Revista de Sociologia e Política ISSN: 0104-4478 [email protected] Universidade Federal do Paraná Brasil

Zuin Soares, João Carlos Political and cultural endeavors of Salles Gomes: 1935-1945 Revista de Sociologia e Política, núm. 17, noviembre, 2001 Universidade Federal do Paraná Curitiba, Brasil

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João Carlos Soares Zuin Universidade Estadual de Londrina

RESUMO

Este artigo propõe-se a fornecer elementos para estudar o papel intelectual desempenhado por Paulo Emílio Salles Gomes nos anos trinta e quarenta, especialmente na revista Clima. Por meio de um relato biográfico, analisamos o processo de formação de um intelectual crítico em meio às lutas políticas e sociais que caracterizaram o período, tanto no Brasil quanto em nível mundial. O relato esclarece o esforço de Paulo Emílio em constituir e difundir a noção de um socialismo independente no Brasil, contrapondo-se tanto ao fascismo e à ditadura de Getúlio Vargas quanto ao stalinismo e ao trotskismo, favorável à emancipação do homem e à revolução social, e mantendo como valores básicos a liberdade individual e a civilização ocidental. PALAVRAS-CHAVE: Paulo Emílio Salles Gomes; intelectual; empenho político e cultural; socialismo independente; democracia.

I. INTRODUÇÃO a cultura e a política num riacho que tenha movimento próprio, autonomia, enfim: vida. Empenhado em combater o avanço da corrente Buscaremos, aqui, demonstrar que não outro foi de idéias nostálgicas celebradas pelos filósofos e outro o alvo do empenho político do jovem Paulo escritores alemães avessos à marcha da liberdade Emílio Salles Gomes. Com a categoria “empenho do mundo moderno, o filósofo alemão Hegel político” pretendemos caracterizar o modo como afirmava que “os cursos de água que não são o jovem Paulo Emílio buscou orientar-se e agir na movidos pelo vento tornam-se pântanos” (apud rarefeita atmosfera ideológica das décadas de trinta LOSURDO, 1983, p. 159). Exprimia, assim, todo e quarenta, período dos mais vivos e dramáticos desconforto e aversão que sentia no cenário da da civilização moderna. vida cultural e política da sociedade alemã estagnada e imóvel, bem como criticava a forte Seguimos, aqui, as observações do filósofo tendência de evasão da realidade presente nas italiano Domenico Losurdo que contrapõe a idéias que glorificavam o espírito teutônico e os categoria empenho, ou melhor, o termo valores do passado, sobremodo expressa nos “engagement objetivo” desenvolvido por Arturo desejos de volta à “idade de ouro” medieval. Tomo Massolo, ao termo francês engagement. Por de empréstimo a sentença de Hegel para empenho ou “engagement objetivo” Losurdo demonstrar o profundo empenho político e cultural compreende que “se Hegel tem ensinado a de Paulo Emílio Salles Gomes na sociedade inevitabilidade da situação histórica, Marx ensina brasileira dos anos quarenta. Desse modo, a inevitabilidade, no interior da situação histórica, procuramos usar a expressão de Hegel para tentar dos conflitos político-sociais. É essa dupla radical entender um dilema caro na vida cultural brasileira: imanência que define a nova qualidade do discurso a profunda sensação de mal-estar e debilidade do filosófico. Após Marx, acrescenta Massolo, o pensamento em orientar-se na problemática filósofo ‘sabe que está objetivamente engagé’” realidade brasileira. Não seria de todo errado dizer (idem, p. 128). Se o empenho político ou o que um sentimento de mal-estar e desconforto “engagement objetivo” possui raízes na tradição atravessa a história das idéias no Brasil. Usando a que vai de Hegel a Marx, o termo francês sentença de Hegel, podemos dizer que o intelectual engagement “pressupõe a imaculabilidade do deve contribuir objetivamente para transformar a processo de produção intelectual [...]. É uma sociedade brasileira do pântano em que está inserida forma de idealismo subjetivo que configura um

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 17, p. 107-125, nov. 2001 107 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 retorno aquém de Marx, e ainda de Hegel, em procuraram “desperrepizar o Brasil” e do última análise encontra-se em Fichte” (idem, p. marxismo. Nos ensaios do jovem Paulo Emílio 129). podemos observar a presença das duas fases que marcam o modernismo paulista: a ironia contida II.PRIMEIRA ENTRADA NA MODERNIDADE: nas sentenças que buscavam livrar a literatura O DESEJO DE SER MODERNO nacional do “último heleno” Coelho Neto e a No início dos anos trinta o jovem Paulo Emílio participação dos modernistas nos movimentos Salles Gomes cultivava um forte desejo de ser políticos que procuraram renovar o Brasil no início moderno. Conforme expôs no artigo Um discípulo dos anos 30. Décio de Almeida Prado acentua esses de Oswald em 1935, resultado de um exercício de dois traços principais da personalidade juvenil de volta ao passado que tanto lhe era caro (como Paulo Emílio, afirmando ainda que “é provável que atesta Décio de Almeida Prado), tal desejo tomava no seu espírito os dois movimentos, o artístico e forma “em 1935, pois aderia a tudo que me parecia o político, corressem paralelos”, pois “os dois moderno: comunismo, aprismo, Flávio de significavam um começo, não um apogeu, muito Carvalho, Mário de Andrade, Lasar Segall, Gilberto menos um fim de jornada” (PRADO, 1986, p. 21). Freyre, Anita Malfati, André Dreyfus, Lenine, Logo, no início dos anos trinta, o jovem acadêmico Stálin e Trotski, Meyerhold e Renato Viana. A extraía do modernismo e do marxismo os argu- confusão era maior ainda. Quando fui ao Rio mentos e modelos de orientação no interior da recolher artigos para a revista que estava fundando sociedade brasileira. com Décio de Almeida Prado, Movimento, visitei Sua concepção de mundo juvenil era Lúcia Miguel Pereira, Gilberto Amado, Pontes de constituída pelos valores e normas oriundos do Miranda e Maurício de Medeiros...” (GOMES, comunismo romântico dos anos vitoriosos da 1982a, p. 440). Um arrebatador impulso de adesão Revolução de Outubro. Uma verdadeira “paixão às idéias e aos autores que fossem ou pela Rússia” (GOMES, 1982c, p. 358) norteava estimulassem alguma expressão do moderno, tal todo o seu modo de agir e sentir o mundo moderno. era o sentimento que dirigia os esforços do jovem Numa passagem escrita nos anos sessenta sobre acadêmico na vida cultural e política na a sua ação política na tumultuada década de 30, provinciana cidade de São Paulo. Muito impulso e Paulo Emílio traçou um importante auto-retrato: pouco senso, como não poderia deixar de ser, “a Rússia foi o país que mais me interessou e emanavam de seu desejo de adesão ao moderno. durante mais tempo. O motivo era político, mas Na descrição de sua eclética imagem do moderno, eu me pergunto se esta expressão é a mais cuja discrepância e confusão não foram ocultadas adequada para resumir o estado de espírito dos trinta anos mais tarde, Paulo Emílio retratou a sua jovens brasileiros que abordavam os problemas procura por orientação no interior da sociedade russos nos anos imediatamente anteriores e brasileira. posteriores a 1930. Durante os últimos cento e Paulo Emílio viveu e refletiu profundamente a tantos anos não houve país que suscitasse, como desventura de crescer e envelhecer na atmosfera a Rússia, tanta paixão. Para encontrar algo de rarefeita de uma sociedade autoritária, elitista e semelhante é preciso reportar aos fins do século golpista. Dilema que se iniciou em dezembro de dezoito e início do dezenove, à França nova e 1935, quando então completara dezenove anos e modelada pela Revolução. Os estímulos afetivos era membro da Juventude Comunista paulistana. provocados pela transformação da Rússia em O jovem estudante preso na onda de repressão ao União Soviética ultrapassaram amplamente o que movimento comunista era conhecido pela polícia se designa por política. Ou melhor, a política por suas participações políticas nos comícios da naquele tempo aparecia para muitos como a Aliança Nacional Libertadora e pelos artigos atividade humana mais completa que se pudesse publicados nos periódicos de esquerda como imaginar, envolvendo todas as preocupações, das Vanguarda estudantil, A platéia e no jornal Correio morais às estéticas. Era difícil encontrar pessoas paulistano. Seus artigos de juventude resultavam com o sentimento de estarem sacrificando à de uma mistura fina formada pelo uso do humor e política o desenvolvimento destas ou daquelas da piada originários do primeiro momento do facetas de sua personalidade. O comunismo modernismo paulista (o da “descoelhonização” da oferecia uma concepção de mundo e normas de literatura nacional), por uma disposição ideológica comportamento” (idem, p. 357). proveniente dos modernistas paulistas que

