PERCURSOS DA LITERATURA INFANTOJUVENIL

1 – Figurações do desejo e da infância em Eugénio de Andrade José António Gomes 2 – Literatura para a infância e ilustração – Leituras em diálogo Ana Margarida Ramos 3 – Encontros e reencontros – Estudos sobre literatura infantil e juvenil Sara Reis da Silva 4 – Entre textos – Perspectivas sobre literatura infantil e juvenil Sara Reis da Silva 5 – De capuz, chapelinho ou gorro – Recriações de O Capuchinho Vermelho na literatura portuguesa para a infância Sara Reis da Silva 6 – Sinergia onírica entre palco e papel – O Teatro de Marionetas do Porto Ana Paula Garcia de Almeida 7 – Tendências contemporâneas da literatura portuguesa para a infância e juventude Ana Margarida Ramos 8 – La guerra civil española en la narrativa infantil y juvenil (1936-2008) Blanca-Ana Roig Rechou, Veljka Ruzicka Kenfel e Ana Margarida Ramos (coord.) 9 – Palavra de criança não está poluída: a obra infantil e juvenil de Sidónio Muralha João Manuel Ribeiro 10 – Pensamento que respira e palavra que arde – A poesia infantojuvenil em Portugal João Manuel Ribeiro 11 – Educação literária e literatura infantojuvenil Blanca-Ana Roig Rechou 12 – Casas muito doces: reescritas infanto-juvenis de Hansel e Gretel Sara Reis da Silva 13 – Viagem exploratória pela atual literatura infantil Cláudia Mota 14 – Literatura Juvenil dos dois lados do Atlântico Ana Margarida Ramos, Diana Navas 15 – A Música das Palavras José António Gomes 16 – Capítulos da História da Literatura Portuguesa para a infância Sara Reis da Silva APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA

Ana Margarida Ramos (Organização)

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© Título Aproximações ao livro-objeto: das potencialidades criativas às propostas de leitura

© Autor Ana Margarida Ramos (Organização)

© Ilustração da capa Catarina Ramos

© Design da coleção Gabriela Sotto Mayor

© Paginação J. José Olim

© Edição Tropelias & Companhia Porto

Distribuição Trinta Por Uma Linha

Impressão Printhaus 1ª Edição Fevereiro de 2017 Depósito Legal 422466/17 ISBN 978-989-8582-54-6

Reservados todos os direitos. Esta edição não pode ser reproduzida nem transmitida, no todo ou em parte, sem prévia autorização da editora. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA

Ana Margarida Ramos (Organização)

ÍNDICE

1. Livro-objeto: entre o brinquedo e o artefacto. Apresentação ...... 13 2. Livro-brinquedo: contributos para uma tipologia ...... 25 3. Livros “perfurados”: singularidades e potencialidades ...... 43 4. Livros para embalar: sono e sonhos com texturas ...... 57 5. Do livro-álbum ao livro-brinquedo: Tobias às fatias e outros livros “fatiados” ...... 71 6. Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha, Quem espia se arrepia: mais que livros de imagem, livros-objeto ...... 85 7. Atrás do rasto da Balea: desdobrando universos ficcionais em língua galega ...... 101 8. O livro-objeto e a teoria do Ovo Kinder ...... 129 9. Fabrico e uso de livros artesanais na formação de educadores ...... 159 10. O livro como objeto - Bernardo Carvalho no papel de ilustrador-de- signer ...... 159 11. O leitor no espaço do livro infantil. Para uma poética da leitura a partir da materialidade ...... 181 12. Respostas leitoras de crianças e de adolescentes ao livro-objeto. Análise qualitativa e proposta de classificação ...... 201 13. Autoras ...... 223

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 9 ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1 - Dupla página de O meu pequeno mundo - Pai ...... 31 Figura 2 - Dupla Página de Boa noite, Bolinha! ...... 32 Figura 3 - Vira e combina na quinta ...... 33 Figura 4 - Dupla página de Pedrito Coelho - Quem está escondido? ...... 36 Figura 5 - The Hole Book ...... 45 Figura 6 - El pequeño agujero ...... 48 Figura 7 - Lyoké y el gran pastel koki ...... 50 Figura 8 - Círculo Amarelo ...... 51 Figura 9 - Caras Divertidas ...... 52 Figura 10 - Duas imagens do filmeDespicable Me ...... 62 Figura 11 - Livro Sleepy Kittens ...... 63 Figura 12 - Capa do livro It’s time to sleep ...... 64 Figura 13 - Dupla página do livro It’s time to sleep ...... 64 Figura 14 - Capa e exemplo do interior do livro Good Night Teddy ...... 65 ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 10

Figura 15 - Tobias às fatias ...... 76 Figura 16 - Exemplo de combinação possível ...... 76 Figura 17 - Animalário Universal do Professor Revillod ...... 77 Figura 18 - Exemplo de combinação possível ...... 78 Figura 19 - Todos fazemos tudo ...... 80 Figura 20 - Exemplos de combinações possíveis ...... 80 Figura 21 - Primeira capa ...... 88 Figura 22 - Primeira capa ...... 88 Figura 23 - Livro encadernado com portas francesas ...... 91 Figura 24 - Primeira capa ...... 92 Figura 25 - Primeira capa ...... 93 Figura 26 - Primeira capa ...... 93 Figura 27 ...... 95 Figura 28 ...... 95 Figura 29 ...... 96 Figura 30 ...... 96 Figura 31 ...... 97 Figura 32 ...... 97 Figura 33 ...... 97 Figura 34 ...... 97 Figura 35 ...... 98 Figura 36 ...... 98 Figura 37 ...... 98 Figura 38 ...... 98 Figura 39 - Livro desdobrável Balea ...... 105 Figura 40 - Livro carrossel ...... 136 Figura 41 - Livro pop-up ...... 136 Figura 42 - Livro árvore ...... 153 Figura 43 - Livro boneca ...... 153 Figura 44 - Exemplares únicos ...... 153 Figura 45 - Livro que guarda segredo ...... 153 Figura 46 - (re)encontro autor-obra ...... 154 APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 11

Figura 47 – (Re)encontro e encantamento ...... 154 Figura 48 - As crianças na exposição ...... 155 Figura 49 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006) ...... 165 Figura 50 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006) ...... 166 Figura 51 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) ...... 170 Figura 52 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) ...... 171 Figura 53 - Esboço de Bernardo Carvalho ...... 171 Figura 54 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) ...... 174 Figura 55 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) ...... 175 Figura 56 ...... 187 Figura 57 ...... 188 Figura 58 ...... 188 Figura 59 ...... 189 Figura 60 ...... 189 Figura 61 ...... 190 Figura 62 ...... 190 Figura 63 ...... 191 Figura 64 ...... 192 Figura 65 ...... 193 Figura 66 ...... 194 Figura 67 - Documento relativo à Exposição ...... 209 Figura 68 - Libro de las preguntas ...... 211 Figura 69 - Excerto de um blogue de uma leitora ...... 213 Figura 70 - Página do livro de Shaun Tan ...... 214 Figura 71 - Exemplo de produção escrita de um aluno ...... 217 Figura 72 - Donde viven los monstruos ...... 218

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 13 1. Livro-objeto: entre o brinquedo e o artefacto. Apresentação.

Ana Margarida Ramos

1.1. Este volume agrupa um conjunto variado de reflexões e es- tudos dedicados ao livro-objeto1, pensado quer enquanto artefacto, quer enquanto objeto lúdico, destinado ao entretenimento artístico do lei- tor (não exclusivamente criança, como veremos). Durante muito tem- po arredado da investigação e dos estudos literários, em resultado de condicionalismos vários, incluindo, em muitos casos, a ausência total ou parcial de texto, mas também a variedade infindável de propostas editoriais, o livro-objeto tem vindo a suscitar, mais recentemente, um interesse crescente por parte dos estudiosos de várias áreas, desde a pe- dagogia e da psicologia do desenvolvimento infantil2 às artes plásticas, passando pela literatura e o design. Com a sua génese ainda no século XVIII, quando os editores começaram a experimentar formas de recriar a ilusão do movimento em livros, os primeiros livros-objeto eram livros móveis, que solicitavam a interação do leitor, convidando a virar abas, destapar partes ocultas, puxar tiras ou rodar círculos. Entendidos enquanto artefactos, alvo de uma criação específica por parte da técnica associada à engenharia do papel, destacam-se, pelo sucesso contínuo ao longo dos tempos, mesmo na era digital, os pop-up. Habitualmente situada fora do domínio literário, associada ao li- vro-brinquedo e ao livro-jogo, pela componente de manipulação e de interação física que exige ao leitor, a edição de livros-objeto também não está isenta de implicações comerciais, aproveitada por produtos de

1Bruno Munari e Warja Lavater designavam desta forma muitas das suas criações, segun- do Beckett (2012: 20). 2 Ver, neste âmbito, as reflexões reunidas em Kümmerling-Meibaueret al (2015). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 14

merchandising associados a imagens tipificadas e globalizadas, nomea- damente de marcas como a Disney, a Mattel ou outras. Os estudos glo- bais sobre este tipo de publicações são escassos3, ao contrário do que, apesar de tudo, se verifica com tipologias editoriais mais específicas dentro do livro-objeto, como o pop-up, o lift-the-flap book, ou o mix- and-match book (Spitz, 1996; Smith, 2001; Bellorín, 2010; Boyce, 2011, Ramos, 2016). Sandra Beckett (2012) inclui, no seu estudo sobre os livros-álbum crossover, várias reflexões sobre tipologias relevantes do livro-objeto, que associa ou sobrepõe ao livro de artista (2012: 19 e seguintes), destacando, como elemento essencial, o investimento co- locado na sua dimensão material, enquanto objeto concreto, físico e tridimensional. Entram nessa categoria obras de cariz experimental do ponto de vista do design gráfico, como os trabalhos de Munari, Enzo Mari, Lavater ou Komagata, por exemplo, mas também os livros-jogo, os livros-álbum sem texto, os livros perfurados ou com recortes, os li- vros escultura, os livros-acordeão, os livros desdobráveis, os livros com objetos. A clarificação de fronteiras entre estas subcategorias não é evi- dente na reflexão da autora, não só em resultado do hibridismo natural destes formatos, mas também de uma excessiva compartimentação das tipologias elencadas. Nas classificações de Salisbury (2005) ou de Van der Linden (2006), os livros-objeto surgem incluídos no universo do livro intera- tivo ou tridimensional, no caso do primeiro autor, ou como categoria autónoma, no caso da segunda. De qualquer modo, estamos em crer que algumas das suas reflexões relativas aos jogos e quebra-cabeças podem ser extensíveis aos livros em estudo, dada a componente lúdica que os caracteriza, mas também a centralidade da imagem e a materialidade física do objeto, determinante, do ponto de vista conceptual (Salisbury, 2005: 86-87), para a construção do livro. A sua associação ao objeto

3 Ver, ainda assim, Kümmerling-Meibauer, 2011 e 2015 e Kümmerling-Meibauer & Mei- bauer, 2005. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 15 lúdico, em termos de texto e de ilustração, não inibe leituras mais pro- fundas e uma exploração do objeto, no que toca à conceção e à estru- turação, à mensagem e à manipulação. Enquanto objeto experimental, claramente destinado a explorar as possibilidades e os limites do livro, estas publicações contemplam a dimensão física, interativa, lúdica, ex- perimental/laboratorial, tirando partido da materialidade do livro e da sua construção. A reflexão de Sophie Van der Linden (2013) sobre o livro-álbum inclui uma série de elementos que o situam na esfera do livro-objeto, pela dimensão que os elementos da materialidade do livro (formato, papel, encadernação, impressão...), incluindo o seu design, aí ocupam. Aliás, as fronteiras entre estes dois tipos de objetos são cada vez mais estreitas justamente em resultado do investimento criativo que conhecem, como vários dos estudos aqui reunidos ilustram. A inves- tigadora francesa continua a incluir alfabetos (p. 64-65) e livros-jogo (p. 66-67) dentro do universo do livro-álbum nas suas reflexões mais recentes, referindo-se a formatos “óvnis” e “inclassificáveis” (2013: 76) por causa da hibridez de formatos existentes. Kimberley Reynolds (2010), por seu turno, destaca como uma das transformações estéticas mais relevantes na literatura infantil modernista e pós-modernista o re- levo que o objeto livro passa a ocupar no processo criativo, sobretudo os livros-álbum, chamando a atenção para o seu fabrico, quer em ter- mos metaficcionais, quer em termos dos peritextos, da composição ou tipografia (p. 35-37). Desta forma, elementos peritextuais (Nikolajeva & Scott, 2001: 256), como o formato e a encadernação, como veremos, são, no caso dos livros-objeto, significativos em termos da sua construção e da sua leitura. A questão da ludicidade como uma das marcas da criação con- temporânea de picturebooks é sublinhada por Nikolajeva (2008: 59), que destaca, entre outros aspetos, o relevo da sua expressão através de elementos materiais, como o formato e o tamanho do livro, por exem- plo. A investigadora não deixa, contudo, de chamar a atenção para o universo do livro-objeto como revelador das potencialidades criativas ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 16

da estética contemporânea exatamente pela exploração da dimensão lúdica que decorre da sua existência material e interativa, alterando a relação do leitor com o livro:

in postmodern aesthetics, the boundary between art and artifact beco- mes vague. A vast output of products nowadays lies in the borderline between books and toys, employing cuts-outs, flaps, and other purely material elements that add to the playfull dynamics and demand a cer- tain degree of interaction to engage the viewers and make them co-crea- tors (idem, ibidem: 67).

De acordo com Romani (2011: 135), a expansão contemporâ- nea do livro-objeto destinado a crianças, já antes trabalhado por esco- las e correntes artísticas específicas, como os movimentos concretistas, deve-se em grande medida às inovações tecnológicas introduzidas na indústria gráfica, permitindo um nível de experimentação crescente. A dimensão lúdica destas edições favorece a adesão dos leitores, pro- movendo, em primeiro lugar, a surpresa e a curiosidade face a objetos diferentes, mas depois a manipulação e a exploração das suas múlti- plas possibilidades, muitas vezes com recurso à repetição, permitindo releituras e (re)descobertas (Perrot, 1987). Este exercício de busca de novidade é um dos elementos-chave dos livros-objeto, dadas as possibi- lidades de criação geradas pelos aspetos materiais como as dimensões, o tipo de encadernação, o formato, a inclusão de objetos, os materiais usados, etc.. Desafiadores, originais, exigentes, sem abdicarem da di- mensão lúdica mas enriquecendo-a com outros níveis de leitura, os li- vros em análise exemplificam o cariz experimental da edição contem- porânea para a infância. Transformado em leitor ativo, incluindo fisicamente através da manipulação do livro, única forma de aceder à mensagem, a criança também acede ao seu mecanismo de construção. Além disso, o grau de liberdade do processo de leitura é claramente amplificado, permitindo (exigindo!) avanços e recuos nas páginas, tirando partido da esponta- APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 17 neidade do leitor e da sua iniciativa no contacto direto com a matéria de que são feitos os livros, crucial do ponto de vista da sua construção e estrutura.

1.2. Em março de 2016, um grupo de investigadoras de diferen- tes universidades portuguesas e espanholas, a que se juntaram poste- riormente contributos de colegas brasileiras, reuniu-se na Universidade de Aveiro para ensaiar uma primeira aproximação ao conceito de li- vro-objeto, procurando perceber e organizar a variedade de propostas editoriais existentes. Ficou patente, nesse primeiro encontro, que aca- bou por tomar a forma de uma reunião de investigação, seguida de um seminário aberto ao público, não só o interesse que o tema desperta junto de públicos diversos (investigadores, educadores, professores, bibliotecários, animadores culturais, pais e mediadores de leitura em geral), como a lacuna existente, em Portugal, em termos de produção nacional neste âmbito e em termos de reflexão e teorização. Assim, este volume pretende reunir e divulgar um conjunto de reflexões que não só se propõem caracterizar várias facetas do livro-objeto, avançando na sua classificação, organização e estudo sistemático, como dar conta das potencialidades de que se reveste o livro-objeto ao nível da formação de leitores e do desenvolvimento de competências de leitura, desde idades muito precoces. O volume inicia-se com um texto de Diana Martins, intitulado “Livro-brinquedo: contributos para uma tipologia”, onde a autora, atualmente a desenvolver uma tese de Doutoramento sobre este tema, não só apresenta uma breve panorâmica histórica sobre este tipo de proposta editorial, como analisa alguns exemplos de livros-brinquedo que ilustram categorias diferentes, procurando sistematizar um univer- so muito amplo e vasto. Segue-se o texto de Sara Reis da Silva, “Livros ‘perfurados’: singularidades e potencialidades”, dedicado a um tipo particular de livros-objeto. Os livros perfurados são aqui apresentados e estudados, ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 18

com recurso a uma variedade de exemplos muito significativa, tendo em conta não só os sofisticados mecanismos gráficos que mobilizam, mas as implicações, em termos de conteúdo e de sentido, de que se re- vestem os aspetos relativos à materialidade dos volumes, nomeadamen- te o impacto do elemento perfurado e as potencialidades que resultam do seu uso. Em “Livros para embalar: sono e sonhos com texturas”, de Ana Margarida Ramos, é realizada a análise de três livros-objeto di- ferentes relacionados com o tema do adormecimento do bebé ou da criança pequena, designados genericamente como bedtime books. Ao contrário do que é comum pensar, algumas destas propostas, ao recor- rerem à autorreferencialidade, visível na opção pela sobreposição do tema do livro e do seu uso principal, possibilitam uma leitura mais com- plexa, em resultado da mise en abîme, com referências a livros e leituras encaixados nos objetos, mas também de pais e filhos que repetem, no nível ficcional, os mesmos rituais dos leitores e mediadores, no nível empírico. “Do livro-álbum ao livro-brinquedo: Tobias às fatias e outros livros ‘fatiados’”, de Carina Rodrigues, é um texto dedicado aos “li- vros às tiras”, os mix-and-match books, uma tipologia que prescinde da leitura sequencial, multiplicando exponencialmente as potencialidades combinatórias dos fragmentos. O leitor é, assim, transformado em co- criador de sentidos e possibilidades de leitura através da manipulação física e da recombinação dos elementos que constituem os livros. Pu- blicações semelhantes recebem a atenção de Margareth Mattos, autora de “Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha, Quem espia se arrepia: mais que livros de imagem, livros-objeto”, um artigo centrado na análise da coleção “Ping-Póing” (1986), compos- ta por três livros de autoria de Eva Furnari, cujo projeto gráfico-edito- rial lúdico, criativo e interativo, apesar da fragilidade material, faz com que possa ser hoje considerada como precursora do elaborado livro-ob- jeto contemporâneo. Em termos de leitura e de interpretação, trata-se de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 19 edições exigentes para o leitor, no sentido em que é entendido como um co-construtor de sentidos, através da manipulação praticamente livre e quase ilimitada das combinações que o livro lhe permite. Do fervilhante contexto editorial galego chega uma proposta de leitura de um livro-objeto desdobrável sem texto, Balea, cuja elaborada conceção fomenta diversas possibilidades de leitura, pormenorizada- mente analisadas por Isabel Mociño em “Atrás do rasto da Balea: desdobrando universos ficcionais em língua galega”. A investigadora situa esta publicação de destinatário amplo e heterogéneo no contexto da evolução da produção literária galega atual, traçando uma panorâmi- ca esclarecedora das suas dinâmicas mais recentes. Já Cláudia Sousa Pereira recorre a uma original proposta de leitu- ra de Jean Perrot, pedida de empréstimo a um produto muito conhecido do público infantil, o chocolate Ovo Kinder, para, em “O livro-objeto e a teoria do Ovo Kinder”, exemplificar a sua aplicação a dois livros- -objeto diferentes, um livro-carrossel e um pop-up, cuja publicação é separada por dois séculos. Tendo em vista a questão da formação de leitores e da iniciação à educação literária, este texto é também uma re- flexão sobre as potencialidades do livro-objeto na sedução dos leitores pela leitura. Do Brasil, pela mão de Eliane Debus e Rosilene da Silveira, che- ga “Fabrico e uso de livros artesanais na formação de educadores”, um texto que apresenta uma atividade realizada com regularidade, des- de 2001, com estudantes da 5ª. fase do curso de Pedagogia da Universi- dade Federal de Santa Catarina – UFSC (Brasil), no âmbito da discipli- na de Literatura e Infância. A atividade consiste na elaboração de livros artesanais, permitindo aos alunos (futuros educadores e professores) descobrirem os elementos que integram o livro e as possibilidades de leitura que este objeto revela junto das crianças. A questão da materia- lidade do livro e o envolvimento pessoal dos alunos em todas as fases da sua construção, até à exposição final e contacto com os destinatários, criam uma relação afetiva com a leitura e com os livros que passam a ser mais do que simples objetos. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 20

Sandie Mourão, no capítulo intitulado “O livro como objeto - Bernardo Carvalho no papel de ilustrador-designer”, analisa o re- levo da materialidade do livro e a intervenção do designer no produto editorial final, a partir da análise de três obras do ilustrador português Bernardo Carvalho. Para além da relação entre texto e imagem, a cria- ção do objeto livro exige uma atenção a todos os elementos que o inte- gram, buscando unidade e coesão. Nos casos em apreço, ao assumir as funções de ilustrador e designer, para além de diretor artístico da chan- cela Planeta Tangerina, os livros resultam de um processo de criação longo, com múltiplas fases, até chegarem às mãos dos leitores. Os dois últimos capítulos tratam o aspeto material do livro e a sua importância no ato da leitura e na formação do leitor. A partir da análise de respostas leitoras, analisa-se a questão do aspeto material do livro na construção do discurso, um dos elementos que marcam o desenvolvimento da edição do livro literário infantil no século XXI. No primeiro desses dois textos, “O espaço do leitor no livro como objeto. Para uma poética da leitura do livro-álbum a partir da sua mate- rialidade”, Rosa Tabernero explora as potencialidades dos aspetos ma- teriais do livro como objeto ao nível da leitura e da formação de leitores literários. Centrando-se num conjunto de exemplos variado, oriundos de diferentes contextos e línguas, a autora dá conta de como a evolução do livro-álbum tem vindo a aproximá-lo cada vez mais do livro-objeto, exigindo uma interação cada vez mais ativa e participativa do leitor, mesmo em termos da sua manipulação, esbatendo as barreiras entre a realidade e a ficção (ou tirando partido delas para efeitos da própria criação literária, em construções de cariz metaficcional). Virginia Calvo, por seu turno, em “Respostas leitoras de crian- ças e de adolescentes ao livro-objeto. Análise qualitativa e proposta de classificação”, apresenta resultados de vários projetos de investiga- ção levados a cabo pelo seu grupo de pesquisa que estudaram as respos- tas leitoras de diferentes públicos. O tratamento dos dados recolhidos, através de vários instrumentos, sublinha a relevância da categoria “livro APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 21 como objeto” na aproximação dos leitores ao livro e no próprio proces- so de construção de sentidos a partir da leitura, observação e exploração dos objetos propostos. O volume encerra com a apresentação sucinta de todas as autoras envolvidas. Redigidos nas línguas maternas de cada uma das autoras, os textos em línguas estrangeiras foram traduzidos pela coordenadora do volume e adequados, no caso dos de autoria brasileira, à norma do português europeu, com vista a dar mais unidade e coesão ao livro. Por razões de economia de custos, as imagens que ilustram os textos estão reproduzidas a tons de cinza e não na paleta de cores original, tendo apenas uma função indicativa e não substituindo a observação dos vo- lumes originais. Trata-se, como facilmente se compreende, de uma abordagem preliminar a um universo vasto e em franca expansão, sem pretensões de exaustividade. Pretende, igualmente, chamar a atenção dos leitores para a complexidade criativa e artística de um conjunto de objetos que revela inúmeras potencialidades do ponto de vista da atração dos lei- tores em diferentes fases do seu processo de formação, seduzindo-os pelas formas, pelas cores, pelos sons e pelas propostas de interação. Assim, este volume que integra os estudos iniciais de investiga- doras de três países sobre o livro-objeto conta com onze estudos que abrangem a conceção/criação destes livros, a sua classificação tipoló- gica, a análise de algumas tipologias específicas e a reflexão sobre as suas potencialidades formativas e didáticas. Prevê-se que a reflexão aqui apresentada possa ser aprofundada e alargada, a outros países e a outras publicações, acompanhando este fenómeno editorial e as suas repercussões ao nível da formação de leitores e da promoção da leitura.

Referências:

BECKETT, Sandra (2012). Crossover picturebooks: a genre for all ages. London: Routledge. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 22

BELLORÍN, Brenda (2010). “’Efectos especiales’: el peso de los as- pectos materiales del libro-livro-álbum en adaptaciones actuales de ‘Los três cerditos’”. in COLOMER, Teresa, KÜMMERLING-MEIBAUER Bettina, SILVA-DÍAZ, María Cecilia (ed.). Cruce de Miradas: nuevas aproximaciones al libro-livro-álbum. Caracas: Banco del Libro, pp. 74-86. BOYCE, Lisa Boggiss (2011). “Pop Into My Place: An Exploration of the Narrative and Physical Space in Jan Pienkowski’s Haunted House”. Chil- dren’s Literature in Education, 42, pp. 243-255. KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina (2015). “From baby books to picturebooks for adults: European picturebooks in the new millennium”. Word & Image, 31 (3), pp. 249-264 KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina et al. (eds.) (2015). Learning from Picturebooks: Perspectives from child development and literacy studies. New York: Routledge. KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina (ed.) (2011). Emergent Lite- racy. Children’s books from 0 to 3. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina & MEIBAUER, Jorg (2005). “First Pictures, Early Concepts: Early Concept Books”. The Lion and the Uni- corn, 29: 3, pp. 324-347. LINDEN, Sophie Van der (2006). Lire l’album. Le Puy-en-Velay: Ate- lier du poisson soluble. NIKOLAJEVA, Maria (2008). “Play and playfulness in postmodern picturebooks”. in SIPE, Lawrence R & PANTALEO, Sylvia (ed.), Postmodern Picturebooks: play, parody, and self-referenciality. New York: Routledge Re- search in Education, pp. 55-74. NIKOLAJEVA, Maria e SCOTT, Carole (2001). How Picturebooks Work. New York: Garland Publishing. PERROT, Jean (1987). Du jeu, des enfants et des libres. Paris: Du cer- cle de la Librairie. RAMOS, Ana Margarida (2016). “On the liminality of the picturebook: the case of mix-and-match books”. History of Education & Children’s Litera- ture, XI (1), pp. 205-213. REYNOLDS, Kimberley (2010). Radical Children’s Literature: future visions and aesthetic transformations in juvenile fiction. New York: Palgrave MacMillan. ROMANI, Elisabeth (2011). Design do Livro-Objeto Infantil. Tese de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 23

Mestrado em Design e Arquitetura apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. SALISBURY, Martin (2005). Ilustración de libros infantiles. Barcelo- na: Editorial Acanto.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 25 2. Livro-brinquedo: contributos para uma tipologia4

Diana Martins

1. Introdução: contributos para a História, definição e carac- terização do livro-objeto

A investigação recente tem mostrado que a aprendizagem da lei- tura e a motivação para ler começam antes da entrada na escola, por via de experiências e vivências sociais frequentes no dia a dia, estando ain- da provado que a criança desenvolve mais facilmente as capacidades de leitura e de escrita se as situações de aprendizagem tiverem um sentido e uma finalidade real (Pessanha, 2001). Entre as estratégias de promoção da leitura e de construção de competências de pré-literacia apontadas, recomenda-se o contacto assí- duo, próximo e regular com os livros desde tenra idade, possibilitando à criança o manuseio livre, intuitivo e lúdico, associado a momentos de prazer e afetividade. Na verdade, os pais são, regra geral, os principais agentes na hora de fomentar e consolidar o hábito e gosto pela leitura dos seus filhos. Porém, o sucesso, nestes primeiros anos, depende gran- demente da sua preparação e motivação, que deve ter em consideração os interesses da criança, determinados pela fase de desenvolvimento em que se insere, sem esquecer a vertente lúdica, devendo este contacto precoce ser conotado com o jogo e a diversão e, portanto, próximo da aceção de leitor “as a player” (Appleyard, 1991; Goldman, 2010; Ra- mos e Silva, 2014).

4 Este texto resulta do trabalho de investigação em torno do livro-objeto que está a ser realizado no âmbito do curso de Doutoramento em Estudos da Criança na especialidade de Li- teratura para a Infância, no Instituto de Estudos da Criança, na Universidade do Minho, sob a orientação da professora Sara Reis da Silva. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 26

Antes de se saber ler palavras ou descodificar o complexo siste- ma de signos verbais que é a língua escrita, o livro começa por ser en- tendido como um brinquedo (já que o prazer de ouvir e de jogar precede o de ler), cuja apreensão goza de uma maior liberdade e se inscreve, essencialmente, no domínio do jogo, que suscita prazer. Assim sendo, o livro-brinquedo, enquanto objeto capaz de convidar à livre manipu- lação, propondo uma estimulante desformalização do ato de ler assente em temáticas do interesse dos pré-leitores e em modos/géneros textuais diversos, contribui para a adoção de atitudes e de disposições em rela- ção à linguagem escrita que se constituem como precursoras da literacia (Cervera, 2004; Goldman, 2010). De entre a vasta oferta de livros para crianças, os livros-brin- quedo – referimo-nos, por exemplo, aos livros pull-the-tab e aos livros pop-up, aos livros-concertina, aos livros às tiras ou mix-and-match, aos livros-fantoche, entre outros – são consensualmente indicados entre as sugestões de leitura como potencialmente capazes de incitar exercícios sensoriais ricos e diversos (oferecendo sons, texturas, etc.). Estes obje- tos desafiam, de facto, os mais pequenos em termos de leitura e de ma- nipulação e, por via da presença de uma composição visual dominante ou, por vezes, exclusiva, torna-se também possível a aproximação de leitores que ainda não dominam o código linguístico (Ramos e Silva, 2014). Ainda que partilhando certas afinidades que questionam a fixidez narrativa no que respeita à própria sucessão actancial, convém ressalvar que, enquanto o livro-jogo se encontra sujeito a regras, no livro-brin- quedo, sobressai, sobretudo, o caráter livre5 inerente também ao próprio potencial contacto físico. Com efeito, o brinquedo, por si só, pressupõe uma relação íntima com a criança e carateriza-se por uma indetermina- ção, sinónimo também de liberdade e espontaneidade, quanto ao seu uso (Kishimoto, 2000). Estes livros são “uma produção do mercado

5 Informação veiculada por Sara Reis da Silva sobre o livro-jogo e recolhida aquando dos encontros “The child and the book”, na Universidade de Aveiro, decorridos entre 26 e 28 de março de 2015. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 27 de literatura infantil, que compreende livros destinados a brincadeiras, conhecidos como (...) livros-vivos” (Parreiras, 2006: 24-25). Essa tendência tem vindo a ganhar expressão nas últimas déca- das, embora a sua História seja já antiga e tenha tido início no sécu- lo XIII. Assim, no que respeita à História do livro-objeto, ainda que a primeira aplicação de um elemento móvel num livro não seja muito precisa, esta parece remontar ao século XIII, e a Matthew Paris, um monge beneditino, em concreto à sua obra Chronica Majora, que inclui um volvelle ou disco/roda giratória. Estas rodas parecem ter sido os primeiros dispositivos móveis a aparecer nos livros. Ramón Llull é autor de outra obra que tira partido de um enge- nho com as mesmas características. Na sua obra, Ars Magna (1275), inclui discos giratórios de papel que, uma vez rodados, podiam gerar um variado número de combinações de ideias e que tinham por inten- cionalidade a conversão ao Cristianismo. Em Cosmographie (1524), o professor de matemática e astronomia Pierre Apian dá a conhecer um livro relativo à astronomia onde faz uso, também, destes mesmos ele- mentos móveis. Estes círculos giratórios eram o dispositivo mecânico ideal para códigos secretos, de que é exemplo a obra Polygraphia, de Johannes Trithemius, publicada postumamente em 1518 (Hurst & Ch- ristian, 2011). A estes primeiros livros seguiram-se os livros com abas ou os flap books. Durante o século XVI, são comuns os livros que tiram par- tido de pedaços de papel colados a ilustrações do corpo humano, que, uma vez levantados, revelam partes internas deste. Exemplo deste tipo de configuração é a obra Tabulae Anatomicae Sex (1539), de Andreas Vesalius. Durante o século XVIII, um novo dispositivo mecânico ganha po- pularidade. Trata-se dos livros turn-up, metamorphoses books, também conhecidos por Harlequinades. Robert Sayer terá sido responsável pela sua primeira versão impressa, por volta de 1765. Estes livros de baixo custo tornaram-se conhecidos por Harlequinades, porque a personagem ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 28

teatral Harlequin era a figura central em muitos deles e, não raras vezes, esse termo surge no próprio título desses volumes. Ainda que admitin- do variações, essas publicações têm normalmente uma ou duas folhas ilustradas, com a primeira folha dobrada perpendicularmente em quatro secções. Uma segunda folha é, então, cortada ao meio e dobrada nas margens superior e inferior por forma a que cada aba possa ser levan- tada separadamente. Tirando partido de uma série de dobragens que o aproximam de um panfleto, quando se levanta ou se baixa parte de uma ilustração, surge uma nova imagem que faz a narrativa avançar, permi- tindo introduzir o leitor na história de modo fraccionado (idem). Acrescente-se, ainda, que, depois de 1800, a editora londrina S. & J. Fuller publica, pela primeira vez, livros com bonecas de papel, que disponibilizam algumas figuras recortadas sem rosto em diferentes trajes, denominados paper doll books. A partir do século XIX, é possível observar-se a aplicação de elementos móveis a livros concebidos para entreter e deliciar os mais novos. A editora Dean & Son, fundada em Londres antes de 1800, passa a ser reconhecida como a criadora de livros com aplicações móveis des- tinados ao público infantil, publicando cerca de 70 livros nos quais se socorre de mecanismos móveis diversos, surgindo, assim, o termo toy book. Entre os primeiros títulos desta tipologia, encontra-se Dean’s Mo- veable Red Riding Hood (c. 1857), objeto no qual cada plano da ilustra- ção está preso ao seguinte por uma fita que, uma vez puxada, faz surgir um novo cenário em perspetiva. Nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, surgem os livros túnel, tunnel-books, ou peep-show books, que, invocando uma sensação de profundidade e movimento dentro da dimensão espacial de uma imagem, num período exórdio ao cinema, gozam de grande popularidade. Estes livros podiam abrir-se em linha reta assemelhando-se a um túnel, como A Brief Account of the Thames Tunnel (1851) (idem). Ernest Nister foi outro editor especializado em livros-vivos. No seu Little Pets (1896), as figuras recortadas elevam-se automaticamente APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 29 ao virar da página adjacente, criando um cenário montado sobre uma ilustração, mas, num outro plano, unido por linhas e tiras de papel. Este editor foi ainda responsável pela produção de livros com discos gira- tórios capazes de simular um efeito de decomposição de uma imagem, recorrendo a uma aba na parte inferior da página, que, ora puxada, faz deslizar uma primeira imagem dividida em fatias sobre os segmentos de uma segunda ilustração, criando, desta forma, uma imagem dife- rente. Para recuperar a imagem anterior, basta rodar a aba no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Todavia, os livros mais originais do século XIX são fruto do trabalho de Lothar Meggendorfer (1847- 1925), autor de alguns dos mecanismos mais complexos. International Circus (1887) e Comic Actors (1891) são os livros mais representativos da sua obra, capazes de surpreender pela complexidade e inovação que evidenciam, bem como pelo cunho humorístico. Meggendorfer não se contentava com apenas um efeito por página pelo que, em várias das suas obras, é possível mover cinco partes de uma ilustração simultanea- mente e em diferentes direções. Como consequência da I Guerra Mundial, a produção destes ar- tefactos escasseia. Em 1929, dá-se início a uma nova série de livros interativos. O britânico Louis Giraud produz, então, os livros pop-up. Nestes seus volumes, em pelo menos cinco páginas, era possível, viran- do a página, fazer erguer automaticamente uma ilustração em página dupla, que podia ser vista de todos os lados (idem). O contacto com as ruturas artísticas das décadas de 20 e 30, como o Cubismo, por exem- plo, irá refletir-se em novas formas de representação do real, sendo de mencionar edições arrojadas como Heads, Bodies & Legs (1946), de Denis Wirth-Miller, um livro composto por três conjuntos de páginas separadas (tiras de papel, mix and match book) que permitem criar com- binações inusitadas (Powers, 2008). Na década de 1930, a Casa Editrice Hoepli, de Milão, publica o seu primeiro theatre book. La bela Addormetata Nel Bosco foi conce- bido neste formato carrossel. Muitos carousel books continuaram a ser ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 30

publicados na década de 1960. Diante da excelência de obras do século XIX desta natureza, os editores começaram a publicar reproduções e adaptações. São vários os livros pop-up publicados a partir da década de 1960. E é, na verdade, na década de 1980 que se observará um aumento exponencial do número de livros pop-up (idem). Decorrente dos desenvolvimentos tecnológicos recentes em ter- mos editoriais e gráficos e do contributo de um conjunto de novas vozes de visível qualidade artística, que têm vindo a renovar o universo da edição literária preferencialmente dedicada aos mais novos, bem como pelo nascimento de várias editoras exclusiva e/ou preferencialmente dedicadas à publicação de obras destinadas a crianças, o livro infantil aufere, atualmente, de uma “dimensão de brinquedo e de obra de arte de grande elaboração estilística, potenciando diversas e novas utilizações a que educadores e mediadores de leitura – pais, professores, animado- res, bibliotecários – terão de dar cada vez mais atenção” (Ramos, 2007: 257).

2. Análise de um corpus textual exemplificativo

Seguidamente, procuraremos explicitar algumas singularidades do livro-brinquedo, um veículo potencialmente atrativo no campo da exploração pictórica/gráfica, pela capacidade de experimentação e de inovação que acarreta. Para tal, recorreremos a um corpus representa- tivo, selecionado ou fixado a partir de critérios como a data/época de edição (todos publicados em Portugal entre 2000 e 2016) e a própria originalidade verbo-icónica e gráfica. Iniciamos com a análise de um livro muito recente (2016) que poderá ser incluído na categoria dos “livros perfurados”. Trata-se de O meu pequeno mundo – Pai (2016), de Jonathan Litton (fig. 1). Este volume, evidenciando características do livro-álbum poético, assenta num monólogo protagonizado por diferentes filhos que se dirigem aos APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 31 seus pais, recompensando-os constantemente pelas atividades realiza- das. Trata-se de uma inversão de papéis, capaz de deliciar e divertir o leitor, que aqui vê, por exemplo, um pequeno pinguim congratular o seu pai por este o ter ensinado a patinar. O livro apresenta um formato quadrangular (19x19 cm), cantos redondos, e está impresso em papel cartonado. No que respeita à componente gráfica, o livro encontra-se perfurado, pelo que, ao longo do volume, vemos um recorte em forma de estrela que vai diminuindo o seu tamanho a cada página e assumindo diferentes significados ao longo do discurso verbal e imagético, poden- do ser um troféu que o filho dá ao pai chita por este ter ganho uma corri- da, ou “uma estrela do mar profundo” que o pai hipopótamo recebe por ter ensinado o filho a mergulhar, entre outras correspondências. Ape- sar de, maioritariamente, a estrutura se basear em episódios sucessivos com uma certa autonomia, no final, o livro recorre às personagens com que iniciou o discurso para concluir que, independentemente de todos os seus presentes, o seu pequeno leão é a sua estrela favorita. No que respeita à componente pictórica, o volume serve-se de imagens muito coloridas, de figuras estilizadas e de grandes dimensões.

Figura 1 - Dupla página de O meu pequeno mundo - Pai ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 32

Na vertente dos tipos de livros de tapa e destapa, lift-the-flap, destacamos a obra Boa noite, Bolinha! (2009) (fig. 2), de Eric Hill, par- te-integrante de uma extensa e bem divulgada coleção. Ao longo desta concisa narrativa assente no discurso direto, o protagonista, Bolinha, vai-se despedindo de várias personagens e objetos que lhe são queridos, sendo os acontecimentos apresentados de acordo com a sua sequên- cia cronológica, que culminam com o adormecimento da personagem principal. Por via de pedaços de papel colados que se podem levantar, a ilustração adquire uma terceira dimensão e dá aso a um jogo de des- cobertas. No que respeita à componente pictórica, é de referir a opção pelo fundo branco que contrasta com as figuras coloridas de contornos delimitados por uma linha preta.

Figura 2 - Dupla Página de Boa noite, Bolinha!

No âmbito dos livros às tiras ou mix-and-match, assinalamos a edição do livro Vira e combina na quinta (2015) (fig. 3), de Axel Scheffler. Neste volume, o leitor pode optar por procurar pedaços de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 33 uma imagem completa ou por misturar diferentes formas e padrões for- mando animais “estrambólicos”, como, por exemplo, um “vorco” (me- tade vaca e metade porco), entre outras. Cada animal formado faz-se acompanhar por uma breve descrição sob a forma de discurso poético. Recorde-se o gosto da criança pela deturpação da lógica empírica, da incoerência/ausência de sentido, do absurdo como formas de transgres- são da realidade (Ramos, 2007) e a capacidade que a linguagem poética faculta de “transgressão da boa e sensata moral familiar” (Jean, 1989: 131).

