto, seu insucesso culminou, em 1830, com o seu exílio e posterior morte, além da desarticulação do conglomerado político em três países: Venezuela, Nova Granada e Equador. Páez, ainda no poder, foi um dos protagonistas da desagregação, articulando diretamente pela separação venezuelana. O caudillo seguiu governando seu país por um mandato provisional (1829-1831) e um mandato eletivo (1831-1835), afastando-se do executivo nacional somente nas eleições de 1834, quando sai vitorioso para presidente o médico e catedrático José Maria Vargas. Com um histórico de atuação parlamentar, Vargas era uma personalidade eminente na sociedade venezuelana pelo seu papel positivo no reitorado da Universidade de Caracas e, consequentemente, um intelectual respeitado, com potencial e

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carisma para estabelecer um poder civilista sobre a nascente República, conforme o desejo dos setores conservadores no Congresso Nacional. O primeiro líder civil da Venezuela, no entanto, pouco governa, visto que no ano de sua posse (1835) foi derrubado por uma aliança entre militares oriundos das guerras de independência e terratenentes, liderada pelo mesmo Santiago Mariño, que se insurgira junto a Páez na Cosiata (1826). Essa subversão entrou para a história com o título de Revolución de las Reformas de 1835-1836, o primeiro grande enfrentamento interno das classes governantes venezuelanas. Em seus principais argumentos, os sediciosos se opunham ao domínio do Estado por uma elite comercial assentada no eixo Valência e Caracas8, à abolição do foro militar e ao modelo misto centro-federalista. Levantando a bandeira do federalismo, do legado bolivariano e, de modo indireto, do procerato9, as tropas acaudilladas tomaram Caracas e instauraram um efêmero governo. Segundo Tomás Straka (2010, p. 30), Páez foi convidado tanto pelos insurretos quanto pelo presidente deposto a tomar partido no conflito, optando pelo bando civilista-conservador, pois vislumbrava a manutenção do legado de seus governos. Sob o comando do el centauro llanero10, a vitória do setor conservador foi rápida. Em 1836 se restituiu a presidência a Vargas e o Congresso promulgou o Decreto Monstruo contra as lideranças reformistas. A “Resolución de 19 de marzo de 1836”, em linhas gerais, tratou da remoção de empregos, patentes militares, títulos, pensões, benefícios e condições dos derrotados, além do exílio perpétuo e da pena de morte para aqueles que ousassem a voltar ao país (VENEZUELA, 1836, p. 141-144). Entretanto, esse documento não foi aceito pelo todo da sociedade civil. Tomás Lander, periodista e político, foi o maior porta-voz da resistência a essa lei. Lander participou ativamente da Cosiata, em 1827, deixando de lado a vida pública após a conciliação entre Bolívar e Páez, já que reconhecera as benesses da conciliação política, embora seguisse em desacordo com a participação da Venezuela na Grã-Colômbia e do que dizia ser um “[...] poder vitalício” (LANDER, 1836, p. 1) de Bolívar. Em 1832 voltou à vida política se elegendo deputado e, em 1834, apoiou com entusiasmo a eleição de Vargas. Em

8 Esse grupo ficou conhecido por uma diversidade de epítetos: Oligarquia, Partido da Ordem, Partido Constitucional, Partido Conservador, ou Godos — em alusão a relação com espanhóis peninsulares. 9 Refiro-me ao reconhecimento público e legal da primazia dos heróis da independência sobre a sociedade, segundo a terminologia de Diego Bautista Urbaneja (2004). 10 Apelido dado a Páez durante a guerra de independência, por seu comando das tropas montadas oriundas da região do Llanos venezuelano. Para mais informações sobre a simbólica que envolve esse epíteto, recomendo a leitura do artigo MORA QUEIPO, E.; GONZALEZ QUEIPO, J.; RICHARD DE MORA, D. (2007). El centauro llanero: Sus Mitos y Símbolos en la Identidad Nacional Venezolana. Opcion, Maracaibo, v. 23, n. 53, pp. 91-111.

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1836, criticou severamente o Decreto Monstruo, que considerava um flagrante casuísmo em favor da aniquilação dos reformistas, visto que ofertava ao executivo competências que não eram previstas na constituição, posicionamento cristalizado em sua petição ao então presidente Vargas (LANDER, 1836). Somada ao fato de Páez ter sido reeleito presidente em 1839, obliterando a alternância de poder, talvez nessa discordância esteja o gérmen do que levaria Lander junto aos polemistas Antonio Leocadio Guzmán e Valetin Espinal a fundar o Partido Liberal em 1840. Essa nova entidade marca uma fissura definitiva no cotidiano político nacional, uma vez que desde seu princípio seguiu opondo-se ao paecismo11 e ao pensamento conservador, amparado numa versão do legado bolivariano. Na medida em que as demandas populares encontraram eco na propaganda liberal e que essa combinação desenvolveu um potencial revolucionário ou no mínimo capaz de instabilizar a ordem pública, Páez tratou de disputar a primazia simbólica da política nacional com o grupo de Lander e Leocadio Guzmán. As Honras Fúnebres a Bolívar em 1842 foi uma cerimônia promovida pelo governo paecista no contexto de sectarismos de bandeiras. De certo modo, nessa festa houve uma reatualização dos usos da semântica da Entrada triunfal de 1827. Isso explica porque seu ritual empregou a memória de Bolívar na forma de linguagem para enunciar a concórdia e harmonia nacional. Em termos genéricos, com a celebração, o centeauro llanero conseguiu associar-se de forma direta à herança bolivariana, numa manipulação da narrativa histórica profundamente criticada por parte de periodistas liberais, a exemplo de Leocadio Guzmán. Depois de anos de peleias intermitentes nos quais Páez gozou de grande influência nos rumos da administração pública, a Guerra Federal (1859-1863) causou a derrocada em definitivo do paecismo no cenário governamental ao passo em que promoveu a ascensão do Partido Liberal à cabeceira do poder nacional. Nas fileiras do liberalismo amarillo — vulgo federalistas — estavam Juan Crisóstomo Falcón, Ezequiel Zamora e Antonio Guzmán Blanco, filho de Leocadio Guzmán, personagens centrais das próximas três décadas da política venezuelana. Zamora, popular General del pueblo soberano, foi assassinado durante o conflito em 1860. Seu legado de lutas campesinas e de demandas sociais, no entanto, permanecia no horizonte venezuelano, alarmando as elites governistas. Falcón e Guzmán Blanco, mais ligados à caudillaje regional, depois da vitória na Guerra Federal trataram de estabelecer a concórdia

11 Nesse texto, o termo paecismo pode ser entendido tanto como sinônimo do movimento político encabeçado pelo caudillo José Antonio Páez, quanto como nomenclatura do período em que o mesmo exerceu a hegemonia na vida política da Venezuela, que corresponde ao espaço temporal de 1830-1847 ou 1830-1863.

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entre os antigos adversários, sob o marco de um projeto nacional unificado. Referências legais dessa orientação, o “Tratado de Coche” (1863), o “Decreto de garantías” (1863) e a nova “Constituición” (1864) foram bases para o estabelecimento de uma plataforma federalista e liberal-democrática, na qual se poderia transcorrer o jogo político por vias desarmadas e assegurar direitos às camadas populares, diminuindo tensões sociais. Falcón, contudo, fracassa em vincular as elites locais no seu projeto de governo, de forma que os mesmos grupos com quem se aliara durante a Guerra Federal foram causa do declínio de seu governo (1863-1868). Nesse aspecto, Guzmán Blanco fora mais habilidoso. Ascendendo ao poder na Revolução de abril (1870), o Ilustre Americano impõe sua hegemonia à vida pública venezuelana ao longo de quase 20 anos, num período conhecido por Guzmanato (1870-1888). Durante esse interregno, Guzmán Blanco soube pactuar o poder com os caudillos regionais. Embora volta e meia se visse aplacando revoltas regionais, submetia pouco a pouco as lideranças locais ao mando da administração central da Federação e ao projeto de modernização nacional. Nesse processo, o emprego de rituais cívicos em homenagem ao procerato foi significativo para disseminação de enunciados sobre a integração nacional e a necessidade de edificar um Estado moderno. Dentre esses, sem dúvida, o mais magnífico dos eventos foi o Centenário de Simon Bolívar em Caracas (1883). Organizadas por Leocadio Guzmán, pai de Guzmán Blanco, as celebrações — realizadas em pouco mais de uma semana — enredaram as principais cidades da Venezuela numa liturgia mais ou menos harmônica, que pôs em evidência pautas para a situação política de turno: a necessidade de suplantar as forças da caudillaje regional, o posicionamento e os valores de Caracas na figura de centro de poder nacional, a conexão da Venezuela com a narrativa ocidental do progresso, etc. Dada a profusão de símbolos socialmente compartilhados e a experiência dos festejos anteriores, no Centenário foi possível comemorar a unidade nacional sob a efígie de seu fundador, pai da pátria e profeta. No percurso entre 1827 e 1883, os ritos bolivarianos compartilharam linguagens, símbolos e atribuições, entretanto o caráter elástico das celebrações assegurarou uma adaptabilidade às circunstâncias nas quais transcorreram. Dito doutra maneira, cada cerimônia atendeu as exigências da conjuntura política e/ou de crises nas quais se inseriam, proporcionando palanque para difusão de um debate público não belicoso. De modo que, para compreender o que as celebrações ofertavam à sociedade, uma estratégia coerente é investigar as crônicas elaboradas nas efemérides associadas à análise, sempre que possível, de discursos e documentos que foram deixados de fora dos relatos principais.

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É certo que essas fontes não podem ser pensadas enquanto completas ou imparciais. Em geral, suas narrativas se vinculavam aos interesses dos organizadores dos rituais, cristalizando uma leitura de “o que se queria fazer quando se fez?” e “o que queria se dizer com o que foi dito?”. Portanto, são documentos chave para entender de onde, para quem, com que intenção e de que modo as festas geriam símbolos e sentidos para apresentar enunciados a seu público. Cada efeméride supracitada foi narrada numa crônica oficial ou oficializada pelo governo de turno. “Sucinta descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827”, de Valentin Espinal (1827); “Descripción de los honores fúnebres consagrados a los restos del Libertador Simon Bolivar”, de Fermín Toro (1843); e “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar”, de Ramón Hurtado Sanchéz (1883), são índices para contemplar as relações entre os arranjos performáticos e seus empregos na exposição de pautas. Em contrapartida, enquanto fenômeno histórico inacabado em sua execução, as comemorações estavam sujeitas à casualidade, ao inesperado e aos sabores das efervescências coletivas. Em vista disso, nem toda perfórmance pública decorreu igual ao seu roteiro. Por esse ângulo, as crônicas continuam sendo marcadores perenes diante da fugacidade e da contingência dos eventos examinados. Dita numa disposição mais sistemática, a concepção de crônicas festivas com a qual trabalho corresponde a um complexo de enunciados e discursos proferidos no decorrer das cerimônias, amarrados mediante justificativas políticas, sociais e históricas de cronistas envolvidos nas conturbações de seu tempo. Para tanto, suas composições implicaram necessariamente em seleções de falas, obliteração de eventos e retificação de memórias com o intuito de gerar coesão a diegese apresentada. No mais, os relatos são inscritos na retórica do bolivarianismo, isto é, tal qual a festa, tomam o passado libertador como eixo de sua interlocução. Em suma, observar o aspecto comunicacional dos rituais bolivarianos oitocentistas implica desenvolver um olhar para a gestão de símbolos e sentidos mediante as crises sociais. As efemérides abriram exceções no cotidiano de conflitos armados, demonstrando assim outra face da experiência venezuelana na modernidade em suas relações com elementos, a exemplo de progresso, Estado, nação, comunidade, cidadania, etc.

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DESCRIÇÃO DOS CAPÍTULOS

A estrutura desta dissertação foi pensada numa gradação entre discussões mais amplas sobre bolivarianismo e seus alcances sociais até os sentidos mais restritos do Centenário de Bolívar (1883) em seu contexto político. Para tanto, foi necessário localizar as festas em meio ao culto bolivariano e desenvolver uma intepretação de sua sedimentação em instrumento da política nacional. Esse percurso descreve sistematicamente os capítulos de meu trabalho, que trafegam no sentido do Culto heroico, das Festas cívicas e do Centenário do Libertador. O primeiro capítulo, intitulado “O Culto”, é composto por três subdivisões: 1. Uma problematização da interpretação de Germán Carreras Damas sobre o bolivarianismo; 2. O reconhecimento das dimensões e fronteiras dos usos da imagem de Bolívar enquanto fenômeno social venezuelano; 3. E a necessidade de investigar o paradigma cultual na forma de um conjunto heterogêneo de manifestações que comungam da linguagem do bolivarianismo, no qual as festas ocupam uma posição de destaque. No primeiro caso, busco desnaturalizar os juízos da história das ideias de Carrera Damas, na qualidade de marco para os estudos do bolivarianismo. Isso quer dizer destrinchar a perspectiva desse autor em pontos problemáticos e questões que seguem pertinentes para os debates que proponho neste estudo. No segundo tópico, há uma preocupação em pensar os alcances do símbolo Bolívar na tradição política venezuelana a partir de diversas chaves interpretativas: o culto a Bolívar, o historicismo bolivariano, a mítica do passado libertador, o herói para todas as causas, o santo de vestir, etc. Todas essas são oportunas metáforas que atalham por algum aspecto a mutabilidade e a amplitude das relações que a sociedade venezuelana desenvolveu com seu prócer e, consequentemente, merecem uma apreciação interessada em identificar um denominador comum. Quanto à terceira discussão, trata-se do desenvolvimento de um argumento autoral relativo à imprecisão de analisar o bolivarianismo sob a fórmula de um monólito ou mesmo um fenômeno homogêneo que paire ao longo da história venezuelana. Em oposição, proponho encará-lo num conjunto plural de eventos que se assenta no compartilhamento de um idioma para comunicação social, dentre os quais os rituais bolivarianos despontam, por suas intrínsecas polissemia e efervescência coletiva. O segundo capítulo, “As Festas”, é dedicado a uma análise mais específica sobre a maneira com que as festas atribuem sentidos para as imagens de Bolívar que circulam na sociedade, agindo politicamente sobre seus contextos históricos. Focado em fornecer uma chave para a compreensão da linguagem festiva empregada no Centenário de Bolívar, em 1883,

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o debate se circunscreve às duas principais festas que lhe precedem na primeira metade do século XIX: a Entrada triunfal de Bolívar em Caracas (1827) e as Honras fúnebres ao Libertador em Caracas (1842). Desse modo, tento produzir um exame sobre duas facetas das festas bolivarianas: a forma com que elas se sedimentaram enquanto comunicação simbólica no espaço político nacional e o método interno de gestão dos símbolos atrelados a Bolívar para que prestassem sentidos ante a realidade social venezuelana em suas crises. “O Centenário” é o título do capítulo 3, escrito com a finalidade de compreender, no aniversário dos cem anos de nascimento de Bolívar, que sentidos as comemorações foram capazes de gerir sobre os debates que circulam na arena política e que resoluções propõem às fases desarmônicas dos dramas sociais. A constituição de uma nova ordem político- administrativa foi central nos debates venezuelanos na segunda metade do século XIX. Logo, é conveniente questionar o trajeto dos conflitos que irromperam nesse contexto, num recorte que vai do desfecho da guerra federal (1858–1863) — maior conflito armado da história venezuelana depois das guerras de independência — ao período de poder do autocrata Antonio Guzmán Blanco, interregno denominado por Guzmanato (1870–1888). Nesse lapso de tempo, a integração política interna da Venezuela e sua simultânea vinculação ao sistema capitalista em escala global foram desafios enfrentados por um esforço inédito de projetar a nação, no qual acredito que as festas bolivarianas desempenharam papéis fundamentais. Nessa esteira, a comemoração do Centenário de Bolívar promoveu um conjunto de enunciados que vincularam passado e presente de forma irrevogável, servindo de estabilidade temporal para o devir almejado pelos grupos no poder. Reunindo as conclusões já fundamentadas sobre as lógicas internas do bolivarianismo, a linguagem das festas bolivarianas e o drama social venezuelano, é possível discutir como as elites governantes pensaram em — através do sistema cultural de comunicação simbólica — conquistar o consentimento popular às suas estratégias para experienciar o progresso. As análises das narrativas festivas “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar”, de Ramón Hurtado Sanchéz (1883) e “La exponsición nacional de Venezuela en 1883”, de Adolf Ernest (1883), e dos documentos de época catalogados em “Caracas 1883 (centenario del natalicio del Libertador)”, por Rafael Ramon Castellanos (1983), permitem compreender de que maneira a atribuição de nexos à imagem do Libertador é perpassada pela modernização do país, seja em aspectos políticos, administrativos, científicos, arquitetônicos, etc. Dessa forma, pondero sobre as comemorações enquanto palco no qual contracenam duas miragens: o herói precursor e o imperativo modernizador.

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CAPÍTULO 1

O CULTO ______Mas herói de quê, amado por quem? Agora, que o país era uma machamba de ruínas, me chamavam a mim, pequenito carpinteiro!? O pangolim se intrigou: — Não lhe apetece ficar vivo, outra vez? — Não. Como está a minha terra, não me apetece. Mia Couto, “A Varanda do Frangipani”.

Difuso em variados âmbitos da sociedade venezuelana, o bolivariansimo tem mobilizado debates nas ciências sociais dedicadas à compreensão da América Latina. Por um lado, sua relação implícita com o “fundar a nação” e sua longevidade enquanto fenômeno social influente na política nacional, garantem sua permanência no horizonte de investigações dedicadas à vida pública venezuelana. Por outro lado, suas dimensões colossais e seu caráter multifacetário indicam uma necessária diversidade de abordagens, produzindo trabalhos sobre aspectos variados quanto a sua natureza e seus efeitos sobre a comunidade que edifica. Nesse campo já vastamente povoado de pesquisas, ainda há fôlego para investigar o paradigma cultual por um enfoque particular e pouco explorado: as festas cívicas bolivarianas do século XIX venezuelano, em sua importância para o debate público de uma sociedade afeita a resolver suas pendências nos conflitos armados. Nesse primeiro capítulo, em específico, os esforços gravitam sobre a compreensão das festas bolivarianas como parte da constelação cultual. Para tanto, é necessário afastar-se das interpretações simplistas ou ilusórias, que impliquem esses rituais nas imagens de uma sociedade curvando-se ante seu herói endeusado. Nas investigações sobre as festas, encontra-se a possibilidade de compreender debates-chave para determinados contextos sociais através das tramas políticas que lhes dão suporte. As celebrações como irrupções no tempo quotidiano — momentos de exceção social nos quais pode imperar uma aura sacralizadora — com o intuito de restaurar, rearranjar, reafirmar ou reencenar a comunhão coletiva, foram também instantes oportunos para estabelecer uma comunicação de abrangência massiva. Sob as vestes de unanimidades ficcionais, nelas podem ser apresentados argumentos sobre a vida pública, que ganham verniz de verdades socialmente compartilhadas ao se valerem da consagração ritual. Numa parte significativa das festas cívicas venezuelanas, é perceptível o emprego da linguagem bolivariana para legitimação e enunciação de pautas políticas. Na forma de um sistema cultural de

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comunicação simbólica, essas efemérides aglutinaram discursos orais, escritos, gestuais e alegóricos, construindo momentos nos quais, ainda que ficcionalmente, cessavam os bandos políticos e seu quotidiano de atritos armados, dando passagem à instauração de uma arena pública na qual os debatedores são aqueles que organizam as celebrações. Se os governos venezuelanos ao longo do século XIX trataram de consagrar Bolívar como seu prócer máximo e fundador, os incessantes festejos elaborados em sua honra podem ser chave para entender os processos de legitimação de poder no âmbito oficial. Contudo, há de se lançar ressalvas quanto à possibilidade de percebê-las exclusivamente como estratégias de domínio ideológico, cujo monopólio poderia ser empunhado por grupos hegemônicos sob a forma de ferramentas de alienação dos setores populares. Ao revés, as análises das propostas que envolveram o “fazer festa” podem demonstrar um encadeamento sutil de convencimento, sedução e adesão de uma coletividade órfã de estabilidade. Imersa num oceano de elementos que compõem o bolivarianismo, a linguagem festiva se distingue doutras formas cultuais em dois aspectos: 1. A dicotomia entre sua instantaneidade enquanto fenômeno e sua persistência na forma de comunicação; 2. A capacidade de difusão de mensagens sem recorte social, embasada na abrangência do uso de símbolos e na revitalização dos laços comunitários. Essas considerações levam a encarar as comemorações bolivarianas na qualidade de instituições coloquiais da vida política nacional, capazes de instaurar o interregno do extraordinário, no qual o país pôde experimentar propostas — não belicosas — para resolução de crises. A partir desse entendimento é oportuno estabelecer uma discussão sobre os principais juízos político-intelectuais acerca das diversas formas do culto bolivariano, servindo de base para o eixo central da presente investigação: a compreensão dos sentidos e significados formulados nas festas bolivarianas. Com tal intenção, inclino-me a abordar o tema num itinerário entre a percepção ampla do culto a Bolívar12 como elemento idiossincrático venezuelano e a compreensão do lugar das efemérides no interior do culto. Dessa forma, é conveniente inquerir algumas das investigações dos principais intérpretes do culto enquanto fenômeno social, com interesse especial na abrangência das formas meditativas sob as quais o culto atua em diferentes esferas da vida pública venezuelana. De outra parte, o entendimento — comum aos acadêmicos — do culto na fórmula de possível matriz explicativa da história nacional não desemboca numa leitura singular de suas origens e

12 Antecipo que, apesar de criticar algumas das conclusões de Germán Carrera Damas (2003) sobre o bolivarianismo, em nenhum momento discordo da existência de um culto ao prócer, que talvez seja seu maior adendo ao debate sobre o tema. Tão somente, proponho observar esse fenômeno por outro ângulo, vinculado à comunicação simbólica da sociedade venezuelana. Desse modo, culto a Bolívar e bolivarianismo representam sinônimos em minha concepção e serão empregados com esse sentido no presente trabalho.

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funções sociais. Tratar da diversidade de percepções sobre a ação cultual, sob a ótica de estudiosos do tema, é, portanto, uma tarefa imperativa para compreender sua versatilidade. Nesse sentido, duas características do culto requerem um olhar mais atento e inventivo: sua lógica comunicacional e sua polissemia. Para tanto, advogo por uma ruptura parcial e localizada com as leituras mais tradicionais do bolivarianismo. Isto é, o culto não pode mais ser interpretado enquanto um monólito com um único sentido, mas deve ser considerado na forma de uma série de manifestações que de maneiras heterogêneas atuam sobre a sociedade. Essa diversidade fica perceptível na análise de facetas do culto, a exemplo da monumentalização pública, da pedagogia e religião cívica, das narrativas históricas, visto que cada qual cumpre uma função distinta ante a dinâmica social, embora se fundamentem no mesmo sistema simbólico. A festa cívica também tem seu lugar em meio a esse emaranhado, ainda que mereça uma ênfase devido ao seu caráter efêmero, ao rol político que ocupa e aos usos que faz de elementos característicos de outras manifestações cultuais conforme seus objetivos específicos. Desvelar essa multiplicidade é chave para contemplações preocupadas com as circunstâncias nas quais o culto heroico emerge, além das práticas rituais que estimula. Num preâmbulo dessa análise, é compulsório posicionar-se ante a interpretação clássica do bolivarianismo na obra de Germán Carrera Damas. O vasto trabalho do historiador segue inspirando consistentes e atualizados debates sobre o culto heroico venezuelano, merecendo ser notabilizado e ratificado em várias de suas asserções, em especial nas que tangem a história social. Contudo, quando relacionado a história das ideias emergem juízos controversos que requerem uma atenção pormenorizada. Assim, minha crítica se limita a demonstrar de que modo essa leitura restringiu a polissemia do culto heroico numa sorte de episódios percebidos enquanto consolidação de ideologismos, o que, em seu turno, implicou em concepções totalizantes sobre o fenômeno social. Encontrar o lugar do evento — festa — em meio ao bolivarianismo, exige que se abra mão dessas generalizações, para tanto, buscar identificá-las e deslocá-las na obra de Carrera Damas é um ponto de partida relevante.

1.1. AO AUTOR IMPRESCINDÍVEL, UMA PROBLEMATIZAÇÃO NECESSÁRIA: O CULTO ÀS IDEIAS EM GERMÁN CARRERA DAMAS

A vigência do legado político-intelectual de Simon Bolívar, em seus sem-número redimensionamentos e aportes, é um fenômeno que não poderia passar incólume à escrita da história venezuelana. Desde o campo da história pátria oitocentista em seus empenhos para a

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manutenção e/ou reatualização do imaginário bolivariano, passando por esforços revisionistas, a exemplo de José Luis Salcedo-Bastardo (1976), que tenta descolar Bolívar de seu status divinizado para localizá-lo no meio intelectual da independência, até a produção crítica das duas “gerações” de historiadores mais enfáticas no projeto de “subversão” do bolivarianismo13; os espólios do Libertador se constituíram num dos eixos centrais dos debates sobre o passado nacional. Tratando-se desse último grupo, não há exagero ao destacar a obra de Germán Carrera Damas na categoria de influente basilar: seja pela autoridade que lhe confere sua trajetória14; pela posição intelectual que costumeiramente ocupa no debate político público15 ou mesmo pela capacidade de suas obras em deslindar interessantes facetas da sociedade venezuelana, pautando problemas sócio-políticos cotidianos em sua fundamentação histórica. Um dos guias de maior fôlego em seus estudos é justamente o debate sobre a preponderância da ideologia bolivariana no campo da política venezuelana. É principalmente sobre esse tema que versa seu esforço pioneiro em “El culto a Bolívar: un esbozo para historia de las ideas en Venezuela” (2003) [1970], que viria se tornar referência para as discussões sobre os usos da figura de Bolívar que povoaram a historiografia venezuelana a partir de então. Nessa obra estabelece-se uma investigação direta e sistemática a respeito do que, ao longo de seus estudos, considerou um produto ideológico da historiografia oficial venezuelana, implicado na inconformidade das condições democráticas locais: o culto ao herói nacional convertido em segunda religião (CARRERA DAMAS, 2003, p. 64). Sobre essa análise, edifica-se o que se pode considerar uma nova conjuntura explicativa da história

13 Para se ter uma noção da dimensão da produção historiográfica relacionada a crítica ao culto a Bolívar, cabe considerá-la, a partir de seu contexto político, em duas gerações. A primeira, posterior a ditatura militar de Marco Pérez Jimenez (1948-1959), se relaciona a uma conjuntura de restabelecimento e manutenção dos preceitos democráticos na Venezuela (período da Quarta República): encontram-se aqui as obras de Yolanda Salas de Lecuna (1987) e Luis Castro Leiva (1985; 1991). Já a segunda geração convive com a ascensão política de Hugo Chávez e outra leitura do bolivarianismo (período da Quinta República). Há neste grupo uma propensão à dissidência política em relação aos governos chavistas. Entre seus principais autores destaco Elías Pino Iturrieta (2003), Manuel Caballero (2007), Ana Teresa Torres (2009) e Tomás Straka (2009a). Os trabalhos de Damas têm importância para os dois momentos, integrando esses grupos com publicações como El culto a Bolívar: un esbozo para el estúdio de la historia de las ideias en Venezuela em 1970 e El bolivarismo-militarismo: uma ideologia de reemplazo em 2005. 14 Historiador dentre os mais conhecidos do meio acadêmico nacional, Damas é professor titular da Universidad Central de Venezuela (UCV) na qual também obteve o doutorado, mestre pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM); ao longo de sua trajetória Carreira Damas ocupou a Cátedra Simon Bolívar na Universidade de Cambridge (Reino Unido) e da Universidade de Colônia (Alemanha). 15 Destaque para seu papel como voz atuante numa oposição intelectual aos Governos Hugo Chávez (1999-2013), aos quais categoriza de autocráticos e fundamentados na ideologia do bolivarismo-militarismo. Sobre a oposição acadêmica aos Governos Hugo Chávez, recomendo a leitura: STRAKA, T. (2009a) Hartos de Bolívar? La rebelión de los historiadores contra el culto fundacional. Boletín de la Academia Nacional de la História, v. 365, p. 51– 91.

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venezuelana: partindo do entendimento da ideologia como expressão da realidade histórica e síntese de sua pluralidade (2003, p. 25), Carrera Damas ultrapassa o que considera dualismo apologia-acusação da história tradicional para se preocupar em demonstrar as distorções na consciência histórica nacional, produzidas pelo culto a Simon Bolívar e suas consequências no âmbito político. O argumento é sólido e bem ancorado no presente histórico de sua formulação, com uma função estabelecida intencionalmente pelo papel de seu autor enquanto persona política. Conforme comenta o próprio Carrera Damas em recente entrevista a Anatólio Medeiros Arce e Losandro Antonio Tedeschi:

Yo comencé a trabajar en eso ya sistemáticamente cuando regresé del exilio. Estuve diez años exiliado durante el gobierno de Pérez Jiménez. Regresé aquí en 58 [1958] y me encontré con que los hombres que estaban planteando de nuevo la democracia en Venezuela estaban utilizando las mismas ideas que había usado la dictadura. Y aquello sí me preocupó. Porque veía que íbamos por un camino malo, en el sentido de que esas ideas de Bolívar corresponden a otro tiempo y fueron pervertidas y utilizadas para justamente dominar y controlar a la sociedad, no para un desarrollo democrático. Y yo escribí este libro para alertarlo, o mejor dicho, con la emoción de que yo iba a alertar a estos dirigentes políticos. (ARCE; TEDESCHI, 2015, p. 203)

Além de delimitar o escopo e o ímpeto original de sua obra, esse depoimento dá margem a um exame crítico de seu escrito. A necessidade de percorrer um vasto arco temporal (da consolidação da independência às ditaduras do século XX) em busca de um paradigma geral para explicar os efeitos da centralidade do culto a Bolívar na vida pública, é concebida em função da possibilidade — fundamentada no conhecimento do passado recente — das derivações negativas da inadequação entre ideias e realidade no seu presente: a relação entre o culto a Bolívar e a República Liberal Democrática do pacto de Puntofijo16. Cabe destacar que a força motriz da argumentação de Carrera Damas está relacionada com suas próprias escolhas metodológicas, em especial com o uso de premissas que a história das ideias desenvolveu nas suas interpretações da América Latina. Ou seja, em seu anseio de justificar a impossibilidade de desenvolvimento da democracia-liberal sob a égide do mesmo bolivarianismo que

16 Depois da derrocada do regime ditatorial do General Marcos Pérez Jiménez, em 1958, se consolidou na Venezuela um período dominado pela tendência Liberal-Democrática. O predomínio desse setor ideológico na política nacional fora respaldado pelo acordo da cidade de Punto Fijo (1958), que reunira os três principais partidos venezuelanos — Acción Democrática (AD), Unión Republicana Democrática (URD), Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI) — num denominador comum de programa governamental, identificado com o respeito aos resultados das eleições e a formação de gabinetes de governo alicerçados em coalizões equitativas. O matiz liberal desse engajamento é realçado pela não inclusão do Partido Comunista de Venezuela (PCV) na convenção, seja pelas evidentes divergências ideológicas ou mesmo pela dinâmica da Guerra Fria em curso nas relações políticas latino-americanas do contexto. Tal composição declarou-se como uma prevenção de novos golpes que trouxessem o país de volta a um regime militar. Contudo, — segundo o discurso chavista — também serviu à estabilização de uma elite política civil marcadamente neoliberal nos mais altos quadros do poder nacional. Para mais informações SUÁREZ FIGUEROA, N. (2006). Puntofijo y otros puntos. Fundación Rómulo Betancourt.

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envernizara as ditaduras venezuelanas do século XX. Carrera Damas busca nas contradições da história política nacional “[...] a las condiciones en que se gestó el culto, a sus manifestaciones e al sentido que se ha dado históricamente.” (CARRERA DAMAS, 2003, p. 19, grifo meu). Suas conclusões sobre esse fenômeno podem ser resumidas em duas proposições que balizam as páginas de estudiosos dedicados à investigação do culto: 1. Com relação às intenções de manipulação da consciência popular contidas na apropriação do culto por parte do Estado: a transformação de culto de um pueblo para culto para el Pueblo está centrada num processo de institucionalização de símbolos e ritos por parte do Estado. Isto é, na adesão de uma série de governos a uma integração das manifestações do culto em sua estrutura administrativa, dotando o discurso estatal de capilaridade ideológica essencial para agir sobre a consciência popular a serviço da imposição de quaisquer políticas oficias (CARRERA DAMAS, 2003, p. 308). 2. A explicação do surgimento do culto como uma necessidade histórica, atendendo a condições específicas do não-cumprimento das promessas sociais da emancipação: o culto não é fruto do romantismo dos literatos venezuelanos, muito menos do patriotismo exaltado; ele é uma necessidade histórica com objetivos implícitos de ocultar o fracasso social da gesta libertadora e retardar a formulação de uma consciência histórica crítica a essa frustração. Nesse aspecto, segundo o autor, o culto mostra-se funcional até hoje (CARRERA DAMAS, 2003, p. 42). Cabe expor que suas colocações sobre as decorrências do culto como fenômeno de dominação social ocupam um lugar de validade historiográfica e, inclusive, funcionalidade política. Sua leitura ganha novo lastro na medida em que convive com a ascensão política dos governos Hugo Chávez (1999-2013), embasados num programa político intitulado de alternativa bolivariana17, que é definido pelo próprio na antítese dos valores político- econômicos neoliberais identificados com a República Liberal Democrática e, portanto, disposto a encerrá-la fundando uma nova era. A interpretação da história recente da Venezuela no discurso chavista solidifica esta compreensão:

En este siglo, durante la última década de gobierno del General Gómez, fue incubándose un modelo político al que perfectamente pudiéramos llamar "el modelo adeco", fundamentado especialmente en la explotación petrolera (en 1926 ya el petróleo había desplazado al café como primer producto de exportación), en el

17 Vários críticos tendem a definir o Bolivarianismo de Chavéz como elementos de uma democracia popular em conjunção com um caudillismo e um autoritarismo militarista de cariz marxista-leninista. Para maiores considerações acerca deste contexto, recomendo a leitura de ITURRIETA (2003); CARRERA DAMAS (2005); CABALLERO (2007); STRAKA (2009b), embora seja interessante manter-se atento à pauta de oposição política ao chavismo na qual se inserem.

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populismo y en el autoritarismo. El "modelo adeco" irrumpió el 18 de octubre de 1945; echó sus bases en el Trienio 45-48, para ser desplazado durante una década y reaparecer en 1958, a la caída del gobierno del General Marcos Pérez Jiménez. Ahora sí había venido para quedarse. Desde entonces el nefasto modelo pisó el acelerador al proceso de sustitución de importaciones, profundizando el rentismo petrolero y la dependencia, sobre un pacto político cupular-partidista al que se conoce como "Pacto de Puntofijo", reforzado desde ese momento por el calderismo copeyano, cómplice, a pesar de su papel de actor de reparto, en el festín. El "Modelo Adecopeyano"18 devino, como tenía que ocurrir, en una crisis avalancha que hoy es ya una verdadera catástrofe moral, económica, política y social. Es histórica e irreversible. Conjuntamente con el Pacto de Puntofijo, que lo hizo posible, están no solamente agotados, sino que se encuentran ahora en la fase terminal de su triste historia y con ellos se hunde también el modelo económico colonialista-dependiente. (CHAVÉZ FRIAS, 2007, p. 18).

Destituído o modelo adecopeyano, a alternativa bolivariana ocuparia o lugar de reformulação do sistema político desde seus fundamentos filosóficos (CHAVÉZ FRIAS, 2007, p. 22). A ênfase em refundar e reconstituir o Poder Nacional denota que os valores de legitimidade para Chavéz estavam envolvidos com o recurso ao passado identificado com o projeto de Simón Bolívar para a Venezuela. Em concordância com o que destaca Ana Teresa Torres, numa das mais recentes revisões bibliográficas sobre os estudos do culto a Bolívar, é justamente pelo remake chavista do bolivarianismo que a obra de Carrera Damas chegou ao ápice de sua popularidade, ultrapassando inclusive a fama que logrou em seu contexto de publicação, mais restrita ao âmbito acadêmico (TORRES, 2009, p. 68). Não foi à toa que Manuel Caballlero, em duras críticas ao chavismo no livro Por qué no soy bolivariano: uma reflexión antipatriótica (2007), tenha citado a obra de Carrera Damas para convalidar sua argumentação:

Treinta y tres años después de su El culto a Bolívar, Gérman Damas pública Una ideología de reemplazo donde, (sin cometer la habitual inelegancia de decir, como los gitanos de feria: “¡Yo lo había dicho!”), se sienta a la puerta de aquella primera tienda y ve pasar en ésta, no el cadáver de su enemigo, sino por desgracia, su cuerpo no por verdoso y putrefacto, menos vivito y coleando: de aquel culto que aún si se creía inocuo no dejaba de llevar en sí el germen de su peor peligro, el militarismo vestido con el uniforme de gala del Libertador; se ha pasado hoy, a lo que el autor llama de “bolivarismo-militarismo”. (CABALLERO, 2007, 157)

Os estudos de Carrera Damas, portanto, em seu arco de existência, parecem seguir fornecendo respostas satisfatórias às transformações da sociedade venezuelana e de sua vida política, inclusive com uma qualidade quase que vaticina. Outros, a exemplo de Elias Pino Iturrieta (2003), antes da publicação de “Uma ideologia de reemplazo” (2005), já apontavam para a importância do alerta emitido pelo autor ainda na década de 60, embora especulasse novas questões devido ao chavismo:

18 Com tal modelo, Chavéz se refere à aliança entre os partidos Ación Democrática (AD) e Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI) firmada no Pacto de Puntofijo (1958).

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[…] Agotar el tema de su liturgia obligaría a un estudio de nunca acabar, si se pone uno tras la pista de todo lo que se ha publicado en sentido apologético. Por fortuna, ya intentó con éxito la faena Germán Damas en El culto a Bolívar, una obra de 1969 que se debe consultar con atención cuando los ojos quieran detenerse en las preces que el pueblo venezolano y pueblos parecidos dirigen a quien estiman como luz y salvación. Ahora [con el chavismo] se ofrecen los testimonios que parecieron más evidentes para mostrar los perjuicios que puede acarrear a la sociedad la sobrestimación de los pasos de un héroe por la historia. Pese a que apenas son los eslabones de una cadena de una longitud sin cuento, seguramente la escala de un conjunto de exageraciones capaces de llegar con creces a lo estrambótico sea suficiente, no sólo para sustentar las páginas que vienen a continuación, sino también para dar mayor intensidad a la luz roja que pretenden encender. No solamente se acopian y critican-algunos de los excesos más elocuentes sobre las hazañas del Libertador, sino también las voces que por su posición en la vida pública pudieron influir en el crecimiento del fenómeno hasta extremos de demencia. (ITURRIETA, 2003, p. 9-10)

Dada a centralidade dos estudos de Carrera Damas — que para além de querela acadêmica ocupa um lugar significativamente funcional no debate político-social contemporâneo — e a consequente impossibilidade de se escrever qualquer história de fenômenos bolivarianos, sem tangenciar a esfera argumentativa elaborada pelo mesmo, proponho dedicar algumas páginas a descoser aspectos de método e de resultados, que cobram determinados posicionamentos a um novo investigador que pretenda discorrer sobre o tema. Esse empenho tem fundamento na possibilidade de repensar alguns elementos dos ensaios de Carrera Damas, ainda que não tenham sido elaborados para os fins que me interessam. Em outras palavras, seria incoerente não perceber o potencial da obra de Carrera Damas em abrir portas para pensar meu objeto de pesquisa: as celebrações a Simon Bolívar em Caracas. No entanto, para fazer bom proveito de sua investigação, é necessário antes de mais nada lidar com as consequências deterministas de seu eixo argumentativo no que concerne o uso do culto para dominação social. Estas que, caso aceitas sem uma necessária problematização, me induziriam ao descarte da percepção de toda uma lógica de convencimento, que na arena do debate político-público venezuelano faz uso da produção de sentidos próprios ao elemento festivo para gerir símbolos multivocais. Para o sucesso dessa empreitada é importante estar atento às críticas à história das ideias esboçadas nas obras de Elias José Palti (2007, 2014) e às impressões de John Pocock (2003) sobre os marcos dos estudos das linguagens políticas. Minha pretensão com esse debate é provocar, intuir olhares para as possibilidades que margeiam outros caminhos, sem, contudo, fugir à importância que o trabalho de Carrera Damas apresenta para os estudos do culto. Assim, identifico duas questões cuja análise pormenorizarei: “Reflexões sobre o culto a Bolívar como história das ideias” e “Um desvio na trajetória venezuelana? O problema da compreensão do culto heroico como prostração nacional”.

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1.1.1. Reflexões sobre o culto a Bolívar como história das ideias

A metodologia historiográfica é um componente que merece atenção na crítica de Carrera Damas ao culto bolivariano. Algumas de suas conclusões estão postas em função das consequências finais do objeto que investiga, ou seja, as ideias na República Democrática Liberal. É o caso da suposição de que a vigência da imagem de Bolívar significaria a perdurabilidade da projeção do passado sobre o presente. A lógica da assertiva funciona como se no presente influísse a forma aperfeiçoada da ideologia do culto, que ao longo do tempo carregou consigo toda sorte de conservadorismo, autoritarismo e atraso, tanto em sua composição quanto em seus usos (CARRERA DAMAS, 2003, p. 318-319). Essa explicação apoia-se numa visão total do processo sócio-histórico nacional, constituída em antonímia à história-pátria com sua valorização de eventos-chave. Em 1974, na palestra de proposição do projeto que mais tarde desembocaria numa coletânea de conferências Una nación llamada Venezuela (1997), o autor assume que a exposição da investigação sobre história nacional deve ser feita sobre um marco integral, correspondendo a sua conceptualização da história enquanto ciência social. Em consequência, sua construção narrativa advém de uma visão unitária do processo histórico, que aloca o conhecimento do venezuelano em nichos mais amplos, permitindo a percepção do especifico nessa nacionalidade (CARRERA DAMAS, 1997, p. 12). A disposição em investigar o processo histórico a partir de um aspecto integral e a ênfase na busca pelo peculiar nacional, estão em aparente sintonia com a análise proposta em “El culto a Bolívar” (2003) [1970]. Nela há uma preocupação em estabelecer o ponto de síntese amparado na história das ideias:

Si la captación de la unidad del momento-hecho histórico se revela difícil y laboriosa por la vastedad de sus límites, existe un orden histórico en que aquel se refleja ya de una manera sintética, y es el orden da las ideas históricas, entendidas no como mero producto de la realidad histórica, ni como principios activos de la misma, sino como expresión, como pantalla en que se proyecta su realidad, como reflejo sintético de su pluralidad parcelaria. (2003, p. 25)

Para evitar cair na constatação de uma congregação fantasmagórica de representações ideológicas, o autor sugere “[...] mantener una constante referencia al acontecer histórico [...].” (2003, p. 25). Contudo, os empenhos mais explícitos que se podem observar são: a tomada de testemunhos literários na qualidade de referências da projeção ideológica sobre o acontecimento histórico e o arranjo entre a ideologia em sua forma pura e a ideologia

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atuante19. Ou seja, há um afastamento da análise dos sentidos que o culto tem no debate público, como se os mesmos pudessem ser aferidos a partir de testemunhos literários isolados. Elias Palti, partindo da história do discurso político de John Pocock, traz algumas críticas sobre o tema descrito como um problema metodológico da história das ideias: “[...] la misma piensa los textos en términos de postulados y representaciones pero les atribuye funciones que son propias a los usos del lenguaje, a su dimensión pragmática […].” (PALTI, 2014, p. 12). Ou seja, seu método tende buscar uma condição pragmático-contextual num objeto semântico, o que induz a “[...] describir las ideas en términos de significados y proposiciones atribuyéndole, sin embargo, funciones que son propias de su uso.” (PALTI, 2007, p. 293). Um exemplo das consequências desse método nos trabalhos de Carrera Damas é a possibilidade de inclusão de Hugo Chávez na lista do arquétipo de Anti-Héroes Nacionales- padrotes de la Patria (CARRERA DAMAS, 2007). Aqui, o autor traça um vínculo determinante entre o que considera uma ideologia do culto heroico e o sentido de despótico e de autoperpetuador nos discursos políticos de governos venezuelanos. Pelo mesmo motivo e ao mesmo modo que lideranças autocratas do século XIX (Antonio Guzmán Blanco) e da primeira metade do século XX (Eleazar López Contreras) — embora em situações reconhecidamente distintas — o recurso à ideologia é argumento aceitável para identificar no discurso chavista acepções de autoritarismo e ideias antidemocráticas, de tal forma que sua ação política aparenta ser não mais que uma versão atuante da ideologia perfeccionada. Para Palti, um sentido do discurso, por qualquer que seja não pode ser localizado no seu nível semântico (ideias), pois ali encontraremos apenas suas proposições. Tal caracterização só poderia advir de uma análise no nível pragmático da linguagem, ou seja, no enunciado, no que se fazia ao dizer o que se disse.

En definitiva, no bastaría ya con comprender el significado de aquellos postulados o ideas contenidos en texto en cuestión sino que habría de poder reconstituir su sentido, al cual es una función del contexto de enunciación particular en que se produjeron los mismos; es decir, aun cuando las ideas contenidas en los textos sean las mismas, el sentido de ellas variará según quien las dice, cuándo, cómo, etc. (PALTI, 2014, p. 12, grifo do autor)

A crítica que proponho ao artigo não implica negar a categorização de sentidos de qualquer discurso, mas sim de compreender que o enfoque de sua problematização não pode ser feito em nível de ideologia sob o risco de encontrar apenas atuações de uma abstração a-

19 Ressalto que este último não resulta na análise de um campo efetivamente pragmático, senão numa nova roupagem da dicotomia ideia-realidade.

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histórica. Só a observação do discurso na prática de seu contexto político é capaz de alçar a compreensão conjunta de seus sentidos e significados. De forma análoga, em “El culto a Bolívar” o recurso ao exame da realidade histórica através do “[...] reflejo sintético de su pluralidad parcelaria” (CARRERA DAMAS, 2003, p. 25) — isto é, sua expressão ideológica — incide num problema similar. Ao invés de propor uma análise unitária do processo histórico, como sugere Carrera Damas, esse artifício parece estigmatizar os acontecimentos históricos vinculados ao culto a Bolívar enquanto imagens de ideologia envolvida na permanência do caudillismo, do atraso, da passividade popular, etc. É razoável que o autor perceba traços de uma mentalidade nas citações de testemunhos historiográficos e literários com as quais trabalha, o que, no entanto, não certifica sua relação com práticas antiquadas, visto que essa análise não corresponde ao aspecto semântico, mas sim à esfera contextual-pragmática. Por isso é importante destacar que há alternativas a Carrera Damas e seu exame de um grande arco temporal em função de uma estrutura ideológica preconcebida. A crítica de Luis Castro Leiva (1984), ao debater a polêmica que “El culto a Bolívar” (2003) [1970], suscitou no âmbito de sua publicação, aponta que tanto as leituras da obra como a de seus opositores se preocupavam mais em discutir a adequação e a eficácia sócio-política das ideias do culto bolivariano do que se as ideias em circulação são de fato ideias de Bolívar e não abstrações remanipuladas. O compartilhamento entre Carrera Damas e seus críticos segue noutros aspectos, como o pressuposto de que os textos falam por si próprios a partir da literalidade de seus sentidos e daí incidem sobre a realidade (CASTRO LEIVA, 1984, p. 81- 82). Contra esse tipo de encadeamento, Castro Leiva propõe um olhar para o enredo linguístico no qual são formulados os enunciados:

El individuo que piensa es, en este sentido, el soporte del «decir» del pensamiento en un momento dado de su historia: es este sentido una biografía intelectual. Y ésta sólo es inteligible en la medida en que se recuperen las condiciones ambientales de la semántica y retórica de su «decir» (CASTRO LEIVA, 1984, p. 88)

Essa perspectiva declaradamente heideggeriana de Castro Leiva guarda certa semelhança com o coetâneo contextualismo da Escola de Cambridge, em especial com John Pocock (2003). Ambos percebem a necessidade de recuperar os âmbitos nos quais os textos são formulados e encarar a enunciação como um ato. Pocock, mais preocupado em definir o métier do historiador que investiga as tramas de discursos políticos e vai além ao propor uma abordagem. Centrado no reconhecimento das linguagens como contextos nos quais se dão performances (atos de fala), o autor propõe uma história “[...] da retórica, e não tanto da

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gramática, do conteúdo afetivo e efetivo do discurso, e não tanto de sua estrutura.” (2003, p. 67). Não à toa que encare mentalités e ideologias como leituras monolíticas das situações linguísticas, e, em distanciamento, busque estratégias mais atentas às suas polissemias. Aqui se sustenta um interesse no constante devir que define as relações entre linguagem e enunciação, ou seja, a percepção da trama de linguagens como suporte para o discurso de um autor, que por sua vez, no ato de enunciação, estressa a dinâmica da linguagem em uso, ainda que sua intenção à priori tenha sido a manutenção da mesma linguagem. As festas bolivarianas e a gestão simbólica de seus sentidos têm características efetivamente eventuais e efêmeras se comparadas à perdurabilidade das ideias analisadas por Carrera Damas. De forma que estou inclinado a considerar a metodologia de Pocock mais pertinente aos meus estudos, em vista de sua vigilância às brevidades entrópicas próprias ao debate político. Noutros termos, ao ponderar o bolivarianismo como uma linguagem política, afasto-me de discussões totalizantes ao passo que estou disposto a compreender como

[...] As novas circunstâncias geram tensões nas velhas convenções, [como] a linguagem acaba sendo usada de novas maneiras, ocorrem transformações na linguagem em uso, e [como] é possível imaginar esse processo conduzindo à criação e à difusão de novas linguagens. (POCOCK, 2003, p. 76)

O encaixe do método com a crítica de Castro Leiva me fornece certa segurança para dar um passo adiante e propor que a interpretação do culto como trama linguística deve estar atenta ao seu cariz mediativo. Nessa circunstância, é possível afirmar, por ora, que ao menos as análises das narrativas textuais das festas precisam estar implicadas em mais que reafirmar uma explicação do domínio da elite político-social, já que ao utilizarem-se da linguagem bolivariana os autores estão esboçando posicionamentos políticos ante as contendas públicas em discussão na sociedade. Mais adiante, apontarei como a própria ação ritual merece um exame semelhante, principalmente quando encaradas por meio dos conceitos de drama social e de sistema cultural de comunicação simbólica.

1.1.2. Um desvio na trajetória venezuelana? Problemas da compreensão do culto heroico como prostração nacional

Outra problemática a ser considerada em relação ao exame intelectual do bolivarianismo se localiza na constante acusação de deslocamentos políticos, ideológicos e morais, provocados por uma inadequação primeira: o culto a Bolívar quanto ao tempo histórico

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no qual decorre. Tal lógica permitiu a historiografia venezuelana imprimir um espectro de caráter tradicionalista, conservador e legitimador da autocracia sobre o culto, desenhando sua imagem como âncora político-ideológica que impede o avanço pertinente das ideias progressistas do século XIX. A naturalização do destino à modernidade é, por si só, um aspecto arriscado nesse raciocínio. Todavia, é igualmente complicadora, embora menos evidente, a rede de pressupostos que atribui ao culto a Bolívar um sentido de anomalia justificadora das malfadadas experiências políticas venezuelanas. É, portanto, uma tarefa essencial destacar e pormenorizar os apriorismos utilizados para construção desta lógica. Nos trabalhos de Carrera Damas, essa formulação é uma premissa importante para as conclusões gerais nas quais se engajou, preservada em sua obra, mesmo nas publicações recentes. Observo que em seu artigo “Entre el héroe nacional-padre de la patria y el anti-héroe nacional-padrote de la pátria” (2007) há um recurso implícito ao fundamento: a impropriedade do emprego de uma ideologia pré-moderna a uma realidade moderna, e decorrência de efeitos negativos dessa relação. Nesse escrito, a persistência do modelo de Héroe nacional-Padre de la Patria — no qual a autocracia e a arbitrariedade são pensadas como necessárias à conjuntura das guerras de independência — é entendida como inapropriada aos tempos da República Liberal, em vista de seu papel na sustentação do arquétipo do Anti-Héroe Nacional-padrote de la Patria. Assim,

[…] Esa conexión ha consistido en que, de manera sospechosamente consecuente, el primero ha sido utilizado como fuente de legitimación ideológica, y de aval político, del segundo, pero sin haberse atrevido este último a reivindicar, expresamente, lo pautado por el primero en su proyecto de Constitución para la República Bolívar, sobre la conveniencia de un Presidente con derecho a designar su sucesor, conformándose así un híbrido de la monarquía constitucional con la república. No obstante, ha sido la práctica del resultado de esta hibridación, más cercana de la monarquía absoluta que de la constitucional, el estilo de mando — que no de gobierno —, de esa suerte de monarcas republicanos. (CARRERA DAMAS, 2007, p. 204).