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Na narração de Paulo Emílio sobre os dilemas 446). Nosso autor passou quase dois anos nos políticos de sua juventude e de sua geração, é claro presídios Maria Zélia e Paraíso, nomes sutis para o sentido originário de sua adesão ao comunismo. cenários de crueldade e violência. Uma experiência Paulo Emílio concebia o comunismo como um que será permanentemente recordada e avaliada movimento libertário da humanidade, a nova luz ao longo da sua produção intelectual, que iluminava o caminho que deveria ser trilhado particularmente no que se refere à fuga por meio pela humanidade após a barbárie da Primeira de um túnel construído junto com outros presos Guerra Mundial e a crise da modernidade. Logo, no Presídio do Paraíso; tão marcante que Décio para o jovem militante comunista a participação de Almeida Prado procurou sempre enfatizar em na vida política estava ligada à convicção de que seus ensaios sobre Paulo Emílio: “os meses na os antigos conteúdos culturais se haviam tornado prisão, prolongando-se, começaram a marcar obsoletos e sem vida e, em conseqüência, Paulo Emílio, talvez para sempre. Mas não, ou vinculada também a uma atenção apaixonada à nem sempre, em sentido desfavorável. Em outubro história entendida como locus da renovação radical, de 1936, numa carta escrita em termos livres e da emancipação humana. Uma crença que pessoais porque não passaria pela censura, ele dizia norteava suas ações e juízos, a ponto de que na o seguinte a seu respeito: ‘eu pessoalmente vou sua revista Movimento definir o tempo histórico bem. Você não pode imaginar, Décio, a quantidade em que vivia como aquele no qual “todas as de ilusões que perdi, os erros que enxerguei e as energias devem ser empregadas tendo em vista coisas que aprendi durante esses nove meses de um só objetivo – o socialismo” (GOMES, 1986b, prisão. E aqui também se firmaram certas p. 31). tendências da minha personalidade que até então estavam incertas, como por exemplo a minha No final de julho de 1935, poucos meses antes decidida vocação para a política e meu de ser preso, Paulo Emílio idealizou a criação de irremediável fracasso em relação à existência uma revista chamada Movimento – “revista do normal’” (PRADO, 1997, p. 152; sem grifos no presente que enxerga o futuro”, cujo sentido era original). assim concebido: “de uns tempos para cá, a mocidade brasileira tornou-se consciente de que, Na carta endereçada ao amigo de juventude, e por um determinismo histórico, fora extem- de sempre, na qual retrata a vida simultaneamente poraneamente [...] chamada a uma situação social prejudicada e repleta de aprendizados, o jovem ativa, situação em desequilíbrio com a sua cultura, militante revela a sua “decidida vocação para a que era escassa, e a sua experiência, que era política”. Um importante auto-retrato, consciente pouca” (apud PRADO, 1986, p. 17). e sólido, próprio de um momento cindido, “Determinismo histórico” que condicionava a angustiante e contraditório, que revela para aquele escolha de campo da “novíssima geração”. que o vive a possibilidade de encontrar uma nova Compartilhava, assim, de uma nova linguagem, identidade. Não seria exagero dizer que o trauma de uma nova postura frente à política e à sociedade da vida na prisão e a espetacular fuga do presídio brasileira. possibilitaram a Paulo Emílio experiências marcantes e duradouras. Nos anos que se anunciavam como anos de chumbo e desilusão, Paulo Emílio acabaria detido Sua concepção de mundo moderna foi após o malogrado movimento comunista de 1935. reafirmada nos momentos marcados pelo “caos De certo modo, sabia que não poderia sair ileso regenerador”, pela situação cruel e autoritária que da empreitada, como afirmou anos mais tarde: impunha para aquele que a vivenciava a “tenho a impressão de que meus 18 anos duraram necessidade de compreendê-la, passo necessário anos. Tudo aconteceu em alguns poucos meses na direção de efetuar uma decidida superação. de 1935. No fim desse ano os comunistas Fugitivo, permaneceu escondido pela família até ensaiaram um golpe militar. Oswald se escondeu. o momento em que pôde embarcar para Paris - e Eu fui preso, provavelmente de acordo com meus uma outra experiência tremendamente significativa secretos desejos, mas sem imaginar que a prisão ocorreria na capital francesa. pudesse durar tanto tempo. Quando um ano e meio III. ESTADA EM PARIS: UM MOMENTO mais tarde consegui fugir do Presídio do Paraíso, ILUMINADOR mal revi Oswald e viajei. E quando voltei havia acabado a idade de ouro” (GOMES, 1982c, p. Paulo Emílio viveu dois anos em Paris, entre

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1937 e 1939, período que pode ser considerado alemães que fugiam do nazismo, entre outros. como um processo de profunda redefinição Relembrando algumas experiências pessoais política e de uma estimulante descoberta do cinema ocorridas em Paris, durante o governo da Frente como arte moderna. Nesse curto intervalo de Popular - como a de ver o filme A grande ilusão, tempo, o então jovem comunista experimentou “a que lhe “evocava de forma viva minha experiência descoberta crucial do século — o apocalipse recente” (refere-se, aqui, à fuga que empreendeu stalinista — que ferreteou tantas gerações, também da Prisão do Paraíso que o filme de Jean Renoir o para sempre, e de uma forma que a mesquinharia fazia recordar mediante as cenas que retratavam conservadora nunca compreenderá” (GOMES, a fuga de prisioneiros franceses na Alemanha 1974, p. 162), como afirmou anos mais tarde. O durante a Primeira Guerra Mundial) - Paulo Emílio desgosto político sofrido mediante o conhecimento retratou o momento em que viveu na França com dos processos de Moscou e da face sombria do as seguintes palavras: “a França vivia naqueles stalinismo seria compensado com a assimilação anos um profundo movimento de opinião que apaixonada do cinema de vanguarda, passo inicial assumiria em 1936 a forma do triunfo da Frente na direção daquilo que seria anos mais tarde a sua Popular e da série de leis sociais ligadas ao nome verdadeira vocação, o exercício profissional da de Léon Blum. Os filmes de Renoir tinham o crítica de cinema. Num par de frases Antônio colorido social característico da época [...]. A Cândido sintetizou a importância de Paris na vida Frente Popular era muito mais um fenômeno de e na obra de Paulo Emílio: a “estada em Paris foi defesa e suas formações heterogêneas exigiam dos fatos mais importantes da sua vida: ela lhe como cimento de uma unidade, aliás precária, não revelou o cinema e alterou a fundo sua visão uma ideologia de combate mas o sentimento de política” (CÂNDIDO, 1986, p. 56). De fato, Paris generosidade difusa, denominador comum de significou algo mais do que um exílio forçado pelos todas as correntes esquerdistas, que só é utilizado acontecimentos políticos ocorridos na cidade de de forma calculada pelos quadros dirigentes São Paulo em 1935. Na verdade, Paris foi um comunistas. Esse clima particular de compromisso momento iluminado na trajetória de nosso autor, reinava na Frente Popular e se espelhava com marcado por experiências políticas e culturais muita fidelidade em La Marseillaise e também em plenamente vivenciadas. Um momento A grande ilusão, filme igualmente sem vilões mas fundamental, como podemos observar através da onde se demonstrava que a demarcação das classes reflexão de Décio de Almeida Prado: “porém, só sociais é mais nítida e profunda do que as quando recobrou a liberdade, na França, liberdade fronteiras nacionais” (GOMES, 1982b, p. 330). plena, inexistente no Brasil, não só jurídica mas Assim, nos filmes a que assistia junto com de irrestrita informação e reflexão política, é que Plínio Sussekind Rocha, na participação nos fixou em definitivo a sua personalidade. E só veio movimentos culturais e políticos que eclodiam em a estrear em livro, fato surpreendente em pessoa Paris, Paulo Emílio procurava absorver a tão precoce e à primeira vista tão ansiosa por efervescente atmosfera política e cultural que aparecer, vinte anos depois de ter fugido da prisão agitava a cidade - nela soube viver e dela soube e ter partido para a Europa. Mas já aí, em 1957, tirar proveito. O jovem que desembarcara com o estudo publicado em Paris sobre Jean Vigo stalinista, conforme a norma do Partido Comunista – outro mal ajustado ‘à existência normal’, que Brasileiro, teria contato com o “apocalipse exprimia através da arte o seu não-conformismo stalinista” mediante a leitura da literatura de –, que lhe daria renome internacional” (PRADO, denúncia e com o contato pessoal mantido com 1997, p. 153). antigos bolchevistas dissidentes. Antônio Cândido, Nos meados dos anos trinta, a França da Frente refletindo sobre a influência política de Paulo Popular representava um país no qual os Emílio, afirma que nosso autor manteve relações intelectuais perseguidos pelas ondas repressivas e pessoais com dissidentes de esquerda, sobretudo destrutivas do fascismo, nazismo e stalinismo com Victor Serge e Andrea Caffi, que o ajudaram poderiam viver com alguma segurança. Em Paris, a “desenvolver uma atitude bastante crítica em viviam os exilados políticos italianos, dentre eles relação aos partidos comunistas, que atuavam os fundadores do movimento Giustizia e Libertà, segundo os estritos interesses soviéticos, não os os dissidentes russos que fugiam dos processos do proletariado de seus países” (CÂNDIDO, 1986, de Moscou, os escritores, poetas e intelectuais p. 57). O depoimento de Antônio Cândido revela-