Figura 3 - Vira e combina na quinta O Sapo Saltitão (2014), de Ronne Randall, faz-se acompanhar por uma aba que, uma vez pressionada e solta, se assemelha ao mo- vimento dos saltos do sapo. É um livro de pequenas dimensões facil- mente manipulável por leitores mais novos. Trata-se de uma narrativa breve e simples, de estrutura acumulativa, com recurso à rima, na qual o protagonista exibe as suas habilidades, terminando por encontrar uma companheira que partilha os mesmos dotes. Trata-se de um livro-álbum profusamente ilustrado, no qual a figura central é o elemento de maior destaque na ilustração. A escolha do formato revela como intenciona- lidade um elevado impacto na apreciação (visual, estética e sensorial), ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 34

adequando-se à mensagem, participando do universo semântico e da to- talidade estética do livro-álbum. Distingue-se, de facto, como um obje- to tridimensional que preza pela diferença como forma de valorização, através da seleção de um formato distinto do de várias obras publicadas no país. Olá Adeus (2015), de Delphine Chedru, publicado pela editora Kalandraka é um livro-álbum do género portefólio/catálogo que explo- ra a temática dos opostos e que pode ser integrado na categoria do livro de ilusão ótica. O livro tem como particularidade o recurso a um filtro azul e a um vermelho, o que permite, por exemplo, que usando o filtro azul vejamos na ilustração elementos alusivos ao verão, mas, se optar- mos pelo filtro vermelho para ver a mesma imagem, estes elementos inicialmente observados ficam ocultos e torna-se visível um cenário de inverno. Dada a dimensão dos filtros pressupõe-se uma leitura lenta, cuidada e meticulosa de cada ilustração, semelhante à observação pro- porcionada por uma lupa. Trata-se de um instrumento interessante ao nível da literacia visual, e de um interessante jogo visual, que confronta o leitor com diferentes pontos de vista, picado (de cima para baixo), contrapicado (de baixo para cima), com planos mais próximos e mais afastados de um mesmo objeto (veja-se, por exemplo, a ilustração cor- respondente aos opostos “pequeno” e “grande”, onde ora vemos um rinoceronte, ora, num plano mais próximo, vemos o mosquito sobre esse mesmo animal). Por último, uma referência a um livro-álbum sem texto que pode- rá ser classificado como livro desdobrável. Trata-se deSerá... um gato? (2015), de Guido Van Genechten, da editora Gatafunho, um volume de formato retangular que se (des)dobra sobre si mesmo criando, deste modo, diferentes imagens. À medida que abrimos o livro, vemos que da orelha de um gato surge um bico de um pato e, deste último, vemos aparecer a asa de um papagaio, e assim sucessivamente, interrogando o leitor sobre o que virá a seguir. Estrutura-se, pois, originalmente, tendo por intencionalidade tirar partido da relação sequencial. O movimento de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 35 ir para a página seguinte estabelece uma relação causal entre as imagens. Os diferentes elementos ilustrados surgem isolados sobre um fundo azul, de cores fortes e contornos bem definidos, características que tornam mais fácil a sua perceção. Seguidamente, e porque, no corpus ao qual dedicaremos agora especial atenção, é possível observar a mobilização de estratégias grá- ficas muito diversificadas, analisaremos brevemente alguns exempla- res de livros-objeto publicados pela Civilização Editora e concebidos a partir da obra clássica de Beatrix Potter, A História de Pedrito Coelho, narrativa pioneira em forma(to) de livro-álbum narrativo, publicada, pela primeira vez, a expensas próprias, em 1901. No livro-álbum Pe- drito Coelho - Uma História para Brincar (2010), o leitor é convidado a brincar, auxiliando o Pedrito a fugir do Sr. Gregório, a partir diversas estratégias mecânicas. Deste modo, há momentos em que, por via de abas que sobem e descem, se simula o movimento de colher amoras. Noutros, pelo recurso a abas coladas que se podem levantar, descobre- -se o Sr. Gregório escondido no meio do quintal. Neste volume, texto e imagem complementam-se na descoberta de sentidos. Há, ainda, o recurso a uma aba lateral que revela um momento intermédio da nar- rativa, funcionando como mecanismo de previsão textual, e, assim, au- xilia na interpretação da história ao nível da formulação de hipóteses. Por via de discos giratórios, simula-se o saltitar de Pedrito pelo quintal, enquanto escapa do Sr. Gregório. Na última página, vemos o protago- nista a descansar depois desta aventura, num cenário pop-up que confe- re profundidade à ilustração. É de referir, igualmente, a obra Pedrito Coelho - Quem está es- condido? (fig. 4), livro-álbum onde se tira partido de discos giratórios que transformam a imagem numa outra. Mais concretamente, trata-se de duas ilustrações circulares sobrepostas que partilham o mesmo centro. Ambas têm recortes em forma de fatia. Uma vez movida a fita, cruzam- -se as duas imagens até que, continuando a mover-se, a ilustração de fundo, anteriormente oculta, toma o lugar da ilustração superior. Com ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 36

interpelações diretas ao leitor, esperando-se que este descubra as dife- rentes personagens que surgem após o puxar da fita, deparamo-nos com diferentes cenários/contextos como a horta, o lago, entre outros.

Figura 4 - Dupla página de Pedrito Coelho - Quem está escondido?

3. Considerações finais

Como procurámos demonstrar, as obras acima revisitadas impli- cam uma interpretação articulada e complementar entre dois códigos, o das palavras e o das imagens. A ligação estreita entre ambos acarreta níveis de interpretação distintos, num processo de avanços e recuos su- cessivos. Estimulam e reformulam conjeturas explicativas, motivando uma pluralidade de leituras e significados para a qual contribuem todos os elementos que os integram. Reclama-se uma leitura conjunta e dia- logada entre todos os seus constituintes, tornando possível uma fruição total do objeto, cuja variedade de explorações e experimentações pre- tendem surpreender e, simultaneamente, desafiar o leitor. A coabitação entre códigos narrativos distintos, aliada a um conjunto de particulari- dades paratextuais, requer leitores ativos e hábeis na prática contínua de reflexão e de questionamento, avançando possibilidades e confirmando APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 37 posteriormente as interpretações propostas, bem como na leitura dos interstícios e no entrelaçamento da informação que lhes chega de forma descontínua e simultânea (Silva-Diáz, 2005). Convém lembrar que “em larga medida é incontestável que a leitura faz a obra, no sentido em que pode fazê-la vingar, ou assassiná-la, precisamente porque é o leitor, e não o autor, nem o texto, quem a realiza, quem lhe dá a vida, quem a aceita como texto literário” (Leite, s/d: s/p). As principais singularidades destes volumes repousam, essen- cialmente, no envolvimento físico/sensorial no relato que reclamam, cuja tridimensionalidade dá aso a relações inusitadas entre o leitor e o objeto gráfico, propondo uma estimulante desformalização do ato de ler, por via da interpelação direta dos sentidos, bem como pelo convite ao contacto dinâmico e envolvente. Não esqueçamos que o indivíduo se molda nos primeiros anos de vida através de manipulações e operações lógicas com o intuito de procurar perceber as coisas e os fenómenos que o cercam (Munari, 1997). O livro-brinquedo é, desta feita, um campo rico em explorações gráficas, encerrando novas possibilidades de leitura, advindas da sua manipulação física ou sensorial, relativas à exploração de uma quarta dimensão, o movimento. Efetivamente, o formato particular, muitas ve- zes invulgar, e os processos de produção gráfica são os elementos que lhe conferem um caráter particularmente lúdico. A este respeito, é de referir que

muitos designers acreditam que um livro se define mais pelo seu pro- pósito do que pela sua forma e que um dos papéis de um designer de livros é juntar a sua própria perspectiva crítica do conteúdo – modelar, editar ou cuidar do material do autor, reforçar a experiência de leitura. Talvez seja assim, porque confrontados com a ameaça de redundância, numa cultura cada vez mais rendida ao digital, os designers de livros estejam a reinventar e a reposicionar-se num esforço de validar a sua prática (Twemlow, 2007: 104). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 38

Assentes numa lógica de fragmentação e descontinuidade, singu- laridades que se prendem com a estética pós-moderna, estes artefactos partilham com os seus leitores a responsabilidade de construção de uma mensagem. Tal virtude relativa ao leitor na condição de coautor no pro- cesso de construção de sentido(s) remete-nos, em última instância, para a aceção de obra aberta que, capaz de interpretações e reformulações diversas, coloca o leitor diante de “um conjunto de relações inesgotá- veis, ao qual acrescenta o seu próprio contributo” (Alves, s/d: s/p). A sua abertura intencional pretende provocar a reação/interpretação do leitor/intérprete, levando-o a apreender a obra

de acordo com a sua própria personalidade, interesses, experiências vi- venciais quotidianas e horizontes de expectativa, pelo que todo o pro- cesso de interpretação se encontra condicionado pela própria cultura em que o indivíduo se insere (idem).

Sempre com uma boa dose de diversão, propõem-se novos olha- res sob a perspetiva do livro, mais além da relação tradicional do lei- tor com o objeto, pela exploração de jogos sinestésicos decorrentes da exploração de sentidos ao serviço da imaginação, capaz do fomento de uma competência de leitura plural. Por via dos livros-brinquedo, o livro pode ser entendido, desde idades precoces, como fonte de prazer, estímulo à curiosidade/descoberta e instrumento indutor de conheci- mento veiculado informalmente e de forma fruitiva. Dada a profusão de pormenores úteis na apreensão semântica e diante de uma apresentação fracionada, particularidades visíveis em alguns dos volumes analisados, faz-se prever uma atenção demorada, empreendida ao ritmo pessoal de cada leitor. Todas estas estratégias, capazes de motivarem e captarem a aten- ção do leitor, conectam-se com o texto (de quantidade reduzida ou, mesmo, ausente), aprofundando-o e desenvolvendo-o, preenchendo as suas omissões e conferindo-lhe, em última instância, as virtudes de en- treter e instruir. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 39

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 43 3. Livros “perfurados”: singularidades e potencialidades

Sara Reis da Silva

1. Introdução: apontamentos para a definição/caracterização do livro perfurado

Parece ser consensual a dificuldade em diferenciar, classificar e designar, com propriedade e rigor, um conjunto de objetos artísticos ou artefactos que, tendo na criança o seu destinatário extratextual pre- ferencial, se demarcam, por exemplo, pelo formato invulgar ou pelo design inovador, materializado no recurso a estratégias como as ‘tiras ou fatias’, as abas, o pop-up ou o pull-the-tab, as dobragens (como nos livros-concertina), os recortes ou orifícios, entre outras. “Livros-vivos”, na aceção de Parreiras (2006), ou book-games, na de Beckett (2012), por exemplo, estes novos volumes mobilizam sofisticados mecanismos gráficos, convidando, não raras vezes, ao envolvimento físico do leitor, que, nesse contacto ostensivamente lúdico, vê a sua capacidade de ob- servação/decifração e a sua curiosidade intencionalmente estimuladas. Com efeito, a desconstrução criativa das características formais dos li- vros convencionais tem resultado na proposta de estruturas gráficas e, naturalmente, ficcionais alternativas, brincando-se até, por vezes, com o próprio conceito de livro. As fronteiras entre o livro-álbum narrativo, o livro animado ou o livro-objeto, por exemplo, adotando a distinção estipulada por Van der Linden (2006), revelam-se manifestamente frá- geis e as inovações materiais que estes objetos estéticos evidenciam estipulam naturalmente uma “revisão” da conceção ou do modelo tradi- cional de livro. O notório polimorfismo, que tem caracterizado o livro contemporâneo para a infância, surpreendendo, a cada instante (como ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 44

se não concedesse tempo para uma reflexão, uma arrumação teórica ou categorização) aqueles que se dedicam aos estudos em torno desta produção, encontra-se na origem, na nossa perspetiva, dos constran- gimentos aludidos e dessa espécie de impressionismo crítico que, em certos casos, se observa. Os livros perfurados, tipologia sobre a qual refletiremos neste estudo, que, na verdade, se insere numa outra mais lata, a de livro re- cortado ou cut-out book, atestam o que vimos de equacionar. Não tendo sido alvo, até ao momento e tanto quanto sabemos, de uma análise apro- fundada por parte dos investigadores (Salisbury, 2005; Van der Linden, 2006) que mais se têm dedicado ao estudo das novas formas artísticas vocacionadas para os leitores mais novos, os livros perfurados e as suas singularidades merecem um olhar atento. Importa, antes de mais, explicitar que, com a designação livros perfurados, um dos tipos que compõem a categoria do livros recortados, pretendemos referir-nos aos volumes que, resultantes do recurso gráfico a cortantes, ostentam um ou diversos buracos, furos, orifícios, brechas ou aberturas no seu papel/nas suas páginas, espaços ‘vazios’ ou ‘ocos’ que permitem espreitar, fazer aparecer ou descobrir. Nestes objetos, for- temente marcados pela intencionalidade lúdica, o formato, a dimensão e a própria disposição na página do elemento perfurado tornam-se de- terminantes para a construção de um sentido global, em muitos casos, de contornos narrativos. Assim, naquele que podemos encarar como o vasto âmbito do livro classificado como livro-objeto e, até, das suas subclassificações livro-brinquedo e livro-jogo, por exemplo, o livro perfurado ocupa um relevante lugar, substantivando-se diversamente, como, de seguida, procuraremos explicitar. Recorde-se que a técnica do recorte e/ou da perfuração de livros possui já uma longa História no domínio da edição de livros vocaciona- dos para os leitores mais novos. Vejamos apenas alguns exemplos para- digmáticos, sobejamente conhecidos, apenas do século XX, de épocas APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 45 e latitudes distintas, como é o caso do célebre (e pioneiro) The Hole Book (1908), da autoria do norte-americano Peter Newell (1862-1924) (fig. 5). Trata-se de uma narrativa em verso que possui um orifício represen- tativo de uma bala, disparada inadver- tidamente por um rapaz, Tom Potts, que perpassa os andares de um edifí- cio desde o seu sótão, passando pelos seus vinte andares, até ao seu rés do chão. Nesta obra, a perfuração repe- tida, absolutamente simétrica e loca- lizada sempre no mesmo local da pá- Figura 5 - The Hole Book gina, representa a passagem da bala por todos os espaços físicos que servem de cenário à ação, distinguindo-se, portanto, como um elemento intrínseco à própria narrativa. A esta obra modelar juntamos também uma outra, diferente em muitos aspetos, mas que se destaca igualmente pela sua reconhecida inovação ao nível do recorte. Trata-se da obra The Book about Moomin, Mymble and little My (1952), da autoria da finlandesa Tove Jansson (1914-2001). Neste caso, o recurso aos orifícios, recortes ou brechas observa-se desde a capa e a contracapa do livro – nestes dois para- textos, em dimensões distintas, incluem-se dois orifícios circulares – e integram a totalidade da publicação, tanto antecipando ao leitor partes ou pequenos segmentos das páginas que se seguem, como fixando ou reclamando um olhar mais atento relativamente a pormenores de passa- gens textuais já lidas. A natureza experimental deste tipo de livros que apelidamos gene- ricamente de livros recortados e perfurados pode, ainda, ser atestada no trabalho marcante do designer italiano Bruno Munari (1907-1998), de- signadamente em obras como Nella notte buia (1952) (Na Noite Escura), ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 46

obra editada em Portugal em 2011, com a chancela da Bruaá editora. Neste volume, Munari tira partido de meios editoriais como o tipo de papel e os recortes que se transformam em verdadeiros “‘comunicantes’ de alguma coisa” (Munari, 2014: 221). Deste modo, ao noturno das suas páginas negras na primeira parte da narrativa, ilustradas a azul e pontuadas por um espaço perfurado, no seu topo, um pequeno círculo, que revela “uma pequena luz”, junta-se um conjunto de outras páginas transparentes – “um capítulo semitransparente” (idem, ibidem: 228) –, já clareadas e, ainda, por fim, de outras “de papel de embrulho, cinzen- to-bege” (idem, ibidem: 229), livremente recortadas, a representarem uma gruta e a despertarem a curiosidade do leitor. Uma outra obra merecedora de menção é The Very Hungry Cat- terpillar (A Lagartinha Muito Comilona) (1969), de Eric Carle, um livro-álbum narrativo de larga difusão/receção graficamente singular pelo recurso quer ao corte diferenciado e gradativo (crescente) das pá- ginas referentes à sequência narrativa correspondente aos dias de sema- na, resultante, assim, em dimensões diversas em seis páginas sucessi- vas, quer aos muitos buracos patentes no centro dos vários frutos que a protagonista vai comendo. Note-se que, neste caso, os orifícios recriam física ou materialmente a ação da pequena heroína. Já na década de 70 do século XX, veio a lume There is an old lady who swallowed a fly (1972), de Pam Adams (1919-2010), um livro também amplamente divulgado e igualmente marcado pela estratégia gráfica da perfuração. Uma conhecida rima tradicional, de tipo cumu- lativo e caracterizada pelo nonsense, é recriada visualmente em tons fortes, aliando-se a esta composição um orifício que, ao revelar um de- talhe da ilustração da página seguinte, parece incitar o leitor a avançar na leitura. Uma referência, também, à artista checa Kevta Packovska (1928), reconhecida pela sua estética experimental, e, por exemplo, a Le peti roi des fleurs (1991) (O Reizinho das Flores), volume apenas editado no Brasil, que se distingue, desde a capa, pela inclusão de uma janela APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 47 quadrangular. Conto em forma(to) de livro-álbum, esta obra evidencia um grafismo muito especial, não só nas formas e nas cores (aliás, singu- larizantes da criação estética da sua autora), mas também pelo recurso a uma ‘janela’ que convida à descoberta, cria expectativas de leitura no potencial recetor e estimula a imaginação. Merecedoras de destaque são, ainda, as obras criadas pelo japo- nês Katsumi Komagata (1953-), artista e também designer muito ins- pirado por Bruno Munari, como acentua Beckett (2012), e muito parti- cularmente aos títulos Histoire d’une larme (2000), volume que, desde a capa, ostenta um recorte, em formato de lágrima, que perpassa toda a narrativa verbo-icónica, e Bruits du vent (2004), um texto marcadamen- te poético, de elogio da natureza, sustentado por sofisticados recortes de páginas cromaticamente muito diversas. Outros dois autores contemporâneos têm mobilizado semelhante estratégia nas suas narrativas. Referimo-nos a Emily Gravett em, por exemplo, Little Mouse’s Big Book of Fears (2007) (O Grande Livro dos Medos do Pequeno Rato) e ao premiado Again! (2011) (Outra Vez!). Se, no primeiro, o recurso ao recorte é visível logo na capa, no caso do segundo, é na contracapa que ele se revela mais significativo. Em am- bos os casos, os espaços perfurados, suscitando a surpresa e, por vezes, o riso, emergem como mecanismos alicerçantes da narrativa, corpo- rizando ações dos protagonistas. Tal como nestas obras da premiada ilustradora inglesa, também o irlandês Oliver Jeffers, em volumes como The Incredible Book Eating Boy (2006) (O Incrível Rapaz que Comia Livros), substantiva o gesto singularizador do protagonista da narrativa e inclui um recorte num canto da contracapa, recriando uma dentada. Uma referência, ainda, a uma obra de autoria portuguesa. Com textos de José Eduardo Agualusa e ilustrações de Henrique Cayatte, destaque-se a coletânea de contos Estranhões & Bizarrocos (estórias para adormecer anjos) (2000), Grande Prémio Gulbenkian de literatura para crianças e jovens – modalidade livro ilustrado (2002). Trata-se de um volume graficamente muito estimulante, na medida em que a inclu- são de recortes de formatos variados – círculo, quadrado, estrela, entre ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 48

outros – permite focalizar pormenores das ilustrações, multiplicando as perspetivas e os pontos de vista a que o leitor tem acesso.

2. Análise do corpus textual

Revisitados alguns títulos imprescindíveis no domínio do livro recortado e/ou perfurado, procederemos, de seguida, à análise de um corpus textual relativamente restrito composto por obras contemporâ- neas – todas editadas no século XXI – que possuem em comum o facto de integrarem orifícios com formato circular (ou muito próximo deste), cuja dimensão não se altera ou, pelo contrário, se modifica, resultan- do numa diminuição de tamanho. Esta seleção define-se, pois, empi- ricamente, pela composição gráfica, pontuada por um orifício circular, como mencionámos, que interfere significativamente na própria arqui- tetura textual ou na narrativa, apresentada sempre a partir de uma cons- trução em forma(to) de livro-álbum narrativo. Destacamos, pois, quatro livros cartonados e resistentes, dois deles de cantos arredondados, a convidarem ao manuseio livre por parte do leitor infantil, obras não publicadas em língua portuguesa, que possibilitam a exemplificação do percurso criativo a que temos vindo a aludir. A este conjunto de quatro, acrescentaremos, ainda, a referência a um outro volume em formato reduzido que, pelas razões que, a seu tempo, regista- remos, se diferencia ligeiramente dos anteriores. Em El pequeño aguje- ro (2009) (fig. 6), de Isabel Pin (1975-), a perfuração ocorre des- de a própria capa do volume, de- crescendo progressivamente em dimensão. Figura 6 - El pequeño agujero APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 49 Neste volume, à medida que se voltam as páginas da obra, um conjunto de círculos concêntricos sobrepõem-se e vão dando a conhe- cer, a partir do aproveitamento da sua forma geométrica, um elemento relevante sempre diferente e fundamental em cada sequência narrativa ou momento da diegese. A curiosidade e a surpresa, intencionalmente estimulada/inaugurada desde a primeira página, pela omissão do que é, de facto, esse “pequeño agujero” e também, ao longo de todo o relato, pela prevalência de frases simples na forma negativa, são, em larga me- dida, resultado quer da ilustração em grande formato das páginas pares, quer dos orifícios focais dominantes em todas elas. Assim, a própria materialidade do livro contribui para a construção do sentido da nar- rativa, na medida em que cada voltar de página estipula uma alteração espacial, bem como um avanço no relato/na ação. A busca da solução para esta espécie de enigma apenas desvendado no final é fortemen- te estimulada pela revelação paulatina de pormenores que cada página perfurada oferece. Em Et Avant (2012), do artista francês CharlÉlie Couture (1956), com ilustrações de Serge Bloch (1956-), o discurso visual, no registo a que este ilustrador nos tem habituado – minimalista e metafórico, como em Moi, J’attends (2005) (Eu Espero), por exemplo –, integra um bu- raco circular que perpassa todo o volume, situando-se sempre no centro de cada página. Este orifício, absolutamente estruturante para a cons- trução textual, de contornos poéticos e metafísicos, vai representando elementos distintos do real e da vida – por exemplo, ponto de interro- gação, sol, balão, boca, ventre materno, entre outros – e proporciona uma espécie de viagem no tempo e de regresso às origens, num especial percurso reflexivo ou estímulo ao autoconhecimento. The Hole (2013), de Øyvind Torseter (1972-), um dos mais re- conhecidos ilustradores noruegueses, é um singular exemplo recente de livro perfurado. Nesta obra, de essência simultânea e levemente fi- losófica e cómica, o orifício encontra-se incorporado na narrativa vi- sual, composta num registo visual minimalista e monocromático que ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 50

torna evidente esse elemento gráfico. Trata-se de um texto que recria o desconforto de um protagonista ao encontrar, um dia, um buraco que o persegue no seu apartamento. Também neste caso, a perfuração de- sempenha um relevante papel na própria construção narrativa, na me- dida em que o orifício, colocado sempre simetricamente, participa do cenário e (quase) pode ser lido como um elemento que interage com o próprio protagonista. Já em Lyoké y el gran pastel koki (2014) (fig. 7), de Nathalie Die- terlé, autora-ilustradora que assina uma dezena de volumes centrados na personagem que o título introduz6, o orifício, neste caso, ausente da capa, também de configuração circular, embora não totalmente regular ou, por outras palavras, distinguindo-se como um círculo expressivo ou livre, representa o motivo desencadeador da ação do protagonista, um bolo, e perpassa todo o volume, permanecendo em tons laranja e diminuindo de di- mensão. Esta redução de tamanho Figura 7 - Lyoké y el gran pastel koki decorre da própria evolução da nar- rativa e, em particular, da atuação das figuras que se vão cruzando com o protagonista. A narrativa abre com o discurso do pequeno herói que, estupefacto/aflito, vê o seu bolo fugir-lhe das mãos por ação do vento. A partir daí, cruzando-se com um grupo de oponentes – um “maldi- to león”, uns “Pájaros malos”, um “horrible camaleón” e “hormigas” –, Lyoké vai sentindo a perda progressiva de parte do seu “pastel”. A gradação decrescente que o discurso verbal estipula – observe-se o uso dos adjetivos “gigante”, “enorme”, “grande” e, por fim, “pequeno” –

6 Na versão original, publicada pela , com o nome Zékéyé. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 51 substantiva-se na própria redução gráfica do tamanho do orifício que representa o objeto de interesse e/ou de desejo do protagonista. As ilus- trações, em traços sóbrios e simples, representam apenas o essencial – ou seja, recriam somente as personagens –, e combinam, assim, com simplicidade com o discurso verbal, um conjunto de frases em discurso direto, exclamativas e de tipo imperativo, pronunciadas pelo herói. A estas obras juntamos, ainda, um volume cartonado, de formato reduzido, parte-integrante de uma coleção de quatro títulos vocacio- nados para pré-leitores, cuja construção assenta no binómio temático forma geométrica-cor. Da autoria da premiada artista inglesa Jane Ca- brera, estas obras ficcionalizam o Quadrado Azul, a Estrela Verde, o Triângulo Vermelho e o Círculo Amarelo (títulos, aliás, dos volumes), tendo como denominador comum uma personagem animal, um peque- no rato visualmente apresentado desde a capa da publicação. Optámos por revisitar, no contexto desta abordagem, o último título mencionado – Círculo Amarelo (2003) (fig. 8) –, uma vez que também, neste caso, se trata de uma construção gráfica fortemente determinada pela inclusão de um círculo recortado, que perpassa todo o volume e que permanece inalterado na sua dimensão. Numa sucessão verbo-dis- cursiva que se aproxima do mode- lo habitual do livro-álbum catálo- go (Ramos, 2011), embora não se possa ignorar a presença do dis- curso direto e de algumas suges- tões actanciais que, de certa for- ma, imprimem ao texto uma subtil narratividade, o círculo amarelo, já introduzido na capa da publi- cação, vai-se desvendado e assu- mindo sucessivamente a forma de Figura 8 - Círculo Amarelo um “belo balão amarelo”, de um ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 52

“grande nariz do urso”, de uma “bola saltitona”, de um “sol delicioso e quente”, de uma flor que cheira bem e, por fim, de “belas bolas de sabão”. O visualismo inerente à expressão titular estende-se à totali- dade da composição, tanto no domínio ilustrativo – note-se o recurso a uma apelativa diversidade cromática (nenhum, à exceção do amarelo, dos tons de fundo de cada uma das páginas se repete) –, como no que diz respeito ao discurso verbal, que, mesmo manifestamente contido, se distingue pela adjetivação frequente e expressiva (“belo”, “grande”, “saltitona”, “delicioso e quente”, “belas”), pelas expressões de contor- nos sinestésicos (“Sol delicioso e quente”), pelas sugestões sensoriais, por exemplo, olfativa (“Que bem cheira a minha flor”), e pelos enuncia- dos aliterativos (“belo balão” ou “belas bolas”). Assim, o círculo recortado desta obra, recurso gráfico e/ou visual, integra o discurso ficcional ou participa do próprio texto verbal, asso- ciando-se ao enunciado linguístico e estabelecendo uma ‘modalidade’ de leitura que obrigatoriamente tem de atender, conjugar e interpretar todos os elementos que compõem a publicação. Merecem, ainda, referência um conjunto de livros que, osten- tando orifícios ou buracos circulares, poderão integrar uma outra sub- categoria dos livros perfurados: os livros-máscara, uma designação que arriscamos propor neste contexto de reflexão. Tomemos como exemplo os pequenos volumes da coleção “Caras Divertidas” (2013) (fig. 9), da autoria de Jannie Ho, ou, ainda, o recentemente publicado Na Flores- ta das Máscaras (2015), de Laurent Moreau. Nestas obras, os espaços va- zios circulares destinam-se a ser lite- ralmente preenchidos ou completados Figura 9 - Caras Divertidas APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 53 pelos olhos do leitor que, assim, ganha novos rostos, oferecidos pela publicação. Em certa medida, poder-se-á acrescentar a este conjunto a obra Le livre avec un trou (2011), de Hervé Tullet, por exemplo, visto que também aqui o recetor é convidado a integrar fisicamente o volume e a ocupar o espaço vazio que este possui.

3. Considerações finais

A análise levada a efeito, centrada numa seleção restrita de vo- lumes exemplificativos do livro perfurado, parte integrante de uma ca- tegoria mais lata, a do livro recortado, como referimos, é reveladora da diversidade que caracteriza este objeto. Distinguindo-se como uma construção híbrida e, por vezes, com- plexa, o livro perfurado reclama um conjunto de especiais habilidades lectoliterárias e oferece uma experiência multimodal de contacto com um objeto que também, e além de tudo, por via do próprio grafismo ou da arquitetura do suporte, estipula inevitavelmente uma alteração das condições habituais de legibilidade. Com efeito, resultando, em larga medida, de um engenhoso design, discurso visual e discurso verbal, indissociáveis, articulam-se, ainda, sinergicamente com espaços perfu- rados, produzindo uma pluralidade de efeitos: estéticos, lúdicos, narra- tivos, entre outros. Janelas multiformes (circulares, retangulares, qua- drangulares, etc.) e/ou de dimensões distintas que convidam a espreitar e que incitam a voltar a página, buracos que completam a representa- ção visual e textual, orifícios concêntricos que orientam o olhar para detalhes de uma particular configuração espaciotemporal, brechas que possibilitam saber mais sobre as personagens ou sobre a própria ação, enfim, espaços ‘vazios’ ou ‘ocos’ com funcionalidades múltiplas dotam os volumes perfurados de um cariz desafiador e estimulam a curiosida- de do leitor. Entre a amplificação de sentidos e a focalização ou zoom in, por exemplo, a estratégia gráfica em questão, materialização da tendência experimental que tem caracterizado alguns volumes cuidadosamente ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 54

editados nos últimos anos, é fundamental na celebração desse jogo de procura e de descoberta que os livros perfurados proporcionam, en- quanto objetos que ambicionam a interação espontânea por parte do leitor a quem se oferece um contacto vivo e possíveis releituras, só ou acompanhado, mas sempre ao seu ritmo e à medida do seu desejo.

Referências bibliográficas: Livros perfurados analisados: CABRERA, Jane (2003). Círculo Amarelo. Lisboa: Dom Quixote. COUTURE, CharlÉlie e BLOCH, Serge (2012). Et Avant. Paris: Édi- tions Sarbacane. DIETERLÉ, Nathalie (2014). Lyoké y el pastel koki. Madrid: Edelvives. PIN, Isabel (2009). El Pequeño Agujero. Salamanca: Lóguez Ediciones. TORSETER, Øyvind (2013). The Hole. Brooklyn: Enchanted Lion Books.

Outros livros perfurados citados7: ADAMS, Pam (2003). There is an old lady who swallowed a fly. Wilt- shire: Child’s Play. AGUALUSA, José Eduardo (2000). Estranhões & Bizarrocos (Estó- rias para adormecer anjos). Lisboa: Dom Quixote (ilustrações de Henrique Cayatte). CARLE, Eric (2007). A Lagartinha Muito Comilona. Matosinhos: Kalandraka. GRAVETT, Emily (2010). O Grande Livro dos Medos do Pequeno Rato. Lisboa: Livros Horizonte. GRAVETT, Emily (2012). Outra Vez!. Lisboa: Livros Horizonte. HO, Jannie (2012). Caras Divertidas. Vamo-nos mascarar!. Lisboa: Presença. JANSSON, Tove (2008). The Book about Moomin, Mymble and little My. S./l.: Schildts. JEFFERS, Oliver (2008). O Incrível Rapaz que Comia Livros. Lisboa: Orfeu Mini. KOMAGATA, Katsumi (2000). Histoire d’une larme. Paris: Les Trois Ourses.

7 Nesta secção, mencionam-se as edições usadas por nós neste trabalho e a que pudemos ter acesso, sendo algumas traduções. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 55

KOMAGATA, Katsumi (2004). Bruits du vent. Paris: Les Trois Ourses. MOREAU, Laurent (2015). Na Floresta das Máscaras. Lisboa: Gata- funho. MUNARI, Bruno (2011). Na Noite Escura. Figueira da Foz: Bruáa. NEWELL, Peter (2008). El libro del cohete. Barcelona: Thule. PACKOVSKA, Kevta (1992). O reizinho das flores. São Paulo: Martins Fontes.

Estudos: BECKETT, Sandra L. (2012). Crossover Picturebooks: a Genre for all ages. New York: Routledge. NIKOLAJEVA, Maria (2008). “Play and playfulness in postmodern picturebooks”. in SIPE, Lawrence R. & PANTALEO, Sylvia (eds.) (2008). Postmodern Picturebooks: play, parody, and self-referentiality. New York: Routledge, pp. 55-74. MUNARI, Bruno (2014). Das Coisas Nascem Coisas. Lisboa: Edições 70 (1.ª ed. – 1982). PARREIRAS, Ninfa (2006). A psicanálise do brinquedo na literatura para crianças. São Paulo: Universidade de São Paulo. RAMOS, Ana Margarida (2011). “Apontamentos para uma poética do livro-álbum contemporâneo”. in ROIG RECHOU, Blanca-Ana et al. (coord.). O livro-álbum na Literatura Infantil e Xuvenil. Vigo: Xerais, pp. 13-40. ROMANI, Elisabeth (2011). Design do Livro-Objeto Infantil. Tese de Mestrado em Design e Arquitetura. Faculdade de Arquitetura e Planeamento Urbano, Universidade de São Paulo – Brasil. SALISBURY, Martin (2005). Ilustración de libros infantiles. Barcelona: Editorial Acanto. TREBBI, Jean-Charles (2012). The Art of Pop-Up: the magic world of three-dimensional books. Barcelona: Promopress.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 57 4. Livros para embalar: sono e sonhos com texturas

Ana Margarida Ramos

1. Livros-Brinquedo. Formas e usos. Pretende-se, neste estudo, proceder à análise de algumas publica- ções para crianças pequenas associadas ao contexto do sono, do proces- so de adormecimento e da ida para a cama. Designados genericamente como bedtime books, estes livros, que podem ter diversos formatos e apresentar uma significativa variedade de materiais na sua composição, estão entre os mais procurados por parte dos pais e familiares das crian- ças, desde praticamente o nascimento. Podem incluir-se, igualmente, nesta categoria alguns livros-ál- bum clássicos, como Goodnight Moon (1947), texto de Margaret Wise Brown e ilustrações de Clement Hurd, ou ainda, de forma um pouco diferente, Onde Vivem os Monstros (Kalandraka, 20098), de Maurice Sendak, Um pesadelo no meu armário (Kalandraka, 2004), de Mercer Mayer, ilustrando a atenção que a questão do adormecimento tem co- nhecido por parte de muitos autores de relevo, bem como as respostas criativas de que tem sido alvo. São, assim, incontáveis, as propostas editoriais, em diferentes formatos (livro-álbum, conto ilustrado, poesia/ rimas infantis, livro de imagens...) que tematizam e recriam o momento da ida para a cama da criança, revistando emoções e comportamentos como a recusa e o medo, nos mais variados registos textuais e visuais. A qualidade desta diversidade de publicações é, evidentemente, muito desigual, mas o facto de as publicações, com maior ou menor novidade, continuarem a surgir revela que o interesse pelo tema está longe de estar esgotado.

8Edição original de 1963. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 58

Aliás, sublinhe-se, em nota marginal a este texto que, ainda re- centemente, o tema voltou a ser alvo de atenções e muitos comentários, depois da publicação do livro The Rabbit Who Wants to Fall Asleep: A New Way of Getting Children to Sleep (2015), da autoria do psicólogo sueco Carl-Johan Forssén Ehrlin, primeiro em edição de autor e, depois, fruto do sucesso comercial que conheceu, com chancela da prestigiada Penguin Random House. O debate e a polémica sobre a capacidade de o livro adormecer em minutos as crianças a quem era lido versus a falta de qualidade artística, literária e plástica, do respetivo texto e ilustra- ções, avivaram discussões intensas, tendo originado a publicação de muitos textos que podem ser encontrados quase todos online. A investigação e a reflexão sobre os livros e os rituais de ador- mecimento, incluindo a sua evolução ao longo do tempo e a variação cultural que os caracteriza, têm confirmado o interesse pelo tema, mais explorado nas áreas da psicologia, da educação ou da sociologia, do que propriamente na da literatura ou dos estudos literários. Uma primeira razão pode ter a ver com os destinatários destes bedtime books, mas também com a sua insuficiente componente verbal ou qualidade literá- ria, atendendo ao desígnio utilitário e instrumental que caracteriza parte significativa das propostas. Merecem ainda assim referência, pela utilidade das reflexões para a elaboração deste estudo, os contributos de Mary Galbraith (1998) e de Griffth & Torr (2003) sobre as características, destinatários, objetivos e funcionalidades das publicações, sublinhando também as suas tendências em termos de propostas editoriais nos últimos anos. Na sua abordagem sobre as tendências contemporâneas dos livros infantis, Bettina Kümmerling-Meibauer (2015) refere-se aos livros-brinquedo, sublinhando a sua evolução nos últimos anos, com a introdução de vá- rios elementos não tradicionalmente associados ao processo de leitura e que contribuem para um hibridismo destas edições, situadas num limbo entre o brinquedo e o livro: APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 59

In order to appeal to toddlers, plenty of so-called baby books are disgui- sed as playthings, for example, with the possibility of lifting flaps in the pages, pushing on knobs, and pulling paper strips, or are a combination of picturebook, soft toy, and puzzle, encouraging the small child to use the picturebook as a tool (Kümmerling-Meibauer, 2015: 252).

Maria Nikolajeva (2008), ao estudar a ludicidade dos livros-ál- bum, refere-se a uma certa ambiguidade genológica, a propósito destas publicações, na medida em que “the boundary between art and artifact becomes vague” (Nikolajeva, 2008: 67). E acrescenta que “a vast ou- tput of products nowadays lies in the bordline between books and toys, employing cut-outs, flaps, and other purely material elements that add the playful dynamics and demand a certain degree of interaction to en- gage the viewers and make them co-creators” (idem). Atendendo aos destinatários principais, bebés e crianças na pri- meira infância, centramos a nossa atenção em propostas destinadas pre- ferencialmente a este grupo, recaindo a escolha sobre livros-brinquedo ou propostas editoriais similares. Também aqui, como é evidente, a bi- bliografia é escassa, sobretudo, e mais uma vez, a partir da perspetiva dos estudos literários9, face à ‘simplicidade’ (e/ou não literariedade) que caracteriza estes livros. Os livros-objeto (nas suas múltiplas formas e apresentações materiais) não têm conhecido, por parte da crítica, uma atenção aprofundada, pese embora alguns trabalhos relevantes, como os de Bettina Kümmerling-Meibauer (2011), associando estas publica- ções, sobretudo os early-concept books10, à literacia emergente. A indefinição em termos conceptuais é visível na hesitação da classificação destes produtos editoriais, sendo algumas propostas quase intraduzíveis: baby books, early-concept books, image books,

9Nas áreas da educação pré-escolar, da saúde e da psicologia infantil têm surgido algumas publicações relevantes, ainda que nem sempre rigorosas na abordagem das tipologias editoriais e géneros literários. Uma exceção interessante, ainda que esquemática, é a classificação proposta por Zeece (1996), mas haverá muitas outras, inclusivamente mais atuais. Na perspetiva do design do livro-objeto infantil, ver também Romani (2011). 10Sobre estes livros, ver também, Kümmerling-Meibauer & Meibauer (2005). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 60

toy books, board books, soft books, etc. Veja-se que incluem elementos muito diferenciados que vão desde o material utilizado no fabrico dos livros, aos destinatários preferenciais, incluindo os usos das publica- ções e o seu conteúdo. As traduções para língua portuguesa também apresentam problemas semelhantes: livro-brinquedo, livro-objeto, livro de imagens, livro cartonado, livro para bebés, livro de pano, livro de banho... A sua inclusão em catálogos de brinquedos, para além da forma ‘composta’, integrando jogos, sons, objetos, reforça o caráter híbrido destas publicações cuja materialidade é decisiva em termos de distin- ção em relação aos livros infantis de formato mais tradicional, exigindo um tipo de ‘leitura’ que excede claramente o único sentido da visão, propondo uma experiência sensorial (e emocional também, como tenta- remos demonstrar) alargada. Em comum, para além do formato reduzido, das cores atrati- vas, dos materiais adequados e resistentes à manipulação por bebés e crianças pequenas, cartonados, plastificados, mas também de tecido, às vezes combinando diferentes propostas, estas publicações caracteri- zam-se pela proximidade aos brinquedos, pela funcionalidade relevante ao nível do desenvolvimento da linguagem e do vocabulário, além da interatividade que proporcionam. Trata-se, igualmente, de publicações que promovem um contacto precoce com o livro-objeto e com as regras do seu uso, tanto em termos de manipulação e uso, como de postura e atenção, favorecendo a construção de representações concretas, além de positivas e estimulantes, sobre o livro e a leitura. A questão do sen- tido da manipulação das páginas e da observação/leitura também surge associada aos comportamentos emergentes de leitura que exigem ensi- no/aprendizagem, dado que estes não são inatos e carecem de modelos e de prática.

2. Corpus. Propostas de análise 2.1. O primeiro livro aqui analisado, Sleepy Kittens (Despicable Me) (2010), de Cinco Paul e Ken Daurio, com ilustrações de Eric Guil- lon, é o resultado de um processo curioso que resulta da transposição APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 61 para um objeto editorial de um referente ficcional, um livro que, no filme de animação Despicable Me (2010) (fig. 10), de Pierre Coffin e Chris Renaud, é lido pelo protagonista às três meninas que ele adota. A cena é breve e merece ser observada com atenção porque, além do ob- jeto-livro que introduz e cuja leitura é realizada integralmente, inclui uma série de alusões de cariz metaliterário que merecem reflexão. O contexto da sessão de leitura é igualmente digno de nota, uma vez que as crianças já conhecem o livro e dominam o seu conteúdo e a forma de o ler, mas insistem na necessidade de repetição da leitura, encarada como um ritual de afeto que as predispõe ao sono. Os comentários do protagonista, referindo-se ao livro como “lixo”, questionando “Isto é literatura?”, avaliando-o com a frase “uma criança de dois anos podia ter escrito isto...”, são ilustrativos dos preconceitos generalizados em relação a estes livros-objeto que, apesar de tudo, parecem, também no contexto ficcional da narrativa fílmica, ter um efeito relevante na tranquilização das crianças e na aproximação afetiva entre elas e o adulto, que termina a leitura emocionando-se com a mensagem que o livro transmite. Na versão original, o livro é definido como sendo uma bedtime story, designação que remete, simultaneamente, para o momento e contexto da sua leitura, mas também para o tema da mes- ma. Este recurso à mise en abîme é, aliás, recorrente, neste tipo de propostas, que, não raras vezes, incluem livros e momentos de leitura, favorecendo a identificação dos leitores com o universo recriado e que apresenta sugestões metaficcionais. O livro lido pela personagem no filme inclui uma narrativa ver- sificada, protagonizada por uma família de gatinhos, a mãe e os três filhos, ilustrado, com dedoches e objetos que exigem manipulação e interatividade. Para além de ler o texto, é esperado – e exigido – ao mediador de leitura que realize as atividades referidas no texto, esco- vando o pelo dos gatinhos, por exemplo, ou fazendo-os beber o leite do prato.