Tal explicação cria uma forte sensação de coerência, sobretudo quando sua elucidação é oportuna mesmo à conjuntura política atual da Venezuela. Conforme já mencionando, ao fim da lista histórica de Anti-Héroes Nacionales-padrotes de la Patria estaria Hugo Chávez “[...] establecido por la tradición como Némesis de las aspiraciones democráticas de la sociedad venezolana, presentes desde 1863.” (CARRERA DAMAS, 2007, p. 203). Porém, há pontos a se terem em conta sobre a montagem dessa alegação. Para tanto, é pertinente

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retomar as críticas que Palti faz à história das ideias, embora consciente do perigo de sua generalização20. Um interessante ponto de partida é o postulado da dicotomia tradição-modernidade. Em análise da obra Modernidad e independências (1992) de François-Xavier Guerra, Palti observa que a vontade de distanciamento da ideia liberal ilustrada nas análises sobre o nacionalismo latino-americano — influenciada por leituras de Benedict Anderson e Erick Hobsbawm — se volve em “[...] una recaída en una visión tradicionalista, que expresaría la persistencia de patrones culturales o sociales pre-modernos” (2007, p. 154). Desta forma, configurar-se-ia uma desordem epistemológica: o deslocamento de determinados quadros discursivos do substrato histórico que lhes possibilitam enunciação, para associá-los a um âmago que lhe é precedente21. Palti elabora uma síntese propicia desse quadro quando diz que

[...] Mientras que los “modelos” de pensamiento (“los tipos ideales”), considerados en sí mismos, aparecen como […] definibles a priori — de allí que toda “desviación” de éstos (el logos) solo pueda concebirse como sintomática de alguna suerte de pathos oculto (una cultura tradicionalista y una sociedad jerárquica) que el historiador debe des-cubrir —, las culturas locales, en tanto sustratos permanentes (el ethos hispano), son, por definición, esencias estáticas. E resultado es una narrativa pseudohistorica que conecta dos abstracciones. (2007, p. 38).

O exame dos nacionalismos latino-americanos como sintoma da persistência de uma tradição local é na verdade assumir a impossibilidade de encontrar essa ideologia, em suas manifestações políticas locais, na forma de ideia “puramente” liberal ilustrada. Assim, o diagnóstico de desajustes no nacionalismo latino-americano se baseia em duas falácias: 1. Que seja razoável a retirada de um discurso de sua condição histórica de enunciação para vinculá-lo à expressão da permanência de uma base anterior; e 2. Que isso explique a inadequação dos

20 Refiro-me aos limites que a crítica de Aguilar Riviera lhe propõe: “[…] Es exagerado sostener que los enfoques que se centran en la historia de las ideas en América Latina generan necesariamente una ansiedad por la “particularidad” que nunca pueden satisfacer. Algunos lo ha hecho, otros no.” (AGUILAR RIVERA, 2008, 183). 21 Na sequência, deter-me-ei em identificar o desenvolvimento desse raciocínio na história das ideias e, consequentemente, na obra de Carrera Damas. Outrossim, a crítica que Partha Chatterjee (2008, p. 114-115) tece ao utopismo de Benedict Anderson é pertinente para a compreensão desse problema da história das ideias. Isto é, as condições de existência de imaginações historicistas da identidade — a nação entre elas — estão comprometidas com uma dimensão universal do espaço-tempo, o tempo homogêneo vazio. Tal percepção é fruto de uma leitura progressiva da história compelida a consagrar o triunfalismo da modernidade capitalista, pari passu interpreta quaisquer barreiras ao seu desenvolvimento — caraterísticas dos espaços “periféricos” — sob a fórmula de resquícios pré-modernos. Como alternativa, Chatterjee (2008, p. 63) propõem perceber as temporalidades heterogêneas e densas da modernidade no mundo pós-colonial, alegação que fornece a possibilidade de encarar os fenômenos decorrentes nesse espaço-tempo, não como a sobrevivência de tradicionalismos pré-modernos locais, mas sim enquanto novos produtos de seus encontros com a modernidade. Trazendo esse critério para sua problematização, conceito de nação, é prudente abrir mão de imaginar o nacionalismo como uma categoria dada e genérica à vida política para pensar por quem e para quem são enunciadas as várias narrativas dos nacionalismos, e que sentidos e significados lhes são atribuídos em seus diversos lugares.

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nacionalismos nas Américas, baseado na miragem de que a ideia de nação é uma “[...] entidad abstracta, homogénea y unificada” (PALTI, 2007, p. 151). Essa crítica também vale para Carrera Damas, em especial para o constante trabalho de vinculação entre as práticas políticas do século XIX e as ideologias que circulam o contexto da emancipação. À primeira vista, esse aporte ideológico não parece ser fundamentado na tradição hispânica ou colonial, já que sua formulação se situa numa conjuntura de ruptura com a Europa e seus poderes. No entanto, para enfocar seu caráter mais retrógrado, o autor trata de enfatizar dois aspectos: 1. A fratura, causada pelos processos de independência, não foi total, ainda que em determinadas conjunturas tenha sido enunciada dessa forma; 2. A conexão com o período colonial pôde ser estabelecida de formas menos diretas ou se situou em territórios inesperados, nos quais a negação ao vínculo com a tradição “pré-moderna” espanhola não fora sequer cogitada, como o próprio Carrera Damas persistentemente salienta. Volto a “El culto a Bolívar” (2003) com o interesse em observar a definição da ideologia que intitula a obra. Para Carrera Damas, houve três necessidades históricas as quais atenderam a idolatria a Bolívar em sua gênese: A- a unidade nacional, enquanto ordem político- social interna; B- a governabilidade, isto é, garantir o compromisso da população em geral com a possibilidade de gerir o Estado; C- e a superação nacional a fim de prover o empenho do povo com os projetos governamentais de edificação da nação (2003, p. 44). Esses encargos estiveram a serviço do que o autor considera uma oligarquia conservadora, assinalada como participante de uma tradição pré-moderna numa série de assertivas: 1. Os artífices da independência podiam ser identificados enquanto caudillos (2003, p. 47); 2. Quando houve uma escalada de políticas de cunho liberal-radical na Grã-Colômbia, a elite governante da Venezuela reagiu com a separação da confederação e a reintegração de setores criollos realistas à vida pública (2003, p. 48); 3. No decorrer do pós-separação, o argumento político da oligarquia foi uma oposição ao liberalismo radical, contrariando inclusive ambições de setores mais “evoluídos” da sociedade (2003, p. 52); 4. Na arena política, a oposição ao liberalismo radical que reivindicava o papel de continuador do programa da emancipação, finda por legar aos conservadores a imagem de “[...] guardianes de las reliquias del orden colonial tan combatido” (2003, p. 53). O reconhecimento de tal relação é consequência — ao mesmo tempo que legitimação — da dedução de Carrera Damas sobre o culto, visto que “[...] su función ha sido la de disimular un fracaso y retardar un desengaño, y la ha cumplido satisfactoriamente hasta ahora.” (2003, p. 42). Isto é, suas afinidades com ethoses tradicionais (identificáveis no serviço a políticas da oligarquia conservadora) dificultariam o “avanço” do liberalismo na Venezuela,

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prolongando a inadequação das ideias da emancipação à realidade local por meio do não cumprimento de seu programa. Em contiguidade, a definição — ainda na análise de seu âmbito de origem — do culto como segunda religião enfatiza esse raciocínio. Aqui o autor faz uma inferência sobre conversão de um culto de un pueblo, em culto para el pueblo. O primeiro molda-se em elementos de uma tradição triunfalista que celebra os líderes de vitórias militares, o que se sucede mais expressivamente com Bolívar depois da vitória da Batalha de Boyacá em 1819 e sua conformação como Padre de la Pátria (CARRERA DAMAS, 2003, p. 95-96). O outro é um culto “[...] institucionalizado, orquestrado e dirigido por el Estado [...] al servicio de la política oficial imperante” (2003, p. 308). Haveria nessa transformação um processo ideológico de consagração da imagem de Bolívar, que parte da perfectibilização da representação heroica a um plano inalcançável até o emprego de identificação com elementos do sagrado cristão: providência divina, missão celestial e até mesmo Deus. De forma a estabelecer “[...] una religión, la segunda religión, llamada a complementar en el orden cívico la función que la otra realiza en el orden espiritual y moral.”(2003, p. 64). O que está implícito nessa elucubração é que o culto — para além de servir a políticas tradicionais — seria, em si, concebido por elementos de uma ordem “pré-moderna”, ou seja, um triunfalismo militar inflado por uma liturgia assemelhada à católica. Tenho ressalvas quanto ao fato de que o culto em algum momento possa se definir pelo dualismo entre de um pueblo ou para el pueblo, e de certa maneira essas reservas comprometem o proveito acrítico de tal construção para minha pesquisa. Embora deva restringir meu argumento ao objeto da presente investigação em virtude de domínio de causa, trato de fenômenos que perpassam também a esfera de investigação de Carrera Damas, haja vista que ponto de inflexão dessa fórmula dá-se justamente no episódio da festa de repatriação dos restos mortais de Bolívar em 1842 (CARRERA DAMAS, 2003, 283-285). É certo que as festas bolivarianas se tratam de uma região muito particular numa intricada teia linguística, contudo também são os momentos onde se existe maior expectativa da interação popular dentre as demais manifestações cultuarias. É precisamente nas formas de participação onde se sustentam meus questionamentos. O que garante que as festas partem de, e são percebidas enquanto, manifestações espontâneas de um sentimento popular? A existência de um programa festivo torna a festa menos entusiástica, ou mesmo define concretamente os papéis desempenhados por povo e elite?

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Com pontuais exceções, as festas bolivarianas anteriores a 1842 não podem ser propriamente enquadradas como uma mostra natural da vontade geral, como espera a teoria das festas rousseaunianas22. Em geral, como é o caso da Entrada triunfal de Bolívar em Caracas em 1827, essas festas têm um ordenamento previamente definido, que gera uma série de sentidos para os significados pretendidos por alguma esfera de poder. Em 1827, o ritual mantém um perceptível diálogo com a crise política da Cosiata do ano anterior. Mesmo a festa de San Fernando de Apure em 1832, os Funerais de Bolívar em Ganare, em 1836, ou a celebração do dia natalício de Bolívar pelo Colegio Nacional de Guayana, em 1848; efemérides citadas por Pino Iturrieta (2003, p. 28-34) para justificar o caráter popular dos primórdios do culto, são celebrações preparadas com antecedência ou pelo poder político local ou delegada por esse a alguma organização social. Embora, de fato, todos esses episódios mantenham uma relação mais religiosa que cívica com o Libertador, não está claro que se possa definir isso pela fórmula de um pueblo, visto que não há uma espontaneidade definitiva nesses eventos. Mesmo nas ocorrências de festas propícias a serem interpretadas por sua voluntariedade, como por exemplo a Entrada de Bolívar em Caracas no ano de 1813 depois da Campaña Admirable e da capitulação de Domingos Monteverde, a ausência de um protocolo não implica que tal evento fora movido pela efervescência coletiva e ainda se assim o fosse, a forma como foi contada na imprensa alterou definitivamente seus sentidos, dilatando-os em questão de tempo e de espaço. Ora, os periódicos do contexto respondiam em grande parte às demandas do poder instituído local, sendo seu crivo narrativo fundamental para a compreensão pública do que fora a celebração. Sem a publicação de 26 de agosto de 1813 da Gazeta de Caracas, editada por Vicente Salías, dificilmente pode-se definir que o povo de Caracas entendeu a pomposa acolhida a Bolívar em contraponto “[...]al silencio profundo [...] la tristeza y el dolor” da Entrada de Monteverde na cidade no início daquele mesmo ano. Se podemos considerar a série “[...] homenages [sic] sinceros de todo un pueblo a quien acaba de liberar, manifestados por la misma tierna sensibilidad […]” (SALÍAS, p. 4, 1813) como uma adesão

22 Na Carta a D’Alembert, Jean Jacques Rousseau (1993) propõe uma forma de festa a se inventar (Cf. CHARTIER, 2004, p. 35-36): uma articulação coletiva produtora de unidade política, um fenômeno de ação política popular baseada no reconhecimento da participação numa comunidade de iguais; em oposição à hierarquização das celebrações monárquicas e eclesiásticas que definem uma estratificação teatralizante entre atores e plateia, esta última com a participação reduzida à reflexão catártica. Para detalhes sobre a remanipulação da teoria de Rousseau na composição das festas cívicas da Revolução francesa, recomendo a leitura de Jean Duvingaud (1983) e Fernando Catroga (2005). Por ora, basta-me o entendimento de que a festa rousseauniana tem relações com as festas populares ou comunitárias anteriores ao exercício de homogeneização da cultura popular na contrarreforma (Cf. CHARTIER, 2004, p. 23). Nesse sentido, o modelo de un culto de um Pueblo fundamentado em elementos como espontaneidade, sentimento de comunhão, abolição de hierarquizações e sacralazição de símbolos cívico, aproxima-se significativamente da proposta de Rousseau.

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geral e definitiva dos caraquenhos ao programa da libertação, em algo que se deve ao empenho narrativo do periódico. Esse mesmo fervor não se viu em 1815, quando Pablo Morillo, novo comandante das tropas realistas, tomou Caracas sem qualquer resistência, contando inclusive com o apoio da Gazeta de Caracas, agora sob o editorial do realista José Domingo Diaz (CONWAY, 2006, p. 80). É compreensível, portanto, que além do sentimento coletivo, a gestão dos sentidos da festa também atendeu às pautas e às necessidades do debate público e, portanto, não esteve restrita às comoções populares. Por outro lado, isso não quer dizer que o povo fora um espectador passivo, senão que acessou de uma forma distinta à comunicação social, que não propriamente através da República das letras. De uma forma ou doutra, a ação simbólica popular e a atribuição de sentidos à festa na arena político-institucional não são excludentes. Ao considerar as festas bolivarianas como uma linguagem política, busco favorecer a compreensão de sua polissemia, seus usos variados e seu potencial reconhecimento social, fundamentado no que explica Pocock ao escrever que

[...] quanto mais institucionalizada for uma linguagem e quanto mais pública ela se tornar, mais ela estará disponível para os propósitos de diversos locutores, articulando diversas preocupações. Essa diversificação terá origem no interior do grupo governante, onde comumente há um intenso debate em andamento. Mas ela pode não permanecer confinada aos limites da intelligentsia [...]. Podemos encontrar casos em que uma linguagem foi difundida para além dos limites do relacionamento original entre governantes e governados, no qual ela foi criada: casos em que estará sendo enunciada por outros governantes para outros governados, por governantes incertos quanto a quem estão governando, por governados incertos de quem os governa ou com que autoridade, e até mesmo por revolucionários usando-a em seus esforços por derrubar um governo (2003, p. 68-69).

Caso a distinção entre de un pueblo e para el pueblo fosse abordada como uma diferenciação entre as respectivas escalas local e nacional das efemérides, o que implicaria uma oposição factível entre os eventos de 1813 e 1827 de um lado, e a festa de 1842 do outro, a lógica de Carrera Damas seria particularmente interessante para uma investigação dos alcances comunicativos das festas. Mas esse não parece ser o tratamento destinado à questão, já que o autor considera que

La organización institucional del culto ha significado una transformación de la naturaleza del mismo. Su inicial condición de culto de un pueblo, como forma directa de expresión de admiración y de amor, se ha trocado en la organización de un culto para el pueblo, dotado de una liturgia que tiene por finalidad cuidar del objeto de culto y promover su desarrollo. (CARRERA DAMAS, 2003, p. 375)

O conceito de ideologia em Carrera Damas aparece a reboque de uma leitura marxista, que o leva a considerar a estrutura cultuária em função da imposição unilateral de

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domínio por parte das elites locais. Não à toa que Teresa Torres (2009, p. 57) o considere como formulador da interpretação histórico-marxista do mito bolivariano, uma narrativa da luta das elites socioeconômicas para reestabelecer-se no poder político após a independência, aplacando os ânimos populares por meio do inegável prestígio social de Simon Bolívar. A visão do culto a Bolívar como forma de predomínio social é uma constante no pensamento de Carrera Damas. Já coetâneo do governo de Hugo Chávez, em 2005, no ato da Conferência inaugural da Cátedra “José de Oviedo y Baños”, o professor destacou El culto heroico decimonónico23 como o primeiro de 16 debates aos quais os jovens historiadores venezuelanos deveriam se aprofundar, justificando-se pela seguinte assertiva:

Éste se ha confirmado, en tiempos recientes, como una gran amenaza contra la conciencia histórica del venezolano. Tal ha sido el resultado, ahora exacerbado, de la conversión de este culto en una suerte de segunda religión, estructurada sirviéndole de eje el culto a Bolívar. A su vez, este último ha sido transformado de un culto del pueblo en un culto para el pueblo, y por lo mismo en una ideología oficial consagratoria del atraso en el orden de las ideas sociopolíticas, y en una sima de la conciencia histórica del venezolano en la cual se hunde buena parte de su creatividad. (CARRERA DAMAS, 2006a, p. 5)

Isto posto, é perceptível que Carrera Damas supõe que o crônico desajuste da consciência nacional venezuelana esteja implicado no peso que o culto a Bolívar exerce contra o seu progresso “natural” ou histórico, como se sua essência tradicional atuasse na refração das ideias liberais à realidade venezuelana. Esse raciocínio lhe possibilita atribuir aos usos do culto uma sorte de conservadorismo e autoritarismo, já que sua presença implicaria basicamente o atavismo da herança pré-moderna, prescindindo da consideração dos contextos históricos nos quais são apresentados e os debates políticos que integram. Por outro lado, o mesmo autor reafirma uma miragem biográfica de Bolívar ao postular um herói recuperável para o paradigma liberal-democrático, um Bolívar possível sob um olhar crítico da história. Volto a um trecho da recente entrevista concedida a Arce e Tedeschi:

[…] hay un culto a Bolívar que ese sí es genuino… Es lo que practica gente como yo. Yo admiro a Bolívar. Pero lo admiro como un gran hombre, como un gran guerrero, como un pensador, pero también como un hombre. Es decir, él vivió situaciones muy difíciles, que cometió graves errores […]. Es decir, era un hombre que estaba inmerso en una gran polémica, en una gran discusión. Pero era un hombre que estaba aprendiendo y lo extraordinario es que fue capaz de sintetizar toda la teoría de la Independencia de las colonias hispanas, del imperio hispano-americano, de diseñar una concepción, una política, una estrategia y llevarla a la práctica. Eso lo singulariza como un hombre realmente excepcional… con los errores, por supuesto,

23 Decimonónico é um adjetivo em espanhol para se referir ao século XIX, sua tradução mais próxima no português seria oitocentista.

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y también errores graves, pero con aciertos de tan amplio que superan con mucho lo que podríamos considerar que fueran errores o desaciertos. Pero debemos respetarlo de su integridad, no deificarlo. (ARCE; TEDESCHI, 2015, p. 202, grifos meus)

A partir desse diálogo é possível refletir que, mesmo sob condenações, a lógica do culto encontra ecos na compreensão do autor sobre o passado nacional. Suas reflexões parecem reféns do Bolívar totêmico — que, apesar das pretensões de secularização, segue como objeto histórico integral — cuja interpretação é capaz de esboçar a expressão de toda uma sociedade ou de todo um tempo. Noutros termos, as duas formas de culto descritas por Carrera Damas (a que crítica e a que diz seguir) estão ancoradas na ilusão de que as historicidades da imagem do Libertador e seus usos podem ser apreendidos de forma homogênea. Um reflexo desse entendimento pode ser localizado justamente na relação que traça entre o culto e a opressão social. Na leitura de Carrera Damas, o autoritarismo aparece como um problema quase que exclusivo da ação das elites através da imposição ideológica, uma forma de domínio. Essa circunstância praticamente exime o povo de responsabilidade, atribuindo-lhe um papel passivo no teatro político. A investigação a partir de uma abordagem contextual das festas parece nos propor outro olhar para essa arena, visto que as efemérides denotavam esforços de intelectuais e governos empenhados em conquistar adesão coletiva por meio de uma complexa gestão de valores políticos para símbolos mais ou menos consagrados ante o público geral. Foram, portanto, um investimento de energia, não só no exercício de poder inciso na construção de uma verdade, mas também em alocar elementos exteriores que a convalidem de formas lógicas ou afetivas, mas não propriamente autoritárias24. Na observação das festas posso presumir que o apoio popular ao autoritarismo é a contraparte do compromisso com programas políticos imediatistas, cujas alegações centrais gravitavam em torno da resolução das crises cotidianas e históricas da sociedade venezuelana. Nesse aspecto, as narrativas textuais do evento festivo publicizavam, solidificavam e direcionavam os argumentos do casamento entre povo e governo, ao menos nas pautas celebradas com regozijo. Esses escritos estão imersos num debate com consequências imprevisíveis, embora limitados pelas linguagens em uso pelos seus debatedores, de forma que não há como esperar que se fale em antibolivarianismo ante as promessas não realizadas da libertação e, portanto, a independência incompleta a ser refeita ou finalizada pelo evidente descumprimento do programa original de Bolívar.

24 Inspirado na leitura de Partha Chatterjee (2008, p. 58) sobre os nacionalismos nos espaços-tempo pós-coloniais, parece-me provocativo entender tais festas como agências de governabilidade (governance), ao invés de estruturas de dominação social.

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Em suas investigações, Carrera Damas é arguto ao postular uma relação entre militarismo-autoritarismo e a permanência social do culto. Entretanto, suas explicações, voltadas para o controle social, concentram-se nos efeitos de longa duração do fenômeno. O propósito de meu trabalho, por outro lado, é lançar um olhar sobre os usos mediadores do bolivarianismo, o que significa seguir outro percurso, focado no acontecimento. No entanto, é inegável que Carrera Damas segue como um paradigma central da análise do bolivarianismo. Quando se afasta de seus pressupostos problemáticos da história das ideias, entrecorta-se nele um literato da história social venezuelana, um baluarte original de leituras que seguem pertinentes. Esse lugar singular faz com que, mesmo criticado, seja impossível abrir mão de utilizá-lo como um referencial historiográfico. Ademais, de sua perspectiva derivam outros olhares para o culto — inclusive o desta pesquisa — que possibilitam apreender espessura que o fenômeno ocupa na sociedade venezuelana.

1.2. LEITURAS E LEITORES: DIMENSÕES E USOS DO CULTO A BOLÍVAR

Dado o amplo espectro de abordagens destinadas ao bolivarianismo enquanto fenômeno político-cultural, é interessante demarcar sobre quais fundamentos edifica-se esta investigação. Nesta proposta, dialoga-se com a historiografia e a sociologia venezuelana para compreender duas vertentes do culto a Bolívar: 1. A abrangência com a qual o culto incide sobre a sociedade venezuelana; 2. As matrizes explicativas para as origens e funções do bolivarianismo. Essas linhas são basilares para uma compreensão integradora dos estudos, capaz de distinguir as manifestações cultuais centrando-se em seu aspecto comunicacional. Andrés Eloy Blanco (1897–1955) foi um dos primeiros pensadores a perceber o grau de polissemia incursa na permanência de Simon Bolívar enquanto elemento do cenário político venezuelano. Quando presidente do Congresso Constituinte Venezuelano de 1946, ao assistir a um senador citar Bolívar para reforçar sua tese, Eloy Blanco alertara que:

Bolívar no se puede citar sino con cuidado, porque sirve para todo. Bolívar es oceánico. Bolívar ‘tiene’ para justificar un acto de democracia avanzadísima. Bolívar ‘tiene’ para justificar un acto de represión. El Bolívar de 1828, llevando al arzobispo de Bogotá como miembro del Consejo de Estado, es un dictador en pleno ejercicio de la dictadura; el Bolívar de 1830 ya no es sino el desprendimiento del creador amargado por la creación. Pero Bolívar es oceánico. Es el árbol: el que quiera una fruta para darle qué comer a alguien, allí está Bolívar frutal; el que quiera una estaca para darle de golpes a un yangüés, allí está Bolívar con ramazones; el que quiera una cruz para clavar a alguien, allí tiene a Bolívar con sus ramas cruzadas; el que quiera una flor

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para adornar la frente de la Patria: allí está Bolívar florecido; y el que quiera una sombra para esconderse y ocultar una trampa o disparar un perdigón sobre algún incauto pájaro electoral allí está Bolívar frondoso (ELOY BLANCO apud. CONSALVI, 2005)

Sua militância, junto a Generación de 2825, em oposição ao regime ditatorial de Juan Vicente Gomes (1922-1935), que em muito se utilizara da imagem de Simon Bolívar, justificaria, em parte, sua precaução quanto aos usos e abusos do pensamento do Libertador. Ainda assim sua crítica não é limitada, ao revés, parece alcançar não só os governos de caudillos anteriores (Antonio Páez, os irmãos Monagas, Antonio Guzmán Blanco, Cipriano Castro), como toda sociedade pós-independência. Basta observar as construções retóricas para legitimação do país em distintas vertentes: política, intelectual, histórica, pedagógica, etc. Na Venezuela oitocentista, praticamente todas as narrativas que tinham a nação, a sociedade ou a República como telos histórico, ainda que guardassem distinções entre si, encontravam em Bolívar seu ponto de partida. Por outro lado, em geral, após Bolívar tudo que havia era um hiato, um vazio, até o presente inegável, por sua realidade concreta e necessitado da base provida pelo retorno a suas origens. De maneira que os caminhos partiam e chegavam a um mesmo ponto: Bolívar, um interminável oceano no qual os venezuelanos têm purgado suas almas dos pecados, afogado suas inseguranças, embarcado seus desejos e enxergado através do turvo espelhado de suas águas o reflexo de seu mundo. Preocupada com essa construção imaginária que a Venezuela destina ao próprio passado, Ana Teresa Torres (2009) se lança numa investigação sobre as versões míticas que essa sociedade precisou elaborar sobre si mesma em busca de um modelo exemplar, de uma repetição ou mesmo de uma ruptura no fluxo do tempo profano e uma reintegração a um momento “de origem”. Dessa forma, apesar do impulso para criar a partir do zero, que segundo Torres (2009, p. 33) é um périplo recorrente no imaginário político venezuelano, isso não significava o retorno a um deserto, a um nada, mas sim a gesta libertadora. Seu artífice maior, Bolívar, foi o lastro sob o qual o povo se abrigou do aterrador receio do futuro, uma divindade que tutelava uma sociedade inexperiente. A ausência física do prócer deixou a pátria em estado de orfandade, que tem como consequência, principalmente para as gerações que não vivenciaram a luta pela Independência e a ação bolivariana, a identificação desse marco com o ápice mítico da história nacional:

25 Generación de 28 é o nome dado ao grupo de estudantes e acadêmicos venezuelanos que organizaram uma resistência civil à ditadura de Jaun Vicente Gonzalez, com protestos, discursos e artigos jornalísticos. Entre estes, além de Andrés Eloay Blanco, estavam outros personagens que futuramente se destacariam no cenário político e intelectual, a exemplo dos presidentes da República Romulo Bettencourt (1908–1981), Raul Leoni (1905–1972) e dos acadêmicos Miguel Acosta Saignes (1909–1989) e Juan Oropeza Riera (1906–1981).

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[…] la idea de un momento irrepetible y perdido, que no puede ser transcendido, es decir, dejado atrás en el pasado, nos conduce a una encrucijada melancólica. El objeto perdido no ja sido suficientemente enterrado, el sujeto (en este caso, la sociedad venezolana) no pudo sustituir la pérdida en aras de continuar su camino hacia nuevas creaciones. Su destino quedó ligado al objeto perdido, y en una compulsión de repetición, debe buscarlo incesantemente. Mas encontrarlo es imposible, nada de lo que aparezca será suficiente. Nada será equiparable a la edad de oro perdida. Salvo la utopía de volver a ella. Esta tragedia cruza la historia de Venezuela y marca su modo de vivir en el tiempo (TORRES, 2009, p. 34)

Os estudos de Torres enfocam justamente as formas como determinados conteúdos dessa narrativa mítica foram mobilizados pelo imaginário político nacional, atendendo a compulsão venezuelana por uma repetição de características quase freudianas: a imposição da ordem por meio da perseguição ao legado paterno. Por exemplo: o caso da venezolanidad pautada pela pena de Bolívar. A maior herança identitária da ação bolivariana para a pátria foi inegavelmente a “ruptura”. Afinal, a gesta que protagonizou não é outra senão a luta por autonomia. Nesse mote, ainda que fosse um documento raramente invocado de forma direta pela narrativa de seus herdeiros — haja vista suas derivações em atos “pouco heroicos” que destoam no interior de uma narrativa épica conduzida pela busca da glória — O Decreto de Guerra a Muerte (1813) abarcava o cume da ação política bolivariana na concepção da identidade venezuelana. Em suas palavras:

Tocados de vuestros infortunios, no hemos podido ver con indiferencia las aflicciones que os hacían experimentar los bárbaros españoles, que os han aniquilado con la rapiña y os han destruido con la muerte; que han violado los derechos sagrados de las gentes; que han infringido las capitulaciones y los tratados más solemnes; y en fin han cometido todos los crímenes, reduciendo la República de Venezuela a la más espantosa desolación. Así, pues, la justicia exige la vindicta, y la necesidad nos obliga a tomarla. Que desaparezcan para siempre del suelo colombiano los monstruos que lo infestan y han cubierto de sangre; que su escarmiento sea igual a la enormidad de su perfidia, para lavar de este modo la mancha de nuestra ignominia y mostrar a las naciones del universo que no se ofende impunemente a los hijos de América. (BOLÍVAR, 1976 [1813], p. 24-25)

A extensa obra bolivariana permitiu a apropriação de enunciados similares a partir dos quais se sustentou uma visão recorrente de que a “causa” venezuelana teve sua gênese baseada: 1. No reconhecimento do inimigo e 2. Na impossibilidade de reconciliação com uma alteridade que pouco antes era similar. Sobre a reiteração dessa lógica discursiva — de antagonismos instantâneos do “nós contra os outros” — assentaram-se ao longo de sua história autônoma a maior parte dos alçamentos caudillistas que corriqueiramente repartiram o país entre bons e maus, amigos e inimigos, patriotas e traidores de Bolívar (TORRES, 2009, p. 35). É paradoxal que o exemplo bolivariano procurado como anseio de ordem, tenha carregado

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consigo o “heroísmo combatente”, gérmen do caudillismo e da instabilidade política que assolaram a República durante toda sua existência. Ainda assim, não me parece aceitável assentar nessa condição um juízo de valor definitivamente negativo ou a ideia de que nesse fenômeno há um ethos “incivilizado” ou “antidemocrático” constituído. Para Torres, essa contradição é motriz da descontinuidade entre os governos nacionais que, mesmo quando democráticos, adotavam posturas revolucionárias, promovendo constantes cisões com os programas de seus antecessores e, consequentemente, legavam às instituições públicas pouca segurança e eficiência. Em seus termos: “[...] los venezolanos se han hecho un hábito de que las cosas no duran, y se sorprenden cuando algún proyecto continúa su marcha” (TORRES, 2009, p. 31). É sintomático, portanto, que nos retornos ao momento de fundação, inseridos nos discursos políticos que buscaram validar a ascensão do “novo”, sempre restasse aquele monumento: o espírito da liberdade, o filho predileto da Venezuela e o Pai da Pátria. É nesse passado, reduto dos valores nacionais, que os sucessivos líderes das mais variadas “mudanças” ancoraram seus projetos de futuro, vide suas autointitulações em termos de restauração, regeneração, reinvindicação. As narrativas historiográficas, formuladas muitas vezes pelos mesmos atores ou por grupos de pensadores próximos aos governos, acompanharam as nuanças dos discursos políticos, ofertando bases intelectuais para sustentação de diferentes regimes. É bem verdade que a potencialidade de múltiplos usos dos símbolos bolivarianos não é uma exclusividade da sociedade venezuelana. Nikita Harwich (2003), ao analisar as transformações da historiografia cujo tema é a vida de Bolívar, mostra como em diversos contextos ao redor do mundo o herói foi apropriado por todo tipo de causa, tanto pela ordem como pela revolução. Repudiado por Karl Marx, mas envolvido na narrativa anti-imperialista do socialismo da primeira metade do século XX, de Mussolini a Fidel Castro, de Pinochet às F.A.R.C., as mais diversas tendências já buscaram se associar à imagem do Libertador. No entanto, na Venezuela, essa pluralidade de possibilidades tem um efeito mais amplo, enredando Bolívar num labirinto historiográfico que de tão complexo prende, num plano psicológico, até mesmo seus próprios construtores: os venezuelanos (HARWICH, 2003, p. 20). Atento ao mesmo fenômeno, ainda que sob um aspecto do estímulo à devoção, Elias Pino Iturrieta (2003) relata um interessante insight que Christopher Conway teve numa de suas conversas. O pesquisador norte-americano, em visita à Venezuela, confidenciara a Iturrieta que Bolívar lhe parecia a figura dos santos de vestir que observara no Museo Sacro de Caracas:

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imagens sacras cuja parte superior do corpo é sustentada por uma armação oca, podendo ser adornada com vestes diversas de acordo com as efemérides celebradas. Ao Libertador, tal qual a um dos santos, “[...] lo visten distinto para cada ceremonia y para cada necesidad" (CONWAY apud ITURRIETA, 2003, p. 41-42). A chave que Conway oferece a Iturrieta para pensar a ligação entre o Pai da Pátria e o povo tem dois aspectos centrais: 1. Trata-se de uma figura com aura sacrossanta; 2. Sua divindade não significa imutabilidade, muito pelo contrário, a potencial variedade de acordo com as circunstâncias é o que estimula suas constantes reatualizações. Ao deparar-se com o espectro político-administrativo do mesmo problema quando discute a conformação da consciência histórica da Venezuela enquanto povo, Germán Carrera Damas estabelece uma definição elucidativa para a compreensão da presença ativa de Bolívar na Venezuela. Sob a forma de culto ao herói, a permanência da imagem do Libertador foi estimulada por condições específicas, chegando a constituir o eixo central do Estado nacional, ou mesmo a arena na qual se desenvolveu o pensamento político da República. De forma que a amplitude do culto chegou a produzir uma confusão fundamental na consciência nacional venezuelana (aqui sem distinção de classe social) entre a narrativa banal do bolivarianismo e a própria nação (CARRERA DAMAS, 1983, p. 109). Luis Castro Leiva avança sobre esse ponto ao pensar que a retirada dos feitos e das palavras do libertador de seu contexto escriturário e de seu significado epocal conveio para edificá-la como doutrina de Estado. Segundo o próprio Castro Leiva,

[…] el mito Bolívar es ya decididamente parte del mito de la patria, desde un punto de vista filosófico político la vida «ejemplar» de Simón Bolívar se ha elevado por fuerza de las circunstancias políticas al rango de la filosofía de la historia política de Venezuela. En torno al proceso historia: de «proyección» nacional de los venezolanos se ha generado […] una filosofía de la historia que traza idealmente, en y a través de la vida y muerte del Libertador, el «ideario» de su teleología fundamental: nacimiento, muerte y resurrección de la libertad, de un concepto de libertad inequívocamente ilustrado (CASTRO LEIVA, 1984, p. 72)

Ou seja, o “historicismo político bolivariano” dominou a arena pública como modelo ou essência para os atos dos personagens políticos, inscrevendo o “pensar do venezuelano no tempo” sob a forma de projeção das ações e discursos de Bolívar, sem pagar os devidos tributos às evidentes transformações histórico-sociais. Na trajetória dos estudos relatados, as preocupações encontradas nos investigadores e intelectuais permitem-me estabelecer como prognóstico a influente presença de Bolívar quase que de forma preponderante na sociedade. Em cada explicação supracitada há uma metáfora de magnitude (oceano, cúspide do imaginário político; efígie da consciência histórica; exemplo matriz da filosofia da história política nacional) ou de mutabilidade (herói para todas as causas;

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santo de vestir). Cada uma aponta para uma mediação diferente da permanência do herói na sociedade, seja por meio do discurso político, do imaginário social, das construções historiográficas, de uma religião cívica ou de estruturas político-administrativas. No entanto, há uma consideração compartilhada por todas: a inegável existência do culto a Bolívar como fenômeno social central para a construção da vida política venezuelana. O impacto dessa constatação compromete os objetivos de qualquer investigação sobre o tema. Afinal, mais que se ater ao personalismo, esse debate pode ser direcionado a compreender como a construção da imagem do Libertador é reflexo de dramas sociais e da tentativa de contorná-los por meio da comunicação coletiva associada à miragem de uma comunhão de interesses e objetivos. Geral e polivalente, o culto ao herói nacional está intricado na vida pública venezuelana desde a saga libertadora e permaneceu vigente ao longo da conformação de sua identidade nacional na forma de um complexo político-cultural de funcionamento paradoxal: ao passo que estimulava crises pela repetição do exemplo belicoso do herói fundador, também promoveu uma pacificação social por meio da comunhão de símbolos e de projetos neles encapsulados. Em outras palavras, trata-se de uma ferramenta que, concomitantemente, incita sectarismos e ações de assalto ao poder e harmoniza simbolicamente querelas ao unificar a coletividade em torno da memória nacional. É necessário, portanto, dedicar atenção ao culto a Bolívar enquanto ferramenta de coesão social e política na Venezuela. As conexões entre os elementos desse panorama são percebidas por alguns intérpretes, no entanto não há um consenso sobre a conjuntura de sua produção nem dos sentidos que lhes são atribuídos ao longo dos séculos XIX e XX. Para alguns autores, como Eduardo José Reinato (2005) e George Lomné (1990), a mobilização do bolivarianismo se deveu ao colapso de autoridade na sociedade grã-colombiana durante as lutas emancipacionistas. Nesse ínterim, o processo de “heroicização” da figura do Libertador deu-se como uma substituição ao referencial divino da autoridade real. Ou seja, diante do contexto insólito dos conflitos, houve a necessidade de reorganizar a associação coletiva em torno do projeto das independências, cujo alicerce foi o discurso de deificação que as elites criollas compuseram para exaltar o chefe do exército libertador (REINATO, 2005, p. 52). Exemplo desse contexto é a complexa rede simbólico-gestual que mesclou ícones da Revolução Francesa com elementos autóctones na composição dos ritos patrióticos, dentre os quais o rito bolivariano teve destaque por ser o mais acabado, duradouro e alastrado (LOMNÉ, 1991, p. 3). A funcionalidade desse forte arranjo simbólico, nesse primeiro momento, sucumbiu diante das

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contestações por parte das elites locais, não obtendo a estabilização social pretendida, como expõe Ana Teresa Torres (2009) ao discutir a obra de Ramón Escobar Salom (2000),

[...] la disolución del orden simbólico que legitimaba el poder indiscutible del padre rey, generó la ficción de que todos los hijos, o cualquiera de ellos, ostentaban los mismos derechos para gobernar, y todos, comenzando por Bolívar sufrieron las consecuencias de esta ilegitimidad que los hacia derogables. […] las instituciones quedaron para siempre debilitadas por el hecho que la sociedad no aceptó la legitimidad de aquellos fundadores o padres de la República. (TORRES, 2009, p. 32)

Outros autores buscam entender o bolivarianismo circunscrito à história da Venezuela. Em Carrera Damas (2003, p. 308), por exemplo, o entendimento da gênese do culto a Bolívar circunscreveu-se à necessidade do Estado em capilarizar o seu discurso político dentro de um sentimento popular, facilitando a sua ação sobre a consciência coletiva no apaziguamento das convulsões sociais inscritas no não cumprimento das promessas sociais da independência. Christopher Conway (1998), por sua vez, entende que o fenômeno não nasce precisamente no Estado, mas doutro espaço institucional: na articulação intelectual na reconciliação das elites venezuelanas. Seu raciocínio baseia-se na alegação de que o processo de desmembramento da Grã-Colômbia, em 1830, significou uma fratura na elite política venezuelana. Durante o primeiro governo constitucional, encabeçado por José Antonio Páez (1790–1873), alguns aspectos político-simbólicos dessa ruptura chamam atenção: 1. A fundação da Venezuela enquanto entidade autônoma como uma ação geopolítica antibolivariana; 2. A promulgação do exílio de Bolívar, que pode ser percebido pelo seu deslinde narrativo: a morte do Libertador, ou seja, o parricídio como um pecado original que recai sobre todos os venezuelanos; e 3. A Constituição Valenciana de 1830 como rechaço legal à herança bolivariana: as restrições ao poder executivo e ataques ao foro privilegiado dos militares (CONWAY, 1998, p. 14). Esse rompimento chegou ao ápice na Guerra das Reformas (1835–1836), na qual depois da deposição do primeiro presidente civil e eleito da Venezuela, José Maria Vargas (1786–1854), os grupos conservadores e os sectores reformistas ligados à herança bolivariana entraram em conflito direto. A vitória dos conservadores resultou na repressão do Decreto monstruo de 1836 com o qual se exilaram todas as lideranças reformistas e se promulgou a pena de morte para todos desterrados que ousassem retornar a pátria. Nesse episódio, a ação de um eminente periodista fora inventiva: Tomás Lander (1792–1845), editor do periódico “El Venezolano”, que mais tarde fundaria o Partido Liberal junto a Antonio Leocadio Guzmán (1801–1884), na escrita do pedido de clemência em nome dos vencidos, abalizou a imagem de Bolívar com o sentido pacificador de signo nacional (CONWAY, 1998, p. 14-15).

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É bem verdade que o próprio Páez já havia pedido, sem sucesso, ao Congresso o retorno dos restos do Libertador à Venezuela, em 1833, com o intuito de limpar a mácula da consciência nacional (CARRERA DAMAS, 1983, p. 108). Mas, é Lander quem de fato construiu discursivamente um Bolívar superior as pugnas internas venezuelanas e o dispôs ao serviço do apaziguamento das relações entre elites por meio de seu exemplo e de sua imagem como encarnação das glórias emancipacionistas, cuja memória relativa à atuação geral e unificada na libertação, ainda que fabricada, era capaz de redimir os revoltosos pelos excessos cometidos (CONWAY, 1998, p. 16). Numa petição a José Maria Vargas, presidente reconduzido ao poder, contra o Decreto Mostruo, o jornalista escreveu:

[…] De lo que voy diciendo no se infiere, Excmo. Sr., que estoy por la impunidad de los excesos de Julio, que deploré y reprobé en alta voz. Pero sí quiero decir, que debemos penar á sus autores, no de un modo que los estermine, sino de una manera que los corrija. ¿Adonde iriamos hoy, si hubiésemos decapitado á los gefes ó notables de todas las conspiraciones colombianas y venezolanas? Si Bolívar en 1827 hubiera sometido á Paez á todo el rigor de las leyes entonces existentes, ¿hubiera contado Venezuela en 1835 con los servicios del denodado y filantrópico caudillo, que tanto ha contribuido á salvarla? ¿Hubiera la patria numerado hoy en las filas constitucionales á sus buenos servidores, los Muñozes, los Cistiagas, los Ortegas, y á tantos otros de quienes tanto ha necesitado? Si Venezuela no hubiera sido previsiva y conciliadora, ¡Hubiéramos tenido en la borrasca que acabamos de pasar á los Heres, los Paredes, los Corderos, los Salones? ¿Hubiéramos tenido al Jeneral Montilla, cuyos servicios han sido tan exquisitos y patrióticos? […]. (LANDER, 1836, p. 6-7)

Bolivar y Paez, presidiendo á Colombia y Venezuela, supieron en ocasiones solemnes como las actuales, abrazar á los enemigos suyos, y de las instituciones que regían: supieron de este modo convertir en ciudadanos fieles, á enemigos tenaces. Imítelos V, E. Son raras ocasiones semejantes. No prive V. E. á los que vestimos la casaca negra, del honor de que participaremos viéndolo engrandecerse por la clemencia. Arraigúese V. E. en los corazones de los desventurados, que al crimen de conspirar sin objeto plausible, unieron la desgracia de ser vencidos. La gratitud vive largos dias en los pechos desgraciados, así como se aniquila y muere fácilmente en los ufanos y venturosos. La clemencia nacional, después de un triunfo tan espléndido como el que hemos obtenido, es comparable á los vasos de incienso, que colocados sobre los altares del eterno, bastan para llenar de perfumes la dilatada extensión de nuestros templos. (LANDER, 1836, p. 11-12)

Isto é, na fratura entre as elites políticas em nível de conflito armado que alguns dos atos e dos discursos bolivarianos puderam ser rearranjados como signos do nacional por parte de intelectuais como Tomás Lander, obliterando a contradição narrativa entre a fundação da Venezuela em 1830 e a destruição do projeto da Grã-Colômbia, a reivindicação do passado grã- colombiano e do programa bolivariano puderam então adquirir solidez no imaginário político venezuelano, de modo que Bolívar tornou a ganhar importância mediante a necessidade do Estado em embasar-se e reafirmar um herói cada vez mais vazio de vínculos partidários, de ênfase na cicatriz do parricídio, de erros, etc.

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Vale salientar minha perspectiva de que não se trata de uma reabilitação processual do legado do herói, senão da articulação de uma via de diálogo que permite o debate e o convencimento público para além das armas. Mesmo o grupo político de Páez utilizou-a em determinados momentos, a exemplo das crônicas sobre o funeral de Bolívar em Caracas no ano de 1842, intituladas “Descripción de los honores fúnebres consagrados a los restos del Libertador Simon”, de Fermín Toro (1843). Logo, trata-se de uma ferramenta de comunicação social amplamente aceita e difusa. Noutro exemplo, Nikita Harwich (2003) argumenta que o tom capaz de “[...] moldear los rasgos de uma genuína identidade nacional consensual” adotado por “Mis Exequias a Bolívar” (1842), do conservador Juan Vicente González (1810–1866), é o semelhante ao empregado pelo liberal Felipe Larrazábal (1816–1873) na elaboração da primeira biografia de Bolívar escrita por um autor venezuelano em 1865 (HARWICH, 2003, p. 11). Isto é, a incorporação do bolivarianismo foi um artifício empregado por ambos os bandos políticos. O que, no entanto, não implicou numa nova ou completa adesão ao programa bolivariano, ainda que vários autores ao longo do tempo tenham tentado impetrar essa compreensão. Em geral, esse mecanismo parece ser justamente uma lógica de ratificação do discurso enunciado. Afinal — de forma simplificada — quão mais pretensamente bolivariana for a elocução, maior o potencial de convencimento social que o enunciado adquire. Exploro esse imbróglio por meio da observação de uma contradição do paecismo. Apesar de buscar, desde o primeiro governo constitucional, a reintegração do corpo do herói, isso não significou uma reivindicação de eixos fundamentais do discurso bolivariano, por exemplo, a meta anfictiónica. Muito pelo contrário, como mostram as investigações de Germán de la Reza (2010), os governos venezuelanos seguiram, ao menos até o Congresso de Santiago, em 1856, não só evitando integrar-se aos debates como também se opondo veementemente à realização dos eventos. A saber, no mesmo ano em que celebrara os funerais de Bolívar em Caracas, 1842, o governo de Páez, além de não enviar seus delegados para o 1º Congresso de Lima (1847), buscou impedir que os delegados doutras nações chegassem a capital peruana (DE LA REZA, 2010, p. 17). É certo que não havia uma determinação capaz de ditar o que era ser bolivariano no contexto, em vista de que tal pauta estava em construção nos múltiplos debates públicos. No entanto, é inegável que ao erguer-se contra a união pan-americana, marco da luta de Bolívar, o governo da Venezuela foi de encontro à memória do seu fundador, ainda que isso tenha significado a defesa de sua própria autonomia política. O que esse episódio deixou perceptível é que não importava aos venezuelanos o programa de Bolívar em si — que já fora rejeitado em

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1830 — senão o emprego de sua imagem como legitimador e reitor de sentidos do discurso político e público. A funcionalidade do culto a Bolívar na Venezuela, a priori, desenvolveu-se com um sentido interno voltado para a consolidação da ordem pública nacional. Conforme abaliza Rodolfo de Roux López (1999), ao analisar a construção da imagem dos heróis nacionais em Venezuela, coube ao panteão de próceres servir de exemplo, agregar e estabilizar a sociedade a partir de esforços de historiadores na construção de guerreiros que fossem as corporificações da coletividade venezuelana e de seu aprimoramento. De forma que tal estratégia levou à supressão dos personagens enquanto figuras históricas reais e sua substituição por imagens monumentais (ROUX LÓPEZ,1999, p. 34). Para esse autor, o culto aos heróis surgiu — tal qual em Conway (1998) — das elites políticas e intelectuais, para atender — assim como em Carrera Damas (2003) — às necessidades do Estado ao qual governavam, incutindo na população de uma forma geral uma afeição adulatória ao passado.

Su culto forma parte de una mitología programada en la que nos movemos aun sin darnos cuenta; es decir, un sistema de creencias socialmente compartidas y construido colectivamente por el imaginario social, a partir de materiales proporcionados por la Historia. Se trata de creencias que nos orientan en función de un porvenir presentado como legítimo y necesario. Para el caso de nuestros héroes patrios, esas creencias, construidas colectivamente, lo fueron primero por una élite deseosa de asentar su poder. Frente al desafío de crear un Estado y una nación a partir de un pasado colonial, los criollos, el único grupo dirigente que elaboró un programa identitario, concibieron la organización de las nuevas repúblicas sobre la base de intereses limitados. De hecho, preconizaban una patria fundada sobre valores criollos, sin relación con los valores e identidades del resto de la población. (ROUX LÓPEZ, 1999, p. 40-41)

Esse uso corrente não significou, contudo, que o bolivarianismo estivesse exclusivamente a serviço do Estado. Ao demonstrar como a Venezuela é uma fábrica de heróis, Luis Ricardo Dávila chama a atenção para o personalismo e a faceta antiestatal sobre os quais se assentou a lógica cultuária, ainda que sua função mais evidente fosse a integração. Nesse aspecto, na medida em que as elites governantes optaram, no lugar de uma força social ou cultural mais abstrata, pela coesão a partir do personalismo do homem providencial ou da faceta messiânica do herói, não está se indicando a construção de um Estado forte em abstrato, senão reforçando a contemplação e a repetição da ação do prócer: “[...] El héroe se construye para sedimentar los condicionantes unificadores, para asegurar la cohesión simbólica de los miembros de una formación nacional. Pero también se construye para superar la precariedad de lo social e institucional […]” (DÁVILA, 2005, p. 10-11). Dávila tem muita clareza em sua percepção de que o fenômeno do culto deu e dá margens para ações contrainstitucionais, agindo precisamente nas fissuras de uma sociedade

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insegura de seus vínculos e de seus princípios. É nesse sentido que encara o culto ao herói como um dispositivo de poder, segundo a conceitualização de Michel Foucault (Cf. 2000), ao atender à necessidade de impor nexo a uma complexa rede de controle social. Derivo do entendimento de Dávila, uma consideração que não é explicitamente prestigiada — ao menos não em sua plenitude — em seu texto, mas que interessa por contradição ao debate que proponho: o argumento de que o culto a Bolívar é instrumento para imposição de uma estrutura de poder e, consequentemente, para a dominação de um ou mais grupos sociais sobre os demais. Há alguma proximidade entre essa formulação e o conceito de “tradição inventada” de Erick Hobsbawm (Cf.1984), o que implica a propriedade do culto, quando não na sua edificação, por parte das elites (políticas, intelectuais, sociais), com fins de legitimação de estamentos e de autoridades. Essa consideração, vale ressaltar, não parece estar vinculada a um paradigma conceitual em especifico. Tanto em Carrera Damas (2003), que toma por chave o aporte ideológico, quanto em Dávila (2005), que pensa a partir dos dispositivos de poder, as consequências desse aporte são bastante similares. Para visualizar uma perspectiva mais dinâmica e plural da interação entre o culto e a realidade social venezuelana, parece-me importante enfrentar a supracitada consideração e relativizar seu potencial de verdade. Cabe, no entanto, demarcar que minha intenção não é demovê-la ou contrariá-la, mas demonstrar os seus limites interpretativos e buscar explorar suas fronteiras. Para tanto, meu ponto de partida são os já referidos estudos de Carrera Damas (2003) e Dávila (2005). É interessante perceber como esses autores se deparam em seus contextos históricos com ressignificações do bolivarianismo instituído pelo Estado, respectivamente com a ditadura de Marcos Pérez Jiménez e com o populismo chavista. O lugar de fala pode até não ser entendido por alguns como determinante na produção historiográfica, mas seus escritos têm uma carga intencional de manifestos contra promoções governamentais do culto. Nessa disposição, é compreensível que os autores buscassem um enfrentamento ao bolivarianismo por meio de categorizações relativas a uma função específica — dominação social — dentro de um escopo mais amplo. Outra crítica possível diz respeito à chave interpretativa histórico-marxista da qual comungam. Carrera Damas expunha que o projeto social da emancipação fracassou e que o culto a Bolívar foi a dissimulação dessa frustração e a protelação da desilusão (2006b, p. 162- 163; 2003, p. 42). Essa asserção o posicionou como afluente de Augusto Mijares (1998) no que este chamou de ideología de la revolución emancipadora, ao considerar o projeto da emancipação ainda em aberto e, portanto, em vias de se concretizar. É importante que o leitor

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perceba como a emancipação permanece numa expectativa de futuro, como o princípio que determina o devir e logo está envolta do historicismo político bolivariano tão criticado por Luis Castro Leiva (1984)26. Para além dessa contradição entre crítica e imersão em Carrera Damas, a elucidação desse sentido em sua tese permite compreender o significado da identificação do culto a Bolívar como instrumento contrarrevolucionário. Para esses fins, são pertinentes as observações de Mijares, ao discorrer sobre como o projeto de independência se prolonga esvaziado até os pensadores do século XIX:

[…] a pesar de que nuestras reitera das desdichas políticas acaban por alejar a la conciencia nacional de aquel elevado objetivo, la dispersan y extravían entre las mezquindades de la lucha fratricida, y de la propia Independencia no dejan más recuerdo que el de una pintoresca y empenachada aventura. Funesta consecuencia de eso fue que la glorificación de los libertadores se convirtió, a su vez, en un fetichismo estéril y en un culto puramente formal. Se alardeaba de venerar exaltadamente su memoria, pero en realidad sus ideas fundamentales se olvidaban cada día más; y hasta la misma fanfarria que se tocaba diariamente en su honor era una mistificación de los propósitos que ellos tuvieron de olvidar la guerra para levantar sobre sus escombros una Patria digna y segura. (MIJARES, 1998, p. 183)

Dávila segue um caminho um pouco distinto para chegar à conclusão de que os elementos do culto enquanto prática simbólica (personalismo, voluntarismo, desapreço pela democracia) desembocam em gérmens totalitários, como os expressos no preâmbulo da constituição de 1999, promulgada durante o chavismo (DÁVILA, 2005, p. 16). Apesar de distantes, resulta equivalente em ambos a compreensão da passividade popular ante as imposições cultuárias, como se o povo venezuelano seguisse sempre alheio, quando não alienado, às práticas simbólicas desenvolvidas em nível de Estado ou de elites intelectuais. A análise das considerações de autores mais preocupados com questões relacionadas ao âmbito religioso, no sentido durkheimiano do termo, me possibilita um entendimento mais amplo do papel popular no interior desses jogos simbólicos. É isso que

26 O aporte histórico-marxista de Carrera Damas ao afirmar o bolivarianismo como defesa do Estado, permite-nos uma problematização sobre a atual postura dos setores liberais venezuelanos na arena política, que poupam a imagem do Libertador ao criticar a institucionalidade vigente. É importante atentar que a tradição bolivariana foi formulada como égide do liberalismo. Entretanto, a partir de 1999, a ascensão de Hugo Chávez à cabeceira do processo político nacional, ancorada numa leitura socialista do conceito de revolução, produziu um deslocamento à esquerda da linguagem bolivariana. Destarte, a oposição liberal ao chavismo receia a perda de um meio comunicacional que elaborara. No contexto em que esta dissertação é escrita, a Venezuela segue envolta em acirradas lutas políticas. Os espólios da revolução bolivariana de Chávez, agora são encabeçados pelo seu herdeiro político Nicolás Maduro. Em paralelo, a crescente oposição parlamentar, conformada por grupos neoliberais, ganha as ruas em forma de massivos protestos. No imbróglio, a imagem do Libertador é subtraída dos debates públicos na medida em que é reivindicada por quase todos os agentes políticos. Num processo análogo, há um esvaziamento interno de seu simbolismo por sua superexposição, isto é, de tanto ser associado a todas as causas, falta-lhe uma ancoragem identitária. Seja quem saia vitorioso da presente contenda, provavelmente terá que enfrentar o exercício de ressignificar o bolivarianismo, já que a primazia sobre o idioma votivo do Estado nacional, está intimamente relacionado ao controle da máquina institucional.

