A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA

O Brasil de ponta-cabeça DE 1970 A 1994, INFLAÇÃO, ESTAGNAÇÃO E ESTABILIDADE

4 A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA

O Brasil de ponta-cabeça DE 1970 A 1994, INFLAÇÃO, ESTAGNAÇÃO E ESTABILIDADE PROJETO CULTURAL: TOTALCOM COMUNICAÇÃO PRONAC 132955 BRASIL CONTEMPORÂNEO: ECONOMIA E CULTURA – MILAGRE ECONÔMICO E RECESSÃO NOS ANOS 70/80: DÉCADAS DE CHUMBO, CONTESTAÇÃO E ROCK BRAZUCA

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER I QUATTRO PROJETOS I 51 3209.7568 www.quattroprojetos.com.br I [email protected]

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA

TEXTOS: RICARDO BUENO

REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA

PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE

FOTOS: AGÊNCIA O GLOBO, AGÊNCIA RBS, FOLHAPRESS, THINKSTOCKPHOTOS, LUIS TADEU VILANI (2º LUGAR – CATEGORIA MÁQUINAS/4º PRÊMIO NEW HOLLAND DE FOTOJORNALISMO)

TRATAMENTO DE IMAGENS: KDPRESS

IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

PATROCÍNIO REALIZAÇÃO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP )

B928a Bueno, Ricardo O Brasil de ponta-cabeça: de 1970 a 1994, inflação, estagnação e estabilidade / Ricardo Bueno. – 1. ed. – : Totalcom, 2014. 128 p. : il. color. ; 20 x 30 cm. – (A história da economia brasileira ; v.4)

Aspectos da economia brasileira do período de 1970 a 1994.

ISBN 978-85-67279-03-9 1. Economia brasileira. 2. Inflação – Brasil. 3. Estabilidade econômica – Brasil. 4. Economia – Brasil. I. Título. CDU 330.341.42(81)(091)

Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA

O Brasil de ponta-cabeça DE 1970 A 1994, INFLAÇÃO, ESTAGNAÇÃO E ESTABILIDADE

RICARDO BUENO

1a EDIÇÃO TOTALCOM COMUNICAÇÃO I QUATTRO PROJETOS

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL DEZEMBRO DE 2014 FOTO: JEAN FABIANO PIMENTEL – PRÊMIO NEW HOLLAND DE FOTOJORNALISMO Economia brasileira: uma história para ser preservada e valorizada

A CNH Industrial, líder de bens de capital, desempenha um importante papel no desenvolvimento nacional. Seja contribuindo com seus produtos e serviços para agricultura, construção, transporte e energia, com um portfólio sólido e amplo, seja por meio do apoio a projetos como esse, que colabora para o conhecimento, o resgate histórico e a dis- seminação da cultura brasileira.

8 Para a CNH Industrial, o investimento em sustentabilidade é uma realidade. Por isso, além de inserir práticas e soluções sustentáveis em suas fábricas e produtos, promove notáveis ações que englobam os pilares social, ambiental e econômico para além dos portões das suas unidades espalhadas por todo o País. A empresa entende que seu papel não se limita ao desenvolvimento físico, mas também à evolução social, estando seus negócios atrelados a isso. O patrocínio da coleção “Um olhar sobre a história da economia do Brasil”, desde 2010, pela Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, à qual esta obra pertence, é um exemplo dessa premissa. Este livro, quinto volume da série, aborda os anos 1970, 80 e 90. Ao longo de uma trajetória de 60 anos no Brasil, a CNH Industrial viu o País mudar radicalmente e participou ativamente dos principais acontecimentos dessas décadas. A companhia sempre acreditou no potencial brasileiro, contribuiu para as transições e seguiu os processos. Afinal, a força que vem do Brasil é estimulante. Durante os anos 1970, 80 e 90, a empresa acompanhou o período dos militares no poder, o fim da ditatura, a eleição e morte de Tancre- do Neves, o impeachment de Fernando Collor, o governo de Itamar Franco e a implantação do Plano Real, que promoveu crescimento e maior estabilidade econômica da moeda local; a criação da estimada Embrapa, o aumento de produção agrícola e a chegada de novas tecnologias; a migração do campo para a cidade, a urbanização e a necessidade de novas estradas e obras; entre outros fatos paralelos aos movimentos culturais. Esses anos foram marcados por muitas histórias de lutas, avanços, recuos, problemas e conquistas, que foram essenciais para construir a nova cara do País. Assim, divulgar esses episódios é uma nobre ini- ciativa que temos orgulho de apoiar. Nesta publicação, que celebra a 22ª edição do Prêmio CNH Industrial de Jornalismo Econômico, os fatos dessas três décadas são revividos. Aproveite a oportunidade e boa leitura.

VILMAR FISTAROL PRESIDENTE DA CNH INDUSTRIAL PARA A AMÉRICA LATINA

9 Da ditadura à estabilidade

Atuar em setores vitais para o desenvolvimento do Brasil, como agricultura, infraestrutura, trans- portes, logística, construção e geração de energia faz da CNH Industrial uma empresa diferenciada, pois dá a ela um olhar privilegiado da sociedade. Por isso a companhia desenvolveu e se apoia em pilares estratégicos, como o investimento contínuo em ações sociais, culturais e educacionais.

Desse pilar nasceu a ideia de valorizar a história da economia brasileira por meio do patrocínio de uma coleção de livros que mostra a evolução da economia do País em detalhes: as moedas, os ciclos, os planos, os contextos, as influências e diversos fatos que marcaram a economia no passado, com reflexos diretos hoje e, também, no futuro. A primeira publicação veio em 2010, abordando os ciclos do pau- -brasil, da cana-de-açúcar e do ouro. Em 2011, foi lançado o livro sobre o ciclo do café e, em 2012, o volume com o ciclo da borracha. Em 2013, a obra abordou a industrialização e o nacionalismo dos anos 1950/60 no embalo da Bossa Nova e do Tropicalismo. O Brasil de ponta-cabeça – de 1970 a 1994, inflação, estagnação e estabilidade é o quinto livro da coleção. A nova edição contempla o milagre econômico, a recessão nos anos 1970/80 sob décadas de ditadura militar, a contestação, as Diretas Já, o crescimento da dívida externa, a hiperinflação e, por fim, a chegada dos anos 1990, com o arrocho e a abertura no governo Collor e a estabilidade conquistada com o Plano Real. Em meio à disco music, o rock e os punks, e como uma solução alternativa às importações e paralela às grandes obras, como as usinas

10 FOTO: CNH INDUSTRIAL/DIVULGAÇÃO de Angra dos Reis e de Itaipu, o agronegócio nacional se estruturava e entrava em uma nova e promissora fase, especialmente a partir de 1973, com a criação da Embrapa. Sem dúvida, o Brasil começava o seu caminho para se tornar uma das principais forças mundiais no plantio e colheita de grãos, com potencial para se tornar o “celeiro do mundo”. Foi no final do período abordado em O Brasil de ponta-cabeça que nasceu o Prêmio CNH Industrial de Jornalismo Econômico que, em 2014, completa 22 anos. Desde 1993, quando foi lançado como Prêmio Fiatallis, o propósito é reconhecer matérias ou séries de repor- tagens de economia que contribuam para o desenvolvimento do País, traduzindo fatos e prestando serviço aos leitores. Toda a coleção dos ciclos da economia brasileira é patrocinada pela CNH Industrial com o apoio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura. O objetivo da empresa é criar um acervo histórico, informativo e único da economia do Brasil, reforçando a importância do investi- mento cultural em nosso País.

VALENTINO RIZZIOLI

11 apresentação ricardo bueno

1994 o ano que não terminou O intervalo de 20 anos e quatro meses entre março de 1974 e julho de 1994 foi dos mais efer- vescentes na história recente do Brasil. O país, por mais de uma ocasião, viu-se de ponta-cabeça, tantas foram as reviravoltas institucionais, políticas, econômicas, esportivas e também culturais pelas quais transitou. Do governo Geisel, marcado pela abertura “lenta, gradual e segura” que se consoli- daria apenas em 1979, com a Lei da Anistia e o retorno dos exilados, já no governo Figueiredo, até o Plano Real, que conseguiu recolocar a economia nos trilhos, finalmente oferecendo alguma perspec- tiva de futuro ao país, os brasileiros deslizaram em uma montanha-russa de circunstâncias e emoções.

12 DOS PRIMEIROS PASSOS DA ABERTURA, NO GOVERNO GEISEL, ATÉ A CHEGADA DO PLANO REAL, VIVEMOS UM SEM-NÚMERO DE REVIRAVOLTAS

13 apresentação ricardo bueno

O fim do período batizado “milagre econômico”, sepultado de vez com o segundo choque do petróleo, em 1979, deu origem àquela que ficaria conhecida como “a década perdida” – ao menos na econo- mia. Uma sucessão de fracassados planos heterodoxos só fez crescer o monstro inflacionário, cujos nefastos impactos na vida cotidiana arrefeceram apenas por breves momentos, para em seguida retomar sua fúria corroedora de salários e da autoestima nacional. Da mesma forma, a retomada da democracia teve lá seus sola- vancos. Primeiro, foram as Diretas Já, que levaram milhões às ruas, mas não passaram no Congresso, em 1984. O consolo, com a eleição indireta de Tancredo Neves, durou pouco: acometido de uma doença fulminante, o mineiro nem chegou a assumir. Com o vice José Sarney no comando, vieram o Plano Cruzado, os fiscais do Sarney, depois Pla- no Bresser, mais tarde Plano Verão. Nada resolvia o drama dos preços que teimavam em subir – e dos salários que insistiam em perder poder de compra. A Constituição de 1988, se trouxe avanços no quesito cidadania, signficaria ainda mais dificuldades para as contas públicas. Ao menos os anos 1980 retribuíram com a mais empolgante década da contemporaneidade musical tupiniquim, com o surgimento de um sem-número de bandas e artistas que fizeram do pop-rock uma paixão nacional, inclusive com alguns de seus expoentes firmes até hoje nos corações e mentes de velhos e novos fãs. Eram tempos, a propósito, em que recém engatinhávamos na tecnologia: ter computador em casa era um privilégio e a telefonia celular ainda não havia dado as caras. Mas a diversão era garantida, ao som dos LPs (só depois vieram os CDs) da Legião Urbana, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Titãs, Barão Vermelho, Blitz, Lobão, Kid Abelha – melhor parar por aqui, pois a lista de talentos musicais é capaz de ocupar toda essa introdução. E eis que em 1989 veio a eleição direta depois dos anos cinza da ditadura civil-militar. O caçador de marajás nascido nas Alagoas ven- ceu o metalúrgico nordestino radicado em São Paulo, e um dia depois de assumir os rumos do país, Collor e sua superministra, Zélia Cardoso (também de sobrenome Mello, mas não sua parenta), confiscaram não apenas contas-correntes, overnight e poupança, mas também a dignidade e a esperança de dias melhores. Nunca se vira tamanha desfaçatez no trato com o cidadão. Durou pouco a trajetória do amigo de PC Farias, que renunciou, abatido pela abertura do processo de impeachment (enquanto PC seria misteriosamente assassinado). E de novo um vice assumiria a cadeira mais importante do Pa- lácio do Planalto, mas desta feita para desferir um tiro certeiro na inflação (que era o que Collor havia prometido fazer): com o Plano Real concebido pela equipe montada por seu ministro da Fazenda

14 DÉCADA PERDIDA NA ECONOMIA, OS ANOS 1980 COMPENSARAM COM UMA INESQUECÍVEL SAFRA DE TALENTOS DO POP-ROCK BRASILEIRO

15 apresentação ricardo bueno

e futuro sucessor (Fernando Henrique Cardos o venceu as eleições presidenciais em 1994 e depois foi reeleito), o presidente Itamar Fran- co ficou apenas dois anos no comando da República verde-amarela, tempo suficiente para tornar inesquecível seu topete escabelado, mas, principalmente, por ter tido a habilidade de comandar o time que apostou em uma moeda virtual para dar jeito na crise para lá de real que durou anos. Real, aliás, foi o nome dado à moeda que surgiria em 1994 e que perdura há 20 anos (uma eternidade, na comparação com o que ocorreu nas décadas de 1970-80-90). O ano de 1994 seria marcado, também, por uma perda irreparável e por uma conquista inesquecível: em maio, o tricampeão do mundo Ayrton Senna saiu de uma curva em Ímola para entrar de vez no panteão dos mitos do esporte. Em julho, a até então amaldiçoada era Dunga, fracassada em 1990, reescrevia sua própria história ao conquistar o tetracampeonato de futebol nos gramados dos Estados Unidos. Como tive oportunidade de registrar em uma crônica no jornal Zero Hora na época, intitulada “A vida como ela é”, em um intervalo de dois meses assistimos a dois diferentes desfiles em carros de bombeiros: o primeiro, com um caixão banhado em lágrimas da multidão; o segundo, atopetado por atletas e empurrado pelas palmas e gritos de milhões de felizes brasileiros. Os solavancos não terminaram ali, é bem verdade, mas o fato é que 1994 marca o início de uma nova era no país, e é por isso que esta retrospectiva dos ciclos e períodos econômicos e sua relação com a cultura e a sociedade chega ao quinto fascículo e se encerra por aqui, ao menos no formato cronológico. Explico: que o controle da inflação foi um avanço altamente significativo na história econômica do país, ninguém discute. Mas vamos ter que esperar ainda alguns anos para que, a partir de um necessário distanciamento crítico, possamos ler (e reler) nossa história recente, de maneira a desvendar os mistérios do passado e vislumbrarmos perspectivas mais exatas para nosso futuro, tomando-se por base o que vem acontecendo de 1994 para cá. De momento, ou melhor dizendo, para 2015, a ideia da coleção é reunir em um volume final os perfis dos principais nomes que mar- caram a história econômica do país, aí incluídos representantes da academia, do mundo empresarial, da área pública. Boa leitura, por enquanto, e até lá!

É CERTO QUE 1994 É UM MARCO NA HISTÓRIA DA ECONOMIA, E SEUS IMPACTOS AINDA ESTÃO EM CURSO

16 17 18 70anos Transição em ritmo disco 20 80anos A fúria da inflação e do rock 42 90anos E o monstro foi dominado 94 70anos Transição em ritmo disco

Foram dois choques do petróleo em menos de dez anos, e a economia do mundo ficou de cabeça para baixo. No Brasil, os reflexos foram inevitáveis. O governo militar dava os primeiros passos rumo à flexibilização das restrições políticas, mas a anistia, com o fim do Ato Institucional nº 5, só viria no alvorecer dos anos 1980. Em meio a planos de desenvolvimento focados na substituição de importações e grandes obras, como Itaipu e Angra dos Reis, o agronegócio estabelecia o contraponto e entrava em nova fase, a partir da criação da Embrapa, em 1973. O Brasil dava os primeiros passos para se tornar o celeiro do mundo. Na cultura, os anos 1960, onde black music e o estilo hippie predominaram, davam lugar a posturas antípodas: de um lado, a agressividade e o niilismo dos punks, e de outro, o brilho e a festa da música disco. Tempos de transição.

20 21 anos 70: contexto econômico

BACIA DE CAMPOS (ACIMA) NÃO AMENIZOU CRISE DO PETRÓLEO, TEMA DE CAPA DE VEJA (ABAIXO, À DIR.). ANISTIA VEIO APENAS EM 1979

22 Os rumos econômicos do Brasil na segunda metade dos anos 1970 foram fortemente influen- ciados por três episódios marcantes, quase simul- tâneos. Cada um com as suas consequências e proporções, a criação da Embrapa e o primeiro choque do petróleo, em 1973, e a eleição de Ernesto Geisel para suceder Emilio Garrastazu Médici na Presidência da República, em 1974, definiram o andamento do país a partir de então. A expressão “choque do petróleo” é utilizada para definir as grandes altas do preço do petróleo em âmbito mundial. O primeiro choque teve início após o apoio dos Estados Unidos a Israel em rela- ção à ocupação de territórios palestinos durante a Guerra do Yom Kippur. Como contrapartida, a Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep) decidiu aumentar o preço do barril de pe- tróleo de 2,90 para 11,65 dólares. O mundo todo foi afetado e a maior parte dos países da Europa e os Estados Unidos entrou em recessão. O Brasil também sentiu o impacto da alta dos preços do petróleo: o valor das importações de combustível quadruplicou, provocando um desequilíbrio na ba- lança comercial. Nem poderia ser diferente. Afinal, na época, o Brasil produzia apenas 15% do petróleo que consumia, ou seja, importava 85%.

Em 1974, a oposição ao governo militar, centrada no MDB, lançou a “anticanditadura” de Ulysses Guimarães para a Presidência da República, como uma forma de protesto. O general Ernesto Geisel venceu a eleição indireta por enorme diferença, e assumiu os rumos da nação a partir de março. O quarto militar a ocupar o Palácio do Planalto durante o regime de exceção se comprometeu a dar início a um processo de abertura política, que chamou de “lento, gradual e seguro”. E foi assim mesmo. A revogação do Ato Institucional nº 5, de 1968, só ocorreu dez anos depois, em 1978, e a promulgação da Lei da Anistia, em 1979.