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Figura 10 - Duas imagens do filmeDespicable Me

A cena resulta particularmente interessante, aludindo a uma série de aspetos ligados a questões relevantes, como a afetividade e a rotina associadas à leitura que se transforma em momento de encontro e de prazer, independentemente da qualidade literária ou estética dos livros ou até da forma como são lidos. O livro publicado (fig. 11) no seguimento do sucesso do filme, apesar de se manter fiel ao texto original e ao estilo das ilustrações, não permite o mesmo nível da interação. Não inclui a escova nem permi- te a sua manipulação, nem aposta no mesmo tipo de encadernação de espiral. É caso para dizer que, neste caso, o filme ganha ao livro, não obstante a preocupação em manter os dedoches que representam os ga- tinhos que não querem dormir, mas cuja conceção plana não permite o mesmo nível de interação apresentado no filme. Mantém-se o formato reduzido, agora quadrangular, e a opção pela edição cartonada de can- tos arredondados, muito adequada, do ponto de vista da materialidade, aos destinatários preferenciais. Em qualquer dos casos, a brevidade do texto, o recurso às rimas e aos paralelismos sonoros, o vocabulário acessível e a simplicidade da ação, linear e encadeada, facilitam a adesão dos leitores mais pequenos. As personagens apresentam comportamentos humanizados e tipifica- dos no seio do contexto familiar e a narrativa, linear e sequencial, desen- rola-se com base no diálogo entre mãe e filhos. Esta estrutura dialogada tem impacto na construção do volume, que recorre à apresentação em APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 63 páginas simples, diferenciando as persona- gens, num esquema de alternância de falas que se aproxima visual e estruturalmente (rima, metro, estrofe) do texto poético. 2.2. O segundo livro selecionado é It’s time to sleep (2013) (fig. 12), uma pu- blicação sem identificação de autoria da St. Martin Press. Trata-se de um livro de ima- gens, cartonado, de pequeno formato, de cortes arredondados e que inclui um recorte em formato de círculo, que serve de pega ao livro, facilitando a sua manipulação. Muito colorido, impresso em papel brilhante que permite tirar partido dos contrastes entre uma paletas de cores fortes, vivas e quentes, Figura 11 - Livro Sleepy Kittens o livro é construído por quatro duplas páginas tituladas onde, para além da fotografia de um bebé diferente, surgem vá- rios objetos legendados, relacionados com o tema central. Uma leitura sequencial das quatro imagens permite descobrir uma evolução, uma vez que o livro inicia com a sugestão da atividade de brincar – “Let’s play!” – identificando vários brinquedos reconhecíveis, passando, em se- guida, para o banho – “Bathtime”. Segue-se a preparação da ida para a cama, “Ready for bed”, e a antecipação do adormecimento, uma espécie de despedida noturna, em “Sleep tigh” (fig. 13). Em primeiro plano, nas imagens, surge sempre a figura do bebé, em diferentes posições. Des- taque-se o cuidado na seleção de crianças de diferentes grupos étnicos, numa busca de representação da diversidade humana, permitindo uma identificação mais ampla em termos de leitores. Os objetos apresentados, também com recurso à fotografia, são coloridos e reconhecíveis. Sempre que possível, apresentam padrões variados e destacam-se sobre os fundos planos coloridos. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 64

Figura 12 - Capa do livro It’s time to sleep

Figura 13 - Dupla página do livro It’s time to sleep

Pensado como livro de imagens, destinado sobretudo à explora- ção vocabular, ao reconhecimento e à identificação de objetos e contex- tos, o livro inclui, na contracapa, um pequeno guia para os pais, onde a questão do desenvolvimento da linguagem oral é central. A dimensão narrativa do livro tem de ser inferida, é certo, mas o título e a centralidade que as atividades relacionadas com o adorme- cimento da criança e a sua preparação ocupam não deixam margens APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 65 para dúvidas quanto a esse propósito. Aliás, em alguma medida, o livro estrutura-se com base numa oposição clara entre a atividade da brinca- deira com que se inicia, e a tranquilidade do adormecimento com que encerra. 2.3. A última publicação analisada é Good Night Teddy (2015) (fig. 14), texto de Danna V. Swartz e ilustrações de Marie-Hélène Gré- goire, um livro de pano que permite a manipulação da personagem prin- cipal, o ursinho Teddy, pelas páginas da obra. Estas, para além do tecido impresso com os espaços e as personagens da narrativa, têm aberturas e elementos semi-soltos que podem ser usados para fixar o ursinho e interagir com ele. Assim, é possível sentar o protagonista à mesa para jantar, colocá-lo dentro da banheira (não sem antes o despir e pendurar o pijama), ao colo do pai para ouvir uma história ou dentro da cama, por exemplo. A manipulação da personagem pode ser realizada pela criança, tendo como base as indicações fornecidas pelo texto, muito simples e condensado, marcado pela anáfora, descritivo das ações da personagem. A recriação das rotinas que antecedem a hora de deitar, lidas em voz alta pelos mediadores adultos e complementadas com as ações da criança que manipula a personagem ao longo das páginas do livro, permite o reconhecimento de práticas domésticas semelhantes, promovendo a identificação do leitor com o universo ficcional e pacifi- cando-o com o sono e o adormecimento.

Figura 14 - Capa e exemplo do interior do livro Good Night Teddy ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 66

O texto é, por isso, simples, quer em termos do vocabulário usa- do, quer das estruturas sintáticas, preferindo recorrer a repetições a pa- ralelismos que facilitam a compreensão e a memorização e repetição posterior, conduzindo a uma certa autonomia no processo de leitura e de manipulação do livro. A narrativa é simples, linear e contada de forma sequencial, ocorrendo num tempo e num espaço reduzidos e condensa- dos. As ilustrações, não obstante o predomínio das cores frias, recorrem a formas básicas e reconhecíveis e aos contrastes cromáticos. A presen- ça de elementos11 que permitem a manipulação da criança, como o pato na banheira, o ursinho na cama ou a escova de dentes, atuam também como surpresas que quebram a linearidade dos procedimentos associa- dos à leitura.

3. Considerações finais Na globalidade, e apesar das diferenças existentes em termos de materiais e tipologias editoriais, verifica-se, como elementos transver- sais às publicações a presença de texto muito simples, com recurso a vocabulário do quotidiano. Quando existe uma narrativa, esta é contada com recurso a estruturas paralelísticas, que tiram partido de elemen- tos sonoros, como o ritmo, as rimas e as repetições. Também no caso das formas narrativas ou com alguma pretensão de narratividade, como acontece com o livro de imagens, verifica-se a opção por um número muito reduzido de personagens que desenvolvem uma ação sequencial, caracterizada pela linearidade temporal e que tem lugar num espaço li- mitado, sempre fechado e circunscrito à casa. Mesmo quando os criado- res recorrem a personagens animais, estas apresentam comportamentos humanizados, muito próximos dos infantis. As imagens exploram a expressividade e o poder atrativo das cores e das formas, recorrendo sobretudo às cores primárias ou a cores

11 Existe ainda uma muda de roupa para o ursinho que pode ser vestida e despida. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 67 quentes e vibrantes, tirando partido dos contrastes. O recurso a formas planas e a contornos bem definidos cria alguma estaticidade nas ima- gens, preferencialmente bidimensionais, marcadas pela ausência de perspetiva, pela simplicidade e por uma técnica de desenho que recorre à estilização dos objetos. No caso da fotografia, é evidente a sugestão realista dos objetos e personagens retratados, favorecendo a sua iden- tificação por parte dos leitores. Os formatos e os materiais promovem a manipulação e a interatividade, tirando partido do manuseio fácil, da leveza ou das texturas macias e agradáveis ao toque. Atendendo ao tema, ao contexto de leitura a que se destinam, e aos leitores preferenciais, estamos perante publicações que preveem uma leitura repetida, realizada como rotina, uma e outra vez, confir- mando as expectativas da criança que rapidamente desenvolve com- petências autónomas para sua realização. Além disso, o processo de leitura surge indissociável do jogo, seja do ponto de vista linguístico e visual, seja através da associação de outros sentidos, gestos e ações ritualizadas. São ainda livros que contribuem para o desenvolvimento da literacia visual, competência que resulta de um processo de apren- dizagem e integra elementos culturais que têm de ser explicitados. No- te-se que a sua evolução tem relação com o desenvolvimento de outras literacias e competências (linguísticas, narrativas, simbólicas, culturais, literárias e estéticas), cujo progresso ocorre de forma simultânea. Atendendo ao impacto pessoal, familiar, social e até cultural dos rituais do sono e adormecimento dos bebés e das crianças pequenas, parece-nos relevante sublinhar de que estas propostas editoriais, apesar de aparentemente se destinarem às crianças e à sua fruição, respondem principalmente a outros desafios e usos, os dos pais, que pretendem encontrar respostas para os problemas de sono dos filhos. O sucesso do livro The Rabbit Who Wants to Fall Asleep: A New Way of Getting Chil- dren to Sleep (2015), com entrada direta no top das principais livrarias online, é disso o melhor exemplo. Nessa medida, estamos perante livros de destinatário amplo e abrangente, verdadeiros crossover da edição. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 68

O recurso a uma certa autorreferencialidade, visível na opção pela sobreposição do tema do livro e do seu uso principal, sugere a pre- sença de elementos que permitem uma leitura complexa, em resultado da mise en abîme, com referências a livros e leituras encaixados nos objetos, mas também de pais e filhos que repetem, no nível ficcional, os mesmos rituais dos leitores e mediadores, no nível empírico. A pro- moção da identificação dos leitores com o universo ficcional recriado, reconhecido e próximo, parece ser o objetivo deste tipo de estratégias, para além da naturalização de ações que funcionam como modelo, quer do ponto de vista educativo, quer social. A dimensão instrumental e utilitária da leitura que é realizada a partir destes livros parece apagar ou secundarizar a eventual função estética ou de entretenimento que podem ter. E, no entanto, bebés e as crianças a quem estes livros são propostos facilmente os adotam como leituras desejadas, alvo de exploração repetida. A identificação com os cenários, objetos e personagens recriados, a dimensão de jogo e de afe- to associada ao momento da leitura, os efeitos sonoros e rítmicos dos textos, as ilustrações coloridas e atrativas, a interatividade do processo de leitura, a possibilidade de manipulação autónoma das publicações, entre outros aspetos, favorecem a sua aceitação por parte dos leitores mais pequenos que, não raras vezes, adotam estes livros como “objetos transicionais”, criando com eles laços afetivos e emocionais fortes, em consequência do investimento imaginário que realizam.

Referências bibliográficas: Obras analisadas: (2013). It’s time to sleep. New York: St. Martin Press. PAUL, Cinco & DAURIO, Ken (2010). Sleepy Kittens (Despicable Me). New York: Little, Brown and Company / Hachette Books Group (ilustra- ções de Eric Guillon). SWARTZ, Danna V. (2015). Good Night Teddy. New York: Barron’s Education Series. (ilustrações de Marie-Hélène Grégoire). APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 69

Estudos: GALBRAITH, Mary (1998). “Goodnight Nobody” Revisited: Using an Attachment Perspective to Study Picture Books about Bedtime”. Children’s Literature Association Quarterly, 23(4), pp. 172-180 GRIFFTH, Kathlyn & TORR, Jane (2003). “Playfulness in children’s picture books about bedtime: Ambivalence and subversion in the bedtime story”. Papers: Explorations into Children’s Literature, 13(1), pp. 25-32. KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina (2015). “From baby books to picturebooks for adults: European picturebooks in the new millennium”. Word & Image, 31 (3), pp. 249-264 KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina (ed.) (2011). Emergent Lite- racy. Children’s books from 0 to 3. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company KÜMMERLING-MEIBAUER, Bettina & MEIBAUER, Jorg (2005). “First Pictures, Early Concepts: Early Concept Books”. The Lion and the Uni- corn, 29:3, pp. 324-347. NIKOLAJEVA, Maria (2008). “Play and playfulness in postmodern picturebooks”. in SIPE, Lawrence R & PANTALEO, Sylvia (ed.), Postmodern Picturebooks: play, parody, and self-referenciality, New York: Routledge re- search in Education, pp. 55-74. ROMANI, Elisabeth (2011). Design do Livro-Objeto Infantil. São Pau- lo: Universidade de São Paulo, Tese de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. ZEECE, Pauline Davey (1996). “Best Beginnings: Literature for the Very Young”. Early Childhood Educational Journal, 24:2, pp. 107-111

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 71 5. Do livro-álbum ao livro-brinquedo: Tobias às fatias e outros livros “fatiados”

Carina Rodrigues

1. Prolegómenos

Na viragem do século XXI, o livro-álbum, enquanto objeto de transmutação gráfica, viu multiplicar as suas formas, alcançando legi- timação tanto no âmbito académico como privado. Híbrido por defini- ção, este tipo de publicação não cessa, pois, de as (re)inventar, quer no renovado diálogo entre os seus textos verbal e visual, quer no jogo com os géneros dos quais se apropria, quer, ainda, no empréstimo de todas as outras artes às quais presta homenagem. A efervescência criativa que o caracteriza, responsável por uma necessária reconfiguração das relações entre o leitor e o objeto-livro, foi, assim, dando lugar a reflexões inscritas em diferentes âmbitos (li- terário, didático, sociológico, etc.), cruzando outras interrogações em torno das formas, da sua estética e da sua receção por parte de leitores modelos ou empíricos, e nas mais diversas práticas, privadas ou escola- res, individuais ou coletivas. Analisar o lugar que o livro-álbum ocupa, as funções e os jogos que propõe ao leitor, oferece-se, pois, como um incontestável territó- rio de reflexão. Desde logo, pressupõe caracterizar perfis de leitor(es), especificar as suas formas de envolvimento ou mesmo refletir sobre as modalidades de aprendizagem e formação que supõe implementar. Porém, refletir sobre as especificidades do livro-álbum através da noção de jogo implica também considerá-lo na sua materialidade, enquanto objeto, brinquedo ou espaço de descoberta e manipulação. Associados à “objetalidade” do livro-álbum estão, portanto, o lugar ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 72

do corpo, os seus estados e as novas gestualidades que suscitam a não rara predileção por formatos agigantados ou excêntricos, e mesmo as próprias revivescências do livro-álbum animado, os célebres − e mais comummente designados de − pop-up. Um conjunto de obras que ques- tiona os limites do livro-álbum, os do livro de artista e até do livro-jo- go. Mas tal reflexão sobre o livro enquanto objeto, bem como sobre os desafios ligados à corporeidade do leitor, coloca igualmente em causa a perceção desse mesmo leitor e a própria experiência de leitura. Isto porque os novos formatos surgidos no campo da literatura de potencial receção infantil − e pensemos, ainda, a título de exemplo, nos livros digitais − lograram metamorfosear as mais usuais representações do ato de ler, concorrendo para uma redefinição do próprio conceito de leitura. Daí nos perguntarmos também: o que vem sendo ou no que se torna o ato de ler? Como defini-lo, quando se trata de explorar o livro, de tocá-lo, senti-lo, ouvi-lo? Quando se trata de desdobrá-lo, fazê-lo gi- rar, furá-lo ou abaná-lo? Em suma, onde se situam as mais tradicionais definições em torno da compreensão leitora e que mutações, ao nível da receção, originarão esses atuais formatos editoriais? Independentemente de tudo, e mesmo na impossibilidade de aqui aprofundarmos a questão, importa frisar que a análise destes livros terá sempre por perto a experiência de um leitor real, confrontado com for- mas, formatos e espaços inusuais, e que, quiçá, na solidão do seu ato, se revele capaz de reinventar − de outras quantas formas − a leitura (Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou, 2008). Servindo também de mote para a breve reflexão que aqui nos propomos trazer, é objetivo deste estudo refletir sobre o lugar que vem ocupando o livro-álbum (animado) junto dos leitores mais novos, cen- trando-nos, mais concretamente, no caso dos livros-álbuns “fatiados” − i.e., das edições cujas páginas/ilustrações surgem cortadas em lâminas amovíveis − e nas suas potencialidades criativas. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 73 2. Do livro ao jogo/brinquedo: o livro-álbum como objeto multiforme

Inspirado na expressão anglo-saxónica picturebook, o termo “li- vro-álbum” tem ganhado eco no seio da academia e suscitado contro- vérsias em torno da clarificação/fixação do conceito e da sua definição/ conceptualização: enquanto uns se atrevem a classificar o livro-álbum como “género” (Nières-Chevrel, 2009), outros apontam para a necessi- dade de lê-lo como “um suporte de expressão” (Van der Linden, 2013) ou um “tipo/formato de edição” (Ramos, 2011), em resultado do seu caráter híbrido e multimodal. Indiscutível, contudo, parece ser a ideia de que é na tríade texto-imagem-suporte que se constrói o relato e na necessária articulação destas três dimensões que se estrutura a mensa- gem e a narratividade. Além disso, enquanto livro ou modalidade mista que é, o livro- -álbum consegue tomar formas tão variadas que, para além do parale- lismo entre o trabalho do artista e o do autor/ilustrador, tende a trazer também para a discussão as suas ténues fronteiras entre o livro e o brin- quedo, a leitura e a manipulação, a narração e o jogo (Staebler, 2014). Seja com imagens “saltantes”, tiras ou janelas, com páginas dobradas ou (re)cortadas, o livro-álbum consiste sempre, pois, num jogo: no jogo das imagens, do texto e do suporte, e também, por conseguinte, no do próprio autor (e leitor) com esses mesmos elementos. Isto porque falar do livro-álbum também é falar de uma obra aberta: uma obra que impe- le o leitor a jogar − a ler, interpretar e manipular. Nele, e para lá da(s) sua(s) forma(s), também as estruturas do relato se reinventam e des- viam a posição do leitor, reclamando uma leitura ativa, frequentemente lúdica e isenta de pré-juízos, capaz de abalar as convenções de leitura e romper com o linear. Porém, se estes livros se aproximam do brinquedo porque são concebidos para serem manipulados, eles não constituem o único su- porte do jogo, carregando em si aquilo que o francês Roger Caillois ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 74

(2007) teorizou como sendo o “espírito lúdico”. Um ângulo de com- preensão e uma espécie de regra instituída pelo autor, da qual faz parte e sob a qual se desenrola a própria narração, que, por sua vez, também impõe limites à própria utilização lúdica do brinquedo. Considerando o livro na sua totalidade, importa perceber, assim, em que moldes é que estas opções gráficas e/ou formais constituem parte integrante da criação do autor e podem servir de instrumentos de narração. Sem descurar outras publicações igualmente arquitetadas no espaço do livro, mas acompanhadas, por exemplo, de acessórios, brinquedos ou CD-ROM, etc., a exigirem análises diferenciadas e pas- síveis de outras discussões, por limitações temporais, faremos incidir o nosso olhar sobre as edições apoiadas no tradicional pêle-mêle ou méli-mélo, também designadas mix-and-match books, com páginas cor- tadas ou “fatiadas”. Um tipo (design) de livro que não é recente, mas cujas potencialidades e múltiplas leituras que possibilita não foram ain- da suficientemente estudadas/teorizadas, merecendo, por isso, a nossa atenção. Com efeito, à exceção de alguns trabalhos mais genéricos sobre o livro e/ou o livro-álbum animado e as suas manifestações recentes, dentre os quais, por exemplo, assumem especial relevância para este es- tudo os de Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou (2008), Foulquier (2012), Morlot (2014), Scott (2014), Staebler (2014) ou Kümmerling-Meibauer (2015), raras são as reflexões − de âmbito académico − especificamente centradas nestas edições. Digno de nota será um recente ensaio de Ana Margarida Ramos (2016), que examina com mais detalhe um corpus exclusivo. A própria designação destes livros revela carecer de firme- za e ser alvo de hesitação/imprecisão, surgindo algumas (poucas) pro- postas diferentes, tais como, por exemplo, no universo anglo-saxónico, pictorial consequences ou combinatorial books, quando não simples- mente agregados aos mais conhecidos e já acima referidos mix-and- -match books. Lacunas essas, principalmente no campo dos Estudos Literários, também em razão da predominância do visual sobre o verbal APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 75 que caracteriza estes volumes, que terão possivelmente que ver com uma dimensão mais lúdica e instrumental que lhes surge associada. A verdade é que, à medida que foi evoluindo e se evidenciaram as suas potencialidades no desenvolvimento de competências emergentes de literacia/leitura, o livro-álbum, enquanto objeto artístico ou plástico- -literário, também viu alteradas as suas convenções formais e serviu de terreno para novos formatos editoriais, ampliando os seus âmbitos de análise e interpretação.

3. Livros-álbuns “fatiados”: sentidos e potencialidades

Com origens prováveis ainda no século XIX, nomeadamente nas edições da casa norte-americana McLoughlin Bros. (Moura, 200912), os livros “fatiados”, com páginas cortadas em tiras ou lâminas amoví- veis, possuem já larga tradição, nomeadamente nos Estados-Unidos e em alguns países da Europa, e não apenas no universo infantil13, onde se situará o seu locus privilegiado14. Em Portugal, porém, foram ainda poucos os autores a arriscar-se neste tipo de publicação, que extrapola o conceito tradicional do livro e se aproxima do objeto artístico − senão mesmo do brinquedo. De formato habitualmente reduzido e encadernado com espiral (com implicações, como veremos, no próprio processo de leitura), estes volumes caracterizam-se ainda pela abundância de ilustrações face à ausência ou condensação textual (por meio de palavras soltas, orações breves ou discursos mínimos, numa configuração muitas vezes próxima da do livro de imagens), afastando-se de habituais dinâmicas narrativas.

12 In . 13 Vide, entre outros exemplos para adultos, o célebre e fascinante Cent mille milliards de poèmes (1961), do francês Raymond Queneau. 14 Ainda no século XIX, recordem-se os criadores alemães Lothar Meggendorfer, com Mon oncle tonton (1890) e Ernest Nister, com Ride a cock horse (1896). No âmbito da edição mais recente, destaquem-se os nomes de Kveta Pacovska, com Midnight play (1993), ou Norman Messenger, com os títulos Making faces e Famous faces (1995) ou, ainda, Imagine (2005). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 76

Caracterizados por uma forte componente lúdica e interativa, desempenham relevan- tes funcionalidades no desenvolvimento da imaginação/interpretação e da lingua- gem. Assinado por Manuela Bacelar (Coimbra, 1943-), reconhecida artista plás- tica portuguesa e um dos vultos precurso- res na criação de livros-álbum no contexto luso, Tobias às fatias (1990) (fig. 15) não é só o quinto volume da coleção “Tobias”, originalmente publicada na década de 90 pela Porto Editora e mais recentemente re- Figura 15 - Tobias às fatias lançada pelas Edições Afrontamento (2015), mas também, possivelmente, o primeiro de autoria nacional construído sob a técnica em apreço. Através de páginas cortadas horizontalmente em três partes, este livro estimula as mais férteis potencialidades da imaginação e da cria- tividade infantil, convidando a criança à sua exploração, ora compondo a partir de um conjunto de ilustrações co- loridas uma multiplicidade de personagens (várias delas já conhecidas de outros volu- mes, promovendo a sua identificação) que a divertem pelo absurdo e pela estranheza das combinações sugeridas, ora colorindo livre- mente as que vai imaginando e dispondo nas páginas opostas. Neste caso, a liberda- de criativa que é concedida à criança-leitora neste ato de pintar permite-lhe recriar para- lelismos e outras figuras originais, multipli- cando combinações (fig. 16) e ampliando o Figura 16 - Exemplo de leque de possibilidades interpretativas pré- combinação possível -configuradas. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 77 Porventura mais próxima do livro interati- vo do que do livro-álbum, esta edição, de capa mole e isenta de mancha vocabu- lar, sobretudo incluída com o desígnio de diversificar a série (também em termos formais), não patenteia à primeira vista uma lógica causal pré-determinada, Figura 17 - Animalário Universal distanciando-se da estrutu- do Professor Revillod ra-modelo (a narrativa) que suporta o resto da coleção. Não obstante, oferece-se como um diverti- do catálogo e caderno de atividades, capaz de devolver à leitura − das imagens − a sua carga de humor e surpresa, e de corroborar o poder comunicativo do livro pela sua forma, cor e desenho, mesmo perante a ausência de texto. Originalmente publicado em 200315, o Animalário Universal do Professor Revillod (fig. 17), com texto de Miguel Murugarren e ilustra- ções de Javier Sáez Castán − autor do célebre Soñario, o diccionario de sueños del Dr. Maravillas (2008), obra engenhosa e inusitada, construí- da segundo o mesmo formato −, chega aos escaparates portugueses em 2009, com a chancela da Orfeu Mini. Alvo de inúmeros e importantes galardões, este “fabuloso alma- naque da fauna mundial”, como se (auto)descreve no subtítulo, reúne um admirável conjunto de 16 estampas de animais, cortadas vertical- mente em três partes, possibilitando uma infinidade de combinações, concretamente de “4096 feras diferentes com a descrição dos seus modos de vida”. Do “ELE-FAN-TE” ao “VA-LI-RONTE” (espécie de

15 Pelo Fondo de Cultura Económica, México. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 78

vaca com corpo de tálitro e rabo de rinoceronte...), este belíssimo e exótico catálogo, ilustrado a preto e branco, num registo a lembrar a água-forte ou as gravuras do século XIX, e facilmente remissível para qualquer bestiário medieval ou moderno, rompe os limites entre o real e o imaginário, entre o sólito e o insólito, representando − ou conduzin- do o leitor a colocá-las −, no mesmo plano, espécies reais/existentes e míticas/fantásticas (fig. 18)

Figura 18 - Exemplo de combinação possível

Na verdade, as espécies reais (e.g., o elefante, a porca, o tatu, a gralha, o camelo ou o celacanto) são as que compõem as estampas que enformam o livro-álbum; e só com a participação do leitor − convidado a ver/ler com os olhos e com as mãos −, só quando ele folheia o livro, vira progressiva e desencontradamente as lâminas e baralha as partes de cada animal é que surgem as segundas espécies, mirabolantes criaturas de aparências, nomes e descrições fantásticos. É, pois, no gesto da lei- tura ou do próprio leitor, a quem é exigido um papel ativo, que reside o valor desta publicação e a responsabilidade da criação destas criatu- ras compósitas e monstruosas, bem como “do seu desarranjo nominal que leva à própria recriação da linguagem e suas categorias” (Moura, 2009). Note-se que a par da segmentação dos corpos de cada espécie APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 79 surge simetricamente a divisão silábica dos seus nomes, permitindo ao leitor, de forma lúdica e humorística − e, até, nonsensical −, não só recriar como também renomear uma infinidade de seres (e.g., “RINO- -WI-RCO”, “TI-GURU”, “CAR-TOCAN-TU”). Aliás, a componente verbal do livro não se cinge às unidades mínimas que estruturam a re- ferida nomenclatura, mas inclui também as descrições biológicas res- peitantes a cada parte dos animais, potenciando outras tantas paródicas combinações: «Paquiderme formidável/de hábitos omnívoros/da Nova Zelândia», «Cornúpeto esquivo/de forte carapaça/do Império Celeste», «Pernilongo singular/comedor de erva/do deserto de Gobi». Mesmo diante do paradoxo, estes bichos, como se saídos de li- vros antigos, logram uma certa verosimilhança graças à dimensão plu- ricodal responsável pela interação texto-imagem e à intertextualidade/ intericonicidade que caracterizam habitualmente o livro-álbum. Ainda que pressuponha a colaboração do mediador, dada a complexidade de certas propostas textuais e visuais, implicitamente dirigidas a um leitor adulto e/ou experiente, esta edição “transgeracional” ou inscrita num segmento crossover − i.e., “addresses a diverse, cross-generational au- dience that can include readers of all ages” (Beckett, 2009: 3) − facil- mente se acerca dos mais pequenos. Com efeito, para além do formato original e atrativo, dos jogos composicionais que sugere e do movimen- to/gestualidade que impele, a brevidade textual e o próprio vocabulá- rio (embora nem sempre acessível), bem como o absurdo e o ludismo associados aos jogos linguísticos e fonéticos que propõe, são aspetos que contribuem, de igual modo, para a adesão dos leitores mais novos. Experiências análogas, inclusive com afinidades formais e temá- ticas, podem ainda encontrar-se, por exemplo, nas sucessivas metamor- foses de Estrambólicos (2011), dos portugueses André Letria e José Jorge Letria, editado pela Pato Lógico. Da mesma dupla de autores, com idênticos formato e organização, dispondo lado a lado, em páginas verticalmente tripartidas, figuras e as suas respetivas designações/des- crições, De Caras (2011) possibilita o mesmo número de combinações ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 80

(«dezasseis ao cubo»), mas neste caso de 4096 nomes invulgares com expressivos rostos masculinos. Escolhendo prescindir da palavra escrita (à exceção do títu- lo, desde logo sugestivo da proposta temática), Todos fazemos tudo (2011)16 (fig. 19), livro-álbum profusamente ilustrado de Madalena Ma- toso, versa sobre o tema da igualdade entre géneros (e não só) e convida à (re)criação (fig. 20) de uma infinidade de personagens ocupadas em diferentes atividades.

Figura 19 - Todos fazemos tudo Figura 20 - Exemplos de combinações possíveis

Numa composição bipartida, a parte superior das páginas des- venda as identidades − femininas ou masculinas, de diferentes idades e origens −, enquanto a parte inferior oferece uma diversidade de ações, entre tarefas domésticas e atividades profissionais e de lazer. Propondo, a cada virar de página, uma combinação original e, em alguns casos, surpreendente (e.g., um pai a estender a roupa ou a costurar; uma mãe com jeito para a pesca ou para o bricolage; uma avó agarrada a uma guitarra elétrica ou a uma prancha de surf), o poder desta publicação,

16 Originalmente publicado em Genebra, pelas Éditions Notari, com o título Et pourquoi pas toi? APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 81 resultado de um concurso suíço criado para a promoção da igualdade entre homens e mulheres, não só reside na sua força gráfica e cromática, como na originalidade do seu propósito. Visando, pois, sensibilizar os mais novos para a desconstrução de preconceitos e estereótipos, mos- tra-lhes, por entre formas e cores, como é possível “todos faze[r]mos tudo”. Do leitor, principal atuante − e coautor − deste (livro-)jogo, es- pera-se que descubra e se deixe surpreender por todas as combinações possíveis, mas também que invente e teça relações entre elas. É também neste ponto que a encadernação/espiral encontra a sua utilidade, facili- tando a manipulação e o virar das páginas, numa leitura estimulante e muitas vezes frenética (Staebler, 2014) − experiência de leitura única, do “desassossego” (Connan-Pintado, Gaiotti & Poulou, 2008). Aliadas ao formato, as imagens expressivas e multicoloridas ostentam um conjunto variado de ações e cenários próximos do ima- ginário infantil, colocando em evidência as possibilidades narrativas que este sistema consegue oferecer. À diferença de alguns exemplos anteriores, este título poderá mais facilmente sugerir uma história se- quenciada pelo ritmo ou movimento das páginas que se sucedem; uma narração ligada a um enredo visual, alimentada pelo jogo/mecanismo de sobreposição e descoberta, e por uma “lógica combinatória” que oferece tantos caminhos de leitura/interpretação como de resultados possíveis. À medida que cria um relato, o leitor, atento aos detalhes, presta-se, pois, à interpretação, inventando relações entre os diferentes elementos que lhe são dados a ver/ler.

4. Em síntese A personalidade camaleónica do livro-álbum e a sua capacidade de permear-se aos mais distintos formatos − e aos mais variados jogos interpretativos − têm favorecido a sua escolha para arrojadas experi- mentações criativas, cuja manipulação e interatividade o afastam do formato tradicional do livro, situando-o num limbo entre o livro-objeto ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 82

e o objeto-brinquedo. Exemplo disso são as publicações que selecioná- mos para análise e que, à parte das suas características físicas/materiais, mantêm em comum uma dimensão lúdica associada a um original − e não-linear − processo de leitura. Na verdade, com texto ou sem ele, o livro-álbum “fatiado” ofe- rece-se como um jogo de descoberta constante que, pela possibilidade que lhe confere de criar a(s) sua(s) narrativa(s), converte o leitor-joga- dor numa espécie de leitor-autor. E é também porque o incita a levar tempo a olhar, manipular e criar sentido(s) que este tipo de publicação, enquanto livro-objeto que convida à exploração de um percurso simul- taneamente físico e poético e obra aberta às interpretações do leitor, se completa no ato de leitura. Não esqueçamos ainda que, tendo no seu destinatário preferencial a criança, estes volumes preveem explorações repetidas que estimulam a autonomia gradual na manipulação, não só do livro, como das formas que neles surgem desenhadas. Marcadas pelo humor e pelo nonsense (manifesto no próprio for- mato e na experiência de leitura que promove), as figuras ou persona- gens ali retratadas, sejam elas de caráter animal ou não, ganham, com o virar de página e o desconcerto visual, aparências e comportamentos insólitos, mas regra geral próximos do imaginário infantil, promovendo o riso e facilitando a identificação dos mais novos. Além disso, a leitura como jogo, visível tanto em termos materiais e manipulativos, como aos níveis linguístico (principalmente, na presença de uma componente escrita) e visual, contribui ainda para o desenvolvimento de diferentes competências de literacia, mas que implicarão também, necessariamen- te, a colaboração do mediador-adulto.

Referências bibliográficas Obras analisadas BACELAR, Manuela (1990). Tobias às fatias. Porto: Porto Editora (Col. Tobias, 5). MURUGARREN, Miguel & SÁEZ CASTÁN, Javier (2009). Animalário Universal do Professor Revillod. Lisboa: Orfeu Negro (Col. Orfeu Mini). APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 83

MATOSO, Madalena (2011). Todos fazemos tudo. Lisboa: Planeta Tangerina.

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 85 6. Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha, Quem espia se arrepia: mais que livros de imagem, livros-objeto

Margareth Silva de Mattos

1. Introdução A produção editorial voltada para o público formado por crianças e jovens no Brasil ganhou novo fôlego a partir da década de 1970 com a geração de escritores identificada como “os filhos de Lobato”. Essa nova geração promoveu uma rutura com a conceção utilitária vigente na literatura infantil e juvenil, elevando-a à categoria de produção ar- tístico-literária pela adoção de um novo modelo discursivo: o discurso estético. Este discurso desenvolveu-se não apenas na parte verbal, mas também na parte visual dos livros, fazendo emergir um crescente pro- tagonismo das ilustrações na produção editorial destinada à infância. Como consequência, o trabalho do ilustrador passou a ser considerado tão significativo e importante quanto o trabalho do escritor na confor- mação das obras, equiparando-se, progressivamente, o estatuto de au- toria de ambos. Na década posterior, um dos fenómenos editoriais que corrobora- ram a expansão do prestígio dos ilustradores foi o aumento expressivo das publicações de livros de imagem17, nos quais as histórias contadas apenas pelas ilustrações ensejavam novas perspetivas de leitura. Essa expansão levou, inclusive, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Ju- venil (FNLIJ18) a incluir, no seu Prémio FNLIJ 1982 – Produção 1981,

17 No Brasil, o que se denomina livro de imagem encontra correspondência em Portugal com o que se denomina livro-álbum exclusivamente visual. 18 A FNLIJ, secção brasileira do IBBY, é uma instituição que desenvolve o seu trabalho ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 86

a categoria Imagem, somando-se às já existentes categorias Criança e Jovem, instituídas nos Prémios dos anos de 1976 e 1979, respetivamen- te. O primeiro ano do Prémio na categoria Imagem teve dois autores contemplados: Eva Furnari, com a Coleção Peixe-Vivo, formada pelos livros Esconde-esconde, Todo dia, De vez em quando e Cabra-cega; e Juarez Machado, com Ida e volta. A dupla premiação significou o reco- nhecimento do vigor e da excelência das narrativas visuais publicadas então. Somente nas décadas seguintes, com os avanços tecnológicos que possibilitaram melhor aparelhamento e maior sofisticação da in- dústria gráfica brasileira, a produção editorial passou a apresentar qua- lidade gráfico-editorial compatível com a que já se verificava em mui- tos países europeus e da América do Norte. Disso decorreu o crescente reconhecimento do trabalho desenvolvido pelos designers de livro, o que levou a FNLIJ a instituir, no Prémio de 1994, a categoria Projeto Editorial, a fim de premiar publicações brasileiras de excelência gráfi- co-editorial. Os livros integrantes da Coleção Ping-Póing (1986), da edito- ra FTD, da autoria da já então premiada Eva Furnari, que constituem o corpus de análise deste trabalho – Quem cochicha o rabo espicha, Quem embaralha se atrapalha, Quem espia se arrepia –, foram con- templados pela FNLIJ com o selo de Altamente Recomendável na ca- tegoria Imagem no ano de 1987. Contudo, entendemos que esses livros transcendem a etiquetagem imposta pela categoria que as identifica, uma vez que seu projeto gráfico-editorial original e criativo – numa época em que a materialidade dos recursos gráficos era bastante limita- da – permite identificá-los, hoje, como verdadeiros precursores daquilo a que chamamos livro-objeto, ideia que pretendemos demonstrar neste estudo.

na área da promoção da leitura e da literatura, e que confere anualmente o Prémio FNLIJ aos me- lhores livros em diferentes categorias. A FNLIJ também indica, anualmente, uma relação de livros para a composição do Acervo Básico e outra, mais restrita, de livros Altamente Recomendáveis. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 87 Assim, propomo-nos a analisar a trilogia mencionada à luz desse novo conceito, buscando investigar como o seu caráter lúdico, inovador e interativo pode contribuir significativamente para aproximar a criança do livro e da leitura.

2. Apontamentos sobre o livro-objeto

O livro-objeto de potencial destinação infantil caracteriza-se pelo hibridismo e por se situar entre o livro e o brinquedo, o que enseja a sua manipulação pela criança ou pelo mediador que com ela compartilha o seu manuseio, a sua apreciação e fruição. Paiva destaca a originalidade e a experimentação como carac- terísticas importantes para a melhor compreensão do conceito de que tratamos:

O livro-objeto esconjura a filiação clichê. Pretende a participação e não o exílio do leitor. Experimenta conteúdos, formas, efeitos, materialida- des, funções, nova disposição espaçotemporal (sic), sonoridades, des- locamentos, levezas, fronteiras, limites, estranhamentos. Abre espaço para a poética da imagem, e tudo nela que enuncia, significa – seja verbal, seja não verbal. (2010: 95).

Outro autor que vem se debruçando sobre a atualidade desse conceito é D’Angelo (2013), mostrando que a inovação proposta pelo livro-objeto assenta na quebra de paradigmas das normativas do livro e da narração, inaugurando “novas possibilidades de articulação do ma- terial, novas informações, rejuvenescimento das capacidades linguísti- cas” (2013: 36), capazes de proporcionar ao leitor a ampliação das suas experiências sensoriais e a expansão do seu imaginário. O livro-objeto, pelas suas características físicas, costuma reagir ao movimento linear e sequencial do virar de páginas, propondo modos de ler, apreciar e brincar incomuns, nos quais o movimento diretivo de sucessão de páginas do começo para o fim pode ser inócuo. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 88

A rutura com o convencionalismo de certos elementos peritex- tuais é uma das características do livro-objeto que “muitas vezes propõe o rever, o recomeçar, o pinçar, o fim antes do fim e o começo por outra parte” (Paiva, 2010: 120), guardando estimulações crescentes. Tome-se como exemplo dessa rutura o livro O menino, o cachorro (2006) (fig. 21 e 22), de Simone Bibian, com ilustrações de Mariana Massarani, editado pela Manati, caracterizado pelo experimentalismo lúdico e pela necessidade de manipulação e de um manuseio inusual na sua leitura. Nessa obra, duas diferentes perspetivas de uma mesma história têm um só desfecho situado não na última página, mas no meio do livro. A du- pla perspetiva corresponde a duas diferentes partes da história – a parte em que um menino ganha um cachorro, intitulada O menino, e a parte em que um cachorro ganha um menino, intitulada O cachorro –, com paralelismos na sua estrutura e composição. Cada parte da história é contada em dezassete páginas simples, sendo as páginas do desfecho – as duas páginas centrais duplas – comuns a ambas, quando, então, menino e cachorro se encontram e passam a ter-se um ao outro.

Figura 21 - Primeira capa Figura 22 - Primeira capa

A duplicidade da primeira capa (o livro não contém contracapa), da página com os dados técnicos da obra, bem como da página de rosto, dão a ilusão de que se trata de dois livros em um, intensificando-se, através desses elementos peritextuais, o jogo ficcional. Tecnicamente, APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 89 trata-se de narrativas paralelas, contadas a partir de dois diferentes, mas complementares, pontos de vista, num único livro com um só ISBN. A conformação original e inusitada dos peritextos e do próprio texto ver- bo-visual aliada à circularidade da sua estrutura narrativa fazem desse livro – produto artístico e reproduzível que requer uma manipulação que o explore – um livro-objeto. Como afirma Romani, o “jogo no livro provoca a manipulação diferenciada, explora a criatividade e a percep- ção do leitor. Os instrumentos lúdicos são as ferramentas de projeto que diferenciam o livro tradicional do livro-objeto” (2011: 10). Diferentemente do livro-objeto de Bibian e Massarani, há livros- -objeto – e certamente a maior parte deles – que exploram experimentos sinestésicos envolvendo exploração dos diferentes sentidos (visão, au- dição, tato, olfato). Esses livros podem apresentar, como indica Paiva,

capas táteis, simulações de efeitos artesanais em impressões, ilustra- ções fantásticas, dobraduras versáteis, cheiros aplicados, relevos des- concertantes, 3D, brilhos especiais, fechos naturais (cascas, ossos, pe- dras, metal), imantações, reservas ou recuos para aplicações de objetos, lindas costuras (2010: 123).

Não é esse o tipo de livro-objeto sobre o qual se debruça a nossa análise, mas sim aqueles livros que, a despeito da sua materialidade aparentemente simples e despojada de recursos gráfico-editoriais so- fisticados, mesmo assim propõem ao leitor uma apropriação lúdica que se perfaz por meio da sua manipulação e da exploração não linear das possibilidades de combinação e associação das partes verbal e/ou visual neles contidas, sem, contudo, apelar para o fetiche do tecnológico.

3. Sobre a autora da Coleção Ping-Póing

Eva Furnari nasceu em Roma, Itália, mas chegou à cidade de São Paulo, no Brasil, aos dois anos de idade, onde vive até hoje. For- mada em Arquitetura pela Universidade de São Paulo, segundo a pró- pria autora, um curso “fervilhante de arte e de reflexão sobre o mundo ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 90

visual” (Furnari, 2012: 50), lecionou artes no Museu Lasar Segall e, na década de 1980, começou a publicar os seus próprios livros. Hoje, Furnari19 já conta com pouco mais de sessenta livros publicados, mui- tos deles premiados. Alguns dos seus títulos já foram publicados no México, Equador, Guatemala, Bolívia e Itália (Serra, 2013), e o seu livro Felpo Filva foi publicado na Inglaterra com o título Fuzz Mc- Flops. A produção literária de Furnari estende-se a outras linguagens: já teve alguns livros adaptados para o teatro, e uma das suas persona- gens, Godofredo, é protagonista de uma série de animação 3D feita para a TV Cultura, a ser exibida em 2016. O reconhecimento do valor artístico-literário das suas obras vem não só da crítica especializada, mas também do seu público leitor, e a sua produção, marcada pelo hu- mor, pela inventividade e criatividade, destaca-se no cenário da litera- tura brasileira de potencial destinação infantil. Desde 2010 Eva Fur- nari é autora exclusiva da Editora Moderna, e alguns dos seus livros publicados no passado por outras casas editoriais até o momento não foram reeditados. É o caso dos livros constitutivos do nosso corpus, bastante arrojados para o tempo da sua edição, em que as publicações pouco ousavam em termos de gráfico-editoriais, antecipando formas hoje cada vez mais recorrentes.

