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CINEASTAS DE ESQUERDA NA TELEVISÃO BRASILEIRA: PROPOSTAS PARA UMA HISTÓRIA

Igor Sacramento - Mestrando ECO/UFRJ

Nota introdutória

Neste trabalho, apresento as reflexões teórico-metodológicas para a construção da história da passagem de cineastas oriundos do Cinema Novo pela televisão brasileira nas décadas de 1970 e 1980, em programas como o Globo-Shell Especial e Globo Repórter da Rede Globo. Partindo da pesquisa que dará origem à minha dissertação de mestrado, provisoriamente intitulada Imagens da nacionalidade: cineastas de esquerda na televisão brasileira (1971-1986) , as indagações que seguem recorrem à noção de “estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária” formulada por Marcelo Ridenti i, com base em Raymond Williams, e à opção de interpretar a história por seus vestígios como fazem, em relação ao jornalismo, Ana Paula Goulart Ribeiro e Marialva Barbosa ii , inspiradas em Agnes Heller. Para elucidar as questões teóricas, analiso aspectos dos documentários Theodorico, o Imperador do Sertão (1978), de , e do censurado Wilsinho Galiléia (1978), de João Batista de Andrade.

A estrutura de sentimento dos filmes do Cinema Novo

Utilizar a idéia de estrutura de sentimento é necessária para entender que “a feitura da arte nunca se dá no tempo passado”, mas que ocorre sempre como “um processo formativo, com um presente específico”, em que a primazia de certas presenças e processos, de “atualidades tão diversas e no entanto específicas, foram vigorosamente afirmadas e reclamadas, como na prática são vividas todo o tempo” iii . Toda estrutura de sentimento é compartilhada por um grupo de maneira heterogênea, o que, ao contrário, não impossibilitou uma aproximação, formando, assim, as qualidades peculiaridades de uma geração e período específicos. É constituinte de uma consciência prática que corresponde àquilo que é realmente vivido, mas não àquilo que se pensa estar sendo vivido. Enfim, “é um tipo de sentimento e pensamento que é realmente social e material, mas em fases embriônicas, antes de se tornar uma troca plenamente articulada e definida” iv . É também característico pelas complexas relações ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 que estabelece com o que já está articulado e definido. Williams escolhe “sentimento” para ressaltar “uma distinção dos conceitos mais formais de ‘visão de mundo’ e ‘ideologia” v para se analisar, assim, os significados e valores como vividos e sentidos ativamente, as relações entre eles e com as crenças mais formais ou sistemáticas. O autor prefere não utilizar “estruturas de experiência”, porque um dos sentidos da palavra remete a um tempo passado, anterior, o que se evita com sentimento. Uma alusão a físico-química é bastante esclarecedora: “as estruturas de sentimento podem ser definidas côo experiências sociais em solução , distintas de outras formações semânticas sociais que precipitadas existem de forma mais evidente e imediata” vi . No entanto, isto não quer dizer que toda manifestação artística já nasça como tal. Pelo contrário, a maioria delas já surge afinada com formações sociais já dominantes. Fica clara também a tendência de, no decorrer da história, os sentimentos em solução se precipitarem e sedimentarem a ordem: o que era vivido passa a ser registrado. Então, parece-me bastante interessante a leitura feita por Ridenti “do surgimento de um imaginário crítico nos meios artísticos e intelectuais brasileiros na década de 1960 e depois sua transformação e (re)inserção institucional a partir dos anos de 1970” vii , épocas em que se deram o apogeu e o declínio da estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-)revolucionária