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busco ao retornar às leituras de Elias Pino Iturrieta (2003), igualmente crítico ao chavismo, embora mais atento às funções de religação que o bolivarianismo propõe à sociedade como um todo. Em sua obra, há um empenho em pautar como as práticas votivas a Bolívar não se sustentaram apenas em imposições formais de governos e escritores, senão num clamor coletivo quase que espontâneo das classes desprivilegiadas por unidade e igualdade (ITURRIETA, 2003, p. 10). No bojo do que considera uma “religião cívica”, o processo de difusão da “fé” seria um fator de coesão por supressão, na medida em que o afastamento da ortodoxia gerava uma taciturna excomunhão social:

[…] Una especie de acuerdo compartido desde antiguo y asumido por la sociedad como una placentera obligación, conduce a la repetición de una cartilla de la Historia Patria cuyo peso desemboca en una obligante unanimidad. La necesidad de mantener un consenso abrumador provoca la segregación de los relapsos sin que se recurra a penalidades […] mucho menos a castigos más vigorosos y visibles. Un hilo sutil hace que las criaturas de la sociedad se ajusten a la demasía del poder de un superhombre resucitado y, sin estridencias, arrojen del cuerpo místico de la república a las pocas ovejas descarriadas (ITURRIETA, 2003, p. 17)

Iturrieta, muito pessimista diante desses sucessos, classifica as interações coletivas a partir do dogma bolivariano como uma patologia social, especialmente quando utilizada por seus sacerdotes a fim de impor bandeiras particulares (2003, p. 22-23). Gustavo Martín, por sua vez, ao estudar as formas contemporâneas de magia e religião na Venezuela, percebe no culto uma estrutura multivocal, o que implica a sua possibilidade de apropriação por diversos grupos sociais, em oposição à interpretação corrente de que seu serviço seria exclusivo às elites políticas. Ainda assim o autor precisa explicar o histórico uso de Bolívar para sustentação de partidos no poder. Nesse sentido, ele afirma que

[…] si esta ideología no ha llevado a expresiones reivindicativa más firmes se debe al hecho de que ha sido fácilmente recuperada, bajo la forma de un patrioterismo, por las clases dominantes de la sociedad. De nuevo se trata aquí de un fenómeno de polisemia que opera esta vez a nivel mágico-político y según el cual la existencia de unos significantes compartidos genera la ilusión de una ideología nacional. (MARTÍN apud. TORRES, 2011, p. 69)

Provavelmente, o maior exemplo do caráter polissêmico do bolivarianismo é a curiosa inserção do personagem dentro do culto a María Lionza. Segundo Emanuele Amodio (2009), o espiritismo marilioncero é um culto popular autóctone da Venezuela baseado num sincretismo de elementos cristãos, africanos e indígenas, que funciona a partir de rituais de possessão nos quais entidades espirituais das mais diversas origens históricas e mitológicas “baixam” no corpo de um oficiante a fim de estabelecer uma comunicação com ou uma cura de algum fiel que os invocara. Dentro da sua hierarquia de divindades abaixo, da tríade principal

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formada por Maria Lionza, Negro Felipe e Cacique Guaicaipuro, estão organizadas em diversas cortes de espíritos e divindades, a exemplo da: corte celestial, formada por santos católicos; corte indígena venezuelana, formada por caciques e cacicas lendários ou históricos; corte negra, composta por personagens históricos como Negra Matea, a ama de Bolívar; corte africana, composta por sete potências do panteão Iouruba; corte médica, formada por médicos populares como José Gregório e José Maria Vargas; etc. Nessa miríade de exemplos destaca-se a corte libertadora (também conhecida como militar ou de Simon Bolívar), presidida pelo prócer maior e composta por todos os heróis que lutaram contra os espanhóis nas independências (AMODIO, 2009, p. 161). Para Yolanda Salas de Lecuna (2002), pesquisadora preocupada com o desenvolvimento da imagem do Libertador na consciência popular, o fundo histórico no qual transcorre o rito marilioncero pode ser entendido como matéria para recriações da memória social num interregno entre ficção e realidade. Desta forma, a história nacional é constantemente revisitada e reformulada a partir da experiência sensorial, subjetiva e interpessoal que transcorre na relação santoral:

Estos procesos de reestructuración de identidades nos revelan que la memoria histórica popular no es una estructura tan estable y consolidada como en un principio se creyó: en ella se observa un dinamismo que la moviliza al cambio de percepciones, liberando la irrupción de paradigmas culturales y arquetipos psicológicos que habían estado adormecidos (LECUNA SALAS, 2001, p. 214)

Ou seja, os significados por meio dos quais é percebida a imagem de Simon Bolívar, nem sempre dependem de uma diretriz hierarquizada partindo de estamentos culturais e sociais mais elevados, muito menos de determinações institucionais. É certo que os ritos malionceros, apesar de datarem do período colonial, só parecem registrar a introdução da corte bolivariana por volta da década de 70 do século XX, ainda que existam relatos de um culto espiritista a Bolívar em determinadas regiões da Venezuela no início do mesmo século (AMODIO, 2000, p. 163). Mas ainda assim os exemplos citados são interessantes para pensarmos o século XIX na Venezuela, como a abrangência da narrativa da libertação foi mobilizada de diferentes maneiras, tanto pela tradição letrada como pela espiritualidade popular. O resultado disso é que o bolivarianismo se mostra como um campo aberto de disputas simbólicas, onde não há uma única função social determinada pelo seu uso mais corrente, ou mais observado. Em suma, ao abalizar aspectos importantes das diversas leituras que descrevi, é possível pensar algumas facetas distintas para o culto a Bolívar como um fenômeno social: 1. Teve lugar já no contexto grã-colombiano como ritualização e divinização da autoridade

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republicana como substituição à incontestabilidade monárquica; 2. Na Venezuela independente, serviu à conformação simbólica e imaginária do Estado, por estratégias da própria instituição e das elites políticas, intelectuais, culturais e sociais, que a deram suporte independente de partidarismos; 3. Pari passu foi base para o discurso contra-institucional e personalista do caudillismo; 4. Persistiu difuso na arena pública como um sentimento coletivo e/ou clamor popular identificado na busca por unidade e coesão da sociedade; 5. Chegando a uma forma que escapa à esfera das relações de controle interclasses e sobrevivendo inclusive em modos religiosos populares tal qual o culto a Maria Lionza, que revivem e reinventam a narrativa histórica de acordo com a liturgia dessas crenças. Depois de toda argumentação sobre a mutabilidade e dimensão do bolivarianismo na Venezuela, o leitor não deve estar surpreso ao se deparar com a complexidade e incoerência das formas do culto apresentadas nessa explanação. Ainda assim, ficam algumas questões em suspensão: Bolívar serve realmente para quase tudo? Como compreender a diversidade de funções? Há um nexo comum em todas as leituras: o culto a Bolívar está sempre circunscrito à esfera da comunicação social. É precisamente esse entendimento que me leva a encarar suas manifestações a partir de dois conceitos tributários da virada linguística: linguagens políticas (POCOCK, 2003) quando se tratam de enunciados, e sistema cultural de comunicação simbólica (TAHMBIAH, 1985) quando se tratam de gestos e símbolos. Isto é, minha proposta para conciliar as diversas interpretações sobre o bolivarianismo é encará-lo não através de suas funções, mas sim como um repertório semântico, simbólico e gestual que pode ser mobilizado na arena pública para definir múltiplos sentidos, com a confiança de que os interlocutores são capazes de compreender, replicar, modificar e contrapor os significados ali encapsulados. Nesse entrelugar do bolivarianismo há uma forma na qual se destaca a lógica de comunicação social. A festa bolivariana, desde a conjuntura grã-colombiana, arranjou a construção de unanimidades, ainda que ficcionais, excepcionais e instantâneas, como modos de demonstrar compartilhamento de valores, participação na vida pública, comunhão simbólica, transmissão de projetos políticos, etc. É, em espacial, sobre esses eventos que trilho minha investigação, contudo antes de adentrar num debate preciso sobre festas, é interessante demarcar o seu lugar no interior do culto e atentar para os potenciais de seus estudos a partir de marcos da antropologia cultural e da história dos discursos políticos.

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1.3. UM CULTO POLISSÊMICO

Advogar que o culto a Bolívar desempenha um papel comunicacional na sociedade venezuelana não significa estipular que cada configuração do culto tenha a mesma importância ou encarregue-se da mesma maneira de estabelecer uma interlocução funcional. Ao revés, as manifestações do culto são bastante singulares e operam sobre a vida política a partir intencionalidades diversas. A fim de problematizar esse debate, retomo a interpretação de Ricardo Dávila (2005), neste turno já atento à limitação em seu argumento que relaciona o bolivarianismo exclusivamente com a dominação social. Segundo este, o culto a Bolívar é um dispositivo de poder, o que remete ao conceito de “dispositivo” pensado por Michael Foucault (2000) como

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. (Foucault, 2000, p. 244)

Baseado nessa percepção, tenho segurança para afirmar que o culto a Bolívar não é um monólito ou um fenômeno social homogêneo. Suas ramificações, em diversos âmbitos sociais, contribuem para que se constitua em díspares e simultâneas formas, que aparecem interligadas e até sobrepostas, por meio de uma abstrata rede intelectual que lhes atribui os mais variados valores e funções político-culturais. Portanto, é possível destrinchar, para fins analíticos, o fenômeno total em vários círculos: monumentalização pública; cultura visual de uma forma geral; artes cénicas e literárias; diplomacia inter e intraestatal; discursos políticos institucionais, da imprensa, populares ou caudillistas; narrativas históricas; pedagogia e religião cívica; religiosidade popular; festividades (cerimoniais ou efervescências coletivas); etc. Com modos característicos, tais facetas só podem ser compreendidas na observação de suas especificidades. Por suposto, não há fôlego neste trabalho para uma exposição total, entretanto proponho seguir um esboço de três desses elementos: monumentalização pública, pedagogia e religião cívica, narrativas históricas, a partir de exemplos do século XIX, para de alguma maneira abarcar a polissemia do culto a Bolívar e entender o lugar das festas nacionais como uma forma cultual plural.

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1.3.1. Monumentalização pública

O cenário urbano hispano-americano não passou incólume às guerras de independência. Em termos gerais, a peleia resultou na modificação da ordem política, com a ascensão de projetos republicanos e a consequente rejeição ao regime monárquico espanhol. Por suposto que tal viragem também modifica o modo de percepção dos espaços sociais. Segundo Natalia Majluf (1994), investigadora da produção de esculturas públicas no século XIX, o cerne dessa modificação está na relação de posse. Durante o período colonial, ruas, alamedas e mesmo as plazas mayores — símbolos incontestes de poder ocupadas pelas alcadías e catedrais — pertenciam em última instância ao Rei. O corpus escultórico oitocentista que é alocado nas cidades atende a uma demanda por apropriação dos espaços urbanos, submetendo- os à tutela da República, representada imageticamente por seus próceres e heróis (MAJLUF, 1994, p. 9). O monumento Homenagen a Simon Bolívar (1846) (Imagem 1) parece atender à mesma lógica, sendo um dos primeiros que ocupou um lugar público em Bogotá. Doada por José Ignácio Paris ao Congresso Nacional em 1845, a primeira estátua de corpo inteiro do Libertador instaura uma nova fronteira de poder ao rebatizar a plaza mayor da capital neogranadina como plaza Bolívar a partir de sua inauguração (CARRASCO, 2011, p. 35-37). Expondo a face do Libertador, o espaço público ganha literalmente uma “cara” republicana. Na Venezuela, além da reprodução da estátua bogotana como a instalada na plaza Bolívar da Ciudad Bolívar em 1869 (SALVADOR GONZALEZ, 2009, p. 55), a inauguração do Mausoleo del Libertador Simon Bolívar (1852) (Imagem 2) na Catedral metropolitana de Caracas cuidou de, ao passo em que se laicizou o espaço religioso, sacralizar o símbolo cívico. Tal processo ganha ênfase quando em 1876 o presidente venezuelano Antonio Guzmán Blanco (1829–1899) ordena o translado do monumento acompanhando os restos mortais do Libertador para o recém- inaugurado Panteão Nacional, construído a partir das ruínas do edifício da Iglesia de la Santísima Trinidad (SALVADOR GONZALEZ, 2006, p. 566). Em todos os casos, a monumentalização marcou o empenho das elites republicanas em estabelecer a posse simbólica de espaços de poder. A disseminação dessa empreitada chegou ao ponto em que por lei de 1872 todas as cidades da Venezuela deveriam ter sua praça principal batizada em homenagem ao Libertador (HARWICH, 2003, p. 7). Entre as 20 capitais estaduais, só Barcelona não o fez, porque nomeou sua praça em homenagem a Batalha de Boyacá, que

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fora vencida sob a liderança do herói (TONELLI, 1997, p. 145). Ademais, boa parte desses espaços foi tutelado por variadas imagens do prócer. É paradoxal que ambas as estátuas supracitadas, apesar de possuírem status de símbolos pátrios, tenham saído dos estúdios do escultor neoclassicista Pietro Tenerani e carreguem símbolos inspirados na tradição da Roma Antiga. Cabe destacar alguns elementos: ambos os monumentos compartilham o uso de uma capa em disposição que se assemelha a uma toga romana, signo relacionado à forma usual de representação do bom cidadão na Roma Antiga, a exemplo da estátua de Sêneca em Córdoba (Imagem 3). Na estátua de 1846, havia fasces lictoriae em relevo no embasamento da estátua (VANEGAS CARRASCO, 2011, p. 45- 47). Já no mausoléu de 1852 (Imagem 2), o Libertador segura uma coroa de louros numa das mãos, e as representações encarnadas da Justiça, da Magnanimidade e das três Repúblicas que fundou se apresentam à moda da escultura clássica. Esse fato estimula a interpretação de que houve uma necessidade por parte dos patrocinadores americanos em inserir a reprodução imagética da memória coletiva nacional na cronologia da civilização moderna, através do compartilhamento de artífices e signos da cultura ocidental. Conforme explica Fraçoise Choay,

[...] a construção icônica e textual do corpus das antiguidades, tanto clássica como nacionais, permitem às sociedades ocidentais prosseguir seu duplo trabalho original: a construção do tempo histórico e de uma imagem de si mesma enriquecida de modo progressivo por dados genealógicos” (CHOAY, 2006, p. 206)

Portanto, não é um longo salto até a conclusão de que a produção escultórica bolivariana redesenhou as topografias citadinas no período republicano, pari passu integrava a memória coletiva nacional à narrativa histórica europeia. Caso avalie a monumentalização pública anexa ao escopo mais amplo da urbanização, posso me valer do argumento de Tomás Straka para pensar sua inserção na superação da condição colonial e na coerência ante a modernidade norte-atlântica enquanto repercussão do drama das consciências nacionais hispano-americanas: como ser ocidental fora do Ocidente? (2009c, p. 336). A imagem de Bolívar como face da República encarnou a identidade e as tensões das nacionalidades em processo de fundação, provendo saída às suas consequentes fragilidades: uma funcional e oportuna localização física e temporal.

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Img. 1. Monumento a Simon Bolívar (1846) de Pietro Tenerani, na Plaza Bolívar, Bogotá, Colômbia. Fonte: Vice-presidencia de Turismo da Colômbia. Disponível em Acessado em 19 de fevereiro de 2018.

Img. 2: Mausoleo del Libertador Simon Bolívar Img. 3: Estátua de Sêneca em sua terra natal, (1852) obra de Pietro Tenerani que se encontra no Cordoba. Disponível em: Panteão Nacional de Caracas. Disponível em: panteon-nacional-y-cientos-de-personas-acuden-a- Acessado em 19 de fevereiro de 2018. conocer-el-nuevo-mausoleo-al-libertador/.> Acessado em 19 de fevereiro de 2018.

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1.3.2. Pedagogia e religião cívica

Os escritos e atos do Libertador ganharam status axiomáticos na vida política venezuelana. Não à toa que o herói fora percebido como sobre-humano, figura exemplar e modelo para o comportamento moral do cidadão. Sobre a questão, Castro Leiva escreve que “[...] la religión católica ha podido aspirar a más. Esto es, aspirar a que el sentido de lo que significa ser humano fuese equidistante con el llegar a ser cristiano y viceversa. Pero en Venezuela en este sentido, el catolicismo ha logrado menos que el bolivarianismo” (1991, p. 10). Ou seja, em Venezuela, mais que a humanidade, a cidadania perpassava pela adesão ao padrão cultual. Para Carrera Damas, esse horizonte moral, pensado enquanto segunda religião ou religião cívica, segmentar-se-ia em dois polos opostos: 1. Relacionado à fé, com todo um conteúdo de intransigência dogmática; 2. Relativo à noção de paradigma, pressupondo e estimulando a imitação (2003, p. 262). Longe de propor um arremate sobre o tema, é cabível, contudo, questionar se o culto pode ser identificado sob a forma de religião enquanto fé, isso ao menos para suas manifestações no âmbito político republicano, das quais trata Carrera Damas. Mesmo em sua forma mais fanática, a prática cultual não se tratou de ascetismo ou de uma consistente crença no caráter extraterreno do herói. O desenvolvimento da sacralidade manteve-se no campo cívico, inclusive não alterando ou competindo com os dogmas cristãos centrais para as sociedades. De forma que não houve estranhamento quando nas exéquias feitas ao Libertador em Bogotá, no ano seguinte a sua morte, proclamou-se: “Seguid, señor, seguid, que en vos también se encierra una trinidad augusta: sois el Padre de la Patria, el hijo de la Gloria y el espíritu santo de la Libertad (EXEQUIAS EM BOGOTÁ apud LOMNÉ, 1991, p. 15). Mais de cem anos depois, em ocasião do Centenário do translado dos restos mortais de Bolívar a Caracas, em 1942, o reitor do colégio de Mérida e Monsenhor Enrique María Dubuc (1886–1962) diria que

[…] el primer deber patriótico de todo venezolano es el estudio reflexivo y afectuoso de nuestro Libertador […].Si nadie puede ser cristiano genuino, ni puede conocer nuestra Religión desconociendo al Autor de ella, que es Jesucristo, ninguno de nosotros puede ser buen patriota, ni tener un concepto preciso de Patria, si no conoce en espíritu y en verdad al Padre de ella, Simón Bolívar. (DUBUC apud CARRERA DAMAS, 1983, p. 114)

O uso da linguagem votiva do catolicismo e comparações com Jesus Cristo, inclusive por parte dos sacerdotes, sem incorrer em considerações de contradições, censuras ou

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em acusações de heresias, por parte do público em geral e clerical, abaliza alguma distinção social entre as esferas sagradas ocupadas pelo Deus cristão e por Bolívar. É possível, portanto, inscrever o bolivarianismo dentro do espectro conceitual que Fernando Catroga chama de religião cívica, “[...] cuja função reside na sacralização do viver comum de uma dada colectividade” (2005, p. 12). O que implica em percebê-lo, também, como consequência do advento da modernidade na Venezuela, seja na dessacralização da fé tradicional, seja na emancipação do homem perante Deus em nível simbólico; um e outro aspecto que parecem repercutir alguma forma de vivenciar a memória da derrubada do regime monárquico. De qualquer modo, esse prognóstico leva-me a consideração de que as manifestações de religiosidade cívica do culto não implicam um definitivo afastamento da visão religiosa, senão a

[...] metabolização mundividenciais, num processo em que a sacralidade ressurgiu, com alguma eficácia — ainda que, muitas vezes, invisível e inominada para os seus actores —, no próprio interior da imanência secular. [...] a secularização dos fundamentos, funções e finalidades da política moderna também fez irradias um halo de sacralidade, embora em suas justificações teóricas tendam a não admiti-lo. (CATROGA, 2005, p. 11)

Por outro lado, enquanto paradigma moral, Bolívar aparece, para Carrera Damas, como héroe-meta inalcançável (2003, p. 234), exemplo a ser perseguido num coletivo trabalho de Sísifo. Tal qual se nomeou Pico Bolívar o ponto mais alto do território venezuelano27, o herói se conformou como ápice da venezolanidad. Todo aquele que queira fazer-se um verdadeiro patriota deveria seguir seus mandamentos, de forma que pensamentos e atos do prócer passaram a constituir um crivo capaz de julgar valores “[...] independientemente de que pudiere dudarse de si el tribunal está legítimamente establecido sobre la comprensión histórica del sentido de las «palabras» de su propio Prometeo.” (CASTRO LEIVA, 1984, p. 79). O Libertador tornou-se princípio ativo de impulso, retificação e superação no âmbito das ações políticas, por meio do orgulho de sua gesta e do imperativo em responder a incompletude de seu programa. O que me leva a concordar com a consideração de Carrera Damas, que o modelo bolivariano “[...] constituye un estímulo, mezcla de persuasión y pedagógica compulsión, que se vuelve ineludible cuando el celo bolivariano desbordado

27 Localizado no Andes venezuelanos, mais especificamente no Estado de Mérida, a extremidade é apresentada como ponto mais alto do país. Por muito tempo chamou-se Pico de La Columna, termo que de alguma forma se relaciona ao monumento La Columna de Bolívar inaugurado na cidade de Mérida em 1842 (BALZA, 2013; HURTADO CAMARGO, 2015). Em 18 de março 1925, foi renomeado de Pico Bolívar por meio de proposta de Tulio Febres Cordeiro e Juan Rodriguez Suárez, ainda que o rebatizo tenha se efetivado somente em 1934, em cerimônia aos pés do referido monumento que segue intimamente relacionado com sua toponímia

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identifica su incumplimiento con la traición.” (2003, p. 254). Há de se ter em conta, no entanto, que o heroísmo exemplar nem sempre é de cunho militarista ou caudillista, como o mesmo autor definiu enquanto condição para o surgimento do culto. Como figura de destaque intelectual no cenário político do Guzmanato28 (1870- 1888), Francisco Gonzaléz Guinán (1841–1932) não esteve alheio ao projeto da escola pública nacional do então presidente Guzmán Blanco. Em 1877, o jornalista publica “El consejero de la Juventud”, sucesso editorial que viria a contar com mais de 30 edições. Dirigido à educação primária venezuelana, o livro traz capítulos peculiares para a pedagogia moral e cívica, ensinando aos meninos como tratar de abnegação, da Mãe, da palavra empenhada, das más companhias, etc. Em suma, um manual para a vida do bom cidadão. A promissora produção intelectual e mesmo sua participação na Revolução Reivindicadora (1879)29, valera-lhe cargos ministeriais nos governos guzmancista, castrista e gomecista30. Ainda assim o conceito de heroísmo em sua obra não é a expressão do militarismo dos governos que integrou. No capítulo dedicado ao patriotismo, o autor expõe que “La patria aspira al reinado perpetuo de la dulce paz: no hagas la guerra ni hoy, ni mañana, ni nunca. La patria quiere el amor y la concordia de todos sus hijos: no le prediques la matanza, ni el odio, ni la demagogia, ni el desorden.” (GONZALÉZ GUINÁN, 1902, p. 89). E em seguida ao discorrer sobre os maus exemplos de cidadãos que o jovem pode encontrar ao ingressar na vida pública, indica que

[...] esto no debe desalentarte, ni obligarte á replegar al fondo del hogar y echarte en brazos del egoísmo. El heroísmo está en la lucha, y es defendiendo las nobles causas que la popularidad se adquiere y se conquístala gloria del buen nombre. Hazte propagandista de las sanas ideas, defiende con bizairía los principios universales de la justicia, combate la guerra bajo todas sus formas, niégale tu apoyo al peculado, denuncia el refractarismo, defiende la paz en todas las situaciones […]. (1902, p. 90)

Ou seja, sua leitura de patriotismo consiste na manutenção da paz e ordem social, enredando um heroísmo distante das vaidades e egoísmos que levam à guerra civil, mas envolvido na luta política e no debate público. O que implica, uma vez mais, a compreensão de

28 Guzmanato, como é utilizado pelos historiadores, remete-se ao período em que Antonio Guzmán Blanco exerceu a sua hegemonia sobre o cenário político nacional. Esse contexto de quase duas décadas é subdividido em três mandatos governamentais: Septenio (1870-1877), Quinquenio (1879-1884), e Bienio ou Aclamación Nacional (1886-1888). 29 A Revolução Reivindicadora foi um conflito civil na Venezuela, que marcou a derrocada do governo constitucional de Francisco Linares Alcántara (1877-1878) e o regresso de Antonio Guzmán Blanco a cabeceira do executivo nacional, abrindo seu período de governo guzmancista conhecido como El Quinquenio (1879-1884). 30 Na Venezuela, castrista ou castrismo refere-se ao governo de Cipriano Castro (1899-1908) e gomecista ou gomecismo a hegemonia de Juan Vicente Gomez (1908-1935), respectivamente a última autocracia do século XIX e a primeira ditadura do século XX no país.

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que a linguagem do bolivarianismo não radica de uma ideologia pré-moderna da selvageria pretoriana — já que em Gonzaléz Guinán o modelo heroico é a antítese da ação do caudillo — senão que é um meio para enunciação social de valores relativos a modos comportamentais que variam de acordo com o debate e com o tempo: sejam caudillistas e militaristas, sejam civilizatórios e cidadãos.

1.3.3. Narrativas históricas

Ainda sobre o normativo bolivariano, há um contrassenso que merece destaque: o fato de o parâmetro de cidadão venezuelano ser, também, o herói idealizado como representante mais perfeito da humanidade tem como consequências lógicas a impossibilidade de copiá-lo em abstrato ou absoluto; ultrapassá-lo, então, está fora de qualquer cogitação. Esse limite para a vida pública, vigente e atuante no imaginário político venezuelano — com maior ênfase em movimentos mais recentes, como o chavismo — cria impasses aos quais está atenta a crítica especializada, a exemplo de Manuel Caballero (2007). Diante dessas circunstâncias, o autor, autointitulado não bolivariano, chega à conclusão, em termos ácidos e controversos, de que “[…] los venezolanos nunca lograremos hacer nada digno de recordación mientras continuemos invocando Bolívar, pretendiendo actuar como Bolívar, ser como Bolívar; mientras nos pretedamos mejores bolivarianos unos que otros.” (CABALLERO, 2007, p. 22). Levado ao extremo, o argumento de Caballero é uma advertência às restrições estabelecidas pelo imperativo moral, que podem limitar as possibilidades de se fazer/escrever a própria história por parte dos venezuelanos. É como se na Venezuela o horizonte de expectativas fosse decisivamente comprimido pela projeção do espaço de experiência. Isso é válido, em especial, para a observação do século XIX, no qual o exercício narrativo de fundar a nação — seja em termos científicos ou menos formais — fora arrazoado sobre a versão da gesta libertadora que teve em Bolívar seu protagonista. A projeção do herói sobre a história pátria pode ser compreendida segundo duas fórmulas: uma diz que a Venezuela foi criação incompleta de Bolívar, outra que a futura nação foi prevista por Bolívar. Tentarei exemplificar brevemente como se desenvolve cada qual. Quanto à “Venezuela: o plano incompleto do Libertador” é possível relacionar essa expressão ao fato de que nas narrativas históricas do século XIX, as entidades nação-pátria- república — na condição de sinônimas — foram apresentadas como frutos diretos da ação

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política de Bolívar. Uma demonstração das consequências dessa lógica é que outros dois marcos postulantes da representação fundacional da Venezuela: a assinatura da Ata de independência pelo primeiro Congresso Nacional em 1811 e o Congresso de Valencia de 183031 foram eclipsados pelo fulgor com que se narrou as lutas capitaneadas pelo Libertador. Noutros termos, os atos heroicos bolivarianos estiveram em primeiro plano nas narrativas que refletiam a identidade nacional. Por exemplo, Aristides Rojas (1826-1894), eminente intelectual do Guzmanato, que narra as “Origines de la revolución venezolana” (1883), coroou com os devidos louros os feitos dos pais fundadores, embora não os tenha apresentado como mais que precursores do Libertador. A Ata da independência, de 1810, limita-se, para o autor, a uma luta do grupo político de Caracas32. Entrementes a revolução — e consequentemente a nação — só tem princípio de fato a partir de Bolívar: o fim das origens e o primeiro homem de uma nova raça. Para esse entendimento é sintomático o modo como Rojas encerra sua narrativa:

En esta lucha sangrienta que ocupa la dilatada región desde Paria hasta los Andes del Cuzco, Miranda, el fundador de la emancipación americana, es la primera víctima, y Bolívar que logró el triunfo completo de la idea, después de doce años de lucha, la última. Un dilatad osario donde reposa la flor de la juventud de Venezuela aparece desde entonces esta célebre región de América, en cuyos extremos descuellan los dos primeros hombres de la revolución: MIRANDA, el fundador de la emancipación americana que, después de prolongados años de labor, llega á las costas del continente, y alcanza al fin la gloriosa cima, el 5 de Julio de 1811—BOLÍVAR, Libertador, que después de sangrienta lucha asciende al dorso del Planeta para clavar sobre las cumbres luminosas del Ande la bandera de Colombia (1883, p. 61-62)

Cabe dizer que a vitória de Bolívar, depois de 12 anos de luta, se remete somente a guerra contra os espanhóis. Apesar de ter fincado a bandeira colombiana no mundo, o fato de ser vítima da luta, tal qual Miranda, dá a entender que o projeto de ambos segue inacabado. Dada a incompletude da nação associada à culpa pela morte do herói no desterro em 1830, que houve mobilizações à ação política sob sua tutela simbólica em vários contextos. A história pátria envolta nesse movimento, concomitantemente é reitora da atuação cidadã, reflete a sombra do herói sobre os homens. O Guzmanato, nosso exemplo mais persistente e conjuntura da qual Rojas é representante acadêmico, esforçou-se por identificar a modernização nacional

31 Foi necessária uma verdadeira operação de esquecimento para enquadrar Bolívar como Pai da Venezuela, visto que o projeto de sua vida fora a Grã-Colômbia e o Estado independente da Venezuela nasce da cisão desse país e do desterro do Libertador. 32 O argumento de Rojas tem um sentido particular diante do projeto político de Antonio Guzmán Blanco, que em 1883, com as festas do Centenário de Simon Bolívar em Caracas, procurou reafirmar simbolicamente a dianteira da capital sobre o Venezuela.

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e a centralização do Estado com a obra do prócer. Outras situações do século XIX e XX desenvolveram estratégias distintas. Carrera Damas entende que esse processo de criação de um herói dominante na narrativa histórica deriva da admiração e supervalorização de seus feitos, que seguem em espirais hiperbólicas até o cume da exageração literária (2003, p. 109). Não há como precisar se o autor relaciona tal excesso com falsificação, desmedida ou desperdício, mas caso o faça sou obrigado a discordar categoricamente. Cada recontar da Libertação apresentou um utilitarismo particular para seu contexto de enunciação e, em geral, atendeu positivamente a necessidade de distinção da biografia pátria e consequentemente ao fortalecimento de uma tradição nacional. Mesmo elementos com maior potencial imódico na proeminência do herói sobre a história pátria, como o modelo narrativo da “nação prevista por Bolívar”, cumprem com papeis socioculturais funcionais e não devem ser pensados em termos de pedantismo ou de pomposidade retórica. A premissa de um prócer vidente, a priori, sequer parte de um exegeta cultual, senão da pena do próprio Bolívar. No ano de 1823, quando a vitória da libertação ainda não havia sido assegurada pelas batalhas de Junín e Ayacucho (1824), mas crescia em otimismo depois da conquista do Marechal Antônio Sucre em Pichicha (1822); o Libertador compôs uma exceção em seu repertório. “Mi delírio sobre el Chimborazo”33 ganhou destaque em meio a de uma vastidão de escritos políticos, proclamas e epistolários, justamente por não trazer o tom político habitual de seus textos. Sob a forma de um poema em prosa, Bolívar narrou uma escalada alegórica ao cume do Monte Chimborazo34 na qual fora animado e possuído pelo espírito de Colômbia. Chegando ao topo, travou com o Tempo o seguinte diálogo:

[…] estoy mirando junto a mí rutilantes astros, los soles infinitos; mido sin asombro el espacio que encierra la materia, y en tu rostro leo la Historia de lo pasado y los pensamientos del Destino. Observa — me dijo —, aprende, conserva en tu mente lo que has visto, dibuja a los ojos de tus semejantes el cuadro del Universo físico, del Universo moral; no escondas los secretos que el cielo te ha revelado: di la verdad a los hombres. (BOLÍVAR, 1842 [1823], p. 63)

Observando por um prisma historiográfico, não se pode argumentar que Bolívar quisera de fato proclamar poderes premonitórios. Sua prosopopeia não é mais que a romantização de um projeto político e a expressão de seus desejos de futuro, animado pelo

33 O texto é tão distinto dentro do conjunto da obra de Bolívar que se chega a suspeitar que se trate de uma falsificação. Para mais detalhes ver o artigo de Manuel Caballero (2007, p. 45) no qual seleciona recortes da biografia de Bolívar por Gerhard Mansur que apontam para essa tese. 34 Ponto mais alto do que fora a região da Grã-Colômbia, localiza-se na atual cidade de Riobamba, Equador.

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clima positivo das recentes vitórias. Entretanto, quando a narrativa da libertação foi recuperada e tramada nas linhas dos intelectuais americanos a imagem de conhecedor dos pensamentos do Destino e da História, ganha ênfase, reforçando a ideia de que o prócer é um homem atemporal, com poderes vaticinais. Um exemplo é o texto de Juan Vicente Gonzalez (1810-1866), “Bolivar em Casacoima”, no qual é narrado outro “devaneio” do Libertador. Em meio a Campanha de Guerra a Muerte em 1817, as tropas libertadoras estavam encurraladas pelo exército realista depois de uma significativa derrota na laguna de Casacoima. Bolívar encontrava-se acamado e febril. Conquanto o herói seguia vociferando futuras proezas de batalhas, seus generais e comandantes desesperavam-se na crença de que sua sanidade haveria subsumido. Dizia ele:

- No sé lo que tiene dispuesto la Providencia, decía, pero ella me inspira una confianza sin límites. Salí de Cayos, solo en medio de algunos oficiales, si más recursos que la esperanza, prometiéndome atravesar un país enemigo y conquistarlo. Se ha realizado la mitad de mis planes: nos hemos sobrepuesto a todos los obstáculos hasta llegar a Guayana; dentro de pocos días rendiremos a Angostura, y entonces… iremos a libertar a la Nueva Granada y, arrojando a los enemigos del resto de Venezuela, constituiremos a Colombia. Enarbolaremos después el tricolor sobre el Chimborazo e iremos a completar nuestra obra de libertar a la América del Sur y asegurar nuestra independencia, llevando nuestros pendones victoriosos al Perú: el Perú será libre… (VICENTE GONZALÉZ, 1918, p. 301)

Sem demonstrar grandes surpresas, Vicente Gonzaléz encerra seu texto confirmando as predições do herói contra qualquer expectativa de seu generalato: dois meses depois Bolívar tomaria Angostura, dois anos depois conquistaria a independência da Nova Granada, quatro anos a seguir derrotaria Morillo em Carabobo, em cinco anos libertaria o Equador, e sete anos mais tarde levaria suas bandeiras até o Peru (VICENTE GONZALÉZ, 1918, p. 302). De Bolívar e Vicente Gonzaléz partem narrativas nacionais construídas e singularizadas a partir dos delírios do Libertador, que receberam credibilidade para compor o repertório de possibilidades das quais poderiam derivar o futuro. De acordo com o que publicara José Martí, el apóstol de la Independencia de Cuba, em 1893 “[...] mientras la América viva, el eco de su nombre resonará en lo más viril y honrado de nuestras entrañas!” (2006, p. 17-18). Para ambas as formas “Venezuela: o plano incompleto do Libertador” ou “A nação prevista por Bolívar”, é pertinente entender que o empenho em identificar a criação da Venezuela, e por consequência da própria nacionalidade, como fruto dos atos e da mente do herói, relaciona-se ao fundo conceitual de matriz teológica cristã na historiografia venezuelana (CARRERA DAMAS, 2003, p. 114). Aqui subjaz o entendimento de que a Venezuela esperava a volta de seu messias, em motes de projetos políticos, para regenerar a nação ante suas

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deficiências. Ana Teresa Torres entende que aí está a base do “finalismo emancipador” (2009, p. 25) que prevaleceu na construção da história pátria: a ideia de que todos os movimentos políticos se direcionam inexoravelmente no caminho da libertação com o sentido de cumprir o programa bolivariano, de maneira que há uma tendência a reinterpretar os acontecimentos passados a luz das expectativas de um roteiro bolivariano.

1.3.4. Festas nacionais

É perceptível que, apesar de compartilharem vários aspectos, as manifestações cultuais na Venezuela têm lógicas internas particulares e funcionalidades públicas circunscritas a determinadas esferas sociais. A festa nacional, no entanto, extrapola tais fronteiras, alavancando o culto a segmentos sociais, políticos e geográficos que outras formas do bolivarianismo não conseguiriam abranger. Como paroxismos sociais, os festejos valeram-se de elementos linguísticos de diversos âmbitos para compor uma comunhão própria, sólida e pujante, dentro de uma breve cisão do quotidiano. Essa foi a condição para que, enquanto acontecimento, pudessem exercer seu cerne: organizar sentidos para polissemias simbólicas ante a comunidade. Deste modo, compreende-se como conseguiram ser simultaneamente a monumentalização do tempo e do espaço; a elaboração de uma narrativa nacional; e a disseminação de valores e normativas morais; conquanto moldavam e predicavam para um público nacional de uma forma mais heterogênea. Portanto, é relevante discutir, a partir de categorias antropológicas e perspectivas historiográficas, as lógicas que movimentaram as festas pátrias bolivarianas em termos de ação simbólica no tempo. É importante estabelecer um recorte de antemão. Uma vez que abordo o âmbito nacional, trato de comemorações que tiveram seu discurso direcionado ao conjunto da nação, seja por meio da promoção direta do Estado e de suas instituições ou por meio da organização por parte de atores do âmbito político: dirigentes, intelectuais, artistas, etc. Ou seja, discorro aqui sobre os marcos de um sistema ritual institucionalizado. Essa distinção faz-se necessária devido ao fato de que no século XIX e XX houve festas bolivarianas de mobilização popular com certo grau de espontaneidade, a exemplo da festa de San Fernando de Apurre, em 1832. Após uma enchente devastadora atingir a região, os moradores de San Fernando e vizinhanças organizaram-se com o intuito de pedir intercedência espiritual ao falecido herói para que evitasse novos desastres naturais (ITURRIETA, 2003, p. 29-31). O alcance dessa cerimônia foi,

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contudo, limitada ao aspecto geopolítico regional da cidade de San Fernando. Ainda que tenha se valido de uma mesma via comunicacional e do reconhecimento de um mesmo símbolo (Bolívar), aparenta ocupar um lugar menor para o desenvolvimento de uma linguagem festiva nacional, caso comparada aos faustos de Caracas. A energia comunicacional das festas esteve, portanto, atrelada aos valores simbólicos do palco no qual transcorreram e dos atores sociais que delas se ocuparam. A ritualização do espaço é um ponto comum das festas. Manuel Delgado (2004, p. 84), ao discutir as relações entre festa, identidade e comunidade, denota que os rituais, além de tempo, marcam também espacialidades: fronteiras, limites, lugares de poder, distinguindo o que é interno e o que é externo, reafirmando propriedades. Joan Pratt Canos (1982, p. 160), a seu tempo, enfatiza a preparação do lugar da festa como uma forma de sacralização do espaço a partir de sua limpeza e ornamentação, como também da escolha de um lugar previamente dotado de simbolismo. Num jargão mais teórico, Edmund Leach (1978) pensa que a materialidade topográfica do lugar no qual transcorrem os ritos são índices (porta-mensagens) para suas descrições metafisicas; conquanto simultaneamente o próprio ritual é um sinal (causa que provoca consequência) que modifica o espaço no qual acontece (1978, p. 62-63). Tal repertório me possibilita afirmar, para o caso da Venezuela, que os itinerários cerimoniais sob controle governamental desenharam e, simultaneamente, foram inscritos numa topografia nacional. Ou seja, nesse processo houve duas escalas de poder que se reafirmam: primeiro, a proeminência das festas nacionais em relação aos festejos populares; segundo, a hierarquia da capital ante o restante país, e das capitais regionais ante suas regiões. Numa terminologia antropológica, as festas desempenham papeis de fatos culturais, isto é, foram espaços de enunciação de perspectivas de mundo, visto que “[...] a cultura comunica; a interconexão complexa de fatos culturais transmite, ela própria, informações àqueles que participam desses fatos.” (LEACH, 1978, p. 8). Contudo, a captação de seus sentidos está atrelada à familiaridade de um grupo com uma gramática capaz de converter suas ações expressivas em enunciados ou símbolos verbais; noutros termos, a eficácia da comunicação prescinde de uma “comunidade cultural” (LEACH, 1978, p. 17). De forma análoga, a compreensão popular dos significados do “mapeamento” produzido nas festas bolivarianas dependeu, em absoluto, do domínio coletivo sobre o código do qual a comemoração se vale. Tal garantia é respaldada pelo entendimento de que houve uma matriz histórica que lhe dera suporte. No livro Ef́meras efeḿrides, de José Maria Salvador Gonzaléz (2001), há

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categorizações e narrativas das principais festas Venezuelanas, desde o século XVII ao XIX. Guardadas as ponderações acerca da falta de criticidade em suas páginas, os relatos de Salvador Gonzaléz permitem duas considerações ao leitor atento ao problema em questão: os elementos dos festejos monárquicos repercutem de algum modo na linguagem festiva republicana; e a centralidade de Caracas já é, no contexto colonial, um elemento consistente das celebrações35. Desde a construção de arcos triunfais para celebrar o fim de interregnos, até os cortejos ou peregrinações das Entradas de vice-reis, funcionários de Estado e chefes militares vitoriosos, houve uma miríade de símbolos, gestos e discursos que serviriam de substrato para as futuras festas nacionais, ao ponto em que o autor denomina as festas cívicas36 como uma “[...] herancia europea” (2001, p. 47). Uma investigação mais analítica, como a que George Lomné elabora em nível de Grã-Colômbia, pode fornecer uma leitura que vislumbre possibilidades de manifestações simbólicas nativas37 no horizonte nacional do século XIX. Um raciocínio recorrente na sua obra trata do mesmo ponto que Salvador Gonzaléz, o costumeiro recurso às comemorações no período republicano como fruto do uso extensivo desse expediente enquanto marco de poder da monarquia espanhola durante o período colonial. O que os distingue é a atenção de Lomné às rupturas simbólicas no processo de conformação das identidades comunitárias. O autor é capaz de compreender que as inversões e exclusões simbólicas associadas a um damnatio memoriae monárquico (1993, p. 115-118; 1991, p. 8), acrescidas de tropismos autóctones (1991, p. 13-15) e revolucionário-republicanos (franceses) (1991, p. 3) compuseram um novo repertório simbólico sobre uma via comunicacional já estabelecida.

35 Durante o período monárquico, Caracas foi palco para comemoração da coroação de todos os reis espanhóis do séc. XVIII: Carlos II (1666), Felipe V (1701), Luis I (1724), Fernando VI (1747), Carlos III (1760), Carlos IV (1789). Além das festas em homenagem a jura de Luis Fernando (1711); o nascimento do filho de Felipe V (1708); e a celebração da ereção do Vice-reino de Nueva Granada (1719) (Cf. SALVARDOR GONZALÉZ, 2001, p. 85- 86, 90, 99; GIMENÉZ, 2005, p. 79). 36 Cabe ressaltar que o adjetivo utilizado por Salvador Gonzaléz não é empregado com a intenção de fazer distinção de temporalidade (colonial ou republicana), mas de referir os atores sociais envolvidos: os civis ou homens públicos. Nesse estudo, por outro lado, utilizo o termo cívico com referência ao civismo do século XIX, portanto muito próximo à percepção de nacional. 37 Em verdade, essa discussão não me apetece, pois apesar de divergirem em determinados aspectos, ambos os autores partem e chegam à mesma conclusão: existe uma influência europeia determinante na construção dos modos rituais americanos, percebidos segundo essa lógica como refrações de um modelo pretensamente original. Por afinidade cabe aqui a crítica de Elias Palti à fórmula da história das ideais na América latina, no sentido que seu “[...] esquema clásico de los ‘modelos’ y las ‘desviaciones’ supone sistemas de pensamiento (‘tipos ideales’) claramente delimitados e definidos. ” (PALTI, 2007, p. 40). Tal qual Palti lida ante os discursos políticos, creio que encarar as festas a partir dos estudos das linguagens políticas levaria a discussões para além das pretensas disfunções entre ideias e realidade, enveredando na “[...] dimensión simbólica inscripta en los propios sistemas de acciones, refiere a la serie de supuestos implícito sobre los cuales se funda toda práctica política, como también social o económica, y que se ponen en juego en el ejercicio mismo de dicha práctica, más allá de la consciencia que tengan los sujetos de ello.” (PALTI, 2014, p. 15)

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A Entrada triunfal, modelo festivo usual durante as guerras de libertação, foi tributária da transformação analisada por Lomné, na medida em que operou a tradução de elementos de uma velha ordem política para o âmbito ritual republicano. Chamo a atenção para a descrição de Rodolfo de Roux Lopéz:

Las fiestas conmemorativas de los gritos de Independencia y de las batallas decisivas inauguran un calendario cívico popular y establecen un modelo general de celebraciones compuesto de desfiles militares al son de tambores y trompetas, arcos de triunfo, carrozas con cuadros alegóricos, discursos grandilocuentes, Te Deum con repique de campanas, salvas de artillería, banquete para los notables, bailes y juegos para el pueblo. (ROUX LOPÉZ, 1999, p. 36)

É perceptível que a liturgia seguiu muito similar à que se encontra nas narrativas de Salvador Gonzaléz sobre os cerimoniais monárquicos: construção de arcos do triunfo por onde a peregrinação deve passar (2001, p. 27), celebração de te deums e salvas de artilharias (2001, p. 84), execução de desfiles militares (2001, p. 92). De fato, a variação mais importante do cenário se dá na introdução de novos objetos de culto num sistema ritual que mantém sua funcionalidade de legitimar marcos de poder. A substituição pontual da simbólica monárquica por elementos da nova ordem republicana (cujo signo mais usual fora Bolívar) completou, a reboque, a ressemantização das festas, elaborando novos sentidos para seu conteúdo simbólico (de forma geral) e gestual ante a arena pública38. Em díade com a ação política dos libertadores, as festas ajudam a compreender alguns termos da disseminação de novos valores a esse tempo. Segundo Roger Chartier (2004, p. 38), em sua comparação entre os modelos de festas da ordem e de festas da revolução, a gramática simbólica da festa permite enunciar os mais variados projetos políticos. Na outra face dessa afirmação, é possível estipular que o projeto disseminado pela festa atue sob a forma de sinal — em termos antropológicos — que encadeia como resposta, consciente ou não, a pronta adesão ao ritual. O episódio da falsa Entrada de Bolívar em Cartagena, no ano de 1826, oferta um forte indício para essa conclusão. A partir do boato da visita do Libertador — signo das independências — à região, a municipalidade e a população preparam-se para demonstrar sua integração ao seu programa, até a chegada da notícia que desenganou a sua presença (LOMNÉ, 2009, p. 133). Ainda que o tempo tenha agido expressivamente sobre seus objetos de culto — Bolívar e alguns libertadores morreram, alguns foram ostracizados da vida pública ou suas memórias caíram em desgraça — as festas pátrias bolivarianas atravessam o século XIX como

38 Ratifico meu entendimento a partir da afirmação de Lomné (2009, p. 133), que entende aqui o transcurso de uma pseudomorfose das festas, ou seja, uma transformação na natureza do ritual sem que se modificasse sua forma.

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atos performativos: sequências comunicacionais formalizadas, estereotipadas, condensadas e redundantes (TAHMBIAH, 1983, p. 143 -145). Em outras palavras, a recorrência das festas bolivarianas na Venezuela esteve vinculada a um consenso coletivo sobre os seus símbolos, à permanência de sua liturgia e ao seu poder de síntese programática, de forma que é possível percebê-las coletivamente como “[...] um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica”39 (TAHMBIAH, 1983, p. 128). Ademais, o papel de compartilhamento de valores (políticos, morais e de civilidade) tem suas dimensões abruptamente ampliadas quando se percebe a Venezuela do contexto como um país analfabeto. Pedro Henrique Cazaldilla (1999, p. 112, 129-130) parte dessa percepção ao estudar sobre festas do septênio guzmancista, para concluir que as efemérides foram importantes ferramentas para a disseminação de uma pedagogia republicana que inferiu tanto sobre o padrão civilizatório quanto sobre a percepção do compartilhamento de um destino como nação. Diante de uma sociedade eminentemente oral, fazer ver e ouvir, possibilitar a produção do testemunho oral e tentar compor a ficção de unanimidade com o público, de fato parece uma estratégia eficaz para enunciação de novos modelos sociais.

***

Consolidada essa rede de aspectos teóricos que possibilita uma interpretação fenomenológica sobre as festas bolivarianas, cabe discorrer sobre o funcionamento simbólico das efemérides por si próprias. No que toca a minha abordagem das festas a partir da perspectiva da história dos discursos políticos, parte de seu entendimento enquanto uma linguagem, percebendo que uma linguagem “[...] não é meramente o idioma partilhado por uma série de debatedores, mas um recurso difundido e disponível, a ponto de ser conhecido de e poder entrar no discurso de pessoas envolvidas em discussões que não as pessoas para as quais ela fora originalmente criada.” (POCOCK, 2003, p. 80). É no seu caráter mediativo que focalizo minhas preocupações, visto que quanto mais as festas são capazes — seja enquanto acontecimento histórico, seja como diegese (crônica) — de mobilizar um conteúdo simbólico a fim de estabelecer uma comunicação coletiva, mais elas se tornam uma fonte pertinente para a observação da produção de sentidos dentro da arena política nacional; e nesse aspecto, seus papéis enquanto enunciadoras são tão importantes quanto suas funções propositivas. Uma

39 Tradução livre do original “[...] a culturally constructed system of symbolic communication.”

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observação de Palti ao distinguir o nível pragmático-contextual do nível semântico na linguagem é ilustrativa dessa perspectiva no que diz que o sentido de um enunciado:

[...] no puede establecerse independientemente de su contexto particular de elocución. Este se refiere no sólo a “qué se dijo” […], sino también a “cómo se dijo”, “quien lo dijo”, “dónde”, “a quien”, “en qué circunstancias”, etc. La comprensión del sentido supone un entendimiento del significado, sin embargo, ambos son de naturaleza muy distinta. El segundo pertenece a la orden de la lengua [langue], describe hechos o situaciones; el primero, en cambio, pertenece al orden del habla [parole], implica la realización de una acción. (2007, p. 294)

Portanto, uma análise oportuna das festas bolivarianas não pode ser realizada alheia ao seu contexto, sob pena de perder seu cariz mediativo. Parafraseando a metáfora de John Pocock (2003, p. 75), a festa enquanto ato de sociedade é uma Penélope de dia, enquanto seu espectador, ou leitor, é uma Penélope à noite. Um e outro estiveram imersos no exercício com os fios de enunciado, entretanto, para ambos a trama importa mais que a tapeçaria como um todo. Vale destacar que essa consideração deve estar atenta ao caráter performativo, intencional ou não, que desemboca em possíveis contradições entre o “o que se estava fazendo” e “o que de fato se fez”. Desta maneira, a linguagem política que é percebida no bojo das festas bolivarianas de forma alguma é um estrato homogêneo de discursos pós-independência; muito pelo contrário, em sua composição há uma diversidade de sublinguagens inter-relacionadas que produzem a solidez argumentativa pretendida ao se recorrer às enunciações em seu interior. Isoladamente, cada qual teve seu papel social, mas trabalhadas em conjunto foram capazes de consolidar uma estratégia particular: um fenômeno social produtor de enunciados aceitos de forma quase unívocas, um lugar para produção de verdades socialmente compartilhadas e aceitas. Para perceber o enredo linguístico que compõe as efemérides, proponho que o leitor me siga na análise de duas festas do século XIX, a partir de suas crônicas.