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CONSTRUÇÃO DE ANGRA DOS REIS FEZ PARTE DE UMA ESTRATÉGIA DE APRESENTAR O PAÍS COMO POTÊNCIA MUNDIAL

EM 1978 O BRASIL Na área econômica, Geisel deu continuidade à política do governo anterior, lançando o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II AINDA COMPRAVA CERCA PND). Mesmo sentindo os efeitos da crise, optou por uma estratégia de transformação estrutural, procurando manter o crescimento da economia dos últimos anos. O objetivo do II PND era complemen- DE 80% DO PETRÓLEO QUE tar de forma mais eficaz a política de substituição de importações do governo Médici. Novos investimentos foram previstos para diversi- CONSUMIA, O EQUIVALENTE ficar e consolidar o parque industrial nacional, tendo como foco as petroquímicas, siderúrgicas, mineradoras de cobre e indústria pesada. A UM TERÇO DO TOTAL A ideia do Brasil como grande potência foi reforçada com novos pro- jetos, como a Usina Nuclear de Angra dos Reis, no , e DAS IMPORTAÇÕES a Hidrelétrica de Itaipu, no Paraná. Para contornar os efeitos da crise do petróleo, além de intensificar a atividade exploratória em território nacional, inclusive permitindo a participação da iniciativa privada por meio dos chamados contratos de risco, o Governo Federal deu início ao desenvolvimento de progra- mas de fontes alternativas, como o Proálcool, lançado em 1975. As descobertas de petróleo na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro, pela

24 FIAT 147, O PRIMEIRO VEÍCULO A ÁLCOOL DO PAÍS (À ESQ.). PROÁLCOOL FOI INSUFICIENTE, E VIERAM CAMPANHAS DE ECONOMIA (ABAIXO)

Petrobras, a partir de 1974, foram comemoradas com entusiasmo, mas não significaram a solução imediata para a redução das importações. Outra medida adotada visando à redução dos gastos com impor- tação foi a proibição de mais de mil itens considerados supérfluos. As medidas não se mostraram suficientes para superar o problema do desequilíbrio da balança c omercial. Os contratos de risco fracassaram, enquanto o álcool hidratado como combustível para automóveis só começou a ser comercializado em 1979. Inicialmente, não representou uma redução expressiva do consumo de gasolina. Em 1978, o Brasil ainda importava 80% do óleo consumido, o que representava em torno de um terço de todas as importações.

CENÁRIO EM TRANSFORMAÇÃO Em meados da década de 1970, o Brasil tinha aproximadamente 110 milhões de habitantes e já era apontado como um dos países mais populosos do mundo. Em 30 anos, a população brasileira havia mais do que dobrado.

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POLOS METALÚRGICOS EM SÃO PAULO SURGIRAM NA DÉCADA DE 1970

O perfil do país estava mudando, e a principal alteração registra- da era o deslocamento do eixo econômico do campo para a cidade. Grandes centros urbanos, como a cidade de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, passaram a concentrar a maior parte da população. O estado de São Paulo reuniu um núcleo econômico consistente, fortalecido com o desenvolvimento de um polo industrial, formado pelas cidades de Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Guarulhos e Osasco. A região do ABC Paulista atraiu um número considerável de imigrantes de todas as regiões do país. O mercado nacional estava mais bem integrado em decorrência do forte impulso da política econômica adotada pelo governo militar. Uma das vertentes dessa política foi a linha de incentivos fiscais para outras regiões, como o Norte e o Nordeste, que estimulou a migração de capitais produtivos de regiões industrializadas (como o Sudeste), promovendo certa “desconcentração” de centros urbanos como Rio e São Paulo. Polos industriais petroquímicos, siderúrgicos e de celulose instalados em outros estados ajudaram a gerar empregos em diferentes regiões e a consolidar o parque industrial do país. O Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento implantou re- formas estruturais significativas, porém, os custos macroeconômicos desse êxito não foram desprezíveis, especialmente no que diz respeito ao endividamento externo. No Brasil, os gastos com importação de petróleo subiram de 4,1 bilhões de dólares em 1978 para 9,5 bilhões em 1982. O ciclo de crescimento vertiginoso da economia brasileira chegava ao fim. A crise internacional sinalizava dificuldades ainda maiores para o futuro próximo. Não era para menos.

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História da moeda

Antes da entrada em circulação do cruzeiro novo, em 1967, um decreto ordenou que a unidade monetária brasileira voltasse a denominar-se cruzeiro. Essa determinação foi posta em prática apenas a partir de 1970. O cruzeiro voltava a ser representado pela expressão Cr$, sendo mantida a equivalência de valores com o extinto cruzeiro novo. O Brasil ainda não tinha autonomia para produção de papel-moeda. Para o seu fornecimento, era necessário recorrer a produtores estrangeiros. Nesse momento, o governo decidiu nacionalizar a sua produção. A Casa da Moeda foi reequipada, passando a dispor de condições técnicas para fabricar todo o chamado meio circulante. Foi instituído um concurso para a escolha da nova série de cédulas. O vencedor foi Aloísio Magalhães, cujo trabalho significou uma verdadeira renovação. As cédu- las de 1, 5, 10, 50 e 100 cruzeiros passaram a ter cores e tamanhos diferenciados, aumentando conforme o valor nominal. O tema empregado foi a representação dos principais governantes do país desde a Independência, em sequência cronológica, salvo a nota de 1 cruzeiro, que apresentava a efígie da República. O lançamento da nota de 1.000 cruzeiros, em 1978, antecipou-se à nova família de cédulas, também idealizada por Aloísio Magalhães. Inovadora mais uma vez, desta feita no aspecto visual, seu desenho permitia, como nas cartas de baralho, a leitura em qualquer sentido. Ficou popularmente conhecida como “barão”, por trazer o retrato do Barão do Rio Branco. Em 1979, surgiram moedas de 1, 5 e 10 cruzeiros, menores e mais leves, em aço inoxidável, único material que passou a ser adotado a partir de então na fabricação das moedas brasileiras.

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GUERRA IRÃ-IRAQUE E SUA RELAÇÃO COM A SEGUNDA CRISE DO PETRÓLEO, EM 1980, RETRATADA POR ARTISTA DESCONHECIDO

O segundo choque do petróleo, entre 1979 e 1980, contribuiu decisivamente para esse cenário. A crise foi decorrente da paralisa- ção da produção de petróleo no Irã, por ocasião da instauração da república islâmica pelo aiatolá Khomeini, após a derrubada do poder do xá Reza Pahlevi, em 1979. No ano seguinte, a Guerra Irã-Iraque agravou ainda mais a situação. Em decorrência, a produção de pe- tróleo foi gravemente afetada, e os contratos de exploração com as companhias estrangeiras residentes no Irã foram renegociados. Em 1980, o preço do barril atingiu níveis recordes, saltando de 12 para 30 dólares. O novo choque, que pôs fim à era do petróleo barato, gerou uma recessão mundial, abalando as economias de países europeus, dos Estados Unidos e do Japão.

REVOLUÇÃO NA AGRICULTURA A ocupação do Centro-Oeste brasileiro (em especial pela mi- gração de pequenos agricultores gaúchos), região onde as chuvas são abundantes e sinalizavam para uma perspectiva de aumento da

28 JOSÉ IRINEU CABRAL (À DIR.), PRESIDENTE DA EMBRAPA, TENDO AO SEU LADO ALYSSON PAULINELLI, MINISTRO DA AGRICULTURA DE 1974 A 1979

produtividade do país, foi um dos fatos marcantes dos anos 1970. INVESTIMENTO EM Em paralelo às políticas desenvolvimentistas, focadas no estímulo à industrialização do país, que marcaram os anos 1960, antes e após a CIÊNCIAS AGRÁRIAS implantação do regime civil-militar, a criação da Embrapa, em 1973, contribuiu decisivamente para a alteração nos rumos da agricultura no ERA FUNDAMENTAL Brasil, assim como o surgimento das estruturas da Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) nos Estados. PARA EQUILIBRAR Na década de 1970, a agricultura se intensificava. O crescimento acelerado da população e da renda per capita, e a abertura para o mercado externo mostravam que, sem investimentos em ciências OFERTA E DEMANDA agrárias, o país não conseguiria reduzir o diferencial entre o cresci- mento da demanda e o da oferta de alimentos e fibras. No âmbito POR ALIMENTOS do Ministério da Agricultura, um grupo debatia a importância do conhecimento científico para apoiar o desenvolvimento agrícola. Nesse momento, os profissionais da extensão rural começaram a levantar a questão da falta de conhecimentos técnicos, gerados no País, para repasse aos agricultores. O então ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, decidiu constituir um grupo de trabalho

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EMPRESA HERDOU DO DNPEA NOVE SEDES DE INSTITUTOS REGIONAIS, 70 ESTAÇÕES EXPERIMENTAIS, 11 IMÓVEIS E DOIS CENTROS NACIONAIS

para definir objetivos e funções da pesquisa agropecuária, identificar limitações, sugerir providências, indicar fontes e formas de financia- mento e propor legislação adequada para assegurar a dinamização desses trabalhos. O trabalho foi coordenado por José Irineu Cabral, que viria a ser o primeiro presidente da Embrapa. Cabral, que faleceu em 2007, registrou sua experiência no livro Sol da manhã: memória da Embrapa, publicado pela Unesco em 2005. Em 7 de dezembro de 1972, foi sancionada a Lei nº 5.851, que autorizava o Poder Executivo a instituir empresa pública, sob a denominação de Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em- brapa), vinculada ao Ministério da Agricultura. No final de 1973, uma portaria do Executivo encerrou a existência do Departamento Nacional de Pesquisa e Experimentação (DNPEA), que coorde- nava todos os órgãos de pesquisa existentes até então. Com isso, a Embrapa herdou do DNPEA uma estrutura composta de 92 bases físicas: nove sedes dos institutos regionais, 70 estações experimentais, 11 imóveis e dois centros nacionais. A partir daí dava início a sua fase operativa, passando a administrar todo o sistema de pesquisa agropecuária no âmbito federal. Em 1974, foram criados os primeiros

30 centros nacionais por produtos: Trigo (em Passo Fundo, RS), Arroz e EMBRAPA ASSUMIU E Feijão (em Goiânia, GO), Gado de Corte (em Campo Grande, MS) e Seringueira (em Manaus, AM). Muita coisa mudou, desde então. AMPLIOU AS FUNÇÕES O engenheiro José Fantine, membro da Academia Nacional de Engenharia, publicou em 2010 um texto intitulado “História da Em- DO DEPARTAMENTO brapa: um exemplo a ser seguido por todos”. Nele, afirma: “Criou-se, com sabedoria, em um país ainda atrasado na educação, o melhor NACIONAL DE PESQUISA E conjunto de P&D do mundo em agricultura tropical. Nisso, somos Primeiro Mundo. Não foi necessário antes fazer uma revolução no ensino nacional, pois o empreendimento, assim como outros de ponta, EXPERIMENTAÇÃO (DNPEA) complementa a formação de sua mão de obra, e então ele influencia o progresso na educação e, depois, ganha com os efeitos desse avanço – um ciclo virtuoso.” Vai além José Fantine: “A Embrapa é um caso de sucesso re- conhecido no mundo. Isso, graças a visionários que criaram uma empresa sem precedentes. Com excelente organização/gestão, a estatal transformou o País na agricultura e incluindo o negócio dos bois, dos suínos, das aves, das florestas etc. (...) Permitimo-nos dizer que a Embrapa ajuda de forma eficaz a realizar o sonho de ver um

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TROPICALIZAÇÃO DA SOJA E DE FRUTAS TÍPICAS DE CLIMA TEMPERADO CONTRIBUIU PARA TRANSFORMAR BRASIL EM PLAYER MUNDIAL

FONTES ALTERNATIVAS DE mundo livre da fome, e dá um exemplo cabal do como o poder pú- blico, com estruturas de ponta, lastreadas em trabalho em redes e em ENERGIA E PRODUÇÃO base tecnológica, pode ser a chave do progresso econômico e social.” O orçamento da Empresa em 2012 foi de R$ 2,33 bilhões. Em DE ALIMENTOS MAIS 2013, quando comemorou seus 40 anos, a empresa recebeu incontá- veis homenagens. Nem poderia ser diferente. Ao longo das últimas quatro décadas, o País deixou uma situação de insegurança alimentar NUTRITIVOS ESTÃO e passou a ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo. O crescimento da oferta para o mercado interno superou rapidamente NO HORIZONTE DE a curva de crescimento da demanda, provocando uma queda de 50% no valor da cesta básica, entre 1975 e 2011. DESAFIOS DA EMBRAPA O presidente da Embrapa, Maurício Lopes, acredita que, entre os principais avanços da agricultura brasileira desde a década de 1970, estão a tropicalização da soja e de frutas típicas de clima temperado, como a maçã, além da autossuficiência na produção de cereais e oleaginosas, como o milho e a soja, possibilitando ao Brasil se tornar um grande exportador no cenário mundial. De outra parte, Maurício Lopes acredita que os principais desafios da empresa no futuro dizem respeito às necessidades de adaptação da agricultura à nova realidade, ao meio ambiente, em produzir fontes alternativas de energia, em produzir alimentos mais nutritivos, com propriedades funcionais.

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CERCA DE 81% DOS PESQUISADORES DA EMPRESA TÊM DOUTORADO A Embrapa hoje

Com uma estrutura organizacional composta de Unidades de Pesquisa, Unidades de Serviços e Unidades Centrais, a Embrapa conta atualmente com cerca de 9.200 empregados, dos quais 2.215 são pesquisadores, 81% deles com doutorado. Suas unidades (centros de pesquisa de produtos, de temas básicos e ecorregionais) estão distribuídas em quase todos os Estados do Brasil, realizando trabalhos de abrangência nacional. A Embrapa compõe e coordena o Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA), também constituído por instituições públicas federais, estaduais, universidades, empresas privadas e fundações que, de forma cooperada, executam pesquisas nas diferentes áreas geográficas e campos do conhecimento científico. Em termos de cooperação internacional, a Embrapa mantém acordos bilaterais de cooperação técnica com inúmeros países e instituições, bem como acordos multilaterais com organizações internacionais, envolvendo principalmente a pes- quisa em parceria. Mantém ainda laboratórios virtuais no exterior (Labex) para o desenvolvimento de pesquisas e prospeção de tendências em temas na fronteira do conhecimento nos Estados Unidos, França, Inglaterra, Países Baixos e Coreia do Sul. Também possui um escritório em Gana para compartilhar conhecimento científico e tecnológico junto aos países africanos e, mais recentemente, no Panamá e Venezuela, visando a uma atuação na América Latina.

33 anos 70: contexto econômico

NOS ANOS 1970, UMA SAFRA NA CASA DOS 190 MILHÕES DE TONELADAS PARECIA UM SONHO INALCANÇÃVEL

NOS ÚLTIMOS 40 ANOS, O Para se ter uma ideia da mudança no cenário brasileiro, em 1970 pensar em uma safra com 100 milhões de toneladas era apenas sonho. AGRONEGÓCIO CONSEGUIU Em junho de 2014, levantamento da Companhia Nacional de Abaste- cimento (Conab) apontava que a produção de grãos no Brasil poderia chegar a 193,6 milhões de toneladas na safra 2013/2014. A estimativa PRODUZIR O SUFICIENTE representaria aumento de 2,6% (ou o equivalente a 4,9 milhões de toneladas) acima da safra anterior (188,7 milhões de toneladas). PARA ALIMENTAR COM O impulso ao agronegócio contribuiu para o surgimento de dis- tritos industriais, inicialmente em São Paulo e Curitiba, e depois em FOLGA TRÊS “BRASIS” Joinville e Juiz de Fora. Já a comercialização de máquinas agrícolas teve seu recorde histórico de vendas (que permanece até hoje) registrado na safra 1977/78, quando aproximadamente 75 mil equipamentos foram comercializados. Importante salientar que naquele momento a potência das máquinas não ultrapassava 70cv (hoje, em torno de 40% dos equipamentos têm potência acima de 100cv). A observação de alguns importantes indicadores não deixa dúvidas com relação à mudança no perfil do agronegócio brasileiro a partir dos anos 1970. Em 1975, a produção brasileira de grãos alimentava 1,35 ve-

34 NA DÉCADA DE 1970, POTÊNCIA DAS MÁQUINAS USADAS NO CAMPO NÃO ULTRAPASSAVA 70CV

zes a população do País. Este indicador saltou para 3,11 vezes em 2013, registrando um incremento de 230%, conforme afirmam os pesquisadores Décio Luiz Gazzoni, e José Otávio Menten, ambos do Conselho Cientí- fico para Agricultura Sustentável (CCAS), no artigo “A capacidade do agro brasileiro de produzir de forma sustentável”. Para fundamentar o cálculo, os pesquisadores usaram como indicador o índice de área, que mede quantos hectares devem ser cultivados para fornecer a quantidade de grãos necessária para alimentar uma pessoa, em um ano. Desta forma, nos últimos 40 anos, o agronegócio brasileiro atingiu a capacidade de alimentar, com folga, três “Brasis”, produzindo mais em menos área. A produtividade aumentou de aproximadamente 1,2 quilo por hectare para 3,4. Este desenvolvimento se refletiu no aumento do poder aquisitivo da população para compra de alimentos. Indicador calculado pelo DIEESE revela que caiu o número de horas que um cidadão que recebe salário mínimo precisa trabalhar para adquirir a cesta básica definida em lei. Segundo os pesquisadores, com base no indicador do DIEESE, este cidadão compra sete vezes mais alimentos hoje do que em 1974.

