Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

A METALINGUAGEM EM QUADRINHOS: ESTUDO DE CONTRE LA BANDE DESSINÉE DE JOCHEN GERNER

Maria Clara da Silva Ramos Carneiro

Tese$ de$ Doutorado$ apresentada$ ao$ Programa$ de$ Pós2Graduação$ em$ Ciência$ da$ Literatura$ da$ Universidade$ Federal$ do$ Rio$ de$ Janeiro$ como$ quesito$ para$ a$ obtenção$do$Título$de$Doutor$em$ Ciência$ da$ Literatura$ (Teoria$ Literária)$

Orientador:$ Profa.$ Ana$ Maria$ Amorim$de$Alencar$

Rio de Janeiro Março de 2015

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A metalinguagem em quadrinhos: estudo de Contre la bande dessinée de Jochen Gerner Maria Clara da Silva Ramos Carneiro Orientadora: Professora Doutora Ana Maria Amorim de Alencar

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária).

Examinada por: ______Presidente, Profa. Doutora Ana Maria Amorim de Alencar – UFRJ ______Prof. Doutor Ricardo Pinto – UFRJ ______Prof. Doutor Fabio Akcelrud Durão – UNICAMP ______Prof. Doutor Jacques Dürrenmatt – Paris-Sorbonne ______Prof. Doutor José Benjamin Picado – UFF ______Profa. Doutora Martha Alkimin de Araujo Vieira – UFRJ (Suplente) ______Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes – UFRJ (Suplente) Rio de Janeiro Março de 2015

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RESUMO

Contre la bande dessinée, do autor francês Jochen Gerner, compõe-se de citações em torno das histórias em quadrinhos, às quais Gerner “responde” com desenhos. Em uma espécie de colagem de textos e imagens em justaposição, Gerner cria um efeito estético e epistemológico que demonstra seu posicionamento ético sobre os quadrinhos e sua crítica. É uma obra que coloca em jogo os próprios códigos que a constitui, em uma metalinguagem em quadrinhos recorrendo às práticas literárias e artísticas do acúmulo, do inventário, da assemblage e da citação. A presente tese analisa esse livro a partir de uma matriz teórica pós-estruturalista e contemporânea francesa. Palavras-chave: história em quadrinhos, literatura, citação, montagem, crítica.

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ABSTRACT

Contre la bande dessinée, by Jochen Gerner, is a critics book about comics (bande dessinée), whose raw material were quotations gathered by Gerner who tried to “answer” them by drawing. It is a kind of collage of texts and images juxtaposed, what creates aesthetical and epistemological effects, by positioning this book ethically against and within (contre and tout contre) its object: the critics on comics. Contre la bande dessinée questions the codes of comics itself, using the artistic and literary practices of the inventory, the assemblage, and the quotation. This thesis analyses Gerner’s book from a post-structuralist, contemporary French theoretic basis. Key words: bande dessinée – montage – literature – critics – quotation

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RÉSUMÉ

Contre la bande dessinée, de Jochen Gerner, est un livre critique autour de la bande dessinée dont la matière première a été des citations recueillies par Gerner, auxquelles il “répond” en dessinant. Il s’agit d’une espèce de collage de textes et d’images en juxtaposition, ce qui crée un effet esthétique et épistémologique en positionnant l’ouvrage éthiquement contre et tout contre son objet, la critique de la BD. L’ouvrage met en jeu les codes mêmes qui la constituent, un métalangage en bande dessinée qui fait recours aux pratiques littéraires et artistiques de l’accumulation, de l’inventaire, de l’assemblage et de la citation. La thèse ci-présente analyse le livre de Gerner à partir d’une matrice théorique poststructuraliste et contemporaine française. Mots-clés: bande dessinée – montage – littérature – critique – citation

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AGRADECIMENTOS

À CAPES e ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, pelo apoio e concessão das bolsas (no Brasil e na França) sem as quais essa pesquisa não existiria. À Escola Doutoral Conceitos e Linguagens, da Universidade Paris-Sorbonne, por me receber como doutoranda visitante. Aos professores Ricardo Pinto e Fabio Durão, pela crítica essencial durante a qualificação e por aceitarem, mais uma vez, avaliar meu trabalho. Ao Professor Benjamin Picado, pela prontidão, mesmo longe. Ao Professor Jacques Dürrenmatt, pelo apoio e solicitude desde antes da confecção do projeto da presente tese, e por me integrar ao Groupe de Recherche sur le Neuvième Art (GRENA), de onde muitas ideias profícuas surgiram. A Anamaria Skinner, Marcelo Jacques de Moraes, a Martha Alckmin, Flavia Trocoli e Danielle Corpas, pela disposição e pelo encorajamento. À minha orientadora Professora Ana Alencar, pela acolhida incondicional, pela sagesse nos meus momentos de desespero, e em todos os outros momentos também. A todos minha profunda gratidão pelo trabalho da leitura e dos conselhos, me ajudando a ver as lacunas em minha tendência fragmentária. Aos colegas do GRENA, aos oulipianos, aos oubapianos e a tantos pesquisadores com quem pude travar discussões e divagações, aprender e me inspirar. Sendo impossível nomear todos os amigos feitos a partir das “histórias em quadrinhos”, nomeio André Dahmer como representante dessa turma. Foi quem primeiro me recebeu como leitora e amiga, quem me pôs ali “no meio”. A Bruno, Chico, Chris, Guilherme, Lobo, pela aprendizagem, pela paciência. Aos meus pais, à minha vó Sirinha, a Davide e a Andrey, pela boa vontade, pelo apoio psicológico, financeiro e amoroso que me permitiram sobreviver a mim mesma.

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“PARA KILLOFFER Sem quem esta obra não teria sido possível”

Patrice Killoffer, 676 apparitions de Killoffer, 2002.

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SUMÁRIO

RESUMO'...... 'iii$ ABSTRACT'...... 'iv$ RÉSUMÉ'...... 'v$ AGRADECIMENTOS'...... 'vi$ SUMÁRIO'...... 'viii$

1$ Introdução ...... 11$ 1.1$ A'vontade'de'tese:'o'encontro'com'quadrinhos'literários'...... '11$ 1.2$ Apresentação'do'corpus'...... '16$ 1.3$ O'contexto'histórico'...... '25$

2$ A forma do livro: o raciocínio gráfico em CLBD ...... 40$ 2.1$ O'título:'“Contre”'ou'“tout'contre”'...... '42$ 2.2$ A'mise'à'l’œuvre:'o'“miolo”'do'livro'...... '45$ 2.3$ O'estilo'...... '62$ 2.4$ A'enunciação'gráfica'...... '66$ 2.5$ O'caráter'visual'da'escrita'...... '84$

3$ Choses lues et entendues: uma antologia de frases alheias ...... 104$ 3.1$ A'função'da'citação'...... '104$ 3.2$ As'citações'em'CLBD'...... '109$ 3.3$ O'efeito'de'autoridade:'O'valor'da'assinatura'e'a'citação'...... '135$

4$ Uma crítica oubapiana ...... 153$ 4.1$ Lúdico'e'conceitual'...... '153$ 4.2$ Metalinguagem'em'quadrinhos'...... '169$ 4.3$ Ceci'n’est'plus'une'BD'...... '178$

5$ A articulação de imagens solidárias ...... 187$ 5.1$ A'lista'e'o'ready&made'...... '187$ 5.2$ Justaposição'e'artrologia'...... '196$ 5.3$ A'montagem'...... '202$ 5.4$ Que'discursos'sobre'a'história'em'quadrinhos?'...... '213$ 5.5$ Nota'biográfica:'um'projeto'autoral'de'análise'por'princípio'...... '220$

6$ Conclusão ...... 232$ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 236$

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ANEXO'1:'BIBLIOGRAFIA'E'EXPOSIÇÕES'DE'JOCHEN'GERNER'...... '246$ ANEXO'2:'ENTREVISTA'COM'JOCHEN'GERNER'...... '249$ ANEXO'3:'LISTAS'DE'DADOS'EM'CLBD'...... '265$ ANEXO'4:'AUTORES'CITADOS'EM'CLBD'...... '270$ ANEXO'5:'ADENDO'AO'CAPÍTULO'2.5'...... '277$

LISTA DE FIGURAS, QUADROS E GRÁFICOS ...... 279$

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Figura 1: Branchages (2002-2008), de Jochen Gerner

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1 Introdução

A presente tese, em primeiro lugar, analisa o livro Contre la bande dessinée,1 do ilustrador e autor de histórias em quadrinhos (bande dessinée) francês Jochen Gerner, obra que se faz relevante para compreender as especificidades da “linguagem” sob a qual se enquadra: a da história em quadrinhos (francesa e contemporânea). Em segundo lugar, pretende demonstrar como a constituição desse objeto cria uma metalinguagem singular. A história em quadrinhos poderia ser ligeiramente definida como um suporte comunicativo ou artístico particularmente ligado ao imaginário infantil, linguagem visual que pulula os mais diversos espaços, relacionada tão facilmente à cultura de massa que seria praticamente incoerente separar-se dela. Ao mesmo tempo em que estaria em toda parte, seria vista como linha tangente fora do círculo cultural, minorada por seu caráter popular e de aparente facilidade. Tais argumentos são sistematicamente contestados por defensores que, muitas vezes, porém, acabam por nivelar toda uma produção como uma só “arte”. E como se a palavra arte, por si só, autorizasse a entrada da história em quadrinhos no círculo de onde estaria excluída. Contre la bande dessinée parte dessas contradições (dentro ou fora, arte ou diversão, cultura ou seu lixo) para elaborar uma reflexão sobre os discursos em torno do meio (suporte, ambiente, gueto) e se apresenta como se fosse uma história em quadrinhos.

1.1 A vontade de tese: o encontro com quadrinhos literários

Meu interesse por histórias em quadrinhos surgiu durante o mestrado: submersa no Roland Barthes amador (dos Fragmentos de um discurso amoroso à Câmara clara, “RB” pintor nas horas vagas, apreciador de Cy Twombly e Saul Steinberg, e da escrita à mão, da grafia sem significado2), um amigo me sugeriu ler “Os Malvados”, de André Dahmer. Seus traços caminhavam ainda mais para a simplificação visual: repetindo com poucas alterações as mesmas tiras de três quadros a cada dia, contendo por vezes até dois quadros idênticos em cada uma, mudava-se apenas o texto sarcástico e de teor político ou sociológico.3 A ideia da tese me veio, então, da vontade de ler essa espécie

1 GERNER, J. Contre la bande dessinée. Paris: L’Association, 2008, p. 74. Doravante, para efeitos de 2 Cf. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla PERRONE-MOISÉS. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 3 Fórmula que consagrou seu autor como o mais conhecido na então nascente websfera brasileira. André Dahmer inaugurou seu blog www.malvados.com.br em 2001, na internet “discada”, e em 2004 foi

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de linguagem partindo da língua de Barthes, e foi ainda pesquisando a obra do crítico francês na Médiathèque da Maison de France que me deparei com os livros En ligne (s): carnet de dessins téléphoniques (1994-2002), de Jochen Gerner (Ampoule, 2003) e Le Dormeur, de Lewis Trondheim (Cornélius, 2003). O primeiro continha apenas rabiscos recolhidos durante alguns anos pelo autor, feitos enquanto estava “ao telefone”, reproduzindo a escrita automática da espera.4 O segundo livro repetia um único quadro em todas as tiras, de três quadros cada, e um dorminhoco falava banalidades ou profundidades a um interlocutor invisível (Figura 2).

Figura 2: Le Dormeur, de Lewis Trondheim

A simplicidade dos traços de Dahmer, Gerner e Trondheim não subtrai a potencialidade de seus objetos de trabalho: pelo contrário, ela participa de um projeto de proceder pelo mínimo para a criação de um efeito tanto humorístico quanto estético – os mais importantes autores do humor gráfico francês e brasileiro optam, desde os anos 1960, por tal procedimento elíptico, de poucas linhas (Wolinski, Millôr, Henfil). O caráter que liga e destaca Trondheim a Dahmer seria a ênfase na repetição sistemática (iteração icônica), que se torna elemento preponderante do estilo de ambos. Outro ponto em comum seria a ausência de uma punch line (chute) hilariante como é esperado pelo gênero “humor gráfico”, da obrigação de haver uma piada imediatamente identificável. Dahmer e Trondheim, que aparentemente trabalhariam com esse gênero de humor verbo-icônico, acabariam por deixar o leitor desnorteado: o primeiro discorre publicado o primeiro livro reunindo as tiras publicadas anteriormente em seu website (Os Malvados. Rio de Janeiro: Desiderata). 4 Como indica sua quarta-capa: “A orelha colada no aparelho, a mente em parte ocupada, a mão desenha maquinalmente sobre um caderno. De linha em linha, a presente obra reúne nove anos de traçados automa-telefônicos. Como uma cartografia provável – mas não definitiva – do inconsciente”. [L’oreille collée au combiné, l’esprit en partie occupé, la main machinalement dessine sur un carnet. De ligne en ligne, cet ouvrage regroupe neuf années de tracés automa-téléphoniques. Comme une cartographie probable – mais non définitive – de l’inconscient”]. A Figura 1 apresenta exemplo de exercício semelhante, em um segundo volume do projeto En ligne (s), iniciado em 1994.

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atrocidades não buscando o riso, sim o choque; o segundo usa como recurso humorístico a simples ideia da inércia de seu personagem imutável. Iriam eles na contramão da narrativa com seus personagens inertes? Gerner, por outro lado, não conta histórias – seus trabalhos pessoais estudam determinados temas, sua obra contém poucos exemplos de narrativas. Haveria neles um desejo de subversão através do código mesmo que usam? Eles trapaceariam a estrutura esperada de uma tira de jornal ou obra em quadrinhos, que aparentemente deve servir ao gozo rápido de um leitor pouco exigente. Posteriormente, deparei-me com outros livros de autores franceses, e interessei-me, naquele momento, pela editora fundada em 1990 por Trondheim e outros seis – L’Association, o a primeira a publicar os trabalhos de Jochen Gerner. A casa faz parte de toda uma geração de pequenas editoras que continuam a fomentar uma série de renovações estéticas do livro de quadrinhos francês.5 Os fundadores da L’Association explicitam suas referências diretas aos surrealistas e ao Oulipo, Ouvroir de la Littérature Potentielle (“Oficina de Literatura Potencial”) fundado em 1960 por François Le Lionnais (1901-1984) e Raymond Queneau (1903-1976). Tais quadrinhos teriam certo viés literário, dada a sua ênfase nas relações discursivas entre imagem e texto, em um desejo de subverter estruturas vigentes (do código e, em alguns momentos, dos discursos de poder), para além do simples entretenimento como se supunha ser a tônica preponderante desse tipo de suporte verbo-icônico. Meu objetivo geral, portanto, seria o de tentar definir de que forma alguns quadrinhos poderiam ser vistos como literários, quais efeitos estéticos e éticos estariam ligados a tais práticas. Como desdobramento desse objetivo, me propus verificar a metalinguagem em histórias em quadrinhos, a noção de autor e como nelas se opera o deslocamento entre significante/significado que permitiriam uma leitura poética de determinadas obras, usando Contre la bande dessinée como material de análise. Além de autor de história em quadrinhos, Jochen Gerner também é artista plástico e extremamente interessado pela relação das artes visuais com a literatura, o cinema e a arquitetura. Sobretudo, ele se apropria de um dado material para criar, a partir dele, uma espécie de análise em imagens, sendo suas constantes o recobrimento – tinta recobrindo um material de base (por exemplo, na Figura 3) – e o inventário – acumulação de itens a partir de um ponto comum (como na Figura 4).6 Jochen Gerner também exerce a função

5 Les Requins Marteaux e Cornélius fundadas em 1991, Le Dernier Cri de Pakito Bolino em 1992, ego comme x e 5e couche (5c) em 1993, Fréon e a Amok – hoje sob o acrônimo FRMOK –, criadas em 1994 por grupos distintos e unificadas nos anos 2000. 6 Como exemplos de recobrimento: TNT en Amérique (2002), que se apropria de imagens de Tintin en Amérique (1932, 1949 em versão colorida) de Hergé, deixa expostas apenas figuras em relação à violência; Panorama du Feu (2009) e Panorama du Froid (2013), o primeiro partindo de gibis anônimos

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de professor universitário, animando esporadicamente oficinas de criação de quadrinhos para pessoas não necessariamente íntimas com esse objeto. Ele se define como “ilustrador oulipiano”, referindo-se ao OuLiPo e suas contraintes (restrições) e é membro do OuBaPo, Ouvroir de la Bande dessinée potentielle, sobre os quais explorarei mais no capítulo 4. A escolha do Contre la bande dessinée seria uma resposta a essas vontades, e por esta ser uma obra completa, de apenas um autor, tornando possível ver uma uniformidade estilística – além do fato de ser uma reflexão explícita em torno das histórias em quadrinhos.7 O desenho e a letra, o desenho como escrita, o trabalho a partir de restrições, a mise en abyme em histórias em quadrinhos são, portanto, os afetos a partir dos quais se desenha esta tese.

das décadas de 1950, o segundo de cartas postais de lugares “quentes”. Le Saint Patron (2004), um levantamento iconográfico sobre o santo padroeiro de sua região, São Nicolau; Grande Vitesse (2009), caderno de anotações de objetos que ele via pela janela do trem em viagens diversas; Contre la bande dessinée (2008), catálogo de frases ouvidas ou lidas sobre a história em quadrinhos. Para uma lista completa das obras e exposições de Jochen Gerner, ver anexo 1, p. 262 e ss.. 7 A sugestão de trabalhar apenas um livro como corpus me foi feita pela banca examinadora de qualificação, composta pelos professores Ana Alencar, Fabio Durão e Ricardo Pinto, a quem muito agradeço a clareza em seus conselhos.

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Figura 3: TNT en Amérique (2002) Figura 4: Saint Patron (2004)

Prosseguindo meus estudos na Iniciação Científica e no Mestrado,8 mantenho como minha matriz teórica os autores Roland Barthes e Jacques Derrida, tratando-se a presente pesquisa de uma análise semiológica das histórias em quadrinhos. Mais recentemente, incorporei ao meu aparato metodológico minhas leituras do teórico das imagens George Didi-Huberman, de quem tomo de empréstimo a noção de montagem, crucial para depreender a dialética oferecida pela leitura das páginas de Contre la bande dessinée. Falo justamente pois o método de trabalho de Gerner se constrói no confronto entre discursos, cujo resultado não idealiza uma síntese harmônica e irredutível –, apontaria, inversamente, para um devir aporético, da leitura por entre as linhas. Suas obras analisam o contexto em que se inserem, nos mais diversos níveis (estético, cultural, linguístico, social, econômico). Minha hipótese de trabalho, portanto, seria a de que Contre la bande dessinée aprofundaria tais questionamentos em um engajamento pela forma, a de uma história em quadrinhos hors-normes, em uma dialética que se inicia pelo espaço táctil do livro, se desdobra de seu dispositivo por inteiro, até a justaposição dos elementos sobre a página. Como descreveu o editor do livro, o debate, ali, ocorre em quadrinhos, diretamente com sua matéria-prima. Não haveria, segundo ele, o transporte do objeto

8 Luto e escritura em A Câmara Clara, de Roland Barthes, defendido em 2007 no Programa de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras/UFRJ, sob orientação da Professora Anamaria Skinner; o projeto de mestrado constitui-se como uma sequência da iniciação científica também dirigida pela Profa. Skinner.

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para outro nível discursivo: CLBD analisaria a linguagem dentro da linguagem, em uma mise en abyme particular.9 A metodologia se pautou pela pesquisa bibliográfica sobre as histórias em quadrinhos, pelo levantamento e análise de estudos críticos sobre as teorias da narrativa e da imagem, pela análise da obra estudada e das obras que se inserem no mesmo contexto histórico e artístico, pela realização de oficinas e seminários sobre as histórias em quadrinhos; pela participação em cursos, seminários e conferências sobre o tema, pelas reuniões de pesquisa com minha orientadora Ana Alencar e pela realização de estudos doutorais – no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura e em estágio de bolsa-sanduíche na Escola Doutoral Conceitos e Linguagens da Universidade Paris-Sorbonne, sob orientação do Professor Jacques Dürrenmatt.

1.2 Apresentação do corpus

O livro Contre la bande dessinée: choses lues et entendues, publicado em fevereiro de 2008, é o oitavo livro da coleção intitulada Éprouvette. Uma obra singular, construída sob a forma de uma lista extensa e organizada pelo autor, de comentários “ouvidos por aí”, “lidos em algum lugar”, durante anos, no contexto francês. Ele não precisa exatamente quando começou a recolhê-los. Em Contre la bande dessinée, Jochen Gerner elabora um pensamento crítico sobre tal linguagem, a partir dos tópicos recorrentes nas discussões sobre histórias em quadrinhos, recebendo, cada tópico, um capítulo específico: 1) objetos, 2) cenários e cores, 3) personagens, 4) narrativas, 5) jovens leitores, 6) mediocridade, 7) sexo e violência, 8) censura, 9) festivais, 10) exercícios, 11) cultura, 12) literatura, 13) cinema e televisão, 14) teatro e ópera, 15) música, 16) novas tecnologias, 17) arquitetura, 18) desenho e 19) arte. A construção da página, no entanto, atua de forma constelar, com citações e comentários ilustrados pelo desenho icônico e irônico de Gerner em um trabalho lúdico. De seu desenho emana reminiscência de livros técnicos e didáticos ilustrados. Porém, a distribuição dos itens sobre a página – sem uma hierarquia ou sequência explícita – torna a leitura bastante hermética, sobretudo por conta da enorme quantidade de referências pictóricas ou textuais. Seu título já nos dá pistas sobre o projeto da obra: “Contra as histórias em quadrinhos”, um manifesto para rebaixá-la? Revestindo-a de um teor de manifesto o título, todavia, pasticha aquele do livro Contre Sainte-Beuve, de Marcel Proust, e sua epígrafe é diretamente retirada da mesma obra. O livro de Proust é conhecido por ser

9 MENU, Jean-Christophe, entrevista feita por Xavier GUILBERT. JC Menu. Du9 (29 de Janeiro de 2009).

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uma crítica à crítica, uma forma de um ensaio que acompanhou sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido. CLBD remete, de fato, ao embate constante de uma geração de autores que se propuseram a transformar a linguagem das histórias em quadrinhos. Eles queriam ampliar as potencialidades linguísticas e plásticas de suas publicações, e muitos se engajando em discussões sobre o status das histórias em quadrinhos na indústria cultural, dos quadrinhos enquanto arte, a figura do autor e a noção de estilo. Gerner também participou da L’Éprouvette, revista que visava uma nova crítica das histórias em quadrinhos, para “produzir um posicionamento em relação à história em quadrinhos sendo autor de história em quadrinhos, pela história em quadrinhos.”10 Pretendi investigar, a partir desses dados e da análise do livro, a valorização que Gerner busca das histórias em quadrinhos enquanto uma nova estética (mise en valeur), a prática da metalinguagem em quadrinhos (mise en abyme) e, enfim, o questionamento ético e estético que tais práticas apresentam sobre a linguagem dos quadrinhos em si, no sentido político de resistência à indústria cultural que tais obras elaboram (remise en question). Para Gerner e sua geração, a página é um elemento de reflexão, em que o intervalo (sarjeta), o fragmento, e a disposição colaboram na criação de sentidos. Sua obra Contre la bande dessinée poderia ser compreendida como uma experiência sobre a potencialidade autorreflexiva e poética dos quadrinhos. CLBD é feito de trechos de romances, ensaios, manuais, catálogos, entrevistas, artigos em jornais e revistas, conversas, de programas radiofônicos e televisivos, lidos ou ouvidos por ele. Em entrevista concedida especialmente para esta tese, ele diz: “não fiz frase alguma, só as tomei e classifiquei por temáticas”.11 Sua intervenção foi o ato de reuni-las, dispô-las e “comentá-las” com desenhos. O subtítulo de “choses lues et entendues” e seus créditos pressupõem que todas as citações textuais apresentadas ao longo do livro são ipsis litteris:

As expressões, listas de palavras, as frases ou parágrafos desse livro provém integralmente de conversas ouvidas, de suportes impressos (livros diversos, jornais, revistas e periódicos), de sites da Internet ou de programas radiofônicos e televisivos. (CLBD, p. 133)12

10 Ibidem. 11 “Je n’ai fait aucune phrase, j’ai pris juste des phrases en les mettant par thématiques”. Tradução sob meus cuidados, como todas as presentes na tese, com exceção daquelas provindas de edições brasileiras, cf. referências bibliográficas. Ao longo da tese, reproduzo o texto original das traduções mais longas ou pontuais nas notas de rodapé com as referências. 12 “Les expressions, listes de mots, phrases ou paragraphes de ce livre proviennent intégralement de conversations entendues, de supports imprimés (livres divers, journaux, revues et magazines), de sites Internet ou d’émissions radiophoniques et télévisées.”

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Seu objetivo seria o de dar a ver os usos feitos do termo [bande dessinée] e seus derivados, nos mais diversos meios culturais. Seu livro seria, portanto, uma (re) enunciação composta por uma reunião de enunciados proferidos por enunciadores distintos. A constância de certos valores impressos nessas frases, assim reunidas, aponta para a aparente naturalidade dos mesmos: a partir dessa nova posição, seria possível perscrutar as fissuras desses discursos aparentemente banais. Como um jornalista o apresenta em resenha, seria uma obra estética:.

Eis uma obra original, bem estética, nem história em quadrinhos nem ensaio: o novo livro de Jochen Gerner se apresente como um catálogo ilustrado de referências e de comentários em ligação com a história em quadrinhos. O autor realizou um trabalho de compilação e de colagem, recenseando minuciosamente reflexões tiradas de livros, de jornais, de programas de rádio, TV ou de conversas diversas. Dessa acumulação nasce uma massa de informações esquematicamente organizada por temas. A única implicação de Gerner, em meio a essa classificação, reside em ilustrações que tomam frequentemente de forma literal a frase a qual se liga, mostrando todo o seu absurdo. 13

Estética e de categoria indiscernível, um “nem-nem” – indecidível. Um catálogo (ilustrado) implicaria, por sua vez, uma classificação arbitrária. Ao demonstrar essas frases, Gerner documenta esses discursos (a crítica, o senso comum, os afetos) sobre a matéria discursiva com que costumeiramente trabalha (a bande dessinée). De certa forma, ele protocola uma denúncia sobre como tais enunciados tornam opaca a história em quadrinhos: travam (constrangem) sua compreensão e sua produção. O conjunto das citações chega a demonstrar que os principais “inimigos” das histórias em quadrinhos podem ser seus defensores, presos a clichês. Muitos desses enunciados reunidos por Gerner não apresentam marcas de autor, nem a presença de marcas de citação. As citações, além de mutiladas por aquele que as tira de contexto, nosso autor, são completamente apropriadas por ele. A aderência ou não ao conteúdo de tais citações não está claramente dirigida, suas interpretações desenhadas podem desdenhar-se delas ou aprová-las: em boa parte do livro, caberá ao leitor decidir. Digo ser seu livro “uma antologia de frases alheias” e gostaria de sublinhar tais termos com um marcador fluorescente:

13 DEMETS, Mikaël. “Contre la bande dessinée”. In: EVENE – LE FIGARO, s/d. Disponível em http://evene.lefigaro.fr/livres/livre/jochen-gerner-contre-la-bande-dessinee-33962.php?critiques#critique- evene. Acessado em 27 de março de 2014. Grifos meus. “Voilà un ouvrage original, très esthétique, ni bande dessinée, ni essai : le nouveau livre de Jochen Gerner se présente comme un catalogue illustré de références et de remarques en lien avec la bande dessinée. L’auteur a réalisé un travail de compilation et de collage, recensant minutieusement des réflexions tirées de livres, de journaux, d’émissions radio, télé ou de conversations diverses. De cette accumulation naît une masse d’informations schématiquement organisée par thèmes. La seule implication de Gerner, hormis ce classement, réside dans des illustrations qui reprennent souvent au premier degré la phrase qui leur est liée, montrant toute son absurdité.”

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• uma antologia, pois é, de fato, uma coleção. Como toda coleção, ela respeita um dado critério aleatório, aquele que excita alguém a reunir certos elementos que guardem traços em comum. Uma antologia é um estudo, uma organização a partir da listagem de palavras; presume-se um acúmulo e uma seleção que filtra esse “arquivo”.

• de frases: são enunciados, eventos discursivos que são aqui re-enunciados. Um enunciado depende de um indivíduo (o enunciador), que realiza o enunciado em um evento (enunciação). Esse plural da “antologia de frases” pressupõe enunciações múltiplas, provindas de indivíduos diversos.

• alheias: no sentido ainda desse discurso (enunciado, a frase) ser tomado de outrem. As frases são desapropriadas de seus enunciadores (proprietários), apropriadas pelo autor dessa coleção (Jochen Gerner, aquele que assina o livro). Alheias no sentido jurídico: essas frases têm sua posse tomada por Gerner, desviadas, apartadas de seus proprietários “originários”. Elas estão alhures (ailleurs), em um lugar outro que seu lugar primeiro de enunciação. Dessa forma, elas estão reunidas ali (em Contre la bande dessinée) alheias ao seu evento primário. O discurso, escrito ou proferido, também aliena aquele que o enuncia, “ninguém é pai de um poema sem morrer”, “a escrita é parricida”, “o peixe morre pela boca” etc.. São alheias por serem de um outro (alieno) e por poderem ser (re) ditas malgrado aquele quem a disse (para além do indivíduo-enunciador). A enunciação, sabemos, é um ato voluntário, mas sua citação pode trazer sentidos contrários à vontade de quem a enunciou. Em seus créditos, ele “agradece às pessoas tendo fornecido, voluntária ou involuntariamente, os dados textuais ou picturais para a elaboração dessa obra [CLBD]”. Ao coletar tais frases, Gerner pode nos oferecer novos sentidos aparentemente alienados ou alienantes dessas frases. Entre si, tais enunciados têm em comum algo sobre a bande dessinée, um ponto de partida, o critério para tal coleção, podendo incluir:

• um comentário sobre o tema em si: “o que é maravilhoso nessas histórias em quadrinhos é que podemos dar-lhes diversas interpretações”;

• seus usos: “um uso da história em quadrinhos como suporte pedagógico eficaz e de baixo custo”, “tiras para decifrar (bandes à déchiffrer)”;

• o termo usado como qualificativo: “o tarô: uma história em quadrinhos de coerência matemática”;

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• suas potencialidades enquanto objeto criativo e discursivo: “e aí o educador pode intervir e fazer as crianças refletirem, discutir e trabalhar suas ideias”;

• a assimilação da bande dessinée pela cultura, como ela está inserida culturalmente: “no programa: animações para crianças todas as tardes (maquiagem, jogos de tabuleiro, oficina de iniciação ao circo, desenho e história em quadrinhos...)”.

Figura 5: CLBD, p. 69.

Os comentários “ouvidos por aí”, “lidos em algum lugar”, apresentam conotações potencialmente de variação infinita. Todas as citações acima, provém de uma única página, reunidas sob a rubrica “Exercices” (capítulo 10), na página 69. Além de apresentá-las, Gerner as comenta com seus desenhos, e a imagem emblemática que aparece nessa página é o desenho de seu alter ego pictórico, i.e., o desenho de um tipo em poucos traços e que reproduzem, de certa forma, características da persona Jochen Gerner: longilíneo e de nariz triangular, de poucos cabelos, caricatural (o exagero no tamanho do nariz e nas linhas retas). É o mesmo “personagem”, o mesmo tipo que ele apresenta como sendo seu autorretrato (em seu website, www.jochengerner.com). Esse tipo seria o sujeito a quem o discurso sobre quadrinhos se impõe, e quem, na última página, continua tentando elaborar formas diferentes de confrontar tal discurso (a profusão de balões com matizes diversos e seu alter ego explicitamente feito da mesma matéria que a página, como se saído diretamente do vidro de tinta, que “exprime” enfado (se assim entendermos o pictograma da espiral, também evocando uma irritação, na Figura 6).

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Figura 6: CLBD, p. 131

Digo tipo nos sentidos de indivíduo, de personagem paradigmático e de peça móvel com a função de repetir-se sobre uma superfície. Também na ideia de tipo para Mallarmé, de “motifs juxtaposés”, evocando

... esquemas de aparição e desaparecimento, de presença e de ausência, de dobra e desdobrar. Ora, esses esquemas, essas formas abreviadas ou simplificadas, ele as chama de “tipos”. Ele vai buscar o princípio para uma poesia gráfica: uma poesia idêntica à uma escrita do movimento no espaço [...;] não mais personagens psicológicos mas tipos gráficos.14

O tipo é movente, é motivo que pode ser iterado. Afirmo que figura acima é um tipo e emblemático por sua recorrência ser altamente significativa (disseminativa) para o livro em questão: uma autorreferência é verificável ali. Ele representa a si ou um tipo “autor”: um autor de quadrinhos, em confronto com os discursos que fazem sobre seu material de trabalho (e se é a obra que faz o autor, configura os traços que serão depositados e disseminados em seu nome). Em outras ocasiões, o mesmo tipo está debruçado sobre uma mesa de desenho (pp. 7, 28, 85, 119). Na página 15 (Figura 7), o “autor” é travestido de copista medieval, em uma evocação ao trabalho em coprodução da indústria de quadrinhos, em que a profusão de artesãos na confecção de um único livro (roteirista, ilustrador, colorista, letreirista, arte-finalista, editor) faz desaparecer a figura de um Autor. A figura diametralmente oposta ao autor anônimo também é apresentada nessa página: a ideia do trabalho individual e solitário se expressa pelo revés dessa ordem “tipo à mesa de trabalho”, o mesmo personagem se coloca sob a mesa, e dele sopra um balão com o símbolo da anarquia.

14 RANCIÈRE, Jacques. Le destin des images. Paris: La Fabrique, 2003, p. 108. “... de schèmes d’apparition et de disparition, de présence et d’absence, de pli et de dépli. Or ces schèmes, ces formes abrégées ou simplifiées, il les appelle aussi “des types”. Il va chercher le principe du côté d’une poésie graphique : une poésie identique à une écriture du mouvement dans l’espace [ … ;] non plus des personnages psychologiques mais des types graphiques.”

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Figura 7: CLBD, p. 15

Na ocorrência exibida na Figura 5, seu alter ego lê um álbum de quadrinhos, denotado pelo livro ligeiramente aberto, sendo possível enxergar uma marginação retangular e uma subdivisão que evoca a separação em quadros da página de quadrinhos. Esse livro “expressa” algo, são os dois balões contendo linhas horizontais que simulam frases ilegíveis – o balão é considerado primordialmente o lugar da fala nas histórias em quadrinhos, o espaço discursivo. Esse pictograma, do “balão de fala ilegível” configura-se como outro elemento recorrente nesta obra, e essa figura, ao reunir esses dois tipos conjuga dois elementos fundacionais dessa obra de forma sutil porém de extremo relevo para a tese aqui exposta. Temos, aqui, uma mise en abyme particular a CLBD: em nosso livro, vemos uma referência a nosso autor que lê um livro de história em quadrinhos. Em “silêncio”, sem produzir outra fala (parole), ele nos mostra a cena, apresenta uma cena discursiva: as citações. E ele as cita deixando-as tagarelar, para que vejamos nesse discurso, assim reunido, seus sintomas. No site da L’Association e em seu catálogo oficial, a descrição de Contre la bande dessinée é a que segue:

Jochen Gerner, durante longos anos e prevendo essa obra, recolheu centenas de citações, de opiniões ou trechos de imprensa evocando a História em Quadrinhos, a HQ ou a Agaquê [la Bande Dessinée, la BD ou la Bédé] (opiniões demonstrando em boa parte das vezes desprezo, condescendência, de incompreensão total ou mais profunda besteira), e reorquestrou essa matéria em uma reflexão em imagens que diz muito mais sobre a percepção das histórias em quadrinhos em nossa cultura

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do que qualquer outro manifesto. Era preciso um autor tão lúdico quanto conceitual, tão oubapiano quanto crítico, para conseguir “descrever” com os meios mesmo de seu assunto (a história em quadrinhos) a aberração costumeira com a qual esse meio de expressão está ordinária e vulgarmente percebido.15

Seu “prière d’insérer” – ou press release, o texto criado pelo editor ou autor para “explicar” ou simplesmente “vender” o livro – é decerto um tanto interessante como ambas as oposições se fazem pelo lado do “jogo” (lúdico, oubapiano) e de um exercício linguístico ou metalinguístico (“conceitual” e “crítico”). A descrição das citações que levaram à elaboração de Contre la bande dessinée são inquietantes, de “opiniões demonstrando em boa parte das vezes desprezo, condescendência, de incompreensão total ou mais profunda besteira”; à “a aberração costumeira com a qual esse meio de expressão está ordinária e vulgarmente percebido”. Em entrevista, Gerner é mais cauteloso, e prefere termos como “ahurissant” (“assustador”) termo mais próximo do espanto que a “aberração” acusatória do catálogo da L’Association e do discurso em geral impetrado por muitos de seus autores.16 Uma crítica à crítica, pero sin perder la ternura. Destaquei, na citação acima, os elementos de composição da obra, importantes para a compreensão da mesma: CLBD é um “recueil”, ou seja, uma “coleção” de citações, de comentários ou trechos de textos sobre a “la Bande Dessinée, la BD ou la Bédé”. Friso essa gradação, em si já irônica sobre a percepção das histórias em quadrinhos como gênero restrito a um grupo de admiradores – a “BD” ou a “Bédé” seriam títulos usados costumeiramente pelo “gueto” de histórias em quadrinhos,17 uma simplificação recusada pelos autores “independentes”. As citações seriam, como referido acima, de “desprezo e

15 L’ASSOCIATON. Catalogue. 2011. http://www.lassociation.fr/fr_FR/#!catalogue/auteurs/g/open- auteur/3773/open/79 (acesso em 15 de outubro de 2013). Grifos meus. “Jochen Gerner a, pendant de longues années et en prévision de cet ouvrage, recueilli des centaines de citations, de propos ou d’extraits de presse évoquant la Bande Dessinée, la BD ou la Bédé (propos faisant le plus souvent preuve de mépris, de condescendance, d’incompréhension totale ou de profonde bêtise), et a réorchestré cette matière dans une réflexion en images qui dit en plus long sur la perception de la bande dessinée dans notre culture que n’importe quel pamphlet. Il fallait un auteur aussi ludique que conceptuel, aussi oubapien que critique, pour parvenir à “décrire” avec les moyens mêmes de son sujet (la bande dessinée) l’aberration coutumière avec laquelle ce moyen d’expression est ordinairement et vulgairement perçu.” 16 Para não citar apenas Plates-bandes, de Jean-Christophe Menu, cuja fama é a da verborragia guerrilheira, na L’Éprouvette 2, reproduz-se em fac-símile uma entrevista com Trondheim: “Gostaria muito de limpar o universo da história em quadrinhos dos pseudojornalistas que não sabem nada. Creio que o tempo dos consensos frouxos acabou, para a BD e para o resto. É preciso nomear nossos inimigos, o quão poderosos sejam eles. [J’aimerais bien nettoyer l’univers de la bande dessinée des pseudo- journalistes qui n’y connaissent rien. Je crois que le temps des consensus mous est fini, pour la BD et pour le reste. Il faut nommer nos ennemis, aussi puissants soient-ils.” (L'ASSOCIATION, 2006, p. 386). 17 O termo “gueto”, usado por produtores e consumidores, expressa um certo ressentimento com relação à “cultura” ou “outras artes”. A “divisão”, como Gerner e outros contemporâneos dirão, é em boa parte alimentada por esses mesmos produtores e consumidores. Nas palavras do autor brasileiro Lourenço Mutarelli, explicando em entrevista o porque de preferir, hoje, escrever romances, é que as histórias em quadrinhos “se retroalimentam de si mesmas” (em entrevista ao programa de Rogério Skylab, no Canal Brasil).

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condescendência, de incompreensão total ou de profunda estupidez”, em boa parte do que o autor recolheu. A segunda operação realizada por Gerner seria a “reorquestração” ou “agenciamento”: a distribuição que o mesmo faz de tais elementos recolhidos. De sua reunião, apesar de ser a partir de textos “contra” as histórias em quadrinhos, faria emergir um trabalho autorreflexivo sobre a linguagem, disseminando referências ao seu próprio trabalho, e ao próprio objeto do livro, a história em quadrinhos.

Figura 8: CLBD, p. 120

Na página 120 de CLBD, vemos a bande dessinée examinada por um microscópio, sua “microscografia”. Duas séries dispondo de três vinhetas cada, evocando, ao mesmo tempo, uma disposição de plaquetas contendo microrganismos (sugeridos pela posição próxima a um microscópio e pelas formas insinuando o imaginário dos livros de ciências). As legendas, porém, referem-se a “escolas” de “estilos” de quadrinhos: “retrô”, “linha clara”, “átomo”, “alcatrão” (goudron), “tracinhos”, “minimalista” – uma exposição das diferenças micrológicas da bande dessinée (Figura 8). Há uma alternância entre uso de técnicas (alcatrão, tracinhos) e escolas de estilo (retrô, linha clara, átomo, minimalista) – as representações de cada estilo jogam com os múltiplos significados de cada palavra, retrô assemelhando-se com um retrovírus, a molécula da “linha clara” evoca claramente Tintim e a escola Átomo (de quadrinhos franco-belgas humorísticos) é ilustrada pela imagem típica dos livros de ciências sobre as partículas atômicas. Quem parece observar o microscópio seria uma personagem também ela saída de uma história em quadrinhos, o estereótipo (típica, “secretamente bela”). A leitura desse livro se dá de forma labiríntica, em que é preciso não seguir em uma simples sequência – ideia corrente na leitura de uma história em quadrinhos –, mas em

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um circuito que se espalha de forma constelar – como em um álbum – e que volta, muitas vezes, pelos mesmos elementos.18

1.3 O contexto histórico

Nos anos 1960 e 1970, alguns autores, consumidores de histórias em quadrinhos desde a infância, passaram a tentar burlar a linguagem vista na época como “infantil”, além de uma ênfase em uma busca de um trabalho “autoral”. Nos anos 1980, grandes editoras teriam optado por repetir estratégias de mercado que faziam raras as oportunidades de um autor de fugir ao formato de “álbum”, da desgastada temática aventuresca (fantasia, herói, faroeste) e da obrigatoriedade da cor como sinal de nobreza (distinguindo o álbum – estável – da tira cotidiana em preto e branco – efêmera). Além da imposição de um modelo único, houve um “esquecimento” da tradição das histórias em quadrinhos, seu caráter potencial presente desde os primeiros ensaios do suíço Rodolphe Töpffer ainda na primeira metade do século XIX. Esquecia-se que as histórias em quadrinhos não seriam, obrigatoriamente, narrativas de ação. Ou apenas para crianças. Apesar de o meio estar desde os seus primórdios cercado de inovação artística, a lógica de mercado passou a privilegiar um modelo de trabalho ao longo do século XX. Autores se queixavam de um enclausuramento das editoras em um único estilo. Além disso, essa lógica de mercado levava a um projeto fordista de produção de histórias em quadrinhos, que, por muito tempo, conferia aos autores o caráter de simples funcionários desse modelo. Em seu livro Un objet culturel non identifié, o teórico Thierry Groensteen (2006) – idealizador e fundador do OuBaPo –, enumera as oito principais estratégias que atravancariam as potencialidades do meio: 1. o fenômeno da série, que encerra a história em quadrinhos em um modelo industrial; 2. a estrutura de gêneros (faroeste, fantasia de herói) que repetem estereótipos e posicionam o meio apenas no campo do entretenimento; 3. o formato padrão que confunde os leitores quanto à possível diversidade da produção; 4. a alteração frequente de autores para as séries, que mostraria “o pouco caso que fazem da ‘personalidade criativa’ de cada autor”; 5. a despreocupação com o patrimônio, i.e., a própria história de formação da história em quadrinhos, seu passado, pois sabotariam “toda possibilidade de fundar um processo em legitimação cultural sobre o corpus ad hoc”;

18 Algumas autorreferências pessoais, menções diretas de obras de Gerner ou em parceria com outros autores: TNT en Amérique na p. 45, Saint Nicolas (Le Saint Patron), na p. 77, Comix 2000 e 100.000 Milliwatts, p. 110.

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6. o encorajamento de um imaginário adolescente-masculino afastariam um leitorado feminino; 7. estimulando uma infantilização do público pelas estratégias comerciais ligadas à venda de produtos, os editores contribuiriam ainda mais com “seu enclausuramento em um gueto de iniciados”; 8. a multiplicação de produtos derivados ainda seria responsável pela diluição da “autenticidade das obras em um oceano de merchandising, sem nenhum discernimento quanto aos efeitos em retorno além da notoriedade difusa, assim ganha, pode produzir sobre a percepção de criações originais.”19

Figura 9: CLBD, p. 16

O último item é explicitado por Jochen Gerner em uma das páginas de Contre la bande dessinée (Figura 9), em que ele cita trecho de contrato de edição para um autor de histórias em quadrinhos:

O autor cede a título de direitos derivados e em exclusividade para o editor: - o direito de adaptar ou de permitir adaptar os desenhos ou grafismos da história em quadrinhos (em particular os personagens popularizados pela obra objeto do presente contrato), em vista de sua reprodução e exploração de imagens, e destinados a serem

19 GROENSTEEN, Un Objet Culturel Non Identifié. Angoulême: L'An 2, 2006, pp. 58-59. “L’authenticité des œuvres dans l’océan du merchandising, sans aucun discernement quant aux effets en retour que la notoriété diffuse ainsi gagnée peut produire sur la perception des créations originales.”

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disseminados no comércio em diversas formas: cartazes, pôsteres, brinquedos, porta-chaves [...] Essa lista sendo indicativa e não exaustiva.

De fato, ele foi extraído de um contrato real assinado por Gerner para o livro 100.000 milliwatts (printemps), roteirizado por Diego Aranega (2007).20 “Não é uma história em quadrinhos, é uma obra-prima”, diz o comentário anônimo à lista não exaustiva dos possíveis produtores derivados de um álbum “BD”. Ao constar de um contrato, tal exigência de cessão de direitos sobre os desenhos do autor para desdobrar o livro em produtos parece prescindir a criação da obra. Uma manutenção do colecionismo infantil e infantilizante como parte integrante da leitura (o que não é prerrogativa das histórias em quadrinhos, vide os colecionáveis de filmes, seriados). A predominância do mercado em questão seria de álbuns em capa dura (cartonados), de até 48 páginas, coloridas, e as temáticas seriam sempre próximas (além da necessidade de publicações em série). Essa reinvindicação por uma variedade adulta acontece ainda no final dos anos 1970,21 acentuando a variedade necessária do formato da publicação, como reflexo de seu conteúdo. A brochura seria preferível para esses novos autores por aproximá-los visualmente do campo literário, e para abrir distância entre o formato “álbum”, ligado à infância. Um objeto cultural mal verificado: denunciam Groensteen e vários outros pesquisadores há alguns anos. Embora existam artigos de autores importantes tratando do assunto desde os anos 1960, boa parte da crítica especializada teria se resumido à glorificação do meio em si como uma forma de “arte”, pensamento acompanhado de um recalque generalizado pelo “desprezo” das “outras artes”. Um gueto cultural mal resolvido, cuja estratégia para “dignificar” a expressão passa pelo apagamento das diferenças entre as obras. O editor de CLBD e membro fundador da L’Association, Jean-Christophe Menu, em seu livro-manifesto Plates-bandes (2005), denuncia tratar-se de um corporativismo medíocre, de “mistura de crônicas vazias, de notas para

20 “Alguns parágrafos de meu contrato típico com Delcourt foram diretamente reportados em meu livro pela l’Association [Certains paragraphes de mon contrat-type avec Delcourt ont été directement reportés dans mon livre à l'Association].” (GERNER, Jochen, entrevista feita por Christian ROSSET. “En lignes : entretien avec Jochen Gerner.” Site Neuvième Art 2.0. Janeiro de 2012). 21 Como explicita o editor Jean-Pierre Dionnet ao comentar a coleção Métal Hurlant e a então inauguração da coleção Autodafé, ambas com livros em brochura – não os em capa dura que, na sua opinião, seriam produzidos assim para evitar que crianças estraguem os livros. “Eles são em capa dura, plastificados como livros para crianças. Porque, no começo, a história em quadrinhos era para crianças. Quando o conteúdo mudou, o aspecto não variou, ou pouco [Ils sont cartonnés, glacés comme des livres d’enfants. Parce que, au début, la bande dessinée était pour enfants. Quand leur contenu a changé, leur aspect n’a pas varié ou presque].” (DIONNET, Jean-Pierre (citado por Joe Staline) apud L'ASSOCIATION. Éprouvette. Edição: Jean-Christophe MENU. Vol. 1. 3 vols. Paris: L'Association, 2006).

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colecionadores e de entusiasmo plano que forma a ‘crítica’ BD”.22 A crítica serviria, sobretudo, a uma divulgação do material fabricado pela própria indústria que ainda fomentava tais edições, e serviria apenas a alimentar o “fandom” (termo que designa o universo fechado dos fãs de um determinado produto cultural). Visando sempre o gosto esperado do mesmo leitorado, não contribuíram para qualquer possibilidade de inovação e, com um peso significativo no mercado, acabariam por sufocar os pequenos editores ou autores com ensejo de um trabalho diferenciado. Com algumas exceções, poucos autores conseguiam espaço para inovações artísticas, sobretudo após o encerramento das atividades da Futuropolis dos editores Étienne Robial e Florence Cestac, editora que conseguia publicar certo quadrinho adulto ainda nos anos 1980.23 Após a cessão da Futuropolis para a Gallimard (1987-1988), haveria esse “vazio” do autor que não se encaixasse no padrão temático (herói, fantasia) ou estético (traço “realista”, uso da policromia), a restrição de números de páginas sendo outro empecilho para a publicação de obras fora de padrão. Haveria também um vazio de uma reflexão aprofundada sobre as histórias em quadrinhos. Eles haviam sido capazes de publicar trabalhos de alguns desses autores e de outros um tanto “marginais” frente às linhas de produção em massa e em grandes tiragens. A pesquisadora britânica Ann Miller nota que tal prática seria anterior à Futuropolis:

Em 1978, Casterman, uma editor belga que havia até então se especializado no mercado de bande dessinée para crianças (incluindo os álbuns de Tintim) e literatura religiosa, lançou sua nova revista (À Suivre) [(A Seguir), entre parênteses]. Casterman quis assegurar um leitorado adulto, e (À Suivre) foi lançada como uma revista de prestígio na qual os autores teriam a liberdade para desenvolver histórias com extensão muito maior que o padrão de 48 páginas. Elas eram chamadas “novelas em bande dessinée” e divididas em capítulos, para enfatizar suas qualidades literárias. O primeiro editorial proclamava: “Com sua profundidade novelística, (À Suivre) vai representar a explosão da história em quadrinhos em direção à cena literária” (Mougin, 1978: 3). A decisão de usar preto e branco também simbolizava um produto com ambições artísticas, embora a partir da edição nº 25, a cor se alastrou por ela.24

22 MENU, Op. cit., p. 45: “mistura de crônicas vazias, de notas para colecionadores e de entusiasmo plácido que forma a ‘crítica’ de BD [mélange de chroniques vides, de notes pour collectionneurs et d’enthousiasme plat qui forme la ‘critique’ BD]”. 23 Teria sido no seio da Futuropolis que surgiria uma primeira tentativa de uma análise crítica mais profunda das histórias em quadrinhos, com a revista STP de Thierry Lagarde (1977), como Menu mesmo comenta em artigo da L’Éprouvette (Cf. AMELINE, Charles. “Généalogie d’un interdiscours sur la bande dessinée: II. L’élaboration d’un discours adapté à un médium pluriel.” Du9. janeiro de 2009.). 24 Miller, Ann. Reading bande dessinée: Critical Approach “to French-language Comic Strip. Bristol: Intellect Books, 2007. Grifos nossos. “In 1978, Casterman, a Belgian publishing house which had hitherto specialized in the children’s bande dessinée market (including the Tintin albums) and religious literature, launched its new magazine (À Suivre). Casterman wished to secure an adult readership, and (À Suivre) was launched as a prestige magazine in which authors would be given the freedom to develop stories over a much greater length than the standard 48 pages. These were called ‘novels in bande

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Sublinho no trecho citado as características básicas dessa empreitada do renascimento estético das bande dessinée25 francófona: leitorado adulto, liberdade em termos de número de páginas e formato físico do livro, o surgimento dos “romances” em quadrinhos em que a ênfase literária será dada não apenas pela temática mas pela divisão interna em capítulos como em um romance, e a preferência pelo preto e branco para enfatizar, por sua vez, o grafismo da obra. No caso da coleção Éprouvette, a forma literária é aludida pela forma do livro e pela ênfase metalinguística operada por seus autores. Em 1987, o centro cultural de Cerisy-la-Salle, cujo castelo abriga há cerca de sessenta anos importantes colóquios da intelectualidade francesa, foi cenário do evento “Bande dessinée: récit et modernité” [Quadrinhos: narrativa e modernidade]. Organizado por Thierry Groensteen, diretor, na época, da revista Les Cahiers de la bande dessinée (1984-1988).26 Além de ter propiciado diversas discussões sobre a linguagem dos quadrinhos, o evento possibilitou o encontro de Jean-Christophe Menu e Laurent Chabosy, ou como é conhecido hoje o supracitado Lewis Trondheim.27 O primeiro teria aprendido a fazer quadrinhos de forma autodidata – Menu chega a afirmar, em sua tese, que os quadrinhos foram sua primeira língua escrita, sua “língua materna”. O segundo, apesar dos estudos, mal sabia desenhar; ambos se interessavam pela experimentação. Uma das primeiras publicações feitas pela dupla consistia na repetição dos poucos quatro quadros, combinando-os sucessivamente e de diversas formas, alterando-se apenas o texto. Um trabalho mínimo em que a combinatória serviria a potencializar a criação de histórias, um exercício praticamente oulipiano – ou oubapiano – por antecipação, como se falaria posteriormente.28

dessinée’ and divided into chapters, to emphasize their literary qualities. The first editorial proclaimed: ‘With its novelistic depth, (À Suivre) will represent the explosion of bande dessinée onto the literary scene’ (Mougin 1978: 3). The decision to use black and white also symbolized a product with artistic ambitions, although as from edition no 25, colour did creep in.” 25 A pesquisadora britânica faz uso do termo bande dessinée em sua obra como uma distinção prática dos comics americanos, estes, por sua vez, seriam as publicações em formato fisicamente reduzido, de qualidade de impressão mais barata, coloridos, cujas histórias são em geral ligadas a temas de aventura e a produção gerenciada pelos syndicates. A produção em massa desses comics implica em uma distribuição de tarefas (roteirista, desenhista, colorista, arte-finalista, letreirista...) em que a figura de um autor termina por ser disseminada ou até desaparecer na recepção final do produto. A bande dessinée ainda concentraria em poucos essa figura, mesmo que os autores mais contemporâneos tendam a valorizar aspectos artísticos que fariam destes mais autorais que as gerações precedentes. (Cf. Ibidem, “Introduction”, p. 12. O debate sobre a figura do autor para os contemporâneos está explicitado a partir do capítulo 4.) 26 A revista foi fundada em 1969 por Jacques Glénat (Cf. MORGAN, Harry, e Manuel HIRTZ. Le Petit critique illustré. Guide des ouvrages consacrés à la bande dessinée. Paris: P.L.G., 2005.). 27 Cf. La Bande Dessinée et son double. Paris: L'Association, 2011, p. 214, sua tese de doutorado que testemunha seu desenvolvimento como autor, editor e crítico de histórias em quadrinhos. 28 TRONDHEIM & MENU. Moins d’un quart de seconde pour vivre. Paris: L’Association, 1991.

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Mais tarde, reunidos com outros cinco autores interessados em publicar narrativas para além das histórias de fantasia e cowboy, fundaram a L’Association, 29 que empregaria estes preceitos: quadrinhos como laboratório de valorização de sua própria linguagem, quadrinhos como invenção constante. Com o sucesso de crítica e vendas de Persépolis, a autobiografia em quadrinhos da iraniana Marjane Satrapi,30 eles seriam reconhecidos para além do gueto dos amadores de histórias em quadrinhos. Grandes editores tradicionais passaram a tentar publicar histórias nesse “formato”, quer seja ele chamado quadrinho “adulto”, “roman graphique”, quadrinho “independente” ou a “nouvelle bande dessinée”. Esse novo “gênero” abrangeria obras em formatos diversos, em histórias mais longas, um distanciamento do realismo figurativo das histórias de fantasia de herói e inovações estéticas (expressionismo em David B., arte conceitual nos trabalhos de Jochen Gerner), diálogos verborrágicos ou histórias mudas, flerte com o literário pelas vias da autobiografia, dos automatismos surrealistas, além de exercícios de estilo. A inovação dessa geração de autores impôs uma nova espécie de quadrinhos, renovando também as relações entre editores e autores, cada vez mais conscientes sobre seu meio de produção. L’Association surge junto a outras editoras fundadas no mesmo período na França e na Bélgica, a princípio chamadas “Independentes”, nomenclatura próxima ao indie rock, como uma alternativa à história em quadrinhos industrial.31 A aura indie explica-se também por essa geração ser a mesma que viveria o do it yourself da cultura punk, que elege o “fanzine” (ou, simplesmente, o zine) como espaço livre de criação e distribuição, vontade análoga aos nossos poetas e desenhistas de mimeógrafo. Como muitos desses “independentes” lembram em entrevistas,32 eles eram (e ainda seriam) apenas pequenos editores que buscam se manter no mercado com obras para as quais não existia ainda um público definido, o de histórias em quadrinhos de apelo literário ou artístico. São autores-editores para quem a criação das novas estruturas microeditoriais responderia a esse vazio,33 vontade geracional em continuidade com a

29 David B., Mattt Konture, Mokeït, Patrice Killoffer e Stanislas. Alguns deles já haviam sido publicados pela Futuropolis. O nome “L’Association” é justamente por ser uma associação subjugada à lei francesa conhecida como lei 1901, que dispõe que duas pessoas podem fundar uma associação sem fins lucrativos. Sendo uma editora, seu lucro deve ser revertido para sua própria gestão. Além de ter sido imaginada gerida por sete autores diferentes, ela é acompanhada por seus “adhérents” (membros associados), que colaboram com uma cotização anual e podem participar das assembleias anuais. 30 Publicada entre 2000 e 2003, em quatro volumes; edição integral publicada em 2007. 31 GROENSTEEN, Op. cit., p. 74. 32 Cf. a série de entrevistas “Les 7 familles de la bande dessinée”, disponível em: http://www.pastis.org/jade/association1.htm. (JADE. Les 7 familles de la bande dessinée, 1998). 33 Como afirma o editor da Le Dernier Cri, contemporânea da L’Association, Pakito Bolino: “Acho que todo mundo respondeu mais ou menos à mesma coisa: a gente produz imagens, e não consegue encontrar editor, e se dá conta de que tudo está bloqueado, então começa a montar uma estrutura. Depois, o que acontece, é que no fim de vários anos as óticas das pessoas muda, quando isso começa a se tornar bizness

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linha fomentada por Robial e Cestac. Eles, por sua vez, podem ser vistos como resultado natural das inovações de ordem autoral iniciadas pela geração da Hara-Kiri, dos anos 1970.34 L’Association teria recebido um certo destaque, sobretudo, pelo que o próprio Jean- Christophe Menu chamou de uma “automitificação” desde o começo, 35 inspirada também nos surrealistas e em outras vanguardas, apresentando-se fotografados, desenhados, com brindes para os leitores fidelizados através da participação da “associação” L’Association. Ainda que menos radical que outras editoras da mesma geração em termos estéticos, sua constituição, pública, em que sua própria história é costumeiramente reencenada e debatida, fez dela a mais visível das editoras dessa geração.36 Enfatizo a tomada de posição do seu então principal editor, Jean-Cristophe Menu, como um dos principais antecedentes de Contre la bande dessinée e, de certa forma, uma de suas bases críticas. Xavier Guilbert, editor chefe da revista eletrônica Du9, comenta assim o trabalho de Jochen Gerner: “Todo o trabalho de Jochen Gerner em particular, quer seja a tipologia de capas dos álbuns da Soleil, ou seu trabalho sobre Tintim, permanece a apropriação do meio e mostrar suas potencialidades em carregar um pensamento teórico”.37 Tomar posição ou produzir um posicionamento implica em um enfrentamento a um dado

[sic], porque sempre tem uma hora que se dorna bizness [Je pense que tout le monde répond à peu près la même chose : on fait des images, on n’arrive pas à trouver d’éditeur, on se rend compte que tout est bloqué, donc on se met à monter une structure. Après, ce qui se passe, c’est qu’au bout de plusieurs années les optiques des gens changent, quand ça commence à devenir du bizness, parce qu’il y a toujours un moment ou ça devient du bizness].” (BOLINO, Pakito, e Caroline SURY, entrevista feita por JADE. Les 7 familles de la bande dessinée: les kamikazes, 1998). 34 Os fundadores da Hara Kiri, filhos da Resistência francesa, fizeram parte da primeira geração a fazer uso sistemático de quadrinhos dirigidos apenas a “adultos”. Provavelmente por terem participado da primeira geração a crescer lendo quadrinhos, fenômeno não restrito aos franceses (algo análogo se verifica no Brasil do Pasquim, no underground americano). Surgidos em meio a censuras – fechados nos anos 1970 e ressurgidos com o nome Charlie Hebdo, é extremamente traumático e simbólico que essa tese se conclua à época do fuzilamento de alguns de seus autores, aos 7 de janeiro de 2015, bodes- expiatórios das veias abertas do declínio ocidental. 35 MENU. Op. cit., 2011, p. 214. 36 Como afirma o crítico português Pedro Moura, “arvorar L’Association a um zénite na ausência de um enquadramento maior, que abarcasse outros projectos como a ego comme x ou a Amok+Fréon, não abona à clareza dos contornos conseguidos. Citemos o que escrevemos em correspondência com a autora [Referindo, se justamente, a emails trocados entre esta que produz a tese e Moura.] “O ‘corte’ que L’Association faz é menos radical do que esses outros agentes da banda desenhada contemporânea francófona: essa casa editorial, aliás, confirmam muitos dos pressupostos desenvolvidos nos anos 1960 e 1970 de um crescimento ‘literário’, sem com isso querer dizer que a parte visual foi descurada, claro está”. MOURA, Pedro. LerBD, 25 de Março de 2013. http://lerbd.blogspot.com.br/2013/03/historias-em- quadrinhos-diante-da.html (acesso em 21 de Maio de 2013). 37 A revista Du9, cujo acervo de entrevistas seria talvez um dos mais importantes na área das histórias em quadrinhos, existe desde os anos 1990, e tem seu nome como uma referência a um dos epítetos para as histórias em quadrinhos, a “nona arte”. Texto original da citação referida: “Tout le travail de Jochen Gerner en particulier, que ce soit sa typologie des couvertures des albums de Soleil, ou son travail sur Tintin, cela reste s’approprier le médium et montrer aussi ses potentialités à porter une pensée théorique.” MENU. Op. cit, 2009. Guilbert menciona o texto “Femmes nues + arme”, publicado na L’Éprouvette 2 e o livro TNT en Amérique (Ampoule, 2002).

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elemento histórico; posicionar-se é situar-se no tempo, marcar sua relação com um passado e também produção de conhecimento. Como escreve o teórico Georges Didi- Huberman, na introdução de seu livro Quand les images prennent position (2009):

Para saber é preciso tomar posição. Nada simples em um gesto. Tomar posição, é se situar duas vezes no mínimo, sobre duas frentes no mínimo que comporta toda posição, posto que toda posição é, fatalmente, relativa.38

Marca-se posição por ruptura ou por continuidade, “diante dessa coisa, é preciso contar também tudo aquilo de que nos desviamos, o campo fora de visão [hors-champ] que existe atrás de nós”, podendo tanto implicar seu autor em uma dada linha discursiva quanto a distancia-lo.39 É nesse sentido em que se constrói a coleção Éprouvette, situando-se para além, como uma ruptura, de um modo de ler as histórias em quadrinhos. Um trabalho de resistência política verbalizado primeiramente por Jean- Christophe Menu de forma mais direta, no supracitado Plates-bandes: após a ruptura estética elaborada por diversos autores de histórias em quadrinhos durante os anos 1990-2000 na França, os editores tradicionais de histórias em quadrinhos tentariam se apropriar das mesmas formas de produção, de uma maneira que levaria a um esvaziamento de tal estética pela profusão de um modelo “vencedor”. E o texto de Menu dirige-se, acusatório, tanto a editores quanto a críticos de histórias em quadrinhos.40 Desde os anos 1950, há um padrão dos livros de quadrinhos: a cores, capa dura, de 48 páginas, normalmente: o 48CC (couleur, cartonné), termo cunhado por Menu.41 Os quadrinhos dos jornais, em preto e branco, seriam, no senso comum, a tira barata e apressada em contraponto aos “álbuns” luxuosos, as “BDs”, e a impressão colorida ainda marcaria a nobreza do álbum contra o jornal. Quando a banda desenhada ganha sua “emancipação”, seu reconhecimento como adulta, os livros também mudam de formato. Livros enormes que nem cabem nas prateleiras padronizadas para quadrinhos. Porém, entre os anos 1980 e 1990, os editores especializados em quadrinhos optariam

38 “Pour savoir il faut prendre position. Rien de simple dans un geste. Prendre position, c’est se situer deux fois au moins, sur les deux fronts au moins que comporte toute position puisque toute position est, fatalement, relative.” 39 “... devant cette chose, il nous faut aussi compter avec tout ce dont nous nous détournons, le hors- champ qui existe derrière nous” (DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 12). 40 Plates-bandes é contemporâneo (ou o estopim) de certas mudanças que ocorriam na editora, como muitos de seus autores-fundadores decidindo por deixar a administração da casa, cedendo cada vez mais espaço para que Menu tomasse as rédeas de seu controle administrativo e editorial. Menu defendeu sua tese de doutorado no dia 8 de janeiro de 2011. Na semana seguinte, os funcionários da pequena e importante editora declaravam greve, acontecimento que tomaria grandes proporções até culminar em uma Assembleia pública, cuja transcrição também seria transformada em um livro-fetiche distribuído aos membros. Após o retorno dos membros fundadores à administração da L’Association, Menu se retiraria e anunciaria L’Apocalypse, sua nova editora. 41 MENU. Op. cit., 2005, p. 25.

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pela prerrogativa do modelo 48CC para todas as obras. O conteúdo, por sua vez, giraria sempre em torno dos limitados temas. Histórias com heróis, seriadas, dos mesmos gêneros de sempre: “medievo, policiais, velho-oeste, ficção científica, etc..” Menu observa que a norma absoluta que se impõe aos quadrinhos apresentados nos mais recentes festivais é o “48CC/HF/KK”,42 sendo HF o gênero que predomina nas novas produções (fantasia de herói) e KK (caca) seria a sigla para o que ele pensa da qualidade dessas obras e essas formas como cláusula pétrea das publicações em quadrinhos. O título do livro é seguido da data “janeiro de 2005” – evocando aquele período preciso, buscando uma ruptura formal contra o tal processo vigente. “O livrinho vermelho-sangue de Jean-Christophe Menu”43 consistia em uma denúncia sobre uma ausência ou uma deficiência da crítica de quadrinhos francesa frente a obras como as publicadas pela L’Association e seus congêneres. Ainda relatava a erupção de um processo (tornado evidente posteriormente) de grandes editoras apropriando-se dos elementos criativos desenvolvidos pelos pequenos editores, criando novas coleções abrangendo essa nova geração de autores. Para Menu, esse processo levaria a uma implosão dessa vanguarda que eles teriam ajudado a fundar, quando as pequenas editoras, fagocitadas pelas grandes, conheceriam uma crise que levaria à destruição daqueles que teriam iniciado tal renovação. Imitados pelos editores comerciais, os micro-editores enfrentariam maiores dificuldades para fazerem seus livros conhecidos pelo público: cristalizava-se uma vontade de subversão, banalizada pelas antigas estruturas editoriais. Plates-bandes seria literalmente traduzido tanto como um canteiro de plantas quanto como “molde” dentário, figura que é expressa pelo hors-texte do livro – as figuras que introduzem cada capítulo –, ilustrações anatômicas de uma boca que constam como as poucas imagens dessa obra em prosa. A expressão “marcher sur les plates-bandes de quelqu’un”, por sua vez, designa a apropriação indevida, a expressão-título. Remonta-se a uma acusação de crime de lesa-propriedade contra a instituição “bande dessinée” francesa tal como constituída então (entre editores e imprensa especializada). Porém, a palavra “plat” (plano, chato) evoca ainda a sensação de platitude dessa instituição. A falta de posicionamento crítico, tais tiras (bandes) plácidas, sem correr riscos, petrificadas por um confortável molde de mercado, lesionariam a potencialidade dessa linguagem.44

42 Ibidem, p. 27. 43 GERNER, Jochen. “9e Art(press). In: L’ASSOCIATION. L’Éprouvette, 1. Paris: L’Association, janeiro de 2006. (pp. 273-275), p. 274. 44 O termo instituição aqui empregado está no sentido em que Christian Metz elaborou sobre em seu livro sobre o imaginário cinemático. “A instituição cinemática não é só a indústria do cinema [...], também é a

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Como Menu explica em La Bande dessinée et son double (2011), a polêmica que ele fomenta nesse primeiro livro da coleção Éprouvette marcaria seu retorno a uma escrita crítica. Ele a teria abandonado em comum acordo com outros membros de L’Association, tendo ralhado bastante entre 1986 e 1990. Ele marca sua vontade de posicionar-se politicamente, descrevendo em seu livro como o mercado tradicional estaria tentando alimentar-se dos procedimentos narrativos realizados por esses autores (o real, o autobiográfico, o sonho), vulgarizando e pulverizando uma possível vanguarda instaurada nos anos 1990, a dos “Independentes”. Suas afirmações não agradaram a todos – nem alguns autores da editora, e fomentou uma briga virulenta.45 O objetivo da coleção Éprouvette que integra Plates-bandes e CLBD, por sua vez, seria de fato o de dar espaço a uma teorização sobre quadrinhos, de permitir uma reflexão crítica sobre as histórias em quadrinhos. Existindo desde o fatídico janeiro de 2005, ainda seria o espaço privilegiado de uma espécie de metacrítica no seio desta editora. O título “Éprouvette” significa, literalmente, “o tubo de ensaio” (“cadinho”). O sufixo “-ette” indica um diminutivo e é uma das marcas da editora L’Association: a sonoridade próxima ao infantil (posto que diminutiva) compõe substantivos sem um caráter diretamente ligado às obras de cada coleção, com exceção, talvez, da própria L’Éprouvette.46 Em vez de capas contendo desenhos, como esperado de uma coleção de uma editora de histórias em quadrinhos, o padrão da Éprouvette lembra aquele de obras monográficas, quase universitárias, apesar das cores fortes de cada capa (Figura 10). Sobres as mesmas, não há desenhos afora o logotipo da L’Association, a hidra de sete cabeças.

maquinaria mental – outra indústria – na qual os espectadores ‘acostumados com o cinema’ internalizaram historicamente, e a qual os adaptou para o consumo de filmes. (A instituição está fora e dentro de nós, de forma indistinta, coletiva e íntima, sociológica e psicanaliticamente...).” Dois maquinários trabalham na criação de uma instituição, a indústria (a máquina externa) e a construção psicossocial, a psicologia do espectador (a máquina interna). No caso das histórias em quadrinhos, há um ensejo institucionalizante pelas práticas da indústria livreira, e os desdobramentos em festivais, clubes de fãs poderiam ser vistos como a parte mais visível dessa máquina externa. METZ, Christian. The Imaginary Signifier: Psychoanalysis and the Cinema. Tradução: Celia BRITTON, Annwyl WILLIAMS, Ben BREWSTER e Alfred GUZZETTI. Indiana University Press, 1982, p. 8). Trecho original: “[The] cinematic institution is not just the cinema industry […], it is also the mental machinery – another industry – which spectators ‘accustomed to the cinema’ have internalized historically and which has adapted them to the consumption of films. (The institution is outside us and inside us, indistinctly collective and intimate, sociological and psychoanalytic.)”. 45 Cf. L'ASSOCIATION, Quoi ! Paris: L'Association, 2013, livro que reúne testemunhos de alguns dos autores fundadores e amigos sobre os vinte anos da editora, ainda no ardor das brigas internas e a reestruturação da casa. 46 Coleções: Ciboulette, Mimolette, Éperluette, Espôlette, Côtelette, além da Patte de Mouche, a revista Lapin e os Oupus do OuBaPo.

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Figura 10: Os primeiros livros e as revistas da coleção Éprouvette.

Os títulos da coleção vêm, em geral, acompanhados de definições ou subtítulos nada habituais às coleções de histórias em quadrinhos, como “ensaio” ou “insulto".47 A revista L’Éprouvette, não sendo a única publicação do gênero a surgir no período, materializaria uma “emanação” dessa vontade de reformar o discurso sobre e em quadrinhos em detrimento da placidez da mídia especializada sem qualidade.48 Seu objetivo seria demonstrar como a história em quadrinhos poderia ser tratada por uma crítica de verdade, sobretudo obras que fugiriam ao esperado pelo mercado tradicional. Propunha-se, também, uma “erosão de fronteiras” entre as histórias em quadrinhos e as outras artes. Esses debates tramados ao longo da revista dos anos 2000, além de concomitantes, tornaram-se a matéria bruta de que Jochen Gerner faz uso para seu Contre la bande dessinée. Jochen Gerner publicou dois textos na revista L’Éprouvette (nas duas primeiras edições) – além de algumas intervenções com ilustrações e obras plásticas (colagens, desenhos). Nos textos, podemos depreender um esboço de seus estudos sobre a história em quadrinhos como objeto de uma crítica específica.

47 “Ensaio”, em Désœuvré, de Lewis Trondheim e Mattt Konture, de Pacôme Thiellement; “Insulto”, em L’Art selon madame Godgruber, de Mahler (2005), seguido por L’Art sans madame Godgruber, de Mahler (2008), de subtítulo é “sujeiras” (saillies); “Hantologie”, em Avis d’orage en fin de journée, de (2008) e “Ficção” em Avis d’orage dans la nuit (2011) de Christian Rosset; “Fidèle coutelas”, em Encore un effort, de Alex Baladi (2009). Completam a coleção Pornographe et suicide, de Mahler (2013), Corr&spondance, de Menu e Rosset (2009), e os três volumes da revista L’Éprouvette. 48 “... essa Éprouvette testemunha do fato de que o discurso científico sobre as literaturas desenhadas emana, hoje, dos atores do domínio, editores, autores, teóricos, que mandam os discursos generalistas sobre a BD (aqueles das grandes mídias, das revistas sobre a BD destinadas ao grande pública, os meios de educadores etc.) de volta para sua mediocridade e amadorismo. [... cette Éprouvette témoigne du fait que le discours savant sur les littératures dessinées émane aujourd’hui d’acteurs du domaine, éditeurs, auteurs, théoriciens, renvoyant les discours généralistes sur la BD (ceux des grands médias, des revues sur la BD destinées au grand public, des milieux enseignants, etc.) à leur médiocrité et à leur amateurisme.]” (MORGAN. Mises à jour. 2006. http://theadamantine.free.fr/maj.html (acesso em 4 de junho de 2014)). Para um histórico detalhado das revistas teóricas sobre histórias em quadrinhos na França, ver AMELINE, Op. cit. – assim como os comentários ao artigo na mesma página da Du9.

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De forma sucinta e simples, “Femme nues + arme”, publicado na L’Éprouvette 2, de junho de 2006, lista elementos frequentes nas capas de 74 álbuns da editora Soleil, uma das maiores editoras francesas.49 Gerner nos aponta, com tal inventário, pistas sobre a visível ausência ou pouca visibilidade de autoras ou leitoras do gênero feminino: o mercado francês tradicional de histórias em quadrinhos dedica-se a expor sistematicamente imagens eróticas de mulheres nuas ou seminuas portando armas – antigas, modernas, futurísticas, saciando apenas o imaginário de pessoas do gênero masculino em idade de desenvolvimento sexual.50 Em outro texto, da primeira L’Éprouvette (2006), escrevendo por anáforas – essa forma aliterada de listas – Gerner intercala as expressões “Não entendo” e “Gosto”. Esse trabalho será, talvez, a sua mais direta crítica à crítica do meio bande dessinée, assim como elege aqueles que consideraria fazer parte de seu território da “batalha”. O título do texto, “9e art (press)” faz referência a dois periódicos distintos, a revista 9e Art, sobre quadrinhos51 e Artpress, dedicado à arte contemporânea há 40 anos.52 A segunda revista publicara, no ano anterior, um especial sobre quadrinhos, “Bande d’auteurs”, n. 26, 2005. O título da edição especial faz um jogo de palavras com “bande dessinée” (como aqueles listados por Gerner em seu próprio livro, justapondo diferentes declinações do termo “bande” em CLBD, p. 10). “Bande d’auteurs” é, ao mesmo tempo, tanto laudativa quanto irônica. O termo “autores” em um editorial de uma revista dedicada à arte contemporânea remete à implicância que isso traz para o universo da história em

49 Comprada em 2011 pela Delcourt em 2011, Cf. GUILBERT, 2013. Segundo os dados da Association de Critiques de la Bande Dessinée, em 2005 a Soleil era o quinto maior grupo editorial em termos de números de publicação em países francófonos europeus (250 títulos naquele ano). Em 2013, o grupo na qual hoje se insere, Delcourt, permanece em primeiro lugar no mercado editorial (cerca de 800 títulos). Dados disponíveis em: http://www.acbd.fr/category/les-bilans-de-l-acbd/ (Acessado em 28 de maio de 2014). 50 Esse é um dos temas tratados pelo teórico em GROENSTEEN (2006), um dos pecados mais constantes dos editores que, ao sobrecarregar o mercado de uma mesma tipologia de histórias, não contribuiria para a “saída do gueto” das histórias em quadrinhos, no circuito fechado de adolescentes leitores do gênero masculino. 51 Fundada em 1996 em coedição com a editora L’An2 e o Centre National de la bande dessinée et de l’image (CNBDI) e que atualmente disponibiliza grande parte de sua produção em seu website, além de reunir um banco de teses alimentado por pesquisadores das mais diversas áreas. O título de “nona arte” foi proclamado ainda nos anos 1960, pelo crítico Claude Beylie. Mas foi o teórico e defensor das histórias em quadrinhos Francis Lacassin, quem primeiro escreveu uma obra dedicada à defesa deste epônimo, em seu livro manifesto primeiramente publicado em 1971, Pour un neuvième art, la bande dessinée. Em artigo do dicionário da revista Neuvième Art, o teórico Thierry Groensteen explica a origem histórica do termo, com alguns comentários curiosos sobre a pouca teorização que sustenta tal termo. Ele também explica o título da mesma revista: “O museu da História em Quadrinhos de Angoulême, parte integrante do CNBDI, posteriormente CIBDI [respectivamente, Centre National de la Bande dessinée et de l’Image e Centre International de la Bande dessinée et de l’Image] é, por sua natureza, um dos lugares de legitimação [da bande dessinée]. Não é surpreendente que ele tenha escolhido, para sua revista lançada em janeiro de 1996, o título (curiosamente disponível) de Neuvième Art (Nona Arte).” (GROESNTEEN, Thierry. “Dictionnaire: Neuvième art.” Neuvième art 2.0. setembro de 2012. http://neuviemeart.citebd.org/spip.php?article451 – acesso em 17 de agosto de 2014). 52 Fundada em 1972 por Catherine Millet e Daniel Templon.