viii . Como mostra o autor, a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária não nasceu do combate à ditadura, momento em que começa, a se vincular à ordem, mas foi “forjada no período democrático período democrático entre 1946 e 1964, especialmente no governo Goulart, quando diversos artistas e intelectuais acreditavam estar na crista da onda da revolução brasileira em curso”. ix A conjuntura internacional, com a emergência dos países do chamado Terceiro Mundo , pela Revolução Cubana e pela Guerra Fria , também proporcionou para a construção deste sentimento de revolução. x Tudo isto será interrompido pelo golpe de abril de 1964. Na arte revolucionária, foi exemplar dessa estrutura de sentimento, a “estrutura de sentimento do filmes do Cinema Novo”. Partindo de um diálogo com o neo-realismo italiano, com a novelle vague e com escritores brasileiros, os filmes de Nelson Pereira dos Santos – Rio 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957) e Vidas secas (1963), o curta de Linduarte Noronha – Aruanda (1960), Deus e o diabo na terra do sol (1963) de Glauber Rocha e Os Fuzis (1963) de Ruy Guerra são fundadores da estética cinema-novista xi ao lado da produção da época de Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, David Neves, Eduardo Coutinho, Gustavo Dahl, Leon Hirzman, Luiz Carlos Barreto, Paulo César Saraceni e Walter lima Júnior. Embora sem o reconhecimento deste grupo, o fundador, obras de cineastas herdeiros da velha estética da Vera Cruz -, Roberto Faria e Roberto Santos – assim como os que estavam ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 em São Paulo (Francisco Ramalho, João Batista de Andrade, Luiz Sérgio Person, Maurice Capovilla e Renato Tapajós) também faziam parte da “mesma estrutura de sentimentos dos filmes do Cinema Novo”, uma vez que suas obras eram caracterizadas pela valorização da “brasilidade arraigada no homem simples do povo (no campo ou habitante da periferia das grandes cidades), [pela denúncia] das desigualdades sociais” xii e pela busca do desvendamento da realidade brasileira. Sobre a polêmica, João Batista de Andrade definiu as obras do grupo a que pertencia como “Cinema Novo Tardio de São Paulo” xiii . Nos anos 1970, começam a se dissolver as condições históricas da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária, como resultado, principalmente, das ambigüidades do Estado autoritário que “com a mão direita punia duramente os opositores que julgava mais ameaçadores – até mesmo artistas e intelectuais -, e com a outra atribuía um lugar dentro da ordem não só aos que docilmente se dispunham a colaborar, mas também a intelectuais e artistas da oposição” xiv . No caso do cinema, entra em vigor a Embrafilme e se abre a possibilidade para cineastas de esquerda aproximarem a denúncia social do entretenimento como única maneira de fazer com que a arte cinematográfica nacional-popular sobreviva em meio à dominante “pornochanchada” xv e chegue a seu objetivo de conscientização, mesmo que baseado na indústria e no comércio xvi . É importante notar também que, neste momento de esvaziamento das condições para uma revolução social, como observa Sonia Wanderley xvii , a televisão, com o apoio da ditadura militar, está a caminho de se construir como a expressão mais importante da indústria cultural brasileira e passa a ser estratégica para a consecução do projeto de integração nacional do regime, merecendo destaque nesse processo a Rede Globo xviii assim como começa a reformular a sua programação em busca da qualidade e do “nível perdido”. xix Essas transformações possibilitaram que a emissora carioca, especialmente, acolhesse artistas e intelectuais daquela estrutura de sentimento.