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CAPÍTULO 2

AS FESTAS ______O pangolim me queria convencer a voltar definitivamente para o meu buraco. Eu devia deixar o mundo dos vivos. E autorizar que me nomeassem de herói.

— Fique herói, só lhe chateiam de ano em ano. Mia Couto, “A Varanda do Frangipani”.

No capítulo anterior discuti o símbolo Bolívar na tradição política do século XIX ao observar os papéis que lhes foram atribuídos pela historiografia, pela monumentalização pública e pelo civismo, e em paralelo, explanei como as festas se mostraram fenômenos capazes de cooptar e amplificar essas definições. Transitar entre os vários cultos é um exercício importante para postular uma interpretação plural e atenta à necessidade de seccionar o bolivarianismo em diversas facetas. Entretanto, para o seguimento da investigação é pertinente refinar o olhar. A partir deste capítulo, dedicar-me-ei a aprofundar o exame particular de um dos usos de Bolívar: a festa nacional enquanto elemento que postula saídas para as crises sociais venezuelanas, visto que as celebrações ao herói preencheram calendários rituais do país. É improvável que alguma pesquisa tenha fôlego para debatê-las de forma generalizada. Diante dessa impossibilidade, o recorte aqui proposto diz respeito à análise do Centenário de Bolívar na Caracas de 1883, entendida como a celebração mais prestigiada do século XIX, seja pela sua dimensão ou pela carga simbólica que foi capaz de manejar. Contudo, ainda não é o momento de discuti-la. Por ora, meu interesse reside em encontrar ferramentas para uma análise contextual da efeméride de 1883. O que perpassa necessariamente não só pela análise dos discursos produzidos no meio ritual, mas também pelo entendimento dos ritmos festivos e como eles possibilitam a enunciação política, seja na própria festa, seja na sua transcrição para a forma de crônica. Esses aspectos não podem ser resumidos ao exame de uma só cerimônia, sob o risco de observar o processo histórico de conformações e confrontações simbólicas exclusivamente à sombra de sua conjuntura de execução. É necessário, portanto, problematizar as linguagens políticas das festas bolivarianas na medida em que foram institucionalizadas na vida política nacional.

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Ao enfatizar as transformações de signos de acordo com o debate público, não é prudente se ater às festas rotineiras, que têm sua importância na sedimentação da linguagem, mas pouco dizem sobre sua polissemia. Consequentemente, essa discussão deve focar-se nas festas que estiveram descoladas de uma continuidade previsível e alimentadas pela ideia de esplendor e unicidade. Noutros termos, caso se queira compreender historicamente os idiomas em uso no Centenário de Bolívar, há uma fonte para sua análise em festas que — tal qual o rito de 1883 — romperam com o ordenamento quotidiano da sociedade. É especificamente sobre esse nicho que discorrerei no presente capítulo. Tulio Febres Cordero, acadêmico venezuelano do início do século XX, comenta que a partir do ano de 1849, o dia 28 de outubro — onomástico de Simon Bolívar — foi comemorado em honra a sua glória (FEBRES CORDERO apud CARRERA DAMAS, 2003, p. 314), provavelmente referindo-se ao decreto de Jose Tadeo Monagas, que ocupava a presidência naquela ocasião. A partir do ano de 1876, outras duas datas são incorporadas definitivamente à liturgia bolivariana: 24 de julho e 17 de dezembro40, respectivamente os dias natalício e de morte do Libertador. Tais festas não ajudam a perceber mais que a circulação pública da linguagem do rito bolivariano, imaginando sua rotina tal qual uma estratégia em que o canal de comunicação foi sociabilizado e difundido ante o transcurso do tempo e o consequente esquecimento. Isso não quer dizer que essas festas tenham sido produzidas alheias aos debates públicos, mas sua repetição, obrigatória por leis ou por costumes, de certa forma ocultava as relações entre a comemoração e as contendas políticas em vigor. Para compreender 1883, é necessário analisar as festas que foram similares em aspectos de originalidade, espetacularidade e não repetição. Nelas, pôde-se observar com nitidez a ruptura com o quotidiano e a instauração de um novo tempo, tornando viável seu entendimento sob a forma de rito de passagem coletivo. Tanto a sociedade quanto o tempo se transformam no ínterim festivo, e ainda que se realoquem nos papéis desempenhados previamente, jamais serão percebidos do modo como eram antes. Numa leitura influenciada pela antropologia ritual de Victor Turner, entendo que esses instantes de transformação tendem a estar relacionados com situações de crise sócio-política que cobram posicionamentos dos atores sociais (TURNER, 2008, p. 31-33). Ao se colocarem numa arena política comprometida com a resolução do conflito, esses personagens são capazes de mobilizar o aparato comunicativo (verbal, gestual, simbólico) mais elementar — da perspectiva comunitária — que

40 É certo que a celebração das Honras funerárias em 1842 se realizou em 17 de dezembro, aniversário de morte do Libertador. No entanto, só durante o Guzmanato se torna uma celebração habitual e anual junto ao natalício do herói (LANDAETA ROSALES, 1900, p. 11).

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possibilite apresentar, compreensivelmente, uma possibilidade de solução. As festas que proponho pesquisar foram, portanto, singulares na medida em que evidenciavam e se autoproclamavam a responder convulsões específicas de suas circunstâncias. Afim de não incorrer na investigação de particularidades fantasmagóricas, frutos exclusivamente de minha interpretação, vasculho por essas proposições de arbitramento das inarmonias sociais no âmbito das próprias crônicas festivas, imaginando que a projeção de um entendimento público seja um dos elementos centrais do idioma festivo em questão. De forma análoga, a percepção da festa como um fenômeno extraordinário não pode advir de minha seleção, visto que há uma tendência das festas a se autopromoverem sob adjetivos da verve admirável; é mais oportuno, se não afiançado, privilegiar a visão de figuras mais próximas a essa realidade, embora não imersas nela. É nesse sentido que me apoio no trabalho de Manuel Landaeta Rosales (1847-1920) como compilador do século XIX. Militar venezuelano, Ladaeta Rosales vivenciou o ápice da República Autocrática Liberal na Venezuela, variando entre situação e oposição ao longo do guzmancismo, castrismo e gomecismo. Após o ano de 1889, largou a farda e dedicou-se à ocupação de cargos na administração pública e ao estudo do passado nacional. Além de algumas biografias de personagens importantes, como dos presidentes Joaquim Crespo e Juan Vicente Gomez, o militar se empenhou na catalogação de fatos e figuras, atribuindo-lhes valores de grandeza. Dentro de sua obra não parece haver uma preocupação em centrar um escopo específico, mas sim registrar o passado segundo a sua percepção de importância e ordem de distinção41. É precisamente a constância de Landaeta Rosales em categorizar eventos aleatórios da história nacional o que me interessa em sua obra. Esse ímpeto chama atenção — em especial para esta investigação — na breve relação de todas as homenagens, títulos e monumentos que o Libertador recebera em vida ou postumamente, contida no seu “Grandes honores acordados al libertador Simón Bolívar” (1900), que habilita a busca de festas com o mesmo idioma do Centenário de Bolívar. O fato de o autor não elencar as festas anuais do aniversário natalício, funerário e onomástico de Bolívar, remetendo-se a sua periodicidade apenas numa nota de

41 Entre as obras de Landaeta Rosales é possível citar: “Hoja de servicios del libertador Simón Bolívar” (1889); “Los Venezolanos en el exterior” (1903); “Banderas y divisas usadas en Venezuela” (1903); “Estatuas y pilas antiguas de Caracas” (1907); “Efeḿrides venezolanas del mes de mayo” (1907); “Hombres y mujeres notables en la guerra de la independencia de Venezuela, que nacieron en la antigua provincia de Barcelona” (1894); “Los piratas y escuadras extranjeras en las aguas y costas de Venezuela desde 1528 hasta 1903” (1903); “Sacerdotes que sirvieron a la causa de la independencia de Venezuela de 1797 a 1823” (1911).

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rodapé (LADAETA ROSALES, 1900, p. 11), é um sinal promissor de como minha análise pode sintonizar-se com sua lista; para ambos, extraordinariedade é um elemento central. Por outro lado, nem tudo que está em sua listagem cabe à pesquisa em curso. Afinal, esta se circunscreve a compreender como funciona o jogo comunicacional num padrão festivo que mobiliza o rito bolivariano, na forma de arena política institucionalizada, diante de uma sociedade constrangida a buscar resoluções para seus próprios dilemas. Para pôr em relevo esse tipo de festa, é necessário estreitar a seleção de Ladaeta Rosales em três aspectos: 1. A festa deve ser realizada no centro do teatro de poder venezuelano (Caracas, ou em certas circunstâncias Valência); 2. A efeméride deve ser realizada após a guerra de independência, ou seja, não deve referir-se à tarefa de secção com a Espanha, mas sim à sociedade venezuelana — seja na Grã-Colômbia, ou independente — em sua organização simbólica para lidar com suas confrontações inerentes à pretensão de autonomia; 3. Devem ser celebrações anteriores ao Guzmanato, já que focalizo o Centenário de Bolívar ao longo do restante da dissertação; é imprescindível que aqui se trate do funcionamento de seus idiomas noutros contextos, sendo utilizado por personagens diferentes para enunciar projetos distintos. Aplicados esses critérios, duas efemérides se destacam no encarte: a “Espléndiada recepción em Caracas em la manaña del 10 de enero de 1827”, cujo adjetivo esplendoroso só se repete na nomenclatura do Centenário de Bolívar; e “Entrada solemne de los restos de Bolívar á Caracas, el 17 de diciembre de 1842” (LADAETA ROSALES, 1900, p. 9-10). Vivenciadas em conjunturas distintas, é possível questionar e comparar as celebrações a partir de relatos de seus círculos de produção a fim de compreendê-las no seu papel de comunicação ritual. Isto é, deve-se estar atento a: Em que situação? Quem fala? O que fala? Para quem? De que forma? Com que justificativa? Etc. As crônicas, elaboradas por personagens que, imersos na situação, transitaram nos bastidores da política, podem informar — com alguns ruídos — quais sentidos políticos os formuladores tentaram provocar com os eventos que produziram. O tratamento dessas fontes é valioso para a percepção da maneira com que certos elementos são reafirmados nas efemérides bolivarianas. Em razão disso, é necessário indagar as crônicas, seus autores e as circunstâncias nas quais atuaram.

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2.1. UM TRIUNFO DA CONCILIAÇÃO: A ENTRADA DE BOLÍVAR EM CARACAS (1827)

Mesmo imersa num momento de crise da Grã-Colômbia, marco que em geral chama a atenção dos estudiosos, a festa de 1827 é pouco debatida pela historiografia contemporânea. Por exemplo, a efeméride não está no escopo de Carrera Damas (2003), quando investiga o culto a Bolívar, nem no de Reinaldo Rojas (2011), quando estuda as relações entre festas, imaginário político e nação. A lógica de seus trabalhos faz supor os motivos dessa ausência: para Carrera Damas, o domínio do culto por parte do Estado só se dá depois da morte de Bolívar, mais precisamente com a promoção de suas Honras Fúnebres em 1842; logo, a festa de 1827 só poderia advir de uma espontânea adoração popular ao Libertador; enquanto Rojas, interessado no imaginário político nacional, ao ignorar o período Grã-Colombiano em sua investigação, privilegia os momentos em que a Venezuela concebe-se imaginariamente em nação e, dentre esses, o funeral de Bolívar em Caracas aparece uma vez mais com destaque. Um dos poucos autores a abordar a Entrada de 1827 é Salvador Gonzaléz (2001), que a caracteriza como triunfal, venezuelana e fomentada pelas circunstâncias políticas. Entretanto, além de categorizá-la, o autor não faz mais que uma descrição factual das crônicas da festa. Na presente pesquisa, trabalho com outra leitura sobre os eventos de 1827, embasada em duas questões: 1. Há evidências tácitas de que de uma festa com idioma bolivariano, cuja função, mais que expressar sentimento íntimo da sociedade por Bolívar, foi desempenhar o papel de uma arena política em adesão — ao menos naquele instante — à pauta conciliatória do Libertador; 2. É importante ressaltar ainda que não houvesse um Estado “nacional” autonomamente constituído, a sociedade caraquenha já debatia e divulgava um imaginário político enquanto centro político da Venezuela, com pretensões de secessão ou autonomia ante Bogotá. A Entrada de Bolívar em Caracas em 1827 é uma festa que fala em nome dessa Venezuela centrada em Caracas e disposta a se reconciliar com Bolívar. Assentado nesses dois aspectos, proponho uma análise sobre as crônicas oficiais da efeméride bolivariana, debatendo seus enunciados em relação ao seu objeto de culto. Depois da vitória em armas na Guerra de Independência (1821), as rivalidades entre os grupos dirigentes da Grã-Colômbia se aprofundam. Na ausência da figura arbitral do Libertador, que partira em 1824 a fim de concluir a luta pela independência no Peru, essas contendas ameaçavam a ruptura institucional entre a capital Bogotá e o centro da vida política venezuelana, compreendido no eixo Valência-Caracas. Entretanto, a dissensão se instaura de

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fato quando, em 1826, várias municipalidades venezuelanas proclamam desconhecer a autoridade de Bogotá e conferiram poderes ditatoriais a Antônio Páez, episódio que entrou para história local sob o título de La Cosiata. Páez justificou suas ações na seguintes alegação:

El voto libre de los pueblos me ha encargado del mando en jefe de las armas y de la administración civil. Prescindiendo mi situación particular, llamó únicamente mi atención la suerte del país. Nuestros enemigos se daban la enhorabuena, y ya nos contaban otra vez en su poder. Ellos se han engatiado, y nos encontrarán como siempre dispuestos à rechazarlos. La propia conservación es la suprema ley. Esta es la que nos ha dictado las medidas que adoptamos y que están consignadas en las actas municipales. El público se instruirá de todo por la imprenta. Entre tanto baste saber que las leyes rijen, y que todas las garantías serán respetadas: en una palabra, todo cuanto no se oponga al paso que hemos dado, seguirá como hasta aquí. Los pueblos estaban aflijidos por la mala administración, y anhelaban por el remedio de su males. […] El Libertador Presidente será nuestro árbitro y mediador, y él no será sordo á los clamores de sus compatriotas. (PÁEZ, 1826, p. 56)

Segundo o caudillo, o poder lhe foi conferido com a intenção de manter a ordem em nome dos pueblos, cujo descontentamento com a administração pública somava-se à impopularidade do malsucedido recrutamento de soldados venezuelanos para servir sob as ordens da Unión em Bogotá. Vale salientar que a invocação do arbítrio de Bolívar não modificou o fato dessa rebelião se levantar contra o seu projeto político de Colômbia. Para Fernando Falcón (2009, p. 542-543), no substrato desse movimento estava o debate público venezuelano sobre o conceito de federalismo e de soberania que circundava pela época42, ainda que mais tarde, com a separação da Venezuela e a Constituição de Valência em 1830 — que encerram o processo de secção iniciado pela Cosiata — tenha se optado por uma forma de governo centro-federalista. Diante desse percurso, é importante suspeitar, então, se as pretensões federalistas não foram usadas como factoide para a escalada ao poder, uma bandeira alçada por um setor político a fim de se colocar enquanto oposição à estrutura governamental. Isto é, um espectro da modernidade institucional a ser instaurada, que, contudo, mais que um projeto efetivo, oculta a pura disputa pelo poder. Suponho que a lógica que circunda esse fenômeno diz respeito ao poder governamental assentado em Caracas, que só poderia ser combatido a partir de uma

42 Em geral, a discussão se centrava no entendimento das províncias como sujeitos portadores das soberanias, ainda que fossem tuteladas pelas cidades principais. Documentos catalogados pelas memórias de Páez (1867), demonstram como havia um debate em torno da questão das soberanias. Na “Acta popular declarando á Venezuela Estado independiente y federativo” (1867, t. I, p. 360-363), anais da reunião de lideranças venezuelanas em 7 de novembro de 1826 denotam várias opiniões sobre a estrutura administrativa da Grã-Colômbia, dentre as quais se sobressaiu o pronunciamento do próprio Páez: “Los pueblos, como origen puro de la soberanía en todo gobierno popular y representativo, son los jueces árbitros y los únicos competentemente autorizados para decidir de sus derechos y destinos en toda cuestión que tiene por objeto asegurar su existencia política y las condiciones de su asociación” (PÁEZ, 1867, t. I, p. 360-361).

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aliança dos grupos regionais do restante do país; em caso de vitória, um novo governo se assenta sobre a institucionalidade da capital e reconhece a necessidade de medidas centralistas, chamando contra si uma nova oposição dos grupos regionais que o apoiaram na escalada ao poder, fechando o circuito em curto. Exemplos não faltam. Basta observarmos as ascensões de Juan Crisostomo Falcón (1863) e Antonio Guzman Blanco (1870) à Presidência da República depois de conflitos que debateram em armas um conceito difuso de federalismo.43 Por outro lado, de modo mais tácito, esse episódio desenvolveu-se sobre um sentimento antibolivariano44. Aristides Rojas, ainda no século XIX, ao estudar as pasquinadas caraquenhas, cita uma sátira famosa na época da Cosiata que denota a hostilidade pública com a qual Caracas tratava Bolívar:

Si de Bolívar la letra con que empieza Y aquella con que acaba le quitamos, Oliva de la paz símbolo, hagamos, Esto quiere decir que del tirano La cabeza y los pies cortar debemos Si es que una paz durable apetecemos. (ROJAS, 1962, p. 88)

Na análise de Manuel Caballero (2002, p. 145-147), esse foi o primeiro momento de transição na vida independente da Venezuela, o que para o autor significa que o episódio desembocou em mais que uma transformação institucional. Com a rebelião das municipalidades em 1826, iniciou-se uma modificação social, sem perspectiva de prazo para se encerrar, impelida por um projeto político que ganhou corpo de consciência nacional. Uma das bases desse programa conservador-liberal, ou projeto paecista, foi “[...] una acción que podría ser llamada de ‘librarse del libertador’, lo cual quiere decir no de su ideología y de su acción como líder del proceso independentista, sino como jefe del Estado colombiano, o como se llamaba oficialmente ‘Libertador-Presidente’.” (CABALLERO, 2002, p. 147). Ainda que o argumento aparente justificar o projeto pelo seu fim — a separação definitiva da Grã-Colômbia em 1830 — quando atentamos para a desobediência às ordens de Bogotá e a opinião pública hostil a Bolívar, não restam muitas possibilidades senão encarar que era esse horizonte que os atores vislumbravam quando realizavam seus lances políticos. Ainda em 1826, diante do risco real de colapso do edifício político que ele próprio arquitetara, Bolívar voltou rapidamente do Peru a fim de contornar a situação. Na circunstância,

43 Dedicarei um debate mais atento à questão regional-nacional no capítulo 3. 44 A identificação de Bolívar como déspota, possivelmente mantinha alguma relação com a discussão sobre o federalismo, em vista que o mesmo conceito já fora colocado com essa denotação desde 1811 na luta contra o despotismo da monarquia espanhola (FALCÓN, 2009, p. 542).

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talvez pela difusão de sua imagem como líder autoritário ou mesmo como forma de justificar a rebeldia venezuelana, esperava-se que o Libertador regressasse com a intenção de desencadear uma guerra civil45. Entretanto, para surpresa geral, a resolução adotada pelo herói correspondia ao indulto dos sediciosos e o reconhecimento da autoridade de Páez sobre a Venezuela, deliberando uma maior autonomia para Caracas em relação à Bogotá. É nesse contexto que no dia 10 de janeiro de 1827, o até então tirano foi recebido como pai da pátria por uma suntuosa Entrada triunfal em Caracas (Quadro 1).

Quadro 1: Calendário de eventos baseado nas crônicas “Sucinta descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827”, de Valentin Espinal. DATA EVENTOS 1 de jan. Falsa notícia do ataque de um destacamento de tropa do presidente à Barquisimeto Reunião da Municipalidad da 4 de jan. capital para discutir os tributos em Envio de emissários para saudar Bolívar. honra ao Libertador Jantar oferecido pela Entrada de Bolívar em Solenidade na 10 de jan. Municipalidad e discurso do Caracas Catedral Síndico Municipal Homenagens das Festa na rua da Noite de canções compostas 11 de jan. corporações e dos casa onde estava sob a encomenda da magistrados Bolívar Municipalidad. Banquete com autoridades, canções, brindes, e quadros com inscrições em 13 de jan. homenagem ao Libertador, ofertados pela Municipalidad. A caminho da quinta, Bolívar recebeu Banquete ofertado pelo General homenagens da calle de Bravos 14 de jan. Toro em sua quinta (Candelaria), dos tios de Bolívar, e do comércio Visita de Bolívar à cidade portuária de La Guaira, a caminho do qual recebe 30 de jan. várias homenagens de pequenos pueblos

Devido à falta de periódicos, a municipalidad indicou Valentin Espinal (1803-1866) para que escrevesse as crônicas festivas, publicadas ainda em 1827 sob o título de “Sucinta descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827”. O impressor, que Aristides Rojas chamará ao fim do século XIX de verdadeiro criador da arte tipográfica em Caracas, começou sua carreira como discípulo de Juan Antônio Gutierrez em

45 No dia 01 de janeiro de 1827 surge em Caracas o infundado boato de que um destacamento de tropas do presidente libertador havia procedido um ataque a Barquisimeto. De tão crível e eficiente que fora naquela circunstância, o rumor provoca a mobilização do efetivo militar de Caracas, e pôs a cavalos os soldados que seguiam a pé (ESPINAL, 1827, p. 3-4).

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1815. Em 1823, assumiu a imprensa, quando seu mestre é expulso do país por ser espanhol. Dessa forma, Espinal tornou-se editor do periódico Iris de Venezeuela, que substituíra a Gaceta de Caracas como órgão de imprensa do governo. Aparentemente, essa posição de destaque expressava uma sintonia com as elites caraquenhas, ao ponto de que em 1827 sua escolha para narrar e imprimir o relato do Triunfo do Libertador ser justificada pela municipalidad na ata de 22 de janeiro, sob o seguinte argumento:

[...] la Municipalidad que encontró en esta exposición el apoyo de sus mismos sentimientos, y que desea que toda la República y el mundo entero tengan conocimiento exacto de los que animan este pueblo en obsequio de la gratitud á que se ha hecho acreedor el inmortal Bolívar; acordó por unanimidad de votos que el Sr. Valentín Espinal […] se encargue de la redacción de aquellos sucesos […]. (MUNICIPALIDAD DE CARACAS apud. ESPINAL, 1827, p. s/n)

Portanto, os relatos de Espinal estavam subordinados às lideranças políticas de Caracas e deveriam atender às suas pretensões. Ainda que o discurso festivo fosse constantemente atribuído à capital e à sua população, a municipalidad esteve na posição de enunciadora dos festejos e adotou uma tessitura de símbolos e signos em busca da produção de um sentido particular. Desse modo, a instituição cuidou em orientar tanto a organização da festa como seu registro e divulgação. A posição de Caracas como centro político nacional permitiu- lhe pari passu revestir-se de “Patria” ou de “la República”, segundo as instâncias de seu discurso. Ou seja, a festa fora instrumento não só para criar uma unanimidade ficcional, mas também teve potencial para amplificá-la. A repercussão desse cenário nas crônicas está na necessidade de enaltecer o empenho da cidade em organizar a efeméride como na descrição da chegada do Libertador à capital: “¡cuan acreedor á los conatos del héroe es el ilustre pueblo de Caracas, célebre precursor de la libertad sudamericana, digna cuna de Bolivar, y trono del patriotismo!” (1827, p. 11). De maneira similar, no desfecho da narrativa, o papel da cidade como produtora dos festejos é reafirmado: “[…] nada menos debia esperarse del patriotismo de Caracas; del conocimiento que le asiste de la gratitud debida á los servicios de Bolivar; y de la noble satisfacción que le causa el ser la cuna del hombre insigne que tiene absorto al universo.” (1827, p. 28). Não é insensato, portanto, associar a lógica narrativa das crónicas festivas às justificativas das elites caraquenhas sobre os eventos que se sucederam. O cerne dessas explicações esteve integrado à descrição do motivo da visita do herói. Nas crônicas, Espinal estabeleceu, sem apontar culpados, um retrato sútil do drama social venezuelano no tocante à rebelião da Cosiata e o potencial de guerra civil que despertara, além

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de distinguir a presença de Bolívar como sua única solução. Seu primeiro parágrafo é sintomático para esse argumento:

A todos es constante por una muy sensible experiencia la situación lamentable que se a reducida Venezuela á principio del mes de Diciembre próximo pasado, á consecuencia de las alteraciones sufridas en nuestro sistema político. Crueles males se palpaban, y el horizonte presagiaba mayores desgracias en lo sucesivo; y para que fueses más deplorable nuestro estado, el único remedio que divisaba la observación atenta de las cosas, existía á millares de leguas en las riberas del Pacífico, ocupado en el bien de las repúblicas que había formado. (ESPINAL, 1827, p. 1)

A mesma conexão é reiterada em vários momentos ao longo do texto, seja pelo próprio autor, seja pela transcrição de discursos de emissários da municipalidad: ao discorrer sobre a chegada de Bolívar à Bogotá em 15 de dezembro e seu rumo em direção à Venezuela, Espinal afirmou que foram notícias recebidas com entusiasmo pelos venezuelanos, que trocaram as preocupações pela esperança do fim dos males que ameaçavam a República (1827, p. 2). Na descrição da Entrada de Bolívar na cidade, o autor afiançou que o regozijo de Caracas significava “[...] la fuga de las desgracias y la restituición de su ínclito Hijo [...].” (1827, p. 11); por sua vez, a transcrição do discurso de Esteban Malowny na recepção de Bolívar nos arredores de Caracas manteve o mesmo tom ao apontar que a ausência do Libertador poderia ter significado a morte da pátria (MALOWNY apud. ESPINAL, 1827, p. 6). O único instante no qual essa vinculação foi abandonada serviu de fato como clímax para intensificá-la: o relato do falso rumor do ataque de soldados de Bolívar à Barquisimeto, que levou as autoridades a montar tropas caraquenhas e dispô-las de prontidão, proveu contraste à aura pacificadora do Libertador restaurada com a divulgação do decreto presidencial de 1º de janeiro de 1827, expedido em Puerto Cabello. Para Espinal, tal elucidação foi a condição para que se substituísse o receio da guerra civil pela alegria das festas nacionais (1827, p. 3-4). Alinhado à identificação da cisão social, é relevante analisar o discurso que aponta sua resolução e — simultaneamente, motivo da celebração — focado na expectativa que a presença do prócer gerasse quietação político-social. A pacificação proposta na festa apartava- se do debate público sobre o federalismo — que Fernando Falcón (2009) elenca como chave da Cosiata — para afiançar-se nos vínculos personalistas entre autoridades. Um exame do supracitado decreto de Puerto Cabello é elucidativo. No seu preâmbulo, Bolívar afirma que a situação na Venezuela é calamitosa e que age com intuito de salvar a pátria e restaurar a paz, utilizando os seguintes recursos:

Art.1 Nadie podrá ser perseguido, ni juzgado por los actos, discursos ú opiniones que se hayan sostenido con motivo de las reformas.

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Art. 2 Las personas bienes y empleos de los comprometidos en la causa de las reformas son garantidas sin excepción alguna. Art. 3 El general en jefe José A. Páez queda ejerciendo la autoridad civil y militar bajo el nombre de jefe superior de Venezuela, con facultades que han correspondido à este destino; y el general en jefe Santiago Mariño será entender e comandante general de Maturin. Art. 4 Inmediatamente después de la notificación del presente decreto se mandará reconocer y obedecer a mi autoridad como presidente de la República. […] Art. 6 La gran convención nacional, será convocada conforme al decreto de 19 del pasado, para que decida de la suerte de la República. (BOLÍVAR, 1828, p. 33)

Além de indultar todos os participantes da rebelião, Bolívar arranjou-se com os generais Mariño e Páez a fim de negociar termos para suas rendições. Todo ímpeto reivindicatório da Venezuela é reduzido, por esse instante, ao reconhecimento da autoridade de homens providenciais. Em carta destinada a Páez e datada do mesmo dia, vê-se o quão pessoal é o tom do acerto:

[…] Vd. verá, por una carta que tengo del general Santander para Vd., que he logrado convencer al gobierno de la necesidad de dividir a Colombia en tres estados. Santander quiere que todo se olvide para quedar como buenos amigos y vecinos. Yo creo que Vd. está loco, cuando no quiere venir a verme y teme que yo lo reciba mal. General ¿Vd. puede persuadirse de que yo sea menos generoso con Vd., que ha sido siempre mi amigo, que con mis propios enemigos? No crea Vd. tal cosa. Voy a dar a Vd. un bofetón en la cara yéndome yo mismo a Valencia a abrazar a Vd. Morillo me fué a encontrar con un escuadrón y yo fui sólo, porque la traición es demasiado vil para que entre en el corazón de un grande hombre. No sé que decir a Vd. porque ya todo se ha acabado: ya yo he ahogado en el lago del olvido todo lo pasado, es decir los chismes, pues jamás dejará de estar muy cerca de mi corazón la amistad y el sacrificio que Vd. hace ahora a la felicidad y a la gloria de Venezuela. (BOLÍVAR, 2011, p. 215)

Bolívar apontou o convencimento da elite política bogotana para evitar posteriores animosidades e fornecer a segurança institucional ao negociar com as lideranças caraquenhas, ação que foi de encontro a uma das justificativas que os venezuelanos utilizaram para desengajamento do projeto grã-colombiano: a tirania e o autoritarismo militarista de Bolívar. Ao momento, a vitória do traquejo político do Libertador se mostrou como promissora, afinal, sob a expectativa de um esquecimento amigável, o prócer reestabeleceu a harmonia sem derramamento de sangue. Isso não significava que o prócer tivera uma leitura inocente ou positiva quanto a Páez. Jonh Lynch, em sua entusiasta biografia do Libertador, faz uma descrição desses episódios mostrando que apesar da fachada amistosa da resolução de 1827, Bolívar vinha pressionando e ameaçando Páez por uma rendição desde dezembro de 1826. E mesmo depois da resolução do conflito, apesar de lisonjear publicamente a Páez, o Libertador não tinha segurança ou estima em seu companheiro de armas, tanto que seguira governando pessoalmente

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a Venezuela até junho de 1827 (LYNCH, 2010, p. 301-304)46. De qualquer modo, aponta Fabiana Fredrigo (2012, p. 274), Páez representava uma peça fundamental para o projeto unionista, do qual Bolívar evitou ao máximo se desfazer. Em contrapartida, a conciliação pública também não negava a possibilidade de que as lideranças venezuelanas pudessem ter vislumbrado a chance de retroceder com poucas baixas, embora já mirassem um novo assalto ao poder, como o que aconteceu em definitivo em 1830. Essas circunstâncias têm influência decisiva sobre os enunciados da festa e, como em seu interior, houve um cuidado ao narrar os eventos políticos de seu tempo. Embora a rebelião venezuelana seja eclipsada da narrativa festiva, sua resolução personalista esteve implícita nas crônicas em, ao menos, três ocasiões diferentes sob um verniz da fraternidade sincera. A primeira é referente à canção que fora encomendada pela municipalidad para a noite de 11 de janeiro. No seu trecho inicial cantou-se:

Coro Bolivar conduce Al solo natal La rama de oliva Símbolo de paz 1. 2. Concordia, patriotas, Contra el enemigo Y unión fraternal: Tan solo emplead La patria lo manda, La espada que ha sido Su voz escuchad Al godo fatal; Que en altos clamores Y entre americanos Repitiendo está: La razon no mas Para restituirnos Decida querellas La tranquilidad Con fraternidad. […] (ESPINAL, 1827, p. 18)

46 Evidente que a leitura de Páez comportou uma versão distinta para esses eventos. Na sua autobiografia, selecionou proclamas de próprio punho que faziam crer numa confiança recíproca com Bolívar. Já sob o título de Jefe Superior de Venezuela, o general fez divulgar um decreto em 02 de janeiro de 1827 para elucidar sua relação com o Libertador, segundo os termos: “Habiendo ofrecido á los pueblos de Venezuela en mí proclama de 15 de Diciembre último, que garantizaba con mi vida, honor y propia sangre, que S. E. el Libertador se acercaba á nosotros con los brazos abiertos para estrecharnos en su corazón; que venia á traernos la paz y restablecer la confianza, serenando con su autoridad, influjo y poder nuestras disensiones domésticas, y dar á la obra de las reformas la perfección más conveniente á nuestra dicha y bienestar futuro.” (PÁEZ, 1867, t. I, p. 366). Além disso, Páez tentou promover-se na forma de herdeiro de Bolívar. Entre outros argumentos, o caudillo afirmou ter ganho de Bolívar um dos lauréis com que fora agraciado no seu triunfo em Caracas, dando a entender que o Libertador legitimou seu papel de líder local (PÁEZ, 1867, t. I, p. 373). Em outro trecho, disse ter recebido do prócer o encargo de separar a Venezuela da Grã-Colômbia, mas somente quando não houvesse mais como evita-lo, contanto que impedisse o estabelecimento de um sistema federalista, que significaria desordem e corrupção (PÁEZ, 1867, t. I, p. 376). Há de se ressaltar que o fato de Páez publicar esse livro em 1867 — depois de ser derrotado na Guerra Federal pelos liberais federalistas de Juan Crisóstomo Falcón, Ezequiel Zamora e Antonio Guzmán Blanco — possivelmente influenciou essa ênfase num Bolívar antifederalista de sua narrativa.

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Na letra, os venezuelanos trataram de reconhecer as intenções pacíficas do Libertador e de se postarem na posição de patriotas cordiais que escolheram a tranquilidade e o diálogo ao invés de se precipitarem ao conflito. Afinal, a espada de Bolívar só derrota ao inimigo espanhol e na América irmanada não haveria porque se preocupar já que todas as disputas se resolviam com razão. De qualquer forma, no dia 13 do mesmo mês, a espada de Bolívar reaparece, de forma menos metafórica, na forma de um presente para José Páez. Em retribuição, durante o banquete das autoridades em homenagem ao Libertador, o então Jefe Superior da Venezuela convida os presentes a um brinde:

Y ¿que uso haré yo de esta espada? ¿Como conservarle sus laureles, sus glorias y su honor singular? Ella centuplica mis deberes: me pide fuerzas que solo Bolivar tiene. Ella me confunde. ¡¡¡La espada redentora de los humanos !!! Pero ella en mis manos no será jamas sino la espada de Bolivar: su voluntad la dirija; mi brazo la llevará. Antes pereceré cien veces, y mi sangre toda será perdida, que esta espada salga de mi mano, ni atente jamas á derramar la sangre que hasta ahora ha libertado. Conciudadanos: la espada de Bolivar está en mis manos: por vosotros y por él, iré con ella á la eternidad! Brindad conmigo por lo inviolable de este juramento. (PÁEZ, 1867, t. I, p. 376)

A associação entre Bolívar e a libertação, no juramento de Páez, marcou a possibilidade de reconciliar no seu discurso a defesa do prócer com os interesses dos venezuelanos, colocando-se como primeiro e maior campeão de ambos. No dia seguinte, 14 de janeiro, no grande baile ofertado pelo comércio caraquenho, dominado pelo grupo político que se debelara na Cosiata, foi possível escutar o hino ofertado pelo comércio, cujo trecho final dizia:

4. ¿Donde están los partidos fogoso Que causaban espanto y dolor? ¿Dónde están los rencores sombríos Que alentaba bastarda pasión? Tú has venido, y los males huyeron: Tú has venido, y la guerra cesó: Tú has venido, y todo es contento: Tú has venido, y todo es unión. (ESPINAL, 1827, p. 27)

É interessante ponderar sobre as razões que geraram o não detalhamento das querelas ao longo de todos os eventos: se fora pela contradição, pelo conhecimento já disseminado de sua existência ou pelo arrependimento. De qualquer forma, mesmo sem reconhecer sua parte no assunto, e mais, afastando-se ao máximo possível da participação nesses conflitos, a municipalidad, os caudillos e os comerciantes — nos papéis de elites políticas, militares e econômicas — acenavam para a reconciliação com o programa bolivariano, reconhecendo a concórdia que tal acordo projetaria sobre a vida pública. A

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unanimidade festiva cumpriu uma vez mais o papel de amplificar o alcance discursivo, legitimando ritualmente o poder escalonado entre Bolívar, Páez e Mariño. A festa como ação social manteve sua função comunicacional com o ambiente popular. Os espectadores, por meio da participação nos eventos, viram-se envolvidos pelo discurso de seus produtores, aderindo a seus conteúdos. Fiando-se na veracidade dos relatos de Espinal, percebeu-se que a comemoração mobilizou toda a capital com atrações como arcos triunfais, marchas, te deums, salvas de artilharia, fogos de artificio, banquetes e discursos. Quase todos, eventos com grande plateia, referida nas crônicas pelo recorte pueblo. Por outro lado, o imperativo de elaborar uma narrativa escrita sobre a festa deve ter sido pensado por meio da interrogação: a quem seu discurso se destina? O escrito possui trechos nos quais há uma perceptível mensagem de anuência à reintegração da Grã-Colômbia, provavelmente endereçada aos seus demais centros políticos da Unión: desde a ata na qual a municipalidad anuncia a necessidade de contar a República (referindo-se à Grã-Colômbia) e ao Mundo o que se sucedera em Caracas (ESPINAL, 1827, s.n.) até as falas do Síndico procurador — uma espécie de assessor jurídico — de Caracas, Rufino Gonzalez, retoricamente dirigidas a Bolívar: “[...] La República está deshecha por tu filantrópica ausência: tú la criaste y por tu médio deve felizmente regenerar.” (ESPINAL, 1827, p. 17-18). Por outro lado, existe a possibilidade de as crônicas servirem ao convencimento do restante da Venezuela, de que atendidas as reivindicações de autonomia, por enquanto, não há mais necessidade de se rebelar. O referencial da celebração ajuda a compreender onde essas duas hipóteses se encontram. Os modos desse evento, segundo Rufino Gonzaléz, seriam inspirados naqueles “[...] acordados por decreto de 20 de julio del año undécimo [...].” (RUFINO GONZALÉZ apud. ESPINAL, 1827, p. 5). Tal lei designada em 1821 e intitulada “Sobre gracias y honores á los vencedores en la batalla de Carabobo” fora estimulada pelo próprio Simon Bolívar em ação de graças pela vitória definitiva da libertação na Venezuela. Seu conteúdo, marcantemente militarista, contou com a instituição do triunfo de Bolívar, de títulos honoríficos a Páez e de louvores à memória daqueles que pereceram na luta (COLOMBIA, 1840, p. 33-34). Curioso que o Síndico caraquenho, Gonzaléz, invocou essa lei ao elaborar-se uma festa que, mesmo contendo elementos militares, não comemorava o sucesso de uma guerra, senão a recusa ao conflito. Parece que ao servir-se desse decreto, procurava-se também o reconhecimento de que a libertação da Venezuela é parte de um processo político maior: a fundação da República de Colômbia (Grã-Colômbia). Reavivados pela festa, os laços que uniam a República (a história e o herói fundador) poderiam ser ritualizados de forma que simbolicamente se reafirmassem tanto

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a Venezuela quanto o governo em Bogotá, ainda que esses vínculos pudessem se esvanecer tão rapidamente quanto se matizaram, a depender da ordem política do dia. Em julho de 1827, Páez se despediu de Bolívar com a seguinte preleção:

Venezolanos: Casi todos los departamentos han confiado su suerte al hombre grande que, con su genio y valor, nos ha libertado de la opresión; el poder, el influjo y el nombre del general Bolívar se han invocado para reformar las instituciones, serenando la discordia, y su invocación no será en vano; él nos ha ofrecido todos sus esfuerzos para reunir la convención; allí se tratarán vuestros derechos con dignidad y circunspección, y de la sabiduría de este cuerpo soberano saldrán los resultados garantes de vuestra estabilidad, paz y felicidad. Entretanto, yo he quedado encargado de hacer cumplir y ejecutar las leyes vigentes y decretos expedidos por el Libertador, con facultades extraordinarias; en tan peligroso ministerio me atrevo á recomendaros la unión como la base del orden; la razón, la prudencia y el deber empeñan todo mi celo y autoridad en mantener á Venezuela bajo el mismo pie que se me ha confiado (PÁEZ, 1867, p. 376).

Menos de três anos depois, em 1830, o mesmo Páez impedira o retorno de Bolívar a sua pátria. Em 1867, na sua autobiografia, ele narrou esse episódio segundo a argumentação:

En cuanto á la exijencia que entonces y despues se manifesto, de que Bolivar saliese del territorio colombiano, ó que no penetrase en Venezuela, por duro que sea decirlo, es menester confesar que era el mejor medio de evitar una guerra civil. El prestigio del nombre del Libertador daba ánimo y envalentonaba al partido que se oponia á la voluntad de los venezolanos, y tal fuerza les daba la presencia del que habían escojido por su jefe, que las naciones estranjeras podrian llegar á creer que solo éramos rebeldes ingratos empeñados en arruinar el pais que el Libertador estaba organizando. Si Bolivar, consecuente con los principios que habia publicamante proferido, no hubiera hecho oposicion a los deseos que su patria habia con tanta solemnidad menifestado, si no se hubiese dejado arrastrar por algunos de sus amigos, hasta el panto de amenazarla con una invasion á mano armada Bolivar habria muerto tranquilo en su patria, y seria talvez uno de los pocos hombres ilustres, que gozando de las simpatias de sus compatriotas murieron en la tierra que los vio nacer, rodeados de los testigos de su gloria. (PÁEZ, 1867, t. 2, p. 24-25)

As contradições nas falas de Páez não surpreendem; somente denotam a banalidade de um personagem político complexo, capaz de se situar no jogo político e desempenhar os mais diversos papéis segundo as circunstâncias sociais que lhes foram apresentadas. Em 1842, sua postura quanto ao retorno do herói era, uma vez mais, distinta. Vale salientar, contudo, que por ora Bolívar estava morto e sua ressureição política oferecia uma investidura de poderes àquele que se propusesse sumo-sacerdote do culto heroico.

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2.2. QUE CESSEM OS PARTIDOS: AS HONRAS FÚNEBRES A BOLÍVAR EM CARACAS (1842)

Os elementos do triunfo de 1827 são reavivados e intensificados nos funerais de 1842. Inclusive a mudança da condição do objeto de culto, de líder inspirador para a memória, não repercute numa transformação efetiva da linguagem na qual se embasam as festas. Afinal, os restos mortais de Bolívar são transladados à Caracas para — o que se esperava ser — um último triunfo, no qual se decretava sua vitória sobre inimigos difusos num projeto ao qual se mostrara opositor: a fundação da Venezuela como Estado independente. Em contrapartida, esse mesmo aspecto guarda uma das diferenças mais significativas entre 1827 e 1842: a dimensão do enunciador do discurso festivo. Aqui não se trata mais de Caracas falando em nome da Venezuela e sim do núcleo político caraco- valenciano organizando os centros políticos nacionais numa proclamação conjunta de louvores ao que atribuíam ser obra do herói: a própria Venezuela, precisamente da forma como se encontrava em 1842. É possível que essa observação leve Reinaldo Rojas, prenhe das leituras de Benedict Anderson, a afirmar ser esse o primeiro festejo da Venezuela como “comunidade imaginada nacional”, o ápice de uma série de construções de signos nacionais da primeira década republicana (ROJAS, 2011, p. 98-99). John Lynch, por sua vez, percebe esse episódio como o nascedouro do culto a Bolívar, que em sua leitura estaria diretamente implicado com a construção do nacionalismo venezuelano (LYCH, 2010, 400-401)47. Ambos derivam suas conclusões do argumento de Germán Carrera Damas, no que diz respeito à transformação do sentimento popular de louvor a Bolívar num culto para el pueblo. Tal exercício demandou um empreendimento retificador endereçado ao controle social:

[…] la objetivación del sentimiento nacional no sólo era propicia a la exaltación vaga y un tanto literaria de valores morales. Significaba mucho más, en el orden de los requerimientos concretos nacidos de la lucha política, pues con la presencia de los restos mortales de Bolívar se apuntalaban ejemplos edificantes y soluciones acreditadas que proponer a los requerimientos mencionados [guerras civis e revoltas sociais], todo con el poderosísimo respaldo constituido por la exaltación de la unidad de los venezolanos. (CARRERA DAMAS, 2003, p. 56)

A edificação dessa lógica na efeméride foi decisivamente realizada pelos discursos governamentais, o que possibilitou sua construção como uma base para expressar projetos de

47 Devo me antecipar em dizer que não discordo integralmente das conclusões desses autores, mas avalio que a abrangência do fenômeno que descrevem é — ao menos para 1842 — superdimensionada em vista do seu embasamento na percepção de Carrera Damas sobre o culto como estratégia de domínio social.

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cunho antipopular, sob abrigo do carisma do Libertador (CARRERA DAMAS, 2003, p. 60, 62). Ao debater a formulação de um projeto nacional venezuelano48 entre 1830 e 1870, Carrera Damas denota como, a reboque desse discurso, o culto a Bolívar é configurado pela manipulação do passado nacional com o intuito de evitar sublevações de cunho social, segundo o argumento de que

[…] Bolívar nos dio todo aquello por lo que habría necesidad de luchar. En consecuencia, no es ya un problema de conquistar estos valores, que nos ha sido dados, sino de administrar-los. Si en la sociedad no están vigentes estos valores, no es porque no los tengamos. Bolívar nos los dio, lo que pasa es que lo hemos administrado mal, los hemos degradado. No hay pues, objetivos para revolución social en Venezuela. (CARRERA DAMAS, 1997, p. 85)

Nesse raciocínio, a necessidade que as elites tinham em se manter à cabeceira do processo político aparece como estímulo para associações entre opostos, que exigem algum nível de duplipensar. A exemplo da articulação da libertação com a secessão da Grã-Colômbia, que legitimava os atores políticos no poder como continuadores dos valores bolivarianos justificava sua posição social. A articulação de Damas é primorosa, entretanto, além de — como já discutido — delinear a origem do culto a partir de 1842 como um fenômeno homogêneo e voltado para a dominação sócio-política, o autor não dá importância ao fato de a festa ser um campo de possibilidades em aberto. Ao revés, suas explicações e, por consequência, também as de Rojas e as de Lynch, parecem repercutir as implicações teleológicas de um processo histórico no qual a festa é apenas um episódio, cujo sentido pode ser nivelado e avaliado pela análise dos fins que a sucederam. Esse é o bojo de seu comentário sobre os eventos de 1842: “[…] creadas asi las condinciones era obvio el resultado: el gobierno había devuelto Bolívar a su pueblo, ¡El cual quedaba compretido por ello a merecer de su héroe, realizando y respetando cuanto aquel quiso realizar y respetó!” (CARRERA DAMAS, 2003, p. 60). Nessa afirmação, há sintomas do tom finalista de Damas, ao mesmo tempo em que dá sinais de sua apatia ante a compreensão da festa em suas enunciações particulares e em suas disputas simbólicas. Ao investigar as Honras fúnebres a Bolívar em 1842, é importante ter em mente que não existia na ocasião uma definição manifesta sobre suas consequências, e reconhecer

48 Carrera Damas, em sua proposta de história das ideias, entende projeto nacional venezuelano como “[...] un complexo ideológico, formulado como expresión y como factor de su dominación, tanto que opera como modelo para la organización y funcionamiento de las sociedad.” (1997, p.83). Partindo para uma perspectiva mais pragmático-contextual – abordagem perseguida neste trabalho – é mais coerente encarar o conceito como conjunto de ações (políticas, sociais ou culturais) e práticas jurídico-administrativas, orientadas pelo debate político- intelectual das elites venezuelanas, no sentido de estabelecer uma disposição de poder fundamentada na concepção de nação.

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como essas nuanças de incertezas percorriam o diálogo social em torno de pautas chaves para aquela sociedade. O próprio uso da imagem de Bolívar, a saber, foi tema de querelas políticas. Por duas vezes — em 1833 e em 1839 — o congresso nacional venezuelano, dominado pela oligarquia caraco-valenciana, negou o translado dos restos mortais de Bolívar. Em paralelo, como sustenta Christopher Conway (1998, p. 16), setores da oposição liberal seguiam utilizando a imagem do renegado líder como contestação ao Estado conservador. E mesmo que, para alguns autores, 1842 tenha significado um marco da “apropriação” por parte do governo paecista da figura do libertador, isso não implicou no início de um monopólio sobre a imagética bolivariana. No ano seguinte aos funerais, a edição de 17 de dezembro do periódico liberal “El Venezolano” trouxe um artigo de autoria de Antonio Leocadio Guzmán (reeditado em 1872) no qual construíra um relato alternativo da cerimônia, opondo-se à narrativa oficial, centrada nos atos de autoridades. Ao alegar que a reponsabilidade pela remissão ante o herói coube ao sentimento popular de dor e de culpa, Leocadio Guzmán retirava o protagonismo e o lugar de enunciador do governo conservador e o alocava no povo, o qual a propaganda do Partido Liberal alegava ouvir e representar. Tal exemplo corrobora a necessidade de uma análise contextual — e não teleológica — dos festejos, tanto em seu âmbito de produção como no de propagação de suas narrativas, para uma compreensão pragmática dos sentidos e significados políticos produzidos pelas disputas das elites políticas, expondo os principais enfrentamentos e desejos que circulavam nos debates da época. Isso significa não se limitar a examinar uma função de impor um apaziguamento social, mas tentar compreender a festa enquanto tentativa de produzir um consentimento coletivo. A análise a seguir procura responder a esse imperativo. Separada da Grã-Colômbia, a situação política da Venezuela não se volveu em instantânea paz política e harmonia social. Depois dos mandatos provisional e constitucional de Antonio Páez, nos quais o carisma e a força do homem providencial costurou uma breve trégua, as segundas eleições indiretas venezuelanas trouxeram à cabeceira política um civil sem qualquer manejo do pretorianismo49 instaurado. Já mencionei, no capítulo anterior, José Maria Vargas e o episódio que se desenrolou de sua vitória no pleito, a Revolución de las reformas (1835-1836). No entanto, agora é importante entender como se deu sua inserção num cenário político mais amplo.

49 Uso o termo na acepção de autores do gabarito de Frederique Lange (2009) e Tomas Straka (2012), que o relacionam ao predomínio militar na política do país e a consequente privação de civis no executivo nacional.