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quadrinhos, em que a legitimação como expressão artística passa pelo reconhecimento do desenhista como autor – noção contrária a uma tradição que os relegava ao esquecimento, como meros funcionários de uma indústria editorial. A ironia do “bande” é devida ao fato do termo também traduzir a palavra “bando”, que frequenta o campo semântico de criminosos. Não seria, desde o princípio, uma referência ao eterno jogo de damas entre low art e high art que muitos debates gerou ao longo das últimas décadas?53 O coordenador da edição, o especialista em censura Bernard Joubert, introduz o tema central da revista, restringindo-o à “bande dessinée d’auteur” – locução análoga ao “cinéma d’auteur”. Dessa forma, explicita um projeto artístico para além do comercial, privilegiando-se a geração de autores que se solidificou após 1990, a nouvelle bande dessinée. Gerner, porém, demonstra sua aparente incompreensão sobre os desencontros entre os meios artísticos, uma reclusão da própria história em quadrinhos que não avançaria seu objeto para outras linguagens: “não entendo os grupos [milieux] fechados. Não entendo a história em quadrinhos quando ela gira em círculos em sua célula e quando ela morde seu rabo como uma fita de Moebius” (e sua nota de rodapé ressalta que ele fala do matemático, não do autor de quadrinhos)54. Ele insinua que a estratégia de Artpress, realizada por especialistas em história em quadrinhos, fechava-se ainda mais para o público da 9e Art em vez de aproximar seu público consumidor de arte contemporânea desse bando de autores. Além das anáforas construídas com os sintagmas “Não entendo” e “Gosto”, o texto é pontilhado por notas de rodapé, 18 no total, em apenas uma página e meia. Abaixo das notas, uma ilustração de Gerner simula um jogo de batalha naval, diversos “submarinos” espalhados e a inscrição “FLOTTE” – literalmente, significa “flutua”, mas o contexto remete ao “água”, o sinal de perda em combate entre duas frotas inimigas no referido jogo).

53 Cf. GROENSTEEN, Bande dessinée et narration. Système de la bande dessinée 2, 2011, p. 181-195. 54 Em francês, “bande de Moebius”, que pode ser traduzida tanto para “fita”, o termo mais recorrente do modelo matemático ou o strip, a tira, referência facilmente identificável com o autor “clássico” de histórias em quadrinhos de ficção científica falecido em 2010.

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Figura 11: L’Éprouvette, 2006, p. 275.

Na tentativa de fazer a história em quadrinhos ser “entendida” por amantes de arte contemporânea, eles falhariam ao usar “atravessadores” entre os dois campos, como se a comunicação fosse cifrada de ambos os lados.

Gostaria que Artpress se perca – sozinha e não acompanhada – nesse terreno de experimentação de imagens e narração, a história em quadrinhos. Gostaria que 9e Art abra suas janelas e persianas – “mais ar, mais ar!” – e se perca nessa atmosfera de experimentação do visual e do conceito, a arte contemporânea.55

Sendo também ele artista plástico, expondo em galerias ao lado de artistas contemporâneos que fazem uso de outras matérias, sua crítica se dirige às críticas especializadas (da arte contemporânea e das histórias em quadrinhos). Ele chama a atenção para certo descaso, camuflado como puro desconhecimento, no discurso da editora-chefe da Artpress, Catherine Millet, dizendo que o tema “bande dessinée” “ultrapassa mais ou menos o campo de [suas] competências habituais.”56 Ele também se interroga sobre a recusa de críticos e autores de histórias em quadrinhos a tentar adquirir competências para ir ao encontro da arte contemporânea. O “flotte” acompanha também o campo semântico de outros de seus trabalho, como a exposição e livro Panorama du Feu. Gerner recolheu comics americanos de autoria “esquecida” das edições, publicados na década de 1950, entre elas a série Navy, explorada no também livro e exposição Abstractions (1941-1968). Flutuar também é

55 GERNER, op. cit., 2006, p. 274. 56 “...outrepasse plus ou moins le champ de mes compétences habituelles.” (ARTPRESS, Op. cit., p. 3).

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lançar-se à deriva, flutuar entre as duas “margens” artísticas e o derivar morfogramatical, de desviar um determinado objeto, adicionando-lhe ou retirando-lhe elementos para torná-lo novo (e seu). O signo é móvel, flutuante. A palavra “flotte”, apresenta-se como um indecidível: não há marcas precisas de pessoa, esse [-e] pode referir-se às três pessoas do singular (ou as duas e a não-pessoa), pode indicar o estado das coisas (presente), um desejo (subjuntivo), uma ordem (imperativo). Ao mesmo tempo, ele nos deixa à mostra o seu jogo, as suas apostas, a figura, em que apenas linhas verticais e horizontais se articulam formando as marcas do “posicionamento” da frota, está exposto para nós. Seria um convite ao jogo ou à trapaça (tricherie), de poder saber a topologia do campo desse sujeito? Em sua obra marcada pelo oulipismo, é possível penetrar seu objeto de estudo ora pela plasticidade (retiniana e imanente) ora pelo projeto (conceitual e transcendente) da obra que não esconde que é um produto, algo construído e pensado para um consumo específico (entretenimento ou estético). É sobre evitada intersecção que Gerner coloca seus trabalhos, como essa batalha entre os do lado da arte e os do lado dos quadrinhos Nos capítulos seguintes tentarei apresentar mais detalhadamente o objeto de trabalho. Analiso o opúsculo partindo de seus elementos visuais (capítulo 2: A forma do livro: o raciocínio gráfico em CLBD, p. 40) Tratando-se de um livro que reúne citações de indivíduos diversos, escrevo sobre o trabalho da citação exemplificando com dados do próprio livro, expondo também sobre a questão da autoria e da enunciação em uma obra gráfica (capítulo 3: Choses lues et entendues: uma antologia de frases alheias, p. 104). Em seguida, discuto como a elaboração desse livro em si pode definir-se como um aparato crítico oubapiano (capítulo 4: Uma crítica oubapiana, p. 153). Por fim, esboço propostas para uma teoria da montagem, seguindo os pressupostos sobre o tema tal qual desenvolvidos por Didi-Huberman (capítulo 5: A articulação de imagens solidárias, p. 187), concluindo com uma demonstração sobre como as variáveis da composição da obra estudada relevam de uma postura ética sobre a história em quadrinhos que se constrói ao mesmo tempo em que seu dispositivo visual (Conclusão, p. 232).

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“Um poema deve ser lido na sua língua original e [para ler uma tela de Miró,] é preciso aprender miró, e só então podemos começar a ler seus poemas.” QUENEAU. Bâtons, chiffres et lettres. Paris: Gallimard, 1965.

2 A forma do livro: o raciocínio gráfico em CLBD

O projeto gráfico da coleção Éprouvette evoca a ideia de livros críticos, toda a coleção respeita um projeto gráfico trompe l’œil: a aparência de não ser história em quadrinhos, de misturar as noções de texto ensaístico e crítica literária. Nas capas de seus livros, não há desenhos afora o logotipo da L’Association, a hidra de sete cabeças; na quarta-capa e na lombada, o logotipo que surge é o da própria coleção, representando um estranho ser de quatro patas e chifres em uma meia-lua (elementos comuns aos outros logotipos de suas coleções). O layout gráfico da capa (mise en page) é padrão, hierarquizando-se linha a linha o nome do autor, o título do livro, o subtítulo, e o nome da editora. O formato, desde o tamanho (155 x 220 mm), em si, já se aproxima de obras literárias, até o acabamento em brochura, decisão editorial constante tanto da L’Association quanto de seus congêneres, posição que toma partido do livro contra o “álbum” em capa dura das histórias em quadrinhos tradicionais. A simplicidade do layout os permitiria circular nas prateleiras de livros teóricos, ao mesmo tempo em que essa identidade de gênero é corrompida pelo uso da cor. A coleção parece respeitar uma regra de variação do espectro de cores que, apesar do abuso de tons marcados (vermelho, laranja, amarelo, verde, azuis claro, escuro, lilás, rosa escuro e claro, cinza e preto), a cor torna-se sóbria por certo escurecimento da tonalidade sobre o papel, cuja textura granulada evita o brilho que poderia “ofuscar” a intenção acadêmica da coleção. A cor de cada capa não teria, a priori, marca de significação, sequer justifica a obra,57 o colorido das capas seria apenas uma vantagem sobre as capas das edições de ensaios e literatura tradicionais: por ser uma editora de quadrinhos, a cor é possível, por isso ela figura ali. A segunda “corrupção” do projeto estético da Éprouvette sobre sua linhagem “ensaística” é verificada em sua tipografia fluida – porém, os caracteres de base tradicional (praticamente uma emulação da fonte Times News Roman) parecem

57 Talvez apenas o rosa de Pornographie et suicide, de Mahler, guardaria alguma conexão simbólica com o seu livro, ou o vermelho do “manifesto” Plates-bandes de Menu.

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encharcados, manchados, como se a impressão fosse serigrafada. Um “excesso” de tinta, ou os caracteres falhados sobre a capa do livro. O uso das minúsculas parece assumir uma restrição linear (somente o nome da editora apresentará as primeiras letras em maiúsculas, em uma tipografia especial – sua marca – em que todas as minúsculas apresentam tamanho similar às duas primeiras letras). De certo modo, a cor e o excesso – a “mancha” – os aproxima do universo gráfico em que se inserem as histórias em quadrinhos. O livro – e, de forma mais evidente, o livro de imagens –, engloba tanto seu espaço táctil (o papel, a tinta, a cor, as páginas, o ritmo) quanto a correlações entre seus signos, verbais ou visuais, ou seja, o espaço criado pela rede de relações entre eles.58 Haveria o entendimento generalizado de que o livro seria apenas um suporte, uma transcrição gráfica e óptica do discurso, em que a pontuação e outros elementos gráficos viriam a “modular” o discurso, em uma tentativa de dar um “equivalente espacial da continuidade vocal”. No entanto, há também mostração, uma chamada ao olhar que “corta a fala”.59 Dessa forma, pode-se compreender o “espaço táctil” do livro como um significante, e de seu “espaço sistemático” poderia ser depreendido seus sentidos. O primeiro é expressado pelo uso do layout gráfico, desde a escolha do papel. Se, por um lado, a disposição dos elementos paratextuais (título, nome do autor, subtítulo, nome da editora) e a tipografia escolhida nos traz a reminiscência de monografias acadêmicas, tais elementos são perturbados pelo uso das cores ou da forma das tipografias que sugere uma impressão artesanal.60 O formato, aliás, é indicador de que a filiação da Éprouvette é para com o métier do livro, pelas potencialidades discursivas do objeto cultural “livro”, seja ele preenchido por ensaios em textos, fragmentos ou histórias em quadrinhos. Os autores da Éprouvette tomam o exercício ensaístico ao pé da letra, experimentando diferentes formas de análise das histórias em quadrinhos. O viés escolhido por Jochen Gerner leva ao extremo essa análise, como vimos e veremos de forma mais aprofundada, através da elaboração de um método rigoroso de trabalho, de coleta e disposição de dados.

58 “Espaço sistemático”, cf. BOULESTRAU, Nicole. “Espace optique, espace métaphorique.” Livre & Littérature: L'Espace optique du livre. Cahiers du département de Français, 1988: 5-8. P. 5. 59 O pesquisador Roger Laufer chama a atenção para a arte tipográfica que significa, justamente, “savoir donner au sens une représentation graphique”. (LAUFER, Roger. “De la page à l'écran : vers un espace flexible d'écriture/lecture.” Ibidem: 119-130. P. 119). 60 Ainda restringindo-me à capa, o subtítulo também se revela outro elemento “perturbador”, variando a cada livro. Ver p. 36.

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2.1 O título: “Contre” ou “tout contre”

O título já faria referência em si às histórias em quadrinhos como um meio, la bande dessinée. De acordo com Genette, “o título, assim como nome de animal, faz índex. Um pouco de pedigree, um pouco certificado de nascimento”,61 o nome do livro deixa entrever um gênero, uma época. “Contra as histórias em quadrinhos” filiaria o livro de Gerner, portanto, ao gênero dos manifestos, “abaixo” às histórias em quadrinhos. A epígrafe, retirada das páginas de Contre Sainte-Beuve (1954), de Marcel Proust, remonta, por sua vez, a uma manifestação de uma crítica. Publicado postumamente, o livro do escritor reunia folhas dispersas em que Proust se reportava à crítica literária ainda imersa no século XIX, e o crítico Sainte-Beuve seria seu maior representante. Tais ensaios precederam e acompanharam a obra-prima de Proust À la recherche du temps perdu (1913-1927), elaborado após várias recusas de editores em publicar textos seus, e nos mostra o momento em que Proust adquire a noção de que uma nova crítica é necessária. Além de pastichar o título,62 Gerner teria elaborado seu livro no ensejo de crítica à crítica, imitando Proust. CLBD testemunha uma rejeição vivida pela sua geração de incompreendidos pelo meio cultural ao qual estariam ligados, a dos produtores e divulgadores de histórias em quadrinhos.

Recolhi frases por cerca de cinco anos. Parti de Kundera na Arte do romance, onde ele diz não compreender que se possa colocar no mesmo nível literatura, BD, rock e ópera. Aliás, citei seu texto no livro. Ora, esse discurso catastrófico citava também Proust. É por isso que me diverti em pastichar o título Contre Sainte-Beuve como uma obra crítica da crítica.63

O elemento catalizador da obra de Gerner seria, portanto, o de aproximar e quebrar a hierarquia entre tais elementos elencados por Kundera. Não posso deixar de salientar que o termo “catastrófico” nos remete ao ensaio clássico de Umberto Eco, e poderíamos posicionar Jochen Gerner como um pouco mais integrado que apocalíptico. Kundera incorreria no fatídico erro dos “aristocráticos” acreditando que a “massa” seja em si “má”.64 Se, para o escritor tcheco, em texto também metacrítico, a hierarquia deveria ser

61 “Le titre, comme un nom d’animal, fait index. Un peu pedigree, un peu acte de naissance” GENETTE. Palimpsestes. La Littérature au second dégré. Paris: Seuil, 1982, p. 45. 62 A definição de pastiche, proposta por Gérard Genette, é a “e imitação de um estilo desprovida de função satírica.” Ibidem, pp. 33-34). 63 “J’ai récolté des phrases pendant environ cinq ans. Je suis parti de Kundera dans l’Art du roman, où il dit ne pas comprendre qu’on puisse mettre au même niveau littérature, BD, rock et opéra. J’ai d’ailleurs cité son texte dans le livre. Or ce discours catastrophiste citait lui-même Proust. C’est pour ça que je me suis amusé à pasticher le titre Contre Sainte-Beuve en tant qu’ouvrage de critique sur la critique.” GERNER, Jochen, entrevista feita por Éric LORET. “Envers du contre.” "C'est à quel sujet ?". Libération. Paris. 2008. 64 ECO. Apocalípticos e integrados. 3a reimp. de 2001. Tradução: Pérola DE CARVALHO. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 49.

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um elemento importante, ela é sucessivamente contestada pelos quadrinhos de Gerner, a começar pelo pastiche do título e, em seguida, pela aniquilação das hierarquias, através da disposição das citações sem sequencialidade ou ordem além da distribuição temática sobre a página. Em vez da intervenção crítica paternalista como sugere Kundera, o trabalho de Gerner oferece uma discussão dialética, do confronto não resoluto entre os discursos e desenhos citados. Em diferentes entrevistas, Gerner explicita que, a princípio, não pensava no possível jogo de palavras com a palavra “contre” do título, mas adere totalmente a esta ambiguidade. Em francês, a preposição “contre” pode significar tanto “contra”, querendo dizer “oposto”, “contrário”, ou o imperativo “abaixo” quanto à locução adverbial “tout contre”, em que o “tout”, elipsado, faz o termo significar “junto”, aproximado. “Eu me aperto bem junto à história em quadrinhos, quase em seu ventre. [Je me serre tout Contre la bande dessinée dans son ventre presque]”65 E ainda:

[...] “Contra a história em quadrinhos”, isso quer dizer uma espécie de oposição à história em quadrinhos, mas ao mesmo tempo quer dizer “bem junto à história em quadrinhos”. Quer dizer estar no seio da história em quadrinhos, e tentar entender como funciona.”66

Para o jornal Le Libération, ele explica de forma ainda mais poética o seu “contre”:

É uma espécie de caça à baleia: a BD está picada por arpões, arpões de amor ou de ódio, e eu faço a tipologia desses arpões. [...]Logo, “contra” quer dizer “o que vai contra” mas também “bem junto” à BD, estar emaranhado dentro de seu ventre para melhor escutá-la.67

Vejo nesse “contra” um signo exalando dialética, a começar pela indecidabilidade de seu significado, em que o primeiro sentido contradiz o segundo; em segundo lugar, a isotopia dos manifestos já prenuncia contradições. A posição de fronteira proposta pelo trabalho de Gerner, entre a arte conceitual e os quadrinhos também pode ser lida nessa escolha: “Falo mesmo de topografia. Estou no exterior e no interior”.68 Seu título é, portanto, demarcador de um território de fronteira, tanto oposto ao discurso recolhido em seu miolo quanto aderindo a ele. O confronto do título também se aplica à própria

65 GERNER, op. cit., 2012, grifo meu. 66 “[...] “Contre la bande dessinée”, cela veut dire une sorte d’opposition à la bande dessinée, mais en même temps cela peut dire “tout Contre la bande dessinée”. C’est à dire être au sein de la bande dessinée, et essayer de comprendre comment ça marche.” Ibidem. 67 “C’est une sorte de chasse à la baleine : la BD est piquée de harpons, des harpons d’amour ou de haine, et moi je fais la typologie de ces harpons. […] Donc, “contre” veut dire “ce qui va contre” mais aussi “tout contre” la BD, être lové dans son ventre pour mieux l’écouter.” GERNER, op. cit., 2008. Curioso o uso de expressões marinhas (baleias, arpões, o verbo “lover”, termo marinho significando “enrolado”). Moby Dick em quadrinhos é uma das referências citadas em Contre la bande dessinée. O discurso de Gerner, uma mistura de Jonas e Pinóquio, mas dentro da baleia por amor e não por pecado? 68 “Je parle donc bien de topographie. Je suis à l’extérieur et à l’intérieur.” GERNER, op. cit., 2012.

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distribuição do seu corpus, as citações e os desenhos. Em diversos níveis, desde a aproximação de uma citação contra outra, de um desenho contra uma citação, de uma página após a outra. Contre Sainte Beuve, de Marcel Proust (1871-1922), não tinha o caráter ambíguo do título de Gerner. O livro do escritor francês, um “ensaio de juventude”, é, de fato, uma forma de manifesto contra a crítica literária personificada pelo crítico do título, Charles- Augustin de Sainte Beuve (1804-1869). Para Sainte Beuve e muitos de seus contemporâneos, a vida de um autor era refletida em sua obra. A biografia do autor seria, portanto, o assunto principal da crítica, que tentaria enxergar no trabalho destes elementos factuais que o explicassem. Em seus textos publicados postumamente, Proust elaborara sua teoria do “o outro Eu”, que diz que a obra literária

[…] não é, contrariamente às aparências, escrita pela pessoa familiar que nós encontramos na vida corrente e com a qual chegamos a trocar reflexões. Ela é a obra de um outro Eu, irredutível a essa pessoa, e que é vão buscá-lo conversando com a pessoa autor.69

Em suas páginas – escritas ao longo dos anos e reunidas postumamente –, Proust recorda de suas leituras preferidas de juventude, faz digressões sobre sua própria prática de leitor, e discorre, a partir de Ruskin e Descartes, sobre como a leitura pode estabelecer, de fato, uma conversa entre o leitor e um fantasmático autor.70 A vontade de uma nova crítica, aludida desde o projeto editorial de CLBD à forma em que a obra se constitui, é insinuada sutilmente com o título proustiano.

69 “...n’est pas, contrairement aux apparences, écrite par la personne familière que nous rencontrons dans la vie courante et avec laquelle il nous arrive d’échanger des réflexions. Elle est l’œuvre d’un autre Moi, irréductible à cette personne, et qu’il est vain de rechercher par sa fréquentation.” BAYARD, Pierre. Le Plagiat par anticipation. Paris: Minuit, 2009, p. 109. 70 “Nós sentimos muito bem que nossa sapiência começa lá onde termina a do autor, e gostaríamos que ele nos desse as respostas, quando tudo o que ele pode fazer é nos dar desejos. E esses desejos, ele só pode acordar em nós ao nos fazer contemplar a beleza suprema para a qual o último esforço de sua arte lhe permitiu atingir. Mas para uma lei singular e aliás providencial da ótica dos espíritos (lei que significa talvez que nós não podemos receber a verdade de ninguém, e que temos que criá-la nós mesmos), o que é o termo de sua sapiência só surge para nós como o começo da nossa, de modo queé o momento em que eles nos dizem tudo o que eles podiam nos dizer que eles fazem nascer em nós o sentimento de que ele não nos disse nada ainda. [Nous sentons très bien que notre sagesse commence où celle de l’auteur finit, et nous voudrions qu’il nous donnât des réponses, quand tout ce qu’il peut faire est de nous donner des désirs. Et ces désirs, il ne peut les éveiller en nous qu’en nous faisant contempler la beauté suprême à laquelle le dernier effort de son art lui a permis d’atteindre. Mais par une loi singulière et d’ailleurs providentielle de l’optique des esprits (loi qui signifie peut-être que nous ne pouvons recevoir la vérité de personne, et que nous devons la créer nous-même), ce qui est le terme de leur sagesse ne nous apparaît que comme le commencement de la nôtre, de sorte que c’est au moment où ils nous ont dit tout ce qu’ils pouvaient nous dire qu’ils font naître en nous le sentiment qu’ils ne nous ont encore rien dit.]” (PROUST, p. 32).

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2.2 A mise à l’œuvre: o “miolo” do livro

CLBD, como vimos, é apresentado em um formato “literário”, a iniciar por sua capa. Sua distribuição interna também obedece a tal protocolo, apresentando uma divisão em capítulos, uma epígrafe, um epílogo e créditos, o que não é de praxe. Por sinal, tais recursos são apontados em quadrinhos como uma tentativa de aproximação com a literatura, sobretudo – no contexto brasileiro, francês e americano – no uso do termo graphic novel como distintivo entre “história em quadrinhos”, “BD” ou “comics”. Em primeiro lugar, durante alguns anos, Jochen Gerner acumulou frases de anônimos e famosos que ouvia a respeito ou que citassem por acaso as histórias em quadrinhos. A frase catalisadora de tal projeto, lida em L’Art du roman, de Milan Kundera (1986, citada na página 76 de Contre la bande dessinée), vinha de uma preocupação do autor tcheco sobre o papel do crítico de arte. Em segundo lugar, já com uma bem fornida coleção de frases e expressões, passou a um trabalho de classificação temática, chegando a dezenove tópicos diferentes. Os primeiros capítulos do livro tratam de elementos que definem as histórias em quadrinhos (objeto(s), cenários e cores, personagens, narrativas). Em seguida, são observadas a relação dos quadrinhos e sua recepção (jovens leitores, mediocridade, sexo e violência, censura, exercícios, cultura). O terceiro e último bloco do livro relaciona quadrinhos e outros modos de expressão (literatura, cinema e televisão, teatro e ópera, música, novas tecnologias, arquitetura, desenho e arte). Cada capítulo é introduzido por uma página contendo apenas um desenho ou hors- texte, as ilustrações que têm por função remeter ao “texto” (Figura 12). Centralizados no topo de cada página, apresentam-se como enigmas a serem decifrados, em posição isolada. O título de cada capítulo torna-se legenda do desenho isolado, carregando cada imagem de outros sentidos, gerando ambiguidade. Considero tais figuras como “índices” de cada capítulo, por serem elementos da realidade explorada pela seção que remete a essa realidade in absentia. Pelo índice, há a ilustração de um elemento que tem uma relação de contiguidade com o tema do capítulo que apresentam. Eles se apresentam, portanto, como uma charada, porém seu enigma acompanha a solução que está oferecida pelo título do capítulo, criando um efeito aparentemente de redundância. Mas não é o “resultado” que se busca nessa imagem enigmática, mas sim compreender de que forma a figura se refere à palavra. Põe-se em evidência a capacidade de produção de sentido através da justaposição dos elementos textuais e do desenho nestas figuras isoladas, que acabam por concentrar a rede semântica disseminada a cada capítulo.

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Figura 12: "Hors-textes" de CLBD (aberturas de capítulos)

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Préambule (pp. 5-7) /Épilogue (pp. 129-131) No preâmbulo e no epílogo, respectivamente a primeira e última partes, as duas ilustrações funcionam como um espelho, uma da outra: um livro/álbum entreaberto, com um mesmo personagem-tipo na capa. Na primeira, o livro se abre em direção à direita da página; na segunda, dirige-se à esquerda. Ora projetando-se na direção das páginas que iremos virar, ora dirigindo-se às páginas que acabamos de concluir. Aparentemente, nosso autor girou apenas o livro, deixando ambos os desenhos de fato espelhados. Mas há os balões, de formas e preenchimento diferentes, que transformam-se, aqui, em uma analogia visual diretamente ligada ao título de cada capítulo. O primeiro balão “antecede” o livro; o segundo se projeta para depois dele. Em ambos, os balões compreendem traços horizontais simulando a distribuição de um texto possível, como é definida a propriedade dos balões, a de “conter” um texto. O balão com linhas horizontais se repete inúmeras vezes ao longo do livro, uma alusão direta ao balão como código próprio à história em quadrinhos. O recurso ao traço para significar texto ilegível é comum a diversos autores, mas aponto aqui como Gerner transforma tal recurso em um pictograma recorrente ao longo do livro. Nos hors-textes, ele se transforma em um índice para significar a expressão história em quadrinhos como um todo. Como já mencionado anteriormente, o personagem da capa parece o autorretrato de Gerner, como ele deixa registrado em seu site como sua “assinatura”. Ele “reaparece” em outros momentos do livro, debruçado sobre uma mesa de trabalho, ilustrando a figura do autor de quadrinhos. O tipo que ocupa a posição de um agente (personagem) nesse ensaio também é uma figura de autorreflexividade: o autor que discute a história em quadrinhos e se desenha “em cena”.

1 Objet (s) (pp. 8-16). Uma caixa de madeira, como produto embalado para ser comercializado, com uma etiqueta de um guarda-chuva, o ícone universal de “não pode molhar”. O capítulo tem por título “objeto” no sentido de “propósito”, os da história em quadrinhos, seus objetivos – ou propósito do livro. A caixa alude tanto à materialidade da história em quadrinhos como objeto, em um jogo de palavras visual, quanto ao ato de encaixotar no sentido de classificar: dizer os limites que definem tal expressão.

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É um objeto que não vemos: está dentro da caixa; um objeto não identificado, um intertexto possível ao supracitado livro-manifesto de Groensteen (2006) sobre as políticas do mercado editorial de história em quadrinhos que não permite um conhecimento de facto de seu objeto. Frágil, permeável, que necessita “proteção”, a caixa embalada desta forma também assinala um envio a um destinatário X. “Objet” é o termo para “assunto” de uma carta formal em língua francesa. Subentende-se que esse “documento” (o livro) é endereçado a alguém e assinado por outro. Uma caixa também não é apenas uma caixa, mas seria seu conteúdo, que está assim disposto como canal entre dois interlocutores.

2 Décors et couleurs (pp. 17-23) Em capítulo que trata especificamente da estrutura da história em quadrinhos, a ilustração traz três elementos comuns nos trabalhos de Gerner: a paisagem, a cartografia – no caso, a própria ilustração da montanha reduzida a seus traços mínimos e o “S” simulando caminho –, e códigos próprios da história em quadrinhos integrando ao desenho de forma ambígua: os balões, aqui, são a fala de alguém “hors-champ” e também sol e nuvem.

3 Personnages (pp. 24-30) Da mesma forma que no capítulo anterior, os balões são ora signo de “fala”, ora outro elemento gráfico que traz ambiguidade ao desenho, assim como aponta para a materialidade da história em quadrinhos. No caso, um personagem A “fala” B, que também “fala”; o “nariz” de B também assinala de onde vem sua “fala”, de A. O preenchimento do balão de B remete ao preenchimento do personagem A. As linhas horizontais simulando o “texto” transformam-se em marcas no rosto de B – tais linhas, quando impressas sobre um personagem, podem significar o rubor, localizadas como estão sobre o espaço em que, em geral, desenham-se as “bochechas”. Elas serão sinal de “franzir o cenho” se sobre os olhos, e podem ainda significar sujeira – como é notório no personagem “Cascão” das histórias da Turma da Mônica, do brasileiro Mauricio de Sousa. Os personagens de quadrinhos não são apenas personagens de papel cuja visualização será produzida pelo leitor, a partir de suas características descritas pelo autor, como é o caso do personagem literário. O fato de ser bidimensional não o limita, podendo o autor fazer uso de recursos em que a própria materialidade dele é questionada (é citado e citante). Podemos ler essa imagem à luz de Lacan: o personagem só é personagem por ser, ao mesmo tempo, um ato de fala. “O sujeito é falado pela linguagem”, só pode existir por ser linguagem. Ele fala e é “fago-citado”

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pelo outro personagem. Ao citar, o autor recorta (morcelle) o que ele quer transformar a partir do dizer do outro, desse outro sujeito que se constrói na linguagem.

4 Récits (pp. 31-36) Analisando tais hors-textes é possível perceber tal recurso do balão como metonímia da própria história em quadrinhos. No capítulo que trata das narrativas, quem “diz” é o próprio livro, ou o personagem sobre sua capa, com a boca entreaberta. O que o “livro” ou (o “álbum”) “diz” é um texto, e aqui ele recorre, mais uma vez, ao balão com linhas horizontais, dessa vez o texto é um bloco de linhas, indicando ideias condensadas dentro do balão ou dessa “nuvem de fala” (parole).

5 Jeunes lecteurs (pp. 37-41) O capítulo dedicado a “jovens leitores” é o único que trata especificamente do leitor de história em quadrinhos. Por esse um livro reunir clichês sobre a expressão, a figura do Leitor de quadrinhos coincide com o conjunto de leitores de obras infanto-juvenis. O rosto do leitor que ilustra esse capítulo é mais arredondado que os personagens-tipo dos capítulos precedentes (afora o personagem-balão, por razões do código posto à prova). As linhas verticais, aqui, são de fato uma oposição àquelas significando “texto”, como o de seu balão de fala, e indicam o rosto corado de um menino, que ainda aparece mais infantilizado com suas orelhas de Mickey.

6 Médiocrité (pp. 42-46) Primeiro capítulo que repertoria noções sobre a qualidade das histórias em quadrinhos, mais especificamente sobre sua mediocridade, páginas de quadrinhos, denotadas pelos quadros em sequência aparente são “amassados”, retorcidos, evocando o papel do jornal após o uso, o lixo. O balão que brota destas páginas remete a um estômago e intestinos, revertendo, talvez, a função do balão: também chamados de “excrecências”, aqui é a página de quadrinhos que é excretada pelo “texto” do balão. O quadrinho é o excremento do tubo digestivo que consome narrativa.

7 Sexe et violence (pp. 47-59) Sexo e violência, temas tão recorrentes no mercado tradicional de quadrinhos, que passaram a ser confundidos como uma das poucas temáticas possíveis para um autor. Eles também amalgamados na capa do álbum que ilustra esse capítulo. O “alvo”, representado pelos círculos concêntricos perfurados por pequenos pontos simulando “tiros”, é o álbum. No alto, à sua esquerda, um “X” etiqueta o objeto, a marca sinalizando teor erótico de determinados produtos culturais. A história em quadrinhos

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também é, aqui, o alvo da violência, os tiros contra os quadrinhos, ou o ataque que sai pela culatra?

8 Censure (pp. 60-63) A “censura” encerra o bloco de capítulos dedicado ao quadrinho como gênero duvidoso no campo cultural (infantil, vulgar, violento), e torna-se ponto de passagem para o quadrinho ser “aceito” e desdobrado em outros formatos (o festival de quadrinhos, o uso do quadrinho no ensino, a relação com outras expressões artísticas), nos capítulos subsequentes. A figura do censor é imediatamente identificada com a figura do carrasco, como se ambas as funções (vigiar e punir) fossem exercidas pelo mesmo personagem. A mesma imagem figurando um personagem de “rosto” triangular, preto, denotando o capuz de um carrasco aparece no interior do capítulo, acompanhada da legenda em caixa alta e sublinhada: “TEÓRICOS” (théoriciens, CLBD, p. 62). A censura é o discurso do poder atualizado, que invalida outros pontos de vista, do poder particularmente detectável ou perigoso no meio acadêmico, aquilo que inibe a criatividade, a fala. Ao posicionar os “teóricos” no campo da punição e da censura, indaga-se quem são esses que exercem o poder institucional em um meio como a história em quadrinhos, tão potente, e fadada ora a ser instrumento de controle (uso dos quadrinhos como disseminação ideológica), ora como material subversivo a ser eliminado, castrado, sucessivamente? O censor remete também ao potencial subversivo dessa prática. Ao mesmo tempo em que ela é um produto cultural da mass culture, é fragmentária, descontínua (em tiras, em histórias seriadas); os comics e o pulp – ou os catecismos de Zéfiro, qualquer zine – englobam a energia popular. A geração dos poetas (brasileiros) do mimeógrafo conviveu muito bem com o estabelecimento dos quadrinhos de sindicatos – a mesma geração que no Brasil, na França, nos Estados Unidos, cresceu lendo a doutrina do Tio Patinhos e cia. foi a que pôde fundar quadrinhos contraculturais e, por vezes, orgânicos no sentido do intelectual de Antonio Gramsci, de organizadores de sua classe (desde sempre lidos por proletários. Já na década de 1940 os quadrinhos eram usados para difundir ideias políticas).71 Os autores do underground americano, da HaraKiri francesa e da contracultura brasileira, estavam conscientes sobre esse potencial libidinal dos quadrinhos enquanto potência descentralizadora. No período, porém, o colecionismo, a

71 No caso brasileiro, a geração Pasquim teria entendido o papel “subversivo” dos quadrinhos – na mesma corrente dos franceses da HaraKiri. Ainda nos anos 1970, por exemplo, Laerte e Henfil, com um amigo jornalista, fundam a empresa de comunicação para sindicalistas Oboré. Sobre o primeiro, uma exposição recente reuniu esse trabalho sempre politizado – hoje com certo destaque sobre a questão de gênero que afeta Laerte, que assumiu sua transexualidade publicamente.

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nostalgia e a Pop Art faziam os quadrinhos serem recortados, reenquadrados, descaracterizados e levados a museus. O autor de quadrinhos Art Spiegelman (entre tantos outros) critica o pintor Roy Lichtenstein, conhecido pelo seu aproveitamento dos “descreditados” quadrinhos como se sua arte os salvaria do olvido: “Oh, Roy! Sua arte morta é feita de arte baixa morta!... A real energia política, sexual e formal está na cultura popular viva te deixa para trás. Por isso – soluço – que você é promovido por museus!”72 Mais adiante, na página 125 de CLBD, temos, mais uma vez, a figura do carrasco, dessa vez mais robusto e de corpo inteiro, carregando um chicote que acaba de ser usado (uma estrelinha indicando ato de violência apenas impetrado): aqui, ele é identificado com o grande “A” da Arte maiúscula, “impresso” em sua camisa (Figura 13). Nesse momento, a questão é a Arte como exploradora “sem vergonha” da subcultura, as histórias em quadrinhos.

Figura 13: CLBD, p. 125

9 Festivals (pp. 64-67)

Os festivais são o primeiro desdobramento da história em quadrinhos: como objeto de culto, lugar de encontro de aficionados, espaço para a venda de livros e de subprodutos, o festival visto como o alicerce da cultura em quadrinhos. Gerner o ilustra como uma grande tenda decorada com flâmulas e de onde um balão picotado – comum para designar tom forte da voz – parece indicar uma balbúrdia saída por debaixo da tenda, como denota também seu tamanho, de área semelhante à da tenda que o exala. A “fala” – o discurso – alcança o tamanho de seu “objeto” ou enunciador. Aqui, o discurso se sobressai, como a instituição que fagocita o seu produto. A figura é ambígua: a imagem também pode nos fazer pensar sobre o valor comercial (a medida do mercado) em contraponto ao valor estético se pensarmos, inversamente, que o

72 Mais adiante, o narrador alerta ao famoso personagem Dick Tracy, cuja silhueta indefectível surge “assinada”: “Wahrol esteve aqui”. Trecho original: “Oh Roy, your dead art is built on dead low art!... The real political, sexual and formal energy in living popular culture passes you by. That’s – sob – why you’re championed by museums!” SPIEGELMAN, Art. “High Art Lowdown”, 1990. Grifos do autor. Reproduzida in: GROENSTEEN, iop. cit, 2011, p. 185.

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discurso, o balão de fala, representa a linguagem dos quadrinhos que foge a essa tenda, do festival, dos valores. É nesse capítulo em que a noção de valor é tomada, e ele se inicia com uma lista de espaços de exposição e combinações possíveis com a BD (“feira de chucrute e BD”) e termina no fatídico incêndio.73

10 Exercices (pp. 68-73) Este capítulo reúne tanto as técnicas de produção de história em quadrinhos quanto as possíveis aplicações do suporte no ensino. A ilustração comporta um álbum de quadrinhos aberto, com nove casas em cada página, no modelo de distribuição conhecido como “gaufrier”. O termo remete ao instrumento de fazer waffles, gaufre em francês, cujo molde é de quadrados distribuídos equitativamente. O modelo gaufrier era comum em quadrinhos da primeira metade do século XX. Nas páginas exibidas nesse álbum, porém, as “casas” ou cada quadro do gaufrier são ou vazias, ou preenchidas por “O” ou “X”, simulando o “jogo da velha”. O quadrinho, usado para exercício, assemelha-se a um jogo; seu uso é lúdico, as aqui e também invoca o problema do lúdico como apenas um fator motivacional, não o entendimento do jogo que se apropria de um conhecimento.

11 Culture (pp. 74-77) A cultura é o ponto de passagem para “as outras artes”. Aqui, o personagem-tipo, das características comuns da tipologia de Gerner, sempre reduzida a figuras geométricas (rosto oblongo, nariz em linha formando um triângulo aberto, boca ovalada, cabeça figurando sobre um trapézio), tem o interior de sua cabeça “visível”, a “matière grise”, o cérebro. Denotado pelo formato de nuvem, pontilhado por traços brancos e pela posição sobre os olhos do personagem, o cérebro também é insinuado no balão de texto de formato semelhante. A cultura é cerebral, significa inteligência, e emana do homem. Ele evoca, dessa forma, um pressuposto do senso comum, da dicotomia corpo versus mente.

12 Littérature (pp. 78-83) O mesmo tipo aparece, desta vez com o nariz apontando para cima. O texto – a literatura – o esmaga. A literatura seria abundância textual que “pesa” sobre o personagem de quadrinhos. Gerner faz uso de um pictograma comum às histórias em quadrinhos para denotar tédio ou desconforto, uma pequena espiral sobre a cabeça. A

73 Cf. infra, p. 150.

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literatura é a primeira das expressões doravante comentadas em CLBD. Sendo os quadrinhos considerados, também, uma forma de literatura, seria natural incluir um capítulo sobre ela. Nesta página, é a literatura (ou o texto) que está contido dentro do código dos quadrinhos, salientado pelo balão.

13 Cinéma et télévision (pp. 84-97) Cinema e televisão são representados de forma metonímica: a arma remete à violência da qual se acusa essas mídias, assim como a história em quadrinhos. Destes canos “fumegantes”, clichê do vocabulário de faroeste e imagem recorrente nas histórias em quadrinhos do gênero, saem a língua-balão dos quadrinhos.

14 Théâtre et opéra (pp. 98-101) Teatro e ópera são aqui representados também de forma metonímica: são as cortinas abertas que indicam a “cena” que ocorre ao fundo, da qual surgem balões evocando um diálogo – e, evidentemente, a própria expressão história em quadrinhos. Outro índice remetendo aos quadrinhos é o lugar em que tais elementos se inscrevem, em uma capa de um “álbum” de quadrinhos.

15 Musique (pp. 102-105) No capítulo sobre música, ora, não há pictograma musical. Há um jogo com a palavra “álbum”, que pode designar tanto o álbum de música quanto o suporte tradicional para a história em quadrinhos tradicional (capa cartonada, 300 milímetros por 225 milímetros, apresentando em geral 48 páginas coloridas74). Aqui, a capa do álbum, é tornada visível como livro pelo uso da perspectiva que identifica o objeto retangular como contendo “folhas”. E ele se transforma em objeto musical pelos círculos que aludem ao aparelho de som e pelo pictograma reconhecível das histórias em quadrinhos, os três traços curvos que significam ondas sonoras.

16 Nouvelles technologies (pp. 106-110) Tal capítulo pode parecer o intruso da lista de expressões artísticas relacionadas a quadrinhos. A ilustração evoca uma tela de computador exibindo um programa de edição de imagem, i.e., um instrumento de criação ou finalização da história em quadrinhos. Para alguns autores, ao fazer uso do suporte virtual (webcomics) a história em quadrinhos seria traduzida para outra linguagem. A materialidade do suporte traz também uma nova expressividade ao objeto. No capítulo, ele aborda os instrumentos

74 Os 48CC, mencionados supra, na p. 34.

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digitais e as expressões decorrentes de tais instrumentos, o videogame, o website, os webcomics.

17 Architecture (pp. 111-117) A arquitetura é um elemento recorrente na obra de Jochen Gerner, e o jogo com a imagem de um edifício simulando uma página de uma história em quadrinhos de modelo regular (“gaufrier”) já aparece em outras páginas. Aqui, no entanto, a perspectiva do desenho não indica uma folha de papel que se confunde com uma construção, mas é a fumaça saindo da chaminé que nos diz que tal edifício “fala”. A evocação à fumaça designa, em italiano, a história em quadrinhos por si só, fumetti, o mesmo recurso metonímico para significar toda a expressão de que faz uso Gerner em boa parte destas ilustrações de abertura de capítulo.

18 Dessin (pp. 118-121) O desenho é muitas vezes considerado a condição que define uma história em quadrinhos (autores do OuBaPo além de alguns trabalhos experimentais fazem histórias “cegas” em que apenas a estrutura da expressão, disposição de quadros e uso de balões são mantidos). E o desenho também é uma expressão artística precisa. A referência de Gerner para este capítulo é uma caixa em perspectiva, com três furos à frente – e seu indefectível balão-índice. Uma alusão explícita ao Pequeno Príncipe, do escritor e aviador Antoine de Saint-Exupéry, quando narra a “solução” encontrada por seu narrador-personagem para o desenho de um “carneiro”. O livro de Saint-Exupéry, que é permeado de desenhos de seu próprio autor, inicia com sua frustração infantil ao não conseguir comunicar-se pela via do desenho; o adulto opta por um subterfúgio inusitado, desenhando uma simples caixa (o carneiro está ali dentro). Ao replicar a caixa do Pequeno Príncipe, Gerner também faz uma referência ao seu próprio trabalho, que escolhe o mínimo para comunicar, a escolha pela via do conceito em vez da representação mimética.

19 Art (pp. 122-128) Mais uma vez (assim como em “Teatro e Ópera”, “Música”, “Novas Tecnologias” e “Arquitetura”), o próprio suporte denota a expressão artística abordada neste capítulo. “Arte” está representada por uma tela, com seu verso voltado para o campo visível. A estrutura que forma a tela abre quatro nichos que se assemelham à distribuição em quadros de uma página de quadrinhos. A “narrativa”, evocada pelo balão de “texto”, no entanto, ocorre do lado invisível da tela.

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São, de fato, tópicos comuns no tratamento dado às histórias em quadrinhos. E é possível perceber como esse objeto cultural não identificado 75 suscita diferentes concepções e está longe de ser um consenso. Após essa classificação, Gerner passou à distribuição página a página, respondendo a cada citação com um desenho seu. O resultado desta obra é a reunião de textos e imagens desenhadas em preto e branco, sem uma sequência oferecida por uma narrativa ou elucidada por um narrador-condutor.76

De fato, a aproximação dos quadrinhos com o campo visual é um dos mais profícuos, assim como participa desde muito tempo do rol de inimigos da moralidade. Há um balanço, porém, na própria distribuição interna do livro, o que convém com a minha impressão de uma história ritmada, pelo uso de certos motivos – fragmentos específicos (estribilhos), repetidos ao longo do livro, ritornelo. Um dos exemplos dessa ideia de reiteração está em citações do início e do fim do livro, a epígrafe e no epílogo. A primeira, como vimos, é um segundo empréstimo feito a Marcel Proust, presentada entre aspas, no alto da terceira página, ela é seguida da referência, “Marcel Proust, ‘Contre Sainte-Beuve’, 1910”, padrão que será seguido ao longo do livro). Ela vem após a folha de rosto e uma pequena nota no verso fazendo menção ao apoio do Centre National du Livre (francês) recebido para execução da obra.

Figura 14: CLBD, p. 3

O céu havia escurecido, ouvi na chaminé os golpes de vento que levavam meu coração até a beira-mar, lugar para onde eu queria partir, quando, voltando meu olhar para o “Le Figaro” (...), ele caiu sobre um artigo que eu não havia notado: “A tempestade: Brest. Uma tempestade de vento sopra desde ontem à noite, as amarras do porto foram quebradas”, etc.

A terceira referência à Proust se encontra no último “parágrafo”, na página 131, também entre aspas e com as mesmas referências, novo trecho de Contre Sainte Beuve, que ocorre cerca de duas páginas após a primeira menção.

75 GROENSTEEN, Op. cit., 2006. 76 Nesses dezenove capítulos, a distribuição é balanceada entre quatro a seis páginas cada; os duos sexo e violência, cinema e televisão são os mais densos do livro. Ver Gráfico 4: Densidade "medida" dos capítulos, p. 289.

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Nesse momento, vi palpitar sobre o apoio da janela uma pulsação sem cor nem luz, mas a cada momento inflada e crescente, e sentia-se que ela iria se tornar um raio de sol.77

As duas citações de Contre Sainte Beuve foram extraídas de um mesmo capítulo, em que o narrador, em primeira pessoa, aborda sua ansiedade diante da recepção de um artigo seu publicado no jornal Le Figaro. Enquanto esperava a “resposta”, sua angústia se transfere para nota meteorológica sobre o jornal: uma tempestade que viria, transfigurando e aumentando sua ânsia por duas páginas – até a nota ser desmentida pelo tempo que começava a se abrir lá fora. As duas citações que “abrem” e “fecham” o livro, são, portanto, uma tempestade que se anuncia tenebrosa e termina por não acontecer. Ao ser perguntado se essa tempestade proustiana também seria um prenúncio de uma forma nova de criação que ele pretendia colocar em cena, Jochen Gerner respondeu:

O fato de dispor dessas pequenas frases como essas permite, justamente, de criar hiperlinks, links para outras coisas, mostrar um pouco o fio invisível que pode liga-las (...). Eu apreciava bastante essa ideia de começar por uma citação que, a priori, remetia a um universo completamente diferente da história em quadrinhos, uma espécie de provocação também. E eis o que quero dizer: quero partir do que a literatura coloca em alto patamar e tentar colocar isso como uma citação de abertura, de propósito.78

De fato, a evocação ao capitão Haddock, personagem paternal que figura em muitas das aventuras do Tintim de Hergé se perdeu dessa confrontação com Proust, que permaneceu elevado à epígrafe, solitário. Na última página, sua citação encontra-se após o “Fin”, como um post-scriptum, ancorado a um falante e expressivo personagem – como se vê pela variedade de balões de fala. Mas o discurso é ininteligível: apenas traços, reticências (pontos de “suspension”), vazio, como se ainda houvesse uma vontade discursiva, limitada pelo fim do livro, marcado novamente pela assinatura de Jochen Gerner. Mas a disposição das duas, marcando início e fim, introduzem também em sua forma uma ideia de paralelismos, de retornos, desses “hiperlinks” contínuos que remetem e revolvem o seu livro.

77 “À ce moment, je vis palpiter sur l’appui de la fenêtre une pulsation sans couleur ni lumière, mais à tout moment enflée et grandissante, et qu’on sentait qui allait devenir un rayon de soleil.” 78 A partir da página 264.

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Figura 15: CLBD, p. 6

No primeiro capítulo, o trecho de Le Procès Verbal, de Le Clézio funciona como uma epígrafe da seção, e remete à experiência estética de uma leitura de uma história em quadrinhos, que parece não ficar aquém de uma experiência de um leitor de romances: “Vinte e quatro horas de árvores e de silêncio, estou preso na história em quadrinhos de minha escolha”. Ela é ilustrada por uma árvore feita de livros e um homem lendo sobre um tronco de árvore, que “pronuncia” um balão com reticências, “points de suspension [pontos de suspensão]” em francês, materialização tipográfica do silêncio e da suspensão, o suspender-se de uma progressão de ações. O leitor se recolhe para ler, se retira. O tronco da árvore sobre a qual se deita o personagem parece também ele flutuar sobre a frase introdutória do capítulo, “para aqueles que amam o espírito BD”, não apenas pela posição elevada, mas pelos ramos da árvore que não parecem tocar o chão (Figura 15). Há uma quebra de ritmo entre a suspensão dessa epígrafe, ela em si isolada materialmente pela presença das aspas. Imediatamente, há uma transição do uso do nome completo, bande dessinée para seus acrônimos, “BD” e “bédé”. A linha divisória

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é física, tanto o enunciado “Para aqueles que...” quanto o desenho de um tronco de árvore. Ele divide a referência literária, assinada, de Le Clézio e o discurso anônimo. Os autores da geração à qual Gerner se filia recusam os acrônimos pois tais termos teriam se tornado etiqueta de mercado para a leitura “simples e engraçada”, “historietas acolhedoras”. No manifesto de encerramento da revista L’Éprouvette, há os dizeres: “a bande dessinée pode levar a toda parte, salvo até a bédé” 79, precedido de seu editorial que faz uso dos acrônimos como adjetivos para um “microcosmo” ou “meio”. Há portanto distinção entre a locução “bande dessinée” e a sigla “BD” entendida como objeto de entretenimento, i.e., o primeiro termo corresponde à definição de um código enquanto o segundo o de um gênero. A primeira citação anônima introduz a temática da obra, ou melhor, seu público: “Para aqueles que gostam do espírito BD. A alegre variedade das BD.” A “variedade”, no entanto, é desmentida pelas ilustrações: “trol”, “elfo”, “ogro”, “dragão” são as tipologias expostas sobre os álbuns exibidos por Gerner. Elementos de um mesmo universo, o da fantasia, que compõem a proclamada “variedade feliz” das histórias em quadrinhos, em uma referência irônica sobre a falácia da escolha permitida pelas democracias liberais – é possível escolher qualquer cor, “desde que seja preta”. O mercado impõe tais tipologias em detrimento de outros possíveis desdobramentos da expressão história em quadrinhos – como o seu próprio livro “inclassificável”, descategorizado. Outras figuras distribuídas pela página dupla, como personagens disformes, grandes demais, pequenos demais, animalescos, Mickey e o Pato Donald, todos redesenhados pelo traço esquemático de Gerner, sem perspectiva e distribuídos tão horizontalmente quanto os textos citados. A última frase da página faz eco com a citação de Le Clézio, tanto pela proporção que toma ao pé da página, estendendo-se como nota abaixo de uma série de quatro personagens que se afundam nos álbuns “bédé”, assim como o retorno à expressão “bande dessinée”. O enunciado é composto por termos comuns à teoria literária ou à filosofia: linguagem, leitor-espectador, mundo pós-moderno, substantivos exprimindo a “condição humana”, “a solidão, a impotência, as perturbações do homem constrangido à performance, mediatizado, desumanizado.” A frase entra em desacordo direto com a “feliz variedade” exposta sobre a página e participa, por sua forma e por seu enunciado, do campo da epígrafe. Mas as figuras parecem enfeudar-se nesse texto, uma casa, um carro, uma fábrica. Separadas pelo branco, sem nenhuma linha que mostre uma

79 L'ASSOCIATION. Éprouvette. Edição: Jean-Christophe MENU. Vol. 3. 3 vols. Paris: L'Association, 2007, p. 8.

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contiguidade entre os três objetos, elas têm a função de preencher aquele espaço e podem servir de referência ao “mundo pós-moderno”. Fragmentado, em que o homem se confunde com os objetos do ambiente: o balão de fala, da linguagem-prerrogativa- humana, vêm de uma máquina, o automóvel. O ritmo entre os três objetos também pode ser pressentido na similaridade entre a fumaça da chaminé, o balão (como se a palavra também exalasse feito fumaça) do carro, a fumaça da fábrica. Entre as duas citações, a leitura de uma BD é jocosa e ativa: uso de flechas, tracejados e a série de quatro personagens penetrando álbuns abertos dão movimento à cena. As duas citações (primeira e última) distribuem-se horizontalmente, quase fechando o alto e abaixo da página, colocando o texto em repouso, contrário ao caráter fragmentário dos desenhos que, aparentemente, não apresentam ligações entre si. É necessário inclusive “numerar” os exemplos dados para “simples, grande e engraçado”. A “bande dessinée” e a “bédé” servem de marcadores textuais que conectam esse discurso aparentemente desconexo. As primeiras páginas de CLBD, o termo [BD] já funciona como um adjetivo: “o espírito BD”. Seu uso ocorre nas mais variadas instâncias, notoriamente nas resenhas de filmes expostas entre as páginas 92 a 96: “filme mal acolhido pela crítica que denunciava ali uma estética de história em quadrinhos,” “próximo da B.D. (…), o filme de Verhoeven é de uma violência extrema,” “é uma história em quadrinhos com uma ponta de sadismo””, “nota-se um estilo B.D.” etc.; seu uso como qualificativo (“estilo B.D.”, “como em uma B.D.”) ocorre em geral como depreciativo, a não ser quando for uma adaptação de uma B.D., em que o “imaginário” ou “universo” é uma referência que se faz importante, ganha ou perdida (“a passagem da história em quadrinhos para a tela é mal feito [...]”).

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Figura 16: CLBD, p. 9

O capítulo 1, “Objet(s)”, comenta os objetivos do meio, iniciado com uma citação de Romain Gary que diz que “pode-se jogar rir de tudo com a história em quadrinhos,” uma infinidade de possibilidades que é logo desmentida pela frase condescendente “reverá função da história em quadrinhos é de distrair e fazer sonhar”, ou ainda a referência de que tais imagens seriam “buissonnières”, e qualquer seriedade de análise deve ser relaxada: “é preciso abordá-las com certa descontração” (Figura 16). O termo buissonnier, que em francês significa “insólito” ou, ainda “vagabundo”, no sentido de independente, errante, também significa “quem mora nos buissons”, tipo de arbusto. A ilustração de Gerner joga com estas significações, e à ideia de imagem vacante, inspiradora de distração, ele desenha três formas possíveis de arbusto, o florido, o ardente – a bíblica “Sarça Ardente” – e o arbusto espinhoso, em uma progressão que não deixa de evocar a dificuldade aumentada ao se penetrar nesse suposto “buisson”. A tira se apresenta vertical, indicando uma mudança de nível no discurso, como se aprofundasse do plano puramente visual, passando por uma interpretação (é o arbusto que “traduz” a Moisés sua missão) para, por fim, debater-se contra um tema que deixa de ser apenas “belo”, mas pode também ser complicado ou embaraçoso (“espinhoso”) – sobretudo tratando-se de um objeto visual aparentemente minoritário, cujo ressentimento de gueto acaba por deixá-lo isento de qualquer possibilidade de crítica.

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Abaixo da sequência de três quadros ilustrando os arbustos, um homenzinho verte uma lágrima, ferido pelos espinhos deste último. Há duas produções simultâneas de signos operadas por Jochen Gerner em seu trabalho. Primeiramente, pela via do desenho, os constrói a partir de elementos indiciais do referente representado. O “balão de texto” repetido por Gerner, citado nos exemplos dos hors-textes, é índice para história em quadrinhos, a expressão de uma sinédoque, em que as linhas horizontais são uma referência abstrata a um discurso contido no balão que, por sua vez, remete às histórias em quadrinhos. Um processo, portanto, metonímico de criação de sentido. A todo o momento há a produção de um desenho que, contraposto ao texto citado, lhe é comparado ou adquire significância a partir do texto, a operação contrária não é menos verdadeira. O texto e a imagem confrontados são comparados de forma elíptica, ou seja, a figuração de uma metáfora. Para Paul Ricœur, a metáfora não é distanciamento, mas redução do mesmo entre os sentidos, e o essencial para reconhecer uma metáfora seria, justamente, a “associação entre dois domínios inicialmente separados”.80 A metáfora entendida aqui, portanto, é uma “comparação elíptica”, sem os operadores textuais típicos da comparação. O sentido da metáfora é recuperado quando as isotopias contíguas ajudam a desenvolver um contexto tal. Vejamos como o balão também pode se transformar em signo icônico. Na página 7 (Figura 17), vemos no alto, à direita, uma sequência de quatro quadros em que o balão, em uso pelas propriedades da história em quadrinhos, tem função de ícone de fala. Suas dimensões ampliam-se de forma a criar uma significação de fala prolongada, prolixidade e “peso”.

Figura 17: CLBD, p. 7

80 DÜRRENMATT, La Métaphore. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2002, p. 15.

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Pela iteração de certos elementos, haveria uma criação de uma codificação própria – um idioleto. Assim, tais índices adquirem uma dimensão pictórica. a) há quadros, responsáveis pela divisão temporal da narrativa e o espaço entre eles (“sarjeta”) está bem marcado; c) há personagens: quadrinhos apresentam invariavelmente personagens agindo; d) há balões, indicando um diálogo; e) por fim, a sequência de quadros, contendo os mesmos personagens e um diálogo representam uma narrativa em curso, pela diferença entrevista (como em um jogo de sete erros). Tal narrativa usa recursos ínfimos para sua construção. Os personagens apresentam traços mínimos, e suas expressões também são alteradas minimamente, os olhos de um mudam de “ponto” para “traço”, demonstrando desconforto, que alcança um máximo no último quadro. O outro personagem, o falante (novamente o tipo-autor, que tagarela em quadrinhos) tem sua “exaltação” explicitada tanto pelo “aumento” de seu balão discursivo. Também as linhas inclinadas, signo reconhecido às vezes como de exaltação, impostação mais alta da voz, ou de aversão, ira, o que afeta o outro personagem, no último quadro, quando ele é finalmente atingido pelo discurso do outro. O “peso” do discurso do outro é explicitado por três recursos, todos imagéticos, mas que se entrelaçam com diversas referências culturais: as linhas representando uma fala qualquer, a gradação no aumento do balão de fala, o rosto do “ouvinte”, contorcendo-se à fala do outro.

2.3 O estilo

O estilo de um autor, ao ser identificado, pode gerar textos apócrifos pela via do pastiche ou da paródia, a repetição de certos elementos torna-se marca de um idioleto daquele autor. Estilo seria, portanto, um subconjunto das denotações que determina a execução de objeto ideal, uma arqui-denotação. Ele participa do conjunto de propriedades de imanência desse objeto que é transversal a diversos outros objetos. Um texto literário é um objeto de imanência cuja possibilidade de funcionar para além de um original (regime alográfico) permite que seus traços sejam reproduzidos em exemplares diferentes sem a perda de seus traços elementares, sem desnaturar. O conjunto de suas propriedades denotam o mesmo objeto (um objeto ideal) e cada objeto individual reproduzindo tais propriedades constitui sua manifestação, por exemplo, as diferentes edições de Dom Casmurro conteriam a mesma obra, e a possibilidade de comparação entre elas (cotejo, ilustrações, edição anotada) não degradariam a obra

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quanto o seria uma reprodução de uma pintura (regime autográfico).81 Para um texto ser considerado literário, presume-se que ele seja escrito.82 Os traços do texto escrito, suas especificidades, já são, em si, propriedades que denotam uma determinada espécie de expressão. O estilo participa no interior desse conjunto como uma subespécie de texto que constrange a escrita ao mesmo tempo em que a identifica com um determinado conjunto de textos. E o estilo de um autor reúne os usos formais (sintáticos) e semânticos (vocábulos, temas) que podem ser identificados como usos costumeiros de determinado autor. Para a história em quadrinhos, quadros, balões, textos, personagens são os componentes de seu código. Os modos de usar tais elementos e sua distribuição pela página são decisões inerentes a um determinado estilo (de época, coerência individual, desvio de norma). Roland Barthes distingue língua (parole) e estilo ao desenvolver sua noção própria de escrita (écriture). A língua, entendida por ele como um conjunto de “prescrições e hábitos” comungado pelos indivíduos (escritores ou scriptores) de um determinado período, representa o eixo horizontal do espaço da escrita, “um reflexo sem escolha”, “um objeto social por definição, não por eleição”. “A fala tem uma estrutura horizontal”: a palavra serve a ser partilhada em sociedade.83 O estilo, por sua vez, corresponde ao eixo vertical do mesmo espaço construído, que reúne não o sociável mas o secreto, a reunião de fatores pessoais do indivíduo que compõem a materialidade de seu estilo,

[...] as imagens, um ritmo, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam pouco a pouco automatismos mesmos de sua arte. Assim, em nome do estilo, se forma uma linguagem autárquica, que mergulha em uma mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofísica da fala, onde se forma o primeiro acoplamento de palavras e coisas, onde se instalam uma vez por todas os grandes temas verbais de sua existência. Qualquer que seja seu refinamento, o estilo tem sempre algo de bruto: ele é uma forma sem destino, ele é produto de um impulso, não de uma intenção, ele é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento.84

81 Cf. GENETTE, Gérard. L'Œuvre de l'art. Paris: Seuil, 2010. 82 A literatura oral é um campo tão vasto quanto a escrita, cujas propriedades lhe são também específicas e diferentes do texto escrito: como reproduzir oralmente um neografismo ou as aspas? Da mesma forma, o ato mesmo de transmissão da história oral, seja nas rodas comunitárias ou no contar de pai para filho, i.e., o modo mesmo na qual ela é contada constitui um signo – transmissão ou partilha de um saber, sentimento de pertencimento a um grupo ou família). 83 "BARTHES, Roland. Le Degré zero de l’écriture suivi de Nouveaux Essais critiques. Paris: Seuil, 1972, p. 11, 12. 84 “... des images, un débit, un lexique naissent du corps et du passé de l’écrivain et deviennent peu à peu les automatismes mêmes de son art. Ainsi sous le nom de style, se forme un langage autarcique qui ne plonge que dans la mythologie personnelle et secrète de l’auteur, dans cette hypophysique de la parole, où se forme le premier couple des mots et des choses, où s’installent une fois pour toutes les grands thèmes verbaux de son existence. Quel que soit son raffinement, le style a toujours quelque chose de brut : il est

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Entre os dois eixos, articula-se uma escrita. Portanto, no eixo vertical, le style: forma, idioleto, solidão. No eixo horizontal, a arte e a língua: a comunicação com a sociedade. A escrita (écriture) é a materialidade da obra literária, coordenada pelo fator social/histórico impresso na língua e pelas escolhas intencionais ou não do autor.

[...] adotar uma escrita – poderia dizer ainda melhor – assumir uma escrita –, é fazer a economia de todas as premissas da escolha, é manifestar como adquiridas as razões dessa escolha. Toda escrita intelectual é então o primeiro dos “saltos de intelecto”.85

A escrita seria a área entre o estilo individual e a língua ou restrições de gênero (da arte, da linguagem escolhida) – e não seria por acaso que Jochen Gerner faz uso do termo “écriture” para falar do que faz. Uma análise de estilo das histórias em quadrinhos implica compreender fatores da escolha do autor (o estilo) e as demandas de gênero, e este último ocuparia, para mim, o eixo da língua no gráfico barthesiano. Digo “gênero” no sentido de “escola” difundido entre os amadores de quadrinhos para determinar os códigos comuns a uma determinada comunidade de autores, a “escola franco-belga”, a “escola Zap” (de Crumb), e estendo esse termo às tipologias de quadrinhos participando de um imaginário popular. Assim, também me refiro ao mangá genérico, ao gibi de herói genérico, aos traços arquetípicos e facilmente discerníveis uns dos outros. Dada a amplitude das relações entre texto e imagem na “língua” quadrinhos, corresponderia a uma língua partilhada por determinado grupo de produtores e leitores – não haveria a possibilidade, para o mercado de gibis americanos, por exemplo, da publicação de um álbum francês sem que isso fosse visto como uma aberração. De certa forma, os grandes gêneros são difundidos culturalmente como uma língua nacional, e a nouvelle bande dessinée só teria podido resistir com a criação de uma nova “comunidade linguística”, com suas próprias definições – em que a noção de estilo é uma constante urgente. Will Eisner usa o termo “scan” (percorrer, perscrutar) para falar da operação realizada por um leitor ao se deparar com uma página de quadrinhos, e a pesquisadora Catherine Mao, em sua tese sobre a autobiografia em quadrinhos (1982-2013), chama a atenção para a natureza dessa página: “Em uma história em quadrinhos, a extensão panóptica permite ao leitor de abraçar a página inteiramente com o olhar: esse último tem então sob seus olhos uma pluralidade de quadros, submetidas a uma lei de

une forme sans destination, il est le produit d’une poussée, non d’une intention, il est comme une dimension verticale et solitaire de la pensée.”Ibidem, p. 12. 85 “adopter une écriture – on pourrait dire encore mieux – assumer une écriture –, c’est faire l’économie de toutes les prémisses du choix, c’est manifester comme acquises les raisons de ce choix. Toute écriture intellectuelle est donc le premier des “sauts de l’intellect” kIbidem, p. 23.

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interdependência”86. O poético da história em quadrinhos para Mao estaria justamente quando o autor acentuaria o que liga tais elementos, colocando-os ao mesmo nível de relevância que a narrativa. Ela usa o termo “liens” que prefiro traduzir para “nós” fazendo uso do termo que cita Groensteen em seu Système de la bande dessinée,87 no caso para falar da tessitura entre imagem e texto. Ela ocorre nos mais diversos níveis do ato enunciativo de uma história em quadrinhos,88 a criação de uma “rede semântica”, “estruturada como um labirinto de nós interconectados” 89. Labiríntica ou, simplesmente patchwork, os “nós” ainda evocam o vocabulário barthesiano da costura de um texto. Podemos comparar a essa escrita ao que o teórico Groensteen chama de “operação de tessitura [tressage]” na história em quadrinhos: “o estabelecimento de uma relação notável, para além dos laços de causa/consequência”,90 para além da relação entre as vinhetas, mas em toda a trama da página: a margem, o quadro, a figura, a letra. Tal relação, para o ensaísta Pierre Sterckx, constituiria a figura retórica da silepse, chamando a atenção para a conjugação de duas ordens na página, a da narrativa e a da plasticidade. 91 A “tessitura” das histórias em quadrinhos se daria, primeiramente, pelo nó entre seus elementos, texto-texto, texto-imagem, página-página etc.. Por ser “tecida”, cada obra também constituiria um Texto (ainda no sentido barthesiano), do qual emana outros laços hipertextuais, tanto no nível verbal quanto no figurativo, assim como na relação entre ambos. A escrita é essa realidade formal entre língua e estilo, os últimos “o produto natural do Tempo e da pessoa biológica”, 92 e a primeira é o lugar em que tais elementos se conjugam, é “a moral da forma”, a carga de intencionalidades, o gesto de um autor. “Todo vestígio escrito se precipita como um elemento químico a princípio transparente,

86 “Dans la bande dessinée, l’étalement panoptique permet au lecteur d’embrasser entièrement la planche du regard : ce dernier a alors sous les yeux une pluralité de cases, soumises à une loi d’interdépendance.” MAO, Catherine. La bande dessinée autobiographique francophone (1982-2013): Transgression, hybridation, lyrisme. Tese (Doutorado em Letras) Universidade Paris IV, 2014, p. 394. 87 GROENSTEEN, Thierry. Système de la bande dessinée. Paris: PUF, 1999. 88 “O que me atrai, são os laços que tecemos em nossa mente assim que observamos duas imagens lado a lado [Ce qui m’attire, ce sont des liens qu’on tisse dans notre esprit lorsqu’on observe deux images côte à côte]”, diz Gerner em entrevista à revista Zut (GERNER, Jochen, entrevista feita por Benjamin BOTTEMER. “Chasseur de fantômes.” ZUT ! MAGAZINE Lorraine 08. Outubro de 2014). 89 ECO. De l’arbre au labyrinthe, p. 79. 90 “... la mise en place d’une relation remarquable, au-delà des liens de causalité / consécution”. GROENSTEEN, op. cit., 1999. 91 STERCKX, Pierre. “Bédé et art contemporain.” artpress nº 26 – spécial "Bande d'auteurs", 2005: 108- 115. Como exemplo dessa silepse, Sterckx analisa um quadro do autor de quadrinhos Mœbius, em que um rapaz à la Tintin habita diferentes ordens heterogêneas sobre um mesmo espaço, um plano e um alto relevo. Segundo Sterckx, o desenho de Mœbius herda de dois distintos pintores: Dalì, representativo, e Kandinsky, que prefere a superfície, ele concluindo que a história em quadrinhos como um todo seria em si uma silepse, fazendo concordar o ato narrativo – elaborado através da enunciação, conduzida pela distribuição de ações em uma cronologia – e a plasticidade, que carrega em si uma construção semântica, e que também evoca uma enunciação. 92 “... le produit naturel du Temps et de la personne biologique”. BARTHES, op. cit., p. 14.

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inocente e neutro, no qual a simples passagem do tempo faz aparecer, pouco a pouco, todo um passado em suspenso, toda uma criptografia cada vez mais densa”. 93 Barthes escreve tal texto nos anos 1950, remetendo à materialidade do texto literário para além das figuras da História e do Autor. Para compreender a escrita ou a obra, para entender como se forma sua materialidade, a forma que toma, podemos partir dos elementos que partilha ela com seu Tempo (a “língua”.) e o estilo de seu autor. A história em quadrinhos pode ser analisada também a partir da área bidimensional entre língua e estilo, sendo a “língua” o correspondente à estrutura da espécie quadrinhos para um determinado gênero (heróis da Marvel e DC Comics têm em comum um mesmo dispositivo, em que os efeitos “espetaculares” são a regra, não a norma; a linha clara traz restrições estéticas de fácil assimilação para o público infanto-juvenil) e o “estilo” seria o desvio da norma de um determinado subgênero dos quadrinhos (Watchmen parte do gênero comics de heróis mas faz uso de recursos estéticos próprios, como a distribuição geométrica dos quadros e a capitulação; Daniel Clowes ou Chris Ware são artistas que utilizam o código da linha clara mas abusam de recursos temáticos e estilísticos próprios e bem distantes da puerilidade que emanaria como natural desse modelo).

2.4 A enunciação gráfica

Para além da reunião e distribuição de textos, CLBD é um dispositivo a predominância visual, irredutível ao “sentido” de seus textos: conjugando a palavra às figuras desenhadas, a escolha da letra, a forma em que se dá a paginação, a posição dos elementos sobre a página engendram uma enunciação de planos mistos. Uma análise estilística de uma história em quadrinhos poderia levar em conta tanto o plano do enunciado (enunciação), ou seja, aspectos de nível verbal, sintático e semântico quanto o de seu enunciado gráfico, ou grafiação (graphiation), termo concebido pelo teórico Philippe Marion nos anos 1970. Ele descreveu como as propriedades mínimas do desenho também são aspectos de uma enunciação específica.94 Seria sobretudo no campo da grafiação que se articulará uma assinatura ou um estilo do autor em termos de histórias em quadrinhos. A grafiação (graphiation) provém da noção de “mostração” (monstration) desenvolvida, por sua vez, pelo teórico do cinema André Gaudreault. A mostração serve a perceber como os elementos vistos na imagem (cinematográfica) também corroboram em uma enunciação, para além da enunciação de

93 “Toute trace écrite se précipite comme un élément chimique d’abord transparent, innocent et neutre, dans lequel la simple durée fait peu à peu apparaître tout un passé en suspension, toute une cryptographie de plus en plus dense.” BARTHES, op. cit., p. 16. 94 BAETENS, p. 225.

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um narrador ou dos diálogos verbais travados em cena. Nas palavras do teórico Jean- Marie Schaeffer, poderíamos simplificar como em “o que uma imagem dá a ver, enquanto a representação é a que ela remete, a propósito do que ela é”.95 O pano de fundo, a vestimenta dos personagens, também carregam operadores discursivos, modulam o tom, acrescentam sentidos. À noção de narração, o conceito pretende verificar, no plano narrativo, como os personagens asseguram a progressão narrativa para além do encadeamento de eventos apresentados por um narrador. Gaudreault estabelece tal conceito para sua análise da imagem cinematográfica, e Marion cinde o conceito de mostração em mostração e grafiação, no ensejo de assinalar o gesto do desenhista (ou graphiateur, grafiador) como mais um nível sígnico – além de conter a assinatura de seu autor, de certa forma o gesto do desenhista também seria um modo de enunciar. A presença do grafiador (graphiateur) estaria mais marcada quanto mais o desenho apresentar o que ele chama de “efeito de esboço” (effet d’esquisse), remetendo ao sujeito que desenha, ao fato da imagem ser um desenho e não apenas uma comunicação, mensagem transparente. Por outro lado, quanto mais transparente é o desenho evocado, menos presente seria a figura do enunciador gráfico.

O processo de mostração se apaga por detrás do todo poderoso simulacro analógico que ele tende produzir. Ora, em história em quadrinhos, a matéria gráfica faz sempre resistência, opacidade, e ela impede a mostração de ser plenamente transitiva.96

O também teórico Jan Baetens, analisando a tese de Marion, assinala que a mesma pode ser reformulada como “um conflito entre o plástico (que seria da ordem da grafiação) e o icônico (que seria da ordem da grafiação), que aparecem aqui como inversos proporcionais.”97 O aspecto gráfico não será apenas verificado no plano do desenho enquanto ilustração, mas a página como um todo, incluindo nela a própria forma em que o texto está apresentado (a tipografia ou a caligrafia). O grafiador (graphiateur) ou enunciador gráfico não é a figura de um autor em carne e osso, mas uma instância fantasmática construída pelo leitor, mais ou menos aparente de acordo com traços de sua presença. Quanto mais o desenho remeta ao gesto elaborado por seu

95 Groensteen cita Schaeffer que, por outro lado, era contrário à ideia de uma narração no campo visual. “… ce qu’une image donne à voir, alors que la représentation est à quoi elle renvoie, ce à propos de quoi elle est.” SCHAEFFER, Jean-Marie apud GROENSTEEN, op. cit., 1999, p. 11. 96 “Le processus de monstration s’efface derrière le tout puissant simulacre analogique qu’il tend à produire. Or, en bande dessinée, la matière graphique fait toujours résistance, opacité, et elle empêche la monstration d’être pleinement transitive.]” MARION, apud BAETENS, Jan. “Sur la graphiation: une lecture de Traces en cases.” 223-235. P. 226. 97 “… un conflit entre le plastique (qui serait de l’ordre de la graphiation) et l’iconique (de l’ordre de la monstration, tout problème de narrativité bien sûr mise à part), qui apparaissent ici comme des inverses proportionnels”.

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grafiador, mais aparente estaria esta figura. Pois então haveria três operações no interior de uma BD, a narração – aquilo que as sequências exibem como uma sucessão narrativa –, a mostração – elementos da imagem que acrescentam camadas ao fluxo narrativo –, e a grafiação, “identidade gráfica perceptível” – a composição gráfica que se coloca mais ou menos transparente para o leitor, chamando mais ou menos a atenção para a materialidade da página da narrativa. No caso de CLBD, o ponto de vista do texto distribuído pela via da citação é contraposto a uma mise en scène de perspectiva invariável, desde a grafia uniformizante a um ponto de vista único. Por outro lado, o conceito de Marion distingue algo que seria indiscernível a priori, a plasticidade e a narratividade da página em quadrinhos. Sendo impossível separar estilo e a estrutura do código (como é impossível um grau zero da escrita),98 o professor e teórico Jacques Dürrenmatt propõe pensar a grafiação como o gesto que interrompe a fluidez do que é mostrado, “que impede a transparência da mostração”, a “função poética” própria à história em quadrinhos, no sentido em que Jakobson escreve, de colocar “em evidência o lado palpável dos signos, aprofunda pela mesma dicotomia fundamental os signos e os objetos.”99

Marion volta, de fato, a distinguir o trabalho sobre a matéria verbal (assimilável ao que se chama geralmente estilo e representação linguageira, forma moderna de retomar uma separação entre forma e fundo da qual todas as espécies de abordagens críticas mais ou menos recentes demonstraram a impossibilidade. A imagem possui um estilo, ao mesmo título em que o texto lhe é consubstancial, que não deixa se reduzir a um inventário de características técnicas [...].100

O lugar do literário de uma história em quadrinhos, para além da presunção de se pôr em relevo um texto literário (“les lettres de noblesse”, o título adquirido para elevar-se a um nível “superior”), ou do abuso do estilo, de uma grafiação tagarela, residiria na conjunção desses dois níveis, a silepse como mencionei. Assim, trabalhos elaborados pela “linha clara” – no meio cultural daqueles que comungam dessa mesma “língua” genérica – seriam menos carregados por essa figura por sua rápida compreensão que remeta mais para a realidade da narrativa do que para a materialidade gráfica do quadrinho.

98 Nas palavras do poeta italiano Edoardo Sanguinetti, “oggi il mio stile è non avere stile:” (sic). 99 “… met en évidence le côté palpable des signes, approfondit par là même la dichotomie fondamentale des signes et des objets.” JAKOBSON apud DÜRRENMATT, Bande dessinée et littérature. Paris: Classiques Garnier, 2013, p. 159. 100 “Marion revient, de fait, à distinguer travail sur la matière verbale (assimilable à ce qu’on appelle généralement style et représentation langagière, façon moderne de revenir sur une séparation de la forme et du fond dont toutes sortes d’approches critiques plus ou moins récentes ont montré l’impossibilité. L’image possède un style, au même titre que le texte qui lui est consubstantielle, qui ne se laisse pas réduire à un inventaire de caractéristiques techniques […].” DÜRRENMATT, Jacques. op. cit., 2013, p. 159.