110 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001 nos uma aproximação importante para que colaborou em O Estado de São Paulo, com as possamos compreender a formação da atitude iniciais K. V. (Victor Kibol’cic), escrevendo política de Paulo Emílio na cidade de Paris. Por interessantíssimos artigos sobre política, meio de Victor Serge e Andrea Caffi, Paulo Emílio especialmente européia e asiática” (AZEVEDO, manteve contato com intelectuais e políticos que 1978, p. 16). Com Victor Serge, o jovem Paulo promoviam um socialismo “irregular”, Emílio conhecera os processos de Moscou, o independente do imperativo modelo político assassinato de toda uma geração revolucionária oriundo de Moscou. (Zinoviev, Bukharin), o stalinismo. Todavia, não somente o desencantamento com a URSS de Stálin É importante, aqui, ressaltarmos o peso da foi absorvido das relações com Victor Serge: do influência de Victor Serge e de Andrea Caffi na exilado russo, Paulo Emílio manteve o gosto pela vida e na obra de Paulo Emílio. Victor Serge chegou independência ideológica, a valorização do ideal à França em 1936, um ano antes de nosso autor, socialista, a defesa da liberdade e da dignidade após um longo exílio na Sibéria. Libertado por humanas. Stálin, após uma série de pedidos e intervenções de André Gide e de Romain Rolland, Victor Serge Semelhante desencantamento com o curso da desembarcou na França trazendo consigo a Revolução de Outubro também era compartilhado decepção e os pontos de vistas críticos em relação por Andrea Caffi. É o que podemos observar ao rumo da Revolução de Outubro. No seu livro através da abordagem de Nicola Tranfaglia sobre Destin d’une révolution, publicado em Paris, a singularidade da participação de Andrea Caffi Victor Serge denunciava a produção do regime no grupo Giustizia e Libertà na Paris dos anos de soviético “em contradição com tudo aquilo que 1932: “é Andrea Caffi que conhece melhor do que havia sido dito, proclamado, desejado, pensado, os outros a realidade soviética, quem escreve já durante a revolução”, chegando a chamar o no segundo número dos Quaderni (março de stalinismo de regime totalitário. Todavia, a 1932) um longo artigo sobre a revolução russa, manutenção da independência ideológica e a crença que Rosselli publica tomando nitidamente a na sua convicção revolucionária resultaram tanto distância uma vez que o escrito aparece como no seu isolamento intelectual como numa vida apêndice ao fascículo com o título Opiniões sobre marcada por dificuldades financeiras. De certo a revolução russa. Além do discurso modo, sua posição de absoluta solidão política e a circunstanciado que Caffi propõe, importa notar crescente dificuldade econômica chamou a atenção a interpretação do regime staliniano como do jovem Paulo Emílio. É o que podemos observar verdadeira e própria negação do humanismo através de Victor de Azevedo: “foi com Victor socialista e a afinidade evidente que o autor Serge que Paulo Emílio travou relações em Paris, individua entre aquele fenômeno e os outros verificando as dificuldades com que então ele vivia. ‘monstruosos partos da nossa época’ como os Generoso como era, o emigrado brasileiro teve fascismos” (TRANFAGLIA, 1995, p. 723). É no uma idéia: não seria possível a colaboração de interior da “crise de civilização e crise moral”, Victor Serge para O Estado de São Paulo. fórmula empregada por Carlo Rosseli, e adotada Naturalmente seria pago em dólares... A idéia lhe pelos outros membros do grupo Giustizia e veio porque nessa mesma fase visitava a capital Libertà, que Paulo Emílio reavaliou a sua francesa o diretor do grande diário, o jornalista concepção de mundo e de ação política. Júlio de Mesquita Filho [...]. O encontro, contudo, Não é preciso dizer que o depoimento de Andrea resultou satisfatório. Os objetivos de Paulo Emílio Caffi sobre a União Soviética de Stálin deve ter foram plenamente atingidos. Quando Victor Serge causado uma profunda autocrítica na concepção faleceu na cidade do México, em novembro de de mundo do jovem comunista Paulo Emílio. É 1947, o Estado, ao pé de um breve telegrama de emblemático o modo como nosso autor associa o meia dúzia de linhas da Agence France Presse, desfecho trágico de sua idade do ouro com a que noticiava secamente o fato, publicou uma revelação do stalinismo, conforme podemos “Nota da Redação”, em que os traços biográficos observar no artigo chamado Com Arnaldo Pedrosa do extinto eram resumidos com objetividade e d’Horta, escrito em 1974: “na militância juvenil informações muito precisas. Na sua parte final, aprendi a admirá-lo e estimá-lo mas éramos então essa “Nota da Redação” advertia textualmente: “de apenas companheiros empenhados. A amizade 1939 a 1940, esse notável revolucionário e escritor gratuita, irresponsável e para sempre, nasceu

111 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 depois de cada um ter experimentado ao seu jeito de libertação e emancipação do gênero humano, a revelação crucial do século – o apocalipse co- concebendo, assim, o socialismo como a con- munista – que ferreteou tantas gerações, também tinuação dos acontecimentos culturais e políticos para sempre, e de uma forma que a mesquinharia oriundos da Europa do século XVIII, sobremodo conservadora nunca compreenderá” (GOMES, dos ideais universais da Revolução Francesa: 1974, p. 162; sem grifos no original). Foi com liberdade, igualdade e fraternidade. O teor da dura Andrea Caffi que Paulo Emílio experimentou “a crítica que Andrea Caffi tecia contra o fascismo e revelação crucial do século - o apocalipse comu- o stalinismo foi plenamente absorvido por Paulo nista”, bem como com o amigo apreendeu sobre Emílio. Sua concepção de mundo socialista a crise dos regimes democráticos após 1914 e o independente ou irregular que iria praticar no Brasil, totalitarismo, aguçou o não-conformismo, desen- após o seu regresso em 1939, é muito próxima do volveu uma postura crítica com respeito ao soci- modelo que apreendeu nos anos de estada em alismo e ao marxismo, adquiriu o gosto pela auto- Paris. Num ensaio sobre Andrea Caffi escrito por nomia do juízo político e aprofundou o desejo de Gino Bianco, apontado por Nicola Tranfaglia, ativa participação no destino de seu tempo histó- podemos visualizar no seu título uma clara rico. aproximação entre ambos: Um socialista “irregolare”: Andrea Caffi intellettuali e politico Nicola Tranfaglia cita uma outra passagem de d’avanguardia. Assim Bianco retrata o empenho Andrea Caffi, escrita nos Quaderni do agrupamento político de Andrea Caffi; de modo semelhante, antifascista Giustizia e Libertà, muito escla- poderíamos escrever a mesma frase para esboçar recedora acerca dos posicionamentos políticos de os contornos do empenho político que Paulo Caffi e que, de certo modo, revela-nos algumas Emílio realizou na sociedade brasileira. das transformações políticas que sofria o jovem Paulo Emílio em Paris: “Andrea Caffi, por Como conseqüência direta de tal postura exemplo, que viveu diretamente a revolução de ideológica independente desenvolvida com a ajuda outubro na Rússia e tem, por assim dizer, provado de Andrea Caffi e Victor Serge, nosso autor na sua pele a conseqüência das agitações ocorridas “chegou a uma visão fortemente anti-stalinista”, na maioria dos países no conflito mundial assinala, bem como “sem prejuízo da admiração pela figura no final de setembro de 1932 nos Quaderni (n. e os escritos de Trotski, rejeitava também o 4), que a peculiaridade do fenômeno nazista não trotskismo” (CÂNDIDO, 1986, p. 57). Repu- pode ser explicada simplesmente com a categoria diando tanto o stalinismo como o trotskismo, da luta de classe. O exilado sublinhava, invés, a avaliados como modelos centralistas, Paulo Emílio coexistência no movimento hitleriano da mitologia buscava salvaguardar sua fidelidade à tradição irracionalista e da exaltação da técnica e da comunista, sobretudo para com as conquistas moderna civilização da máquina” (TRANFAGLIA, históricas da Revolução de Outubro. Sua crítica 1995, p. 720). Acrescentava ao problema do ao stalinismo, entendido como totalitarismo, fascismo, da “crise da civilização e da crise moral” almejava manter firme a paixão que sentia com o exposta desde 1914, o problema do stalinismo: “a “enérgico fluxo progressista” oriundo de 1917. ditadura de Stálin é aquilo que é porque foi Durante a sua estada na França, nos contur- constituída com os métodos da ‘inútil carnificina’ bados anos trinta, Paulo Emílio valorizava os e porque não tem encontrado ainda outra âncora movimentos políticos radicais que mantinham de salvação que a centralização burocrática, o vínculos com a originária tradição comunista. Foi militarismo, os arbítrios policialescos. Não é uma o que salientou, numa entrevista ocorrida nos anos ‘contraposição’ aos regimes de reação capitalista setenta: “minha opção socialista era radical: só teria que sofrem muitos países da Europa e da América; sentido um movimento socialista, revolucionário, é um elemento daquela constelação reacionária; que repudiasse, ao mesmo tempo, o comunismo nela e por ela se sustenta” (idem, p. 723). Na stalinista e a ambigüidade dos partidos socialistas postura socialista de Caffi ocupa um lugar central tradicionais [...]. O PSOR – Parti Socialiste Ouvrier a crítica ao Estado-nação entendido como uma Révolucionaire – francês, de Marceau Pivert, seria gigantesca máquina de opressão social e de o modelo”, sugerindo, ainda, à entrevistadora que destruição da natureza e do homem. No intervalo “Você deve ler a Plataforma da nova geração, que temporal entre as duas guerras mundiais, Caffi foi publicada em suplemento do Estadão, com o buscou repensar o socialismo como força social resumo das posições de nosso grupo na época”