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O Congresso de Valência (1830), cuja missão foi produzir um primeiro conjunto de leis para a Venezuela independente, representara uma recusa ao constitucionalismo bolivariano. Segundo argumenta Chistopher Conway (1998, p. 14), a limitação do exercício do poder executivo nacional fora da capital foi um casuísmo para evitar que se sucedesse na Venezuela o que acontecera na Grã-Colômbia, quando Bolívar seguira presidente mesmo nas campanhas do Sul. Mais que isso, a retirada do foro militar cumpriu o que Manuel Caballero chama de segunda característica do projeto liberal-conservador:

[...] “librar-se de los libertadores”, o sea de la influencia de los militares que reclaman para sí una serie de fueros y privilegios en su condición de Padres de la Patria. Esto lo logrará el estamento civil poniéndose bajo el abrigo del más prestigioso de esos libertadores, el general José Antonio Páez. (CABALLERO, 2002, p. 147)

Sob a proteção de Páez, o processo transcorre em calmaria política. No entanto, quando Vargas assume a presidência em 1835, as forças centrífugas que levantaram a bandeira do federalismo já em 1827 e haviam sido incorporadas ao projeto paecista, puseram-se a denunciar uma suposta oligarquia caraco-valenciana, que almejava o monopólio do Congresso e do Executivo nacional. Some-se a isso o levante dos militares oriundos das campanhas de Libertação, sob o título de reformistas, reivindicando o legado bolivariano e opondo-se à retirada de seus direitos. O consequente golpe militar e exílio sofrido pelo então presidente Vargas, ainda em 1835, abriram a primeira grande fissura institucional da Venezuela: a querela entre militaristas e civilistas. Discutindo a posição de Páez como caudillo emblemático, Tomás Straka (2010, p. 30) demonstra que ainda que seja convidado por ambos os lados para exercer a liderança no conflito, o centauro llanero optou pela manutenção do próprio legado ao lado do poder civil: rapidamente convocou sua caudillaje e se pôs em marcha para debelar a rebelião. Sua vitória significou, com o Decreto Monstruo do Congresso Nacional de 1836, o exílio ou a pena de morte para as lideranças reformistas50. Essa fratura exposta da elite venezuelana calcificou, ainda aberta e de forma irremediável, com a fundação do Partido Liberal em 1840, encabeçado pelas figuras dos notables Tomás Lander e Antonio Lecoadio Guzmán51. Para Reinaldo Rojas (2011, p. 96-97),

50 É importante ressaltar que a postura de Páez seguia o caminho da reconciliação com os derrotados. No entanto, a posição do Congresso e do então presidente José Maria Vargas em favor do Decreto Monstruo foi incontornável. 51 A oposição liberal buscou consolidar sua posição no debate público por meio do rechaço ao Partido Conservador enredado no caráter panfletário que seus correligionários imprimiam no meio jornalístico. O periódico “El Venezolano”— do qual tanto Leocadio Guzmán quanto Lander eram colaboradores — teve papel de principal articulador dessa dinâmica, ao realocar cotidianamente equívocos do paecismo para seus leitores. Um exemplo oportuno de sua retórica está no editorial de 20 de setembro de 1842 — às vésperas das Honras fúnebres à Bolívar

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mais que uma cisão realmente programática, houve uma disputa pelo poder, visto que os conservadores (ou godos) e liberais não eram outros senão descendentes, respectivamente, de realistas e patriotas, ou seja, uma mesma elite social que divergia minimamente nos motes econômico e político52. Inés Quinteros, por sua vez, percebe mais folego dentro das proposições liberais quando afirma que

El objetivo de la agrupación es la conquista del poder dentro de las fórmulas y esquemas del diseño liberal que todos comparten. Su programa resume las expectativas e quienes aspiran a modificar el rumbo de la nación a partir del rechazo de una gestión gubernamental cuyos resultados, después de una década, no satisfacen a la totalidad del colectivo que formuló el proyecto de 1830. (QUINTEROS, 2010, p. 265)

Um dos eixos centrais da crítica desse grupo ao programa conservador-liberal estava na ausência de alternância de poder. É precisamente sobre esse discurso que Tomás Lander tentou desqualificar o governo de Páez que ascendeu da eleição indireta de 1839 (QUINTEROS, 2010, p. 266). Alinhado à necessidade de partidos para a experiência republicana, a defesa da liberdade de imprensa e o resgate do legado bolivariano53, o projeto liberal mostrava-se uma oposição consistente à oligarquia goda. O enfrentamento dado por Páez a fim de manter-se à cabeceira do processo político foi a utilização de seu prestígio político para impulsionar a campanha de Carlos Soublette à presidência em 1843. Em paralelo à peleia interna das elites transcorriam ebulições sociais dos grupos submetidos à escravidão ou à peonagem, nas quais reivindicavam as promessas de independência: liberdade e abolição da escravidão54. Foi nesse cenário pós-guerra civil e pós-crise institucional, no qual o programa político paecista era contestado de forma veemente pelos periódicos liberais e no qual eclodiam

— que reaviviou a memória do Decreto Monstruo de 1835, numa crítica a essência da Oligarquia: “Si, los voncingleros de 1830, temiendo siempre el poder de la razón arraigada en los pechos de casi todos los venezolanos; los que proscribieron el antiguo patriotismo y persiguieron á los fundadores de la República; los que desnaturalizaron hechos, premiaron la apostasía y castigaron la antigua fé del patriotismo; los que escarnecieron á dos veteranos de la independencia, y proclamaron el principio alternativo para derrocarlos, y para perpetuarse ellos en los destinos públicos; los que han hecho leyes excepcionales y empleado el poder lejislativo de la Nación para dar y quitar empleos, perseguir á sus personales contrarios y proteger á sus aliados; los que en [1]835, aprovechando los errores de sus enemigos, violaron todas las formas y dieron decretos monstruos, y sacrificaron tantas víctimas, no de la justicia pública sino de sus pasiones rencorosas; los que engañando la buena fé del pueblo, cubriéndose hipócritamente con la Constitución […].” (LEOCÁDIO GUZMÁN, 1883, t. II, p. 398). 52 Para Rojas (2011, p. 96-97), os godos eram liberais de uma linha mais ortodoxa, focados no comércio importador; já o partido liberal — formado por terratenentes — era defensor do impulso à produção interna. Ao passo que, quanto à questão política, os conservadores dominavam quase que completamente o aparelho de Estado, enquanto os liberais reivindicavam seu quinhão na estrutura governamental e no comando do país. 53 Esse último aspecto é uma inversão dos valores da oligarquia, cujos interesses (o projeto liberal-conservador) circundavam um plano de esquecimento do Libertador e de seus herdeiros políticos na memória nacional. É interessante reiterar que o Congresso Nacional rejeitou por duas vezes decretar Honras fúnebres a Simon Bolívar, mesmo com a defesa dos presidentes Páez em 1833 e Soublette (em exercício) em 1839 (TORO, 1842, p. 5-6). 54 Frederico Brito Figueroa (apud ROJAS, 2011, p. 97-98) estima que tenham transcorrido 130 rebeliões campesinas e antiescravistas em nível local e regional, só no período entre 1830 e 1846.

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rebeliões sociais a todo instante, que se celebraram, oportunamente, as Honras Fúnebres a Bolívar em Caracas no ano de 1842. Como já debatido, para Germán Carrera Damas (2003, p. 56-58) essa celebração tem evidentes ligações com as ameaças de conflito que pairavam no ar, tanto das rebeliões populares quanto do prenúncio de levantes armados por parte da oposição liberal. Logo, fora uma boa ocasião para valorizar por meio da imagem de um Bolívar reajustado, o seu legado mais estimado: a unidade dos venezuelanos enquanto povo. “Sin embargo, no radicaba en ello la más fecunda proyección de la figura histórica del Libertador. Importaba, sobre todo, su función como restañador de las terribles heridas que se habían producido en el cuerpo social […]” (CARRERA DAMAS, 2003, p. 59). A própria narrativa oficial da celebração denotou a secessão social, assim como uma vontade para superá-la. Sua formulação diz muito sobre isso, visto que seguiu impressa nos talleres de Valentin Espinal (a este tempo, membro fundador do Partido Liberal), embora tenha sido escrita por outro grande intelectual, este vinculado a Páez e seu programa, Fermín Toro (1806-1865). Deputado, diplomata e periodista, Toro fora desde cedo um entusiasta do bolivarianismo. Em 1827, aos 20 anos, esteve entre os jovens que receberam com entusiasmo o Libertador em sua última estadia em Caracas. Em 1832, em sua atuação parlamentar, já reivindicava o translado dos restos mortais de Bolívar (TORREALBA LOSSI, 1983, p. 48- 49).55 Dez anos mais tarde receberia a incumbência, pelo governo de Páez, de presidir a organização e redigir as crônicas “Honras Fúnebres consagradas a los restos del Libertador Simon a Bolívar en Caracas em el año de 1842” publicadas em 1843. Sua narrativa é marcada pela eloquência política do autor, capaz de eclipsar a culpa pelo parricídio venezuelano ao passo que põe em destaque a pretensa sinceridade da dor e da tristeza popular. Como se não houvesse se passado um só instante entre a morte do herói e o seu funeral, seu texto descreveu uma atmosfera de tamanho sofrimento coletivo que não poderia ser atribuída à busca de perdão ou a uma sensação de responsabilidade, senão a um espaço de amor leal e de luto incessante. Christopher Conway, ao avaliar um trajeto textual do culto a Bolívar, tem uma leitura elucidativa sobre o funcionamento da retórica de Toro:

Aunque las descripciones de las decoraciones y ritos que se dieron en los honores fúnebres son de indudable valor para reconstruir un momento de gran simbolismo en la historia de Venezuela, el texto es más denso y complejo de lo que pudiera parecer

55 Pode parecer contraditório que, em 1833, Toro estivesse ao lado daqueles congressistas que negaram o retorno do ossuário de Bolívar. Torrealba Lossi explica que essa circunstância pode ser entendida como parte de seu papel enquanto membro do Congresso em defesa das prerrogativas da instituição, ou mesmo que sua participação tenha sido movida pelo intuito de suavizar a resposta do legislativo (1983, p. 50).

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a primera vista. Toro elabora una serie de negociaciones textuales que presentan una visión utópica de la nacionalidad y justifican el culto oficial del héroe, mostrando otra vez que forjar un discurso bolivariano-nacional comprendía la resolución textual de contradicciones históricas. (CONWAY, 1998, p. 19-20)

Nessa citação há uma compreensão do texto para além do testemunho, mas como agente político, elaborado a partir da consciência do papel social que poderia vir a desempenhar. Não à toa Conway entende que a descrição de massas harmônicas em comemoração no “Honores fúnebres” tem a ver com um recurso narrativo usualmente empregado por Toro, inclusive em obras anteriores como “Los mártires”. Não se trata do que de fato sucedeu, mas de como relatar o que ocorreu de modo a produzir sentidos sobre o acontecimento, e Toro é reconhecido por sua desenvoltura nesse aspecto. Afinal, em sua narrativa:

Bolívar […] personifica el augusto poder de la patria, generando armonía social y creando un sujeto unitario en los habitantes del espacio urbano caraqueño. De esta manera, Toro demuestra conocer la utilidad de Bolívar como principio de identidad venezolana, convirtiéndolo en aquel aparato mítico dentro del cual las divisiones de clase, región y de generación desaparecen ante una gloriosa hermandad fundada por Bolívar. (CONWAY, 1998, p. 20)

A percepção que Toro tem de si ao narrar uma festa que mobiliza símbolos de unidade nacional permite-lhe a posição de árbitro de conflitos históricos e, enquanto tal, não seria admissível que tomasse um discurso nitidamente partidário. Subjaz, portanto, em seus termos a necessidade de afastar-se do papel de ator político e recolocar-se no texto enquanto uma figura intelectual portadora da voz do povo, único ente capaz de ecoar no tempo as glórias da celebração. O ponto de partida de sua narrativa, a impossibilidade de transmitir para o papel todo o esplendor e entusiasmo da efeméride, longe de ser fruto de sua humildade, serve para produzir esse distanciamento que aloca as festas num espaço do extraordinário. Deste modo, na sua narrativa a festa não tem partido, ela é do povo e, por consequência, só pode ser narrada pela voz do povo:

Mi tarea es árdua, si acaso no imposible. En médio del férvido entusiasmo que han despertado las exequias de Bolívar, exequias en que un pueblo entero ha desplegado todas sus fuerzas latentes para sentir y admirar, mucho se espera del escritor que animoso, si no fuese temerario, se atreva á describirlas. Pero hoy se espera en vano, mi descripción será tibia, sin brío mis conceptos y todo el cuadro descolorido, comparado con el esplendor de la escena. Ni podría ser de otro modo. Cuando se trae á un solo punto de vista, cuando se recuerda en un día todo lo que hay de prodigioso en la carrera de uno de esos seres extraordinarios que de siglo en siglo aparecen marcando las edades del mundo […] no es dado a un hombre describirla, un individuo no la abraza: solo la voz de un pueblo, de generaciones, de siglos, la interpreta, la difunde, la eterniza. (TORO, 1843, p. 1-2)

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Só após afastar-se de pretensões partidárias, ao delinear a aspiração de neutralidade de seu relato, Toro buscou descrever o arranjo da contradição entre os três elementos políticos — povo, Congresso e Executivo — nas negociações quanto ao resgate do corpo do herói. Destarte, explica como depois de ouvir duas recusas às intenções de reaver o finado Libertador em 1833 e 1839, o Executivo nacional, na figura de Páez, iniciou novas tratativas com o Congresso em 1842. Para compreensão dos sentidos que se quis produzir sobre esse episódio, é interessante perceber como a transcrição do discurso do então presidente apresentou um tom conciliatório:

[…] estoy en el deber de recordar al Congreso aquella solicitud y de pedirle que la decrete. La conveniencia y aun la moral política se interesan también en esto, á fin de que en adelante los actos en que el pueblo explique su aprecio á la memoria del Libertador se apoyen en el voto nacional legítimamente expresado, y las demostraciones de agradecimiento y de admiración por sus grandes hechos de patriotismo y de humanidad, no se crean contrarias á las intenciones de los legisladores. (PÁEZ apud. TORO, 1842, p. 7)

A par do contexto, pode-se encarar as palavras de Páez como uma tentativa de acordo entre os grupos governantes. O Executivo concedeu ao Congresso a prerrogativa de determinar sob que circunstâncias a imagem do Libertador deveria ser memorada, ao passo que este se empenhou em normatizar a comunicação simbólica que já circulava quotidianamente ao redor de símbolos e eventos bolivarianos. O anseio do presidente pode ser compreendido como uma medida de precaução fundamentada na necessidade de empreender o translado dos restos mortais do herói, antes que a oposição liberal o fizesse em meio à construção de uma plataforma simbólica para alçar-se ao poder, como é expresso em suas palavras “[...] nadie debe traerlos sino la Nacion á quien pertenecen, porque á ella se consagró exclusivamente. Ellos son propriedad de Venezuela.” (PÁEZ apud. TORO, 1842, p. 7). Dali em diante os atos nos quais o povo exprimiria seu apresso pela memória de Bolívar deveriam ser amparados no voto nacional, ou seja, no pacto entre Congresso e Executivo. Assim, para que os louvores ao Libertador não pudessem ser empunhados como armas da oposição, contemplou-se uma viragem simbólica em dois atos de esquecimento: 1. Omitia-se a participação do Executivo no decreto de desterro a Bolívar em 1829; 2. Apagava- se a reticência do Legislativo e o seu bojo antibolivariano ao se recusar, por duas vezes, a recuperar a memória de Bolívar. Entretanto, a retórica de Toro subverteu o arranjo dessa contradição ao destacar a função de Páez na resolução do debate. No relato das discussões de 1833 e 1839 sobre a realização dos funerais de Bolívar, o autor conferiu valor de passionalidade aos atos do

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Legislativo, concomitantemente atribuía-se serenidade às petições do Executivo. Em paralelo, o usual recurso de falar como representante popular foi amplamente empregado por Toro, para sustentar a afirmação de que o povo estava em conformidade com as ações do Executivo e que fora a pressão exercida por essa circunstância que convencera o legislativo a abandonar seus receios quanto ao retorno do prócer. Em seu relato, a aprovação da lei que permitiu a restituição do corpo do herói à pátria foi exposta como uma vitória popular expressa por meio da ação de Páez contra o titubear ou o desafio do Congresso:

[…] Allí fue el gran reto: allí durante doce años vinieron sucesivamente á escollarse el error, la envidia y la calumnia: allí fueron vencidos los que se creyeron fuertes, y se menguaron los que se llamaron grandes: allí en fin, la voz de un pueblo, por un órgano incorruptible, proclamó á Bolívar Fuerte y Grande! El silencio de doce años se rompió noblemente. Una sola voz se oyó, hubo un solo pensamiento: los honores á Bolívar son honras á la patria. (TORO, 1843, p. 8)

Esse é um argumento importante para entender que o discurso de Toro é representativo de setores do Partido Conservador vinculados ao paecismo, ainda que tenham se revestido de vontade popular. Afinal, nos termos do autor, fora Páez que “[…] con tan noble constancia habia reclamado siempre este tributo de la patria al Hijo que mas la ilustra, […] quiso, autorizado para dar cumplida ejecucion al decreto del legislativo, llenas su mision de manera grande y digna [...].” (TORO, 1843, p. 9). Antes que se imagine que essa foi a narrativa socialmente hegemônica sobre a responsabilidade que o país manteve em relação à morte de Bolívar, é importante frisar que ideia de culpabilidade venezuelana fora pautada ainda em 1842 com a publicação do memorialista “Mis exequias a Bolívar” de Juan Vicente Gonzaléz. Ligado ao bando Conservador e dono de uma trajetória particular muito semelhante à de Toro, de quem foi inclusive amigo íntimo, o autor traça um olhar menos político e mais intimista sobre o sentimento nacional em relação ao Libertador. Em sua coletânea de cartas, poemas e lembranças, há um texto para cada ano de ausência do Libertador entre sua morte e seu regresso, no mesmo ano de publicação do livro. Os três primeiros escritos são representativos da imagem que Vicente Gonzaléz compreendera àquele tempo sobre a percepção coletiva da memória do herói. A lembrança referente a 1831 fala sobre como a opinião pública se mantivera hostil a Bolívar mesmo após sua morte, a exemplo do encontro que tem com um cidadão numa das pontes de Caracas, que ao confessar seu desalento recebe a surpreendente reposta:

“Es usted un joven iluso, me dijo: los héroes son buenos, necesarios, para luchar en los tiempos de peligro, vencer á los enemigos, constituir naciones..... pero hasta aquí su mision: en adelante son amenazas á la libertad: á nosotros los patriotas toca

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lanzarnos en el camino que ha abierto su espada, y enarbolar las banderas que conquistó su valor. Ese Bolivar de quien ha oido usted tantas cosas en su infancia, ya no era conveniente: quiso mezclarse todavía en los negocios públicos, y cayó, y con él su nombre y fama: deje usted ilusiones de niño....” (VICENTE GONZALÉZ, 1842, p. 2)

Não só de sentimentos de particulares vivera a abjeção à imagem bolivariana, mas também de publicações na impressa (VICENTE GONZALÉZ, 1842, p. 2). Tudo muito contraditório para um jovem que vira em 1827 o entusiasmo com que os caraquenhos foram às ruas para receber seu herói. O relato sobre o ano seguinte, 1832, foi diametralmente distinto, ao passo que já não se dedica à má recordação, senão à não lembrança. Vicente Gonzaléz revolta- se com o esquecimento e com a indiferença que o povo venezuelano tem tratado a morte do herói: “Dos años ha que duerme en paz nuestro Libertador. Ni una voz le acompaña, ni un recuerdo tal vez. ¡Tan fácilmente olvida el corazon del hombre!” (VICENTE GONZALÉZ, 1842, p. 5). Em 1833, foi tempo de Vicente Gonzaléz se indignar com as ações do corpo político, que negou a reintegração dos restos mortais de Bolívar ao território pátrio:

Asistí la noche del 31 á la Cámara de Representantes por ver lo que hacian los legisladores de mi patria con el Héroe que la creó, y mi alma quedó tan conmovida que hasta ahora no la ha dejado la funesta impresion. Yo ví escoger con esmero los colores mas negros para retratar le, despedazar sobre sus sienes el laurel de la victoria, arrojar un velo de olvido sobre sus hazañas y cubrir con una nube de improperios sus eminentes glorias. En mi vida podré olvidar este espectáculo. ¡Qué! decia yo. ¡Tan malvado era el autor de nuestra libertad? El hombre de los esfuerzos, el que yo admiraba como genio el mas sublime, alma la mas noble y generosa ¿no era mas que un hipócrita, un vagabundo, un pérfido? Revolviendo tan tristes cavilaciones, dejé aquel sitio, resentido de haberme podido engañar con un fantasma de gloria, pero la imaginacion inquieta me lo representaba en todas partes. Parecíame verá cada momento la estátua de Bolívar despojada de las insignias de su grandeza y condenada por el juicio de la patria á la ignominia y al desprecio. Esa noche... (seria la hora en que el tercer sueño vuelve á adormecer nuestras potencias) un éxtasis embarga mi alma, y en un instante me pareció encontrarme en un lugar distante que jamas habian recorrido mis ojos. Extiendo la vista y solo se le ofrecen playas solitarias y la losa de un humilde sepulcro que descubro no muy lejos de mí: Cuidadoso procuro examinarla, y leo en ella el nombre del Héroe del Sud América. Así en contrará el viajero errante sobre las rocas de Morven los restos de alguno de los reyes que allí mandaron. El tiempo como la envidia entrega al olvido las tumbas de los grandes. (VICENTE GONZALÉZ, 1842, p. 7-8)

Assim se completa uma contrição, na qual a Venezuela enquanto comunidade peca por “pensamentos e palavras, atos e omissões”. Subjaz a essa lógica uma interpretação de 1842 como um ato de contrição comunitária, no qual o povo confessa que pecou contra seu herói e busca a expiação de sua pena em romarias e empenho no louvor. Guardada a variação diegética em relação ao modo com que se formulava a memória sobre Bolívar, é interessante perceber que tanto Toro quanto Vicente Gonzaléz instituíram em seus relatos a sociedade venezuelana como um ente constituído, autêntico e

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integral. Mesmo para a oposição, a festa dava ares de nação à Venezuela. O liberal Leocadio Guzmán reafirmou essa impressão no editorial de 03 de janeiro de 1843 de “El Venezolano”:

Según las noticias que vamos recibiendo de los preparativos que se hacian en diferentes puntos de la República para la solemnidad fúnebre del 17 de Diciembre, no queda duda de que toda Venezuela ha demostrado un mismo entusiasmo por sus glorias, y el próprio amor que Caracas ha ostentado por su grande hijo, el inmortal Bolívar. (LEOCADIO GUZMÁN, 1883, t. III, p. 6)

Mais tarde, em artigo referente ao aniversário de um ano dos funerais (LEOCADIO GUZMÁN, 1843) seguiu o mesmo raciocínio, embora centrado na ideia da unidade do pueblo em luto. Isso sugere que a percepção — avulsa às filosofias ou aos agrupamentos políticos — da Venezuela enquanto comunhão social estava consolidada nos debates intelectuais. Cabe reiterar, como já visto, que o mesmo paradigma não vigorou nas festas de 1827. Certamente, a secessão da Grã-Colômbia em 1830 significou um ponto de inflexão que estimulou e projetou essa questão em meio às discussões intelectuais, entretanto não garantiu que em 1842 essa imagem de integração estivesse popularizada. Sobre esse aspecto atuou o papel enunciador dos funerais que ao revivificar o Libertador operava a difusão de uma memória reajustada: a origem da comunidade nas ações do herói. Retomando análise de suas crônicas, a efeméride funcionou segundo a fórmula “[...] los honores á Bolívar son honras a la patria” (TORO, 1843, p. 8). Esse entendimento pode ser seccionado para fins de análise em duas premissas que mobilizaram as ações simbólicas no universo das crônicas festivas: 1. O retorno ao lar seria a recompensa e o desfecho imprescindível da trajetória bolivariana; 2. Uma vez que foi fruto da ação libertadora, a Venezuela seria por si própria objeto digno de louvor capaz de repercutir a adoração ao Pai criador. No funcionamento da primeira premissa, as Honras fúnebres (Quadro 2) foram encaradas enquanto arremate da épica bolivariana, o que envolveu a todos no imperativo de completar a marcha do herói. Em Toro há uma série de eventos que autenticam os esforços destinados a restituir Bolívar à sua cidade natal e a reconhecer as transformações que sua ação provocou em seu mundo: as já discutidas tentativas da Representação Nacional de resgatar os restos do herói (1843, p. 5-8); a presteza de vários setores da sociedade em organizarem partes do cerimonial (1843, p. 16-17); a fixação de um arco triunfal, que possibilitou, ao ser cruzado pelo cortejo, a transformação gestual de um funeral num triunfo (1843, p. 27); a romaria de corporações que levaram Bolívar a seu último destino (1843, p. 28-31).

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Quadro 2: Calendário dos eventos relacionados aos funerais de Bolívar baseado na obra “Honras Fúnebres consagradas a los restos del Libertador Simon Bolívar en Caracas” (1843) de Fermín Toro DATA EVENTOS Partida à Santa Marta, da comissão dedicada a transladar os restos mortais de 13 de nov. Simon Bolívar.

16 de nov. Chegada da Comissão a Santa Marta.

20 de nov. Cerimônia de exumação — com participação de autoridades, militares, sacerdotes e civis neogranadinos — encerrada com salvas de artilharia. Exéquias solenes na catedral de Santa Procissão da Catedral até o porto, 21 de nov. Marta com a cidade vestida de luto.

22 de nov. A comissão iniciou a volta para La Guaira.

15 de dez. Chegada a La Guaira. Recepção dos restos de Bolívar pelo 16 de dez. Partida para Caracas povo de Caracas na Capilla de la Trindad Amanhecer com tiros de Procissão até o Templo canhão em homenagem Celebração das Honras de San Francisco no 17 de dez. ao recebimento triunfal fúnebres em qual se realizaram os dos restos do homenagem a Bolívar. funerais. Libertador. Decreto governamental que ordenava o translado dos restos de Bolívar à 20 de dez. Catedral de Caracas.

27 de dez. Cerimônia do translado final dos restos de Bolívar à Catedral de Caracas.

O relato da preparação de Caracas é exemplo categórico do sentido que o autor imprimiu ao texto:

Más de mil artistas y operarios empleados por el Gobierno y los particulares trabajaban incesantemente en decorar los dos templos y las calles de la carrera, elevar el arco, armar el carro y construir los palcos y tablados. De todas las provincias de la República llegaban multitud de personas que no traían otro objeto que presenciar los funerales; y de los pueblos vecinos una gran parte de la población se había venido con anticipación á la capital. (TORO, 1843, p. 24)

A diegese de Toro esteve focada em demonstrar o empenho coletivo, perceptível tanto no trabalho manual quanto na peregrinação de espectadores de toda República, a propósito de sacralizar o espaço e torná-lo extraordinário ao nível do objeto de culto. Todos vinham auxiliar e assistir aos últimos passos que o herói não pudera dar por si só. Nesse sentido, foi

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emblemático que na procissão que levava o corpo de Bolívar ao seu derradeiro jazigo, o carro funerário, planejado para ser puxado por cavalos, tenha sido puxado por cerca de cem cidadãos que literalmente completaram o trajeto do Libertador (TORO, 1843, p. 29-30). A exposição da dedicação venezuelana também serviu de subsídio para outra lógica que fomentou os atos festivos no relato de Toro: o discernimento de que a existência da Venezuela é por si própria um louvor a Bolívar. O raciocínio é fundamentado na compreensão de que a pátria, filha da ação bolivariana, ao provar sua existência e valor enquanto tal, rendia homenagens ao seu autor. Desse ímpeto, desenvolveu-se a narração de episódios, como a elaboração de programações e celebrações nas capitais provinciais de forma simultânea, variada e harmoniosa (1843, p. 10-11); o convite a representantes de Nova Granada, Equador, França, Inglaterra e Dinamarca a integrarem as celebrações (1843, p. 11-13), aos quais se somaram as participações de diplomatas de Estados Unidos, México, Suécia e Holanda durante as celebrações (1843, p. 30); a afirmação simbólica de Caracas no palco central da Venezuela (1843, p. 17). Nos atos referidos plasmava-se simbolicamente a Venezuela independente — do programa Conservador — em termos de união política, reconhecimento internacional e centralidade da capital. Outrossim, alguns dos discursos transcritos nas crônicas tinham como intuito projetar nos auspícios do Libertador a República da forma como se encontrava em 1842. A fala de Páez ao encerrar os festejos é explícita:

Nos resta sin embargo un deber: consagrar al Libertador el monumento más digno de su gloria: la consolidación de las instituciones de Venezuela por la sabiduría de los Legisladores, por la prudencia de la Administración ejecutiva, por la integridad de los Magistrados, por la ilustración del Pueblo, por la unión de todos los Venezolanos. (PÁEZ apud. TORO, 1843, p. 49).

Ao vincular a conservação da memória de Bolívar à necessidade de estabilizar a ordem político-social, Páez disse mais sobre sua percepção ante as circunstâncias nacionais que sobre o legado do herói. Aparentemente, sua preocupação relacionava-se à defesa das bandeiras conservadoras contra as ameaças que representavam a ascensão de qualquer projeto paralelo. Isto é, tanto a conclusão da trajetória do prócer quanto o louvor ao Libertador por meio da consagração da pátria acabaram servindo de plataforma para enunciação de um Estado constituído, merecedor de proteção e credor de reverências. Um trecho do brinde realizado no banquete concorrido pelo corpo de diplomatas estrangeiros, no dia seguinte às cerimônias públicas, solidifica essa impressão:

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Y no sólo es el triunfo de Bolívar el que celebramos, es también el triunfo de Venezuela. Hemos visto desembarcar en nuestras costas al Gran Bolívar escoltado y saludado por la marina de guerra de poderosas Naciones que han mezclado su pabellón con el nuestro en honor del Héroe, en alto honor de Venezuela. (PÁEZ apud. TORO, 1843, p. 50)

O arranjo narrativo das crônicas seguiu um caminho semelhante. Ao invocar Bolívar sob o epíteto de Deus da paz, o autor delineou nas festas o sentido de uma convocação coletiva ao fim dos conflitos internos:

Pero basta: suplicios del corazón! remordimientos! sangre vertida á torrentes! aplacaos ante la misión de Dios; de Dios que no da vida sin dar muerte, que no crea sin destruir, y cuyas diarias creaciones no son más que despojos reanimados. Los sacrificios fueron aceptados y la expiación fue completa. El Cielo sereno su faz, la concordia sucedió al combate, el olvido a los rencores, al terror el alborozo y los himnos de la paz a los canticos marciales. El templo de la libertad se abrió y Bolívar fue el Pontífice que sobre las aras purificadas depuso por ofrenda las cadenas de cien pueblos rescatados con su espada, ¡Época de regeneración en que nueva dignidad fue conferida a la gente americana! (TORO, 1843, p. 45)

Ou seja, a obra divina estava acabada. Venezuela planejada e forjada nos tempos de guerra à morte, de destruição, já era uma realidade. É certo que todo o esforço para edificá- la demandou a vida de muitos, mas a sua completude finalizava qualquer necessidade de novos derramamentos de sangue. Esse era o momento de regeneración, de aplacar os partidos e solidificar a herança do herói. Por analogia, provocar o conflito e interromper a paz, significaria opor-se à memória do prócer e destituir os valores que este havia confiado à sociedade. Ilustradas as dimensões do dito e do feito nas cerimônias, cabe distinguir para quem as festas enunciavam os sentidos pensados para a Venezuela. A observação de dois públicos salta aos olhos: o primeiro conformado por emissários estrangeiros, aos quais o espetáculo deveria provocar a leitura de um país que adquirira os valores do progresso e da razão. Toro descrevera a participação desse grupo com os seguintes termos:

¡Hermoso homenaje de la Europa al Genio de la América! ¡Sublime concierto de la inteligencia entre Monarquías y Repúblicas, entre pueblos vetustos y pueblos nacientes, entre estirpes regias y razas de libertos para unirse en un solo sentimiento, absorversé en una sola contemplación, y probar de este modo que no hay más que un origen, una verdad y un destino para toda la humanidad! (TORO, 1843, p. 12-13)

A afirmação buscou aproximar o patamar civilizatório da Venezuela com os povos da Europa, e é possível que provocar essa percepção nos espectadores estrangeiros fosse uma ambição dos produtores dos festejos. Mesmo no oposicionista “El Venezolano” houve certa concordância com essa relação. No editorial de 20 de dezembro, atribuído a Leocadio Guzmán, cita-se a participação forânea nas celebrações a fim de equiparar a Venezuela ao patamar das nações modernas:

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[…] han ofrecido concurrir también de oficio por medio de sus Representantes las dos naciones más poderosas de Europa, para honrar las cenizas del primer hombre del continente americano, Bolívar. ¡ Tan cierto es que el prestigio de la gloria forma un culto é identifica los sentimientos entre los pueblos que el cristianismo ha civilizado ! (LEOCADIO GUZMÁN, 1883, t. II, p. 464)

O que não significa, contudo, que não existissem críticas a serem colocadas sobre esse aspecto. Na opinião do editorial, o governo errou ao não convidar todas as nações hispano- americanas, principalmente Bolívia e Peru que se identificavam com a jornada libertadora. Doutro prisma, isso significou a inviabilidade de gerenciar um encontro nos moldes de um Congresso Continental (LEOCADIO GUZMÁN, 1883, p. 465). Por mais exagerada que a ideia possa parecer, despontou enquanto uma censura ao governo de Páez pela sua recusa a integrar projetos anfictiônicos56. Essa premissa parece manter-se forte na mente de Leocadio Guzmán, já que quando organizador do Centenário de Bolívar, em 1883, cuidou para que Caracas sediasse um Congresso latino-americano na forma de desfecho para as comemorações. De toda sorte, ainda que as Honras fúnebres de 1842 tenham contado com eventos específicos para embaixadores, como o jantar com o presidente no dia seguinte ao cerimonial, o discurso de acomodar a Venezuela no rol das nações ocidentais — assim como a crônica de uma forma geral — não se destinou a um público forasteiro, haja vista a manifesta barreira linguística. A narrativa do espetáculo aparentemente direcionava-se a uma plateia nacional, a quem eram apresentados os sentidos de uma coesão simbólica sob a guarda do Estado defensor da paz social.

2.3. RITOS E RITMOS DAS FESTAS BOLIVARIANAS: UNIDADE, ORDEM E IDENTIDADE

A partir das análises das festas de 1827 e 1842, cabe discorrer brevemente sobre três funcionalidades gerais mais comumente relacionadas às efemérides bolivarianas do século XIX: a forja da unidade política, a estabilização da ordem pública e a afirmação de uma identidade histórica nacional. Deve-se ressaltar de antemão que esses não são os únicos e nem chegam perto de esgotar a polissemia das festividades. Contudo, sua regularidade e

56 Germán de la Reza (2010, p. 17), estudioso dos congressos anfictiônicos latino-americanos, afirma que Manuel Crescencio Rejón, diplomata plenipotenciário do México nas repúblicas do Sul, esteve em setembro de 1842 na Venezuela e observou que a chancelaria caraquenha era hostil à execução do Congresso latino-americano de Lima em 1847.

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perdurabilidade como saídas postuladas aos dramas sociais venezuelanos fazem com que sejam elementos pertinentes para a investigação. Ao observar o papel de “forjar a unidade política”, percebe-se que tal sentido relaciona-se, sobretudo, à acepção de comunidade que a festa é capaz de proporcionar. Manuel Delgado pondera, em termos antropológicos, sobre o ímpeto de comungar que move a efervescência coletiva numa comemoração. Para o autor, o êxtase é matéria prima de toda celebração, pois é fundamentalmente quando estão em estado de enthousiasmos que os sujeitos se percebem seres sociais de forma categórica (2004, p. 92-93). Essa percepção possivelmente repercute a visão de Jean-Jacques Rousseu sobre festa como integração voluntária, oposta às procissões estratificadas dos regimes absolutistas. Quando em Carta a D’Alembert elaborou um modelo implicado na pactuação coletiva em torno do contrato social, o filósofo pensou numa celebração na qual o povo se reunisse e percebesse a si mesmo como espectador-espetáculo, tomando consciência de um si coletivo para além dos estamentos sociais. Jean Duvingaud, ao analisar as festas nacionais da revolução francesa, demonstra como essa proposta foi ressemantizada. Revestidos do conceito de “vontade geral”, as lideranças revolucionárias promoveram uma inversão de Rousseau, dispondo sua teoria a serviço de seu programa político: “[...] O poder estava fadado a ser imposto em nome da vontade geral, com a exclusão da comunidade daqueles que se situaram fora dessa vontade geral, definida por um grupo [...] ou por um homem.” (DUVINGAUD, 1983, p. 159). Ou seja, não podendo manter a unidade, ou melhor, uma unanimidade real, as festas da Revolução Francesa impelidas por um aporte político, adotaram uma postura segregacionista com intenção de garantir uma aparência de unanimidade, ou uma unanimidade ficcional, conforme explica o autor:

Tal ato de unanimidade impele os homens com um movimento que, se não é perenemente rítmico, é geral. [...] O conteúdo implícito da participação encontra na festa a sua expressão decantada e a sociedade venera a si mesma [ou, aos seus valores] por meio da sua imagem sublima. (DUVINGAUD, 1983, p. 158)

O conceito de unanimidade ficcional tem sua validade para a investigação das festas bolivarianas. É perceptível que as comemorações falam para — e em nome de — uma coletividade. A integração popular às suas fileiras implica no silenciamento ou no eclipse de vozes dissonantes. Em nível simbólico isso repercute no tratamento de Bolívar como herói máximo nacional e pai da pátria, comprimindo as opiniões pessoais num estreitamento do campo de enunciação. Afinal, todo discurso é expresso a partir de uma linguagem entremeada

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pelo elogio ao prócer. Outro exemplo diz respeito a já discutida centralidade cerimonial de Caracas, la cuna del Libertador, e pela metonímia ritual, la cuna de la Libertad, na qual toda a Venezuela tem um centro em comum. A unidade ritual se relaciona também ao arrefecimento das tensões sociais, na medida em que ambas se ancoram no compartilhamento de uma história, de expectativas e de status sociais — afinal, ali são todos descendentes das façanhas libertadoras e futuros integrantes da civilização ou da cidadania. Um segundo nexo que reiteradamente foi atribuído às festas bolivarianas é a função de “estabilizar a ordem pública”. Essa acepção diz respeito ao papel do ritual dentro das sequências anarmônicas da vida pública de uma determinada coletividade. Sobre esse aspecto é interessante levar em consideração os estudos antropológicos de Victor Turner (2008), principalmente suas análises de conflitos sociais, dando atenção para a ação simbólica no ínterim do debate público. Seu conceito de “drama social” pode ser entendido como um padrão de situações desarmônicas — intituladas “fases do conflito social” — que se repetem em circunstâncias de desordens comunitárias. Em seus próprios termos:

[...] partindo da ruptura de alguma relação considerada crucial no grupo social relevante — o que estabelece não somente seu cenário, mas também muitos de suas clivagens dicotômicas do grupo, até o acionamento de forma de reparação ou reconciliação legal ou rituais entre as partes em conflito, que compõem o campo de ação. A fase final consiste na expressão pública e simbólica da reconciliação ou da cisão irremediável. A primeira fase caracteriza-se, muitas vezes, pela violação clara e pública de alguma norma ou rega que governa uma relação — chave transformada de amizade em oposição. (TURNER, 2008, p. 72)

É necessário reiterar que não há rigidez etapista no processo e que suas fases podem ter variações e pesos distintos no drama (TURNER, 2008, p. 72). Além disso, tal leitura propõe um papel político ativo das festividades como tentativa de estabelecer o desfecho para os antagonismos instaurados, na medida em que têm possibilidade de pautar publicamente a conciliação, a submissão ou a secessão entre partes contrárias. Tendo em vista a constância do elemento “conflito” nas sociedades, e levando em conta que muitos dramas sociais sequer chegam a uma resolução (TURNER, 2008, p. 28), esse instrumento possibilita encarar a festa como parte de um acontecimento social inacabado, uma proposição de finalização em meio a debates ainda sem desfecho. Tal conceito é plenamente funcional para a análise da Venezuela do século XIX, país no qual o combate era o quotidiano. Sobre o assunto, Manuel Caballero (2002, p. 156) comenta que o mote oitocentista fora a busca de uma ordem projetada sempre para o futuro,

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enquanto a sociedade vivia uma guerra que duraria quase cem anos entre 1810 e 190357, período no qual todo caudillo que teve capacidade de atacar o poder o fez em nome da pacificação nacional. Não é difícil concordar com o argumento de Octavio Paz no que comenta que

[…] El caudillismo, que ha sido y es el verdadero sistema de gobierno latinoamericano, […]. En el régimen caudillesco la sucesión se realiza por el golpe de Estado o por la muerte del caudillo. El caudillismo, concebido como el remedio heroico contra la inestabilidad, es el gran productor de inestabilidad en el continente. La inestabilidad es consecuencia de la ilegitimidad. (PAZ; FELL, 1975, p. 178)

É justamente nessa fragilidade da vida política que se pode entender a importância da festa nacional para essa sociedade. Na medida em que tenta pautar projetos conciliatórios e promover uma unanimidade ficcional em torno da pretensão de legitimidade do caudillo de turno, o ritual opera uma estabilização da arena pública, como se momentaneamente a sociedade como um todo segurasse a respiração à espera de que ali, no instante de exceção do quotidiano, houvesse um desfecho para a crise. Ana Teresa Torres (2009, p. 46) entende que o caudillismo é um regime de adesão piramidal. Nesse mote as comemorações funcionam como tentativas de conciliação coletiva e sujeito popular, ao participar das festas, por consequência assente ao caudillo e assim abdica de contendas sociais que doutro modo poderiam seguir como ordem do dia. Corroborando esse raciocínio há o comentário de Carrera Damas sobre as honras públicas a Bolívar no século XIX, que tiveram sua importância devido a “[...] su función como restañador de las heridas producidas en el cuerpo social [...]. (2003, p. 59). A sobrevivência das festas bolivarianas em nível nacional na Venezuela aparenta manter relações com a incapacidade de as lideranças políticas estabelecerem um programa de nação que estabilizasse as relações sociais em marcos arbitrados constitucionalmente. Noutros termos, a deficiência em definir a existência harmônica da comunidade política na forma de objetivos socialmente compartilhados e acatados, desembocou em sequenciais convulsões e

57 Um breve olhar para a cronologia das lutas internas venezuelanas é pertinente para perceber que não há exageros no argumento de Caballero. Partindo da secessão da Grã-Colômbia em 1830, tem-se: A revolução das Reformas (1835-1836), a Revolta Camponesa de Zamora contra o governo de Soublette (1846), a Rebelião de Páez contra os Monagas (1848), a Rebelião de Barquisimeto (1853), a Revolução de março (1858), a Guerra Federal (1859- 1863), a Revolução Azul (1867), a Revolução de abril ou Revolución Amarilla (1869), a Revolução de Coro ou Colinada (1874), a Revolução Reivindicadora (1879), a Revolução Legalista (1892), a Revolução Liberal Restauradora (1899) e a Revolução Libertadora (1901-1903). Só a década de 80 do século XIX não registrou um alçamento militar de dimensões consideráveis. Nos demais a rotina foi o conflito armado, cujos protagonistas já haviam figurado como “libertadores”, constituindo o fenômeno que Diego Bautista Urbaneja (2004) chamou de procerato. Outros autores, a exemplo de Frederique Lange (2009) e Tomas Straka (2012) usam o termo pretorianismo — como já mencionado — para descrever a relação entre a hegemonia dos homens de armas na vida política e a ausência de figuras civis a cabeceira do Estado, a exemplo de que o primeiro presidente civil eleito que terminou seu mandato constitucional foi Juan Pablo Rojas Paúl já em idos do século XIX (1888-1890).

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conflitos. A constância da instabilidade, por sua vez, não fora uma plataforma almejada por aqueles que se estabeleciam no poder, ainda que tenham se válido dela num passado recente. Logo, é compreensível a busca de mecanismos a fim de normalizar e “reordenar” o cenário público. Dentre as várias linguagens mobilizadas com esse sentido, as efemérides bolivarianas apresentaram-se com fôlego para disseminar mensagens em nível nacional. Por fim, as festas foram pensadas sobre o prisma da “afirmação da identidade histórica nacional”. Esse campo se remete à propriedade da narrativa das festas cívicas em atuar sobre uma memória coletiva singularizando-a como nacional. Nas festas modernas, sob a égide da nação, pode-se observar com maior clareza o caráter mediativo com o qual o elemento ritual atua sobre a percepção social do tempo e a memória coletiva. Roger Chartier, atento a essa característica, sustenta a possibilidade de abordar a festa “como um lugar de observação pertinente onde apreender [...] a fabricação de uma história ou de um legendário” (2004, p. 22). Nessa mesma esteira Mona Ozouf alerta para que o tempo expresso pela festa não é o tempo da historiografia, visto que seu passado é uma repetição que arrasta “[...] uma afetividade escravizada [...]” e seu futuro a “[...] projeção de um desejo” (1976, p. 217-218). Não obstante, a ideia da festa cívica como produtora de uma narrativa histórica dá espaço a indagações sobre como as comemorações proferem e constroem memórias coletivas, em favor da disseminação de projetos políticos. Ao discorrer sobre os abusos da memória natural, Paul Ricoeur aponta para a função seletiva do narrar como meio e espaço para a manipulação da memória. Para o autor, as estratégias de predomínio social, para além da coerção física, estão implicadas com discursos de sedução e intimidação. Nessa medida, a narrativa é um recurso construtivo que legitima a fabricação e consolidação da reminiscência comum:

Nesse nível aparente, a memória imposta está armada por uma história ela mesma “autorizada”, a história oficial, a história apreendida e celebrada publicamente. De fato, uma memória exercida é, no plano institucional, uma memória ensinada; a memorização forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum tidas como os acontecimentos fundadores da identidade comum. O fechamento da narrativa é assim posto a serviço do fechamento identitário da comunidade. História ensinada, história aprendida, mas também história celebrada. À memorização forçada somam-se as comemorações convencionais. Um pacto temível se estabelece assim entra rememoração, memorização e comemoração. (RICOEUR, 2007, p. 98)

De maneira que a unanimidade festiva é operativa, além de uma harmonia política aparente, de uma homogeneização de memórias. O ato de lembrar, partindo do desígnio de um grupo que busca perpetuar-se à cabeceira do debate público, não admite multiplicidades.

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Localizada neste nicho, a comemoração nacional dispõe de seu papel narrativo transportando um programa político com objetivos expressos de propor uma intepretação do passado, com sentido e significado singular. Assim, a normatização festiva é instrumento de regulação tanto da participação ritual quanto do compartilhamento de memória acerca de signos, momentos e personagens que compõem um único passado que lhe interessa narrar: a história pátria. A história nas festas nacionais atuaria como a alegoria da história na festa da reconquista de Toulon, durante a Revolução Francesa. Seriam ambas entidades que interpretam redigir, com requintada pena, num livro igualmente elegante, as façanhas dos heróis de determinado grupo: uma narrativa dissimulada que conta uma única faceta. Ou seja: “[...] consideradas globalmente, as festas procuram reviver por sua conta uma história remanipulada, reajustada, reprimida. [...] É uma imensa empreitada de retificação; isso é verdadeiro, ao menos em relação às festas da Revolução Francesa” (OZOUF, 1976, p. 230). A ritualização do passado à maneira como foi organizada por razões cívicas no século XIX, desembocou em resfriamentos da ação de recordar, isto é, cerimônias de puro espetáculo público. Desta forma, a comemoração/festa elabora uma metamemória relacionada a uma memória-repetição, visto que

[...] os ritos cívicos recorriam a processos análogos aos da “manha” da memória individual (re-fundação, identificação, filiação, distinção, finalismo), mediante a seleção e a fragmentação da sequência dos eventos e a sua inserção num horizonte prospectivo. Isto é, escolhe-se “grandes homens” ou “grandes acontecimentos”, assim arvorados em paradigmas que apelavam à imitação de uma exemplaridade que o futuro devia cumprir. (CATROGA. 2009, p. 51-52)

Contudo, qual o papel efetivo dos momentos e das ações de personagens que são lembrados e ritualizados como eventos fundadores? É interessante notar que mais importante que o episódio em si, enquanto passado, é a carga afetiva que estes mantêm no presente da cerimônia. Segundo comenta Léa Freitas Perez (2002), ao analisar a antropologia das efervescências coletivas, mais do que o papel do objeto celebrado em si, o centro da ritualística reside na relação que o grupo celebrante estabelece com o valor destinado ao elemento de culto. Dito doutro modo “[...] o que é efetivamente significativo, ou mais apropriadamente dizendo, significante é a ligação afetiva operada, e não aquilo que liga.” (PEREZ, 2002, p. 26-27). Retomando as análises de Ricoeur, a ritualização na comemoração age como uma forma de evocar o passado legando-lhe sentido de reatualização, de acordo com o chamado à lembrança da cerimônia (RICOEUR, 2007, p. 60). Isto é, a festa é que lega significado à lembrança reatualizada por meio da dramatização social. De maneira que se compreende mais facilmente o argumento de Fernando Catroga ao propor que “[...] neste tipo de evocação, não

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estava em causa o uso passadista do passado, mas a exploração da sua mais-valia como arma de legitimação de um regime de tempo de cariz prospectivo.” (2009, p. 53). Percebe-se que a relação da festa com o passado matizado como teleologicamente precursor do presente, aponta para um futuro que segue a premissa do progresso irreversível. Neste processo, o esquecimento das múltiplas possibilidades de passados implica também no distanciamento doutros possíveis futuros. A projeção do agora sobre o futuro, segundo a régua do progresso, é celebrada como um vaticínio conservador que mantém o presente celebrante no porvir, sob a fórmula de sua evolução. No caso das festas bolivarianas, esse argumento reverbera na construção do paradigma heroico em três vertentes: 1. No eclipse da narrativa anti-heroica de Bolívar; 2 - na construção de uma nacionalidade a partir da ação de um herói singular; 3- Na projeção da imagem do Libertador sobre os governos que o celebram. No primeiro caso, observa-se que nenhuma festa trata de eventos históricos que contrariem a perfeição do prócer. A entrega de Miranda a Monteverde, a Guerra a Muerte, o massacre de Pastos, a execução do General Piar, a atuação como legislador que propõe o Senado hereditário na Grã-Colômbia e o presidencialismo vitalício na Bolívia, nada disso ganha destaque quando se narra a gesta libertadora. Bolívar fora pintado sem nenhuma incoerência, como pura virtude e, portanto, pôde ser identificado como signo do nacional venezuelano. Partindo da premissa de que a libertação é um passado já disseminado por vários meios na sociedade, as festas bolivarianas foram acontecimentos capazes de precipitar essa memória social dispersa numa narrativa histórica aperfeiçoada, única e linear, cujo protagonista é seu próprio objeto de adoração, o que leva a segunda observação. Uma vez signo nacional, o Libertador não pôde simplesmente ser um novo César, ou um Alexandre redivivo. As particularidades de sua imagem estavam diretamente associadas à singularidade da narrativa nacional e da identidade venezuelana. Não à toa que suas ações são descritas como improváveis para qualquer outro homem; e em qualquer comparação com outro herói mitológico, histórico ou literário sua posição está atrelada à ideia de superioridade. Um exemplo são os escritos de Pedro Pablo Cervantes (1883) em “Ofrenda al Libertador en su primer centenário”, nos quais o autor esforçou-se em demonstrar como Bolívar não cometeu os erros de Alexandre, Aníbal, César, Napoleão e Washington. Por fim, a festa ao presentificar uma identidade histórica do povo venezuelano, atrelava o passado heroico ao seu agora garantindo uma ancoragem temporal para os governos que as compuseram. Diante de um cenário político de fragilidade institucional, a festa como

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pêndulo, em seu vai-e-vem entre o passado e o presente, elaborou sentidos para o tempo vivenciado e assim tendeu a assentir legitimidade a administração pública de turno, mesmo ante a insalubridade do debate público que quase sempre descambava para o conflito armado.