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O gráfico que exibo em seguida ampara uma análise possível do estilo em quadrinhos,101 instrumentos que ajudarão a melhor identificar suas particularidades (Quadro 1):

Quadro 1: Os componentes de uma enunciação em quadrinho

registro linguístico ponto de vista recitativo texto relações (enunciação verbal) compósito morfossintáticas balão

tipografia

desenho cor (grafiação)

traço

narrador (focalização)

mise en scène ponto de vista (mostração) leitor (ocularização)

enquadramento montagem

mise en page (artrologia) decupagem seleção distribuição

Dessa forma, em uma história em quadrinhos, poderíamos observar vários níveis que compõem a sua enunciação:

• o nível do texto (a enunciação verbal), que se elabora a partir de um sujeito (o ponto de vista), o je [eu] no texto, os dêiticos, distribuídos em seus compósitos específicos, o recitativo ou o balão ou ambos. • O nível do desenho (a grafiação propriamente dita): cor e traços dando a ver um sentido. • O nível da cena dentro do quadro, a mise en scène, a mostração.

101 A partir de quadro proposto por Jacques Dürrenmatt em suas aulas.

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• A articulação dos elementos sobre a página, mise en page, ou a artrologia em que o sentido é potencializado pelo laço entre cada um desses elementos, como eles se articulam entre si. A distribuição dos recitativos já seria em si um elemento enunciativo que parte da imagem para criar sua significância. Da mesma forma em que é texto, marcado por operadores linguísticos (o registro linguístico, as relações morfossintáticas), sua posição na página é imagem e pode trazer sentido. No esquema mostrado, é possível perceber como o ponto de vista é tão importante para esse texto quanto para o fato de estar em um balão ou em um recitativo. A tipografia é outro elemento na fronteira entre o desenho e a escrita como marca enunciativa. Dando materialidade ao texto, ela também pode funcionar como operadora discursiva. Na edição de Exercices de style de Raymond Queneau com tipografias especiais desenvolvidas por Massin, a palavra “metaforicamente” exibe um “M” que se multiplica em si e sobre si, redundante (Figura 18). A forma da letra também é produtora de sentido, e encontra-se na fronteira entre a imanência do objeto manifestado e a transcendência do verbalizável (os traços capazes de terem manifestações de formas diferentes sem perda importante da significação).

Figura 18: Tipografia metafórica, por Massin

O desenho se confundiria com o plano da grafiação, cujos componentes seriam a cor e o traço. Tendo a pensar que a mise en page ou a articulação (artrologia) entre as vinhetas ou outros elementos verbo-icônicos da página também podem compor a grafiação, por também serem traçadas a partir de um estilo escolhido pelo autor – ou determinantes de gênero. A mise en scène corresponderia, a meu ver, ao campo da mostração: a apresentação da cena, disposição dos personagens, eleição dos pontos de vista (ancoradas na focularização ou ocularização). É na mise en scène em que se pensa o enquadramento e a consequente montagem da cena – montagem não é apenas a seleção de cenas para elaboração de uma sequência posterior ao take, mas também o pensamento do enquadramento, êmica à cena.

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A mise en page é o momento da distribuição desses elementos, a partir da decupagem prévia ou que acontece junto aos outros níveis de enunciação. É a seleção (eleição) do que entra na página, de como tais elementos se relacionam nessa página e, consequentemente, com o restante da narrativa. Em quadrinhos, não são apenas os eventos que podem produzir uma impressão no leitor, mas também o próprio uso das cores, do enquadramento, a repetição, a alternância são alguns dos elementos que podem determinar sua estilística. Por exemplo, aqueles que Groensteen enumera ao descrever o Louis Riel de : em uma sequência de duas páginas, o autor canadense conjuga traços clássicos da história em quadrinhos com uma iteração icônica parcial desses quadros “clássicos”, provocando um efeito de espera prolongada na narrativa.102 O formato “gaufrier”, uma configuração espacial da página provindo de uma tradição da história em quadrinhos – seu traço “clássico”–, revela-se impactante pela cadência desenvolvida na repetição sem uma progressão narrativa. Para Groensteen, a reiteração prolonga o “insustentável”, e sua analogia é com a expressão teatral, a da “tensão dramatúrgica”. As alternâncias, nessa configuração cuja iteração é parcial, gera efeito rítmico.103 Podemos identificar nas páginas de Brown, tanto pelo tema quanto pelo uso de formas gráficas que esse seu livro específico se inclui no conjunto de objetos em quadrinhos que tratam de um tema histórico: sendo o livro uma narrativa baseadas em fatos sobre a biografia do líder francófono (Louis Riel) que tentou libertar o do Canadá. Porém seu livro se distingue do gênero “quadrinhos históricos” da primeira metade do século XX pelo fato de não apresentar os seguintes traços desses últimos: os personagens não estão apresentados na forma plástica recorrente no quadrinho histórico, (do efeito de realidade). A sucessão dos quadros no quadrinho histórico priorizava denotar ações e movimento (neste, marca-se silêncios e esperas); não há tampouco o recitativo dos quadrinhos históricos que visavam corroborar com uma ideia de fidedignidade aos documentos -fonte, hierarquizando o texto como elemento primordial da narrativa. No modelo “histórico”, fazia-se da imagem uma ilustração, no sentido de explicitar ou invocar para o leitor um conteúdo imagético que por ventura ele não possui; ou, ainda, invocar o imaginário partilhado sobre o evento com pretensão de produzir um efeito afetivo no leitor. Assim, ao criar efeitos rítmicos ou a “tensão dramatúrgica” na história, Brown não pretenderia afetar o leitor com uma suposta fidedignidade com o fato, ele promoveria

102 BROWN. Louis Riel. Casterman, pp. 206-207. 103 Pontos de vista, três valores – preto, branco, cinza –, e ele também chama atenção para o “efeito de tabuleiro de xadrez/estroboscópio” (GROENSTEEN, op. cit., 2011, p. 160).

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uma imersão na tensão interna sofrida por esse personagem – tensão de ordem fictícia, no sentido de provocar não apenas efeito de ordem epistemológica (dar a conhecer ao leitor um determinado elemento histórico) como também produzir um clima narrativo (efeito estético). Quiçá a elaboração de um efeito simbólico, sendo uma narrativa sobre o povo francófono do Canadá escrita em inglês. Ele não apenas o narra (no sentido de aderir ao fato histórico e tentar reproduzi-lo de forma “real”), Brown desloca o fato histórico de modo a criar, a partir dele, esses efeitos estéticos e simbólicos, o que ressoa como um fazer poético ou literário em história em quadrinhos, em que o estilo vem somar à narrativa uma nova rede de significância. A conexão entre as duas ordens, a da narrativa e a da plasticidade seria específica da história em quadrinhos, na figura da silepse. O estilo de um autor poderia ser observado na ordem da plasticidade (o que a página dá a ver), mas também é composto pelo modo em que constrói a sequência narrativa (o que a página conta). E é o traço de Brown que seria o determinante de sua identidade como autor. A chamada “linha clara”, estilo canônico do quadrinho franco-belga, define-se pela ênfase na clareza comunicativa do desenho. A “clareza” esconderia um autor presente, dissimulando seu gesto em benefício de uma fluidez narrativa, alienando o fato de tal objeto ser uma obra de criação de um sujeito. A escola da “linha clara” encontra seu maior exemplo a partir do Tintim de Hergé (1907-1983). Sua ampla difusão se confunde com o gênero das histórias em quadrinhos infanto-juvenis. É preciso assinalar o caráter ideológico das figuras bem demarcadas e da ausência de sombras, a eliminação de qualquer indício de embaralhamento entre os objetos e personagens enquadrados; imprime-se a ideia confortadora de bem contra mal, todos bem distinguíveis. Isso fica mais evidente no cotejo entre edições diferentes de uma mesma narrativa de Hergé: ainda nos anos 1930, seus livros eram em preto e branco. Ao publicá-los em cores, Hergé não apenas definiu a sua paleta típica (vocabulário limitado de cores) como eliminou alguns detalhes das obras originais que poderiam causar certo embaraço frente à censura crescente sobre os materiais de leitura.104 Ele eliminou, por exemplo, cenas em que um dado personagem batia no outro, criando elipses entre a mão que se levanta para bater e, no quadro seguinte, o personagem atingido já havia recebido o “soco”, eclipsado e evocado pelo pictograma característico de dor: “estrelinhas”. Em TNT en Amérique, obra em que Gerner cria um recobrimento a partir do livro Tintin en Amérique (versão de 1949) de Hergé, as “estrelinhas” são extremamente presentes. No livro original, elas estão disseminadas como signo de uma violência velada, que é evidenciada pela censura às avessas que faz Gerner.

104 Uma lei de 16 de julho de 1949 interditava em abundância obras em quadrinhos e livros “obscenos”; quadrinhos americanos como Tarzan foram proibidos na França pelo teor “violento”.

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Por um lado, o estilo marca a presença de um sujeito que agencia o que mostra. Sabemos que essa posição nunca é neutra, o grau da escrita é modificado pela língua usada pelo seu autor, carregada de marcas (a língua francesa já aponta para qualidades político-sociais possíveis de serem inferidas pela figura do Francês; o uso da história em quadrinhos demanda a leitura de um público específico etc.). Da mesma forma, poderíamos nos indagar sobre de que forma a enunciação gráfica de Gerner aponta para o lugar da enunciação. CLBD é um livro composto de enunciados extraídos de momentos diversos, de enunciações ocorridas de maneiras diferentes, dirigidas a interlocutores também variados. A enunciação é definida por Ducrot e Todorov como “um ato no decorrer do qual [frases ditas, transcritas com escritas diferentes, impressas etc.] se atualizam, assumidas por um locutor particular, em circunstâncias espaciais e temporais precisas”. 105 As teorias de enunciação se preocupam, como se sabe, com os aspectos linguísticos da enunciação, os estudos de como a dêixis pode remeter, além dos elementos catafóricos e anafóricos para elementos indiciais do discurso. As pesquisas de Jakobson estabeleceram que as relações discursivas envolvem um enunciador (locutor), um destinatário (alocutário), o canal, a mensagem, seu código, a referência. As categorias gramaticais de uma enunciação informam sobre seu processo, as semânticas da enunciação, por sua vez, remetem à “identidade dos interlocutores, ao tempo da enunciação, a seu lugar e a suas modalidades (ou a relação entre os interlocutores e o enunciado)”.106 Se a grafiação pode ser entendida como uma enunciação gráfica elaborada por Gerner, o “graphiateur”, e o livro como um todo seriam o canal de uma enunciação dirigida a um interlocutor, os motivos gráficos reiterados ao longo do livro (sejam eles de estilo ou figuras próprias desta “linguagem”) são também enunciados múltiplos (polifônicos, posto que provindos de enunciadores diversos) que compõem tal “texto”. De certa forma, ao citar um enunciado gráfico de outro autor, é preciso também transpor as marcas dessa enunciação. A imagem também é o lugar de um evento discursivo; o evento mesmo, um enunciado visível. Uma enunciação em quadrinhos apresenta, portanto, o nível gramatical que se encontra no texto e no paratexto (o nome do autor substitui-se à presença da enunciação falada); o nível semântico pela posição no tempo e no espaço desse momento enunciativo; o nível da mostração que é denotado pela caracterização

105 DUCROT, Oswald, e Tzvetan TODOROV. Dicionário enciclopédico das Ciências da Linguagem. 3a edição. 4a. reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 289. 106 Ibidem, p. 290.

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dos cenários e dos personagens, por como a ação é apresentada; o nível da grafiação – de ordem plástica –, em que o traçar, as cores e a distribuição dos elementos plásticos sobre o livro são também marcas de enunciação. A escolha de um determinado estilo gráfico aponta para as filiações éticas e estéticas em que o livro se engaja. Se a tipografia será caligráfica ou não, o registro textual, o uso de recitativos, mais ou menos textos, a relação entre a leiturabilidade do texto ou uma opacidade do desenho frente ao fluxo narrativo, são esses os determinantes dos diferentes níveis de uma história em quadrinhos que se concretizam em uma superfície material, visível, gráfica. Um projeto tradicional de história em quadrinhos seria aquele que pretende eliminar marca enunciativa, minimizando ou tornando invisível a figura (o gesto) do autor. Um projeto melhor acabado seria aquele que não faz seu leitor notar as possíveis enunciações estilísticas ou de gênero, a transparência de que fala Philippe Marion. A história em quadrinhos seria “muito pouco tentada pelo embaralhamento, ou até mesmo o estremecimento dos significantes, apareceria, logo, menos inventiva,”107 i.e., o quadrinho tradicional tentaria eliminar a ambiguidade tanto no plano visual quanto narrativo, em benefício de uma comunicação ligeira (a busca da transparência). Por outro lado, ainda há muitos autores que prolongam a página, fazendo-nos voltar a ela, criando efeitos que joguem com a temporalidade espacial do desenho ou alternando diferentes ordens visuais em uma mesma espaço-topia – a silepse de que fala Sterckx seria justamente a possibilidade de fazer concordar o que se vê e a narrativa que segue, e podemos pensar em uma poética da história em quadrinhos que a analise por esses nós. Os aspectos da grafiação de CLBD evocam uniformidade: cor “chapada” (única, sem gradações), espessuras do traço de variação ordenada, ausência de enquadramento e de perspectiva – ainda que desenhando arquiteturas, há um efeito de bidimensionalidade, aproximando o desenho o mais próximo possível da imagem (icônica) de um texto escrito. A técnica de desenho usada por Gerner nessa obra intercala dois instrumentos distintos, o pincel e a caneta, variando apenas em espessura. O uso de uma cor uniforme e única, o preto, não se reporta a um nível simbólico da imagem e nem configura um estilo particular do autor. Apesar de podermos vislumbrar uma identidade em seus desenhos, varia a escolha de cor e material de livro a livro. A cor, em CLBD, também converge no projeto estético de um livro de textos, com textos e sobre textos. Seu traço é “mínimo”, mas bem marcado, deixando à mostra que retorna a

107 “...très peu tentée par le brouillage, ou même le tremblement des signifiants, apparaîtrait dès lors moins inventive.” STERCKX, Pierre. op. cit., p.. 115.

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linha, para fazê-la mais espessa, combinando um interessante efeito de esboço (a marca da mão, as “imperfeições”) com um efeito de cálculo das figuras e letras bidimensionais e sem perspectiva, bem ancoradas no eixo horizontal da página. O traço de Jochen Gerner alterna-se entre o razoavelmente espesso e o bem marcado, mas “impuro”, dando a ver que tanto letra quanto desenho são feitos à mão, apesar do caráter retilíneo constante dado a ver pela disposição de imagens e textos, alinhados tanto horizontal quanto verticalmente. As linhas são contínuas, mas é possível perceber que o autor “retorna” sobre o desenho para delinear melhor alguns elementos, fazendo o efeito do traço levemente desajeitado, feito a pincel. É um trabalho final que se aparenta a uma tipografia, a uma escrita, de uma vontade do desenho medido, equilibrado, ao mesmo tempo em que não apaga essa mão que grafa.108 “Não é nada Chris Ware”, comenta ele, 109 lembrando-se da destreza do autor americano, conhecido pelos seus originais já precisos ainda no esboço. O americano também relaciona seu trabalho ao da escrita, dizendo que a história em quadrinhos que produz é para ser lida, não apenas ser vista.

Penso que as histórias em quadrinhos são uma espécie de escrita com imagens e adaptei deliberadamente a abordagem técnica da tipografia ao desenho. [...] Ao mesmo tempo, há uma humanidade evidente nessa velha tipografia, e esse maneira antiga de fazer o letreiramento que simplesmente não está lá entre as fontes dos computadores de hoje. Aliás, não considero meu grafismo de história em quadrinhos desenho de verdade. É uma espécie de tipografia simbólica. Quero que a emoção provenha da história, não do traço (um pouco como um compositor poderia desejar que a emoção sentida graça à uma música seja contida na peça mesma e não em sua interpretação), apresentando tudo isso da maneira mais clara possível, pois é assim que nosso espírito nos leva a crer o que percebemos.110

Como Ware explica, há uma escolha deliberada em se realizar o desenho a partir de uma técnica tipográfica. O “feito à mão” traz um impacto diferente para o leitor, que ele

108 Em seu pequeno livro Moments clés de l’Association, o também oubapiano François Ayroles ilustra uma série de “fatos” envolvendo atores da editora francesa, e desenha seu colega Jochen Gerner: o corpo longilíneo, abraçando e observado folhas de papel. A legenda, “Jochen Gerner achète du papier millimitré”, é completada por um coração sobre a cabeça desenhada de seu colega (AYROLES, François. Moments clés de L'Association. Paris: L'Association, 2012). 109 Entrevista, infra, p. 264. 110 “[Je] considère que les bandes dessinées sont une sorte d’écriture avec des images et j’ai délibérément adapté l’approche technique de la typographie au dessin. […] En même temps, il y a une humanité évidente dans cette vieille typo et cette façon ancienne de faire le lettrage qui n’est tout simplement pas là dans les polices des ordinateurs d’aujourd’hui. D’ailleurs, je ne considère pas mon graphisme de bande dessinée comme du vrai dessin. C’est une sorte de typographie symbolique. Je veux que l’émotion provienne de l’histoire, non du trait (un peu comme un compositeur pourrait souhaiter que l’émotion ressentie grâce à une musique soit contenue dans la pièce elle-même et non dans son interprétation), en présentant tout cela de la manière la plus claire possible, puisque c’est ainsi que notre esprit nous amène à croire que nous percevons.” WARE, Chris, entrevista feita por Klaire Lijn International. Échanges avec Chris Ware (08 de Março de 2010.

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chama de “humanidade evidente”, gerando a “tipografia simbólica”, tal como ele caracteriza o seu próprio estilo gráfico (graphisme). Gostaria de sublinhar essa vontade de tornar o desenho uma tipografia, como transformando a figura em tipos, uma iteração ou, dizendo como Derrida, restance: a estrutura da língua criada por Ware, os signos que são iterados para adquirir sentidos no ato de “sobrar” (rester no sentido do traço, do resto, em oposição à permanência).111 A tipografia, nesse contexto, é hipônima de uma escrita, aqui antagônica do desenho. A priori, o desenho seria sempre único, enquanto a escrita é uma combinação de caracteres abstratos. A bande dessinée, por sua vez, transforma o desenho em uma escrita pelo seu caráter iterável. Se o branco entre os quadros permitem a um leitor completar a história – alguns considerando a história em quadrinhos uma arte fragmentária por excelência –, o mínimo desenhado por Gerner se aproxima ainda mais de uma estética da magreza, em um desenho economicamente negativo, recusando um uso excessivo de linhas e cores. Apesar de fazer uso do imaginário provindo da cultura industrial (e de massa), o recria em linhas mínimas, em formas mínimas, se encaminha para o traço pictográfico. Seu trabalho pode ser aproximado dos preceitos do Minimalismo de Frank Stella e Sol LeWitt, de recusa da unicidade e da complexidade.112 Esses artistas não são apenas inferências possíveis no trabalho de Gerner, mas invocações explícitas em alguns de seus trabalhos.113 No entanto, quando digo estética da magreza, não falo apenas de minimalismo; posiciono-me a partir do ensaio “Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos”, em que Haroldo de Campos parte de um comentário do crítico Sílvio Romero (nosso Sainte Beuve?) para registrar a história do que chama o “procedimento menos” na literatura brasileira.

111 RAMOND, Charles. Le Vocabulaire de Derrida. Paris: Ellipses, 2001, pp. 63-64. 112 “Para a crítica de arte Barbara Rose, a designação por Duchamp de um objeto como “ready-made” e a decisão do pintor russo Kazimir Malevitch (1878-1935) de expor um simples quadrado preto sobre fundo branco constituem os polos históricos do minimalismo. ‘É importante ter em mente, escreve ela, que as decisões de Duchamp como as de Malevitch são renúncias – para Duchamp, à noção de unicidade do objeto de arte e a sua diferenciação dos objetos ordinários e, para Malevitch, à ideia de que a arte deve ser complexa’. [Pour la critique d’art Barbara Rose, la désignation par Duchamp d’un objet comme “ready-made” et la décision du peintre russe Kazimir Malevitch (1878-1935) d’exposer un simple carré noir sur un fond blanc constituent les pôles historiques du minimalisme. “Il est important de garder à l’esprit, écrit-elle, que les décisions de Duchamp comme de Malevitch sont des renoncements – pour Duchamp, à la notion d’unicité de l’objet d’art et à sa différenciation avec les objets ordinaires et, pour Malevitch, à l’idée que l’art doit être complexe’.]” (ARCHER, Michel. L'Art depuis 1960. Paris: Thames & Hudson, 1998, p. 45). 113 Como em sua fase de Abstractions, em que “casa” histórias em quadrinhos anônimas com elementos plásticos de obras conhecidas Cf. GERNER. “Johnny perd l’équilibre + Discussion avec Helmo”, in: FOTOKINO & MAGICA, 2013, p. 59.

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O crítico Sílvio Romero acusara o estilo de Machado de Assis de gagueira, pelas repetições, ausência vocabular e economia de efeitos, em que “repisa, repete, torce, retorce tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que nos deixa a impressão dum perpétuo tartamudear.” Em seguida, Romero ainda descredita uma consciência da prática machadiana, insistindo em um vício de linguagem, um desvio: “Esse vezo, esse sestro [...] elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas [...] o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra.” Haroldo de Campos aproveita tal afirmação para falar do estilo da magreza em Machado, contraposta à prolixidez de alguns contemporâneos citados por Romero, fundando o paradigma da arte “pobre” contra a “rica” – a não confundir com o barroco de João Guimarães Rosa, Padre Antonio Vieira e outros, que exerceriam, segundo Campos, uma “ética do desperdício”. A “magreza estética” machadiana seria, portanto, o “estilo de lacunas e reiterações, de elipse e redundância, de baixa temperatura vocabular e alta temperatura informacional estética”.114 Ela se compõe de iterações e toma a forma de uma metalinguagem voluntária, em que o personagem-narrador (no ensaio, de Dom Casmurro) apresenta um discurso ambíguo, com abundância de elipses e recursos metonímicos. A gagueira de Machado encontrará eco na escrita telegráfica de Oswald de Andrade (“e a poesia mais rica é um sinal de menos”), na afasia de Fabiano (Vidas Secas, de Graciliano Ramos), ao procedimento menos da poesia concreta. E Haroldo conclui com uma análise de LIXO/LUXO de Augusto,

exemplo frisante dessa dialética de extremidades, que encena, na arte mínima de seu “procedimento menos” [...] o jogo de suas tensões e mediações, como uma tatuagem intersemiótica. [...]A arte pobre da poesia com sinal de menos inscreve o seu programa de subversão retórica com ostensividade de um pictograma épico. Epicômico. Aqui o “procedimento menos”, assumindo a metalinguagem de si mesmo [...] e avocando, letra a letra, numa “literariedade” radical (literal) a tematização do referente para o seu campo de tensão polêmica, fecha o seu circuito, e se totaliza, monadologicamente. 115

O estilo de Gerner pode ser aproximado de tal descrição pelo fato de ser, também um quadrinho “pobre”, seco, se comparado aos quadrinhos profusos, literalmente coloridos. Sua “gagueira”, tal como a de Assis ou ao “procedimento menos” de Andrade aos Campos, está na repetição de alguns signos – motivos – ao longo do livro. Tais signos, iterados, tornam-se elementos próprios do léxico de Gerner, fazem parte de seu código assim como a sua caligrafia. Tais motivos podem ser, portanto, classificados em diversos níveis.

114 CAMPOS, Haroldo de. “Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos.” In: Metalinguagem & outras metas, por Haroldo de CAMPOS, 221-230. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 221. 115 ROMERO, Sílvio apud ibidem, p. 230.

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a) No nível da tipografia, a diferença estabelecida em uma tipologia mínima de letras:

• letra espessa: designando títulos de capítulos e dando ênfase em alguns balões expandidos. Ela é constante quando isolada no título e tem ligeiras variações de espessura e espaçamento quando usada dentro de uma página. Sua função, portanto, é a de ênfase.

• Letra fina em caixa alta reduzida: é a caligrafia da “transparência”, da “neutralidade”, usada para transcrever as citações selecionadas. É a letra sem hierarquias, que compõe esse “fundo”, a base do livro, o “texto” que é questionado pelo desenho ou pela ênfase de outras letras.

• Letra fina em caixa baixa: legendas reduzidas, discretas, sobretudo designando obras plásticas que poderiam passar despercebidas para muitos, sendo o vocabulário visual de Gerner extremamente apurado.116 b) No nível do desenho, há uma tendência a geometrizar sua forma, transformando, inclusive, personagens pertencentes ao imaginário do grande público (Mickey, Tintim, Asterix) em formas reduzidas a linhas e curvas. As linhas são dispostas sobre o eixo horizontal, a cor é “chapada”. c) A iteração como motivo: poucos personagens e ícones irão se repetir ao longo do livro, em uma economia dos motivos gráficos. A repetição dos motivos, além de signo dessa gagueira, aponta para a possibilidade de uma escrita por combinatória. c.1) A iteração de alguns personagens:

• o personagem-alter ego, sujeito a quem o discurso sobre quadrinhos se impõe, e que, por fim (p. 131), continua tentando elaborar formas diferentes de desconstruir tal discurso (a profusão de balões com “matizes” diversas), mas é derrotado – interrompido – pela citação escolhida por si mesmo e por sua assinatura.

• o personagem “sério” de óculos, que cumpre a função proscritora em alguns momentos,

116 Outras letras guardam funções específicas, como a caligrafia manuscrita mimetizando a escrita infantil, a grafia dramatizada citando os comics de horror da EC Comics (“Creepy”), os ideogramas japoneses reportando-se aos mangás, tipografias reproduzindo títulos de obras, mimetizando o referente.

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• os pequenos “mickeys” que, no vocabulário de artistas de quadrinhos franceses, é sinônimo de personagem clichê, aquele que é pedido para ser desenhado por um pretenso fã em festivais. Os “mickeys” de Gerner surgem quando o tema tratado gera em torno da cultura de massa, do mercado versus arte, da infantilidade das histórias em quadrinhos. Mickey se torna o símbolo do quadrinho enquanto mercadoria.

• Tintim se torna o signo do modelo de história em quadrinhos tradicional, e é literalmente implodido, sexualizado, torturado, e termina decepado (p. 131). c.2) A iteração de alguns elementos ligados à terminologia de história em quadrinhos de forma metonímica, como:

• o balão contendo reticências; • o balão contendo três linhas horizontais; • o uso de elementos para indicar lacunas e cortes no texto, as reticências, as reticências entre parênteses e as aspas. d) O próprio espaçamento da página, cuja ausência de enquadramento permite confundir-se com a margem. e) O uso de listas de expressões ou séries de imagens a partir de um denominador comum, criando efeito de catalogação ou de ritmo descontínuo. f) A fragmentação da linearidade discursiva, em que a leitura é realizada de forma a ricochetear entre texto e imagem, de imagem a texto, em um percurso que vai da página inteira para os elementos articulados sobre ela, não necessariamente na ordem da esquerda para a direita, mas pedindo o retorno da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima. Todos esses elementos do tartamudear de Gerner – para tomar de empréstimo a palavra de Romero que Campos repete – fazem de sua gagueira um estilo da iteração e do comedimento, um estilo da discrição. Discrição no sentido dessa “arte pobre” 117 de Campos e no sentido matemático de discreto empregado por Italo Calvino:

117 A arte povera, por sua vez, caracteriza-se por uma conjunção de materiais diferentes. O nome foi dado pelo crítico Germano Celant, para falar de seus contemporâneos cujo trabalho pretendia não mais conceber objetos de arte como “réceptacles pour les émotions et les idées”, mas para a busca de uma convergência entre “un passé apparamment ordonné et le désordre contingent du présent”, e o faziam pela convergência de materiais constantes (matéria inerte) e efêmeros (matéria orgânica), e obras podendo se alterar com o tempo. Em vez de uma busca por um ponto intermediário entre “arte e vida”, esses artistas buscavam a convergência entre “fatos e ações”, a redescoberta de uma “tautologia estética”, em que a obra de arte é porque assim ela está posta (ARCHER, op. cit., p. 84).

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[...]o mundo, em seus vários aspectos, é cada vez mais considerado como discreto e não como contínuo. Emprego o termo discreto no sentido da matemática, quer dizer: compondo-se de partes separadas. O pensamento, que até ontem nos parecia como se fosse algo fluido – que evocava imagens lineares, tais quais as de um rio que escorre ou de fio que se desenrola, ou ainda gasosos, tal qual uma espécie de nuvem, a ponto de chamarem-no de “espírito” [esprit] – hoje tendemos a vê-lo como uma série de estados descontínuos, de combinações de impulsos sobre um número finito (imenso mas finito) de órgãos sensoriais e órgãos de controle.118

Tal trecho provém do ensaio sobre a cibernética, em que Calvino fala sobre a literatura combinatória e compara a linguagem a um jogo de xadrez. Ele aborda uma possível distinção entre a percepção do mundo pelo moderno e pelo pós-moderno, através da percepção do contínuo: o moderno ainda acredita na fluidez, o pós-moderno desconfia do ininterrupto. O estilo “magro” desses autores, caminha no sentido desse pensar combinatório que percebe o mundo como fragmentário, e desmonta a ilusão do contínuo. Para Roland Barthes, o fragmento é um gênero retórico, “e como a retórica é aquela camada da linguagem que melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar-me, não faço mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário”.119 O assíndeto e o anacoluto, duas figuras de retórica próprias de uma estética fragmentária seriam figuras “de interrupção e do curto-circuito [...]: no interior de cada fragmento reina a parataxe”. “Isto se vê bem quando se faz o índice desses pedacinhos; para cada um, a reunião dos referentes é heteróclita; é como um jogo de rimas prévias.” 120 Poderia dizer como Calvino: o contínuo é uma crença ocidental, e uma prerrogativa, de que a linguagem seja fluida. Na verdade, isso é uma ilusão, “… uma visão neurológica moderna acredita que o cérebro humano ‘busca caminhos para reduzir a entropia de uma coleção de itens reduzindo o número de formas em que eles podem ser arrumados’.” 121 Há, portanto, um movimento histórico em prol de apagar as distâncias, tornando a escrita “única”, e o modernismo e vanguardas mostrando que a linguagem é

118 “... le monde, sous ses aspects variés, est de plus en plus considéré comme discret et non comme continu. J’emploie le terme discret dans le sens des mathématiques, c’est-à-dire : se composant de parties séparées. La pensée, qui jusqu’hier nous apparaissait comme quelque chose de fluide – qui évoquait en nous des images linéaires, telles celles d’un fleuve qui s’écoule ou d’un fil qui se dévide, ou encore gazeuses, telle une espèce de nuage, au point qu’on l’appelait même l’ “esprit” –, nous tendons aujourd’hui à la voir comme une série d’états discontinus, de combinaisons d’impulsions sur un nombre fini (immense mais fini) d’organes sensoriels et d’organes de contrôle.” CALVINO, Italo. “Cybernétique et fantasmes.” In: –––. La Machine littérature: Essais, Paris: Seuil, 1984, pp. 7-20. 119 BARTHES, op. cit., 2003, p. 112 (sobre sua própria escrita fragmentária). 120 Ibidem, p. 108. 121 “... a modern neurological view finds that the human brain ‘looks for ways to lower the entropy of a collection of items by reducing the number of ways in which they can be arranged.’” E. BELKNAP, Robert E. The List: The Uses and Pleasures of Cataloguing. New Haven&London: Yale University Press, 2004, p. 5.

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discreta, fragmentária, e que o sentido é criado através do choque de elementos heteróclitos.122 De certa forma, o estilo apresentado em CLBD distribui-se em dois eixos: por um lado, o desenho de Gerner estabelece uma escrita ideogramática (a poesia do menos), faz uma economia das formas e se reitera a todo o momento; por outro, elabora uma metalinguagem en abyme extremamente informacional (de “alta temperatura”). Sua decisão pela monocromia não vem para salientar um determinado valor artístico do grafismo em oposição à profusão de cores dos álbuns “BD”. Como vimos, seu traço é minimalista E evoca uma escrita. Há também um recuo no início de cada texto, dando a ver que as sequências não se distribuem, aqui, como nas histórias em quadrinhos tradicionais, dentro de quadros, mas são recuos anunciando um novo parágrafo. As linhas dos desenhos são bem mais espessas que as linhas do letreiramento, que se apresenta uniforme, mas também apresenta algumas ligeiras inconstâncias, com pontos de pressão da caneta. Nos desenhos, o caráter retilíneo é dado pela abundância de linhas verticais e horizontais, o que dá um resultado de equilíbrio, de medida pensada. O desenho opera com uma distribuição geométrica que delineará cada personagem, objeto: formas redondas, retangulares, triangulares, comporão cada imagem, como naquele jogo de criar figuras usando formas geométricas. Nisso consiste o seu raciocínio gráfico, ou efeito de cálculo, em que a distribuição dos elementos e das formas é prevista por um método. Por vezes, a geometrização do desenho ilustra alguns dos preceitos transcritos sobre composição de uma história em quadrinhos, como o capítulo “Décors et couleurs”. A página 19 lista os “points d’intérêt” (as linhas de fuga) possíveis a partir dos eixos de divisão da página, ancorados rigorosamente sob um centro definido. Ainda no preâmbulo, personagens animalescos, Mickey e Donald adquirem formas retangulares, sincretizados em produtos diversos. O preenchimento das formas também segue a lógica de platitude do uso das letras: pouca variação, nenhuma gradação entre branco e preto. Em alguns casos, a “variação” será denotada pelo uso de linhas mais finas que farão as vezes de um meio-tom, de uma sombra.

122 O quadrinho clássico tende a esconder essa diferença, reduzindo o efeito de choque entre dois quadros, fazendo da sequência, da progressão da história em um continuum. Como indica o autor Scott McCloud, há um efeito de clausura (closure) que faria nosso cérebro “preencher as lacunas” da história, tornando-a “natural” mesmo que seja uma percepção de algo materialmente inacabado (MCCLOUD, Scott. Understanding Comics: the insvisible art. New York: HarperCollins, 1993).

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Figura 19: CLBD, p. 113

Ao ilustrar edifícios arquitetônicos, as hachuras importarão para dar profundidade – uma ligeira perspectiva – aos desenhos. São formas arquitetônicas em que a tridimensionalidade da edificação importa como estética (Figura 20). Em outro momento do mesmo capítulo sobre arquiteturas, são as hachuras que nos ajudarão a distinguir os diferentes estilos de arquitetos ilustrados por Gerner (Figura 19). Enquadrados em um único espaço, “em casas”, dispostos como em tiras em quadrinhos ou como janelas de um prédio, estão trechos de construções de arquitetos originários, principalmente, da escola Bauhaus. As hachuras vão determinar perspectivas e possíveis adornos sobre a superfície da construção. Pela redução das construções a seus traços mínimos, Gerner nos chama a atenção dos elementos significativos que determinam o estilo de cada arquiteto. Justapondo tais “trechos” de edifícios reais em “casas”, enquadrados como em uma história em quadrinhos, pelo espaço entre essas casas, as faz diferentes pela sua diferensa (différance).

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Figura 20: CLBD, p. 116

A perspectiva realça a existência material de tais imagens, ao contrário dos personagens-tipo distribuídos pelo livro, planos por serem limitados ao mundo do papel.123 O trecho apresenta uma variação em três níveis caligráficos. Além das citações – retiradas, aparentemente, de uma única fonte, o livro Archigram nº 4, de Peter Cook –, há o uso da grafia “bastão” para legendas e o uso de letras mais espessas pontuando o final da página, com as palavras “Eviv Bulgroz!” (Figura 20) A espessura das letras e o ponto exclamativo chamam a atenção para esse pé de página, enigmático pela sua tomada de força repentina sobre o restante da uniformidade das grafias concomitantes. Talvez não tão forte se considerarmos a estranheza das arquiteturas ilustradas. A exclamação é inesperada e não é de forma alguma clara por ali, não é possível saber se ela provém da citação em de Cook sem que tomemos conhecimento do seu texto original. A exclamação de Gerner pontua a defesa de Cook das novas possibilidades arquitetônicas, também ilustradas pelo primeiro. Uma saudação ao espírito iconoclasta de Corbusier, Niemeyer, Fuksas, Hadid.124

123 Sem qualquer profundidade, ora, são personagens BD! 124 Bulgroz, ou Zorglub, é um personagem de histórias em quadrinhos criado por André Franquin e Greg, em 1959. De espírito megalomaníaco, ele adiciona um prefixo a tudo o que seria “seu”, e tenta construir o seu império futurístico.

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2.5 O caráter visual da escrita

Figura 21: David B., L'Ascension du Haut Mal, 2013125

Em minha rápida experiência como tradutora e produtora editorial de história em quadrinhos, pude acompanhar e negociar as formas de reprodução da grafia de alguns autores de gêneros diversos, brasileiros, franceses e americanos, e a memória de meu computador ainda guarda a fonte Caeto e a letra de Elcerdo (brasileiros), a “caligrafia” de Bastien Vivès em seu livro Le Goût du chlore e o letreiramento de David B. em L’Ascension du

126 Haut Mal (franceses). A tradução das 676 apparitions de Killoffer que foi o meu

125 Revisitando suas histórias escritas no passado, David B. cita a si mesmo e nos mostra como seu estilo variou, fazendo uma espécie de colagem aproximando seu estilo de juventude e o atual. 126 A fonte “Caeto” foi composta por Lilian Mitsunaga a partir de letra original do autor Caeto, Caetano Melo (de acordo com os créditos de Memória de Elefante. São Paulo: Cia das Letras, 2010). Mitsunaga é uma das raras profissionais brasileiras especializadas na tipografia de histórias em quadrinhos. A fonte “Elcerdo” foi realizada pelo próprio autor, Tiago Lacerda (Elcerdo), a partir de sua própria caligrafia, processada por um programa automático de conversão da letra em tipografia. A fonte “Goût du chlore” foi enviada pelo próprio Vivès para tradução de seu livro, enquanto a usada por David B. foi composta por uma grafista da editora L’Association (cedida para a Barba Negra para a tradução de Le Roi Rose).

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primeiro choque com a letra: como traduzir aquela caligrafia de Patrice Killoffer,127 que preenche espaços do livro de maneira tão sinuosa quanto seu traçado? No momento da tradução, ciente de uma necessidade do texto também ocupar o mesmo espaço da página, optei por traduzir guardando o número de caracteres utilizado pelo autor na edição original.128 As fontes digitais, inclusive, como nos exemplos citados, guardam certos efeitos de esboço que apontam para a presença de um sujeito grafiador. Elas continuam apontando para a mão que escreve, ainda que essa mão tenha sido mecanizada através de técnicas rebuscadas de reprodução. A maioria desses autores teve sua caligrafia transformada em tipografia mecanizada por questões editoriais (possível de ser reproduzida por qualquer detentor dessa “fonte”). Não por acaso as grafias de Bastien Vivès e David B. têm, como nome, o título de seus primeiros livros traduzidos no exterior, Le Goût du chlore e

L’Ascension du Haut Mal. Se compararmos o trabalho anterior de David B., por exemplo, como Le Cheval Blême, sua “personalidade tipográfica” já estava presente desde cedo. Em seu caso, a letra nos foi enviada em um arquivo chamado “Epileptic Font” para a confecção da tradução do livro Le Roi Rose, adaptação de um conto de Pierre Mac-Orlan. “Epileptic” é o nome da tradução para o inglês de L’Ascension du Haut Mal (antiga expressão para a epilepsia – em português, infelizmente, a tradução seguiu a caridosa versão inglesa, Epiléptico). Em um contrato de tradução para histórias em quadrinhos, todos os arquivos que possibilitam a reprodução fiel da obra são vendidos (ou alugados) separadamente à cessão de direitos para a confecção dessa edição conforme o original, respeitando sua estrutura. A fonte tipográfica é normalmente esquecida dessa negociação, cabendo à editora interessada adaptar, também, a forma da letra. O que acontece, em geral, é o uso de uma fonte-tipo, típica. Eis s fonte do texto do padrão acadêmico, Times New Roman, comparada às dos supracitados autores. Todas as letras estão em tamanho 12, com exceção da fonte de Bastien Vivès, em 18.

Alice não mora mais aqui. Figura 22: Fonte tipográfica "Times ALICE NÃO MORA MAIS AQUI. New Roman"

127 No anexo 5, p. 296, exponho exemplos dessa recriação manual. 128 Chico de Assis e Christiano Menezes (sócios-proprietários da Retina78) fundaram a Editora Barba Negra (2010-2012) com Lobo, também autor e editor, auxiliados por Guilherme Costa (designer). A editora existiu por uma vintena de publicações e a eles devo minha entrada no meio editorial e da tradução.

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Alice não mora mais aqui. Figura 23: Fonte tipográfica "Caeto" ALICE NÃO MORA MAIS AQUI

Alice não mora mais aqui. Figura 24: Fonte tipográfica "Elcerdo" ALICE NÃO MORA MAIS AQUI.

Alice não mora mais aqui. Figura 25: Fonte tipográfica "Verdana" (usada por A. Dahmer) ALICE NÃO MORA MAIS AQUI

Alice não mora mais aqui. Figura 26: Fonte tipográfica “Le Goût ALICE NÃO MORA MAIS AQUI du Chlore”

Alice não mora mais aqui. Figura 27: Fonte tipográfica "HM" (Haut Mal, David B.) ALICE NÃO MORA MAIS AQUI

André Dahmer, já mencionado na introdução, optou desde cedo por uma tipografia a mais transparente possível, um padrão pré-fabricado do Word (a fonte tipográfica Verdana, como ilustrada acima), tão pobre em marcas “de autor” quanto o traço simplificado de seu desenho. Tais escolhas alinham-se ao seu projeto de um texto “forte”, de alta expressividade, realçado pelo desenho pouco expressivo, “mal desenhado”. A simplicidade tinha por objetivo, também, uma facilidade de visualização online, e o uso de poucos elementos (sem cores, traços finos) melhorava a rapidez do upload assim como do acesso dos leitores online. As tiras se iniciaram em um zine acadêmico e rapidamente foram transformadas em blog no início dos anos 2000.129 O pesquisador Eugene Kannenberg nota como o uso das fontes eletrônicas no comics teria vindo da pretensão de se oferecer um maior apelo visual130. Para a especialista em tipografia Johanna Drucker, há “transparência” quanto menos a fonte é marcada desses traços do autor, mais “neutra” a fonte, maior a ênfase no decorrer da narrativa,

129 Segundo o autor mesmo contou em mesa redonda sobre “quadrinhos da primeira década do terceiro milênio” na Maison de France, havia uma restrição de ordem tecnológica: a tira deveria ser “leve” o suficiente para que um amigo conseguisse fazer o upload de seu computador, Dahmer pegasse a bicicleta até sua própria casa e conseguisse visualizar online as tiras publicadas para otimizar a velocidade desse processo, na época tão lento (1999-2000). 130 KANNENBERG, Eugene. Forfm, function, fiction: text and image in the comics narratives of Winsor McCay, Art Spiegelman and Chris Ware. Tese defendida em University of Connecticut, 2002, p. 45.

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apagando-se a interferência do sujeito enunciador. No caso de Dahmer, essa transparência viria a enfatizar a opacidade de seu próprio escrito, que compunha um quadro geral extremamente simplificado, em três tiras. O autor, que tem como mais profunda referência literária o poeta curitibano Paulo Leminski, tentaria, em seus quadrinhos, um haicai filtrado pela herança do poeta “Kami Quase”. Apesar de sua ligação aos concretos paulistas e de incursões na tentativa de uma poesia próxima do ideograma japonês, Leminski optava em boa parte de sua obra pela redução das marcas que hierarquizam a escrita, como o uso de letras em minúsculas, sempre dando relevância à importância da página em branco. E reúne duas de suas principais referências de sua ars poetica no haicai “mallarmé bashô”: um salto de sapo jamais abolirá o velho poço À medida do haicai, notação do tempo (a estação, a duração), soma-se a prática da página de Mallarmé:131 a busca de Leminski era pelo neutro, uma escrita zen em que o jogo mantém as formalidades da escrita. André Dahmer buscaria, de certa forma, uma neutralidade do traço e da letra para condensar a gravidade sobre seu texto. O respeito à disposição da pontuação sobre a página importa pelo aspecto estético, alterado se muda a letra do autor original, ou se a fonte escolhida por um autor não converge para a dimensão plástica de sua página.132 O uso de determinadas fontes também identifica campos semióticos, como é o caso da fonte tipográfica Comics Sans, cujo uso “fora de lugar” (i.e., em documentos oficiais ou acadêmicos) tornou-se objeto de desdém, signo de mau gosto, de desrespeito com certo padrão da escrita. Da mesma forma, a escolha de uma paleta de cores determinará não apenas um estilo do autor como uma filiação de ordem expressiva. A cor também se torna signo ao ser usada como elemento inerente a um trabalho do autor. Chris Ware, por exemplo, com a sua paleta específica, varia a cor de fundo do cenário como um elemento da diegese do

131 “[...] entre la rusticité sommaire de l’alphabet et l’univers infiniment subtil de la calligraphie.” (CHRISTIN, Anne-Marie (org). Histoire de l’écriture. Edição ampliada e revisada. Paris: Flammarion, 2012, p. 14). 132 Um exemplo que encontrei nesse mesmo período foi o uso das exclamações por David B., que tende a cair sobre a extremidade inferior do balão, afastando-se da frase por um caractere de espaço. Em francês, os pontos de exclamação, interrogação, dois pontos e aspas são distanciados costumeiramente por um caractere. Em português brasileiro, não poderíamos conservar a forma do mesmo balão do desenho original se obedecêssemos às revisoras que insistiam em “puxar” o ponto de exclamação para a linha anterior. A opção que encontramos foi a de obedecer à estética do balão e conservar o ponto de exclamação isolado na linha inferior ao final da frase. O designer gráfico responsável pela reprodução, além de ter acesso à fonte criada pela editora (uma grafista da L’Association fez esse trabalho), precisou criar uma máscara da página original para conservar a ondulação das linhas dele na página traduzida, um trabalho cuidadoso que visava, portanto, não a simples passagem de uma língua para outra, mas de conservar uma mesma espacialidade estética da letra.

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livro, a saber uma alteração da percepção de seu personagem autor sobre a realidade ou para emitir de forma simbólica o que ele sente naquele quadro. Por outro lado, a série de quadrinhos tradicionais da Turma da Mônica usa uma paleta mais viva, de variação semelhante à de Ware, mas tal componente revela-se apenas aleatório, como uma ênfase na transição entre dois quadros. A opacidade da tipografia serviria para familiarizar o texto, fazer de sua forma mais mimética quanto seu conteúdo – na literatura, o jogo com as tipografias vem perturbar a aparente neutralidade da página. Para Drucker, os “graphic features” são anteparos narrativos, “nos deixam orientados sobre nossa posição dentro da narrativa e da publicação, e nos ajuda a pautar o caminho de nossa leitura seção a seção e página por página.”133. Will Eisner, como citei acima, diz que, primeiro, o leitor examinaria a página inteira. Ele usa a palavra inglesa “scan”, que significa, justamente, um mapeamento, rastreamento dos elementos sobre a superfície a sua frente.134 O balão seria apenas “espiado” (skim) se a estética da página atrair suficientemente o olhar do leitor, e as marcas próprias da tipografia – o negrito, ou bold face, como Eisner menciona – serviriam a reforçar o olhar do leitor sobre o diálogo. Tal recurso também seria útil para um texto cuja variação tipográfica, nas mais diversas ordens (os grifos típicos ou diversificação da letra) seria, portanto, “um ato consciente da parte do autor que utiliza um layout atípico pela via da tipografia, e as razões desse ato, raramente gratuito, devem ser comentadas em cada caso.” 135 Outra característica mais frequente no quadrinho do que na literatura é a de apontar sempre para a sua materialidade. “As letras são transformadas em significantes visuais, em ícones podendo oferecer complicações simultâneas sobre várias dimensões. A escrita se torna ideogramática ou hieroglífica”.136 A cor preta da tipografia também marca essa estética tipográfica do livro, em que a cor é uma marca que materializa a

133 DUCKER apud MARTIN, Côme. Le roman visuel : relations entre texte et image dans la bande dessinée et le roman américains contemporains. Tese defendida na Université Paris IV/École Normale Supérieure de Lyon, 2013, p. 76. 134 “... they keep us oriented to our location within the story and the publication, and help us chart our reading path section to section and page to page.” EISNER apud KANNENBERG, op. cit., p. 31. 135 “... un acte conscient de la part de l’auteur qui utilise une mise en page atypique par le biais de la typographie, et les raisons de cet acte, rarement gratuit, doivent être commentées dans chaque cas.” MARTIN, op. cit., p. 78. 136 “Les lettres [sont] transformées en signifiants visuels, en icônes pouvant offrir des complications simultanées sur plusieurs dimensions. L’écriture [devient] idéogrammatique ou plutôt hiéroglyphique.” JACQUES, Martin apud ibidem, p. 88.

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escrita, assim como a variação de estilo da letra é recurso para marcar tanto a transição para diferentes “vozes” discursivas.137 Em uma história em quadrinhos, escrita e desenho estão mutualmente engajados na composição não apenas de elementos de caráter diferente na página – o texto e as cenas – mas também na composição da plasticidade do objeto. O texto escrito também participa da forma visual, podendo também obter efeitos de ordens diversas sobre a leitura. Um livro de história em quadrinhos é prioritariamente um objeto cuja fabricação inclui as duas “fases” goodmanianas, um processo (ou regime) autográfico mas cuja distribuição depende de seu caráter alográfico: i.e., um objeto cujos traços de imanência possam ser reproduzidos em manifestações diferentes sem a perda das mesmas propriedades desse objeto ideal. Mas seu caráter autográfico permanece visível através das marcas de enunciação do autor-grafiador da página, ou como o autor de quadrinhos Ben Katchor se define: esses autores são “escritores autográficos”, no sentido em que a reprodução de sua caligrafia tende a ser conforme a sua grafia real. A forma da letra continua importando como espaço de criação de uma identidade de autor (mesmo autores fazendo uso de técnicas digitais de desenho diretamente sobre tablets). Assim Katchor explica sua definição de seu trabalho como autor: “Por ‘escritor (ou escritora) autográfico’ quero dizer um escritor que se preocupa com a qualidade expressiva de sua letra de mão, através da escrita e do desenho.”138 Nas histórias em quadrinhos, apesar de seu objeto, o livro, a página, a tira, ter na sua capacidade a de ser reproduzido sem a perda de suas propriedades constitutivas (regime alográfico), a mão do autor, sua autografia faz parte de sua imanência de facto. Além do adjetivo autográfico, o substantivo “escritor” que indica a profissão de Katchor, enfatiza a compreensão da própria história em quadrinhos (no caso do americano, principalmente tiras) como uma escrita, para ser lida. Mas isso não significa que ele e outros autores como Chris Ware ou Jochen Gerner advoguem para uma hierarquia que relega à escrita um papel principal na composição da página. Significa entender que o texto e o desenho participam da constituição desse objeto que é lido assim como lemos apenas um texto “puro”, escrito; a leitura da página de quadrinhos segue a mesma direção da leitura de uma página contendo apenas textos (digo o modelo ocidental), mas o desenho e as imagens funcionam a fazer o leitor ricochetear entre os elementos justapostos sobre a página, lendo as imagens como um discurso que não se separa do texto.139 A página de quadrinhos aponta o tempo todo para a sua materialidade, enquanto um texto como esse,

137 Ibidem, p. 60. 138 “By an ‘autographic writer’ I meant a writer concerned with the expressive quality of his, or her, handwriting through writing and drawing.” Por e-mail, 1o de novembro de 2014. 139 Na definição de texto da semiologia francesa (Barthes, Kristeva), acabado e estruturado em um todo, pouco importando se é escrito ou é imagem, organizado e fechado para que se possa ler.

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na banal Times New Roman, torna-se transparente e facilita a possiblidade de sua transcendência para outros contextos (Genette, 2010) sem que suas propriedades constitutivas sejam perdidas.140 Gerner, apesar de sua letra apresentar uma forma simples, no sentido de poucos traços, com pouca presença de curvas, prefere o uso do texto manuscrito, para que seja a sua própria escrita, em que a letra e o desenho sejam integrados. Por causa da densidade diferente (muito mais texto por página que desenho), não foi possível utilizar um único instrumento para ambos os níveis; ele afirma que sua vontade era de fazer participarem estas duas ordens expressivas, como “uma espécie de conjunto” coerente (um texto):

A maneira de integrar a tipografia é importante, a letra como se fizesse parte do desenho também. Isso cria uma fronteira bem maior entre finalmente o que é dito e o que é mostrado visualmente [...]. E quero integrar tudo, que tudo seja uma espécie de conjunto coerente. Dou bastante importância à escrita quanto... e se pudesse ter utilizado o mesmo instrumento, eu teria feito. Mas era uma quantidade muito grande de texto, [...] me parecia impossível desenhar as letras com pincel, pois todos os desenhos são feitos com pincel, enquanto tudo o que é escrito é feito com caneta hidrocor fina. Mas é minha escrita.141

Não pretendo dizer que o quadrinho de Gerner é “literatura visual”; são gêneros distintos pelo caráter formal. Mas o seu trabalho permite um literário, um deslocamento entre significante e significado, uma possibilidade de leituras diferentes que fazem dele um quadrinho poético. É um quadrinho que mimetiza a escrita, aproxima-se da fronteira para apontar para ela, conhecedor das próprias especificidades das duas espécies expressivas. A tipografia “transparente” ou irrelevante é um dos fatores que fazem do texto literário predominar seu conteúdo sobre a forma. Não há hibridismo: a escrita também vem da imagem, e é essa consubstanciação das formas que é posta em evidência nesse livro.

140 “O texto, quer seja ele no romance ou em quadrinhos, tem então numerosas características visuais, que podem ser utilizadas de forma inteligente ao serviço da narrativa ou de maneira estética. No caso do romance, as marcas discretas como a escolha das fontes ou, de maneira mais ostensiva, a coloração do texto ou o layout da página podem reforçar a temática de uma narrativa ou sublinhar seus aspectos simbólicos. [Le texte, que ce soit dans le roman ou dans la bande dessinée, a donc de nombreuses caractéristiques visuelles, qui peuvent être intelligemment utilisées au service de la narration ou de façon esthétique. Dans le cas du roman, des marques discrètes comme le choix des polices, ou, plus ostensiblement, la coloration du texte ou sa mise en page peuvent renforcer la thématique d’un récit ou souligner ses aspects symboliques.]” (MARTIN, op. cit., p. 104). 141 Infra, p. 264. Grifos meus.

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O poema visual transgride o escrito ao privilegiar o visual, aproxima-se da fronteira. Em CLBD, quebra-se a hierarquia entre escrita e imagem, de uma escrita que se faz cada vez mais imagem e uma imagem que se quer escrita (na alínea). Na Figura 28, é questão de apresentar o uso do texto em quadrinhos, como ocorre a distribuição sobre a página em relação à imagem. “Estuda-se” a relação entre os dois componentes dessa espécie aparentemente “híbrida”, e os comentários que seguem concernem essa página como um todo. Ali demonstra-se o histórico sobre a “enfeudação” do texto na imagem, apresentando o modelo advindo da série de livros contando lendas populares, notoriamente a “Imagerie d’Épinal”, cuja estrutura de distribuição e legendas subjacentes à imagem tornaram-se modelo clássico para os quadrinhos – a base para o “gaufrier”.142

Figura 28: CLBD, p. 12

142 Sobre o lugar do texto na história em quadrinhos, ver ensaio (em quadrinhos) de Harry Morgan na Éprouvette 3 (op. cit.), pp. 189-194.

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A “Imagerie d’Épinal é descrita ali pela citação: “Uma espécie de história em quadrinhos de pequenas vinhetas simples” (definição anacrônica: esse modelo servindo a história em quadrinhos, e não o contrário). O exemplo, na mesma página 12, é uma vinheta cuja legenda de letras arredondadas denota o personagem do quadro, “Le Père Fouettard”, imobilizado – como em uma lenda (o “homem do saco” que recolhe os meninos mentirosos) –, mas ele ganha “voz” em uma espécie de evolução desse quadro para o espaço sem baliza (quadros) abaixo. Os balões lhe dão autonomia e ele aparece mais agressivo nessa aparição dos índices de fala. A narrativa sobre o Père Fouettard se relaciona à citação que explica a evolução da história em quadrinhos, do texto “sacrossanto” imaculado de imagem na primeira posição, à imagem que preenche o balão na segunda, e, finalmente, a fala marcada (espessa) do personagem que se defende do vilão, o alter ego de Jochen Gerner, gritando “Pinocchio” (ou não grita? O balão vem da direção dele, mas sua boca, ocupada por um instrumento de sopro?...). Em seguida, uma ilustração da bande dessinée “canônica” é feita também por uma forma de um trocadilho visual – quase um rébus – que brinca com a ambiguidade entre canhão e cânone. Sendo o balão o elemento “canônico” da bande dessinée, ele é representado como o som emitido por um canhão (canon em francês); desse “cânone” provem o balão. Em italiano, o termo usado para descrever o balão é, por metonímia, o nome dado a história em quadrinhos, “fumacinhas”. Na imagem, a fumaça é um balão que sai de uma indústria – pois é, duplamente: balão e fumaça (fumetti). A fumaça e a fábrica surgem, primeiramente, como uma ilustração metafórica em que a nuvem que sai tem a forma icônica de uma nuvem, com os meio-círculos cuja área total é fundida em uma só figura. Nessa primeira ilustração da fumaça, o preenchimento são três linhas horizontais paralelas, signo usado a todo o momento por Gerner facilmente reconhecível como um ícone de um texto (visto à distância, em letras miúdas, a distinção entre as letras desaparecem). O segundo balão, com o texto “fumetti” dentro, também faz alusão ao balão em forma de ícone de nuvem que, no código de quadrinhos, significa a expressão de um “pensamento”, monólogo interior do personagem. Dessa vez, são os pequenos círculos decrescentes, do balão ao seu “enunciador” aparente, a fábrica, que indica a procedência do balão ou da fumaça. Tal insistência pode ser lida à luz do ensaio “As palavras e as imagens” de Renée Magritte, que demonstra que a relação entre a coisa, a representação da coisa e o nome da coisa podem ser deslocadas a cada momento. O nome pode tomar o lugar da coisa, a

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coisa tomando o lugar da palavra e saber que o objeto, seu nome e sua imagem não são a mesma coisa.143 A importância da imagem da escrita como portadora de potencialidades de significância, ou seja, de carregar significados diversos pela sua apresentação não é particular da escrita em quadrinhos, ou da escrita publicitária, para citar outra expressão em que a tipografia ocupa um espaço proeminente. Como elabora a teórica Anne-Marie Christin, a escrita já é em si uma mestiça de palavra e imagem, e a sua forma não deveria ser desprezada das análises literárias. A crença da escrita como um sistema que “representa” os sons, esconde que a escrita é mestiça da fala com a imagem – assim como Christin, diversos teóricos chamaram a atenção para “o preconceito” saussuriano (e platônico), que clama a primazia do significado sobre o significante. A escrita não representa a fala, ela a torna visível, como Christin parafraseia a fórmula de Plaul Klee sobre a arte.144 Para ela, o partido tomado por um escritor ao dar relevância ao visual viria do desejo de alcançar o poder de um pintor, de trazer olhares mais atentos à página; mais do que produzir um imaginário verbal, dar ao leitor uma imagem.145 Na história em quadrinhos, por sua vez, essa suposta “rivalidade” entre o fazer ver e o dar a imaginar são constitutivas da página e a tipografia do autor realça ao mesmo tempo a suposta neutralidade das letras e a marca da mão que desenha. A escrita, portanto, não seria representação, mas ela participa da tradição da imagem, que torna visível o invisível (o mito, o além). Umberto Eco também frisa a relação intrínseca entre a forma da escrita e o pensamento ocidental moderno, relação essa por vezes obliterada:

Distinguindo gramma e phonê, a linguística tendeu, todavia, a esquecer que a maneira como a língua é transcrita influencia a imagem que fazemos dela, enquanto nem a transcrição representa a pronúncia. Pode-se estimar que pensamos uma certa organização espacial precisamente porque transcrevemos o pensamento nessa ordem espacial precisa. Já foi notado, aliás (McLuhan, 1962, 1964), que toda a civilização moderna foi dominada pelo modelo linear de escrita tipográfica, e que se nosso mundo contemporâneo vê surgir novas formas de sensibilidade, é que muitos signos novos (eletrônicos, visuais) nos chegam não mais de forma linear, mas de maneira espacial e global. 146

143MAGRITTE, René. “Les Mots et les Images.” La Révolution surréaliste 12, 1929: 32–33. 144 CHRISTIN, A.-M., op. cit., p. 10. 145 Cf. idem. L’Image écrite: ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995, p. 187. 146 “En distinguant gramma et phonê, la linguistique a toutefois tendu à oublier que la façon dont la langue est transcrite influence l’image que nous nous faisons d’elle, alors même que la transcription ne représente pas la prononciation. [On] peut estimer que l’on pense une certaine organisation spatiale précisément parce que l’on transcrit la pensée dans cet ordre spatial précis. On a d’ailleurs fait remarquer (McLuhan, 1962, 1964) que toute la civilisation moderne est dominée par le modèle linéaire de l’écriture

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A abstração do alfabeto não seria revolucionária por “eliminar” a imagem, mas por transformá-la em um “instrumento de classificação quase abstrato”, e por conseguinte mais preciso.147 A eficácia da escrita reside no fato de ela ser uma imagem, tanto no sistema do ideograma quanto do alfabeto. É da imagem que nasce a escrita, e não da palavra oral.148 O intervalo, por sua vez, “a emanação da superfície do suporte”, a condição para que a escrita se fundasse. Para Christin, tal relação teria sido estabelecida a partir do momento em que os homens começaram a compreender o céu como uma superfície e ver nela – nos astros – um lugar de comunicação; o “pensamento de tela”. O “branco intericônico” (expressão de Peeters), o intervalo específico da página de quadrinhos e constitutivo desse dispositivo, assim como o espaçamento entre as letras, seria, assim, emanações da superfície que, pelo estabelecimento da diferença (das oposições), fazem emergir o signo. Muitos pesquisadores de quadrinhos realçam esse espaço como pedra de fundação da linguagem (reminiscência do jogo de sete erros), sobre a qualidade elíptica desse espaço, ou de sua função até mesmo poética.149 Vejo uma relação direta com a noção de intervalo em Christin e de espaçamento em Derrida. Para Christin, o intervalo é o que permite a ajustar e separar as letras; tanto letras, ideogramas, pictogramas quanto o espaço entre tais elementos – o fundo, a tela –, também são figuras, e levam a seu leitor a percorrer a superfície que materializa a sua frente.

E é porque os intervalos de uma imagem são também eles figuras, mas figuras implicadas por uma apreciação de espaço – para ser contemplado ou percorrido – estranha ao código narrativo ou a toda ficção estrangeira, que o olhar do espectador, passando de uma figura a outra, se interroga sobre as relações entre elas e que, buscando adivinhar a extensão dessa associação, acaba por dominá-las.150

typographique, et que si notre monde contemporain voit surgir de nouvelles formes de sensibilité, c’est que beaucoup de signes nouveaux (électroniques, visuels) nous arrivent non plus sur le mode linéaire, mais de manière spatiale et globale.” ECO. Le Signe. Tradução: Jean-Marie KLINKENBERG. Paris: Le Livre de poche, 1988, p. 195. 147 CHRISTIN, A.-M., op. cit., 2012, p. 10. 148 Cf. CHRISTIN, A.-M., op. cit., 1995, p. 5. 149 A pesquisadora Catherine Mao nota como a noção do branco em McCloud chega a ser fetichizante, devido a sua vontade “platônica” que estuda o quadrinho sem pensar o seu próprio suporte. Em Christin e em Derrida, esse espaço é físico, material. “McCloud alega que a leitura se efetuaria em derimento do suporte e maneira a abrir o acesso em direção a uma dimensão ideal [...]. Mas em vez de fustigar esse ensaio, seria mais justo concebê-lo como um livro de intuições de artistas e não como uma obra de teoria, o que ele não é de forma alguma e que dá a cara a tapa às mais duras críticas. [McCloud prétend que la lecture s’effectuerait au détriment du support de manière à ouvrir l’accès vers une dimension idéelle. […] Mais au lieu de fustiger cet essai, il serait plus juste de le concevoir comme un livre d’intuitions d’artistes et non comme l’ouvrage de théorie qu’il n’est résolument pas et qui prête le flanc aux critiques les plus vives].” (MAO, op. cit.,). 150 “Et c’est parce que les intervalles d’une image sont eux aussi des figures, mais des figures impliquées par une appréciation de l’espace – à contempler ou à parcourir – étrangère au code narratif ou à toute fiction langagière, que le regard du spectateur, passant d’une figure à l’autre, s’interroge sur leurs

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Não seria a ideia de “percorrer” análoga ao “scan” de Will Eisner, ambos os processos, portanto, sendo leituras? Com a ressalva de que em história em quadrinhos, o desenho não alcança em geral a abstração do alfabeto. Dependendo bastante da mão que escreve, a página de quadrinhos apresenta um idioleto de seu grafiador que se pretende comunicativa através da redução pictórica, da criação de uma visualidade minimamente identificável – inclusive nos quadrinhos abstratos, cuja comunicabilidade aproxima-se dos fazeres conceituais. A noção de “espaçamento” em Derrida também denota esse intervalo intransponível para a linguagem oral, o que justifica por que não se poderia afirmar uma linguagem puramente fonética, devido ao espaçamento e outros signos próprios à escrita – que também, à diferença da oralidade, deve significar para além de seu emissor e de seu destinatário. Não há escrita fonética porque a forma fonética da linguagem já é uma escrita.

Não existe escrita fonética. Não existe escrita puramente e rigorosamente fonética. A escrita dita fonética só pode funcionar, por princípio ou por direito, e não somente por uma insuficiência empírica ou técnica, apenas se admitir nela mesma os “signos” não fonéticos (pontuação, espaçamento, etc.) os quais seriam rapidamente percebidos, ao examinarmos a estrutura e a necessidade, que eles toleram muito mal o conceito de signo.151

Derrida e Christin fazem uma crítica ao estruturalismo linguístico e antropológico que desdenharam, por um bom tempo, do valor da imagem da escrita legitimada pelo abstracionismo do alfabeto. A escrita, “essa espécie de abstração gráfica da voz,”152 seria autônoma dessa última. Como tantos autores apontam, a revolução mallarmaica153 seria a de trazer o espaço em branco e as margens como signos visíveis e importando na escrita, de volta ao caráter fundacional de todo o signo, que é o de ser forma contra um fundo (a superfície).

… o crucial Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard de 1897 postulava outra estética não apenas por seu arranjo topográfico radical e sua ênfase na ideia de sorte, mas também pelo seu padrão de imagens e

relations et que, tâchant de deviner la portée de leur association, il finit par s’en rendre maître.” CHRISTIN, A.-M., op. cit., 2012, p. 10. 151 “[Il] n’y a pas d’écriture phonétique. Il n’y a pas d’écriture purement et rigoureusement phonétique. L’écriture dite phonétique ne peut, en principe et en droit, et non seulement par une insuffisance empirique ou technique, fonctionner qu’en admettant en elle-même des “signes” non phonétiques (ponctuation, espacement, etc.) dont on s’apercevrait vite, à en examiner la structure et la nécessité, qu’ils tolèrent très mal le concept de signe.” DERRIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 159. 152 CHRISTIN, A.-M., op. cit., 2012, p. 13. 153 De “referência” a Mallarmé (donde o sufixo [-aico]), não uma origem ou procedência (o sufixo [-ão]).

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sua busca por uma poesia “pura” semelhante à música e à pintura abstratas.154

“A escrita não tem por papel conservar a linguagem mas de inscrevê-la (nem de fixá- la) – e para isso basta um exemplar, que pode não ser nunca lido ou desaparecer.”155 A utilidade do alfabeto é a de ser o sistema o mais simples, cujo número restrito de signos é facilmente assimilável para aprendizado e reutilização (leitura e escrita). Christin chama de “flottant” o caráter ambíguo da escrita (“flutuante”), a mobilidade, “essa disponibilidade aos empréstimos e ao amálgama, é uma virtude que é essencial ou uma fraqueza.” Nossa dificuldade de pensar o ambíguo (le flou) seria uma das facetas do logocentrismo, herança platônica que tenta unificar, essencializar (transcender) o visível, eliminar o excedente do signo em benefício da ideia. O alfabeto é um signo por representar graficamente um som, por ser autônomo, por repetir-se. Não são os quadrinhos que são bastardos, mestiça é a escrita. Gerner aponta para a visibilidade da letra e como ela pode concorrer com a imagem e misturar-se à ela. A imagem também é composta pela estrutura heterogênea entre o inscrito e a superfície; uma pintura é signo a partir do momento em que há um enquadramento, sua posição (dys-posição). Assim ele explica o procedimento que efetua em CLBD:

Eu queria partir de uma dada base textual e só responder a ela pela via do desenho, sob a forma de pictogramas, gráficos, vinhetas, quadros ou tiras, sem dizer se era bem ou mal, para que o leitor tenha sua própria ideia sobre o assunto.156

Vemos uma gradação que declina o desenho desde seu caráter mais simbólico à elaboração de uma narrativa, ainda que mínima: “pictogramas, gráficos, vinhetas, quadros ou tiras”. Seu desenho alcança um caráter quase pictográfico. O pictograma, “signo visual que remete a uma realidade e que tem uma funcionalidade”,157 é, portanto, vetor de informação que devem ser facilmente compreendidos pelo destinatário.

A imagem testemunha, pelo contrário, um caráter novo da escrita na medida em que esta nasceu de seu deslocamento, de sua revolução interna, da mesma forma que o alfabeto grego nascerá mais tarde, por

154 “... the crucial Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard of 1897 postulates another aesthetic not only in its radical topographical arrangement and its emphasis on the idea of chance, but also in its pattern of images and its projection toward a “pure” poetry resembling music and abstract painting.” SEITZ, William C. The Art of Assemblage. Nova York: The Museum of Modern Art, New York/Doubleday and Company, 1961. 155 “L’écriture n’a pas pour rôle de conserver le langage mais de l’inscrire (il ne s’agit même pas de le fixer) – et à cela il suffit d’un exemplaire, qui peut n’être jamais lu ou disparaître.” CHRISTIN, A.-M., op. cit., 1995, p. 25. 156 “Je voulais partir d’une base textuelle donnée et n’y répondre que par le biais du dessin, sous forme de pictogrammes, graphiques, vignettes, cases ou strips, sans dire si c’était bien ou mal, pour que le lecteur se fasse son idée.” GERNER, op. cit., 2008 (b). 157 GOLIOT-LÉTÉ, Anne, e Martine et alii JOLY. Dictionnaire de l'image. Paris: Vuibert, 2006, p. 271.

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sua vez, da escrita. O sistema de transcrição da língua por seus fonemas não é de fato redutível a nenhum dos sistemas que o precederam; no entanto, ele resulta também do confronto entre dois fatores prévios e heterogêneos, um gráfico e o outro linguístico, o do alfabeto semítico (quer dizer, puramente consonantal) e de uma língua de estrutura indo- europeia: sua criação é uma mutação.158

A definição primeira de pictograma é a de um símbolo que substituiria uma expressão, um aviso. É essa vontade mínima sobre a qual se baseia Gerner na elaboração de seus desenhos. Ilustrador para a imprensa, o autor está habituado a reformular séries de conceitos e informações em um resumo gráfico (infográfico) da temática escolhida, servindo como ponte entre os diversos textos do mesmo jornal, em geral de opinião ou analogias literárias.159 Os pictogramas precedem historicamente os ideogramas, e o que os distingue de outras formas de figuração seria seu poder de denominar: eles não “representam”. O pictograma para “sol” não é a realidade do objeto “sol”, ele é a “entidade verbal” [sol]. Eles têm por função a denominação: a resposta verbal que uma figura carrega, a criação de uma imagem-sintagma. Não teriam, logo, um valor “realista”, todavia registram um símbolo culturalmente aceito que diz algo – assim como as letras do alfabeto, seu sentido está resignado a não alterar-se em novas disposições. O ideograma, por sua vez, só seria lido pela sua integração a outros ideogramas, devemos interrogá-lo a cada nova posição. A Figura 29, exibida no site do autor, apresenta uma das fases preparatórias de CLBD. Ela nos revela estudos preparatórios para as aberturas dos capítulos, os hors- textes;160 uma série de esboços é realizada, na tentativa de sintetizar o título de cada capítulo, um [x] marca a escolha de Gerner (como podemos identificar no próprio livro). Colocados lado a lado, esses pictogramas são avaliados quanto a seu potencial de síntese, de representar uma imagem-sintagma ecoando o tema do capítulo. Isoladas na página, são sintagmas exercendo a função de tópico para o capítulo.

158 “L’image témoigne, au contraire, du caractère neuf de l’écriture dans la mesure où celle-ci est née de son bouleversement, de sa révolution interne, de même que l’alphabet grec naîtra plus tard à son tour de celle de l’écriture. Le système de transcription de la langue par ses phonèmes n’est en effet réductible à aucun de ceux qui le précédaient ; pourtant, il résulte lui aussi de la confrontation de deux facteurs préalables et hétérogènes, l’un graphique l’autre linguistique, celle de l’alphabet sémitique (c’est-à-dire purement consonantique) et d’une langue de structure indo-européenne : sa création est une mutation.” CHRISTIN, A.-M., op. cit., 1995, p. 21. 159 É o caso, mais recentemente, de sua participação no semanário Le 1 – a linha editorial prevê um tema a cada edição –, em que o autor cria infográficos a partir de pesquisa prévias realizadas por uma jornalista. 160 Como abordei nas p. 47 e et seq..

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Figura 29: Página preparatória de CLBD (do site do autor)

Christin distingue pictograma e ideograma pela relação estabelecidas entre os tais signos isolados e sua conectividade a outros signos. O ideograma rompe ainda mais com a imagem,

ele testemunha uma transferência definitiva do visível para o legível, uma apropriação pelo grafismo não mais somente do nível lexical da língua mas de seu nível sintagmático. O pictograma, mesmo que ele tivesse valor de frase, era um signo isolado. Os ideogramas se encadeiam estruturalmente um ao outro de tal maneira que a palavra não constitui mais seu prolongamento ou eco, mas se torna produto deles.161

A história em quadrinhos tem como especificidade o texto escrito que abraça seu caráter ideográfico, divorciados, como lembra Anne-Marie Christin, pela “cultura alfabética”. A justaposição de ideogramas e pictogramas, para a teórica, também é uma forma de assemblage, por essa aproximação evidenciar a diferença (o intervalo) entre as

161 “... il témoigne d’un transfert définitif du visible vers le lisible, d’une appropriation par le graphisme non plus seulement du niveau lexical de la langue mais de son niveau syntagmatique. Le pictogramme, même s’il avait valeur de la phrase, était un signe isolé. Les idéogrammes s’enchaînent structurellement l’un à l’autre, et de telle sorte que la parole ne constitue plus leur prolongement ou leur écho mais devient leur œuvre.” CHRISTIN, A.-M., op. cit., 1995, p. 46.

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duas figuras; e é nesse intervalo em que a há a configuração do sentido de uma sentença.162 O pictograma, por seu turno, seria o laço mínimo entre desenho e texto (pelo caráter de funcionar como caractere, signo). A disposição deles forma um discurso, uma leitura pela justaposição (assemblage), adentrando, por esta via, na lógica do ideograma. O sentido do ideograma é modificado (ou carregado, portado) pela relação de diferença estabelecida com os outros elementos ali dispostos. Por esses pressupostos verifico, no dispositivo elaborado por Gerner, uma leitura ideogramática. Há um desejo de uma pictografia, pela elaboração de alguns sintagmas, mas eles só funcionam pela disposição, pela leitura estabelecida no conjunto da página.163 Além disso, os mesmos desenhos dos hors-textes são construídos a partir de pictogramas únicos que, relacionados entre si, criam um novo texto: o balão com texto, por exemplo, motivo (fragmento rítmico) repetido em boa parte do livro, é o fator comum (de uma fatoração matemática) desses ideogramas. A razão (o quociente) por entre esses fatores é o espaçamento, a superfície da página, lugar em que ocorre a dialética (confronto) entre seus elementos. As páginas preparatórias de Gerner são justamente os recortes e as colagens dos pedaços de jornal, folhas impressas sobre o que leu, notas manuscritas do que ele ouviu, ou ainda digitadas. Fitas adesivas reúnem as primeiras seleções de texto, em uma montagem por vezes suja, bem distante do todo reunido nas páginas de CLBD.

162 O uso de tais elementos como função narrativa na literatura ocidental não é novo, Raymond Queneau e Torres Garcia advogando por uma poesia e pintura em pictogramas ainda nos anos 1930. Menu imagina uma história em quadrinhos a partir de painéis de trânsito (MENU, op. cit., 2011). Um rápido recenseamento no Google levar-nos-á, facilmente, a um resultado infinito (e exaustivo) de releituras das instruções pictogramáticas aos passageiros de avião. A originalidade desse abraçar nos quadrinhos estáaria na potencialidade de significação pelo laço. 163 Dys-poser: “desorganizar sua ordem de aparição”. Qualquer disposição, um choque de heterogeneidades (Cf. DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 86).

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Figura 30: página preparatória de CLBD (do site do autor)

O apagamento dos vestígios de montagem nas páginas finais transformam cada vez mais desenho e texto em uma tipografia integrada. Como Ware, é uma leitura que Gerner propõe. Em CLBD, há variações pontuais no formato da letra, e tais modulações também são de ordem retórica. A distribuição das letras acontece de forma constante quanto ao espaçamento entre as letras e quanto a sua ocupação da página. Não há variação entre maiúsculas e minúsculas, recurso visual que determina o início de frases e indica a presença de uma hierarquia (os substantivos próprios que subjugam os comuns). As letras, apesar de feitas à mão, pretendem-se iguais, alinhadas em um único nível, sem sobressair-se. A uniformização e a iteração de tipos pictóricos parecem precisas, como se carimbados sobre o papel. Ainda que recorrendo ao letreiramento manuscrito, essa uniformidade expressa pelo desenho de Gerner aproxima-se muito mais de uma

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tipografia padronizada. Dessa forma, letra e desenho pertencem a um mesmo registro gráfico. Na página 6, a primeira página do livro (para além de epígrafe e abertura de capítulo, apresenta-se múltipla pela implosão da aparente sobriedade que observávamos até então (capa, folha de rosto, nota sobre a bolsa que financiou o livro, epígrafe, o “espaçamento” de uma página em branco, a abertura de capítulo). A uniformidade que se propunha se quebra em até seis variedades na caligrafia desta página, que remetem para uma possível hierarquia entre os textos ou função diferente para cada elemento.