4. Convite ao jogo, ao riso e à imaginação em três tempos

A relativa precariedade de alguns materiais que compõem os li- vros da Coleção Ping-Póing – a capa mole de baixa gramagem, que torna os livros vulneráveis a um manuseio mais intenso; a baixa grama- gem do papel do miolo, que ocasiona transparência20; a fragilidade da

19 Furnari também já ilustrou livros de outros autores, incluindo clássicos como Erico Verissimo, que teve toda a sua obra destinada à infância reeditada no início dos anos 2000 pela Companhia das Letrinhas. 20 A transparência decorrente da baixa gramagem das páginas só não interfere negativa- mente na leitura porque as imagens são impressas somente na face ímpar da folha. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 91 encadernação brochura fixada com grampos21, que pode comprometer a integridade material da publicação – contrasta com a originalidade e a criatividade do seu projeto gráfico-editorial e as suas propostas ficcio- nais lúdico-interativas. É justamente esse aspeto de relativa precarie- dade que os distinguem dos livros-objeto contemporâneos, dotados de grande qualidade em termos de sua materialidade, podendo mesmo ser comparados a livros de arte. Num período de parcos recursos gráficos, a inventividade da au- tora foi responsável por um projeto editorial arrojado na sua conce- ção, já que os três livros da coleção rompem com o modelo tradicional de revestimento das páginas do miolo, trazendo a novidade das portas francesas (Cadôr, 2012). As portas francesas são comuns em livros en- cadernados, ou seja, com capa dura (fig. 23), mas não em brochuras.

Figura 23 - Livro encadernado com portas francesas22

Nos livros da Coleção Ping-Póing, a despeito das capas brocha- das, as portas francesas funcionam a contento, já que possibilitam, com

21 Grampos ou agrafos. A encadernação canoa ou grampo é “a forma mais simples e, con- sequentemente, a mais rápida e barata para a confecção de brochuras. Os cadernos são encaixados uns dentro dos outros, sendo unidos por grampos na dobra” (Romani, 2011: 63). 22 Disponível em https://br.pinterest.com/pin/55802482857948760/. Acesso em 6 de maio de 2016. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 92

eficácia, o estabelecimento do jogo de imagens. As capas, com três do- bras, têm quatro vezes a largura das páginas. Numa das extremidades, há um caderno grampeado que se abre para a esquerda; na outra, um cader- no grampeado que se abre para a direita. Como se trata de livros cujos textos são visuais, ao abrir-se as suas páginas, as imagens – impressas apenas na face ímpar das folhas – ficam frente a frente ou lado a lado, sempre em relação de complementaridade umas com as outras. Os livros têm formato paisagem, dimensões 28cm x 14cm, e pos- suem, no seu miolo, oito páginas simples do lado esquerdo e oito do lado direito, com imagens impressas somente nas suas faces ímpares, totalizando dezasseis páginas simples que, no entanto, dão a ilusão de serem páginas duplas. Todas as páginas do miolo, assim como as pri- meiras capas, apresentam ou um elemento completo e autónomo (uma personagem, um objeto), ou um elemento incompleto (parte de uma personagem, de um objeto). Além das suas funções utilitária e infor- mativa – revestimento e identificação dos livros por meio de outros elementos peritextuais como o título da obra, o nome de autor e o selo da editora –, as primeiras capas (fig. 24, 25 e 26) também assumem a função lúdica, dando início ao jogo de emparelhamento/combinação das imagens proposto pela Coleção23.

Figura 24 - Primeira capa

23 Aqui reproduzidas em tons de cinza, e não em suas cores originais. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 93

Figura 25 - Primeira capa

Figura 26 - Primeira capa

Nestas obras, as portas francesas proporcionam, pelo menos, duas possibilidades de leitura: a abertura das páginas de um lado com- binada concomitantemente com a abertura das páginas do outro lado, na mesma ordem sequencial; a abertura das páginas de um lado combi- nada aleatoriamente com a abertura das páginas do outro lado, fora da ordem sequencial. A conceção original e engenhosa do projeto gráfico-editorial da Coleção baseia-se num dos princípios da análise combinatória simples, em que objetos de um conjunto (elementos) são dispostos em grupos (agrupamentos) nos quais todos os elementos são distintos e podem ser combinados entre si, formando, no caso, uma cena. Nesse sentido, se há oito páginas com elementos de um lado e oito com elementos do ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 94

outro, ao todo é possível a formação de 64 agrupamentos – as cenas. E se a primeira capa for incluída nesse jogo visual de diferentes arranjos e permutas, o número de agrupamentos (cenas) aumenta para 81. O jogo enquanto atividade humana encerra determinado sentido, reveste-se de significado e de uma função social, e caracteriza-se, se- gundo Huizinga (1993), por ser uma atividade voluntária marcada pela liberdade; por implicar a evasão da vida “real”, constituindo uma ativi- dade temporária com orientação própria; por ser um fenómeno cultural, em decorrência de poder ser conservado pela memória, ser transmitido e repetido a qualquer tempo; por criar ordem e ser ordem, introduzindo, na imperfeição da vida e do mundo, uma perfeição temporária e cir- cunscrita à sua duração, daí a sua tendência para o belo estético e o seu fascínio sobre os jogadores. O projeto envolvente da Coleção encerra um jogo imagético que convida o leitor à participação ativa, exploran- do as numerosas possibilidades de combinações oferecidas, podendo, inclusive, repeti-las. Sendo agente, o leitor é livre durante o tempo em que está envolvido na manipulação dos livros-objeto, atualizando-os e, com isso, tornando-se também criador. Os jogos imagéticos desses livros-objeto têm em comum o cómi- co e o nonsense, mas também guardam algumas especificidades entre si. O cómico está presente nos títulos dos livros, nos traços e expressões jocosos das personagens e no absurdo das situações por elas vividas. O nonsense é explorado nas muitas e possíveis combinações de elementos ora ordinários, ora extraordinários, que, ao se associarem, geralmente dão origem a cenas inesperadas, insólitas. “Quem cochicha o rabo espicha”24 é parte de uma parlenda25 – também um jogo de linguagem – que, em virtude do seu caráter de

24 Uma das versões da parlenda é a seguinte: Quem cochicha | O rabo espicha | Como pão | Com lagartixa | Quem reclama | O rabo inflama | Quem escuta | O rabo encurta. 25 Género da tradição oral popular cujos versos são recitados para entreter, acalmar, di- vertir as crianças ou, ainda, para escolher quem vai iniciar o jogo ou quem deve tomar parte da brincadeira. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 95 advertência moral, pode ser tomada como um provérbio26, apropriado da tradição oral popular por Furnari, sugerindo algo que não está em conformidade com o que seria eticamente ou moralmente esperado (no caso, fazer fofoca). Os demais títulos seguem a mesma construção sin- tática e o mesmo jogo de sonoridades proposto pelo título de natureza proverbial, no entanto, sempre numa perspetiva parodística, dada pela relação com os textos imagéticos marcados pela comicidade. Em Quem cochicha o rabo espicha (fig. 27 a 30), as 81 combi- nações possíveis apresentam somente uma personagem em cada uma delas. São todas constituídas por personagens bichos azuis de quatro patas, com expressões um tanto ou quanto antropomorfizadas, que pro- vocam o riso. Nas imagens da esquerda, cabeças e patas dianteiras; nas da direita, rabos e patas traseiras. Quando combinadas essas partes, as personagens completam-se. Seres insólitos surgem ora emburrados, ora abilolados, ora curiosos, ora ternos, ora desconfiados, com seus rabos ora presos, ora perfurados, ora enrolados, ora improvisados, ora in- ventados. O cómico das cenas reside, principalmente, nas expressões e atitudes próprias do humano emprestadas a essas personagens, pois, como afirma Bergson, “não há comicidade fora do que é propriamente humano.” (1980: 12). Este livro da Coleção investe menos na narratividade das ima- gens e mais na sua função descritiva, identificando e qualificando as estranhas e curiosas personagens.

Figura 27 Figura 28

26 Frase curta, geralmente de origem popular, com ritmo e rima, rica em imagens, que sintetiza um conceito a respeito da realidade ou de uma regra social ou moral. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 96

Figura 29 Figura 30

Em Quem embaralha se atrapalha (fig. 31 a 34), as cenas são compostas por personagens e objetos que interagem entre si. Os obje- tos ou partes do corpo das personagens podem sofrer transformações inusitadas, revelando situações do quotidiano que se transformam em situações insólitas, nas quais o nonsense é a regra; afinal, “o fantástico só existe em relação a uma realidade que se poderia qualificar de ‘não fantástica’” (Held, 1980: 25). Assim, a mulher que é cortejada (fig. 31), pode ter sua mão trans- mutada em um gancho por meio do qual arrasta pelos ares uma menina (fig. 32). Essa mesma menina pode ser arrastada pelos ares pelo rabo rijo e em forma de gancho de um elefante (fig. 33). Um guarda-chuva voador tem seu cabo transformado em parte de um instrumento musical que, ao tocar, é aplaudido por três figuras jocosas (fig. 34). Neste livro da Coleção, mais no que no anterior, as imagens es- táticas acentuam a expressão de movimento por meio das poses e dos trejeitos das personagens. Isso pode ser constatado também no livro Quem espia se arrepia, em que à função descritiva se associa, de modo mais efetivo, a função narrativa das imagens. A narratividade nesses dois livros da coleção é mais flagrante e incisiva, proporcionando maior estímulo à extrapolação das imagens visuais e, consequentemente, ao exercício da imaginação criadora. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 97

Figura 31 Figura 32

Figura 33 Figura 34

Quem espia se arrepia (fig. 35 a 38) apresenta apenas um ele- mento em cada página, fazendo com que, em cada uma das 81 cenas possíveis, haja sempre o contraponto entre duas personagens. Nesse livro, especialmente, há um investimento em personagens conhecidas como portadoras de um conjunto de características psicológicas e mo- rais identificadas de imediato pelo público não só pelos seus aspetos físicos, mas também pelas suas condutas, como o cavaleiro medieval, o dragão, o policial, o assaltante, o lambe-lambe, o palhaço, a bruxa, a fada, entre outros. O que, no entanto, as afasta do estereótipo são os seus traços caricaturais, bem como as situações estranhas resultantes das combinações esdrúxulas onde se inserem. Diferentemente dos dois outros livros da Coleção, em Quem es- pia se arrepia, a não circunscrição dos elementos em molduras nas pá- ginas simples – à exceção das imagens da capa –, amplificam a ilusão da página dupla, tornando as personagens ainda mais próximas umas das outras no seu confronto ou na relação que estabelecem entre si. O que também diferencia este livro dos demais é a total ausên- cia de cenário. As personagens são ilustradas sobre um fundo branco, ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 98

absolutamente neutro, que as destaca. Esse destaque também é dado pela sua centralidade na página, que é, quase toda ela, tomada pela ilustração do elemento singular.

Figura 35 Figura 36

Figura 37 Figura 38

5. Considerações finais

Os livros-objeto da Coleção Ping-Póing, que convidam o leitor, em especial o leitor infantil, a empreender uma aventura inventiva e criativa, constituem poderosos veículos da imaginação. Mesmo estando na origem dessa tipologia no universo editorial brasileiro, as publica- ções potencializam ao máximo a provocação do lúdico, tanto pelas suas personagens caricaturais e jocosas inseridas em situações fantásticas, quanto pela opção pelas portas francesas para o seu revestimento, sem a qual não seria possível o tipo de jogo interativo-ficcional proposto. Ao manipular livremente os livros, o leitor tem a sua prerrogativa de produção de sentidos intensificada e o seu poder de ação ampliado sensivelmente, alçando-se ao lugar de cocriador. E isso é possível de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 99 forma ainda mais plena quando o livro-objeto associa à sua tecnologia um competente universo ficcional que ativa o imaginário. É o caso dos livros-objeto analisados.

Referências bibliográficas: Obras analisadas: FURNARI, Eva (1986a). Quem cochicha o rabo espicha. São Paulo: FTD. ______(1986b). Quem embaralha se atrapalha. São Paulo: FTD. ______(1986c). Quem espia se arrepia. São Paulo: FTD.

Outras obras: BERGSON, Henri (1980). O riso: ensaio sobre a significação do cômi- co. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar. BIBIAN, Simone (2006). O menino, o cachorro / O cachorro, o meni- no. Ilustrações de Mariana Massarani. Rio de Janeiro: Manati. CADÔR, Amir Brito (2012). “O signo infantil em livros de artista”. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, 2(3), pp. 59-72. D’ANGELO, Biagio (2013). “Entre materialidade e imaginário: atuali- dade do livro-objeto”. IPOTESI, 17(2), pp. 33-44. FURNARI, Eva (2012). “Entrevista”. in MORAES, Odilon; HAN- NING, Rona; PARAGUASSU, Maurício. Traço e prosa: entrevistas com ilus- tradores de livros infantojuvenis. São Paulo: Cosac Naify, pp. 48-67. HELD, Jacqueline (1980). O imaginário no poder: as crianças e a lite- ratura fantástica. Tradução de Carlos Rizzi. São Paulo: Summus. HUIZINGA, Johan (1993). Homo ludens. 4. ed. Tradução de João Pau- lo Monteiro. São Paulo: Perspectiva. PAIVA, Ana Paula Mathias de (2010). A aventura do livro experimen- tal. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica/Edusp. ROMANI, Elizabeth (2011). Design do livro-objeto infantil. Disserta- ção de Mestrado em Design e Arquitetura – FAUUSP (Faculdade de Arquite- tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). SERRA, Elizabeth (org.) (2013). A arte de ilustrar livros para crianças e jovens no Brasil. Rio de Janeiro: FNLIJ, pp. 64-65. http://bibliotecaevafurnari.com.br/biografia. Acesso em 24 de abril de 2016. http://www.evafurnari.com.br/pt/. Acesso em 24 de abril de 2016.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 101 7. Atrás do rasto da Balea: desdobrando universos ficcionais em língua galega

Isabel Mociño González

1. Introdução O objetivo deste capítulo é analisar um livro-álbum desdobrável de grandes dimensões, publicado pela Kalandraka Editora, na Galiza, em 2015, intitulado Balea27, da autoria de Federico Fernández e Ger- mán González. Para compreender melhor o contexto no qual surge esta proposta editorial, realiza-se um breve enquadramento das principais etapas da Literatura Infantil e Juvenil galega, com especial atenção às propostas de livros desdobráveis, e analisam-se as características dos antecedentes da obra objeto de análise. Seguidamente, aborda-se, com pormenor, a obra selecionada, observando as suas características para- textuais e as suas potencialidades de leitura, fechando com umas con- clusões e com a bibliografia usada.

2. O livro-álbum ilustrado na Literatura Infantil e Juvenil galega A Literatura Infantil e Juvenil galega evoluiu, ao longo dos sé- culos XIX e XX, condicionada pelas circunstâncias sociais, históricas, políticas e culturais resultantes da sua dependência de um sistema cen- tral, o castelhano. Esta circunstância fez com que o seu desenvolvimen- to fosse tardio, ainda que se tenha constituído como sistema, consoli- dando-se e apostando na inovação, num espaço muito curto de tempo, situando-se, na atualidade, em pé de igualdade com outros sistemas de maior tradição.

27 Fernández, Federico e Germán González (2015). Balea. Pontevedra: Kalandraka Edito- ra, [12 pp.] (ISBN: 978-84-8464-977-9). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 102

Como se pode confirmar pelos numerosos trabalhos de Blanca- -Ana Roig Rechou (1995, 2001, 2002, 2008, 2015), são de destacar, na evolução deste sistema literário, três etapas28 fundamentais ao longo dos séculos XX e XXI e que correspondem a três grandes tendências: 1. dé- cadas de sessenta e setenta do século XX, durante as quais começaram a atuar uma série de agentes sociais e culturais que proporcionaram a visibilidade das culturas periféricas no Estado espanhol face à ideologia estatal fortemente instalada durante a ditadura franquista; 2. décadas de oitenta e noventa, durante as quais se foi formando o sistema literário infantil e juvenil galego, apoiado em políticas orientadas para a recu- peração e proteção de elementos identitários, mas ainda muito depen- dente das solicitações provenientes, sobretudo, da instituição escolar; e 3. primeiros anos do século XXI, que se caracterizam pela inovação e, em boa medida, pela normalização de uma literatura própria capaz de manter o mercado editorial em língua galega. Pelos motivos apresentados, é facilmente compreensível que seja no último período que se assista a uma maior proliferação dos livros- -objeto em língua galega, coincidindo com a consolidação do universo editorial, com as novas possibilidades de um mercado mais global e com os avanços técnicos que diminuíram custos de edição, bem como a atenção às necessidades evolutivas da infância desde as primeiras eta- pas, além das solicitações e das necessidades impostas pela institui- ção escolar. Mas, sobretudo, todo este fenómeno não se pode desligar da eclosão do livro-álbum ilustrado em língua galega, especialmente através da ação de editoras como a Kalandraka, que, desde os primei- ros anos do século XXI, procurou novos formatos e possibilidades de expansão, marcados pela “inovação ao nível do formato, o peso cres- cente da ilustração e o seu contributo para a construção de narrativas

28 Anteriormente não pode ser ignorada a produção incipiente que foi lançada no último terço do século XIX, durante o Rexurdimento, assim como o trabalho de grupos como as Irman- dades da Fala nas primeiras décadas do século XX e até mesmo o dos exilados durante a ditadura franquista, que aparecem estudados com pormenor na Historia da Literatura Infantil e Xuvenil galega, coordenada por Blanca-Ana Roig Rechou (Xerais, 2015). APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 103 [... que] asseguram a constituição de um catálogo de assinalável quali- dade” (Ramos, 2011: 23). Esta atividade marcou o panorama editorial galego29 de tal forma, como evidenciaram os estudos de Blanca-Ana Roig Rechou (2002; 2011), que permite a constituição de uma unidade geracional em seu torno, designada “Da ilustración á narración e o pro- xecto Kalandraka”, salientando o trabalho que esta editora independen- te vem desenvolvendo, desde 1998, em torno dos livros para a primeira infância, os livros-objeto, os contos ilustrados, a adaptação de contos da transmissão oral ou a tradução de álbuns infantis, uma atividade que se fortaleceu com a aparição de outras chancelas como a OQO Editora (2005) e Faktoría K de Libros (2005). O esforço exploratório e experimental, por vezes através de au- tênticas arquiteturas em papel, tem sido materializado em livros inte- rativos, como os pop-up30, com lapelas31, com texturas32, recortados33,

29 E mesmo ibérico, pela forte implementação de algumas editoras nos territórios das diferentes línguas do Estado espanhol, para além de Portugal 30 Neste formato publicou-se precocemente uma versão reduzida do conto clássico Cara- puchiña vermella (Hemma, 1990) e mais recentemente Por favor, comparte! (A Nosa Terra, 2008), A araña máis intelixente (Baía Edicións, 2008) ou A princesa perfecta (Baía Edicións, 2009). 31 Atrás das quais se inclui informação relativa a conceitos ou partes do corpo, como em Ola bebé! e Son un bebé!, ou ampliam informação que incide no fomento e na aquisição de hábi- tos, como em A vestirse! (2009) ou ainda recorrem a estratégias próprias da transmissão oral para propiciar o jogo de identificação dos membros da família, como em Cucú, onde estou? (2008), todos eles publicados por A Nosa Terra na coleção “Os libros de Tatá” e ilustrados por Ana Mar- tín Larrañaga. É também o caso da série Os Bolechas, publicada por A Nosa Terra em 2007 que inclui As crías, A roupa, As tendas e O tempo, de Pepe Carreiro, a partir de um conceito original de Emma Books Ltd. 32 É o caso de A granxa e O xardín, ilustrados por Ana Martín Larrañaga e publicados em 2008 na coleção “Os libros de Tatá”, de A Nosa Terra, nos quais os orifícios, abas e tecidos estão ao serviço da experimentação visual e tátil; mas também de “Toca toca”, de Engaiolarte Edicións, que em 2015 publicou Cachorros, Cores, Selva e Sons, quatro livros de contrastes, texturas e volu- mes ilustrados por Fhiona Galloway e desenhados por Claire Munday, dirigidos a crianças a partir de um ano e destinados ao desenvolvimento da estimulação tátil e visual, baseados na técnica de “gofrado” (relevo no papel). 33 Como a dos volumes O coche, O barco, O avión e A locomotora, publicados por Su- saeta em 2002. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 104

com sons34, perfurados35, de tecido36 etc., nos quais os conteúdos estão predominantemente ao serviço da exploração do universo individual da criança e do contexto natural e social que a rodeia. Neste sentido, é de destacar o aumento considerável, na última década, das denominadas “lecturas vinculares” (Calvo Buil, 2010), nomeadamente as proporcio- nadas pelos livros sobre rotinas e hábitos infantis precoces, a partir dos quais se inicia o caminho em direção à leitura do mundo, através da sensibilidade, da estética, da clareza da palavra e do jogo, da intuição e do ritual, da imaginação e da provocação, numa aprendizagem que ocorre através dos cinco sentidos. Nestas obras, estabelece-se um vín- culo precoce com a leitura, através de um processo durante o qual é fun- damental a proximidade motivadora do adulto que permitirá à criança descobrir-se a si e ao mundo que a rodeia através da exploração reite- rada dos livros. Neste sentido, como sublinha Pedro C. Cerrillo (2001: 93), os livros-jogo, livros-objeto, álbuns, pictogramas... são livros que contribuem para “fazer leitores” e que respondem às características que Teresa Duran (1981) define como inevitáveis nos livros para esta etapa da infância:

Libros manipulables; dominancia de la imagen sobre el texto, debida- mente claro y armoniosamente distribuido tipográficamente, sintácti- camente correcto y adaptado a la capacidad de comprensión oral; con ilustraciones que no caigan en el realismo abusivo ni en el manierismo desbordado; trazos negros que resigan una imagen coloreada con tintas planas, mejor que con colores en directo; no sobreabundancia del color;

34 Como a coleção “Sons e tacto” com títulos como Animais de granxa e Animais de com- pañía, de Baía Edicións, publicados em 2011, que apresentam texturas com tecidos que imitam a sensação tátil da pele dos animais protagonistas e emitem o som que os caracteriza, com uma grande dose de realismo. 35 Como os da coleção “Dediños”, da editora Tambre, que, em 2004, publicou oito títulos nos quais se selecionam e adaptam rimas e canções infantis para contar, sortear, jogar..., tomadas da tradição oral 36 Materiais que, até ao momento, têm sido pouco explorados, mas contam com alguns títulos para os mais pequenos, como Boas noites! (Kalandraka, 2004), os livros laváveis dos Bo- lechas Xogamos co corpo (A Nosa Terra, 2008) e Xogamos na piscina (A Nosa Terra, 2008), com texto e ilustrações de Pepe Carreiro, e ideia de Emma Treehouse Ltd. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 105

formas bien resueltas y de percepción correcta -¡caricaturas abstener- se!-; perfil óptico óptimo, en vez de contrapicados y angulaciones exce- sivas (Duran, 1981: 25).

De entre todas as propostas, vamos centrar a nossa atenção nos livros desdobráveis37, em especial no livro-álbum sem palavras Balea (fig. 39), de Federico Fernández (Vigo, 1972) e Germán González (Vigo, 1976), publicado em dezembro de 2015 pela Kalandraka Editora. Porém, também nos deteremos nos antecedentes mais remotos deste formato na Literatura Infantil e Juvenil galega, que descobrimos nos contos ilus- trados da coleção “Desplegavelas”, editada em 1967 pela Galaxia/La Galera. Estas obras, separadas por quase meio século, configuram dois polos do que foi a evolução da literatura para os mais novos na Galiza: o início do seu processo de constituição como sistema e a inovação e normalização de uma produção própria.

Figura 39 - Livro desdobrável Balea

37 Estes volumes conheceram uma longa trajetória e tiveram grande interesse para o públi- co infantil e adulto, como evidencia a exposição organizada pela Biblioteca Nacional de Espanha sob o título “Antes del pop-up: libros antiguos en la BNE”, uma mostra comissariada por Gema Hernández Carralón e Mercedes Pasalodos, composta por meia centena de exemplares dos últimos sete séculos que permaneceu aberta ao público entre 11 de junho e 11 de setembro de 2016 na Biblioteca Nacional de Espanha, em Madrid. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 106

3. Entre desdobráveis: os antecedentes da Balea Este formato foi adotado como designação de uma das primeiras coleções infantis em língua galega que se publicaram em 1967, com chancela da editorial Galaxia e La Galera38, “Desplegavelas”, como já referimos, que incluiu três títulos39: Polo mar van as sardiñas, de Xohana Torres, com ilustrações de Ismael Balanya; Todos os nenos do mundo seremos amigos, de Maria Eulàlia Valeri Ferret, ilustrado por Asun Balzola; e Uma nova terra, de Francisco Candel, ilustrado por Cesc (Frances Vilas Rufas). Trata-se de livros encadernados, de peque- no formato, com um tipo de letra manuscrita e muitas ilustrações, nos quais se recolhem contos escolares para os primeiros leitores, apoiados por singelas atividades dirigidas à compreensão leitora, que respondem à orientação didática que era necessária no momento da edição (Roig, 2015: 79). Com esta iniciativa, a editorial Galaxia colocava em marcha o que Even-Zohar (1998: 481-489) denominou “planificación da cultu- ra”, ao lutar contra obstáculos como a debilidade da indústria editorial galega, a censura, a falta de recursos económicos e a carência de apoio de uma sociedade dominada pelo medo. Em relação a estas obras, a crítica tem destacado a sua novidade temática (Domínguez, 2008a; 2008b; 2009: 43; 2011), ao fornecer as primeiras amostras de multiculturalismo, em Todos os nenos do mundo seremos amigos, e de realismo crítico, em Polo mar van as sardiñas e Uma nova terra. Para este trabalho, contudo, interessa o seu forma- to: uma tira de papel dobrada em 5 duplas páginas e protegida dentro

38 Juntamente com “A Galea de Ouro” e dirigidas ambas pela pedagoga catalã Marta Mata i Garriga. Esta coleção apresenta capa dura, formato grande, muitas ilustrações de todas as cores, pouco texto (cerca de vinte páginas), vocabulário, uns exercícios de compreensão textual e uma cantiga musicada no final de cada obra. Apesar de serem anunciados onze títulos, só se traduziram para galego dois que, não obstante estarem prontos em 1966, não foram postos à venda até 1967, por causa das dificuldades com que se debatia uma editora de cariz galeguista durante a ditadura (Domínguez, 2009: 41). 39 Embora estivessem anunciados dezassete títulos. Tratou-se, provavelmente, de um fra- casso porque a seleção foi realizada pela editora de Barcelona tendo em conta os seus interesses e o seu ritmo de publicação e não os livros que seriam mais bem aceites pelos consumidores galegos (Domínguez, 2009: 43). APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 107 de uma capa e contracapa, que permite desenvolver a leitura de modo convencional nas primeiras páginas, com a imagem convivendo com o texto, mas que, coincidindo com o clímax do relato, obriga a desdobrar as folhas e a observar a proposta ilustrativa, de modo global, na parte final da obra. Dos três títulos publicados, destacamos Uma nova terra, por apresentar certas semelhanças ao nível da conceção global com a obra objeto deste trabalho, Balea. O seu autor, Francisco Candel, recria a mi- gração de uma família desde a aldeia até um casebre nas proximidades da cidade, a vida na escola, o tempo de lazer, momentos marcados pelo sonho de chegar a ter algum dia um apartamento num edifício do centro urbano. Nas ilustrações de Cesc (Frances Vilas Rufas) recriam-se cenas da narrativa de modo consecutivo e sequencial até ao momento em que se produz um salto temporal, uma elipse, que se reflete no movimento obrigatório do virar de página, dando lugar a três páginas desdobráveis sem texto, que proporcionam uma leitura narrativa das imagens, mos- trando com detalhe a perspetiva interior de três andares de um edifício, os quartos e as atividades e atitudes que estão a desenvolver os seus ocupantes. Deste modo, recriam-se situações do quotidiano, mas num novo contexto social, metáfora da melhoria do estatuto da família, além da passagem do tempo e a integração do narrador-protagonista na cul- tura e na sociedade de acolhimento. Para qualquer leitor avisado, estas imagens lembram a disposi- ção das histórias aos quadradinhos, publicações muito populares nos anos cinquenta e sessenta, em especial as historietas de humor publi- cadas pela Editorial Bruguera, como 13, Rue del Percebe, de Ibáñez, apoiadas em fórmulas narrativas originais, que contribuíram para a criação de uma nova linguagem, para a popularização de uma tipologia de personagens extraídas diretamente da realidade e que satirizaram instituições, modos de vida e situações de uma sociedade concreta (Fer- nández Soto, 2003). Neste sentido, tal e como sugerem Rui Ramos e Ana Margarida Ramos (2014: 8), na evolução do livro-álbum ilustrado, ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 108

não se podem esquecer fatores tão relevantes e determinantes como o destaque da componente lúdica e de entretenimento do livro, mas também, sobretudo, a influência de manifestações artísticas e culturais como a banda-desenhada e o cartoon, o cinema e outras formas de ex- pressão, como a publicidade e a imprensa escrita. É certo que, entre esta proposta pioneira de 1967 e a que de se- guida analisaremos, datada de 2015, existem muitas diferenças, tanto do ponto de vista do conteúdo como do formato, especialmente por se tratar, no primeiro caso, de um livro ilustrado, com texto abundante, face a um livro-álbum sem palavras, no caso do segundo, de grandes dimensões e de uma elevada qualidade visual. A esta constatação, é ne- cessário adicionar que, nos quase cinquenta anos que as separam40, os criadores deixaram de pertencer a outros sistemas literários, chegando através da tradução, para serem, agora, ilustradores galegos, com uma trajetória reconhecida através de prémios relevantes, como veremos a seguir.

4. Uma Balea de infinitas leituras Balea é um livro-álbum sem palavras em sentido estrito. Tam- bém é um mural, um livro acordeão ou um póster desdobrável, pela sua dimensão, e pode mesmo ser considerado como uma obra pictórica de

40 Durante este período, vieram a lume outras coleções de desdobráveis como “Árbore espazos”, publicada entre 2003 e 2005, por Editores Asociados/Galaxia, e que inclui os títulos O Circo, A praia, O zoolóxico, O campamento, O parque de atraccións e A neve, seis propostas de doze páginas que se desdobram, pensadas para pré-leitores. Semelhantes a quebra-cabeças, é necessário segmentar a sequência de imagens para descobrir a resposta às perguntas que aparecem na contracapa. Também a coleção “Pimpín por aquí non vin”, publicada pela própria Galaxia em 2008 e 2009, inclui seis livros acordeão, ilustrados por Jacobo Fernández Serrano (Vigo, 1971), que recriam cenas e motivos de festas anuais galegas, como o Natal, o “Samaín”, o Entrudo, o Magusto, os Maios e o São João, que, de um lado, representam unicamente cenas próprias de cada festividade e, no outro, além das ilustrações, também incluem algumas perguntas de compreensão e palavras relacionadas com a temática de cada obra. Deste modo, os primeiros leitores, além co- nhecerem os ambientes e os rituais destas festividades, também aprendem as primeiras palavras. Entre as últimas publicações, importa referir as obras Na granxa e Contando, de Engaiolarte Edi- cións (2014), ilustradas por Maxine Davenport e Cindy Roberts, que estão pensadas para o desen- volvimento visual dos bebés, com a associação de imagens a conceitos em torno dos números e as- petos do mundo mais próximo das crianças pequenas, como os animais domésticos, por exemplo. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 109 dupla face. Construído unicamente com imagens, apresenta um conteú- do gráfico e/ou pictórico, sem apoio textual que contribua, condicione ou guie a sua leitura. Os seus criadores são os ilustradores Federico Fernández41, autor da ideia original e das ilustrações, e Germán Gonzá- lez42, responsável pela cor. A obra foi finalista do Prémio Internacional Compostela de Livro-álbum Ilustrado em 2014, tendo recebido uma menção especial do júri. Esta obra é um exemplo de narração através de imagens sequen- ciais fixas e impressas, unidas na estrutura de livro (Bosch, 2012: 75), permitindo um duplo sentido da leitura, tal como assinala Sandra Bec- kett (2012: 66) para os livros acordeão, quando afirma que “Although these books can be read as doublespreads, either from left to right or back to front, they can also stand, allowing all the pages to be viewed simultaneously. The fluid format of accordion books often necessitates the creation of slipcases”. A escolha de uma ou de outra opção determinará o itinerário e, consequentemente, a informação obtida: entrar nas entranhas da baleia mecânica ou observar o cetáceo desde o exterior, navegando pelo fundo marinho. Além disso, pode optar-se por desdobrar o livro na sua totali- dade ou fazer uma leitura fragmentada das suas cinco duplas páginas, em jeito de livro, pois estamos perante uma proposta que, desde o ponto de vista paratextual, responde às características próprias do livro-álbum ilustrado, tal como assinala Ana Margarida Ramos (2010: 30; 2011: 18- 19), quando enumera

41 Licenciado em Belas Artes pela Universidade de Vigo, é docente na Escola Municipal de Artes e Ofícios de Vigo. Ganhou o Prémio Nacional de Ilustração em 2001, em Espanha, com o livro-álbum Onde perdeu Lúa a risa? É um dos promotores do espaço cénico El Halcón Milenario (http://halconmilenario18.blogspot.com.es/) e ilustrou outras obras como Chibos chibóns (Kalan- draka, 2003) ou Don Agapito o apesarado (Kalandraka, 2008). 42 Licenciado em Belas Artes pela Universidade de Vigo, leciona artes plásticas e desenho em escolas de Vigo e Ponteareas. Promotor de iniciativas culturais, é dos fundadores do espaço cénico El Halcón Milenario. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 110

a capa dura, o formato grande (ou diferente), variado de acordo com o conteúdo e com os objectivos da edição, a publicação num papel de qualidade superior, visível na gramagem elevada, o reduzido número de páginas, a presença abundante e profusa de ilustrações, a impressão em policromia, permitindo uma amplitude quase infinita no que aos jogos de cores diz respeito, a presença de um texto de reduzida extensão [...] e a qualidade e o cuidado no design gráfico da publicação, alvo de um investimento particular (Ramos, 2011: 18-19).

Aliás, neste caso, chama a atenção o formato, uma vez que a con- ceção material do livro recorre ao formato do acordeão e às dimensões de 14 cm de largura por 33,5 cm de altura, mas, uma vez desdobrado, as dimensões aumentam significativamente, passando a ser de um metro e quarenta centímetros de largura, convertendo-se num grande mural de dupla face que se pode pendurar pelos dois orifícios que apresenta na parte superior da capa e contracapa. Neste projeto resulta evidente o cuidado editorial, tanto pela ele- vada qualidade material, como pela capa e contracapa coladas à mão, assim como a decisão de respeitar, de modo inequívoco, a conceção de um livro-álbum sem palavras43, tendo sido encontrada uma solução muito inteligente para resolver as dificuldades encontradas. Assim, o título, os créditos editoriais, a dedicatória, o nome dos criadores e uma nota de apresentação nas quatro línguas do Estado espanhol, textos obrigatórios num objeto editorial (Bosch, 2012: 76), aparecem numa bolsa de cartão que recobre a capa. Trata-se de um invólucro amovível que inclui os únicos textos do volume e que é necessário remover para aceder, de forma completa, à informação presente na capa e na contra- capa, que fazem parte do corpo visual da obra, ficando apenas o nome

43 Tal como confessou o próprio Federico Fernández, numa conversa que teve lugar no mês de maio de 2016, os criadores e a equipa editorial realizaram diferentes reuniões e mantive- ram um diálogo constante para chegar a um consenso de modo a que, em primeiro lugar, fosse respeitada a natureza de um livro-álbum sem palavras, tendo surgido a ideia de criar para a obra uma “camisa” para alojar os textos inevitáveis em qualquer livro, tendo sido esta uma ideia da designer da editora. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 111 da editora o código de barras e o ISBN, elementos imprescindíveis para identificar o objeto livro. É uma ideia brilhante, que promove uma lei- tura sem palavras, uma leitura narrativa “pura” das imagens e, nesta medida, sem que ela seja condicionada, guiada ou forçada a refazer-se pela presença de um texto que provoque uma releitura da obra, nem elementos que marquem itinerários, percursos, que só o leitor decidirá em função dos seus interesses, tal como sublinha Beckett (2012: 40): “A cotton thread literally carries the thread of the narrative in a number of these innovative books, but the thread never imposes a story, leaving readers free to construct their own narrative. The beginning and ending can occur anywhere in these versatile books”. Entre os elementos peritextuais incluídos na bolsa ou “camisa” amovível, é, sem dúvida, o título que mais condiciona as expectativas do leitor e estabelece com ele um pacto de leitura, desempenhando, além do mais, funções como a de identificar a obra e a de designar o seu conteúdo. Neste caso concreto, estamos perante o que Genette (1987) define como título temático, o mais comum nas obras infantis (Lluch, 1998: 86), pois descreve o conteúdo e antecipa o elemento central do livro-álbum, a baleia, ainda que esta relação se apresente ambígua e aberta à interpretação do leitor, porque, tal como sugere também Genet- te (1987: 75), um bom título dirá o suficiente para promover a curiosi- dade mas não demasiado para não a satisfazer por completo. A escolha de um título tão sugestivo funciona como um elemento de estímulo e interesse em qualquer língua, ao ser facilmente identificável sem que seja necessária a sua tradução, mas mantendo a essência da obra intacta. Se atentarmos na sua disposição, as cinco letras que formam o título mostram indícios relevantes sobre o conteúdo da obra, pois o seu sentido vertical e sobre um fundo marítimo conduz-nos ao contexto no qual a obra se situa, estabelecendo um dos eixos ideotemáticos estru- turantes desta proposta: natureza viva/natureza artificial, representada pelos peixes que nadam em direção à entrada da obra, indicando o cami- nho a seguir, face às letras de natureza mecânica que parecem de ferro ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 112

ou de materiais específicos dos instrumentos de navegação. Com esta dicotomia introduz-se a convivência do natural e do artificial, alertando sobre as características do artefacto mecânico protagonista, onde surge um terceiro elemento ao pé do título: dois seres humanos vestidos de amarelo pintam a última das letras do título. Outro dos elementos que aparece nesta sobrecapa exterior é o nome dos autores, que inicia um jogo de pseudonímia, ao renunciar à identificação completa de ambos os criadores e ao apelar a um elemento próprio da sociedade industrializada, como é o recurso a marcas co- merciais, neste caso criada a partir do primeiro apelido de cada um dos autores, “Fernández & González”. Trata-se de um jogo que se mantém na nota de apresentação incluída na face interior da bolsa ou sobrecapa e no qual se pode ler, nas quatro línguas do Estado espanhol, o seguinte texto:

A balea azul é o animal máis grande do mundo. Tan grande que no seu interior poderían caber varios edificios. Tendo como modelo o gran cetáceo, os recoñecidos enxeñeiros FER- NÁNDEZ & GONZÁLEZ deseñaron un novo sistema residencial e de transporte marítimo, de superficie e somerxible, mecánico e de moi bai- xo consumo enerxético, que está a punto de revolucionar a navegación. Este grande artefacto que agora presentamos chámase: BALEA. E como primicia, aquí poderán observar o que está ocorrendo no seu interior.

Balea: a mellor forma de viaxar polo fondo do mar!

Trata-se de uma apresentação caracterizada pelo tom persuasivo, que cria curiosidade e convida a conhecer o engenho mecânico, a sua versatilidade e inovação de caráter industrial, ao apresentar uma tripla funcionalidade: residência, transporte e ecológica. Porém, se analisarmos com mais detalhe o sentido semântico de um termo como “artefacto”, podemos deduzir que não se refere só à natureza mecânica do aparelho, APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 113 mas está igualmente definindo a própria natureza da obra, concebida como um artefacto no sentido defendido pelo professor Anxo Tarrío (1994: 352), entendido enquanto “sistema estético no que cada uma das partes está interrelacionada intimamente con todo o conxunto e, á vez, por un efecto de retroalimentación ou feed back, explica as fases cronoloxicamente producidas con anterioridade”, pois aqui, como num crisol, podem observar-se, em grande parte, as trajetórias de ambos os criadores, as suas influências e referências44. Desta forma, estamos perante um texto que transcende o aparente sentido “publicitário”, próprio dos meios audiovisuais, e se converte, para o leitor experiente, numa definição da obra que tem nas mãos, en- quanto, para o leitor menos avisado, esta apresentação ganha pleno sen- tido com a imagem da miniatura, em branco e negro, do artefacto visto à distância, que parece um Nautilus ou um Moby-Dick navegando pelas profundezas. Com este recurso dá-se a conhecer a figura à qual se faz referência, e que observa o leitor com uma expressão alegre e afável, que busca a cumplicidade, presente também na dedicatória sintética e direta que está imediatamente por baixo da ilustração, “Para Max”. Este peritexto reflete familiaridade com o destinatário, neste caso o filho de quatro anos de Federico Fernández, que não tem por hábito dedicar as suas obras, o que evidencia o significado especial deste projeto para o criador, em torno do qual levou vários anos, trabalhando a ideia e pro- cedendo ao seu desenvolvimento posterior, um processo durante o qual o seu filho interveio, enquanto espectador de exceção, o primeiro leitor, além do mais crítico em relação ao resultado45. Completam o conteúdo textual da obra, como em todos os livros, as informações relativas aos créditos, na parte inferior, onde surgem

44 De facto, Federico Fernández conta, na sua trajetória, com exposições cujos elementos centrais eram robots. Assim, também a experimentação pictórica é uma das suas vertentes de atuação e, nesta obra, quis levar a parte pictórica às ilustrações, vinculando ambas as facetas. No caso de Germán González, fez, há três anos, uma exposição de aguarelas nas quais o detalhe e as pequenas dimensões eram alguns dos traços caracterizadores. 45 Tal como explicou na conversa já mencionada anteriormente. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 114

os nomes completos dos autores, da editora e o seu endereço postal, o ISBN, os registos e a data de publicação. Neste sentido, o leitor potencial desta obra oscila entre a crian- ça com conhecimento das convenções de um livro, da narrativa e do mundo, como assinala Nodelman (1988), que, quando se envolve ati- vamente no processo de decifração, é capaz de encontrar sentido nos signos, e também o adulto que o acompanha na leitura visual, pois, para ambas as leituras, existem “pistas” e elementos visuais que implicam diferentes níveis de leitura. Não se pode esquecer que as imagens são resultado de um contexto social, histórico e ideológico, e as respostas do leitor/espectador a qualquer obra literária ou artística vêm precedi- das das experiências prévias e das expectativas de práticas de leitura, de modo que “las imágenes atractivas y las palabras cautivadoras revisan y extienden estas experiencias y conocimientos por medio de las ideas y sensaciones nuevas suscitadas por la exploración del lenguaje visual, los vínculos intertextuales y culturales y las emociones que los acom- pañan” (Arizpe, 2013: s/p). Depois da remoção da bolsa que envolve o livro, o que aparece é a parte exterior da cabeça do cetáceo perante a qual o leitor pode seguir o movimento convencional de leitura de qualquer livro e virar a página para a esquerda, o que coloca a descoberto a parte interior da cabeça do cetáceo, mas, se optar pela direção inversa, irá descobrir a parte externa da baleia, os animais marinhos que a acompanham e outros detalhes do meio envolvente. A falta de texto obriga o leitor a ter de identificar os signos particulares das imagens, a decifrar as conexões entre os objetos que aparecem, a reconstruir as sequências dos diferentes significados e a confirmar ou refutar as hipóteses de leitura que se vão gerando conti- nuamente, à medida que se desdobra a obra e se percorrem as múltiplas partes que conformam o interior do animal ou o ambiente no qual se move. A descodificação dos signos visuais não resulta numa tarefa fácil nos álbuns sem palavras, como sugere Emma Bosch (2008), uma vez APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 115 que estas obras proporcionam múltiplas narrações que é preciso des- vendar. Neste sentido, estamos perante um formato mais exigente do que o convencional, sendo a participação do leitor muito mais ativa, uma vez que o único sistema semiótico presente é o das imagens, o que gera um ritmo de leitura diferente, mais pausado e concentrado, que, sem dúvida, obrigará a muitas releituras, avançando hipóteses, realizan- do previsões, procedendo a revisões, à identificação de personagens, à inferência de estados emocionais etc., um trabalho mais autónomo que exige maior autoconfiança e autonomia do leitor, ou um papel de me- diação mais ativo, sendo necessário assumir as ambiguidades, enfrentar os enigmas e aceitar que não se pode compreender tudo (Nières-Che- vrel, 2010: 143).