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(BENEVIDES, 1979, p. 97). compreender a formação do empenho político de Paulo Emílio, ao revelar a sua aproximação com o O PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan) socialismo democrático do movimento político fundado por Marceau Souverain Pivert era uma italiano Giustizia e Libertà dos irmãos Carlo e Nello expressão própria do conturbado clima interna- Rosselli. De fato, se examinarmos os textos cional dos anos trinta na Europa. Em 1938 Mar- escritos por Paulo Emílio no início dos anos ceau S. Pivert rompeu com o Parti Socialiste quarenta, quando retornou ao Brasil, sobretudo o fundando uma “Esquerda revolucionária” cujo alvo seu “Depoimento” na Plataforma da nova geração girava em torno do seguinte programa de ação: de Mário Neme e no “Manifesto” de fundação da “eu creio servir ao máximo os interesses do prole- União Democrática Socialista, veremos que tariado e da humanidade inteira perseguindo minha existem algumas semelhanças que devem ser tarefa sobre dois planos, como havia feito desde analisadas. É o que procuraremos examinar no os vinte anos. Fazer compreender aos operários tópico seguinte. que o ideal de fraternidade universal não pode tomar uma forma concreta, em nossa época, senão Nos dois anos em que viveu em Paris ocorreu através de um processo de uma revolução o primeiro contato significativo de nosso autor proletária internacional à qual eles devem participar com o cinema. Plínio Sussekind Rocha foi o seu para destruir o sistema capitalista e construir o mestre na adesão ao cinema, iniciando-o no juízo socialismo. Fazer compreender aos trabalhadores de ver e entender o cinema como uma arte tão que suas aspirações revolucionárias não podem importante como as outras artes tradicionais. Com atingir definitivamente o alvo, senão mediante um Plínio Sussekind Rocha, físico que realizava seu esforço permanente de observação científica dos doutorado em Paris, Paulo Emílio assistiu às fitas fatos, da autocrítica, isto é, da laicidade filosófica clássicas do cinema como Outubro, Tempos ou da livre consciência” (apud RAYMOND, 1980, modernos, A grande ilusão, aprendendo com o p. 30). amigo a “ver filmes e de falar sobre cinema, de forma empenhada, militante” (GOMES, 1986b, Na postura inconformista e no ímpeto revo- p. 197; sem grifos no original), conforme as lucionário de Marceau S. Pivert, que reascendia a palavras que usou para homenagear e definir seu chama da crença na revolução comunista como mestre em 1972. Contudo, na atmosfera emblema de uma filosofia da história que deveria efervescente do Front Populaire e da guerra civil ser realizada, Paulo Emílio encontrava um exemplo espanhola, a política era o principal interesse de de ação política na atmosfera em crise do final Paulo Emílio. A experiência com o cinema não dos anos trinta. No ideário de ação desenhado por alargaria o círculo inicial da paixão, ficando para Marceau Pivert estava presente uma decidida o pós-guerra a passagem que daria em direção a “condenação aos métodos sectários do trotskismo, assumir sua vocação, a de crítico profissional de de suas pretensões à hegemonia, sua tática da cinema. No curto intervalo de dois anos em que desorganização [noyautage]. Ele rejeitou o partido- permaneceu em Paris, nosso autor estabeleceu um estado-maior centralizado e se manifestou pela forte vínculo com a política e o cinema. espontaneidade revolucionária da classe operária Poderíamos dizer que ao retornar da Europa, que que um partido, avant-guarde democrático, deve marchava rumo ao abismo de uma nova guerra estimular e não asfixiar” (ibidem). Relativo desin- de destruição total, a vocação para a política e a teresse pelas Internacionais, repúdio à intolerância paixão pelo cinema formavam uma espécie de ideológica e ao totalitarismo, valorização da unidade na qual nosso autor encontrava subsídios autonomia dos pequenos partidos de esquerda com e informações para como que se orientar na relação aos interesses de Moscou, defesa de um sociedade brasileira. socialismo vivo que se orienta segundo as pecu- liaridades de cada país, enfim, tais eram as idéias IV. EMPENHO POLÍTICO E DESEJO DE AÇÃO presentes na concepção de mundo de Marceau NA SOCIEDADE BRASILEIRA Pivert compartilhadas por Paulo Emílio. Empenho político e paixão pelo cinema, tais Ainda no terreno especulativo a respeito das eram os dois interesses que Paulo Emílio cultivava influências que Paulo Emílio absorveu em Paris, ao regressar ao Brasil. A Europa mergulhada no acreditamos que Antônio Cândido identificou uma pântano do sectarismo ideológico e às vésperas chave importante, que nos ajuda na tarefa de da realização de fato das sinistras palavras de

113 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 ordem que grassavam no cotidiano, como que, “para pôr em prática esse programa, con- “mobilização total” e “guerra total”, não era mais tamos, porém, com o apoio dos mais velhos, da- um lugar seguro para o jovem socialista. queles que se interessam seriamente pelo futuro, Desembarcando no final de 1939, nosso autor daqueles que já lutaram – que devem lutar ainda, trouxe consigo um forte desejo de participar já que viver é lutar – daqueles que, apesar de coletivamente dos problemas da sociedade vencedores, não se fossilizaram, pondo-se a brasileira. Contudo, o jovem comunista que se cochilar sobre os louros traiçoeiros da vitória, desiludira com o stalinismo e que se decepcionara daqueles que já se fizeram na vida, mas que ainda com o trotskismo, não teve boa recepção na vida não se esqueceram do que isso lhes custou” (Cli- política da provinciana cidade de São Paulo. Sua ma, 1941, p. 5-6). nova posição política causava desconforto e mal- O sentido originário da revista que preconizava estar entre os companheiros da Juventude a “abstenção política” não significava que “os Comunista e no meio político da esquerda como diretores, redatores e colaboradores mais íntimos um todo. Desse modo, foi com os jovens de Clima não tivessem uma unidade de vistas universitários que pôde desenvolver seus novos diante dos problemas essenciais do nosso tempo”, valores e a sua concepção socialista independente. conforme Paulo Emílio procura deixar claro logo Membro e mentor político dos jovens universitários no início do editorial “Declaração”. Contudo, o que fundariam a revista Clima, sua ação política estabelecimento da política de aliança do governo manifestou-se de modo similar no combate ao de Getúlio Vargas com os países aliados permitiu fascismo e na luta pela redemocratização da que a norma inicial fosse rompida pelos membros sociedade brasileira1. da revista Clima que, de ora em diante, são Em agosto de 1942 Paulo Emílio redigiu um retratados como “moços intelectuais, e logo sol- editorial na revista Clima chamado “Declaração”, dados”. Identidade clara e nítida que se mani- no qual aproveitou a entrada do Brasil no estado festava na seguinte palavra de ordem: “funda- de guerra para enfatizar a postura antifascista e mentalmente, a guerra de que agora participamos democrática do grupo de estudantes universitários. é uma guerra contra o fascismo” (GOMES, 1942, Nesse conturbado momento histórico, nosso autor p. 3). Nesse artigo, Paulo Emílio utilizou a palavra iniciou seu texto afirmando uma alteração fascismo para revelar algo mais do que o regime substancial na composição da revista, criada em ideológico italiano. Seu emprego era usado 1941, na qual seus membros haviam definido que taticamente para diagnosticar as diversas formas nela “não seriam debatidos assuntos de política, de autoritarismo existentes na conjuntura política nacional ou internacional. Esta orientação foi internacional: “Fascismo é o regime político ins- escrupulosamente seguida até o número 10. Clima taurado notadamente na Alemanha, na Itália e na recebeu, pediu e publicou ensaios, críticas e poesias Espanha. Fascismo é o conteúdo político do movi- de intelectuais da mais variada procedência mento da ‘Union of Britsh Fascists’, de Oswald ideológica, desde que não contrariassem a norma Mosley; do movimento do padre Coughlin, na de abstenção ideológica política estabelecida” América do Norte; do ‘Rexismo’, de Léon (GOMES, 1942, p. 3). Criada na atmosfera política Degrelle, na Bélgica; dos partidos de La Rocque e rarefeita do Estado Novo, a revista Clima surgiu Doriot, na França, e do integralismo, de Plínio Sal- como um veículo de renovação cultural, de estudos gado e outros, no Brasil. Quisling e Laval são científicos voltados para a compreensão das obras fascismo. Velhas glórias militares decrépitas e e dos autores que surgiam no cinema, na literatura, inconscientes, como Hindenburg e Pétain, também no teatro, na música e nas artes plásticas. Seu são fascismo. Fascismo é o ataque do Japão à vínculo de nascimento era tecido diretamente com Manchúria; é o ataque da Itália à Abissínia; é o o modernismo paulista conforme podemos obser- apoio da Alemanha e da Itália aos facciosos espa- var no final do Manifesto de lançamento da revista, nhóis; é a invasão da Áustria e da Tchecoslováquia, publicado no número inicial, no qual podemos ler é a fraqueza das grandes democracias diante dessa invasão — o pacto de Munique; é a invasão da Albânia e da Grécia pela Itália; é o ataque da Alemanha à Polônia, Noruega, Dinamarca, 1 Sobre a trajetória intelectual dos jovens universitários da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Iugoslávia; é a geração Clima, ver, entre outros, Pontes (1998). traição de vastos setores das classes dirigentes e

114 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001 militares da França; é o ataque da Alemanha à novas condições que se abriram, do programa e Rússia; é o ataque do Japão aos Estados Unidos; da tática daquilo que foi um dia a Terceira é, finalmente, o ataque da Alemanha e da Itália ao Internacional” (GOMES, 1943, p. 90). Essa Brasil” (idem, p. 4). ruptura processou-se durante a sua estada em Paris, como vimos no tópico anterior, quando Nesta didática exposição panorâmica sobre o então rejeitara o stalinismo e o trotskismo como fascismo, em suas várias formas e nos mais modelos únicos de ação prática e teórica do diversos países, nosso autor ressalta a brutalização comunismo. Uma posição pioneira na época, que da política como a principal característica deste despertou várias críticas de setores da esquerda regime político totalitário. De certo modo, buscava que seriam respondidas no editorial “Comentário”. lançar farpas na direção dos defensores locais da política de neutralidade e aos simpatizantes do “Comentário” pode ser entendido como o fascismo no Brasil, na medida em que também os primeiro texto no qual Paulo Emílio esboçou as reduzia a um mesmo denominador, isto é, como idéias políticas que aprendera na Europa durante parte daquele “conteúdo político” comum presente a sua permanência em Paris. Sua redação é toda nos movimentos fascistas dos anos trinta em países voltada para a afirmação da atitude antifascista do como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. grupo Clima presente no editorial “Declaração”. Sua intenção era clara: sem poder nomear como Comentando algumas críticas que foram dirigidas fascista o regime político do Estado Novo, devido pelos comunistas e integralistas, Paulo Emílio ao estado de censura e repressão ainda existente, procura enfatizar com maior amplitude o raio de apenas insinuava ao leitor aquilo que era manifesto. sua concepção política. Respondendo às críticas Seu alvo era o de mostrar aos leitores a necessidade feitas por alguns membros do integralismo que o objetiva de combater o fascismo “no plano interna- censuravam pelo uso abusivo que fizera da palavra cional e nacional”, pois “esta é uma guerra contra fascismo no editorial “Declaração”, Paulo Emílio o fascismo”. Logo, caberia ao leitor a tomada de cita algumas passagens dos livros publicados por consciência de que “os inimigos de Hitler e de Miguel Reale no início dos anos trinta, ABC do Mussolini, na Alemanha e na Itália, são nossos integralismo e O Estado moderno, no qual este amigos. Os amigos de Hitler e de Mussolini, no evocava a missão histórica desenhada por Hitler e Brasil, são nossos inimigos. Quando se fala de Mussolini que “se universalizava, sacudindo a alma quinta coluna no Brasil, não se deve pensar inglesa com Mosley, a francesa com o ‘francismo’ unicamente em alemães, italianos e japoneses. e o Coronel La Rocque, a holandesa, a polaca, a Estes não são quinta coluna. São, em princípio, americana, a mexicana, a polonesa, a belga, a inimigos. A quinta-coluna característica é sempre austríaca etc. etc., fazendo surgir, pela energia do formada por naturais do país. No Brasil, em Brasil novo, um maravilhoso movimento inte- primeiro lugar, pelos integralistas. Os fascistas de gralista, orgulho do continente americano” todo o mundo têm um chefe, e este chefe é Adolf (ibidem). Com a peculiar ironia que possuía, Hitler” (ibidem). comentava Paulo Emílio que “não podemos agora perder tempo no exame dessa inesperada distinção Um outro elemento importante no seu texto é entre a alma polonesa e a alma polaca” procurando, a crítica dirigida às Internacionais comunistas. antes, deixar claro através do próprio Miguel Reale Mencionadas apenas de passagem, pois nesse o vínculo existente entre o integralismo brasileiro editorial o alvo proposto era o de marcar a posição e a brutalização da política promovida pelo fascismo enérgica e radical dos membros da revista Clima e o nazismo na Europa. contra o fascismo, essa posição foi aprofundada no próximo número da revista no editorial O diálogo com os setores da esquerda que chamado “Comentário”. Destacado por Antônio cobravam de Paulo Emílio uma retratação pela Cândido como sendo “um escrito político impor- crítica que fizera às Internacionais era mais tante para o tempo, exprimindo a sua posição de profundo e denso. Seu interesse, aqui, não é o de socialista independente de base marxista, que marcar a fronteira com o inimigo, como o fez alguns de nós adotariam por sua influência” com os integralistas, mas sim o de definir sua nova (CÂNDIDO, 1986, p. 59), nele nosso autor postura intelectual e política: “a nossa posição enfatizou sua crítica ao stalinismo e às Interna- crítica em relação à ortodoxia marxista e às suas cionais comunistas, dizendo que “negamos a habituais expressões políticas provocou, de uma eficácia, para o progresso humano, diante das maneira geral, reações sadias. É claro que os