Figura 31: CLBD, p. 130

Na página 130 (Figura 31), é possível observar essas três caligrafias de base, a) do texto uniforme, b) da legenda, em que maiúsculas e minúsculas se alternam em letra “bastão” arredondada e c) da letra espessa, que nessa página adquire também a função de legendar em uma aparente redundância. Os termos [livre !], [papier imprimé], [images], [texte] cercam (entourent) o desenho de um álbum, como se para confirmar e

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reafirmar a materialidade da BD como um livro, como um objeto físico. “Uma BD, é um livro.” A frase, aparentemente uma realidade evidente, é por vezes esquecida, a “BD” sendo compreendida muito mais pela sua condição cultural (uma instituição, um gueto). A palavra [plume] etiqueta um canhão, em uma ilustração da imagem da caneta (plume) como arma (potencialidade subversiva das artes). Poderia me alongar aqui sobre outras citações visuais nessa página, como os debates em torno do mercado violento e uniformizante de quadrinhos e dos 48CC – uma referência direta ao editor de Gerner na época, Jean-Christophe Menu,164 a citação ao subversivo e estúpido Krazy Kat de Herrimann, mas prefiro prosseguir, nesse momento, sobre a relevância da forma da letra do texto. O peso, portanto, dado às espessuras das palavras (a escolha de uma determinada caligrafia) é relevante, nesse livro, para acentuar o que é uma citação textual (na letra uniforme) e uma ilustração da pena (ou pluma) do escritor, em que a expressividade (espessura e contorno) da letra adquirem uma função de distinguir-se do restante do texto, de ser mais imagem que texto.

O desaparecimento da mão do autor é apenas suavizado, nunca total: as linhas aproximam-se de um ideal retilíneo, porém desnivelado, as mesmas letras não são perfeitamente iguais. O letreiramento uniforme é um simulacro de um letreiramento mecanizado, mas permanece autográfico no sentido de manter a possibilidade de uma fantasmagoria sobre quem escreve, no estabelecimento de uma identidade advinda da impressão ou pegada (empreinte) de um indivíduo. A escolha por essa constância é, portanto, retórica, confundindo a ordem de relevância entre os níveis do discurso misto (verbo e imagem).

164 Como dito na p. 34.

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Figura 32: Times-times por Gerner, a partir de Hergé, 1953 (2014)

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3 Choses lues et entendues: uma antologia de frases alheias

[O] discurso do outro como eu vejo (cerco-o de aspas). Depois, volto para mim a scopia: vejo a minha linguagem sendo vista: vejo-a nua (sem aspas): é o tempo vergonhoso, doloroso, do imaginário. Uma terceira visão se perfila nesse ponto: a das linguagens infinitamente escalonadas, parênteses nunca fechados: visão utópica por supor um leitor móvel, plural, que coloca e retira as aspas de modo rápido: que se põe a escrever comigo (BARTHES, op. cit., 2003, p. 180).

3.1 A função da citação

O trabalho da citação é o de relatar, reportar; ela habita o campo semântico da imitação, entre cópia, réplica, transcrição, fac-símile, retrato, repetição, decalque e reprodução. O citado é um mutilado (extrato), um exemplo, um documento de autoridade, serve como testemunha jurídica (o convoca a testemunhar): haveria um efeito de nota de autoridade provocado pela citação, em que o nome do citado justificaria (serviria como exemplo) no contexto em que se enxerta seu texto. O decalque puro, sem qualquer referência a seu autor, pode vir a ser prova de plágio, e leis de diferentes países divergem sobre qual a porcentagem de um texto alheio pode ser copiada sem que nisso se incorra em delito. Posto que ela reproduz um texto primeiro dentro de um texto segundo, cumpriria, em acréscimo, a função de transmissão entre dois sistemas. Dada a variedade de suas funções, seu uso pode provocar ambiguidade; sua posição e a maneira como é demarcada viriam em auxílio à análise da mesma. Ela se torna o réu de debates metalinguísticos. “O que você quis dizer quando citou x (uma palavra, uma frase) ou X (alguém)?”165 A citação é um recurso comum ao texto crítico, ao comentário teórico. Em seu livro La Seconde main, Antoine Compagnon (1979) estuda o uso da citação e suas implicações ao longo da história, tentando observar que relações ela engendra no texto, que valores de fato a citação produz. Ele introduz o tema rememorando sua infância, quando sua atividade favorita envolvia o uso de tesoura, papel e cola. Uma atividade quase instintiva:

... tenho isso no sangue, a paixão do recorte, da seleção e da combinação [...]. Bato o pé quando as coisas resistem a mim, quando elas se recusam a se submeter a minha ordem, rebeldes como elas estão

165 Sobre tais confusões, cf. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Le guillemet, un signe de ‘langue écrite’ à part entière.” In: ROSIER, Laurence (org.). A qui appartient la ponctuation. Paris.

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se apresentando em meu recorte e colagem, no meu modelo de universo. [...] Recolar não restitui jamais a autenticidade: eu descubro o defeito que conheço, eu não consigo me impedir de ver apenas ele. Mas eu faço pouco a pouco algo aproximado; eu transgrido a regra, eu travisto o mundo.166

A partir dessa atividade infantil com tesoura e cola, ele demonstra como “Recorte e colagem são as experiências fundamentais do papel, das quais a leitura e a escrita não passam de formas derivadas, transitórias, efêmeras.”167 CLBD se apresenta como uma obra em que nenhum dos textos pertenceriam àquele que assina o livro, oferecendo-se, simplesmente, como um inventário de citações.

Ali, parto de uma matéria textual, e faço uma espécie de ilustração dessa matéria textual que não é minha, mas que é um modo de acumulação de citações. A cada vez, há um outro tipo de narrativa, de construção da página, de formato, que se decide, na verdade, em função do assunto.168

Seria o ato de coletá-las e adicionar a elas sua assinatura que faria dele seu dono? Jochen Gerner diz que sua mesa é “table d’opérations [mesa de operações]”:169 rodeado de papeizinhos de ordens diversas, notas suas e trechos de textos e imagens de outros, ele costura, à maneira cirúrgica ou da costureira, em que a citação é o objeto posto em circulação de valor dependente de fatores contextuais e cotextuais (paratexto, forma). O projeto de Gerner em CLBD, uma antologia de citações, é parte inerente de seu projeto de autor. Advogando por uma obra que não se produz ex nihilo, desde o início de sua carreira trabalha a partir de formas existentes, sendo a citação elemento constante em seu modus operandi.170

166 “[…] j’ai ça dans le sang, la passion de la découpe, de la sélection et de la combinaison [...]. Je trépigne de rage lorsque les choses m’opposent une résistance, lorsqu’elles refusent de se soumettre à mon ordre, rebelles qu’elles sont à se représenter dans mon découpage, dans mon modèle de l’univers. […] Recoller ne restitue jamais l’authenticité : je découvre le défaut que je connais, je ne parviens à m’empêcher de ne voir que lui. Mais je me fais peu à peu à l’à-peu-près ; je détourne la règle, je travestis le monde.” COMPAGNON, op. cit., p. 16. 167 “Découpage et collage sont les expériences fondamentales du papier, dont lecture et écriture ne sont que des formes dérivées, transitoires, éphémères.” Ibidem, p. 16 168 “Là, je pars d’une matière textuelle, et je fais une sorte d’illustration de cette matière textuelle qui n’est pas de moi, mais qui est une sorte d’accumulation de citations. A chaque fois, il y a un autre type de récit, de construction de la page, de format, qui se décide en fonction vraiment du sujet.” GERNER, Jochen, entrevista feita por Xavier GUILBERT. “Jochen Gerner.” Du9 – l'autre bande dessinée. Fevereiro, 2012 (b). 169 GERNER, Jochen. Paris: Moreno, 1999. Trecho citado em seu site, www.jochengerner.com. Não foi possível encontrar o livro para venda ou pesquisa (não constava dos registros da Bibliothèque nationale de France). 170 Sua primeira publicação em quadrinhos já tinha ares de uma antologia (recueil) de citações em torno da palavra “banlieue”. O inventário foi obtido graças a computadores do trabalho de sua mãe, engenheira lexicográfica do CNRS. Périphéries, parte de um livro de dez autores e suas narrativas sobre bairros periféricos à capital francesa (ditos “banlieues”) com David B., Jean-Pierre Duffour, Jochen Gerner,

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Segundo Antoine Compagnon, toda citação engendra elementos tomados de dois sistemas semióticos: o primeiro sistema, S1, inclui texto T1 e autor A1 (ou seja: S1 (T1,

A1)), que se relaciona com um segundo sistema, S2 (T2, A2). Os dois sistemas podem gerar combinações diferentes de acordo com as relações estabelecidas entre si, e cada relação também produz um valor semiótico, sendo sempre um tipo de signo, seja com o valor de símbolo, índice, diagrama ou de imagem. Dessa forma, o discurso de um determinado sistema repetido no interior de outro é, a cada vez, dotado de um valor diferente, assim como um discurso reportado em forma de um discurso direto denotará as palavras desse discurso, enquanto o indireto pretende enfatizar seu sentido.171 Uma das definições que Compagnon avança em seu livro é de que a citação é “un énoncé répété et une énonciation répétante [um enunciado repetido e uma enunciação repetente]”, 172 em que t é o enunciado que se torna objeto de troca (échange) entre os dois sistemas – uma economia discursiva. A citação pertenceria ao campo de figuras de repetição do discurso, assim como o refrão, o leitmotiv. No entanto ela não seria apenas um enunciado repetido: ao repeti-la, ela é integrada e se torna uma enunciação nova, carregada de um novo valor – e, muito mais provavelmente, valores. Ela é deslocada e, consigo, desloca o sentido primeiro derivado de seu contexto. “Um enunciado repetido e uma enunciação que se repete” compreende, portanto, dois enunciadores e dois sentidos imbricados, que poderão criar um terceiro sentido: ao identificar um trecho citado por um autor, o leitor é levado a “reduzir” a velocidade da leitura para compreender a relevância daquelas aspas: por que citam?

Afirmar que a citação seja apenas enunciado repetido participa da redução habitual da linguística: aquela do ato de fala, da enunciação. O ato de citação é uma enunciação singular: uma enunciação de repetição ou a repetição de uma enunciação (uma enunciação repetente), uma re- enunciação ou uma denúncia [dénonciation]. A enunciação é a força que se faz valer de um enunciado e que o repete, e é porque ela está no princípio da citação que um formalista russo (Voloshinov) a definia dessa forma: “um enunciado de enunciação reproduzida”.173

O enunciado citado t torna-se uma junção ou diálogo (referência direta a Mikhail Bakhtin), posto que cada sistema compreende uma enunciação, na citação ocorre o

Joëlle Jolivet, Olivier Josso, Patrice Killoffer, Jean-Christophe Menu, Marc-Antoine Mathieu, Pascal Rabaté, Stanislas, e Vincent Vanoli (L'Association/La Villette, 1994). 171 Cf. COMPAGNON, op. cit., p. 107. 172 Ibidem, p. 56. 173 “Prétendre que la citation n’est qu’énoncé répété participe d’une réduction dont la linguistique a l’habitude : celle de l’acte de parole, de l’énonciation. L’acte de citation est une énonciation singulière : une énonciation de répétition ou la répétition d’une énonciation (une énonciation répétante), une ré- énonciation ou une dénonciation. L’énonciation est la force qui s’empare d’un énoncé et qui le répète, c’est pourquoi elle est au principe de la citation qu’un formaliste russe [Voloshinov] définissait ainsi: ‘un énoncé à énonciation reproduite’”.Ibidem, p. 55.

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choque entre dois momentos de enunciação. Do “choque” emana uma enunciação terceira, a imagem formada pela interseção entre os dois sistemas; de certa forma, tal confronto torna possível uma dialética. A citação se faz signo por se repetir, por essa possibilidade de existir para além do referente, do enunciador e de seu emissor. Por sinal, seria a condição de poder ser citado que faria de um dado elemento um signo, segundo Derrida, “o signo seria a presença diferida”.

Todo signo, linguístico ou não linguístico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposição), em pequenas ou em grandes unidades, pode ser citado, colocado entre aspas; por aí ele pode romper com todo contexto dado, engendrar até o infinito novos contextos, de maneira absolutamente não saturável.174

A possibilidade de ser extraída, enxertada em outro texto é a marca da escrita, a de ser citada para além do destinatário ou do emissor. O signo cita o mundo na ausência do mundo, o torna presente (ou, como diz Blanchot, a linguagem nos dá real ao mesmo tempo que nos priva dele). O sublinhar, que pressupõe o hábito de ler com uma caneta à mão, seria o preparo visual de uma citação. Essa linha vermelha, preta, ou azul, e ainda coloridos marca-textos que vêm a mostrar a linha de recorte no texto do outro, reafirmam a visualidade do texto e a necessidade de criar-se relevos na página de papel. Após tal marca visual de depredação, a ablação: ao citar, eu mutilo um texto. Isso começa no ato de leitura, “O fragmento eleito converte-se ele mesmo em texto, depois pedaço de texto, membro de frase ou de discurso, mas pedaço escolhido, membro amputado; longe ainda de ser um enxerto, mas já é órgão recortado e deixado de reserva”.175 Toda leitura é desorganização de um texto-fonte? Retirado do texto, o trecho torna-se pronto para que eu o enxerte (greffe) em um texto meu. Sua condição de elemento repetido entre dois textos faz da citação um fenômeno interdiscursivo que repete um mesmo significante e um mesmo significado em dois momentos (enunciações) diferentes. Ela transcende o nível da frase que, por si só, não poderia ser considerada como signo (a frase é enunciação, evento único, o signo é o que pode ser diferido, repetido). O valor primeiro é o de seu sentido, seu valor de significação na primeira vez em que foi enunciada, o valor de t em T1. Em segundo lugar, os valores conferidos pelo ato

174 “Tout signe, linguistique ou non linguistique, parlé ou écrit (au sens courant de cette opposition), en petite ou en grande unité, peut être cité, mis entre guillemets; par là il peut rompre avec tout contexte donné, engendrer à l’infini de nouveaux contextes, de façon absolument non saturable.” DERRIDA, op. cit. (edição eletrônica). 175 “Le fragment élu se convertit lui-même en texte, non plus morceau de texte, membre de phrase ou de discours, mais morceau choisi, membre amputé ; point encore greffe, mais déjà organe découpé mis en réserve.” Ibidem, pp. 17-18.

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de citar, e Compagnon os chamas de “o complexo de seus valores de repetição”, valores esses motivados por razões diversas, contingentes. O signo linguístico (revisemos Benveniste e Saussure junto a Compagnon) é arbitrário; a relação entre o significante e o significado seria contratual, por ser tal relação imotivada e necessária. Por outro lado, quando a relação entre a coisa e o signo é motivada e não-necessária, o signo é arbitrário, como é o caso da citação. A relação entre o significante – o trecho enxertado – e seu significado (o significado do ato de retirar t de T1 e as consequências desse enxerto em S2) é motivada – incitada – pelo leitor autor de S2 de maneira arbitrária e contingente, depende de uma vontade individual de quem cita. A partir ainda das teorias de Benveniste, Compagnon apresenta as etapas pelas quais são tratadas as citações no ato de leitura. Primeiramente, o reconhecimento da citação, oferecida sobretudo pelas “marcas indiciais de repetição”, e tais marcas são visuais: aspas, itálicos ou a disposição após travessão, dois pontos. Em sua análise do discurso da crítica dos quadrinhos, Gerner reproduz esses discursos sem parafraseá-los; a reprodução ipsis litteris evoca uma vontade científica. O pesquisador (Gerner) se abstém completamente de qualquer emissão (pelo menos sem intromissão textual) de um juízo. A interpretação é feita pela justaposição ao desenho, pela disposição na página, mas é uma interpretação que se oferece ao leitor, invoca-se um diálogo entre tais textos e a leitura deverá ser feita pela via de uma dialética. Provoca-se o leitor a decidir a relevância e o significado do ator de citar. Tal citação está lá por algum motivo a descobrir, ela é um dêitico. O que quis dizer Proust, mas o que quis dizer Gerner quando repetiu Proust? Para ser mais exata, o que quis dizer Gerner quando tomou de Proust aquele trecho e fez dele a epígrafe de seu livro? A relação entre S1 e S2 contém em si um significado primário e um complexo de valores secundários pela sua repetição. Um nome de um autor estabeleceria uma relação de contiguidade entre os dois sistemas, adquirindo valor de índice. O enunciado pode estar decomposto, mas a referência a um determinado autor já delimita o seu significado; ela é também o valor por excelência da nota de rodapé. Citar o nome de um autor corresponde a esse efeito de nota de autoridade.

O uso das aspas – e seu não uso – também pode ser compreendido como um recurso retórico, o de materializar uma citação (um discurso de outro tornado visual). Gerner nem escreve “Fulano disse”, as aspas e os nomes de autores denotam que ali está um

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texto “puro”, cuja única implicância do catalogador são suas marcas de corte (aspas, reticências) e a disposição que ele faz dessas frases. Os desenhos dialogam com esses discursos, mas a citação, o texto, não é comentada por outro texto nem transformada (parafraseada).

3.2 As citações em CLBD

A frase de catalisadora do projeto de Gerner vem do livro L’Art du roman, de Milan Kundera (1986), citada no trecho de CLBD abaixo e que traduzo em seguida:

Figura 33: CLBD, p. 76

Se afastamos a questão do valor, satisfazendo-nos de uma descrição (temática, sociológica, formalista) de uma obra (de um período histórico, de uma cultura, etc.), se colocarmos um sinal de igualdade entre todas as culturas e todas as atividades culturais (Bach e o rock, as histórias em quadrinhos e Proust), se a crítica de arte (mediação sobre o valor) não encontra mais lugar para se exprimir, a “evolução histórica da arte” terá seu sentido obscurecido, desmoronará, tornar-se-á o depósito imenso e absurdo das obras.

O enunciado de Kundera parte de uma contraposição entre nomes de autor (Bach e Proust) e nomes de espécies de expressão (não seria o rock um gênero musical e bande dessinée uma espécie de leitura?). A afirmação, uma preocupação não exclusiva ao escritor tcheco, é rodeada por três caixas “fechadas” no desenho de Gerner. As caixas fechadas remetem ao contexto de depósito “imenso e absurdo” mencionado por Kundera. Cada caixa contém uma legenda, em caixa alta: [ROCK], [BACH ET PROUST], [BANDE DESSINÉE]. A caligrafia das legendas é milímetros maior que as do texto, e estão sublinhadas. As caixas diferem entre si: o “rock” é guardado em uma caixa com furos: estaria ali uma fera, não domesticada? Bach e Proust estão mais bem

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guardados, em um cofre-forte, como merecem os bens culturais que eles são. A história em quadrinhos, como um objeto radioativo ou infeccioso, só pode ser examinada através de luvas, como se estivesse em uma caixa à proteção bioquímica. O autor tcheco articula seu raciocínio usando os nomes próprios [Bach] e [Proust] como parte de uma baliza de igual categoria, contra duas palavras genéricas, [rock] e [bande dessinée]. Por essa escolha, os nomes desses autores se elevam visualmente (fazem sombra) sobre as duas outras palavras sem dono (os nomes comuns). Por que não dizer “música” e “literatura”, ou especificar o “barroco” e o “romance”, em vez de confrontar nomes de autores com palavras de categorias dessemelhantes – “rock” sendo um gênero musical, quadrinhos uma mídia “verbo-icônica”, bem distantes quanto seu formato dos ditames da música barroca de Bach por um, e do romance proustiano para outro? O trecho recortado por Gerner demarca valores das palavras desde a forma de suas letras inicias, da maiúscula (indicando nome próprio) cuja forma tipográfica é mais relevante – em relevo material, físico, da letra que se eleva – do que os termos aos quais são comparados, em minúsculas.176 As duas palavras são nomes de autor, portanto signos que são um índice referente a uma gama de significâncias distintas entre si devido ao tipo de produção cultural sobre o qual se abrigam, a música e a literatura. Ao compará-los com os termos [rock] e [bande dessinée], ele os transforma em símbolos de um determinado patrimônio cultural (música e literatura), e seus antagonistas na comparação, em minúsculas, como apenas “atividades culturais”, subgêneros culturais. Kundera argumenta que a crítica de arte deveria saber distinguir diferentes valores estéticos produzidos por uma sociedade recorrendo a nomes desses dois autores como instituições já sólidas, claramente identificáveis como nomes de valor. Por outro lado, [rock] e [bande dessinée] são automaticamente rebaixados como um todo, sem distinção entres autores e a produção sob essas etiquetas. De certa forma, ao comparar expressões de categorias diferentes, o escritor exagera o suposto embaralhamento dos sentidos ao qual a história da arte estaria condenada caso a noção de valor (hierarquia entre objetos) fosse desconsiderada. Esse trecho se insere em um capítulo destinado à cultura e é contornado por outras duas “instituições” francesas: Irmã Emmanuelle e o Abade Pierre, quase santos ainda em vida, de dedicação à caritas cristã. Eles teriam “dignificado”, pela via da escrita de um prefácio, um álbum qualquer de história em quadrinhos. A função de suas

176 A reprodução da citação por Gerner desfaz essa hierarquia; para tal análise me baseio na tradução para o inglês do livro publicado originalmente em francês, confiando que a edição tenha respeitado o uso retórico de maiúsculas e minúsculas. (Cf. KUNDERA, Milan. The Art of the Novel. Tradução: Linda ASHER. Grove Press, Inc., 1986)

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assinaturas poderia ser compreendida como uma aproximação entre o extremamente mundano e a esfera do sublime, da mesma forma em que Bach e Proust teriam um papel sagrado, aquilo que “está cheio da presença divina” ou “o que é proibido ao contato dos homens” – no caso, os dois autores transcendem a um patamar (ou altar) superior, suas obras teriam o papel de nos conectar com esse sublime. Na página seguinte, enfileira-se (em ordem alfabética) uma coleção de biografias em quadrinhos (“Vies [vidas] en bande dessinée”, Figura 34: CLBD, p. 77), daqueles que podem ser considerados ícones de determinados meios socioculturais ou históricos, como Alexandre O Grande, Proust, Zidane, Senna, em uma lista em que vemos uma caricatura de cada um destes personagens esboçada por Gerner – em seu estilo particular, quase geométrico. São seus rostos enquadrados pela capa de um álbum BD. A efígie de cada um dos personagens de CLBD, cujas vidas foram narradas em quadrinhos, aparece sobre “capas” de álbuns ordenadas pelo acaso alfabético, nos permite “refletir” sobre a ideia de valor em nossa cultura (algo bem além de uma distinção entre gêneros artísticos) A discrepância entre as personalidades de cada um dos biografados faz referência à própria citação de Kundera, ainda presente ao lado e visível pela dupla-página em que se insere tanto a citação quanto o repertório. Esse “depósito absurdo de obras” de que nos fala Kundera não é questão de saber fazer a diferença entre “atividades culturais”. Essa mistura da dita alta cultura e cultura de massas é disseminada através das páginas de CLBD.

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Figura 34: CLBD, p. 77

São matérias diversas, textuais ou gráficas, que serão “igualadas” pelas páginas do livro de Gerner, um “depósito” que desafia o comentário do escritor tcheco. Os enunciados textuais, por terem sido extraídos de outras bases documentais, de origens diversas, são, portanto, citações ipsis litteris, que podem ser classificadas em assinadas e anônimas. Explico rapidamente minha classificação e comentarei com exemplos nas páginas que seguem. a) Os enunciados assinados seriam, obviamente, aqueles delimitados pelas aspas e pelas marcas da enunciação primeira de onde são extraídos (nome do autor e título do livro). Duplamente marcados pela referência ao ato primeiro de enunciação e pelo fato de serem demarcados pelas aspas, trariam em si efeitos de argumento de autoridade ou seu contraponto discursivo (argumento a ser contestado). b) Os enunciados “anônimos” ou os textos sem marcas apontando seu enunciador originário. Sem aspas, confundem-se como pertencentes a

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um mesmo enunciador, com a figura do autor do livro, cujo nome na capa ocupa o lugar do sujeito dessa enunciação.177 c) Um terceiro grupo abrange as citações visuais, em que citações acompanhadas de um nome de um autor também poderiam ser chamadas analogamente de assinadas, mas não anônimas. Distingo-as das citações em texto pelo fato de que, ao serem copiadas, elas perdem muitos mais traços designativos de sua propriedade do que ao copiar um texto, e explanarei melhor sobre tal distinção na p. 126. Gerner trabalha pela acumulação de ideias, e as anota em papeis diversos espalhados em frente à sua mesa. Tal prática foi crucial para a criação de CLBD, que teve seu processo transformado em uma exposição, em que era possível ver a matéria bruta sendo passada a limpo para o livro, das marcas da “tesoura” de Gerner ao seu trabalho posterior de “copista”. A imagem que segue (Figura 35) nos exibe as diferentes “fases” da citação: os papeizinhos (transcrições de citações) colados sobre uma mesma folha. Outras citações recopiadas à mão por Gerner confundem-se com os esboços de suas “respostas” desenhadas e suas indagações: “L’Asso ?”, pergunta-se, com uma seta apontando para o adjetivo “lunaire” qualificando pessoas que passaram dos trinta e continuam infantis. “L’Asso ?”, será que esse comentário fala dos autores da L’Association, editora de Gerner? Os fundadores da L’Asso(ciation) já ultrapassaram a casa dos 50, Gerner acaba de ultrapassar os 40; a citação seria, possivelmente anterior à criação do livro (os anos 2005-2008) para ser um comentário sobre essa geração dos colegas de Gerner.

177 Algumas frases e palavras citadas puderam ser “reconhecidas” por mim ao longo da pesquisa, expressões como as da página 10 surgem até em minhas referências bibliográficas, ou o “bande décimée” (dizimada), que parece ser o trocadilho infame favorito do Libération quando morre algum autor de quadrinhos.

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Figura 35: Página preparatória de CLBD, disponível no site do autor

Os diferentes materiais originários do livro são visíveis nessa página: papeis de idades diferentes, datilografados, recortados, copiados à mão com três cores de canetas, anotados, comentados por escrito ou por desenhos. Uma profusão (polifonia?) de enunciados e um trabalho de análise, um fichamento (ler com a caneta à mão, diz Compagnon). E tudo isso será “igualado”, hierarquias quebradas pela letra em preto e

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branco e de tamanho invariável. O fato de expor o processo salienta as relações que são tornadas possíveis no espaço do livro, da costura entre citações diversas e desenho, usando a mesma linha (traço, estilo). O ato de colecioná-las, de acumulá-las e de demarcá-las seriam características próprias da heurística proposta em CLBD. As aspas vêm sempre acompanhadas de um nome de autor e indicação da obra e ano referente ao trecho. Descritas pelas gramáticas como uma mudança de “voz” do enunciador, empregadas para dar a certa expressão sentido “particular”, ou indicariam uma “entoação especial” na linguagem falada – parte da crença logocêntrica de que a escrita ainda seria mera reprodução da fala. Como defende a teórica Authier-Revuz, as aspas são na verdade um signo escrito por completo,

arqui-forma de modalização autonímica (no sentido em que falamos de arquifonema, de arquilexema), correspondendo, no plano do significado, à interseção do conjunto dos valores dessas formas que dizem: digo X porque..., digo X, embora..., digo X sabendo que..., digo X como empréstimo da palavra..., digo X com seus dois sentidos, digo X de tal ou tal maneira, interseção equivalente a um simples digo X. É um puro gesto de demonstração do dizer e do signo em sua materialidade.178

Ela repertoria algumas metáforas para aspas extraídas de textos diversos em francês: pinças (para não sujar as mãos com tais palavras), camisa de força, algemas, aspas- vestimentas para palavras que não querem andar nuas, preservativos, capas de chuva. Seu caráter seria essencialmente o de uma indicação gráfica, melhor dizendo: tipográfica ou topográfica, posto que falo de um tipo, um signo repetido, e sua função seria a de, entre tantos tipos (caracteres), denotar um relevo, de apontar para uma mudança ou hierarquia no discurso. Pinço alguns termos que as descrevem suas funções, pertencendo ao campo semântico das marcas ou relevo: distinguir, sobressair, acentuar, realçar, indicar, substituir o valor do travessão, dar destaque, criar hierarquia.. Não por acaso, em inglês, o termo “inverted commas” continua com sinônimo de “quotation marks”. Seu uso distinguiria trechos do texto, balizando, de certa forma, o desnível entre primeiro e segundo graus do discurso, delegando a um terceiro (ao citado) a responsabilidade do enunciado secionado. Como escreve Roland Barthes, elas participam do conjunto de

178 “... archi-forme de modalisation autonymique (au sens où l’on parle d’archi-phonème, d’archi-lexème), correspondant, au plan du signifié, à l’intersection de l’ensemble des valeurs de ces formes qui disent : je dis X parce que..., je dis X bien que..., je dis X tout en sachant..., je dis X en empruntant le mot..., je dis X avec ses deux sens, je dis X de telle et telle façon, intersection équivalente à un simple je dis X. C’est un pur geste de monstration du dire et du signe dans sa matérialité.” AUTHIER-REVUZ, op. cit.,p. 380.

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sinais gráficos em que se exime o que se escreve, para anunciar o “embaraço” ao dizê- lo: aspas, parênteses...179 Pelas aspas, observa-se que matéria prima de seu livro são frases de autores, muitos autores reconhecidamente desta “alta cultura”. Sob suas assinaturas, uma autoridade se instaura. Outras frases são eximidas de proprietário, mas sabemos que elas não foram inventadas por Gerner – para lê-lo compactuamos com o que ele nos afiança, como ele agradece àqueles “tendo contribuído fornecendo, voluntária ou involuntariamente, os dados textuais ou picturais para a elaboração dessa obra” (CLBD, p. 133). A ausência de um nome de autor e aspas parecem indicar frases sem dono, como pertencentes ao senso comum. Seriam elas pertencentes às referências bibliográficas listadas ao fim do livro? Gostaria Gerner de proteger sua fonte, para eliminar qualquer possibilidade de uma acusação direta aos citados? Não nomeá-los pode ser compreendido como um gesto delicado de fazer ver os discursos e não a pessoa. Nomeá-los, por conseguinte, evoca um gesto ambíguo que credita, descreditando (se não concordarmos com a sentença).180 Há uma hierarquia no uso das aspas inerente ao estilo da citação em francês Primeiramente, as aspas guillemets (francesas) delimitam um trecho cuja autoria é assinalada. A aparição das primeiras aspas se inicia de maneira sistemática, em trechos destacados no alto de cada página. Devido a tal posição e o fato de serem acompanhados de nomes de autores literários, ganham a priori efeito de epígrafe – o mote do capítulo, da página em que se inserem. Aos poucos, porém, os trechos com autoria anunciada se diversificam e chegam a ocupar espaços por vezes superiores ao do desenho.181

179 BARTHES, op. cit., 2003, p. 104. 180 Ver Quadro 6: créditos, p. 292. Apenas vinte das cerca de setenta fontes identificadas ao longo do texto são elencadas nesses créditos. 181 Em anexo, p. 284, comento questões técnicas da citação, apresentando alguns dados do livro. Boa parte das citações são anônimas e não há qualquer marca que as faça significar “retiradas”, citadas – sabemos, apenas, pelo paratexto externo (catálogos, entrevistas) e pelos créditos do livro (Quadro 6: créditos, p. 292). As obras citadas “assinadas” provém de romances, manuais, ensaios, comentários. Cerca de setenta autores são citados nominalmente e acompanhados das referências completas, título da obra e ano da publicação (Quadro 4: Textos “assinados”, p. 289). A marca primordial da citação são as aspas – no caso, as aspas francesas (chamadas guillemets) [“»]. Elas não serão as únicas marcas da citação, e chamo a atenção para essa topografia citativa, em que os sinais de ablação (cisão, fronteira entre os textos) se materializam por todo o livro. A referência ao autor evoca documentos passíveis de serem verificados.

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Figura 36: CLBD, p. 3

Em segundo lugar, aspas comuns delimitam o título da obra de onde foi extraída a citação; elas também distinguem a reprodução em terceiro grau na citação, as aspas contidas no texto citado. No trecho de Contre Sainte Beuve de Proust referido (Figura 36, traduzida na p. 55), as aspas comuns marcam um título de uma obra (na verdade, o nome do jornal “Le Figaro”) e um trecho citado desse outro texto (“La tempête : Brest [...]”). Elas também aparecem em textos anônimos, isto é, aqueles textos sem delimitação por aspas francesas, “soltos” na página como se pertencendo a um mesmo discurso (por exemplo, na Figura 37), e cumprem as funções habituais do relevo de um termo ou expressão em língua estrangeira, a apresentação de um elemento em um determinado contexto discursivo, ou uma forma de denotar uma escusa pelo uso de tal termo por parte do enunciado. Ao usá-las, é possível imaginar que todos os trechos não delimitados pelas aspas francesas também pertencem a um enunciador que flutua por todo o texto, frases de um senso comum que, justapostas, parecem pertencer a um único fluxo discursivo (o desconhecimento das regras do jogo do livro pode inclusive dar a entender que é o próprio autor que diz isso).

Figura 37: CLBD, p. 6

A história em quadrinhos é lida sobretudo pelos “ativos” e pelos “estudados”. Rejeitada pela “terceira idade”.

Além das aspas, outro elemento gráfico serve a indicar uma cisão no interior do texto (uma subtração de dentro do texto citado): os parênteses ou colchetes preenchidos por reticências. Tal gesto indica que a citação está mutilada em suas entranhas: cito, mas recorto texto para fazer “caber” no que digo, ou para eliminar a gordura desnecessária, apostos ou comentários que não são relevantes para o meu texto. Ao mesmo tempo em que uma citação é uma mutilação do texto estrangeiro (delimitada por aspas), a supressão física de trechos de um texto são a confissão de que, além de extrair tal texto,

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eu ainda o moldo de acordo com a minha vontade. Por outro lado, não deixa de ser uma forma de autenticidade e de honestidade intelectual: eu cito exatamente como está escrito, e ainda aponto onde realizei a sutura. As reticências produzem efeito de prolongamento e, entre parênteses, trazem uma incógnita, sobre o que será que recorto para caber em meu texto – tornam-se uma dobra quântica, criando pontes artificiais entre espaços distantes de um mesmo texto. No caso das reproduções de trechos de textos de história em quadrinhos, Gerner usa as reticências fora de parênteses como se transcrevesse a sarjeta (o branco intericônico) para a escrita. Elas aparecem na reprodução de trechos de Les Aventures completes du fils des âges farouches, de Roger Lécureux e André Cheret, nas páginas 51 e 52 e no trecho de Le Grand défi que “encerra” a citação das onomatopeias do álbum de Graton, trecho reproduzido na página 58 (Figura 39). As reticências são signos mistos, podendo marcar um fato presente na língua oral, por exemplo a interrupção da fala, ou significar um truncamento artificial da transcrição, fato escrito (escolho em meu texto o que reescrever e torno visível a eliminação de um determinado trecho). Os parênteses também são signos sem contrapartida na fala, e reproduzem em geral um escalonamento no discurso, da mesma forma como o artifício da nota de rodapé. Sem esse “cordão de isolamento” – os parênteses “protegendo” as reticências –, a transcrição se torna ambígua, podendo ser uma citação ipsis litteris. Na Figura 38, fica evidente uma extração de um miolo do texto em algumas das citações.

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Figura 38: CLBD, p. 103 (traduções de trechos assinados logo abaixo)

“Vê-se bem que o comic’s é a degenerescência do cinema. Nasceu certamente da necessidade de se oferecer filmes estáticos, “cinema em um sofá” aos amantes de “movies”. Isidore Isou, “Ensaio sobre a definição, evolução e a transformação total da prosa e do romance”, 1950.

“A história em quadrinhos tem o fascínio espectral de personagens de papel, situações congeladas para sempre, marionetes sem fio, imóveis. Ela é intransponível para o cinema (...). O mundo da BD pode generosamente emprestar ao cinema seus roteiros, seus personagens, suas histórias, ele [o cinema] nunca terá esse inefável e secreto poder de sugestão que provém da fixidez, da imobilidade da borboleta transpassada por um alfinete.” Federico Fellini

“A ideia de movimento deve nascer da imobilidade.” Marcel Duchamp

Apenas escolhendo um dado do álbum, Gerner por inteiro um item da série em quadrinhos de Jean Graton, Michel Vaillant. Le Grand défi, de 1958, tem suas

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onomatopeias de velocidade reproduzidas por três páginas de CLBD (pp. 55-57, por exemplo na Figura 66). Apenas na quarta página em seguida (p. 58), há a reprodução de um texto do mesmo livro e, dessa vez, a referência está completa (nome do autor, título do livro entre aspas comuns, acompanhado do título da série e do ano). Ao introduzir esse “subcapítulo” apenas a partir do título [ LE GRAND DÉFI ], ele joga com a palavra “défi” [desafio], propondo-nos, ao mesmo o tempo, um “desafio” de tentar ler essa profusão de ruídos. A não ser que o leitor tenha uma maior proximidade com a história de Graton, não seria possível “reconhecê-la” sem a referência. A origem dessa lista não se dá de forma evidente: espera-se do leitor um olhar atento para a coincidência entre os títulos da lista da p. 55 e da citação textual, visível na Figura 39: CLBD, p. 58. O efeito desse adiamento é de um suspense, que convida a uma análise: o que seria essa profusão de onomatopeias? O que elas indicam – haveria uma relação de correspondência entre elas?

Figura 39: CLBD, p. 58

Ao reportar as onomatopeias de motor de carro presentes em Le Grand défi, de Jean Graton, ele cria uma espécie de resumo de uma história inteira do personagem que dá nome à série, Michel Vaillant. Apropria-se do sistema da narrativa de Graton para denotar um conceito depreendido da mesma – sua lista de onomatopeias seria, portanto, uma “representação gráfica de um fenômeno” (definição de diagrama), a saber a exaltação da velocidade (ou da violência dos motores) na narrativa originária. O asterisco é outro signo tipográfico que pode salientar uma citação: é o signo da nota de autoridade por excelência. Porém, em CLBD sua função é a de um suplemento ao texto principal, ocupando a função de legendar (o comentário por excelência), traduzir um determinado elemento, explicando sua origem, marcar uma modulação entre as instâncias discursivas (diferentes planos em um só texto).

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Figura 40: CLBD, p. 7 (b)

Para obter determinado efeito, inicia-se* uma história em quadrinhos com um close-up. * ou se termina...

Na Figura 40, ele assinala uma nota-comentário, que replica o texto de onde a nota se aponta, demonstrando uma alternância de ordem paradigmática no texto. A cena em close-up (“gros plan”) encerra uma sequência de citações e figuras abordando o trabalho de um autor de quadrinhos e sua relação com o mercado. A lágrima no rosto do tipo- autor, o carro que parte, feroz (barulhento, veloz), deixando para trás o “autor” e seu trabalho jogado fora, como é possível imaginar pelas folhas voando, abandonadas. A mesma frase retorna ao fim do livro, tornando-se mais um dos exemplos de motivo rítmico dessa obra (Figura 41).

Figura 41: CLBD, p. 131 (a)

Para obter determinado efeito, termina-se uma história em quadrinhos com um close-up.

A segunda aparição do asterisco, ele apresenta uma função de “traduzir” um balão de fala em que o asterisco ocupa o lugar de um “texto”, da fala (Figura 42). Tal recurso, comum a histórias em quadrinhos em geral, quando um personagem fala em língua estrangeira, aqui aparece amplificado. Há personagens de quadrinhos que falam por “imagens”, a saber, pictogramas. No caso, símbolos gráficos, e o texto “traduz” ou “adapta” esse discurso em imagem-símbolo para o discurso em letras. O interlocutor do tipo que fala o “asterisco”, o já mencionado alter ego pictórico de Jochen Gerner, fala por “reticências”, como se sua fala estivesse de fato “suspendida”, surpreendida, cortada pelo discurso do outro – pelo contexto, um editor de quadrinhos que avalia o objeto que intermedeia os dois, uma página de história em quadrinhos. Ela está em meio a eles visualmente e adquire função de ponte entre os dois tipos. Leio nesse “diálogo” uma

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ironia que se faz em segundo grau: o editor é a autoridade discursiva em uma negociação de trabalho para um autor de quadrinhos. É ele quem gerencia e institucionaliza a obra do autor. Na página de Gerner, a fala do editor está transcrita no espaço reservado à afirmação dessa autoridade, a nota de rodapé.

Figura 42: CLBD, p. 14

* A ideia me agrada. Mas, sem balão, como apreciar? Transmito seu projeto ao comitê de redação. Enviarei a você as diferentes opiniões.

Na página 63, há também uma outra tradução, dessa vez a de um termo: “teratologia”, palavra que preenche um balão que sai de um personagem imerso em um livro. Ela é explicada como se extraída de um dicionário. O leitor imerso, ele também correspondendo aos traços do personagem alter ego de Gerner, é semicoberto pelo livro e cercado de signos de “aflição”: um balão de exclamação, figuras-ícone de gotas (de suor?) emanam do alto de sua cabeça, riscos verticais sobre sua bochecha. Um homem- da-lei e seu cão o observam com suspeito: ele lê um livro peculiar, com um monstrengo sobre a capa. Teria ele topado, envergonhado, com a palavra estranha no livro que lê? Ou disfarça a leitura ignóbil – um álbum de quadrinhos –, dizendo tratar-se de um ilustrado “científico”? Por isso seu balão com “teratologia”, em letras espessas, sublinha a cena? Um palavrão desses precisa de um aposto, e ele o posiciona ao pé da página, como nota para informar seu leitor. Por ser uma inserção de um discurso paralelo no texto principal, as notas de rodapé em um texto ensaístico tendem a serem limitadas. CLBD não foge à regra, e Gerner usa comedidamente tal recurso. Algumas citações de obras visuais (quadrinhos, obras arquitetônicas, instalações, pinturas) são acompanhadas de legendas sem aspas. Nesses casos, é a imagem da letra

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que indica a variação, deixando a predominante caixa alta reduzida (em letra de fôrma) para a variação caixa alta/caixa basta, em forma mais arredondada (letra bastão). Mesmo sendo um livro manuscrito, CLBD obedece ao critério de constância que normatiza sua relação tipográfica: ao sublinhado será relegado o papel de recurso manuscrito utilizado para denotar os destaques que a máquina reserva ao negrito e ao itálico.

Figura 43: CLBD, p. 11

As histórias em quadrinhos são tipos de mídias especiais que fazem uso de suas próprias técnicas e terminologia própria.

A enumeração também é outro uso evocando “nota” ou sequência. Há apenas duas ocorrências para uso dos números indicando uma notação informativa e elas ocorrem com relação a imagens. Em primeiro lugar, no capítulo “Décors et couleurs”, evoca-se a pintura por números, convocando-nos a colorir a partir de diferentes paletas (cores primárias, cores digitais, tons de azuis célebres). Ou, ainda, figuras aparecem ilustradas com números e as cores correspondentes abaixo; ou figuras ambíguas são legendadas – um asterisco marca a diferença entre as figuras indiscerníveis (enumeradas) e o vilarejo, que não se confunde com as primeiras, mas também é “notado” (CLBD, pp. 21-23). Em segundo lugar, em uma dada ilustração de uma cena, Gerner nos aponta para uma colagem de referências de outros autores de quadrinhos.

Figura 44: CLBD, p. 100

Em outro trabalho seu, a série Relectures, por exemplo, Gerner explicita um projeto de uma intertextualidade – ou melhor, intericonicidade – entre objetos de ordens diversas. Nele, mostra “enxergar” trechos de obras minimalistas em histórias em quadrinhos do início do século XX, ou nos afirma que a obra em quadrinhos poderia ter influenciado tal artista minimalista (a ordem cronológica sendo aqui um fator irrelevante). Jochen Gerner procedeu à catalogação de elementos em páginas de alguns

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álbuns e livros em quadrinhos selecionados de acordo com a sua relevância histórica. Os elementos catalogados eram de ordem sobretudo visual, panoramas, pontos quase imperceptíveis, posição de personagens. A partir de uma leitura aprofundada de elementos aparentemente difusos sobre a página, ele conseguiu relacionar a eles possíveis “intertextos”, não apenas obras visuais, mas também romances. Assim, apontou que trechos de Jimmy Corrigan, the smartest kid on earth do quadrinista Chris Ware (1967-) corresponderiam a telas do pintor Edward Hopper (1882-1967), catalogando o número da página do Jimmy Corrigan, a posição de um determinado elemento da página, enquadrou-os, redesenhando o elemento “pinçado”, enfatizando apenas seu caráter interdiscursivo, por fim legendando-o com a possível referência visual (cada quadro com o nome do autor e da obra “citados”). A reunião das “interseções” foram apresentadas em página evocando uma história em quadrinhos, no modelo gaufrier,182 de estrutura de quadros de área idêntica, distribuídos de maneira regular (“corretamente”, de igual tamanho). O enquadramento serviu-lhe como uma metáfora visual dessas aspas, em seu método técnico de explicitar a referência, pela via da legenda. Le Grand défi de Graton reaparece nessa série (Figura 45), e Gerner “vê” intertextos de Roy Lichtenstein, Frank Stella, Gérard Richter, posteriores ao livro de Graton de 1959, além de telas de Claude Monet e John Constable, que antecederam de meio a mais de um século o álbum em quadrinhos. A enumeração dos elementos segue o mesmo método de enumeração das onomatopeias. Suas “releituras” demonstram como é possível aproximar elementos aparentemente distantes no tempo e em gênero e relê-los a partir de uma outra experiência estética. Ele convoca figuras pertencentes tanto a seu imaginário refinado de artista plástico e ávido leitor quanto àquelas partilhadas por um leitor tradicional de história em quadrinhos (referências a um vocabulário comum).

182 Ver supra, na p. 97.

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Figura 45: “Relectures” (fotografia de exposição no museu Erarta, em São Petersburgo)

As inferências de Gerner não podem ser provadas, mas elas apontam para uma possível leitura de ordem plástica que pode vir a oferecer uma nova camada semântica à página. Em seu estudo, descobriu que algumas das referências notadas por ele eram cronologicamente aproximadas, podendo de fato serem reais ou sintoma do zeitgeist. Seria um compêndio de citações, apontando, por sua vez, para outras citações ou miragens citativas, vistas pelo seu olhar enciclopédico. Já em CLBD, suas citações visuais são em relação aos quadrinhos tradicionais ou homenagens sutis, mas há também reproduções de croquis arquitetônicos e obras plásticas. Muitas vezes, a ausência de um nome de autor indica que tal figura já foi assimilada, no “senso comum”, como é o caso dos petits Mickey espalhados pelo livro, um tipo barbudo contrapondo-se a outro sobre um divã para designar a profissão de psiquiatra do primeiro. A citação de Gerner se dá por uma imitação aproximada, uma alusão icônica do objeto citado, em que a imagem original já adquiriu uma identidade visual expressiva: ela poderá ser détournée [transformada] sem o apagamento das marcas da enunciação primeira de onde foi retirada – ou deixariam de fazer sentido. Enquanto o texto serve como um ponto sobre o qual é preciso analisar, as citações visuais serão seu contraponto – afora algumas citações específicas em que a história em

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quadrinhos é, também o objeto (assunto) dessa determinada citação visual (pinturas de Wahrol e Lichtenstein, por exemplo). Além do caráter visual que importa mais do que em um texto, a imitação ou referência visual podem ser mais ou menos reconhecíveis dependendo do grau de intimidade do leitor com o universo visual explorado por Gerner. Uma citação visual é menos fácil de ser dissimulada do que um texto, que pode ser camuflado em outro (o caso de um plágio em que o plagiador misturaria textos alheios em um patchwork bem costurado). Para citar Tintim, ainda que reduzido a formas geométricas, apresenta seu necessário topete.183 Divido-as, portanto, entre as que apresentam (c.1) marcas textuais (legendas) e (c.2) as evidentes pelo caráter do desenho citado, de reconhecimento público, como as referências ao Mickey de Walt Disney, ao Tintim de Hergé ou ao Asterix de Uderzo e Goscinny. As citações legendadas são, sobretudo, de obras de fora do meio dos quadrinhos, entre instalações, esculturas, pinturas, e construções arquitetônicas, podendo conter ou não o nome da obra – em configuração similar às citações textuais entre aspas “», com nome do autor, título e ano.184 Referências a títulos de quadrinhos apresentam-se apenas nomeando-se o livro acompanhado de uma representação de sua capa, em geral na forma de um pictograma que tentará resumir o tema. Ícones ou pictogramas são apresentados em listas, convocando o leitor a tentar entender de que forma o sentido é atribuído ao desenho, que se torna ora índice ora ilustração do nome da história. Na página 100, por exemplo, uma pequena imagem aparece legendada, com quatro “notas de rodapé” remetendo para os autores “citados” nessa aparente colagem de referências (Figura 44). O mesmo vale com duas imagens da página 127: Gerner aproxima uma reprodução de uma obra do artista minimalista Donald Judd, Untitled, com um elemento de um quadrinho realizado por De Montaubert e Lacroix, com a legenda “Cercle de tuyaux réunis”. Ao criar esse paralelo entre as duas figuras, ele nos aponta o intertexto entre a escultura de Judd e o quadrinho de De Montaubert/Lacroix, ao mesmo tempo em que faz um gesto duchampiano de nos expor um trecho de um quadrinho como se fosse uma obra de arte (legendada com ano, nome de autor e título – essa aproximação ainda chama a atenção porque “título” a obra de Judd possuía). Outras obras apresentam apenas uma referência ao nome do livro ou álbum a que se refere, grupo esse que se subdivide entre ilustrações icônicas ou indiciais de obras cujos

183 “A imitação, sabe-se mais ou menos desde Proust, é uma ‘crítica em ação’ [L’imitation, on le sait au moins depuis Proust, est une ‘critique en acte’]” (GENETTE, op. cit., 2010, p. 343). 184 Ver Quadro 5: Figuras “assinadas”, p. 291.

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dados são explicitados (nome do autor, título da obra e ano) na mesma página da obra; e figuras em formas de enigmas, i.e., ilustrações icônicas ou indiciais que são acompanhadas de jogos de letras e palavras que também formam um indício do nome do livro referido ou ilustrações icônicas de capas de livros e o título da obra. Os dois últimos citam a referência mas não deixam disponível o nome de seu autor.

Figura 46: CLBD, p, 121

O primeiro grupo – de autores explicitamente citados –, pode ser representado pelo trio de quadros da página 121 (Figura 46), em que o enquadramento de cada vinheta, chamadas “cases” jogam com a função desse enquadramento, em que funciona tanto como demarcação da vinheta quanto uma ideia de caixa (caser, pôr em uma “casa”, no sentido de nicho). O “Ocean-Chart” de Lewis Caroll, a vida sobre o sol ilustrada por Lefred-Thouron e a “case”/caixa do Petit Prince de Antoine de Saint-Exupéry (“Essa é a caixa [caisse]. O carneiro que queres está aí dentro”). As três “cases”, um mapa vazio, uma vinheta vazia, uma caixa deixando invisível seu conteúdo são referências literárias da impossibilidade de representar, seja pelas dimensões desconhecidas (o mapa do oceano), pela luz absoluta (o sol) ou pela incapacidade de conseguir traduzir um referente em desenho (o piloto perdido no deserto, incapaz de desenhar um carneiro). As três figuras são importantes em seus respectivos domínios artísticos (a poesia de

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Carroll, os quadrinhos de Lefred-Thouron, a novela de Saint-Exupéry), mas a legenda é necessária porque tais desenhos também brincam com a possibilidade de representar qualquer elemento pelo simples gesto de nomeá-lo. Na caixa há um carneiro porque eu disse que aquilo é uma caixa com um carneiro dentro. Na mesma página, o mapa de “Le Continent Blanc”, de Hesshache, também está devidamente referenciado com nome de autor, título da obra extraída e ano de publicação. E ainda uma discreta legenda com uma seta em ênfase, nomeia a música de Mozart (“notas demais”). Ambas as referências, em contraponto àquelas do início da página, precisam ser legendadas por serem dificilmente identificáveis, parte de um patrimônio cultural mais apurado.

Figura 47: CLBD, p. 30

As ilustrações com legendas na forma de enigmas ocorrem em geral em séries de títulos, em jogos de letras e palavras que também formam um indício do nome do livro referido. Na página 30 (Figura 47), por exemplo, um alfabeto é ilustrado por silhuetas de personagens de quadrinhos, cada um acrescido de letra referente a seu nome, como B de “Batman”, F de “The Flash”, K de “Krazy Kat”, N de “Nemo” etc. – a identificação dependerá do repertório pessoal do leitor, sendo um convite a um jogo de adivinhação.185 Os “comentários desenhados” sobre as resenhas do site religioso Salve Regina também são feitos em forma de charadas compostas por letras ou palavras indicando o nome e um pictograma para cada livro resenhado (CLBD, pp. 34-36). Na série de resenhas de filmes do guia de Jean Tullard, entre as páginas 92 e 96, cada trecho é acompanhado de referências visuais aos filmes mencionados. Outras listas de imagens, como a série de títulos de obras contendo menções à “criança” (enfant/kid),

185 Em trabalho mais recente, Gerner criou “alfabetos” tipográficos a partir do estudo de séries clássicas de quadrinhos, como Tintin e Franquin, na Figura 32, p. 110.

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são imagens livremente associadas por Gerner, não necessariamente expressando uma citação visual icônica. O ícone que mais se reproduz pelas páginas é o pequeno camundongo Mickey, que também surge em uma citação de terceiro grau, a imitação que Gerner faz do desenho do artista nova-iorquino Raymond Pettibon, Acid got me fired at Disney. Pettibon parodia Disney e Gerner, por sua vez, realiza um decalque do desenho do ilustrador a partir de seu estilo minimalista. Pettibon não está nominalmente citado ali, apenas o título do desenho o legenda, em letras bastão. Raymond Pettibon é comentado por um texto – de um crítico anônimo – posicionado à esquerda do desenho do Mickey “visivelmente alterado”.186 Não fosse o título, a re-apresentação do desenho poderia passar despercebida no capítulo que trata de quadrinhos e violência. Mais adiante, Gerner também reproduz Mickey segundo Wahrol e o mundo Disney segundo Bertrand Lavier, respectivamente pintura pop art e uma série de esculturas e pinturas instaladas. Nesses casos, há a necessidade da legenda: talvez o leitor não conheça essa “homenagem” oferecida por estes artistas plásticos. Mickey, Asterix, Tintim são personagens recorrentes, ao lado de alguns tipos. Os tipos, embora não sejam exatamente personagens “citados”, configuram-se como uma citação visual de um determinado caráter. Iterados e dispensando uma legenda, essas figuras transformam-se em signos, uma mise en abyme própria, como o citado personagem-alter-ego, de quem falei na introdução. O personagem “sério” de óculos, que cumpre a função proscritora em alguns momentos – o professor típico, o professoral, quem classifica e dá a ordem. O marinheiro célebre Corto Maltese, por sua vez, vem legendado: uma falha de Gerner em evidenciar a imagem do emblemático personagem criado no anos 1960 por Hugo Pratt (1927-1995), sendo preciso dar “a nota de rodapé” ou uma vontade de redundância? Afinal, o personagem de perfil, o cigarro, o boné e o navio não seriam suficientes para denotar o italiano (CLBD, p. 65) ? Por vezes, portanto, o personagem nos é afirmado (exibido conforme o original) e confirmado, legendado, redundante, em uma brincadeira entre o objeto representado e a palavra que o nomeia. As citações visuais são representações simplificadas, copiadas a partir do estilo de Gerner, via seu traço. Na página 25, por exemplo, próxima à citação textual de Jarry, há uma citação “anônima” sobre o caráter animalesco dos personagens de quadrinhos (Figura 48). O personagem de Tintim é imediatamente identificável pelo seu cabelo em

186 Minhas aspas estão aqui para reproduzir o clichê jornalístico para imagens de celebridades “flagradas” em momentos de “descontração”.

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crista, o formato arredondado de seu rosto, mesmo se seu intestino está à mostra. A citação de Jarry contribui a delimitar que aquele é o Tintim, e seu “instintestin” [sic].187

Figura 48: CLBD, p. 25

Ao lado dessa figura, há três personagens ou apenas um personagem em transformação. Vê-se um homem mal-humorado, ou pelo menos é o que se lê pela linha horizontal que atravessa seu rosto a partir da linha do “nariz”, sobre seus olhos, até metade de seu perfil. O homem tem poucos cabelos, calvo. O personagem na sequência, um pássaro, parece guardar as formas exteriores do personagem anterior, e os riscos representando cabelos se elevarão diagonalmente, formando um ligeiro tufo de “penas”. Permanece o nariz grande, que se transforma em bico. Na transição final, ele é todo “plumas”, o bico se abre, e a forma das linhas horizontais, o traço ainda mais espesso sobre os olhos, parece que o pássaro começa a falar já irritado. As linhas que saem do “bico”, três riscos diagonais, indicam um tom alto da voz. O uso das linhas pode ser facilmente identificável para quem conhece tais signos muito usados nos quadrinhos e no desenho, na ilustração. Esse pássaro irritado aparenta ser uma citação um tanto camuflada de outro autor de quadrinhos que está presente nos créditos de Gerner: o tantas vezes mencionado Lewis Trondheim. O senhor desenhado aparenta-se com ele (e sua proeminente fronte). O segundo desenho parece evocar o personagem que Trondheim criou para si, publicado desde os anos 1990 na forma de divagações, Les Petits Riens,188 em que se desenha a si em situações banais ou curiosas – porém, todos os seus personagens são desenhados com rostos de animais, recurso que veria de sua (falta de) habilidade técnica, tendo o autor começado sua carreira sabendo pouco desenhar (o handicap que teria lhe permitido o desenvolvimento de técnicas próprias de criação de narrativas, como o mencionado Le Dormeur).

187 Jarry (1873-1907), fundador do Collège de ‘Pataphysique, plagia Gerner por antecipação ao utilizar Tintin como material de escrita. 188 O mesmo estilo de seu Désœuvré, sobre o qual comento na p. 184.

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Trondheim é referência tanto para o gênero da autobiografia, um dos primeiros autores da geração de blogs autobiográficos de quadrinhos franceses. Conhecido pela sua cara mal-humorada, ele se desenha sempre como esse pássaro, e o último desenho da sequência, na p. 25 de CLBD pode indicar desse pássaro ganhando voz, falando alto. Esses três momentos parecem também citar essa transição pela qual Trondheim passou em sua carreira, desde a personificação de um personagem até sua transformação total em uma pessoa pública de quadrinhos que parece encarnar o que desenha, e não o contrário. Também presente nos créditos de CLBD por livro Bleu – “narrativa” que flerta com o uso de formas quase abstratas –, por sua vez replicado uma vez contendo a legenda dando os créditos ao seu autor (“Lewis Trondheim, ‘Bleu’, 2003”, cf. Figura 49) e, de certa forma, “plagiada” na página 40 (Figura 50). Poderia até extrapolar e dizer que o bonequinho que diz “Bleu !”, abaixo da citação direta a Trondheim poderia ser o mesmo homem-pássaro da página 25, dessa vez com um boné evocando um sherlockiano investigador. Mas ele conjuga o desenho citado do livro Bleu e a “intuição” de Robert Filliou citada ao lado, de que a obra de arte pode ser criada antes que o cérebro se aperceba; a palavra se materializaria como um abracadabra sobre a tela, ou a obra de arte e a palavra sendo enunciações paralelas que funcionam automaticamente.189 São citações que dependem de um conhecimento desse microverso autoral e artístico por onde Gerner transita para serem compreendidas.

Figura 49: CLBD, p. 128

“Uma intuição: as obras podem ser criadas tão rápido quanto o cérebro que as concebe. Você diz em voz alta “azul”, e a pintura ou a luz azul aparece sobre a tela, etc. Isso já existe para iluminar os cômodos e abrir portas.” Robert Filliou, A proposition, a problem, a danger and a hunch”, 1967.

189 Membro-fundador da L’Association, Trondheim também ficou bastante conhecido no meio em quadrinhos com a série de livros Donjon, escrita por ele e Joan Sfar e desenhada por diversos autores há quase 15 anos, uma paródia dos á. Ele é o catalisador mesmo da coleção em que se insere Contre la bande dessinée. Sobre seu trabalho, ver p. 182.

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Figura 50: CLBD, p. 40

Dois jogos formais do nível de uma classe elementar sobre um plano metafórico. Nada isso nos parece escapar à insignificância.

A referência ao filme M for murder e ao pintor Pietr Mondrian são sublinhadas, nos dois casos pela letra [ M ] que serve de mais um indício visual, inserida em um contexto que também concerne à referência ligeiramente camuflada, i.e., sem que haja a necessidade de uma legenda e dependendo do conhecimento prévio por parte do leitor. No primeiro exemplo, dois personagens tipo de tramas policiais, espantados, falando em inglês e a letra [ M ] ao lado, imitando o logotipo do filme de Hitchcock. O [ M ] de Mondrian (CLBD, pp. 14 e 127, respectivamente), por sua vez, está no cabeçalho da capa de um livro cujo motivo geométrico pode ser facilmente identificável com a obra do pintor. O livro “emite” um balão de fala com as letras [ CMJN], sigla para a quadricomia ciano, magenta, amarelo (jaune) e preto (noir), elementos específicos do estilo de Mondrian. São esses “clin d’œil” emitidos por Gerner, pistas para atrair a curiosidade do leitor. A página 38 está repleta dessas referências mais ou menos sutis, em questão está a relação entre o consumo e quadrinhos dirigidos à infância e à juventude. Uma “BD” aparece ilustrada como produto “comestível” ao pé da letra, de qualidade tão duvidosa quanto um BigMac, a serviço da “bulimia de aventuras”. A “BD” está dentro, é o recheio desse hambúrguer, símbolo dessa sociedade de consumo desenfreado de calorias pobres em fatores nutritivos. Indústria para a juventude: quadrinhos e hambúrgueres. O pequeno leitor de quadrinhos, descerebrado por essa máquina é representado pelo personagem Bart Simpson, igualmente comparável ao hambúrguer, por serem ambos percebidos pela sociedade como “um puro produto do imperialismo americano” – como atesta o trecho ao qual o personagem está justaposto.190 Ele lista personagens cujo nome começa com “P” em duas séries de quatro figuras ilustrando “capas” de álbuns”; nas duas séries, um intruso. Na primeira linha, o trio

190 Debate esse extremamente atual no Brasil, quando uma lei – apenas impetrada – que impede publicidade dirigida a crianças atingiria a principal empresa de histórias em quadrinhos nacional, que dependeria em boa parte dos lucros gerados desses subprodutos.

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“Pim, Pam, Pum” esbarram no “Paf”, a onomatopeia de “tapa”. Na segunda série de personagens, os infanto-juvenis “Pif”, “Peter” e “Parker” são abreviados por “Pan”, de evocação obscura, podendo ser tanto a onomatopeia de explosão quanto ao sátiro (os círculos concêntricos evocando o erotismo, um intertexto possível com a supracitada La Nouvelle Pornographie também de Trondheim). As duas séries, assim distribuídas, também servem a um propósito sonoro de aliteração, pela repetição dos sons em “p” (Pim, Pam, Pum, Paf/Pif, Peter, Parker, Pan). Ao mesmo tempo, uma série também salienta o caráter industrial, de repetição infinita de caracteres pré-moldados para atender a determinada demanda.191 Quadrinhos, um “veneno sem palavras” segundo uma citação, é ilustrada pela equação visual do álbum entreaberto com a imagem do Mickey, que “exala” o balão contendo a figura de uma caveira, pictograma significando “veneno”. Ao final dessa página, vemos um “jovem leitor”, psicanalisado, se exprime da mesma forma como a leitura que ele lê: em quadrinhos. Sabemos que ele está sendo analisado pela presença de duas figuras-chave: o tipo barbudo representando o analista (à imagem de Freud) e a figura do divã. É uma referência intrínseca ao imaginário ocidental, fazendo-se desnecessário explicitar com palavras. No entanto, acima dessa figura, temos o [a opinião do psicólogo], sublinhado, como uma indicação de um tópico. Na última página do livro (como exibida na Figura 6), a silhueta de um caubói sobre seu cavalo, em uma sequência de dois quadros reproduzindo um cenário do deserto de faroeste, de dia e de noite. O caubói desaparece no segundo quadro, noturno, para dar lugar à legenda “FIN”, marcando o fim efetivo do livro – o que se seguirá, a vontade de continuar a dizer, é feita como post scriptum. Sabemos ser um caubói pela tipologia deste personagem, o cavalo, o deserto; o plano aberto que põem em relevo a solidão também é um clichê do gênero.192 Mas um caubói em quadrinhos remete imediatamente a pelo menos dois personagens franceses conhecidos mundialmente, Lucky Luke e Blueberry. É um tipo de citação ambígua, posto que pode remeter, também, a um não- leitor de quadrinhos, a uma simples transposição em frames um clichê qualquer de uma propaganda de cigarros Marlboro. Por sinal, a referência ao deserto faz eco à cena exibida logo acima, do tiro que atinge seu alter ego em cena dramatizada pelo close up sobre a figura de uma lágrima vertida (e no “pan” do tiro da arma”).

191 Respectivamente: The Katzenjammer Kids, tira americana (em francês conhecida como Pim-Pam- Poum ! e Os Sobrinhos do Capitão no Brasil) criada em 1897 por Rudolph Dirks e Harold H. Knerr; Pif, le chien criado em 1948 por José Cabrero Arnal; Peter Parker é o nome “real” do Spider Man. Paf e Pan correspondem a onomatopeias de violência. 192 O oubapiano americano Matt Madden publicou em seu blog um achado feito pelo também oubapiano Gilles Ciment, um exercício de estilo a partir dos gêneros no cinema, “Another Exercice of Style”, disponível aqui: http://mattmadden.blogspot.com.br/2012/07/another-exercise-in-style.html.

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3.3 O efeito de autoridade: O valor da assinatura e a citação

Figura 51: Mahler, op. cit., 2005193

O autor é o sujeito de uma enunciação cuja marca identitária produz significância. Aquele que produz um discurso “autoral” pode ter sua figura decomposta em quatro: a) Persona, b) Scriptor: imagem social do escritor, que se classifica em escolas, gêneros; c) Auctor: o pai da obra, “fiador daquilo que escreve”; d) Scribens: “eu que está na prática da escrita, que está escrevendo, que vive cotidianamente a escrita” 194. Em seu

193 O pequeno Mahler recebe um autógrafo de um esportista austríaco famoso e define “falsificar” o autógrafo. Mas o “original” acaba se perdendo entre as muitas cópias. “ (1) Quando eu voltava ao meu quarto após jantar, fui incapaz de reencontrar o original entre tantas imitações... Havia feito um bom trabalho! (2) Durante dias inteiros, refleti sobre o que iria fazer com tantos autógrafos. Se eu os jogasse fora todos, o original seria ele também perdido de forma irremediável. Mas guardá-los todos me parecia tão a maisgrotesco quanto. (3) Decidi, então, guardar apenas um único exemplar, mesmo se o mais provável seria que não fosse o original. (4) Uma semana mais tarde, eu jogava também fora aquele último exemplar.”

194 BARTHES, R. A Preparação do Romance. Tradução: Leila PERRONE-MOYSÉS. Vol. vol. II. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2005, p. 173-174. O grifo em negrito é meu.

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clássico ensaio “A Morte do Autor”, Barthes demonstra essa “personagem moderna”195 não existe fora da escrita; “o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto”. É, portanto, o conjunto de relações intrincadas na escrita que forma seu autor –ele seria aquele, portanto, em cuja assinatura está implicada a garantia da obra. A Obra continua legível para além de seu autor pela rede de referências sobre a qual se constrói, sejam elas sociais, históricas: culturais. Dessa forma, o Autor também é construído pelo conjunto de textos que assina. Pela assinatura, o Autor se separa de seu texto (que só existe em sua ausência), mas o texto continua assombrado por esse nome. Com Foucault, sabemos que o nome do autor exerce uma função, uma categoria filosófica, historicamente ligada à lógica burguesa da propriedade. O nome de seu autor também dissemina um sentido e cria protocolos de leitura – um índice, como explicita Compagnon. No texto, o mais visível que temos de um “rumor do autor” é a sua assinatura.

Eu me nomeio, é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio. 196

O nome do autor atesta uma garantia de que aquele apanhado de textos pertencem a um determinado sujeito; tal pertencimento implica uma rede de sentidos que indicam os valores daquele texto. Os valores vão desde uma questão jurídica relativa à propriedade – o texto sendo um bem do autor e também podendo implicá-lo perante a lei, em caso de transgressões – quanto à relevância mesma do texto, frente a um determinado assunto. Caberia à crítica, portanto, não “decifrar” mas “deslindar” um autor. 197 Verificar a malha de sentidos que determinado nome próprio pode vir a reunir. Em CLBD, as citações acompanhadas com uma referência a seu autor (o nome) podem ser tanto citações de Autor enquanto categoria literária quanto a de um sujeito escrevente. Os nomes aparentemente desconhecidos, ao serem citados em CLBD, equiparados a citações do Autor, jogam com a legitimidade dessa categoria. Seria esse um enunciado legítimo, pois é assinado? E os não assinados, quem os enuncia e para quem? Ao citar um nome, demarco o sentido do texto. Ao recolher vários nomes, misturá-los de forma

195 ... “produzida sem dúvida por nossa sociedade [quando] descobriu o prestígio do indivíduo” (BARTHES, Roland. “A morte do autor.” In: O Rumor da língua, por Roland BARTHES, tradução: Mario LARANJEIRA, 65-70. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 66). 196 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992, p. 312. 197 Cf. BARTHES, op. cit., 1988, p. 69.

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constelar, equiparo cada nome ao nome de um autor, high art, low art, a etiqueta valendo mais do que a sopa dentro da lata. Uma assinatura implica, sobretudo, uma atestação de propriedade sobre determinado produto ou serviço. Assinar sugere uma íntima relação com a noção de crédito, um termo econômico. No livro escrito, não se supõe a presença de uma assinatura em algum lugar. A prova legal daquele nome sobre a capa está garantida em outro lugar, em outro texto, um contrato assinado. No caso da obra plástica, a enunciação do eu do autor está no intermédio entre a fala (o “eu-aqui-agora”) e a assinatura (o “eu-aqui-agora” transcrito). Enquanto a marca que indica o enunciador na fala é a presença daquele que diz eu, a assinatura é o equivalente, essa transcrição do “eu-aqui-agora”. Ela se define por poder ser repetida, reiterada; da mesma forma como o dêitico eu marca quem fala, a assinatura se faz signo. O meu nome é o que me sobrevive, “marca que me identifica, que me faz eu, e não um outro”. A assinatura é a materialização dessa marca, do nome próprio; “a assinatura deve ser o meu equivalente no escrito”.198 “O meu nome guarda a minha identidade” e é a possibilidade de repetição ad infinitum do meu nome que assinala minha própria finitude; a possibilidade de se dizer “eu sou” mesmo em minha ausência. Quanto ao nome próprio do outro, sendo o nome vocativo por excelência, implica a ausência desse outro que nomeio. Nomear também é evocação (vocativo). Nesse livro, são muitos os nomes evocados em defesa ou para colaborar no linchamento da bande dessinée. Todo nome próprio deveria possibilitar sua própria repetição (infinita), na ausência do referente (finito). Assinar (escrever meu próprio nome), além de indicar a propriedade daquilo que assino (títulos bancários, cartas, poemas), indica minha ausência, permite que o que eu assinei seja usado após a minha morte, contra ou a meu favor. Dizer “eu” não é o mesmo que assinar meu nome. “Eu” digo em presença, mas “meu nome próprio me sobrevive” na escrita.199 A assinatura documenta, e é por isso em geral acompanhada de data e local, como mais uma atestação do lugar da enunciação. O nome do autor na capa de um livro supõe que, em algum lugar, esse autor assinou um documento, um contrato, afirmando que o conjunto dos textos sobre os quais repousa seu nome foram escritos por ele;

todo o código dos direitos autorais depende disso em sua complexidade aberrante e fascinante que exista em algum lugar uma verdadeira assinatura manuscrita [...] que pode ser relacionada de modo contínuo e seguro com o nome do autor impresso na capa do livro. Uma tal

198 Cf. BENNINGTON, Geoffrey, e Jacques DERRIDA. Jacques Derrida. Tradução: Anamaria SKINNER. Rio de Janeiro,: Jorge Zahar Editor, 1996. 199 Ibidem, p. 107.

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assinatura supostamente garantiria a enunciação do texto, ligando-o a uma instância unificada de emissão, e garantiria, além disso, o que se chama, de forma bastante imprecisa, a originalidade do texto.200

Muitos autores, assim que os serviços editoriais apresentam maiores demandas, recorrem a assistentes que farão, por eles, parte do trabalho. Um exercício ancestral semelhante dos antigos copistas, às vezes em um completo anonimato, quanto maior o número de assistentes. Vide as letras miúdas dos editoriais das últimas páginas da “Turma da Mônica”, como na produção de um filme, a lista de créditos nas equipes é múltipla, mas a assinatura é a do autor original, de um diretor. É sob esse nome que se reúne a marca daquela história. Ele é o maestro, é dele a assinatura.201 As aspas, como prática, “demarcam uma parte do texto como não-assinado, ou pelo menos assinado de uma outra maneira que o texto sem aspas, cujo autor deve de algum modo assumir a responsabilidade”. 202 No caso de Gerner, as citações entre aspas servem tanto a eximir-se da responsabilidade, quanto a “dar a Cesar”, uma forma de respeito à fonte, mais particularmente em alguns autores que são tão citados ao longo do livro que retornam nos créditos, ao final. A assinatura detém seu poder a) “do nome próprio escrito que remete à identidade de um autor definido”, que reúne a uma identidade social de cada um, “sua situação dentro de uma genealogia”; b) “do gesto autógrafo traçado pela mão do sujeito atestando sua presença”, pois “o traçado de um grafismo depende do corpo, da mão que o apõe, e do suporte que o recebe”; e c) “a intenção expressa dessa forma por uma pessoa agindo deliberadamente”, posto que “a intenção de assinar pertence ao registro jurídico.”203 É a assinatura o que permite a sua reprodução mecânica.204 Ela me distingue eu do outro, ao mesmo tempo em que declara a minha ausência – a enunciação está transcrita, diferida. Como o que assino pode ser usado contra mim, meu nome declara minha possibilidade de finitude. Na página 16 de CLBD, o trecho exibe um contrato sob citações anônimas de autores de história em quadrinhos que falam de sucesso na carreira. Toda a parte textual da página aparece sem aspas; sabemos tratar-se de um contrato pela maneira como o texto se apresenta, com título típico para seus “subcapítulos”, “Artigo 1.4 do contrato de

200 Ibidem, p. 109. 201 Em seus trabalhos mais recentes (a partir de 2011), Gerner recobre páginas de comics americanos dos anos 1950 cuja autoria foi completamente “esquecida”, ignorada nas publicações. A prática era comum; os comics eram material barato, popular e destinados ao consumo rápido. 202 BENNINGTON & DERRIDA, op. cit., p. 109. 203 FRAENKEL, Béatrice. “La signature.” In: CHRISTIN, Anne-Marie (org.). Histoire de L’Écriture, pp. 323-325. Paris: Flammarion, 2012, p. 323. 204 BENNINGTON & DERRIDA, op. cit., p. 112.

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edição”, assim sublinhado. A figura jurídica do autor e do editor são os objetos desta enunciação sem autor – o contrato é uma fórmula performativa que adquire poder pela contra-assinatura das partes. Ao assinar, as partes garantem que tal contrato seja executado. Sabemos tratar-se de um contrato específico, da editora para a qual Gerner foi contratado como ilustrador, designado a trabalhar em companhia de um autor roteirista, Diego Aranega.205Ao ilustrá-lo, nos apresenta como sua assinatura, naquele contrato, cedia seu objeto de trabalho – um objeto estético e artístico, ainda que sob encomenda – , para ser reproduzido de acordo com a vontade da editora. A mesma passava, a partir daquele momento, a ser detentora do imaginário gráfico e textual criado para aquele livro determinado em contrato. As declinações infinitas feitas a partir do desenho de um autor, para além dele (no caso, o artigo em questão tratava das declinações em produtos diversos, desde papelaria a estampas em tecidos, artefatos). A assinatura – no caso, o objeto assinado por um autor – ganham valor de mercado. O valor não é necessariamente dado à assinatura, mas aos entornos, ao que aquele personagem ou história representará comercialmente. As ilustrações desses possíveis objetos são concluídas com uma frase fora de aspas, mas é improvável que ela pertença ao texto do contrato: “Não é uma história em quadrinhos, é uma obra-prima [chef d’œuvre]”. Os “chef d’œuvre”, evidentemente, são a “extremidade”, o cume (cúmulo?) da obra de arte. Como revisa Didi-Huberman sobre o assunto, “designamos, primeiramente, [por obra] um objeto criado pela atividade, o trabalho de alguém, assim como a ação, as operações que levam à conclusão desse objeto”.206 A referência ao contrato não deixa de apresentar um certo desconforto ou estranhamento de Gerner quanto a essa noção. Acostumado a publicar em editoras pequenas ou ilustrar para revistas e jornais, é-lhe estranho um contrato que preveja, desde o princípio, que seu desenho não se resume ao livro, mas é objeto valorado de acordo com um mercado das histórias em quadrinhos. As histórias em quadrinhos, através do fetiche da assinatura de seus autores, que envolve a organização de festivais com assinaturas, venda de colecionáveis (sejam impressos ou seus derivados), debates com fãs, podem ser analisadas não apenas enquanto um meio de expressão que articula desenho e escrita como pelo fato de organizar-se enquanto uma instituição. A editora fomenta a instituição ao fazer uso das práticas de mercado que mantêm a sua lógica do mesmo, tendo ela o papel de validar os seus atores através da fabricação do contrato, da reprodução dos livros e dos objetos-fetiche, da participação da

205 100.000 milliwatts (printemps), Delcourt, 2007. 206 REY, Alan apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Sur le fil. Edição eletrônica. Paris: Minuit, 2013

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manutenção dos festivais, da articulação entre autores, livreiros, leitores. Como diz uma citação anterior, “os autores de BD que contam, são aqueles cujas vendas ultrapassam 50000 exemplares” (CLBD, p. 7). Para ser validado como autor no seio dessa instituição, é preciso atingir uma meta, e ela deve coincidir com um papel de mercado, que nem sempre coincidirá com a função autor como abordamos; desta forma, como explicita Menu, “a essência da mídia é eludida, até mesmo confiscada por uma profissão ou (ou um microcosmo) que só consente tornar evidente o aspecto mais edulcorado, complacente, vendedor e redutor”207. Nessa lógica, o “autor-que-conta” é um agente capaz de realizar uma determinada tarefa: atrair um determinado público. Ele não irá, necessariamente, cristalizar-se como figura autoral, ou seja, abarcar uma rede de significações que abrangerão obras diversas. Na lógica do contrato da instituição BD, importa a ampliação e derivação do produto-livro, não a disseminação de uma figura de autor. O que “conta” é a validação contínua de um mesmo modelo industrial.208

207 “... l’essence du médium est éludée, voire confisquée, par une profession (ou un microcosme) qui ne consent à en mettre en avant que l’aspect le plus édulcoré, complaisant, vendeur et réducteur.” MENU, op. cit., 2011, p. 42. 208 Sobre o assunto, Ameline (op. cit.) traz uma revisão da trajetória de revistas teóricas sobre história em quadrinhos na França. Groensteen (op. cit., 2006) aprofunda o debate sobre as dificuldades de contornar os mecanismos de autodefesa da instituição história em quadrinhos (no sentido elaborado por Christian Metz, cf. nota na p. 44).