4.1. Dentro da Balea Quando se observa, em toda a sua dimensão interna, a baleia, temos a sensação de que estamos perante um quadro pormenorizado, no qual aparecem muitíssimas personagens que protagonizam um elevado número de microrrelatos simultâneos. Normalmente, tal como assinala Emma Bosch (2010: 8), os autores deste tipo de livros procuram que “el lector identifique entre las páginas abigarradas a uno o varios per- sonajes protagonistas. En cada doble página, el lector pasea libremente la mirada por las imágenes repletas de signos”, o que levou a deno- minar este tipo de obras, na língua alemã, como “Wimmelbuchs”, ou seja, livro formigueiro ou “libro pulular”, no sentido em que é possível passear livremente pelas imagens. Em Balea, não se fixa o objetivo de identificar ou localizar uma personagem, tendo os criadores levado até ao limite a liberdade de o leitor selecionar e determinar os seus pontos de interesse. Além disso, para além de nos aproximarmos do livro de forma convencional, procedendo à sua leitura da esquerda para a direita, acedemos ao interior de um transporte submarino repleto de habitan- tes, todos vestidos com um macacão amarelo, distribuídos por vários ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 116

espaços, semelhantes a camarotes, enquadrados pelas divisões dos es- paços, como vinhetas, que suportam a estrutura interna da colónia que habita o cetáceo mecânico. Estes espaços são caracterizados pelas ati- vidades aí realizadas e cuja disposição sugere que o tempo e o espaço estão divididos, mas, na realidade, a visão de conjunto cria a perceção de simultaneidade do que ocorre dentro deste mecanismo, perante a qual o leitor tem liberdade para seguir uma ordem semelhante à da lei- tura convencional (da esquerda para a direita, do plano superior para o inferior), ou, de modo global, escolher um pormenor, um lugar ou uma cena que quer observar com detalhe, e saltar entre eles, criando o seu próprio itinerário de leitura. Nas imagens não existem pistas nem ele- mentos que se destaquem para identificar os fios da narração, uma vez que se deseja que o leitor explore e observe com total liberdade o plano global, no qual, através de um movimento de aproximação, a atenção se pode centrar num lugar à escolha, que chame a atenção por algum motivo particular. Seguindo uma opção mais convencional, é possível aceder a cada uma das cinco secções em que está dividido o cetáceo, já que estas zo- nas surgem delimitadas pelas dimensões das duplas páginas, mantendo entre si alguma unidade de sentido, ainda que, no fundo, continuem, cada uma delas, a ser parte de um todo. Na primeira secção, correspon- dente à cabeça, apresenta-se a parte do mecanismo onde se localizam as salas de controlo e os aparelhos de propulsão a corda46, uma sala para atividades artísticas e de ambientação musical e o acesso ao exterior, sob a forma de uma boca com dentes afiados, podendo observar-se, ain- da, quatro pequenos submergíveis, usados na exploração do ambiente exterior. Na segunda secção, é possível observar, na parte superior, os dormitórios, as casas de banho, as salas de descanso e de ócio, a cozinha

46 Que, sem dúvida, remetem os leitores mais pequenos para todos os aparelhos mecâ- nicos que aparecem nas séries de desenhos animados dos canais infantis, como El pequeño reino de Ben y Holly, série criada por Mark Baker, em 2009, de grande êxito na atualidade entre este público. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 117 e um laboratório de investigação. Na terceira, surgem, na parte superior, os habitáculos para descanso, na parte central, predominam as salas dedicadas ao exercício físico e à limpeza, enquanto, na parte inferior, é visível uma sala ampla dedica à experimentação, com mecanismos artificiais e máquinas robóticas cujas cabeças são feitas à imagem e semelhança dos tripulantes desta nave, o que sugere a natureza artificial desta. Na quarta secção, observa-se, na parte superior, o armazém de cereais e a padaria, surgindo, imediatamente a baixo, a horta, com di- ferentes culturas, a sala de criação de porcos e de aves e um armazém, tudo em níveis consecutivos. Ao lado, surgem diferentes salas de con- trolo, uma sala de música, onde um grupo47 atua enquanto o público as- siste ao concerto, além de um infantário com um número considerável de crianças, meninas e meninos brincando. Na parte inferior, para além de uma porta de acesso ao exterior, também é possível observar as con- dutas, semelhantes a esgotos, onde trabalham funcionários na compa- nhia de ratos, enquanto, no exterior, se observam, tanto em cima como em baixo do aparelho, peixes de diferentes espécies que acompanham a Baleia. Finalmente, a quinta secção é formada pela cauda, acima da qual aparece um novo mecanismo de corda, com a respetiva sala de propulsão imediatamente abaixo, conectada a uma hélice. No exterior são visíveis outros exemplares de peixes nadando em diferentes dire- ções, assim como um submergível com um tripulante que os observa. A Balea apresenta-se, assim, como um microcosmos, um conti- nuum que, apesar da existência de compartimentos, se trata, na verdade, de vasos comunicantes através dos quais as personagens passam de um lugar para outro com total liberdade, observando-se exemplos onde está a ocorrer uma transição de uma sala para outra. No total, a comunidade re- presentada ultrapassa os cento e trinta membros, unidos pelos macacões

47 Cujo nome é Pink Panzer, referência biográfica comum a ambos criadores, que integra- ram um grupo musical com este nome, no qual também participou, como baterista, a esposa de Federico Fernández. Nas apresentações que fizeram desta obra, usaram um vídeo de animação cuja banda-sonora incluía alguns temas musicais desta banda. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 118

amarelos que os cobrem da cabeça aos pés, o que pode ser interpretado como sinal de igualitarismo, sem a presença de hierarquias, nem de elementos categorizadores. Trata-se, pois, de uma sociedade utópica e feliz, tal como refletem as suas atitudes e expressões, nas quais são per- feitamente visíveis o sossego, a tranquilidade e a afabilidade. As agua- relas coloridas, da autoria de Germán González, usadas na representa- ção de personagens e espaços, dão profundidade às figuras e criam um estilo clássico em termos da imagem global da obra, onde a imaginação é o elemento fundamental para recriar o que sucede nas múltiplas salas do cetáceo mecânico. Predomina o recurso a cores quentes (amarelo, laranja, castanho), que criam espaços acolhedores, cheios de vida e harmonia, sugestões semânticas que se estendem à sociedade recriada, contrastando com as tonalidades frias dos materiais da estrutura mecâ- nica, que, neste caso, funciona como uma estrutura óssea que organiza as diferentes secções, dentro da qual se destacam também as condutas que, à semelhança de órgãos, percorrem diferentes secções e ocupam espaços internos da estrutura. Desenvolve-se, assim, um rico jogo di- cotómico, que assenta em eixos temáticos como dentro/fora, artificial/ natural, mecânico/humano. Nesta amálgama de habitáculos é de assinalar a configuração ra- cional da distribuição dos espaços, a correlação interna das zonas, a atenção ao mínimo detalhe, assim como o recurso ao humor, à paródia, à ironia ou aos elementos escatológicos, que pontuam as situações in- ternas e externas do cetáceo e que promovem o riso cúmplice do obser- vador. Nesta comunidade utópica, na qual homens e mulheres exercem papéis semelhantes, plasma-se a vida diária de uma comunidade onde há tempo para o trabalho, o lazer, o descanso, a criação artística... Sur- gem também os diferentes estádios da vida humana, gerações diferentes que vão desde a infância até à velhice, as relações sociais, o convívio, a prática de diferentes expressões artísticas (pintura, música, cinema), o cuidado com o corpo, a experimentação... Esta sensibilidade e equi- líbrio interno estendem-se também à relação com o meio ambiente, ao APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 119 ser recriada uma sociedade sustentável, capaz de ser autónoma debaixo do mar, do qual aproveitam os recursos necessários ao seu abastecimen- to, complementando a produção própria. Os autores têm explicado que pensaram em incluir pistas para encontrar personagens, mas, no final, optaram por não o fazer, dando mais liberdade a cada leitor, de modo a que a componente visual pro- movesse o diálogo cúmplice que origina uma forma potenciada de nar- rar (Ramos, 2011: 20), propiciando a interpretação diferenciada de cada leitor em função do seu intertexto leitor. Deste modo, a um leitor atento não passarão despercebidas as referências à obra de Júlio Verne ou de Leonardo da Vinci, precursores na recriação de artefactos mecânicos, as vinhetas de Ibáñez, as multidões de Martin Handford, em Onde está Wally?, ou as cenas do quotidiano do pintor alemão Ali Mitgutsch (Mu- nique, 1935)48, caracterizadas pela atenção ao detalhe nas suas obras, ainda que diferentes das suas, unidas pelo ponto de vista aéreo, enquan- to, em Balea, o leitor se situa em frente ao objeto observado.

4.2. O exterior A correspondência com o desenho interior manifesta-se nos ele- mentos que comunicam com o exterior, que, neste caso, se podem ob- servar em pormenor, como as divisões verticais do aparelho, os peris- cópios, as hélices, os mecanismos manuais de propulsão e as portas de acesso, aos quais se junta a âncora que sai pela abertura correspondente ao olho. Ao longo das cinco secções que configuram esta perspetiva, observa-se a atividade no mar de homens e mulheres que, ataviados com botijas de oxigénio, desenvolvem tarefas de manutenção e limpeza das diferentes partes do cetáceo. Com eles interage um elevado número de exemplares de espécies marinhas, mais numerosos na parte central, que navegam no sentido da baleia, imitando a relação simbiótica que mantêm entre si algumas espécies. Sobressai também, neste espaço, o

48 Pode ver-se uma amostra da sua produção em: http://www.spiegel.de/einestages/ali-mi- tgutsch-erfinder-der-wimmelbuecher-wird-80-a-1047680.html (consultado a 23 de maio de 2016). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 120

humor, visível na postura assustada de um homem que se move numa peculiar bicicleta, que persegue um lagostim com um pau, ou a mu- lher nadando em cima de um grande peixe vermelho, o caranguejo que desafia, com suas pinças, o mecanismo artificial do aparelho na parte superior, as lulas que tocam e dançam com uma guitarra, o peixe com óculos... A esta colorida colónia de peixes e cetáceos junta-se também, num diálogo intertextual com toda a literatura dos romances clássicos de aventura, o encontro de um dos mergulhadores com uma sereia e a descoberta, por parte de outro, de um cofre meio escondido no leito marinho, para o qual se dirige com uma chave. Relações metafóricas, simbólicas e poéticas com a literatura universal, como o autor Federico Fernández confessou, transferem para a obra toda a sua bagagem cul- tural, que quer passar a Max, o seu filho, a quem é dedicada esta obra, como já referimos antes.

4.3. Leituras plurais Balea é uma obra dirigida a todas as faixas etárias, que proporcio- na uma experiência leitora anterior à própria aprendizagem da leitura e da escrita, dado que a leitura visual ajuda a formar o imaginário pessoal da criança pré-leitora, cujo progresso na linguagem e a sua interrelação com o pensamento dependem dos estímulos recebidos desde a primeira infância, transmitidos fundamentalmente através da tradição oral e dos textos da cultura (literatura, música, jogo), que fomentam a comunica- ção adulto/criança, imprimindo-lhe uma carga afetiva que fortalece os vínculos, enriquece e ressignifica os padrões da criança e se constitui como uma poderosa ferramenta de prevenção emocional (Reyes, 2008). Desta forma, está provado que a literatura enriquece as possibilidades de comunicação verbal e não verbal no seio da família, dotando todos os seus membros de ferramentas comunicativas para transitar entre uma linguagem meramente utilitária e instrumental para outra mais inter- pretativa, expressiva e simbólica, que resulta determinante no desen- volvimento da capacidade criadora do sujeito e que garante a transição APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 121 entre a leitura literal e a leitura como processo dinâmico de construção de sentido. Autores49 e editora revelam, assim, o seu respeito pela capacida- de de todos e cada um dos leitores que se aproximem da obra, ao não interferir na essência da proposta visual e ao garantir, desta forma, o prazer de ler um livro-álbum sem palavras num estilo puro, preenchen- do os seus espaços em branco. Contribuem para uma leitura e inter- pretação individuais, segundo os conhecimentos e a competência dos destinatários desta proposta visual, e promovem um público-alvo que descubra em Balea itinerários de leitura infinitos, desafios para pensar, para circular do esperado ao inesperado, do literal para o metafórico (Arizpe, 2013). Não podemos esquecer que, na atualidade, um livro- -álbum bebe e convive com muitas outras artes visuais, desde o cinema à banda-desenhada, dos videojogos à publicidade ou à televisão, con- vertendo-se numa “arte multimodal en el que se integran la dimensión espacial de la composición y la dimensión temporal del ritmo narrati- vo” (Silva-Díaz, 2006: 26), fruto, em parte, da indiscutível presença da imagem na cultura contemporânea. Por isso, um livro-álbum é uma ferramenta fundamental, no sentido em que proporciona uma combina- ção sinérgica de interação de códigos, o que conduz, em algumas abor- dagens, a definir este tipo de publicação como iconotexto, imago-texto ou artexto (Agra e Roig, 2007). Porém, nos casos em que o livro-álbum não inclui texto, como em Balea, a obra abre-se também a leitores de tenra idade, ao oferecer um contacto precoce com a estrutura narrativa e com a dimensão artística do livro, tanto do ponto de vista literário como plástico (Ramos, 2011: 20). As fronteiras entre os diferentes discursos artísticos diluem-se cada vez mais, por isso é necessário aproveitar esta conexão entre as

49 Tal como explicou Federico Fernández na conversa referida, foram muitas as reuniões dos criadores e dos responsáveis da editora (diretor, designer, etc.) para decidir questões que afe- tavam o design gráfico, como a bolsa removível, na qual se incluíram vários textos e informações sobre os créditos autorais e editoriais e a apresentação, a decisão de não realizar guardas, de que capa e contracapa fossem coladas à mão, etc. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 122

diferentes linguagens como um excelente canal de motivação e de inter- disciplinaridade. De facto, estamos totalmente de acordo com Ballester e Ibarra (2009: 33) quando afirmam que, na educação literária dos mais novos, “junto a los textos literarios defendemos el empleo de todo el extenso espectro de textos denominados paraliterarios o también toda esa otra literatura, como la literatura de masas, el cómic o el graffiti”, por considerar que a competência literária dos leitores do século XXI se alimenta de diferentes linguagens, nem todas elas com origem no âmbito académico (Lluch, 2003). Além disso, no livro-álbum, todos os elementos do livro estão ao serviço da história: a ilustração, o formato, o fundo da página, a composição dos elementos, a tipografia... de modo que, no livro-álbum, tudo conta, e esta afirmação é válida para as duas aceções do verbo “contar” (Silva-Díaz e Corchete, 2002: 20). Balea é uma metáfora da mecanização, entendida como progres- so democrático e de igualdade, tal como se reflete nas suas imagens, sendo também um livro que se distingue de outros projetos onde a ilus- tração surge associada a um texto, uma vez que, nesta obra, é a ilus- tração que recria um mundo de máquinas e artefactos. Trata-se, sem dúvida, de uma obra suscetível de ser partilhada entre crianças e adultos e, como afirma David McKee (Carranza, 2008), tanto crianças como adultos perdem se não compartilharem a sua leitura. Fernández e González revelam, tal como assinalou Leo Lionni (1988: 66; 2003: 17), que todo o processo artístico é o resultado de uma sequência infinita de opções, de um percurso constante, do exer- cício de um julgamento crítico que se converte em profunda reflexão e, finalmente, da descoberta da nossa própria identidade. Nesse caso, o que existe de mais galego do que responder a uma pergunta com outra pergunta? É isso que fazem Federico Fernández e Germán González, quando, perante as dúvidas que possam surgir ao leitor sobre o sentido de muitos aspetos da sua obra, parecem optar por sugerir: o que quer que signifiquem? APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 123 5. Algumas conclusões

Múltiplos acessos, leituras plurais, itinerários pessoais, leitura singular entre várias possíveis, o ponto de vista particular baseado na troca privada entre leitor e criador são apenas algumas das caracterís- ticas deste artefacto, Balea, que se inscreve plenamente na efervescên- cia criativa que tem caracterizado o livro-álbum ilustrado nas últimas décadas, “situando-o numa posição de intersecção (crossover ou dual addressee) entre a literatura infantil e a literatura adulta” (Ramos, 2011: 27). Sem dúvida, como defende Sandra Beckett (2012: 17), esta obra responde, como muitos álbuns ilustrados, a uma perspetiva global e transcultural, o que conduz a que “In many countries around the world, innovative works by picturebook artists challenge and dispel the wides- pread assumption that picturebooks are only for children”. Aproximar-se desta cidade flutuante sem palavras implica refle- tir sobre como a infância enfrenta a leitura visual, tanto a solo, como em companhia de um adulto, que nem sempre saberá responder às per- guntas que as personagens e os espaços suscitam ao atento espectador, sendo, por isso, fundamental compreender a flexibilidade da imagem e a interrelação entre os elementos que a integram, a sequência, o modo de recriar o espaço e o tempo... Com Balea, os professores e os mediadores, em geral, podem construir pontes entre o “leitor tradicional” e o “leitor novo” (Cerril- lo, 2007), aquele que tem como referência os meios audiovisuais e é submetido, demasiadas vezes, a uma leitura instrumental durante o seu processo educativo, pois os textos disponibilizados na escola servem para exemplificar noções linguísticas em detrimento do valor literário dos textos, o que conduz a que fujam da leitura assim que esta deixa de ser obrigatória e exclusivamente destinada a alcançar objetivos acadé- micos. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 124

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 129 8. O livro-objeto e a teoria do Ovo Kinder

Cláudia Sousa Pereira

1. Introdução

Trabalhar na área da Literatura o livro-objeto é, por si só, um ato epistemologicamente questionável, intelectualmente desafiante, institu- cionalmente atrevido, sobretudo, mas não apenas, quando nos dirigi- mos, em plena consciência, a leitores de formação previsivelmente na área das Ciências da Educação. A afirmação pode parecer exagerada, ou com ares de falsa modéstia ou, se o leitor for benevolente, ser apenas delicada para com os leitores mais conhecedores, do que a autora destas breves reflexões, de design gráfico e técnicas de desenho e ilustração, iniciação musical ou desenvolvimento psicossocial da criança. Talvez por isso, algum esclarecimento inicial se imponha. Questionável porque se há elemento menos realçado, visível e até sedutor, num livro-objeto, este é o do texto. Antes mesmo de ad- mitirmos poder discuti-lo na sua eventual literariedade ou no seu lugar dentro do sistema literário. Estudado no campo literário circunscrito à literatura infantojuvenil, o livro-objeto que contenha algumas palavras ou frases, mais ainda do que os livros que catalogamos como álbuns, mas talvez não tanto como o videojogo ou o próprio filme para a infân- cia, exige-nos metodologias e procedimentos que nos afastarão de uma leitura literária mais escolar que “escava” normalmente o texto para nele descobrir toda a matéria não-dita nas palavras escolhidas para o fazer. Desafiante no sentido em que, mesmo no universo que nosé tão familiar desta literatura com destinatário previsivelmente certo de crianças, o papel do adulto, e do mundo dos adultos, em todo o processo de criação, edição, publicação, divulgação e receção do livro-objeto, ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 130

é aquele em que, estranhamente e veremos porquê, mais requer a sua presença e, talvez até, atenção e cuidado a vários níveis. Atrevido quando trabalhamos um brinquedo em Estudos Literá- rios, quando analisamos o design editorial ao lermos literariamente um livro-objeto, quando propomos atividades em contextos educativos for- mais, para além dos não-formais e informais, e o fazemos na formação profissional de educadores. É precisamente com base nos três verbos que pressupõem uma ação de investigação e proposta de trabalho com livros-objeto – ques- tionar, desafiar e atrever-se – que desenvolveremos este contributo para o seu estudo. Não sem antes, fazendo jus ao compromisso que o título assume, desenvolver brevemente a “teoria do Ovo Kinder”, numa me- recida homenagem a um dos que foi nosso mestre nesta área de estudo, investigação e docência, o Professor Jean Perrot. Uma teoria que desen- volve com humor, tido como mais comum pela estereotipada origem britânica do que pela nacionalidade francesa do mestre, que lhe é carac- terístico, a par da seriedade do seu trabalho, em Jeux et enjeux du livre d’enfance et de jeunesse (1999).

2. A Teoria do Ovo Kinder

Publicado num ano de fronteira, o mítico 1999, que a cultura te- levisiva de massas da década de 80 colocava em plena expansão pelo Universo e relacionamento entre espécies extraterrestres no Espaço, nas vésperas da entrada de um novo século e de um novo milénio, a obra Jeux et enjeux du livre d’enfance et de jeunesse, publicada pelas Édi- tions du Cercle de la Librairie, coincide com um momento importante na história deste campo literário. Em Portugal, e talvez noutros países que não a França, os estudos sobre os livros e a literatura infantojuvenil ganham uma importância ignorada no meio dos estudos sobre Educação e sobre a Infância. Nem sempre reconhecida nos Estudos Literários, tor- nou-se então incontornável nos Estudos Comparatistas, onde Jean Per- rot entrou pela “porta grande” da Associação Internacional de Literatura APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 131 Comparada para orientar e sugerir caminhos nos estudos da que, entre nós, tratamos por LIJ, sigla que passarei a usar ao longo destas reflexões. A obra, publicada numa coleção dedicada a volumes sobre biblio- tecas, é classificada como pertencente a três grandes áreas-chave, que mantenho no francês original dada a especificidade que as designações assumem nas diferentes línguas em que se usam para os mesmos objetos que são os livros infantojuvenis: “littérature pour la jeunesse: France: histoire et critique”, “littérature pour la jeunesse: édition: France”; “livres illustrés pour enfants: France: histoire et critique”. Quanto à classificação Dewey, arrumam-se em 810:Livres pour la jeunesse: His- toire, théorie, critique e 070.31: Journalisme: Presse. Édition. Histoire du Livre. O público a que o bibliotecário ou livreiro poderá aconselhar a leitura, no original o public concerné, é nada mais nada menos do que o public motivé. Todas estas indicações, para catalogação, preparam os atentos leitores para a extensa obra que se inicia. Para além da história, da crítica e da teoria que vai fazendo e de- senvolvendo, fá-lo não só através da análise intensiva dos livros de que fala mas de exercícios práticos – que propôs, realizou, recolheu e aqui transcreve e analisa – com crianças e jovens, vendo-os brincar e conver- sar. Isto permitiu-lhe fazer deste livro um quase “tratado”, não apenas no sentido de estudo aprofundado, mas de convénio mesmo entre livro, criança e mediador, já que não só propõe acordos de leituras ou discus- sões possíveis para este ou aquele livro, como combina entre as partes regras para a escrita de um texto, ou o desenrolar de uma conversa, que se jogue em torno do universo que a literatura para a infância explora. Talvez por lançar mão de exemplos franceses acabados de publi- car então, e os exemplos das propostas de leitura serem muito concretos sobre estas obras, a tradução desta obra de Jean Perrot não encontrou grande sucesso, nem mesmo no público português mais motivado. Mui- to embora já existissem no mercado português, à data do seu lançamen- to, publicações congéneres, nacionais e traduzidas, e continuemos a ter “descendentes” dessas obras a que ali se recorre quer como exemplo, ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 132

quer como motivo de reflexão e proposta de trabalho com crianças, dificilmente conseguiremos acompanhar na totalidade o que é dito so- bre as obras mencionadas, tendo o redobrado trabalho de procurar nos títulos disponíveis nas estantes de livros para os mais novos exemplos aos quais se apliquem os princípios criticados e teorizados. Há, no entanto, logo na primeira parte da obra, uma curiosa refe- rência ao Ovo Kinder que nos é muito familiar e que recuperei para esta reflexão, até com honras de título. Ora, a obra de Jean Perrot, que trata de “jogos e desafios do livro para a infância e juventude” (que é como poderíamos traduzir o título), logo no índice inicial, propõe-se fazer, quase em forma de tutorial ou diretório, um percurso pelos capítulos que segue uma lógica e regras que se aproximam do domínio do lúdico. Aliás, o capítulo final intitula-se precisamente «Conclusão do ludista», o que nos esclarece sobre as intenções do seu autor quanto ao tom da sua reflexão que é sempre séria e de base teórica muito sólida. A referência ao produto de chocolate conhecido em vários países surge na sequência de um exercício com adolescentes que referem a im- portância dos alimentos nas funções maternais, e precede uma análise do papel da mãe num álbum para os mais pequeninos. É na página 58, das quase 400 que compõem o trabalho, que surge o seguinte parágrafo:

le pouvoir suprême exercé de nos jours par l’offre aux enfants d’un “oeuf Kin- der”, oeuf “surprise” (le terme apparaît sur l’enveloppe de papier aluminium) en chocolat. La consommation de celui-ci, comme le marquait un texte trop long que nous ne pouvons pas reproduire50, est une autocélébration orale de

50 Na página web da empresa Ferrero podemos ler um texto sobre a história deste produto que diz assim: “Desde 1974, KINDER® SURPRESA® delicia as crianças com doçura, fazendo com que elas brinquem de uma maneira surpreendente. Um ovo, um simples ovo de chocolate que se transformou numa idéia revolucionária, o prêmio ideal que cada criança deseja, justamente pelo seu interior sempre surpreendente. Desde os dias em que nasceu a idéia, desenvolveram-se mais de 8.000 surpresas e venderam-se no mundo inteiro mais de 30 bilhões de unidades. Cada ano criam-se mais de cem jogos e gadgets novos, com uma procura contínua de materiais novos e de mecanismos engenhosos: um estímulo contínuo não somente para a fantasia e a criatividade, mas também para o desenvolvimento de importantes capacidades tais como a lógica e a coordenação. As surpresas Kinder projectam-se sem perder de vista a segurança e com uma rigorosa observân- cia das normas vigentes e dos critérios de segurança adicionais voluntariamente adoptados pelo APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 133

l’enfance, des enfants (Kinder, “enfants” en allemand) et voit sa jubilation com- plétée par l’apparition du petit jouet qu’il contient. Le jouet, couronnement de la surprise, introduit le deuxième terme du couple parental, car, nous allons le voir, il est lié à la figure paternelle, assumée de façon emblématique par le Père Noël. Trata-se de uma proposta interpretativa antropológica, de que nos podemos desde logo aperceber só através destas frases, que orienta o trabalho de campo de Jean Perrot. E não deixa de fazer o seu sentido quando entramos no campo do jogo, e do desafio que nos é proposto de olharmos para a leitura literária, em particular para a iniciação à leitura literária, mas também para a criação literária neste campo específico da edição. Apresenta-se esta iniciação à leitura como um conjunto de eta- pas e percursos a completar, seguindo regras que nos permitam obter o máximo que, potencialmente, um objeto-livro pode oferecer. E note-se que a ordem dos fatores da apresentação do dito Ovo Kinder – chocola- te, surpresa e brinquedo – é também ela aqui significativa. E aplico-a, já agora, não apenas ao conceito que os estudos aqui compilados dedicam exclusivamente ao livro-objeto, mas a qualquer bom livro que requer um tão bom interlocutor para que se cumpra a sua cabal missão. Pen- samos na especificidade da comunicação literária que nos oferece um conjunto muito mais complexo, obrigando-nos a montar várias peças – como os brinquedos que estão dentro do Ovo Kinder – para darmos sentido(s) ao que pretendemos comunicar. Para Perrot, tout pédagogue et tout bon livre doivent être ces maîtres de la “surprise” ou de l’ “illusion”: ils font s’émerveiller les yeux et déterminent d’au- tant plus sûrement l’éblouissement qui cré le bon lecteur. En ce sens encore, ces “maîtres” créent un écart par rapport à la norme de l’enseig- nement habituel, ou plus simplement, par rapport aux bonnes histoires qui en proposent l’ equivalente. (Perrot,1999: 58)

Grupo Ferrero. Em cada KINDER® SURPRESA® há um mundo de jogo, de momentos felizes que os pais amam compartilhar com os seus filhos, descobrindo a alegria nos seus olhos, partilhan- do o seu doce sorriso.” ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 134

Jean Perrot entende e defende que colocar “a leitura literária numa perspetiva baseada no destaque do que é considerado marginal na instituição [escola], isto é o jogo, o humor, o gozo” é encarar “a infância sob a problemática do provisório e do efémero, do que é con- traditório e do disperso, como ímpeto e génese de uma cultura em for- mação” (Perrot, 1999: 58). Na ânsia de inventarmos um leitor infantil ideal, global, informado sobre tudo o que se passa à sua volta e apto a decifrar todas as ficções que lhe são oferecidas, esta conceção permite “ao artista o espelho ideal para uma escrita em diálogo, que implique a recusa de uma totalidade em proveito da interrogação e da investigação criadoras” (Perrot, 1999: 397)51. Entrar no jogo infantil, ingressando no mundo instável de quem muda um bocadinho todos os dias ou até mais do que uma vez por dia, qual Alice no País das Maravilhas, é assim uma quase-receita para os autores contemporâneos e de olhos postos em algumas das obras-primas do género no passado. Concluindo, Per- rot realça também, nesta obra, o jogo e a metáfora lúdica como formas férteis para conceber a leitura, uma vez que correspondem à visão quase utópica que assegura, no atual contexto dos produtos de lazer ofereci- dos às crianças, a importância dos livros e da leitura na construção da personalidade e da linguagem. Mas retornemos ao livro-objeto, que é o que nos traz a esta obra, em particular os dois tipos que deste formato utilizarei aqui como exemplo, o pop-up mais comum e o livro em formato carrossel, ambos apresentados normalmente pelas editoras contemporâneas como livros- -brinquedo, para além de serem vários os sítios online que ensinam a fazê-los. Ensinam o aspeto material, bem entendido, o que por si só já revela a curiosidade que estes formatos provocam nos bibliófilos, numa longa história que vai das tábuas ao e-book passando pelo pergaminho. Aliás, concluem diversos historiadores do livro que se pode fa- zer recuar as origens do pop-up até cerca de 1300, antes da invenção

51 Tradução nossa. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 135 de Gutenberg portanto, com livros feitos para explicar a astronomia em três dimensões. Um instrumento didático, muito mais do que um brinquedo, que, ainda assim, mediava, com uma outra “linguagem”, um saber científico e uma vontade de saber por quem tinha acesso a livros e, portanto, ao conhecimento e à educação. Mas só 600 anos depois, em Inglaterra, temos testemunho de livros com ilustrações móveis, as- sim se designaram, que constituíam best-sellers por surgirem no Daily Express Children’s Annual52. Foi, no entanto, um ilustrador americano, Harold B. Lenz, quem batizou o formato como pop-up quando publi- cou, talvez o primeiro e mais conhecido de entre outros clássicos que também recriou, Pinocchio, editado em New York, em 1932, pela Blue Ribbon Books. O livro em formato carrossel é uma variação do pop-up, já que também os recortes do papel saem das páginas através do movimento em efeito 3D. Mas, desta feita, proporcionando no sentido do cami- nho para o final da história um final encenado num livro que, uma vez terminado, tem o formato próximo de um carrossel e não de um livro fechado. Curioso é o facto de este formato incentivar ao movimento do próprio leitor no final da história, convidando-o a levantar-se e rodar em torno do livro acabado de ler até ao fim. Ou a fazer girar o livro, como um carrossel. Apesar da vasta oferta editorial que tem vindo a surgir no merca- do livreiro, e de nestas reflexões se tecerem considerações mais gerais,

52 Nos finais do século XIX, a partir da Grã-Bretanha, mas chegando ao restante mundo anglófono, as histórias das crianças publicavam-se em periódicos de adultos, semanal ou mensal- mente. Para capitalizar o seu mercado, as editoras começaram a reunir as melhores em anuários cheios de histórias, ilustrações e jogos. Os livros eram lançados pelo Natal, e comercializados como o presente perfeito, já que era ao mesmo tempo divertido e educativo para as crianças. Estes anuários antigos são geralmente livros de capa dura, brilhante e atraente, com pelo menos 200 pá- ginas e ilustrações a cores e a preto e branco. Já no século XX os editores passaram a incluir novas histórias inéditas, a fim de impulsionarem as vendas. Autores reconhecidos, como Enid Blyton por exemplo, estavam entre os que neles figuravam. Cada anuário tinha um mercado específico, ora dirigido a meninas, a meninos ou a ambos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o racionamento do papel afetou a qualidade e quantidade de livros publicados, tendo cessado a produção para muitos. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 136

seguindo algumas propostas de tipologias apresentadas neste volume, vou ainda assim lançar mão de dois exemplares destes livros-objeto (fig. 40 e 41). Se o mais antigo, La Casita de Azúcar (anos 50 do sé- culo passado), se constrói em torno do conto tradicional de Hansel e Gretel, onde os doces também estão tão presentes, o mais recente, Pop- ville (2009), de Anouck Boisrobert e Louis Rigaud, empurra o texto de Joy Sorman, uma autora francesa premiada, para um lugar muitíssimo subalternizado. Quer um quer outro podem classificar-se, como vimos acima, enquanto pop-up, já que transformam o folhear num gesto que deslumbra pelo aparecimento em 3D da ilustração que salta das pági- nas. Abrir o livro não precede o gesto de folhear mas transforma-o num novo abrir, como uma caixinha de surpresas.

Figura 40 - Livro carrossel Figura 41 - Livro pop-up

Escolhi-os, como não podia deixar de ser, por razões afetivas e pessoais, porque é também assim que se escolhem os livros. Isto não é um desabafo mas antes um conselho a qualquer leitor mediador de livros e leitura, e que nunca é demais repetir. Mas escolhi-os também porque representam duas épocas diferentes da História – da história dos livros, da história dos leitores, da história dos estudos literários, da história da educação e da história do mercado – mas na qual o livro é um objeto ao alcance de (quase) todos e na qual o livro-objeto foi e con- tinua a ser de “encher o olho e a alma”, e cito a dedicatória pessoal que APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 137 está manuscrita dentro de La Casita de Azúcar, do meu tio-avô Leonel à minha mãe, no dia em que ela celebrava 11 anos, testemunho de um mediador amador, e que dizia assim: “Melhor me agradecerás quando, num futuro que eu sinceramente desejo longo e sempre feliz, queiras re- lembrar os teus saudosos tempos de criança, folheando as páginas deste livro e enchendo os olhos e a alma com a graça e mocidade eterna da bonecada.” (4-5-1953). O tio Leonel não era um homem culto, mas era uma pessoa muito, muito divertida, que adorava oferecer aos sobrinhos, que lhe substituíam no lugar dos afetos os filhos que não teve, brinque- dos atrevidotes que, infelizmente não chegaram até mim, felizmente porque serviram muito, e até ao seu próprio fim, as funções para que existiam53. E também ele se deixou deslumbrar por este livro-objeto. Quanto a Popville, foi uma compra recente minha a pensar já não nos meus filhos, como qualquer mãe, mas nos alunos que ajudo a formar na Universidade de Évora, nas disciplinas de Literatura para a Infância ou Promoção do Livro e da Leitura, ou até mesmo Estudos Literários ou Estudos Interculturais. A escolha prendeu-se com um movimento em Rede de Cidades que, em recentes funções políticas autárquicas, tive o privilégio de conhecer muito bem e que se organiza numa Associação Internacional das Cidades Educadoras. Esta associação, que tem os seus princípios definidos numa Carta54 que se assume como uma declaração de intenções, repõe na mão dos cidadãos, e das diferentes formas de instituições e organismos em que estes se associam e atuam, as ques- tões verdadeiramente políticas, na sua original definição mais próxima agora do conceito de cidadania. Estes dois livros-objeto, com os quais abrirei uma “caixa de diálogo” no meio deste texto corrido, vão servir de exemplo aos três momentos em que desenvolverei o porquê de este

53 Um dos brinquedos que a minha mãe recorda era um ursinho deitado numa cama e que, dada a corda, se levantava, espreguiçava e emitia um flatulento e divertido ruído que punha a criançada a rir com a mão a tapar a boca. 54 http://www.edcities.org/ e http://www.edcities.org/wp-content/uploads/2013/10/Carta- -Portugues.pdf ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 138

género propor ações e atitudes que, como na apresentação de um Ovo Kinder, são – da perspetiva do objeto e do seu manipulador – “um ali- mento, uma surpresa, um brinquedo”. Sobre este produto da empresa multinacional Ferrero, consultá- mos especialistas em marketing através de uma obra intitulada Marke- ting Lateral, de Philip Kotler e Fernando Trias de Besque, nos diz:

Os ovos Kinder Surpresa foram anunciados na televisão e posicionados como um produto saudável, rico em energia e hidratos de carbono. O ta- manho do ovo fornece a porção aceitável de chocolate que uma criança deve consumir. Quando abre o ovo, a criança brinca com o brinquedo e não pede mais chocolate. Estes dois fatores asseguram aos pais (os compradores) que os ovos Kinder Surpresa são a escolha certa entre as muitas opções de guloseimas. Do lado das crianças, o conceito tem uma tripla atração: adquirem um chocolate, um brinquedo e a hipótese de colecionar naves espaciais, animais, monstros, etc. O Kinder Surpresa redefiniu o mercado de guloseimas e chocolates ao criar uma nova subcategoria em que é a líder e ainda não apareceu um concorrente importante. (…) Para algumas pessoas talvez seja difícil perceber a diferença entre uma variedade de chocolate e um Kinder Surpresa. Note que o Kinder Sur- presa adiciona a necessidade de “brincar” à necessidade de “comer”. O mercado foi alterado. Um chocolate, se não for alterado, não pode satisfazer a necessidade de brincar. O Kinder Surpresa pode. (Kotler & Bes, 2003: 68).

Um caso paradigmático do mundo da Economia e do Marketing, o Ovo Kinder aparece como uma obra-prima que altera o horizonte de expectativa dos consumidores e dos mercados. É também isso que es- peramos de um livro nas mãos de uma criança: que por ser um alimento que o faz crescer, o emocione e possa brincar com ele. Mas vamos “baralhar as cartas e dá-las de novo”. Vamos jogar com as (re)ações de um livro-objeto, com as questões do campo literário da LIJ, com o que nos ensina o mercado, ou marketing, e perceber como os livros-objeto são um nutritivo instrumento para promover a educação, em particular APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 139 e no que nos interessa a educação na área da leitura e literacia literárias, mas quando, e bem, partilhado o seu uso da criança com o adulto. E é aí que, apesar de todo o discurso publicitário também o enunciar como princípio, ele se separa do Ovo Kinder que oferecemos normalmente à criança para que, sozinha, faça o que tem a fazer com este produto comercial. Vamos ver melhor porquê.

3. Questionar é como reagir com emoção à surpresa

Uma criança pega num objeto, num livro-objeto, talvez já à espe- ra que ele seja mesmo um livro, talvez a iniciar um de muitos gestos de tomar nas mãos o que se parece com o que um dia aprenderá a chamar livro. Mas nele não encontra palavras que possa pedir ao adulto com quem está que lhe leia. Ou elas são demasiado insignificantes perante o que se pode ver e mexer, em relação ao que se pode ouvir. Ficará à espe- ra que o adulto dê algum sentido àquela sucessão de “coisas” que saem das páginas. Se for deixada primeiro sozinha com aquele livro-objeto, e souber o que é um livro, procurará talvez encontrar uma lógica naquelas “coisas” e começará a manipulá-lo à procura dessa lógica a que podere- mos chamar, ousadamente, a história. Se o objeto for surpreendente tal- vez esse tempo de manipulação solitária seja longo, se a criança souber que “aquilo”, apesar de tudo, é um livro no qual procurará os sentidos e as emoções, questionando-se, como faz o adulto em qualquer leitura literária de um volumoso romance. Está iniciada a primeira etapa para se reconhecer a leitura literária: ela prende, quer saber mais do que está escrito ali naquelas palavras, ela quer saber de onde vem tudo aqui- lo, quem as criou, para quem as criou, enfim, tudo o que poderíamos perguntar quando estudamos obras e autores clássicos, ou quando nos encontramos em sessões de apresentação com a mais recente revelação no mundo da literatura. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 140

Quando me põem La Casita de Azúcar nas mãos e me dizem que este é um livro que conta a história de João e Maria, lanço-me a alinhar, ao nível dos meus olhos, o livro aberto em forma de carrossel e a procurar naquele “teatrinho” a história que talvez já conheça. Como este livro-obje- to que eu tenho à minha frente realiza uma encenação dos episódios mais marcantes, eu distingo, nos diferentes planos que as figurinhas vão ocupan- do, em perspetiva, a linha temporal da narrativa e, para mim ou para quem me oiça, posso contar aquela história como um contador de histórias faz com recurso à memória, às fórmulas, aos gestos que o ajudam a lembrar os detalhes que não pode esquecer para que a “leitura” da história faça jus aos séculos que a fizeram tornar-se um clássico. Quando abro Popville como um livro que, ao contrário do anterior, é um objeto que não esconde que é livro, não consigo encontrar uma his- tória, embora perceba a noção do tempo, embora perceba que o espaço é outra categoria fundamental para quem contar alguma “coisa”. Chegada ao fim, eu tenho um texto, que posso ler, ou me podem ler, ou, melhor ain- da, porque a boa companhia faz o caminho melhor, recontar como numa conversa. E aí eu vou voltar ao princípio e perceber que sou eu que tenho que lá pôr, naquelas páginas, as personagens. E vou fazer a minha leitura daquele espaço e daquele tempo que aquele objeto-livro me dá para eu imaginar, a partir daquelas duas incontornáveis categorias que moldam a vida de qualquer um de nós, tempo e espaço, quem os poderia habitar. Posso até fazer o percurso ao contrário, eu leitor moderno da grande cida- de, tão grande como a que salta nas últimas páginas, e saber que esse “ao contrário” já foi o percurso primordial e que invertê-lo é um regresso… ou um retrocesso? São estas as questões? Ou haverá outras? Aquela versão de João e Maria corresponde ao que imaginei quando a ouvi ou já a tinha ouvido e visto noutra sua versão? Que história encerra Popville? A surpresa perante o objeto leva-me à releitura, agora numa leitura que acalmará a excitação da surpresa, como quando o leitor adulto lê e relê um parágrafo, um episó- dio, à procura. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 141 4. Desafiar é como brincar com a comida

Uma criança pega num livro-objeto e já sabe, porque lhe mos- traram, que nesse livro a história não está presa só nas páginas, que os seus dedos podem despertar o que está dentro dele, que o livro pede que lhe toquem, e que as personagens ou os cenários saem dali, como ilus- trações animadas ou sons ou sabores ou texturas, e vê-os à sua frente a ganhar corpo. Ela percebe que, antes ou em vez da atenção ao texto verbal, pode procurar num livro todo um mundo criado à semelhança daquele onde vive, o que conhece ou que imagina que um dia, em qual- quer lugar, possa vir a conhecer. Se a criança já sabe o que é um livro, ao pegar num livro-objeto, que não é nem bem um livro nem bem um brinquedo, começa a perce- ber que também com os livros – mas sobretudo, podemos fazê-la saber que, com a leitura – o leitor pode usar o que ali está e que é “o que o Autor quis dizer” – e usá-lo para fazer uma brincadeira muito sua, in- ventando a partir do que ali está, do que já conhece ou do que quer saber sobre o que estranha. Com o livro-objeto, o mediador predisposto e preparado para ini- ciar a criança na leitura literária, sabe sempre que é pelo lado lúdico e do prazer, ou partindo daquilo com que a criança sente alguma afinida- de, que pode arriscar ir mais longe. Não faz mal brincar com a comida (esta é pela avó!, esta é pela mana!, aqui vai uma colherada de pó de dragão!, agora outra de escamas de tubarão!) se, no fim, acabarmos por comê-la e beneficiar dos seus nutrientes. Não faz mal brincar com um livro se, no fim, nos apaixonarmos pela leitura.