35 anos 70: cultura e sociedade

Em transição Como registra o jornalista Silvio Anaz, eles começaram quando os Beatles acabaram, no rescaldo do fim do sonho hippie. E terminaram logo após o punk anunciar o fim do mundo (ao menos como o conhecíamos até então). Os anos 1970 foram marcados pela efervescência da era da discoteca, pelos filmes de catástrofe, o início da hegemonia do cinema hollywoodiano para adolescentes, os primeiros passos do hip-hop e da música eletrônica, o auge e a morte do rock progressivo, além de um vestuário que deu uma identidade toda particular para a época. Foram fatos, movimentos e estéticas que ajudaram a enterrar definitivamente as ilusões da década de 1960 e a lançar as bases do que seria a vida a partir dos anos 1980.

“Foi uma década em que o mundo vivenciou a derrocada norte- -americana no Vietnã, o escândalo político de Watergate, o surgimento do movimento punk, a crise do petróleo e a ascensão de um pensa- mento econômico ultraliberal. No Brasil, passava-se dos anos mais repressivos da ditadura militar para o início do processo de abertura política. Por conta da censura e do regime autoritário, muitas das transformações culturais e comportamentais mundo afora não foram completamente vivenciadas por aqui naquele momento”, explica Anaz. Também pudera. O presidente Médici chegou ao ponto de proibir os meios de comunicação de divulgarem “qualquer exteriori- zação considerada contrária à moral e os bons costumes”. O general afirmava, na época: “se generaliza a veiculação de matérias que ofen- dem a moral comum, estimulam a licenciosidade, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade, obedecendo a um plano subversivo que põe em risco a segurança nacional”. Outra determinação de Médici foi de que a publicação de livros periódicos fosse submetida à análise prévia da Polícia Federal.

36 JOHN TRAVOLTA COMO TONY MANERO, EM EMBALOS DE SÁBADO À NOITE (ALTO), RAMONES (ACIMA, À ESQ.) E MEIAS LUREX: ÍCONES DA DÉCADA

37 anos 70: cultura e sociedade

NA MÚSICA, AS FRENÉTICAS FORAM UMA DAS MELHORES EXPRESSÕES DO ESPÍRITO DISCOTECA DOS ANOS 1970

O VISUAL E AS ATITUDES MIGRARAM DO RIPONGA E BLACK POWER DA DÉCADA DE 60 PARA A AGRESSIVIDADE DO PUNK E O COLORIDO DA DISCO MUSIC E NEW WAVE

38 Se de um lado a marchinha “Pra Frente Brasil”, de Miguel Gustavo, transformava-se em uma espécie de hino nacional, com o país inteiro can- tando “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração....”, um outro tipo de canção de protesto disfarçada, por conta da censura, tinha como expoente a obra de , enquanto o Tropicalismo ainda fazia eco, em especial nas canções de . Mas quem liderava as paradas e as vendagens eram as canções românticas do “rei” Roberto Carlos, em um cenário que contemplava também os sucessos da chamada música brega, uma vertente da canção popular extremamente sentimental composta e interpretada por artistas com grande apelo junto ao público, como Odair José, Nelson Ned e Valdick Soriano. Em meio a toda essa diversidade em verde-amarelo, a onda da disco music se popularizou antes do movimento punk. Na segunda metade da década de 1970, as discotecas brasileiras eram um dos principais centros de entretenimento. A febre da disco music se espalhou pelo país com os sucessos da novela Dancin’ Days, da Rede Globo, e com o lançamento do filme Os Embalos de Sábado à Noite, com John Travolta. O fenômeno permitiu também o surgimento de uma versão brasileira da música de discoteca, com As Frenéticas, Lady Zu e Tim Maia. Uma versão mais popular e erotizada do gênero ficou por conta de artistas como Sidney Magal e Gretchen. Mas, mais do que a diversidade de gêneros que surgiram ou definharam nos anos 70, a marca dessa década foi a radical mudança de rumo que a música jovem deu. ROBERTO CARLOS (NO ALTO) SAIU DA JOVEM GUARDA PARA O ESTILO

CINEMA ROMÂNTICO, ENQUANTO TIM MAIA (ACIMA) No Brasil, os filmes produzidos pela chamada Boca do Lixo divi- SURFOU NA ONDA DISCO diam as telas com as produções patrocinadas pelo mecenato estatal da Embrafilme e mostravam as duas faces da produção cinematográfica nacional. De um lado um cinema marginal representado por diretores como Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, David Cardoso e José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Helena Ra- mos se tornaria símbolo sexual ao menos de uma vertente do cinema brasileiro, com participação em vários filmes produzidos pela Boca do Lixo e em pornochanchadas. De outro, os filmes produzidos pela Embrafilme dos diretores Cacá Diegues, Nélson Pereira dos Santos, Hector Babenco, Neville de Almeida, Arnaldo Jabor e Bruno Barreto, entre outros. O resultado desse inusitado mix de estilos ia de filmes escrachados, como Bacalhau (direção de Adriano Stuart, 1975), uma sátira do sucesso Tu b a r ã o , de Steven Spielberg (1975), ao cinema autoral de Walter Hugo Khoury , além de uma vasta produção de pornochancha- das, como O Bem Dotado – o Homem de Itu, de José Miziara (1978).

COMPORTAMENTO O visual e a atitude jovem, ao longo da década, migrou do riponga e do black power da virada dos anos 1960 para os 70 para uma diver- sidade que ia da agressividade do punk ao chique e colorido da disco

39 anos 70: cultura e sociedade

HEBE CAMARGO E (ALTO) REINARAM NOS PROGRAMAS DE AUDITÓRIO, ENQUANTO ESCRAVA ISAURA (À ESQ.) DIVIDIA ESPAÇO COM TOM E JERRY NA TV

40 COM A POPULARIZAÇÃO DA TELEVISÃO, EXPLODIU A

AUDIÊNCIA DAS TELENOVELAS, QUE TIVERAM EM DIAS

GOMES E JANETE CLAIR SEUS MAIORES ÍCONES

music e da new wave no final daqueles anos. Herança da contracultura hippie, as batas, pantalonas, saias e vestidos com estampas floridas ou étnicas, com influências ciganas e indianas, e os cabelos compridos deram o tom da moda jovem na primeira metade da década. Com o surgimento do movimento punk, que se opunha ao estilo de vida e às ideias hippies, uma parte da juventude aderiu à filosofia niilista e agressiva e adotou um visual sadomasoquista inspirado nas criações da estilista Vivienne Westwood, com suas roupas de couro, camisetas rasgadas, cintos e pulseiras de tachinhas, cabelos coloridos e o corpo cheio de piercings. Parte da elegância que existia na música negra dos anos 1960 inspirou o visual dos frequentadores das discotecas na segunda me- tade dos anos 1970. Até porque muito da disco music derivava do funk e de outros ritmos da black music. Mas era uma versão mais extravagante e exótica, com camisas de cetim e de seda, calças à base de lycra, meias-calças combinando com saias, tudo cheio de lantejoulas. À medida que a televisão alcançava um número crescente de lares, explodiu a audiência das telenovelas, e ninguém deixaria um legado tão relevante quanto Dias Gomes e Janete Clair. Na carona de Beto Rockfeller, exibida entre 1968-69, vieram sucessos estron- dosos como Irmãos Coragem, Selva de Pedra, Uma rosa com amor, O Bem Amado, Mulheres de Areia, Os Ossos do Barão, O Rebu, Pecado Capital, Saramandaia, Estúpido Cupido, Escrava Isaura (um dos maiores sucessos internacionais da teledramaturgia brasileira em todos os tempos, estrelada por Lucélia Santos), Dona Xepa, O Astro e a já citada Dancin’ Days”.

DE OLHO NA TELA Mas nem só das novelas viveu a TV brasileira nos anos 1970. Programas de auditório comandados por Silvio Santos, e marcaram época, assim como os humorísticos, em que e Jô Soares foram os maiores expoentes. Em paralelo, produções nacionais como Vila Sésamo, Sítio do Pica-Pau-Amarelo e A Grande Família eletrizavam os telespecta- dores, assim como os seriados internacionais da época, entre eles Hulk, Cyborg – o homem de seis milhões de dólares, As Panteras e Havai 5.0. Entre os desenhos animados da época, destaque para Speed Racer, Pica-Pau, Pernalonga, Piu-Piu, Tom e Jerry, Gaguinho, Os Herculóides, Homem Pássaro e Popeye, entre tantos outros.

41 80anos A fúria da inflação e do rock

Apelidada de “década perdida”, tal foi a sucessão de fracassos na condução da economia, os anos 1980 tiveram alguns contrapontos interessantes, como o fim do regime de exceção, a promulgação da nova Constituição, em 1988, e em especial a explosão de uma nova musicalidade no país. Se os planos econômicos se sucederam sem que nenhum deles alcançasse o intento de domar a inflação; se as Diretas Já não vieram em 1984; se Tancredo morreu antes de assumir, de outra parte nunca antes na história do país registraram-se tantas e tão interessantes novidades no cenário musical, com a eclosão de dezenas de bandas que fazem sucesso até hoje. Em meio a essa euforia, a população penou com congelamentos, desabastecimento, elevação de impostos e confiscos. Foram tempos de som e fúria, inflação e rock. Ficou o enigma: o que viria nos anos 1990?

42 43 anos 80: a década perdida

Muitas foram as tentativas de síntese do que a década de 1980 significou para o Brasil. Em texto publicado no Jornal do Brasil, no ano 2000, Gustavo Franco afirmou, a respeito daquela que ficou conhecida por muitos como a década perdida: “[A Década Perdida] pode ser a década de 1980, mas pode ser também uma década ‘expandida’, começando em 1982, com a moratória mexicana, e terminando em 1994, com o Plano Real. Ou começando mes- mo antes, em 1979, quando teve início (com o catastrófico episódio da pré-fixação da cor- reção monetária) toda uma série de feitiçarias cuja expressão mais madura seriam os choques heterodoxos, dos quais o Cruzado e o Collor seriam os mais assustadores. A ‘Década Perdida’ parece, portanto, uma década longa, até porque foi sofrida no campo econômico e pontilhada de frustrações no plano político.”

Em 1990, José Serra fez outra síntese daquele momento emble- mático: “O saldo da década foi um impressionante inventário de frustrações. Na média de uma vez a cada ano e meio, o país passou por sete planos de estabilização da moeda e 13 políticas salariais diferentes. As regras do câmbio mudaram 17 vezes, as regras para o controle de preços sofreram 53 alterações. Os planos para enca- minhar o problema da dívida externa foram 20, e os projetos de austeridade e cortes nos gastos públicos somaram 18 decretos. Nesse período, o cidadão brasileiro conheceu quatro moedas diferentes e calculou a desvalorização do dinheiro por dez índices variados”. O Comitê de Datação de Ciclos Econômicos da FGV identificou que a maior crise pela qual o país passou no período durou 30 meses, e foi de junho de 1989 a dezembro de 1991. Esse período engloba a fase mais crítica de hiperinflação, quando o índice alcançou 80% ao mês, e o Plano Collor, que teve como medida mais traumática o confisco, por 18 meses, dos saldos de contas-correntes e cadernetas de poupança.

44 ACIMA, A NOTA DE MIL CRUZADOS. ABAIXO, A MESMA NOTA COM CARIMBO DE 1 CRUZADO NOVO: NO TOTAL, FORAM QUATRO MOEDAS EM DEZ ANOS

TAXA MÉDIA DE CRESCIMENTO DA RENDA PER CAPITA

6,1%

4,1% 3,8% 3,1% 2,4% 2,2% 2,2% 1,2% 0,7%

1900-1909 1909-1919 1919-1929 1929-1939 1939-19491949-1959 1959-1969 1969-1979 1979-1989

45 anos 80: a década perdida

JOÃO FIGUEIREDO ASSUMIU EM 1979 E ENFRENTOU RESISTÊNCIAS À REDEMOCRATIZAÇÃO POR PARTE DA “LINHA DURA” DO EXÉRCITO

O fato é que, a partir de 1979, dois assuntos passaram a predominar no Brasil: a volta da democracia e o crescente processo inflacionário. O novo presidente eleito, general João Batista de Oliveira Figueiredo, deu continuidade ao processo de abertura, iniciado no governo Geisel, apesar de ações contrárias da ala militar conhecida como “linha dura”. Para citar alguns exemplos, bombas explodiram em jornais da oposição, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na sede da OAB (matando sua secretária) e no festival de música realizado no Riocentro. A Lei da Anistia foi aprovada nesse mesmo ano, e os exilados começaram a voltar ao país; no ano seguinte, a pluralidade partidária foi restabelecida, e eleições diretas para os cargos executivos foram programadas para 1982 – as primeiras desde o golpe militar. Nesse ano, registrou-se a vitória da oposição nas eleições legislativas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná. O ano de 1979 ficou também marcado pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como um de seus principais líderes Luiz Inácio Lula da Silva. Os brasileiros voltavam a ter esperanças, a ditadura parecia estar chegando ao fim e um novo tempo se anunciava. No campo econômico, ao contrário dos anos anteriores, as no- tícias não eram tão animadoras. O boom do período do “milagre” e

46 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA SURGE COMO LIDERANÇA DE EXPRESSÃO NACIONAL COM A FUNDAÇÃO DO PT, EM 1979

o ciclo de crescimento promovido pelo Segundo Plano Nacional de INFLAÇÃO A PARTIR DOS Desenvolvimento (II PND) haviam terminado. Uma estagnação no processo de crescimento econômico passou, então, a predominar no ANOS 1980 INTERROMPEU Brasil e em toda a América Latina. Até os anos de 1980, a taxa de crescimento do Brasil era considerada TAXA DE CRESCIMENTO estável. Porém, à medida que a inflação passou a apresentar níveis elevados, a economia praticamente estagnou. A razão (ou as razões) do processo DO PAÍS, QUE SE inflacionário no Brasil é uma questão ampla e complexa. Entre os fatores que contribuíram para seu crescimento está a estrutura institucional brasileira, mas também o comportamento de seus componentes. MOSTRAVA ESTÁVEL A maioria dos países em desenvolvimento começou a rever suas políticas econômicas e sociais naquele momento. Acentuou-se a ATÉ ENTÃO dependência e o endividamento externo. Pressões inflacionárias e desequilíbrios nas contas externas marcaram esse período. Com o segundo choque de petróleo e a inevitável elevação dos preços dos combustíveis, houve aumento das taxas de juros dos países centrais e uma retração da economia mundial. Ao tentar minimizar os efeitos da crise internacional que afetavam o balanço de pagamentos do país, o ministro do Planejamento, Mario Henrique Simonsen, optou por um ajuste econômico de caráter recessivo. A política econômica adotada

47 anos 80: a década perdida

COM A MORATÓRIA foi bastante criticada. Em meio às pressões para alterar os rumos da economia, Simonsen pediu demissão. DO MÉXICO, EM 1982, Antônio Delfim Netto assumiu a pasta e tentou retomar a política de expansão da economia. No primeiro ano, em 1980, os resultados BANCOS INTERNACIONAIS foram bastante positivos, e o PIB cresceu 9,1%. Contudo, a inflação disparou, alcançando a taxa anual de 110,2%, e o desequilíbrio no balanço de pagamentos aumentou. Foi preciso mudar e adotar nova- SUSPENDERAM O CRÉDITO mente uma política de contenção econômica. Um conjunto de medidas foi adotado para reduzir o nível de ati- A PAÍSES JÁ ENDIVIDADOS, vidade econômica, impondo limites à expansão da moeda e cortes aos investimentos das empresas estatais. Procurou-se também incentivar COMO O BRASIL as exportações. Essas ações, que se destinavam ao reequilíbrio da balança comercial, tiveram outras implicações. Em 1981, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto caiu 3,1% e a inflação apre- sentou uma ligeira queda, voltando a subir em 1982. A produção, especialmente das indústrias de bens de consumo du- ráveis, foi bastante afetada. O desemprego nos centros urbanos cresceu sensivelmente, e os salários tiveram seu poder de compra reduzido. Essa combinação entre estagnação econômica e inflação elevada, um fenômeno relativamente raro, foi chamada de “estagflação”. Em 1981, os bancos internacionais interromperam o fluxo de fi- nanciamentos por um erro de regulamentação do governo americano, que proíbe seus bancos de emprestar mais de 12 vezes seus capitais. Em 1980, esses bancos haviam tido seus capitais corroídos pela inflação de 14%. Como a regulamentação americana não prevê a correção dos capitais, os bancos superaram seu nível máximo de empréstimos. Para o Brasil as consequências foram terríveis. O país passou de uma década de 1970 em que recebia recursos reais do exterior, complementando a poupança doméstica, para uma situação de remessa de recursos reais para o exterior. Tais fatores le- varam a uma drástica redução da capacidade de investimento, além de gerarem crise no balanço de pagamentos. Portanto, ao contrário do que eventualmente se afirma, em 1981 não existia um superendividamento do Brasil e que teria sido causa da interrupção dos financiamentos. A recessão daquele ano se arrastou por nove trimestres. Foi a mais intensa na história do país, com uma contração acumulada no PIB de 8,5%. O pedido de moratória do México, em 1982, tornou a situação brasileira ainda mais difícil, restringindo as chances de o país conseguir empréstimos externos. Os bancos internacionais, temendo novas mo- ratórias, suspenderam o crédito a países endividados. No ano seguinte, com as reservas internas em dólares esgotadas, o Brasil recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e se comprometeu a seguir as recomen- dações de cortes de despesas e outras medidas restritivas. A ida ao FMI gerou uma série de pressões internas, além dos desentendimentos entre o governo e o Fundo a respeito da redução do déficit público e da expansão do crédito líquido interno.