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Figura 52: CLBD, p. 67

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Figura 53: CLBD, p. 13

Assim, na lógica de mercado, que institui o gueto “bande dessinée”, não é o texto (obra) que cria a figura de um autor, mas seu papel institucional condicionado à agregação de valor real, isto é, o valor de mercado. Mas esse valor econômico pode variar de acordo com seu papel (valor) histórico, no câmbio móvel balizado pela instituição. Os contratos são negociáveis, e variam muito em função do valor de mercado de um determinado autor, valor este que é composto pela identificação de seu nome a um determinado estilo ou personagem, ao gênero de trabalho, à frequência de publicação... Muitos autores iniciantes recebem um contrato de texto similar ao apresentado por Gerner, em que seu desenho e todas as suas declinações a partir dele será cedido a título “de exclusividade” e por tempo indefinido. Dessa forma, a editora

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pode imprimir infinitas vezes determinada obra sem que seu autor seja notificado ou remunerado. Os contratos mais profissionais indicam a validade do mesmo. Os autores de renome são os que tornam-se os sujeitos da ação, cedendo à editora por tempo determinado o direito de imprimir seu livro em seu nome, alforriados. Um fenômeno das instituições culturais, as sessões de autógrafos também ajudam a aferir valor. Os “dédicaçomanes” (maníacos por autógrafos, as dédicaces), como ilustram alguns autores na primeira L’Éprouvette, representam o lado cego desse sistema de guetificação; são os pretensos fãs interessados apenas no acúmulo de papeis e livros assinados, ora para consumo próprio, ora para revenda em sites especializados em leilões de objetos autografados. A questão do valor do nome que assina em CLBD é bem explícita por um fait-divers narrado sutilmente através de uma citação ao pé de uma página. Ela se desdobra na página seguinte, na figura do “fogo” em representações diversas, tais como seria desenhada pelos autores “legendando” cada “flama” (Figura 52). O fait-divers narra um incêndio em um festival – lugar da instituição –, que arruinou originais que seriam expostos durante o evento. Segue a lista de autores, em ordem crescente dos valores atribuídos ao prejuízo do incêndio, de acordo com a notação da página.

nome do autor valor do prejuízo nascimento Blanc-Dumont 500 1948- André Chéret 620 1937- Hermann 720 1938- Jijé 1100 1914-1980 Macherot 1250 1924-2008 Jean Graton 1384 1923- Yoshiharu Tsuge 1500 1937- Jacques Tardi 1850 1946- Moebius 2500 1938-2012 Fred 3600 1931-2013 Will 3750 1927-2000 Loustal 4500 1956- Jacques Martin 4950 1921-2010 Schuiten 6000 1956- William Vance 6500 1935- Zep 7200 1967- Peyo 12500 1928-1992 Charles M. Schulz 14000 1922-2000 Franquin 21800 1924-1997

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Enki Bilal 35000 1951- Winsor McCay 40000 1867-1934 Hergé 45000 1907-1983 Uderzo 50000 1927- Quadro 2: “Valores” da assinatura

Não é possível distinguir, pela referência, se o prejuízo refere-se a uma mesma perda em termos de quantidade de material, quantos metros quadrados de papel assinado teria desaparecido. Mas não deixa de ser um parâmetro interessante saber que Hergé e Uderzo custam o mesmo. Além do mais, a lista de autores aponta que tais autores têm valor de mercado. Independentemente se Hergé ou Uderzo tenham empregado auxiliares – assistentes, ilustradores, roteiristas, coloristas ou arte-finalistas –, é a assinatura presente no contrato da obra (ou, às vezes, que assina a página ou a tira) mas também a assinatura do estilo que institui que tal obra é produto original destes. Na citação, o nome do autor remete à assinatura ou ao momento da enunciação que precedeu a cópia daquele extrato inserido no compêndio de citações. Enquanto o texto entre aspas determina uma enunciação anterior, o nome do autor indica que ela está assinada por outrem que não aquele que assina o livro; o nome do autor ligado à citação ocupa o lugar da terceira pessoa, a não pessoa segundo Benveniste. Na citação, o nome do autor, que é sujeito de enunciação na assinatura, é cristalizado como um signo que assinala determinado valor: a função autor. As referências bibliográficas praticamente completas, tal como as apresenta Gerner, contendo nome de autor, obra, ano – faltando apena editora e página – provocam um efeito de nota de autoridade, tão comum à crítica. Citar confunde-se com o trabalho da crítica a de uma escrita em segundo grau. O efeito de nota pressupõe a invocação de uma autoridade que virá justificar ou contrapor uma teorização. A multiplicidade dessas citações e as diferentes ordens de valor que poderemos estabelecer se analisarmos detalhadamente suas fontes, põem em xeque a noção de autoridade crítica: quem são esses autores? Qual a pertinência de determinado autor para o assunto trabalhado? As citações “assinadas” e entre aspas surgem desde a epígrafe proustiana, e continuam surgindo, no princípio, apenas nessa posição no alto de página, como se permanecessem epígrafes. Apenas na página 15 as aspas aparecem, pela primeira vez, ao pé de página: uma posição parecida com uma nota de rodapé. As aspas parecem separar-lhes do restante do texto, como uma referência poética ao tema que está sendo tratado. A epígrafe de Proust, por exemplo, não apresenta uma relação direta com o

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livro, mas seu envio ao Contre Sainte Beuve apresenta sua conceituação do livro de crítica à crítica. As duas “epígrafes” seguintes, de Jean-Marie-Gustave Le Clézio e Romain Gary (CLBD, p. 6, Préambule e p. 9, capítulo 1, Objet(s), respectivamente), e ainda a “epígrafe” à página 11, de Emmanuel Carrère, ainda no capítulo 1, são textos em que a bande dessinée é instrumento de evasão ou distração. É um tema que aparece frequentemente ao longo dos capítulos em que se inserem, justamente uma apresentação tanto do livro (em seu preâmbulo) quanto dos propósitos da história em quadrinhos (capítulo 1). Os textos de Le Clézio e Gary estão na primeira pessoa; Carrère descreve uma cena em que quadrinhos são servidos para entreter alguém que esperava, seu personagem (de um romance policial). Enquanto tais citações “epígrafes” descrevem cenas de leituras de quadrinhos, as citações “anônimas” são mais assertivas, designativas, sobre as histórias em quadrinhos. Elas usam por vezes o verbo être e há também sintagmas nominais, como “a função da BD é de distrair e de deixar sonhar”, “um humor bem BD” (CLBD, p. 9), “algo simples, grande e engraçado, tipo história em quadrinhos” (CLBD, p. 9), “uma linguagem em imagens”, “a história em quadrinhos é um sistema verbo-icônico” (CLBD, p. 11). A partir da página 15 em diante, no entanto, as citações entre aspas começam a abundar, sucedendo-se, sobretudo, as instruções dos manuais escritos por Duc, professor de artes, autor de manuais de ilustração e sobre a história em quadrinhos. Chegam a 14 citações demarcadas por aspas reenviadas a seus livros:

L’Art de la BD, T.1, 1982 18, 29, 114

L’Art de la BD, T2, 1983 18, 21, 22, 23 (4 citações), 28 (2 citações), 30, 112.

Autor mais citado por Gerner, Duc publicou L’Art de la B.D. em 1982, e um segundo volume em 1983, ambos publicados por uma importante editora de quadrinhos. O primeiro volume aborda, sobretudo, definições sobre o gênero, enquanto o segundo, com o subtítulo “la technique du dessin”, proporá elementos mais técnicos, como colorização. Duc menciona alguns dos preconceitos correntes sobre a história em quadrinhos. Seu título faz uso do termo “arte”, e ele diz ao leitor que saber como uma B.D é feita pode fazer com que “nossa leitura se torne um verdadeiro deleite!”209 Por que a citação dos trechos de Duc, aparentemente senso comum, são todas identificadas? A recorrência tão frequente dessas citações sem identificação do seu

209 Ao reler esse trecho aqui citado, penso que a exclamação é minha: a partir de Gerner e seus contemporâneos, não podemos deixar de achar graça do absurdo e ingênuo tom autoritário de Duc.

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autor poderia incorrer em uma forma de plágio? Qual a porcentagem de texto repetido que pode ser considerada plágio? Apesar de dirigir o prefácio aos leitores, ambos os livros tornam-se manuais técnicos para amantes da fabricação dos quadrinhos, mas sobretudo aqueles que se interessam pelo quadrinho tradicional. Ele não apenas propõe, como também preconiza e prescreve determinadas formas, e a exclamação que reproduzi acima é signo recorrente em seu texto – e marca tanto o louvor quanto o imperativo. Por exemplo, ao comentar o uso do desenho feito a traços em preto “chapado” (à plats noirs), diz que “apresenta o inconveniente de ser por vezes um pouco duro, agressivo e, finalmente, cansativo para o olho. A menos que queira punir os leitores, será preciso saber dosar, sabiamente os preenchimentos de preto!”210 Duc chega a soar ingênuo, como um guia turístico laudatório pelas histórias em quadrinhos. A exposição trazida por Gerner torna tão evidente essa ingenuidade, que me pergunto por que razão esse autor não pôde ser deixado anônimo, como tantos outros (e para o bem dele próprio). Talvez, o primeiro fato, seria a possibilidade de ser considerado plágio. A frequência das citações pode confundir um leitor desavisado, que lerá na ausência de aspas opiniões avançadas pelo mesmo autor que assina a capa do livro, CLBD. Ao demarcar entre aspas, Gerner se escusa completamente da autoria daquelas frases. Sem as aspas, a glosa – expressa por seus desenhos – seria confundida com simples ilustração, um conformismo em vez de uma crítica. As aspas salientam a dúvida do tom do texto: a citação é apresentada como testemunho do réu ou da procuradoria? O citado é posto em questão, enquadrado, entre as aspas. Assim como a assinatura, o estilo do autor só pode ser definido como tal se é iterável, a diferença iterada marca seu autor. Ao reunir o balão-tipo de diversos autores, e confrontá-los pela disposição da página, Gerner nos aponta para a assinatura desses, que não é somente do nome do autor, mas seu traçado gráfico, para além da letra.211 Como dito supra, algumas citações vêm acompanhadas de um nome de autor. A página do “incêndio”, exemplar, nos traz também o valor desses nomes. Ela pode ser

210 DUC. L’Art de la B.D. Paris: Glénat, 1982, p. 164. 211 Caminhando pela livraria parisiense Le Mont-en-l’Air, especializada em quadrinhos, artes gráficas e literatura, vejo algo que me chama a atenção. Em meio à pilha de publicações sobre artes gráficas, design, uma revista chamada Désordres, nome por si só interessante para uma apaixonada pelo caos. Mas a capa só poderia ter sido feita por Gerner. Não olhava com atenção aquela pilha até esse acaso, instigando-me, sobretudo, por ter acreditado já ter visto tudo realizado pelo autor: mais tarde, confirmei que, por um lapso, Gerner havia esquecido de indicar a publicação em sua lista constantemente atualizada em seu site. O que me fez ver, por acaso, a capa da revista Désordres e estar certa de que ela só poderia ter sido desenhada por Jochen Gerner? O desenho, pictogramático, poderia ter sido feito por qualquer um, dada a simplicidade dos traços e a tipologia das pequenas figuras que se distribuem em linhas retas. Mas aquela capa só poderia ser dele, pelas imperfeições do traço feito à mão, tais imperfeições que tornam presentes a mão daquele que os inscreveu, mesmo após todos os retoques digitais. São figurinhas coloridas, tratadas por programas de computador, mas mantinham os ligeiros defeitos gernianos.

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lida em contraponto com a página 13, em que outros nomes são justapostos a silhuetas de “balões de fala”, presumivelmente tais como esses nomes (assinaturas) os desenham costumeiramente. Os nomes são os seguintes, e a eles adicionei algumas referências de ordem biográfica.

Autor nacionalidade nascimento Adrian Tomine americana 1974- Alain Saint-Ogan francesa 1895-1974 Alex Baladi suíça 1975- Anke Feuchtenberger alemã 1963- Art Spiegelman americana (sueca) 1948- Atak (Georg Barber) alemã 1967- Ben Katchor americana 1951- Benoît Jacques belga 1958- Charles Burns americana 1955- Charles M. Shulz americana 1928-1992 Chris Ware americana 1967- Daniel Clowes americana 1961- David Rees americana 1972- David Shrigley escocês 1968- Debbie Drechsler americana 1953- Dominique Goblet belga 1967- Edgar P. Jacobs belga 1904-1987 Fabio Viscogliosi francesa 1965- Fabio Zimbres brasileira 1960- Gébé francesa 1929- Gunnar Lundkvist sueca 1958- Hergé belga 1907-1983 Hugo Pratt italiana 1927-1995 Jacques Tardi francesa 1946- Javier Mariscal espanhola 1970- Jenni Rope finlandesa 1977- José Parrondo belga 1965- canadense 1965- Killoffer francesa 1966- Laurent Cilluffo francesa ? Martin Tom Dieck alemã 1963- Matti Hagelberg finlandesa 1964- Max francesa 1957- Pakito Bolino francesa (não encontrado) Paul Cox francesa 1959- Richard McGuire americana 1957-

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Robert Crumb americana 1943- Sammy Harkham americana 1980- Sempé francesa 1932- canadense 1962- Tofépi francesa (não encontrado) Tom Gauld escocês 1976- Winsor McCay americana 1867-1934 Yoshiharu Tsuge japonesa 1937- Yves Got francesa 1939- George Herriman americana 1880-1944 Quadro 3: Balões “assinados”

Nesses dois exemplos, o nome do autor e o desenho são signos reiteráveis. As imagens de balões e de fogo são citadas porque sua imagem se faz signo: seria possível reconhecer determinado desenho, ligá-lo a um nome próprio devido a sua virtualidade de ser reiterada ao longo da obra desse autor. Dessa forma, Gerner aproxima nome próprio, estilo e assinatura como elementos que se suplementam. O desenho do balão torna-se assinatura ou marca registrada daquele autor. Os desenhos do fogo são apresentados a partir de um fato real: houve um incêndio, e todo um fundo material desses autores foi destruído. Uma exposição de obras em quadrinhos é diferente de uma exposição de artes, ocasião em que o público poderá entrar em contato com aquela obra original. Uma obra de quadrinhos é reproduzida como parte de sua essência, ela independe do original. Uma exposição de quadrinhos é realizada como uma forma de homenagear determinados autores, assim como instruir o público sobre o processo que leva à obra. O público pode ver a mão do autor, enxergar as rasuras, entender que há um trabalho. Uma exibição de “originais” em quadrinhos tem, portanto, primeiramente, um caráter didático ou epistemológico, para em seguida apresentar um caráter afetivo. Esse ver a mão do autor, entrever o sujeito que desenha, faz parte da curiosidade sobre o Autor que ainda paira sobre o leitor. Com o sucesso de alguns autores, galerias vendem seus originais como parte desse sistema instituído; à beira do Sena, é possível adquirir uma gravura de Schiele (reprodução “limitada”) ou um original de Fred em lojas vizinhas a valores variáveis. Alguns autores, como o próprio Gerner, no entanto, fazem trabalhos diferentes para serem expostos, posto que, segundo eles, quadrinhos são para serem lidos, e que uma página “original” extraída de uma determinada obra não faz sentido. É sobretudo o afeto que cria esse aspecto de valor, que pode ser de apenas um quadro, uma página ou uma série de desenhos.

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Os autores exibidos em um festival foram reunidos por um curador, que faz uso de critérios específicos para convocá-los. Pela lista apresentada por Gerner, sabemos tratarem-se de autores conhecidos das histórias em quadrinhos de, pelo menos, três gerações diferentes, alguns tendo prolongado sua carreira por várias gerações (Quadro 7, p. 275). Boa parte dos autores que continuam produzindo são nascidos nos anos 1930, e suas carreiras se iniciam nos anos 1950-1960, na consolidação do mercado franco-belga de quadrinhos (Gráfico 5, p. 275). Não há sequer uma mulher no grupo, e não seria por “falta” de autoras francesas do período, mas fica claro que elas ainda tinham pouca visibilidade – até devem ter esquecido da importância da Claire Brétecher – referência inclusive para Gerner e exemplo de quadrinho sem espaço interquadro –, mas essa representividade é uma outra questão demorada. As nacionalidades representadas são cinco (10 franceses, 9 belgas, 2 americanos, um japonês e um suíço). O grupo dos balões não indica uma razão óbvia para serem reunidos: é uma decisão pessoal de Gerner apresentá-los – não há, nesse caso, o aleatório de um acidente –, é bem mais amplo e diversificado – dentre 46 autores, cinco mulheres. Os franco-belgas continuam representando a maioria, à frente apenas dos americanos. 212 A escolha engloba, sobretudo, autores nascidos a partir dos anos 1950, parte de um pensamento contemporâneo de fazer quadrinhos, que participaram de uma cena que vem do underground e também de uma defesa de um quadrinho próximo às artes contemporâneas (Quadro 8, p. 275). E Gerner não deixa de fazer referência a autores históricos (McCay, Herriman...). A lista de balões dobra o número de autores representados pelas flamas; juntas, as duas somam 64 autores. A diferença entre elas estaria na noção de valor dados a tais nomes. Há uma vontade de mostrar o valor dessa diferença, dessa variedade de nomes, de que forma tais nomes podem figurar como nome de autor, a partir da elaboração dessa assinatura, de um balão que funcione como um signo, posto que seu estilo se repete da mesma forma em que o nome assinado em algum lugar no livro, ou no contrato. A reprodução desses balões demonstra como a história em quadrinhos é um regime alográfico – posto que reproduzível – que parte de uma autografia. Não é possível plagiar sem reproduzir o caminho feito pela mão de seu autor, mas o original também é

212 14 americanos, 12 franceses, 5 belgas, 3 alemãs, 2 finlandeses, 2 escoceses; cada uma dessas nacionalidades têm um representante: brasileira, espanhola, italiana, japonesa, sueca, suíça). Apenas cinco autores aparecem nas duas listas: Hergé, Winsor McCay, Charles M. Schulz, Yoshiharu Tsuge e Jacques Tardi. Desses 46, apenas oito não estão em atividade, dentre os quais dois continuam vivos, mas aposentados.

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dispensado. Ben Katchor, autor americano citado em meio aos balões, se define assim: um escritor autográfico. Escrevo aqui a partir da leitura feita por Gérard Genette das distinções elaboradas por Nelson Goodman: autográfico é o regime em que a noção de autenticidade seria relevante, definida pela “história da produção de uma obra”; o regime alográfico seria aquele em que todas as cópias de determinado original e tantos os exemplares possíveis são válidos como obra.213 Genette explica, a partir de uma leitura dessas categorias em Goodman, que o texto literário é um objeto de imanência verbal. Um objeto de imanência, posto que suas propriedades são materiais, e não transcendentes. Mas um texto escrito possui traços que podem ser reproduzidos para além de sua manifestação primeira (o manuscrito de um autor, por exemplo), sem que sua qualidade não se deteriore. Dessa forma, os traços desse texto transcendem esse objeto para se manifestarem na forma de objetos múltiplos. A multiplicação não desvaloriza o objeto replicado nem a réplica, ambas coincidindo nos mesmos traços mínimos – cada manifestação, porém, será sempre imanente; o que transcende é aquilo que pode ser reproduzido. Uma pintura, por outro lado, têm como traço distintivo o fato de ser única; sua reprodução, uma segunda manifestação (a cópia do falsário) desnatura o objeto. Tais objetos carregam como traço primordial a história de sua produção. No regime alográfico, portanto, há a produção de uma obra “ideal”, que transcende diversos objetos físicos (a realização da notação). Para o regime autográfico, a obra é sobretudo imanente; sua notação não constitui um objeto ideal, apenas uma descrição que pode ser ideal mas a cada realização produzirá um objeto diferente. A descrição de um objeto é sua denotação verbal, não o objeto em si.214 Ela é a indicação que transcende a essa obra; mas é a manifestação (imanente) que nos dá o objeto. A história em quadrinhos é um objeto cuja capacidade de reprodução costuma ser um traço importante, mas a alteração da forma do livro pode implicar em uma alteração de sua significância. Um texto é “puro” tanto em sua manifestação quanto na sua possibilidade de transcendência. Os quadrinhos poderiam ser classificados no grupo das obras “mistas”, “recorrendo às vezes às propriedades da língua e daquelas (figurativas, decorativas, conotativas) das artes gráficas, como indica bem o próprio termo ‘caligrama’” 215 seu original não é importante para sua compreensão – em geral, o

213 GENETTE, op. cit., 2010, p. 30. 214 Ibidem, p. 124. 215 “... faisant appel à la fois aux ressources de la langue et à celles (figuratives, décoratives, connotatives) des arts graphiques, comme l’indique bien le terme même de ‘calligramme.’” Ibidem, p. 197.

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“original” nem é a obra, mas um fragmento que pode servir a uma historiografia sobre o processo da obra.216 A tradução de uma língua para outra também pode implicar outras alterações em sua forma. Uma redução e reprodução de uma obra autográfica só poderia ser pela via do conceito. Mas retomemos a autografia de Katchor: ele se refere à importância dessa marca da mão que escreve que subsiste em sua escrita; uma escrita tout court (e a presença do corpo do autor).

216 Sobre expor a história em quadrinhos, Jean-Christophe Menu escreve: “O original da história em quadrinhos tem uma natureza fragmentária: ele ganha ao ser acoplado com outros elementos, à condição que eles sejam de uma natureza similar e que se produza uma circulação. L’original de bande dessinée a une nature fragmentaire : il gagne à être accouplé à d’autres éléments, à condition qu’ils soient d’une nature similaire et qu’il se produise une circulation. Ceci tendant peut-être à établir que la planche, isolée, trahit son incomplétude : faisant partie d’un processus, il lui manque toujours quelque chose d’autre : […] le livre définitif auquel elle était destinée” (MENU, op. cit., 2011, p. 168).

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Figura 54: CHKLOVSKY apud SPIEGELMAN, 2008217

217 A página de Spiegelman retrata uma lembrança de infância: a agressão de um menino do quarteirão, a impotência de sua mãe. Breakdowns (SPIEGELMAN, 2008) reúne suas experimentações estéticas e autobiográficas (“of short autobiographical and structurally ‘experimental’ comics”). O fragmento original termina com a frase: “Funny, how the mind works. I’d some how FORGOTTEN that my mother committed suicide four years before... Shielded myself from the memory”. A mesma história está completa páginas antes. Aqui, ele parodia a si mesmo, e a memória é “distorcida”: o efeito de “fora do foco” é acrescido da substituição do seu próprio texto original pelo texto do formalista russo Viktor Chklovski, em seu clássico texto “A Arte como procedimento” (CHKLOVSKI, 1978).

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4 Uma crítica oubapiana

Figura 55: uma breve história do OuBaPo218

4.1 Lúdico e conceitual

Volto às “dicotomias” esboçadas no catálogo da L’Association para definir o autor de CLBD (tal como apresentamos na introdução da presente tese): “um autor tão lúdico quanto conceitual, tão oubapiano quanto crítico,”219 i.e.: a) lúdico / conceitual; b) oubapiano / crítico. O aparente paralelismo evocado na construção comparativa da frase (“tão... quanto”, “aussi... que”), nos induz a pensar em termos antagônicos; todavia, as quatro palavras são suplementares: o lúdico não abole o conceito, assim como o fazer oubapiano é consubstancial a um pensamento crítico. Como menciona o trecho da “OuBaPo, une Histoire en expansion” acima (Figura 55), a proposta de Gerner seria mais analítica (desestruturação) da história em quadrinhos, buscando os elementos mínimos desse código. A Figura 56 também demonstra sua vontade em embaralhar as relações entre a letra e a imagem da letra.

218 “Com receio, os mais matemáticos dos oubapianos tentam assimilar as primeiras experiências minimalistas de desestruturação de bande dessinée propostas pelo Sr. Gerner,” em “OuBaPo, une Histoire en expansion”, por François Ayroles, Étienne Lécroart, Gilles Ciment, Anne Baraou, Jochen Gerner, Killoffer, Lewis Trondheim, Jean-Christophe Menu, narrativa coletiva a partir de ilustrações antigas, publicada na revista 9° Art n°10, abril de 2004. 219 “… era preciso um autor tão lúdico quanto conceitual, tão oubapiano lúdico quanto crítico, para conseguir ‘descrever’ com os próprios desse assunto (a história em quadrinhos) a aberração costumeira com a qual esse meio de expressão é ordinária e vulgarmente percebido.”

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Figura 56: Logo do OuLiPo por Gerner (2006)

Gerner se descreve como “desenhista-autor”, explica seu trabalho com a equação “desenhista + arquiteto + autor + grafista + colorista + artista plástico” e também resume sendo um “ilustrador oulipiano”, assinalando que é a restrição (contrainte) que dá a ele um elemento libertário para a sua própria criação.220

Figura 57: Moments Clés de L'Association, segundo François Ayroles

Elemento fundacional do OuBaPo e do OuLiPo, a restrição retiraria o sujeito “do controle” de sua própria escrita; além disso, é um mecanismo metalinguístico, partindo dos recursos do texto que aponta para a sua constituição – sua materialidade. Às regras da gramática, de gênero, de composição de um texto ou de um objeto são somadas outros elementos constrangendo a formulação desse texto ou objeto, sendo necessário apontar essa distinção entre regra, dispositivo e restrição. O oubapiano François Ayroles ilustra ironicamente na Figura 57 – o jogo da contrainte, (também traduzida como constrangimento), aparentemente um modo sadomasoquista de criação. O lipograma, um dos exemplos mais conhecidos de restrição oulipiana, parte da interdição de uma letra do alfabeto na composição de um texto. Essa mutilação acaba por se tornar uma

220 GERNER, Jochen, entrevista feita por Kamy PAKDEL e Patricia PERDRIZET. L'Univers des illustrateurs pour la jeunesse, 2009 (d).

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possibilidade de fugir ao esperado, criar novas possibilidades combinatórias com as letras restantes, mas não deixaria de ser uma amputação voluntária que força seu autor a ir além do seu próprio esperado. La Disparition, o livro mais famoso feito a partir do lipograma da letra “e”, de Georges Perec, revela-se um exercício virtuoso sem desmerecimento da qualidade literária – e ainda gerou traduções em inúmeras línguas, priorizando-se seu modelo formal como ignição para novos textos (transcriações literárias). Ater-se à restrição também permitiria libertar-se da autocensura, em deixar fazer funcionar o código, não um ego. Fruto de um momento histórico de renovação dos estudos literários (formalismo, estruturalismo), mas também nos avanços das teorias da computação, o OuLiPo não se pretendeu uma nova “ciência da linguagem”, mas se construiu sobre bases analíticas e sintéticas – e, sobretudo, referências matemáticas. O “Ou” de OuLiPo em de ouvroir: oficinas, no sentido de trabalho coletivo e de trabalho artesanal. O “Po”, de potencial, termo emprestado da matemática, diz de como tais moldes “potencializam” escritas diversas. Por potencial, entende-se que a partir de uma pequena quantidade de matéria e mecanismos, a literatura poderia fornecer uma enorme vastidão de novas possibilidades de manejo da escrita. “Chamamos Literatura potencial a busca por formas, estruturas novas e que poderão ser usadas por escritores da forma que lhes convier”.221 O desejo matemático impresso nesse potencial vai ao encontro da ideia de “anti-acaso”, antialeatória, pois “nem a linguagem, nem o inconsciente funcionam de forma aleatória”.222

O que alguns escritores introduziram a seu modo, com talento (quiçá com gênio) mas uns ocasionalmente (moldadores de palavras novas), outros com predileção (contrerimes), outros com insistência mas em uma única direção (letrismo), o Ouvroir de Littérature Potentielle (OuLiPo) pretende fazer sistemática e cientificamente, e à necessidade em se recorrer ao bom ofício das máquinas de tratamento de informação.223

Fundado pelo matemático François Le Lionnais e pelo escritor Raymond Queneau nos anos 1960, o grupo de autores recusava o aleatório do inconsciente promulgado pelo surrealismo de Breton, com o qual Queneau havia rompido. Tal recusa justifica-se

221 QUENEAU apud BÉNABOU, in: OUBAPO. OuPus 1. Paris: L'Association, 1997, p. 3. 222 ALENCAR, Ana Maria, e Ana Lúcia MORAES. “O OuLiPo e as oficinas de escrita.” Terceira Margem (7Letras/Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (UFRJ)), n. 13 (julho-dezembro 2005): 9-28. P. 13. 223 “Ce que certains écrivains ont introduit dans leur manière, avec talent (voire avec génie) mais les uns occasionnellement (forgeâtes de mots nouveaux), d’autres avec prédilection (contrerimes), d’autres avec insistance mais dans une seule direction (lettrisme), l’Ouvroir de Littérature Potentielle (OuLiPo) entend le faire systématiquement et scientifiquement, et au besoin en recourant aux bons offices des machines à traiter l’information.” Cf, LIONNAIS, François. “La LiPo. Le premier manifeste”. In: OULIPO. La Littérature potentielle. Paris: Gallimard, 1973, p. 21.

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pela valorização da restrição como promotora de uma liberdade criativa em detrimento da ideia de genialidade, que pode permitir dizer mais do que o sujeito pensava poder dizer anteriormente. A matemática forneceria algumas das bases para a criação de restrições, como o uso de grafos, regra de Fibonacci e, principalmente, a combinatória: em vez de deixar a escrita acontecer por acaso, provocar o acaso, restringindo a ordem de aparição e desaparecimento das coisas. Continuando a reunir seus membros uma vez por mês para a leitura de textos e formulação de restrições, o grupo ainda realiza apresentações públicas e ateliês de criação literária. O OuLiPo nunca se propôs como uma vanguarda, priorizando o inventário à invenção; nem se pretendem como um movimento literário, muito menos em fazer “Literatura”. Reconhecendo que a restrição não seria uma prerrogativa deles, simplesmente buscam antigas restrições ou formulam novas, e demonstram como não existiria uma escrita “pura”. Em vez de tabula rasa, portanto, um trabalho de erudição borgeano (de catálogos imaginários, de cronologias impossíveis224), desordenando as escolas literárias e priorizando o humor inteligente.225 O objetivo principal deles é, portanto o de fornecer formas, de pesquisar novas estruturas que poderão servir a escritores, sem uma preocupação com a ideia de uma obra-prima, mas a de permitir a criação a quem quiser. Uma posição ética que justifica a ausência de uma “estética” unificadora: ele não se pretende um elaborador de um estilo, mas um lugar de encontro entre autores das mais diversas ordens para trabalharem juntos, por isso a insistência no “ouvroir” (ateliê, oficina).226

[Os] próprios oulipianos afirmavam que o cerne de suas discussões não seria a produção de “Grande Literatura” –, em oposição aos chefs d’œuvres (OULIPO, 1973). Em vez disso, a ideia oulipiana era a de uma escrita lúdica, em vez do misticismo surrealista em torno da figura autoral. Todos poderiam escrever - até porque a escrita seria um produto da linguagem, e não do sujeito -, sendo as contraintes

224 “Assim se cumpre a utopia borgeana de uma Literatura em transfusão perpétua – perfusão transtextual –, constantemente presente nela mesma, em sua totalidade e como Totalidade, na qual todos os autores se tornam um, e de quem todos os livros são um vasto Livro, um único Livro infinito. A hipertextualidade não passa de um dos nomes dessa incessante circulação de textos sem o que a literatura não valeria a pena nem por uma hora. E quando digo uma hora...” [Ainsi s’accomplit l’utopie borgésienne d’une Littérature en transfusion perpétuelle – perfusion transtextuelle –, constamment présente à elle-même, dans sa totalité et comme Totalité, dont tous les auteurs ne font qu’un, et dont tous les livres sont un vaste Livre, un seul Livre infini. L’hypertextualité n’est qu’un des noms de cette incessante circulation des textes sans quoi la littérature ne vaudrait pas une heure de peine. Et quand je dis une heure…]” (GENETTE, op. cit., 1982, p. 453) 225 A máxima de Féval citada em seus manifestos: “Je travaille pour des gens qui sont intelligents avant d’être sérieux” (OULIPO, op. cit., p. 23). 226 Em seu livro Esthétique de l’OuLiPo, o oulipiano Hervé Le Tellier aborda, justamente, a inexistência de uma estética oulipiana, para em seguida declarar que existiria, por outro lado, uma especificidade do OuLiPo: a de provocar um prazer estético “lié à connaissance ou à la reconnaissance de référents codés et communs. [...] C’est à cette “intelligence” du texte qu’il faut relier la notion esthétique” (LE TELLIER, Hervé. Esthétique de l'OuLiPo. Bordeaux: Le Castor Astral, 2003, p. 9).

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desenvolvidas pelo grupo semelhantes às regras de um jogo, de base axiomático-matemática, para libertar a escrita.227

A obra sob restrição também permitiria uma maior participação de seu leitor, tanto na observância das regras quanto na possibilidade de reutilizá-las, e valorizaria o caráter coletivo da escrita, sendo comum a prática de narrativas coletivas sob restrição. Por ser uma estrutura “vazia”, convida quem se dispor ao jogo de linguagem, tornando-se uma “forma de vida transmissível”.228 No caso do OuBaPo, as restrições que inferem sobre elementos aparentemente inerentes ao “código” dos quadrinhos (enquadramento, uso de balões, sequencialidade) acabam por fazer interrogar sobre as características das histórias em quadrinhos como um todo.229 O produto da restrição (o texto ou o quadrinho oulipianos) não garante uma legibilidade imediata garantida, cabendo ao leitor deixar-se seduzir pelo enigma ou pela multiplicidade de leitura. Assim, o oubapianismo – uma vertente em quadrinhos do oulipismo 230 – poderia ser definido como um fazer lúdico que evidencia uma metalinguagem crítica (da mesma forma como a arte conceitual viria a diluir as fronteiras entre a arte e o discurso sobre a arte).231 A ênfase na restrição tende a reduzir a

227 PEREIRA, Vinicius Carvalho. “A escrita como jogo – Desafios e contraintes na literatura do Oulipo.” outra travessia 13 (Programa de Pós-Graduação em Literatura Universidade Federal de Santa Catarina), 1º Semestre 2012: 119-135. P. 120. 228 ROUBAUD apud REGGIANI, Christelle. “Restrição e literariedade.” Terceira Margem, n. 13 (julho- dezembro 2005): 85-95. 229 Jan Baetens frisa, em artigo sobre OuBaPo: “Farei uma distinção entre os conceitos de ‘regra’ (definidos como a estrutura gramatical de uma dada linguagem ou as normas discursivas impostas por gêneros e/ou contextos), ‘dispositivo’ (definido como meios estilísticos sublinhando fenômeno textual localizado), e ‘restrição’ (definida como um dispositivo global ativo cuja natureza não é nem gramatical nem discursiva)”. [I will make a distinction between the concepts of "rule" (defined as the rules of either the grammatical structure of a given language or the discursive norms imposed by genres and/or contexts), "device" (defined as a stylistic means of underlining local textual phenomena), and "constraint" (defined as a globally active device whose nature is neither grammatical nor discursive)”]. (BAETENS, Jan. “Comic strips and constrained writing.” Image and Narrative, outubro de 2003, p. 3). 230 Genette cria uma diferenciação entre o oulipème, texto gerado por um oulipiano, e um oulipisme, texto à maneira do OuLiPo. O teórico se atém ao estudo do aspecto transformacional da oulipie em seu ensaio sobre a paródia, o pastiche, e outros procedimentos transtextuais, a saber a relação estabelecida entre um texto e outros textos – ou quando ocorre uma transcendência de um texto para outras manifestações textuais. Os procedimentos que ele enumera são: a) a intertextualidade: citação, plágio; b) a paratextualidade: o conjunto de textos relativos a uma obra; c) a metatextualidade: “par excellence, la relation critique”, do comentário; d) a hipertextualidade: a paródia, o pastiche, e outras operações de transformação de um texto; e) a arquitextualidade: qualidade genérica, ou relativa a uma época (GENETTE, op. cit. 1982, pp. 7 et seq.). 231 “A arte conceitual era essencialmente uma reflexão sobre a natureza da arte: quais seriam as características necessárias e suficientes para que uma coisa pudesse ser considerada como arte e como essa coisa poderia ser exposta, conservada e criticada? Para alguns, esse gênero de interrogação era necessário antes da fabricação da obra, enquanto que para outros era essa busca em si que constituía a obra. A fronteira entre a arte e o discurso sobre a arte se embaralhavam [...], o conceitualismo fazia da crítica e da análise uma parte integrante da obra. [L’art conceptuel était essentiellement une réflexion sur la nature de l’art : quelles sont les caractéristiques nécessaires et insuffisantes pour qu’une chose puisse être considérée comme de l’art et comment cette chose peut-elle être exposée, conservée et critiquée ? Pour certains, ce genre d’interrogation était nécessaire avant la fabrication de l’œuvre, tandis que pour d’autres, c’est cette

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distância entre a atividade intelectual (do conceito) e a prática da escrita (artesanal), o que não deixa de ser uma crítica à literatura canônica, espaço para poucos.232 A arte conceitual encontra sua principal referência na anarquia dadaísta e no Ready- Made e o trabalho de Gerner se filiaria, portanto, à mesma corrente artística aberta por Duchamp – aquela que leva o espectador a se interrogar sobre a matéria da arte, cuja referência mais conhecida seria a obra Fontaine, o urinol ao qual o artista só teria adicionado a assinatura, “R. Mutt” (1917). O gesto duchampiano do ready-made, segundo o próprio Duchamp, seria indiferente ao objeto que assina, objeto de mass production. Seu gesto vai de encontro à tradição filosófica ancorada na ideia de divisão entre sensibilidade e pensamento, antinômicos; desde Platão, o logos seria tradicionalmente oposto à imagem. Rompimento também com a tradição artística, chamado até “gesto antiartístico”, traz a interrupção brutal da “genealogia” da arte, que vem desde o trabalho artesanal: agora, é um objeto industrial que vem ocupar “o lugar da obra amorosamente trabalhada, e do artista criador” (o demiurgo, inventor de formas). Duas condições teriam provocado a emergência do ready-made: a industrialização do cotidiano e a emergência de um novo juízo estético, baseado na opinião de uma nova esfera social, diferente daquela que constitui o mundo dos especialistas.233 Ao assinar seu urinol, o autor põe na berlinda a especificidade do objeto de arte: não seria a promoção de um objeto industrial ao “nível” de objeto de arte, porém uma indagação constante sobre a institucionalização do objeto de arte, e a noção de obra (œuvre, work, objetos provindo do verbo trabalhar) de arte.234 A autorreflexividade da obra, o inventário e a transtextualidade (transformações, hibridismos e outras permutações a partir de um texto fonte) são alguns dos recursos elementares para ambos os grupos. O procedimento do OuLiPo, através da relevância dada à restrição e à combinatória, estaria ancorado nas interrelações textuais, notoriamente a hipertextualidade e na arquitextualidade – por sinal, o procedimento mesmo da arte. Para o formalista Chklovski, as “imagens” são as mesmas, atemporais, e recherche en elle-même qui constituait l’œuvre. La frontière entre l’art et le discours sur l’art se brouillait […] le conceptualisme faisait de la critique et de l’analyse une part intégrante de l’œuvre]” (ARCHER, op. cit., p. 74). 232... “o trabalho do Oulipo, e sua mais alta originalidade, é, ao mesmo tempo, extremamente artesanal e extremamente conceitual. Ambição e modéstia, manufatura e pensamento que se revelam indissociáveis.” [... le travail de l'Oulipo, et c'est son originalité la plus haute, est, en même temps, extrêmement artisanal et extrêmement conceptuel. Ambition et modestie, fabrique et pensée s'y révèlent indissociables.]” (JOUET, Jacques. “OULIPO (Ouvroir de littérature potentielle).” Encyclopædia Universalis [en ligne]. http://www.universalis.fr/encyclopedie/oulipo/ – acesso em 18 de janeiro de 2015). 233 LEENHARDT, Jacques. “Duchamp: crítica da razão visual.” In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento, 339-350. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 340. 234 Marcel Duchamp (1887-1968) é, além disso, um personagem importante cuja vida ativa como pintor e artista plástico abrange desde um flerte pelo tema da representação do movimento (caro a futuristas), passando pelo Dadaísmo e pelo Surrealismo sem resumir-se a nenhuma corrente. No fim da vida, viria a integrar o então recém criado OuLiPo (Cf. OULIPO, op. cit., 1973, p. 39).

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o trabalho da poesia e da arte seria a de re-apresentá-las, de uma forma nova – non nova, sed nove. 235 A literatura e a arte usam elementos mínimos promovendo deslocamento e condensação de sentidos e, como Italo Calvino comenta, a literatura é em si um jogo combinatório,

... que segue a possibilidade implícita em seu próprio material, independentemente da personalidade do poeta. [...] Jogo que a certo ponto se encontra investido de um significado inesperado, um significado não objetivo, como o significado do nível linguístico para o qual estávamos nos dirigindo, mas que escorregou para um outro plano, até colocar em jogo algo no plano da consciência do autor ou da sociedade a qual ele pertence.236

Um texto oulipiano (criado por membros do OuLiPo ou não, o “oulipismo”, como escreve Genette) demanda sempre uma atenção dobrada de seus leitores para seus próprios códigos (os da língua, do jogo de construção do texto, além de dispor enigmas para seu leitor, seja no reconhecimento da restrição ou do texto de base para a transformação). Eles também buscam exemplos no passado de autores e obras escritas a partir de restrições, autores que eles chamam de “plagiadores por antecipação”, como jocosamente eles intitulam essa prática de redescobertas que possibilitam a recuperação de autores antigos, como explica François Le Lionnais:

Às vezes nos acontece de descobrir que uma estrutura, que até então acreditávamos perfeitamente inédita, já havia sido encontrada ou inventada no passado, por vezes em um passado longínquo. Nós cumprimos a obrigação de reconhecer tais evidências qualificando os textos de “plágios por antecipação”. Assim a justiça é feita e cada um recebe seus méritos.237

A ideia do plágio por antecipação e a escrita sob restrição corroboram no esvaziamento da ideia de originalidade da arte, visto que se colocam como balizas, não mais uma “antecedência”, uma sucessão de fatos, mas sim as conexões possíveis entre a matéria da literatura ou da arte, seja o texto ou o objeto de arte. Essa prática permite também um maior entendimento da história das atividades literárias e artísticas sem

235 Cf. CHKLOVSKI, Victor. “A Arte como procedimento.” In: Teoria da Literatura: formalistas russos, por EIKHENBAUM, et al., tradução: Ana Mariza R. FILIPOUSKI, Maria Aparecida PEREIRA, et al.. Porto Alegre: Globo, 1978. 236 “… che segue le possibilità implicite nel proprio materiale, indipendentemente dalla personalità del poeta. […] Gioco che a un certo punto si trova investito d’un significato inatteso, un significato non oggettivo di quel livello linguistico sul quale ci stavamo muovendo, ma slittato da un altro piano, tale da mettere in gioco qualcosa che su un altro piano sta a cuore all’autore o alla società a cui egli appartiene.” CALVINO, Italo. Una pietra sopra. Reedição (a primeira edição, reunindo artigos e conferências originalmente conferidas entre os anos 1950-1970, foi publicada em 1995). Milão: Oscar Mondadori, 2002, p. 217. 237 “Il nous arrive parfois de découvrir qu’une structure que nous avions crue parfaitement inédite, avait déjà été découverte ou inventée dans le passé, parfois même dans un passé lointain. Nous faisons un devoir de reconnaître un tel état de choses en qualifiant les textes de “plagiats par anticipation”. Ainsi justice est rendue et chacun reçoit-il ses mérites.” OULIPO, op. cit., p. 27.

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recorrer a uma simples cronologia, e visa demonstrar que não há inspiração. Constantemente voltando-se ao próprio código sobre o qual trabalha, cria uma rede autorreferencial (em que a própria obra é o referente) e, por vezes, autorreflexiva (em que a obra escreve sobre seu processo de confecção). Enxadristas, Duchamp, Queneau (Calvino, talvez), veem em suas respectivas linguagens-matéria de criação a possibilidade de jogar com os signos, combinar elementos (palavras, objetos); a ars combinatória, o procedimento da arte e da poesia, que seria nada mais “que a acumulação e a revelação de novos procedimentos para dispor e elaborar o material verbal, e este consiste antes na disposição das imagens [no sentido de figuras da linguagem] que na sua criação”.238 Esses autores evidenciam o que seria, na verdade, o procedimento da arte e da poesia, o jogo combinatório que revela significados inesperados. Isso explica em parte sua recusa em ser uma literatura “aleatória” e sua busca pelo “anti-acaso”, privilegiando as possibilidades potenciais da combinação de elementos da língua e de gênero em detrimento da idealização da escrita “inspirada”, reservada a poucos.

O procedimento da poesia e da arte – disse Gombrich – é análogo ao do jogo de palavras; é o prazer infantil do jogo combinatório que impele o pintor a experimentar disposições de linhas e cores e o poeta a experimentar aproximar as palavras; de repente se ativa o mecanismo para quem uma das combinações obtidas seguem seu mecanismo autônomo, independentemente de cada busca de significado ou de um efeito imprevisto, cuja consciência não teimaria intencionalmente: um significado inconsciente, ou pelo menos a premonição de um significado inconsciente.239

Na palavra jogo aqui, não há nada de casual, mas parte de uma formulação estética reunindo traços da psicanálise e da prática da arte e literatura, preferindo a ars poetica ao poeta nascitur.240 O jogo opera um descentramento: é a distribuição de papéis, a eliminação de um determinismo trágico (o fatalismo), a combinação de elementos, a probabilidade, regido por regras que restringem a aparente aleatoriedade dos acontecimentos. Por trabalharem com o jogo, desconstroem a ideia de literatura canônica vs. literatura popular, preferindo o humor e o trabalho coletivo, pois a leitura mesma seria imbuída da necessidade de ser partilhada.

238 CHKLOVSKI, op. cit., p. 41. 239 “Il procedimento della poesia e dell’arte – dice Gombrich – è analogo a quello del gioco di parole; è il piacere infantile del gioco combinatorio che respinge il pittore a sperimentare disposizioni di linee e colori e il poeta a sperimentare accostamenti di parole; a un certo punto scatta il dispositivo per cui una delle combinazioni ottenute seguendo il loro meccanismo autonomo, indipendentemente da ogni ricerca di significato o effetto su un altro piano, si carica di un significato inatteso o d’un effetto imprevisto, cui la coscienza non sarebbe arrivista intenzionalmente: un significato inconscio, o almeno la premonizione d’un significato inconscio.” CALVINO, op. cit., 2002, p. 216. 240 Ibidem, p. 215.

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A psicanálise, como menciona Calvino, nos demonstrou como atos aparentemente “sem causa”, “acidentes” seriam fruto de relações imbricadas no inconsciente, em que o deslocamento e a condensação de signos – um jogo de combinações – seriam inerentes (e realizados na) à linguagem – os atos falhos e os lapsos da fala –, e os sonhos seriam um exemplo mais aparente dos tais procedimentos inconscientes. Assim, a ideia do jogo – descentramento e combinatória – estaria no cerne da potencialidade da literatura e da arte combinatórias, contrárias à ideia de gênio e produtos do acaso. O jogo multiplica as fontes de decisão, redistribui os papeis (as ordens discursivas), desfaz o uno.

Jogo, desvio, torção, deslocamento, distância, vazio – através dos quais as palavras se afastam da banalidade, ou seja, da “significação” imediata e funcional. São esses passes, no sentido mágico, essas dobras, esses hieróglifos, que conferem volume à linguagem. Paradoxalmente, da linearidade e pobreza das palavras diante das coisas advém a extraordinária flexibilidade da linguagem verbal.241

Um outro exemplo de convergência entre os dois grupos está na experimentação das variantes genéricas e de estilo do código com o qual trabalham. Queneau, em sua obra já clássica Exercices de Style, reescreve um mesmo plote, uma observação sem qualquer interesse sobre um rapaz, seu ar irritante, seu chapéu estranho e o acaso que o fez revê-lo, horas mais tarde, em outra ocasião.242 O oulipiano nomeia cada nova reescritura um novo estilo, que respondem a critérios diferentes, ora formais, ora lexicais, ora sintáticos.

241 ALENCAR & MORAES, op. cit., p. 12. 242 Exercício n.n : sinopse de caderno cultural. O texto de “base” viria dessa nota (notation): “Dans l'S, à une heure d'affluence. Un type dans les vingt-six ans, chapeau mou avec cordon remplaçant le ruban, cou trop long comme si on lui avait tiré dessus. Les gens descendent. Le type en question s'irrite contre un voisin. Il lui reproche de le bousculer chaque fois qu'il passe quelqu'un. Ton pleurnichard qui se veut méchant. Comme il voit une place libre, se précipite dessus. Deux heures plus tard, je le rencontre cour de Rome, devant la gare Saint- Lazare. Il est avec un camarade qui lui dit : ‘tu devrais faire mettre un bouton supplémentaire à ton pardessus.’; il lui montre où (à l'échancrure) et pourquoi.”

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Figura 58: Exercício de estilo de Queneau, Massin e Carelman (1963)

O oubapiano Matt Madden, em seu Exercices in Style, realiza a mesma experiência em quadrinhos, partindo de uma história também banal, um diálogo entre ele e a esposa. E ele as recria alterando elementos de focalização, ocularização, estilos de gênero (mangá, herói), e outras declinações. Antes de Madden, o artista plástico Jacques Carelman (1929-2012), fundador do Ouvroir de la Peinture Potentielle (OuPeinPo, criado em 1980 e ainda com membros em atividade),244 já havia declinado o rapaz do chapéu estranho de Queneau em diferentes modos de lidar a imagem (pintura abstrata, gravura, objeto Dada, cartum) e o tipógrafo Massin fez o mesmo com estilos tipográficos, representando as diferentes variações de estilo de Queneau.245 Madden, seguindo Queneau, anos mais tarde, se atém aos quadrinhos enquanto expressão própria, passível de ser declinada em estilos diversos (Figura 59, Figura 60, derivadas de uma cena inicial em que o personagem de Madden se levanta de sua mesa de

243 Massin cria uma tipografia própria para o texto de Queneau na forma de “prière d’insérer”, o press release. Carelman “reescreve” a mesma história na forma de uma cerâmica antiga. 244 Menu entrevista Carelman no 3o volume da L’Éprouvette, que também conta com entrevista a Jacques Roubaud. 245 Em edição especial e de tiragem limitada (livreiros dizem entre 5 a 10 mil exemplares) publicada em 1963 pela Gallimard que reunia os textos de Queneau, as imagens de Carelman e a tipografia de Massin (, Raymond, CARELMAN Jacques, e MASSIN. Exercices de Style. Edição especial para o Club du livre. Paris: Gallimard, 1963). Recentemente, Massin foi entrevistado para a revista The Shelf, em que fala de sua colaboração com Queneau, com ênfase nos Cent Mille milliards de poèmes. (“Massin, Entrevue.” The Shelf, março de 2014: 66-83)

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trabalho, se dirige para a geladeira, mas é interrompido pela pergunta de sua esposa, no andar acima, sobre as horas, e ele acaba esquecendo o que ia fazer).

Figura 59: Exercício de estilo de Madden, inventário

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Figura 60: "Emanata": o acréscimo de pictogramas à narrativa de base

Os exercícios de estilo de Queneau e Madden indicam os elementos mínimos que ligam uma determinada escritura a uma situação específica, a um uso, a um autor (Madden apenas, Queneau evita propositadamente o pastiche). Carelman declina a história de Queneau em expressões em imagens de ordens diversas: a gravura, a pintura, o objeto dadá, todos formas visuais de expressão condicionadas cada uma a denotações e exemplificações específicas, enquanto Queneau e Madden realizam exercícios de estilo possíveis na espécie de expressão sobre a qual trabalham costumeiramente, a saber o texto literário ou poético e a história em quadrinhos, mas também derivam para diferentes “estados” da língua com a qual trabalham (para usar a expressão do “Prière d’insérer” à edição estabelecida por Emmanuël Souchier), “figuras de retórica e gêneros literários”.246 Seus exercícios demonstram as probabilidades declinatórias de um mesmo plot em configurações diversas, apontando pela potencialidade da língua. Além disso,

246 QUENEAU. Exercices de style. Édition augmentée de textes inédits. Edição: Emmanuël SOUCHIER. Paris: Gallimard, 2012, p. 225.

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multiplicando-se as formulações sobre um mesmo tema, desfaz-se a ideia de origem, do texto único centralizador do sentido. A edição especial dos exercícios de Queneau não é apenas ilustrada por Carelman e Massin, eles compõem o livro. Os artistas visuais acabam impondo um tamanho irregular para a obra, alguns desenhos de Carelman necessitando desdobrar-se para além do espaço da página dupla. A concepção gráfica foi realizada por Massin, que também assina o grafismo de outra obra-chave de Queneau, os Cent mille milliards de poèmes; ele consiste em um soneto cujos versos podem ser permutados e continuariam produzindo leituras potenciais equivalendo ao número que dá nome ao livro. Esses dois projetos gráficos são bem particulares, e ultrapassam a vontade formal do OuLiPo que se restringiria à escrita. Nas histórias em quadrinhos, a superfície da página participa do tecido de significância do objeto, e a forma do livro remete-o imediatamente a um nicho ou gênero (o formato da tira, da página, do gibi, do álbum, do livro).

Figura 61: Os autores-fundadores do OuBaPo, por Étienne Lécroart247

Na “Apresentação” da primeira antologia reunindo os preceitos do OuBaPo, o primeiro OuPus 1 – neologismo formado a partir do termo latino opus, designando as antologias do grupo –248 convoca-se dois oulipianos Marcel Bénabou e Noël Arnaud, em

247 Os nomes dos membros do OuBaPo, em ambigrama visual (ou ambigrafia) realizado por Lécroart, podem ser lidos nessa posição ou girando a página em 180º: François Ayroles, Anne Baraou, Giles Cimen, Jochen Gerner, Thierry Groensteen, Etienne Lécroart, Killoffer, Jean-Christophe Menu, Lewis Trondheim (OUBAPO. OuPus 2. Paris: L'Association, 2003, pp. 5-6). 248 OUBAPO, op. cit., 1997. Desde então, as antologias oubapianas coletivas, reunindo várias contraintes ou partindo de uma única, foram chamadas a partir dessa corruptela do termo opus. O último OuPus, no entanto, publicado em 2013, teve por título Le Journal directeur. Ele reuniu Alex Baladi, Jochen Gerner,

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prefácio ao livro.249 No manifesto “Ouvre-Boîte-Po”, escrito algumas páginas adiante, Jean-Christophe Menu que, apologeticamente, diz ser o termo “potencial” inerente às histórias em quadrinhos, relembrando a guetificação e estratégias de mercado que teriam castrado a essa espécie artística outras possibilidades de existência além dos mencionados clichês de gênero. As técnicas utilizadas pelos oubapianos são de inspiração oulipiana, criação de procedimentos específicos relativos à história em quadrinhos, como tiras em sonetos por Lécroart ou a aplicação da restrição S+7 às imagens de uma história em quadrinhos. A restrição S+7 consiste na substituição de cada substantivo de um dado texto pela 7a palavra que o sucede em dicionário, por exemplo: “O restrito S+7 consiste na subsunção de cada substrução de um dado texugo pela 7a palavrosa que o sucede em dicloreto”. Em uma experimentação com a imagem, a narrativa de um pesadelo por Killoffer tornou-se ainda mais expressionista com a transmutação aparentemente surrealista dos objetos da cena. A escrita sob a restrição S+7 demonstra como somos tentados a fazer sentido. O pesquisador Groensteen – incitador e teórico do ouvroir – dividiu em duas : a) restrições geradoras (prescritivas e precedendo a criação de uma história) e b) restrições transformadoras (incidindo sobre uma história previamente criada).250 Os primeiros Oupus demonstravam histórias elaboradas de forma a oferecer múltiplas leituras de uma mesma página, seja em estruturas palindrômicas, reversíveis (“upside-down” ou ambigramas, como na Figura 61), dobraduras (a exemplo dos fold-in popularizados pela revista MAD), na restrição a alguns elementos (histórias sem personagens, de apenas um ponto de vista) ou na iteração parcial ou completa de um dado elemento verbal ou pictórico. Le Dormeur de Lewis Trondheim, como citei na Introdução, é uma obra em que apenas um quadro é repetido em cada tira, uma “iteração icônica,” permitindo leituras diversas apenas pela alteração do texto de seu personagem. As técnicas transformadoras, herdeiras também do situacionismo, apropriam-se (depredam)

Étienne Lécroart, Matt Madden e Lewis Trondheim, que deveriam criar uma narrativa a partir de uma mesma edição do jornal (Libération nº 9567 do 14 de fevereiro de 2012), reinterpretando todas as tais imagens na ordem de aparição (OUBAPO. Le Journal Directeur. Paris: L'Association, 2013). 249 O oulipiano Noël Arnaud prefaciou Moins d’un quart de seconde pour vivre, livro oubapiano por antecipação de Trondheim e Menu (TRONDHEIM & MENU, op. cit.). Arnaud demonstra que, antes do OuBaPo, a relação entre os oulipianos e os quadrinho sempre foi de admiração; ele evoca a paixão de Alfred Jarry, fundador da ‘Pataphysique – no seio da qual forjou-se o OuLiPo – por Töpffer e a primeira antologia sobre I Primi Eroi de quadrinhos, escrita pelo também oulipiano François Caradec (1960). 250 Os membros do OuBaPo são: Ibn Al Rabin, François Ayroles, Alex Baladi, Gilles Ciment, Jochen Gerner, Patrice Killoffer, Matt Madden, Lewis Trondheim, Anne Baraou, Andreas Kündig, Jean- Christophe Menu, Thierry Groesnteen e Étienne Lécroart (cooptado pelo OuLiPo desde 2013 e quem enviou-me gentilmente a presente lista). Porém, Groesnteen já teria afirmado a sua “demissão” do OuBaPo, e Jean-Christophe Menu comenta em sua tese (2011) sobre o fim do grupo – que retornaria a se reunir e a publicar em 2013, sem a presença de todos. Para o OuLiPo, não é possível sair do grupo, nem depois de morto (apenas “desculpados” pela ausência).

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histórias pré-existentes na criação de hibridismos, expansões, reduções e reinterpretações gráficas de um dado material. O trabalho de Gerner concentra-se na formulação de restrições transformadoras, visando a análise de um dado material relevante no imaginário comum aos franceses, desde o Tintim ou um catálogo da IKEA.

[A] submissão obrigatória às normas do suporte, por um lado, e a solidariedade natural entre todo enunciado e um certo espaço ao qual ele corresponde, por outro, têm no mínimo duas consequências. Primeiramente, certas restrições afetando a forma ou o número de quadros só poderiam se aplicar a histórias em quadrinhos curtas; toda vontade de estendê-las mais de uma, duas ou três páginas se chocaria com impossibilidades técnicas [...]. Em seguida, numerosas restrições só poderão ser aplicadas sem uma intervenção do suporte em si; elas obrigarão a distanciarmo-nos dos padrões editoriais para conceber “livros-objetos”. Os Cent mille milliards de poèmes de Queneau necessitavam de recortes inabituais nas páginas da antologia. O corte, a dobradura, a introdução de elementos móveis ou transparentes, o acréscimo de volume etc., serão recursos frequentes nas histórias em quadrinhos oubapianas, na medida em que agir sobre a imagem, é frequentemente agir sobre a organização do espaço ou da natureza do suporte.251

Em seu compte rendu de vinte anos do OuBaPo, Thierry Groensteen, idealizador do grupo, conclui que um dos principais trunfos e frutos das oficinas foi o relevo dado à “autoconscientização” da história em quadrinhos. Potencializou-se uma experiência estética ancorada no lado metalinguístico e no poético da história em quadrinhos. Sua heurística própria, sem a busca de uma ideia absolutista do que é o fazer quadrinhos, mas operada pelo jogo e pelo descentramento.

251 GROENSTEEN, in OUBAPO, op. cit., 1997. (Tradução minha em preparação).

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Figura 62: "Tireur à la ligne" por Figura 63: "Bande Dessinée en Lécroart e Menu (OuPus 2) tripoutre", por Killoffer, OuPus 1

No exemplo acima (Figura 62), criado a partir da restrição oulipiana tireur à la ligne (“encher linguiça”), um primeiro autor propõe 2 quadros a um segundo, que deverá expandir a história a partir da lacuna entre os dois primeiros quadros, prosseguindo o jogo indefinidamente.252 O exemplo seguinte (Figura 63), por seu turno, inspira-se nos desenhos de Escher na tentativa de construir uma narrativa circular, a partir de uma estrutura geométrica e um jogo com as perspectivas.

[Mesmo] as páginas que não são feitas como um jogo ainda deixam o leitor em alerta, porque elas são afetadas por um coeficiente de estranheza ou provém visivelmente de uma manipulação dos códigos ordinários da história em quadrinhos. Dessa ponto de vista, as produções oubapianas, mesmo permanecendo distantes de qualquer didatismo, engajam uma pedagogia da história em quadrinhos pelo exemplo.253

252 “Tirer à la ligne, c’est, pour un journaliste (ou un écrivain), “allonger la sauce” sans augmenter pour autant l’information. […] Dans l’exercice oulipien du tireur à la ligne, il s’agit, en se donnant une phrase de départ A et une phrase d’arrivée B, complètement indépendantes l’une de l’autre, d’insérer une phrase intermédiaire C créant une fiction plausible, puis de recommencer l’opération en insérant une phrase D entre A et C, une phrase E entre C et B. Aux étapes suivantes, on continuera ainsi à insérer chaque fois une phrase nouvelle entre deux phrases existantes.” (OULIPO. Contraintes. http://oulipo.net/fr/contraintes – acesso em 21 de janeiro de 2015.) 253 “[Même] les pages qui ne reposent pas sur un jeu n’en mettent pas moins le lecteur en alerte, parce qu’elles sont affectées d’un coefficient d’étrangeté ou procèdent visiblement d’une manipulation des codes ordinaires de la bande dessinée. À cet égard, les productions oubapiennes, tout en restant éloignées de tout didactisme, engagent une pédagogie de la bande dessinée par l’exemple.” GROENSTEEN, Thierry. “Ce que l’OuBaPo nous révèle de la bande dessinée.” Neuvième Art 2.0, abril de 2004.

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Uma das atividades das oficinas de quadrinhos, de inspiração oubapiana, consistia em pedir a alunos que completassem uma história de Tintim, em que os personagens caem em um rio nos primeiros quadros. A história deveria continuar como o aluno desejasse (obedecendo à estrutura de quadros e cenário), mas partindo do pressuposto que todos os personagens teriam morrido após o acidente. O recurso derivativo dessa proposição também foi feito por ele em duas publicações distintas em que ele reinterpretava uma narrativa sua, trechos distintos de Courts-circuits géographiques (L’Association, 1997), livro que narra diversas viagens do autor. Para a exposição de celebração dos 20 anos da L’Association, ele transformou uma página em uma leitura pictogramática da história. Em outro momento, publicado na revista Livraison, ele procede ao mesmo método “lipográfico” (lipograma gráfico, se me permitem o neologismo), eliminando o protagonista da história (ele mesmo) sob a premissa “e se eu tivesse perdido o avião”.254 A especificidade “desestruturadora” do oubapiano Gerner seria, justamente, pela sua ênfase analítica dos materiais produzidos pela cultura BD ou a cultura da imagem, fazendo de cada projeto um estudo de um dado material. O particular de CLBD, embora se trate de uma obra crítica, seria seu ponto de partida não ser mais a imagem, mas enunciados verbais.

4.2 Metalinguagem em quadrinhos

Produto industrial no início do século XX, à produção das histórias em quadrinhos desde este período foram impostas restrições mecânicas. Elas ajudaram a acelerar sua fabricação e distribuição, opondo-se, por tal princípio, a uma vontade de obra- monumento, fazendo quase norma seus traços fragmentário e múltiplo (as tiras seriadas, que dependiam de público para manter-se ativas, e Gerner exemplifica o fato na figura de um livro, repetida 6 vezes, formando as mesmas figuras, dispostas como em um gaufrier em que cada casa contém o mesmo desenho, numerado). Paul Gravett, em seu Comics Art, descreve como os comic books da EC Comics eram gerados partindo, primeiramente, de quadros contendo já os textos elaborados por roteiristas e que seriam completados por ilustradores. A capa do livro de Gravett é uma página de Joost Swarte que ilustra a “indústria dos quadrinhos” em sua chamada Golden Age, colorido por Françoise Mouly para a célebre revista RAW, editada por ela e Art Spiegelman entre os anos 1980-1991. A era de Ouro para a historiografia americana seria o período em que a indústria floresceu, multiplicando-se o número dos syndicates,

254 Respectivamente: Courts-circuits géographiques. L’Association en 1997; L’ASSOCIATION. XX / MMX. Paris: l'Association, 2010; LIVRAISON 4, 2004.

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empresas que “representavam” autores e distribuíam as tiras para jornais em todo o território do EUA e exterior. Em realidade, os syndicates dividiam as tarefas e contratavam autores para projetos coletivos, em uma noção de um processo fordista de divisão de trabalho em que a figura de um autor era apagada. O desenho de Swarte compara tal produção ao cinema, cuja produção depende intrinsicamente de vários profissionais. No desenho, até personagens das tiras seriam “atores” contratados não por um talento particular, mas por seu caráter de semelhança entre eles, como “dublês” de um personagem participando em diversos quadros simultaneamente. Como escreve Gravett,

quadrinhos não é um ser estranho entre as artes sendo ao mesmo tempo uma arte e um negócio. Em termos de autoria, quadrinhos podem ser o produto de um único, insubstituível indivíduo lidando com cada passo [...] ou duo, quase simbiótica parceria escritor-artista [...]. Quadrinhos também podem ser um produto colaborativo de um estúdio de assistentes realizando o plano de um artista mestre [...] ou uma linha de produção segmentada de editores, escritores, desenhistas [pencillers, inkers], coloristas [colourists], letreiradores e diagramadores [designers].255

E podemos acrescentar à lista a noção de instituição, de todo o imaginário constituído que naturaliza os mecanismos de reprodução dos mesmos valores ideológicos, de acordo com o estabelecido pelo teórico Christian Metz quando discute a institucionalização do cinema.256 Desde Töpffer ainda no século XIX, diversos autores fazem de sua prática um campo de reflexão sobre o suporte e sobre modos narrativos e como “praticantes autoconscientes, auto-analíticos tornaram-se teóricos, escrutinando a ilusoriamente ‘simples’ mídia dos quadrinhos”, e cita, além de Töpffer, o americano Will Eisner, que escreveu o importante livro teórico Comics and Sequential Art (1985), em que desenvolve a teoria de quadrinhos fazerem parte de um campo artístico maior, chamada por ele “arte sequencial,”257 uma arte ancestral, que lida com “arranjo de figuras e imagens e palavra para narrar uma história ou dramatizar uma ideia.” Além de Töpffer e Eisner, diversos autores fizeram uso de um certo nível de autorreflexividade para explorar a fabricação da história em quadrinhos como

255 “... comics is not unusual among the arts in being both an art and a business. In their authorship, comics can be the product of a single, irreplaceable individual handling every step [...] or one close-knit, almost symbiotic writer-artist partnership [...]. Comics can also be the collaborative output of a studio of assistants realising a master artist’s plan [...] or a segmented assembly line of editors, writers, pencillers, inkers, letterers, colourists and designers.” GRAVETT, Paul. Comics Art. Londres: Tate, 2013, p. 12. 256 Ver nota 44. 257 “... self-aware, self-analysing practitioners have become theorists, scrutinising the deceptively ‘simple’ medium of comics.” EISNER, Will. Comics and Sequential Art. Florida: Poorhouse Press, 1985. Seu livro reúne ensaios publicados aleatoriamente na revista Spirit, tendo eles sido também excertos de suas aulas na School of Visual Arts em Nova York.

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argumento para suas histórias, de forma a realmente explicar a seu leitor tal processo ou criar uma certa ilusão sobre – ou apenas um recurso usual para efeitos diegéticos ou plásticos,258 e o teórico Thierry Groensteen já observara, nos anos 1980, uma tipologia dessa autorreflexividade. A definição com a qual partilho de autorreflexividade é quando um dado objeto (uma história em quadrinhos) chama a atenção de seu observador/leitor para a materialidade desse objeto, para o fato dele ser um objeto que está sendo observado, e ciente dessa observação. Seria uma operação metalinguística em que a linguagem de segundo grau é a mesma que a linguagem primária. Por sua vez, a definição de operação metalinguística é a de um discurso cujo enfoque seja seu código ou de verificação desse código. A metalinguagem também abrange a análise de uma determinada linguagem por outra, como os ensaios sobre cinema, um documentário sobre literatura. Nesses casos, a metalíngua é, respectivamente, a escrita e o cinema, e as linguagens-objeto respectivas são o cinema e a literatura. Para Thierry Groensteen, seriam quatro as estratégias de autorreflexão das histórias em quadrinhos: objetivação, travestimento, desnudação, metaforização, egospecção. Nesse artigo, ele comenta serem os quadrinhos a soma de quatro aspectos: a) a sua matéria gráfica; b) o dispositivo de representação/enunciação; c) o seu processo de elaboração; d) o fato de ser uma instituição, em sentido pragmático e simbólico. O primeiro tipo de recurso de autorreflexão enunciado por Groensteen é a “objetivação” (objectivation), em que o quadrinho é o tema do discurso (objet). Seu exemplo é o livro de Florence Cestac (com roteiro de Thévenet), Comment faire de la Bédé sans passer pour un pied-nickelé.259 Editora e autora de quadrinhos, fundadora da Futuropolis, ela ilustrou os “tipos” de autores de quadrinhos que surgiam em seu escritório em busca de uma publicação. Cestac e Thévenet criam caricaturas de autores e da figura do editor de quadrinhos, ilustrando situações desses “tipos” a cada duas páginas. Seu tema é, portanto, quem faz a história em quadrinhos, em uma história em quadrinhos de humor. Groensteen afirma ser essa uma “objetivação sobre o meio em si”, em uma crítica satírica sobre a figura de seus autores.

258 Para um estudo apenas da reflexividade em comics de heróis, ver a tese de BAURIN, que conclui ser tal aspecto uma forma de exercício de legitimação desse gênero, em que o ponto em comum de proceder é pela forma da transficcionalidade. (BAURIN, Camille. “Le metacomic: La réflexivité dans le comic book de superhéros contemporain.” Thèse de doctorat de Lettres & Langues/ Spécialité : Arts. Poitiers: Université de Poitiers/Ecole doctorale : Lettres, Pensée, Arts et Histoire –Laboratoire : FoReLL (Formes et Représentations en Linguistique et Littérature), 2012) 259 CESTAC & THÉVENET. Comment faire de la Bédé sans passer pour un pied-nickelé. Paris: Futuropolis, 1988. Publicado pela Futuropolis em forma de livro, foi reeditado (e albumificado) pela Dargaud (2001).

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A segunda forma demonstrada pelo teórico é o travestimento (travestissement), em que o quadrinho é percebido de forma falsa, uma forma errada de falar do código. É uma paródia de metalinguagem, não a metalinguagem de fato. A terceira forma de autorreflexividade proposta por Groensteen é chamada de “desnudamento”, “quando a história e o discurso cessam de coincidir”. Ele usa o termo a partir de Benveniste, compreendendo por ele o resultado de operações linguísticas. O desnudamento é o contrário da objetivação, que é a glosa sobre o código. No desnudamento, o leitor é levado a perceber a materialidade gráfica da história em quadrinhos. As estratégias de desnudação listadas pelo crítico são: a) heterogeneidade do traço (ou coexistência de materiais/documentos diferentes (fotos, gravuras…); b) o personagem verbaliza o fato de ser de papel/a mão do autor intervém (como autor, não como personagem).

Figura 64: KELLY, Walt.260

Seu exemplo é uma tira de Pogo (Figura 64). Indiretamente, uma crítica ao sistema dos syndicates, em que o personagem conclui que, para fazer uma BD/tira, é preciso, primeiramente, dominar a assinatura e o mercado. O personagem toca o seu balão de fala dando-lhe uma materialidade antes existente apenas no nível do código, não da narrativa, revelando ao leitor que tanto aquele personagem que “fala” e a representação figurativa dessa fala são feitos de uma mesma matéria (a página e o traço do desenho).

260 “If you is serious ‘bout bein’ a comic strip artist...” Pogo, 28/02/1950, in: GROENSTEEN, T. “Bandes désignée: De la réflexivité dans les bandes dessinés.” CONTREBANDES NARRATIVES (edição especial). CONSÉQUENCES : magazine des objets réfléchis, 2º trimestre de 1990: 132-165.

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“[O] gozo do desnudamento depende do recurso a uma ‘enciclopédia’” (termo de Umberto Eco)261: o processo de fabricação da página é posto a nu para um leitor voyeur que aprecia o código, que se interessa no como ela se constrói. Em quarto lugar, Groensteen explica o que chama de “metaforização do código”, a mise en abyme em quadrinhos. Nessa forma de autorreflexão, o quadrinho não é apenas objeto, mas sua forma e seu conteúdo confundem as fronteiras entre o que é a narrativa e o que está sendo narrado. L’Origine, de Marc-Antoine Mathieu (1991), é o exemplo clássico em que a narrativa está sendo constantemente posta em cheque pelos seus personagens, que se veem replicados vertiginosamente.262 A quinta forma é chamada por ele de égospection (forma egótica), quando a BD “manifesta a consciência de ser olhada”. O recurso tipicamente machadiano de interrogar, por vezes faticamente, ao leitor, se ele está acompanhando a história. Tal fator pode ter como estratégia um personagem que chama a atenção do leitor para um determinado elemento da história. Certos autores farão uso dos quadrinhos como suporte de elaboração de um pensamento crítico,263 e destaco, na própria coleção de CLBD, Désœuvré, de Lewis Trondheim e dois livros de Mahler, L’Art selon Madame Goldgruber e L’Art sans Madame Goldgruber, discutindo diretamente sobre as relações de valor e a noção de autoria para as histórias em quadrinhos. L’Art selon Madame Goldbruger (insulte), produzido como um catálogo por Mahler para uma exposição de seus trabalhos em uma

261Ibidem, p. 154. 262 L’Origine é o primeiro de uma série em que um personagem bidimensional, de um mundo bidimensional, começa a receber as páginas de uma história que ele mesmo vivia (Julius Corentin Acquefacques, prisonnier des rêves, 1991-2013). O trabalho de Mathieu (oubapiano por antecipação) também envolve a abertura de “janelas quânticas” (buracos, de fato) entre duas páginas, em que a repetição do quadro exposto pelo furo importa na diegese da história. 263 O trio de editores da editora belga 5e Couche destacam-se nesse campo, tendo desenvolvido, por exemplo, a personagem Judith Forest, “autora” de uma autobiografia premiada e que seria desmascarada por seus criadores em um segundo livro metacrítico, Momon (2011). A editora mesmo produz obras em que a paródia e o pastiche são recursos retóricos para um questionamento do meio história em quadrinhos. Além de Judith Forest, outra polêmica levantada pela editora foi a paródia de Maus, de Art Spiegelman, Katz, cuja existência mesma e incineração por razões jurídicas materializou (ao desmaterializar-se) uma importante questão sobre direitos autorais, plágio e noção de obra. Em Journal d’un album, Philippe Dupuis e Charles Berberian (1994), autores da série de formato tradicional Monsieur Jean, discorrem sobre acontecimentos pessoais que poderiam vir a interferir durante a produção do terceiro volume da série. Monsieur Jean é um personagem atípico das histórias em quadrinhos posto que ele envelhece e adquire responsabilidades, contemporâneo ao amadurecimento de seus próprios autores. A própria busca por um editor do livro e a convivência entre os dois autores, a divisão de tarefas, são apresentadas em forma de duas autobiografias produzidas separadamente e que compõem o todo do livro. São interrogações pessoais que também fazem uma reflexão sobre o processo de criação de uma história seriada. Seria a objetivação do código, em que o cotidiano dos autores reflete a forma em que a história se dá. Já o Journal de Fabrice Neaud também serve ao autor como ensaio de práticas do desenho e interrogações sobre a linguagem. Ao longo de seu diário, ele evolui para formas diferentes, afinando seu estilo ou fazendo referências estilísticas, assim como questiona a própria função de sua narrativa, a ética de seu relato. Não seria apenas um diário, mas seu Bildungscomics, no sentido de experiência pessoal de criação de uma forma sua, ao mesmo tempo em que investiga a própria história.