Quando posso, com La Casita de Azúcar, armar o livro e pousá-lo, andando à volta dele ou sentar-me e rodá-lo para o ler. Quando posso “co- lá-lo” à cara, apoiando no peito a esquina inferior da lombada, entrando sozinha e quase em segredo em cada um dos pequeninos cenários que foram feitos das cenas mais importantes da história que ouvimos ou nos vão con- tando. Nesta manipulação lúdica, vamos afinal lendo e percebendo que há ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 142

diferentes maneiras de “pegar” num livro – e, mais tarde, num texto – e que cada vez que lhe pegarmos será como ouvir outra vez aquela história, com maior ou menor ênfase neste ou naquele pormenor. É só preciso estar-se atenta e entrar no jogo de encenação que o livro nos pede. Quando vou abrindo Popville, percebendo que no fim eu vou ter aquele cenário de cidade erguida a partir das páginas e do meu gesto, eu- -criança, ao meu ritmo, vou lembrar o gesto acompanhado pela voz que me contou a história daquela cidade e posso, até, pegar nos meus carrinhos e nos meus soldadinhos de chumbo, ou upgrades mais modernos, e fazê-los entrar naquelas páginas. Sozinha, a pegar no livro-objeto que o adulto antes lhe apresentou, a criança está já a alimentar-se do que a leitura literária, nutritivamente, nos dá também a nós adultos leitores: aprender a escolher do que se gosta, depois de se conhecer tudo ou quase. Trazer para aquele ato, que é a leitura individual, todas as ferramentas que facilitem o convívio com o suporte onde se encontra, escondido, o que verdadeiramente constitui o nutriente alimento do livro: o pensar. Para mais tarde, um dia quando crescer, que é o que os alimentos também ajudam a fazer, poder saber como agir e reagir.

5. Atrever-se é como alimentar-se com uma guloseima

Uma criança pega num livro para brincar e começa a aprender. Não só a aprender como “faz” o porco ou a vaca, como o gato é macio e a relva pica, como se ata um sapato, mas como é preciso fazer algum gesto para aprender tudo isso, a cada página que abre, gira, levanta, des- dobra, numa tentativa de descobrir qual o gesto certo que traz a recom- pensa do livro que avança, segundo um jogo de regras que descobriu. Mas aprende também a olhar para os detalhes que vivem nas páginas dos livros, e que a realidade também lá está, ainda que num faz de conta (a que chamamos ficção). Na dose certa e a brincar, a criança alimenta- -se do jogo, da brincadeira, ao entender as regras para lidar com objetos a que chamamos livros. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 143

Não foi por acaso que escolhemos o livro-objeto La Casita de Azú- car. Foi porque vem do Passado, como a história de “João e Maria”, e foi porque se trata de uma herança que valoriza a matéria de que se alimenta, o conto tradicional, transformando-o num objeto esteticamente valioso. Tra- ta-se de uma herança que perdura independentemente do que as gerações lhe façam para que a herança siga o seu caminho. Esse caminho é trifurca- do: ou a herança perdura tal como está, mais ou menos cristalizada ainda que com o Tempo a passar (e a história contada à lareira ou ao deitar são isso mesmo); a herança é delapidada e desaparece, ficando-lhe um ou outro vestígio que a memória consiga fazer perdurar na desfragmentação que a dificulta; ou a herança avoluma-se e ganha, com o Tempo e com o que dele e dela fazem as novas gerações, a Eternidade. Para que isto aconteça, há que atrever-se a pegar nessa herança e, entendendo as dinâmicas sociais, fazê-la crescer, nem que seja jogando com soluções aparentemente desajustadas ao ato primordial da criação original, tantas vezes perdida. Não encarando a mudança, quando coerente e enriquecedora, como desautorização mas, precisamente, como valorização. Com Popville arrisca-se a bidirecionalidade da leitura – do início para o fim do livro ou vice-versa – partindo do conhecimento que o leitor tem de como funciona um livro para contar a história de uma cidade, que pode ser todas as cidades, mas também o sonho que se pode iniciar no fim da história. Se o texto ocidental nos faz levar o sentido da esquerda para a direita na leitura do texto e a abertura da página da direita para a esquerda, então, na ausência do texto, de que só o lugar-livro onde costuma viver ficou, o pequeno leitor atual pode atrever-se a contar a história de uma ci- dade, que pode ser a sua ou a que tantos adultos que a rodeiam e maldizem o caos citadino que os consome e, brincando, propor a solução inversa à do Tempo. Vai ter é de explicar muita coisa… que é o que fazemos quando lemos intensamente um bom livro de Literatura ou LIJ. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 144

6. Concluindo

Os livros-objeto não são só brinquedos. São também brinque- dos… como todos os outros livros que podemos incluir na LIJ. A ini- ciação literária está só num nível muito inicial, em que a proficiência em leitura literária, chamemos-lhe assim, está toda no mediador adulto que ensina a criança a brincar com aquele objeto que, por sinal, também é um livro. Como um livro, como um livro de LIJ. Porque aprender a ler literatura também é isso: aprender como se faz para usar o faz de conta do mundo da literatura onde todos os equívocos, todas as fanta- sias, todos os jogos são permitidos, libertando-nos para a dura tarefa de crescermos sempre enquanto criaturas pensantes.

Referências bibliográficas: Obras analisadas: BOISROBERT, Anouck; RIGAUD, Louis (2010). Popville. Figueira da Foz: Bruaá editora. (s/d). La Casita de Azúcar o Pedrito y Maruja en 6 dioramas. Barcelo- na: Editorial Roma.

Estudos: KOTLER, Philip e BES, Fernando Trias de (2015). Marketing Lateral. Coimbra: Edições Almedina. PERROT, Jean (1999). Jeux et enjeux du livre d’enfance et de jeunesse. Paris: Éditions du Cercle de la Librairie.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 145 9. Fabrico e uso de livros artesanais na formação de educadores55

Eliane Debus Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira

1. Introdução

Comungamos da ideia de que devemos proporcionar às crianças o acesso ao livro o mais cedo possível e de que o manuseio deste ob- jeto contribui para a inserção da criança nas práticas sociais de leitura, isto é, de que a leitura desse objeto (o livro) é a primeira cerimónia de apropriação da leitura (o texto), bem como cremos que essa relação estabelecida entre a criança e o manuseio do livro provoca uma leitura específica: a leitura pelos sentidos. Maria Helena Martins (1982) apon- ta a existência de três níveis básicos de leitura: sensorial, emocional e racional, lembrando que eles estão interligados. Interessa-nos aqui a leitura sensorial por entendermos que é nas dobras desse tipo de leitura que os pequenos se vão aproximar do livro, já que a “leitura sensorial começa, pois, muito cedo e nos acompanha por toda a vida” (Martins, 1982: 40). Exemplo significativo de leitura sensorial é a realizada pelo me- nino do poema “Biblioteca Verde”, de Carlos Drummond de Andra- de que, ao ter em mãos os 24 volumes da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, os recebe pela leitura olfativa, tátil, auditiva, visual e até mesmo gustativa. Poema memória pleno de significados. Pelo trem de ferro desliza a Coleção que “Chega cheirando a papel novo, mata de pinheiros toda verde”; leitor do código gráfico, a personagem menino

55 Parte inicial deste texto foi publicado por Eliane Debus em Revista Presença Pedagó- gica, v. 16, p. 46-50, 2010. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 146

alerta o leitor que outras leituras antecederam o debruçar-se sobre as letras “Antes de ler, que bom passar a mão / No som da percalina, esse cristal / De fluida transparência”; ecoa no discurso a protelação da lei- tura das palavras, “Agora quero ver figuras” e, por fim, para completar a leitura pelos sentidos, destaca-se a metáfora da devoração: “Como te devoro, verde pastagem” (Drummond, 1973: 129-130). A materialidade do livro provoca encantamentos no menino leitor. Faz-se necessário refletir sobre a materialidade constitutiva do livro e proceder uma investigação atenta, pois a criança ainda bebé não o manuseará da mesma forma que outra maior, isto é, o aspeto físico do livro recebe uma atenção redobrada, já que o suporte em formato de papel é de grande fragilidade para as crianças que o colocam na boca, manuseiam rapidamente, sem muito cuidado, até porque ainda não in- corporaram os rituais que circundam o ato da leitura. Assim, para as crianças pequenas, o livro-objeto, constituído pelo seu aspeto físico, confecionado de material diverso (pano, cartona- do, plástico) será de fundamental importância para as inserir nos rituais de leitura: virar as páginas do livro, abri-lo e fechá-lo, enfim gestos iniciantes que se constituem mais tarde em práticas permanentes. O mercado editorial tem, nas últimas décadas, ampliado o acervo destinado às crianças pequenas, nele incluem-se os livros de plástico para banho, que se transformam em boias; livros de pano que viram travesseiros, almofadas. Sem deixar de citar os livros pop-up, que são aqueles que, quando abrimos as gravuras, saltam das páginas como do- braduras vivas. Esse conjunto de livros-objeto tem a denominação de livros-brinquedo e o seu crescimento e importância ficam visíveis a par- tir de 1998, quando receberam da Fundação Nacional do Livro Infantil (FNLIJ) uma categoria de premiação. O caráter de brinquedo desses objetos é o que merece ser estu- dado como o fez o estudioso francês Jean Perrot (2002) ao apresentar os “livros-vivos” (poderíamos ler livros-brinquedo), tratando-os como paraíso cultural para os pequenos leitores e realizando uma análise que APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 147 contribui para pensar a importância desse material para a formação lú- dica da criança; as estruturas movediças, com abas que se levantam trazem à cena personagens e objetos, molas, dobras, papéis cartonados e resistentes, imagem em alto relevo são algumas das possibilidades e artimanhas na confeção desses livros. Para ele, “as formas que esses li- vros assumem realçam e estimulam o gosto pela leitura, por prenderem o leitor ao prazer do mundo encantado das ‘surpresas literárias” (Perrot, 2002: 34-35). O contacto com um objeto que, pelas suas características, está mais próximo do brinquedo provocando uma “desdramatização do ato de ler” através de estratégias que cativam o não-leitor do livro sem ou- tros fins que não os do prazer. Segundo Perrot (2002),

A aparente gratuidade e a aparência de brinquedo desses objetos forne- cem-lhes a qualidade de presente e de distração, tirando-o do contexto das obrigações e dos trabalhos escolares e, aparentemente, oferecendo um alívio para o cansativo jogo de integração cultural (2002: 34).

No Brasil, embora exista a circulação e comercialização destas publicações, este tipo de livros ainda ocupa uma parcela pequena nos acervos das editoras, como demonstra a análise realizada por Magda Soares (2008) em 20 catálogos editoriais, constatando que o público alvo das editoras situa-se a partir dos três anos, com ênfase nas crianças entre quatro e seis anos, e somente dois catálogos trazem livros-brin- quedo para crianças com menos de dois anos. A estudiosa conclui que “ainda é pouco reconhecida a importância, para a formação da criança leitora, da convivência com o objeto livro desde a primeira idade” (Soa- res, 2008: 24-25). Nos registos de projetos cadastrados no Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), Rosing e Tussi (2009) encontraram uma única referência destinada ao público de 0 a 3 anos, o projeto “Liberdade pela escrita”, realizado pelo Centro Universitário Ritter dos Reis, que desenvolve “sessões semanais de leitura com detentas que convivem ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 148

com seus bebês no Presídio Madre Pelettir” (2009: 15), no Rio Grande do Sul (Brasil). Estas pesquisadoras apresentam essa informação no li- vro Programa Bebelendo: uma intervenção precoce de leitura, no qual apresentam investigação com adultos do grupo familiar de crianças des- sa faixa etária e cuidadores, e como esses são capazes de aproximar as crianças da leitura. Interessa-nos nestas páginas pensar, para além dos livros comer- cializados pelo mercado editorial, e apresentar a possibilidade da cons- trução de livros produzidos artesanalmente, sem desmerecer os livros industriais, mas apontando novas possibilidades para além dessas.

2. Livros brincantes: o fabrico artesanal de livros pela(o)s es- tudantes de Pedagogia/UFSC

O livro é mais que um livro, na ordem material. Não é apenas o forma- to, como objeto. É uma realidade específica, que tem em nós ressonân- cias próprias, levando-nos a tateá-lo para lhe sentir o papel, o tamanho, a disposição gráfica, que por vezes ressalta da página. Por fim, a leitura, que vem como ato conclusivo do cerimonial de posse. Ah, o horror com que vejo, por vezes, um brutamontes qualquer a abrir arreganhadamen- te um livro, com a capa a tocar na outra capa, e começar a lê-lo, como se o livro não fosse uma realidade viva, que reclama também nosso cuidado e nosso afago. (Montello, s/d: s/p)

Nesta secção apresentamos o exercício experimental de fabrico de livros com estudantes da 5ª. fase do curso de Pedagogia da Universi- dade Federal de Santa Catarina (UFSC)/Brasil, no âmbito da disciplina de Literatura e Infância. Trata-se de um exercício que tem se efetivado, de forma sistemática, desde o ano de 2001. A proposta de confeção do livro artesanal tem como objetivos levar a(o)s aluna(o)s, futura(o)s professora(e)s de crianças em institui- ções de educação Infantil e Ensino Fundamental a compreender os ele- mentos constitutivos da feitura do livro; e refletir sobre o livro enquanto materialidade do impresso, objeto que abriga o escrito: o tipo de papel APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 149 (ou outro suporte), o tipo e tamanho da letra, o formato do livro. Entre os seus objetivos também se incluem refletir sobre a relação estabele- cida entre o leitor de diferentes idades com o objeto livro e a leitura, desconstruir a ideia de leitura única e pensar a leitura atravessada pelos sentidos (leitura tátil, olfativa, auditiva, visual, gustativa); escapar de uma visão escolar e conteudística na qual a leitura literária está ao ser- viço da transmissão de normas e comportamentos, com um fim utilita- rista; e, finalmente, mas não menos importante, privilegiar a ludicidade na composição do livro infantil. Apoiados nas referências de Roger Chartier (1996) de que na feitura de um livro existe distinção dos procedimentos de produção de texto e os procedimentos de produção de livro, ampliamos as referên- cias sobre esses procedimentos ao refletir sobre as possíveis estratégias textuais adotadas, como escritores, que garantirão a boa leitura; bem como o cuidado com os procedimentos tipográficos adotados na confe- ção do livro. Parte-se da ideia de que o livro infantil tem três dimensões: a ma- terialidade do objeto, o texto literário e a ilustração, às vezes integrada, outras não, como o texto e a ilustração, pois temos livros compostos somente de imagem. Assim, para a confeção do livro, há a opção entre três caminhos: criar uma narrativa própria; adaptar uma narrativa, poe- sia ou canção da tradição oral e, por último, utilizar somente imagem. A primeira opção é acolhida por um bom grupo de alunas e alunos, mas muitas narrativas caem no lugar comum de procurar passar ensi- namentos sobre alimentação, higiene, enfim regras de civilidade que podem e devem ser encontradas em manuais, mas não deveriam ser o eixo central do texto literário. Paródias, releituras a partir de estruturas textuais conhecidas como parlendas, provérbios, cantigas de roda, entre outras, são uma boa alternativa por surgirem carregadas de comicidade e humor. Respeitando os limites individuais de quem elabora o livro, abre- -se a possibilidade de inserção de terceiros na feitura do livro. Percebe-se ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 150

que essa liberdade de buscar no outro o auxílio contribuiu para que a(o)s aluna(o)s ousem na sua produção. Entram nesta tarefa o pai marceneiro, a tia bordadeira, a avó costureira, a vizinha crocheteira, o namorado desenhista, o marido/esposa designer, enfim, personagens que colabo- raram na sua confeção e, por isso, se tornam coautores, sendo devida- mente identificados na sua ficha catalográfica ou nos agradecimentos. Buscamos levar em conta o exercício de manuseio, a leitura do objeto (cheiro bom/ruim, as cores, a ilustração) e descentrar o olhar somente sobre a leitura do código gráfico. Ao apropriar-se do contacto físico com o livro, da sua materialidade e dos seus rituais estabelece-se mais do que uma relação de efetiva leitura, existe uma leitura afetiva. O manuseio pela criança do livro-objeto contribuirá por certo para a sua relação afetiva e efetiva com o objeto livro. Passa-se da lei- tura material do livro à leitura do texto. Acreditamos que a inserção da criança no mundo lúdico da leitura literária através do livro artesanal desfaz algumas ideias pré-concebidas, entre elas a de que a criança que não descodifica o código escrito não é leitora (Debus, 2006). Quando propomos a produção artesanal do livro não estamos destituindo o valor e a validade do trabalho pedagógico com o livro construído industrialmente com materiais alternativos (pano, plástico, cartonado). O que sugerimos é a convivência e a permanência desses objetos de forma harmoniosa no mesmo espaço institucional. Que seja possível pensarmos esses artefactos como brinquedos que são e que introduzem a criança no fascinante e ritualístico mundo da leitura.

3. O livro artesanal entra na roda e convida para cirandar: relatos de uma exposição

“De hoje em diante Serei o contador viajante!”

Laís Elena Vieira. O Menino mais pobre do mundo

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 151 Desde 2012 temos realizados várias exposições dos livros fa- bricados pela(o)s estudantes, como forma de socialização do trabalho realizado na disciplina e também de manuseio experimental pelas crian- ças. Optamos, neste texto, por trazer reflexões sobre a exposição “Li- vros brincantes: uma tecitura artesanal”, realizada a 17 de abril de 2013, no Hall do prédio D, do Centro de Ciências da Educação-CED/UFSC. O trabalho foi coordenado pela professora Eliane Debus e organizado pelo Grupo de pesquisa Literalise – grupo de pesquisa sobre literatura infantil e práticas de mediação literária, Programa de Educação Tutorial (PET/Pedagogia). Fizeram parte da exposição os livros artesanais pro- duzidos pela(o)s estudantes entre os anos de 2012 e 2013, totalizando 45 livros. Com o propósito de perceber as possibilidades de leitura literária que podem emergir no espaço expositivo e, a partir das observações realizadas, destacamos três pontos que consideramos relevantes. Em primeiro lugar, o “fazer a exposição” como uma estratégia que favorece o letramento56 literário dos organizadores, dos expositores e de seus visitantes. Em segundo, o envolvimento afetivo revelado pelas auto- ra(e)s/expositora(e)s como um aspeto que potencializou não apenas a experiência da(o)s graduanda(o)s enquanto leitora(e)s, mas sobretudo como um modo de projetar e/ou reinventar os papéis de mediadora(e)s da leitura literária no espaço escolar e fora dele; e, por último, a partir da observação participante no acolhimento de duas turmas de crianças visitantes, explicitamos brevemente algumas considerações sobre o an- tes, durante e depois das visitas ao espaço expositivo de leitura.

3.1. A exposição e os aprendizados Certamente, a exposição dos livros artesanais produzidos em sala de aula constituiu um aprendizado que se iniciou muito antes

56 Processo que se faz via textos literários e compreende uma dimensão diferenciada do uso social desta forma de escrita assegurando seu efetivo domínio. Para saber mais, ver Cosson (2012). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 152

da instalação espácio-temporal da referida mostra. O processo de le- tramento literário permeou toda a vivência de criação das obras ali expostas e ganhou maior amplitude com o “fazer a exposição” num movimento de vivências fecundas, de interação e compartilhamento. O planeamento, a escolha e a disposição cuidadosa dos livros produzidos artesanalmente pela(o)s aluna(o)s escritora(e)s trouxe uma visualidade colorida e o encantamento da originalidade. Livros em formato de árvo- re (fig. 42), de almofada, de caixa, de boneca (fig. 43). Livros que guar- dam ou revelam segredos (fig. 45). Livros primorosamente pintados, bordados e escritos que exibiam narrativas diversas como A menina do campo57, As manias de Leo58 e Os paninhos da vovó Lica59, entre outras. Histórias criadas pela(o)s aluna(o)s que, de alguma forma, se tecem no contexto autobiográfico de suas/seus autora(e)s e as/os impulsionam para conhecer muitas outras histórias. Por esse mesmo viés, acreditamos que a produção dos livros ar- tesanais e as narrativas ali registadas não trouxeram apenas ao cenário as experiências de leitura literária (o acervo pessoal) da(o)s aluna(o) s-autora(e)s, como possibilitaram igualmente a reflexão sobre os signi- ficados sociais do livro enquanto artefacto cultural e o valor atribuído a este objeto na sociedade contemporânea. Além disso, expositores, or- ganizadores e visitantes acabam por formar, ainda que de modo bas- tante efémero, “uma comunidade de leitores. É essa comunidade que oferecerá um repertório, uma moldura cultural dentro da qual o leitor poderá se mover e construir o mundo a ele mesmo” (Cosson, 2012: 47). Se essa(e) leitora/leitor é aluna(o) de Pedagogia (futura(o) professora/ professor), essa experiência consolida uma prática leitora que poderá ser transposta para a ação pedagógica. As imagens60 seguintes mostram a criatividade na confeção dos livros:

57 Maria de Lourdes Ramos. 58 Débora Terezinha de Jesus. 59 Andréia Lopes. 60 Todas fotos usadas na ilustração deste texto pertencem ao acervo particular das pes- quisadoras. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 153

Figura 42 - Livro árvore Figura 43 - Livro boneca

Figura 44 - Exemplares únicos Figura 45 - Livro que guarda segredo

3.2. Exposição, leitura e afetividade Outra questão que merece realce é o envolvimento afetivo visi- velmente manifestado pela(o)s autora(e)s ao reencontrarem a sua pro- dução no espaço expositivo. Momentos de afeto, satisfação e partilha. Não bastava rever o seu livro exposto num contexto de dignificação. Era preciso ler a história com um olhar inaugural. A/os aluna(o)s auto- ra(e)s leram seus próprios livros e os dos seus colegas compartilhando a narrativa com os demais visitantes. Algumas diziam: “olha, esse é o meu livro!”. Ou, se não conseguia visualizá-lo imediatamente, a per- gunta era feita em voz alta: “onde está o meu livro?” ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 154

Figura 46 - (Re)Encontro autor-obra Figura 47 - (Re)Encontro e encantamento

3.3. Os visitantes e as interações O encontro e a leitura (fig. 46 e 47) realizada num espaço expo- sitivo temporário possuem formas diferenciadas daquelas possibilita- das por uma biblioteca, por exemplo, cujo espaço físico é permanente, porém, isso não significa menor entusiasmo para os leitores. Pelo con- trário, pode representar uma oportunidade única que, se perdida, pode ser apenas lamentada. De todo modo, os visitantes são a razão maior de uma mostra, seja ela uma feira literária ou uma exposição de livros artesanais como esta. O seu objetivo geral é compartilhar com o público externo um determinado acervo. Mas é também efetivar um convite à leitura literária ancorado na relevância que esta possui na formação de leitores. A chegada do público externo mobiliza organizadores e expo- sitores criando expectativas no sentido de poder qualificar as possibili- dades leitoras pretendidas. Nesta mostra apareceram muitos visitantes, adultos e crianças. As crianças eram especialmente esperadas no espaço expositivo, ti- nham livre acesso. Enquanto expositores e mediadores dos espaços e instrumentos de leitura literária somos incansáveis defensores das vi- sitas das crianças. Esperamos por elas. Desejamos que elas dialoguem com os objetos e interajam com eles. Por outro lado, precisamos de nos preparar para que a visita das crianças se torne uma experiência APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 155 qualificada. Precisamos de compreender a recetividade e o modo de agir das crianças em relação aos objetos expostos, neste caso os livros artesanais, para poder auxiliá-las, mediando a visita de modo a torná-la bem-sucedida. A imagem seguinte (fig. 48) regista o momento em que a exposi- ção foi visitada por um grande número de crianças. Duas turmas vieram juntas, acompanhadas pelas respetivas professoras.

Figura 48 - As crianças na exposição

Como podemos perceber, a exposição recebeu um grupo grande de crianças ao mesmo tempo. A reivindicação de um número menor de alunos em sala de aula também pode ser pensada nas experiências de visitação aos museus, exposições e outros espaços de leitura como as bibliotecas públicas. Muitas vezes a escola encaminha grandes grupos no sentido de viabilizar a deslocação e expandir o convite ao maior nú- mero possível de alunos sem levar em conta a qualidade da experiência que o grupo poderá obter, enquanto grupo (coletivo) e principalmente de cada criança (individualmente). Será que se cada turma viesse em momentos diferentes a qualidade das experiências (individuais e cole- tivas) seria superior? ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 156

Ao recebermos um grupo maior de crianças ficamos apreensivos no sentido de dar atendimento adequado às crianças e, ao mesmo tem- po, de as orientar quanto aos cuidados no manuseio das obras. Faz-se necessário, por parte dos mediadores, muita disponibilidade, atenção e cuidado para acompanhar a dinâmica de visita das crianças (e suas peculiaridades) e assegurar tanto o contacto fértil com os livros ex- postos, a experiência leitora da criança visitante, quanto o aprendizado de preservação do acervo. Esse último não se pode sobrepor ao resto, ainda que no aprendizado de sua preservação esteja implícito o valor atribuído ao saber literário. Além dos cuidados e da orientação no espaço expositivo, uma visita de alunos precisa de ser pensada antes, durante e depois. O/a professor/a precisa de qualificar a vivência, comunicando e combinan- do com as crianças os detalhes da visita. Elas precisam de saber com antecedência onde vão, o que pretendem fazer, o que podem encontrar nesse local e como precisam de agir (criar um horizonte de expectativas e orientar as questões organizacionais). Depois da visita, no retorno para a escola, a conversa, a partilha e o registo da/sobre a experiência leitora das crianças, sobre as histórias que elas leram e conheceram é fundamental para solidificar o processo de letramento literário. Por outro lado, a movimentação dessa “superpopulação” de lei- tores fez-se por conta da exposição. Essa imagem leva-nos a pensar que, embora a mostra dos livros se instale na efemeridade espácio-temporal, a experiência vivenciada por uma criança pode ser carregada pelo “res- to” da sua vida, transformando-se em elemento motivador da sua cons- tituição de sujeito-leitor. Nesse sentido, enquanto mediadores da leitura literária, podemos criar diferentes formas, espaços e oportunidades de leitura literária, dentro ou fora das escolas. Como diz Cosson (2012), precisamos “reinventar a roda” constantemente e tornarmo-nos a partir “[d]e hoje[...][um] contador viajante” que aproveita as oportunidades para ler e compartilhar generosamente as histórias que encontra pelo caminho. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 157

4. Do que fica e do que ainda precisa ser dito

A experiência do fabrico dos livros artesanais e a sua socializa- ção através das exposições têm evidenciado o quanto esse exercício com o manuseio do livro e a sua descaracterização quotidiana (na fei- tura e forma de leitura) pode ser mais um caminho para potencializar a leitura e seus protocolos nas práticas pedagógicas com as crianças desde muito cedo. Por outro lado, vale marcar também a importância para a(o) estudantes/futura(o)s professora(e)s na sua formação, ao tra- zer para o cenário da prática pedagógica a possibilidade de autoria e reconhecimento das partes constitutivas de um livro.

Referências bibliográficas: CHARTIER, Roger (1996). “Do livro à leitura”. in Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, pp. 77-105. COELHO, Nelly Novaes (1993). Literatura Infantil. São Paulo: Ática. COSSON, Rildo (2012). Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto. DEBUS, Eliane Santana Dias (2006). Festaria de Brincança: a leitura literária na Educação Infantil. São Paulo: Paulus. DEBUS, Eliane (2003). “A confecção artesanal de livros infantis: ca- minhos da ludicidade”. in Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase. 140. Congresso de Leitura do Brasil (COLE). ANAIS do Congresso de Leitu- ra. Campinas, SP: Graf FE, s/p. KAERCHER, Gládis E. (2001). “E por falar em literatura...” in CRAI- DY, Carmem Maria; KAERCHER, Gládis E. (org.) Educação infantil: para que te quero? Porto Alegre: Artmed, pp. 83-84 MONTELLO, Josué (s/d). Guia de leitura - Ciranda de livros. São Paulo: Hoechst, FNLIJ e Fundação Roberto Marinho. PERROT, Jean (2002). “Os “livros-vivos” franceses. Um novo paraíso cultural para nossos amiguinhos os leitores infantis”. in KISHIMOTO, Tizuko M. 2.ed. O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira T.L., pp. 33-37. ROSING, Tânia M. K.; TUSSI, Rita de Cássia (2009). Programa Bebe- lendo: uma intervenção precoce de leitura. São Paulo: Global. SOARES, Magda (2008). “Livros para a educação infantil: a perspecti- va editorial”. in PAIVA, Aparecida; SOARES, Magda (Org.). Literatura infan- til: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, pp. 21-33.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 159 10. O livro como objeto - Bernardo Carvalho no papel de ilustrador-designer

Sandie Mourão

1. A Planeta Tangerina e Bernardo Carvalho

Em Portugal, há um número significativo de editoras que pro- duziram catálogos repletos de literatura infantil de qualidade, várias focando-se em publicar excelentes seleções de livros-álbum. A Planeta Tangerina inclui-se neste grupo e tem o que Salisbury e Styles (2012) descreveram como “a passion for quality visual literature and [an un- derstanding of] its important role in the intellectual and cultural deve- lopment of the child” (p. 176), realizando um movimento em direção à valorização do visual e dando atenção a novas tendências em ilustra- ção. De acordo com Hellige e Klanten (2012), os criadores da Planeta Tangerina “are making books in which text and images work together and complement each other to create a beautifully integrated reading experience for book lovers both old and young” (p. 12-13). Prova da sua excelência como editores é terem sido galardoados com o prémio de Melhor Editora Europeia Infantil de 2013, na Feira de Livros Infan- tis de Bolonha. A Planeta Tangerina começou, em 1999, como um estúdio de design especializado em projetos para crianças e jovens, tendo sido criada por quatro amigos que andaram na escola juntos e mais tarde estudaram Comunicação e Design na Faculdade de Belas Artes da Uni- versidade de Lisboa: João Gomes de Abreu, Bernardo Carvalho, Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso. Numa entrevista realizada a Isa- bel Martins61, ela afirma que a Planeta Tangerina é, antes de mais, um estúdio de design gráfico, enfatizando que “faz parte do nosso ADN”.

61 Entrevista com Isabel Martins via Skype no dia 8 de outubro de 2012. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 160

Apesar de tudo, tem consciência de que a Planeta Tangerina é segu- ramente mais conhecida como editora – as pessoas vão ter com eles com trabalhos de design gráfico por causa dos livros que publicaram. No entanto, Isabel M. Martins acredita também que existem enquanto editora por serem designers gráficos: é esta última parte, sublinha, que lhes proporciona os meios e a liberdade de criar os livros-álbum que querem fazer. Os quatro amigos começaram a editar livros-álbum em 2004, com a intenção de criar algo diferente. Isabel descreve os livros ilus- trados que havia em Portugal nessa altura como “uma guerra entre tex- to e imagem” (TSF Rádio Notícias, 21 dezembro de 2011): os quatro empresários estavam certos de que conseguiriam fazer algo diferente. Juntou-se-lhes, nesse ano, Yara Kono, uma jovem ilustradora e desig- ner brasileira. Desde então, a equipa editorial da Planeta Tangerina ga- nhou vários prémios nacionais e internacionais de ilustração e design editorial e os seus livros foram analisados atentamente por académicos portugueses (ver Borges e Mourão, 2014; Ramos, 2010; Reis da Silva, 2011; Sotto Mayor, 2009) e estrangeiros, tendo igualmente sido alvo de estudos pós-graduados (ver Borges, 2012; Luz, 2010). A tecnologia alterou profundamente a forma como ilustradores e designers trabalham. O aparecimento do Macintosh e o acesso a softwa- re estandartizado permitiu a estes profissionais combinarem facilmente os papéis, trazendo-lhes liberdade e conforto, assim como velocidade ao processo criativo. Em resultado, o livro-álbum evoluiu consideravel- mente, o que em Portugal se tornou muito evidente nos últimos anos. Os ilustradores e designers do século XXI usaram em seu benefício as enormes possibilidades permitidas pela tecnologia e estão, nas palavras de Helfand, “staking claim to and shaping a new and unprecedented uni- verse” (2001: 39). Bernardo Carvalho é reconhecido em Portugal como um criador de livros-álbum desta nova geração. Dentro da Planeta Tan- gerina, assume os papéis combinados de ilustrador, designer e diretor ar- tístico, funções que se fundem numa só enquanto cria livros-álbum que, APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 161 de acordo com o website da Planeta Tangerina, buscam um “equilíbrio” entre os textos visual e verbal, levando a “um resultado único”. Os seus álbuns são realizados em coautoria, muitas vezes com textos de Isabel M. Martins, ou não têm palavras. Em editoras maiores, as funções de autor, ilustrador, designer e diretor artístico costumam ser preenchidas por pessoas diferentes. Provavelmente estamos bastante seguros sobre o que um autor ou um ilustrador fazem, mas os outros dois papéis não são tão claros. De acordo com Solomon (2003), o designer é responsá- vel por “the overall appearance of the book and the care brought to the sensitive working together of story and picture and typographic treat- ment” (p. 197). Já o diretor artístico, se conseguirmos desentrelaçar os papéis, pensa o catálogo da editora como um todo, dando-lhe “a look that embodies and reflects the publisher’s philosophy and mission” (p. 198). Isabel Minhós Martins62 afirma que o papel de diretor artístico é um papel ainda invulgar em Portugal.

2. A criação de um álbum da editora Planeta Tangerina Design, tipografia e ilustração de um álbum são inseparáveis (Ra- mos, 2010), mas diz-se que o livro beneficia se estes três aspetos forem concebidos por uma pessoa (Salisbury, 2004). No caso em análise, esta pessoa é Bernardo Carvalho, responsável por juntar as palavras de Isabel Minhós Martins com as suas próprias ilustrações nos projetos de livro- -álbum que tem a seu cargo. No entanto, durante a fase criativa de cada projeto, a equipa editorial da Planeta Tangerina, composta pela autora e pelos três ilustradores residentes, junta-se e discute o que se está a fazer. Partilham-se ideias, que são debatidas em grupo aberto, clarificam-se dúvidas, trocam-se opiniões e fazem-se ajustes às palavras da Isabel ou às ilustrações do Bernardo. No entanto, em cada etapa do processo cria- tivo, o espaço profissional de cada um é respeitado. Durante uma entre- vista à rádio TSF, Bernardo Carvalho descreveu o seu processo criativo:

62 Entrevista com Isabel Martins via Skype em outubro de 2012. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 162

Quando olho para um texto para ilustrar, não começo logo com de- senhos. Começo a tentar imaginar o livro em si, é um todo. Quando ilustramos para livros, estamos a ilustrar desenhos que se complemen- tam entre si. Não são desenhos que supostamente funcionam sozinhos, ou servem para viver sozinhos, são desenhos que vivem no meio dos outros e dentro daquele livro e, por isso, às vezes não parece que o de- senho precisa de ser espetacular, ou muito bonito para funcionar. Tento que o livro seja bonito e o álbum, o objeto, seja bonito. (TSF Rádio Notícias, 22 dezembro de 2011)

Pretende-se, neste estudo, sublinhar a ideia de que a Planeta Tan- gerina produz livros-álbum de qualidade como resultado de um traba- lho de equipa e de colaboração, mas também porque cada ilustrador é, adicionalmente, ou talvez possamos dizer cumulativamente, designer e diretor artístico em cada projeto. São estas especificidades que fazem da Planeta Tangerina uma editora bem-sucedida que produz um objeto singular – o livro-objeto.

3. Os livros de Bernardo Carvalho Dezassete dos livros-álbum da Planeta Tangerina foram da res- ponsabilidade de Bernardo Carvalho. Quatro não têm palavras e os treze livros restantes podem ser divididos entre os que usam texto ma- nuscrito e os que não o recorrem a esta forma de escrita. Três utilizam o texto manuscrito com maiúsculas e três surgem manuscritos com minúsculas, forma típica da letra manuscrita que se aprende na esco- la em Portugal. Selecionei este último conjunto para demonstrar quão bem-sucedido Bernardo Carvalho é a fundir as funções de ilustração e de design. Também gostaria de demonstrar que os três títulos permitem observar o percurso de Bernardo Carvalho enquanto ilustrador e desig- ner híbrido. Os livros-álbum em análise são Pê de Pai (Martins e Car- valho, 2006), Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008) e Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009). Uma vez que todos começaram como textos escritos por Isabel Mi- nhós Martins, iniciarei a análise de cada álbum examinando brevemente o APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 163 que dizem e como o dizem. Continuarei, observando como estas palavras foram interpretadas e apropriadas por Bernardo Carvalho, considerando a composição e os ritmos visual e verbal de cada livro-álbum. Comentarei os peritextos como as capas, as guardas e as páginas de rosto para perceber como constroem o estilo Planeta Tangerina e contribuem para a fluidez vi- sual dentro de cada livro objeto.

3.1 Pê de Pai As palavras Pê de Pai é um livro-álbum que nasceu quando Isabel Minhós Martins estava a estender a roupa e o seu filhote rastejou por entre as suas pernas: “Mãe túnel”, disse. Isabel riu-se e pensou que era uma excelente ideia para um livro-álbum. Enquanto escrevia as palavras que Bernardo Carvalho mais tarde ilustraria, decidiu que seria muito melhor se fosse um pai e o seu filho, e assim surgiu o Pê de Pai63. É o livro mais vendido da Planeta Tangerina, foi reimpresso sete vezes e tem recebido prémios pelo seu design. O texto verbal é formado por uma série de descritores metafóri- cos de duas palavras, o nome pai mais um nome com valor adjetival, replicando a experiência de Isabel, no seu quintal, enquanto estendia a roupa, num registo em tudo semelhante às expressões telegráficas de uma criança quando está a aprender a falar. Em português, as frases fluem lindamente, criando cinco quadras com uma rima alternada, nos segundos e quartos versos.

Pai casaco Pai avião Pai cabide Pai travão

(Martins e Carvalho, 2006: 1-4)

63 Já analisado, por exemplo, por Ramos (2010). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 164

A última estrofe termina com o único “verdadeiro” adjetivo e o único sinal de pontuação de todo o livro, criando um ritmo fluido e confortável.

Pai carrossel Pai cavalinho Pai túnel Pai pequenino!

(Martins e Carvalho, 2006: 21-24)

As ilustrações e o design O formato do livro é bastante pequeno e a capa é dura, seme- lhante à maior parte dos livros da Planeta Tangerina. A paleta de cores é pastel escuro ou “tons terra” (Ramos, 2010: 38) – um tom comum aos três títulos de que descrevo aqui. Entrevistei o Bernardo Carvalho, em preparação para este texto64 e ele disse-me que este foi o primeiro livro que concebeu usando exclusivamente ilustrações criadas a computador. Para Bernardo Carvalho, este volume foi o seu livro de descoberta. O criador optou por ilustrar cada frase telegráfica através de uma série de figuras naïves minimalistas, recriando pai e filho sobre um fundo monocolor. Cada cena está solidamente emoldurada numa página qua- drada. Em cada página, são usadas três cores principais: uma para o fundo, outra para o pai e outra para o filho. O texto manuscrito é, em quase todas as ilustrações, da mesma cor do pai ou do filho, criando um elo visual entre as palavras e as figuras. Ocasionalmente, formas adicionais e uma ou outra cor são incluídas para acrescentar elementos à ilustração, como acontece, por exemplo, com as botas e as pegadas nas páginas 5 e 6 (fig. 49).

64 Entrevista, não publicada, realizada a Bernardo Carvalho no seu atelier em maio de 2013. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 165

Figura 49 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006)

O leitor é exposto a doze páginas duplas, cada uma com imagens diferentes na página par e ímpar: o ritmo visual replica o verbal. Se- ria de supor que ilustrar pai e filho em cores diferentes nos daria uma sensação de separação, mas existe uma proximidade aconchegante em todas as cenas, excepto numa. Ramos (2010) descreve essa proximi- dade entre pai e filho como resultante de “elementos anatómicos mais expressivos do ponto de vista da manifestação da afectividade - a boca, os olhos, os braços” (p. 39). Acrescento que, na maioria das páginas, as figuras de pai e filho estão a tocar-se ou a figura do pai envolve o fi- lho de alguma maneira, sugerindo intimidade, afeto e cumplicidade, ao partilharem ambos a experiência de serem importantes um para o outro. O texto manuscrito acentua as elocuções acriançadas e esse facto pode estar na base da opção de Bernardo Carvalho pela forma cursiva, típica das crianças que aprendem a escrever na escola. Quando lhe per- guntei a razão da escolha, não se lembrava. Por vezes, as frases escritas seguem os contornos minimalistas do pai e filho, ou assentam conforta- velmente no espaço, equilibrando a composição. No caso deste volume, destaca-se que as palavras ainda são obviamente o texto verbal, e as ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 166

ilustrações ainda são claramente o texto visual. Entidades separadas mas coabitando, confortavelmente, um espaço partilhado. No entanto, há uma cena que é ligeiramente diferente das demais, “Pai seta” (página 14). Aqui pai e filho não estão a partilhar um espaço físico na compo- sição, e a postura do pai é uma barreira visual ao afeto. Os seus olhos mostram-no triste e em tumulto, mas resoluto, sabendo que tem de mos- trar a sua autoridade. A elocução, aqui, com as letras da mesma cor que a criança, está cortada em dois segmentos pelo braço do pai, que aponta para fora do livro. Defendo que, neste caso, o texto verbal está a contribuir para a mensagem visual de uma forma ligeiramente diferente da das outras páginas. A separação das duas palavras sugere distância e reforça a rutura (fig. 50). Nos outros dois álbuns em estudo, Bernardo Carvalho vai desenvolver este pormenor.