48 PAÍS TEVE QUE RECORRER AO FMI, MAS AJUSTE FINO DAS MEDIDAS VISANDO À CONTENÇÃO DO DÉFICIT PÚBLICO FOI COMPLEXO

DELFIM NETTO VOLTOU AO GOVERNO EM 1980, CONSEGUIU ÓTIMAS TAXAS DE CRESCIMENTO, MAS POR CURTO ESPAÇO DE TEMPO

49 anos 80: a década perdida

POPULAÇÃO FOI ÀS RUAS, COMO NO CÉLEBRE COMÍCIO DA CANDELÁRIA, EM 1984, PEDIR ELEIÇÕES DIRETAS

A situação cambial beirava a insolvência . Além disso, o país teve que honrar aproximadamente 20 bilhões de dólares, entre amorti- zações e juros, ante um superávit comercial de apenas 780 milhões dólares. O resultado desse processo de exportação de capitais foi avassalador para o Brasil. A capacidade produtiva já estava muito aquém do seu potencial pleno quando surgiram os primeiros índices indicando o aparecimento da “crise da dívida”. Apesar de tudo, em 1983 a balança comercial apresentou supe- rávits significativos devido às medidas de estímulo às exportações, sob pressão dos credores internacionais. Mas essa política, iniciada ainda em 1982, veio acompanhada de muitos problemas, como afir- ma Paulo Nogueira Batista Júnior: “Para gerar esses megasuperávits comerciais, a política econômica brasileira ao longo dos anos 1980 acionou uma série de mecanismos que levaram, sim, a aumentar as exportações e diminuir as importações, mas que tinham repercussões geralmente desfavoráveis sobre as finanças do setor público. Então, através de medidas que foram mantidas ou ampliadas, câmbio, tarifas, incentivos fiscais, subsídios diretos, creditícios, ampliação do crédito ao setor privado etc., nós fizemos um grande esforço para a geração de um superávit comercial, mas em grande medida à custa de pressões sobre o orçamento do setor público”. A expansão das exportações não decorreu de uma eventual superioridade tecnológica, mas da disponibilidade de recursos naturais e do baixo custo da mão de obra.

50 MOVIMENTOS SINDICAIS SE MOBILIZARAM COM PAUTAS ECONÔMICAS, MAS TAMBÉM POLÍTICAS

Apesar da recessão, os efeitos positivos da política de ajustes adotada EM 1984, BALANÇA nos três anos anteriores foram sentidos em 1984, quando se registrou uma retomada da atividade econômica e a volta do crescimento do país, COMERCIAL APRESENTOU motivados pelo aumento das exportações e pela redução das importa- ções. A balança comercial apresentou um superávit de 606 milhões de SUPERÁVIT, MAS dólares. No entanto, a inflação continuou a subir, alcançando a taxa de 223% nesse ano. INFLAÇÃO CHEGOU

PROTESTOS E DECEPÇÃO A 223% AO ANO A crise econômica motivou a população a demonstrar novamente sua insatisfação com o governo militar. Em janeiro de 1984, com a des- culpa de comemorar o aniversário da cidade de São Paulo, foi marcado um grande comício, que assinalou o início da campanha pelas eleições diretas para presidente. O movimento – conhecido como Diretas Já – rapidamente se espalhou por cidades de todo o país, reunindo multidões. Em abril, um comício realizado no centro da cidade do Rio de Janeiro bateu todos os recordes: mais de 1 milhão de pessoas, nos cálculos da Polícia Militar e do próprio SNI se aglomeraram para manifestar o seu desejo por mudanças. O comício da Candelária foi considerado a maior manifestação polí- tica de toda a história do país. Diante daquela massa de gente, um senhor muito idoso pegou o microfone: “Peço silêncio para falar! Quero falar à

51 anos 80: a década perdida

POPULAÇÃO DEPOSITOU ESPERANÇAS NO GOVERNO DE TANCREDO, MESMO APÓS ELEIÇÕES INDIRETAS, MAS SUA MORTE REPENTINA CAUSOU FRUSTRAÇÃO

JOSÉ SARNEY MANTEVE ESTRUTURA DE GOVERNO MONTADA POR TANCREDO E APOSTOU EM PLANO ECONÔMICO COMPLEXO

52 nação brasileira!” É provável que poucos soubessem de quem se tratava, ENTUSIASMO COM mas, mesmo assim, de uma forma impressionante, a multidão se calou, e o doutor Heráclito Sobral Pinto, do alto de seus 91 anos, continuou: “Este A CHAMADA “NOVA movimento não é contra ninguém. Este movimento é a favor do povo.” E citou o primeiro artigo da Constituição Brasileira: “Todo o poder emana REPÚBLICA” DUROU do povo e em seu nome é exercido.” Não é difícil imaginar a reação de quem ouviu aquele discurso, depois de tanto tempo de repressão política. Sobral Pinto sintetizou em poucas palavras o que todas aquelas pessoas POUCO: TANCREDO estavam ali querendo demonstrar com suas presenças. O governo João Figueiredo estava desgastado e a ditadura entrava em ADOECEU E SARNEY sua reta final. Porém, mesmo com tantas manifestações, a Emenda Dante de Oliveira, que propunha a volta das eleições diretas, não foi aprovada ASSUMIU O GOVERNO pelo Congresso. Após a frustrada expectativa, a população encontrou algum consolo com a candidatura de Tancredo Neves para a Presidência da República, em eleições indiretas. A sua vitória – que representava a volta da democracia – foi comemorada por todo o Brasil. Uma nova etapa se iniciava, e logo foi batizada de “Nova República”. No entanto, mais uma vez, as expectativas foram frustradas: na véspera da posse, Tancredo foi hospitalizado e não chegou a ser nomeado. O vice-presidente, José Sarney, assumiu o poder e manteve a estrutura de governo já montada pelo presidente eleito. Tancredo Neves morreu na semana seguinte, em 21 de abril de 1985.

A ERA SARNEY Ainda em abril de 1985, Sarney lançou um plano heterodoxo parcial, baseado em um congelamento de preços de serviços públicos e alguns setores oligopolísticos privados, correspondentes a 40% do PIB. Com isso, a inflação caiu de 12% para 7%, mas apenas durante três meses, voltando para o patamar anterior com a correção dos preços. Em novembro do mes- mo ano, outro pacote, focado em medidas precursoras preparativas para o Plano Cruzado, que viria no ano seguinte, atingiu o serviço público, com a proibição de ingresso de pessoal nos órgãos da administração e autarquias até 30 de junho de 1986. As demais medidas visavam aumentar a receita do governo, face ao monumental déficit de Cr$ 211 trilhões, porém teriam inevitável impacto inflacionário. Algumas medidas adotadas: antecipação no prazo de recolhimento de tributos como o IPI sobre fumo e automóveis; aumento da cobrança do Imposto de Renda para as grandes empresas e rendimentos de capital e ganhos financeiros; prorrogação até 1988 dos incentivos fiscais na área da Sudene, Sudam, Sudepe e Embraer; substituição do Imposto de Renda pelo Imposto Sobre Operações Financeiras nas aplicações de Open Market e operações a termo nas Bolsas de Valores.

O pacote econômico, extremante complexo, foi encaminhado ao Congresso e aprovado praticamente sem possibilidade de análise por

53 anos 80: a década perdida

CRUZADO (ACIMA): CONGELAMENTO DE PREÇOS EXIGIU ATENÇÃO DO CONSUMIDOR (AO LADO)

deputados e senadores. Os efeitos do pacote, somados às pressões infla- cionárias devido ao mau ano agrícola de 1985, em decorrência da seca no Centro-Sul, elevaram as expectativas de inflação para 1986. Vários economistas reviram suas estimativas: dos 220% inicialmente estimados, o percentual provavelmente subiria para 350% ou 400% ao ano. Ainda em dezembro de 1985, o governo determinou a substituição do IGP pelo INPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado, com cesta de consumo de 1 a 30 salários mínimos, para medir a inflação de novembro. Isso significou diminuir a correção no mês de 15%, para 11,2%. A justificativa foi unificar câmbio e salários adotando o mesmo índice para correção monetária. O pacote, ao alterar o índice de inflação em um mês em que a diferença entre os dois indicadores era de 4%, afetou a credibilidade do governo e constituiu-se também em um estímulo para o consumo.

O CRUZADO E OS FISCAIS DO SARNEY As expectativas de inflação acabaram se concretizando. O índice em janeiro de 1986 atingiu 16,2%, sinalizando para 350% a 400% anuais. Para combater essa mudança de patamar da inflação, segundo Bresser Pereira, havia três alternativas: 1. Política gradualista ortodoxa, recomendada pelo FMI – estava baseada em contração fiscal e monetária, elevação da taxa de juros, recessão, que provocaria redução de salários reais e de margens de lucro e, portanto, desaceleração da inflação; 2. Política gradualista heterodoxa – baseada no controle admi- nistrativo de preços, de acordo com uma inflação futura declinante. 3. Choque heterodoxo.

PARCIAL DO MÊS DE JANEIRO SINALIZAVA PARA TAXA ANUAL DE INFLAÇÃO ENTRE 350% E 400% EM 1986

54 55 anos 80: a década perdida

JUSCELINO KUBITSCHEK E DRUMMOND DE ANDRADE (ACIMA) E CARLOS CHAGAS E AUGUSTO RUSCHI (AO LADO): ILUSTRES FIGURAS NAS NOTAS

O governo acabou optando pela terceira alternativa, a mais arris- cada, pois havia poucas experiências realizadas no mundo. Difundia-se a tese da inflação inercial, ou seja, o reajuste de preços ocorrendo em função da inflação passada e das expectativas, sem qualquer relação com as variações de custos. Conforme assinalado por Pérsio Arida, havia précondições favoráveis para o lançamento do plano: taxa de câmbio favorável; equilíbrio no balanço de pagamentos; inexistência de choque de oferta, ou seja, não havia escassez agrícola no momento; equilíbrio nas contas governamentais com o controle do déficit público. Primeiro plano de estabilização econômica da Nova República, o Plano Cruzado foi criado pelo ministro Dilson Funaro e inaugurou a era das intervenções heterodoxas na economia brasileira. O plano, divulgado em 28 de fevereiro, surpreendeu a população. As principais medidas adotadas pelo Decreto Lei 2.284 foram: extinção do cruzeiro e sua substituição pelo cruzado; extinção parcial da correção monetária, mantida para poupança, FGTS, PIS e para prazos superiores a um ano; substituição das ORTNs pelas OTNs, com valor congelado até março de 1987; depreciação das obrigações firmadas em cruzeiros, à exceção dos impostos, à razão de 1,0045% ao dia, com uma tablita;

56 congelamento de aluguéis e prestações do SFH por um ano; PLANO CRUZADO correção dos salários segundo o salário médio dos últimos seis meses, com um abono de 15% para o primeiro e 8% para os demais. INAUGUROU A SÉRIE Correção anual, vedada a reposição. Escala móvel de salário com “gatilho” disparando com inflação igual ou superior a 20%;. DE INTERVENÇÕES NA criação do seguro desemprego pagável por quatro meses; caderneta de poupança retornou à correção trimestral; ECONOMIA CHAMADAS estabilidade da taxa cambial; substituição do IPCA pelo IPC no cálculo da inflação. “HETERODOXAS” O plano contemplava ainda o congelamento de preços aos níveis de 18 de fevereiro. E quem poderia apoiar o Governo nesta árdua tarefa? Foram, então, “instituídos” os agentes fiscalizadores do povo, que ficariam conhecidos como “fiscais do Sarney”, que passaram a ter quase poder de polícia. Os primeiros dois meses do plano foram de sucesso absoluto. Em março, pela primeira vez na história foi registrada uma deflação, de 0,11%, medida pelo IPC. O congelamento teve forte apoio popular, porém só funcionou no caso de produtos básicos. Nas demais merca- dorias e nos serviços, as variações continuaram a ocorrer. No tocante aos gastos públicos, nada foi feito efetivamente para contê-los.

57 anos 80: a década perdida

58 CLIENTE CONFERE PREÇO (AO LADO), A EXEMPLO DA POLÍCIA (ACIMA)

O governo não tinha uma estrutura adequada para fiscalizar pre- ços. A Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) desde há muito tempo contava com poucos funcionários. Na época, os economistas assinalavam a pouca eficácia de planos de congelamento em mercados modernos, dada uma série de fatores: grande quantidade de mercadorias não padronizadas; grande número de vendedores; estruturas de custo diferenciado; diferenças de qualidade entre os produtos; desalinhamento de preços.

O governo optou por tabelar os preços no varejo, deixando por conta das próprias empresas o acerto no atacado, que acabou sendo lento e demorado, gerando os primeiros problemas de desabastecimento. Os preços estavam desalinhados em março, e a alternativa correta seria, a posteriori e com cuidado, reduzir os preços daqueles que foram congelados no pico e elevar os preços dos produtos congelados abaixo do custo, de modo a alcançar uma média. Mas nada disto foi feito, e com o passar do tempo as distorções foram se agravando e o consumo crescendo, mas o congelamento não foi alterado. As vendas no comércio paulista em março de 1986 foram 16% maiores em relação ao mesmo período de 1985. A queda dos rendimen- tos nominais das cadernetas de poupança, a elevação da massa salarial e o próprio congelamento estimularam o crescimento do consumo. Em 14 de maio, em face da elevada defasagem no preço do leite, colocando em risco a manutenção da oferta do produto, o governo, ao invés de autorizar o aumento de preço, optou pela concessão de um

COM O PASSAR DO TEMPO, O CONSUMO AUMENTOU, MAS OS PREÇOS NÃO FORAM REALINHADOS. UM ERRO

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DILSON FUNARO (CENTRO) ANUNCIA O PLANO, QUE GANHA MANCHETES OTIMISTAS NOS JORNAIS

subsídio de 30% ao produtor, da ordem de 0,53 centavos de cruzado por litro, com aumento dos gastos públicos, um dispêndio adicional estimado em 1,5 bilhão de cruzados, de junho a dezembro de 1986. No Brasil, não havia tradição de baixa de preços em benefício do consumidor. Da mesma forma, não foi repassada para o consumidor a queda nos preços do boi gordo, ocorrida a partir de janeiro de 1986. Em junho, o excesso de demanda permanecia, e cinco formas de burla ao congelamento estavam perfeitamente caracterizadas: mudanças de modelo de especificação e embalagens de produtos; mercados negros de insumos (ágio); alteração de qualidade ou quantidade; filas de espera; em casos extremos, desaparecimento do produto.

Cabe acrescentar a elevação de preços pela cobrança de opcionais, como no caso de automóveis. Os índices de inflação evidentemente não refletiam o ágio en- contrado no mercado. A bolsa de valores, imediatamente após o choque, teve elevação que chegou a quase 100%, alta irreal, pois o congelamento iria afetar as margens de lucro das empresas, o que iria causar uma baixa acentuada mais à frente. A desindexação permitiu um alívio no giro da Dívida Pública e possibilitou até mesmo o resgate de títulos, através da intensa emissão de moeda ocorrida logo nos primeiros meses do plano. Por outro lado,

BOLSA DE VALORES SUBIU QUASE 100%, MAS TRATAVA-SE DE ALTA IRREAL, SEGUIDA DE BAIXA ACENTUADA

60 61 anos 80: a década perdida

ASSOCIAÇÕES DE MORADORES ATUARAM FORTEMENTE NA FISCALIZAÇÃO DOS PREÇOS

o congelamento de tarifas e a manutenção de subsídios, agravada com a criação de novos subsídios, como no caso do leite, constituíram-se em novas fontes de pressão sobre o Orçamento Público.