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galeria de arte, apresenta fatos vividos por Mahler. A ideia inicial dos responsáveis da galeria austríaca – país de seu autor – seria a de reunir textos teóricos com uma análise de alguns trabalhos de Mahler, que desconhece qualquer texto teoricizante sobre si, e decide propor tal obra para questionar – ou insultar, como diz o subtítulo-etiqueta do livro – a crítica. A narrativa em quadrinhos é precedida por um texto, o prefácio em que ele explica seu posicionamento ao longo do livro, como a ideia de que

Esse livro poderia despertar a impressão – injustificada – de que estou excessivamente preocupado com a questão: ‘Seria a História em Quadrinhos uma Arte?’. É uma questão cuja resposta me é realmente indiferente. Ela oferece não obstante algumas belas ocasiões de manejar o insulto e a difamação às quais me agarrei com prazer.264

A primeira página desenhada adverte, no entanto, tratar-se de “insultos dirigidos, casos autênticos de difamação e de generalizações abusivas”, mas nada mais que a verdade, nenhum fato – ou palavra – inventado. Cabe ao leitor aceitar o pacto. Mahler se insere na tradição do desenho de humor como um Reiser, Wilhem, Henfil, Millôr, dos traços finos e da redução da caricatura ao mínimo de traços possíveis. As noções em jogo sobre o papel do autor em quadrinhos, em seus dois livros, são feitos através de “fatos” (ou parábolas) que permitem uma reflexão sobre tais noções. Por exemplo, a relação entre original e cópia é ilustrada por uma história ocorrida em sua infância, quando, ao tentar imitar a assinatura de um célebre desportista austríaco, perde o “original” entre suas “imitações”, tomando por fim a decisão de guardar apenas um exemplar entre todos os papeizinhos sobre sua mesa, indiferentemente se era o original ou não. Ele evoca as discussões em torno da noção de arte como um objeto original e sobre o caráter manufaturado das histórias em quadrinhos cuja reprodutibilidade seria sua condição de existência que retira dela a possibilidade de concorrer a um status de arte. Como Mahler comenta em seu prefácio, ele é indiferente a essa questão, mas ela se torna importante em dado momento de sua carreira quando é preciso justificar-se enquanto artista por uma questão fiscal. A Madame Goldgruber do título, funcionária do fisco para quem ele precisa justificar sua profissão de artista, o que corresponderia a uma redução de vinte para dez por cento sua contribuição fiscal. Para a dita Goldgruber, um autor de história em quadrinhos não seria classificado como artista, mas como publicitário ou grafista, ao que Mahler retruca ter passado por uma comissão que o teria declarado artista – na verdade, artesão, o que ainda não

264 “Ce livre pourrait éveiller l’impression – injustifiée – que je suis excessivement préoccupé par la question : ‘La Bande Dessinée est-elle de l’Art ?’. C’est une question dont la réponse m’est royalement indifférente. Elle offre néanmoins quelques belles occasions de manier l’insulte et la diffamation dont je me suis saisi avec plaisir.” MAHLER. L'Art selon Madame Goldgruber. Tradução: Waltraud SPOHR. Paris: L'Association, 2005.

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poderia ser considerado artista pelo fisco. Para convencê-la – e convencer a Receita – de que suas histórias em quadrinhos seriam um produto industrial assim como “arte”, ele recorre a provas de participações em exposições e deve por fim apresentar-lhe seu próprio trabalho. O “parâmetro” para Goldgruber seria a tomada de distância entre o trabalho de Mahler e os Smurfs ou Mickey, a não conformidade com um padrão conhecido a convence de ser “arte” – e, sobretudo, por não ser um produto que “dê dinheiro”. O segundo livro, agora sem Madame Goldgruber,265 reúne encontros ao longo de festivais de quadrinhos, e conversas com autores e leitores também permite novas reflexões. A ideia geral de Mahler é do isolamento do autor de quadrinhos que ele compara a um autor de animações polonês: após anos trabalhando para realizar um curta-metragem animado de minutos, seu fazer encontra ressonância em um público muito restrito, e acaba fadado ao gueto dos amantes daquele meio artístico já em si muito limitado. A série sobre com ou sem Madame Goldbruger de Mahler, apesar de se posicionar como apenas ilustrações de fatos vividos pelo autor, não deixa de permitir uma reflexão sobre a questão do autor (jurídica, artística) de histórias em quadrinhos. E, se quadrinho é arte, de que arte estaríamos falando? Sem resolver essas questões, Mahler deixa indicações zombeteiras sobre o fetichismo com que elas são tratadas pelo microverso dos quadrinhos. Já em Désœuvré, de Lewis Trondheim, é o “branco” da página, a questão da página em branco, o branco antes da escrita, é investigado por ele através de entrevistas com diversos autores que também dependem de entregar suas histórias em prazos determinados por um cronograma editorial para a sobrevivência. Seria um ensaio em quadrinhos sobre o branco do artista, escrito no estilo autobiográfico de Trondheim, que desenha a si e seus personagens como pássaros, cães e outros bichos. Seu título se traduz como “desocupado” como por “ocioso”, e não poderia deixar de lê-lo pela decomposição do prefixo “des” e do radical “œuvre” (obra). “Des” significando negação, ou privação, podemos ver como uma referência a privar-se da obra, do trabalho. Seu livro começa com um “branco”. Obrigado por questões de contrato a elaborar um novo livro para sua série Les Formidables Aventures de Lapinot, o artista vê-se confrontado a um desgosto pela série, e começa a conversar com outros autores para verificar como outros autores teriam vivido a produção continuada. Trondheim já havia feito uma autobiografia falando de seus pares,266 nesta história ele investiga de fato entrevistando diferente autores sobre sua relação com les troubles

265 MAHLER. L'Art sans Madame Goldgruber: saillies. Tradução: Waltraud SPOHR. Paris: L'Association, 2008. 266TRONDHEIM, Lewis. Approximativement. Paris: Cornélius, 1995. Um questionamento de Trondheim sobre o meio autoral, contando da mesma forma fatos vividos por ele.

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das histórias. Sua busca o faz elaborar a teoria de que o fato de repetir os mesmos personagens e elementos durante anos seriam de extremo desgaste para o autor. “Repetição de personagem, de código, de amarras narrativas, de tiques gráficos, o terreno ideal para todas as formas de esclerose”: fatores que fazem o autor de BD envelhecer mal. As reflexões de Trondheim são entrecortadas por inúmeras viagens para festivais, sessões de autógrafos, encontros com produtores, editores, ações necessárias e paralelas ao trabalho do autor de quadrinhos que fazem o seu mais conhecido e até então “falecido” personagem, Lapinot lhe perguntar: “E você não faria melhor se fizesse mais álbuns em vez de multiplicar festivais?”267 A noção própria de autoria diante do mercado de quadrinhos massificado, sobre tal necessidade de se manter um ritmo de produção em larga escala em um trabalho que, apesar da possibilidade de divisão de tarefas, ainda se inicia bem artesanal.268 Em comum, todos esses autores fazem uso de biografemas e do caráter autobiográfico de suas narrativas para posicionar-se sobre o assunto em si, a história em quadrinhos. Tal recurso chega a ser recorrente nas histórias em quadrinhos, encontrando-se, inclusive, disseminado ao longo da tese de doutorado de Jean- Christophe Menu, que teoriza sobre as histórias em quadrinhos a partir de análises de seu próprio trabalho e de suas vivências como autor e editor.269 Scott McCloud, por sua vez, em seus famosos guias sobre quadrinhos, cria um personagem de si, ilustra seu lugar de trabalho, faz pequenas correções entre os dois livros, mas faz pouco uso de diálogos com seus pares.270 Apesar da “coincidência” de elementos pessoais com a de seu personagem, toda sua narrativa é ilustrativa de um preceito, o como entender quadrinhos e como fazer quadrinhos. Ele se “cola” sobre os manuais elaborados por Will Eisner, mas toda a maquete de seu livro é feita em forma de quadrinhos, com exceção dos agradecimentos. Os outros autores, apesar de optarem por desenhos que correspondem menos a um efeito de real que o desenho de McCloud – Trondheim se desenha como um pássaro, Mahler assemelha-se a um bastão de óculos–, a constância de sua personalidade, sorridente, didático, e a própria clareza do traço aproximam seu trabalho de um padrão tradicional das histórias em quadrinhos, afastado do “efeito de esboço”. Dessa forma, a grafiação de McCloud o filia a uma escola que

267 Idem. Désœuvré. Paris: L'Association, 2005. 268 Em Blanchot, désœuvrement é diferente do “oisif” do désœuvré: é quando o escritor não consegue acabar sua obra, até a morte estamos em désœuvrement. Ele relacionar o “desobrar” com a fragmentação da escrita, desestabilização, estranhamento. A espera infinita de um prolongamento. É a desnaturalização da obra a partir de um personagem, desonrar, desfazer a obra. Mostrar que ali é um texto, que aponta para o fato para ela ser uma obra de ficção. 269 MENU, op. cit., 2011. 270 MCCLOUD, op. cit., 1993 e Idem. Making comics: storytelling secrets of comics, manga and graphic novels. Nova York: Harper, 2006.

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privilegia a comunicação imediata da mensagem em detrimento de uma enunciação menos marcada pela figura de seu autor. O projeto do americano é o de teorizar sobre as histórias em quadrinhos (comics, nomenclatura americana que ele subdivide em “comics, manga e graphic novels” no subtítulo do segundo livro). Para tanto, seu autorretrato é mero recurso narrativo, a materialização de um narrador que concorre com o sujeito que enuncia e grafa o livro. E busca uma plasticidade menos estranha possível a um público leitor, apesar de experimentar com diferentes estilos a título sobretudo ilustrativo. McCloud tornou-se a principal referência em manuais de quadrinhos para autores e leigos, depois de Will Eisner, e poderia ser um dos maiores exemplos de metalinguagem para o meio. No entanto, como lembra a pesquisadora Catherine Mao, o aprofundamento teórico desvela mais intuições de um autor que um estudo metódico.

Sua concepção de história em quadrinhos é bem quimérica e suas conclusões frequentemente aproximativas, certamente em razão de seu método discutível: toda essa dança do visível e do invisível repousa de fato sobre uma indiferença profunda, bem platônica, quanto às especificidades do suporte.271

A quimera de McCloud e Eisner talvez se inicie na tentativa de ver a todo custo uma arte apenas no fato de o dispositivo ser concebido artesanalmente. Tomo partido da ideia de que a arte operaria por deslocamentos, e não seria inerente ao suporte, mas fruto tanto da história de sua produção quanto dos efeitos que seu aparato provoca no espectador, no leitor. O trabalho de Gerner se aproxima, sobretudo, com a noção de “arte conceitual” desde Duchamp, a de uma relevância maior do conceito sobre o “retiniano”. A forma em Gerner visa demonstrar um pensamento, agindo, sobretudo, no imaginário de massa (onde predomina o modelo retiniano), para tentar buscar fazer o inverso da reprodutibilidade, fazer de um material reproduzido algo “original”. Inverter a “história a contrapelo” pela prática artística, trazendo objetos de regime alográfico para constituir obras autográficas.

271 MAO, op. cit., p. 324. Morgan e Hirtz são mais incisivos, e chamam a atenção para um excesso de generalizações no livro de McCloud: “O projeto de McCloud parece logo excessivamente ambicioso, pois para ser levado a cao deveria emanar de um autor que fosse ao mesmo tempo um dotado praticante da mídia e que teria reais faculdades de abstração.” (MORGAN & HIRTZ, op. cit., p. 255). Os trechos originais, respectivamente de Mao, “Sa conception de la bande dessinée est très chimérique et ses conclusions souvent approximatives, sans doute en raison de sa méthode discutable : toute cette danse du visible et de l’invisible repose en effet sur une profonde indifférence, toute platonicienne, pour les spécificités du support.” E Morgan & Hirtz: “Le projet de McCloud apparaît donc trop ambitieux, car pour être mené à bien il devrait émaner d’un auteur qui serait à la fois un praticien doué du médium et qui aurait de réelles facultés d’abstraction.”

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De certa forma, CLBD é uma metaforização do quadrinho, uma mise en abyme que parte da bande dessinée como “objeto” de um discurso, mas que não faz dela um objeto. Os quadrinhos são postos em jogo (em abismo) pela forma mesma de sua construção, não por um personagem, sua materialidade ou por uma voz de autor. Mas tais classificações não são estanques, e muitas obras conjugam as diversas formas para realizar efeitos específicos. Há pelo menos três níveis de metalinguagem. Primeiramente, os enunciados recolhidos – de sujeitos distintos elaborando frases sobre a história em quadrinhos, avaliações ou descrições sobre a história em quadrinhos ou outras expressões (cinema, música) –, enunciados esses transcritos de uma fala ou recopiados a partir de um texto. Dois códigos, um meio (o escrito, mesmo os enunciados orais terem perdido, para nós, as suas possíveis marcas na transcrição apresentada por Gerner). Em segundo lugar, o agenciamento feito por Gerner, em que os desenhos “respondem” ao texto justaposto a eles, e a própria justaposição da página, faz com que o desenho seja um novo enunciado que avalia o texto. A leitura do desenho suplementa a do texto e vice-versa, e o choque entre as duas ordens, a montagem, permite uma dialética.

4.3 Ceci n’est plus une BD

Ao ser entrevistado sobre seu livro Contre la bande dessinée pelo um jornalista Éric Loiret do jornal francês Libération, Jochen Gerner respondeu: “É uma espécie de romance gráfico com a história em quadrinhos por personagem [C’est une sorte de roman graphique avec la bande dessinée pour personnage].”272 Tal definição, decerto irônica, pode ser verdadeira do ponto de vista da mise en abyme operada pelo autor em sua obra. Em primeiro lugar, o sintagma roman graphique, uma tradução literal francesa do termo americano graphic novel, apresenta no mínimo duas conotações possíveis de acordo, evidentemente, com sua isotopia, e tal enunciado, nada ingênuo, de Jochen Gerner, estipula, desde então, algumas considerações sobre esse nosso objeto de estudo, un petit clin d’œil em que ele interpela sua geração de autores e leitores de história em quadrinhos. É um jogo importante de palavras, pois o termo em inglês teve seu sentido esvaziado pelo uso excessivo que editoras teriam feito do mesmo, desde sua popularização, nos anos 1980, em uma tentativa de aumentar o prestígio das histórias em quadrinhos no mercado livreiro e literário, em mercados no mundo todo. A escolha editorial pelo jogo de palavras com novel, ou seja, novela, romance, com o adjetivo graphic (gráfico), seria mais interessante, nesse sentido, que o termo precedente mais

272 GERNER, op. cit., 2008 (b).

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comum, comic books.273 Optar pela tradução francesa pode ser vista como uma forma mais apropriada para abordar um possível público leitor outro, o leitor de romances (literários). Da mesma forma, o termo roman graphique e não bande dessinée delimita, desde então, o formato do livro em questão. Não será, como pede o senso comum do termo [bande dessinée], de uma história dirigida para um público infantil ou adolescente ou jovem adulto, tal a repartição do mercado em geral direciona tais obras a sessões e prateleiras específicas das livrarias ou artigos de imprensa. Ao falar roman, Gerner insinua ser esta uma obra dirigida a um público adulto, e que versará sobre uma temática “superior”. O sintagma roman graphique, assim como seu correlato em inglês, não apresenta uma definição cristalizada mas, por ser mais recente, é muito mais volátil e impactante que o termo em inglês que é facilmente assimilado pelo leitor tradicional de história em quadrinhos. Roman graphique é pedante para quem lê BD. Como autor de história em quadrinhos e artista plástico, Jochen Gerner pode ser entendido como pedante pelo simples apaixonado pela história em quadrinhos sem pretensões além do “entretenimento”. Roman graphique se quer sério, e a derrisão de Gerner começa desde o momento em que faz uso desse termo para desconstruí-lo, desordenando os conceitos e pressupostos sobre seu objeto em si. O seu humor está justamente no embaralhamento das fronteiras: há humor, mas o humor oulipiano, o humor e o prazer de jogar com a linguagem. Decerto, este é um livro que escreve as histórias em quadrinhos. Não poderia ser, no entanto, considerado um romance gráfico no sentido geral pelo qual o termo é conhecido. Em primeiro lugar, se pensarmos no stricto sensu do termo [roman], que implicaria uma narrativa (récit) contendo personagens múltiplos e uma sequência de eventos, o que não é o caso desse livro, composto de um elenco de citações diversas abarcando direta ou indiretamente o termo bande dessinée (história em quadrinhos, ou banda desenhada, em tradução literal). O romance, para Barthes, seria um grande tecido de instantâneos. Frases, fragmentos, são a origem (e a ruína) de um texto. Tecer as relações entre esses momentos, é do que trata a arte de ficcionar. Não haveria, portanto, um romance pleno de “momentos de

273 “Dando as costas para as receitas comerciais, artistas se lançam em obras mais difíceis, chamadas graphic novels (‘romances gráficos’), e que encontram um sucesso estimado nos Estados Unidos e na Europa [Tournant le dos aux recettes commerciales, des artistes se lancent dans des œuvres plus difficiles, que l'on appelle graphic novels (‘romans graphiques’), et qui rencontrent aux États-Unis et en Europe un succès d'estime]” (PETITFAUX, Dominique. “Bande dessinée.” Encyclopædia Universalis [en ligne]. http://www.universalis.fr/encyclopedie/bande-dessinee/ – acesso em 12 de novembro de 2014). “Comics” é outro termo esvaziado de sentido ao definir as história em quadrinhos, pois não seria mais algo cômico, mas sim essa linguagem reunindo imagem e texto.

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verdade”, mas um grande patchwork em que as referências se cruzam. Não sendo, portanto, um álbum no sentido tradicional do mercado de histórias em quadrinhos, Contre la bande dessinée é um Álbum por não apresentar um formato contínuo como pretenderia o Livro, sendo uma coletânea, não do pensamento gerado por seu autor, mas de coisas “lidas e ouvidas”. Ao mesmo tempo, tal coletânea se apresenta como um todo arquitetado, em um Livro. É em forma de um inventário que Jochen Gerner realiza seu livro, a partir dos tópicos recorrentes nas discussões sobre histórias em quadrinhos, recebendo, cada tópico, um capítulo específico. Mas ele empreende esse desejo terno do romance barthesiano, da não imposição sobre seu objeto de escrita. O Romance, segundo apresentou em seu curso,274 seria sempre impulsionado por um amor, escrito para perpetuá-lo. Essa tentação romanesca de Barthes seria um elogio ao Amor de Ágape, que abraçaria o mundo, querendo dizer com Romance toda a nova prática de escritura. Em vez de desenhar critérios que fariam um texto ser considerado Romance, Barthes dá a ele três missões: “1. dizer aquilo que ele ama; 2. Representar uma ordem afetiva; 3. Não fazer pressões sobre o outro”.275 A vontade de escrever um romance, para Barthes, envolveria essa ternura: não se impor ao objeto de desejo – aquele que quero escrever –, escrever o objeto de desejo. Em CLBD, a crítica não está em uma ordem discursiva em que se sobrepõe ao objeto. Escreve-se contre de encontro, junto, e não sobre as histórias em quadrinhos ou sua crítica. Há uma ética afetuosa em não direcionar o leitor a um discurso único, mas oferecer-lhe a vertigem (mise en abyme) de observar esses discursos. Esses vazios, essas reiterações, essa escrita por fragmentos, escamoteia o discurso que se quer assertivo, único, centralizador – comum à crítica, arauto de uma verdade. A construção da página atua de forma constelar, em que citações ou comentários de um narrador/autor, acompanhados do desenho icônico e irônico de Gerner, de forma a emular uma espécie de enciclopédia ilustrada dos quadrinhos. Aparentemente um trabalho lúdico, sua distribuição da página cria um efeito hermético, por conta da enorme quantidade de referências pictóricas ou textuais assim como pelo princípio da não-linearidade. O efeito que essa montagem nos oferece é a de um mosaico: como em uma manchete de jornal, a justaposição de elementos acaba por forjar relações, motivadas e arbitrárias.

274 BARTHES, op. cit., 2005. 275 COMPAGNON, A. “Le Roman de Roland Barthes.” Revue des Sciences Humaines, dezembro de 2002, Le Livre Imaginaire ed..

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A segunda parte da sua “definição” da obra, diz ter a própria bande dessinée como personagem. Gerner coloca em cena a história em quadrinhos ela mesma, seja como objeto cultural, de consumo de massas, seu formato e tentativas de demarcação de territórios entre quadrinhos e outras formas de linguagem – ou de arte. Ao mesmo tempo, ao elencar tais citações e a contraposição de seu próprio desenho, ele elabora uma construção crítica que, desde o seu projeto, tenta reagir ao que o senso comum – ou críticos e artistas, devidamente citados – pensam sobre e em torno da história em quadrinhos.

Quando se diz que tal peça de teatro é um tanto história em quadrinhos, é raramente para dizer que a peça de teatro é interessante. E logo, eu citava todas essas frases, colocando-as uma ao lado das outras em uma determinada ordem, e respondendo a tais frases unicamente pela via do desenho, fazendo um desenho que tentasse ilustrar o que era dito naquela frase ali, eu respondia finalmente ao ataque, à crítica, à ironia, com uma nova ironia que era aquela do desenho. É pela via da história em quadrinhos que eu tentava responder a esse ataque, mas sem sustentar eu mesmo um discurso. Eu tento, colocando as imagens umas ao lado das outras, de sustentar um discurso.276

Há uma paródia de uma crítica pela via do comentário, um trabalho crítico pela via da mise en forme de um conceito, no sentido artístico do termo. Em CLBD, seu objeto é o discurso – melhor dizendo, os discursos: aqueles denotados pela citação, um discurso conotado entre as linhas, no traço e na justaposição desses elementos. Discurso este complexo, que se dá pelas possíveis combinações entre desenho e texto, formando pictogramas, rébus, charadas icônico-verbais. Como escreveram Secardin e Bugari, “Frequentemente em Gerner, a restrição formal engaja um crítica política.” A forma com que ele trata o seu objeto – sua produção de um objeto estético – é relação comparável a de pesquisador ante seu objeto de estudo, um “close-reading” gráfico (como não pensar em seu microscópio?). Ele trabalha sobre documentos selecionados, com uma “preocupação semiótica,” 277 mas é pela via do jogo conceitual e oubapiano que essa semiótica (crítica) se opera.

276 “Quand on dit que telle pièce de théâtre, c’est de la bande dessinée, c’est rarement pour dire que la pièce de théâtre est intéressante. Et donc, je citais toutes ces phrases, et en les mettant les unes à côté des autres dans un certain ordre, et en répondant à ces phrases uniquement par le biais du dessin, en faisant un dessin qui essayait d’illustrer ce qui était dit dans cette phrase-là, je répondais finalement à l’attaque, à la critique, à l’ironie, avec une nouvelle ironie qui était celle du dessin. C’est par le biais de la bande dessinée que j’essayais de répondre à cette attaque, mais sans moi-même tenir un discours. J’essaye, en mettant des images les unes à côté des autres, de tenir un discours.” GERNER, op. cit., 2012. 277 GERNER, Jochen, entrevista feita por Adrien BUGARI e Olivier SÉCARDIN. La possibilité du re- trait (Janeiro-Março de 2010), p. 147.

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Em entrevista ao jornalista e escritor Christian Rosset,278 Gerner explicita que o título do livro é tomado de empréstimo do Contre Sainte Beuve de Proust, obra que precedeu e acompanhou sua Recherche, tido como primeiro livro de crítica à crítica. “Eu me aperto bem junto à história em quadrinhos, quase dentro de seu ventre. Logo, falo de uma topografia. Estou no interior e no exterior. [Je me serre tout Contre la bande dessinée, dans son ventre presque. Je parle donc bien de topographie. Je suis à l’extérieur et à l’intérieur].” Contre la bande dessinée é, portanto, de uma obra escrita que tange um discurso – ou discursos – crítico. Como escreveu o teórico italiano Cesare Garboli sobre tal ofício, “é óbvio que toda manifestação de engenho crítico tem algo de parasitário e vampiresco; muito menos óbvia é, no entanto, a série de perguntas que nascem da relatividade de cada interesse crítico no confronto com um texto”.279 Explicando seu trabalho, Garboli confessa seu prazer de tocar o texto do outro, desmontá-lo, revolvê-lo, sentir “o pulso que ainda bate, o seu hálito de organismo ainda vivo e carnal, mas só pra ver como se articula, como respira”. Se fosse crítica o que ele exercitava, ela nascia de sua necessidade de “escrutar”, nas palavras do próprio Garboli, o texto do outro, como um enamorado escruta o corpo do amado. Roland Barthes também se enamorara da literatura, comparando muitas vezes o “corpo do texto” ao “corpo do amado”.280 Além do pastiche de Proust no título e no conceito de livro, sua estrutura é feita de enxertos de outros textos, formando um texto em que todos seus intertextos estão aparentes. Ao fazer uso da própria matéria que critica, a história em quadrinhos, como suporte de sua crítica, ele estabelece uma metalinguagem, um metaquadrinho crítico que não cessa de remeter-se a sua própria materialidade. Ele cria, dessa forma, uma certa dissonância sobre o uso corrente da história em quadrinhos, compreendidas no senso comum como leitura fácil de caráter aventuresco, e essa dissonância também aproxima seus quadrinhos de um projeto literário. Primeiramente, a forma do livro, remete às prateleiras literárias. Em segundo lugar, sua divisão em capítulos imita aquela de uma obra textual. Em terceiro lugar, é a própria textura da página que evoca mais a leitura de um texto que a de um álbum de

278 Também presente na revista e na coleção Éprouvette de forma ativa (notoriamente pelos livros Avis d’orage en fin de journée : hantologie, de 2007 e Avis d’orage dans la nuit : fictions, de 2011, este último acompanhado de CD com gravações de entrevistas realizadas pelo mesmo em seu programa radiofônico com autores de histórias em quadrinhos). 279 GARBOLI, Cesare. Pianura proibita. Milão: Adelphi, 2002, p. 10. 280 Ao escrever sobre o fala do apaixonado, em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes descreve a tarefa do amante de forma bem semelhante ao que Cesare Garboli faz ao falar do texto: “vasculho o corpo do outro, como se quisesse ver o que tem dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (me pareço com esses garotos que desmontam um despertador para saber o que é tempo)” (BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução: Hortênsia DOS SANTOS. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001).

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quadrinhos. Seu livro se constitui como um objeto de encontro e ao encontro (contre e tout contre), a definição de Gerner sobre o livro (pelo título) já é em si autorreferente. Ele elabora escreve em segundo (ou terceiro) grau (s) sobre a história em quadrinhos para investigar a própria linguagem: se os quadrinhos podem ser uma ciência (um objeto que dá a conhecer, que cria efeitos epistemológicos), também tem que fazer do processo o seu único personagem.

CLBD é um heteróclito em termos de publicação de histórias em quadrinhos. Primeiramente, porque desde sua capa quanto à distribuição de textos e imagens, não há nele uma narrativa do modo habitual das histórias em quadrinhos, sendo difícil apreender em suas páginas uma sequência sequer. Em vez do modelo em quadros que se sucedem em linha reta, obedecendo à leitura da esquerda para a direita, o que se vê é uma leitura que funciona também da direita para a esquerda mas que também requer um retorno para leitura completa do sentido do texto e da imagem, suplementares uns aos outros. Em segundo lugar, é uma obra que pretende analisar o seu próprio código, as histórias em quadrinhos, na forma de histórias em quadrinhos – embora a autorreferencialidade ser fato recorrente em matéria de quadrinhos, talvez seja um raro livro em que todo ele tenha como objeto sua linguagem e fazendo uso de recursos específicos dos quadrinhos. O livro também foi o objeto de duas exposições: a primeira, na galeria e livraria Le Mont-en-l’air, as etapas de sua produção eram aparentes ao público-espectador-leitor. A segunda, motivada pelo livro, foi imaginada pelo artista plástico e também autor de histórias em quadrinhos Philippe Dupuy. Reuniram artistas para criar instalações a partir de estranhas histórias em quadrinhos, na exposição “Ceci n’est pas une bande dessinée”, parte do festival organizado pelo canal francês Arte, “Pulp festival”. 281 Cada um dos livros ocupava o nicho (ou box) da antiga estrebaria de uma fazenda. CLBD está em púlpito na primeira “casa” da estrebaria, cuja disposição metaforiza uma tira, cada nicho correspondendo a uma casa, cada casa contendo um livro exposto. CLBD ocupava o centro da “casa”, a câmara obscura, iluminado por uma pequena luminária, posicionada sobre o livro, aberto, que pode ser folheado por quem passa. O espaço da sala, vazio, é ocupado apenas pela voz do jornalista Antoine Guillot, que também é crítico de cinema e de história em quadrinhos. Guillot trabalha sobretudo para a rádio, e sua voz clara tem uma entonação mais de um professor, didático. É possível

281 “Bande dessinée, installations, spectacles”, na Ferme du Buisson – scène nationale de Marne-la- Vallée, entre 15 e 17 de março de 2014. Artistas “réinventés”: David B., Ludovic Debeurme, Jochen Gerner, Jason, Frederik Peeters, Dash Shaw.

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escutar sua voz ao logo de todo o corredor que alinha as outras “casas”. Mesmo que, duas casas após a primeira, há a voz da também autora e artista plástica Fanny Michaëlis, que canta a música tema do livro Les Trois fils, de Ludovic Debeurme – livro transformado em animação musical pelos dois artistas. Se Michaëlis nos toca por sua voz triste, Guillot nos “ensina” alguma coisa, tomando o corredor até a saída. O que ele diz? Ele nos recita o que seria a história em quadrinhos, segundo as frases recenseadas por Gerner. Mas se a obra de Gerner há contre-champs e afirmações diversas, ao final da exposição vê-se apenas como a história em quadrinhos inspira trabalhos de outros artistas plásticos. Os livros expostos são de fato perturbadores (L’Ascension du Haut Mal, por exemplo, cujas páginas recobrem toda uma casa, iluminada por luz negra). A exposição adapta as obras, mas não seria os livros em si que seriam os pontos de fronteira entre a história em quadrinhos e as outras artes? A voz de Guillot, irônica voz de autoridade que relê (cita) o texto de CLBD. Aquelas vozes (das citações absurdas) continuam ecoando pela exposição que punha em cheque a noção de quadrinhos. Ao passar pelo corredor e deparar-se em frente a cada nicho, aquela voz continua assombrando os outros livros que ali estão. Malgrado a vontade desconstrutora da exposição, parece difícil escapar a tais vozes. A referência à Magritte não é de forma alguma ingênua. Ela é baliza essa forma discursiva da exposição e, principalmente, do modo operatório de CLBD, o de voltar-se, constantemente, para a sua materialidade. Uma bande dessinée, um romance gráfico, um álbum de colagens, um inventário de citações, um todo organizado e distribuído seguindo capítulos “temáticos”. Não há uma única frase em todo o livro (afora os créditos) elaborada pelo seu autor: ele as colheu e as arranjou, mesclando-as a seu desenho de mão própria. Como afirmou Jean-Christophe Menu, editor e provavelmente um dos elaboradores do projeto editorial e gráfico, Contre la bande dessinée seria uma obra em que tal metalinguagem é feita justamente pela dialética entre texto e desenho, se inserindo com perfeição no projeto, em que a “matéria prima” discute a si mesma:

O que eu adoro em Contre la bande dessinée, é o fato de ser mesmo uma forma de discorrer com a matéria prima, diretamente. Não há a disposição de um discurso em um outro plano – quer dizer, a história em quadrinhos como objeto, sendo exportada para o terreno do texto para ser analisada, mas a análise de faz diretamente com a linguagem concernida, com a história em quadrinhos. Contre la bande dessinée de Jochen, por isso, é exemplar. Ainda é uma abordagem marginal, mas em todo caso pode-se constatar, e penso que isso será desenvolvido nos próximos anos, a história em quadrinhos pode muito bem se analisar e se teorizar por ela mesma. Não é preciso recorrer ao texto para

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desembocar em uma análise pertinente, pode-se permanecer em seu próprio domínio. E isso, creio que é uma ideia bem nova, e que traz uma nova prova da força dessa linguagem.282

Embora Menu use o termo “marginal” de uma forma reticente, é esse certo desengajamento nas evidências, um engajamento pelas margens, que são, para mim, muito mais desconstrutores do que um discurso guerrilheiro como é hábito do próprio Menu. Em vez de impor-nos uma tese, CLBD permite a esses discursos uma reaparição sem um direcionamento, jogando com a multiplicada combinatória de seus sentidos (entre texto e textos, entre texto e desenho...). Gerner discute a crítica junto a ela, colado a ela, sem se impor, como na vontade barthesiana da escrita de um romance de escrever o objeto de desejo, não sobre ele, usando como método a restrição oubapiana.

282 “Ce que j’adore dans le Contre la bande dessinée, c’est qu’effectivement c’est une façon de discourir avec la matière première, directement. Il n’y a pas de mise en discours sur un autre plan — c’est-à-dire la bande dessinée comme objet, étant exportée sur le terrain du texte pour être analysée, mais l’analyse se fait directement avec le langage concerné, avec la bande dessinée. Contre la bande dessinée de Jochen, pour ça, est exemplaire. C’est quand même encore une approche un peu marginale, mais en tous cas ce que l’on peut constater, et je pense que ça se développera dans les années qui viennent, la bande dessinée peut très bien s’analyser et se théoriser par elle-même. Pas besoin d’avoir recours au texte pour déboucher sur une analyse pertinente, on peut rester dans le domaine propre. Et ça, je crois que c’est une idée assez neuve, et qui apporte une nouvelle preuve de la force de ce langage.” MENU, op. cit., 2009.

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Figura 65: STARCK, Samuel. Trecho de Etimologia de “Chef”283

283 Em sua série “Etimologias”, o artista plástico e quadrinista francês Samuel Starck estuda etimologias de palavras, criando enormes mapas lexicográficos e dando visualidade à esses laços.

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5 A articulação de imagens solidárias

5.1 A lista e o ready-made

Mudança

Deixar o apartamento. Esvaziar o local. Levantar o acampamento. Deixar vazio. Limpar o chão. Inventariar arrumar classificar selecionar Eliminar descartar sucatear Quebrar Queimar Descer descerrar despregar descolar desparafusar Desprender Desligar destacar cortar tirar desmontar dobrar Cortar Enrolar Empacotar embalar amarrar entrelaçar empilhar Juntar entulhar atar envolver proteger recobrir envelopar prender Tirar carregar levantar Varrer Fechar Partir. (PEREC, Espèces d'espaces, pp. 49-50)

Nada mais simples que uma lista, nada mais anódino, nada menos problemático. Lista-se para nada esquecer, joga-se fora a lista após o uso, eis tudo. (SÈVE, Bernard. De Haut en bas: philosophie des listes. Paris: Seuil, 2010, p. 7).

Há um fascínio da lista que une de forma primordial oulipianos e oubapianos. Puro amor pela lista, que os faz reunirem restrições, inventariá-las, classificá-las. CLBD é um perfeito exemplo de inventário ou uma simples lista. Pela via da lista, do catálogo, Gerner reúne os documentos desse discurso conflitante sobre a história em quadrinhos. Há, portanto, primeiramente, um recenseamento e uma posterior distribuição. Não há sequer descrições; os desenhos que “ilustram” também são unidades de uma lista. A cada página, podemos observar ou a lista, ou um ar de lista, por uma ausência de um encadeamento sindético entre os elementos, seja no uso de conjunções (da esfera linguística) ou de elementos pictóricos próprios à história em quadrinhos, uma distribuição indicativa de que haveria uma sequência de elementos. Há a justaposição, mas sem uma indicação visual de sequência.

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Figura 66: CLBD, p. 55

Em CLBD, as páginas 55 (Figura 66) a 57 são dominadas por uma série de onomatopeias em grafias variadas, seguindo um padrão mais espesso, ora “vazado” ora preenchido de tinta preta, alguns “PLAK PLAK PLAK” escritos com apenas um traço fino são exceção a essa regra. Todas as onomatopeias são acompanhadas de um código formado por números e letras, 01d, 01i, 15j e foram precedidas do título em caixa alta e sublinhado [LE GRAND DÉFI]. Na página seguinte a esta série de onomatopeias, dois automóveis de corrida ilustram uma citação do álbum Le Grand défi, parte da série em quadrinhos “Les exploits de Michel Vaillant”, por Jean Graton. Michel Vaillant encarna o arquétipo do “bom moço”, herói de uma série de aventuras diversas. Apesar de seu autor ser francês, o rosto quadrado dos personagens e a paleta de cores se aproximam do estilo comics americano da primeira metade do século XX (muito semelhante aos Action Comics, por exemplo). O álbum em questão apresenta um Vaillant participando de uma competição de carros, e são as onomatopeias denotando o barulho do motor, em seu aumento de velocidade, freadas e problemas com o carro que são inventariadas por Gerner em sua lista.

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Figura 67: GRATON, Jean. Le Grand Défi

Pode-se identificar a localização das onomatopeias pelo número da página anotado por Gerner. A letra indica a ordem dos elementos na página. O método, próprio para os trabalhos preparatórios de Jochen Gerner, releva o elemento mínimo que ele pretende identificar, seja o quadro, recitativo (balão ou quadro de texto) ou personagens. No caso, a letra indicará o quadro em que tal onomatopeia está localizada. Na página 56, por exemplo, observa-se que há dois elementos em um único quadro (21j). O inventário demonstra como o recurso à onomatopeia é um elemento recorrente da história, um recurso estilístico de Graton para remeter ao contexto de competições automobilísticas. A catalogação, tal como apresentada em CLBD, é um estudo quantitativo das onomatopeias e não deixa de criar um efeito estético que mescla o premeditado do inventário e do caótico pelo desalinhamento entre o formato, tamanho e distribuição das letras “sonoras”. As próprias onomatopeias, materialização de ruídos, são uma tentativa de “organizar o caos” ou dar forma ao rumor. Seu elenco também representa uma quebra na prática da escrita horizontalizada seguida por Gerner ao longo de seu livro. Ao redesenhar os efeitos de Graton, as letras se apresentam em linhas curvas, sinuosas. O princípio da enumeração é o signo de abundância.284 O recurso estilístico de Graton também pode ser desdobrado em uma leitura ideológica de seus personagens. Pela extensão das páginas (01 a 60), a lista demonstra como o álbum de Jean Graton abusa de tal recurso como signo de força – e coragem – dos personagens do livro. O estudo de Gerner aponta que, por detrás desse personagem “bom caráter”, há uma sutil exaltação da violência (expressão maior da força), e Gerner nos direciona a essa leitura por inserir tal estudo no capítulo “Sexe et Violence”. Assim,

284 Cf. ECO, Umberto. Vertige de la liste. Paris: Flammarion, 2009.

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ao enumerar seus elementos mais frequentes, ele relê o álbum de Graton pelo seu sintoma. Para o pesquisador francês Bernard Sève, a lista é um objeto essencialmente gráfico, que se inicia acima e segue para baixo. “A lista exclui a palavra, no sentido em que ela não é feita para ser dita ou falada [...] Ela é essencialmente gráfica e muda.”285 Em seu livro De haut en bas: la philosophie de la liste, Sève parte dos estudos de Nelson Goody sobre listas em antropologia, e as relaciona ao início das civilizações. Ele apresenta uma categorização das listas.

[...] a lista é a própria marca dos primórdios de uma civilização de escrita. Mas [...] a lista está para o lado da simples grafia, do registro, não do estilo. Ela serve a anotar dados [...] – nada mais. E, no entanto, desde o Antigo Testamento ou a Ilíada e a Odisseia, a literatura, no sentido mais amplo do termo, regorjeia listas.” 286

Típica do manifesto, das poéticas de vanguarda por ser um “gênero segregador e de proclamação, a lista permite uma repartição concentrada de ideias e de pessoas rejeitadas ou aprovadas.” 287 Mas as listas de CLBD não proclamam, nem segregam. Por outro lado, também é uma anamnese – reunião dos sintomas, não a busca platônica por uma verdade latente – para estudar os males da histeria em quadrinhos. A lista, no manifesto, também “sugere, além disso, uma sintomatologia da crise.” 288 Toda e qualquer possibilidade de hierarquia é anarquizada pela forma da lista. O objeto primário da lista é a análise da memória, unindo duas “tentações contraditórias; a primeira de TUDO recensear, a segunda de esquecer, mesmo assim, alguma coisa; a primeira gostaria de encerrar definitivamente a questão, a segunda a deixa aberta.”289

Ela coleta sem classificar; ela admite um plano comum não- discriminatório em que as realidades abatidas pelo desdém da ciência ou o desprezo da moral se avizinham das mais nobres. [...] Ela remonta a uma estética da justaposição e do curto-circuito, coloca em tensão “magnética” os elementos que as separa. Ela abriga uma rede

285 “La liste exclut la parole, au sens où elle n’est pas faite pour être dite ou parlée […] Elle est essentiellement graphique et muette.” SÈVE, op. cit., p. 85. 286 “[…] la liste est la marque propre des débuts d’une civilisation de l’écriture. Mais […] la liste est du côté de la simple graphie, de l’enregistrement, non du style. Elle sert à noter des données […] – rien de plus. Et pourtant, depuis l’Ancien Testament ou l’Iliade et l’Odysée, la littérature, au sens le plus étendu du terme, regorge de listes.” Ibidem, p. 105. 287 MOHS, Johanne. “De l’art à la vie – mise en liste.” In: MILCENT-LAWSON, Sophie; LECOLLE, Michelle e MICHEL, Raymond (org.). Liste et effet liste en littérature, 129-145. Paris: Classiques Garnier, 2013, p. 140. 288 Ibidem, p. 140. 289 SÈVE, op. cit., p. 8.

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estocástica de interações e demanda, mais que qualquer outra forma, de ler entre as linhas.290

Sève, mencionando a Vertigem da Lista de Umberto Eco, comenta como a lista tem o poder de narrar o indizível, aquilo que não pode ser descrito. Para Eco, a lista aponta sempre para um infinito, saindo do modelo de narrativa circular, fechada (em bouclier) em que a acumulação de fatos pode demonstrar abundância. O livro de Eco, por sinal, é um belo catálogo de listas na literatura e nas artes, desde a antiguidade, um inventário não exaustivo dessas listas, e catálogo para uma exposição realizada no Louvre, curada por ele. A lista também traz um efeito de segurança: sua ordem é arbitrária, não é preciso encadear as conexões lógicas. O jogo do desejo enumerando sem saber em nome de quê; pura parataxe, ela “neutraliza e nivela os elementos da cultura que ela trata como dados indistintos.”291 O ato de enumerar aproximaria vida e arte, segundo os princípios definidos pelas vanguardas: da analogia, da acumulação e da simultaneidade; todos esses fatores fazem parte do ato de listar. Ela participa, por um lado, da estética da profusão por apontar para o infinito, porém a forma econômica de sua justaposição participa de um desejo minimalista do discurso – do procedimento menos, já mencionado.292 As conexões são oferecidas ou embaralhadas pela própria disposição da lista, elíptica por excelência. Ela convida ao jogo: quais as regras que compõem tal lista? Como ela se organiza, quem é o intruso? Como ela não é hierárquica, a lista apresenta seus elementos de forma simultânea. Uma cronologia, um abecedário, uma topografia são apenas formas de ordenar as listas de forma arbitrária, mas não cria hierarquias entre seus itens. O próprio ato de listar é significativo, pois desobedece as ordens discursivas que demandam organizações sintagmáticas (sindéticas), e fragmenta a aparente naturalidade dessas organizações. Como ele explica:

290 “Elle collecte sans classer ; elle admet un plan commun non-discriminatoire où les réalités frappées par le dédain de la science ou le mépris de la morale voisinent avec les plus nobles. […] Elle relève d’une esthétique de la juxtaposition et du court-circuit, met sous tension “magnétique” les éléments qu’elle sépare. Elle abrite un réseau stochastique d’interactions et demande, plus que toute autre forme, de lire entre les lignes.” KLEIBER, Pierre-Henri. “Sur la liste surréaliste.” In: MILCENT-LAWSON, Sophie; LECOLLE, Michelle e MICHEL, Raymond (org.). Op. cit, 57-71. P. 70. 291 Ibidem, sobre Bouvard et Pécuchet, p. 65. 292 A lista “por excesso” nasce com Rabelais – diferentemente de Bosch, que tenta enumerar os vícios, recensear para apresentar, o efeito da lista rabelairiana é o desenho da lista pela lista. Haveria, portanto, essas duas forças correntes na lista, a da enumeração caótica versus a liminar. Desde Joyce e Borges, há o uso da lista de “dire par excedent, par hybris et gourmandise de la parole, par un gai savoir (rarement obsessionnel) du pluriel et de l’illimité” (Cf. ECO, op. cit., 2009, p. 327).

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Penso que o simples fato de fazer listas é suficientemente significativo para dizer coisas [...]. Ora, uma página de uma história em quadrinhos é um pouquinho como uma lista, são quadros, desenhos, uns ao lado dos outros; logo, vai bem com essa forma de registrar, a história em quadrinhos cai bem com a enumeração. E depois, é possível fazer páginas com quadros, e fazer pequenas imagens umas ao lado das outras fora dos quadros, há muitas maneiras de representações possíveis, como as onomatopeias, para Le Grand Défi…293

Além de impedir qualquer possibilidade de hierarquia, a lista destitui seu próprio autor. “A lista poderia ser então assim definida: um texto de quem o autor ou produtor se retirou. [...] Um demônio inteligente poderia tê-lo escrito em meu lugar; a lista é um simples estudo de campo”294 Por ser um inventário, repertório, a lista obedece apenas ao conceito que a determina: coletar isto ou aquilo, e o idealizador (quem teve a vontade ou necessidade da lista) é ausentado e isentado daquilo que reúne. Por isso a lista é um instrumento analítico por excelência; para voltar à anamnese e ao campo médico, podemos: listar sintomas, fases de uma doença, enumerar causas, sistematizar o tratamento. O corpo do autor, de Auctor (o criador, aquele que assina), torna-se apenas mais um instrumento (scribens), ao mesmo nível do papel, da caneta e dos itens que observa (fisicamente ou mentalmente) e coleta em sua lista. A dinâmica que a lista proporciona atravessa toda a história da arte, notoriamente nas vanguardas do século XX, cuja expressão maior poderia ser o procedimento do assemblage, “um paradoxo crucial para entender a arte moderna, dispersão e rompimento podem mesmo ser inseparáveis da coesão e da unidade. Física e metafisicamente, assemblage é o maior produto do modo de justaposição iniciado antes de 1900.295 O objeto produzido por assemblage continua a manter os laços com o que foi, sendo apenas deslocado, recomposto, em uma transfiguração do cotidiano e reproduzível a um momento singular.296 Em comum entre a lista e o assemblage, termos certa disposição arbitrária e, na literatura, tal disposição também corrobora a criar um efeito rítmico; consequentemente, um estranhamento. A lista não tem começo nem fim, marcando sua visão antiidealista

293 Entrevista, p. 264. 294 “La liste pourrait donc être ainsi définie : un texte dont l’auteur ou le producteur s’est retiré. […] Un démon intelligent aurait pu l’écrire à ma place ; la liste est un simple relevé de terrain.” SÈVE, op. cit., pp. 88-89. 295 “... a paradox crucial to the understanding of modern art, dispersion and disruption can even be inseparable from cohesion and unity. Physically and metaphysically, assemblage is the ultimate outcome of the mode of juxtaposition initiated before 1900.” SEITZ, William C. The Art of Assemblage. Nova York: The Museum of Modern Art, New York/Doubleday and Company, 1961, p. 39. 296 “Le terme assemblage recouvre deux idées clés. Premièrement, même si la juxtaposition de certaines images et objets produits de l’art, ces images et objets ne perdent jamais totalement leur lien avec le monde quotidien et ordinaire dont ils sont issus. Deuxièmement, ce rapport au quotidien, pourvu qu’il ne suscite aucune honte, ouvre la foi à l’utilisation d’un large éventail de matériaux et de techniques jamais auparavant associés à la création artistique.” ARCHER, op. cit., p. 12.

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por excelência. Gera-se efeitos de fim e de começo, como bem anota Gerner em seu compêndio, a alternância de planos faz efeito de começo ou fim (como visto supra, na p. 121). Mas todo o objeto, a narrativa, não passa disso: uma sequência de efeitos artesanalmente construídos.

... nossas obras não têm nem pé nem cabeça [nem cauda nem chefe, em tradução literal]. Difíceis de enquadrar, por isso: elas não estão fechadas pelos limites de um início (a cabeça [o chefe]) e um fim (o pé [a cauda]). Elas não são constritas às hierarquias do alto (a cabeça [o chefe]) e do baixo (o pé [a cauda]).297

As técnicas utilizadas por Gerner são análogas ao trabalho da arte contemporânea, a partir de do dadaísmo. É uma mistura de colagem, assemblage, o uso de objets trouvés do Surrealismo. Ao contrário das artes plásticas, no entanto, não há uma restituição do único ao ready-made, sua composição não pretende uma obra autográfica. A colagem seria, em si, uma técnica de assemblage, por justapor também imagens diversas, coladas sobre uma superfície partilhada.298 O trabalho de Gerner não pode ser considerado um ready-made posto que seu gesto não é um gesto indiferente: a seleção das citações passa por um critério que visa aproximar elementos da indústria de massa – quadrinhos e textos de imprensa – e a alta hierarquia dos “autores literários” e agentes com autoridade discursiva, filósofos, cineastas.299 Para Max Ernst, a colagem é “uma exploração do ‘o encontro fortuito entre

297 “… nos œuvres n’ont ni queue ni chef. Difficiles à encadrer, par conséquent : elles ne sont pas enfermées dans les limites d’un début (le chef) et d’une fin (la queue). Elles ne sont pas contraintes aux hiérarchies du haut (le chef) et du bas (la queue).” DIDI-HUBERMAN, op. cit., 2013. 298 “Técnica de assemblage de elementos heteróclitos colados sobre a superfície de uma pintura e jogando ou não com ela. Redescoberta pelo cubismo no início do século XX [...], fundarão também as bases do construtivismo russo como as fotomontagens de Rodchenko ou de Man Ray, os jogos picturais de Marcel Duchamp ou os trabalhos futuros de Schwitters, Miró ou Picabia. Teoria do fragmento, da descontinuidade, da mistura, da promoção do banal, irrupção do inconsciente, as características da colagem se deslocarão até mesmo para a literatura onde serão reivindicadas (Apollinaire, 1913), enquanto que elas inspirarão os artistas mais contemporâneos tais como Dubuffet, Max Ernst, o pop art, os expressionistas abstratos (Motherwell, de Kooning) ou os assembleurs tais como Arman, Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely. [Technique d’assemblage d’éléments hétéroclits collés sur la surfasse d’une peinture et jouant ou non avec elle. Rédécouverte par le cubisme au début du XXe siècle [...], fonderont aussi les bases du constructivisme russe comme les photomontages de Rodchenko ou de Man Ray, les jeux picturaux de Marcel Duchamp ou les travaux futurs de Schwitters, Miró ou Picabia. Théorie du fragment, de la discontinuité, du mélange, de la promotion du banal, irruption de l’inconscient, les caractéristiques du collage se déplaceront dans la littérature même où eles seront revendiquées (Apollinaire, 1913), tandis qu’elles inspireront les artistes plus contemporains tels que Dubuffet, Max Ernst, le pop art, les expressionistes abstraits (Motherwell, de Kooning) ou les asembleurs tels que Arman, Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely].” GOLIOT-LÉTÉ & JOLY, op. cit., p. 79. 299 Em sua tese La Bande dessinée et son double, Jean-Christophe Menu fala especificamente de sua experiência na elaboração de uma história em ready-made. Les nouvelles aventures de Modeste et Pompon”, concebida para uma exposição oubapiana na Galeria Anne Barrault, constitui-se, de fato, como um ready-made aidé cuja recorrência aos mesmos objetos enfatiza ainda mais o seu caráter industrial – a cada strip, eles são alternados significando personagens, suas ações e transubstanciações (figurinhas para os personagens, um revólver significando homicídio/suicídio, suas reencarnações na louça). O gesto da indiferença substitui-se à contingência de uma figuração possível, legível. A intervenção de Menu, além

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duas realidades distantes entre si em um plano inadequado.’”300 Em CLBD, porém, o resultado tende a fazer desaparecer que houve colagem, pela operação de sua caligrafia, de sua reinterpretação gráfica de citações de imagens e textos. Não um poema ready- made; a citações que ele coleta poderiam ser, por outro lado, objets trouvés, que “resulta de um encontro, de um choque sentido apenas o objeto visto, geralmente insólito.” 301 Tomo as noções de objet trouvé e de ready-made tal como as apresenta a pesquisadora Gaelle Theval em sua tese dedicada aos ready-made em textos literários.302 Elas identifica certas colagens poéticas de autores do século XX e XXI que não seriam plágio, nem citação, chamando-os pelo nome genérico de ready-mades poéticos).

É mesmo sobre um gesto de empréstimo pelos poetas de uma prática artística existente de que falamos, logo, de uma relação entre poesia e artes plásticas que transbordaria o tradicional ut pictura poesis concernindo o gesto da criação em si.”303

Como lembra Theval, o procedimento se insere no que Aragon concebe como “colagem”, envolvendo todas as práticas de empréstimo e deslocamento. O ready-made é um objeto industrial “proposto”, escolhido pelo artista como um objeto de arte. Tal ato significou um rompimento com a tradição artística, com o “gesto antiartístico”, em uma interrupção bruta da “genealogia” da arte, que vem desde o trabalho artesanal. Agora, é um objeto industrial que vem ocupar “o lugar da obra amorosamente trabalhada, e do artista criador”, o demiurgo, inventor de formas.304 Há, nesse sentido, um descentramento da significação da arte: é o gesto que identifica a função estética do objeto (função artística): “o estatuto da obra de arte é o

da configuração do dispositivo, também está na inserção dos balões dos diálogos. A trama da história, um vaudeville, também poderia ser analisada como um produto imaterial que é reutilizado, aqui. Menu evidencia como é simples justaposição desses objetos – por vezes sem recurso à sua intervenção textual – já é produtora de uma legibilidade característica da história em quadrinhos. Diria que é característica da leitura, em si. MENU, op. cit. 2011, pp. 162-169. 300 “... an exploration o ‘the fortuitous encounter upon a non-suitable plane of two mutually distant realities.” GOOSSEN, apud SEITZ, op. cit. p. 40. 301 “...résulte d’une rencontre, d’un choc éprouvé à la vue d’un objet, souvent insolite.” THEVAL, Gaelle. “Poésies ready-mades, XXe-XXIe siècles.” Paris: Universidade Paris Diderot – Paris VII, 2011, p. 51. 302 Idem, entrevista feita por Anne-Marie CHRISTIN. Portrait d’une jeune chercheurse: Gaelle Theval (novembro de 2012). “O ‘poema ready-made’ designará então um poema não escrito por aquele que, no entanto, se designa como seu autor, resultando de um deslocamento qualquer (texto, objeto, imagem: o ready-made poético não é necessariamente textual), em um espaço literário, frequentemente do livro, mas não necessariamente.” “[C’est] bien à un geste d’emprunt par les poètes d’une pratique artistique existante que nous avions affaire, donc à une relation entre poésie et arts plastiques qui déborderait du traditionnel ut pictura poesis pour concerner le geste de création lui-même. /Le “poème ready-made” désignera alors un poème non écrit par celui qui pourtant se désigne comme son auteur, résultant du déplacement d’un élément quelconque (texte, objet, image : le ready-made poétique n’est pas nécessairement textuel), dans un espace littéraire, souvent le livre, mais pas nécessairement.” 303 Idem, op. cit., 2011, p. 9. 304 LEENHARDT, op. cit., p. 340.

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sentimento, fundado ou não, de que esse objeto foi produzido com uma intenção, a menos parcialmente, estética”, o “efeito Ménard”, segundo Genette.305 Nas artes plásticas, a colagem e o assemblage são termos análogos para explicitar confronto entre elementos distintos,306 a sugestão de confronto entre dois termos sendo sugerida em poesia desde Mallarmé.307 A assemblage, por sua vez, é uma técnica pós- cubista, em que não haveria uma redução desse choque. Uma justaposição paratática, “‘colocando uma coisa ao lado da outra sem um conectivo”308. Método direto que deixa aparente e visível o que monta.

O tipo de unidade que resulta da justaposição, no entanto, nunca pode ser inteiramente pré-ordenado, um trabalho reunido [assembled] cresce em se testando, rejeição, e aceitação. O artista deve abrir mão, em certa medida, de seu controle e, por conseguinte, de seu ego em benefício dos materiais e o que transpira entre eles, colocando-se a si mesmo praticamente no papel do descobridor ou do expectador tanto quanto do papel de gerador.309

A assemblage também é uma técnica de diferentes modelos artísticos, e anárquica por excelência. Comentando Duchamp, Didi-Huberman escreve:

Ora, esse gênero de obra se caracteriza menos, me parece, pelo seu viés unilateralmente conceitual [...] do que pelo seu viés de bricolagem experimental ou, para dizê-lo com maior precisão, sua função heurística. É um gênero de obra concebida como um ensaio perpétuo: logo, jamais terminada corretamente, sempre está para ser refeita. Ela só procede por hipóteses constantemente lançadas, constantemente recolhidas em relação a sua polivalência e de sua eficácia concreta, sendo ela tudo o de mais imprevisto. Man Ray utilizou uma bela fórmula para caracterizar, tanto seu trabalho quanto de seu amigo Duchamp, a seguinte noção da obra heurística, quer dizer, de uma obra

305 GENETTE, op. cit., 2010, p. 400. 306 SEITZ, op. cit., pp. 16-17. Para Seurat, por exemplo, arte é harmonia dos contrários, e seu trabalho confrontava linhas verticais e horizontais, luz, contra sombra. O uso de colagens tipográficas por Marinetti vai além da empreitada cubista e de Apollinaire na eliminação da “distinção entre um arranjo literário e visual”. Tanto Marinetti quanto Apollinaire “sancionaram a separação da palavra da pontuação, da rima, da métrica, da narração e temática contínua, intorrempendo a poucos passos do acidentalismo dadá ou do automatismo psíquico praticado por André Breton e pelos pintores surrealistas.” O trecho original da tradução acima: “The type of unity that results from juxtaposition, however, can never be entirely preordained, for an assembled work grows by testing, rejection, and acceptance. The artist must cede a measure of his control, and hence of his ego to the materials and what transpires between them, placing himself practically in the role of discoverer or spectator as well as that of originator.” 307 “... o crucial Un Coup de dés jamais n’abolira le hasar de 1897 postula uma outra estética não somente devido a seu arranjo topográfico radical e sua ênfase na ideia de sorte, mas também em seus padrões de imagens e suas projeções em busca de uma poesia ‘pura’ reunindo música e pintura abstrata.” “... the crucial Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard of 1897 postulates another aesthetic not only in its radical topographical arrangement and its emphasis on the idea of chance, but also in its pattern of images and its projection toward a “pure” poetry resembling music and abstract painting.” (SEITZ, 1961, p. 13). 308 Ibidem, p. 25, citando Roger Shattuck, The banquet years. 309 Ibidem, p. 39.

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sempre em obra: “Não terminamos nada nunca [logo nós somos artistas,] homens infinitos.” 310

Didi-Huberman observa que os ready-made de Duchamp são, sobretudo, objetos que põem em questão a noção de “obra-prima”, terminada. Seria sua função “heurística” seu caráter maior, o de buscar respostas (por tentativas e erros) para hipóteses de mundo. Uma “obra em obra”, perpétuo work in progresso, pela busca de novos procedimentos de análise. Se a matéria base de Duchamp seria a própria noção de obra, o trabalho de Gerner, essencialmente observável em CLBD, é o de investigar as histórias em quadrinhos. Didi-Huberman brinca com o termo “chef-d ‘œuvre” em francês; o propósito desse caminho atravessado – não direi inaugurado, mas eleito como trajetória primordial – por Duchamp. Tais obras seriam “sans queue ni chef”, “sem pé nem cabeça”: sem “chefe” (em analogia ao chef-d’œuvre, obra-prima) por não buscarem serem originais, um início, uma vanguarda, “elas ignoram a autoridade dos axiomas estéticos pretensamente dotados de um valor de época”311. Sem “pé” (ou “cauda”, “rabo”, queue) nem “cabeça” (ou “chefe”, chef), evitando um jogo hierárquico, entre o sublime e o inferior. Sem fim, também, inesgotáveis; obras que se movem em todos os sentidos, fugindo à fixidez dos significados.

5.2 Justaposição e artrologia

Na definição do teórico Pierre Fresnault-Deruelle, o dispositivo das histórias em quadrinhos seria fator de sua potencialidade poética, por invocar diferentes temporalidades sobre uma mesma topografia – por reunir (assembler), seria, por princípio, justaposição, uma forma de assemblage.

A história em quadrinhos é a única arte, diz Peter Greenaway, em que você pode ver ao mesmo tempo o início, o meio e o fim de uma sequência”. Multiquadro fixo (Henri Van Lier), as páginas de histórias em quadrinhos convocam até, nos avizinhamentos desconcertantes, o

310 “Or, ce genre d’œuvre se caractérise moins, me semble-t-il, par son caractère unilatéralement conceptuel [...] que par son caractère de bricolage expérimental ou, pour le dire avec plus de précision, sa fonction heuristique. C’est un genre d’œuvre conçue comme un essai perpétuel : donc jamais close en droit, toujours à refaire. Elle ne procède que par hypothèses constamment jetées, constamment recueillies à l’aune de leur polyvalence et de leur efficacité concrète, fût-elle tout ce qu’il y a de plus imprévu. Man Ray a utilisé une belle formule pour caractériser, chez lui-même comme chez son ami Duchamp, une telle notion de l’œuvre heuristique, c’est-à-dire de l’œuvre toujours à l’œuvre : “Nous ne finissons jamais rien [donc nous sommes des artistes, des] hommes infinis.” DIDI-HUBERMAN, op. cit., 2013, p. 8. 311 Ibidem, p. 9.

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antes e o depois, o passado e o presente, o passado e o presente, o subjetivo e o objetivo, o real e o virtual.312

Levar ao antes e depois poderia fazer da página um indecidível, uma arte que depende dessa multiplicidade desconcertante, do dentro e do fora, do narrador multifacetado. Não sendo nem em quadros, nem em tiras e, muito menos, vetor de uma narrativa (história), são as próprias definições do que é bande dessinée que são o assunto do livro, que se diz “contra”, Contre la bande dessinée. Ele desafia a ideia de sequência para nos apontar a superfície da página (o espaçamento), a iterabilidade dos signos como ponto em comum entre a escrita e o desenho gera uma visualidade da página para além de uma necessidade narrativa. A sequência seria parte importante da definição clássica de quadrinhos, a de ser “arte sequencial”, tal como especificado pelo também autor e teórico Will Eisner. McCloud avança na descrição de tal arte sendo “elementos pictóricos e outras imagens em sequência deliberada, pretendendo transmitir informação e/ou produzir uma resposta estética no observador.”313 Groensteen realçará que é a justaposição das imagens que é a essência da “bande dessinée”:

A essência da história em quadrinhos não está na representação mas em seu dispositivo canônico, dizendo de outra forma, no agenciamento espacial particular do multiquadro, investido por um discurso sequencial.314

Não há em CLBD uma sequência elaborada pelo seu autor e a ser imediatamente decodificada pelo leitor, mas um confronto entre imagem e texto justapostos, de maneira não regular, variando a cada página o critério e o modo em que os elementos da páginas se distribuem. Da mesma forma, a paginação é irrelevante e inexistente, facultando ao leitor a possibilidade de “saltar as páginas”, e lê-lo em uma ordem qualquer, aleatória.

312 “La bande dessinée est le seul art, dit Peter Greenaway, où vous pouvez voir en même temps le début, le milieu et la fin d’une séquence”. Multicadre fixe (Henri Van Lier), les planches de bande dessinées sont à même de convoquer, dans des voisinages déconcertants, l’avant et l’après, le passé et le présent, le subjectif et l’objectif, le réel et le virtuel.” GOLIOT-LÉTÉ & JOLY, op. cit., p. 44. 313 “...juxtaposed pictorial and other images in deliberate sequence, intended to convey information and/or to produce an aesthetic response in the viewer.” MCCLOUD, op. cit., 1993, p. 9. 314 O termo multiquadro designa o conjunto articulado de quadros sobre uma página. “[L]’essence de la bande dessinée n’est pas dans la représentation mais dans son dispositif canonique, autrement dit dans l’agencement spatial particulier du multicadre, investi par un discours séquentiel.” GROENSTEEN, op. cit., 2004.

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Figura 68: CLBD, pp. 11 e 12

A função da “sarjeta” (gutter em inglês e gouttière em francês), o “branco intericônico”, seria a de significar uma passagem de tempo. As páginas 11 e 12 de CLBD (Figura 68) tratam especificamente das noções de imagens alinhadas, da série, dos modelos de distribuição de quadros e do uso do recitativo (“balão”) na página. Duas tiras, na página 11, demonstram o princípio da sequência em quadrinhos, como a “compressão do tempo” oferecida pela sarjeta. A ideia de tempo comprimido, por sinal, pode ser vista como um vício dessa linguagem, posto que o dispositivo não indica necessariamente uma passagem única de tempo, e são inúmeros os casos de histórias em que essa relação espaço-tempo em sequência e de movimento desafiada: a imagem nos é mostrada, sem necessariamente apresentar uma narrativa, mas efeitos dependendo de elementos representativos em cada página.315 A justaposição de imagens sobre uma página em quadrinhos é chamada de “artrologia” (arthrologie) pelo teórico Thierry Groensteen. O termo designa o estudo das articulações anatômicas de um corpo. Ele observa que o fundamento das histórias

315 Alguns plágios oubapianos por antecipação fazem da página inteira um mesmo pano de fundo imutável e a transição do tempo continua a cada quadro, como o clássico exemplo de Tintin au Tibet em que os personagens “se movimento” a cada quadro para uma determinada direção, mas o cenário dos três quadros, justapostos, compõe o mesmo panorama, como em um quebra-cabeças.

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em quadrinhos seria “pôr em relação uma pluralidade de imagens solidárias”. Sendo assim, o critério primeiro é sua solidariedade icônica.316 Solidárias seriam, portanto, as imagens que se relacionam umas às outras por coexistirem em uma única sequência, ou seja, participarem de um único espaço visível, determinado plástica e semanticamente pela presença de tais imagens. O branco “intercase”, para o teórico Pierre Sterckx, é o que permite a coexistência dos elementos na página, uma inovação na relação com a representação do tempo no espaço e do movimento.317 O branco pode, sim, vir a exceder sua significância perante sua materialização de forma autorreflexiva, e seria o que marca a distinção dos quadrinhos para com outros suportes artísticos. O espaçamento é, então, o responsável pela articulação das imagens, a fundação de sua artrologia. Além da relação, importa saber o espaço em que tais operações ocorrem, e a relação entre tais espaços, como da disposição da página, a mise en page (layout). A relação entre o espaço e o lugar em que se operam essas relações é chamado por ele de espaço- topia (spatio-topie). O dispositivo espaço-tópico seria a forma, o suporte que determinará outros níveis de relações. O crítico Pierre Yves Lador, em seu ensaio sobre quadrinhos escreve sobre “articulações narrativas”, “é conveniente, por sinédoque, nomeá-las ‘histórias em quadrinhos’”. Sendo assim, “duas imagens/signos/palavras-imagens podem produzir uma história em quadrinhos”.318 E extrapola a noção de quadrinhos para o trabalho de Barbara Kruger, Bernd, Hilla Becher, Cidy Sherman, Sophie Calle, Peter Greenaway, Bill Violla, Robert Dhéry. Mas é evidente que a questão principal, mais do que a sequencialidade, é a noção de articulação entre os elementos. Em CLBD, as imagens e os textos coabitam, sem uma separação clara dentro de quadros. Os “alinhamentos polidos de vinhetas idênticas” das primeiras bandes dessinées (CLBD, p. 11) de outrora aqui aparecem apenas como componentes de uma artrologia constelar. Não há quadros, mas um alinhamento descontínuo, em que o ponto de fuga é a horizontalidade da escrita, articulada com o desenho.

316 GROENSTEEN, op. cit. 1999, p. 21. 317 STERCKX, op. cit., pp. 110-111. 318 LADOR, Pierre Yves. L’étang et les spasmes dans la bande dessinée. Vevey: Castagniééé, 2006, p.16.

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Figura 69: CLBD, p. 46

“É claro, (a história em quadrinhos) não seria a única responsável pelo nosso empobrecimento: é o mundo inteiro que se tornou uma interminável história em quadrinhos.” Frédéric Pajak, “Elogio da disciplina e da história em quadrinhos”, “Le Cahier Dessiné”, nº2, 2003.

Na página 46 (Figura 69) há quatro quadros em sequência, ilustrando um homem que caminha desrespeitando a “gravidade” interna do quadro. É uma das poucas sequências divididas em quadros no livro. A cada casa, ele “escala” as “paredes” e tenta se apoiar no “teto” do quadro (terceira casa), até cair no quarto quadro, quando parte de seu corpo desaparece (semidevorado pelo “chão”). Uma espiral e uma estrela desponta de sua cabeça, símbolos partilhados pelos leitores de histórias em quadrinhos que significam desconforto e dor, respectivamente. Tais símbolos são acompanhados de duas pequenas bolhas que remetem ao “balão de pensamento”, ainda que o balão em si não esteja representado, reforçam a dor e o desconforto emitidos pelo personagem único da cena, do quadro. Sabemos tratar-se de uma sequência única, justamente, pela relação que estabelecemos entre a divisão dos quadros, a recorrência de um único personagem, a elipse de tempo representada pela diferença que notamos a cada par de quadros; em suma, a artrologia restrita entre ambos. Mas sua disposição sobre a página é estranha, pois o quarto quadro posiciona-se sob o primeiro, mesmo havendo “espaço” para seu posicionamento linear, no canto direito da página. A sequência é interrompida (recortada) pelo texto “Essa história em quadrinhos banaliza a idiotice, a perversão e a maldade”, sem que vejamos uma relação entre a queda do tipo, esse tipo e a perversão. Seu chapéu, talvez, pertença ao imaginário dos bad boys, gangsteres? A impossibilidade de vermos seu rosto faz dele um personagem mais sombrio; sua queda uma estupidez. O texto que acompanha o quarto quadro, citação de texto de Frédéric Pajak, aproxima quadrinhos e empobrecimento (intelectual?) da humanidade – talvez o mundo fosse responsável por isso,

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transformando-se, ele próprio, em uma história em quadrinhos.319 A sequência de quatro quadros também não parece diretamente relacionada a essa citação, e o mundo falando em balões ocupa o canto direito, abaixo da “idiotice, perversão, malvadeza”. O quarto quadro, sob o primeiro, possibilita uma segunda leitura, uma nova elipse que elimina o terceiro e o quarto quadro. A relação que é feita entre ele e os textos é própria do método de Gerner, que coloca em relação não apenas as imagens visando uma integração discursiva entre elas, mas uma ocupação original da página. Ao “quebrar” a sequência, ele convoca a essa dupla leitura, assim como cria um efeito estético em que a não linearidade da leitura convoca uma plurileitura. A página de Gerner é, antes de tudo, um dispositivo artístico encenando um discurso através das relações estabelecidas entre seus componentes. O texto de Pajak e destes autores anônimos é confrontado por desenhos, de fato, “simples”, sem uma tentativa de aproximar-se de um ideal de belo. Pelo contrário, o minimalismo do desenho de Gerner aproxima-se do desenho cômico, e seu boneco que caminha é um ser disforme, cujo tronco se limita a um cilindro alongado, e um chapéu maior que seu corpo. Chapéu que resiste mais à gravidade que seu dono, por sinal. A articulação estabelecida por Gerner equipara texto e imagem a um só alinhamento: aqui, a articulação não é feita apenas pelo alinhamento de imagens, mas o texto faz parte do dispositivo visual. Não é o conteúdo da citação que importa, mas o espaço que ela ocupa sob a segunda e terceira casa da tira, submetida ao empobrecimento sobre o qual ele alerta, apesar de tudo. A página transforma-se em um dispositivo visual com encenação intrincada. As relações estabelecidas por essa artrologia particular visam uma dialética mais próxima da colagem das artes plásticas ou da montagem como pensada por teóricos do cinema. Em sua tese, Catherine Mao nota que não é o espaçamento, a justaposição entre quadros que cria uma noção de passagem de tempo narrativo, mas o entre elementos do estilo (cor, platitude das formas), da simbologia instituída pelo traço. A forma como um todo, a plasticidade do livro trazendo sentido, pelos laços que cria entre si. Como nos demonstra Calvino, em seu livro Il castello dei destini incrociati, o alinhamento sucessivo – de cartas de tarô – também nos ajuda a compor uma história; a

319 Pajak, escritor e desenhista (e a recíproca é verdadeira, afirma Christian Rosset in: ROSSET, “Les Cahiers dessinés ont dix ans.” Du9. novembro de 2012. http://www.du9.org/dossier/les-cahiers-dessines- ont-dix-ans/ – acesso em 21 de agosto de 2014), escreve uma defesa das histórias em quadrinhos e do desenho. Seu texto é extraído do prefácio da edição número 2 de seu Cahiers dessinés, revista que reúne outros nomes importantes. Ele questiona as noções sobre arte e história em quadrinhos, “Je ne saurais dire si la bande dessinée est un art ou pas, si elle est un art majeur ou mineur, mais je sais qu’elle ne me fait guère rêver”.

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justaposição de signos, dos mais prolixos aos mais abstratos, é a produtora das relações sintagmáticas geradoras de sentidos.320 Desde o seu princípio, em CLBD, há uma técnica de montagem em prol de uma dialética, em que citações, aparentemente desconexas, são confrontadas em um mesmo espaço, em uma tentativa de igualá-las. Para Gerner, tal ato mostraria “hiperlinks” entre os elementos que ele aproxima. A estrutura do livro é próxima do projeto de álbum, no sentido amplo da palavra de “caderno recolhendo elementos de forma aleatória”, desde o seu processo de acumulação de elementos à distribuição de tais elementos pela página, recopiados e “respondidos” com desenhos por Gerner. Em sua Preparação do Romance, Roland Barthes abordou o processo de criação de uma obra completa – literária, o romance –, desde seu estágio de fragmento. O fragmento – ou o álbum, o incompleto –, elencando algumas obras cuja forma apontará ora para o livro, ora para o descontínuo (o álbum). O fragmento, condenado justamente pela sua incompletude, no entanto, encontrará lugar na literatura pós-Mallarmé, em Joyce, e em outros contemporâneos em que o vazio será explicitamente marca de significância. Tantos já escreveram sobre essa impossibilidade no dizer, sendo a “lacuna”, esse espaço em branco, um leitmotiv – ou melhor, uma ausência inquietante. Meu objeto de pesquisa é um objeto-livro cortado pelo branco como parte inerente de seu código: as histórias em quadrinhos. Como apontou Menu, “A natureza da linguagem da História em Quadrinhos, por causa da elipse, inclui o fragmentado”, sua unidade mais ínfima (quadro) já ele em si fragmentário, recortado pelos espaços em branco.

5.3 A montagem

A matéria prima de CLBD são os enunciados, acumulados por algum tempo pelo seu autor: o princípio de um arquivo, figura que “surge na produção artística em consequência da apropriação de objetos do mundo e da cultura deslocados para o espaço da arte”.321

Comecei cortando coisas de um jornal, o quanto me parecia espantoso o que era dito. Depois coletei, coletei, sem saber o que iria fazer com aquilo. E aí, pouco a pouco, me veio em um segundo tempo. E talvez

320 CALVINO. Il castelo dei destino incrociati. 27a reimpressão. Milão: Oscar Mondadori, 2002. A afasia dos personagens os teria levado a narrar usando os instrumentos dos quais dispunham, os arcanos maiores e os menores de um baralho de tarô deixado sobre a mesa do dito castelo. 321 DA COSTA, Luiz Cláudio. A gravidade da imagem: arte e memória na contemporaneidade. Rio de Janeiro: FAPERJ/Quartet, 2014, p. 23.

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isso esteja na origem do que seria artigos para escrever, como na revista L’Éprouvette, em que seriam citações e uma reflexão sobre. Então, finalmente, pensei que seria interessante apenas colocar as frases nesse novo livro em que nenhuma frase seria minha, e que eu responderia essas frases unicamente pelo desenho. Para esclarecê-las um pouco. E, justamente, o fato de colocá-las em tal ordem, umas depois das outras, procurando uma espécie de efeito cômico, classificando-as...322

A escolha feita por Gerner demanda um rigor metodológico mais aproximado de uma análise antropológica. Voltemos a sua própria explicação sobre seu método de trabalho: “coletei, sem saber o que iria fazer”. Em segundo lugar, para produção de conhecimento, ele dispõe desses dados – tudo começa com tal gesto de dispor documentos e objetos. Como escreve Paul Ricœur, em texto sobre a memória, a História está entre duas escritas: a do documento, lido pelo historiador, e do texto em que este historiador nos reportará tal documento.323 Xavier Guilbert (Du9) pergunta a Jochen Gerner de que maneira ele apreende as citações das quais ele faz uso para seu trabalho, se ele andaria à escuta ou à procura desses instantes.

Todos os procedimentos de acumulação, de coleta de informação, são procedimentos que, imagino, tomam tempo. É algo que parte de uma intuição, ou será que um dia você se diz que vai fazer um livro sobre o discurso em torno da história em quadrinhos, e bruscamente tira teu bolo de post-its e você começa a afinar o ouvido?324

Segundo a transcrição da entrevista, descrevem que Gerner sorri, para em seguida explicar seu processo de trabalho, iniciado a partir da acumulação e da distribuição de pedaços de papel pela parede em frente a sua mesa. Ele confirma a noção de um trabalho “que toma tempo”, colheita e coleta de material informativo, a princípio repassado a pedacinhos de papel.

Em meu ateliê, tem a escrivaninha, e ali a parede em frente de mim, e há apenas pedacinhos de papel, com algo escrito, e não tem mas não há nenhuma imagem. E são apenas coisas que eu tenho vontade de fazer,

322 Cf. infra, p. 264 et seq.. 323 Paul Ricœur nos lembra que, ao dispor de documentos para elaborar uma explicação da história, o historiador se coloca entre duas narrativas: o documento e a narrativa que sua explicação gerará. (RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain FRANÇOIS. Campinas: Unicamp, 2007, p. 125) 324 “GUILBERT: Tous ces procédés d’accumulation, de collecte d’information, sont des procédés qui, j’imagine, prennent du temps. C’est quelque chose qui part d’une intuition, ou est-ce qu’un jour tu te dis que tu vas faire un livre sur le discours entourant la bande dessinée, et brusquement tu sors ton paquet de post-its et tu te mets à ouvrir les oreilles ? [...] GERNER: GERNER, op. cit., 2012.

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também no domínio da exposição... São como post-its, salvo que são papéis de naturezas diversas, e ideias de projetos. Dentre tudo que estava ali, talvez haja 10% que eu pude fazer e, depois, com o tempo, aqueles que finalmente não retenho, deve ser porque, talvez, não era o mais importante ou não muito prudente a ser feito. Por exemplo, travalho desde que Contre la bande dessinée saiu – creio, em 2008 – dali em diante continuei a recolher frases. Há ainda um outro projeto, logo tenho um fichário meio assim de coisas recolhidas, pois são coisas que preciso recolher com o tempo.325

A palavra-chave nos é dada por Guilbert: há, primeiramente, um processo de acumulação. CLBD, Gerner confirma, partiu de uma pesquisa sobre o termo bande dessinée nos mais diversos registros, evitando os meios próprios das histórias em quadrinhos. A disposição de seu espaço de trabalho envolve essa necessidade de rodear- se de determinados elementos que serão, posteriormente, tratados. O modo de anotação também difere, e é possível ver essa profusão de grafias em algumas das páginas preparatórias que o autor expõe em seu website (Figura 29, Figura 30). O surpreendente, porém, é a ausência de “imagens” coletadas, mas apenas esses “pedacinhos de papel” que se acumulam sobre a superfície em frente à sua mesa de trabalho. Com o tempo, as palavras vão “decantando”, até que a forma a tratá-las será estabelecida pelo artista. O ponto em comum entre esses papeizinhos, a razão (motivo e quociente) do arquivo, eram frases em torno da bande dessinée, não necessariamente sobre. O acúmulo permite verificar as possíveis configurações isotópicas do termo bande dessinée.