Vestígios da continuidade e do declínio de uma estrutura de sentimento

Para mostrar a continuidade e o declínio daquela estrutura de sentimento na indústria cultural, optei por construir uma história a partir de vestígios. Neste sentido, Barbosa e Ribeiro desenvolvem uma interessante metodologia. Para as autoras, baseadas no pensamento de Heller xx , “a tarefa da história não é recuperar o passado tal como ela se deu, mas interpretá-la com base em vestígios que podem, numa da realidade cultural, ser lido como mensagem” xxi , sendo interpretadas criticamente pelo presente. O vestígio é considerado algo significante, que se constitui de documentos e de memórias. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4

Sem vestígios não há passado. Então, para se contar uma história, é preciso que sejam investigadas as pistas deixadas para o presente. A adoção dessa perspectiva, certamente, fornece ótimos ganhos para os estudos da comunicação. No caso desta pesquisa, é preciso aproximar a teoria tratada anteriormente e a metodologia que está sendo descrita surge da vontade de evitar as tentações de uma contextualização mais ampla sobre o impacto da televisão na estrutura de sentimento dos filmes do Cinema Novo e partir para a materialização disso em textos e imagens. O Globo Repórter xxii , originada do Globo-Shell Especial , lançada em 14 de novembro de 1971, foi exibido pela primeira vez, em caráter experimental, em 3 de abril de 1973 xxiii . Fruto da série de documentários, o programa ocupou o horário das 23 horas da terça-feira. Em função do grande sucesso, no final de 1974, o programa foi transferido para as 21 horas, logo depois da novela, o que aumentou a visibilidade do programa. Estava entre os desz programas mais assistidos da televisão brasileira xxiv . Em sua primeira década de existência, o Globo Repórter contou a participação de diversos cineastas. xxv O diretor do que seria o segundo filme do Centro Popular de Cultura (CPC) xxvi em Theodorico, o Imperador do Sertão uma liberdade formal que o livrou da voz em off , dos planos curtos e do volume exacerbado de depoimentos. O filme é centrado apenas em um personagem, com muitos planos longos e uma narração que pertence inteiramente ao próprio ‘major’ xxvii Theodorico Bezerra, o que era “bastante raro nos documentários brasileiros do período, especialmente na televisão”. xxviii Exibido em 22 de agosto de 1978 como um o Globo Repórter Documento xxix , o filme surge de um alerta do cartunista Henfil sobre a influência do major no interior de Pernambuco. “A equipe do Globo Repórter fez uma reportagem sobre esse homem que já foi deputado federal e vice-governador, além de presidente do Partido Social Democrático (PSD) do Rio Grande do Norte”. xxx Com 75 anos, ele ainda exercia o domínio completo de suas terras e das pessoas que o cercavam. O cineasta viajou para a fazenda de Irapuru, a 100 quilômetros de Natal, a fim de traçar um perfil de Theodorico. Falando diretamente para a câmera sobre o convite para “ser televisionado, tudo dentro de uma simplicidade”, ele começa a explicar que a sua doutrina para os colonos de sua fazenda consiste em “pouca conversa e trabalho, trabalho, trabalho”. Estão expostas as relações de poder entre o “major” e seus empregados. O coronelismo foi representado num programa de televisão, mas com a devida complexidade, sem associar Theodorico à vilania e o “povo” ao sofrimento digno dos heróis. Theodorico é sedutor e carismático, até chora quando lembra da mulher, já falecida. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5

Coutinho ainda mostra a autoridade de Theodorico, que obriga os empregados a votarem, que criou uma lista de regras que tem de ser seguida e que organiza, anualmente, um desfile para exibir os produtos de sua fazenda. Como ele diz: “enquanto os militares desfilam suas armas no sete de setembro, eu desfilo meus bois”. No lugar do povo, Coutinho se esforça para construir um retrato da elite por meio da figura de Theodorico, fazendeiro e político, que, como ele mesmo diz, a palavra que se aplica a ele é “fiz”: “Fiz estábulo, fiz escola, fiz estrada (...). Fiz, fiz, fiz”. Ele credita a si mesmo o desenvolvimento da região e do interior do Rio Grande do Norte. Enquanto Theodorico passeia, imponente, montado num cavalo, pela sua fazenda, sua voz em off afirma que todos os moradores têm um quadro em sua casa com uma lista de regras que dão condições para que elas possam viver na fazenda. Ele as enumera: É proibido aos moradores dessa propriedade: andar armado; tomar aguardente ou qualquer bebida alcoólica; jogar baralho ou qualquer outro jogo; fazer feira em outra localidade que não seja Irapuru; trazer pessoas estranhas à fazenda; sexto: usar instrumentos de trabalho como arma; sétimo: brigar com seus vizinhos ou outra qualquer pessoa; oitavo: fazer quarta doente; nono: fazer baile sem consentimento do proprietário; décimo: criar seus filhos sem aprender a ler e escrever; onze: falar mal da vida alheia e doze: inventar doença para não trabalhar.

Sob os olhares atônitos dos moradores de um das casas da fazenda, ele lê no quadro a observação final das regras que criou: “O morador que não cumprir os mandamentos terá 24 horas para deixar a sua casa e esta fazenda”. Theodorico revela que a intenção é das melhores: “fazer o controle para que não haja desordem”. Eduardo Coutinho pergunta ao major se a observação é cumprida no caso de alguém burlar as regras. Theodorico, para responder, pergunta a uma das moradoras: “Há tempo você está aqui? Porque não quer sair daqui?” Ela responde: “Há 29 anos. Aqui em tenho de tudo, só saio daqui pro cemitério”. Feliz, o major ri. É interessante reparar, como observa Lins xxxi , o esforço da montagem foi perceber que a realidade estava sendo criada pelo fazendeiro: Em outro momento quando o major fala da felicidade de quem vive no campo, na sua fazenda, a montagem ‘comenta’ o que ele diz com um plano-sequência mostrando as expressões tristes de uma família enfileirada. Essas foram decisões tomadas durante o processo de montagem com o objetivo de contradizer enfaticamente o que o fazendeiro fala, de desmascará-lo diante do espectador.