115 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 espíritos presos à rigidez da nova escolástica re- que as aulas de Maugüé sobre eles figurem entre cebem sempre com desconfiança a expressão de as primeiras tentativas universitárias de abordar um não conformismo. Aquelas raras pessoas que esses autores à primeira vista refratários, na época julgam a crítica dos dogmas das internacionais um lance de ousadia em todos os sentidos” (idem, históricas como um trabalho intelectual nefasto p. 66). Importa destacar a presença de autores às perspectivas humanas abertas pela causa como Kant, Hegel, Marx, que legitimaram a defendida pelas Nações Unidas, aquelas que superioridade do mundo moderno com relação ao acreditam que se pôr em cheque as verdades antigo regime, autores que pensaram a construção envelhecidas redunda automaticamente no de novas formas de sociedade e de um novo senso reforçamento das possibilidades fascistas - essas de vida, sobretudo através da centralidade da pessoas, que pretendem forjar as verdades inéditas política na modernidade. do futuro com as noções gastas do passado, essas É o que podemos vislumbrar em Paulo Emílio, pessoas, é claro, não podem nos aceitar. Não então responsável pela postura política da revista pensamos absolutamente, com essas observações, Clima, escrevendo editoriais e influenciando em provocar polêmica. Isso seria de nossa parte diretamente a concepção de mundo de seus um ato de má fé, porque sabemos perfeitamente amigos, que desenvolveu uma abordagem crítica que esse gênero de polêmica é, nos dias que sobre as Internacionais comunistas, construída correm, impossível. Alguém poderia sugerir que também com o auxílio dos argumentos prove- esse tipo de reflexão é também válido para os nientes das novas ciências humanas que eram fascistas. Nós respondemos que com os fascistas ministradas pelos professores estrangeiros nos não se trata hoje propriamente de polemizar, mas cursos de Filosofia e Ciências Humanas. Tal pos- de lutar” (idem, p. 89-90). tura intelectual aparece nitidamente nesta Nesse trecho podemos observar a presença de abordagem sobre as Internacionais: “[...] negamos dois elementos fundamentais para o entendimento a eficácia, para o progresso humano, diante das dos editoriais escritos por Paulo Emílio na revista novas condições que se abriram, do programa e Clima: o empenho político e a nova postura da tática daquilo que foi um dia a Terceira intelectual crítica que surgia com a organização Internacional. Temos por ela um grande interesse científica do discurso adquirido na Universidade histórico assim como pela Segunda ou pela Quarta. de São Paulo. Em Certidão de nascimento, Paulo Respeitamos a dignidade de um León Blum E. Arantes cita um depoimento de Antônio Cândido prisioneiro e temos sempre presente o drama final sobre a influência do professor de Filosofia Jean da vida exemplar do incorruptível León Trotski. Maugüé nos jovens universitários da USP: Mas sabemos a função histórica da Segunda “Discípulo de Alain, era um espírito extremamente Internacional há muito terminada, e não conse- livre, que tencionava principalmente nos ensinar a guimos nos interessar, senão intelectualmente, refletir sobre os fatos: as paixões, os namoros, os pelas abstrações políticas daqueles que se esfor- problemas de família, o noticiário dos jornais, os çam em acreditar numa Quarta Internacional. No problemas sociais, a política. E para isso utilizava conjunto, olhamos com admiração para esse ciclo largamente reflexões e análises sobre literatura, de internacionais e, vendo perpassar por elas as pintura, cinema. As suas aulas eram extraordinárias melhores energias do espírito, temos a convicção como expressão e criação, sendo assistidas por de que colaboraram de maneira decidida para o várias turmas sucessivas de estudantes já formados enriquecimento do homem” (GOMES, 1943, p. que não conseguiam se desprender do seu fascínio. 90). Com ele fiz cursos sobre Kant, Hegel, Assim define Paulo Emílio sua posição de Schopenhauer, Nietzsche, Max Scheler, Freud; de socialismo independente, destacado das fórmulas todos se desprendia uma espécie de inspiração que oriundas do stalinismo, do trotskismo e do ideário aguçava o senso da vida, da arte, da literatura, da das Internacionais. É importante ressaltamos, história, dos problemas sociais” (ARANTES, novamente, que a edificação dessa postura política 1994, p. 65; sem grifo no original). Na constelação era afirmada com o auxílio das ferramentas de autores que pensaram e criticaram o sentido e provenientes das novas ciências humanas que os limites do mundo moderno, Paulo Arantes eram ensinadas na Universidade de São Paulo. No acrescenta que “quanto a Marx (mencionado final do editorial “Comentário”, Paulo Emílio noutros depoimentos) e Freud, é bem provável responde à última objeção que fora feita pelos

116 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001 leitores ou adversários políticos, a saber, que o única classe capaz de operar uma subversão de editorial “Declaração” era substancialmente instituições e de valores para os quais se propõe; negativo, contra o fascismo mas sem apresentar não somente porque no seio do movimento os novas diretrizes. Assim sendo, afirma nosso autor elementos proletários têm sempre o maior peso; que, de fato, a redação anterior carecia de pro- mas porque na experiência concreta desta luta tem postas positivas que agora seriam apresentadas. demonstrado toda a incapacidade e o esgotamento Nessa explanação final surge a similitude apontada da burguesia italiana como classe dirigente [...]. por Antônio Cândido entre Paulo Emílio e o ideário Devemos nos definir simultaneamente como do grupo italiano Giustizia e Libertà dos irmãos socialistas, comunistas e liberais (socialista- Carlo e Nello Rosselli. A primeira aproximação revolucionário, comunista-liberal), de modo que aparece quando Paulo Emílio estabelece a crença possamos reconhecer a vitalidade existente em nos “princípios teóricos” dos ideais de liberdade e cada uma dessas posições. No socialismo, vemos igualdade provenientes das tradições liberais e a força de ânimo de todo o movimento operário, a socialistas: “num plano, o mais geral possível, substância de toda democracia real – a religião do acreditamos em dois princípios teóricos funda- século. No comunismo, a primeira aplicação mentais que são defendidos pelo conjunto das histórica do socialismo, o mito (infelizmente muito Nações Unidas. Primeiro – a igualdade não só enfraquecido), mas sobretudo a mais enérgica política mas econômica de todos os homens. força revolucionária. No liberalismo, o elemento Segundo – o respeito devido à personalidade de utopia, o sonho do prepotente, ainda que tosco humana, o direito da pessoa humana à liberdade e primitivo – a religião da pessoa” (apud [...]. No fascismo – que se opõe a esses dois TRANFAGLIA, 1994, p. 103). princípios, na teoria e na prática, pelas suas castas Um dos principais argumentos presentes na de super-homens e pelo esmagamento da perso- concepção do Socialismo liberal de Carlo Rosselli nalidade humana – no fascismo denunciamos o é o juízo crítico dirigido sobre o stalinismo e sobre perigo de ruptura histórica da civilização ocidental. as Internacionais comunistas. O Socialismo Denunciamos o perigo e a possibilidade da morte Liberale de Carlo Rosselli pode ser entendido como dessa civilização ocidental. Denunciamos o um impegno politico centrado na procura de um cesarismo” (idem, p. 90-91). espaço comum entre as idéias na conturbada arena Trata-se de um argumento importante, escrito da ação política dos anos 30. Sua virtude maior num momento histórico ainda nebuloso, no qual encontra-se na ampla disposição de somar as nosso autor denuncia a concepção antidemocrática experiências políticas contidas na história de e anti-racionalista presente no regime fascista. tradições tão distintas como o socialismo e o libe- Contra este adversário que promovia o culto ao ralismo. Mas como entendia tal possibilidade de super-homem, o irracionalismo e o caos, a fuga síntese entre o binômio liberalismo-socialismo? da história e a manipulação dos mitos, Paulo Emílio Rosselli compreendia o liberalismo, basicamente, empenha-se na tarefa de resgatar os valores como uma valorização da autonomia e dos desejos fundamentais da civilização ocidental. Um em- do indivíduo. Com relação ao socialismo, valo- penho político que ocorre mediante a valorização rizava Rosselli a adoção da perspectiva de pensar da história, das conquistas históricas que foram o universal, o valor da realização prática do ideal solapadas pelos movimentos políticos totalitários de igualdade política. O que poderia, então, nos anos trinta. Vejamos como essa explanação significar a mescla de tarefas entre a concepção feita por Paulo Emílio é próxima daquela que os do liberalismo e do socialismo para Rosselli? irmãos Rosselli desenvolveram durante o exílio na Possivelmente, tratava-se de, primeiro, operar uma cidade de Paris nos meados dos anos 30. Num maturação na consciência civil dos indivíduos, artigo escrito em 1937, um mês antes de ser tarefa proposta pelo liberalismo na defesa da auto- assassinado pela milícia fascista em Paris, Carlo nomia da vontade, e, segundo, da universalização Rosselli, repensando o movimento à luz da vitória da igualdade política, tarefa do socialismo en- do nacional-socialismo na Alemanha e na quanto força de mobilização civil das massas. atmosfera da guerra civil espanhola, afirmava que: Rosselli procurava entender as vantagens que tanto “Giustizia e Libertà é um movimento que possui o liberalismo quanto o socialismo poderiam ganhar um nítido caráter proletário. Não somente porque no momento em que são somadas suas forças e o proletário, em qualquer parte, se mostra como a conquistas históricas. No raio de ação de seu