REUNIÃO DE CARAJÁS Em 30 e 31 de maio foi realizada pelo governo uma reunião de avalia- ção do Plano Cruzado. Nesta reunião, denominada “Reunião de Carajás”, por ter sido realizada no Pará, Edmar Bacha e André Lara Resende de- fenderam ajustes rigorosos na economia, mas foram derrotados. Segundo Bacha, Sarney e Funaro estavam fascinados com o sucesso do plano e se recusavam a fazer os ajustes que seriam necessários. O jornalista Luis Nassif, por outro lado, defende outra versão: de fato, não havia consenso entre os economistas sobre as medidas a serem tomadas. Na prática, a taxa de juros foi mantida nas alturas, para evitar a fuga de capitais. Em julho, alcançou entre 60% e 65%, percentuais absolutamente incompatíveis em uma economia com os preços congelados. Em 23 de julho de 1986, foram adotadas as primeiras medidas de ajuste, o chamado “Cruzadinho”: empréstimo compulsório de 28% sobre gasolina e álcool; empréstimo compulsório de 30% sobre o preço dos carros novos,

62 SUPERMERCADO DE PASSO FUNDO (RS) FOI MULTADO POR NÃO RESPEITAR CONGELAMENTO de 20% sobre usados até dois anos e de 10% para veículos de dois a “CRUZADINHO”, quatro anos de uso; taxa de 25% sobre passagens e dólar para viagens ao exterior; ANUNCIADO EM JULHO criação do FND (Fundo Nacional de Desenvolvimento), para administrar os recursos dos compulsórios e outros provenientes de DE 1986, SE BASEAVA venda de ações preferenciais das estatais. EM EMPRÉSTIMOS Simultaneamente o governo lançou um Plano de Metas, sem qualquer discussão com a sociedade, mais para justificar a utilização dos recursos. O pretendido objetivo de conter o consumo seria insuficiente dado o restrito COMPULSÓRIOS, número de produtos. Deu tudo errado. O aumento do álcool e gasolina teria, sim, pressão inflacionária sobre preços congelados, inviabilizando CUJA LEGALIDADE FOI o próprio congelamento, pois empresas e profissionais que os utilizavam como insumo iriam repassar o maior custo para os preços. COLOCADA EM DÚVIDA Ao criar o empréstimo compulsório, o governo aumentava a sua dívida, já bastante elevada, da pior forma possível, transformando os consumidores em investidores forçados de títulos públicos. A estimativa de receita do FND era de 50 bilhões de cruzados por ano, ou US$ 10 bilhões em três anos. A adoção do empréstimo compulsório, por outro lado, revestiu- -se de dúvidas quanto à sua legalidade. Em primeiro lugar, por ter sido cobrado imediatamente, quando juristas entendiam que ele

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EM AGOSTO O ÁGIO ESTAVA INSTITUCIONALIZADO NO PAÍS. NOVAS MARCAS TENTAVAM BURLAR CONGELAMENTO

só poderia ser cobrado no ano seguinte. Mais agravante ainda foi a forma de devolução, em cotas do FND, e não em dinheiro. A taxa sobre passagens e dólar era manifestamente ilegal, pois além de ser cobrada imediatamente, caracterizava-se como imposto, o que só poderia ocorrer através de lei, e não por resolução do Banco Central. O compulsório sobre os carros representava uma ingênua tenta- tiva de apropriação, por parte do governo, do ágio que vinha sendo cobrado pelo mercado sobre os carros novos e usados. Outra crítica contundente aos empréstimos compulsórios foi quan- to à decisão de não incluir no cálculo da inflação os aumentos gerados. O IBGE foi fortemente pressionado a “expurgar” esses aumentos, mas resistiu, optando por divulgar dois índices, um expurgado e outro não expurgado. A medida do empréstimo compulsório iria gerar centenas de milhares de ações judiciais cobrando sua devolução. Segundo o jurista Ives Gandra da Silva Martins, em manifestação na época, “sempre prevalece, não o princípio ético tributário, mas a tradição governamental segundo a qual o ilegal, o inconstitucional, passam a ser legal e constitucional e devido, na medida em que as pessoas não ingressam em juízo”. No primeiro semestre de 1986, a emissão primária de moeda atingiu o montante de 75,07 bilhões de cruzados, cerca de 2,2% do PIB, dos quais 61,13 bilhões de cruzados foram para cobrir a necessidade de financiamento do Banco Central e 13,95 bilhões de cruzados para o resgate líquido de títulos da dívida pública da União. No mesmo período de 1985, o cresci- mento da base monetária foi de apenas 0,4% do PIB. O Banco Central justificou esta elevada emissão como a remone- tização da economia provocada pela eliminação da inflação inercial, e pela maior confiança na moeda, sem repercussões inflacionárias, portanto. Entretanto, o volume de emissões foi sem dúvida excessivo, refletindo pressões do lado das contas públicas. Em agosto, o ágio já estava institucionalizado no país. Nas feiras livres, as tabelas da Sunab nunca foram respeitadas; nos açougues carne só era encontrada com ágio. Eletrodomésticos, carros, alimentos, tijolos e adubos eram vendidos acima dos preços tabelados, além do surgimento de dezenas de novas marcas para burlar o tabelamento. Foi realizada uma fracassada operação de caça aos bois no pasto. A situação econômica gradualmente ia se agravando. Os juros começaram a subir, o déficit na balança comercial começou a cair, pois o congelamento do câmbio já agia como freio às exportações e estímulo às importações. Os empresários estavam inibindo os inves- timentos devido às dúvidas quanto às medidas futuras que poderiam

64 DESABASTECIMENTO ACABOU AFETANDO MUITOS DOS SUPERMERCADOS EM TODO O PAÍS

JULHO DE 1986: SUNAB MANTINHA-SE ATENTA ÀS TENTATIVAS DE FURAR O CONGELAMENTO

65 INFLAÇÃO FIPE 1986-87

14,05 13,75

10,86 11,28 10,30

4,43 3,08 1,83 2,31 1,92 1,88 0,96 1,07 1,43

JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ JAN FEV 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1986 1987 1987

66 FISCAIS DO SARNEY NÃO BAIXARAM A GUARDA, MESMO COM FRAGILIDADE DO PLANO

ser tomadas. O aumento do ágio no black, que chegou a 100%, ocasionou a inútil intervenção da Polícia Federal, e registrava o agravamento dos problemas com a balança comercial. As críticas ao “Cruzadinho” aumentavam, pois praticamente não houve efeito significativo na redução da demanda aquecida, mantendo-se a expectativa por um novo pacote, o que era pre- judicial. Muitos economistas teriam preferido a alternativa de maior tributação do imposto de renda ou aumento de impostos pelo impacto que geram sobre os produtos, mas as vésperas das eleições impediam qualquer medida neste sentido. Em setembro, o consumo de derivados de petróleo atingiu 1,351 milhão de barris-dia, contra 1,315 milhão em agosto, ates- tando a ineficiência do depósito compulsório como instrumento redutor da demanda. Em 15 de outubro, face ao agravamento da situação cambial, com queda acentuada das exportações, o governo descongelou o câmbio, promovendo a primeira desva- lorização cambial do Plano Cruzado, da ordem de 1,8%. O então presidente do Banco Central, Fernão Bracher, pro- curou afastar a ideia de descongelamento, mas era evidente que a medida refletia a inviabilidade de manter o câmbio estável, em uma economia com elevada dívida externa, fortemente depen- dente do superávit comercial para pagar os juros. Resultado: o governo teve amplo sucesso nas eleições. O PMDB elegeu 22 dos 23 governadores, 44 dos 49 senadores e 260 deputados federais.

EM OUTUBRO VEIO A PRIMEIRA DESVALORIZAÇÃO CAMBIAL DO PLANO CRUZADO, DA ORDEM DE 1,8%

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NEM APOIO IRRESTRITO DA IMPRENSA FOI SUFICIENTE PARA SALVAR O PLANO

CRUZADO II, A TRAIÇÃO Em 21 de novembro, logo após as eleições, foi anunciado o cha- mado Cruzado II. As principais medidas foram: aumento da alíquota de IPI de vários produtos: automóveis, de 33% para 100%; cervejas, de 80% para 230%; vinhos, de 10% para 50%; cigarros, aumento de 50% a 120% no preço final; caminhões, aumento de 50% no preço final; exclusão do IPC de fatores sazonais e irregulares, impostos in- diretos e despesas com fumo e bebidas alcóolicas; extinção do BNH e sua incorporação pela CEF; aumento de 60,16% na gasolina e álcool e de 13% no açúcar; aumentos de energia elétrica: 44% para consumidores residen- ciais e comércio e 10% para a indústria; correios: aumento de 80%; telefone: aumento de 35%.

As medidas, em estimativa considerada conservadora feita pelo economista Francisco Lopes, iriam gerar, caso bem sucedidas, uma receita líquida de 135 bilhões de cruzados, ou 3,2% do PIB. O anúncio explodiu como uma bomba em todo o país. A reação geral foi de perplexidade. Ao invés de realinhar preços, aumentar IR ou mesmo o IPI em doses moderadas, para reduzir o consumo, como estava sendo esperado, o governo partiu para uma inédita e brutal elevação de impostos, como no caso dos carros, símbolos do capitalismo, praticamente dobrando o preço. O clima de confiança gerado em 28 de fevereiro, que transformou a população em “fiscais” do Sarney, simplesmente desapareceu.

BRUTAL ELEVAÇÃO DE IMPOSTOS DO CRUZADO II ACABOU DE VEZ COM CLIMA DE CONFIANÇA DO INÍCIO

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Por que o Plano Cruzado fracassou

O Cruzado reuniu pela primeira vez uma custa da criação de passivos públicos gigan- equipe afinada de brilhantes economistas: João tescos, da volta dos desequilíbrios externos, Sayad, Pérsio Arida, André Lara Resende, Chico em função de uma apreciação do Real. Estes Lopes. As condições para o ajuste da economia esqueletos se projetariam nos anos seguintes. e o fim da escalada inflacionaria eram perfeita- O economista Marcos Cintra Cavalcanti de mente possíveis, mas foram cometidos muitos Albuquerque, em artigo publicado na Folha de erros que resultaram no insucesso. São Paulo, assinalou as hipóteses equivocadas Segundo Edmar Bacha, foi a questão salarial que permearam a execução do Plano Cruzado: que resultou no fracasso do Cruzado. “Foi aí “o crescimento da demanda agregada era que o plano se perdeu de vez. Em qualquer incompatível com a evolução da oferta; a de processo de ajuste, há sempre o risco de uma que as margens de lucro suportariam brus- inflação corretiva, até por causa da compressão cas elevações dos salários reais; a de que o dos preços. Esse processo de inflação corretiva déficit público havia sido zerado; a de que os temporária estava impedido pela existência do preços relativos estavam em equilíbrio; a de gatilho. Qualquer inflação que houvesse batia que o congelamento poderia ser definitivo, e no gatilho. Foi isso o que acabou com o plano.” finalmente, a de que os superávits da balança Na análise de José Serra, a falta de produtos comercial eram indestrutíveis.” revelou situações específicas: a) produtos em Para André Lara Resende, em uma análise falta porque a oferta não cresceu no mesmo feita 10 anos depois, o Plano Cruzado falhou ritmo da demanda; b) produtos em falta porque devido ao crescimento exagerado da demanda seus preços foram apanhados abaixo da média agregada e ao déficit público. Segundo ele, pelo congelamento; c) produtos em falta devido a na época do choque não se sabia qual era manobras especulativas, como o caso da carne. o efetivo déficit público. O nível de reservas Na avaliação de Luis Nassif, tanto no Cru- externas também era muito pequeno. zado, como depois, no Plano Real, os autores José Sarney, refletindo sobre os erros esfrangalharam as contas públicas, as contas do Plano Cruzado, confirma esta posição externas, atropelaram (especialmente no de Resende: “Imaginávamos que tínhamos Cruzado) a segurança jurídica e paralisaram zerado o déficit público. Na realidade, como reformas econômicas. Regras de conversão naquele tempo tínhamos cinco orçamentos mal feitas praticamente quebraram o Sis- monetários, a contabilidade pública era tema Financeiro da Habitação e produziram impossível de ser desvendada. Hoje o Brasil imensos prejuízos aos usuários dos planos de tem transparência pública porque unificamos previdência. A estabilidade afinal foi obtida à o orçamento.”

696 anos 80: a década perdida

70 Adotado logo após as eleições, o impacto não poderia ter sido pior. ANOS DEPOIS, JOSÉ As medidas foram recebidas como uma traição à confiança do cidadão que havia acabado de votar, e a confiança existente no início do plano se SARNEY RECONHECEU evaporou. O Cruzado II representou um golpe de morte no Plano Cruzado. Os preços continuaram desalinhados como antes, e pior: QUE O CRUZADO II desalinharam-se mais ainda. Os planejadores do governo tiveram a inacreditável ideia de que poderiam fazer um ajuste nas contas pú- blicas, imaginando que a sociedade aceitaria passivamente medidas FOI O MAIOR absolutamente inviáveis. O incrível é que o Palácio do Planalto passou a creditar a má ERRO DE SUA VIDA recepção a erros de “marketing”, publicidade mal feita, daí a “incom- preensão” do povo. José Sarney, em reflexão posterior, assumiu o erro: “Além da mo- ratória, fizemos o que hoje considero o maior erro da minha vida, o Cruzado II. Hoje, preferiria cortar a mão a assinar novamente aqueles atos”. Segundo Sarney, foi Dílson Funaro o responsável pelo Cruzado II, e na época João Sayad o teria alertado do equívoco: “Isso é um desastre, está errado”, teria dito Sayad. Em sequência, a economia rapidamente foi voltando à situação pré-cruzado. As desvalorizações cambiais passaram a ser diárias e as taxas de juros e a inflação passaram a subir rapidamente. Em 24 de novembro de 1986, o Decreto 2290 eliminou do cál- culo do IPC os preços do vestuário, automóveis, cigarros, bebidas e eletrodomésticos. Dérgio Garcia Munhoz assim interpretou a medida: “O decreto de reformulação do índice faculta à Seplan, por outro lado, manipular livremente o indicador no futuro, sempre que julgar qualquer aumento de preços como motivado por ‘sazonalidade’ ou ‘irregularidade’, como antes mencionado. É incrível, mas procurou-se com um decreto, revogar toda uma metodologia científica, interna- cionalmente consagrada, na qual se baseia qualquer índice de preços que mereça um mínimo de confiabilidade”. Em 16 de dezembro o ministro Dílson Funaro anunciou o fim do congelamento, a ser substituído por um rígido sistema de preços administrados pelo Conselho Interministerial de Preços. Porém o governo não tinha estrutura para isto, e generalizou-se o clima de desobediência civil. O fim de dezembro e o início de janeiro movimentaram governo, sindicatos e empresários, em busca de um pacto social, intensa ne- gociação que acabou fracassando pela impossibilidade de se chegar a um denominador comum. A demora por parte do governo em iniciar o realinhamento de preços gerou uma instabilidade nunca vista no país, com as empresas reajustando seus preços autonomamente. O presidente Sarney chegou ao ponto de chamar o empresário Mário Amato, presidente da Fede- ração das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), de anarquista. POLÍCIA NAS RUAS DURANTE A GREVE GERAL, EM DEZEMBRO A produção industrial em dezembro e janeiro reduziu-se intensa- DE 1986: O PLANO CRUZADO mente, na expectativa do realinhamento. A indústria automobilística FRACASSAVA DE FORMA RETUMBANTE

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INFLAÇÃO BEIRANDO OS 20% EM FEVEREIRO DE 1987 ERA UM CLARO SINAL DE QUE VIRIA A HIPERINFLAÇÃO

teve em janeiro a sua produção reduzida à metade. O transporte ro- doviário de carga, grande indicador da produção, operou em janeiro com 20% da sua capacidade. Em 27 de janeiro teve início “oficialmente” o realinhamento de preços, com autorização de reajustes para o setor de eletrodomésticos. O início nesse setor causou certa estranheza nos meios industriais, pois não se tratava de uma área onde a defasagem era mais grave e por ser um dos setores que mais desobedeceram ao congelamento, através da chamada “maquiagem” dos produtos. Janeiro marcou também as primeiras decla- rações enfáticas pelo fim do “gatilho” salarial, ressaltando-se o seu efeito de realimentação da inflação. Entre os partidários de seu fim, alinhou-se o Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE), que em sua reunião realizada em 12 de janeiro, propôs o fim do gatilho e sua substituição por um abono salarial. Em razão da prioridade às políticas de combate à inflação, o governo praticamente abandonou as políticas de desenvolvimento regional, passan- do esta incumbência aos Estados, o que deu início à chamada guerra fiscal. O salário mínimo atingiu o seu mais baixo nível na história do Brasil, 60 dólares, contra 179 dólares em 1959. Os sindicatos reivin- dicavam um mínimo de 150 dólares, o Ministro do Trabalho defendia 97 dólares, e os empresários, 65 dólares. Entretanto, para cumprir a lei ao pé da letra e remunerar adequadamente a despesa familiar em bens e serviços essenciais, o salário mínimo deveria ser de 325 dólares. Associada à proposta de correção do salário mínimo, apareceu em- butida a ideia de desindexar o mínimo como valor de referência para contratos, pisos profissionais, benefícios sociais, como solução para permitir uma elevação de seu valor real. Em janeiro foram divulgados os índices de inflação referentes a dezembro. O INPC havia atingido 7,27%, com um acumulado em 1986 de 59,2%. O IPCA em dezembro havia sido de 11,65%, com um acumulado de 79,66% em 1986. Portanto, apenas em dezembro a perda na troca de índices representou 4,38 pontos percentuais. O governo tentou, no Cruzado II, manipular os índices de inflação, excluindo os reajustes, mas a medida provocou tamanho mal-estar que foi revogada. Em fevereiro, permanecia a expectativa sobre os rumos da política econômica do país para 1987. A inflação em janeiro atingiu um recorde na história do país, com 16,82%, e para o mês seguinte a previsão era de 20%. Crescia a possibilidade de o país mergulhar em hiperinflação. Tal cenário permite concluir que o ano de 1986 marcou a mais formidável demonstração de autoritarismo por parte do governo federal. No melhor estilo da “Velha República”, reformas radicais foram adotadas através de decretos-leis inconstitucionais, dada a

72 REVOLTA CONTRA GOVERNO DE JOSÉ SARNEY LEVOU MILHARES ÀS RUAS DO RIO DE JANEIRO

SALÁRIO MÍNIMO ATINGIU SEU MAIS BAIXO NÍVEL NA HISTÓRIA DO PAÍS: 60 DÓLARES

73 anos 80: a década perdida

ENTRE 1986 E 1987, INSTITUCIONALIZOU-SE A MUDANÇA COMO PADRÃO, PARALISANDO INVESTIMENTOS E TRAVANDO O DESENVOLVIMENTO

variedade de assuntos abrangidos, sem consulta ao Poder Legislativo, que permaneceu absolutamente inoperante em um ano de eleições. Institucionalizou-se a mudança como padrão de política governa- mental. A regra do jogo em um dia poderia não ser a do dia seguinte. Estabilidade de regras, eliminação das incertezas e previsibilidade das ações públicas, elementos indispensáveis para o investimento empre- sarial e o desenvolvimento econômico do país, foram deixadas de lado.