É um desmascaramento que não tem a intenção de conceber o Thedorico como o “diabo do sertão”. Isto porque a opção do cineasta não foi a criar de um personagem que represente o coronealismo, repleto de “rígidos traços típico-socias”. Interessou ao cineasta expor a “visão de mundo ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 do personagem, o ponto de vista específico que ele tem sobre o mundo e sobre si mesmo”. xxxii Isto fica evidente, uma vez que é o próprio major que, nas conversas com Coutinho, com seus empregados e amigos, vai construindo a realidade e fundamentando a sua razão de ser, sem que o filme precise declarar sua posição, com avaliações conclusivas, sobre o que é dito e visto. O diretor escolheu levantar a questão, dando conta de um caso bem específico, sem cair em maniqueísmo. O documentário, além de escapar do padrão do próprio Globo Repórter , conseguiu perceber elementos mais complexos na relação entre o dominador e seus dominados, que já no título posiciona- se criticamente. Ainda atual, está presente no documentário a falta de perspectivas sociais e econômicas no nordeste brasileiro que, em muito, deve-se à manutenção do coronealismo como modo de dominação. João Batista de Andrade xxxiii , tentando dar continuidade ao projeto abandonado com o fim de Hora da Notícia , da TV Cultura , procurava investir numa linha documental em que pudesse ser abordado “os problemas vividos pelo povo brasileiro naquele momento”. xxxiv Ele pretendia que “a imagem do Brasil real ocupasse a tela elitista e ilusória dos aparelhos de TV”, xxxv diferindo, assim, da posição de “neutralidade por meio da obsessão pela técnica” da Rede Globo. O documentário Wilsinho Galiléia , seguindo a linha de misturar depoimentos e encenação, para contar a história do criminoso Wilson Paulino da Silva, que, desde os 14 anos, vinha colecionando mais de 15 homicídios e diversos assaltos à mão armada e que, um mês depois de atingir a maioridade, foi fuzilado numa emboscada da Polícia, que invadiu a casa onde estava refugiado. Divido em duas partes, o programa iria ao ar às 21 horas do dia 31 de outubro e do dia sete de novembro. Na primeira, apresentaria o mito: o bandido no imaginário de vizinhos, conhecidos, transeuntes e policiais. Na segunda, seriam apresentadas entrevistas com Ramiro, de 13 anos, irmão de Wilsinho, também acusado de crimes de morte; a visita de sua mãe aos outros três irmãos presos na Casa de Detenção, os outros Galiléia e, finalmente, a morte de Wilsinho reconstituída pelo depoimento de testemunhas e de atores, além de mostrar o seu bairro, a sua casa, hoje demolida. Como de costume, os produtores do Globo Repórter enviaram o programa um dia antes de sua exibição, para a Censura do Rio, como contou Paulo Gil Soares na matéria do Jornal Brasil , intitulada “Wilsinho Galiléia - censura explica a proibição: ‘não é filme para entrar em casa de família”. Mas, desta vez, ela não teve autonomia para fazer a liberação do programa, que foi enviado para Brasília, no mesmo dia em que iria ser exibido. Depois de muita insistência, cinco censores (normalmente ia um) foram à sede da emissora no Jardim Botânico e solicitaram que Wilsinho Galiléia só fosse exibido às 23 horas – e não às 21 horas quando o programa ia ao ar tradicionalmente. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7