117 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 pensamento, as idéias ganham potência à medida Para o grupo de jovens universitários que que somam, e não enquanto servem como divisor mantinham a revista Clima em circulação, os de água e polarizadoras de verdades absolutas. editoriais e a postura política de Paulo Emílio Para Carlo Rosselli, a luta contra o fascismo estimulavam a prática de um empenho intelectual possuía um lado prático através da criação de uma e político. Antônio Cândido e Décio de Almeida Frente Popular Italiana, que deveria incitar o povo Prado, em mais de uma ocasião, afirmaram o italiano à defesa da liberdade, combatendo, crédito da formação política que possuíam para portanto, o regime de Mussolini com o intuito de com o amigo e mentor. Respondendo sobre a sua criar uma sociedade livre e civil. Uma concepção formação política, numa entrevista nos anos oitenta, política que acreditava na luta pela autoconquista Antônio Cândido definiu toda a importância do da liberdade que surgiria através do combate a empenho político de Paulo Emílio afirmando que toda tentativa de supressão da liberdade pelos foi ele “o fixador de idéias, o definidor da posição regimes totalitários. política” que o “levou a não ficar nem stalinista nem trotskista, mas aceitar a posição preconizada Não é meu intuito afirmar que Paulo Emílio por Paulo de um socialismo democrático desin- efetuou uma espécie de transplante ideológico, teressado das Internacionais, procurando soluções nem mesmo, insinuar que fosse um adepto do adequadas ao país, empenhado na luta contra o Socialismo Liberale de Carlo Rosselli, investigando fascismo, porque esta era a manifestação uma pista apontada por Antônio Cândido a respeito contemporânea do cesarismo, oposto à tradição da eventual ligação entre ambos via Andrea Caffi, humanista, que provinha do cristianismo através que o teria influenciado em Paris. Se não forçamos das Revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX” a mão, cremos que em “Comentário” podemos (CÂNDIDO, 1988, p. 32). Um empenho político vislumbrar tal influência em quatro pontos: 1) independente, tal era o sentido da ação política combate enérgico ao fascismo mediante a criação desenvolvida por Paulo Emílio no início dos anos de uma frente de resistência antifascista; 2) crítica quarenta, mas que se constituía através do diálogo ao stalinismo e ao programa de ação das com outras tendências políticas, na medida em Internacionais comunistas; 3) postura intelectual que o momento histórico exigia a formação de e política voltada para a síntese entre os princípios uma frente única antifascista, combativa do da liberdade e da igualdade; 4) valorização da cesarismo nas suas várias formas. Uma concepção autonomia política fundada na especificidade de de mundo que via no cristianismo uma força cada país e desvinculada dos interesses de revolucionária e que buscava contribuir na tarefa Moscou. No final do editorial “Comentário”, imperiosa de restaurar a “trilogia clássica – podemos observar claramente algumas seme- liberdade, igualdade, fraternidade – que o ceticismo lhanças entre o discurso de ação de Paulo Emílio e as forças inimigas do progresso humano tinham e as idéias dos irmãos Rosselli: “os princípios de conseguido desmoralizar, terão sido arrancadas igualdade e liberdade, transformados freqüen- pelos fascistas dos edifícios públicos da França temente pela história em antinomias, acham-se no para, ainda uma vez, penetrarem no espírito e no momento representados, ora um com mais desta- coração dos homens” (GOMES, 1943, p. 91). que, ora outro com mais ênfase, pelas três nações antifascistas mais enérgicas: Estados Unidos, V. DENTRO DO LABIRINTO DA MODER- Inglaterra e Rússia. A união dos três países no NIDADE: O DESEJO DE AÇÃO POLÍTICA quadro das Nação Unidas para o esforço de O depoimento de Paulo Emílio Salles Gomes destruição do fascismo e de reconstrução posterior marca um momento particular na Plataforma da é um dos motivos que nos permitem esperar que nova geração, livro que reunia os depoimentos o mundo melhor que desejamos construir se baseie dos jovens artistas e críticos que estreavam no numa síntese e numa efetivação final dos campo da cultura nos anos quarenta. Único princípios de igualdade e liberdade. Um mundo depoimento que não foi publicado no jornal, devido em que a igualdade baseada numa estrutura ao fato de ser substancialmente político, nele é econômica planificada não tenha como condição possível observar uma abordagem lúcida e variada o aniquilamento da liberdade. Um mundo em que de Paulo Emílio sobre a sociedade brasileira. Se a liberdade não precise estar necessariamente quiséssemos usar uma imagem para expressar o condicionada pelo sistema capitalista de produção” motivo que estruturou o ensaio de Paulo Emílio, (GOMES, 1943, p. 91).

118 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001 poderíamos dizer que se trata de um intelectual Diante da importância do sr. Alceu Amoroso Lima situando, na linha de frente, as batalhas que como orientador reconhecido de um considerável estavam sendo travadas nos jornais, nos partidos número de jovens da nova geração é necessário políticos clandestinos e na cultura brasileira. De dizer inicialmente que ele não pode merecer todos os depoimentos dos dois livros, seja no confiança. Porque um homem com a sua respon- Testamento de uma geração seja na Plataforma sabilidade e informação não poderia ter indicado, da nova geração, o de Paulo Emílio revela a como indicou, aos jovens católicos brasileiros com presença de um empenho político que não pode vocação política o caminho integralista” (GOMES, ser reprimido e que não se deixava cercear. Por 1945, p. 282-283). Marcar posição e assumir todos esses motivos, seu depoimento foi o único conseqüências, eis um itinerário sempre presente censurado nos jornais e somente pôde aparecer na trajetória política de Paulo Emílio. Um outro no livro organizado por Mário Neme em 1945, ponto importante na estrutura da crítica de Paulo quando a ditadura havia terminado. Assim, vere- Emílio foi a procura incessante pela identidade de mos um intelectual inquieto com o destino vazio si mesmo, seja através do contraponto com o oferecido pelo tempo monstruoso em sua volta, outro, seja numa aventura que se iniciou solitária que se debatia pela defesa da liberdade e das rumo a um ideal de coletividade a ser descoberto. conquistas democráticas ameaçadas de extinção Na afirmação de que é preciso demarcar posição pelas forças do fascismo e do nazismo. Um jovem com o pensamento de Tristão de Athayde era a que exercitava sua vocação política, portanto, que procura da afirmação da identidade que estava em procurava com essa vocação traçar uma postura questão, e que era, por excelência, o terreno onde efetiva de ação num tempo histórico no qual, para Paulo Emílio atuava com mais vontade para agir e milhares de pessoas, o simples fato de poder criticar. desejar já adquiria status de prazer realizado. Na seqüência da crítica dirigida ao catolicismo Paulo Emílio iniciou o seu depoimento e ao liberalismo, ideologias que não possuía força mapeando as várias tendências das idéias políticas e autonomia para sugerir caminhos alternativos na sociedade brasileira, por meio da postura de para o Brasil, Paulo Emílio dirigiu a sua atenção observação crítica. Para ele, o dado mais signi- para a análise da esquerda, promovendo uma ficativo do momento histórico era a inexistência importante crítica sobre a sua geração. Nessa parte de uma “unidade ideológica em nossa geração”. do depoimento, encontramos um traço que lhe é Como vimos anteriormente, no momento histórico muito caro, a saber, o ato de refletir sobre as mundial que estilhaçava as certezas e convicções, experiências vividas procurando compreender e, a vida ficara reduzida a uma dimensão pequena e portanto, dominar aquilo que ocorrera no passado sem esperança de ação. Partindo dessa convicção recente. Assim, discorrendo sobre a esquerda, Paulo Emílio procurou repensar as tendências nosso autor narrou a experiência que compartilhara políticas que ainda mantinham uma posição efetiva em 1935 na Juventude Comunista e na prisão do na estrutura da sociedade brasileira e que, bem ou Paraíso, conforme podemos observar: “passados mal, guardavam uma perspectiva de futuro. Assim, em revista os setores secundários, podemos entrar enumerou o integralismo derrotado pela adesão naquele que tem realmente significação pela do governo de Vargas a favor das forças aliadas qualidade intelectual de muitos de seus membros: que compunham as Nações Unidas, o catolicismo a corrente de esquerda da jovem intelectualidade que procurava servir de tábua de salvação e o do Brasil. Também neste campo delimitado não liberalismo inoperante e estéril das elites locais. existe unidade de pensamento. Pior do que isto, Seu interesse era o de pensar um projeto político há uma grande confusão” (idem, p. 284). para a sociedade na qual a política nunca mostrava Em seu conjunto tratava-se de uma exposição o seu interesse à luz do dia e em projetos maiores panorâmica das diferentes ideologias contidas no e significativos. Nesse reino da confusão, Paulo cenário nacional como o integralismo, catolicismo, Emílio afirmava que: “é sabido que o meio de liberalismo e socialismo, buscando mostrar ao cultura ideal para a proliferação fascista e leitor o estado e o valor de cada qual na conjuntura neofascista é confusão. A confusão, sobretudo, política brasileira. O que se iniciou como um painel entre os adversários [...]. Creio que é o momento ilustrativo acabou por tornar-se uma significativa de marcar uma posição diante da personalidade descrição de uma chave importante para o de Tristão de Athayde, o sr. Alceu Amoroso Lima. entendimento de uma dinâmica própria da vida