Figura 50 - Pê de Pai (Martins e Carvalho, 2006)

Os peritextos Considerando as capas, o fundo monocromático é replicado na capa e na contracapa. Também nos peritextos mais importantes, há três APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 167 cores principais, como em cada cena dentro do livro. A repetição do azul permite aos olhos passar facilmente pela contracapa e pela capa, seguindo a cabeça redonda e o braço curvado do pai, amando visivel- mente o filho. O título é manuscrito. O castanho também é uma cor que liga os três elementos através das duas capas. Um elemento de design que aparece nos livros iniciais da Planeta Tangerina, mas que já não é incorporado atualmente, é um jogo visual com o código de barras. Aqui, o código de barras está dentro de um peixe maior, com um peixe mais pequeno a nadar atrás. Ramos (2010: 39) alude a uma relação intertextual entre a imagem e o provérbio português “Filho de peixe sabe nadar”. Na contracapa, as figuras do pai e filho realçam esta interpretação, sendo que ambos estão representados a castanho, com grandes bocas e narizes, braços longos e pernas curtas, um é pequeno e o outro é grande! As guardas também são castanho-escuro, com um padrão de imagens do pai sem o filho, sob a forma de motivos padronizados, que Ramos (2007) sugere que funciona “como ‘Mote’ ou mesmo chave de leitura” (p. 230) do livro. Não imitam as posições que encontramos dentro do livro, mas servem para apresentar o pai que conhecemos e amamos em todos os seus momentos. As figuras podem servir como estímulo para as crianças falarem das diferentes emoções e posições do seu pai. Um aspeto do design destes três álbuns que parece quebrar a flui- dez do livro como objeto é a página de rosto e a ficha técnica feitos em branco, contrastando com as tons terra, neste caso, da restante publica- ção. A ilustração do prólogo revela uma criança envolvida pela sombra do pai: estão inexpressivos e parece que estão prontos para começar algo juntos – a pequena ilustração brinca com a ideia de “pê”, de pai, uma vez que ambos se parecem com dois “pês”. No primeiro álbum de Bernardo Carvalho, feito a computador, ele começou a brincar com o texto manuscrito, e o resultado, de acordo com esta análise, deve-se às suas muitas responsabilidades, de ilustra- dor, designer e diretor artístico, dentro da editora. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 168

3.2. Coração de Mãe As palavras Coração de Mãe foi publicado em 2008 e é o segundo melhor livro nas vendas da Planeta Tangerina. Isabel Minhós Martins descreve como se sentiu acerca das palavras deste álbum, afirmando que “quan- do escrevi o texto sabia que estava mesmo na fronteira da pieguice, nas mãos de outro ilustrador podia ter-se tornado ‘o livro mais piroso no mundo!’”. Ela queria o Bernardo Carvalho como ilustrador porque sentia que “precisava de alguma coisa agressiva para levar a história até ao fim” (TSF Rádio Notícias, 21 dezembro de 2011).

As ilustrações e o design O tamanho e formato, assim como o uso do computador para criar as ilustrações são iguais ao título anteriormente analisado, tal como o recurso a uma paleta de cores reduzida. As cores utilizadas são diferentes, desta vez não são tons terra, mas antes várias cores, com a predominância de preto e branco ao lado de azul-marinho, vermelho e verde seco, com duas páginas duplas (a primeira e a última) construídas sobre o fundo laranja. O texto verbal é mais longo e detalhado, assim como as figuras – cada uma usa roupas e tem feições mais definidas do que o livro anterior. O livro todo é mais apertado e menos espontâneo, sendo, por isso, um objeto completamente diferente de segurar e ler. As palavras descrevem o coração de uma mãe:

O coração de mãe não é só um músculo que bate sem parar. É um lugar mágico onde acontecem as mais extraordinárias coisas... O coração de mãe está ligado a cada coração de filho por um fio fininho, quase invi- sível.

É por causa deste fio que tudo o que acontece aos filhos faz acontecer alguma coisa dentro do coração de mãe. (Martins e Carvalho, 2006: 1-2)

Assim começamos uma viagem metafórica através do livro-ál- bum. As palavras contam-nos como se sente o coração de uma mãe, APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 169 com as metáforas aparecendo aos pares, frases escritas em oposição ou de alguma forma relacionadas entre si:

Quando um filho adoece, o coração de mãe fica às pintinhas (e muito mais pequenino...). Mas o coração de mãe volta a crescer quando o filho se sente finalmente melhor! (Martins e Carvalho, 2008: 5-6)

O design do corpo do livro acentua o ritmo visual, com as pági- nas a seguirem uma espécie de sequência: começam e terminam a la- ranja, ambas são duplas páginas mostrando mãe e filho juntos, íntimos e próximos. A psicologia das cores diz-nos que a cor laranja irradia calor e felicidade, combinando a energia física e estímulo do vermelho com a vivacidade e bonomia do amarelo. As únicas duplas onde a ilustração ocupa as duas páginas são as que incluem mãe e filho juntos, no caso, a primeira e as últimas três. Todas as restantes recorrem à ilustração em página simples, uma do lado esquerdo e outra do lado direito, recriando, assim, as diferentes cenas metafóricas contadas pelas palavras. O texto manuscrito já não é apenas o texto verbal, o seu posicio- namento cria significado visual. Serve para enfatizar elementos-chave, como o movimento ou a emoção. Na página com fundo em vermelho, vemos o traseiro da mãe a dançar, o texto visual são as linhas de mo- vimento deste elementos dançante. Dizem: “Quando os filhos dão gar- galhadas o coração de mãe até dança” (p. 3). Na página 5, com fundo a verde seco, o texto verbal está junto à criança deitada doente, quase a acariciando. E na página ímpar, o texto chama atenção para o tama- nho do coração inchado, à medida que o seu filho melhora. As palavras estão escritas dentro do peito da mãe e dizem “Mas o coração de mãe volta a crescer quando o filho se sente finalmente melhor!” (fig. 51) Neste livro, o texto verbal já não está apenas coabitando um espaço partilhado na composição, fundiu-se com as formas e os contornos das ilustrações. No entanto, permanecemos conscientes de que continua a ser o texto verbal. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 170

Figura 51 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008)

A agressividade que Isabel Minhós Martins queria é visível na forma como a mãe é representada na maior parte das ilustrações: não vemos sempre a sua cara, uma vez que o foco está em diferentes partes do seu corpo – as costas, as pernas ou o peito. Nas páginas 17 e 18, as suas pernas passeiam pela página dupla (ver fig. 52). As palavras dizem-nos, numa página com fundo em vermelho: “Aliás, quando que- rem fazer mal aos seus filhos, o coração de mãe enche-se de garras e dentes afiados!” (p. 17). E o sapato pontiagudo representado é mesmo assustador! Na página ímpar, as palavras dizem “Quando chegam as férias o coração de mãe bate mais devagarinho...” (p. 18). Mas, apesar de estar de férias, o seu pé descalço, menos agressivo, ainda é protetor ao colocar-se entre o leitor e o seu filho. E, uma vez mais, as linhas do texto manuscrito são as linhas de movimento.

APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 171

Figura 52 - Coração de Mãe (Martins e Carvalho, 2008)

Quando Bernardo Carvalho estava a explicar como e quando decidiu onde colocar o texto nas páginas, desenhou rapidamente uma ilustração para mostrar (fig. 53), provando que, logo desde o início, tem uma visão clara do propósito que ele quer que o texto visual transmita.

Figura 53 - Esboço de Bernardo Carvalho ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 172

Os peritextos A capa e contracapa estão unidas por uma única ilustração, uma imagem invertida das páginas 19 e 20. O texto manuscrito na capa equilibra a composição, uma extensão do cabelo da mãe, exatamente alinhada com a cabeça e cotovelo do filho. Os nomes da escritora e do ilustrador contornam as figuras, acariciando-as, como nas páginas interiores do volume. A pose da criança cabe quase como um puzzle ao lado da mãe, numa composição que satisfaz. O branco do fundo está presente em todas as duplas páginas do livro, nomeadamente nas letras ou algures nas figuras. Mas, as guardas quebram esse padrão do branco – ao abrir o livro somos “bofeteados” com múltiplos corações, numa combinação de verde e vermelho pulsantes. Os únicos que aparecem no livro, porque não há nem a sombra de um coração nas ilustrações. Como no livro anterior, a ficha técnica e a página de rosto são brancas: as letras usam as quatro cores da história – preto, vermelho, verde e azul. Também aqui as letras apresentam a forma de um trompete, como se estivessem a ser chamadas. Coração de Mãe é tudo menos piroso, Bernardo Carvalho trouxe uma agressividade simpática à forma como os textos verbal e visual se conjugam num todo coerente, criando um livro objeto de qualidade que resulta da união dos papéis de ilustrador, designer e diretor artístico.

3.3. Depressa Devagar O último dos álbuns selecionados para esta análise é Depressa Devagar, um dos favoritos de Bernardo Carvalho. Ganhou o Prémio Nacional de Ilustração em 2009, e também ganhou prémios pelo seu design, mas está longe de ser um bestseller. Apenas foi impressa uma edição e o livro encontra-se esgotado. Apesar disso, a Planeta Tangerina não tenciona fazer outra edição.

As palavras Isabel Minhós Martins escreveu a prosa em pares, observando, de forma muito original, a maneira como nós, adultos, gerimos o tem- po. O livro começa assim: APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 173

Lá fora, o tempo passa por uma máquina de contar que faz contas aos segundos e marca os dias sem enganos. Cá dentro, os relógios não se preocupam em contar: ora abrandam dis- traídos quando há muito que fazer, ora passam apressados quando não há tempo a perder. Mas, lá fora, o tempo não aprecia passeios nem corridas... e sempre por isso, a toda a hora, grita palavras de ordem cá para dentro: Depressa devagar. De manhã ao deitar, são estas as palavras que tomam conta do meu dia... (Martins e Carvalho, 2009: 1-2)

Começando e acabando com momentos de intimidade familiar, o foco deste livro-álbum é a rotina diária de uma criança e a sua interação com os pais, condutores de autocarro, professores e até amigos, permi- tindo acompanhar as suas ações através do recurso a imperativos en- graçados e sugestivos, contendo os advérbios “depressa” e “devagar”.

As ilustrações e o design A primeira dupla página é diferente do resto da história, já que o texto verbal é aí uma massa condensada de linhas. Shulevitz escreveu que “With few exceptions type is more readable than hand lettering” (1985: 109), e a verdade é que a quantidade de texto manuscrito causa aqui alguma interferência à legibilidade. Uma vez passada essa dupla página, as seguintes apresentam um ritmo que segue os pares de ordens ou conselhos, às vezes sob a forma de perguntas, que formam o resto do texto: “Depressa, entre sem interromper. Mais devagar... aqui não se pode correr” (p. 11-12). Ou “Devagar, o que estás tu a fazer? Depressa, o que estás tu a pensar?” (p. 19-20). Cada dupla página mostra-nos uma cena onde surgem relacionadas as duas ideias contrárias, uma apelando à calma e outra à pressa, surgindo o advérbio sempre visualmente des- tacado, de forma a enfatizar, como um refrão, a sua importância. Este é o único livro do corpus que apresenta sempre uma ilustração a unir as duas páginas, esquerda e direita (ímpar e par). O estilo ilustrativo “encaracolado” de Bernardo Carvalho imita a sua caligrafia manuscrita ou é ao contrário? Há linhas na ilustração que ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 174

parecem prontas a unir-se a algo. Ou as letras desaparecem, como ca- maleões, por entre as formas e os arabescos desenhados. Neste livro, os dois textos comungam de uma forma diferente da dos anteriores – aqui têm em comum as formas em si, não apenas um espaço partilhado. Não há metamorfose, uma vez que as palavras não pretendem ser linhas de movimento ou uma mão acariciadora. Os dois textos partilham da mes- ma essência, as linhas enlaçadas. A espontaneidade dos traços de Ber- nardo Carvalho traz velocidade a estas ilustrações, o que sublinha a sua coesão com o tema. Mas a apressada continuidade das linhas não imita apenas a escrita, liga as personagens e reforça as relações existentes. A combinação de cor em bloco e formas transparentes, muitas vezes so- brepostas, permite-nos ver versões diferentes: de uma massa movimen- tada manifestam-se formas singulares, olhos e cabelo são partilhados e a forma de uma personagem transforma-se na de outra (ver fig. 54, na qual o olho da mãe se sobrepõe ao cabelo do filho e as pinceladas do cabelo podiam fazer parte do texto escrito).

Figura 54 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 175 A paleta cromática é mais variada neste livro-álbum, mas consis- te nos mesmos tons pastel e tons terra dos títulos anteriores, aos quais são adicionados uns brilhantes rosas e roxos. A sensação Planeta Tan- gerina continua presente. Quando entrevistei Bernardo Carvalho sobre o seu trabalho, per- guntei por que é que este livro não é um bestseller. E por que razão é que ele gosta tanto do livro. Ele acredita que este livro-álbum é simples- mente demasiado diferente. Quando está a trabalhar num livro-álbum sabe que muitas das suas sugestões são consideradas demasiado fantás- ticas e, em conjunto com a equipa criativa da Planeta Tangerina, deci- dem o que deve sair no produto final. Mas isso não o impede de sair um pouco das linhas e uma das razões por que gostou tanto deste projeto foi ter sentido menos restrição. Conta que passou dias a desenhar com pincel em grandes folhas de papel. Centenas de folhas foram deitadas fora no processo de seleção e digitalização, depois de criadas as páginas duplas usando a tecnologia do computador, cuja técnica se tem tornado tão habilidoso a aplicar.

Figura 55 - Depressa Devagar (Martins e Carvalho, 2009) ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 176

Não é apenas o estilo da ilustração que é bastante invulgar, já que até aparece um macaco representado nas páginas 15 e 16 (fig. 55). Quando perguntei por que é que ele estava lá, o ilustrador encolheu os ombros e disse: “Ninguém me pediu que o tirasse!”. Pensei, talvez, que poderia ser por causa de outro livro no qual tinha estado a traba- lhar como ilustrador e designer gráfico,Dança quando chegares ao fim. Bons conselhos de amigos animais65. O estilo é semelhante, e também tem macacos. Ele não se lembrava. Quando eu estava a ler o livro a um grupo de crianças de 5 anos, perguntei o que pensavam do macaco: uma criança pensou que podia ser um professor ou pai, outro disse simples- mente, “É um macaco”, como se fosse a coisa mais normal do mundo almoçar com um macaco. De facto, tudo pode acontecer no mundo das crianças.

Os peritextos A capa e a contracapa preparam-nos para o invulgar estilo ilus- trativo do criador, com as figuras sólidas e transparentes a partilharem um olho e o texto manuscrito encostado sobre as figuras, refletindo as suas cores. Os nomes da autora e do ilustrador passam pelo meio da perna do “g” a mostrar, logo aqui, que os dois textos partilham a mes- ma essência. As figuras na contracapa são tiradas de uma ilustração no interior do livro e a sinopse aí incluída é parte do texto verbal da pri- meira dupla página. Os outros dois álbuns usaram letra à máquina nas suas contracapas, mas aqui Bernardo Carvalho deixou o manuscrito, que completa bem este conjunto. As guardas são uma celebração de arabescos! Decorativas em todos os sentidos, mas preparando-nos para as curvas que se tornarão palavras ou figuras, ao virar das páginas. Bernardo Carvalho criou duas guardas diferentes, semelhantes em tudo exceto na troca do verde pelo branco. A página de rosto, com fundo branco, como nos outros dois

65 Uma coletânea de breves poemas sobre animais escrita por Richard Zimler e publicada pela Caminho Editora. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 177 livros, usa essa informação essencial – autor, ilustrador, título e editora – para criar a imagem de uma criança, seus braços bem abertos, rece- bendo-nos no livro. Há uma arrumação nesta “ilustração de prólogo” que não é evidente no corpo do livro, mas vem no seguimento da visão editorial do livro como objeto.

4. Considerações finais: a mão do diretor artístico. O que faz destes três livros produtos tão evidentes da Planeta Tangerina é o papel desempenhado por Bernardo Carvalho enquanto diretor artístico. Essa função está presente: • na escolha do formato, já que todos os livros têm 20 cm x 22,5 cm, capa dura, 32 páginas e doze páginas duplas; • no uso de papel de gramagem e qualidade elevadas, mate, sen- do um papel que aguenta bem a tinta e dá uma sensação reconfortante; • no uso de cores carregadas, tons terra bastante invulgares; • nas guardas com padrões coloridos, representando o tema do livro; • na opção pela página de rosto e ficha técnica em branco. Mas, acima de tudo, é a qualidade dos álbuns Planeta Tangerina como objetos em si mesmos, um casamento perfeito entre ideias, con- ceitos e talentos. Design e direção artística unem “the visual and tex- tual elements of the book into a coherent, aesthetically pleasing whole” (Salisbury, 2004: 118). Há uma fluidez entre os textos visual e verbal, resultado da forma como as ilustrações, o design e o texto manuscrito são abordados dentro dos livros, desde capa à contracapa, assim como a dinâmica visual no virar de página e a composição de cada página. Este capítulo incidiu na análise de três livros publicados pela Planeta Tangerina, com vista a discutir a forma como Bernardo Car- valho combinou as técnicas de ilustrador, designer e diretor artístico. Centrou-se em títulos criados com texto manuscrito da mão do próprio Bernardo Carvalho como base para afirmar o quanto ele torna, citando agora Lupton (2010), “design and illustration into [a] fluidly integrated ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 178

practice” (p. 64). Os livros foram criados num período de quatro anos e podemos ver como o ilustrador progrediu no uso da mancha gráfica como elemento visual da composição, e também como criador híbrido de livros-álbum. Estes livros são lugares de encontro de texto, imagem e design com o desígnio de que “o livro seja bonito e o álbum, o objeto, seja bonito” (TSF Rádio Notícias, 22 dezembro de 2011).

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 181 11. O leitor no espaço do livro infantil. Para uma poética da leitura a partir da materialidade.

Rosa Tabernero-Sala

1. Leitura, livro-álbum e o livro como objeto

Desde os inícios dos estudos sobre o livro-álbum e o livro ilustra- do, a importância do suporte na construção de sentidos tem sido um dos elementos mais destacados. Assim, já Barbara Bader (1976: 1), autora de uma das definições mais emblemáticas do livro-álbum, chamava a atenção para o aspeto material do livro ao mencionar conceitos como o design, a arte ou a manufatura. Desde então, vários são os autores que se referiram ao aspeto material do livro, tanto na perspetiva da leitura, como da conceção ar- tística do discurso literário para a infância. Deste modo, Sophie Van der Linden (2007: 8) menciona como um livro-álbum não só não se reduz à interação entre palavras e imagens, mas também deve ter em con- ta, na sua caracterização, os detalhes que decorrem da sua construção como objeto. A mesma estudiosa (2013; 2015), num trabalho posterior, conclui a sua reflexão propondo uma definição do género que parte da conceção do livro como suporte: El álbum es un soporte de expresión cuya unidad primordial es la dob- le página, sobre la que se inscriben de manera interactiva imágenes y texto y que sigue una concatenación articulada de página a página. La gran diversidad de sus realizaciones deriva de su modo de organizar libremente texto, imagen y soporte (2015: 28-29).

Por outro lado, quando Van der Linden se detém na questão da materialidade do livro-álbum salienta que ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 182

La materialidad del objeto libro es importante en un álbum ya que la elección de una cubierta, un papel o unas guardas ejerce una gran in- fluencia en el proyecto, al aportarle una dimensión significativa, incluso puede llegar a adquirir un rol narrativo (2015: 10).

Na mesma linha, Daniel Goldin (2006: 1) também se refere ao mesmo aspeto: Con mayor intensidad que el resto de los libros para niños, el álbum insiste en su condición material. No permite que olvidemos que es un objeto que pesa, huele, se toca, tiene un cuerpo. Y desde su materialidad nos seduce y enamora.

O aspeto material do livro-álbum não só se destaca nas tentativas de caracterização do género, como surge repetidamente nas investiga- ções levadas a cabo sobre as respostas leitoras, como analisa Virginia Calvo no capítulo seguinte deste livro. Deste modo, estudiosos como Lawrence Sipe (2001), Morag Styles e Evelyn Arizpe (2004) chamam a atenção para a importância que tem para o leitor a apreensão do objeto. Também Jean Perrot (1999: 119), refletindo sobre a curiosidade e o jogo que devem sustentar o ato de ler desde a infância, identifica a manipu- lação do livro como um dos elementos-chave para o desenvolvimento do leitor. Na mesma linha, Geneviève Patte (2008: 2011; 2012; 2015) defende a necessidade de analisar o livro a partir da perspetiva material para acompanhar o leitor na sua viagem desde as primeiras leituras até todas as formas de literatura. Assim, María Bonnafé (2008: 57) resume as ideias que apresentámos até ao momento: Cuando les leemos un cuento, se divierten leyéndolo ellos solos, a su manera, imitando al adulto y mostrando que poder manipular el libro a su antojo es importante para ellos. El niño pequeño (…) se apropia en cierta manera del álbum, pero con sus manipulaciones, se apropia también de su contenido.

Trata-se, nesta medida, de uma apropriação do objeto, para além do conteúdo, como assinalava Maurizio Corraini (cit. por Martin Salis- bury, 2012: 50) quando se referia à possibilidade de transformar a arte APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 183 num hábito do quotidiano, mediante o contacto da criança com o livro na sua vertente material. Para além dos estudiosos, também os criadores abordaram a questão do aspeto material do livro-álbum como um elemento carac- terizador do género e com funcionalidade discursiva. Veja-se, como exemplo, a valorização que Suzy Lee atribuí ao ato de abrir fisicamente um livro: Abrimos un libro ilustrado. Contemplamos el sueño que hay dentro del libro. Sin embargo, de un modo u otro, nos afecta la forma del libro, la textura del papel, la dirección en la que pasamos las páginas. (…) Después de sumergirnos en un libro y volver a salir de él como quien sale de un sueño, el libro en tanto que objeto parece bastante distinto. (Suzy Lee, 2014: 6)

As reflexões de Katsumi Komagata (cf. José Antonio Barreiro, 2015) ou de Kitty Crowther (Cf. Rosa Tabernero, 2016), sobre a in- fluência das condições materiais de um livro no ato de leitura, resultam esclarecedoras acerca do significado que os aspetos materiais incorpo- ram, coincidindo com Karen Littau (2008: 67), quando este autor ex- plica como o suporte do discurso condiciona a interpretação e a com- preensão. É desde o século XIII que se pode falar da existência de livros animados e é nos princípios do século XIX quando, como refere Jean- -Charles Trebbi (2012: 11), começam a aparecer os primeiros livros de sistemas articulados destinados à infância. O século XX, a partir dos anos 60, marcará o início do pop-up moderno. Por essa altura, distin- guem-se as figuras de alguns criadores de referência, com origem no universo do design gráfico, potenciando a materialidade do livro como elemento de caráter discursivo. Obras como El libro inclinado (1910), de Peter Newels, En la noche oscura (1956), de Bruno Munari, Pequeño azul, pequeno amarillo (1959), de Leo Lionni, Babar (1962), de Jean de Brunhoff,Teatro de medianoche (1992), de Kveta Pacovska, We are allin the dumps (1993), de Maurice Sendak ou El globito rojo (2006), ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 184

de Iela Mari, constituem referências incontornáveis da importância do suporte material na construção do discurso, tanto no livro-álbum como no livro ilustrado. Desde então, o panorama da literatura infantil tem vindo a modi- ficar-se, no que respeita ao livro-álbum e ao livro ilustrado, sendo uma das tendências dominantes a valorização da materialidade das publica- ções associadas ao leitor interativo, para além da sua componente lúdi- ca, tal como destaca Bettina Kümmerling-Meibauer (2015: 252-253). O livro-álbum parece evoluir neste sentido, de acordo com o próprio mer- cado editorial. De qualquer modo, no seguimento do êxito de Un libro (2011), de Hervé Tullet, torna-se relevante refletir sobre as razões que conduziram o livro a evoluir neste sentido. Não é irrelevante considerar que a erupção dos suportes virtuais e da leitura no écran, eminente- mente interativa, pode estar na origem da necessidade de o objeto livro potenciar ao máximo a sua especificidade. Pelo menos é o que sugere Gaëlle Pelachaud (2010: 35): À l’ère du livre numérique, du livre inmatériel, nous éprouvons un be- soin frénétique de rematérialiser le livre, de redonner la priorité a nos cinq sens. Le livre animé, le livre magique, ne serait-il pas la traduction papier du multimédia?

Neste sentido, parece-nos relevante analisar com detalhe o dis- curso que surge tanto da perspetiva da obra, como do ponto de vista do leitor definido como estratégia textual. Conceitos como o jogo ou a in- teratividade revelam-se de grande complexidade quando se trata de não converter o discurso em mera interação lúdica, que, como já referimos, acontece em alguns casos. A segunda parte deste estudo será, por isso, dedicada a analisar o espaço do leitor no livro entendido como objeto, com o objetivo de apresentar as bases para estabelecer uma poética da sua leitura. Acre- ditamos que a materialidade do livro-álbum dá origem a um leitor e a um tipo de leitura que é preciso analisar, sobretudo quando falamos da formação de leitores. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 185

2. O espaço do leitor no livro como objeto

Tal como defende Liliane Cheilan (2009: 18), qualquer livro, na sua forma mais simples, é, por definição, um livro animado, já que a partir do momento em que o leitor abre a capa e vira a página, podemos falar de interação com a materialidade do livro para levar a cabo o ato de ler. O livro é, antes de tudo, um espaço físico no qual se produz um encontro entre autor e leitor (cf. Michèle Petit, 2015). É por isso que, nas linhas que se seguem, aludiremos à identificação do suporte (mate- rialidade, formato e dobra) como elemento discursivo (cf. Sophie Van der Linden, 2015: 10-11), vinculado a um leitor colaborador, do ponto de vista físico, e a um tipo de leitura interativa. O relevo dos aspetos materiais do livro, nos últimos anos, envol- ve a melhoria das qualidades físicas, exigindo um leitor interativo que explora as propostas que o livro lhe faz, tal como sucede com Un libro (2011), de Hervé Tullet, obra onde, de forma explícita, o leitor deve interagir com o texto simulando uma aplicação móvel (app). Assim, a tridimensionalidade é outro dos fatores que deve ser estudado quando se pensa em identificar as estratégias propostas pelos livros aos leitores que leem também com as mãos e que, deste modo, anulam a bidimen- sionalidade que é tradicionalmente inerente ao objeto livro. Por estes motivos, é difícil não pensar numa relação causal entre a leitura no écran e o espaço físico do livro, associado, desde sempre, a uma das linhas de desenvolvimento do discurso literário para a infância, isto é, ao conceito de jogo (cf. Johan Huizinga, 1988). É a partir do jogo que se desenvolvem os conceitos de interação e de leitor interativo, essenciais à leitura de apps, sublinhando a colaboração com o texto de modo a gerar sentidos. Como consequência, alude-se a uma leitura hipertextual, em sentido lato, uma vez que o movimento de manipulação do leitor, na maior parte das vezes, implica o funcionamento do livro como hi- pertexto que rejeita a leitura linear. Em suma, os espaços do leitor e do livro sobrepõem-se, e as fronteiras entre realidade e ficção eliminam-se ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 186

para dar lugar à verdade ficcional, o que existe de verdade por trás da ficção. Neste jogo de espaços produz-se uma rutura de níveis de ficção que Genette (2004) designa por metalepse. A metalepse é uma forma de metaficção que, de acordo com Lauro Zavala (2014: 1), “puede ser considerada como uno de los recursos más radicales, lúdicos irónicos y paradójicos del arte para contribuir a despertar o estimular la con- ciencia ética y estética de los receptores”, características que resultam de especial interesse quando se fala da formação de leitores. Assim, a metalepse é a estratégia metaficcional que define a proposta discursiva de todas as obras que potenciam a vertente material do livro na criação de sentidos. Produz-se, deste modo, uma sobreposição de planos refe- renciais que anulam a separação entre a realidade do leitor e a ficção do discurso. O leitor passa a formar parte do discurso, confundindo o seu espaço real com o da ficção. Por outro lado, a hipotipose seria a figura de retórica que definiria este tipo de criação, baseada na dissolução das fronteiras entre a representação e o representado. Tendo em conta que a metalepse, como forma de metaficção, subjaz, como estratégia, às obras que potenciam a perspetiva “obje- tual”, podemos estabelecer uma tipologia de discursos segundo a forma e os objetivos que a metalepse apresenta para definir um leitor que co- labora com o discurso de uma maneira física, para além de intelectual, como defende Jean-Marie Antenen (2009: 13): Les pop-ups fonctionnent selon les principes élémentaires de la méca- nique, soit roue et, surtout, levier. L’énergie donnée par le lecteur qui tourne les pages est transformée en action physique, matérielle, alors qu’elle reste puremente intellectuelle dans la lecture de l’album “classi- que” (Jean-Marie Antenen, 2009: 13).

Em virtude do lugar que ocupa o leitor no discurso, podemos distinguir várias modalidades de obras que analisaremos seguidamente.

a. Formato e manipulação na construção de sentidos Tal como referia Lawrence Sipe (2001: 2), o formato do livro é uma das decisões que condiciona as expectativas do leitor. De tal APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 187 modo que, por exemplo, o tamanho reduzido conduz a uma leitura ín- tima e privada, como ocorre com Poka & Mina en el cine (2010), de Kitty Crowther, enquanto os grandes formatos sugerem histórias mais enérgicas, como é o caso da reedição, em 2016, de El viaje de Babar, pela editora Milenio-Nandibú, recuperando as grandes dimensões das paisagens e dos protagonistas. Referência especial merece a obra El li- vro-álbum de Adela (2015) (fig. 56), de Claude Ponti, que parte da ideia da invasão do espaço do leitor, sugerida desde a capa onde surge uma menina dentro do mundo que o livro reflete.

Figura 56 Para além do formato com que todo o livro-álbum se apresenta, existem obras que solicitam a manipulação do leitor para a construção do sentido. Publicam-se, assim, livros que, para serem lidos, devem ser retirados de um invólucro, seja ele uma caixa, um envelope, ou ou- tro tipo de cobertura. Espera-se que o leitor jogue com os efeitos de surpresa e curiosidade, partindo do princípio que um elemento crucial da história rompe o plano da ficção para ocupar a realidade do leitor. Como exemplo, recorde-se Mi cajón favorito (2014), de Decur, obra na qual o próprio livro se guarda numa caixa que, por sua vez, é o motivo principal da narrativa. O jogo entre a caixa que encerra a ficção e o ex- travasamento que se produz no momento de “extrair” a ficção pode ser exemplificado através de Korokoro (2009), de Émilie Vast. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 188

Em outro tipo de propostas, das opções de manipulação do leitor depende o desenvolvimento de uma intriga ou de outra, como acontece em El libro de la suerte (2014), de Sergio Lairla e Ana González Lar- titegui. Trata-se de duas histórias paralelas que coincidem num ponto central, sobre a forma de um desdobrável que, uma vez aberto, invade o espaço do leitor. O livro define, deste modo, o ritmo da leitura, obri- gando o leitor a deter-se no detalhe que ocupa o seu próprio espaço, numa estratégia de extravasamento comum com outras obras como El maravilloso Mini-Peli-Coso (2014), (fig. 57 e 58) de Béatrice Alemag- na, livro-álbum no qual a história da busca de Edith requer dimensões maiores, correspondendo, assim, ao ponto de vista a partir do qual se observa o universo da protagonista.

Figura 57 Figura 58

Merece destaque, nesta linha, Open this little book (2013), de Jesse Klausmeier e Suzy Lee (fig. 59 e 60). Esta obra pressupõe um jogo de manipulação e formato que conduz o leitor num itinerário de surpresas criadas através de livros que escondem outros livros, perso- nagens que dão lugar a outras personagens, numa estrutura circular que termina onde começa. Trata-se de um discurso metaléptico no qual o leitor deve obedecer a ordens para poder avançar num mundo de sur- presas previsíveis. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 189

Figura 59 Figura 60

b. A dobra A utilização da dobra na construção do discurso é uma das estra- tégias que requerem a imersão física quer das personagens, quer do lei- tor. Uma das partes do livro desempenha a função de barreira entre dois planos. Assim, o espaço ergue-se como uma dimensão real com a qual as personagens interagem no seu mundo de ficção. O leitor deve acatar as regras do jogo para construir o sentido. Uma vez mais, realidade e ficção veem anuladas as suas fronteiras para ocupar o espaço físico do leitor a partir da própria ficção. É o que acontece em livros-álbum como La ola (2008), Sombras (2010) e Espejo (2010) (fig. 61), de Suzy Lee, obras nas quais a dobra constitui um elemento que está a meio do cami- nho entre a realidade do leitor e o mundo da ficção. Igualmente, Daqui ninguém passa! (2014) (fig. 62), de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, conta com a dobra do livro para diferenciar os espaços por onde as personagens se movem. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 190

Figura 61

Figura 62

3. A leitura hipertextual dos clássicos

Em alguns casos, propõe-se ao leitor, através da presença de um elemento tridimensional, um passeio inferencial por obras que ele já co- nhece. Produz-se um contacto físico com um mundo conhecido e com o qual o leitor deve colaborar ao nível das estratégias de manipulação existentes. Incluem-se no discurso um sem número de pormenores que podem ser interpretados por um leitor que se deixa surpreender pela APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 191 animação de um universo que conheceu antes de forma bidimensional. Neste tipo de propostas sublinha-se a vertente hipertextual da leitura uma vez que, em todas elas, existe um hipotexto cujo conhecimento ajuda o leitor a mover-se nos caminhos pelos quais o discurso avança. É o que acontece, por exemplo, em Alicia en el país de las maravillas (2006), de Robert Sabuda, versão pop-up da obra de Lewis Carroll, na qual o autor escolhe as partes mais emblemáticas da história e recria-as num formato a três dimensões que acaba por ocupar o espaço do leitor, para além de rodear cada uma das cenas centrais de pequenos aponta- mentos criativos nos quais também se escondem, debaixo de abas, ou- tros desdobráveis que reproduzem mais momentos da obra clássica. A leitura afasta-se da linearidade que implica o virar de página sequencial e passa a depender das decisões que o leitor toma na hora de manipular o objeto livro. O mesmo também se verifica com as versões pop-up de El principito (2009), de Antoine de Saint Exupéry, ou de Le petit Ni- colas (2008), de René Goscinny e Jean-Jacques Sempé. Nestes casos, produz-se uma rutura dos planos da ficção que provoca a entrada do leitor no mundo ficcional. Assim, a adaptação pop-up de The Snowman (2014), de Ray- mond Briggs (fig. 63), obra embalada numa caixa e produzida em for- mato acordeão, reúne todas as possibilidades mencionadas até ao mo- mento. Trata-se de uma leitura hipertextual de um clássico, com um ritmo de leitura muito marcado tanto pelo conceito de viagem através do espaço físico do livro, como pelo cuidado que implica a animação em papel das personagens em cada um dos seus movimentos.

Figura 63 ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 192

4. A arte de descobrir o oculto

É habitual nos livros que denominamos como animados o jogo criado desde o início com a arte de desvendar o que está escondido. Perante a presença recorrente de ocultamentos, seja através de abas ou do próprio movimento de virar da página, o leitor é obrigado a realizar contínuas inferências que podem ou não ser confirmadas pelo discurso. A curiosidade, o jogo e a exigência de cooperação do leitor no processo de manipulação constituem as chaves da leitura hipertextual, ou seja, não linear ou sequencial. Mais uma vez, anulam-se as fronteiras entre os espaços do leitor e do discurso ficcional, de tal modo que o leitor se converte em protagonista essencial à história. Vejam-se, como exem- plos, Un huevo con sorpresa (2012) (fig. 64), de Emily Gravett, Flora y el flamenco (2012), de Molly Idle, ou ¿Hay un perro en este libro? (2015), de Viviane Schwarz. No caso deste último, a interpelação ao leitor é contínua, à maneira de uma hiperlepse, uma vez que o leitor tem de agir para que a narrativa se desenvolva. Os gatos protagonistas fogem de um cão que, supõe-se, existe neste livro, e solicitam a ajuda do leitor, através de um jogo hipertextual, para que os esconda.

Figura 64 APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 193 Com características semelhantes, ¿Mamá? (2006), de Maurice Sendak, é um livro-álbum no qual o leitor acompanha o protagonista na busca da sua mãe ao longo de uma galeria formada pelas personagens tradicionais de terror do imaginário infantil. Nos últimos tempos publicaram-se livros para os mais pequenos que, com recurso à mesma técnica, asseguram a colaboração do leitor na manipulação para chegar à proposta que partem da saída física das personagens do espaço do livro, recorrendo ao estilo de obras já clás- sicas como ¿Dónde está el osito de Kipper? (1995), de Mike Inkpen. Estamos a referir-nos, por exemplo, a ¡Qué sueño! (2016), de Anne Crahay, ou Un besito y ¡a dormir! (2016), de Patricia Geis, obras pen- sadas para os mais pequenos caracterizadas pela curiosidade, o jogo e a manipulação em função da construção de uma história, requisitos de- finidos Jean Perrot (1999) para assegurar a formação de leitores desde as primeiras idades.

5. A ficção que se apodera do espaço do leitor

Com matizes muito subtis, distingue-se, no atual panorama edi- torial, a presença de obras que anulam as fronteiras entre a ficção e a realidade logo a partir dos níveis de receção que o próprio discurso ficcional propõe. É pelo menos assim que lemos álbuns como Océano (2013) ou Oh! mon chapeau (2014), de Anouck Boisrobert e Louis Ri- gaud, ou Les Shadoks (2015) (fig. 65), de Thierry De Jean e Philippe Ug.

Figura 65 ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 194

6. Entre realidade e ficção: o caso do livro de artista.

Na dinâmica que se estabelece entre o leitor e a obra em livros onde o aspeto material é explorado ao máximo, é relevante atentar nas propostas editoriais que estabelecem um jogo de espaços no qual so- bressai o plano artístico da criação. O espaço e as suas possibilidades de criação convertem-se em temas de um discurso extremamente autor- referencial. É o que se verifica em obras comoUn punto rojo (2004), de David A. Carter, Petit arbre/Little tree (2008), de Katsumi Komagata, ABCD (2008), de Marion Bataille, Popville (2009) (fig. 66), de Anouck Boisrobert e Louis Rigaud, ou Flocons de neige (2012), de Jennifer Preston e Yevgeniya Yeretskaya. Todas estas se aproximam do tipo de obras que poderíamos denominar como livros de artista.

Figura 66

7. A rutura da quarta parede

Por último, cabe destacar a componente de teatralidade que se instala em alguns livros, convertendo o leitor em espectador na medida em que se produz a rutura da quarta parede que caracteriza o modo tea- tral. Alguns desses livros apresentam mesmo a forma de teatrinhos de papel nos quais o leitor deve aventurar-se para assegurar o movimento APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 195 animado. Assim, versões de El increíble niños comelibros, de Oliver Jeffers, como L’extraordinaire garçon qui devorait les livres (2007), baseiam a sua animação numa proposta teatral na qual o espectador deverá desempenhar a função de “animador”. Exemplos deste tipo de discurso são observáveis em Paris s’envole (2015), de Hélène Druvert, Excentric Cinema (2014), de Béatrice Coron, ou em Caperucita Roja (2013), recriada por Clémentine Sourdais.

8. Para terminar

Depois da exposição realizada até ao momento, é possível avan- çar com algumas conclusões provisórias que requerem um estudo mais aprofundado das diferentes modalidades enunciadas. Como se pode confirmar pelas datas de edição das obras aludidas, estamos perante uma das tendências da evolução do livro-álbum que tem a ver com a exploração da materialidade do livro na construção do discurso. Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata de obras que propõem um simples jogo de manipulação, mas de propostas criativas que vão mais longe, desafiando o leitor constantemente durante a leitura, desde a vertente hipertextual até à presença da terceira dimensão que surge associada ao jogo e à curiosidade. Neste sentido, a estratégia discursiva baseada na metalepse como forma de metaficção e a rutura constante das fronteiras entre a realidade do leitor e a ficção do discurso obrigam a estabelecer uma tipologia que agrupe estes novos espaços que o leitor ocupa neste tipo de obras. Estamos, pois, perante um discurso metafic- cional que se desenvolve em torno da reflexão sobre a própria criação e conduz o leitor a colocar uma das questões centrais sobre a arte: a distinção entre realidade e ficção ou, dito de outro modo, a relativização da verdade ficcional que depende do contexto e do próprio recetor. O espaço deste leitor cúmplice, que colabora com o texto para dar sentido ao discurso, resulta de importância vital quando se trata de leitores em formação. Neste sentido, é função do mediador estabelecer as fronteiras entre o artifício inútil e o discurso que oferece um novo espaço físico ao leitor. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 196

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 201 12. Respostas leitoras de crianças e de adolescentes ao livro-objeto. Análise qualitativa e proposta de classificação

Virginia Calvo

1. Introdução Neste capítulo abordamos a análise de respostas leitoras infantis e de adolescentes ao livro como objeto a partir da leitura em voz alta do adulto (investigador) e posterior diálogo literário. Para isso, apre- sentamos algumas propostas do grupo de investigação ELLIJ (Educa- ción para la Lectura, Literatura Infantil y Juvenil y construcción de Identidades, Universidade de Saragoça, Espanha), que se debruçaram sobre o leitor como parte do discurso literário e sobre a sua importância na construção de sentidos. Partimos, assim, dos estudos da Estética da Receção, da Teoria das Respostas Leitoras (Rosenblatt, 2002; Sipe66, 2001, 2002) e do enfoque de leitura proposto por Aidan em Dime (2007a), El ambiente de la lectura (2007b) e em Conversaciones (2008), o modelo da discussão e as respostas do leitor com as suas im- plicações, mais o trabalho do “facilitador”. Por outro lado, também nos temos servido dos estudos sobre a leitura literária de Bonnafé (2008), Patte (2008), Nodelman (2008), Ta- bernero (2011, 2012, 2013, 2014). Neste campo, conceitos como leitura distanciada (Lewis, 2008), leitura refletora e metáfora (Ricoeur, 1980, 1996), enfoque transacional (Rosenblatt, 2002), competência lectolite- rária (Mendoza, 2004, 2010; Tabernero, 2005, 2009) e construção de identidades narrativas (Barthes, 1987; Bruner, 2004) resultam básicos, tendo em conta a nossa conceção de discurso literário e de leitor no século XXI.