Atendendo a esta modificação, a Rede Globo “ontem mesmo havia colocado chamadas do Globo Repórter no ar, avisando os telespectadores do novo horário”. xxxvi Às 16 horas, veio o comunicado oficial de que o programa não poderia ser exibido. Rogério Nunes, chefe da Censura Federal, respondeu ao jornal que o filme foi proibido “devido à sua mensagem não se adaptar para a televisão”. xxxvii Ele ainda completa que o documentário também não poderia ser exibido no cinema. Mesmo assim, a emissora solicitou a avaliação do então ministro da Justiça, Armando Falcão, mas ele confirmou: “esse filme não vai passar nas casas da família brasileira”. Mantinha-se aqui a imagem ideal de família como aquela que estava presente em diversos filmes educacionais da ARP, especialmente. Como explica Carlos Fico xxxviii , a imagem da família “não poderia ser de outra forma: pais e mães eram entendidos, acima de tudo, como ‘educadores dos lares’, que deveriam buscar, em relação aos filhos, o ‘fortalecimento do caráter nacional”, da moral e dos bons costumes, o que não se aplica, de maneira nenhuma, à família de Wilsinho, que não poderia ser retratada e exibida para milhares de casas de família, podendo influenciá-las negativamente com tão mau exemplo. O caráter de denúncia do programa impressionou o chefe da Censura Federal, ao dizer que o filme não se adapta à televisão xxxix , ele cobra da Rede Globo a submissão de se calar diante dos problemas sociais do Brasil. Criticado pela direção da emissora, depois de consumada a censura, por ter sido parcial demais, ao “não ouvir as famílias das vítimas do bandido Wilsinho, transformando-o, assim, em uma espécie de herói intolerável” para um programa da importância do Globo Repórter , João Batista afirmou: “[São] tolices oportunistas que mal escondiam o medo e o desejo de desviar a culpa do inimigo, - poderoso demais-, para um outro, dentro de casa, passível de ser enfrentado, mesmo que envergonhadamente”. xl João Batista acha que o problema foi pelo fato de o episódio ter questionado a própria busca de independência da TV em relação ao Estado e, principalmente, a “abertura política”, que já vinha sendo alardeada pelo governo Geisel, mas que efetivamente não existia. Segundo ele, a principal conseqüência para o Globo Repórter foi a paulatina saída de cineastas para a predominância de repórteres de vídeo, encerrando uma rica experiência de casamento entre TV e cinema brasileiros. O cineasta lembra que uma seqüência do filme causou bastante polêmica. Foi aquela em que, intercalada com imagens – dramatizadas por atores – que mostram a violência dos atos do criminoso e ele brincando num parque de diversões, traz também vizinhos e seus conhecidos do bairro da periferia de São Paulo, falando entre outras coisas que “ele era matador, mas também era ser humano” como tantos “outros wilsinhos galiléias” xli que querem ir ao baile, mas não tem dinheiro, como revela um menor infrator. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8

João Batista disse, antes da censura ao filme: “Wilsinho morre. Fica Wilsinho. Apesar de seu cadáver sepultado na Vila Formosa e chorado pela mãe, uma das cenas mais tocantes do filme. Apesar de terem demolido sua casa no bairro, para não restar mais nem lembranças de sua vida”. xlii A censura proíbe a exibição. João Batista de Andrade se desliga da Rede Globo. Somente anos depois, na Mostra “Cinema na TV” do Festival Internacional de Documentários – É Tudo Verdade (2002), o documentário foi exibido.

Considerações finais

No primeiro exemplo, percebemos críticas à realidade brasileira próprias da estrutura de sentimento da qual o diretor fazia parte: a denúncia da exploração do povo sertanejo e a necessidade de transformações na estrutura de poder do país, por exemplo. O filme faz isso com uma sofisticada análise das complexas relações entre dominador e dominados. Mesmo que em alguns momentos, a edição desnude o mundo que está sendo construído pela fala de Theodorico, há um esforço de não cair no maniqueísmo mais simples. Tais contradições sociais foram veiculadas pela televisão, que, como indústria cultural, faz das idéias mais críticas sobre a sociedade se tornarem mercadorias. Mas elas estiveram lá e esta é a complexidade xliii . Entretanto, acredito que estes cineastas como os outros artistas de esquerda (Dias Gomes, Paulo Pontes e Vianinha, por exemplo) não tinham a ilusão de um uso revolucionário da televisão como haviam feito com a arte noutros tempos. Eles, porém, expunham criticamente alguns problemas do país, mais como uma denúncia individual do que como um projeto coletivo. Wilsinho Galiléia , ao fazer isto de uma maneira mais radical, encontra o seu limite na censura, dada a importância da televisão para a manutenção do imaginário nacional da época. Se houve alguma continuidade, também percebemos o declínio. As obras daqueles cineastas na televisão perdem o adjetivo “revolucionário”, mas conservam “aspectos de defesa da brasilidade que marcarão a indústria cultural brasileira”. xliv Em um novo contexto, ficou, cada vez mais difícil que a “estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária” existisse; ela tornou-se um “precipitado”. Cabe, agora, a busca por mais vestígios da presença de cineastas de esquerda na televisão.