2.4. DO BOLIVARIANISMO ÀS FESTAS BOLIVARIANAS

Seria infrutífero encerrar essa discussão sem recuperar a polissemia e abrangência do culto bolivariano, a fim de traçar aproximações com os eventos que analisamos e os sentidos atribuídos à adoração ao herói venezuelano. Essas conclusões se guiam, evidentemente, pela percepção do bolivarianismo como linguagem política, a reboque do reconhecimento das possibilidades e do dinamismo que a Venezuela encontrou, ao longo dos séculos XIX e XX, para lidar com o desejo de integrar o mundo moderno. O culto bolivariano construiu-se como um fenômeno político bastante ramificado, cuja perdurabilidade manteve relações íntimas com sua funcionalidade e sua mutabilidade na sociedade venezuelana. Isto é, ao longo da história nacional, o louvor ao herói serviu a diversos propósitos e apareceu sob formas variadas, de modo que chegou a proporcionar facetas incoerentes entre si. Por exemplo: o Bolívar ícone de inúmeras contestações a institucionalidade estabelecida, em paralelo ao Estado constituído como maior legado da ação libertadora; ou o Bolívar como unidade de santíssima trindade venezuelana — pai da pátria, filho preferido da Venezuela e espírito da liberdade — num sincretismo entre civismo e cristianismo, em comparação ao Bolívar presidente da corte militar no culto marilioncero. Apesar da dimensão polissêmica das manifestações cultuais, houve uma constante em várias de suas performances: o engajamento como forma de comunicação social. O culto a Bolívar em suas diferentes interpretações pode ser considerado como um veículo para proposição de pautas no debate público. Um conjunto semântico, simbólico e gestual à disposição para abarcar interlocuções sociais de forma compreensível à comunidade venezuelana. Esse aspecto invariável não pode, contudo, significar um nivelamento na análise das variantes do culto. Tratando-se do século XIX, cada qual tinha sua eficácia comunicacional vinculada ao contexto social no qual encontrou-se imersa. A monumentalização pública foi importante para estabelecer as fronteiras espaço-temporais do poder público no pós- independências; concomitantemente empresta uma face reconhecível para um Estado que

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traçava sua própria identidade. Os escritos de Bolívar, por sua vez, tiveram status de mandamentos políticos que impeliam à emulação dos valores heroicos, movimento que deveria guiar a sociedade venezuelana à cidadania e à civilização. Em seu turno, a historiografia bolivariana influiu numa projeção do passado da libertação sobre o presente histórico, limitando a ação política individual ao umbral do prócer, pari passu provinha amparo teleológico para os programas de governo. Dito doutro modo, as manifestações cultuais estiveram embasadas num idioma político em comum, que lhes permitiu enunciar sentidos compreensíveis à realidade social que integravam. Contudo, suas lógicas internas foram particulares e funcionais para determinadas circunstâncias e grupos sociais. A conjuntura das festas bolivarianas do século XIX, enfatizada neste capítulo, foi transcendente, pois utilizava os nexos doutras manifestações em instantes de pujante difusão de proposições políticas a diversas faixas sociais. Os festejos marcaram territórios com sua topografia ritual e assinalaram novos tempos da vida pública com seus calendários; preconizaram o exemplo bolivariano no contraditório binômio modelo-limite do cidadão venezuelano; e permitiram uma historicidade a programas de governo ao projetá-los sob a imagem do herói. Isso foi possível porque os festejos atuaram por meio de efervescências coletivas, paroxismos sociais e agenciamento de interregnos extraordinários, que ampliavam seus alcances enunciativos a dimensões que outras facetas do culto não conseguiam atingir. Essas cerimônias foram capazes de mobilizar um grande público ao exibirem, como objeto de culto, um signo capaz de construir uma unanimidade, ainda que ficcional, ao seu redor. Evidente que a aceitação da imagem do Libertador foi um processo de construção de consenso no seio das elites políticas, referendado tanto por um sentimento popular pregresso quanto pela adesão aos cerimoniais. Dessa forma, a efêmera comunidade ritual dava peso coletivo ao discurso festivo. As pautas apresentadas nas cerimônias, por sua vez, estavam em consonância com o transcorrer dos debates públicos. Dessa forma, os programas festivos não foram liturgias imutáveis ao longo do tempo, pelo contrário, estavam intimamente relacionados com as disputas de seus presentes históricos e preocupavam-se em produzir sentidos e soluções para a exacerbação de conflitos sociais que ilustravam. A ruptura com o tempo quotidiano, em seu turno, era um recurso que possibilitava a vivência e a sensibilidade de um rito de passagem coletivo, do qual tanto a sociedade quanto o calendário saiam transformados. No instante extraordinário, os atores sociais eram convidados a desempenhar papéis não rotineiros — a exemplo da imagem de pueblo como

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conjunto homogêneo de cidadãos — o que não implicava na manutenção desse status num momento pós-cerimonial; no entanto, permitia a integração à tentativa ritual de definir rotas para superar os dramas sociais. Os arranjos celebrados seriam, portanto, índices do ensaio de transformações comunitárias e da impressão de novos tempos sobre a vida pública. Como se evidencia ao longo deste texto, os estudiosos que investigam alguns aspectos dessas efemérides têm descrito suas propriedades para forjar a unidade política, estabilizar a ordem pública e afirmar uma identidade histórica nacional. Isso significa que há uma concordância nas entrelinhas de grandes produções acadêmicas em considerar que as festas bolivarianas foram acontecimentos específicos dentro de um campo político-cultural que tenderam a se apresentar em momentos de crise institucional. Em especial, quando se levantava o imperativo de debater o projeto de sociedade — por vias não belicosas — os festejos possibilitaram tentativas de acordo: conjuntos de proposições públicas a serem ratificadas pela sociedade e perseguidas pelo programa governamental, com um lastro de historicidade proporcionada pela projeção das soluções, em potencial, sob a égide do culto ao herói fundador. As crônicas das festas bolivarianas de 1827 e 1842 são testemunhas da relação das comemorações com seu contexto histórico. Por suposto, vale lembrar que os predicados das narrativas se dirigiam a prover permanência à fugacidade festiva, a dar significados à comunicação simbólica nela estabelecida e a apontar sentido à miríade de símbolos que ali se encontravam. Em contrapartida, por serem produções vinculadas aos organizadores das cerimônias, acabam se tornando um meio pertinente para compreensão dos enunciados que os bastidores tentavam imprimir sobre as efemérides. Nas festas do triunfo de Bolívar em Caracas no ano de 1827, as crônicas de Valentin Espinal (1827) foram inteiramente permeadas pelo receio de uma guerra civil. “Sucinta descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827” delineou, sem apontar culpados, a situação de crise que ficaria conhecida como La Cosiata, uma rebelião que defendia a secessão venezuelana da Grã-Colômbia, com um enorme potencial para desbocar num conflito armado. O Libertador, que apesar de ser percebido com a imagem política desgastada de um tirano, partiu às pressas da Bolívia para acalmar os ânimos na Venezuela por meio da negociação com as lideranças locais: Antonio Páez e Santigo Mariño. A recepção a Bolívar em Caracas naquele ano fora um ritual de reconciliação, pautado sobre compromissos mútuos que modificavam o patamar da Venezuela dentro da União. Nesse aspecto, chama atenção a viragem da opinião pública quanto ao herói, de opressor a Augusto pacificador, que sem derramar uma gota de sangue reconquistara sua pátria. A Entrada Triunfal

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de Bolívar foi, dessa forma, uma celebração ao pacto entre autoridades, à redefinição dos poderes na Venezuela e ao caráter milagroso do herói. Em 1842, em seu turno, o resgate do corpo do prócer cumpriria o papel de tentar harmonizar as relações políticas venezuelanas. Acuado por constantes revoltas sociais e pela fratura da elite política com a criação do Partido Liberal em 1840, Páez — então presidente da Venezuela independente — reitera ante o Congresso nacional a necessidade de reaver os restos mortais do outrora expurgado herói. A aceitação dos termos do executivo nacional significou o empreendimento de um louvor coletivo à situação política da Venezuela, como se essa fosse derivada direta da obra e dos anseios do Libertador. Ao menos é o que delineia a narrativa de Fermin Toro (1843) ao se embasar no argumento de que glorificar a Bolívar é fundamentalmente proclamar a pátria venezuelana. Em sua diegese, o esplendor e seriedade dos eventos festivos são encarados como atos de sociedade direcionados ao cumprimento da derradeira conquista do herói: a vitória contra o esquecimento, a derrota da desunião, o vigor da paz social. Dessa forma, os venezuelanos, conformados como uma comunidade sem fissuras, acudiram ao término do trajeto do Libertador com o retorno ao lar. Em ambas as comemorações, Bolívar foi apresentado como tutor da sociedade venezuelana, com poderes premonitórios e semidivinos. Sua imagem foi empregada como base da união, da paz e da identidade de um povo em processo de conformação. Por meio do seu prestígio se produziram argumentos sobre quem eram e como deviam agir os venezuelanos, em contextos de profundas crises sociais e intermitentes transformações. Dessa maneira, não há exagero em imaginar que o culto a Bolívar fora uma peça fundamental para a sobrevivência e consolidação da Venezuela como Estado, ao menos durante a primeira metade do século XIX. As festas bolivarianas contribuíram substancialmente com esse quadro, em vista de seus papéis como difusoras de enunciados que por sua pujante atuação como sistema cultural de comunicação simbólica foram acolhidas enquanto verdades pela sociedade.

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CAPÍTULO 3

O CENTENÁRIO ______Na cova eu não tinha acesso à memória. Perdera a capacidade de sonhar. Agora, alojado em corpo de vivente, me lembrava de tudo, eu era omnimnésico. Era como se vivesse de regresso, em viagem de ida e volta.

Mia Couto, “A Varanda do Frangipani”.

As festas do primeiro Centenário de Simon Bolívar em Caracas, no ano de 1883, transcenderam, em duração e em diligência, qualquer outra efeméride que fora anteriormente dedicada ao herói. Seus preparativos começaram em setembro de 1881 com o decreto do executivo nacional, que criou a Junta Directiva del centenario. A coligação político-intelectual venezuelana garantiu uma espinha dorsal ao planejamento dos festejos, nas figuras de Antonio Leocadio Guzmán, pai do presidente Guzmán Blanco, como seu presidente; Andres A. Level, ex-Diretor Geral de estatística e ex-Ministro do Interior e da Justiça na primeira década do Guzmanato; Dr. Aristides Rojas, já citado acadêmico guzmancista; Dr. Manuel Vicente Díaz; Dr. Augustín Aveledo, fundador e ex-presidente do Colegio de Ingenieros de Venezuela; e Pablo S. Clemente e Fernado S. Bolívar, sobrinhos de Simon Bolívar. O mesmo decreto estabeleceu que todas as decisões do grupo passariam pelo crivo do executivo nacional, antes de sua aprovação (ERNST, 1884, t. II, p. 3-4), garantindo, dessa forma, um controle sobre as escolhas da celebração. Com toda a programação definida em 18 de julho de 1882 (RAMON CASTELLANOS, 1983, t. I, p. 79-82), o grau de complexidade organizacional e esmero dedicados às celebrações não pareceriam, nem ao mais desatento observador, movidas exclusivamente pela paixão natural ao semidivino prócer ou pela espontânea vontade popular em preservar sua memória. Ao revés, a grandeza desse evento se assentou num consolidado sistema cultural de comunicação simbólica, coordenado pelo Estado. Durante os anos da hegemonia nacional de Antonio Guzmán Blanco (1870–1888), período conhecido pela alcunha de Guzmanato58, as festas cívicas tornaram-se elementos

58 Esse período pode ser dividido nos três momentos da administração pública de Guzmán Blanco, Septenio (1870- 1877); Quinquenio (1879-1884); e Aclamación Nacional ou Biénio (1886-1888). Alçado ao poder pela primeira vez por meio da Revolução de abril (1870), o caudillo se ausentou do poder nacional em curtos interregnos, que corresponderam aos governos bienais de antigos aliados: Francisco Linares de Alcántra/José Gregorio Varela

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quotidianos na arena pública nacional. A heroicização de personalidades políticas favorecia a integração nacional, na medida em que articulava o compartilhamento de memórias em celebração. A organização de um panteão pátrio cumpriu um papel singular nesse contexto. A cada nova personalidade alçada à categoria de herói venezuelano significava uma nova oportunidade para, diante da população, associar suas virtudes ao governo de Guzmán Blanco. Exemplos não faltam: as honras fúnebres aos históricos integrantes do Partido Liberal Ezequiel Zamora, Manuel E. Bruzual e José Gregorio Monagas, em 1872; a glorificação de Juan Crisóstomo Falcón, em 1876; e o translado dos restos mortais de José Maria Vargas, em 1877. De maneira paralela, o aparato festivo foi direcionado pelo executivo nacional ou por seus partidários no legislativo, à autoglorificação do regime com instituição da comemoração anual da vitória do Ilustre Americano na Revolução de abril em 1874, e com a inauguração da estátua de Guzmán Blanco, em 1875. Entretanto, a relevância de sua linguagem ritual era reflexo da proliferação das festas dedicadas a Simon Bolívar. Além do supracitado Centenário de Bolívar e da continuidade dada às festas anuais do natalício do Libertador, em 28 de outubro59, Guzmán Blanco pôs em marcha três comemorações especiais em homenagem ao Libertador: a exibição de pertences de Bolívar na “Fiestas de la Paz” (1872); a inauguração da estátua equestre do Libertador em Caracas (1874); o translado de seus restos mortais do mausoléu da família ao Panteão Nacional (1876). Segundo Pedro Cazaldilla (1999, p. 122), que investiga as festas do Septenio, o incremento das festividades cívicas no final do século XIX pode estar relacionado à eficácia de sua função comunicativa numa sociedade composta majoritariamente por não letrados. Se Cazaldilla estiver correto, na medida em que os governos Guzmán Blanco adotaram as celebrações como política de Estado, o povo, habituado à linguagem festiva, conformou-se em plateia e em receptor consciente das enunciações produzidas nas comemorações. Esse argumento fortifica a compreensão da festa no papel de suporte viável para difusão de um projeto social.

(1877-1879), este último que tentou afastar-se do legado gusmancista, mas foi derrotado pela Revolución reinvidicadora (1879), que trouxe Guzmán Blanco de volta a Presidência da República, e Joaquim Crespo (1884- 1886), que passa o governo às mãos de Guzmán Blanco depois de eleições livres. Ou seja, Guzmán Blanco exerce um predomínio de praticamente duas décadas sobre as instituições venezuelanas, deixando uma perceptível marca de modernização, personalismo e comemorações sobre o país. 59 Existia um costume de celebrar o aniversário de nascimento de Bolívar no dia de seu santo onomástico San Simon (28 de outubro). Tanto que, em 1849, o presidente José Tadeo Monagas tornou a data efeméride pátria. Só a partir da celebração do Centenário de Bolívar, em 1883, que os festejos correspondem, de fato, ao seu natalício (24 de julho).

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A reiteração da linguagem bolivariana nos espetáculos do Guzmanato conduziu a um consenso historiográfico sobre a importância desse período na institucionalização do culto a Bolívar60 — consolidação habilmente utilizada por Guzmán Blanco para colocar-se na posição de continuador da obra do Libertador. Por outro lado, é preciso resistir à simplificação de atribuir o conjunto das performances públicas exclusivamente a uma obsessão do Ilustre Americano pelo prócer. Ainda que resulte eficiente para alguns estudos que pretendem analisar as conformações históricas do culto bolivariano ou do imaginário político venezuelano, reduzir a complexidade das relações festa-sociedade a projeções ideológicas também é uma estratégia problemática. Ambos os raciocínios comungam da desconsideração ao aspecto contextual- pragmático das comemorações, preferindo enquadrá-los num contínuo histórico de vício teleológico. Um olhar mais proximal compreenderá, contudo, que as festas do Guzmanato transbordaram o personalismo e a reprodução ordenada do bolivarianismo. Tais elementos, de fato, integraram as celebrações, entretanto estiveram limitados em função da comunicação social. Isto é, as festas não foram meros reflexos ideológicos nem representações de discursos políticos, senão um conjunto de enunciações imersas no cerne do debate público. Dessa forma, procuravam ofertar respostas aos dramas sociais instaurados que cobravam posicionamento público aos atores políticos. As festas significaram muito mais que legitimação social do culto a Bolívar. Nas comemorações, o bolivarianismo cedia credibilidade aos enunciados, uma vez que tornava seus sentidos compreensíveis e factíveis para o público em geral. Ou seja, por meio das festas é possível compreender, mais que sobre o culto ao prócer, os pontos cruciais e as tramas que mobilizavam o meio político venezuelano. Conforme argumenta Lea Freitas Perez (2002, p. 26-27) na comemoração mais importante que aquilo que vincula, são os próprios vínculos estabelecidos. Evento mais extraordinário do Guzmanato, o Centenário de Bolívar abarcou ensaios de resoluções para os debates mais prestigiados do cenário nacional. Aptidão testemunhada pelo incremento editorial durante as celebrações. Rafael Ramon Castellanos (1983, t. II, p. 169-

60 Ver CARRERA DAMAS, 2003, p. 151 e 316; CAZALDILLA, 1999, p. 115; ROJAS, 2011, p. 168; e ITURRIETA, 2003, p. 42-49. Ademais, cabe apontar que essa configuração não se operou exclusivamente no âmbito celebrativo, senão contou com o embasamento de debates intelectuais e historiográficos a partir das produções de intelectuais do quilate de Francisco Gonzalez Guinán, Aristides Rojas e Antonio Leocadio Guzmán. Acrescidos, por fim, do que Nikita Harwich descreveu segundo o conceito de lugares de memória concretos: a construção da Plaza Bolívar e do Panteão Nacional, em Caracas; e a criação da moeda nacional batizada de Bolívar (HARWICH, 2003, p. 12).

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185), em seu catálogo de documentos sobre o Centenário, lista 188 obras61 publicadas ou republicadas pela imprensa venezuelana em homenagem ao Libertador, em 1883. Entre elas: vários panegíricos ao prócer, censos, trabalhos científicos, produções historiográficas, crônicas festivas — incluindo as de Valentin Espinal (1827) e de Fermin Toro (1842) —, poesias, estudos sobre a natureza nacional, panfletos que exaltavam a administração Guzmán Blanco, etc. Desse modo, o escrito e o lido no período gravitava em torno da caracterização nacional. Além disso, porquanto os autores reverenciavam a Bolívar na qualidade de pai da pátria, preocupavam-se em recontar e retificar suas histórias e predicados segundo as demandas de suas vivências. No plano ritual, vigorou a mesma lógica. A Junta Directiva articulou as comemorações ao anseio de definir que país emergiu da Guerra Federal (1859-1863), para tentar encontrar seu lugar na ordem capitalista mundial. Os arranjos festivos e suas crônicas foram destinados a produzir respostas com potencial de convencimento social. Portanto, são objetos pertinentes para analisar as estratégias imaginadas pelas elites governantes para lidar com a modernidade e, simultaneamente, conquistar adesão popular aos seus programas políticos. Dessa forma, compreender os sentidos e definições que a comunicação festiva põe em cena, significa analisar as disputas políticas vigentes. A multivocalidade do bolivarianismo associada a um evento de dimensão ímpar proporcionou uma arena adequada a posicionamentos de diversas conjunturas. Sejam de âmbito nacional ou de relevo internacional, relativas ao acontecido ou ao povir, correspondentes aos grupos governantes ou às camadas governadas, as questões apresentadas no Centenário não fugiam ao seu contexto. Portanto, qualquer elemento que integrasse a paisagem ritual era um possível indicador de valores sociais, ainda que não aparente relações com o cerne da comemoração. A importância de cada debate é diretamente proporcional ao empenho que cobrou no arranjo das festas e a sua reprodução ao longo do ritual e das crônicas. À vista disso, mesmo que nem todos os posicionamentos estivessem conectados aos temas centrais do contexto, na disposição de marcos comunicacionais tinham potencial para denotar a disseminação da linguagem do bolivarianismo. Por outro lado, caso tenham sido correlatas ao núcleo da performance pública, nessas enunciações encontravam-se o suporte e a coesão que respondiam ao drama social instaurado.

61 Apesar de compreender que essa produção é fonte riquíssima para a compreensão da Venezuela de então, o mote deste trabalho se circunscreve à análise do dito sobre e para as festas do Centenário. Resta reiterar, ao leitor interessado, a diversidade de temas aí presente.

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[…] una forma de hablar y escribir reconocible, coherente en el plano interno, susceptible de ser “aprendida” y lo suficientemente diferente de otras formas de hablar similares como para permitirnos percibir lo que ocurre cuando una expresión o problema migra, o se traslada, de uno de estos contextos a otro. Parecen ser paralelos y, obviamente tienen un carácter, origen y grado de organización muy diverso. (POCOCK, 2010, p. 91)

Ao se tratar do Centenário, existiu certa consonância com o interesse em fornecer imagens da Venezuela moderna, fosse sob a forma de projeto ou de realidade. Respaldado pela comissão organizadora e pelo programa festivo, o governo foi capaz de orientar posicionamentos operando uma ficção de unanimidade sobre as questões celebradas. Entretanto, esse direcionamento não foi absoluto. Nuances, contradições, pequenas contraposições, filtragens de ordens e mesmo a possibilidade de não convencimento demonstravam o modo que as festas apresentavam uma arena de possibilidades na qual se perseguiu a aceitação compartilhada do projeto nacional do guzmancismo. Ao buscar realçar os laços de pertencimento comunitário com pretensão de conduzir a dissolução de conflitos, o rito bolivariano converteu-se em lugar das expectativas no qual os personagens enredados podiam lançar suas apostas de futuro. De maneira que, entender a comemoração como um acontecimento inconcluso, é imprescindível para vislumbrar os lances realizados pelos atores políticos na forma de ensaios para resolução de impasses.

3.1. CRONISTAS E CRÔNICAS DO CENTENÁRIO

A programação festiva e suas justificativas, sejam em nível de planejamento ou de crônicas, são dados capitais para compreender o que se quis transpor na comunicação ritual. Disposto entre os dias 23 de julho e 2 de agosto de 1883, o Centenário pôde apontar a variedade de maneiras com que as elites governantes reivindicaram a memória do prócer. O programa festivo de Caracas (Quadro 3) definiu cinco oferendas a serem prestadas ao Libertador: 1. A apoteose do herói, 2. O progresso atual do país, 3. Uma homenagem aos pais da nação, 4. Uma demonstração de admiração aos EUA; e 5. Uma demonstração de fraternidade entre as nações da América Latina.

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Quadro 3: Calendário dos eventos decorridos no Centenário de Bolívar em Caracas (1883), baseado nas crônicas “Centenario de Bolívar: Informe de la comisión nacional de Bolivia de su participación en las fiestas que han tenido lugar en Caracas y reseña de ellas” (1883), da Comisón de Bolivia e “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar” (1883), de Ramón Hurtado Sánchez DATA EVENTOS 05 de Inauguração da Plaza El Inauguração da estátua de Antonio Leocadio julho Venezolano Guzmán Inauguração da 23 de Oferenda do Oferenda das Convite Popular estátua do prócer julho Clero Mulheres (Banquete) Francisco Miranda Cortejo ao Panteão 24 de Oferenda da Pátria Nacional de Caracas Apoteosis no teatro julho e de suas irmãs (Discurso inaugural de Guzmán Blanco Guzmán Blanco) 25 e 26 Inauguração do ferrocarril Caracas-La Guaira de julho 26 e 27 Instalação da correspondiente de la Real Academia Espanhola de la de julho Lengua 28 de Homenagens prestadas pela Universidad Central de Venezuela à pátria e julho a Bolívar 29 de Homenagens à memória de José Maria Vargas, prestadas pela julho Universidad Central de Venezuela (inauguração de estátua e concurso literário) Homenagens à memória de Juan 30 de Inauguração de estátua em homenagem a Manuel Cajigal pelo Colegio de julho Bolívar pelo Comércio Ingenieros 31 de Inauguração da estátua de George Washington julho 01 de Inaugura a Santa Capilla de Caracas agosto 02 de Abertura da Exposición Nacional del Centenario agosto 14 de Congreso Continental Latino-Americano agosto

Primeiro ato do Centenário, a apoteose de Bolívar ocupou os dias 23 e 24 de julho. Iniciado com uma missa simultânea em todas as igrejas da República, o dia 23 seguiu com discursos do clero, oferendas de caridade das mulheres e, pela noite, realização de banquetes populares (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 11). Apesar de não constar na programação, na tarde desse dia ainda se inaugurou a estátua do prócer Francisco Miranda (1750-1816), apresentado como precursor de Bolívar (SÁNCHEZ, 1883, p. 44; GUARDIA, 1883, p. 67). O dia seguinte raiou com o cortejo do Capitolio (sede do legislativo) ao Panteón Nacional — onde repousavam os restos mortais do Libertador — passando pela Casa Amarilla (então

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residência do presidente da República) (SÁNCHEZ, 1883, p. 57). A procissão desenhou uma cartografia ritual de Caracas, sacralizando espaços de poder por meio da aura heroica. À noite, celebrou-se a divinização do Libertador no Teatro Guzmán Blanco (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 12), com eloquentes discursos e hinos em louvor a glória do pai da pátria. Quanto às demonstrações do progresso venezuelano, o programa é lacônico ao mencionar somente a inauguração do Ferrocarril Caracas-La Guaira (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 12). Sua centralidade se justificava, afinal a obra significou uma ponte entre a capital e o mundo capitalista, por meio de uma ligação veloz com seu principal porto. Entretanto, cabe assinalar que a modernização co-protagonizou as celebrações, não só pelas inúmeras referências que lhes foram feitas ao longo do Centenário, mas também pelos eventos que se remetem mais ao progresso que ao próprio Bolívar. Por exemplo: o uso de fogos de artifício, o conjunto de publicações em homenagem ao Centenário, o inovador uso de iluminação pública elétrica, a inauguração da correspondiente de la Real Academia Espanhola de la Lengua, a inauguração da Santa Capilla de Caracas e da central telefônica, e a Exposición nacional. Em seu turno, as honras aos pais da pátria se deram em atos literário e científico, dedicados a personagens, a exemplo de Isabel, Cristovam Colombo e Frei Bartolomé de las Casas62. Somam-se a esses, as homenagens ao ex-presidente José Maria Vargas e ao engenheiro José Manuel Cagigal, além da inauguração da correspondiente de la Real Academia Espanhola de la Lengua (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 13). Exceção feita a Vargas e a Cagigal, nomes respectivamente da medicina e engenharia venezuelanas, com esses eventos as festas voltaram-se à ancestralidade hispânica da Venezuela. Num cenário em que se celebram as ações do Libertador, o movimento em direção à herança colonial sugere uma contradição. O aparente custo desse arranjo para a lógica dos festejos constrange a reflexão sobre o papel desse elemento no cenário político da época. Num trecho mais módico das cerimônias, inaugurou-se o monumento em homenagem a George Washington, em Caracas (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 14). Sob a justificativa de tributo ao modelo republicano perseguido pelas nações hispano-americanas, o episódio tem sentidos menos prosaicos. Ao afirmar a convergência com a fórmula política norte-americana, os organizadores das festas tentavam alocar a Venezuela no rol das nações

62 A justificativa para a seleção desses personagens no programa do Centenario é descrita nos seguintes termos: “[…] después de haber fundado nuestras familias y nuestra Religión y dádonos su habla, supieron defender el territorio descubierto, noble y heroicamente durante dos siglos, contra los ataques del extranjero, para conservarlo íntegro en provecho de sus descendientes.” (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 13).

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modernas. Exercício reforçado pela constante vinculação entre os seus respectivos libertadores. Vale ressaltar que havia uma tradição iconográfica em retratar Bolívar com um medalhão de Washington no peito. Esse modelo baseava-se na litogravura (Imagem 4) de Auguste Hilario Leveillé (1840) e fora disseminado por meio de cópias do busto (Imagem 5) e estátua (Imagem 6) de Bolívar, elaboradas por Pietro Tenerani. A própria Caracas do Centenário contava com réplicas dessas esculturas, portanto a Junta Directiva poderia estar habituada a pensar a associação entre as lideranças. Além disso, a correlação entre o prócer e os maiores heróis da história universal fora um elemento usual na linguagem bolivariana, manifestando-se, também, noutros cenários da comemoração, a exemplo dos panegíricos de Pedro Pablo Cervantes (1883) e das crônicas festivas.

Img. 4: “El Libertador Bolívar” litogravura de Img. 5: “Busto de Bolívar” (1850) de Pietro Auguste Hilario Leveillé (1840). In: BEATRIZ Tenerani. GONZÁLEZ, J. M. E (1998). Abanderado del arte en el siglo XIX. Bogotá: El Áncora editores. Museo Nacional de Colombia, Banco de la República. p. 224

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Img. 6: Esboço do Monumento a Bolívar, de Pietro Tenerani (1846). Chamo atenção para o medalhão de Washington que lhe cinge o peito. In: GERARDI, F.; TENERANI, P. (1845). Intorno alla statua di Bolivar. Livorno: Bertani, Antonelli e C. p. 29.

Por fim, o tributo às nações da América Latina foi realizado em feiras literárias nos colégios (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 14). Outra vez a programação foi excessivamente sucinta, já que sequer mencionou o Congreso Continental Latino-Americano, episódio derradeiro dos festejos. Porventura a ausência se deveu ao fato de a reunião ter sido convocada depois do fechamento do cronograma ou mesmo porque esse evento não fosse destinado ao público em geral, diferente dos demais presentes no roteiro. Ainda assim, a concorrência de delegados de várias nações latino-americanas transmitiu importância ao episódio, configurando, quiçá, a reunião mais significativa desde o Congresso Anfictiónico do Panamá (1826). Evento à altura do Centenário de um dos ícones do pan-americanismo. Com o Centenário, o aparato festivo do guzmancismo chegou a seu ápice. Ao invocar a unanimidade sob a memória heroica, a execução do rito foi capaz de eclipsar por um momente o quotidiano de disputas políticas. Instaurado o tempo do extraordinário, as contrariedades estavam compulsoriamente mitigadas e os descontentamentos não podiam ser expressos sem a devida filtragem. Afinal, estar contra o Libertador significava estar contra a Venezuela. As crônicas festivas foram responsáveis por solidificar a impressão de harmonia

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social, o que, quiçá, mantém relações com o papel que seus autores desempenharam nos círculos dos governos guzmancistas. Dentre esses, o mais destacado no contexto foi o acadêmico Adolf Ernst (1832- 1899). Seu mérito advém da coordenação da exposição nacional, cuja organização expôs, minuciosamente, em “La exponsición nacional de Venezuela en 1883” (1884). Prussiano, Ernst radicou-se em Caracas a partir de 1861, onde fundou a Sociedad de Ciencias Físicas y Naturales, em 1867, e o Museo Nacional, em 1874 (RAMON CASTELLANOS, 1983, t. II, p. 99). A presença do professor criou uma aura de progresso no cenário acadêmico nacional; ao menos essa era a impressão do editorial assinado por Ricardo Becerra e publicado no periódico El Federalista, em 1867, que o descreve à imagem de um grande intelectual “[…] cuyo ilustrado pensamiento y modesto hogar de preceptor están, por decirlo así, en constante actividad y atracción, ya en beneficio de la difusión de las luces entre la juventud de este país, como del estudio de sus grandes condiciones físicas y naturales” (BECERRA, 1867, p. 2). Segundo Nikita Harwich (1990, p. 94-95), sob a tutela de Guzmán Blanco, o personagem foi um dos precursores do positivismo universitário na Venezuela, a julgar pelo papel de sua cátedra de História Natural na difusão dos estudos de Charles Darwin e Herbert Spencer. Sua competência, enquanto investigador da fauna e flora local, conveio para a incumbência de preparar a participação venezuelana nas exposições internacionais de Viena, em 1873, Bremen, em 1874, Santiago e Filadelfia, em 1876 (ERNST, 1876). De maneira que é aceitável considerar que sua experiência e proximidade ao regime cooperaram para que ocupasse um posto de narrador e chefe da exposição nacional. Outro relato oficial, as crônicas do pouco conhecido Ramón Hurtado Sánchez63 foram capazes de forjar coerência na diversidade de episódios que performaram o Centenário. Apesar de ser sua primeira publicação, em “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar” apresentou um parcimonioso e competente desenvolvimento de justificativas e comentários, utilizando a linguagem bolivariana para produzir harmonia entre distintas situações e enunciados. Num texto menos técnico que o de Ernst (1884), é interessante perceber as escolhas que o autor fez — ao traçar relações entre passado e presente — para oferecer um lugar no tempo ao contexto narrado. Seu engajamento no regime é notável, posto que, no pano

63 Não há muitas informações sobre esse personagem. Apesar de ser referenciado por qualquer pesquisador que se demore na análise do Centenário, nenhum deles traz qualquer referência biblio-biográfica sobre Sanchéz. O máximo que encontrei sobre o autor foi uma nota de Landaeta Rosales (1898, p. 15) sobre a guerra civil de 1898, na qual menciona seu nome como um dos generais-de-brigada derrotado nas batalhas daquele ano.

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de fundo dos cenários festivos, Hurtado Sánchez apresentava versões da história nacional que vinculavam persistentemente os governos guzmancistas às guerras de libertação bolivarianas. Tendo em vista a proximidade desses dois autores ao Guzmanato, é prudente creditar alguma suspeição às descrições da comunhão popular e espontânea em seus escritos. Entretanto, isso não implica a obstrução à análise, uma vez que o presente estudo independe das condições de factualidade ou veracidade das obras. Em oposto, é necessária uma suspenção de expectativas para compreender dentro da diegese de cada texto, o que se queria dizer com o que foi dito. Isso porque estão inscritos em linguagens políticas, nos termos de Pocock,

[...] la forma de hablar a la que hacemos referencia no consiste en un mero nombrar cosas, sino en la trasmisión e imposición de una idea muy concreta de lo que debe ser la actividad política en general; es una forma de actuar y de determinar los actos de los demás. […] es importante que podamos hablar, tanto de la “política del lenguaje” (lo que hemos descrito hasta ahora), como del “lenguaje de la política”, reducible a una serie de “idiomas” o “sublinguajes” que pueden coexistir, converger, divergir o entrar en conflicto, y no siempre son traducibles entre sí. (POCOCK, 2011, p. 85)

Mais pertinente que valores de verdade ou falsidade, são as agências de mediação instauradas a partir desses mecanismos, por mais variados que sejam. De maneira que se percebe que os enunciados sobre o ritual — tal qual, o dito e o feito no rito — respondiam a demandas comunicacionais peculiares. Compondo esse raciocínio, cabe insistir na relevância do conceito de Drama Social (TURNER, 2007), tendo em vista a fórmula com a qual encara a festa imersa nos jogos políticos. O ritual, em Turner, não é reduzido à representação dos conflitos ou à correspondência de valores difusos, senão está implicado no esforço coletivo para mitigar divergências estabelecidas. Associando os argumentos de Pocock e de Turner, com intenção de analisar a esfera comunicacional das efemérides, é viável pensar a comemoração na forma de um conjunto de enunciados no seio do debate político. Por esse ângulo, ofertavam espaço para que seus regentes postulassem, segundo seu interesse, saídas às disputas em questão. Ainda que noutro nível comunicacional, as crônicas atuavam de forma análoga: selecionando e manejando colocações com o intuito de acomodar uma explicação crível e orientada para os acontecimentos-cerimoniais. Isto é, podemos considerar esses textos

[...] como um tecido de afirmações, organizadas por seu autor em um único documento, mas acessíveis e inteligíveis, tanto se tiverem como se não tiverem sido harmonizadas em uma única estrutura de significado. A meta do historiador é, agora, o resgate dessas afirmações, o estabelecimento dos padrões de discurso e pensamento que compõem os vários contextos em que elas se tornam inteligíveis e a busca de quaisquer mudanças no emprego normal desses padrões que possam ter ocorrido em resultados das afirmações feitas. (POCOCK, 2003, p. 245)

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Em contrapartida, dispor essas narrativas em paralelo a textos menos entusiasmados com os governos Guzmán Blanco rompe com a ficção de unanimidade ritual. Simultaneamente, essa operação viabiliza a análise do esforço empregado para construir a imagem de coesão, deslocando a espontaneidade que os relatos cerimonias buscavam demonstrar. Isso significa também evidenciar que, enquanto passado, as efemérides tornaram-se campos de disputa mais abertos ao dissenso. Manuel Briceño (1849-1885) foi o crítico mais sistemático da máquina festiva de Guzmán Blanco nos eventos de 1883. Integrante da comissão diplomática da Colômbia para o Centenário, Briceño já marcara anteriormente seu posicionamento avesso ao regime de Guzmán Blanco em persistentes críticas publicadas em periódicos bogotanos. A recíproca era similar, resultando na exclusão do colombiano na recepção presidencial do Centenário (RAMON CASTELLANOS, 1983, t. II, p. 237). Após testemunhar os eventos em Caracas, o periodista sentiu-se compelido a imprimir seu exame sobre os usos da imagem de Bolívar por Guzmán Blanco. De volta a Bogotá, publicou o incendiário panfleto “Los ilustres: paginas para la historia de Venezuela” (1884) no qual produziu uma condenação à biografia política dos Guzmán — Leocadio (pai) e Blanco (filho) — e a sua presunção à autoglorificação, com ênfase no Centenário de Bolívar. O tom fulminante de suas críticas pode ser percebido desde as primeiras páginas:

No se extrañó, pues que el Presidente de Venezuela, General Antonio Guzmán Blanco, se hiciese iniciador de la fiesta con que iba a conmemorar-se el grande acontecimiento, y no se extrañó, á pesar de ser bien conocida en América la incontinencia de mando de aquel General, y de hacer extraño contraste la glorificación de un libertador hecha por un tiranuelo. La grandeza de uno hacía olvidar la pequeñez del otro, y no se veía al que presentaba la ofrenda, sino lo ilustre de aquel á quien se le ofrecía. (BRICEÑO, 1884, p. 3-4).

Polemista versado na linguagem bolivariana, Briceño se mostrou capaz de utiliza- la para discutir os faustos do Centenário, separando o que considerava uma justa homenagem ao Libertador, de seu mal-uso pelo governo Guzmán Blanco. Em seu rechaço ao Ilustre Americano, produziu, também, uma interpretação distinta acerca de alguns eventos, o que demonstra a pluralidade de possibilidades de expressão no corrente idioma. Reconhecer as contendas que mobilizavam os posicionamentos nas — e sobre as — festas é um aspecto basilar de qualquer análise dos rituais políticos. Contudo, essa operação só pode ser realizada concomitantemente se descobre as premissas e o contexto na festa. No caso do Centenário, a disputa central residia no desenho do país que marchava rumo ao progresso. Nessa perspectiva, ao longo das festas, o plano de transformação nacional foi

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retratado em três eixos: a questão regional-nacional; a modernização venezuelana; e o lugar do país na comunidade internacional. O primeiro eixo correspondia às proposições apresentadas para debelar ou mitigar as forças regionais e edificar um Estado nacional. No segundo, tenta-se entender com quais ambições se buscou produzir uma aura de progresso durante o Centenário. Por fim, no último eixo, as arguições recaem sobre a maneira com que a festa oportunizou encontrar lugares possíveis para a Venezuela no mundo. Independente de que sejam separados por esta investigação, no instante da comemoração esses três motes estavam plenamente intercruzados. De forma que não é difícil encontrar aproximações e encadeamentos nos relatos de quaisquer cronistas do Centenário. Portanto, descoser esses fios é apenas um procedimento destinado à compreensão das tramas que enredam o tecido enunciativo.

3.2. DA GUERRA FEDERAL AO CENTENÁRIO DE BOLÍVAR: AS TRAMAS DO PROJETO NACIONAL GUZMANCISTA

O Centenário de Bolívar apresentou à Venezuela o andamento e as projeções dos arranjos entre as elites governantes no âmbito regional e nacional. Esse espectro das comemorações reuniu uma série de interlocuções e eventos comprometidos em demonstrar uma República conectada em seus retalhos e em responder às forças centrífugas que nublavam a conformação do Estado nacional venezuelano. Como espólios do maior conflito da Venezuela independente no século XIX — a Guerra Federal (1859-1863) — as relações entre elites regionais e o governo central penderam, a partir de 1864, para a afirmação das forças locais que sobrepujaram o poder executivo nacional. Durante seus governos, Guzmán Blanco empenhou-se exaustivamente na tentativa de rearticular as forças regionais em favor do planejamento de uma Venezuela moderna. No decurso do Guzmanato, a Venezuela experimentou um momento de estabilização da administração pública que sucedeu os anos de “anarquia” governamental pós- Guerra Federal. A conjuntura pós-crise deu margem ao debate do projeto nacional venezuelano, que incidiu principalmente sobre: 1. A reorganização da composição interna das soberanias, no bojo da questão regional-nacional e 2. O processo de consolidação do Estado moderno nacional. No mesmo teatro social, as festas do Centenário de Bolívar (1883) foram ensejadas na forma de comunicação social das políticas destinadas a evidenciar a regeneración da República. De maneira que, o entendimento das articulações — entre significados e sentidos — internas à

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festividade, perpassa diretamente pela compreensão da escalada do período de crise, ao qual o projeto nacional guzmancista pretendeu finalizar. A dificuldade histórica em estabelecer um programa nacional refletiu-se na instabilidade político-institucional venezuelana. Desde 1811, segundo José Carlos Chiaramonte (2004, p. 72), as reações das elites regionais, ciosas das pretensões hegemônicas do ayuntamiento de Caracas, são um empecilho para a formulação em termos constitucionais de um prospecto de nação. Embora sequentemente pautados no republicanismo constitucional, o período seguinte à independência política da Venezuela (1830-1858) não foi mais que o disfarce da presença do caudillo hegemônico, representante dos interesses da oligarquia caraquenha — seja ele José Antonio Páez ou os irmãos Monagas — na década da autocracia liberal (1848- 1858). Uma sequência de situações, no entanto, reorientou as ações das elites políticas. Em 1857, José Tadeo Monagas (1784-1868), então presidente, vinculado aos liberais, propõe uma reforma à constituição venezuelana, que seguia inalterada desde 1830, entre cujos objetivos encontrava-se a extensão do seu período presidencial por dois anos e a possibilidade de reeleição. A reação do bando conservador foi imediata, contando com a aliança de dissidentes do bando liberal. Em 1858, a Revolução de março derrubou o governo Monagas com forte apoio popular, todavia, logo que se institui o novo governo, encabeçado por Julian Castro (1805-1875), o predomínio dos grupos conservadores veio à tona, incidindo na repressão às aspirações sociais e decretando a expulsão de lideranças populares e liberais da Venezuela — entre essas estão Ezequiel Zamora (1817-1860), Juan Crisóstomo Falcón (1820-1870) e Antonio Guzmán Blanco. O Partido Liberal organizou sua resistência e a guerra civil se instaurava. Levantando a bandeira federalista, Falcón e Zamora organizaram um exército rebelde com forte participação do campesinato. O discurso do chefe das tropas rebeldes da província de Coro, Tirso Salaverria (1821-1901), intitulado “Manifiesto inicial de la Federación” (1859), demonstrava o modo com que o apelo revolucionário podia ser reduzido a oposição às antigas elites. Clamando contra a Revolução de março, que não havia servido a mais que entronar os velhos grupos retrógrados no poder, Salaverria brada pela federação como “el gobierno de todos, [...] el gobierno de los libres,” e concluí “[…] Nuestro programa exclusivo es la Federación de Venezuela; el medio de realizarlo es la unión de todos los venezolanos; y en consecuencia las distintas y odiosas denominaciones de bandos.” (SALAVERRIA apud. VILLANEUVA, 1898, 260-262).

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Miguel Izard, em seu compêndio de História da Venezuela e Colômbia, avalia que muito do vigor militar adquirido pelos federalistas, com adesão dos grupos populares, teve fonte na capacidade de Zamora transferir o seu carisma pessoal para o termo “Federação”. Ademais, a confusão na interpretação do programa federalista deu margem à confluência de vários grupos políticos, já que

[...] este mismo confucionismo ideológico permitió a los federales capitalizar el difuso y vago sentimiento antigubernamental que no había cesado de crecer desde que con la guerra de independencia se había cuestionado la figura situada en la cúspide de la parafernalia monárquica. (IZARD, 1995, p. 175).

A observação do cenário político pós-Guerra, em especial os discursos parlamentares de Antonio Guzmán Blanco (1865) e de seu pai, Antonio Leocadio Guzmán (1867), solidifica a tese de que a Federação foi, ao menos para alguns segmentos liberais, uma bandeira encampada em estrito sentido de oposição ao Partido Conservador (ALVARADO, 2009, p. 603). A plausibilidade dessa conclusão é reiterada pela incapacidade de Falcón em aglutinar as massas à causa da Federação, depois do assassinato de Zamora em 1860. Com a dissolução das forças federalistas, o elemento regional toma assento na pauta da Federação devido às alianças com a caudillaje provincial, que plasmariam seu peso no rearranjo de forças do futuro governo Falcón. Desde a ruptura da ordem colonial, foi só com o fim dos conflitos da Guerra Federal (1863) que se aventou a possibilidade real de se pôr em exercício um projeto nacional na Venezuela. Isso significava um programa compartilhado pela elite nacional e não só para aquela parcela bem-sucedida no combate. Por consequência, a ascensão da causa liberal-democrática, vitoriosa no debate em armas, não desencadeou a aniquilação dos conservadores. Muito pelo contrário. Ao fim do conflito, estabeleceu-se uma paz entre os grupos políticos, sem que houvesse ostracismo ou humilhação dos derrotados. O “Tratado de Coche” (1863) — marcado pelo intuído conciliatório e a habilidade diplomática de Guzmán Blanco — procurou estabelecer um domínio político tolerante por parte dos liberais, sem que se fosse quebrada a organização interna do poder nacional. O preparo da assembleia constituinte, que deveria reestruturar a política nacional, é exemplo do decoro com que os conservadores foram tratados, ainda que a cabeceira do processo estivesse reservada aos liberais:

1ª Se convocará una asamblea para el trigésimo día después de canjeada la ratificación de este convenio, o para antes, si fuere posible reunir el quorum correspondiente. 2ª Esta asamblea constará de ochenta miembros, elegidos la mitad por el Jefe Supremo de la República [Antonio Páez] y la otra mitad por el Presidente Provisional de la Federación [Juan Crisóstomo Falcón]. […]

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5ª Desde los días próximos a la reunión de la asamblea, la ciudad de Valencia no tendrá más guarnición que una pequeña fuerza para cuidar del orden público, la mitad destinada por el Jefe Supremo, la otra mitad por el Presidente Provisional de la Federación. 6ª Cesan completamente las hostilidades y no se puede ordenar ningún movimiento de tropas, ni reclutamientos, ni nada que indique preparativos de guerra. 7ª Así el general Páez como el general Falcón emplearán su respectivo ascendiente en calmar las pasiones agitadas por la guerra y en que la situación que va a sobrevenir sea tan pacífica, libre y durable como lo necesita la patria para reponerse de sus quebrantos. (TRATADO DE COCHE, 1863, p. 150-151)

Por sua vez, a desconfiança nos grupos populares, que almejavam ganhar importância na cena política, acarretou um precavido conjunto de ações dos liberais. As transformações jurídico-sociais promovidas pelo “Decreto de Garantías” de 1863 e pela “Constituição” de 1864, podem ser entendidas na forma de medidas articuladas a uma plataforma liberal-democrática direcionadas a aliviar as agitações sociais e afastar o povo da ação insurrecional. O que Carrera Damas, em sua historiografia social, considerou “[...] la salida de las masas del escenario político, obra de la canalización formal de los [...] conflictos sociales […]” (1983, p. 30), relaciona-se a medidas como: abolição da pena de morte; liberdade de imprensa; estabelecimento de igualdade jurídica; universalização da liberdade com a abolição perpétua da escravidão; configuração do sistema representativo do povo — no sentido de todos os cidadãos do Estado — através do sufrágio universal e, por fim, a declaração de nulidade do poder usurpado pelas armas ou pela reunião subversiva do povo. Ou seja, entre 1863 e 1864, houve um investimento em políticas constitucionais, de bojo federalista, interessadas na pacificação nacional por meio do acordo entre elites e do arrefecimento das demandas populares. Ainda assim, a estabilidade almejada não fora alcançada de imediato. Só depois de meia década da falida experiência federativa de Juan Crisóstomo Falcón (1863-1868) e do breve reestabelecimento da “dinastia republicana” dos Monagas (1868-1870), a Revolução de abril (1870) leva ao poder Antonio Guzmán Blanco, pondo fim definitivo à anarquia política pós-Guerra Federal. O conhecido caudillo de abril, dali em diante, exercera por quase duas décadas a preponderância no alto plano político venezuelano, cujo legado lhe valerá outro marcante cognome: Autocrata Civilizador. Reformulando a política pactualista com os caudillos regionais, na qual fracassara Falcón, Guzmán Blanco deu princípio a um programa de modernização nacional alinhado ao escopo de agregar a Venezuela à ordem capitalista mundial. Em seu primeiro período de governo, o Septenio (1870-1877), foi necessário, sobretudo, reedificar a capacidade produtiva do país, a essa altura desbaratada pelos anos de cruentas guerras civis, e orientá-la a um modelo agroexportador.

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Independente de seus entendimentos sobre o funcionamento interno do aparato governamental, os autores em geral tendem a focalizar seus estudos em análises acerca da lógica que articulou os poderes regionais ao governo central, asseverando sua consciência da importância da questão regional para a compreensão do cenário (CARRERA DAMAS, 1983; FLOYD, 1988; IRIARTE, 2006). Nesse ínterim, atentar para o significado de marcos políticos — a exemplo do programa de centralização da economia e do fisco em marcha a partir de 1870 — é fundamental para sustentar a proposição de que um dos debates políticos capitais ao guzmancismo expressava-se na lida com as centrífugas forças da caudillaje local. Decidido a não repetir o destino de seu antecessor, o Ilustre Americano alicerça a espinha dorsal de sua gestão no combate à desordem administrativa e no restabelecimento da autoridade do executivo nacional. Com o fim da resistência à Revolução de abril (1870), a administração federal institui o respeito às soberanias estaduais em consonância com os interesses dos grupos vitoriosos. Esse discernimento vigorou principalmente em relação a aspectos político-administrativos64. Ao revés, na economia a ação guzmancista assentou-se em disposições centralistas. Desde 1864 a constituição federal estabelecia como compromissos dos estados: o não estabelecimento de aduanas fiscais, sendo esse exercício reservado ao governo nacional; a livre administração sobre seus produtos naturais, dando ênfase às minas e salinas, e o recebimento da renda nacional, excetuando os estados com minas em exploração (VENEZUELA, 1864, p. 8-9). Valendo-se da incapacidade produtiva das economias regionais, desbaratadas pelos anos de contíguas guerras, o Ilustre Americano estabeleceu acordos que vinculavam o financiamento do tesouro nacional, tendo em contrapartida a concessão das explorações de aduanas e minas por parte dos estados e em favor da administração pública (FLOYD, 1988, p. 141-143). Encoberto pelo mote financeiro, acomodava-se um implemento de alianças, por meio do qual pode-se garantir a influência da administração federal sob forças regionais. Para Carrera Damas, nesse arranjo estava subentendido que “[...] no sería necesario lazarse a la aventura de una revolución para participar del Erario; este llegaría a las manos de los caudillos regionales en forma de cuotas anticipadas que nutrirían el sistema local de lealtades” (1983, p. 37).

64 Eram constantes os recursos do governo central à mediação interna dos caudillos na lida dos conflitos regionais, prescrevendo-lhes deliberações pacíficas das disputas dentro de suas esferas de influência. Em outras ocasiões, de cismas mais persistentes, a alternativa foi o despacho de comissionados para interceder nas querelas (FLOYD, 1988, p. 138).

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Na medida em que a “nacionalização” do fisco e da economia se edificava, levantavam-se resistências às composições de poder dos governos de Guzmán Blanco. Dentre os vários momentos em que a aliança do governo com os caudillos foi tensionada, três são exemplares da eficácia e capacidade de reação do Guzmanato: a execução de Matias Salazar em 1872; a rebelião de Coro de 1874, e as reformas territoriais de 1874, 1879 e de 1881. Outrora herói da Federação, Salazar logo se lançou — junto a suas tropas — contra ela, insatisfeito com os rumos da administração liberal. Capturado em 1872 com o fim de sua revolta, foi levado ante um tribunal marcial, sob o comando de Guzmán Blanco e condenado ao fuzilamento. Talvez esse seja o ponto no qual a sobreposição da violência de Estado com legalidade, associada ao Guzmanato (IRIARTE, 2006) tenha maior impacto, pois o episódio violou explicitamente a normatividade constitucional que extinguira a pena de morte. Ao estimular como juízo uma exceção legal, se desvela o caráter autocrático da gestão guzmancista; ao passo em que se demonstra que a influência pessoal do Ilustre Americano fora suficiente para convencer todos os 24 generais, que compunham o tribunal, a eliminar um semelhante por um crime que os mesmos — incluindo o próprio Guzmán Blanco — haviam cometido no passado: alçar-se em armas contra o governo central (FLOYD, 1988, p. 150). Ou seja, a execução foi um ato exemplificante, uma demonstração pública de força política. Pode-se estipular as repercussões desse ato quando em 1874 estoura a rebelião de Coro, o último grande desafio da relação regional-nacional durante o Septenio. Os generais León Colina (1825-1895) e José Ignacio Pulido (1832-1916), até há pouco parte do Estado Maior guzmancista, procuravam um meio de se colocar a cabeceira do processo político, por meio de uma coalizão de caudillos regionais que combatesse o mando centralista e autocrático de Guzmán Blanco. Ao revés das expectativas dos revoltosos, os demais caciques locais organizaram-se a fim de suprimir o levante antes que ele pudesse ganhar proporções nacionais, alinhando suas tropas prontamente ao comando do presidente da República (FLOYD, 1988, p. 153). De ambas as situações, o Ilustre Americano sai fortalecido, podendo regozijar-se de não ter sido atacado por deserções ou traições do generalato da federação. O desfecho desses episódios elucida sua alternativa em não “declarar guerra” ao caudillismo. Afinal, seu exercício de poder só foi possível devido a uma, muito bem articulada, rede diplomática que dispôs as lideranças regionais a seu serviço. O resultado dessa articulação regional-nacional foi uma situação de tranquilidade institucional: ainda que a intervenção militar do governo central aparecesse enquanto possibilidade, “[...] en ninguna ocasión durante el Septenio las fuerzas

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armadas mantenidas a expensas del Gobierno Nacional enfrentaron las fuerzas de de algún caudillo para decidir asuntos internos de la región.” (FLOYD, 1988, p. 138) A estabilidade política permitiu que se alocassem esforços em outras frentes. Por exemplo: a reforma constitucional de 1874, que além de estender o mandato do governo em curso, preocupou-se com a manutenção da harmonia social ao pautar a questão sucessória. Estabeleceu-se, a partir de então, um período presidencial de dois anos e proibiu-se a reeleição, projetando uma maior rotatividade entre as lideranças locais no poder executivo federal. Outro ditame em relação à nova constituição, a renomeação de alguns estados participou de uma sequência de transformações nas estruturas administrativas venezuelanas ensejadas pelo Guzmanato a fim de solapar o poder dos caudillos regionais. A priori, como uma medida de cunho ideológico no sentido clássico — ilustrando a capacidade egolatra do Autocrata civilizador — os estados de Barinas, Coro, Caracas, Mérida, Aragua e Margarita passam a se chamar, respectivamente, Zamora, Falcón, Bolívar, Guzmán, Guzmán Blanco e Nueva Esparta, em alusão ao panteão de heróis do Partido Liberal (Quadro 4). Passado o curto governo Linares Alcántara, a Revolução Reivindicadora (1879) acarretou na volta do Ilustre Americano, nomeando-o Director Supremo de Venezuela. Iniciou- se o período do Quinquenio (1879-1884) e logo no congresso de plenipotenciários, convocado para garantir a “legalidade” de seu novo governo, Guzmán buscou organizar militarmente o território nacional em cinco distritos sob o comando de seus generais mais leais (ARTIGAS DUGARTE; BRIZUELA, 2004, p. 16-17; LOPEZ; SANCHEZ, 1988, p. 79-80) (Quadro 5). Por fim, o projeto da redução da quantidade de estados, já pleiteado em 1879, é ratificado pela Constituição de 1881. Com a escusa de fortalecer as autonomias locais, Guzmán conseguiu diminuir substancialmente a quantidade de caudillos com os quais precisava negociar. Na carta, as 20 entidades federais foram agrupadas em oito grandes estados (Quadro 4), embora persistissem como unidades administrativas menores, chamadas de secções. Em teoria, houve uma simplificação da relação entre os elementos regionais e a força centralizadora do Guzmanato. Segundo Isaac López:

La creación de grandes estados por parte del Guzmancismo no pretendió consolidar la vocación autónoma de las regiones, ni fortalecer sus planteamientos de independencia frente a las regulaciones del poder central. Al contrario, nos atrevemos a plantear que la unión de los estados no surgió desde las entidades ―aunque en la época así se publicitó―, sino que fue parte del proyecto de Guzmán Blanco para debilitar los liderazgos regionales, y consolidando la tendencia centralista, fortificar aún más su prestigio y autoridad. (2004, p. 90)

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Quadro 4: Transformações territoriais dos estados pós-Guerra Federal Constituição 1864 1874 1881 Barcelona Barcelona Cumaná Cumaná Estado de Oriente ou Bermúdez Maturín Maturín

Caracas Bolívar Aragua Guzmán Blanco (Gran) Estado Guzmán Blanco Guárico Guárico Margarita Nueva Esparta Cojedes Cojedes Portuguesa Portuguesa Estado Sur de Occidente ou Zamora Barinas Zamora Barquisimeto Barquisimeto Estado Norte de Occidente ou Lara Yaracuy Yaracuy Nomenclatura dos estados Mérida Guzmán Trujillo Trujillo Estado Los Andes Táchira Táchira Apure Apure (Gran) Estado Bolívar Guayana Guayana Maracaibo/Zulia65 Zulia Estado Zulia-Falcón66 Coro Falcón Carabobo Carabobo Estado Carabobo67

Quadro 5: Reformas da organização militar venezuelana em 1879 Estados em 1874 Distritos militares em 1879 Guzmán Trujillo Distrito Militar de Los Andes: Comandado por Juan Bautista Araujo Táchira Bolívar Guzmán Blanco Distrito Militar del Centro: Comandado por Joaquín Crepo Guárico Apure Carabobo Cojedes Distrito Militar Sur de Occidente: Comandado por Gregorio Cedeño Portuguesa Zamora Barcelona Cumaná Maturín Distrito Militar de Oriente: Comandado por José Eusebio Acosta Nueva Esparta

Distribuição do comando militar Guayana Zulia Falcón Distrito Militar Norte de Occidente: Comandado por Jacinto Lara Barquisimeto Yaracuy

65 Ao fim de 1864, a legislatura estadual decide mudar o nome do estado de Maracaibo para estado de Zulia. Ver: ZULIA, Constitución. Constitución del Estado Federal del Zulia. Maracaibo: Imprenta de “El Farol del Zulia”, 1864. 66 União só efetivada em 22 de maio de 1883. 67 O estado de Carabobo anexou a secção de Nirgua, anteriormente pertencente ao estado de Yaracuy.