66 Ver também, deste autor, uma conferência realizada no âmbito do “Máster de Libros y Literatura para niños y jóvenes” da Universidade Autónoma de Barcelona, no 5 de fevereiro de 2010, disponibilizada no site GRETEL: http://www.literatura.gretel.cat/ ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 202

Seguidamente, e como eixo da nossa reflexão, apresentamos um quadro conceptual de categorias a partir da classificação das respostas leitoras e das produções escritas dos informantes objetos de estudo nos projetos de investigação levados a cabo. Estas investigações centraram- -se na educação lectoliterária do leitor infantil e juvenil, nos fatores que intervêm na receção e no discurso literário como um meio para a construção de identidades no contexto das distintas etapas educativas: Ensino Pré-escolar, Ensino Básico e Ensino Secundário. Deste modo, da análise dos resultados das investigações mencio- nadas emerge a categoria do livro como objeto físico como uma variá- vel constante que engloba respostas verbais, corporais e escritas dos lei- tores. Esta categoria revela dados interessantes para abordar a educação literária, já que os leitores constroem sentidos não só através do texto escrito e das mensagens visuais, mas também através dos elementos relacionados com o design, o formato, a materialidade e o suporte, que contribuem para o desenvolvimento de competências orais, leitoras e de escrita. Para tal, selecionámos uma amostra de excertos relativos a conversações literárias mantidas com crianças e jovens, assim como produções escritas originadas pela leitura partilhada que exemplificam a relevância do livro como objeto (Sipe, 2001) enquanto experiência estética prazerosa para os alunos.

2. Enquadramento teórico O enquadramento teórico da nossa linha de investigação susten- ta-se na teoria do pensamento narrativo de Bruner (2002, 2004). Para este autor, o indivíduo constrói a sua identidade através das narrações que lê e escreve, já que a narrativa permite-lhe dar sentido ao mundo e distanciar-se da realidade quotidiana para refletir. Deste modo, os es- tudos de Ricoeur (1980, 1996) defendem a linguagem literária como veículo privilegiado para a compreensão do ser humano; através da lin- guagem simbólica e metafórica acede-se a parcelas da subjetividade: “la poesía articula y preserva, en unión con otros modos de discurso, APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 203 la experiencia de pertenencia que incluye al hombre en el discurso y al discurso en el ser” (Ricoeur, 1980: 424). Neste sentido, resulta perti- nente o seu conceito de leitura refletora para denominar o processo de leitura no qual o leitor é construído no e pelo texto. Outro dos conceitos relevantes nos nossos trabalhos tem sido a noção de leitura distanciada, cunhada por Lewis (2008), associada à forma como o leitor se projeta no texto, se afasta dele ou se aproxi- ma. A este propósito, recorremos à teoria transacional de Rosenblatt (2002) – no âmbito da corrente teórica das Respostas Leitoras –, leitura aferente e leitura estética. A leitura pressupõe uma interação recíproca (transação) entre texto e leitor, o leitor elabora significados vinculando as suas emoções e experiências ao discurso literário. Esta perspetiva presta atenção à vertente afetiva da leitura, ao primeiro encontro com o texto, às expectativas do leitor e à valorização da experiência prévia do leitor, facilitando o diálogo, ou seja, a transação com o texto. Para tal, tomámos como elementos de referência as categorias propostas por Sipe (2010): analítica, intertextual, pessoal, transparente e performativa. Esta classificação refere-se aos cinco tipos básicos de respostas das crianças quando interagem com livros ilustrados que lhes são lidos em voz alta. De acordo com Sipe, a leitura literária permite às crianças escaparem da vida quotidiana, tornando-se mais objetivas e reflexivas acerca de muitos aspetos da vida. Assim, através da literatu- ra, o leitor aprofunda e enriquece a sua autoimagem, mas também o seu papel na comunidade e no universo mais amplo. Por outro lado, Sipe insiste na ligação entre a leitura e a escri- ta, o que nos conduziu ao aprofundamento deste binómio a partir das teorias de Meek (2004), Barthes (1987), Bruner (2004), Ferreiro (1999, 2002), Alvarado (2013), Salgado (2014), Calvo e Tabernero (2014), Calvo (2015). Também assumimos a conceção que Barthes (1987) atri- bui à experiência com a palavra escrita como meio através do qual o leitor se constrói graças às leituras que dão origem à escrita. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 204

3. Aproximação da leitura O enquadramento teórico sustenta o relevo assumido pelo traba- lho de campo nos nossos projetos de investigação, o que nos conduziu a experimentar com os informantes a proposta de Dime, de Chambers (2007b), na medida em que está orientada para leitores que se iniciam na leitura de textos literários. Para este autor, o interesse de crianças e jovens pela leitura surge como resultado de uma atmosfera emocional propiciadora, que inclui pessoas, atividades, espaços, tempos e textos que estimulam a leitura. De entre todos eles, o autor destaca a possi- bilidade de conversar sobre as leituras realizadas como o fator mais decisivo. Assim, seguem-se as seguintes fases de intervenção nas aulas: 3.1. Leitura em voz alta dos livros por parte dos professores e/ ou investigadores. Considerou-se que esta modalidade de leitura podia aproximar os alunos da leitura literária das obras. Deste modo, o adulto dá voz ao texto e as crianças, através do “leer mirando” (Tabernero, 2009), acompanham a leitura através da observação das ilustrações. De acordo com Chambers, a experiência com a narrativa oral familiariza o aluno com a linguagem, facilita o armazenamento de palavras e o reco- nhecimento da estrutura narrativa. 3.2. Se a leitura em voz alta se apresenta como um dos elementos fundamentais no ambiente de leitura, conversar e falar sobre o que se leu, fazer visível o pensamento e escutar a experiência pessoal do leitor com o texto constituem pontos essenciais de Dime. Deste modo, a se- gunda fase corresponde à conversação literária gerada a partir das fun- dações da estrutura das quatro perguntas básicas definidas por Cham- bers: de que gostaste no texto?, de que não gostaste?, encontraste algo estranho ou novo?, e a leitura fez-te recordar alguma coisa? 3.3. A escrita e/ou desenho livre. A leitura ativa, a oralidade e a discussão literária foram criando pontes para a escrita em duas das investigações que comentaremos nos dois segmentos seguintes deste texto. Para o desenho desta fase, baseámo-nos nas considerações de Barthes (1987) sobre as leituras que dão origem à escrita. Seguimos, as- APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 205 sim, as teorias de Freinet (1973) sobre o texto livre, como a composição criada de forma espontânea pelo leitor depois da leitura e da conversa em grupo. O modelo proposto por este autor baseia-se na expressão livre, na liberdade da escolha do tema, da extensão do texto e do seu ritmo de produção. Neste sentido, Sipe (2002), quando identifica as dis- tintas tipologias de respostas literárias das crianças ao contemplarem e falarem sobre livros, identifica a categoria “taking over” como o modo segundo o qual as crianças utilizam o texto como uma plataforma para explorar a sua própria criatividade: The last type of expressive engagement is taking over the text and ma- nipulating it for one’s own purposes. In this type of response, anything goes because children abandon any attempt at interpretation or u n - derstanding and treat the story as a launching pad for the expression of their own creativity (Sipe, 2002: 478).

Interessou-nos, assim, o processo de escrita desencadeado a par- tir da leitura e a forma como a escrita se converte num procedimento para refletir, organizar o pensamento, explorar as possibilidades narra- tivas da linguagem e construir a identidade, ou, por outras palavras, “el ser humano como relato” (Ricoeur, 1996).

4. Projetos de investigação Oferece-se, em seguida, uma síntese de alguns projetos que se debruçaram sobre a análise das respostas leitoras como meio para com- preender como o leitor infantil e juvenil atribui sentidos à experiência de leitura literária. Acreditamos que o estudo das relações que o leitor estabelece com o livro, as suas intervenções, desenhos, reflexões orais e escritas, pode ajudar a descobrir mais sobre o processo de leitura e sobre a formação de leitores.

4.1. Tradição oral e construção de identidades. Análise qualita- tiva de atitudes em famílias imigrantes67

67 Esta investigação corresponde ao Trabalho de Conclusão de Mestrado de Irene Gar- cía, orientado pelas professoras Rosa Tabernero e Virginia Calvo: https://zaguan.unizar.es/recor- ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 206

O propósito deste estudo consistiu em conhecer as histórias que sete famílias imigrantes transmitem aos seus filhos e a forma como in- tegram a tradição oral da sua cultura de origem, assim como perceber a oralidade como um meio de estabelecer vínculos, como uma forma de favorecer o diálogo transcultural. Para tal, realizaram-se entrevistas em profundidade às famílias, recorreu-se ao diário de campo dos investigadores e a grupos de discus- são com os filhos das famílias ao longo dos anos 2013/2014. Os dados recolhidos foram analisados com o programa ATLAS-TI e observámos que a categoria livro como objeto físico aparecia com uma frequência de 32 vezes. No enquadramento desta investigação, a palavra-chave “livro como objeto” foi interpretada como formato e suporte impresso escolhido pelas famílias imigrantes para ler aos seus filhos histórias das suas culturas de origem. Este resultado confirmou-se nos grupos de discussão com os alunos, nos quais estes comprovaram o uso de livros em papel tanto na escola como no âmbito privado. Para além disso, o livro como objeto físico é considerado pelas famílias como um instrumento de valor e de abertura ao mundo. A título de exemplo, veja-se o seguinte excerto de uma entrevista a uma família: Família 2: Investigadora: pensas que na escola, além dos contos que lemos, deveríamos mudar e ler outros contos ou contar outras histórias? Mãe: Não, eu estou, estou bem, assim com o que vocês fazem, sabes? Acho muito bem porque, eu quando estudava aqui depois não, não leva- va livros nem nada, só os que compras e os lês e já está bem. Agora, as crianças depois trazem, conhecem livros que não tinham, não tinham, muitos livros já os conhecem, assim, por causa da escola.

Deste modo, o livro objeto surge como um meio para o encontro entre indivíduos, para além da variável cultural, tal como salienta Bon- nafé (2008: 71): “El libro es un soporte para el intercambio entre niños y adultos y enlaza asimismo al individuo con su comunidad”.

d/31021?ln=es APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 207 4.2. Para que serve um livro sem ilustrações? Livro-álbum e formação de leitores68 Trata-se de um projeto de caráter qualitativo baseado na análi- se das respostas leitoras de alunos do Ensino pré-escolar e na análise das atitudes dos professores e da família. Esta investigação realizou-se com a “Red Comarcal de Bibliotecas de Somontano” (Huesca), alunos do segundo ano do ensino pré-escolar de três escolas de Barbastro, as bibliotecas municipais de Barbastro e o CIFE (Centro de Inovação e Formação Educativa) correspondente à zona citada. O guia da exposi- ção69 toma em consideração várias premissas em relação à formação de leitores literários no Ensino pré-escolar e no primeiro ciclo do Ensino Básico, das quais destacamos as seguintes: • O livro é uma ferramenta magnífica para facilitar as relações, favorece a transmissão cultural entre pais, professores e filhos e constitui um apoio de qualidade para a integração (Bonnafé, 2008). • A consideração do livro como objeto resulta essencial em três aspetos: primeiro, através da manipulação, a criança apropria-se do conteúdo; em segundo lugar, distingue entre texto e imagens, e, em terceiro, refere-se ao livro como suporte para o intercâmbio entre crianças e adultos e liga o indivíduo à comunidade.

Deste modo, propõe-se um itinerário com uma série de orienta- ções destacáveis no tratamento de cada um dos livros que compõem a exposição. O objetivo foi o de exemplificar algumas linhas que pudes- sem servir de referência concreta na educação literária. Para esse efeito, insistiu-se na necessidade de desenvolver ferramentas que permitam ao aluno incorporar-se nas convenções literária próprias da ficção, dotan-

68 Exposição UNED Barbastro. Maio, 2014. Diretora da exposição: Rosa Tabernero Sala e autora do guia: https://elreyrojo.files.wordpress.com/2015/05/ver-texto-rosa-album.pdf 69 É possível aceder ao guia completo da exposição no seguinte endereço: https://issuu. com/fontoval/docs/guia__de_lectura_rosa_tabernero ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 208

do-o de instrumentos de interpretação que possam consolidar o percur- so de leitura (Tabernero, 2014). Assim, a seleção de obras incluídas na exposição segue este objetivo. Por outro lado, defendemos, na esteira de Nodelman (2010), a dualidade adulto/criança que preside ao discur- so literário infantil e, em particular, ao livro-álbum como um “artefac- to” artístico, objetual e inovador: Un álbum ilustrado es texto, ilustraciones, diseño total; es obra de ma- nufactura y producto comercial; documento social, cultural, histórico y, antes que nada, es una experiencia para los niños. Como manifestación artística, se equilibra en el punto de interdependencia entre las imáge- nes y las palabras, en el despliegue simultáneo de las páginas encontra- das y en el drama de la vuelta a la página (Bader, 1976: 1).

4.3. Como leem as crianças? Leituras infantis e leituras adultas 70 No seguimento do mesmo projeto referido anteriormente, rea- lizou-se uma exposição intitulada Lo que leen los niños y los adultos deberían conocer, como resultado da investigação levada a cabo. Este estudo partiu, entre outros, dos seguintes pressupostos: • As respostas dos alunos do Ensino Pré-escolar podem indicar- -nos quais são as chaves a que o leitor recorre na sua aproxima- ção aos livros literários. • Os preconceitos dos mediadores influenciam a seleção de obras literárias. • A leitura que os adultos mediadores de leitura realizam é dife- rente da das crianças.

Depois de selecionar um corpus para servir de base às discussões literárias (Chambers, 2007a; Tabernero, 2013), usaram-se as seguintes técnicas e instrumentos de recolha de dados: transcrições das sessões propostas, entrevistas semiestruturadas a mediadores (professoras,

70 Maio de 2015: Exposição UNED Barbastro. Lo que leen los niños. Diretora da ex- posição: Rosa Tabernero Sala e autora do guia da exposição: https://issuu.com/fontoval/docs/ guia_lo_que_leen_los_ni__os APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 209 famílias e bibliotecárias), grupos de dis- cussão com professoras e bibliotecárias e anotações no caderno de campo das inves- tigadoras. Através da análise qualitativa dos dados recolhidos, um dos resultados mais relevantes é a diferença que existe entre a leitura adulta e a leitura infantil de uma mesma obra, neste caso, um livro-ál- bum. Este resultado confirmou-se durante a exposição, durante a qual se dava a op- ção de aceder à leitura num écran, através Figura 67 - do recurso aos códigos QR das obras (fig. Documento relativo à Exposição 67). Assim, a categoria livro como objeto emerge a partir da importância do formato selecionado para ler, “los niños leen con las manos”, enquanto a leitura em écran surgia como possibilidade, ainda que condicionada pelo contexto. Entre ecrãs e li- vros, o leitor escolhe o livro na exposição (Tabernero, 2016).

5. Modelo de categorização. O livro como objeto Seguidamente, abordaremos o processo de categorização das res- postas leitoras e escritas de crianças e adolescentes, contextualizado em duas investigações: por um lado, a leitura literária com adolescentes imigrantes (Calvo e Tabernero, 2014; Calvo, 2015) e, por outro, a apro- ximação de crianças com transtornos do espectro do autismo ao livro- -álbum (Calvo e Tabernero, 2015), com o objetivo de contribuir para a construção de um modelo de categorização no qual o conceito de livro como objeto se apresenta como uma variável a ter em conta no processo de receção de uma obra literária. 5.1. A leitura literária nos processos de acolhimento e inclusão de adolescentes imigrantes71

71 Esta investigação corresponde à tese de doutoramento de Virginia Calvo, orientada por Rosa Tabernero. A mesma está acessível no seguinte endereço: http://puz.unizar.es/detalle/1627/ ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 210

Trata-se de uma investigação cujo objetivo de estudo consistiu em investigar qual pode ser o contributo da leitura literária no proces- so de inclusão dos alunos imigrantes na sociedade de acolhimento. A investigação teve como contexto o Ensino secundário obrigatório em Espanha e tomou como ponto de partida as necessidades objetivas e subjetivas do adolescente imigrante. O desenho da investigação configura-se a partir do paradigma qualitativo/interpretativo e da investigação-ação no contexto de qua- tro aulas de espanhol. Centrámo-nos na análise das respostas leitoras e das produções escritas de uma amostra de trinta adolescentes imigran- tes. Os resultados obtidos fornecem orientações significativas sobre o discurso literário como um meio para a construção de identidades dos adolescentes imigrantes no processo de acolhimento e aprendizagem do espanhol como língua segunda. Deste modo, reflete-se sobre o papel da escrita como um meio para tornar os adolescentes visíveis e participati- vos na sociedade de acolhimento. A este respeito, propõe-se um modelo metodológico para a leitura e escrita nas aulas de espanhol com leitores iniciais, concretizam-se critérios e chaves para a seleção de itinerários textuais a partir da análise das respostas leitoras e das produções escri- tas dos informantes. Para a realização dos critérios de seleção foram fundamentais as seguintes categorias que nos permitiram interpretar as respostas dos informantes:

1 - Categoria analítica: respostas metacognitivas como antecipações e inferências. 2 - Categoria intertextual: relação do texto lido com outros textos. 3 - Categoria cultural: respostas nas quais o leitor reflete e questiona modelos culturais. 4 - Categoria emocional: a conexão do texto com as emoções dos leito- res, participando na história e/ou rejeitando. 5 - Categoria metafórica: respostas nas quais o leitor expressa prazer

La+lectura+literaria+en+los+procesos+de+acogida+e+inclusi%F3n+de+adolescentes+inmigran- tes-0.html APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 211

por “como se conta uma história”, evocando palavras, imagens e me- táforas. 6 - Categoria criativa: respostas que dão origem à escrita.

A aplicação da categoria metafórica e da categoria criativa está associada a dois conceitos essenciais: o livro como objeto estético e a ilustração como elemento que facilita a construção de significados por parte de leitores que se iniciam na leitura de textos na sua língua segun- da (L2). É o que revelam as respostas obtidas a El libro de las preguntas (2006), cuja dimensão poética do texto e da imagem, recriando o uni- verso de Neruda através das texturas, das linhas e dos traços de Isidro Ferrer, causou espanto e surpresa nos círculos de leitura. Trata-se, pos- sivelmente, de um livro fronteiriço dentro da tipologia do livro-álbum, no qual os poemas partem a sua condição verbal para se converterem numa realização artística global (Tabernero, 2009: 27).

(Conversa antes da leitura: mostramos o livro, observam-no e conversam) 9.Youness: Pablo Neruda é um escritor 10.Ruihao: um ilustra e o outro escreve 11.Youness: como o livro das greguerías 12.Ruihao: é mais fácil compreender as perguntas 13.Youness: um homem está a pescar as perguntas 14.Ahmed: os peixes 15.WeiPei: é diferente 16.XiaoWei: o homem que está a pescar 17.Ruihao: Pablo Neruda ou Isidro Ferrer? Figura 68 - Libro de las preguntas 18.Youness: este escritor está a trabalhar só com madeira, os peixes são de madeira, o homem é de madeira, as ilustrações são de madeira, tem alguma coisa a ver com a madeira (Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Goya, Saragoça) ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 212

A pergunta surge como um bom convite para o conhecimento do indivíduo numa edição bela, inteligente, dirigida a um leitor sensível que se atreve a brincar com a linguagem a partir dos pormenores de ilustração do livro: 1. Zineb: vai fazer-nos perguntas e temos de responder 2. Binta: gosto da capa 3. Inv: o que é que gostam na capa? 4. Kadiatou: gosto das ilustrações 5. Aissatou: das ilustrações 6. Massa: dos peixes, do pescador 7. Aissatou: do pescador 8. Zineb: nós vamos pescar perguntas 9. Aissatou: ou não? (Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Lucas Mallada, Huesca)

A composição da capa convida à observação atenta, a olhar, refletir, conversar e até a brincar com as palavras. Zineb interpreta a imagem, associa ideias, lê e relaciona-as até brincar com a linguagem através da imagem, criando uma metonímia. O poder sugestivo da ilus- tração (as texturas, a luminosidade, a passagem do tempo nos traços das letras do título, as figuras planas e quase simétricas) invade os lei- tores e mexe com os seus afetos, provoca espanto ao leitor imigrante, permite-lhe estabelecer inferências e construir significados através do conhecimento partilhado e da conversa em grupo. Nesta medida, o lei- tor detém-se a observar a ilustração do livro e a apreciá-lo como objeto estético. Outra obra que estimulou os leitores imigrantes a fixarem-se na estética do livro foi a novela gráfica de Shaun Tan Emigrantes (2007). Serve como exemplo a entrada seguinte, extraída do blogue da investi- gação72 (fig. 69), na qual uma adolescente alude expressamente ao seu gosto pela estética deste livro:

72 http://leemosymas.blogspot.com.es/ APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 213

Figura 69 - Excerto de um blogue de uma leitora

A capa desta obra, dura, com textura e relevo, o tom castanho escuro e opaco das margens que parecem simular as rachaduras origi- nadas pela passagem do tempo e a imagem brilhante ao centro apro- ximam-na de um velho álbum de fotografias. Trata-se de uma edição cuidada, da qual resulta grande beleza, aspetos que são observáveis nas respostas dos alunos: 11.Aissatou: eu adoro isto (indica e toca na capa) é como se fosse an- tiga, a capa 12.Zineb: sim parece muito antigo 13.Aissatou: eu gosto da capa, não sei o que existe lá dentro, mas gosto da capa (Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Lucas Mallada, Huesca)

O autor escolhe as dimensões de um livro em função do que quer transmitir e representar. Tal como explica Sipe (2001), um formato muito horizontal pode ser selecionado para um livro cujas ilustrações incluem mais fundo, paisagem ou uma perspetiva panorâmica, enquan- to um formato mais vertical permite ao artista representar personagens humanas numa escala próxima, em primeiro plano, como acontece com Emigrantes (fig. 70). ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 214

O leitor recebe a obra literária como objeto estético e plástico e, desse modo, o poder evocativo das cores, dos silêncios, das luzes e das sombras recria uma atmosfera que emociona os leitores, conduzindo- -os a expressar o prazer pelas imagens que leem, a realizar inferências sobre a história e a estabelecer as suas relações intertextuais (“parece a pintura do barroco”): 32.Zineb: como se fosse silêncio não? há si- lêncio na cidade, vê, vão no comboio e não se querem separar 33.Fatima: a mulher 34.Aissatou: a mulher regressou, não foi? 35.Massamba: com o seu filho 36.Aissatou: foi para outro país, está a comer no barco, olhando para a fotografia da sua fa- mília. O céu, que bonito! 37.Zineb: (risos) céu negro 38.Aissatou: parece a pintura do barroco 39.Zineb: já chegou à cidade 40.Aissatou: gosto das ilustrações

Enquanto determinadas páginas da novela gráfica conduzem a uma leitu- Figura 70 - Página do livro de ra visual, pausada, lenta e simbólica das Shaun Tan ilustrações, apreciando os pormenores estéticos, na discussão em grupo, os alunos revelaram que a narrativa lhes fez recordar o seu próprio processo migratório, tendo ressonâncias com a sua experiência de vida enquanto filhos de imigrantes. Assim, como consequência, produz-se uma rejeição da temática do livro: 97.Zineb: Lembro-me de quando o meu pai, no meu país, me disse que tinha de ir para Espanha, tinha 12 anos, este livro não me deixa pensar 98.Aissatou: Outras pessoas têm de o conhecer 99.Fátima: Esta história já a conheço, o meu pai ficou na floresta e comeu folhas (Conversa grupal sobre Emigrantes - Aula de espanhol do Instituto de Educação Secundária Lucas Mallada, Huesca). APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 215 O estilo do desenho a lápis sobre papel procura assemelhar-se à fotografia. O emigrante da novela é todos os emigrantes de todos os países e de todos os tempos. Foi assim que os alunos entenderam a mensagem quando contemplaram os rostos nas guardas do livro, seme- lhantes a fotografias de passaportes, relembrando e projetando as suas histórias pessoais de vida para a narração. Desta forma, estes jovens gastaram o seu tempo a ler, observando, e analisaram o livro como um objeto estético para além das suas circunstâncias pessoais.

5.2. O livro-álbum em contextos inclusivos. Estudo de caso com crianças com transtorno do espectro do autismo73 Este estudo de caso centra-se em sete crianças do 1º. ciclo do Ensino básico e seis do Ensino pré-escolar com transtorno do espectro do autismo. O estudo parte das características específicas destes rece- tores relativamente ao facto de se apoiarem em imagens, como, por exemplo, pictogramas, para organizar, compreender e dar sentido ao mundo (Rivière, 2001). Assim, a investigação toma como ponto de par- tida a adequação do livro-álbum como ferramenta utilizada em contex- tos inclusivos para promover o desenvolvimento cognitivo, emocional, social e estético do indivíduo. As componentes narrativas e visuais que estruturam um livro-álbum podem ajudar os alunos com transtorno do espectro autista na construção de sentidos e na interação com o texto. Esta premissa sustenta-se com contribuições de Tabernero (2005, 2009, 2013), Durán (2009), Salisbury e Styles (2012), no que diz respeito à receção do livro-álbum: “El lugar del libro-álbum está en la contempla- ción, en la educación de los sentidos, en la aproximación al objeto en sí mismo, en la construcción de un espacio íntimo y privado, fuera de los pensamientos impuestos” (Tabernero, 2009: 37). Por sua vez, Durán (2005) destaca que “la gran virtud de la lectura visual que nos ofrecen

73 Os resultados da primeira fase desta investigação estão publicados na Revista de Edu- cación Inclusiva, vol. 8 (3), novembro de 2015. http://www.revista-educacion-inclusiva.es/nume- ros/anteriores/ ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 216

los libros ilustrados es la de que nos permiten adquirir unas competen- cias, experiencias y emociones que resultan básicas para nuestro desar- rollo cultural y social” (Durán, 2005: 253). Para tal, neste trabalho de campo experimentou-se a abordagem de leitura de Chambers (2007a), com o objetivo de identificar em que medida a leitura de livros-álbum podia favorecer a comunicação ver- bal e social destas crianças. Como opção metodológica, optámos pelo paradigma qualitativo/interpretativo e utilizou-se uma variada gama de estratégias de recolha de dados: diário de observação das professoras, entrevistas semiestruturadas às professoras, transcrições das conversas orais das sessões de leitura e produções escritas das crianças. Os resultados obtidos foram organizados em categorias com o objetivo de estabelecer um quadro concetual de interpretação das res- postas dos informantes. Neste sentido, foram-nos particularmente úteis as classificações de respostas leitoras de outras investigações do grupo ELLIJ (Tabernero, 2011; Calvo e Tabernero, 2014; Calvo, 2015). O re- sultado foi um quadro composto por cinco categorias: o livro como objeto físico, categoria narrativa-metafórica, categoria visual-metafó- rica, emocional e social. A categoria livro como objeto físico corresponde a todas as res- postas verbais e corporais nas quais as crianças se aproximaram do livro físico com o objetivo de o manipular, observar e, em alguns casos, para copiar frases (fig. 71). Como exemplo, comentaremos as reações das crianças à obra de Sendak, Donde viven los monstruos. Nas entrevistas realizadas às professoras, elas sublinhavam o facto de estas crianças te- rem muitas dificuldades na comunicação oral e escrita, e valorizaram de forma positiva a iniciativa, a espontaneidade e a vontade manifestada pelas crianças em se aproximarem do livro para o manipularem, o ob- servarem e, ainda, copiar frases. Por outro lado, as professoras ficaram surpreendidas com as reações de alguns alunos, nomeadamente quando pegaram no livro para o levar para casa, de modo a partilharem a leitura com as suas famílias. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 217

Donde viven los monstruos (fig. 72) foi lido em três sessões, uma vez que as crianças solicitaram essa leitura em vá- rias ocasiões, através de afirmações como: “quero ‘donde viven los monstruos’”! Se- guindo a abordagem de Dime, de Cham- bers, a professora formou um semicírculo no espaço da sala e leu o texto em voz alta ao mesmo tempo que mostrava as imagens às crianças. Depois, questionou cada uma delas sobre o que tinham gostado mais. Figura 71 - Exemplo de Neste contexto, e tendo em conta que era produção escrita de um aluno a primeira sessão na qual se realizava esta atividade, a professora optou por formular as perguntas de forma indi- vidualizada, uma vez que os alunos costumam responder a perguntas dirigidas ao grupo. As respostas dadas pelas crianças no círculo de lei- tura foram as seguintes: A1: Max A2: a sopa A3: Gostei do sítio onde vivem os monstros A4: rugiram com as suas garras terríveis A5: quente quente Professora 1: o quê? A5: comida saborosa Professora 1: gostaste de mais alguma coisa? A5: vou-te comer Professora 1: mais alguma coisa? A5: rugidos terríveis, mostraram os seus dentes terríveis e os seus olhos terríveis e mostraram as suas garras terríveis até que Max disse QUIE- TOS por favor não vás embora vamos comer-te gostamos tanto de ti Max disse NÃO comida saborosa e já está ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 218

Como se observa, os leitores referiram “a sopa, “os monstros”, “comida saborosa”, “quente”, “vou-te comer” e um dos alunos repete as frases de que mais gostou da audição do texto em voz alta: “rugidos ter- ríveis”, “dentes terríveis”, “olhos terríveis”, “garras terríveis”, ou seja, na sua transação (Rosenblatt, 2002) com o texto e a imagem, interio- rizou o jogo sonoro de palavras no qual as ilustrações do “cortejo dos monstros” têm um papel essencial na experiência da receção do livro.

Figura 72 - Donde viven los monstruos

As ilustrações deste criador proporcionam um acompanhamen- to visual das palavras, um guia que enriquece a experiência de leitura nesse ambiente que facilita a aproximação de Dime, de Chambers: um espaço acolhedor para falar, partilhar, escrever e desenhar. A história da viagem de Max, o encontro do protagonista com os monstros, as três duplas páginas nas quais os monstros uivam à lua, ba- loiçam-se nos ramos das árvores e desfilam, em cortejo, até que a pro- cissão se interrompe pelo “odor de comida saborosa”, transformou-se numa atividade prazerosa para o grupo que atravessou e cruzou mundos APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 219 possíveis. Em conclusão, a forma como Sendak constrói, com subtileza e força, um baile lúdico entre imagens e palavras possibilitou aos lei- tores deste estudo apropriarem-se das palavras, ritmos, jogos sonoros e metáforas, incorporando estes recursos na sua perceção do mundo e na sua capacidade de se exprimirem. Tratou-se, sem dúvida, de uma expe- riência de gozo deste clássico. Nesta investigação, o suporte, a materialidade e o formato afetam a receção e, neste processo, a função do mediador e a perspetiva de lei- tura revelam-se como fatores importantes para produzir encontros entre o livro e o leitor. Como afirma Bonnafé (2008: 23): “el libro sólo tiene efecto si es objeto de afectos compartidos”. Nessa medida, o livro é uma ferra- menta que facilita as relações e “constituye un apoyo de calidad para la integración” (Bonnafé, 2008: 34). Seguindo os estudos de Tabernero (2015), o livro-álbum revela-se como um suporte para o intercâmbio entre crianças e adultos, além de ligar o indivíduo à comunidade.

6. Para continuar À luz dos resultados obtidos nas distintas investigações que apre- sentámos, a categoria livro como objeto físico revela-se como uma va- riável constante nas respostas leitoras que as crianças e os adolescentes apresentam face aos livros e à experiência de leitura dos mesmos. Nesta medida, reforça o quadro do estudo das Respostas Leitoras e permite avançar em termos do conhecimento do leitor literário, nomeadamente sobre a forma como este se aproxima dos livros e como se apropria do seu conteúdo. O leitor recebe o livro na sua totalidade e, a partir de todos os elementos que o integram, vai-se apropriando do conteúdo da obra (Bonnafé, 2008). Em resultado, o livro como suporte físico e estético – como artefacto artístico – requer um estudo que nos ajude a compreender o papel que desempenha a sua materialidade no processo de receção da obra literária, ou seja, o papel criado pelo livro-álbum pós-moderno para acolher o leitor no seu mundo, como analisou a pro- fessora Rosa Tabernero no capítulo anterior. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 220

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APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 223 13. Autoras

ANA MARGARIDA RAMOS é doutorada em Literatura e Professora Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, onde leciona disciplinas da área da Formação de Leitores e da Literatura para a Infância. Integra o Centro de Investigação em “Didática e Tecnologia na For- mação de Formadores” (CIDTFF), da Universidade de Aveiro. Tem apresenta- do várias comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais. Integrou a equipa que concebeu o projeto CASA DA LEITURA da Fundação Calouste Gulbenkian. Integra, como investigadora, a equipa da Rede Temática de Investigação Ibérica “As Literaturas Infantis e Juvenis do Marco Ibérico e Iberoamericano” (www.usc.es/lijmi/). Integrou um projeto de Reestruturação do Ensino Secundário em Timor-Leste, no âmbito do qual coordenou a equipa responsável pela disciplina de Temas de Literatura e Cultura, cujos materiais pedagógicos também realizou em coautoria. Publicou vários livros, dos quais se destacam Livros de Palmo e Meio – Reflexões sobre literatura para a in- fância (Caminho, 2007), Literatura para a Infância e Ilustração: leitura em diálogo (Tropelias & Companhia, 2010) e Tendências contemporâneas da lite- ratura portuguesa para a infância (Tropelias & Companhia, 2012).

CARINA RODRIGUES é Licenciada em Educação de Infância, pela Escola Superior de Educação de Coimbra, desde 2004, e Mestre em Ciências da Educação (Área de Especialização em Formação Pessoal e Social), pela Universidade de Aveiro, desde 2008. Em 2013, concluiu o Doutoramento em Literatura, na Universidade de Aveiro, com uma tese subordinada ao tema “Pa- lavras e imagens de mãos dadas – a arquitetura do livro-álbum narrativo em Manuela Bacelar” e realizada com o apoio da FCT (SFRH/BD/44145/2008). É membro colaborador do CIEC (Centro de Investigação em Estudos da Criança) da Universidade do Minho e vogal da direção de ELOS (Asociación Galego Portuguesa de Investigadores en Literatura Infantil e X/Juvenil). Apresentou várias comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais, e publicou recensões e artigos diversos no âmbito da Literatura Infantojuvenil. ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 224

CLÁUDIA SOUSA PEREIRA é Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – variante de Português e Francês pela Universidade Nova de Lis- boa (1989); Mestre em Literatura Comparada Portuguesa e Francesa – época medieval, também pela Universidade Nova de Lisboa (1994); Doutorada em Literatura Portuguesa pela Universidade de Évora (2000). Desde 1990, é do- cente na Universidade de Évora, atualmente professora auxiliar de nomeação definitiva, diretora do Curso de Licenciatura em Línguas e Literaturas e adjun- ta da direção do Departamento de Linguística e Literaturas; Investigadora e vice-diretora do CIDEHUS-UÉ (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora). Tem várias publicações nacionais e internacionais. Foi Vereadora na Câmara Municipal de Évora com os pelouros da Educação, Ação Social, Juventude e Desporto, Cultura, Património, Centro Histórico e Turismo (2009 e 2013). É atualmente Vereadora sem pelouros.

DIANA MARIA FERREIRA MARTINS é aluna do Doutoramento em Estudos da Criança, na especialidade de Literatura para a Infância, no Instituto de Estudos da Criança, na Universidade do Minho. Licenciada em Design de Comunicação pela Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, é tam- bém mestre em Ilustração, pela Escola Superior Artística do Porto – Guima- rães, com uma monografia intitulada As cores de A Sombra, de Luísa Ducla Soares - Percursos de re-ilustração e de construção de um livro-álbum poéti- co. [email protected]

ELIANE DEBUS é graduada em Letras (FUCRI, 1991), Mestre em Literatura Brasileira (UFSC, 1996), Doutora em Teoria da Literatura (PUCRS, 2001) e atua como professora no Departamento de Metodologia de Ensino e no Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Ciências da Edu- cação, da Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis/SC/Brasil). Líder do grupo Literalise – Grupo de pesquisa em Literatura Infantil e Juve- nil e Práticas de Mediação Literária tem-se dedicado, nos últimos 25 anos, a pesquisas sobre a literatura para infância e juventude. Autora de artigos em periódicos nacionais e internacionais, capítulos de livros e livros, entre eles: Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido (2004); Festaria de brincança: a leitura literária na Educação Infantil (2006); e, em coorganização, Literatura Infantil e Juvenil: leituras, análises e reflexões (2010). CV completo em http:// lattes.cnpq.br/8529733083684329. APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 225

ISABEL MOCIÑO é doutora em Filologia pela Universidade de San- tiago de Compostela, em Espanha, e professora no Departamento de Didáti- cas Especiais da Universidade de Vigo, onde leciona disciplinas da área da Didática da Língua e da Literatura. É investigadora do Instituto de Ciências da Educação (ICE-USC) e dos projetos “Informes de Literatura” e “A Lite- ratura Infantil e Xuvenil” do Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades. Integra grupos e redes de investigação, como a Rede Temática de Investigação “Las Literaturas Infantiles y Juveniles del Marco Ibérico e Iberoamericano” (LIJMI) e “A LIX angloxermana e a súa tradución”, além de ser membro da ANILIJ (Asociación Nacional de Investigación en Literatura Infantil y Juvenil), da ELOS (Asociación Galego-Portuguesa de Investigación en Literatura Infantil e X/Juvenil), da qual é presidente, e da Asociación Ga- lega da Crítica (AGC). Tem participado em numerosos encontros científicos nacionais e internacionais e publicado estudos em livros coletivos, revistas e jornais sobre literatura galega e Literatura Infantil e Juvenil, com destaque para a participação na Historia da Literatura Infantil e Xuvenil galega (Xerais, 2015), coordenada por Blanca-Ana Roig Rechou.

MARGARETH SILVA DE MATTOS é Professora de Ensino Básico da Universidade Federal Fluminense (UFF-Brasil). Doutoranda em Estudos de Linguagem da mesma Universidade, foi coorientada no seu estágio doutoral pela Doutora Ana Margarida Ramos, do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Integrante dos grupos de pesquisa LeiFEn (Leitura, Fruição e Ensino), e LELIS (Leitura, Literatura e Saúde: inquietações no cam- po da produção do conhecimento), ambos cadastrados no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. [email protected]

ROSA TABERNERO é professora titular de Universidade da área da Didática da Língua e da Literatura na Universidade de Saragoça, em Es- panha. É Investigadora Responsável do Grupo de Investigação Consolidado Educación para la Lectura Literatura Infantil y Juvenil y construcción de identidades (ELLIJ, http://ellij.blogspot.com.es/). Dirige o Máster Propio em Lectura, libros y lectores infantiles y juveniles (http://www.literaturainfantil. es/). Coordena e participa em projetos de inovação docente relacionados com a educação literária e o desenho de itinerários de leitura no contexto do Espaço Europeu de Educação Superior. Dirige a coleção da Imprensa Universitária de Saragoça “[Re]pensar la educación”. Participa em grupos de investigação de âmbito internacional. Integra, como investigadora, o projeto de investigação ANA MARGARIDA RAMOS (ORG.) 226

«Los espacios virtuales para la promoción del libro y la lectura. Formulación de indicadores para evaluar su calidad y efectividad» FFI2015-69977-R, (Pro- yectos I+D+I del Programa Estatal de Investigación, Desarrollo e Innovación. Ministerio de Economía y Competitividad de España. Convocatoria 2015).

ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA é graduada em Pedagogia pela Universidade do Contestado - UnC - Campus Canoinhas- -SC (1993), mestre em Educação pela Universidade do Extremo Sul Catari- nense (UNESC, 2008) e doutoranda em Educação pela Universidade Fede- ral de Santa Catarina (UFSC), com Estágio Científico Avançado no âmbito do Doutoramento em Estudos da Criança na Universidade do Minho, Braga, Portugal. Desenvolve a pesquisa: Infância e poesia: encontros possíveis no espaço-tempo da escola. Bolseira do Programa de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior (FUMDES). Atua como professora nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da Rede Pública Estadual de SC. É membro dos grupos de pesquisa: Literalise: Grupo de pesquisa em literatu- ra infantil e juvenil e práticas de mediação literária na UFSC, do LITTERA: Correlações entre cultura, processamento e ensino: a linguagem em foco na UNESC, e do GPA - Grupo de Pesquisa em Arte. Atua principalmente nos se- guintes temas: alfabetização, letramento, linguagem literária, poesia e pesquisa com crianças. Autora de artigos em livros e coorganizadora de Cinema, in- fância e imaginação: tecendo diálogos (2016). CV completo em http://lattes. cnpq.br/1225742614101288.

SANDIE MOURÃO é Doutorada em Didática e Formação de Profes- sores pela Universidade de Aveiro, em Portugal. É formadora de professores, autora e consultora educativa e trabalha a tempo parcial na Universidade Nova de Lisboa, lecionando no Mestrado de formação de professores de inglês do 1º. ciclo do Ensino Básico. É investigadora e dedica-se ao estudo das questões do ensino/aprendizagem de línguas nos primeiros anos, bem como ao uso de livros-álbum na educação em línguas de todos os níveis de ensino. É coeditora do volume Early Years Second Language Education: International Perspecti- ves on Theories and Practice (2015), publicado pela Routledge, e da Revista online Children’s Literature in English Language Education.

SARA REIS DA SILVA é Professora Auxiliar na Universidade do Mi- nho (Instituto de Educação). É doutorada em Literatura para a Infância pela Universidade do Minho com uma tese intitulada Presença e Significado de APROXIMAÇÕES AO LIVRO-OBJETO: DAS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ÀS PROPOSTAS DE LEITURA 227

Manuel António Pina na Literatura Portuguesa para a Infância e a Juventude, editada, em 2013, com a chancela FCT/FCG. Desenvolve a sua docência e a sua investigação na área dos estudos literários e, em particular, da literatura de potencial receção infantojuvenil. Integrou a equipa responsável pelo projeto Gulbenkian – Casa da Leitura (www.casadaleitura.org). É membro integrado do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) e investigadora da Rede Temática “Las literaturas infantiles y juveniles del marco ibérico. Su influencia en la formación literaria y lectora” (RED LIJMI). Tem apresentado diversas comunicações em colóquios e congressos nacionais e internacionais. É autora de artigos/ensaios e recensões no referido âmbito investigativo. Pu- blicou, entre outras obras, em 2002, A Identidade Ibérica em Miguel Torga, em 2005, Dez Réis de Gente… e de Livros. Notas sobre literatura infantil, em 2010, Encontros e Reencontros. Estudos sobre Literatura Infantil e Juvenil e, em 2015, Casas Muito Doces: reescritas infanto-juvenis de Hansel & Gretel.

VIRGINIA CALVO é doutora pela Universidade de Saragoça e licen- ciada em Filologia Hispânica. Atualmente é professora ajudante doutora no Departamento de Didática das Línguas e das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Saragoça. Membro do Grupo de Investigação ELLIJ e sub- diretora e professora no Máster en Lectura, libros y lectores infantiles y juve- niles (http://www.literaturainfantil.es/). As suas investigações centram-se nas questões da leitura literária, educação linguística e construção de identidades no contexto das várias etapas educativas. Atualmente, integra a equipa de in- vestigadores do projeto “Los espacios virtuales para la promoción del libro y la lectura. Formulación de indicadores para evaluar su calidad y efectividad”. Mais publicações em: https://scholar.google.es/scholar?hl=es&q=virginia+calvo+valios&btnG=&lr= http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13614541.2016.1120071 http://www.elprofesionaldelainformacion.com/contenidos/2015/nov/11.html