i RIDENTI, Marcelo. “Artistas e intelectuais pós-1960”. In Tempo Social , Revista de Sociologia da USP, pp. 81-110. São Paulo, USP, 2005. ii BARBOSA, Marialva e RIBEIRO, Ana Paula Goulart. “Telejornalismo na Globo: vestígios, narrativa e temporalidade”. In BOLAÑO, César e BRITTOS, Valério Cruz (orgs). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia . São Paulo, Paulus, 2005. iii WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura . Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 131. iv Ibid., p. 133. v Ibid., p. 134. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 9

vi Ibid., p. 136. vii RIDENTI, op. cit., p. 81-82. viii O “romantismo revolucionário” é mais desenvolvido e aplicado em relação aos movimentos sociais e artísticos revolucionários em Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV (2000), do referido autor. ix RIDENTI, op. cit., p. 85. x Cf. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV . São Paulo, Record, 2000, p. 33-42. xi Sobre este aspecto, consultei BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967; SALLES GOMES, Paulo. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento . São Paulo, Paz e Terra, 1995; e XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno . São Paulo, Paz e Terra, 2001. xii RIDENTI, 2005, p. 95. xiii ANDRADE, João Batista de. “O povo fala: um cineasta na área de informação da TV brasileira”. São Paulo, USP, 1998. (Tese para Doutoramento Direto em Ciências da Comunicação), p. 26. xiv RIDENTI, op. cit., p. 98. xv Para uma análise mais detida do gênero dominante e de maior sucesso de público do cinema brasileiro dos anos 1970, consultar ABREU, Nuno Cesar de. “Boca do Lixo – cinema e classes populares”. Campinas, Unicamp, 2002. (Tese de Doutorado em Multimeios) e SIMÕES, Inimá. O Imaginário da Boca . São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, 1981. xvi Sobre esta discussão, baseio-me em AMÂNCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: cinema estatal brasileiro em sua época de ouro (1977-1981) . Niterói, EdUFF, 2000; JORGE, Marina Soler. “Cinema Novo e Embrafilme: cineastas e Estado pela consolidação da indústria cinematográfica brasileira”. Campinas, Unicamp, 2002. (Dissertação de Mestrado em Sociologia) e RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e lutas culturais (anos 50/60/70 ). São Paulo, Paz e Terra, 1983. xvii WANDERLEY, Sonia. “O campo televisivo e a política nacional”. In: XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), Rio de Janeiro, 2005, p. 13. xviii Baseio-me nos trabalhos de CARVALHO, Elizabeth et al. Anos 70 – televisão . Rio de Janeiro, Europa, 1980; KEHL, Maria Rita. “Eu vi um Brasil na TV”. In COSTA, Alcir Henrique; KHEL, Maria Rita e SIMÕES, Imaná. Um país no ar: a história da TV brasileira em três canais . São Paulo, Brasiliense/Funarte, 1986, pp. 169-276; OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa de. "Nossos comerciais, por favor!": a televisão brasileira e a Escola Superior de Guerra: o caso Flávio Cavalcanti . São Paulo, Beca, 2001, p. 25-48; ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira - cultura brasileira e indústria cultural . São Paulo, Brasiliense, 2001, p. 113-148. xix Isto é demonstrado nos trabalhos de MIRA, Celeste. Circo eletrônico: o Sílvio Santos e o SBT . São Paulo: Olho d'agua/Loyola, 1995 p. 30-52; e WANDERLEY, Sonia. “A construção do silêncio: a Rede Globo nos projetos de controle social e cidadania (décadas 1970/1980)”. Niterói, UFF, 1995. (Dissertação de Mestrado em História), p. 78-110. xx HELLER, Agnes. Uma teoria da história . Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993. xxi BARBOSA e RIBEIRO, 2005: 206. xxii Foram três núcleos de produção. O Núcleo de Reportagens Especiais, sediado no Rio de Janeiro e dirigido por Paulo Gil Soares. Em São Paulo, a Divisão de Reportagens Especiais, criada em 1974, coordenado por João Batista de Andrade e por Fernando Pacheco Jordão e a Blimp Filmes , produtora de Guga Oliveira, irmão de Boni, que contribuía desde o Globo Shell. Todos os núcleos eram submetidos a , diretor da Central Globo de Jornalismo (CGP). xxiii Em 1973, são lançado, em abril, o Globo Repórter e, em agosto, o Fantástico – o Show da Vida , duas experiências distintas de jornalismo, mas que se enquadram na estratégia da emissora de elevação do nível de qualidade (Wanderley 1995: 91-110). xxiv O Globo , 02/12/1974, p. 56. xxv São eles: os cariocas (David Neves, Eduardo Coutinho, Geraldo Sarno, Gustavo Dahl, Paulo Gil Soares - também diretor do Globo Repórter - e Walter Lima Júnior) e os paulistas (João Batista de Andrade, Maurice Capovilla e Renato Tapajós). xxvi Cabra Marcado para Morrer tinha o objetivo de reconstituir de João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, que fora assassinado a mando de latifundiários. Iniciadas em fevereiro de 1964, as filmagens são interrompidas. Era o golpe militar. Depois, o cineasta participou, como roteirista, de longas como A Falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967), de Leon Hirzman (o principal contato de Coutinho com o núcleo central do Cinema Novo); Lição de Amor (1975), de Eduardo Escorel; Os Condenados (1973), de Zelito Vianna; e Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto. Ele dirigiu o episódio O Pacto do longa-metragem ABC do Amor (1966) e os filmes O Homem Que Comprou o Mundo (1968) e Faustão (1971). xxvii Assim como o título de coronel, o de major é legado das patentes concedidas pela Guarda Nacional aos latifundiários do nordeste no século XIX. xxviii LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo . Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, p.22. xxix De acordo com a temática do documentário ou das reportagens exibidas, o programa tinha diferentes assinaturas: Atualidades, Pesquisa, Futuro, Documento e Arte. xxx Folha de São Paulo , 22/08/1978, 28. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 10