119 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 intelectual e política brasileira, a saber, a fragilidade todos mais ou menos se lançaram pelos vários do engajamento político do intelectual e o seu caminhos do conhecimento científico e artísticos, estado de disponibilidade moral e política. No da física à psicanálise, da pintura ao cinema. balanço crítico do passado político recente Paulo Conheceram o amor. Foram independentes, foram Emílio descreveu as contradições e alienações mesmo mais do que isso. Conheceram a gratuidade vividas nos anos seguintes ao movimento e a disponibilidade, com as facilidades que lhes esquerdista de novembro de 1935, dizendo que permitiam as suas condições de classe. Puderam “Os moços que têm hoje pouco menos ou pouco se dar ao luxo de usar o processo de conhecimento mais de trinta anos fizeram uma primeira que consiste em acreditar-e-depois-não-mais- aproximação com as idéias políticas e sociais de acreditar naquilo pelo que momentaneamente se seu tempo há uns dez anos atrás. No extenso e está interessado” (ibidem). superficial debate de idéias sociais, literárias, Na reflexão crítica do movimento comunista artísticas e científicas (marxismo, psicanálise, pós- de 1935, são várias as questões apresentadas por modernismo artístico etc.) que acompanhou a Paulo Emílio Salles Gomes: crise da modernidade; vitória da também extensa e superficial revolução amor pela Rússia como nova expressão do de 1930, avultava o interesse em torno da Rússia moderno; passado que se apaga na memória dos forjada pela revolução de outubro de 1917 [...]. indivíduos sem deixar vestígio; engajamento Falava-se muito em dialética mas dificilmente se político que se desdobra no nível ameno da aprendia nesses meios a pensar dialeticamente. Mas consciência subjetiva e que se desfaz conforme a amava-se a Rússia. Amava-se a Rússia nos dois intensidade dos conflitos objetivos em cena; evasão campos. Através do entusiasmo pelas realizações da realidade como norma. Nesse longo trecho, stalinistas, ou pelo criticismo trotskista, amava- emotivo e límpido, o que está em questão é o frágil se a Rússia” (idem, p. 285-286). engajamento político do intelectual brasileiro de Contudo, malograda a Revolução de 1935, classe média. A debilidade da sua orientação e a “Vieram os dias terríveis, e passados alguns anos renúncia à luta política comum a esse tipo de desapareceu no Brasil toda a espécie de organização intelectual serve como uma expressão da carência política legal ou ilegal. Aqueles que mais profun- de senso político que reina solto na sociedade damente se haviam integrado no Partido, e viveram brasileira, diagnosticada por Paulo Emílio com a a sua penosa dissolução interna, tinham a sensação boa fórmula “acreditar-e-depois-não-mais- de uma completa esterilização interior, quando isto acreditar naquilo pelo que momentaneamente se na realidade era uma impressão passageira, e eles está interessado”. Uma frase que ainda hoje poderia saíram da prova tremendamente enriquecidos. bem ser escrita para diagnosticar a fragilidade de Outros se transformaram em autônomos [sic], muitos “intelectuais” na sociedade brasileira. com o pensamento e o riso mecanizados, e o brilho “Intelectuais” tão duramente criticados por Paulo dos olhos perdido. Outros ainda fugiram para cada Emílio pois renunciaram ao que há de mais caro vez mais longe, para as Guianas e para a loucura. no papel do intelectual: a consciência histórica. E para alguns esses processos lentos precisaram Livre de qualquer vínculo com o passado e imune ser vividos dentro da geografia limitada das prisões. a qualquer sentimento de responsabilidade acerca do curso do presente, acreditando e depois não Com a maioria, entretanto, dos jovens inte- mais acreditando “naquilo pelo que momen- lectuais das classes médias ou burguesas, não taneamente está interessado”, regride o falso aconteceu nada disso. Eles seguiram suas vidas intelectual à cômoda posição no interior da torre pessoais e houve um momento em que aparen- de marfim. temente não havia mais na maioria deles, nenhuma marca do passado. Pelo fato de nunca terem Criticando a postura rígida do dogmatismo que estado completamente integrados no Partido, e cercava os homens de esquerda, principalmente portanto sem ligação profunda com a massa de o stalinismo, Paulo Emílio rejeita as poucas opções homens sobre a qual o Partido se apoiava, não foi históricas apresentadas pelas forças de esquerda difícil a esses jovens se desligarem a tempo, e nos portadoras da perspectiva de futuro. Sua crítica casos em que houve a continuação de um processo procurava valorizar o sentido originário da Revo- político este se desenvolvia livremente no plano lução Russa como um momento histórico que da consciência. Para estes o rompimento era só deveria ser resgatado para oxigenar as então atuais um drama de consciência [...]. Alguns viajaram, concepções dogmáticas e sectárias. No seu

120 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 17: 107-125 NOV. 2001 esforço de pensar a conjuntura política nacional e de Vargas e, sobretudo, lutar pela extinção “de um internacional, Paulo Emílio promoveu uma Brasil formal e do nascimento de uma nação”. Um recuperação analítica renovadora do passado, projeto moderno2, sem sombra de dúvidas, enaltecendo as conquistas históricas que deveriam voltado para a construção de uma sociedade na ser mantidas a todo custo pelas forças demo- qual os valores universais que fundam a era cráticas. Desse modo, enfatizou os princípios da moderna, a liberdade e a igualdade, existissem de liberdade e da igualdade como conquistas modo real, efetivo e pleno. Um projeto de fôlego, ameaçadas no interior do conflito mundial e, de que se iniciava mediante a efetiva compreensão maneira velada, pela ditadura de Vargas. Para ele, do passado histórico, passo primeiro em busca os países aliados representavam a junção dos ideais de orientação e posicionamento no presente. Afinal, de liberdade e de igualdade de condições (uma como lutar pelo surgimento de uma efetiva nação fórmula do tipo (liberdade) + (igualdade) = (Ingla- sem a orientação advinda da compreensão da terra, França e Estados Unidos) + (União Sovié- origem dos problemas históricos? Como fazer tica)), e aqueles que não se alinhavam com esses vingar nas terras esterilizadas pelo fogo tenaz do ideais estavam do lado da opressão e da barbárie. autoritarismo e do passado escravocrata os direitos Numa frase muito significativa, afirma que “aos universais que constituíam o homem e a sociedade nossos dirigentes, eu sugeriria que contribuíssem moderna? Como encontrar uma fórmula local de para isso com a promulgação de um decreto de um socialismo revolucionário que levasse em conta anistia e liberdade de imprensa, seguidos de a necessidade de construção das liberdades liberdade de organização política para as oposições. democráticas? Às personalidades políticas da oposição, tanto No momento em que o amanhã estava liberais como esquerdistas, eu sugeriria uma linha ameaçado de não existir, Paulo Emílio portava-se de reivindicações em relação aos nossos dirigentes como um intelectual empenhado na linha de frente que facilitasse a hipótese de uma orientação como das várias batalhas que deveriam ser travadas a que ficou expressa na sugestão anterior. Ainda contra o pensamento reacionário. Numa restam muitos problemas que exigem um estudo observação de Antônio Cândido a propósito de urgente e que se enquadrariam bem num inquérito Paulo Emílio podemos encontrar uma síntese do como este. Por exemplo: a questão da participação espírito de luta que fazia surgir no interior da revista do intelectual e da torre de marfim, de que se fala Clima: “inquietação e fervor; busca difícil de uma tanto hoje e que tem sido sempre desenvolvida de ação socialista compreensiva e eficaz, sem uma maneira errada. Sem falar de toda uma série sectarismo mas sem transigência; antistalinismo, de problemas literários e de estética. Estes últimos mas fidelidade à Revolução Russa; marxismo como ficariam deslocados neste depoimento. Estou, base, mas receptividade às correntes filosóficas e aliás, convencido de que por maiores que sejam políticas do século; como tarefa imediata, luta as realizações que possam estar reservadas à minha contra o Estado Novo e o fascismo, seu modelo. geração no campo literário, artístico e científico, Creio que era mais ou menos este clima intelectual esse conjunto não pode deixar de aparecer como e afetivo que banhava as suas idéias e que ele um detalhe, diante do destino político, militar e irradiava” (CÂNDIDO, 1986, p. 61). Nesse religioso de uma juventude chamada a participar depoimento de Antônio Cândido podemos ver do desaparecimento de um Brasil formal e do ressaltado o empenho político que Paulo Emílio nascimento de uma nação” (idem, p. 292; sem projetou ao longo dos anos quarenta no combate grifos no original). ao fascismo e na luta pela redemocratização da Na conclusão de seu depoimento, Paulo Emílio sociedade brasileira, um retrato do projeto de ação Salles Gomes chama a atenção para a necessidade que os jovens universitários iniciavam em Clima imperativa da soma de esforços num tempo que a partir dos editoriais escritos por nosso autor. poderia transformar-se em numa opressão absoluta, se vingasse a promessa nazista do império dos mil anos. No seu argumento podemos estabelecer a presença de duas batalhas em dois planos, no internacional e no local. No plano 2 Sobre as idéias políticas do grupo Clima ver, entre outros. internacional, tratava-se de derrotar o fascismo e Cândido (1977), Mota (1977), Arantes (1992) e Lafer o nazismo e, no plano local, derrubar a ditadura (1992).