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O projeto guzmancista não segue sem resistência. Em 1882, o governo debelou, entre outros movimentos, a rebelião do General Eleazar Urdaneta (1839-1911) — exemplar típico da caudillaje regional. No ano seguinte, o debate político sobre a questão regional e o centralismo — seja em armas, em imprensa, ou no congresso — segue em pauta. Em meio ao turbilhão das contendas, a efeméride do Centenário de Simon Bolívar proporciona ao Guzmanato uma oportunidade de legitimar sua tentativa de resolução para o drama social instaurado.

3.2.1. Atos da convergência ritual: Venezuela em seus fragmentos

Uma vez que foram utilizadas para apresentar desfechos sobre a questão regional- nacional, as festas do Centenário estiveram comprometidas com falas e atos que enunciavam a superação das disputas entre os grupos políticos com assento em Caracas e as elites dos estados da federação. Imerso na eficácia ilocutória da linguagem bolivariana e de seu sistema comunicacional simbólico, o agenciamento desses eventos conduziu a difusão da reprovação à sedição regional, do respeito às decisões do governo federal e da reprodução de uma ação política com enfoques nacionais. Todavia, é importante ressaltar que o ritual se limitava à condenação das práticas de assalto ao poder central, sem enredar-se num combate ou num antagonismo a caudillaje em sua essência. Elaborada pela Junta Directiva del Centenário, a programação festiva contemplou alguns arranjos entre poderes locais e nacionais do pós-Guerra Federal. Essa dinâmica conformou-se em duas perspectivas: a tentativa de guiar a ação simbólica nos estados por meio da reprodução do programa festivo de Caracas e, simultaneamente, a incorporação de elementos regionais ao rito nacional. A análise de festejos periféricos provoca um olhar mais enfático sobre o funcionamento da hierarquia celebrada. As narrativas de “Recuerdos del centenario del Libertador en Puerto-Cabello” (1883), por exemplo, evidenciam diretrizes de memória que cidades menores recebiam de seus centros regionais e da capital federal. Localizada no litoral do estado de Carabobo, Puerto Cabello destacava-se pelo papel portuário e comercial em nível nacional. Apesar de sua pujança econômica, a cidade estava submetida ao comando de Valência, capital estadual e segundo maior núcleo urbano do país. Essa resignação é percebida na preparação do Centenário no estado. Em 1881, o presidente

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estadual Hermojenes López publicou dois decretos com o propósito de organizar as celebrações em Carabobo. Nas crônicas de Puerto Cabello, essas sentenças conformavam os princípios da perfórmance pública na cidade. A primeira convocava a população de Carabobo a integrar-se às celebrações:

Estas son las fiestas del patriotismo, y todos, sin distinción deben tomar parte en su solemnidad para que sean dignas del pueblo que redimió, de la memoria en cuyo honor se celebran, como del Ilustre Jefe del País, que celoso de la honra de su Patria, dictó el Decreto de 3 de Setiembre de 1881, excitando á la celebración del día de mañana, como el día Nacional para tributar en aras de la Patria el debido homenaje de respeto y de verdadera admiración al LIBERTADOR SIMÓN BOLÍVAR. (LÓPEZ apud. RECUERDOS …, 1883, p. 18)

O segundo texto, um decreto de âmbito administrativo, estimulava os chefes municipais a prepararem as festas em suas localidades conforme a programação estabelecida na capital estadual. López tentou conferir uma harmonia aos eventos municipais, visto que tudo deveria estar em concordância ao rito de Valência: fechamentos de estabelecimentos comerciais, missas, te deums, disparo de fogos artificiais, salvas de artilharia, apoteoses do Libertador, procissões, etc. (LÓPEZ apud. RECUERDOS, 1883, p. 19). Esse direcionamento afirmou-se na narrativa por meio da seguinte lógica

[…] como todos los actos con que los pueblos de Venezuela han celebrado el primer natalicio de nuestro libertador, emanan del decreto expedido por el Ilustre Americano, General Guzmán Blanco, Presidente de la República, el 3 de Setiembre de 1881, esta Municipalidad presenta sus felicitaciones al Supremo Magistrado, por el buen suceso de su feliz idea. (RECUERDOS …, 1883, p. 15)

Mesmo que os festejos tenham seguido o planejamento do chefe estadual, a crônica não se esqueceu de referenciar as ordens do Ilustre Americano. Quiçá, essa escolha se deva à influência do chefe municipal portenho, o general Joaquín Berrío, que enviou uma cópia do relato com a dedicatória “de su afmo. [afectísimo] amigo” a Leocadio Guzmán, pai do presidente Guzmán Blanco e chefe da Junta Directiva das festas de Caracas. Na ação de Berrío existiu uma espécie de diplomacia interurbana, na qual consagrar a festa ao presidente denotava uma expectativa de retribuição ao poder federal. Desse modo, o prestígio da liderança regional estaria eclipsado pela proeminência de um centro nacional. De Caracas emanava a autoridade de um caudillo hegemônico, cuja conduta pacificara a Venezuela depois do maior conflito civil de sua história, a Guerra Federal. Entretanto, não há por que imaginar que todo ritual seguia estritamente o protocolo de Caracas. No percurso entre a sugestão da Junta Directiva e o acatamento municipal havia uma série de filtros, modificações, acomodações e indeferimentos que não devem ser

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esquecidos. Entre os quais, muitos eram determinados pelas próprias administrações estaduais, seccionais e municipais. Nos relatos festivos de Puerto Cabello, o fato de os cronistas descreverem uma paisagem devota às autoridades de Valência e Caracas, remete muito mais a uma declaração de adesão e lealdade ao regime que a uma comparação factual dos eventos com as ordens superiores. O Centenário constituiu uma hierarquia na qual as instruções da Junta Directiva sobre as festas de Caracas foram recebidas e selecionadas pelos interesses das lideranças regionais em Carabobo e reimpressas nos itinerários das comemorações municipais, incluindo o roteiro de Puerto-Cabello. Isto é, ao alocar caudillos do quilate de Hermójenes López e de Joaquin Berríos a serviço do executivo nacional, a organização ritual refletia a centralização do poder político, esquematizada por Guzmán Blanco. A descrição de uma hierarquia nacional dos atos públicos esboçava a integração do país conforme a Constituição de 1881. Por meio do compartilhamento performático se delineava unidade, ao mesmo tempo em que expressavam parâmetros de núcleos urbanos sobre determinada região: Caracas no âmbito nacional e Valência quanto ao estado de Carabobo. Na outra face dessa dinâmica, os governos seccionais e estaduais foram convocados, por decreto presidencial, a enviar seus representantes para ratificar a centralidade dos eventos de Caracas. Segundo a descrição de Ernest (1884, t. I, p. 11), esses delegados colaboravam essencialmente em dois aspectos: dar feição à participação regional nos enunciados apresentados por meio da efeméride e eleger os objetos que se apresentariam na exposição nacional (ERNST, 1884, t. II, p. 64-65). Desde o planejamento até a execução da feira, os rasgos territoriais venezuelanos foram tratados segundo a estrutura da Constituição de 1881 (Quadro 4). A título de exemplo, o estado de Bermudéz apresentou sua produção e história a partir da triagem dos delegados de suas secções — Gúzman, Táchira e Trujillo. O mesmo aconteceu com os demais sete estados da federação (ERNST, 1884, t. I, p. 12-13). Em suma, no espetáculo articulou-se um país amarrado em seus recortes, sem pretensões de um Estado unitário, mas coeso e pacificado em suas entidades internas. Entre 02 de agosto e 04 de setembro, a Exposición Nacional tratou de apresentar produtos de todas as regiões venezuelanas em oito subdivisões: produtos naturais e agrícolas; máquinas e utensílios; produtos industriais; belas artes; publicações oficiais; pertences do Libertador; animais; e horticultura e floricultura (RAMON CASTELLANOS, 1983, t. II, p. 101). A composição possibilitou aos venezuelanos conhecer a Venezuela, organizada por meio

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das categorias de secções e de estados, enfatizando uma nação unificada pelo apreço com o qual se exibia sua prosperidade. No relato de Hurtado Sánchez, a circunstância do evento refletia sua prerrogativa em demonstrar ao público a unidade por meio da produção nacional: “[...] por eso reserva para lo último su Exposición Nacional, para que sin otra cosa que llame la atención puedan medir el caudal de su riqueza territorial”. Sua narrativa demonstrou os resultados da organização e da exploração da riqueza pátria, que haveriam de desembocar na “[...] segunda centúria que habrá de consegrarle en épocas que serán más felices y prosperas para su conmemoración.” (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 97-98). Mesmo que partilhasse da concepção do evento segundo o argumento da prosperidade nacional, Ernst aferiu outra função da feira:

[…] así Venezuela había de ofrendar al que le sacrificó cuanto tenía y cuanto era, todo su progreso material é intelectual: los tesoros de su rico suelo, las cosechas de sus fértiles campiñas, cuantos adelantos tuviera en los diversos ramos de la industria humana, las obras de sus pensadores, artistas y hombres de estado: todo, todo lo había de traer al ara de su gratitud hacia el Padre de la Patria! (ERNST, 1884, t. I, p. 10)

Enquanto Hurtado Sánchez delineou que o orgulho das riquezas territoriais foi fator para a unidade patriótica apresentada na feira, Ernst considerou o passado enquanto fator da coesão presentificada, alegando que sua construção histórica advinha da libertação das Américas. Antes de antagônicas, ambas as explicações fomentavam a descrição do governo Guzmán Blanco como ponte entre o passado bolivariano e o progresso. Destinarei um tópico para pormenorizar esse assunto. Por ora basta ter em mente o cariz teleológico com que a integração nacional foi pautada nos relatos festivos. Numa articulação similar, o programa da exposição nacional demandou dois tipos de oferendas dos estados: estátuas ou bustos dos Libertadores que nasceram em seus respectivos territórios e livros que compilassem o avanço intelectual e material de suas regiões para composição de uma biblioteca da exposição (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 15). A Junta Directiva empenhou-se em articular elementos regionais num plano histórico. Se por um lado os estados integravam um mesmo passado ao compartilhar a gesta libertadora por meio de memórias de seus heróis, por outro se reencontravam na vivência do progresso e na expectativa de porvir comum. A presunção de Caracas na figura de um território alheio aos conflitos da caudillaje também tangenciou o debate da questão regional-nacional. Ao reafirmar uma vinculação com o Libertador, ícone nacional acima das disputas políticas, as comemorações imprimiram sobre

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a capital uma aura de inviolabilidade. Os arranjos da Junta Directiva fixaram simbolicamente a cidade numa categoria de inviável à conquista dos caudillos regionais, garantido ao poder político central uma similar posição de inatingibilidade por querelas locais. Em nível de crônicas, Hurtado Sánchez estendeu historicidade ao argumento. Narrando a epopeia bolivariana, caracterizou Bolívar enquanto sacerdote da religião cívica, na qual “[...] dios es el sol de la Libertad, su templo la América, su altar Venezuela, Caracas su santuario”. Por dar lugar ao nascimento do profeta da libertação, a cidade participara de sua consagração, assumindo o papel de berço — também — da pátria e de sua independência (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 7). A prática da sacralização, comum à retórica bolivariana, envolveu e simplificou a essência em seu enunciado: a pátria — tal qual Bolívar — emanava de Caracas; consequentemente, esse solo sagrado deveria permanecer incólume ante o cotidiano fratricida de seus herdeiros. O autor concluiu o arco temporal de Caracas naturalizando sua posição conforme o relato dos preparativos do Centenário:

[…] La patria e sus hijos se atavían para el centenario, y tú, Caracas! tú vas á estar de gala, vas á presenciar una de tus más bellas transformaciones, vas á convertirte en más que su Cuna, en el Santuario que ha de encerrar todas las grandes reliquias del patriotismo; en ese tu Templo de glorias se van á ofrendar todos los presentes de gratitud de los pueblos que libertó tu hijo, y los de la admiración que las naciones amigas profesan al fundador de tu grandeza; debes estar orgullosa, pues vas a llenar uno de tus más grandes deberes!! (HURTADO SANCHÉZ, 1883, p. 19)

Para Reinaldo Rojas, estudioso das relações entre festas e imaginário político venezuelano, o Centenário foi responsável por dar dimensão de rito à identificação de Caracas com o novo poder federal (ROJAS, 2011, p. 167). A linguagem bolivariana foi fundamental nesse processo, pois associava valores do herói à sua terra natal, agregando importância republicana a um espaço cujo destaque provinha da herança do domínio espanhol. A Junta Directiva e as narrativas festivas trataram de divorciar a proeminência da capital de uma suposta herança colonial — conjunto de ações políticas cuja preservação creditavam aos caudillos regionais e aos governos conservadores. No tempo extraordinário da festa, passado e futuro convergiam, criando instantes de eternidade. Assim, mediado pelo ritual, ensaiou-se a permanência atemporal do realce caraquenho no cenário venezuelano. A saber, a modernização urbana foi uma estratégia enredada nas festas para proporcionar uma imagem de metrópole à cidade, colocando-a à dianteira dos espaços regionais, segundo a lógica do progresso. A ênfase das narrativas festivas sobre as inovações da capital, por um lado, marcava incompatibilidade espacial com as práticas da caudillaje e, por outro, testemunhava uma inovação de hábitos e costumes.

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3.2.2. A Caracas moderna e o profeta do progresso

Na esteira da superação das crises decorrentes da Guerra Federal, a capital ainda apresentava poucas mudanças físicas e populacionais em relação aos tempos da independência. Ao mesmo tempo, experimentava alguns aspectos da modernidade e o interesse em vincular-se ao mercado capitalista. Naquela conjuntura, o alcance do mando caraquenho não extrapolava, de forma consistente, suas vizinhanças. Essa circunscrição esteve relacionada à progressiva reorganização institucional do pós-guerra civil. Movimento esse justificado, segundo Carrera Damas, por meio do discurso federativo de uma nova elite governante assentada no tradicional eixo econômico Caracas-Valência (CARRERA DAMAS, 1983, p.36). O que significava a manutenção de um espaço de poder de menos de 168 km de diâmetro, à cabeceira de um país cuja extensão ultrapassava 900 mil quilômetros quadrados. A concentração demográfica também parecia asfixiar Caracas diante do restante do território. Segundo documentos catalogados por Antonio de Lisio, no censo de 1807 — último antes das independências — a cidade possuía 47.228 habitantes, enquanto a Venezuela contava com 975.972. Em seu turno, o censo de 1881 apresentou a cidade na marca dos 55.638 habitantes, enquanto o país possuía 2.222.578 (DE LISIO, 2001, p. 218). Ou seja, no intervalo em que a população nacional mais que duplicou, a cidade cresceu pouco mais de 10%. Os rasgos arquitetônicos tampouco sofreram grandes modificações desde a época das independências. Em 1881, a cidade contava apenas com 20 ruas no sentido Norte-Sul e 18 no sentido Leste-Oeste; 42 prédios públicos; 07 cemitérios, 15 praças e 14 pontes (RAMON CASTELLANOS, 1983, t. I, p. 35-37). Permanências de relações sociais também marcaram a vida urbana, a exemplo do acordo de grupos governantes em torno de políticas personalistas e o caráter determinante sobre costumes do país, que denotavam o porquê de esse núcleo urbano ser cobiçado por todo aquele que propusesse um assalto ao poder. As dinâmicas dos governos Guzmán Blanco enfrentaram o encargo de atrelar o desenho de novo Estado nacional à tradição centralista de uma urbe marcada pelo tradicionalismo. Isto é, diante das forças centrífugas que ameaçavam implodir o país, transformar Caracas em teatro de novos tempos mostrou-se uma imperativa expressão de fôlego do novo regime. Para além da supracitada identificação com a memória bolivariana, a modernização urbana foi um expediente fundamental dessa distinção. Referendando esse propósito, os organizadores do Centenário ressaltaram a eficácia e o sucesso do regime liberal na administração pública por meio da prosperidade material.

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Mesmo antes de 1883, Guzmán Blanco e seu séquito já empreendiam uma política de memória centrada na relação entre Caracas, o culto heroico e o progresso. Pedro Cazaldilla (1999, p. 129) demostra que as festas bolivarianas do primeiro governo Guzmán Blanco (1870- 1877) possuíam atributos de instrumento pedagógico. Em meio à ritualização, os grupos articuladores evidenciavam, para a população em geral, os avanços que a sociedade sofrera sob a política de ordem moral e civilização (1999, p. 118). Guzmán Blanco tentara imprimir sobre Caracas uma imagem de metrópole moderna68, porém, em nenhum outro evento foi tão eficaz quanto nas celebrações do Centenário. As transformações apresentadas nas festividades cumpriram o objetivo de prover lógica ao progresso experimentado e esperado. Todos os episódios comungaram da celebração à memória bolivariana. Profeta ou iniciador de um projeto que só pudera ser finalizado nas circunstâncias do Guzmanato, essa imagem foi referendada por Hurtado Sánchez, quando indicou que Guzmán Blanco fora capaz de realizar o progresso que Bolívar desejou para sua pátria:

Pasemos ahora á describir las Grandes Fiestas que nos hemos propuesto, cuyas glorias de haberlas efectuado estaban reservadas á Guzmán Blanco, á ese Hombre Ilustre con cuyo gobierno laza á la Patria por los vastos horizontes del progreso; de aquel progreso que anheló para ella su mismo Libertador y que hoy empieza por fin a la Patria á disfrutar. [...] El ha sabido medir la magnitud del Héroe que las ha motivado y su alta transcendencia, y por eso no ha omitido sacrificio alguno para que la Patria en su actual gobierno se mostrase digna de su Libertador y del Pueblo que libertó. (1883, p. 15).

Impressiona a capacidade de retroprojetar as demandas do presente sobre o mito de origem nacional. Essa retificação da história enfatizou as dificuldades da questão modernizadora, uma vez que desqualificava as respostas de todos os sucessores de Bolívar, exceto Guzmán Blanco. Com intenção de perpetuar a imagem das festas em dimensões de tempo e espaço, as crônicas transpuseram a relação entre a Caracas e o progresso para o resto do país e estabeleceram no Guzmanato um marco histórico do desenvolvimento venezuelano. Basta um breve olhar sobre o calendário oficial para compreender que muitos dos acontecimentos dizem mais sobre a revitalização da capital que sobre o Libertador, ainda que sempre o reivindiquem seu legado (Quadro 3). Dos dez dias de festa do Centenário, ao menos seis deram espaço à exaltação de novidades no cenário urbano e da vida intelectual. Para fins de análise, pode-se articular as celebrações do progresso e da civilização em três grandes

68 Argumento respaldado nas acepções de Ramon Castellanos (1983, p.48), Rojas (2011, p. 168) e o próprio Cazaldilla (1999, p. 129); consolidam o debate acerca do tema.

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tópicos: os incrementos tecnológicos urbanos; o progresso científico; e a reforma arquitetônica. A partir do exame dessas categorias é possível refletir sobre a postura que na festa buscou-se promover quanto à modificação da paisagem urbana. No que tange à aquisição de tecnologias urbanas, destacavam-se os episódios da instalação da iluminação elétrica pública e da abertura da primeira central telefônica do país. Entretanto, o acontecimento proeminente do conjunto se deu na inauguração do Ferrocarril Caracas-La Guaira. Não só pela construção ter prestado um testemunho concreto do progresso técnico — executada por uma companhia inglesa, a ferrovia literalmente atravessava os Andes ligando Caracas ao litoral — mas também em razão de que essa via de escape portuária possibilitou a integração definitiva da terra natal do Libertador à economia mundial, conforme o ritmo do capital. Segundo a descrição de Hurtado Sánchez:

Una numerosa concurrencia acudo pues, ansiosa y desde la una del día fijado para la llegada de los trenos, y toma posesión de la Estación, sus anchas avenidas y de todas las alturas y colinas inmediatas á ella. Aquello presentaba un espectáculo grandioso y se hubiera creído que aun estábamos en vida del Libertador y que aquel era, aquel mismo pueblo que presuroso volaba á su encuentro para traerlo en triunfo hasta su casa; en efecto, allí no venía él en persona, pero se había llevado á cabo una de las más grandes ideas del progreso que tanto deseaba para su amada Patria, y nos traía con olla el recuerdo de su memoria siempre querida para sus hijos. Miles de espectadores se hallaban ya congregados en todos aquellos lugares, y las miradas y los pensamientos de todos ellos so fijan con interés en las últimas vueltas de la línea que mueren en la Estación; cada cual es un espía que atisba silencioso la columna de humo que, debe anunciarlo, ó presta atento oído al ruido sordo y continuado que produce el tren al rodar sobre los rails. Por fin un movimiento simultáneo efectuado en todas aquellas masas, y un sonido agudo y estridente producido por el silvato de la locomotora, fueron el indicio seguro que vino anunciarnos que ya Caracas y La Guaira eran una, misma Ciudad y quedaban convertidos en un mismo pueblo! quedaban enlazados por una cinta de acero! Un viva Guzmán! viva el Progreso! se escapó do los labios de algunas personas, pero el más solemne grito vibró en el corazón ahogándose con los arrebatos de la admiración que se tornan en el silencio de la elocuencia. (HURTADO SANCHEZ, 1883, p. 21)

A predição ou ressureição de Bolívar foram reiterações constantes no texto de Hurtado Sánchez, tratando de presentificar a figura heroica nos espaços que, caso ausentes de sua narrativa, provavelmente estariam menos associados ao passado. Os relatos, portanto, complementavam o ritual, trazendo elementos que solidificassem seus argumentos na perspectiva daqueles que organizavam a celebração. Vale ressaltar que as crônicas integraram o debate intelectual do Guzmanato, uma vez que suas posturas fossem referendadas pela subvenção e pela publicação por ordem do governo de Guzmán Blanco. A inauguração do Ferrocarril em si celebrou o progresso material, mas, segundo as crônicas, evocou a memória bolivariana que desde os inícios dos tempos impulsionava o adianto da pátria.

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Por sua vez, o avanço científico figurou em eventos como a Instalação da correspondiente de la Real Academia Española de Lenguas, o incremento editorial com a publicação de mais de 180 livros e a homenagem a José Maria Vargas (1786-1854), ícone do fomento ao ensino superior venezuelano. Nesse conjunto, faz-se necessário ressaltar o viés modernizador da exposição do Centenário. Adolf Ernst demostrou os significados que atribuía à feira, ao afirmar que

Las Exposiciones, sean nacionales ó internacionales, industriales, artísticas ó científicas, son manifestaciones significativas del progreso moderno, y como tales, pertenecen casi todas á la segunda mitad de nuestro siglo. […] Era pues natural que también en este sentido el país diera una prueba del sorprendente progreso que caracteriza las épocas presidenciales del General Guzmán Blanco, y que después de haber aparecido como partícipe en varios de los grandes certámenes industriales en ambos continentes, viese realizado en su capital un torneo del progreso semejante á aquellos, aunque circunscrito á las producciones del propio suelo y á las obras de sus propios hijos. (ERNST, 1884, t. I, p. 8)

No argumento do catedrático, a participação da Venezuela em certames internacionais asseverou o ensaio do país para ingressar no hall das nações modernas, conforme demonstrou com seu empenho em evidenciar todos os 183 prémios conquistados pelo país em feiras universais (ERNST, 1884, t. II, p. 59-60). Doutro modo, ao produzir uma exposição, ainda que limitada ao âmbito nacional, consolidava seu status de espaço civilizado. Consequentemente, Ernst atrelou o evento ao evidenciar do progresso pátrio no único palco adequado a sua recepção: a capital federal. Quanto à renovação arquitetônica, observou-se um conjunto de inaugurações de edifícios que transformou o semblante urbano caraquenho: o Palácio da exposição e o reformado teatro Guzmán Blanco, com seus estilos neoclássico, além da Santa Capilla de estilo neogótico, legaram ares cosmopolitas ao centro cívico, em oposição à imagem barroca que caracterizara a cidade até então. Em detalhe, a capela surpreendeu pela velocidade da construção, finalizada em 90 dias, e pela significação que operou na conversão da paisagem citadina. Sobre a edificação, o relato da comissão diplomática boliviana asseverou que:

Caracas, como todas las ciudades de origen español, posee muchos templos antiguos de pésimo gusto arquitectónico, y de muros en decadencia que revelan poca pasión de sus moradores para conservar obras que no darían crédito á nuestros antepasados […]. A uno de aquellos pertenecía sin duda el antiguo templo de San Mauricio, situado en el centro de la ciudad, y cuya permanencia si no era, dicen, una vergüenza del arte, era un estorbo á obras modernas o de mejor gusto. Comprendiendo esto, resolvió el actual Gobierno de la República que se demoliese el edificio antiguo y se sustituyese por otro, que fuera una digna ofrenda á la divinidad y á la vez una muestra del buen gusto moderno, como imitación de los antiguos clásicos en su género. (COMISIÓN DE BOLÍVIA, 1883, p. 85)

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A inauguração do templo serviu de marco temporal, reafirmando a existência de duas cidades. A Caracas da igreja de San Mauricio era memória do período colonial, lembrança de um domínio que enriquecia a Espanha e destinava migalhas à Venezuela. Por outro lado, a Santa Capilla instaurava o novo, em consonância com o tempo que as elites governantes almejavam para o país. A Junta Directiva impôs um exercício similar à memória nacional, ao renarrar a história a partir de Bolívar, demolindo tudo que, em sua perspectiva, poderia ser considerado retrógrado. Segundo Mona Ozouf (1976), estudiosa das relações entre ritual e sociedade, a festa nacional é um fenômeno que tende a imaginar/inventar uma narrativa única entre o passado celebrado e o presente celebrante, instrumentalizando o primeiro em função do segundo. Se pudermos encarar o Centenário de Bolívar segundo essa disposição, é possível compreender por que suas crônicas se empenharam em articular a imagem do Libertador com o presente vivenciado. Mais que meras inovações, as transformações urbanas fornecem sentido e finalidade à história teleológica que une Bolívar e seu futuro. A Guerra Federal e os conflitos dela derivados deixaram um campo em aberto sobre o alcance da instância caraquenha de poder. A superação desse quadro demandou um reordenamento capaz de reestabelecer na capital uma referência nacional, distinguindo-a do ambiente regional em seu entorno. Agenciando uma convergência simbólica, a organização do Centenário — nas figuras, principalmente, daqueles que compunham a Junta Directiva e do presidente Guzmán Blanco — escolheu afirmar a cidade sob o epíteto de cuna del Libertador, ou de sua metonímia ritual, cuna de la libertad, matizando diferenças com a manutenção dos contornos da Caracas colonial, atribuída aos antecessores governos do Partido Conservador. Para reunir o país em torno da urbe, que abrigava o poder de Guzmán Blanco, foi imperativo dar-lhe feições que permitissem identificar o afastamento da herança pré- independência e do conservadorismo. Ao mobilizar energias políticas desde a ascensão do Guzmanato (1870), os posicionamentos de atores políticos sobre modernização urbana dirigiram uma faceta dessa distinção, indicando caminhos para a cidade transformar-se em metrópole e projetando seu futuro no horizonte do progresso material. Não foi à toa, portanto, que no Centenário a veracidade desse percurso foi corroborada por meio de vaticínios e desejos atribuídos ao Libertador. Por meio das crônicas, o passado bolivariano, incontínuo no interregno de 1830 a 1870, foi atrelado às práticas de renovação citadina, numa simbiose ritual entre encanto da memória heroica e o desejo pelo progresso.

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3.2.3. Modernidade ocidental, pan-americanismo e hispanismo: relações internacionais traçadas sob a imagem do Libertador

O espetáculo do Centenário não se destinou exclusivamente à população venezuelana. Espectadores externos, os governos das nações amigas foram convidados a tomar parte nas celebrações. Iturrieta, ao buscar entender o processo de divinização do Libertador no cerimonial, aponta que além dos emissários de nações ibero-americanas, participaram das festas em Caracas “[...] enviados diplomáticos de [...] Estados Unidos de América, Gran Bretanha, Bélgica, España, Alemania, Portugal y Grecia. No estamos frente a un anuncio doméstico sino ante una proclamación urbi et orbi.” (2003, p. 51). No esboço de nação liberal do Guzmanato estava implícita a integração do país ao sistema capitalista global. Ao tratar a resolução dos conflitos nacionais numa cerimônia orquestrada pelos preceitos de paz, ordem e progresso, a Venezuela foi apresentada enquanto espaço seguro para o investimento de nações industrializadas, dizendo ao globo: “[…] apenas ha cortos años que soy libre y soberana y ya quiero poseer todas las adquisiciones de vuestra civilizada y prolongada existencia; apenas he descansado un momento de las fatigas de la guerra civil y ya me siento llena de vida y de vigor” (HURTADO SANCHEZ, 1883, p. 61-62). A divulgação do espetáculo que a Venezuela moderna preparava para 1883 rodou o planeta com o auxílio da máquina diplomática nacional. Um ano antes, em 27 de julho de 1882, Antonio Leocadio Guzmán — na posição de presidente da Junta Directiva — remeteu uma circular a todos os cônsules e agentes comerciais venezuelanos, estimulando-os a contatar os governos e administrações de suas respectivas jurisdições, a fim de que prestassem alguma forma de oferenda aos cem anos de Bolívar (LEOCADIO GUZMAN, 1882a, p. 247-248). É dedutivo que a ação diplomática surtiu efeito ao incitar estrangeiros a apresentarem suas produções na exposição nacional, ao ponto de que, em 19 de dezembro do mesmo ano, Leocadio Guzmán enviou uma nova circular instruindo os diplomatas a relatarem os objetos e as pessoas que tinham interesse em participar do certame (LEOCADIO GUZMAN, 1882b, p. 302-303). Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda, Inglaterra, Suíça e EUA responderam a convocatória enviando seções de produtos nacionais. Tamanho foi o entusiasmo que devido ao quantitativo de tributos expedidos, os dois últimos receberam — cada qual — o mesmo espaço que fora destinado a um estado da federação (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 105, 107, 98). As relações exteriores da Venezuela também estiveram no foco doutro evento. A inauguração da estátua em homenagem a George Washington, em Caracas, tratou de enunciar

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laços entre as origens de EUA e Venezuela. O relato de Hurtado Sánchez fiou-se na lógica de que, se ambas as independências tiveram uma origem comum, estariam necessariamente implicadas com as mesmas potencialidades:

La plaza de Santa Teresa es hoy el campo de batalla de la diplomacia y simpatía nacional; en ella van á estrecharse hoy en fraternal abrazo dos naciones, ambas cuna de la Libertad y cuna de los Héroes que la fundaron. La una es gigante en sus leyes y en su inmenso territorio; la otra lo es también por su héroe y porque le dió libertad á otro inmenso territorio. Ambas corren había un mismo fin, la primera que ya conquistó todo su brillante porvenir y es modelo en el mundo; la otra que marcha igual camino é imitan su dechado; y esas dos naciones que al mundo hablan muy alto con sus héroes, sus fundadores, y libertadores, han sido aliadas desde la cuna y hoy se dan el eterno abrazo de amistad. ¡Quiera el cielo sea feliz tan noble alianza!! los pueblos republicanos y verdaderamente liberales no pueden ménos que ser verdaderamente amigos, pues han nacido bajo [...] la libertad, ese sol que inunda de luz á la Europa à través de los siglos, y sus viejos pueblos renacerán bajo el soplo vivificante que arrastra consigo esa fecunda semilla. Las monarquías caducan; las repúblicas constantemente se regeneran. (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 88)

A busca por similaridades enredava a expectativa do avanço nacional, em razão da perspectiva de agregar o país à ordem histórica do Ocidente. Apesar de Hurtado Sáchez apresentar os EUA em termos de modelo ou exemplo para a Venezuela, o cerne de seu argumento emparelhava ambos quanto ao passado — Libertação — e à institucionalidade no presente — republicanismo, liberalismo — dando a entender que a modernidade é o destino inexorável dos espaços que trilham esse percurso. Igualmente ambicioso, ou ufanista, Adolf Ernst cuidou de traçar relações com a América do Norte num viés financeiro. Em sua descrição, tocante às atividades econômicas apresentadas na feira nacional, os norte-americanos eram concorrentes da produção agropecuária venezuelana. O argumento do autor centrou-se nas possibilidades de lucro no mercado interno, caso houvesse investimento nacional para substituir as importações de banha de porco, arroz, farinha de trigo, milho, algodão (ERNST, 1884, t. I, p. 303-304, 374, 378, 379, 419). De modo análogo, EUA e Europa eram gradativos de qualidade para diversas produções, a exemplo de maquinário, esculturas e fósforos (ERNST, 1884, t. I, p. 523, 533, 605). Nessa conformidade, eram correntes em seu escrito fragmentos do tipo: “[...] de una calidad igual á las mejores que se elaboran en Europa” ou “[...] que pueden rivalizar con los mejores de su clase en Europa y en los Estados Unidos” (ERNST, 1884, t. I, p. 610, 640). Ou seja, a percepção do progresso material foi enredada, não na imitação ou cópia de modelos norte-americanos ou europeus, senão na suplantação e transposição dos mesmos.

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Outros debates sobre as formas de integrar a nação na narrativa da modernidade, não se limitavam a inspirar possibilidades de uma Venezuela em igualdade técnica e material com Europa e EUA. Houve também retroprojeções do passado nacional nos horizontes da memória do Ocidente, pondo a narrativa bolivariana em perspectiva com as ações de grandes personagens da história universal. Vale frisar que a comparação do Libertador com heróis da história mundial, já fora tema da retórica de Valentin Espinal, ao descrever o triunfo de Bolívar em 1827 (ESPINAL, 1827, p. 29) e dos discursos do funeral de Bolívar em 1842 (TORO, 1842, p. XXI-XXII). Entretanto, essas colocações apenas individualizavam o venezuelano em relação a outras personalidades ilustres e, consequentemente, particularizavam o fruto de sua ação: a Grã- Colômbia. Em seu turno, no Centenário, Bolívar não só foi único, mas também foi o melhor dentre o gênero humano. Singular nesse aspecto foi a coletânea de panegíricos, do escritor colombiano Pedro Pablo Cervantes, publicada em 1883, no âmbito comemorativo de Caracas. No texto “El dia de San Simon”, o autor dedicou-se a demonstrar o quanto Bolívar era superior aos grandes heróis modernos, Washington e Napoleão, e aos três guerreiros mais brilhantes e conhecidos da Antiguidade Clássica: Alexandre, Aníbal e Júlio César (CERVANTES, 1883, p. 7-12). Ao comparar feitos e ambições, Cervantes buscava reconhecimento não mais da história americana senão da história universal para o Libertador. Em paralelo, enquadrava o espaço no qual transcorrera sua ação na forma de cenário de sua gesta. De modo que a memória nacional, em Bolívar, encontrava seu lugar na narrativa de um passado ocidental. Descritas as percepções em circulação na Venezuela sobre seu lugar no mundo, é pertinente compreender quais mensagens os demais países destinavam à terra de natal de Bolívar no seu Centenário. Atendendo ao chamado do programa festivo de Caracas, algumas cidades organizaram suas próprias comemorações. Em especial, as festas de Willemstad (Curaçao), Bogotá, Buenos Aires, La Paz e Chulimani (Bolívia) apresentaram crônicas69 nas quais se enredaram os debates particulares de cada cenário. O prestigio social da libertação, irradiado sobre o epiteto do prócer, tinha seus significados difundidos por toda a América Latina e fora utilizado pelas elites nacionais para traduzir as mais diversas pretensões ensejadas.

69 Há uma vastidão de fontes a ser exploradas sobre o tema. Referenciando os relatos mais completos publicados ainda em 1883, cabe citar: o programa da festa de Bogotá “Gran festividad nacional del centenario del libertador Simón Bolívar”; o relato de Buenos Aires “El centenario de Simon Bolívar en la República Arjentina”; as homenagens bolivianas de La Paz e Chulumini intituladas respectivamente “Al padre de la Patria en el primer centenario de su nacimiento” e “Celebración del centenario de Bolívar en Chulumani”; e a narrativa “El centenario del Libertador Simon Bolivar en Curacao” de Victor Zerpa sobre as festas em Willemstad.

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Embora haja material para compreender as relações postas, aqui cabe apenas mensurar a dimensão com que o Libertador foi invocado e atentar para a maneira com que essas homenagens atendiam a convocatória venezuelana. Ratificando a centralidade da Venezuela no espetáculo, as nações americanas enviaram representantes para testemunhar sua gratidão ou louvor à memória do prócer em Caracas. Estiveram presentes no desfile cívico de 24 de julho e na exposição nacional, enviados de Colômbia e Equador, que representavam as partes da antiga Grã-Colômbia, aos quais se somavam emissários de Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Santo Domingo e Uruguai (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 63; COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. 45, 100-101). A conglomeração americana deu lugar à Conferência diplomática Latino-americana de Caracas, em 14 de agosto, na qual tiveram assento os enviados de Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, México, Peru, El Salvador, Santo Domingo e os anfitriões venezuelanos70. Derradeiro episódio do Centenário, o encontro diplomático associava-se ao legado do pan-americanismo bolivariano para traçar propostas para a resolução de conflitos internacionais no continente. As convenções possivelmente enredavam-se nos impasses fronteiriços entre os Estados americanos. Naquele contexto, Julio A. Roca conduzia a campanha militar da Conquista del desierto (1878-1885) na Argentina; a Venezuela enfrentava disputas de limites com Colômbia e Inglaterra (Guyana Esequiba); e circulavam espectros de separatismo no Panamá (Colômbia) e em Zulia (Venezuela). Mas nenhum desses cenários se enquadrou tão bem na atmosfera da conferência quanto a Guerra do Pacífico (1879-1884). Ainda sem desfecho naquele momento, a Guerra del Guano y del Salitre opôs o Chile à aliança peruano-boliviana. O que a princípio era uma disputa alfandegária, converteu- se rapidamente numa questão territorial com a ocupação chilena da província de Antofagasta, única saída soberana da Bolívia para o mar. Desde 1880, depois de grandes derrotas, o governo boliviano se afastara das operações militares, embora mantivesse o Estado de guerra ao Chile para financiar e abastecer as tropas peruanas. Fora da linha de fogo, o presidente boliviano Narciso Campero (1813-1896) tratou de arregimentar apoios diplomáticos para evitar a perda do território litorâneo. Integrada a esse escopo, a participação boliviana no Centenário buscou produzir um constrangimento

70 No documento não há menção ao destino dos demais emissários, muito menos qual critério se utilizou para escolher a composição da conferência.

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internacional às ações chilenas. O relato da Comisión Nacional de Bolivia — publicado em Caracas — sobre a participação do país no Centenário, manifestou com solidez esse interesse. A transcrição da carta enviada pelo diplomata-chefe da delegação boliviana, Modesto Omiste (1840-1898), ao ministro das relações exteriores de Bolívia, alegava que a conferência diplomática fora o evento mais significativo e de resultados mais positivos de todas as celebrações, em vista de suas proposições de resoluções de conflitos no continente americano (COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. I-II). E mais, acrescentou Omistes que Guzmán Blanco recebera os bolivianos nos seguintes termos:

[…] ha encontrado en la patria de Bolívar, su propia patria, en la cual no ha hallado sino hermanos complacidos de tenerlos á su lado, que simpatizan profundamente con las desgracias de la guerra y anhelan con el pronto término de ellas, á vuelta de Bolivia á la senda del bienestar y progreso. (GUZMÁN BLANCO apud. COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. III) Para pintar uma imagem dessa aliança, a narrativa boliviana reiterou, em vários momentos, a ausência ou supressão de representação chilena no Centenário: a exemplo da retirada da bandeira chilena no desfile cívico de 24 de julho, cuja participação constava anteriormente no programa do Centenário (COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. 46). Em outros episódios, a própria comissão boliviana utilizou-se do cerimonial para cotejar posicionamentos sobre as hostilidades chilenas. Em 28 de julho, durante as oferendas da Universidade Central de Venezuela ao Libertador, os bolivianos expuseram sua camaradagem para com os peruanos na luta contra a cobiça chilena. No dia seguinte (29 de julho), segundo o relato, a comissão recebeu a solidariedade de várias classes sociais venezuelanas, que referendavam, para o caso da Guerra do Pacífico, o pronunciamento de Guzmán Blanco — daquela mesma data — no qual condenara o direito de conquista, vinculando essa negação ao legado bolivariano. (COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. 69, 74-76). Os relatos venezuelanos de Ernst e Hurtado Sánchez foram indiferentes a esses detalhes. De forma análoga, se ambos concluem suas narrativas com a exposição nacional, a comissão boliviana foi a única que publicou uma descrição, ainda que concisa, da Conferência diplomática Latino-americana. Sua argumentação enfatizou uma série de proposições, ad referendum, concebidas no encontro, que versaram sobre: a ratificação do legado do Libertador em favor da manutenção das soberanias nacionais; o não reconhecimento do direito de conquista; a defesa da integridade territorial das nações; o direito a amparo recíproco quanto à integridade e à soberania de cada nação signatária; a obrigação de estabelecer arbitragens para evitar conflitos armados; e a ponderação sobre uma União Americana, com o intuito de unificar

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cidadanias, leis, pesos e medidas, leis monetárias e direito internacional privado (COMISIÓN DE BOLIVIA, 1883, p. 140-143). Muitas dessas propostas correspondiam ao anseio boliviano de evitar perdas territoriais, invocando a Bolívar na forma de guardião da territorialidade nacional e do direito internacional latino-americano. Contudo, o plano de isolar diplomaticamente o Chile não se mostrou consistente, já que em menos de um ano — em 04 de abril de 1884 — o presidente Narciso Campero assinou o Tratado de Valparaíso, no qual reconhecia o domínio chileno sobre a província litorânea de Antofagasta. De qualquer forma, a participação boliviana nas festas buscou convencer a sociedade venezuelana sobre sua posição na Guerra do Pacífico. Faz-se notar, nesse processo, a produção de enunciados envolvidos na retórica bolivariana, cooptando suas condições de difundir, na terra natal do Libertador, versões socialmente compartilhadas de verdades. Mas, nem só os representantes da Bolívia aderiram ao uso da linguagem bolivariana com o intuito de difundir suas pretensões na Venezuela. Enrique Taviel de Andrade (?-1894), deputado e diplomata espanhol, respondeu ao convite para enviar escritos que coadjuvassem o Centenário de Bolívar, em nome da Espanha. Pouco antes das festas, Taviel de Andrade publicou em Madri “Centenario de Simon Bolivar”, obra na qual discute as independências sob um prisma de guerra civil. Em sua alegação, a memória dolorosa do conflito já fora superada pelo desejo de estreitar vínculos entre “raza española” e a “madre patria” (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 4). Desse modo, Bolívar podia ser associado ao sentimento de unidade hispano-americana que, não obstante, foi destroçada pela mesquinhez dos caudillos que o sucederam. Em seus termos: “[...] no hay que disminuir ni disimular la gran desgracia que constituye para la raza española el fraccionamiento á que se ve sometida en América, que la reduce á la impotencia y la expone á la codicia de las grandes naciones.” (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 24) Ao evocar homenagens ao herói, sob a forma de ícone da hispanidad, Taviel de Andrade enunciava a inexistência de discórdia entre as duas margens do Atlântico, já que até mesmo o gérmen da liberdade americana advinha da própria Espanha. Convencido de que a libertação fracassou, haja vista a inexpressividade das várias repúblicas fragmentadas e carcomidas por conflitos civis, o diplomata sugeriu um caminho integrado no porvir da península ibérica e do novo mundo. A pretexto de reunificar a raza espanhola, propunha a criação de uma confederação hispano-americana — embasada no legado anfictiônico de Bolívar — com o interesse de defender-se da opressão estrangeira e restaurar a glória da

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hispanidad. O deputado não se furtou de imaginar possibilidades do conglomerado, ao ponto de cogitar as possibilidades econômicas da empreitada:

Unida la raza española, cuya gloriosa enseña tremola en todas las partes del mundo, y concluido que sea el canal de Panamá, resultará dueña de éste y del Estrecho de Gibraltar; es decir, de la entrada y salida de las dos grandes vías marítimas que, á través del globo terráqueo, comenzarán en el dicho estrecho de Gibraltar, seguirán por el Mediterráneo, continuarán por el canal de Suez, mar Indo-Chino, la una, y la otra por el mar de las Antillas, golfo de Méjico, Canal de Panamá, y concluirán en el grande Océano ó mar Pacífico, cuyo centro ó corazón serán las islas Filipinas, en donde flota, en señal de dominio, la enseña inmortal que condujo á Colón á través de- ignotos y procelosos mares, al descubrimiento del Nuevo Mundo (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 29-30).

No intuito de legitimar seu posicionamento, Taviel de Andrade insinuou que o projeto unionista contava com a adesão do governo espanhol e de vários países hispano- americanos (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 29-30). O autor reforçou esse juízo ao longo do documento, ao passo que foram mencionadas cartas de lideranças políticas sul-americanas, vide os presidentes Julio A. Roca da Argentina e Guzmán Blanco da Venezuela; além dos, por ora antagonistas, Narciso Campero da Bolívia, Santa María do Chile. (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 40). Ao que se soma a transcrição das missivas dos diplomatas Eduardo Calcaño da Venezuela e Héctor Varela da Argentina no apêndice do livro (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 45-53). Discutindo sobre o americanismo de Héctor Varela, Isabel Hernández Pietro (1981, p. 134-135) destaca o sincero entusiasmo sobre o projeto de Federação Hispano-Americana no grupo de intelectuais com os quais mantinha contato. Além de Taviel de Andrade e Calcaño, o ministro colombiano, Carlo Hoguin, divulgou com ardor a necessidade de uma aliança durável entre a raza espanhola. Para além da excitação, no entanto, subjaz no argumento de Taviel de Andrade a preocupação com a manutenção de resquícios do Império colonial Espanhol. Problema ao qual dedicaria os anos seguintes de sua carreira diplomática, publicando tratados sobre as relações espanholas com as Filipinas, as Ilhas Carolinas e o Marrocos. Nesse rumo, chama atenção o destaque ofertado ao papel do território americano no projeto de federação. O tratado de Salgar-Wise, de 1878, firmou a cessão de 99 anos dos direitos de construção e o usofruto do canal do Panamá, entre o governo colombiano de Aquileo Parra e Lucién N. B. Wise, representante da francesa Compagnie Universelle du Canal Interocéanique de Panama. Apreensivo com a presença francesa no istmo, iniciada em 1880, Taviel de

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Andrade denota todo receio do que essa empreitada possa provocar no porvir da América e da Espanha:

[...] á poco determinado que sea el canal de Panamá, América será la parte del mundo en cuyas manos estará el comercio marítimo universal del globo terráqueo. Esta posición de cabecera, por decirlo así, le impone el deber de velar por la libertad de los mares, y prevenir con tiempo las contingencias á que ha de verse expuesta en un plazo breve, tan breve como sea el tiempo que medie de aquí á la terminación del canal de Panamá. Entónces, cumplido que sea este plazo, surgirá pavorosa la contienda que no puede menos de haber, si no nos cuidamos la raza hispano-americana de unirnos y estrecharnos para defender y hacer triunfar la libertad de navegación, asegurando la neutralidad y neutralización de los canales de Suez y de Panamá. Esta será, á no dudar, la más gloriosa conquista del siglo XIX, y con la cual coronará su magnífica obra de civilización (TAVIEL DE ANDRADE, 1883, p. 36).

Mesmo que justificasse o posicionamento pela defesa da raza espanhola, o enredo estimula a outra dedução. A liberdade de navegação no canal do Panamá representaria uma ligação prática com as posições espanholas na Ásia e na Oceania. Seria desastroso, portanto, que essa via caísse sob o domínio francês durante um século. Ainda assim, o hispanismo encontrou ecos nas festas do Centenário. Hurtado Sáchez recuperou a lógica de viva el Rey y muera el mal gobierno, ao elogiar de forma enfática a rainha Isabel I pela descoberta e conquistas das Américas, pari passu condenava os governos tirânicos de seus sucessores. Nessa lógica, se Isabel foi colocada no papel de mãe da América, Bolívar assumira, depois de sua morte, o encargo de tutor e protetor (HURTADO SANCHÉZ, 1883, p. 67-68). A narrativa cuidou de reconciliar a Venezuela com a origem espanhola, ainda que negasse valor ao período colonial. Em paralelo, a instalação da Academia Venezuelana de Letras, sob a nomenclatura de Academia correspodiente de la real academia española, nos dias 26 e 27, representou um louvor à herança cultural espanhola em termos de língua, tradições e costumes (HURTADO SANCHÉZ, 1883, p. 75). Por fim, no dia 29 de julho, a coordenação do concurso literário na Universidade Central de Caracas dispôs em lugares honoríficos as imagens da rainha Isabel, de Cristóvão Colombo e de Frei Bartolomé de las Casas (HURTADO SANCHÉZ, 1883, p. 82). Em suma, as festas ofertaram espaços para divulgar tentativas de posicionar a Venezuela no mundo. Sob a linguagem bolivariana foram enunciadas as concepções de um país que se agregava à modernidade ocidental ou se vinculava a reatualizações do passado pan- americano e hispânico. No libertador se desfaziam contradições históricas para enunciar políticas do agora: a memória heroica sagrou um marco zero para o vislumbrar de um futuro de progresso, oportunizou a apresentação de novos projetos anfictiônicos na América do Sul e reavivou a tradição hispânica que o país carregava desde a colonização. Ou seja, na imagem do

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prócer se encontrava a energia para justificar escolhas políticas, atividade desempenhada com maestria pelo governo de Guzmán Blanco.