xxxi LINS, op. cit., p. 28-29. xxxii Ibid., p. 24. xxxiii Antes de entrar na televisão, o cineasta havia dirigido o documentário Liberdade de Imprensa (1967), uma produção do Grupo Kuatro, cineclube formado por estudantes da Escola Politécnica da USP que contava com apoio da UNE, que foi apreendido pelo Exército no Congresso da UNE em 1968, “ficando praticamente desconhecida por mais de 20 anos” (Andrade, 2002: 253), e Gamal, o Delírio do Sexo (1971). Concomitante a esta experiência, ele lançou Doramundo (1975) e, depois, O Homem que Virou Suco (1979). xxxiv ANDRADE, João Batista de.“Uma trajetória particular”, in Estudos Avançados 16(46). São Paulo, USP, 2002, p. 262. xxxv CAETANO, Maria do Rosário. João Batista de Andrade: alguma solidão e muitas histórias . São Paulo, Imprensa Oficial, 2004, p. 185. xxxvi Folha de São Paulo , 01/11/1978, p.28. xxxvii Jornal do Brasil , 02/11/1978, p.09. xxxviii FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: propaganda, ditadura e imaginário no Brasil . Rio de Janeiro, FGV, 1997, p. 132. xxxix Jornal do Brasil , 31/10/1978, p. 09. xl ANDRADE, 1998, p.67. xli Folha de São Paulo , 01/11/1978, p.28. xlii Folha de São Paulo , 30/09/1978, p. 28. xliii Entendo, como faz Ridenti (2000: 328), que: “Sem subestimar o poder da indústria cultural de fazer uso das idéias mais críticas para reforçar-se, parece-me que ela é portadora de contradições que não lhe permitem dar conta do mascaramento total da realidade em que se insere”. xliv RIDENTI, 2005: 99.