ECONOMIA EM 1987: RECESSÃO O início de 1987 foi semianárquico. O fracasso do Cruzado II trouxe o retorno da inflação. Os empresários, cautelosos diante da indefinição econômica, protelaram seus investimentos e reajustaram os preços para compensar as perdas do período de congelamento e já projetando uma margem adicional por precaução. O resultado foi uma explosão de preços, as taxas anuais atingindo 500%, que não era nem inflação de demanda, que já tinha arrefeci- do, nem de custos, pois estes não subiram tanto assim. A explicação está justamente na sucessão de planos econômicos e nas ameaças de congelamento. A economia entrou novamente em recessão, com o PIB caindo

74 RISCO DE HIPERINFLAÇÃO LEVOU ALGUNS A SUGERIREM CONGELAMENTO DE PREÇOS E SALÁRIOS POR 120 DIAS, APÓS REALINHAMENTO

4,2% em seis trimestres. Face ao risco do país mergulhar em hiperin- SUPERÁVIT COMERCIAL flação, alguns propunham um novo choque, após o realinhamento, com o congelamento dos preços e salários por 120 dias, período no HAVIA DESAPARECIDO, qual trabalhadores e empresários costurariam um pacto social. A situação externa continuava grave. Desapareceu o superávit comer- CAINDO DE US$ 8 BILHÕES cial, e a projeção para o ano, de US$ 8 bilhões, já tinha caído para US$ 2 bilhões. A expectativa dos bancos internacionais continuava negativa. Os recordes de inflação em janeiro e fevereiro e a falta de credibili- PARA US$ 2 BILHÕES dade da política econômica oficial aumentavam o temor de descontro- le absoluto. Mas, do lado do consumo, vários fatores contribuíam para arrefecer a alta de preços. As altas taxas de inflação desestimulavam as compras e estimulavam a poupança, concorrendo para reduzir o poder aquisitivo da população. Além da queda no consumo, a formação de estoques era desestimulada pelas altas taxas de juros. A manutenção das medidas do pacote de novembro contribuiu para arrefecer o consumo no setor automobilístico, contribuindo para uma recessão por ação do próprio governo. O cenário sinalizava para a perspectiva da inflação alcançar 100% a 200% ao ano e para a recessão em 1987. A queda do superávit comercial agravou sensivelmente a situação do balanço de pagamentos, e em fevereiro foi acelerada a desvalori-

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COM A SAÍDA DE FUNARO, zação do cruzado, caracterizando uma mididesvalorização, em doses homeopáticas. Na área social, o governo tratou menos de reformas NO FINAL DE ABRIL, básicas, partindo para o fortalecimento de programas de caráter assis- tencialista, como a distribuição gratuita de leite, de grande rendimento ASSUMIU BRESSER político. O ministro Dílson Funaro, apesar do apoio do PMDB, acabou pedindo demissão no final de abril de 1987. Para o seu lugar, foi nomeado o governador Tasso Jereissati, mas PEREIRA, QUE EMPRESTOU este acabou sendo vetado pelo PMDB, tendo ficado apenas 12 horas no cargo. Finalmente optou-se por Luís Carlos Bresser Pereira. Sua NOME AO PLANO QUE primeira medida foi uma mididesvalorização de 8,5%, para tentar elevar o superávit comercial. EM APENAS CINCO MESES Apesar da indefinição econômica, Sarney insistiu em prosseguir com a concorrência da Ferrovia Norte-Sul, ligando Brasília ao Ma- IRIA FRACASSAR ranhão, a um custo de US$ 2 bilhões.

PLANO BRESSER, JUNHO DE 1987 Em 1987, ainda no governo Sarney, foi lançado o chamado Plano Bresser, com novo congelamento de preços e salários, por prazo máxi- mo de 90 dias, mas mantida a indexação. A inflação caiu de 25% para 5%, mas depois de um ano já estava em 25% de novo. Foi feita nova minidesvalorização do cruzado, em 10,5%, e estabeleceu-se o fim do subsídio ao trigo e o adiamento ou suspensão de obras públicas, como a Ferrovia Norte-Sul e o Trem Bala entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foram extintos 40 mil cargos na administração pública. Apenas cinco meses após seu lançamento, o Plano Bresser já tinha fracassado O congelamento de preços e salários virou congelamento só de salários. Em julho, a inflação já alcançava 3,05%; em agosto, 6,36%; em setembro, 5,68%, e em outubro, 9,18%. Foi extinto o gatilho salarial e criada a URP – Unidade de Re- ferência de Preços. O reajuste de preços e salários seria a cada três meses, com base na média de inflação do trimestre anterior. Com a inflação crescente, a fórmula de reajuste salarial, baseada na média de três meses, resultou em arrocho salarial. O próprio governo não respeitou a regra que criou, concedendo aumentos superiores nas estatais e para o próprio funcionalismo federal. O congelamento não foi respeitado. Em junho e julho vários pre- ços foram reajustados a título de “reequilíbrio” dos preços relativos. A partir de setembro, os controles foram afrouxando, com liberação total em novembro. O governo rompeu a moratória, não declarada oficialmente em fevereiro de 1987, e pagou parte dos juros devidos. Em dezembro de 1987, com a inflação alcançando 366%, Bresser se demite. Em 18 de dezembro, com mais um decreto-lei, o governo PASSEATA CONTRA O PLANO abortou o IPC super-restrito, antes que começasse a valer efetivamen- VERÃO, EM 1989: NOVAMENTE MILHARES DE CARIOCAS te. Voltou a ser usado o INPC restrito para o cálculo do IPC, ou seja, o OCUPAVAM AS RUAS cálculo era baseado em uma “cesta” de produtos de consumo na faixa

76 77 anos 80: a década perdida

EM 5 DE OUTUBRO DE 1988, PAÍS COMEMOROU A PROMULGAÇÃO DA NOVA CONSTITUIÇÃO

de um a cinco salários, incluindo automóveis, cigarros, bebidas etc. A rápida mudança representou o reconhecimento do erro do governo em tentar manipular os índices e do fato de que o índice decretado não teria credibilidade. Com o fracasso dos planos econômicos, Sarney anunciou a política do “arroz com feijão”, para manter a situação econômica sob controle, transferindo ao novo governo a responsabilidade de solucioná-la. Mailson da Nóbrega procurou combater o déficit público, executou uma política monetária restritiva e fez novo acordo externo. No final de 1988, a inflação tinha chegado a 933%, e o PIB apresentava crescimento negativo de 0,2%. Nas eleições municipais daquele ano, grande número de prefeitos foi eleito por partidos de oposição.

CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição de 1988 contribuiu para o agravamento da situação das finanças públicas federais por diversas razões. As despesas com pessoal foram aumentadas, assim como os benefícios previdenciários e pagamentos das aposentadorias. Só a despesa com a Previdência subiram de 4,8% do PIB em 1988 para 6,3% em 1989 e 10,1% em 1990.

78 ULYSSES GUIMARÃES FOI O GRANDE NOME DA REFORMA CONSTITUCIONAL, CUJOS IMPACTOS ECONÔMICOS SERIAM RELEVANTES

Houve uma redistribuição da receita do governo federal para os SE TROUXE AVANÇOS Estados ainda maior do que a ocorrida antes, com o aumento das transferências. A União perdeu alguns tributos, incorporados ao EM MUITOS SEGMENTOS, ICMS, como o IUM, IUEE, IST, IUCLGL, onde tinha participações que variavam de 10% a 100%. A distribuição do ICMS alterou-se CONSTITUIÇÃO nos Estados, passando de 80% para 75%, e a dos municípios subiu de 20% para 25%. Estas alterações provocaram mudanças estruturais na economia. DE 1988 SIGNIFICOU Os Estados e Municípios passaram a se recusar a assumir parcelas de despesas da União, aumentando os gastos desta. A União passou a ter PROBLEMAS PARA AS dificuldade de tocar grandes projetos. Os investimentos em Estados e Municípios são de menor porte, por mobilizarem recursos menores FINANÇAS PÚBLICAS e terem interesses diferentes e mais localizados.

PLANO VERÃO E veio então o chamado Plano Verão, em 1989. Optou-se por adotar uma regra dupla de indexação: 100% da inflação acumulada na data base de reajuste e reajuste mensal pleno pelo IPC. Repetia- -se o esquema de indexação do Plano Bresser, com um agravante: a unidade temporal básica foi encurtada, passando de um trimestre para

79 anos 80: a década perdida

INVESTIMENTO DAS MULTINACIONAIS NO PAÍS CAIU DE 6,1% EM 1976-80 PARA 1,1% EM 1986-90

um mês. De agosto em diante, o “motor” inflacionário em sua mais elevada rotação é o processo de formação de juros e de expectativas. No final da década a situação do Brasil em relação ao mercado internacional havia piorado sensivelmente. O percentual de investi- mento das empresas multinacionais havia caído de 6,1% no período de 1976-80 para 4,2% em 1981-85 e para 1,1% em 1986-90, segundo dados da Cepal. Conforme assinala José Serra, em análise feita nos anos 1990, as diversas experimentações mostraram que não existe plano de estabili- zação que seja bem sucedido, popular e sem custos sociais. Mas Serra assinala que, apesar dos problemas, houve avanços na década, como o de setores industriais, como a celulose, o alumínio e a petroquímica. Cita ainda a substancial redução na importação de petróleo, e na área das finanças públicas a unificação orçamentária.

CONTRAPONTO: A AGRICULTURA Em compensação, na década de 1980, a agricultura teve um de- sempenho considerado satisfatório. Enquanto o setor industrial atra- vessava momentos depressivos, houve aumento da produção agrícola, mesmo com tendência de queda nos preços dos produtos alimentares. Se não fosse o desempenho do setor agrícola, certamente a crise brasileira da década seria mais acentuada. A agropecuária brasileira cresceu mais de 30% desde 1980, enquanto o crescimento total da produção brasileira foi de pouco mais de 20%, sendo que a indústria não chegou a crescer mais que 10%. Além disso, verificaram-se apenas crises conjunturais no setor agrícola em 1986 e 1990, basicamente em função de problemas climáticos, enquanto o setor industrial viveu uma crise de maior duração. Este desempenho positivo da agricultura brasileira na década de 1980 deve-se principalmente a um aumento da produtividade no campo. Este aumento foi fruto do próprio processo de modernização que se iniciara alguns anos antes. Na década de 1980, apesar de o crescimento da área plantada ser importante nas regiões Centro- -Oeste e Norte (nova fronteira agrícola), há forte crescimento da produção por hectare, especialmente no Centro-Oeste, Sudeste e também no Nordeste. Também não se deve esquecer que, nesta década, o Brasil viveu o chamado “ajuste externo”. Neste sentido, especialmente através de mecanismos cambiais, a agricultura voltada para a exportação foi fortemente incentivada, destacando-se produtos como soja e laranja.

80 SOJA (ACIMA) E LARANJA (ABAIXO): DUAS CULTURAS FAVORECIDAS PELA POLÍTICA CAMBIAL COM FOCO NA EXPORTAÇÃO

81 anos 80: a década perdida

AS TURBULÊNCIAS QUE ANTECEDERAM A ESTABILIDADE

INFLAÇÃO ACUMULADA = 13.342.346.717.617,70%

13 MINISTROS DA FAZENDA

HIPERINFLAÇÃO ABERTA IPCA 1A ELEIÇÃO DIRETA IMPEACHMENT NO MÊS PARA PRESIDENTE COLLOR 83,0

62,3

41,5

ABERTURA COLLOR

20,8

RENEGOCIAÇÃO DÍVIDA EXTERNA 0

DEZ 1979 FEV 1983 FEV 1986 JUN 1987 JAN 1989 MAR 1990 JAN 1991

1A MÁXI 2A MÁXI FIM DA PLANO PLANO PLANO PLANO PLANO DELFIM DELFIM DITADURA CRUZADO BRESSER VERÃO COLLOR COLLOR II MORRE TANCREDO

82 INFLAÇÃO ACUMULADA = 196,87%

3 MINISTROS DA FAZENDA

CRUZEIRO REAL

NÚMEROS DE UM TEMPO LOUCO 16 MINISTROS DA FAZENDA 18 PRESIDENTES DO BANCO CENTRAL 6 MOEDAS 9 ZEROS RETIRADOS DA MOEDA DIVISÃO DA MOEDA POR 2.750 2 CALOTES EXTERNOS 1 CALOTE INTERNO

CRISE CRISE BANCÁRIA ÁSIA

JUL 1994 JAN 1999 2001 2002/2003 2005 2008 DEZ 2009

PLANO COLAPSO APAGÃO CRISE CRISE MENSALÃO CRISE REAL CAMBIAL ARGENTINA LULA FINANCEIRA GLOBAL

83 anos 80: cultura e sociedade

Dias de rock e adrenalina É bem verdade que toda época deixa suas marcas, afinal de contas, quem chega aos 40/50 anos, em qualquer tempo, costuma relembrar dos seus 20 com algum saudosismo. Em relação à década de 1980 no Brasil, entretanto, há quase que uma unanimidade: o fenômeno da explosão do rock brasileiro deixou marcas que perduram até hoje. Há muitas outras razões para relembrar (e mesmo adorar) os anos 1980, como muitos livros sobre a época comprovam, mas, como afirma o também jornalista Eduardo “Peninha” Bueno, ele próprio com sua trajetória iniciada no Rio Grande do Sul na época, “foi com sotaque anglo-saxão e letras politizadas que o rock se estabeleceu de vez entre a moçada tupiniquim e acabou se tornando o fenômeno cultural mais significativo dos anos 80 no Brasil”.

Na mesma linha de raciocínio de Peninha, o jornalista Ricardo Alexandre, autor do livro Dias de Luta – o rock e o Brasil dos anos 80, reforça: “Seguramente não houve em toda a história da cultura pop brasileira período tão instigante e aventureiro, tão cheio de inicia- tiva, tão repleto de causos. (...) Não é à toa que hordas adolescentes continuam ouvindo velhos hits da Legião Urbana, namorando nos shows de Lulu Santos (...) comprando discos do Capital Inicial, Ira! e Titãs (...) A chamada geração 80 marcou um momento histórico da música brasileira, o evento mais feliz de nossa indústria cultural desde sempre.” Onde tudo começou, é difícil dizer. Pode ter sido justamente em 1980, no primeiro show do Aborto Elétrico, banda brasilense liderada por , que daria origem, depois, à Legião Urbana, do próprio

84 RENATO RUSSO, DO ABORTO ELÉTRICO E DA LEGIÃO URBANA, CRIOU A EXPRESSÃO “GERAÇÃO COCA-COLA”

85 anos 80: cultura e sociedade

Renato, e ao Capital Inicial, de Dinho Ouro Preto e dos irmãos Fê e Flavio Lemos. Pode ter sido também com o estrondoso sucesso da Blitz, de Evandro Mesquita, que contava com nos vocais, e o hit “Você não soube me amar”, do disco Aventuras da Blitz. Sim. A palavra é mesmo disco, ou LP (sigla em inglês para long play), porque a indústria de CDs (compact discs) ainda engatinhava. Em novembro de 1984, a Polygram lança o primeiro suplemento de artistas brasileiros em CD, e só em 1987 a Microservice inauguraria a primeira fábrica brasileira de CD’s, momento em que se prenunciou a morte (não confirmada) do long play de acetato, que, a propósito, ganharia novo fôlego nos anos 2000, com os discos de vinil tornando-se objeto cult (no Brasil e no mundo inteiro). Além das bandas já citadas, nasceram também nos anos 80 Barão Vermelho e seu lendário líder, , mais Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, RPM, Engenheiros do Hawaii, Kid Abelha, Camisa BANDAS DE ROCK de Vênus, Biquini Cavadão, entre muitos outros. O jornalista Arthur Dapieve arriscou outra síntese do momento, no livro B Rock – o rock PARTICIPAVAM brasileiro dos anos 80. No livro, o vocalista e guitarrista do Ultraje a Rigor, Roger Moreira, dá sua versão para o surgimento do “BRock”: DE PROGRAMAS “Imagino que seja por uma coincidência de fatores, como a filosofia do DIY – do it yourself (faça você mesmo) – dos punks, aliada a uma falta de identificação dos jovens com a música que se fazia na época”. A NA TV JUNTO efervescência criativa daquela geração foi identificada como um novo mercado para a indústria fonográfica. “Houve o interesse das gravadoras COM CANTORES por grupos que já tinham público e eram baratos de se gravar, ao con- trário dos medalhões da MPB, que gastavam muito mais para gravar e POPULARES, COMO já não davam tanto retorno”, comenta Roger. Kid Vinil, cantor, radialista, compositor e jornalista, cita este inte- AMADO BATISTA resse como fator importante: “As gravadoras sentiram que poderiam vender discos com aquela nova geração e passaram a investir nos gru- E GRETCHEN pos. Tudo soprava a favor daquele novo rock. Todo mundo fez sucesso, tocou no rádio, apareceu na TV e fez muitos shows”. Sobre a presença na TV, Vinil acrescenta: “É interessante que a gente se apresentava em programas como Chacrinha, Bolinha e Barros de Alencar junto com artistas populares, como Gretchen e Amado Batista, por exemplo. Mas a turma do Pop Rock 80 era mais unida. Éramos amigos do Kid Abelha, do Barão, dos Paralamas. Todos eram unidos e muito amigos, e ao mesmo tempo respeitávamos aquela cena ‘brega’ desses programas. Tudo era uma verdadeira festa”, relembra Kid Vinil.