3.3. A RETÓRICA DO PROJETO NACIONAL

Na Venezuela do Centenário, existiu um campo linguístico capaz de agregar os espectros do debate político pós-Guerra Federal. Os usos do termo regeneración, de seus sinônimos e de seus derivados sintetizaram a plataforma política do Guzmanato ao mostrarem- se adequados para acomodar expressões do combate aos antagonismos dos caudillos regionais, da renovação da diplomacia internacional e da integração da Venezuela ao mundo do progresso, sob o marco do projeto de nação ensaiado pelas elites governantes. Embora o termo tenha uma pregressa vinculação à linguagem festiva bolivariana, quando mencionado nas crônicas das festas de 1827 (ESPINAL, 1827, p. 17-18) e 1842 (TORO, 1843, p. 45) não ultrapassou a acepção de pacificação nacional ou de estanque dos conflitos partidários, numa metáfora da restauração dos tecidos sociais. Por outro lado, o recurso ao vocábulo parece ter se banalizado — de fato — ao longo do Septenio, em grande parte devido ao seu emprego na autodefinição do governo e de seu programa. Esse processo de alargamento de sentidos indica a necessidade de um percurso retrospectivo sobre a afirmação da regeneración no ambiente político nacional, a fim de perceber a carga simbólica que trouxe consigo ao ser empregada nos eventos do Centenário. Nesse itinerário, seguem-se as recomendações de Pocock sobre o exercício do historiador, ao investir

[...] tempo aprendendo as “linguagens”, idiomas, retóricas ou paradigmas em que tal discurso se realizou, ao mesmo tempo estudando os atos de enunciação que foram emitidos nessas “linguagens”, ou na linguagem formada por um composto delas. [...] O historiador deve mover-se entre langue e parole, do aprender as linguagens para determinar os atos de enunciação que foram efetuados “dentro” delas. Depois do que, ele começará a pesquisar em busca dos efeitos desses atos, geralmente com relação às circunstâncias e ao comportamento de outros agentes que usaram ou estavam expostos ao uso dessas linguagens, e mais especificamente “sobre” as linguagens “dentro” das quais esses atos foram efetuados. (POCOCK, 2003, p. 66)

Partindo da ascensão política de Guzmán Blanco ao poder com a Revolução de Abril (1870), uma nova retórica política acompanhou sua pretensão de modernizar o Estado venezuelano. Mal se assentaram as bases de sua administração, o conceito regeneración já lhe servia para cogitar — o que por ora eram — projetos de sua agenda de governo. Em campanha militar fora de Caracas contra as últimas resistências ao seu mando, em 1872, Guzmán Blanco

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enviou um memorando aos seus generais e lugar-tenentes na Presidência da República com os seguintes dizeres:

Representamos un punto de partida nuevo para el porvenir de la República: estamos encargados de poner el primer fundamento de una regeneración completa: tenemos que darle estabilidad, y ella es imposible transigiendo con la usurpación del exterior como con la usurpación interior: vencida esta por obstinada, vamos á luchar con la otra, si también se obstina. Los otros Departamentos de Hacienda, Crédito Público é Interior deben ponerse á elaborar preferentemente las piezas que á cada uno toque para apoyar y robustecer nuestros derechos, y que el Ministro de Relaciones debe haber pedido ó pedirá antes de lanzarse á la lucha. (GUZMÁN BLANCO, 1875, p. 240, itálico meu)

A descrição do exercício de regenerar a República teve, portanto, dois enfoques interdependentes. Um dizia respeito à estabilização interna do país, evitando novos alçamentos militares que pudessem dar combate às políticas governamentais em curso; e o outro se tratou do encargo de renovar as relações diplomáticas venezuelanas, afastando-a da posição de prostração e servilismo. Segundo afirma Guzmán Blanco, tal empreendimento não dependia só de uma nova atitude das lideranças políticas, senão de uma reestruturação da administração pública, perseguindo a consolidação de um Estado moderno e soberano. Em seu governo, essa diretriz foi adotada por meio do empenho em alocar o país no hall das sociedades civilizadas, além da paralela reivindicação do prestígio internacional para a modernidade venezuelana (DÍAZ SÁNCHEZ, 1950, p. 548). Nesse mote, ainda no ano de 1872, Guzmán Blanco estabeleceu um posicionamento diplomático mais altivo, ao negar-se a pagar dívidas de governos anteriores — exorbitantemente acrescidas — com os Estados Unidos. Em seus dizeres: “[...] Traigan sus cañones y empiecen a dispararlos contra Venezuela porque no se quiere dejarse robar más diplomáticamente.” (GUZMÁN BLANCO, 1875, p. 235). Ainda que o termo não tenha sido citado diretamente, essa oração traduziu o conceito de regeneración para ação política internacional; afinal, quando a evocava, o Ilustre Americano propunha a luta contra a usurpação estrangeira. Embora o vocábulo tenha se sedimentado, principalmente a partir de sua verve, nem só Guzmán Blanco articulou a regeneración. Num viés institucional, a disseminação do termo ganhou amparo na lei federal de 19 de abril de 1873. Nesse ínterim, o congresso venezuelano decretou honras ao caudillo de abril pelo papel que desempenhara na contenção de motins internos e na promoção do desenvolvimento nacional a partir da Revolução de 1870. No mesmo processo, o intitulara Ilustre Americano e Regenerador de Venezuela, em reverência às leis e decretos sancionados em sua administração (VENEZUELA, 1873, p. 1-2). Dito doutro modo, o parlamento legitimou a retórica guzmancista ao estabelecer uma conexão entre a pacificação

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e a vivência do progresso e da civilização, considerando ambos frutos da ação do caudillo de abril. Em sua jactante vaidade, Guzmán Blanco e seu séquito fizeram-se valer de seus epítetos, alargando seu emprego adulatório a cada discurso público que apresentavam. Todavia, em meio à rotina, alguns episódios se destacavam e balizavam fronteiras nos sentidos da regeneración, apesar da pouca modéstia guzmancista. No ato de inauguração do aqueduto e do paseo batizados em sua homenagem, ainda no ano de 1873, Guzmán Blanco definiu a regeneración segundo o padrão de uma ação coletiva da sociedade venezuelana, que englobava o sábio, o artista, o trabalhador, o escritor, etc., unidos em suas funções, por meio da vontade de reconstruir o país sobre

[…] las bases de la justicia, del orden, de la libertad i del progreso moral i material, para fundar el Gobierno de la verdadera República que consagra la soberania del individuo, de todos respetada i acatada, porque no estorba á nadie, ya que el vecino tiene otra soberanía igual, de la misma manera reconocida i venerada. (GUZMÁN BLANCO apud. LOPEZ, 1875, p. 180-181)

Ao falar ante o público, Guzmán Blanco habilmente inclui a todos, de forma genérica, nos intuitos regeneradores, movimento oposto ao do seu pai, que utilizou a mesma linguagem para segregar liberais e conservadores. Na ocasião dos debates sobre a reforma constitucional de 1874 — proposta por Guzmán Blanco — o senador Leocadio Guzmán conclamou a necessidade de um novo conjunto de leis para a reorganização nacional e para separar, em definitivo, a República do legado conservador que a atrasava. Nesse ínterim, afirmou que havia uma luta nas Américas que se arrastava há meio século e impedia o progresso material: o embate entre ideias de regeneración e os hábitos coloniais (LEOCADIO GUZMÁN, 1874, p. 28). O histórico de polemista de Leocadio Guzmán e sua ênfase no combate à oligarquia (partido conservador) traziam coerência ao seu argumento. Identificando esse grupo com a continuidade da ordem colonial e, consequentemente, de valores arcaicos, o autor reservou ao Partido Liberal, do qual se arvorava ser fundador, as características de modernizador acomodadas sob a égide da regeneración. Com o vocabulário mais pragmático dos pronunciamentos públicos, Guzmán Blanco empenhou-se numa conquista da narrativa do passado recente, usando a regeneración para demarcar o princípio de uma nova Venezuela. Na ocasião da celebração de cinco anos da Revolução de abril de 1870, em 27 de abril de 1875, o Ilustre Americano teceu um balanço de seu governo até a presente data. Nessa fala, a regeneración foi sinônimo da reestruturação promovida pelo federalismo, em oposição a tudo que lhe precedera. Em 1870, assumira uma

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Venezuela que descrevera como “[...] la caricatura de la república”: sem rosto, com uma Fazenda caótica, sem condições de fornecer crédito público, com relações diplomáticas vergonhosas ante os demais países e com governos que tinham compromissos apenas com a desordem e a arbitrariedade. A Revolução de abril, referida pelos termos de “[...] este gran día de nuestra regeneración”, significou uma viragem, pois mediante a Federação se garantira a pacificação do país, a independência verdadeira dos estados, a reorganização da Fazenda nacional, a escalada moral das relações internacionais venezuelanas e a transformação material e moral da nação com as obras públicas e o ensino popular. (GUZMÁN BLANCO apud. LOPEZ, 1875, p. 197-200). Tais atributos foram reiterados em documentos protocolares, de maneira que serviram para fixar valores a quem quer que herdasse o comando da Venezuela regenerada. Em “Carta circular a los ciudadanos presentados como candidatos á la Presidencia República” de 19 de junho de 1875, Guzmán Blanco preparava seu afastamento do poder e incitava os candidatos a substitui-lo na suprema magistratura e a respeitar as regras eleitorais. Nesse contexto, explicava que a causa de abril fora capaz de gerar duas grandes evoluções: 1. A supressão pela força dos adversários da Federação; 2. A organização administrativa, o advento do crédito, as obras estatais, o fomento à educação pública, a imigração. Uma terceira seria a reintegração do voto popular ao cenário político, em eleições independentes e livres, para que as guerras civis fossem injustificáveis. O Ilustre Americano chamou o esforço dessas três transformações de regeneración (GUZMÁN BLANCO apud. LOPEZ, 1875, p. 402-403), acrescentando a reabilitação da eleição na posição de mediadora de conflitos. Uma contribuição fundamental para os sentidos que o termo veio a desempenhar nas festas de 1883 adveio não do caudillo de abril, mas de seu séquito. Em agosto de 1875, na ocasião em que anunciava a futura inauguração da estátua equestre de Guzmán Blanco para o público, o presidente do Senado, Jacinto Gutierrez, recordou que a Revolução de abril salvou a República da anarquia, cimentou a paz e estabeleceu a regeneración social e política. Desse modo, nada seria mais justo do que conceder ao seu chefe os louros de regenerador da pátria. A inauguração do monumento, marcada para 28 de outubro, — dia em que se celebrava a memória de Bolívar — conectaria ambos os heróis segundo o argumento de que, a regeneración vivida naqueles dias nada mais era que o desejo do Libertador. Além do que, vivenciar essa cerimônia repleta de virtudes seria uma demonstração ao mundo de que o povo regenerado de Venezuela queria abraçar um futuro de progresso com seus próprios méritos (GUTIERREZ apud. LOPEZ, 1875, p. 8-11). A regeneración, portanto, caracterizou-se enquanto programa

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que advinha do passado, uma vez que configurava a vontade de Bolívar, realizava-se no presente pela ação de Guzmán Blanco e dava margem para um futuro de virtudes e progresso na Venezuela. A retificação histórica necessária para estabelecer vínculos entre a ação libertadora e a regeneración, raramente foi impressa diretamente pelas falas de Guzmán Blanco, talvez sob o temor de ser acusado de sacrilégio ao presumir-se tão semidivino quanto Bolívar. Entretanto, tal pudor não impedira que o recurso à conexão fosse amplamente empregado por bajuladores a fim de demonstrar apoio ao regime ou insuflar a narrativa agregada à segunda independência, identificada com a Revolução de abril. Nas festas do Centenário de Bolívar, foram ofertados vários testemunhos desse semblante. De qualquer maneira, esse tipo de argumento atribuía precedentes valiosos à causa de abril, que seriam sutilmente aproveitados pelo governo do Ilustre Americano. Um último atributo que merece o devido relevo diz respeito à relação com o elemento regional. No panfleto “En defensa del Septenio” houve um aporte interessante para o tema. Depois de seu primeiro período de governo, Guzmán Blanco afastou-se da Venezuela e passou a residir em Paris. Em 1878, concomitantemente, recebia notícias das críticas que eram auferidas em Venezuela pelo seu sucessor Francisco Linares de Alcántra, Guzmán Blanco escreveu o libelo resguardando o legado de sua administração. Nesse texto, definiu regeneración, por ora, na forma de programa do Partido Liberal (GUZMÁN BLANCO, 1878, p. 3), de maneira que, ao retomar suas acepções de incremento da instrução pública, da imigração, das obras governamentais e da reorganização da Fazenda nacional, acrescentou-lhe uma negação à relação com um tipo de caudillaje:

Después de todo, se ve que el Gobierno de Marzo no ha hecho nada en materia de administración, […]; y en materia de política, todo lo ha reducido à reaccionar contra el Septenio, declarando autocrática su legítima y popular autoridad, y representantes del caudillaje, á los presidentes de los Estados constitucionalmente elegidos. En pocas palabras […] en lugar de ser este periodo el continuador y el perfeccionador del Septenio, representante de la revolución de Abril, que á su vez representa el genuino triunfo de la causa liberal, se ha convertido en un Gobierno de antagonismo, apoyado en los elementos reaccionarios vencidos en 1874, para declarar autocracia la regeneración, la fidelidad abyección, el progreso peculado ó disipación, y convertir los vencedores en vencidos, las promesas en traición, y el mundo todo volverlo al revés. (GUZMÁN BLANCO, 1878, p. 27-28)

Quem Guzmán Blanco tachou de derrotados de 1874 eram justamente caudillos regionais que representaram uma oposição à Federação. Naquele ano, León Colina e José Ignacio Pulido, outrora inseridos no generalato guzmancista, afastaram-se das orientações do governo e lançaram-se em revolta desde as cidades de Coro e Barcelona no movimento que

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entrou para história venezuelana sob a alcunha de Revolução de Coro de 187471. Conforme o Ilustre Americano, os caudillos representavam a deserção da pacificação nacional, portanto, foram punidos com o rigor necessário: o primeiro sendo exilado e o segundo preso. Ambos tiveram suas anistias decretadas pelo governo Linares de Alcántra em 1877 (DÍAZ SÁNCHEZ, 1950, p. 558). De forma que para distinguir a herança de seu comando das ações de seu sucessor, Guzmán Blanco demarcou o distanciamento entre a regeneración e a caudillaje que atentara contra a ordem institucional por vias beligerantes, pari passu rejeitou a rebelião regional como caminho para a ascensão política. Com o retorno de Guzmán Blanco à cabeceira do processo político nacional, na revolução reivindicadora (1879), a regeneración torna a ocupar o centro do projeto de nação venezuelano. Defronte ao panteão nacional, na ocasião de uma pequena homenagem a Bolívar em 1880, o advogado, diplomata e orador semioficial do governo guzmancista, Eduardo Calcaño (1831-1904) discursou afirmando o regresso desses motes:

Somos ya la república de Estados verdaderamente autonómicos, que han dejado de ser los feudos del intruso caudillaje. […] Somos ya la república en cuya balanza ha perdido su antiguo peso la espada del batallador, y que sólo necesita […] la inteligencia que traza los planos del progreso […]. Somos ya la república de la vida ciudadana, porque la paz es institución permanente, custodiada por todos los intereses y asentada sobre todas las convicciones. […] la paz nacional sustentada y defendida hoy por todos los venezolanos, prueba la unidad del patriotismo en todos los partidos de la Nación. (CALCAÑO, E., 1883, p. 53-54)

Em suma, a regeneración apareceu ao longo dos pronunciamentos de Guzmán Blanco e de seus acólitos sob a fórmula de programa político de modernização nacional, alinhado ao abandono de práticas que traziam antagonismos armados e subversão à República. É compreensível, desse modo, que lhe couberam predicados diversos como: a nova gerência das relações com as elites regionais, uma renovação na diplomacia internacional, a pacificação nacional, a reestruturação da economia, o investimento na instrução pública, o progresso material, a reintegração da participação popular na vida política, etc. Precedidas de todas essas conotações, a regeneración mencionada no Centenário desempenhava o papel de sinônimo da ação política de Guzmán Blanco. Em nível de crônicas

71 Para Mary B. Floyd (1988, p. 151-153), esse episódio marcou a rede de poder de Guzmán Blanco, capaz de aglutinar sob seu comando grande parte dos caudillos locais, na medida em que os mesmos se recusaram a juntar- se em revolta com Colina e Pulido. Sobre a Revolta de Coro há um documento interessante no qual o então exilado Colina elencou motivos que justificaram sua sublevação contra Guzmán Blanco, incluindo acusações de usurpação de poder, corrupção, roubo do erário público e autocracia. Para mais informações ver: COLINA, L. (1875) León Colina ciudadano de Venezuela al Congreso nacional y a sus compatriotas. Curazao: Impr. del Comercio.

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festivas, em especial nas de Hurtado Sánchez, o termo ocupou certo relevo dentre a retórica em uso para conectar o elemento celebrado ao promotor da celebração. No preâmbulo de “Las fiestas del primer centenario del libertador Simon Bolivar”, preenchido por uma justificativa histórica da celebração em curso, a obra de Bolívar foi descrita, não como sobrenatural, senão como divina visto que

[...] ante el nublado porvenir de un pasado de sombras nacidas de la ignorancia en que nos mantenía la España, renace con su elocuencia la brillante aurora de una regeneración de luz y vastos conocimientos […]. […] su conquista es de corazones, de moral política, de opiniones, y en fin, de todos los elementos que tienden al renacimiento de una sociedad regenerada en todo su ser y para todas las regiones hasta donde pueda llevar su obra. [...] La obra de Bolívar […], es de redención únicamente; él viene á salvar un continente regenerado, no sólo á sus habitantes sino á sus mismos territorio; abriéndoles los tesoros de la Libertad, la Sabiduría y el Progreso. (HURTADO SÁNCHEZ 1983, p. 10).

O empenho de Hurtado Sanchéz em retroprojetar a regeneración no contexto das guerras de independência significou uma apropriação do legado do fundador, somado a um rearranjando da narrativa heróica segundo as necessidades do programa guzmancista. O autor integrou o impulso festivo à homogeneização da recordação do Libertador, moldando-o como precedente natural do atual regime. Para tanto, seu escrito apresentou Bolívar sucedendo o vazio, marco zero do qual tudo foi produzido e, consequentemente, a partir do qual tudo poderia ser recuperado:

Así levantaba aquel jigante [sic] el gran edificio de la regeneración de un Mundo; de un mundo nacido para la Libertad, pero que aguardaba tan sólo su presencia para empezar á brotar con ella de la nada; todo iba a nacer con él, la Patria, la Independencia, el Ejército, la Disciplina, la Ley, la Gloria, las Proezas y aún los Héroes que debían llevarlas á cabo; nacía la regeneración de un pueblo que no ha mucho era esclavo, pero que se sentía ya libre y convertido en señor […]. (HURTADO SÁNCHEZ 1983, p. 11)

Dessa maneira, quando vinculada à gramática bolivariana, a conotação de regeneración foi atrelada a um passado, dando ao seu projeto uma historicidade importante num contexto de percepção temporal linear e progressista. Isto é, o emprego do termo para adjetivar a ação libertadora fixava paralelos, posto que possibilitava criar ressonâncias com os períodos de governo de Guzmán Blanco, autor de uma segunda regeneración, que conclamava reaver valores da independência. Ainda que essa retórica fosse de conhecimento público, dado que era parte da linguagem política do guzmancismo, Hurtado Sanchéz reforçou a dependência entre o predicado regenerador, a reorganização política, a pacificação nacional e o direcionamento da sociedade à vivência do progresso, tal qual se fez uso do vocábulo nas enunciações do Ilustre

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Americano e de seus acólitos. A linguagem bolivariana forneceu, uma vez mais, o lastro temporal da venezolanidad: um passado glorioso perdido pelos sucessivos conflitos, que, contudo, vinha se restaurando mediante as ações dos governos de Guzmán Blanco. Logo após a transcrição do discurso inaugural do Centenário, de autoria do presidente, o cronista afirma que:

Si! Es la Venezuela de hoy, regenerada y lanzada por vastos horizontes del progreso, esa era la Venezuela que Bolívar concibió en su mente, hoy ella se muestra á altura digna de su pensamiento y de su obra, inaugurando ferrocarriles con que le dice al mundo entero, mirad! “apenas cortos años soy libre y ya quiero poseer todas las adquisiciones de vuestra civilizada y prolongada existencia […]” administración progresiva y paz, he aquí la bandera que hace feliz una nación, bajo instituciones nace su adelanto y su felicidad y con ellas queda realizado todo su porvenir. (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 61-62)

Na exposição das homenagens prestadas pela Universidade Central da Venezuela a José Maria Vargas, o narrador promoveu um novo rearranjo do passado: apresentou em Vargas um precursor do liberalismo e das virtudes democráticas, que havia subido ao rango de presidente pela vontade popular, mas que fora derrubado pelo “[...] bárbaro y desleal militarismo reinante en aquella época fatal” (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 85). É incontestável que Vargas fora ligado ao Partido Conservador — grupo político da oligarquia caraqueña — e justamente por essa razão que a coligação de caudillos regionais o derrubara da Presidência da República72. Entretanto, seu legado progressista, enquanto intelectual e professor, garantiram-lhe um valor simbólico a ser apropriado pela retórica modernizadora da festa, cuja crônica apontou-o como aquele a quem a “[...] Universidad debe su regeneración” (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 85). Outro aspecto pertinente desse relato se refere à produção da imagem de uma oportunidade perdida para o golpe militar. Essa fora uma tônica em seu escrito: demonstrar como, por sucessivas vezes, a Venezuela teve oportunidades de avanço implodidas pela ação dos caudillos. No trecho em que o autor apresentou sua impressão sobre a Exposición Nacional, houve uma preocupação em demarcar a maneira com que a caudillaje causara a decadência venezuelana, ao passo que a pacificação nacional garantira a regeneração necessária ao progresso nacional:

Venezuela se presenta hoy orgullosa y llena de vida con su Exposición Nacional; es demasiado hacer en honra de su Libertador, si entendemos á las lamentables y terribles crisis porque ha pasado nuestra jóven República. Las industrias, las artes su riqueza territorial, sus maravillas, sus antigüedades indígenas, todo, todo yacía envuelto en las

72 Refiro-me a já discutida revolução das Reformas de 1835-1836, encabeçada por Santiago Mariño e seguida por Diego Ibarra, Pedro Briceño Méndez e José Tadeo Monagas.

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tinieblas de la guerra civil; apenas había tiempo para luchar, y ninguno de sus pasados gobiernos se acordó que tenían patria para engrandecerla haciéndola prosperar; sólo Guzmán lo hizo en el Septenio y lo hace en el presente período de su gobierno. Es en su gobierno y bajo los benéficos auspicios de la paz y el progreso que hoi regenerada, ha tenido tiempo para hacer renacer sus industrias y las artes; para esplotar su riqueza territorial; y para prepararse para mostrar al mundo que ella tiene un tesoro inagotable de esplédidas riquezas; por eso reserva para lo último su Exposición Nacional […]. (HURTADO SÁNCHEZ, 1883, p. 97)

O mesmo evento, sob a perspectiva de Adolf Ernst, configurou a regenración num ponto de inflexão sobre o passado colonial. Sua leitura esteve alerta à necessidade de se livrar dos últimos entraves da exploração estrangeira e do conflito interno no percurso da modernização nacional.

Venezuela como país marcha apenas por un cuarto de siglo en el camino del progreso nacional. No lo hubo en el tiempo de la Colonia, aunque no ignoramos que también entonces el país producía bastante para ser prenda valiosa en la corona de los Reyes Católicos. No lo hubo, ni pudo haberlo, en los años de la magna lucha que abarcó casi cuatro lustros; y á ella siguió una época de tristes recuerdos, durante la cual el país, desgarrado por discordias interiores, carecía de las condiciones vivificantes para su desarrollo normal, las que no han desaparecido por completo ni aún en nuestros días. (ERNST, 1884, t. I, p. 10-11)

Na passagem em que descrevia a seção da exposição dedicada às belas artes, o autor explanou o modo com que o campo artístico estava implicado na demonstração de civilidade e progresso da Venezuela, ao ponto de afiançar ao leitor que a “[...] análisis de las obras de pintura presentadas á la Exposición, [comproba] la distancia que separa la Colonia de Venezuela regenerada.” (ERNST, 1884, p. 658-660). Mais uma vez as crônicas da festa procuravam evidenciar um distanciamento de um contexto tido como arcaico e alocar a Venezuela nos rumos de uma evolução natural para as sociedades modernas, exibindo para o mundo seu arranjo na ordem capitalista. Nesse exercício, além de um marco da transformação nacional, Bolívar agenciava um passado promissor que, ao ser reivindicado, conduzia o país a um novo encontro com os trilhos do progresso. Sua celebração serviu de palco para apresentar a obra da regeneración venezuelana ao planeta. Porquanto Caracas era o centro das atenções no continente e recebia homenagens de todos os povos latino-americanos ao Centenário do pai da pátria, concomitantemente ofertava imagens de sua transformação (ERNST, 1884, p. 35). Nem só as crônicas estavam inscritas nessa retórica. O posicionamento dos atores políticos em meio às festas e nas publicações realizadas em 1883 também recorreu ao mesmo argumento. Um exemplo foi a publicação do periódico “La Opinión Nacional” em homenagem aos 100 anos de Bolívar. Jornal semioficial do governo, editado por Fausto Teodoro de Aldrey e Antonio Leocadio Guzmán, contou, em sua edição especial, com a contribuição de artigos de

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vários personagens do cenário intelectual nacional como: o ministro das relações internacionais Rafael F. Seijas (1822-1901), o general e comandante das forças navais venezuelanas Carlos T. Irwin (1830-1884), o ex-presidente Guillermo Tell Villegas (1823-1907), o historiador e político Francisco Gonzaléz Guinán (1841-1932) e o jovem poeta José Gil Fortoul (1861-1943), que no século seguinte seria presidente da República. Um trecho argumentativo do poeta e diplomata Julio Calcaño (1840-1912) é exemplar do conteúdo do folheto:

Así se nos aparece Bolívar en la epopeya de la independencia; así Guzmán Blanco en la santa obra de la Regeneración de la Patria, y estas dos figuras, ya inseparables, como obreros de una misma causa, se refunden en el gran día del Centenario, que viene á ser como por destino superior, el epílogo de ese gran drama de los pueblos, comenzado en 1810 con la jura de la independencia, y terminado en 1870, con el afianzamiento de la paz, de la libertad y del progreso. (CALCAÑO, J., 1883, p. 7)

Se a festa foi um ato de sociedade e produtor de certa unanimidade ficcional, o fascículo extraordinário de La Opinión Nacional integrou-se estreitamente ao ritual, fazendo valer o seu título ao transportar uma leitura uníssona sobre os valores celebrados em 1883. Ainda que poucos houvessem testemunhado — em suas vidas adultas — as façanhas e o governo de Bolívar, uma sequência de intelectuais e políticos se pôs a empregá-lo para manifestar adesão ao regime guzmancistas. Não houve sequer uma contraposição; todos os artigos de opinião gravitavam ao redor da mesma retórica: proclamar em Guzmán Blanco o sucessor de Bolívar e a regeneración como o complemento da independência. O predomínio dos intelectuais guzmancistas na arena pública garantiu um monopólio sobre a memória histórica celebrada e, em seu turno, a linguagem bolivariana inscreveu a regeneración numa dimensão socialmente compartilhada de verdade. Diante do conjunto de enunciações comprometidas junto à versão governista do passado — e de suas relações com o presente — pouco havia a se fazer nas cerimônias senão referendar suas asserções ou eclipsar-se na multidão. Além das fronteiras Venezuelanas, nem sempre o ambiente fora tão unânime em relação aos governos Guzmán Blanco. Entretanto, alguns panegiristas estrangeiros também destinaram reflexões ao público venezuelano. Entre esses estava o espanhol Josep Guell i Mercader (1840-1905), correspondente internacional do La Opinión Nacional, que ofertou em homenagem ao Centenário uma biografia de Guzmán Blanco, intitulada “Guzmán Blanco e su tempo" (1883). Resguardado pelo pseudônimo de Hortensio e pelo fato de ser estrangeiro, Güell i Mercarder expôs considerações ainda mais incisivas e militantes que as dos cronistas vinculados ao regime:

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¿Ha llegado el momento de desceñirse las armas, entonar himnos á la paz y entregarse del todo á las tareas gubernativas? — No, la Revolución de Abril es una causa de combate; no un pronunciamiento, no una simple sustitución de hombres en el poder: más patriótico es su programa, más alto su destino. Ella viene á regenerar una sociedad carcomida por los abusos, enferma de desorden, arruinada por las guerras civiles, víctima propiciatoria del caudillaje. Por eso Guzmán Blanco, pensamiento y guía perspicaz de tan noble causa, divisa en el horizonte político montañas de dificultades y peligros donde los demás no ven sino un cielo hermoso y sereno y vestido de arreboladas nubes. (HORTENSIO, 1883, p. X)

Todo esse quadro de unanimidade não passou incólume às críticas. Nesse aspecto, é importante destacar o escrito do colombiano Manuel Briceño, em sua proposição de desatar os nós que amarravam a argumentação guzmancista. Depois de testemunhar as festas do Centenário em Caracas na posição de enviado diplomático da Colômbia, Briceño retornou a Bogotá e publicou “Los ilustres: pagínas para la história de Venezuela” (1884), um libelo ácido à ação política da família Guzmán. Diferente de Güell i Mercader, que escreveu do estrangeiro com destino ao público nacional, o colombiano, ainda que se dirija em algum momento aos venezuelanos, adotou um tom de denúncia internacional do — que considerava um — regime corrupto e ditatorial de Guzmán Blanco. É compreensível, por esse ângulo, que tenha buscado demarcar as diferenças com o espanhol, explicando o porquê de nem toda opinião internacional ter se dedicado à condenação do Guzmanato:

[...] Conocido es el excelente corresponsal que tiene La Opinión Nacional en Madrid; escritor galano, aprecia por lo regular los acontecimientos con exactitud y parece estar al corriente en el desarrollo del movimiento político europeo. Este escritor debe recibir crecido sueldo, supuesto que se pres á falsificar la historia y desfigurar la verdad para hacer de los Guzmanes lo que no son, lo que no pueden ser [...]. Allí se encuentra una biografía de Antonio Leocadio Guzmán, escrita, sin duda, con los datos que el mismo Guzmán ha proporcionado, biografía que causará admiración á los hombres públicos de la antigua Colombia, que existen aún, y á todos los que conocen la historia de las Repúblicas que creó y estableció Bolívar. (BRICEÑO, 1884, p. 15-16)

As durezas de suas colocações não se destinaram somente ao panegirista. Ainda que reconhecesse os avanços materiais do Guzmanato, questionou veementemente se o preço pago em retrocesso moral pelo povo venezuelano não era demasiado caro, visto que “[...] La prensa y la tribuna sólo producen alabanzas á Guzmán Blanco!” (BRICEÑO, 1884, p. 122- 123). A essa reflexão deve-se acrescentar sua narrativa sobre a construção do domínio intelectual guzmancista na imprensa do Centenário, que atribuiu a unanimidade festiva, sobretudo, à censura e à repressão comandada pelo Presidente:

Quiso Guzmán Blanco en vísperas de las fiestas del Centenario, representar la comedia de la libertad de la prensa. Invitó á los ciudadanos á hacer uso de esa libertad que les garantiza la Constitución venezolana y tres periódicos aparecieron al punto: El Deber, La Pluma Libre, y El Anunciador. Pocos días de vida tuvieron esos

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periódicos, porque queriéndose apoderar Guzmán de la hacienda de Chuao, y combatiendo sus redactores semejante pretensión, se contestó á sus escritos con las cadenas de [la prisión] La Rotunda. (BRICEÑO, 1884, p. 202-203)

Avesso à opinião pública que circulava na pátria de Bolívar, Briceño adotou um tom antagonista à regeneración e às peculiaridades relacionadas à sua narrativa. Se fora uma tônica do contexto comparar Bolívar a Júlio César (CERVANTES, 1883, p. 11-13) e Guzmán ao imperador romano Otávio, seu sucessor, organizador do império e pacificador de Roma (ACADEMIA VENEZOLANA, 1884, p. 213-214), Briceño, na contramão, colocou o Ilustre Americano ao lado de Heliogábalo e Nero, atribuindo-lhe o signo da decadência moral venezuelana (BRICEÑO, 1884, p. 120, 132). De forma análoga, atacou a relação entre a regeneración e a política de combate à caudillaje:

Cree Guzmán que ha destruido en Venezuela el caudillaje de muchos con haber fundado su propio caudillaje; cree que ha establecido la paz corrompiendo algunas conciencias, reduciendo á la miseria á los más notables ciudadanos, estableciendo el régimen del terror como sistema de gobierno. [...] Tal sistema de gobierno ¿puede fundar algo sólido, establecer algo útil? (BRICEÑO, 1884, p. 123)

A lógica do progresso, outro pilar da retórica guzmancista, não foi poupada do exame do jornalista. Ainda que fosse capaz de reconhecer e enumerar as obras públicas e as transformações no ambiente urbano arquitetadas pelo caudillo de abril, para Briceño isso nada importava diante do

[...] horrible espectáculo presentable peculado de los gobernantes, la baja adulación de los ambiciosos, la degradación de ciertos caracteres que parecían inquebrantables, los sufrimientos de los buenos, el lujo de los que adulan, la pobreza de los perseguidos. Cree Guzmán que esas obras de mejoramiento material componen sus crímenes ó borran las lágrimas que hace y ha hecho derramar, y no seré yo quien defraude á la historia de la relación de lo que llama la Regeneración de Venezuela (BRICEÑO, 1884, p. 133)

Como ápice de crítica e simultaneamente autoafirmação do uso de uma linguagem bolivariana alheia à vertente guzmancista, Briceño tratou de desvincular Bolívar da imagem do Regenerador, registrando que

Guzmán al decretar la apoteosis de Bolívar no pensó en honrar al inmortal sino en glorificarse a sí mismo, el centenario del Héroe iba a darle pretexto para colocarse al mismo nivel de la del Libertador de un mundo. La luciérnaga se creía sol y pensaba disipar con su luz las tinieblas que la rodean (BRICEÑO, 1884, p. 212)

É prudente, contudo, lançar alguma suspeita sobre a obsessão de Briceño em seu combate a Guzmán Blanco. Ao acusar o regime de assassinar o jornalista Nicanor Bolet Peraza (BRICEÑO, 1884, p. 121) — que na verdade vivia exilado nos Estados Unidos, onde morreu

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somente em 1906 — o colombiano abriu um flanco para sua contestação. Não é possível afirmar que se tratou de equívoco ou manipulação intencional, entretanto suas acusações carecem de um endosso mais consistente. Em síntese, na forma de crítica ou de adesão, a regeneración integrou o vocabulário das festas bolivarianas ao proporcionar uma metáfora compreensível da pacificação nacional. Resultado do debate político-intelectual pós-Guerra Federal, a atribuição de novos valores ao termo garantiu uma consonância com o projeto governamental de edificação do Estado moderno e soberano, sob as orientações do Partido Liberal e do próprio Guzmán Blanco. De maneira que no Centenário de Bolívar, seu emprego teve sentido de ratificação pública do compromisso com o regime e do apoio à resolução do drama social venezuelano apresentada nas festas: o combate à prática de assalto ao poder da caudillaje regional, a perseguição ao paradigma de modernidade e a disseminação da soberania nacional.

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CONCLUSÃO ______

Retomar o bolivarianismo como tema-chave do século XIX venezuelano me permitiu uma análise do modo com que suas elites governantes articularam, em vários contextos, a elaboração de um projeto nacional. Parte integrante desse exercício, comemorar o passado foi uma estratégia habilmente aproveitada por aqueles que desejavam traçar os rumos da invenção da nação e da construção do Estado. Nesse sentido, as festas, prenhes da linguagem do bolivarianismo, foram instrumentos para o compartilhamento de expectativas, a comunhão da venezolanidad e a disseminação de enunciados socialmente aceitos como verdades. Em vista disso, sustentei uma análise contextualista das celebrações ao Libertador, em alternativa à cultura historiográfica embasada na fórmula do culto a Bolívar, de Germán Carrera Damas. Por consequência, o necessário posicionamento ante esse autor me ofereceu a oportunidade de discutir pontos que considero problemáticos em sua leitura. Retomo dois: 1. Que o culto a Bolívar é intrinsecamente uma estrutura de dominação social; 2. E que desde sua concepção esteve relacionado ao atraso institucional e social da Venezuela. Um e outro derivam da pressuposta inadequação ideia-realidade, servindo para enquadrar o culto a Bolívar na categoria de refrator das ideias modernas na Venezuela, visto que, segundo o autor, a modernidade continua tardia no país. Assim, foi possível para o mesmo compreender o bolivarianismo enquanto um monólito, praticamente invariável em tempo, espaço ou circunstância e obrigatoriamente relacionado à decadência nacional. Por outro lado, minha leitura demandou um olhar menos totalizante. Ao observar a maneira com que vários autores contemporâneos encaram os alcances do símbolo Bolívar na tradição política venezuelana, percebi que suas metáforas73 concebem, em óticas diversas, a mutabilidade e a amplitude das relações que a sociedade venezuelana desenvolveu com seu prócer. Essa pluralidade, no entanto, dispõe de um denominador comum: a função de comunicação social do bolivarianismo. Isto é, por mais variável que sejam as abordagens, todas comungam da percepção de que o Libertador é empregado na qualidade de figura mediativa para numerosos fins na sociedade venezuelana. Essa constatação me levou a conceber que ao longo da história não houve um culto a Bolívar rígido e indivisível, mas sim um conjunto de

73 Refiro-me a figuras que ajudam a pensar o bolivarianismo, a exemplo do culto a Bolívar (CARRERA DAMAS, 2003), historicismo bolivariano (CASTRO LEIVA, 1984), mítica do passado libertador (TORRES, 2009), herói para todas as causas (HARWICH, 2003), santo de vestir (ITURRIETA, 2003), etc.

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manifestações cultuais heterogêneas que se enredam mutuamente pelo uso de uma mesma linguagem ou/e de um mesmo jogo simbólico. Para apreender essa complexidade, me propus encarar como cerne de minha pesquisa as festas cívicas, ao lado de três outras facetas do bolivarianismo oitocentista: a monumentalização pública, a pedagogia/religião cívica e a historiografia, o que denotou compreender o modo com que cada uma utilizou a imagem do herói para funções peculiares no cenário público do país. Devo elucidar que, com esse paralelo, não estava discutindo os usos de Bolívar, se não as formas sob as quais puderam ser apresentados no debate público. Caso possa pensar o bolivarianismo em termos de um idioma, tendo em conta sua polivalência, ao investigar suas manifestações estou preocupado em mapear alguns de seus sotaques. A construção de monumentos públicos em homenagem ao Libertador esteve implicada num processo de ocupação do ambiente público com símbolos republicanos. Nesse sentido, que atributos do prócer — rosto, imagem, nome, títulos — foram empregados pelas elites governantes na qualidade de efígie da República, ofertando à comunidade uma nova topografia urbana, que referenciava tempo e espaço do vigente regime de governo. Quanto à pedagogia ou religião cívica, é possível sublinhar que as palavras e as façanhas de Bolívar foram apreendidas como paradigma moral a ser emulado pelo bom cidadão. Além disso, o Libertador simbolizava o alcance máximo da ação de um venezuelano, visto que sua grandiosidade era insuperável. Desse modo, a trajetória do herói foi modelo para a conduta política individual no século XIX. Duas lógicas da história pátria oitocentista reverberavam essa dinâmica pessoal para o nível de nação: a fórmula “Venezuela: o plano incompleto do Libertador” foi enredo de um conjunto de narrativas que dispunham a pátria como fruto da ação bolivariana, ao passo que se lembravam do exílio e morte do prócer enquanto mutilação de sua obra. Essa retificação histórica74 atendeu de forma positiva a necessidade de distinção de uma biografia nacional, pois, ao identificar a gênese do país com a atuação gloriosa de um personagem, as elucidações fugiam da complexidade de explicar a origem nacional em contraditórias ações coletivas, tal qual a assinatura da ata de independência em 1811 ou a Convenção de Valência em 1830. Por outro lado, esse argumento enquadrava a nação como exercício a ser terminado, conferindo legitimação às ações políticas que enunciassem recuperar o passado Libertador.

74 Ainda que Bolívar seja o fundador da 2ª e 3ª Repúblicas venezuelanas, seu principal projeto político fora a Grã- Colômbia, contra a qual as elites governantes da Venezuela se insurgiram com a secessão de 1830.

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Já a chave da “nação prevista por Bolívar” esteve na diegese de alguns textos de cariz mais lírico, que pintavam um Libertador capaz de conversar com o tempo ou vislumbrar o futuro da Venezuela. Ainda que não tivesse um apelo factual, a repercussão desses escritos — somada a corriqueiras atribuições de planos políticos aos hipotéticos desejos ou vaticínios do Libertador — dava margem à imagem de um herói tutelar que pairava sobre os destinos do país. De uma forma ou doutra, a historiografia oitocentista vinculou com persistência o passado e o povir nacional à memória heroica, num prumo narrativo que imprimiu sobre o relato de qualquer ato político um direcionamento à execução do programa bolivariano. O recontar da história pátria gravitava, portanto, em torno de um roteiro teleológico do qual Bolívar era início e fim. Em suma, ainda que bebessem de um sistema simbólico comum, as manifestações cultuais oitocentistas foram distintas em funções e alcances. Ao passo que a construção de monumentos a Bolívar serviu de marco do tempo e espaço republicano, sob a narrativa libertadora, o catecismo cívico impelia o cidadão a repetir o inalcançável modelo heroico, e a historiografia submetia expectativas do devir nacional à tutela de seu mito fundador. Cabe enfatizar que essa tríade teve uma relevância maior para grupos governantes, visto que estava intimamente relacionada à instrução formal, a uma cultura intelectual e a condições de leitura, numa Venezuela onde poucos tinham acesso à educação. Logo, o envolvimento das elites sociais com o culto a Bolívar afasta a imagem de uma prosaica dominação das massas por uma oligarquia dirigente. Mesmo em manifestações mais populares, essa lógica é discutível, a exemplo dos festejos cuja participação coletiva estava sujeita, a meu ver, mais à adesão popular aos celebrantes do ritual que ao objeto celebrado. Com isso, não quero dizer que o Libertador — na forma de símbolo — perdia seu significado no âmbito festivo. Porém, havia uma propensão a acomodá-lo segundo as perspectivas fomentadas pelos promotores do ritual, arranjo que poderia ser referendado, ou não, pela exultação pública. Contudo, essa suposição carecia de solidez, pois foi preciso recuperar os fundamentos da ação simbólica bolivariana para chegar a um diagnóstico mais preciso de sua relevância na cena política venezuelana. Em analogia a outros modos do culto a Bolívar, as celebrações cívicas — apesar de breves rupturas do cotidiano — conformavam perfórmances mais amplas e intensas, além de atingir um público mais heterogêneo, uma vez que ultrapassavam as fronteiras do letramento. Efervescências coletivas orientadas por itinerários governamentais, as festas em homenagem

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ao Libertador organizavam a polissemia de símbolos bolivarianos em enunciados e gestos assimiláveis por uma comunidade nacional habituada à sua linguagem. A ritualização de valores, memórias e expectativas, em paralelo, ofertava densidade ao dito e ao feito nos eventos. Por outro lado, não se deve imaginar que esses eventos expressassem um enunciado unívoco, mesmo porque aceitar essa lógica significaria incorrer na concepção das festas como mera sacralização e legitimação de governos ou narrativas históricas. Em razão disso, defendi a necessidade de examinar as festividades na forma de disputas em aberto, campos nos quais se pautaram resoluções para os dramas sociais instaurados, sem garantias de sua compreensão tácita ou aceitação ante o público em geral. É importante destacar que o século XIX venezuelano foi marcado pelo litígio e pela insegurança: 16 constituições diferentes regeram a República entre 1811 e 1909, constantes revoltas regionais e levantes sociais assolaram o país, vários presidentes sucumbiram a golpes militares, e sequer havia uma narrativa consolidada sobre a origem da nação. Diante da instabilidade institucional, política e jurídica, as festas, na qualidade de paroxismos da sociedade, externavam os seus debates mais essenciais. Assim, ao observá-las conforme fenômenos sociais inacabados, dá-se conta também de contemplar as possibilidades de resistências, discordâncias ou fracassos das proposições apresentadas. A atividade de compreender a exacerbação de sintomas dos dramas sociais nas efemérides perpassou a adoção de um roteiro investigativo atento a 04 de suas dimensões: planejamento, execução, linguagem e narrativa. Isto é, foi pertinente para considerar os papéis das celebrações na vida pública venezuelana, refletir sobre o que planejavam os governos ao promover as festas; perceber o que se afirmava comemorar e o que efetivamente foi comemorado; atentar a gestão simbólica; e ponderar sobre as relações entre as crônicas festivas e as festas. De posse de tais fundamentos, a observação da Entrada triunfal de Bolívar em Caracas (1827) e das Honras fúnebres a Bolívar em Caracas (1842) me possibilitou entender as dinâmicas entre as festas e os panoramas políticos nacionais. Na Entrada triunfal de Bolívar, em 1827, a municipalidad de Caracas organizou uma celebração relativa ao alívio de tensões em relação a uma potencial guerra civil. Ao festejar a visita do Libertador, se comemorava, na verdade, uma reconciliação com o seu programa unionista, mas em moldes mais aprazíveis para as elites venezuelanas, ciosas da centralidade que a classe política bogotana desempenhava sobre a Grã-Colômbia. Ao apresentar o prócer como pacificador de um conflito que o mesmo poderia desencadear, instaurou-se uma simbólica que o relacionava à harmonia social. Tudo enredado por Valentim Espinal na “Sucinta

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descripcion de la entrada del Libertador Presidente en Caracas, el 10 de enero de 1827” (1827), que cuidou de passar a imagem de uma coesão social direcionada a render louvores ao herói, quando se sabe que a opinião pública da época apresentava várias distensões direcionadas pessoalmente a ele. Fruto da terceira tentativa de um governo paecista em transladar os restos mortais de Bolívar a sua terra natal, as Honras fúnebres de Bolívar, em 1842, estavam envoltas pela conjuntura de sectarização da política nacional. Num processo da Revolução das Reformas (1835), a fundação do Partido Liberal em 1840, cristalizaram-se facções organizadas, dispostas a contestar a agenda governamental de Paéz e seu grupo, inclusive em lutas armadas, utilizando a memória bolivariana como um emblema da causa. Somava-se a isso a ameaça de ebulições sociais de escravos, ex-escravos e peões. Diante desse potencial para a escalada de uma nova guerra civil, o regresso do liberador foi tramado na forma de tentativa para suturar o tecido social como emblema de um Estado defensor da paz social e contra o proselitismo liberal, de modo que o que deveria ser um funeral de Estado converteu-se em um chamado à unidade nacional sob a simbólica do libertador. Ironicamente, o mesmo Bolívar que morrera clamando pela unidade da Grã-Colômbia75 se tronara em ícone da República venezuelana, que fora criada na contramão de seu projeto anfictiónico. Narradas em “Descripción de los honores fúnebres consagrados a los restos del Libertador Simon Bolivar”, de Fermín Toro (1843), na forma de um cortejo de profunda comoção pública, traço importante do escrito de Toro, é que os faustos foram descritos sem que houvesse menção à rejeição do povo venezuelano a Bolívar ou à participação de Paéz no exílio do prócer. Ambos os rituais tramaram elementos contraditórios para produzir uma narrativa linear do passado que pretendiam celebrar. Nessa conformidade, havia um arranjo entre a memória do Libertador, que historicamente promovera a união dos Estados americanos, a elite que promovera a separação da Venezuela, e um povo que volta e meia se insurgia contra o não cumprimento das promessas sociais da emancipação por parte de seus governantes. Na medida em que os festejos conciliavam elementos antagônicos num mito de origens, também ofertavam espaço para ensejar a concórdia social no presente e projetar os frutos de sua continuidade no devir. Frente a isso, destaquei 3 funcionalidades que estiveram relacionadas a essas efemérides: a forja da unidade política, a estabilização da ordem pública e a afirmação de uma

75 Refiro-me à última proclama de Bolívar, na qual teria dito: “¡Colombianos! Mis últimos votos son por la felicidad de la patria. Si mi muerte contribuye para que cesen los partidos y se consolide la unión, yo bajaré tranquilo al sepulcro.” (BOLÍVAR, 1976, p. 391).

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identidade histórica nacional. Ainda que esses não esgotassem a multiplicidade de intenções dos enunciados veiculados nas cerimônias, a repetição e a ênfase que esses papéis angariaram nos eventos de 1827 e 1842, fazem com que convenham enquanto propensão de emprego da linguagem bolivariana. Essa análise ganha robustez ao passo que tais funções são reiteradas também no Centenário de Bolívar (1883). Se o contexto oitocentista da Venezuela foi marcado por irrupções de crises sociais e políticas, a maior delas se deu na Guerra Federal (1859-1864). Apesar de terem sido promovidos duas décadas depois, os faustos dos cem anos do Libertador ainda respondiam as consequências desse conflito. Entre o centralismo e o respeito às autonomias locais, busquei entender o período pelo viés da rearticulação das forças regionais que, pari passu, estimulava-se o fortalecimento das instituições republicanas. Nesse ínterim, o exame do Centenário proporcionou a compreensão da forma com que o governo Guzmán procurou estabelecer uma comunicação pública, legitimando sua pauta de regeneración, em supressão à crise instaurada no bojo da questão regional-nacional. De modo que nos episódios e nas falas do Centenário, em nível simbólico, forjar a unidade nacional significou ritualizar a centralidade do poder na capital federal. Estabilizar a ordem pública teve a ver com desestimular as potenciais sublevações da caudillaje e afirmar uma história nacional, além de solidez institucional ao governo de turno: isso proporcionou lastro para o plano de integrar o país no mundo do progresso capitalista, aspectos que buscavam produzir respostas para as expectativas de vivenciar a modernidade numa nação fora do eixo norte-atlântico. Os governos de Guzmán Blanco não conseguiram efetivamente desbaratar o poder interno das elites locais. No entanto, seu hábil tato diplomático foi um meio importante para submeter os caudillos regionais às suas ordens e harmonizar os conflitos internos. De forma que seu papel na edificação do Estado Moderno venezuelano é inconteste. No âmbito ritual, esse direcionamento pode ser identificado com rituais que seguiam a lógica do progresso, identificada com as práticas de modernização e desenvolvimento urbano. Mais que meras inovações, as inaugurações do Centenário em Caracas forneceram sentido e finalidade para a narrativa teleológica que une Bolívar a seu futuro. De maneira que, as comemorações tentaram legitimar o governo de Antonio Guzmán Blanco na posição de finalizador do programa político bolivariano em duas direções: 1. Promovendo um passado histórico que permita estabelecer uma relação de continuidade com seu presente; e 2. Concebendo a percepção de progresso com a qual se apresenta a transformação do Estado venezuelano.

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Durante o guzmanato, os recursos às festas cívicas, em especial as bolivarianas, não se esquivaram de publicizar o projeto nacional em construção. Como parte dessa estratégia, o Centenário de Simon Bolívar em Caracas cumpriu um papel político-pragmático. Ou seja, mais do que promover a unanimidade, a celebração se preocupou em evidenciar um país unificado em seus recortes — nos moldes das constituições federais de 1874 e 1881— e disposto a ingressar na ordem capitalista. Nessa perfórmance pública, ao passo que a questão regional sucumbiu paulatinamente às ordens de Caracas, a soberania nacional ocupou um lugar naturalizado sob o auspício semidivino, como se já estivesse estabelecida pelo Libertador desde seu fabular debate com Cronos no alto do Chimborazo (BOLÍVAR, 1842 [1823], p. 63) A investigação das festas bolivarianas trouxe algumas considerações para o estudo da história política venezuelana. Os rituais estiveram, ao menos ao longo do século XIX, implicado com debates públicos fundamentais para a Venezuela, a exemplo da reconciliação com o programa unionista de Bolívar, da secessão representada pela fundação do partido Liberal, do proselitismo de pautas sociais e da luta pela supressão da força dos caudillos regionais, etc. Isto é, sua imersão no jogo político não foi causal, ao revés, significou uma disseminação de projetos sem a necessidade de recorrer às armas. Sobre o histórico do culto ao rei como emblema da hispanidad, o culto a Bolívar foi a alternativa de coesão escolhida pelas elites governantes da Venezuela para a vida autônoma do país. Mediante os modos de vivência da modernidade, e principalmente do republicanismo caudillista que se desenvolvera no país ao longo do século XIX, o Libertador permanecia como uma referência de unidade nacional. Era, portanto, uma origem a ser retomada para dar passado e, consequentemente, sustentação a qualquer projeto político. As festas pátrias que enredaram o louvor ao herói foram parte maiúscula do processo de convencimento social, vinculando, de forma intensa e viva, narrativas históricas, debates políticos e propostas de futuro para a sociedade. No percurso para demonstrar a pertinência das festas bolivarianas para entender a tradição política da Venezuela do século XIX, encontrei espaço para repensar as lógicas que movem interpretações hegemônicas sobre os usos do signo Bolívar e sua relação com a política nacional. Minha pretensão de observar o bolivarianismo por um prisma comunicacional — seja na comemoração, seja em seus relatos — buscou viabilizar a compreensão de perfórmances públicas polivalentes, as quais, orientadas por uma elite governante, tentavam enunciar e disseminar as mais variadas soluções para os dramas sociais vivenciados. Esses arranjos envolveram o exercício de fundar a nação que, embora seguisse incompleto ao fim dos anos

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oitocentos, permaneceu enquanto itinerário para unificar o país e modernizar o Estado. Diante da insegurança desse processo, contestado em armas e palavras, as festas em homenagem ao Libertador ritualizavam o sentimento de orfandade nacional e conjuravam a aura do herói tutelar, em meio à busca incessante de um roteiro para convencer o país dos rumos a serem seguidos enquanto nação.

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