Entre minhas fontes, há críticas de filmes, de teatro, de ópera, de romances, de ensaios, de programas de rádio ou sites da Internet e fóruns de discussões, mas eu não ia buscar aueles que eram especializados em BD. Preferia os sites de jardinagem, por exemplo.326

Os enxertos, feitos com papel e cola ou manuscritos, vão ajustando o número de palavras sobre o papel. O modo de organização vai indicar, primeiramente, a quantidade que ocupará a página para, em seguida, poder dar um pouco de espaço ao desenho. A segunda seleção é de ordem estética: é a “sonoridade” que contará para a justificação de

325 “Dans mon atelier, il y a le bureau, et puis il y a le mur en face de moi, et il n’y a que des petits bouts de papier, avec de l’écriture, il n’y a aucune d’image. Et ce ne sont que des choses que j’ai envie de faire, aussi bien dans le domaine de l’exposition… C’est comme des post-its, sauf que ce sont des papiers de natures diverses, et des idées de projets. Dans tout ce qui y est présent, il y en a peut-être 10 % que j’ai pu faire, et après, c’est avec le temps, finalement ceux que je ne retiens pas, c’était peut-être parce que ce n’était pas le plus important ou pas le plus judicieux à faire. Par exemple, je travaille depuis que Contre la bande dessinée est sorti — je crois, en 2008 — et depuis j’ai continué à recueillir des phrases. Il y a un autre projet, donc j’ai un classeur comme ça de choses récoltées, car ce sont des choses qu’il faut récolter avec le temps.” Ibidem. 326 “Parmi mes sources, il y a eu des critiques de films, de théâtre, d’opéra, des romans, des essais, des émissions de radio ou des sites Internet et des forums de discussions, mais je n’allais pas chercher ceux qui étaient spécialisés en BD. Je préférais des sites de jardinage, par exemple.” GERNER, op. cit., 2008.

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uma ao lado de outras. O trabalho vai ser refeito, reorganizado, na medida em que se observa a possibilidade de respondê-las, e a pertinência delas para a montagem do discurso elaborado pelo seu conjunto. Após uma aproximação meramente sugestiva, de pontos de contato possíveis ou forçados através de uma linha condutora capítulo a capítulo, página a página.

Colei todas essas frases em cadernos, eu as reuni em função de seu sentido e de sua sonoridade, depois eu recortei para ver o que guardava.327

Na página preparatória exibida, por exemplo, o tópico é o cinema e filmes. São resenhas de cinema, explicitados pelo termo “film”, além de referências a cenário, diretor. Os textos são horas recortes de jornais, impressões a laser, provavelmente retiradas da internet ou recopiados pela mão de Gerner. Pela seleção dos sintagmas em que aparece o termo “filme”, pode-se ver que a maioria das resenhas é depreciativa: “filme mal-ajambrado”, “filme caricatural”, “filme primitivo” “filmes histéricos”. A “BD” serve a explicitar tais argumentos, “efeitos de bande dessinée”, “Poderíamos pensar que estávamos em uma bande dessinée ruim”, a justificativa de clichês como imanente da espécie “BD”, “nível BD”.

CLBD também é feito de acumulações, mas os únicos elementos que evidenciam tal fato são as marcas textuais de ordem gráfica: as aspas. O seu conjunto foi redesenhado, meditado, reorganizado, para eliminar o efeito automático de um inventário. Por outro lado, há uma forma que se pretende mecânica, a letra manuscrita uniforme ou o desenho que se aproxima do pictograma e se ajusta à página. Em CLBD, são os trechos, os textos que são as imagens a serem acumuladas e montadas, papeizinhos visíveis, e as imagens geradas por seus textos – a imagem das histórias em quadrinhos, a imagem da crítica, a imagem do discurso sobre história em quadrinhos. Nesses pedacinhos de papel, as figuras de linguagem são palpáveis; no espaço da página, elas serão reproduzidas com a mesma matéria do desenho, partilharão a mesma superfície. Em suas notas no seu texto-manifesto “9e Art(press)”, Gerner cita, entre os livros de que gosta, Le Perche à l’aube du troisième millénaire, de Vincent Malone (Tagaro, 2005). O livro (reeditado em 2013), apresenta, simplesmente, recortes de jornais, mais especificamente de um hebdomadário da região de Perche, na França. Os objets trouvés

327 “J’ai collé toutes ces phrases sur des feuilles, dans des cahiers, je les ai assemblés en fonction de leur sens et de leur sonorité, puis j’ai redécoupé pour voir ce que je gardais.” Ibidem.

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de Malone foram retirados de um único contexto local, lidos por aqueles “de fora” da região. O livro toma um ar zombeteiro, mas também não deixa de ser um voyeurismo “terno”, para tomar de empréstimo o posfácio da editora-chefe do jornal recortado. O gesto de Malone é repetido por Gerner, à medida em que as citações recolhidas são “respondidas” por desenhos que, por seu traço mínimo, próximo ao de ilustrações infantis, também parecem “zombar” delas. O não pronunciamento de Gerner, sua recusa em comentar textualmente as frases citadas, evita um embate frontal que poderia cair na troca de acusações, em um tom panfletário. Talvez possamos considerar seu ato igualmente terno, posto que desvia da crítica direta, fazendo-a de forma suave (com ternura). E assim a crítica em Wart.com conclui sua resenha sobre a exposição realizada na galeria e livraria Le Mont-en-l’air em que a preparação de Contre la bande dessinée foi destrinchada para o público:

Após haver selecionado as “coisas lidas e ouvidas” que nutriram os principais textos do livro, o desenhista de 100.000 Milliwats atrelou a elas a sua ilustração simplesmente deliciosa. Resultado: um livro estranho – a ambiguidade do título não está ali por nada – cujos principais ingredientes são a ternura e o cinismo, indispensáveis à humanidade da obra, que, sem isso, poderia ser exibida sem nenhum sabor.328

Mas seu gesto é muito mais próximo do gesto da montagem no sentido em como Didi-Huberman descreve o diário de Brecht, como apresentarei a seguir. A imagem que ele monta parte de um material discursivo que, embora múltiplo, participa na organização de um pensamento.

A montagem torna equívoca, improvável e até impossível, toda a autoridade de mensagem ou de programa. É que, em uma montagem desse tipo, os elementos – imagens e textos – tomam posição em vez de constituir em discurso e tomar partido.329

A ternura estaria em não tomar partido, mas uma crítica em que as imagens e textos, os elementos da lista, da justaposição, os objets trouvés vêm provocar um dissenso, um equívoco sobre que mensagem, ou que mensagens podem ser depreendidas de sua

328 “WART. “Jochen Gerner, contre la bande dessinée.” WART.COM. 22 de Janeiro de 2008. http://www.wartmag.com/jochen-gerner-contre-la-bande-dessinee/ (acesso em 27 de Março de 2014). Grifos meus. Notemos que a Wart é um “Magazine” generalista sobre a história em quadrinhos, visível pelo aposto necessário que o liga a sua publicação feita para uma grande editora. “Après avoir sélectionné les “choses lues et entendues” qui nourrissent les principaux textes du livre, le dessinateur de 100.000 Milliwatts s’est attelé à leur illustration qui est tout simplement exquise. Résultat : un livre étrange – l’ambigüité du titre n’y étant pas pour rien – dont les principaux ingrédients sont la tendresse et le cynisme, indispensables à l’humanité de l’ouvrage, qui sans ça, aurait pu n’être qu’un exposé sans saveur.” 329 “Le montage rend équivoque, improbable voire impossible, toute autorité de message ou de programme. C’est que, dans un montage de ce type, les éléments – images et textes – prennent position au lieu de se constituer en discours et de prendre parti.” DIDI-HUBERMAN, op. cit. 2009, p. 118.

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disposição. Ao elencar tais elementos, a figura de um autor dá voz àqueles elementos (princípio da lista), sua presença está apenas na ordem de desejar apresentar tais elementos (a ternura, o afeto, a vontade de escrever o romance). A “montagem” define-se como um conjunto de técnicas de edição de uma sequência cinematográfica. Um dos primeiros experimentadores com a edição foi o cineasta e precursor da animação George Meliès, que fazia do recorte e colagem em seus filmes recursos para criar efeitos “mágicos” – em Meliès a expressão mais apropriada seria a “trucagem”, dada a sua carreira anterior como ilusionista. Sua intenção era de fato essa, de usar o cinema como uma experimentação de truques “mágicos”. Deste princípio da montagem/trucagem para provocar efeitos “sobrenaturais” (os “efeitos especiais”), a montagem passou a ser o momento crucial na elaboração do filme. Para a cineasta belga Agnès Varda, a montagem é a assinatura do realizador. Algumas poucas décadas após Meliès, Sergei Eisenstein teorizou sobre a elaboração do filme como uma prática tanto estética quanto ética, em que a constituição das sequências, desde o projeto dos planos de câmera, podem criar efeitos para além da ilusão da arte, mas efeitos de construção e discussão do conhecimento. Para Eisenstein (retomado, posteriormente e principalmente por Godard como teórico e cineasta), a montagem deve ser pensada desde antes da filmagem, não apenas como um tratamento de edição. A montagem, por extensão, acaba por participar desse conjunto de técnicas de seleção e disposição de elementos para criação de uma obra tal como a assemblage, o ready-made. Os teóricos Jan Baetens e Thierry Groensteen, porém, descartam o uso do termo para falar de história em quadrinhos, pois consideram esse empréstimo da linguagem do cinema um tanto abusivo. Groensteen salienta que a montagem, no cinema, é posterior à realização da obra. Recorro ao termo, todavia, a partir das leituras que Didi-Huberman faz de algumas obras em que é possível ler na montagem uma dialética própria dessa disposição. Não penso aqui em montagem apenas no sentido de qualquer justaposição, mas tentar ver como essa justaposição cria efeitos dialéticos. No caso do trabalho de Gerner, há de fato uma montagem a princípio tout court, tal qual descrita por Baetens como seleção, por parte do artista, dos elementos que integrarão a página; elaboração da página de quadrinhos por via da edição, e não um fluxo narrativo. Em CLBD há mise en page cuja técnica de elaboração é feita da montagem de – escolha das citações e das imagens que comporão o produto final. Em segundo lugar, sobretudo, o pensamento de montagem nesse trabalho filia-se explicitamente com as técnicas de assemblage das vanguardas.

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O termo pode ter sido, de fato, usado de forma abusiva, certo gosto de aplicar qualquer análise da imagem a dispositivos visuais. Mas falo montagem no uso ético e estético empreendidos por Didi-Huberman, a partir de suas leituras de Eisenstein, Aby Warburg e Bertold Brecht. A montagem como forma de conhecimento, na justaposição de imagens na tentativa de criar uma nova, trazer à tona um conhecimento. O gesto da montagem atua como dialética, ao dispor e compor uma nova forma de ver imagens e elementos aparentemente banais. A montagem age como construtora e desconstrutora da história, do documento, das noções de autoridade ou originalidade. Didi-Huberman parte sobretudo da obra de Warburg cujo método de estudo da história da arte prescindia da montagem, ou da reorganização das imagens da arte fugindo à ideia de uma cronologia, mas ler tais imagens de arte elaborando um álbum em que seja possível vê-las uma contra a outra, pois só seria possível conhecer uma imagem a partir de sua diferença. Seu trabalho servirá de base para a iconologia, difundida por seu discípulo Erwin Panofsky. Os “movimentos” operados por Warburg partem dessa montagem, “uma história da arte na era de sua reprodutibilidade em movimento.”330 Ele rompe com a ideia teleológica, evolutiva, da arte, ao inventar um savoir-montage, saber-montar.

Há, no excesso, nada menos que há no acesso, alguma coisa da ordem do sintoma. Perigo para a história em si, pela sua prática para seus modelos de temporalidade: pois o sintoma difrata a história, a desmonta, de certa forma, sendo ele mesmo uma conjunção, uma colisão de temporalidades heterogêneas (tempo da estrutura e tempo do rasgo feito na estrutura).331

A análise das imagens se daria pela aproximação de uma imagem contra outra, “champ” e “contre-champ”, como repete Godard. O cineasta francês, assim como o teórico Didi-Huberman trabalham essa ideia de Eisenstein de que não existe uma imagem, mas no mínimo três: uma imagem contra outra e uma terceira imagem – dialetizada – que surge entre essas duas primeiras. A montagem seria, portanto, esse procedimento heurístico de redispor – imagens, narrativas, elementos de trabalho – para, a partir dessa nova posição, criar um pensamento novo. Poderíamos entender todo o pensamento inovador do século XX pela redisposição, pelo entendimento da história como constelação e pela fuga de um status quo (a ordem corrente, a ordem do discurso).

330 DIDI-HUBERMAN, Georges. “Preface.” In: MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg et l’image en mouvement. Paris: Macula, 2006, p. 12. 331 “Il y a dans l’excès, non moins que dans l’accès, quelque chose de l’ordre du symptôme. Danger pour l’histoire elle-même, pour sa pratique comme pour ses modèles de temporalité : car le symptôme diffracte l’histoire, la démonte en un sens, étant lui-même une conjonction, une collision de temporalités hétérogènes (temps de la structure et temps de la déchirure faite à la structure).” Ibidem, p. 12.

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O próprio Didi-Huberman, em um de seus ensaios mais conhecidos, faz uso de tal procedimento para analisar quatro fotografias das câmaras de gás em Auschwitz que chegaram até nossos dias. O que ver nessas imagens, o que fazer dessas imagens? São aporias da História e da História das Imagens, da História do pensamento das imagens. Para o filósofo Jacques Rancière, a imagem que nos é oferecida pelo cineasta, pelo fotógrafo, nunca é uma simples reprodução de um real, mas nos oferece a possibilidade de ser signo, e inclui o jogo de relações de sua produção.

A imagem não é o duplo de uma coisa. Ela é um jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, o visível e a palavra, o dito e o não-dito. Ela não é a simples reprodução do que se mostrou diante do fotógrafo ou do cineasta. Ela sempre é a alteração que toma lugar em uma cadeia de imagens que também são alteradas a seu turno.332

Rancière e Didi-Huberman vão aprofundar a análise da imagem no questionamento dos efeitos da mesma sobre o espectador, indagam-se sobre a função da imagem, suas relações com a arte, a história e a política. Um ponto em comum entre os dois pesquisadores é, a princípio, a relação entre imagens-vestígios e as imagens da arte. Retorno à criação da imagem tal como é pensada por Eisenstein na sua proposta de uma teoria do cinema, para analisar as possíveis teorias sobre a história em quadrinhos expostas pelo dispositivo de Jochen Gerner. A história em quadrinhos, como se sabe, é comumente identificada como um produto de consumo de massas. Como analisei acima, o discurso corrente é de que sua imagem seja um produto como qualquer outro, como uma função de entretenimento. Ao questionar a função da história em quadrinhos, ao reorganizar as figuras discursivas elaboradas sobre tal mídia, Gerner também nos permite refletir sobre as noções do que faz a arte e seus diferentes suportes. Didi-Huberman também recorre à noção de montagem em sua análise dos diários de Bertold Brecht, que reunia colagens de jornais com legendas diversas. É nesta distribuição, no deslocamento de imagens extraídas de outros espaços, nessa nova tomada de posições e no choque entre essas imagens reunidas por Brecht que se constrói uma imagem artística, um discurso estético que também desvela de uma noção política, como diz Didi-Huberman,

Para saber, é preciso tomar posição. Nada de simples em um gesto. Tomar posição, é situar duas vezes no mínimo, sobre duas frentes ao

332 “L’image n’est pas le double d’une chose. Elle est un jeu complexe de relations entre le visible et l’invisible, le visible et la parole, le dit et le non-dit. Elle n’est pas la simple reproduction de ce qui s’est tenu en face du photographe ou du cinéaste. Elle est toujours une altération qui prend place dans une chaîne d’images qui s’altère à son tour.” RANCIÈRE. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique, 2008, p. 103.

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mínimo que comporta toda posição pois toda posição é, fatalmente, relativa.333

Tomar posição implica enfrentar algo; “diante dessa coisa, é preciso também contar tudo do que desviamos, o que está fora do campo de visão que existe por detrás de nós, que nós recusamos, talvez, mas que, em grande parte, condiciona até mesmo o nosso movimento, logo a nossa posição.”334 Situar no tempo, a relação com o passado, seja por ruptura ou por continuidade, ou por esquecimento. Saber é situar o saber. Para Didi-Huberman, é um ato de resistência, por implicar uma vontade filosófica, das escolhas do sim e do não; e pela “propensão psíquica a erigir outras barreiras no acesso sempre perigoso no sentido profundo de nosso desejo de saber.” Tomar uma posição é, ao mesmo tempo, se implicar e se retirar (“s’impliquer et s’écarter”). Uma montagem é um corte (tranche, cesure) que dispõe objetos em uma determinada ordem para que o choque entre dois crie um terceiro objeto (imagem). Ela “procede varrendo, quer dizer, criando vazios, suspenses, intervalos que funcionam como tantas vias abertas, caminhos para uma nova maneira de pensar a história dos homens e a disposição das coisas.”335 É essa nova disposição das coisas que possibilita um pensamento novo. Sem uma imposição, a obrigatoriedade de tomar partido (este em detrimento daquele), mas uma dialética que demonstra a copresença “eficaz e conflitosa, uma dialética das multiplicidades entre elas.”336 Não há partidos definidos, mas o trabalho de um pensamento novo a ser verificado por essa nova disposição, pela redisposição, pela observação do vazio, dos escombros entre os fragmentos de uma ordem ideológica. Para agir politicamente, é preciso demonstrar/desmontar as genealogias, criar rupturas e retecer os possíveis laços, ou mostrar as contradições entre os laços existentes. A ideia de montagem procede do pensamento contemporâneo de rever a história a contrapelo, de contrapor-se à ideia romântica do progresso337. Ela é análoga à ideia do materialismo histórico, uma operação que busca investigar as contradições do poder.

333 “Pour savoir il faut prendre position. Rien de simple dans un geste. Prendre position, c’est se situer deux fois au moins, sur les deux fronts au moins que comporte toute position puisque toute position est, fatalement, relative.” DIDI-HUBERMAN, op. cit., 2009, p. 5 334 “... devant cette chose, il nous faut aussi compter avec tout ce dont nous nous détournons, le hors- champ qui existe derrière nous, que nous refusons peut-être mais qui, en grande partie, conditionne notre mouvement même, donc notre position.” Ibidem, p. 33. 335 “... procède bien en déblayant, c’est-à-dire en créant des vides, des suspens, des intervalles qui fonctionnent comme autant de vois ouvertes, de chemins vers une nouvelle façon de penser l’histoire des hommes et la disposition des choses.” Ibidem, p. 121. 336 “... efficace et conflictuelle, une dialectique des multiplicités entre elles.” Ibidem, p. 122. 337 Segundo Didi-Huberman, Walter Benjamin escreve o que ele considera um elogio da montagem em seu texto “O caráter destrutivo” (1931). Nesse artigo, ele descreve a energia dialética na estética de algumas obras que demolem elementos conhecidos para abrir caminhos, uma espécie de desconstrução

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Logo percebemos que a “dialética do montador” perturba radicalmente o teor de previsibilidade que teria direito a esperar uma “dialética filosófica”, descrevendo o progresso da razão na história. A dialética do montador – do artista, do mostrador – porque deixa espaço para os sintomas, as contradições não resolvidas, para as velocidades de aparição e de descontinuidades, e só “dis-põe” as coisas para fazer testar sua intrínseca vocação para a desordem. [...] Uma sensação de desordem seria o pré-requisito de toda dialética da montagem: paradoxal desordem dialética.338

O trabalho da dialética da montagem é o de desmontar e remontar a história – a prática pensada por Brecht que acreditava ser esse o papel da arte, como um potente instrumento político. O dramaturgo alemão faz uma leitura da história a partir da observação das imagens reproduzidas na imprensa, contemporâneas, aparentemente sem conexão. Recortá-las, remontá-las, é dar a conhecer que é possível reconhecê-las como parte de diversos movimentos da história, distantes, estranhos ou não.

“Por que imagens? Porque, para saber, é preciso saber ver.”339 Brecht recortou e montou tais imagens, contrapondo-as a comentários poéticos, um experimento político cuja influência ele reconhece ser do aparentemente apolítico dadaísmo. Seriam quatro as atividades d a dialética do montador, exercício que pode perpassar as mais diversas expressões artísticas.

• Documentar: é um trabalho de pesquisador (historiador, arqueólogo, antropólogo, geólogo). A investigação começa a partir dos documentos do tempo e do lugar em que se pesquisa.

• Reenquadrar: selecionar os frames de tais documentos que – ao serem montados – podem trazer um novo conhecimento.

• Deslocar: retirar tais elementos de seu espaço original e colocá-los em confronto com outros elementos.

• Atrasar (ralentir, pôr en arrêt): na medida em que a montagem oferece uma imagem do tempo, “que faz explodir a narrativa [récit] da história e a disposição das coisas”340. É pelas brechas que se vê as contradições, as razões divergentes. avant la lettre, “non pour l’amour des décombres, mais pour l’amour du chemin qui les traverse” (BENJAMIN apud ibidem, p. 121). 338 “On comprend alors que la “dialectique du monteur” désorganise radicalement la teneur de prévisibilité qu’on eût été en droit d’attendre d’une “dialectique philosophique” décrivant le progrès de la raison dans l’histoire. La dialectique du monteur – de l’artiste, du montreur – parce qu’elle donne toute sa place aux symptômes, aux contradictions non résolues, aux vitesses d’apparition et aux discontinuités, ne “dys-pose” les choses qu’à faire éprouver leur intrinsèque vocation au désordre. [...] Une sensation de désordre serait donc le passage obligé de toute dialectique du montage : paradoxal désordre dialectique.” Ibidem, p. 98. 339 Ibidem, p. 36.

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As imagens não nos dizem nada, elas nos mentem ou permanecem obscuras como hieróglifos tanto que não damos consideração ao ato de lê-las, quer dizer, analisá-las, decompô-las, remontá-las, interpretá-las, distanciar-nos delas para além “dos clichês linguísticos” que elas suscitam sendo “clichês visuais”.341

A palavra-chave usada por Gerner do tratamento dado aos enunciados que acumulara é o de agenciamento. O objetivo desse agenciamento é uma dialética da montagem, de dar a conhecer esses discursos, ao mesmo tempo em que o confronto entre eles e o contraponto das imagens evidencia suas contradições, assim como as carrega de novos sentidos. A página de quadrinhos, embora não deixe de ser imagens únicas reunidas por essa solidariedade icônica estabelecida pelo autor, forma também, por sua vez, uma imagem. E uma imagem também pode ser entendida como um espaço em que se opera uma dialética. Didi-Huberman chama a montagem de uma cissura no real, ou um deslocamento da percepção e da dinâmica dos afetos. Ora, Walter Benjamin já não nos convocava a ler a história a contrapelo, criando um novo arranjo das imagens distribuídas pelos veículos de produção dos discursos de poder?342 Para Rancière e Didi-Huberman, o trabalho do artista também é o de reorganizar as imagens visando uma nova organização discursiva, uma nova ficção que, pela provocação do dissensus – ou do estranhamento, pode afetar a percepção do espectador sobre o real. A partir de um imaginário comum sobre o que são as histórias em quadrinhos – linguagem banal, desenhos simplistas, vocabulário empobrecedor, até feiura dos desenhos –, Gerner elabora um dispositivo imagético que contradiz o que expõe. Há abundância de reiterações, intertextos; a aparente simplicidade do desenho é recurso para embaralhar as fronteiras entre a imagem da figura e a imagem do texto. As imagens que ele articula agem tanto como a comicidade terna de Malone quanto a da montagem política de Brecht.

Como a poesia – ou como poesia –, a montagem nos mostra que “as coisas não são talvez o que elas são [e] que depende de nós para ver de

340 Ibidem, p. 123. 341 “Les images ne nous disent rien, nous mentent ou demeurent obscures comme des hiéroglyphes tant qu’on ne prend pas la peine de les lire, c’est-à-dire de les analyser, de les décomposer, de les remonter, de les interpréter, de les distancier hors “des clichés linguistiques” qu’elles suscitent en tant que “clichés visuels”. Ibidem, p. 12. 342 Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 10a. Tradução: Sérgio Paulo ROUANET. Vol. 1. 3 vols. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 225.

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outra forma, segundo a disposição nova que nos terá proposto a imagem crítica obtida nessa montagem.343

Aqui, apresento a análise, portanto, de imagens contíguas fixas, desenhadas a pincel e caneta, tinta preta, com um objetivo ético e estético. Há uma tomada de posição frente a esses discursos, mas sem uma imposição de um novo, sem tomada de partido. O que está proposto é a necessidade de uma dialética, de analisar tais discursos de forma a ver neles suas brechas e contradições profundamente reveladoras, para repensar os quadrinhos, e o que fazem esses quadrinhos.

5.4 Que discursos sobre a história em quadrinhos?

A leitura de história em quadrinhos embaralha a vista do leitor: nunca se sabe o que ver primeiro, o texto ou a imagem, e são essas duas ordens que desordenam o sentido de leitura e o de apreciação da imagem. Concordo com Sterckx que, mais que a elipse, é a silepse (querendo dizer a concordância de lógicas aparentemente discordantes) a figura por excelência do procedimento de leitura de uma página de quadrinhos. Em CLBD, o texto é o objeto e pano de fundo – a superfície – da obra. Justapostos, eles catalogam sintomas do discurso em torno da história em quadrinhos, uma anamnese do status da história em quadrinhos frente à “cultura”. Nas primeiras páginas do livro, textos aparentemente apologéticos introduzem, dão o tema do livro e dos discursos. O “espírito BD” é interrogado, como no tabuleiro Ouija: “está aí?”, ou será que existe um espírito da história em quadrinhos, uma especificidade inerente a essas histórias? Uma “estética” da história em quadrinhos, também, seria ela possível? Os outros trechos introduzem algumas palavras banais, porém importantes para entender sua tônica. A comicidade branda da história em quadrinhos vista com o objetivo de entretenimento leve: a “alegre variedade”, a simplicidade do “grande e engraçado”, historinhas acolhedoras, tudo isso contraposto a desenhos de fato simples e “engraçados”. A “simplicidade” é denotada pela redução da ilustração a formas quase geométricas, sem profundidade, posicionadas sob uma mesma linha horizontal, sem perspectiva. Os personagens são reduzidos a tipos, repetidos – a imagem da gagueira, o tartamudear como mencionei, reduz os personagens até transformá-los em caracteres gráficos que serão recombinados ao longo do livro.

343 “Comme la poésie – ou comme poésie –, le montage nous montre que “les choses ne sont peut-être pas ce qu’elles sont [et] qu’il dépend de nous de les voir autrement”, selon la disposition nouvelle que nous aura proposée l’image critique obtenue dans ce montage.” Ibidem, p. 77.

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O humor, é bem sabido, também é um agente de desordem. A forma do trocadilho desestrutura a palavra, a frase. Mas o “engraçado”, aqui, tende a alienar esse possível humor, abrandá-lo, como expresso nas “historinhas acolhedoras”. A frase ao pé da página, porém, a perfura, cavando uma profundidade aparentemente inexistente nas primeiras: solidão, impotência, o desassossego. O choque entre essas duas faces da “história em quadrinhos”, de uma extrema banalidade (“simples”, “engraçada”) ao seu revés, o insondável (e profundo), deixa à vista as contradições desses enunciados – ambos generalizando toda uma linguagem como se tais efeitos (do divertimento, da reflexão) fossem intrínsecos a ela. Além disso, há outro choque entre as formas: a platitude do preto e branco, das formas quase geométricas, ao mesmo tempo em que o desenho ressoa infantil. Aqui, as reduções, ainda que medidas, são levadas ao extremo delas, um excesso para o lado da reflexão, da ponderação. E o humor é provocado justamente por fingir-se sério, como se levasse a sério tais enunciados ahurissants, justapondo-os todos como se estivessem em um mesmo nível. A aparente aderência a esses discursos é, primeiramente, prenunciada pelo desenho que redunda a citação, repete-a, nos dando a ver uma possível interpretação do que é dito. A ilustração do “esprit bédé”, por exemplo, emula a ideia de “esprit” pelo texto do balão; em seguida, pela posição do balão – sob um chapéu, que parece elevar-se como uma alma, sobre o personagem invocador do “espírito”. O desenho, portanto, nos oferece um trocadilho visual que é, em si, uma mise en abyme sobre o significado de esprit em francês: essência, fantasma, humor. Se analisarmos a posição do termo [BD] tal como foi repertoriado por Jochen Gerner, podemos verificar que ele participa em boa parte dos mesmos espaços semânticos. Por exemplo, a lista a seguir são as palavras que substituem o termo [bande dessinée], seus hipônimos e hiperônimos: substantivos que substituem a bande dessinée:

BD, bédé, álbuns, artesanato, entertainment [sic], folclore, gênero, historietas, indústria, linguagem, literaturas, mídia, meio (suporte, médium), meio (canal, moyen), objeto, instrumento, produto, série, vinhetas, história, sistema, tipos, arte, veneno, vetor pedagógico possível.

A seguinte proposta de classificação desses termos revela desde o uso de elementos da BD para a classificarem (por metonímia), termos relacionados a narrativas, a classe de expressões (linguagem, comunicação), e qualificações por substantivos, em que “folclore” e “veneno” adjetivam a história em quadrinhos:

derivação do nome BD, bédé

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dispositivo álbuns, objeto, produto, instrumento classe indústria, mídia, meio, linguagem, arte, sistema, gênero elemento da BD historietas, série, vinhetas narrativa folclore, historietas, literaturas desenhadas qualificação substantiva folclore, artesanato, arte, veneno

Se observarmos algumas das construções sintagmáticas usadas para falar da bande dessinée, veremos que aqueles que tentam definir a história em quadrinhos podem ser classificados em três campos semânticos: o da comunicação, da cultura de massa, e termos condescendentes:

qualificativos de historietas acolhedoras, folclore simpático, simples página de BD, condescendência historinhas curtas, grafismo legal (sympa), apresentação agradável gênero maldito, mau gosto (genre maudit, mauvais genre), quadros medíocres (cases merdeuses), caricaturas no estilo bande qualificativos pejorativos dessinée qualificativos relativos à instrumento de comunicação eficaz, entretenimento de massa, cultura de massa meio de comunicação de massa qualificativos descritivos (material) álbuns flexíveis, álbum ilustrado, histórias curtas

qualificativos relativos à vetor pedagógico possível, meio plástico, instrumento de comunicação comunicação eficaz, bom meio, meio de comunicação de massa

Por serem citações, tais termos isentam Gerner dos sintomas desse discurso, mas nos serviriam para uma análise do discurso em geral sobre a história em quadrinhos, colaborando em uma anamnese do tema. O desenho de Gerner simula essa ingenuidade dos traços, de bonequinhos infantis, facilmente recopiáveis, fazendo-se passar por um cômico-ingênuo. No entanto, a articulação entre a imagem e os textos não é de forma alguma ingênua, mas de uma ironia sutil e extremamente potente, que ri de sua própria forma. Veste, de fato, a imagem que os discursos fazem da linguagem em quadrinhos (simples, banal, acolhedor), para potencializar uma crítica mordaz. Afinal, os discursos expostos aqui se tornam mais aparentes, os absurdos são evidenciados. O esprit francês, por sua vez, faz do jogo com as palavras (calembour, contrepèterie) sua base formal; o humour inglês opera pelo absurdo, pelo duvidar das situações. De certa forma, são essas as duas operações da forma da página em CLBD: sobretudo, entre as duas, há a leveza, do significante de formas reduzidas, o absurdo pela exposição que

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nos faz duvidar desses discursos, e os desenhos, junto às palavras, criam charadas calembourlescas. O comedimento empregado pelas formas atém-se a uma representação modelar (de modelo), racionalista das formas. Essa distribuição é regrada num ensejo oubapiano em que o humor e o poético são potencializados por meio dessas regras. O que ele nos dá a conhecer é um discurso condescendente em torno das histórias em quadrinhos, BD é termo que se torna adjetivo para um humor que não dá medo aos poderes. Na página 33, por exemplo, Gerner assimila os diferentes usos da narrativa em quadrinhos tais quais são repetidos pelo discurso corrente sobre o meio, “conceito de história em quadrinhos”: “momento de distração”, “esquete cômico”, “uma mensagem de intenção essencialmente distrativa”, um instrumento mecânico impossível de existir fora de um universo “bande dessinée”. Ele cita, também, o uso do meio quadrinhos para explicar um método de trabalho, expressões condescendentes, como “grafismo legal e vivo”, e seus “títulos de nobreza” ganhos pelo fato de abordarem histórias de aventura, nos anos 1940 (para além das narrativas pueris dirigidas à infância, predominantes na primeira metade do século XX). Essas ideias poderiam ser resumidas pelas duas equações ilustradas ali: a primeira, identificada tanto pela forma matemática (“(E/T) x 48 = BD”, em que E = espaço e T = tempo), quanto na ilustração pictórica da equação, que resulta no significado corrente do que seria uma “BD”, 48 páginas multiplicadas pela razão entre espaço e tempo. A ilustração pictórica tem como apêndice dois balões contendo onomatopeias de risadas (“ho ho”). Na mesma página, outra equação é formulada pela justaposição de três séries de quadros em tiras, em que a primeira coluna das três apresenta um problema, a segunda coluna expõe um determinado objeto, e a terceira o momento de resolução da série. Em todas as três tiras, há uma solução para o problema apresentado e um personagem único. No caso, uma forma oblonga para a cabeça, um triângulo como nariz, um trapézio como base para o “corpo” e um meio-círculo para a orelha. Esta é uma exposição de uma lógica comum nos argumentos de publicidade, em que um determinado produto representa o “alívio imediato” para um determinado problema. Eles são descritos pelo texto-legenda que se sobrepõe a cada primeiro quadro da série, “dor, sede, tédio” e o personagem ilustra, de maneira caricatural e redundante com o texto, cada um desses “estados de espírito”. Elementos picturais típicos das histórias em quadrinhos são o que dão sentido a tais caricaturas, os três traços verticais no interior da cabeça do personagem codificam “dor” e fazem eco com as linhas que “saltam” de sua cabeça; as “gotas” sobre a cabeça e a língua “para fora” da boca, signo de “sede”; as “fumaças” de tédio ou raiva e dois traços no interior da cabeça como se o personagem

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franzisse o cenho. Em todas as séries, a boca é uma abertura de um meio círculo, ora para baixo (situação problemática), ora para cima (problema resolvido). A segunda coluna apresenta apenas objetos, que ganham sentido de solução com a justaposição da terceira coluna, em que os traços da primeira aparecem apaziguados. A “solução”, respectivamente, para dor, sede e tédio, seria aspirina, garrafa d’água, “bédé”. O minimalismo de sua justaposição expõe o próprio ridículo das citações que coleciona. É a este funcionalismo das histórias em quadrinhos que, de certa forma, ele responde. Ele nos demonstra uma escrita em que o valor visual do texto também assume uma importância capital, assim como o que o texto exprime. A palavra utilizada para definir seu estilo é, justamente, “escrita” (écriture), ou “escrita gráfica” (écriture graphique). Mais especificamente em Contre la bande dessinée, em que o texto “guia” a trajetória dos desenhos, e o desenho ajuda a “justificar” o texto na página. No capítulo “Objet(s)”, destinado a repertoriar o comentário sobre o assunto da bande dessinée, como a “função [...] de distrair e de fazer sonhar” (p. 9), a epígrafe de Romain Gary lembra que tudo pode ocorrer em uma história em quadrinhos.344 Na página seguinte, Jochen Gerner reúne algumas declinações da expressão “bande dessinée”, exposta em lista. Após a observação sobre o acrônimo “B.D.”, há a apresentação de três sintagmas do campo semântico do marginal com “bando de excitados” [allumés], de “degenerados”, de “selvagens”. O desenho-resposta são cabeças de personagens “maus”, caráter denotado por linhas horizontais sobre os olhos, como sobrancelhas denunciando a raiva desses personagens, que “caem” de dentro de livros de histórias em quadrinhos. Os balões de fala são opacos, em preto; uma fala tão obscura quanto sua “degenerescência”? Seguem-se as paronomásias “bande décimée” [banda dizimada], “banc désigné” [banco designado], “bande designée” [banda designada] e as derivações “contrebande dessinée” [contrabando desenhado], “débandade narrative” [debandada narrativa], “bande passante” [banda pedestre], e a extrapolação “bande magnétique lisible par des lecteurs spéciaux” [banda magnética legível para leitores especiais].

344 “Sentei-me sob a porta e fiquei um tempo sem ter vontade de estar ali ou em outro lugar. Tinha duas ou três coisas que eu poderia ter feito, tinha a droga de estrelas com histórias em quadrinhos e é possível rir de tudo com histórias em quadrinhos. [Je me suis assis sous la porte cochère et je suis resté un moment sans avoir tellement envie d’être là ou ailleurs. J’avais deux ou trois choses que j’aurais pu faire, il y avait le drug à l’étoile avec des bandes dessinées et on peut se foutre de tout avec des bandes dessinée]”. GARY, Romain, La vie devant soi, 1975, apud CLBD, p. 9.

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O ritmo gerado pela listagem e distribuição desses termos vai sendo acrescido de outros elementos ao longo da página, iniciando pela descrição clássica, “La bande dessinée (B.D.)”. O uso dos parênteses aqui não é puramente ilustrativo, mas aborda uma constante no discurso crítico que tende a reduzir o termo a seu acrônimo (“ou bédé”). Muitas vezes, ambos aparecem em um mesmo texto: a bande dessinée, la BD, precisa ser constantemente reapresentada ao público. Os parênteses, ali, denotam essa “necessidade”. A lista também dá musicalidade à página, e sua estrutura ainda ecoa seu pé, em uma segunda lista com definições. Ainda lembra a definição de quadrinhos como um gênero decadente, no quiasmo “mauvais genre/genre maudit”, cuja tradução mais aproximada em português seria de “mau gosto/gênero maldito”. Há, logo ao lado, um jogo de palavras com objet/objetivo: um objeto em si e desdobrável em objetos, “la bande dessinée est un objet”, seguido dos desenhos de “personagens” de quadrinhos sobre uma taça [tasse], jarro [cruche], livro [livre]. Outro trocadilho com a palavra cruche: pessoa desprovida de bom senso, estúpido e jarro. A história em quadrinhos é um objeto, um discurso sobre o qual se discorre, nunca um sujeito. Mas é pelo recurso a essas citações que fazem dela um objeto é que CLBD a posiciona como a enunciadora de um novo discurso, autorreflexiva: é pela justaposição entre desenho e esses textos que o sentido se opera. Como já visto, abundam palavras desvelando na condescendência, que não agridem, não provocam nada além de aderência a um discurso de poder, sem sobrepor-se a ele: historietas acolhedoras, folclore simpático, página simples de BD, historinhas curtas, grafismo legal, apresentação agradável (historiettes accueillantes, folklore sympathique, simple page de BD, petites histoires courtes, graphisme sympa, présentation agréable). O “acolhedor”, o diminutivo (“petite”), o agradável, o simpático, a “simplicidade” participam da isotopia do naïf, simples, franco e sem malícia alguma. A descrição do suporte também incorre em sua flexibilidade, como material facilmente manipulável, ou ainda, instrumento de manipulação, de forma “literal” (manipular com as mãos) ou “figurada” (manipular uma outra pessoa): “álbuns flexíveis, instrumento de comunicação eficaz, entertainment de masse. São essas “características” que teriam permitido a essa linguagem sobreviver e ser facilmente assimilada pelos discursos de poder, por ser facilmente instrumentalizável e igualmente assimilável pela “massa”. O revés se daria pelo seu uso marginal, “genre maudit, mauvais genre”, e o extenso capítulo relacionando quadrinhos e violência. Aqui, é o potencial subversivo desse humor nada naïf que é temido, “a apologia da violência e da imoralidade, do sadismo e da crueldade, a cultura do irrealismo” (CLBD, p. 50).

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Uma tipologia do grotesco em quadrinhos está exposta na página 44, entre cretinice e estupidez, outras citações referem-se à feiura dos desenhos, a relação entre a leitura de quadrinhos e a preguiça ou deficiência intelectual, “o iletrado lê ilustrados” (l’illettré lit des illustrés), “linguagem popular”, a mediocridade reina nas histórias em quadrinhos. A ironia de Gerner é nos oferecer todas essas citações em uma página extremamente complexa e difícil a ser lida. Há poucos defensores, de fato, das potencialidades estéticas da história em quadrinhos entre as citações selecionadas. Fellini compara a imobilidade dos desenhos dos quadrinhos ao fascínio exercido por uma borboleta presa por um alfinete, imediatamente oposto à acusação de Isidore Isou de serem os comic’s [sic] a “degenerescência do cinema” (CLBD, p. 96).

Figura 70: Jochen Gerner tout nu, 1999

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5.5 Nota biográfica: um projeto autoral de análise por princípio

Desde suas primeiras publicações, o desenho de Jochen Gerner já apresentava seus personagens com traços mínimos, próximos do geométrico. O nariz, muitas vezes, apresenta-se como uma linha espessa escurecida, os dois pontos para os olhos. Mas tanto personagens como objetos, em seus desenhos dos anos 1990, são mais fluidos: marcados nas extremidades por um jogo de sombras que permite um ligeiro efeito de relevo. O pano de fundo também é reduzido a formas geométricas, lembrando montanhas ou árvores ao fundo. Há o recurso a setas que não participam do nível figurativo da narrativa, mas sim do mesmo nível das letras, um pictograma, um código de uma escrita. A autorrepresentação que Jochen Gerner faz de si acompanha as alterações estilísticas em seu trabalho. Em Jochen Gerner tout nu, de 1999 (Figura 70), ele se apresenta através de seus objetos em sua mesa de trabalho, e pela disposição de sua casa. Há também a fotografia tirada em um Photomaton, em 1997, em meio a um diagrama indicando seus objetos e suas funções. Na fotografia, observamos seu rosto magro, com a fronte proeminente, poucos cabelos.345 Em sua narrativa de diferentes viagens reunidas no livro Courts-circuits géographiques, publicado no mesmo ano da foto, seu autorretrato não evidencia tanto sua testa, mas linhas horizontais sobre seu torso evidenciam o seu aspecto magro. Um dos elementos do estilo de Gerner neste período são as mãos dos personagens, desenhadas como um círculo contendo cinco traços. E os narizes retangulares, por vezes preenchidos de preto. Seu traço, fino e contínuo, destoa do estilo que assumirá com mais frequência nos anos 2000, de linhas espessas, e as mãos continuarão redondas, mas os dedos são parte da circunferência. Apesar da “evolução” da representação da mão,346 ele opta por um desenho cada vez mínimo. E seu autorretrato exposto em seu site evidencia esse fato. Seu rosto é reduzido a formas geométricas, o estilo semilhante ao que concebe Contre la bande dessinée. Jochen Gerner nasceu em Nancy, em 1970. Ele é ilustrador, desenhista, trabalha regularmente com ilustrações para jornais, artista plástico, professor. Ilustrando para diversos jornais e revistas, mais recentemente passou a colaborar regularmente com o hebdomadário Le 1. Sua colaboração consiste em realizar uma bande dessinée – ou um

345 Assim ele foi desenhado Jean-Christophe Menu, Marjane Satrapi e por si mesmo no livro coletivo Oupus 4, do OuBaPo, que consistia na narrativa cruzada de dois eventos simultâneos de histórias em quadrinhos (em Bastia, na França e em Lucerna, na Suíça). Também por François Ayroles, em seu livro Moments clés de L’Association. 346 O desenho da mão é prezado pelos amantes do realismo gráfico em quadrinhos, como “parâmetro” para o bom desenhista. Como nota Riad Satouf, in Éprouvette 1.

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infográfico – a partir de informações pesquisadas por uma jornalista. Também ilustrou livros infanto-juvenis, ensaios, romances. Machin-truc, seu livro publicado pela editora Les Fourmis rouges (2013), de livros infanto-juvenis, por exemplo, é um livro de formato quadrado, em que a cada página dupla um novo objeto se forma. Em colaboração com outros autores, realizou diversas obras em quadrinhos – e também publicou diversos livros de histórias em quadrinhos. Como autor de livros e artista plástico, o trabalho com materiais pré-selecionados, pela prática do détournement, é o que rege sobretudo seu trabalho – cujo adjetivo oubapiano talvez seja o melhor para classificá-lo. Seu pai era professor de artes, assim, desde cedo, Jochen Gerner era estimulado a conhecer profundamente o campo artístico. Ele reúne em seu repertório referências múltiplas do mundo da arte, sobretudo moderna e contemporânea. Ele cita artistas como Josef Albers (1888-1976), o dadaísta alemão naturalizado francês Hans Arp (1886- 1966), o japonês conceitual On Kawara (1933), o americano Ellsworth Kelly (1923), o desenhista do século XV Heinrich Groff, cineastas como o finlandês Aki Kaurismäki (1957), a belga Agnès Varda (1928), os escritores Raymond Queneau e Herman Melville, e muitos outros. A arquitetura é ainda um dos importantes recursos estéticos ao qual recorre, e ele cita diversos arquitetos em CLBD. Em entrevista, ele explicita seu interesse pelo trabalho do dinamarquês Arne Jacobsen (1902-1971), pelo casal de arquitetos Takaharu Tezuka e Yui Tezuka, assim como pelo paisagista brasileiro Burle Marx (1909-1994).347 De acordo com Gerner, sua metodologia de trabalho também é herança paterna, sendo seu pai alguém muito atento ao contemporâneo. Vem dele seu rigor na preparação de projetos, a tomada de notas, a multiplicidade dos rascunhos, assim como a sua paixão por mapas e por livros. Ele lhe ensinava, desde a infância, a fazer exercícios de criação artística inspirados em autores contemporâneos. Da mãe, engenheira lexicográfica, talvez viria a paixão pela isotopia, da pesquisa pelos sentidos de um determinado significante. Seu currículo é exemplar, tendo exposto suas obras em museu e galerias na França, na Alemanha, na Espanha, na Suíça, na Rússia, em Portugal, na Inglaterra e na Itália, em coletivas ou individuais. Ele é representado pela galeria Anne Barrault e, em seu site pessoal, são citadas uma vintena de exposições individuais entre 1996 e 2013, além de noventa exposições coletivas, entre 1994 e 2013.348

347 GERNER, op. cit., 2009 (d). 348 Dados verificados em outubro de 2013.

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A posição de fronteira não é casual: ele a reivindica como fundadora de seu trabalho, em que histórias em quadrinhos podem ser contaminadas com referências estéticas e conceituais da arte contemporânea e suas obras plásticas tomarão os quadrinhos como base material e reflexiva. Como disse Xavier Guilbert na revista Du9, ele “evolui em um espaço que, parece, só pertence a ele – instalado na fronteira entre a história em quadrinhos e a arte contemporânea, entre livros e exposições”.349 Em uma nota no Le Monde, sobre uma de suas exposições, ele se define como “um experimentador do desenho e da imagem impressa, entre o conceitual e a derrisão”.350 Gostaria de sublinhar o uso da palavra “livros”, “exposição”, “imagem impressa”. Por que é justamente ali, na fronteira entre imagem presa à parede e impressa em um livro em que seu trabalho se opera, e é o que ele questiona. Como ele explica em diversas entrevistas, ele não pensa o livro como ele pensa uma exposição. São duas linguagens diferentes, duas maneiras de mise en scène de um conceito. Ainda que se valendo de suportes semelhantes, a sequência criada pelo virar das páginas emite uma nova camada de interpretação que não será a mesma apreendida pelo olhar na sala de uma galeria. Na primeira atividade, há um controle do espectador sobre a obra; na segunda, a disposição dos quadros impõem a solenidade da “arte” – duas tarefas bastante discutidas, a noção de leitor e aquela de espectador. Se entendemos, desde Eisenstein, 351 que a imagem depende de uma segunda para que ocorra uma dialética, a ordem das páginas ou a disposição das imagens à parede produzem também sentido – estético, ético ou epistemológico, seja ele evidente ou a espera de um esforço do leitor- espectador. 352 Como citei supra, Gerner se identifica extremamente com o OuLiPo, definindo-se como um ilustrador oulipiano, e faz da restrição e do jogo com os signos a base de seu trabalho como ilustrador, autor de quadrinhos e artista plástico. Colagens e assemblage literários priorizam o pastiche e a reescrita – tão pós- modernos – como instrumentos primários de trabalho, recursos tão lúdicos quanto eruditos. É nessa linha em que, de fato, se insere a trajetória de Gerner. Mas será sobretudo o imaginário contemporâneo que será transformado em seu trabalho: a propaganda,

349 GERNER, op. cit., 2012. 350 LE MONDE. “Jochen Gerner. Galerie Anne Barrault.” Le Monde. Paris, 27 de setembro de 2009. 351 Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges, entrevista feita por Laure ADLER. “Georges Didi-Huberman.” Hors-Champs. France Culture, (10-14 de Junho de 2013); Idem, Images Malgré Tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. 352 BARTHES. O Óbvio e o Obtuso. 2a. Tradução: Léa NOVAES. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

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catálogos publicitários, livros infantis, gibis americanos, histórias em quadrinhos tradicionais. Outro fio condutor de seu trabalho também seria o da não-ficção. Ele não quer desenvolver narrativas, não no sentido de narrativa grosso modo, com personagens e uma cronologia, muito menos histórias fantasiosas em que a narrativa se descole do real. Seu trabalho é, sobretudo, engajado a produzir estudos sobre determinado objeto.

Não faço ficção de modo alguma, não digo porque não me interesse, mas porque não me sinto com capacidade, porque eu nunca segui tal caminho, nunca pratiquei tal exercício. E eu gosto bastante de trabalhar a partir de restrições. Trabalhar a partir de uma dada matéria prima, que vai decidir depois a forma do livro. Para mim, na ficção, há um pouco um aspecto de demiurgo: inventa-se um mundo, que sai inteiramente de nossa cabeça, e eu não me sinto nem com força nem capacidade. [...] Faço [ficções] raramente, e além disso é sobre roteiros de gente que conheço bem, logo eu sei que vou poder me divertir com eles nisso. Mas o que me interessa principalmente, é mesmo esse trabalho de estudo, e é por isso que há uma espécie de classificação: tento representar tudo, para que meu objeto de estudo seja também uma história em quadrinhos em si, logo refletir sobre essa mídia, que é, ao mesmo tempo, meu instrumento de trabalho, antes de tudo.353

Desta forma, o trabalho de Gerner questiona também uma das bases definitórias da história em quadrinhos tradicional, a existência de uma narrativa-condutora. Ele recusa, portanto, de apresentar uma obra puramente ficcional, e tenta valorizar a história em quadrinhos não apenas como suporte ou instrumento para uma determinada mensagem, mas um objeto estético ou um meio em que uma análise possa ser elaborada. Assim, ele busca formas de livros e de personagens bem conhecidos que servirão de base para seus projetos de livros e de exposições: “A obra não se reivindica ex nihilo.”354, diz, demonstrando também uma consciência extrema de seu trabalho, em que cada desenho é muito bem pensado. E, nas obras em que o aleatório atua de forma importante (como o acaso que é reunido em CLBD, e outros trabalhos em que realiza desenhos automáticos de Branchages), é um acaso direcionado e dominado, desde a escolha da regra que exigirá cálculo e vigilância constante.

353 “Je ne fais pas du tout de fiction, je ne dis pas que ça ne m’intéresse pas, mais je ne m’en sens pas la capacité, parce que je ne suis jamais allé dans cette direction-là, je ne me suis jamais entraîné à cet exercice-là. Et j’aime bien travailler à partir de contraintes. Travailler à partir d’une matière première donnée, qui va décider après de la forme du livre. Pour moi, dans la fiction, il y a un peu un aspect démiurge : on invente un monde, qui sort entièrement de notre tête, et je ne m’en sens pas la force et la capacité. [...] Je le fais rarement, et de plus c’est à partir de scénarios de gens que je connais bien, donc je sais que je vais pouvoir m’amuser avec eux à ça. Mais ce qui m’intéresse principalement, c’est vraiment ce travail d’étude, et c’est pour cela qu’il y a cette sorte de classification : j’essaie de tout représenter, que mon sujet d’étude soit aussi bien la bande dessinée elle-même, donc réfléchir sur le médium, qui est à la fois mon outil de travail, que tout autre chose.” GERNER, op. cit., 2012. 354 GERNER, op. cit., 2010.

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Tanto em seu trabalho como artista plástico como no de autor de histórias em quadrinhos, a sua busca por um “original” se impõe sobre materiais ordinários, como comic books americanos, catálogos da IKEA, álbuns de histórias em quadrinhos ou literatura infanto-juvenil; ele busca o que seria bem representativo para a “era da reprodutibilidade” – ele cita em entrevistas o termo benjaminiano – para servir-se de tal material como um palimpsesto. Ele cobre de tinta tais imagens. No caso das obras plásticas, ao espectador ainda é possível descobrir o fantasma do material de base coberto pela tinta, o que não é possível no livro impresso, salvo a menção explícita a outras obras, de forma visual ou plástica. É a prática do détournement que será uma das mais comuns em seu trabalho, palavra cara aos situacionistas, cuja prática alia crítica e política. Antes dos situacionistas, os quadrinhos já haviam interessado como prática ao grupo Cobra (1948-1951) de Asger Jorn, Dotremont, Constant e Karen Appel. Em sua revista epônima, investigam os comics como material possível de uma “mitologia dos tempos modernos”. O artigo justapõe pressupostos elaborados na Temps Modernes sobre a violência intrínseca nos comics a um strip transformado pelo método oubapiano (por antecipação, evidentemente) da redução – uma história inteira reduzida a apenas alguns quadros. A sequência ironizava o próprio texto, evocando a violência, mas elipsada. Esse artigo antecipa o pensamento situacionista de usar a mass media contra a si mesma, pelo détournement; ele é o ponto de partida do artigo de Antoine Sausverd, “Trop feignants pour faire les dessins ?”355 – indicado nos créditos de CLBD. Gerner, por exemplo, cria um inventário quase científico a partir da série de livros infanto-juvenis Martine,356 ou em Abtractions (1941-1968), em que ele apaga elementos de um velho gibi americano para transformá-lo em uma obra “abstrata”. É sempre uma obra assombrada por outra que a precedeu: o “fantasma do signo”, lembrando que nenhum texto existe sem filiação. “A aparição do signo é pensada sobre o fundo’ de desaparecimento”. Seu trabalho pretende uma dialética, colocando sempre em questão a forma sobre a qual é operado, deixando rastros a serem descobertos pelo leitor. Apesar da variedade de sua obra, desde o multicolorido livro para crianças ao minimalismo icônico em preto e branco, é possível reconhecer seu estilo, sua assinatura gráfica, por seu traço espesso, firme, em que a continuidade pode ser quebrada por uma linha que é refeita para dar mais espessura. Seu minimalismo visual também pode ser aplicado ao texto: praticamente inexistente. Se o texto é a fonte de inspiração de CLBD, somos

355 SAUSVERD, Antoine. “Trop feignants pour faire les dessins ? (le détournement de la bande dessinée par les Situationnistes).” In: L'ASSOCIATION. L’Éprouvette nº 3 (janeiro 2007): 129-180. 356 Criada por Marlier et Delahaye em 1954 (Casterman). Publicada em português com o nome Anita pela editora Verbo desde os anos 1950.

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advertidos ao final do livro que nenhuma palavra foi “inventada” pelo seu autor, transformando os blocos de texto em imagens por si só, ready-mades visuais ou objets trouvés. E é esse um dos trabalhos mais tagarelas de Jochen Gerner, mesmo que ele só enuncie um discurso pela via do desenho. A leitura que Gerner faz de seus “fantasmas” é, em si, um estudo de seu suporte, que é sobretudo a história em quadrinhos. É de fato um trabalho de erudito, tal qual o oulipianos compreendem esse papel: eles buscam “novas” restrições no passado, que lhes servirão de matéria de criação literária. Eles chamam criações resultadas de restrições conhecidas ou não do passado de “plágios por antecipação”. Por exemplo, uma das técnicas do OuBaPo, a iteração icônica, consiste em repetir um elemento gráfico de uma história em quadrinhos, alterando-se o restante. As histórias em quadrinhos elaboradas previamente à enunciação de tal recurso faz dessas obras “plagiadoras por antecipação” do OuBaPo. Define-se como um jogo em que a elaboração das regras – mesmo que de aplicação pré-existente – dirá quem é “autor” do jogo; mas, na verdade, indica, para o oulipiano ou oubapiano, um sentido de filiação sem ordem direta, em um exercício que recusa a ideia de originalidade da obra. Gerner e os oubapianos, por sua vez, trabalham como um arqueólogo de formas, estilos e materiais. Gerner não busca nelas apenas as restrições, mas no que há neles de popular, o que impregna o imaginário contemporâneo, o que poderá ser evocado imediatamente na memória do espectador-leitor. Seu método é desconstrutor, no sentido derridiano da palavra, em que tenta demonstrar o que a ideologia apresenta como natural – em seu caso, o imaginário habitado pela indústria cultural, em que a bande dessinée é instrumento tanto propagador de estéticas quanto de ética política. O direcionamento do suporte história em quadrinhos, tão potencial pela sua plasticidade e pelo fato de alinhar imagem e texto, para um público determinado, infanto-juvenil, é um dos fatores do que Gerner pretende desconstruir. Ele não usa necessariamente materiais aos quais ele se apega, mas aqueles cujo leitorado seja voluminoso – ou melhor, materiais que já tenham se tornado clichê do gênero. Assim, quando ele desmonta ou escurece esse material, ele nos coloca a questão do papel da mulher em Martine, ou da guerra nos comic books. E ele não o faz pela elaboração de um texto crítico, mas pelo exercício artístico, ao provocar estranhamentos. Ele verifica, justamente, as camadas ideológicas e afetivas do que se vê. Talvez um historiador das imagens, ele tenta compreender a virtualidade delas, de como elas cobrem saberes, ideologias, exercícios de poder:

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Havia de fato essa ideia de – como se eu fosse um geólogo e fizesse escavações, me interesso pelas camadas que estão escondidas, e que são as mais antigas. Não é que eu tenha um amor [pelo passado] ou que tenha um percurso de historiador, me interesso enormemente ao que é feito atualmente. Porém, para poder compreender o que se faz hoje, é preciso ter integrado tudo o que se fez antes.357

Os primeiros trabalhos de Jochen Gerner já envolviam a questão da citação e o texto estrangeiro torna-se a base de grande parte de seus trabalhos, o détournement é seu principal instrumento. Tal atividade consiste em se apropriar de um material escolhido e operar sobre ele certo desvio, a partir de técnicas diversas, um vandalismo metódico, que marca um posicionamento político. A prática, de ordem paródica, foi difundida sobretudo pela Internacional Situacionista francesa – que prosseguia as démarches (procedimentos) da Internationale Lettriste. Como Debord e Wolman explicam:

Todos esses elementos, tomados não interessa de onde, podem estar sujeitos a novas abordagens. As descobertas da poesia moderna sobre a estrutura analógica da imagem demostra que há sempre uma relação que possa ser estabelecida entre dois elementos, de origens tão estranhas quanto possível. Ater-se a um arranjo pessoal de palavras não denota apenas uma convenção. A interferência de dois mundos sentimentais, a justaposição de duas expressões independentes, ultrapassam seus elementos primitivos para dar uma organização sintética de uma eficácia superior. Tudo pode servir.358

Os inventários são acumulações realizadas de acordo com critérios pré-elaborados pelo seu autor, e podem ou não virem a ser combinados de forma a integrar um discurso, um comentário. O inventário é sistemático, mas sua forma é fragmentária, próxima ao álbum. Comentando sobre o assunto com os artistas gráficos Thomas Courdec e Clément Vauchez, que formam o duo “Helmo”, Jochen Gerner fala sobre seu trabalho como um pingue-pongue, e afirma que “Frequentemente, a arte procede assim, por ricochetes descontrolados”359. Ele faz esse comentário após analisar um trabalho do artista plástico

357 “Il y a vraiment cette idée de — si je suis un géologue et que je fais un forage, je m’intéresse aux couches qui sont cachées, et qui sont les plus anciennes. Ce n’est pas que j’ai un amour ou que j’ai un parcours d’historien, je m’intéresse énormément à ce qui se fait actuellement. Mais pour pouvoir comprendre ce qui se fait aujourd’hui, il faut avoir intégré tout ce qui s’est fait avant.” GERNER, op. cit., 2012 358 “Tous les éléments, pris n’importe où, peuvent faire l’objet de rapprochements nouveaux. Les découvertes de la poésie moderne sur la structure analogique de l’image démontrent qu’entre deux éléments, d’origines aussi étrangères qu’il est possible, un rapport s’établit toujours. S’en tenir au cadre d’un arrangement personnel des mots ne relève que de la convention. L’interférence de deux mondes sentimentaux, la mise en présence de deux expressions indépendantes, dépassent leurs éléments primitifs pour donner une organisation synthétique d’une efficacité supérieure. Tout peut servir.” DEBORD Guy, e Gil J. WOLMAN. “Guy Debord et Wolman: Mode d'emploi du détournement.” Sami is free. 2002. http://sami.is.free.fr/Oeuvres/debord_wolman_mode_emploi_detournement.html (acesso em 12 de outubro de 2014). 359 “L’art procède ainsi souvent par ricochets incontrôlés.” GERNER Jochen, e HELMO. “Ping-pong avec Jochen Gerner.” Une Saison Graphique 13 (catalogue d’exposition). Le Havre – Rouen: Franciscopolis

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Gerhard Richter, em que uma fotografia banal é recoberta de pintura abstrata, possibilitando ao espectador um a jogo entre as duas realidades sobrepostas, um “vaivém” que criaria uma terceira realidade, como a imagem formada pelos quiques de uma bola de pingue-pongue. “Pingue-pongue” também se elabora entre Jochen Gerner e Helmo. Ele consistia no envio de imagens de artistas contemporâneos que jogavam justamente com o procedimento preferido desses artistas: “recobrimento, palimpsestos, trabalho sobre camadas”. 360 Cada artista deveria comentar a imagem enviada pelo outro, e os comentários abrangia também as escolhas pessoais de cada um para tais procedimentos. Para os artistas do Helmo, que também adotam tal procedimento de recobrimento (no caso, em uma de suas séries, Jazzdor, 2008, duas fotografias se sobrepõem uma a outra, mas continuam visíveis, impressas, cada camada, em cores contrastantes), eles adotariam uma “lógica arqueológica de estratos”. A primeira série Stratigraphie 1 tomava cartazes desenhados sob encomenda para a publicidade e os transformavam em peças de exposição pelas técnicas de recobrimento. Em uma segunda série da Stratigraphie, as mesmas peças se tornavam novos cartazes publicitários. Para Gerner, ao cobrir um determinado suporte (cartões postais, quadrinhos antigos, fotografias), procedimento que ele realizou para diferentes exposições e livros, “a pintura se nutre de pintura”, em uma busca de imagens fantasmas, e é nesse vai e vem que se elabora uma terceira imagem, uma imagem discursiva. 361 Recorrer a um determinado material existente serve a analisá-lo, a discuti-lo, pela via do confronto desse material com outras substâncias. Em TNT en Amérique (2002), por exemplo, ele recobre as páginas do livro de Hergé Tintin en Amérique. A técnica, chamada de caviardage, provém do apagamento com tinta preta trechos de textos que deveriam vir a ser censurados. A tinta preta contrapõe-se semanticamente ao ambiente da linha clara promulgada por Hergé. Além de salientar elementos violentos que aparecem recalcados na obra do autor de Tintim, Gerner evidencia como a clareza é elemento de disseminação de uma ideologia perversa, que põe luz para ocultar o tabu. Ao chocar a censura do preto com a aparente transparência da linha clara, ele dá relevo a atos falhos

Éditions en collaboration avec Edgar (Exposer le design graphique, Actes & Recherches)/ESADHR (École Supérieur d’art et design), 2013. 35-47, p. 40. 360 Ibidem, p. 35. 361 A conversa em forma de ping-pong double canadien continua na revista Désordres, que também conta com a capa ilustrada por Gerner e trechos de seu trabalho Johnny perd l’équilibre – por sua vez, parte da série de obras plásticas e livro elaborados a partir de velhos comics americanos. (FOTOKINO & LANTERNA MAGICA, 2013) A revista é produto de uma série de exposições no Studio Fotokino em Marselha e parece ter sido especialmente projetada para e por Gerner; referências comuns no seu trabalho, como Snark Park de Lewis Carroll, o oulipiano Georges Perec, mapas e cartas brancas são as diretrizes de uma revista que se propõe desconstrutora (derridianamente pôr em desordem).

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dessa enunciação tão ancorada em valores colonialistas. A citação em Gerner tem o mesmo valor das aspas para Roland Barthes: um sinal gráfico que poderia ajudar a desnaturar determinado termo, anunciar seu desgaste no discurso, até impedir “que a palavra coagulada reintegrasse uma natureza”.362 Dessa forma, ele desnaturaliza o que há de banal em Hergé. A citação em Gerner é signo que apresenta três níveis de significação: primeiramente, a condição de ser um elemento repetente de uma enunciação anterior – no caso de TNT (2002), todo o álbum de Hergé é signo, repetido sob a intervenção do caviardage de Gerner. A citação que Gerner faz do livro (inteiro) de Hergé é um novo sistema, em que o álbum Tintin en Amérique foi citado desde o seu formato, seu número de páginas, a paginação e a disposição de alguns elementos pela página. Não há verbos delocutórios, não há completivas, há uma citação sem incisos, mas com uma nota de fim de livro que apenas remete ao projeto. Ainda assim, há uma metalinguagem que é a composição da página, que é o próprio projeto do livro de reunir dizeres para dizer (mostrar e afirmar) que seria a história em quadrinhos. Esse é o terceiro nível de significação é composto pela forma que toma o álbum, é o uso da cor (preta), é o ato de escolha operado por Gerner. Um exercício proposto por Gerner para uma das edições da revista Mon Lapin (novo formato para o principal periódico desenvolvido pela L’Association) consistiu em convidar artistas a criar narrativas posicionando-se em algum lugar sobre os seguintes eixos: x) campo versus cidade e y) entre figurabilidade e abstracionismo.

362 BARTHES, op. cit., 2003, p. 104.

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Figura 71: Mon Lapin (ed. GERNER), 2013

A história em quadrinhos tem um espectro amplo, que é castrado historicamente à escrita (talvez por isso seu recalque iconoclasta, que tende a esconder sua bastardia de ser filha da imagem). Mas tanto escrita quanto desenhos participam da história de combinação das mesmas imagens (signos), para contar as mesmas imagens (narrativas); muda-se a configuração espacial sobre esse espectro (a equação determinante para tal configuração advinda do produto dos fatores da língua e do estilo, i.e., a categoria autor, perpassada pelo gênero, pela história etc.). Saliento, aqui, embora a referência à redução estruturalista barthesiana, não pretender pensar ainda apenas dois eixos, mas uma quadridimensionalidade em que a área da escrita (o texto, que é língua vezes estilo) sobrepõe-se à área da forma (figurabilidade versus abstracionismo), enfatizando por forma todos os traços do objeto de arte cuja transcendência não pode ser verbalizada (transcender a puro texto) sem a perda de traços de sua imanência. Essas possíveis dimensões, cortadas por diversas outras linhas paradigmáticas (gênero, suporte, ato, história, cada ordem inserida em um dos eixos, mas tangendo outros), elaboram objetos que, afinal, deveriam ser observados como fractais.

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O trabalho de artistas como Gerner evidenciam essa relação consubstancial entre escrita e figuração, pela elevação do traço da mestiçagem (repito, inerente à escrita) a signo (como uma camada visível entre a escrita – o texto – e a sua forma – a letra “transparente”, tipografada ou a opacidade figurativa do ideograma). A “trapaça salutar” operada pela literatura seria poder fazer deslizar significantes e significados, da fuga às relações de poder na subversão pelo estranhamento. A trapaça dessas configurações ideogramáticas, por sua vez, é oposta à possibilidade de uma transcendência, de uma metafísica: os sentidos não podem fugir àqueles significantes, àquela materialidade, não podem virar palavra. O contrário também sendo possível, o escrito sendo inconvertível em imagem.363 Se todas as narrativas podem ser reduzidas a algumas poucas dicotomias, a combinatória oulipiana nos demonstra que, por outro lado, a potencialidade gerativa dos dizeres é infinita. Parafraseando Chklovski (que plagia Manoel de Barros e João Cabral por antecipação), a arte é o procedimento que devolve sensibilidade à pedra.

363 “Uma imagem vale mais do que 1000 palavras. Mas vai dizer isso com uma imagem?”, como disse o desaforístico Millôr Fernandes.

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Figura 72: VANDENBROUCKE, 2014

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6 Conclusão

Abro CLBD em uma página qualquer, serendipidamente, caio na página 69, e os olhos vão para o alto da página, com “tiras para decifrar [des bandes à déchiffrer]”. Bonheur de Gerner, a leitura de seu livro nunca dará ao seu leitor uma mesma sequência.364 Seu livro se propõe, de fato, a ser decifrado ou, simplesmente, olhado. Verifica-se, pelas contradições, essa impossibilidade em definir um discurso ou os discursos sobre a história em quadrinhos, e a sua espécie em si.

Por detrás de dezenas de pílulas divertidas, sente-se por vezes apontar uma crítica da história em quadrinhos que, por certos aspectos, alimenta ideias preconcebidas, e contribui a estragar sua própria credibilidade. Contre la bande dessinée expõe o problema, ao leitor de resolvê-lo.365

Os desenhos pretendem ironizar tais discursos, e o ato de coletá-los e expô-los pode ser entendido como uma crítica. A montagem é a forma de conhecimento, um saber, elaborado pelo artista.366 “Onde nada está no lugar certo, há desordem. Onde não há nada no lugar certo, aí tem ordem.” 367

Voltando às citações diretas de Proust, a epígrafe nos anuncia uma tempestade, também uma imagem de uma angústia. Imagem esta que é atualizada pela última citação, desfeita pela imagem de um raio de sol que se aproxima da janela. Aproximadas, as duas imagens podem ser lidas como um tormento inútil, que toma enormes proporções – a angústia da tempestade sendo, aliás, a representação em imagens da angústia do narrador diante da recepção de seu artigo em um jornal pela sua mãe. O narrador de Proust aguarda uma avaliação crítica. No contexto em que se inserem no livro de Gerner, porém, iniciando e terminando o livro, tais inscrições adquirem uma nova extensão metafórica. Há uma tormenta que não aconteceu, e a crítica a uma crítica que talvez não passe de uma tempestade em copo d’água. À acusação de que os quadrinhos sejam o mais baixo nível em termos culturais, Gerner mistura Proust com seus desenhos “simplistas”.

364 “Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não se pula nunca as mesmas passagens. [Bonheur de Proust: d’une lecture à l’autre, on ne saute jamais les mêmes passages.]” (BARTHES. Le Plaisir du Texte. Paris: Seuil, 1973, 224). 365 “Derrière ces dizaines de pastilles amusantes, on sent parfois poindre une critique de la bande dessinée qui, par certains aspects, alimente ces idées reçues, et contribue à gâcher sa propre crédibilité. Contre la bande dessinée pose le problème, au lecteur de le résoudre.” DEMETS, op. cit.. 366 Também o é o trabalho do historiador, como lembra Paul Ricœur, que também reafirma que o discurso do historiador, entre duas narrativas (do documento ou testemunho e do discurso que da história que ele escreverá) também é a criação de uma ficção. 367 “Là où rien n’est à sa place, c’est le désordre. Là où, à la place voulue, il n’y a rien, c’est l’ordre.” BRECHT, apud DIDI-HUBERMAN, op. cit., 2009, p. 98.

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A montagem de Gerner é uma metalinguagem a partir do momento em que seu objeto de reflexão é o texto e o desenho que ele dispõe, volta-se para sua página, en abyme. Outro nível de metalinguagem é o próprio conjunto do livro, um inventário em quadrinhos que os discute. O ato de repertoriar e dispor esses “documentos” é um ato de arqueólogo ou historiador – Gerner prefere dizer “geólogo”. Para que exista dialética, duas imagens são justapostas, uma após outra, e a terceira será a síntese das duas primeiras. Uma imagem não apenas evoca uma narrativa, mas pede outra imagem, para que haja significação. Esse livro não é um romance, no sentido de uma sequência narrativa. Não apresenta tiras desenhadas (bandes dessinées) nem quadros, tampouco uma história (em quadrinhos). Sim, é uma obra que trata seu objeto implodindo-o: a história em quadrinhos. Apesar de apresentar textos e imagens em páginas compondo-se com uma coerência interna mais ou menos evidente, sua leitura não é feita de forma sequencial como uma bande dessinée. Aproxima-se muito mais do álbum de Mallarmé368, pelo seu formato de compilação, mas sem necessariamente uma recusa do álbum em si como projeto, um livro definido por ser um álbum.

Volto à página 69. Mais uma vez, revejo o tipo-autor, ele folheia um livro, intrigado. En abyme, observo com atenção tal figura dentro do livro, tentando enxergar as conexões desse tipo com os outros dispersos sobre a mesma página: de perfil, dois tipos professorais (o tipo de óculos, que também é tipo reiterado no livro e o cabeludo “professor de francês”), um valete, uma dama do baralho; de frente, a gradação na transformação de um personagem “esvaziado” em um personagem “marcado” (um palhaço), um rei e um cavalheiro, este último um “intruso” no baralho. Esta página também apresenta outros tipos – ou motivos, no sentido de fragmento musical – que se repetem ao longo do livro: o “canhão”, o livro ou álbum de quadrinhos, a divisão em gaufrier (aqui representada dentro de um “livro” e simulando um jogo da velha), o balão de texto e uma minhoca que protagoniza diversas “tiras”, como o personagem-tipo de BD. Cada um desses motivos relaciona-se a um nível diverso da história em quadrinhos. Aqui, cada um desses elementos é reiterado como ilustração e como se fossem os personagens de facto da obra CLBD: o suporte (álbum), a divisão da página (o modelo gaufrier), a tira (da minhoca), o balão de texto, o crítico (o tipo de óculos), o autor (o

368 Cf. BARTHES, op. cit., 2005, p. 115, 123.

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tipo alter ego). A forma de realização de cada um desses elementos, mínima, faz deles elementos de fácil integração à letra. Uso o termo motivo para, de fato, enfatizar a relevância do ritmo na distribuição das páginas em CLBD. Além de constituir-se como uma forma de escrita, essa escrita é composta como uma notação musical. Evidencia-se, aqui, a possibilidade de uma história combinatória, a partir de elementos mínimos (notas musicais, letras, pictogramas).

Falar implica a seleção de certas entidades linguísticas e sua combinação em unidades linguísticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia imediatamente ao nível lexical: quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza; as frases, por sua vez, são combinadas em enunciados. Mas o que fala não é de modo algum um agente completamente livre na sua escolha de palavras: a seleção (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a partir do repertório lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem em comum.369

Contre la bande dessinée é uma análise sobre a potencialidade autorreflexiva e poética dos quadrinhos. A obra de Jochen Gerner é direcionada a um público restrito, o de agentes de um circuito das histórias em quadrinhos (autores, leitores, críticos), interessados em uma reflexão sobre os códigos dessa linguagem. Seu livro constitui-se de material polifônico, e é na montagem elaborada pelo seu autor que garante uma discursividade de embate (contra e entre) os discursos (ou os ruídos) elaborados em torno das histórias em quadrinhos. O caráter da escolha é extremamente importante, o que o faz se assemelhar do pensamento sobre a arte desde Duchamp, com um prazer pelo arquivo e pela montagem, minimalista quanto a sua forma, e tendo a restrição como medida cautelar, método seminal de trabalho.

Sinto-me, de toda forma, um pouco estrangeiro em todos os domínios que abordo. Quer dizer, eu sou talvez percebido como um desenhista de “bédé” pelo mundo da arte, como uma “artista” pelo meio da bande dessinée, etc. Por natureza, sempre tive o sentimento de ser percebido como um estrangeiro. Para fazer um paralelo não tão desprovido de sentido, eu sou franco-alemão, tenho a dupla nacionalidade: sou um alemão para os franceses, um francês para os alemães. Além do mais, eu sou da Lorena, uma terra de invasões e de cervejarias, uma feliz salada russa longe das dobras identitárias da maioria das regiões.370

369 JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 24. Tradução: Isidoro BLIKSTEIN e José Paulo PAES. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 25. 370 “Je me sens de toute façon un peu étranger à tous les domaines que je côtoie. C’est-à-dire que je suis peut-être perçu comme un dessinateur de “bédé” par le monde de l’art, comme un “artiste” par le milieu de la bande dessinée, etc. Par nature, j’ai toujours eu le sentiment d’être perçu comme un étranger. Pour faire un parallèle pas si dénué de sens, je suis franco-allemand, ai la double nationalité : je suis un Allemand pour les Français, un Français pour les Allemands. Je suis lorrain de surcroît, ce qui

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A citação se torna détournée, pela composição significante que ela toma na página. Ao contrário do comando apresentado por Debord e Wolman, a citação aqui não é “trucada” em seu texto; o próprio ato de extraí-las e reuni-las, por si, é um ato de crítica sem um ataque direto, mas sutil, pela via da dialética da montagem da página. Sem se preocupar com uma narrativa, mas sim com uma reflexão, CLBD se torna uma obra conceitual, refinada. Leitura potencialmente inumerável, posto que se leia dialeticamente. Como uma constante em seu trabalho, mesmo nos menos figurativos, não há de forma alguma um descolamento do real, dando importância ao factual (resíduos do discurso corrente), ao trabalho com o material pré-existente. Uma obra mais analítica, tão crítica quanto estética. Ela apresenta de forma fragmentária esses resíduos (ouvir dizer, coisas lidas “por aí”), ao mesmo tempo em que costurados em torno de “temáticas”, ou pelo viés do desenho. O desenho minimalista acaba se tornando uma tipografia, eliminando a possibilidade de uma hierarquia pictural entre textos e desenhos ali expostos. Ainda que o texto predomine, não haveria diferença entre ambos. Desenho e texto participam de um mesmo nível que dissolve um no outro. O caráter dessa dissolução entre os dois níveis cria um efeito estético que possibilita ainda um gozo por parte de um leitor experimentado – próximo ao literário. E completamente ilegível para um leitor tradicional de histórias em quadrinhos. As imagens que Gerner nos dá a ver, não nos são dadas facilmente. Os discursos que ele põe em cena estavam, decerto, alheios ao seu potencial derivativo. Deslocados, realocados nessa antologia de frases entreouvidas e recortadas, compõem uma obra que se lê pelos seus nós. Ao abri-la, nunca lemos as mesmas imagens, podendo sempre identificar novos sentidos e construções possíveis. A evocação a outros textos, o index que cria a partir desses nomes e dessas palavras-chave acaba por estabelecer-se como um hipertexto flutuante, de eternos reenvios para outros textos, materialmente.

m’empêche d’avoir une identité régionale trop spécifique. La Lorraine est une terre d’invasions et de brassage, une heureuse macédoine loin des replis identitaires de la plupart des autres régions.” GERNER, op. cit., 2012.