PARA ALÉM DO ROCK A propósito, cabe acrescentar que a música sertaneja firmou-se mais ainda nos anos 80 devido ao grande afluxo populacional do campo para as cidades, aumentando assim o público consumidor desse tipo de música. Sucesso no interior do país desde os anos 1920/30, o sertanejo deve muito ao trabalho do folclorista Cornélio Pires, reunindo as prin-

86 ACIMA, O BARÃO VERMELHO DE CAZUZA. NA PÁGINA AO LADO, O LIVRO DO JORNALISTA RICARDO ALEXANDRE SOBRE O ROCK DOS ANOS 80

A IRREVERÊNCIA DA BLITZ DE FERNANA ABREU E EVANDRO MESQUITA DIVIDIA ATENÇÕES COM O CAPITAL INICIAL

87 anos 80: cultura e sociedade

ENGENHEIROS DO HAWAII (ACIMA, À ESQ.) E LOBÃO BRILHARAM NO POP ROCK. CHITÃOZINHO E CHORORÓ (ABAIXO) LIDERARAM “NOVO” SERTANEJO

cipais duplas do interior do estado de São Paulo, financiando gravações e aparições no rádio; as mais famosas foram Tonico e Tinoco, Alvarenga e Ranchinho, Cascatinha e Inhana. A partir dos anos 1980, a música sertaneja foi fortemente influenciada pela música country norte-ame- ricana, com os artistas se apresentando com roupas típicas dos caubóis e privilegiando temas eminentemente românticos. As principais duplas dessa “nova” música sertaneja foram Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano, entre outras. Também cabe registrar que no Rio Grande do Sul floresceram nos anos 1980 o chamado nativismo e a MPG (música popular gaúcha), que incluía não apenas intérpretes e compositores, como Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves, mas também dezenas bandas de rock. Enquanto Kleiton & Kledir, por exemplo, radicaram-se no Rio de Janeiro e emplacaram mais de 100 mil cópias de seu terceiro disco, quase simultaneamente ocorre a gravação do primeiro LP instrumental de Renato Borghetti e sua gaita-ponto, que chegou ao mercado com 20 mil cópias e logo alcançou também o disco de ouro, com mais de 100 mil unidades vendidas. Os Engenheiros do Havaii, a propósito, estouraram no mercado nacional com o disco Longe demais das capitais. Na época, Adriana Cal- canhoto dava seus primeiros passos, ganhando terreno e admiradores, com o show “Eu sei que estou errada”. Outro nome no cenário nacional era o do controverso e polêmico Lobão, que no show de lançamento do disco Vida Bandida reuniu 18 mil pessoas no Gigantinho, em Porto Alegre, com outras 3 mil ficando do lado de fora.

88 A LEGIÃO URBANA DE RENATO RUSSO, DADO VILLA-LOBOS E MARCELO BONFÁ FOI A MAIS EMBLEMÁTICA BANDA DO PERÍODO

Ainda em paralelo à explosão do rock brazuca, foi graças à grande influência da fabulosa cantora Beth Carvalho que o pagode, praticado há décadas no país, passou a ser conhecido nacionalmente. Originário AMPLIOU A VISIBILIDADE das festas e comemorações populares feitas nos quintais dos subúrbios do Rio de Janeiro, o pagode tinha a marca das canções geralmente DO PAGODE. FUNDO muito singelas. Dentre os vários grupos, o mais famoso na época foi o Fundo de quintal, com inúmeras gravações e muito sucesso até hoje. DE QUINTAL FOI O MAIS É bem verdade que com a grande explosão da mídia nos anos 80, principalmente TV e rádio, quando praticamente todas as residências possuíam pelo menos um receptor destes eletrodomésticos, a divulgação CONHECIDO GRUPO DO das novas músicas tornou-se muito mais rápida e eficaz, tendo como consequência grande disseminação de produções de má qualidade. GÊNERO MUSICAL Muitas vezes objetivos comerciais sobrepujaram os artísticos. Assim, passou a ser muito fácil tornar “qualquer” música, por pior qualidade artística que tivesse, um grande sucesso de público. Conjuntos de duvidosa competência, com dois ou três cantores e duas bailarinas seminuas dançando eroticamente, passaram a fazer sucesso junto ao grande público, devido à grande divulgação pela mídia.

CENÁRIO EFERVESCENTE Os anos 80 marcaram também o nascimento da chamada Literatura Pop, auxiliada, no Brasil, pela euforia do consumo cultural. Este estilo ou corrente apresentava-se por meio de uma atmosfera de crítica, mesmo que disfarçada, representando singularmente o corpo e o erotismo,

89 anos 80: cultura e sociedade

fundindo linguagens utilizadas por outras correntes. Quase sempre a Literatura Pop, que teve em Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva seus maiores expoentes, alicerçou-se em seu ímpeto contestador, assumindo posições sobre sexualidade e amor, interligadas às mudanças ocorridas no mundo naquelas décadas. E na época em que o mercado editorial nacional vibrava com a consolidação da toda poderosa Com- panhia das Letras, que recém havia lançado os primeiros dois volumes da coleção “História da Vida Privada”, Luis Fernando Verissimo con- quistava o Brasil com o surpreendente sucesso de O Analista de Bagé, enquanto Lya Luft ganhava espaço com Reunião de família, seu terceiro livro de ficção, depois de As parceiras e A asa esquerda do anjo. Do início dos anos 1980, a peça Trate-me Leão, do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone (do qual fez parte Evandro Mesquita, da ANOS 1980 Blitz), foi muito importante não apenas para o Rio, mas teve um reflexo em todo o Brasil. Foi um divisor de águas. Saía de cena o retrato do MARCARAM operário, do migrante nordestino, e ganhava lugar o jovem urbano de classe média do país, que até então não tinha retrato em lugar nenhum. INÍCIO DA A temática da peça, ligada ao já citado lema do it yourself, dos punks, é um retrato do espírito da época. Nas artes plásticas, a exposição “Como vai você, Geração 80?”, PROFISSIONALIZAÇÃO reunindo 123 artistas, realizada em 1984 no Parque do Lage, no Rio de Janeiro, também estabeleceu novos horizontes, aglutinando dezenas de DO MERCADO DE nomes que mais tarde se tornariam internacionalmente reconhecidos. Depois do rigor conceitual que prevaleceu nos anos 1960 e 70, havia ARTE NO BRASIL ali um impulso libertário, que se manifestava em novos caminhos da pintura e no diálogo livre com diferentes linguagens do passado e do cenário internacional. Cristalizava-se, por outro lado, a transição para um novo sistema da arte no Brasil, mais profissionalizado e vinculado às forças do mercado. Sinal dos tempos: com a redemocratização, o mesmo movimento de euforia que libertava a arte brasileira do papel de crítica social e política, exercida durante a ditadura militar, envolvia os artistas numa dinâmica neoliberal globalizada, que até hoje dá as cartas no mundo da arte. Organizado pela crítica e curadora Ligia Canongia, o livro Anos 80 – Embates de uma geração faz um balanço ambicioso e abrangente dessa geração. Reunindo reproduções de obras de artistas como Adriana Varejão, , Daniel Senise, Jorge Guinle, Leonilson, Luiz Zerbini, Nuno Ramos e e, também, textos de Agnaldo Farias, Fernando Cocchiarale, Frederico Morais, Ricardo Basbaum e Ronaldo Brito, a obra apresenta também um longo ensaio crítico da própria Ligia. Com tanta efervesvência, natural que na época os jornais come- çassem a dar mais espaço à cultura. Até então, o Estado de São Paulo, ou Estadão, tinha duas páginas de cultura no primeiro caderno, um tanto perdidas junto com o esporte. Mas em 1986 o jornal lançou o Caderno 2. A Ilustrada, da Folha de S. Paulo, mudou de cara nos anos 80, com a entrada de Matinas Suzuki Jr. O Caderno B, do Jornal do Brasil, e o Segundo Caderno, do Globo, também mudam nesta época.

90 TRABALHO DE BEATRIZ MILHAZES (ACIMA), JOVEM TALENTO DAS ARTES PLÁSTICAS NOS ANOS 80. NA PÁGINA AO LADO, VERISSIMO NA CAPA DE VEJA

CAIO FERNANDO ABREU, AO LADO DE MARCELO RUBENS PAIVA, DESTACOU-SE NA CHAMADA LITERATURA POP

91 anos 80: cultura e sociedade

ADRIANA CALCANHOTO INICIARIA SUA TRAJETÓRIA NACIONAL NO FINAL DOS ANOS 1980, AO MUDAR-SE PARA O RIO DE JANEIRO

Já o Globo lançou o Rio Fanzine. Foi um momento importante para os cadernos de cultura, tocados por jornalistas jovens, que retratavam a jovem cultura em ebulição. Outra iniciativa interessante, mas pouco lembrada, é a do jornalista Maurício Kubrusly, com a revista Somtrês, que foi desbravadora e deu ori- gem, posteriormente, à revista Bizz. Na época, surgiu a polêmica em torno dos críticos-músicos, que tinham bandas ou projetos musicais, como Alex Antunes e Thomas Pappon, e também atuavam na redação da Bizz. Cabe lembrar que Paulo Ricardo, do RPM, também escrevia como jornalista, Lulu Santos igualmente, assim como Júlio Barroso, da icônica Gang 90, que colaborou com a revista Veja. Da mesma forma, , qur adorava escrever, sempre colaborou com diversos jornais.

SOCIEDADE Em meio ao surgimento da informática e popularização dos compu- LULU SANTOS (NO ALTO) ESCREVIA PARA tadores, a AIDS começava a ganhar terreno (e terminaria por vitimar JORNAIS E REVISTAS. CAZUZA (ACIMA) FOI Cazuza e Renato Russo, entre tantos outros artistas). Na década em que UMA DAS VÍTIMAS DO FLAGELO DA AIDS Fernanda Torres foi escolhida a melhor atriz no Festival de Cannes por sua atuação em Eu Sei Que Vou Te Amar, de Arnaldo Jabor, a Copa do Mundo de 1982 resultou em enorme frustração, com a seleção de

92 ILHA DAS FLORES, DE JORGE FURTADO, ESTABELECEU UMA NOVA LINGUAGEM NA CINEMATOGRAFIA BRASILEIRA A PARTIR DE 1989

Falcão, Júnior, Zico e cia, considerada do nível da seleção tricampeã de A ENCANTADORA 1970, sendo tragicamente derrotada pela Itália de Paolo Rossi. Se em 1984 os gaúchos (e logo depois o Brasil) comemoraram a SELEÇÃO DE 1982 reabertura do Theatro São Pedro, resultado do trabalho incansável de , que conseguiu devolver à cidade um de seus mais queri- NÃO LEVOU O TÍTULO, dos ícones culturais, o estilo de vida yuppie ampliava sua influência, sobretudo na vestimenta e tendo como principal referência o filme E NINGUÉM SABIA Nove Semanas e Meia de Amor, com Mickey Rourke e Kim Bassinger, que deu o tom para os novos executivos e empresários que buscavam esteticamente uma maneira mais livre de agir no mundo dos negócios. QUEM HAVIA MATADO Enquanto isso, Vera Fisher, uma loira brasileira não menos bonita do que Bassinger, fazia sucesso na novela das 8 no papel de Jocasta. Mas ODETE ROITMANN a pergunta que durante muito tempo ficou no ar foi “quem matou Odete Roitmann?”, personagem de Beatriz Segal na novela Vale Tudo, estrelada pela então jovem revelação, Glória Pires. E se 1989 terminaria com a eleição de Fernando Collor para a Presi- dência da República (prenúncio de um 1990 de muitas dificuldades para a cultura brasileira em geral), Adriana Calcanhoto explodiria de vez, radicando-se no Rio de Janeiro, onde começaria a gravar seu primeiro LP. No cinema, o melhor filme brasileiro do ano foi um curta-metragem, Ilha das Flores, de Jorge Furtado, com uma linguagem narrativa peculiar.

93 90anos E o monstro foi dominado

Foram cinco anos para lá de intensos. Entre 1989 e 1994, a população brasileira empolgou-se com a volta das eleições diretas para a Presidência da República, ficou estarrecida ao ver confiscado seu dinheiro depositado nos bancos (inclusive a poupança), foi às ruas pedir o impeachment do presidente que ela mesma elegeu, acompanhou o nascimento de uma moeda virtual e, por fim, vibrou com a estabilidade e a perspectiva do fim da inflação com o bem-sucedido Plano Real. Senna morreu, a era Dunga levantou a taça na Copa dos Estados Unidos, Tom Jobim se foi; a Embrafilme foi extinta, mas vieram a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. O modelo liberal cresceu, não sem ser questionado, enquanto periferias e favelas brasileiras se apropriaram da cultura e da arte para subverter o estereótipo da violência. Um novo Brasil chegava às portas do século XXI.

94 95 anos 90: do confisco à estabilidade

Ao fim dos anos 1980, com o insucesso de diferentes planos de estabilização, o país estava mergulhado na estagnação econômica e beirava a hiperinflação. Nesse contexto, os ideais libe- rais em curso no mundo encontraram espaço para se desenvolver no país e inaugurar, com o governo Collor, a “era liberal” no Brasil. O intervencionismo estatal, a exemplo do que já ocorria nos países centrais e em algumas econo- mias latinas, era constantemente “satanizado” e cedia lugar, de forma acelerada, a propostas de desregulamentação total da economia, abertura comercial completa, Estado mínimo, privatiza- ções etc. Contraditoriamente, a primeira medida anunciada pelo governo eleito em 1989 e que assumiria em 15 de março de 1990 seria uma intervenção das mais radicais em todos os tempos na economia brasileira: o confisco anunciado um dia após a posse de Fernando Collor de Mello na Presidência da República, em 16 de março.

A discussão acerca da reformulação da participação do Estado remetia às questões referentes ao próprio papel deste no desenvolvi- mento nacional, papel este que deveria ser deixado em segundo plano, em prol de uma postura que deveria limitar-se apenas à de regulador. À medida que essa discussão avançava no fim dos anos 1980, com uma redefinição dos limites de espaço público e privado em favor deste último, uma malha de transformações passaria a refletir o receituário “neoliberal” posto em prática. Políticas de caráter ortodoxo com o obje- tivo de controlar a inflação e o déficit público eram acompanhadas por uma drástica mudança na estratégia de desenvolvimento econômico: as empresas estatais passaram a ser vendidas, barreiras tarifárias abolidas e empresas multinacionais cortejadas, numa tendência que veio a se acelerar no decorrer da década de 1990. Iniciado na década anterior, foi apenas a partir do governo Collor, e em boa parte também no governo de Itamar Franco, que o programa de priva- tizações tomou corpo. Entre 1990 e 1993 foram vendidas várias empresas,

96 A ELEIÇÃO DE COLLOR FOI UM MARCO NA ERA LIBERAL NO PAÍS

CONTRADIÇÕES: O PRIMEIRO PRESIDENTE ELEITO PELO POVO DEPOIS DA DITADURA CIVIL-MILITAR NÃO COMPLETARIA SEU MANDATO

97 anos 90: do confisco à estabilidade

O CAÇADOR DE “MARAJÁS” EM AÇÃO: DISCURSO MORALISTA DO JOVEM DE ALAGOAS CONQUISTOU O PAÍS

principalmente dos setores de siderurgia, petroquímica e fertilizantes, uma vez que restrições constitucionais impediam, até então, a privatização dos setores correspondentes aos serviços de monopólio natural do Estado, tais como o petrolífero, de telecomunicações, de energia elétrica etc. Outro fator de grande importância no Brasil foi a criação das mo- edas de privatização, qual seja, um amplo leque de papéis da dívida interna aceitos como pagamento, ao passo que países vizinhos, como Argentina e Chile, aceitavam preponderantemente moeda e títulos da dívida externa como meios de pagamento.