121 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945

Quando lemos os 14 números da revista, lança- ressaltar no discurso de formatura. Para Paulo dos entre 1941 e 1944, encontramos a presença Emílio, no mundo em crise e no pântano do de um processo de formação de uma nova identi- golpismo e autoritarismo construído pelo Estado dade do intelectual na cidade de São Paulo. Novo, a função do intelectual era a de lutar pela efetiva democratização da sociedade brasileira. VI. O GOSTO PELO CONCRETO Uma tarefa histórica que acreditava ser o Em 1944 Paulo Emílio foi escolhido como ora- verdadeiro destino de sua geração. Vimos que no dor da turma de bacharéis da Universidade de São seu depoimento à Plataforma da nova geração Paulo. Todavia, nosso autor redigiu um discurso nosso autor concluiu dizendo que “estou, aliás, voltado para enfatizar a necessidade de abater de- convencido de que por maiores que sejam as finitivamente o Estado Novo e tornar impossível realizações que possam estar reservadas à minha qualquer retorno ao estado ditatorial. Conferindo geração no campo literário, artístico e científico, argumentos de alcance coletivo aos esforços de esse conjunto não pode deixar de aparecer como construção de uma sociedade democrática, o seu um detalhe, diante do destino político, militar e discurso em nada lembra uma cerimônia marcada religioso de uma juventude chamada a participar pela pompa e festividade dos formandos e convi- do desaparecimento de um Brasil formal e do dados. Seu conteúdo é todo ele político, e não nascimento de uma nação” (GOMES, 1945, p. seria um exagero dizer que mais se parece com 293). Ao deslocar o acento da sabedoria edificante um discurso de persuasão política: “as necessida- do douto para a arena da luta política, farpa dirigida des políticas do momento se exprimem numa pa- à castidade política do intelectual brasileiro bem- lavra: Democratização. Democratização significa situado au-dessus de la melée, nosso autor redigia muito. Significa levar o Brasil a um regime legal, um importante manifesto a favor de uma cultura dotado de suficiente dinamismo para todas as política militante empenhada na tarefa de transformações. Democratização significa abrir o construção de uma efetiva sociedade democrática. debate mais amplo e livre sobre todos os proble- A palavra de ordem lançada no final do mas políticos, sociais, econômicos e culturais da depoimento à Plataforma da nova geração, nação. Democratização significa que este debate “participar do desaparecimento de um Brasil formal não pode se processar sem liberdade de impren- e do nascimento de uma nação”, seria plenamente sa, de reunião e de organização de partidos políti- desenvolvida no Manifesto da União Democrática cos. Democratização significa a completa Socialista. A União Democrática Socialista surgia integração na vida política do país, das forças de- no clima de esfacelamento do Estado Novo e, mocráticas, conservadoras, liberais ou da esquer- sobretudo, com o acirramento das divergências da. Democratização significa anistia aos presos e ideológicas entre os participantes da Frente de exilados políticos. Ao nosso ver, são grandes os Resistência contida na União Democrática males que o regime do Estado Novo causou ao Nacional. Com o processo de derrocada do Estado Brasil [...]. Cremos na democracia. Cremos na Novo chegava o momento do acerto de contas liberdade cada vez maior para o homem. Cremos entre os liberais, os socialistas e os comunistas, na igualdade cada vez maior entre os homens. até então aliados práticos na resistência à opressão Sentimo-nos solidários com todas as forças que do Estado Novo. A respeito desse momento no mundo trabalham para a emancipação humana. histórico, da ruína da ditadura e dos atritos na As tiranias e as explorações do homem serão composição política no interior da UDN, observava varridas da face da terra” (GOMES, 1978b, p. Paulo Emílio que “começamos a ter reuniões 20). decisivas, nas quais nossas diferenças com os Seu discurso foi formulado por meio de liberais, antes irrelevantes, revelavam-se cruciais. argumentos coletivos, chamando os jovens Se a defesa do stalinismo nos separava dos universitários à luta pela eventual reorganização comunistas, a defesa do capitalismo nos afastava democrática da sociedade brasileira no pós-guerra. dos liberais. A fase das coisas prioritariamente Como podemos ver, Paulo Emílio utilizou práticas passara” (BENEVIDES, 1979, p. 95). abusivamente a palavra “democracia” para indicar Logo, com o fim da atmosfera de compromisso sua inexistência na vida cultural e política brasileira. político comum compartilhado com os liberais e Um alvo que deveria ser construído por sua os comunistas surgia na cidade de São Paulo a geração, tal era a crença que possuía e buscava União Socialista Democrática.

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Escrito em 1945, mas originário do clima de cepção política de Paulo Emílio na metade dos fermentação política da resistência contra o Estado anos quarenta. Na verdade, a defesa do socialismo Novo, o Manifesto da União Democrática democrático significava um esforço duplo que Socialista esquadrinhava as tarefas e os valores partia da tarefa de repensar o socialismo, ao do socialismo democrático na sociedade brasileira. mesmo tempo que este deveria ajudar a redefinir Antônio Cândido, relatando o clima político em os sentidos das abstrações que reinavam soltas na que surgiu esse Manifesto, recorda que, “embora nação malformada. Repensando o sentido do exprimisse posições do grupo, Paulo o elaborou socialismo democrático desenvolvido pelos de maneira pessoal com base nas suas idéias, membros da UDS nos anos quarenta – processo englobando contribuições de Antonio Costa que era capitaneado por Paulo Emílio –, Antônio Correia e Paulo Zingg. O manifesto exprimia uma Cândido comentou que “[...] fiz parte de um grupo esquerda lúcida, realista, e independente, coroando de jovens que tentou, obscura e por vezes dois anos de tateio e agitação clandestina” pateticamente, com dilacerações e tensões de todo (CÂNDIDO, 1986, p. 64). Paulo Emílio condensou tipo, encontrar a fórmula de um socialismo de teor já na primeira frase a finalidade do movimento ao revolucionário que não sacrificasse, no processo dizer que “no Brasil nunca houve democracia”. A da sua construção, as liberdades democráticas. origem aqui é o fim, no caso a inexistência da ‘Quadraturas do círculo’, ‘sonho de intelectual democracia era diagnosticada como a meta que pequeno-burguês’, ‘ideologia de social-traidores’, deveria ajudar a construir mediante uma efetiva – eis alguns qualificativos que recebíamos, à direita luta pela democratização da sociedade, tarefa essa e à esquerda. Achávamos que era preciso superar que somente seria possível mediante a instauração o sistema capitalista, promover a humanização das de um “regime socialista, por uma democracia sem massas escravizadas e abrir para elas o jogo classes”. Contudo, a prioridade ainda era “a político; achávamos que era preciso, numa palavra, liquidação definitiva do Estado Novo, cujo fazer a revolução. Mas achávamos também que o aparelhamento de repressão continua de pé, e o direito à integridade física, a liberdade individual, combate às manobras continuístas do ditador”, o voto desimpedido, a liberdade de expressão, o ressaltando que “a destruição definitiva do fascismo habeas corpus etc. não eram traços inerentes à só estará consumada depois de reformas políticas, civilização burguesa, que pudessem ser econômicas e sociais, pois o predomínio das descartados à vista de fins maiores. Mas a oligarquias poderá conduzir-nos à instauração de conquista da humanidade, a serem preservadas uma nova ditadura” (GOMES, 1986a, p. 104). em qualquer regime e completadas por outros Destruir completamente todas as influências do princípios mais recentes, como liberdade sindical, Estado Novo, nesse momento podendo ser direito de greve, participação nos lucros etc. O identificado como um regime do tipo fascista, fato de terem sido desenvolvidas por teóricos significava combater a estrutura política, social e burgueses, na fase da ascensão ideológica da econômica construída e reformulada pelas burguesia, não lhes tira o caráter de valores oligarquias brasileiras. Logo, no momento em que ‘gerais’” (CÂNDIDO, 1977, p. 37). o Estado Novo estava em processo de Um programa político de fôlego, que não desmoronamento, importava lutar pela “instalação resistiria às “dificuldades de arregimentar e de um regime estável, capaz de resistir a futuras coordenar as tarefas para a luta eleitoral que se investidas das forças reacionárias, porém depende anunciava” (CÂNDIDO, 1986, p. 65). Dissolvida de uma exata compreensão das bases sociais do a UDS em 1945, Paulo Emílio ainda participaria Estado Novo e dos problemas da sua liquidação” da Esquerda Democrática juntamente com os (idem, p. 102-103). amigos da revista Clima Antônio Cândido, Décio No Manifesto, Paulo Emílio estabelecia que a de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado. orientação política do movimento deveria estar Todavia, sua participação foi reduzida e sem o “estritamente de acordo com as peculiaridades mesmo brilho e estímulo que manifestou em outros históricas e sociais do Brasil, longe das fórmulas projetos políticos. esquemáticas e dos sectarismos facciosos” (idem, Numa frase escrita por Antônio Cândido no p. 101-102). Socialismo democrático independente ensaio sobre Arnaldo Pedrosa d’Horta, podemos que se orientava pela necessidade de estudo e vislumbrar o sentido da participação política que conhecimento da realidade brasileira, tal era a con- ambos realizaram na União Democrática Socialis-

123 EMPENHO POLÍTICO E CULTURAL EM PAULO EMÍLIO SALLES GOMES: 1935-1945 ta. Segundo ele, “passamos juntos por muita mu- cialista pode ser compreendido como uma das dança, lutamos horas sem conta em lutas sem “colheitas que não brotaram”, fruto de um empe- perspectivas, esperamos sem esperança colheitas nho político que não conseguia ultrapassar os li- que não brotaram, ficamos homens numa ditadura mites constritores da dura realidade brasileira. e envelhecemos noutra” (CÂNDIDO, 1993, p. Assim, o fim da União Democrática Socialista 196). Drama da condição de intelectual que marca na vida de Paulo Emílio um ciclo que estava juntamente com o amigo Paulo Emílio desem- por ser encerrado. Um outro ciclo estava sendo penhou nos anos quarenta, “lutando sem gerado e seria aberto com a sua viagem rumo ao perspectivas” pelo socialismo democrático numa cinema, na Paris do pós-guerra. sociedade na qual o liberalismo não existia de Recebido para publicação em 26 de setembro de 2001. maneira efetiva e real. De certo modo, o curto Artigo aprovado em 17 de novembro de 2001. período de existência da União Democrática So-

João Carlos Soares Zuin ([email protected]) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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