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ANEXO 1: BIBLIOGRAFIA E EXPOSIÇÕES DE JOCHEN GERNER

A lista abaixo se encontra disponível no site do autor (www.jochengerner.com).

Livros de imagens e história em quadrinhos Roteiro e desenho próprio Panorama du froid, L’Association, 2013. Flipochrome, poster, Lendroit éditions, 2011. Abstraction (1941-1968), l’Association, 2011. Panorama du feu, coffret de 51 livrets, l’Association, 2010. Branchages, carnet de dessins téléphoniques (2002-2008), l’Association, 2009. Grande Vitesse, l’Association, 2009. Marseille panorama polaire, éditions Fotokino, 2008. Vokabelheft, coleção Dans la Marge, Arts Factory, 2008. Contre la bande dessinée, l’Association, 2008. Le Saint Patron, l’Association, 2004. En Ligne(s), carnet de dessins téléphoniques (1994-2002), l’Ampoule, 2003. TNT en Amérique, l’Ampoule, 2002. Malus, collection Maculatures, éditions Drozophile, 2002. Berliner Architektur, coleção 2w, B.ü.L.b comix, 2001. (Un Temps.), éditions du centre Georges Pompidou, 2000. / reedição pela l’Association, 2001. Berlin (Jochenplatz), éditions du Rouergue, 2000. La Ménagerie intérieure, (les grandes surfaces n°1), éditions Moreno, 2000. Jochen Gerner Tout Nu, éditions Moreno, 1999. Courts-circuits géographiques, l’Association, 1997. Snark Park, éditions Automne 67, 1997. Boîte de vitesses et viande en boîte, l’Association, 1995. Le petit Théâtre d’Olrik, éditions Archives Internationales, 1993.

Em colaboração com outro autor 100.000 milliwatts (printemps), (roteiro: Diego Aranega), éditions Delcourt, 2007. OuMuPo 1, (música: The Third Eye Foundation), Ici d’ailleurs, 2004. Politique étrangère, (roteiro: Lewis Trondheim), l’Association, 2000. Prospectus Box, (grafismo: Frédéric Rey), éditions du Rouergue, 1998. Le Désastre, (texto: Mireille de la Rue), éditions les 4 Mers, 1996.

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Livros infanto-juvenis (jeunesse) Machin-truc, Les Fourmis rouges, 2013. Coloriage !, éditions Milan jeunesse, 2006, 2012. Picto-picoti-paysage, (papier peint), The Mark on the Wall, 2012. Atchoum !, collection Tête de lard, éditions Thierry Magnier, 2005. www.esperenoel, (texto: Olivier Douzou), éditions du Rouergue, 1999. Harry Staute, éditions du Rouergue, 1999.

Obras coletivas La Galerie des Illustres, éditions Dupuis, 2013. Mappamundi, art et cartographie, éditions Parenthèses, 2013. Questions d’artistes, Collège des Bernardins, 2013. Chouette ! Philo, Gallimard jeunesse Giboulées, 2012. Dixparitions 2003-2013, My monkey, 2012. Mappamundi, Museu Colecçao Berardo, 2011. Anthologie - Aires de jeux d’artistes, Vincent Romagny (org.), éditions Infolio, 2010. XX / MMX, l’Association, 2010. Tunes, Universe Publishing, 2010. Rock Strips, éditions Flammarion, 2009. Le Petit Larousse 2010, éditions Larousse, 2009. Génération Eurostar, éditions Pyramyd, 2009. Je voudrais pas crever, Boris Vian, éditions les Allusifs, 2008. Mimolette party, (hors commerce), l’Association, 2008. Toy Comix, l’Association / Musée des Arts Décoratifs de Paris, 2007. Cahier d’images, Salon du livre et de la presse jeunesse en Seine-Saint-Denis, 2007. If you could do anything tomorrow – what would it be?, If you could, 2007. Antimanuel de Droit, (texte : Emmanuel Pierrat), éditions Bréal, 2007. Tous coupables !, aux éditions du Faciès, Les cochons enragés, 2007. Antimanuel de Médecine, (texto: Jean-Paul Escande), éditions Bréal, 2006. Antimanuel d’Éducation sexuelle, (texto: Marcela Iacub e Patrice Maniglier), éditions Bréal, 2005. Val Maubuée, itinéraires, Trans Photographic Press, 2005. Brasilia, ventura ventis, les Requins Marteaux, 2005. L’Appareil, les éditions de la Pastèque, 2005. Oubapo – Oupus 4, l’Association, 2005. Color Star, un Sourire de toi et j’quitte ma mère, 2004. Antimanuel d’Économie, (texto: Bernard Maris), éditions Bréal, 2003.

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BD à Bastia, dixièmes rencontres de la bande dessinée, centre culturel Una Volta, 2003. Mis Primeras 80.000 Palabras, Media Vaca, 2002. Absinthe, précis de la troublante, l’Ampoule, 2002. D’un Point à l’Autre, Le Serpent à Plumes, 2002. Dessins d’auteurs / dix auteurs de bande dessinée en France, AFAA, 2002. Oubapo - Oupus 2, l’Association, 2002. Antimanuel de Philosophie, (texte : Michel Onfray), éditions Bréal, 2001. Jeux d’Influences, PLG, 2001. Tati, éditions Drozophile - Centre Culturel Una Volta de Bastia, 2000. Comix 2000, l’Association, 2000. Les vacances de l’Oubapo – Oupus 3, l’Association, 2000. Le Livre de Cuisine de la Série Noire, (texto: Lauterbach e Raybaud), éditions Gallimard, 1999. Tsé-Tsé, éditions du Rouergue, 1998. Oubapo – Oupus 1, l’Association, 1997. Périphéries, l’Association / La Villette, 1994.

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ANEXO 2: ENTREVISTA COM JOCHEN GERNER

Transcription de l’entretien avec Jochen Gerner. 1er avril 2014, les locaux de L’Association (Paris, 19e). À l’origine de l’entretien, un échange de e-mails à propos d’expositions récentes de Jochen Gerner (L’exposition “Komiks” à l’Erarta, musée d’art contemporain à Saint Petersbourg et Ceci n’est pas une bande dessinée, dans le cadre du festival “Pulp”, à Noisiel-Torcy, auxquels j’ai pu assisté sur place). JG: Je n’ai pas pu allé à Saint Petersbourg. Ils devaient m’inviter à un moment donné mais après je n’ai pas eu de nouvelles, du coup… MC: C’étaient des reproductions ? JG: Oui, c’étaient des reproductions […]. Ils voulaient prendre des dessins originaux, mais après ils ne pouvaient pas payer l’assurance, et du coup la galerie ne pouvaient pas les confier à quelqu’un, c’était trop lourd et alors il ne fallait pas… MC: C’est normal. […] Mais c’était intéressant, plutôt une exposition pour introduire la bande dessinée aux russes. Un peu hors contexte sur la bande dessinée, la typographie un peu “comics”,371 les dessins, il y avait des travaux qui n’étaient pas mal, des auteurs russes que je connaissais pas du tout… et la galerie était bien aussi. JG: Et la galerie, elle était… c’est un musée, en fait ? MC: C’est un musée, oui, d’art contemporain, je connaissais peu sur l’art russe… À part cette exposition, des autoportraits de chaque auteur exhibé au musée… c’était intéressant. Mais je n’avais pas encore remarqué vos “Relectures”, que vous aviez mis sur votre site,372 et c’est là que j’ai compris le pourquoi de l’énumération du Grand Défi,373 dans le Contre la bande dessinée, Je crois que j’ai compris, plutôt… JG: Ah… mais en fait ça n’a pas à voir. MC: Ah bon ? Je vois un petit rapport, dites-moi… JG: Oui, oui, en fait, c’est une sorte de lecture, de bande dessinée, sur comment on peut avoir une nouvelle lecture si on focalise uniquement sur des petits détails et sur des thématiques bien précis, donc, le Grand Défi dans CLBD c’était normalement par rapport aux onomatopées, à la manière dont on peut écrire ça… Il y a un côté très sonore d’une bande dessinée. Ça revient beaucoup dans cette bande dessinée là, et après, c’est vrai que j’ai traité le même album. Pour la série Relectures, cela c’était sur des petits détails qui me faisait penser à d’autres [ouvrages]. Donc c’était complètement, complètement différent là. MC: Ma question est sur la manière, la méthode du comment [les pages sont] numérotées, il s’agit de la même pratique ?

371 Comme dans les albums américains. 372 Voir figures à partir de la page 22. 373 Album de Jean Graton, de 1959.

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JG: Ah, oui ! D’accord ! C’est le numéro de la page et la lettre, en fait, c’est dans l’ordre des présences. Si je mets “12c”, par exemple, ça veut dire que c’est la page 12 de l’album et “c” c’est la troisième case, abc. MC: J’ai pu imaginer ça à partir des Relectures. JG: Ah, oui, d’accord. MC: Donc, avant, j’essayais de faire un jeu, de relier, les pages, les lettres, et seulement quand j’ai vu les Relectures, je me suis dit : ah, c’est ça. JG: Et pour moi, c’est une sorte de code, des petites étiquettes, ce n’est pas forcement pour dire au lecteur qu’il faut regarder l’album à côté, et puis faire des comparaisons, c’est ça. Donc, a priori, sauf pour des personnes qui, comme vous, font un travail, une thèse, c’est très précis, qui ont besoin de voir des choses. Après pour le lecteur, c’est sauf pour dire, voilà, c’est référencé dans l’album. MC: Mais, de toute façon, ce que je trouve plus intéressant, justement, c’est de faire les gens relire. Là aussi, ça dévoile un peu votre envie de cataloguer aussi. JG: Oui. MC: D’écrire une encyclopédie… JG: Oui, oui, c’est ça. En fait, on peut raconter une histoire en énumérant juste, en plaçant les choses les unes à côté des autres, comme dans le CLBD, en fait, finalement, le simple fait de placer une citation à côté d’une autre, à côté d’une autre, ça me permettait d’avoir une sorte de discours, en fait, un peu analytique sur une thématique de la bande dessinée mais pas forcément. Moi, je n’ai fait aucune phrase, j’ai pris juste des phrases en les mettant par thématiques comme ça. Enfin, j’ai mis juste un dessin, j’essaie de faire les choses le plus simplement possible, je pense que ce n’est pas la peine de faire toute une sorte de discours, comme ça, reconstruire une autre histoire. Je pense que le simple fait de faire des listes c’est suffisamment significatif pour dire des choses. Finalement, une planche d’une bande dessinée, c’est un petit peu comme une liste, c’est des cases, des dessins, les uns à côté des autres. Donc ça va bien avec ce registre là, la bande dessinée, l’énumération, ça aussi se prête bien. Et puis on peu faire des planches avec des cases, on peut faire des petites images les une à côté des autres en dehors des cases, il y toute sorte de représentations possibles, comme les onomatopées pour le Grand Défi, c’est encore une composition complètement différente. Donc, sur ce principe simple, j’essaie d’élaborer des types d’écriture différente, en fait. Voilà. MC: Depuis longtemps vous recueillez des phrases. Et aussi des petits détails. JG: Oui. MC: Vous rappelez-vous quand vous avez commencé à avoir cette envie de collecte ? JG: Oui, là je travaille sur un second ouvrage dans une orientation un petit peu différente, avec des thématiques complètement différentes. Ça sera pas CLBD “tomme 2”, ça s’appellera peut-être même pas comme ça, mais en fait, à l’origine, pour le premier, j’ai commencé en découpant des choses dans un journal, parce qu’il me semblait tellement ahurissant ce qui était dit. Et puis, après, j’ai collecté, j’ai collecté… Voilà, sans savoir ce que j’allais en faire. Je savais que je voulais mettre ça dans un livre mais je ne savais pas trop comment. Ça m’est venu dans un second temps, en fait. Et

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peut-être qu’à l’origine ça aurait été d’articles à écrire, comme dans la revue Éprouvette,374 en fait, où ça serait des citations et une réflexion là-dessus. Et puis, après, je me suis dit que ça serait intéressant de finalement juste mettre les phrases dans ce nouveau livre où aucune phrase ne serait de moi, et que j’y réponde uniquement par le dessin. Pour un peu les éclairer, et justement, le fait de mettre dans un ordre, les unes après les autres, ici en recherchant une sorte d’effet comique, en les classant… Parce que là aussi, j’ai joué beaucoup sur le comique de répétition, justement. Donc, je voyais qu’en mettant ces phrases les unes derrière les autres, ça donnait un effet plus drôle et plus ridicule, voilà. Et dans le prochain ça sera un petit peu ça par rapport à des expressions toutes faites soit autour des Pieds Nickelés, des expressions du capitaine Haddock, des expressions qui viennent de la bande dessinée mais qui sont énormément utilisées dans d’autres domaines… pour parler d’un fait-divers, soit dans un contexte politique, en fait les politiques utilisent beaucoup d’expressions de la bande dessiné. Puis, travailler aussi des secteurs qui a priori n’auraient rien à voir avec la bande dessinée, comme le bricolage, la pharmacie, plein de choses comme ça. Parce qu’en fait c’est intéressant de voir que c’est une chose très courante, comme le rock et la bande dessinée, ou la littérature et la bande dessinée, ce sont des thématiques qui sont souvent confrontées. J’essaye de voir où est-ce qu’on peut encore aller chercher des choses en point avec la bande dessinée. En fait, une façon de faire un portrait en creux de la bande dessinée, d’essayer de définir aujourd’hui ce qu’est la bande dessinée, aussi bien par les détracteurs de la bande dessinée, les personnes qui sont critiques de la bande dessinée, qui partent de domaines qui n’ont strictement pas à voir avec la bande dessinée et voir ce qui est possible de faire avec ça. MC: Je pense que vous vous mettez aussi au contre courant de que la bande dessinée est un langage de masse, par exemple, en en faisant un livre très difficile, la dialectique que vous mettez là, ce n’est pas vraiment tout le monde qui va réussir à le comprendre, la lecture est visuelle, dialectique… JG: Ah oui, mais c’est vrai qu’il y a des personnes qui déjà n’arrivent pas à lire une bande dessinée, une chose simple d’une case avec la bulle. Après c’est vrai que toute la problématique que mon livre aborde, cela… C’est vrai qu’elle va concerner a priori un public particulier, pas un très grand public. J’ai été critique envers ceux qui critiquaient la bande dessinée mais aussi critique envers une certaine forme de bande dessinée, une certaine façon de parler, même avec un côté positif de la bande dessinée voilà donc je me moque aussi de ça. Après la forme que prend tout ça, ça se fait un petit peu comme ça, instinctivement sans forcément penser, effectivement à me dire qu’est-ce que je pourrais faire pour que ça se vende le plus possible, alors, j’essaie plutôt de me dire qu’est-ce que je peux faire qui pour moi me semblera le plus juste par rapport au propos que je donne, en fait. D’un point de vue graphique, ce qui sera le plus juste, voilà, formellement. Quel est le livre qui soit le plus sincère, pour moi, par rapport au propos que j’ai. C’est comme ça que se forme un peu le livre, le format, la taille du livre, le papier, y a pas l’idée d’entrer une sorte de procédé de collection avec tome 1, tome 3, avec des formats très classique.

374 Il y a publié trois articles, dans chacune des trois éditions de la revue de L’Association.

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Après ça pourrait être une contrainte que j’aimerais bien aussi traiter, j’ai d’autres projets là de bande dessinée qui sont des formats plus classiques, mais parce que ça me permet de détourner des bandes dessinées qui ont ce format là. Du coup, je vais me caler sur ce format là et essayer de me faire une bande dessinée comme ça. Faire croire que c’est une bande dessinée classique, mais en fait ce ne sera pas. MC: Vous dites aussi que vous n’aimez pas inventer des histoires, mais surtout de les détourner. JG: En fait, je n’aime pas partir du rien et faire une fiction qui parte du rien, j’aime bien m’appuyer sur quelque chose, c’est l’idée de la contrainte, du fait d’être “oubapien” aussi il y a ça, et je suis plus proche en bande dessinée du documentaire, du plus analytique que… des choses de l’ordre de la fiction. Mais après j’aime bien faire de la fiction avec du réel aussi, donc, il faut que je m’appuie sur quelque chose pour construire quelque chose que j’aime bien bonder des choses déjà existantes en fait… que ça soit dans la réalité ou que ça soit du support imprimé. Et parler des images déjà imprimées. Mais moi je fais très peu de choses dans le domaine de la fiction. Je n’ai pas non plus fait tellement d’autobiographies. J’ai fait un livre sur le récit de voyage, mais c’était plus parler de ce que je voyais que parler de moi. MC: Les Courts-circuits375… JG: Oui. MC: Et après vous l’avez détourné en plus. JG: Oui, c’était une planche où j’ai refait une petite histoire de trois à quatre planches où j’ai redessiné l’histoire du comment ce serait si je n’avais pas eu de visa. Comment ça se serait passé, si je n’avais pas eu de visa. MC: Ah non, je n’ai pas vu ça, j’ai vu la planche des 20 ans… JG: Mais ça je ne sais pas où c’est paru… MC: J’ai vu la planche que vous avez refaite à partir de la première planche pour les 20 ans de l’Association. JG: Oui, sur une planche avec des immeubles de New York. MC: Oui, mais je n’ai pas vu l’autre. JG: L’autre, c’est apparu dans un Lapin… Ah non, c’était paru dans une revue qui s’appelle Livraison, j’avais l’impression que c’était à L’Association, parce que Jean- Christophe Menu avait écrit un texte sur ce travail là, mais c’était pour une revue qui s’appelle Livraison, d’art contemporain et qui avait été éditée à Strasbourg. […] MC: Vous faites le lettrage à la main. JG: Oui. Ça c’est important pour moi aussi, mais c’est parce que la manière d’intégrer la typographie, la lettre comme quelque chose faisant partie aussi du dessin. Ça créait une frontière trop grande entre finalement ce qui est dit et ce qui est montré visuellement, en fait. Et je veux tout intégrer que tout soit une sorte d’ensemble cohérent. J’attache autant d’importance à l’écriture que… et même si j’avait pu utiliser

375 Cf. nota 254.

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le même outil je l’aurais fait. Mais là comme il y a une grande quantité de texte, du coup ça me semblait impossible de dessiner au pinceau, les lettres, parce que tous les dessins sont fait au pinceau, mais tout ce qui est écrit c’est fait avec un feutre fin. Mais c’est mon écriture. Et après il y a tout un travail d’agencement, de dessin. Parce qu’en fait, quand je commence le matin quand je commence ma planche, je sais exactement ce que je vais y mettre, en fait. Je fais un petit croquis par rapport aux phrases et je sais à peu près le nombre de phrases, mais je ne sais pas exactement comment la planche va s’agencer, en fait. Puisque c’est une sorte d’un jeu, d’une imbrication, comme si je faisais une maquette d’un journal, en fait. Puisque là je ne m’appuie pas sur un système de cases, et que c’est une sorte de… je dois tenir compte de la taille du texte, de ce que je vais illustrer, si ça va être un tout un petit dessin ou un grand dessin voir comment ça va devenir après et s’y mettre pour que ça ait une sorte de logique aussi dans le placement et dans la lecture. MC: C’est ça que je voulais dire, il y a une logique de la justification du texte par rapport à la page. JG: Par rapport à une dimension de page. Oui, oui, je fais attention à ça, pour que ça soit… c’est à dire que si je ne faisais pas ça, il y aurait peut-être un trop grand… parfois des trop grands vides. Ou des trop grands plans, et du coup qui allait attirer l’œil. Et on allait se demander pourquoi il y a cette chose là. En fait, ce n’est pas du tout comme un carnet de croquis où les choses se posent aléatoirement, c’est plutôt quand même quelque chose d’un peu composée. Et là, souvent, pour la presse, ça se passe comme ça. Et là je commence une rubrique pour un nouveau magazine qui va sortir toutes les semaines et qui est composé de la même manière. Ça sera le premier numéro, je vais à la soirée du lancement ce soir, mais ça sortira le mercredi prochain. Ça s’appelle Le 1. MC: Le U-N ? JG: Ça c’est avec un chiffre. MC: Ah, d’accord. JG: Mais ça sera normalement, et voilà, ça se fait comme un format comme ça, puis ça se déplie comme une affiche. Et moi, j’ai un dessin… en fait je travaille avec une journaliste, toujours la même, qui me donne les informations et il y a une thématique, à chaque semaine, et je dois la traiter. MC: Et vous préparez aussi beaucoup d’expositions… Je vois. JG: Oui, ça dépend des périodes, beaucoup de choses aussi qui sont extérieures, les expositions plutôt… il y a des choses qui ont déjà été achetées, et qui sont empruntées aux collectionneurs, ou qui sont à la réserve de la galerie, ou qui sont empruntées, je ne m’occupe pas tellement de ça, mais il y a des périodes que je fais plus des livres, d’autres je m’occupe d’expositions. MC: Les Relectures vont sortir en livre aussi ?

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JG: Relectures, non, en fait. Parce qu’il y a dix planches, mais elles sont reproduites dans le prochain Oupus de l’OuBaPo.376 MC: Ah ! D’accord. JG: Normalement. Donc, en fait je vais signaler pour savoir où on est. [Il se dirige vers Louis Lauliac, employé de l’Association responsable de la gestion de droits et la presse]. L’Oupus sur lequel travaillait Étienne [Lécroart], il vous a parlé, pour savoir si… c’est prévu pour une date particulière… LL : [inaudible] JG: Ouais, il n’y a pas encore de date… D’accord. LL : Je sais pas, le 15, ça ce n’est pas mal, non ? JG: Bah, ouais [rires]. Faut voir avec Étienne… LL : Il y a beaucoup de choses déjà. JG: Ah, oui… j’ai vu le sommaire, c’est énorme, hein. Il y en a énormément de choses. Je ne suis même pas sûr qu’il y pourra tout mettre. LL : [inaudible] JG: Ah, oui ? Ah, d’accord. Ok. Parce qu’en fait, mes planches des Relectures, c’était, à la base, pour un magazine, qui s’appelait “Un Magazine”, alors c’était pour un public, un lectorat très particulier, qui s’intéresse principalement aux arts, à l’art contemporain etc.. Donc, pour moi, toutes les petites citations que je faisais c’était très particulier par rapport aux choses existantes, anciennes, contemporaines et du coup ne je savais pas si après ça serait intéressant de faire un livre, en fait, de répéter le procédé, parce que c’était un travail assez important, en fait, pour chaque livre, d’étude des détails, mais si c’est tenu le coup, ce rythme là, si ça aurait été lisible sur un album entier, sur un livre de plus d’une dizaine de pages, je ne sais pas si ça aurait été intéressant, en fait. Alors, du coup j’ai trouvé intéressant de l’avoir fait sur une dizaine de planches, mais peut-être que… MC: Je crois que ça c’est vraiment pas seulement intéressant mais important de montrer les intertextes visuels que les gens n’apprennent pas à lire. JG: Oui, oui. MC: J’étais ravie parce que j’avais aussi vu du [peintre Edward] Hopper chez [l’auteur de bande dessinée] Ware et moi je ne suis pas quelqu’un qui ait une connaissance d’art. JG: En fait, c’est-à-dire, il y a des choses qui étaient complètement ironiques, justement, qui étaient tirées par les cheveux, qui étaient impossibles, c’est à dire, j’ai mis des références qui étaient par rapport à la France actuelle, pas à voir pour quelqu’un qui avait fait une bande dessinée dans les années 1930, par exemple. Mais, il y avait la moitié qui était, pour moi, la vraie référence des auteurs en question. Conscient ou inconsciente. Mais au Hopper, par contre, c’est une vraie référence de Ware. Mais, voilà, il y a plein de choses comme ça. Et quand même, j’ai découvert des choses, ça me

376 Les publications de l’OuBaPo. Le dernier des ouvrages, Le Journal Directeur, a paru cette année, avec des nouveaux membres joignant les restants de l’OuBaPo : Ibn Al Rabin, Mr. C., Alex Baladi, Matt Madden, Étienne Lécroart, Lewis Trondheim, Jochen Gerner, Patrice Killoffer.

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faisait penser à un livre, à un film, des petits détails qui me faisaient penser à une peinture, et en fait j’allais voir toutes ces sources là, pour voir de quand elles dataient, et ça datait de la date de création de l’album, à peu près. Donc, pour La Marque Jaune, je ne sais plus si c’était La Marque Jaune, il y avait incroyable, ça, il y avait tellement de choses qui faisait penser à Hitchcock, telle autre chose qui faisait penser à une autre chose et tout était de la même période. MC: Je ne savais pas, mais le manga de Tesuka377 avait été trop influencé par un film noir des années… 53… et le premier album de Tesuka où il met en scène des plans différents… JG: Oui ? MC: Oui, j’ai assisté à un séminaire, la semaine dernière, et un chercheur s’y est penché justement, et tout le manga moderne vient, justement de ce film… c’est un film… j’ai mes notes… Mais c’est très barthien, aussi, parce que, justement, la référence… Il a une phrase que j’aime bien, où il voyait les pommiers de Proust dans Flaubert. Alors ce n’est pas nécessairement que l’intertexte vienne du passé. JG: Le plagiat par anticipation. MC: Oui, exactement. JG: Il y a un autre auteur, qui s’appelle Pierre Bayard, qui a travaillé sur ça aussi. Il est publié par les éditions Minuit, dans la collection Paradoxe. Et il a plusieurs livres qui parlent comme ça, notamment a fait Le Plagiat par anticipation… MC: J’allais voir une conférence sur les pré-oulipiens. D’ailleurs, j’ai assisté à une conférence sur les graphes, et quand je vois vos planches préparatoires, ça ressemble à des graphes, comme vous faites là… des flèches, comme ça, la préparation, comme les choses s’enchaînent [rires]. JG: [rires] Oui, normalement j’ai tous mes brouillons. C’est rarement des brouillons, c’est sauvage, c’est illisible, que pour moi, des chemins, des traits comme ça, et après, je synthétise et puis c’est très… Ce n’est pas du Chris Ware, mais c’est très propre, j’ai tout clarifié, enfin, c’est quelque chose de très minimal, de précis, de très simple, mais qui est très travaillé en amont, en fait par rapport à la disposition, par rapport à ce que j’avais MC: J’ai le espoir de faire le même avec mes notes. JG: [rires]. MC: C’est The Third Man de Carol Reed et l’album de Tesuka, c’est Crime et Châtiment où il commence à faire des plongées, à mettre des procédés du film. JG: Ah, oui et après c’est marrant parce que dans le film il y a Orson Wells, il me semble, qui joue dedans. MC: Oui ! JG: Et il date de quand, le film ?

377 D’après Xavier Hébert.

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MC: 52… Et après…378 JG: Donc après Citizen Kane. Puisque Citizen Kane, ça joue beaucoup sur cette idée de plans, aussi, de… sur le focal, et tout ça. MC: Je n’avais pas fait attention. La bande dessinée date de 1953. Après cette date, le manga comme langage s’est bouleversé. JG: Ah, oui. C’est intéressant, parce que mon idée, en fait, en me focalisant sur un détail en bande dessinée, sur une thématique, sur tel type de chose, en réduisant vraiment le regard sur quelque chose de très pointue, je ne sais pas, soit sur les coupes de cheveux, soit les onomatopées, soit l’architecture dans les cases, soit le trait, ce qu’on peut dire dans les bulles, d’abord. Au bout à bout, alors c’est comme j’avais fait avec Tintin en Amérique, en relevant tout ce qui avait rapport avec la violence et, en fait, c’est une manière de rentrer dans la bande dessinée, dans l’œuvre en question, de passer de l’autre côté et voir l’envers du décor. C’est comme si, finalement, on avait accès à une sorte de réflexion de l’auteur qui n’était pas forcément visible tout de suite. En mettant des choses, en les sélectionnant, comme avec un tamis, et tout d’un coup on peut avoir une autre lecture toute surprenante. Ça peut révéler des choses vraiment passionnantes sur une histoire. MC: Je vois que ça vient justement de votre méthode d’avant, comme plasticien aussi… la connaissance que votre père vous a appris, n’est-ce pas ?… JG: Oui, à la fois mon père et ma mère. Puisque mon père était historien de l’art et prof de dessin, et ma mère était ingénieur au CNRS… MC: Ah, l’architecture ! JG: En fait, en lexicographie, elle travaillait dans la réalisation d’un dictionnaire de la langue française, elle avait accès à des premiers ordinateurs qui étaient en fait du traitement de texte (à l’époque il n’y avait pas des ordinateurs partout, il y avait un endroit près de Nancy, un château où on pouvait dire “je veux savoir comment est cité tel mot dans telle ouvrage de tel auteur du XIXe” et du coup, ça sortait toutes les phrases… aujourd’hui ça paraît tellement ridicule, avec internet, mais à l’époque c’était incroyable, parce que du coup ça sortait toutes les citations d’un auteur, et à l’occasion d’un travail en première année à l’école de Beaux Arts, j’avais fait une recherche sur le mot table. C’était un objet que je construisais autour de la table, je voulais voir ces citations là et voilà j’ai fait des dessins par rapport avec ça, et du coup, par rapport à des auteurs et à des écrivais du XIXe, j’ai fait ce relevé et c’était énormément incroyable, parce que, tout d’un coup, il y avait toutes ces structures de phrases qui revenaient de ce qui était fait de la même manière… et le mot table, la table ordonnait tout un système de pensée qui se répétait à chaque fois par un même auteur et, du coup, et ça vient un petit peu de là. Ça d’ailleurs, je voulais en parler : il y aura justement une monographie qui va paraître soit peut-être à la fin de l’année ou au plus tard début de l’année prochaine il y aura un long entretien avec un écrivain anglais. Un commissaire d’exposition va faire un travail analytique sur toutes mes séries de dessins et un livre monographique qui va recenser tous mes travaux, prévu pour l’exposition, pas prévu pour l’édition, en fait. Tous les

378 Je me trompais, le film était de 1949, il est arrive au Japon en 1952.

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travaux qui principalement n’ont pas été reproduits. La démarche est un peu similaire à ce que je fais pour l’édition. […] MC: Je pensais à cette question quant au traitement du texte, par rapport à l’ordinateur, à mettre des choses et le vocabulaire, les listes, le dictionnaire, que je vois un peu, cet amour pour la liste dans votre travail. Et je vois là que, par exemple, la citation, ça apparaît aussi depuis Périphéries,379 si je ne me trompe pas, il y a d’autres travaux antérieurs. JG: Oui, ce que j’ai fait, c’était la première chose que j’avais fait pour l’Association, justement, je ne me rappelais pas que c’était aussi comme ça. Pour commencer c’était aussi sur un système de citations et justement j’ai utilisé ce traitement de texte. Parce que là c’était peu de temps après ma sortie de l’école de Beaux Arts, à ce moment là il n’y avait pas encore internet. MC: Je voulais demander comment vous en êtes arrivé à cette collection. JG: Voilà, pour ce procédé là il y avait des ouvrages que j’avais pu lire, et il y avait des ouvrages que je n’avais pas forcément lu, tout ça, puisque j’avais mis les sources, j’avais mis le système de recherche de phrases en référence. Mais, par contre, dans CLBD, c’est vraiment des magazines, des revues, où des choses entendues à la radio, à la télévision, ou en vrai, ou alors des livres lus, à chaque fois. Il y a un texte qui pourrait peut-être vous intéresser, c’est paru dans une sorte de correspondance que j’ai eu avec des graphistes, un entretien avec eux. Il faut que je regarde la référence, parce qu’on parle vraiment d’images, on peut comprendre par là comment je fonctionne.380 MC: […] J’ai envie de faire cette approche qui n’est pas souvent dans mon milieu, de montrer comment vous travaillez, comment ça fonctionne cette écriture très repérée, pleine d’intertextes, de pensée, de concepts à laquelle on ne s’attend pas. JG: Mais en même temps, dire qu’il y a beaucoup de mes livres outre CLBD, ou Branchages,381 ou… MC: C’est le premier livre parmi vos ouvrages que j’ai lu… Par hasard. JG: Ah bon ? Voilà, ce sont des livres qu’on peut commencer pas nécessairement par la page 1 et allant jusqu’à la fin, dans l’ordre. C’est aussi un type de lecture qui est complètement différente, c’est-à-dire qu’on peut regarder ça, et après regarder l’autre, on peut vraiment picorer. Je ne construis pas cela comme une sorte de logique, de A à Z, dès la première page. MC: Même dans le CLBD, non ? On a une séquence mais on peut ouvrir dans n’importe quelle page. JG: Oui je pense que ça peut se lire de cette façon aussi. Je ne sais même pas si ça pourrait se lire en commençant par le début et puis ça, en allant jusqu’à s’arrêter à la

379 Ouvrage collectif, offert aux adhérents de L’Association en 1994. 380 Gerner cite son dialogue avec les artistes du Helmo, dont les images citées dans l’entretien sont reproduites ici : http://helmo.fr/images/pingpong.jpg. Leur dialogue continue dans un autre magazine, Désordres. 381 L’Association, 2009.

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dernière page. Pour Branchage, Grande Vitesse,382 ne sont pas du tout construits comme ça. Après j’ai d’autres projets où ça se pourra faire. En tout cas je ne construis pas cela a priori. MC: Êtes-vous allé à Brasília pour écrire son récit sur la ville ? JG: Oui, j’y ai fait une résidence de 15 jours pour créer une bande dessinée. Je ne sais pas si vous l’avez vu aussi.383 MC: Oui, par hasard aussi. JG: D’ailleurs, là c’est pareil, il y a un travail sur la réalité, le contexte, la ville aujourd’hui et, en même temps, sur un film, une fiction, mais qui est une sorte de réalité, parce qu’il était filmé avec Belmondo.384 Et par la plupart des Français, ils ne connaissent Brasília que ce film là. Et les gens que j’ai connus à Brasília ne connaissent pas du tout ce film là. Ce qui est intéressant c’est que ce film avait été fait au moment de la construction de Brasília et du coup c’était une sorte d’aller-retour permanent entre la fiction et l’origine de la ville et la réalité d’aujourd’hui. MC: Je l’ai vu l’autre jour. Et je l’ai vu cité dans le catalogue d’architectures et bande dessinée, de l’exposition dont vous avez fait partie, ArchiBD.385 JG: Oui, Architectures et bande dessinée… c’était ça qui avait été exposé en partie… MC: […] Et vous avez connu des auteurs de Brasília. JG: Oui… il y avait deux dessinateurs de Rio, mais à Brasília il n’y avait plus des personnes qui n’étaient pas auteurs, mais qui étaient des locaux comme ça, qui étaient peut-être des universitaires. Je sais plus leurs noms. MC: Je ne connaissais pas les autres auteurs brésiliens qui étaient dans le livre. Mais un peu après cette époque là un groupe d’étudiants a fondé des fanzines, on renouvèle un peu, depuis les années 2005, qu’on a des projets de revues. Parce que c’était un peu mort, les revues, les publications… Quand vous étiez là, c’était un peu désert, vraiment… JG: Ah oui ? [Rires]. MC: Je crois que c’est en 2002, 2003 que les éditeurs commencent à publier des auteurs bande dessinée. JG: Parce que c’était quand, 2002 ? MC: Je crois 2002. J’ai un copain qui connaît la fille qui a fait le projet, Florence, je vais voir si je me mets à côté d’elle pour faire aussi des projets. J’aime beaucoup ces questions. J’ai essayé de faire des ateliers OuBaPo, pour des étudiants des lettres, pour sensibiliser un peu. Et voilà, j’ai vu aussi récemment Le Mépris de Godard et la typo du film me rappelle beaucoup la typo des chapitres de votre livre. JG: Ah bon ? Il faut que je regarde ça.

382 L’Association, 2009. 383 Brasilia, ventura ventis, les Requins Marteaux, 2005. 384 L’Homme de Rio, de Louis Broca. 385 THÉVENET, Jean-Narc & RAMBERT, Francis. Archi&BD: La ville dessinée. Catalogue de l’exposition présenté à la Cité de l’architecture et du patrimoine, junho de 2010.

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MC: C’est le titre du film, ça m’a fait aussi de l’intertexte à l’envers, un plagiat par anticipation. JG: [rires] MC: Vous citez Agnès Varda et d’autres cinéastes quand vous citez vos références… JG: Là, dernièrement il y a un cinéaste que j’aime beaucoup, qui s’appelle Ozu. La manière dont il construit des plans, et des choses de près, son mouvement de caméra très cadré, comme ça. Moi, ça m’a beaucoup plu. Mais certes, je ne fais pas du tout. Je n’ai pas une réflexion à me dire, voilà ce que je ferais si je faisais du cinéma, ce n’est pas du tout ça mon métier, mais c’est ce qui me plaît. MC: Vous allez de plus en plus au minimum, en éliminant les cases, aussi. JG: Mais pas pour Relectures, je me sers des cadres, parce que c’est une sorte de cadrage. J’ai d’autres projets, et ça fonctionne dans le même principe, où je fais un cadrage sur des choses déjà existantes, imprimées sur une page, en fait. Et là, la case vient comme une sorte d’identification, de cadre. Je ne représente que ce qui est dans la zone cadrée. Parce que sinon, pour moi ça serait enfermer la chose qu’elle représente, le dessin. Pour ça j’aime bien la liberté, dans CLBD, j’étais très libre. Mais en même temps, dans CLBD, il y a de différents types de planches, qui se composent différemment, parce que j’avais envie de montrer aussi : la bande dessinée ça peut être ça, ça peut être ça, et ça. Que ce soit un peu comme un livre, effectivement, pas seulement comme un livre qui montre tout ce qu’on peut dire sur la bande dessinée mais qui montre ce que peut être la bande dessinée. Donc, c’était un peu les deux choses. C’est pour ça que le titre était aussi double dans le sens. “Contre” et “contre”, “tout contre”. Et pour le deuxième il faudra trouver un titre qui fonctionne un peu pareil. MC: J’avais tout de suite pensée au [Contre] Sainte Beuve, vraiment, ce sont mes références c’est surtout du côté littéraire, et vous commencez avec une tempête qui s’annonce, et la tempête en fait n’est pas venue, je ne sais pas si je me trompe. JG: Oui… MC: Mais là, c’était un livre qui se préparait à aboutir une forme à venir, La Recherche, alors je m’interrogeais quand d’abord je l’ai vu [votre livre] c’était une forme qui allait aboutir à une autre, une nouvelle forme ? JG: Ah ! [Rires] MC: Ce sont des hypothèses que j’avais créées là, cela pose des interrogations auxquelles vous n’avez pas besoin de répondre. JG: Mais c’est aussi, le fait de mettre des petites phrases comme celles-ci, ça permet, justement, de faire des hyperliens, des liens vers d’autres choses, et de montrer un peu les fil invisible qui peuvent relier… et j’aimais beaucoup cette idée de commencer par une citation qui, a priori, renvoyait à un univers complètement différent de la bande dessinée, une sorte de provocation aussi, et voilà aussi de me dire : je veux partir de ce que la littérature met au plus haut et essayer de faire exprès de mettre ça comme citation de point de départ. Puis après, je crois que j’ai mis par rapport à une citation du capitaine Haddock… Mais il y avait aussi des petites citations de source complètement différentes pour le début de l’ouvrage. MC: C’était… “24 heures de silences”.

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JG: Ah non, mais avant même ça, au tout début du livre, ah non ça… au départ j’avais prévu ça, et peut-être ça n’a pas été imprimé… [On vérifie dans le livre] Ah et voilà, il y a cette citation là… et peut-être à la fin, alors… MC: [Sur l’exposition “Ceci n’est pas une bande dessinée”] La voix d [u journaliste] Antoine Guillot elle prenait l’ensemble des écuries, je ne sais pas si vous êtes allé…386 JG: Oui, oui. MC: C’était exprès aussi, cette voix sur toutes les niches de l’exposition ? JG: Je ne sais pas s’ils l’ont voulu faire exprès, mais peut-être que oui, il n’y avait pas d’autre ambiance sonore, je crois. Si, le dessin animé de… MC: Ludovic [Debeurme]. JG: Mais ça me paraît pas. Je pense que c’était voulu, [la voix] participait. Sinon ils l’auraient atténué… MC: Mais je vois ça, il me semble que c’est une voix d’autorité qui veut s’approprier de toutes les autres cases, les boxes… JG: Oui, des boîtes [rires] MC: Même si on veut sortir des boîtes… C’est un peu ambigu et drôle, ironique. Parce qu’on veut sortir mais on est là, quand même. JG: Oui, c’est vrai… MC: Et sa voix est là, didactique, pédagogique… JG: C’est parce qu’il a sa revue de presse, toujours à la radio, il parle de la même manière, je ne sais pas trop si… parce qu’il donne des citations de phrases qui ne sont pas de lui, et du coup, la manière dont il lit c’est très ironique, parce qu’on y voit bien… Il n’est pas forcément d’accord avec ce qu’il dit sur l’article. Mais il m’envoi des nouvelles parfois, parce comme il lit de la presse, tous les jours, pour son métier. Et après la parution de ce livre il y a des gens que je ne connaissais pas du tout et qui m’envoyaient des phrases… “Je ne vous connais pas mais j’ai lu ça et…” MC: Et à propos de votre exposition à Nancy, sur l’art de la guerre ? JG: Ah oui là c’est une exposition au musée des Beaux Arts mais il y a juste un cadre à moi, un extrait de… parce que le musée des Beaux Arts a acquis l’ensemble de mon livre Abstractions387 et donc, ils montrent une partie de ces planches là par rapport à une exposition thématique sur la guerre, principalement la Guerre… Non, en fait, parce que ça va de Jacques Callot388 jusqu’à aujourd’hui, […] à notre époque, mais il y a toutes les guerres, la Guerre de 14, de 45, de 70… et voilà. C’est plutôt des gens anciens et il y a quelques peu de personnes vivants [rires] dans l’expo. Mais c’est élégant, mais pas très grand. Juste une salle.

386 Exposition imaginé et realize par l’auteur de bande dessinée et artiste plastique Philippe Dupuy, où étaient aussi exposés des ouvrages de David B., Ludovic Debeurme, Jason, dans les écuries de La Ferme Buisson, mises en installations par des artistes divers. 387 L’Association, 2011. 388 Dessinateur et graveur lorrain (1592-1635).

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MC: Mais il y aura aussi à la Maison Rouge,389 qui va commencer, ce sont des rêves aussi ? JG: Mais les rêves, “Les Archives du Rêve” ?390 C’est une très belle exposition de dessins anciens. Voilà, je ne suis pas exposé à cette exposition, mais je suis présent uniquement dans le catalogue. En fait, ils ont demandé à différentes personnes, cinéastes, écrivains, artistes, de réagir à un dessin qui était exposé dans cette exposition. Donc on pourrait réagir par un texte ou par une image, voilà. Mais l’expo est magnifique et le catalogue est sublime. Je l’ai vu, c’est vraiment très beau. MC: Je commence à entrer plus dans l’art contemporain grâce aussi à ce que vous faites. Je pense beaucoup à Dada, Duchamp, en voyant ces assemblages là. Je crois que c’est [le critique] Christian Rosset qui a dit que ce n’était pas un readymade, le CLBD, mais un readymade aidé, peut-être. C’est un assemblage, un collage, de toute façon. Alors j’étais vraiment curieuse de savoir comment se déroulent les ateliers. JG: Ah oui. En fait, j’enseigne dans l’école des Beaux Arts de Nancy. Ce n’est pas spectaculaire, parce que je donne un sujet en début de semestre et après ils peuvent travailler dessus pour plusieurs mois, et moi je peux voir individuellement chacun et ce n’est pas des séances. Ça se peut bien qu’il y ait un atelier ou workshop sur une semaine, par exemple, si je les fais travailler uniquement sur des choses, mais ce n’est pas forcément, il a lieu vraiment très rarement avec la bande dessinée. Ce n’est pas du tout un lien. C’est le dessin, mais c’est un lien avec une thématique particulière au lieu du dessin. Ce n’est pas forcément la bande dessinée, voilà. MC: Ce n’est pas non plus oubapien. JG: Non. Peut-être je ferai un atelier au Luxembourg dans un lycée à Luxembourg- Ville. Avec des lycéens, mais après ça sera sur la bande dessinée. Je ne sais pas trop comment ça va se passer. Il m’arrivait souvent de faire des workshops, des ateliers dans des écoles d’art, mais depuis que j’enseigne c’est difficile pour moi d’accepter des invitations dans d’autres écoles, parce que ça me prend déjà du temps. Un jour, une demie journée par semaine, ça prend du temps. MC: Moi je vais aussi essayer de voir [l’oubapien américain] Matt Madden, il mène des ateliers à Angoulême, peut-être en mai, aussi. Mais c’est juste la curiosité, parce que moi, j’aime bien, mais je ne mets pas à dessiner. [Rires] Même si je crois que ça c’est un outil. Je voulais demander encore, ne croyez-vous pas que l’OuBaPo ça pourrait être aussi un outil d’apprentissage du langage, pas seulement de la bande dessinée, apprentissage du visuel. JG: Oui, oui. En fait, je trouve ça intéressant surtout avec des personnes qui a priori ne font pas de bande dessinée. Parce que souvent avec mes étudiants, ceux et celles qui ont plus de problèmes sont ceux qui savent déjà un peu trop faire de la bande dessinée, parce qu’ils ont une impression de ce que c’est comme ça et pas autrement et c’est difficile de les faire changer un petit peu de système de pensée, parce que s’ils sont comme ça en première ou en deuxième, troisième année à l’école et font uniquement de la bande dessinée, c’est souvent très influencé par des schémas de représentation très

389 Exposition prévue pour juin 2014. 390 Exposition au musée de l’Orangerie, à Paris.

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classique, et qu’ils ont très rarement un univers qui est singulier et propre. Du coup, c’est très difficile de faire quelque chose d’original, alors que ceux, finalement, qui ne font pas de bande dessinée, ou qui ont par forcément une pratique du dessin très intensive, c’est beaucoup plus intéressant, parce qu’on peut très tranquillement leur montrer que c’est très intéressant, on peut avoir une écriture qui est très intéressante, des principes, des contraintes de départ etc. Là, ce que je vais faire, ça va être une journée à Luxembourg, dans un lycée, et là je vais partir de planches de Hergé et dans la première case il y a Tintin avec d’autres avec une voiture qui tombe dans un lac. Et je vais leur dire : “qu’est-ce que… comment vous pensez qu’il est possible de modifier toute la planche si on part du principe qu’ils sont morts et qu’ils remontent pas la surface à la deuxième case. Et donc essayez de reconstruire, de redessiner, toute une histoire, de penser à une nouvelle histoire mais en gardant les mêmes angles de vues de toutes les autres cases là après, sauf qu’il n’y a pas les personnages, parce qu’ils sont morts là en première case, et voir comment c’est possible de construire quelque chose avec ça. Par exemple. Ou autre chose, essayer de réinventer une histoire. Je pense qu’il est plus simple si je leur montre aussi une image sur laquelle ils puissent s’accrocher, pour après travailler avec leur style propre et recomposer tout. MC: Quand vous dites “classique”, je pense toujours un peu à “idéologique”, ce qui est classique ce sont des structures qui sont très répandues là, comme la publicité. Et quand vous refaites, vous cassez un peu, vous déconstruisez cette… JG: Et en même temps je parle de choses très connues, très classiques entre guillemets, parce que c’est plus simple à déconstruire. C’est très connu ça parle aussi à beaucoup de monde et ça va permettre, finalement, dans la relecture qu’on fait, d’avoir des choses qui sont faciles à être décryptées. Parce que beaucoup de gens connaissent un peu cette histoire et connaissent aussi le personnage, et on va s’amuser à voir comment on peut voir de forme différente. MC: C’est comme “Caramba”, n’est-ce pas, que vous avez montré dans l’Eprouvette ?391 JG: Ah oui, ça c’est une chose que j’ai fait à un workshop avec des étudiants, mais quand je n’enseignais pas encore dans cette école et, là c’était bien, parce qu’on était parti d’un seul album et la contrainte c’était de ne jamais représenter le héros, Tintin et tout ça et puis de faire un petit livret de 16 pages et le livret avait un format homothétique au format de l’album et le nombre de pages réduisait aussi de la même façon que par rapport au nombre de pages d’un album de Tintin. Et la couleur de chaque livret, je leur avais demandé de chercher une couleur dans l’album en question, et, du coup, chacun allait choisir sa couleur et il y avait toute une gamme de couleurs qui correspondaient au nuancier de l’album en question. Et ça devrait être en noir et blanc aussi… la couverture était en couleur, mais l’intérieur du livret était en noir et blanc. Ça a bien fonctionné. MC: J’aime bien aussi votre rapport à la géographie et la ville. Ça me fait penser à un géographe brésilien qui s’appelle Milton Santos, qui parle du paysage […] quand j’ai vu ce dernier Lapin,392 par rapport à ville, campagne…

391 Éprouvette 3, janvier 2007. 392 Mon Lapin, n. 3, novembre 2013.

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JG: Là c’était aussi, j’ai voulu inviter plusieurs personnes qui ne se connaissaient pas en avance. MC: Et c’était des gens pas très connus, non plus ? JG: Non, et je voulais justement faire travailler des gens qui a priori ne faisaient pas de bande dessinée. Donc, à part une ou deux exceptions, des auteurs de bande dessinée, mais encore de tout jeunes, qui n’avaient pas trop fait de la bande dessinée. Une deuxième exception : c’était des gens qui ne faisaient pas de bande dessinée, qui préfèrent faire du dessin, ou du graphisme, qui ne font pas de bande dessinée. Je me suis dit qu’est-ce que je peux faire pour avoir une sorte de cohérence, et pour pouvoir mettre en page tout ça. Et du coup je me suis donné deux thématiques, et après j’ai assemblé les pages en fonction de la thématique, pour faire une sorte de transition de la ville à la forêt etc. Et de là c’est ce qui m’a permis de placer des pages et tout cet ordre, et mis dans un ordre en fonction de cette grille là et puis je leur ai dit, vous pouvez choisir d’aller du plus figuratif ou aussi aller à quelque chose de plus abstrait. Ça pour des pages, et après j’ai dessinée une grille des gens où les personnalités propres étaient plus proches de quelque chose d’abstrait à la ville, quelque chose d’abstrait à la forêt, ou des très réels en forêt et du coup ça me permettait de dessiner toute une logique et ça me permettait de faire la transition des unités différentes. Et après, à l’architecture, je m’y intéresse vraiment beaucoup. À Brasília, j’avais adoré, tout ce que j’ai pu voir. Même le paysagiste, Burle Marx, moi, j’ai adoré l’université à Brasília, qui s’appelle “la chenille”, avec la végétation à l’intérieur. MC: J’ai travaillé dans une école dessinée par Oscar Niemeyer, ce n’était pas bien. JG: Ah non ? MC: Parce qu’il fait… JG: Des courbes ? [Rires] MC: Ah non, ce sont des demis-murs. Les murs des salles de classes sont à moitié… JG: Et du coup on ne voit pas dehors ? MC: Si, on a des fenêtres. Mais à l’intérieur, chaque salle de classe… c’est conçu comme pour que les étudiants puissent parler plus doucement, mais le résultat c’est le contraire, on entend les autres cours ! Mais j’aime beaucoup aussi Brasília. C’est drôle. JG: Mais les gens de Rio qui étaient là n’étaient jamais venus à Brasília, ils ne revenaient pas, je crois. C’était tellement différent de Rio… MC: Mais vous aimez la ville, plutôt ? JG: Plus que l’architecture de Niemeyer, ce que j’aimais bien c’étaient des ambiances, dehors, entre le végétal et le bâtiment, du carrelage, au robinet, c’était des petits détails, des appartements qui me faisaient penser à des choses qui sont présentes à Berlin, par exemple. C’est plus ça qui m’intéressait en fait, ce rapport à certains bâtiments de Corbusier, à des choses comme ça. MC: Mais en général, vous aimez les plus les villes ? JG: Ah !

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MC: L’architecture, pas forcément la ville ? JG: Oui… MC: Il n’y a pas ville contre campagne chez vous. JG: Non, j’aime autant la campagne comme la ville. Plutôt : c’est la mixité que j’aime bien, quand il y a à la fois la végétation et la ville. Mais il n’y a pas un rejet de la ville, un rejet de la campagne. MC: [rires] Je vois que c’est plutôt un intérêt esthétique. JG: Mais moi j’habite dans une maison en ville, mais on a l’impression d’être à la campagne à la fois qu’on est en pleine ville. Donc il y a des jardins tout autour. C’est pareil : je suis à cheval entre les choses, sur la ville et sur la campagne. Et c’est surtout là de toujours, je préfère être à cheval entre deux univers qu’être en plein centre d’un univers donnée. J’ai toujours préféré être en marge de quelque chose plutôt que d’être vraiment dans un truc bien calibré, bien au centre, comme il faut. En fait, c’est que j’aime aussi aller dans une direction qui a priori pourrait encore être traitée, voilà. Mais c’est aussi pour ça que la plupart de mes livres ne ressemblent pas au précédent. Ils n’ont pas la même forme. Je peux changer un peu d’écriture graphique.

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ANEXO 3: LISTAS DE DADOS EM CLBD

1. Marcas de citações no texto Um texto pode fazer uso de inúmeros recursos para indicar uma citação. Em um discurso direto, as marcas da citação são visuais: travessão, dois pontos, aspas demarcam onde se inicia o discurso do outro. A indicação do discurso alheio será oferecida por um elemento visual, que pode vir a ser apoiado ou não por marcadores verbais, “ele disse”, “respondeu” etc. A presença desses elementos tipográficos corresponderá a um determinado estilo apropriado pelo enunciador do texto. Jochen Gerner faz uso das aspas francesas e das aspas comuns de maneira sistemática e bem demarcada, enquanto os sublinhados serão mais raros e correspondem ora a uma reprodução de um grifo em um texto original, ora para denotar a reprodução mais prolongada de um determinado texto ou livro. Chamo de aspas comuns aquelas que ele desenha apenas como dois bastões, como contraponto à aspas angulares (francesas). Elas seriam “inglesas” se fossem arredondadas em forma de vírgula. As aspas tradicionais francesas demarcam textos cujo enunciador encontra-se anotado abaixo do trecho. Em geral, há o nome do autor completo, seguido de vírgula, título da obra-fonte entre aspas comuns, seguido de vírgulas e ano de publicação – por exemplo, a citação da epígrafe, de Proust. Há cerca de 200 citações delimitadas por aspas francesas «», dentre as quais apenas duas não têm um enunciador aparente – ou seja, sem nome de autor. Três delas são manchetes de revistas que aparecem ilustradas sobre o texto (o adeus a autores em publicações para grande público, em que o personagem mais conhecido de cada autor “verte uma lágrima”, na página 131). São cerca de 70 autores diferentes; desses, apenas 15 nomes aparecem sem uma referência completa, a da enunciação primeira (título da obra/revista e data). 2. Os recursos de ênfase O uso das aspas comuns indicando um “segundo grau” da escrita se eleva a 44 ocorrências. Esse uso é mais reduzido pela sua forma de ser uma ênfase dentro de um determinado texto, ou de uma citação dentro de um texto que já é uma citação. Deste total, 25 aparecem em trechos que não são delimitados pelas aspas francesas, e 10 são títulos de obras que são citadas. Apenas nove é ênfase ou discurso reportado dentro de uma citação formalizada pelo uso das aspas francesas. Ao todo, são 86 ocorrências do uso das aspas comuns “” ao longo do livro explicitando o título de um livro citado, seguido em geral de vírgula e ano de

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publicação. Outras 68 ocorrências delimitam o título de uma obra visual, seja ela uma instalação, uma escultura, uma pintura ou até duas partituras cuja plasticidade da forma ganha ares de desenho – ou de história em quadrinhos (pp. 103, 104). As aspas comuns são, por excelência, a forma usada em CLBD para indicar que tal referência provém de uma obra, escrita ou desenhada por um autor específico. O recurso ao sublinhado como ênfase, que se pressupõe reportar um itálico ou negrito presente no texto original, coincide uma vez com o uso das aspas comuns, logo na página 6, quando [“bande dessinée”] começa a ser apresentada, no preâmbulo de CLBD. Uma ênfase redundante, em um enunciado igualmente gorduroso: “voici un assortissement d’historiettes accueillantes pour qui souhaite entendre les inclinations de notre jeunesse pour ce singulier médium que l’on appelle ‘la bande dessinée’”. É uma frase complexa de vários sintagmas que se encaixam, complementos nominais e verbais extensos, [un assortissement d’historiettes accueillantes], [pour qui souhaite entendre les inclinations de notre jeunesse pour ce singulier médium], [que l’on appelle “la bande dessinée”]. E poderíamos mencionar que o sintagma “historiettes accueillantes” apresenta dois elementos condescendentes relativos às narrativas mencionadas: tanto o diminutivo [-ettes] quanto o adjetivo [accueillantes] participam do propósito de acalmar o interlocutor sobre tais “inclinations de notre jeunesse”. Estranho a frase não ter sido terminada por uma exclamação, tamanha a vontade de “apresentar” (“voici”) aos “senhores pais e responsáveis” (os sujeitos lógicos do adjetivo possessivo [notre] em “notre jeunesse”) esse “singulier médium”. A “gordura” desse trecho e outros excessos sintáticos ou tipográficos (aspas, sublinhados, reticências) de outros trechos, tornam-se ainda mais evidentes expostos contra seus desenhos de um “minimalismo” geométrico. O sublinhado é usado como ênfase em cerca de outros 20 enunciados, dos quais apenas seis são de textos reproduzidos entre aspas: três são de um único texto, a carta de Gottfried Honegger a Lichtenstein (CLBD, p. 125), em que o termo [comics] aparece sublinhado como indicação de termo estrangeiro reproduzido, provavelmente, em itálico no texto original. Outras 37 ocorrências em que o sublinhado serve a marcar um determinado termo que legenda uma imagem, o tópico que liga um texto a uma imagem ou o título de um determinado tema explorado, como um subcapítulo dentro da página – afora os títulos de livros que são objetos de estudo em momentos específicos no livro, como já mencionei.

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Cerca de nove reticências em reproduções de obras puramente escritas, e 21 ocorrências de reticências fora de parênteses em transcrições de textos de quadrinhos, e essas reticências parecem não ser necessárias ao contexto transcrito. Uma análise quantitativa dos sinais tipográficos Ademais esse uso das reticências cuja verificação prescindiria da visualização da obra original – para saber se elas foram realmente utilizadas, as reticências entre parênteses marcam uma secção do citado dentro da obra citante. As aspas francesas são usadas para marcar essa secção externa do citado, e as aspas comuns e o sublinhado denotam, em Gerner, a reprodução de uma marca ora de citação ora de ênfase no texto original.

no interior de demarcando marca de total uma citação citação título sublinhados 20 95 115

aspas 34 202 366 602 total 54 202 461 717

Em quase todas as páginas, tais marcas estão presentes, intercalando-se. As citações entre aspas francesas são predominantemente acompanhadas de um nome de autor. Os títulos de obras visuais, citadas entre aspas comuns, também vêm, em sua maioria, acompanhados de um nome. As aspas francesas são dispensadas nessa representação, em que é o espaçamento em torno do desenho que cita determinado elemento e o posicionamento da legenda que explicitariam tratar-se de uma citação. As marcas de “corte” nas citações são, por outro lado, quase tão frequentes quanto o uso das aspas francesas. Mas o uso do parêntese contendo reticências não se limita aos textos que são citações explícitas; como as aspas comuns, eles também denotam que aquele texto está sendo citado. Dessa forma, os parênteses salientam uma citação, marcada não pelas delimitações externas (aspas), mas cindidas ao meio, e sem uma marca definida de onde elas começam ou terminam. É importante notar que não há, ao longo do livro, aspas não fechadas. Todas as que se abrem são fechadas. Em minha análise quantitativa, contei cada abertura e fechamento de aspas como sendo apenas uma unidade de citação. Se considerarmos os trabalhos assinados pela figura de um “autor”, ou seja, textos cuja assinatura reúne uma rede de significados, os gêneros literários que prescindem uma figura “autor” corresponderiam a 70% destas citações (Gráfico 2). As citações sem uma referência do trecho de onde ela foi extraída, por outro lado, conferem ao nome do autor um índice que independe de sua referência, podendo elas também integrar esse

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campo. Chamo de texto funcional os guias, catálogos, manuais, cuja autoria seria a priori de um Scriptor. Uma segunda divisão que poderíamos estabelecer entre esses autores que estão identificados no texto seria a partir do caráter autoral de sua enunciação. Um romance, um ensaio e um artigo não têm o mesmo tipo de autor que um catálogo, um dicionário ou um manual de conduta (Gráfico 3).

Gráfico 1: topografia da tipografia citativa de CLBD

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Gráfico 2: Gêneros textuais

Gráfico 3: “Classes” textuais

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Gráfico 4: Densidade "medida" dos capítulos

ANEXO 4: AUTORES CITADOS EM CLBD

Quadro 4: Textos “assinados”

Autoria Referência Ano Páginas

Alain Page Tchao Pantin 1982 43, 81, 104

Alain Saint-Ogan Zig et Puce: L’explosion libératrice 1927 72 Alfred Jarry sem ref. 25 Alphonse Boudard La cerise 1963 58

Andy Warhol s. ref. 124 Anne Vergne L’innocence du boucher 1984 43 Antoine de Saint-Éxupéry Le Petit Prince 1943 119, 121

Atelier Christian de Portzamparc s. ref. 117 Bayon Le Lycéen 1987 83 Bertrand Blier Les Valseuses 1972 44, 46, 48 Charles Baudelaire Quelques caricaturistes français 1857 81 Daniel Pennac La Petite Marchande de prose 1989 27, 40 David Lynch s. ref. 85

Duc L’Art de la BD, T.1 1983 18, 29, 114 18, 21, 22, Duc L’Art de la BD, T2 1983 23, 28, 30, 112 E. P. Jacobs ref. indireta 20

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Emmanuel Carrère La Classe de neige 1995 11 Evane Hanska Les Amants foudroyés 1984 104

Federico Fellini s. ref. 96 Francis Masse On m’appelle l’avalanche 1983 112 François Cavanna Les Ruskoffs 1979 62, 69 François Chaslin Architectures de bande dessinée 1985 114 François Schuiten s.ref. 115

Françoise Dolto La Cause des enfants 1985 37

Frédéric Pajak Éloge de la discipline et de la bande 2003 46, 121 dessinée, n. 2

Gary Panther The nightmare studio 2003 114 Gilbert Lascault Chroniques de l’art vivant, n. 38, 1 973 53, 62 Lettres à…, (“Lettre à Roy Gottfried Honegger Lichenstein”) 2003 125

Groupe d’étude des problèmes du Service militaire et réforme de l’armée 1963 43 contingent

Harvey Zorbaugh s. ref. 130 Henriette Valium AB Bédex compilato 2007 131 Henrik Preutz Catalogue IKEA 2007 119 Hergé Les 7 boules de cristal 1948 101 Essai sur la définition, l’évolution et le Isidore Isou bouleversement total de la prose et du roman 1950 96 J. H. Fabre ref. inditeta (nos créditos) 20

Jean Graton Le Grand défi, les exploits de Michel 1958 55, 56, 57, Vaillant 58

Jean Patrick Manchette Fatale 1976 (3 cit) 59

Jean Patrick Manchette Le Petit bleu de la côte ouest 1976 (3 cit) 59

Jean Tulard Guide des Films 92, 95, 96

Jean Vautrin Blood Mary 1979 36 Jean-Pierre Chabrol La folie des miens 1977 27, 58, 76 Joffre Dumazedier, Aline Ripert Loisir et Culture 1966 83 Joseph II sem ref. 1782 121 Julia Kristeva Les Samouraïs 1990 99

Julien Gracq Letrines, 1974. 21 Laurent André s.ref. 103

Le Clézio Le Procès-Verbal, 1963 6 Le Nouveau Petit Robert Dicionário 1995 119

Marcel Duchamp s. ref. 96

Marcel Proust Contre Sainte-Beuve 1910 3, 131 Melvin Van Peebles s. ref. 88

Micheil Leiris La règle du jeu, vol. 3 : “Fibrilles” 1976 26, 123 Michel Bataille L’arbre de Noël 1967 41 43, 103, Michel Embareck Sur la ligne blanche 1984 105

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Michel Serres Le Tiers-instruit 1991 104 Michel Tournier Les Météores 1975 22 Michel Tournier Le Vent Paraclet 1977 79, 82 Michel-Edouard Leclerc s. ref. 101

Milan Kundera L’Art du roman 1986 76 Pascal Lainé La dentellière 1974 53 Peter Cook Archigram n. 4 1964 116 Philippe Djean 37º2 le matin 1985 81 Philippe Manœuvre L’Enfant du rock 1985 53 Phillipppe Labbro Des bateaux dans la nuit 1982 46, 54 Pierre Bergé s. ref. 123

L’étang et les spasmes dans la bande Pierre Yves Lador 2006 48, 50, 73 dessinée A proposition, a problem, a danger and Robert Filliou a hunch 1967 128 Les aventures complètes des âges Roger Lécureux & André Chéret farouches 51, 52 Romain Gary La Vie devant soi 1975 9

Roman Polanski s. ref. 86

Salve-Regina Résumés critiques de bandes dessinées 34, 35, 36

L’étang et les spasmes dans la bande Xavier Löwenthal dessinée (prefácio) 2006 104

Quadro 5: Figuras “assinadas”

Autor Obra Ano Página Campo Observação Frank Gehry obra arquitetônica não nomeada 117 arquitetura Joost Swarte/Mecanoo Architecten Toneelschuur Haarlem 117 arquitetura

Massimiliano Fuksas obra arquitetônica não nomeada 116 arquitetura

Massimiliano Fuksas obra arquitetônica não nomeada 116 arquitetura vários obras em Berlin-Hansaviertel 113 arquitetura

William Alsop obra arquitetônica não nomeada 116 arquitetura

William Alsop obra arquitetônica não nomeada 116 arquitetura

Zaha Hadid obra arquitetônica não nomeada 116 arquitetura

Yona Friedman Manuels volume 1 116 capa de livro

Antoine de Saint-Exupéry Le Petit Prince 1943 121 desenho

Lewis Carroll Ocean Chart 1876 121 desenho Acid got me fire of Disney não citado (Raymond Pettibon) 126 desenho Amazing Archigram 4 não citado (Peter Cook) 115 desenho

Joe Colombo Tubo Lounge Chair 1969 115 design títulos de livros não citado (vários autores) 39 diversos

Hans Arp sem título 1951 128 escultura

Hans Arp sem título 1949 128 escultura

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Data acompa Vários (diretores de filmes nha nomeados) Várias (nomeadas) título 92-96 filmes 1997- série (esculturas e Bertrand Lavier Walt Disney Productions 2002 128 instalação pinturas) Donald Judd Untitled 1964 127 instalação

Gilles Barbier L’Hospice 2002 126 instalação

Philippe Parreno Speech bubbles 1997 126 instalação não citado (Melville/autor adaptação para BD) Moby Dick 83 livro

Hesshache Le continent blanc 1983 121 mapa

Ligeti Artikulation 104 partitura

Stockhausen Kontakte 103 partitura

Andy Wahrol Mickey Mouse 1981 124 pintura

Ramó-Nash Alph-Art 1982 125 pintura

Roy Lichtenstein Meat 1962 124 pintura

Roy Lichtenstein As I opened fire 1966 125 pintura Zig et Puce: L’explositon Alain de Saint-Ogan libératrice 1925 72 quadrinho história inteira Charlie Schilingo Citação em capa de revista 131 quadrinho personagem Cercle de tuyaux réunis/Bibi De Montaubert/Lacroix Fricotin Policier 1952 128 quadrinho

Edgar P. Jacobs 100 quadrinho indiscernível

Hergé Citação em capa de revista 131 quadrinho personagem

Hergé Les 7 boules de cristal 1946 101 quadrinho cenário Jacques de Loustal 100 quadrinho indiscernível

Jean Graton Michel Vaillant - Le Grand défi 55-58 quadrinho onomatopeia

Jordan Crane 100 quadrinho indiscernível

Lefred-Thouron Y-a-t-il de la vie sur le soleil? 1989 121 quadrinho

Lewis Trondheim Bleu 2003 128 quadrinho tira Mic Delinx 100 quadrinho indiscernível não citado Picsou (Disney) 75 quadrinho capa de álbum não citado capas de álbuns (vários autores) 77 quadrinho capa de álbum não citado Várias obras citadas 105 quadrinho capa de álbum não citado Akira 115 quadrinho personagem

Vários autores citados Balões de cada autor 13 quadrinho balão Representação do fogo de cada Vários autores nomeados autor acompanhada de cifras 67 quadrinho fogo

Walt Disney Citação em capa de revista 131 quadrinho personagem

Quadro 6: créditos

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1. Frantext, base de donnés textuelles, http://atilf.fr/frantext 2. Quelques réflexions sur... la bande dessinée, http://www.salve-regina.com 3. Catalogue IKEA 2007 4. CHERET, André & LÉCUREUX, Roger. Rahan, fils des âges farouches. 5. DUC. L’Art de la BD (T1): Du scénario à la réalisation. 6. DUC. L’Art de la BD (T2): La technique du dessin. 7. FABRE, Jean-Henri. Souvenirs entomologiques. 8. HERGÉ. Les Sept Boules de cristal. 9. HERGÉ. L’Île noire 10. HONEGGER, Gottfried. Lettres à... 11. JACOBS, Edgar P.. Le Mystère de la grande pyramide. (tome 1: Le Papyrus de Manéthon) 12. LADOR, Yves. L’Étang et les Spasmes dans la bande dessinée. 13. SAINT-OGAN. Zig et Puce. 14. PAJAK, Frédéric. Éloge de la discipline et de la bande dessinée (Le Cahier dessinée nº 2). 15. PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve. 16. SAUSVERD, Antoine. Trop feignants pour faire les dessins ? (L’Éprouvette nº 3). 17. SAINT-ÉXUPÉRY, Antoine de. Le Petit Prince. 18. SCHULZ, Carl-Georg & SCHULZ, Stefanie. Das Hansaviertel, Ikone der Moderne. 19. TRONDHEIM, Lewis. Bleu. 20. TULARD, Jean. Guide des films.

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Quadro 7: Gerações de autores das “flamas” geração nascido trabalhou no período século XIX 1 1

1900-1930 10 2

1930-1950 8 8

1950-1970 4 14

1970-1990 22

1990-2010 16 publicou nos últimos 4 anos 12

Gráfico 5: Comparativo idade e tempo de carreira de autores das “flamas”

Quadro 8: Gerações de autores dos “balões”

geração nasceu trabalhou séc XIX 3 2 1900-1930 5 7 1930-1950 6 11 1950-1970 22 11 1970-1990 7 34 1990-2010 44

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publicaram nos últimos 4 anos 38

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ANEXO 5: ADENDO AO CAPÍTULO 2.5

Página de Killoffer, 1a versão de letreiramento (2010)

Para a tradução de Lucille, de Ludovic Debeurme, de escrita caligráfica, o romance de 500 páginas exigiu uma reescritura completa, à mão. Murilo Soza, o letreirista, dedicou-se a copiar, primeiramente, a forma em francês das palavras, para poder compreender o caminho das mãos de Debeurme. Todo esse processo foi acompanhado pelo autor, que conferia, à distância, se o desenhista contratado por nós correspondia ao caráter que Debeurme imprimia em sua própria escrita. A figura abaixo apresenta três versões de uma mesma página, no original em francês (Futuropolis, 2007), a tradução americana (TopShelf, 2009), que pelo espaçamento e tamanho recorrente das letras revela tratar-se de uma tipografia digital e a versão brasileira reescrita por Soza. Tais exemplos também ilustram como a diferença entre a escrita “mecânica” e a manual podem passar despercebidos. A tipografia escolhida pela editora americana é quase manual. Assim como as tipografias dos outros autores apresentados, ela é um simulacro de uma caligrafia. Debeurme faz uso simbólico das cores e de elementos

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pictóricos pontuais como árvores, pés e pássaros, e flerta com o fantástico e pelo exuberante que herda de Rabelais e surrealistas. Em Lucille, talvez a sua obra mais ancorada no eixo narrativo que no simbólico, por outro lado, ele opta por um esvaziamento da plasticidade da página. Seu objetivo, segundo ele comentou em palestra no Rio Comicon (2012), foi o de contrapor o branco da página ao “peso” da história, que se concentra em uma jornada de uma menina anoréxica.

A mesma página de Lucille, em francês (original), inglês e português

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LISTA DE FIGURAS, QUADROS E GRÁFICOS

Figura 1: Branchages (2002-2008), de Jochen Gerner ...... x$ Figura 2: Le Dormeur, de Lewis Trondheim ...... 12$ Figura 3: TNT en Amérique (2002) ...... 15$ Figura 4: Saint Patron (2004) ...... 15$ Figura 5: CLBD, p. 69...... 20$ Figura 6: CLBD, p. 131 ...... 21$ Figura 7: CLBD, p. 15 ...... 22$ Figura 8: CLBD, p. 120 ...... 24$ Figura 9: CLBD, p. 16 ...... 26$ Figura 10: Os primeiros livros e as revistas da coleção Éprouvette...... 35$ Figura 11: L’Éprouvette, 2006, p. 275...... 38$ Figura 12: "Hors-textes" de CLBD (aberturas de capítulos) ...... 46$ Figura 13: CLBD, p. 125 ...... 51$ Figura 14: CLBD, p. 3 ...... 55$ Figura 15: CLBD, p. 6 ...... 57$ Figura 16: CLBD, p. 9 ...... 60$ Figura 17: CLBD, p. 7 ...... 61$ Figura 18: Tipografia metafórica, por Massin ...... 70$ Figura 19: CLBD, p. 113 ...... 82$ Figura 20: CLBD, p. 116 ...... 83$ Figura 21: David B., L'Ascension du Haut Mal, 2013 ...... 84$ Figura 22: Fonte tipográfica "Times New Roman" ...... 85$ Figura 23: Fonte tipográfica "Caeto" ...... 86$ Figura 24: Fonte tipográfica "Elcerdo" ...... 86$ Figura 25: Fonte tipográfica "Verdana" (usada por A. Dahmer) ...... 86$ Figura 26: Fonte tipográfica “Le Goût du Chlore” ...... 86$ Figura 27: Fonte tipográfica "HM" (Haut Mal, David B.) ...... 86$ Figura 28: CLBD, p. 12 ...... 91$ Figura 29: Página preparatória de CLBD (do site do autor) ...... 98$ Figura 30: página preparatória de CLBD (do site do autor) ...... 100$ Figura 31: CLBD, p. 130 ...... 101$ Figura 32: Times-times por Gerner, a partir de Hergé, 1953 (2014) ...... 103$ Figura 33: CLBD, p. 76 ...... 109$ Figura 34: CLBD, p. 77 ...... 112$

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Figura 35: Página preparatória de CLBD, disponível no site do autor ...... 114$ Figura 36: CLBD, p. 3 ...... 117$ Figura 37: CLBD, p. 6 ...... 117$ Figura 38: CLBD, p. 103 (traduções de trechos assinados logo abaixo) ...... 119$ Figura 39: CLBD, p. 58 ...... 120$ Figura 40: CLBD, p. 7 (b) ...... 121$ Figura 41: CLBD, p. 131 (a) ...... 121$ Figura 42: CLBD, p. 14 ...... 122$ Figura 43: CLBD, p. 11 ...... 123$ Figura 44: CLBD, p. 100 ...... 123$ Figura 45: “Relectures” (fotografia de exposição no museu Erarta, em São Petersburgo) ...... 125$ Figura 46: CLBD, p, 121 ...... 127$ Figura 47: CLBD, p. 30 ...... 128$ Figura 48: CLBD, p. 25 ...... 130$ Figura 49: CLBD, p. 128 ...... 131$ Figura 50: CLBD, p. 40 ...... 132$ Figura 51: Mahler, op. cit., 2005 ...... 135$ Figura 52: CLBD, p. 67 ...... 141$ Figura 53: CLBD, p. 13 ...... 142$ Figura 54: CHKLOVSKY apud SPIEGELMAN, 2008 ...... 152$ Figura 55: uma breve história do OuBaPo ...... 153$ Figura 56: Logo do OuLiPo por Gerner (2006) ...... 154$ Figura 57: Moments Clés de L'Association, segundo François Ayroles ...... 154$ Figura 58: Exercício de estilo de Queneau, Massin e Carelman (1963) ...... 162$ Figura 59: Exercício de estilo de Madden, inventário ...... 163$ Figura 60: "Emanata": o acréscimo de pictogramas à narrativa de base ...... 164$ Figura 61: Os autores-fundadores do OuBaPo, por Étienne Lécroart ...... 165$ Figura 62: "Tireur à la ligne" por Lécroart e Menu (OuPus 2) ...... 168$ Figura 63: "Bande Dessinée en tripoutre", por Killoffer, OuPus 1 ...... 168$ Figura 64: KELLY, Walt...... 172$ Figura 65: STARCK, Samuel. Trecho de Etimologia de “Chef” ...... 186$ Figura 66: CLBD, p. 55 ...... 188$ Figura 67: GRATON, Jean. Le Grand Défi ...... 189$ Figura 68: CLBD, pp. 11 e 12 ...... 198$ Figura 69: CLBD, p. 46 ...... 200$ Figura 70: Jochen Gerner tout nu, 1999 ...... 219$

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Figura 71: Mon Lapin (ed. GERNER), 2013 ...... 229$ Figura 72: VANDENBROUCKE, 2014 ...... 231$

Gráfico 1: topografia da tipografia citativa de CLBD ...... 268$ Gráfico 2: Gêneros textuais ...... 269$ Gráfico 3: “Classes” textuais ...... 269$ Gráfico 4: Densidade "medida" dos capítulos ...... 270$ Gráfico 5: Comparativo idade e tempo de carreira de autores das “flamas” ...... 275$

Quadro 1: Os componentes de uma enunciação em quadrinho ...... 69$ Quadro 2: “Valores” da assinatura ...... 144$ Quadro 3: Balões “assinados” ...... 148$ Quadro 4: Textos “assinados” ...... 270$ Quadro 5: Figuras “assinadas” ...... 272$ Quadro 6: créditos ...... 273$ Quadro 7: Gerações de autores das “flamas” ...... 275$ Quadro 8: Gerações de autores dos “balões” ...... 275$

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