A NAÇÃO ESTARRECIDA Corria o ano de 1989, e após quase 30 anos sem eleições diretas para Presidência da República, os brasileiros finalmente poderiam votar e escolher entre os 22 candidatos que faziam oposição ao então presidente José Sarney. A campanha eleitoral foi agitadíssima, com trocas de acusações e muitas promessas. Ao longo de todo o período, o alagoano Fernando Collor de Mello foi conquistando a simpatia da população, que o elegeria com mais de 42% dos votos válidos. Seu discurso era de modernização e sua própria imagem validou a ideia

98 CARAS-PINTADAS: JUVENTUDE ACABARIA INDO ÀS RUAS PARA PEDIR A SAÍDA DO LÍDER DA REPÚBLICA DAS ALAGOAS

de renovação: Collor era jovem, bonito e prometia acabar com os NA CAMPANHA, COLLOR chamados “marajás”, funcionários públicos com altos salários que só oneravam a administração pública. AFIRMOU QUE LULA Na prática, a situação seria muito diferente, e Collor entraria para a história do país por diferentes razões, uma delas a de ter sido o pri- FARIA O CONFISCO DA meiro (e até agora único) presidente da República afastado do cargo após um processo de impeachment. O fim da reserva de mercado na informática e a abertura do país para as importações (ele chegou a POUPANÇA. MESES dizer que os carros brasileiros eram carroças) seriam marcas de sua gestão, assim como sua primeira medida: o confisco do dinheiro dos DEPOIS, ANUNCIOU A brasileiros. É curioso registrar que, ainda durante a campanha eleitoral, mais exatamente às vésperas das eleições em segundo turno, Collor, RADICAL MEDIDA além de acusar Lula de ter pensado em aborto para evitar o nascimento de sua filha, Lurian, afirmou que o candidato do PT pretendia fazer o confisco da poupança. Lula abalou-se com as afirmações feitas ao vivo, no último debate na Rede Globo, e como não foi convincente em sua defesa, Collor terminou sendo eleito. Duas décadas depois, Collor admitiu ao jornal O Globo: “Eu pensei: antes que me perguntem, vou afirmar que eles estão preparando isso. Antes que o constrangimento caia sobre mim, eu gero o constrangimento para o outro lado.”

99 anos 90: do confisco à estabilidade

Segundo o acadêmico Carlos Eduardo Carvalho, Professor do Depar- tamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o confisco de fato não fazia parte, originalmente, do Plano Collor. O desenho do plano desenvolveu-se a partir do final de dezembro de 1989, e provavelmente foi muito influenciado por um documento dis- cutido anteriormente na assessoria do candidato do PMDB à Presidência, Ulysses Guimarães, e depois na assessoria do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, entre o primeiro turno e o segundo. Segundo Carvalho, apesar das diferenças nas estratégias econômi- cas gerais, as candidaturas que se enfrentavam em meio à forte acele- ração da alta dos preços, submetidas aos riscos de hiperinflação aberta no segundo semestre de 1989, não tinham políticas de estabilização próprias. A proposta de bloqueio teve origem no debate acadêmico JORNALISTA MIRIAM LEITÃO e de alguma forma se impôs entre os principais candidatos. Quando NARRA EM SEU LIVRO DE 2011 A TRAJETÓRIA DA ECONOMIA ficou claro o esvaziamento da campanha de Ulysses, a proposta foi ATÉ A CHEGADA DO REAL levada para a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, onde teria obtido grande apoio por parte de sua assessoria econômica. E chegou ao conhecimento da equipe de Zélia Cardoso de Mello depois do segundo turno, realizado em 17 de dezembro. O fato é que o ainda ministro da Fazenda de José Sarney, Mailson da Nóbrega, atendendo a pedido da equipe econômica do governo eleito, anunciou um feriado bancário de três dias, a partir de 14 de março de 1990, uma quarta-feira. Na quinta, dia 15, Collor foi empossado, e na sexta-feira, 16 de março, veio o anúncio que caiu como uma bomba entre os brasileiros. Em seu livro Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua mo- eda, lançado em 2011, a jornalista Miriam Leitão admite: “As palavras me parecem hoje fracas demais para explicar o estupor diante de um governo que decretava que você não tinha o domínio do seu próprio dinheiro.” Miriam se refere à mais polêmica (e trágica, como se veria em seguida) entre as várias medidas do Plano Brasil Novo, que ficou mais conhecido como Plano Collor I. Além de anunciar que a moeda brasileira voltaria a se chamar cruzeiro (mas sem extinguir o cruzado novo), a superministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, e sua equipe econômica, integrada por Antonio Kandir, Eduardo Modiano e Ibrahim Eris, decretaram o confisco de parte do dinheiro das contas-correntes, de aplicações no overnight e, pasmem, das cadernetas de poupança. “O dinheiro retido continuaria a se chamar cruzado novo. Nas contas A VOLTA DO CRUZEIRO e nas cadernetas, só 50 mil cruzados novos virariam cruzeiros e poderiam ser sacados. O resto continuaria sendo cruzado novo, ficaria preso no ERA MERO DETALHE. O banco por 18 meses e depois seria devolvido em 12 prestações. (...) Os jornais calcularam que todo o dinheiro que estava em conta-corrente, CONFISCO DO DINHEIRO aplicações e caderneta equivalia a 120 bilhões de dólares. Desse total, 95 bilhões de dólares foram confiscados, o que significava prender quase 30% DA POUPANÇA DEIXOU do Produto Interno Bruto (PIB), ou 80% de todo o dinheiro que circulava. Uma calamidade. Os aposentados que tivessem depositado sua pensão na caderneta poderiam sacar acima de 50 mil, desde que comprovassem que o PAÍS ESTARRECIDO valor estava comprometido com certas despesas”, relembra Miriam Leitão.

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As medidas do Plano Collor I

80% de todos os depósitos do overnight, das contas-correntes ou das cadernetas de poupança que excedessem a 50 mil cruzados novos foram congelados por 18 meses, recebendo durante esse período uma rentabilidade equivalente à taxa de inflação mais 6% ao ano; Substituição da moeda corrente, o Cruzado Novo, pelo Cruzeiro à razão de 1 cruzado novo = 1 cruzeiro; Criação do IOF, um imposto sobre as operações financeiras, sobre todos os ativos financeiros, tran- sações com ouro e ações e sobre todas as retiradas das contas de poupança; Foram congelados preços e salários, sendo determinado pelo governo, posteriormente, ajustes que eram baseados na inflação esperada; Eliminação de vários tipos de incentivos fis- cais: para importações, exportações, agricultura; incentivos fiscais das regiões Norte e Nordeste, da indústria de computadores; criação de um imposto sobre as grandes fortunas; Indexação imediata dos impostos aplicados no dia posterior à transação, seguindo a inflação do período; Aumento de preços dos serviços públicos, como gás, energia elétrica, serviços postais etc; Liberação do câmbio e várias medidas para promover uma gradual abertura na economia bra- sileira em relação à concorrência externa; Extinção de vários institutos governamentais e anúncio de intenção do governo de demitir cerca de 360 mil funcionários públicos, para redução de mais de 300 milhões em gastos administrativos.

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EQUIPE DE COLLOR NÃO A jornalista define a medida como “o mais tresloucado plano já pensado em Brasília, que invadiria a vida do cidadão com a maior vio- SOUBE LIDAR COM A lência já vista, rasgaria o maior número de contratos, paralisaria o sis- tema financeiro, atentaria contra o princípio da propriedade privada.” REMONETIZAÇÃO DA O congelamento causou uma forte redução no comércio e na pro- dução industrial. Com a redução da geração de dinheiro de 30% para ECONOMIA, TAMPOUCO 9% do PIB, retirou-se 80% da moeda em circulação, e a taxa de inflação caiu de 81% em março para 9% em junho. A partir de então, o governo enfrentou duas escolhas: poderia segurar o congelamento e arriscar REDUZIU DESPESAS uma recessão devido à redução dos ativos, ou remonetizar a economia através do descongelamento e correr o risco do retorno da inflação. O fracasso do Plano Collor I no controle da inflação é creditado pe- los economistas keynesianos e monetaristas justamente à incapacidade do governo Collor de controlar a remonetização da economia. Várias exceções foram admitidas ao longo do tempo, que contribuíram para o aumento do fluxo de dinheiro: os impostos e as contas do governo emitidos antes do congelamento poderiam ser pagos com o “velho” cru- zado, criando uma forma de “brecha de liquidez”, plenamente explorada pelo setor privado. Várias exceções aos setores individuais da economia foram abertas pelo governo, como nas poupanças de aposentados, e o “financiamento especial” na folha de pagamento do governo. Por fim, o governo foi incapaz de reduzir despesas, limitando sua capacidade de usar muitas das ferramentas acima mencionadas. Os mo- tivos vão desde o aumento do compartilhamento da receita de impostos federais com os estados até a cláusula de “estabilidade de emprego” para os funcionários públicos, instituída na Constituição Brasileira de 1988, que preveniu o tamanho da redução tal como anunciada no começo do plano. Bresser Pereira e Mário Henrique Simonsen, ambos os ex-ministros das Finanças, tinham previsto, no início do plano, que a situação fiscal do governo tornaria impossível o plano de trabalho.

MAIS DOIS PLANOS O segundo Plano Collor iniciou-se em janeiro de 1991. Incluiu novos congelamentos de preços e ferramentas fiscais que incluíam no seu cálculo as taxas de produção antecipada de papéis privados e federais. O plano conseguiu produzir apenas um curto prazo de queda na inflação, que vol- tou a subir novamente em maio. No dia 10 daquele mês, Zélia Cardoso de Mello foi substituída no Ministério da Fazenda por Marcílio Marques Moreira, um economista formado pela Georgetown University que era embaixador do Brasil nos Estados Unidos na época de sua nomeação. O novo ministro lançou em seguida um plano com seu nome, que pode ser considerado mais gradual do que seus antecessores, utilizando uma combinação de altas taxas de juros e política fiscal restritiva. Ao mesmo tempo, os preços foram liberados, e um empréstimo de 2 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional garantiru as reservas internas.

102 APOSENTADOS FORAM AS MAIORES VÍTIMAS DO PLANO COLLOR I

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DE 1989 A 2002, COLLOR PASSOU DE DE PRESIDENTE ELEITO DEMOCRATICAMENTE A RÉU EM PROCESSO DE IMPEACHMENT

ITAMAR FRANCO ERA UM VICE QUASE DECORATIVO, E ACABARIA SENDO UM DOS PAIS DA ESTABILIDADE ECONÔMICA

104 As taxas de inflação durante o Plano Marcílio permaneceram nos EM DEZEMBRO, COLLOR níveis da hiperinflação. A esta altura, começaram a surgir várias de- núncias de corrupção na administração Collor, envolvendo ministros, TEVE SEUS DIREITOS amigos pessoais e até mesmo a primeira-dama, Rosane Collor. Paulo César Farias, ex-tesoureiro da campanha e amigo do presidente, foi acusado de tráfico de influência, lavagem e desvio de dinheiro. POLÍTICOS CASSADOS Em entrevista à revista Veja, Pedro Collor, irmão do presiden- te, revelou os esquemas da chamada República das Alagoas, que POR OITO ANOS, MAS obviamente envolviam também Fernando Collor. A notícia causou estupefação. A população, já insatisfeita com a crise econômica e VOLTARIA A SER ELEITO social, revoltou-se contra o governo. Instalada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), a fim de investigar a participação de Collor SENADOR, EM 2006 no esquema chefiado por PC Farias, o presidente se viu desesperado para salvar seu mandato. Convocou uma rede nacional de rádio e televisão e pediu para que os brasileiros fossem às ruas, vestidos de verde e amarelo, em gesto de apoio ao presidente. O povo, de fato, foi às ruas, mas vestindo preto e exigindo o impeachment de Collor. O contraponto ao tom escuro das vestimentas se deu nas listras em tons de verde e amarelo estampadas nos rostos dos estudantes, que aos milhões foram às ruas pedir o impedimento de Collor, dando origem a uma das mais emblemáticas manifestações populares no Brasil, denominada “movimento dos caras-pintadas”. No dia 29 de setembro de 1992 a Câmara dos Deputados se reuniu para votar a instalação ou não do processo de impeachment do presidente, ou seja, sua possível destituição do cargo. Foram 441 votos a favor e somente 38 contra. Acuado, Collor renunciou. Era o fim do “caçador de marajás”. Em seu lugar, assumiu o vice-presidente, Itamar Franco. Em dezembro daquele ano, o Senado Federal cassou os direitos políticos de Collor por oito anos. Um ano depois, o Supremo Tribunal Federal absolveu Collor da acusação de corrupção passiva. Collor concorreria ao governo de Alagoas com Ronaldo Lessa (PDT), em 2002, mas seria derrotado. Em 2006, foi eleito para o Senado, com mandato até o final de 2015. Marcílio Marques Moreira entregou o Ministério da Fazenda ao seu sucessor, Gustavo Krause, em 2 de outubro de 1992, portanto, alguns dias após a saída de Collor do Palácio do Planalto. Entre o fim do Plano Marcílio e o começo do próximo plano, o Plano Real, a in- flação continuaria a crescer, atingindo quase 48% em junho de 1994.

A INFLAÇÃO DOMADA O governo de Itamar Franco notatilizou-se por dois importantes acon- tecimentos, um na área política, outro na área econômica. Em relação à área política, coube a Itamar cumprir o dispositivo constitucional que previa a realização de um duplo plebiscito, tratando primeiramente do regime a ser instituído no Brasil, ou seja, a manutenção do regime republicano ou a restauração da monarquia em território nacional; o segundo ponto do plebiscito versava sobre a forma com que este governo deveria se organizar, se sob forma presidencialista ou parlamentarista. Tal consulta ocorreu em

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TRANSIÇÃO: URV FOI UTILIZADA PARA CRIAR A CULTURA DE QUE OS PREÇOS SE MANTINHAM ESTÁVEIS

abril de 1993, confirmando o sistema que vinha sendo adotado, e que ainda o é, de república presidencialista. Destaca-se ainda na área política a realização da chamada “CPI do orçamento”, que, como indica o nome, procurou investigar denúncias de corrupção relacionadas a irregularidades no orçamento da União. As investigações revelaram o esquema dos chamados “anões do orça- mento”, assim chamados devido às baixas estaturas dos envolvidos no esquema de corrupção, todos parlamentares, ministros e ex-ministros, além de governadores estaduais. Cabe acrescentar que Itamar também ficou conhecido pelo estilo um tanto folclórico, com seu inimitável topete, sua constante rabugice, ou ainda pelos episódios com a modelo Lilian Ramos, que apareceu ao lado deste e foi fotografada sem calcinha. Apesar da relevância dos fatos políticos citados, o governo Itamar entraria efetivamente para a história em razão da bem-sucedida alter- nativa encontrada para domar a inflação, ou melhor, a hiperinflação que assolava o país. Em 2014, foram comemorados os 20 anos do Plano Real, cuja data oficial é 1º de julho de 1994. O plano, entretanto, começou a ser arquitetado em 1993, especialmente a partir do segun-

106 EDMAR BACHA INTEGROU EQUIPE QUE REUNIA PERSIO ARIDA, ANDRÉ LARA RESENDE, GUSTAVO FRANCO E PEDRO MALAN

do semestre, pela equipe econômica criada por Fernando Henrique CRIAÇÃO DA MOEDA Cardoso, então ministro da Fazenda do governo Itamar. Faziam parte do grupo Edmar Bacha, Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo VIRTUAL FOI A CHAVE PARA Franco e Pedro Malan. O plano foi dividido em três etapas. A primeira delas seria o ajuste DESINDEXAR A ECONOMIA das contas públicas, através de um corte no Orçamento. A segunda se- ria a implantação da Unidade Real de Valor (URV), unidade monetária SEM CONGELAR PREÇOS para desindexar a economia. Por fim, a URV seria transformada em real, a nova moeda brasileira. O Congresso, após intensa negociação, aprovou o plano e as fases seguiram como planejado. Há um certo consenso entre os analistas de que a chave do su- cesso do Plano Real foi a URV, que entrou em vigor em 1º de março de 1994. A moeda virtual conseguiu desindexar a economia e ser uma eficiente alternativa ao congelamento de preços. Na prática, funcionou assim: todos os preços foram remarcados com valores em URV, que era atrelada ao dólar. A moeda que efetivamente circulava era o cruzeiro real, e todos os dias era divulgado o valor equivalente da URV em cruzeiros reais. Ou seja, quando se entrava no super- mercado para comprar frango (produto que virou uma espécie de

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DOS ELETRODOMÉSTICOS AO COCO: CULTURA DE PREÇOS EM URV FOI RAPIDAMENTE ASSIMILADA

IMPRENSA TEVE PAPEL garoto-propaganda ou símbolo do plano), na prateleira estava mar- cado o preço “1 URV”. No caixa, o valor era convertido na moeda FUNDAMENTAL PARA “de verdade” para realizar o pagamento. Pouco a pouco, a inflação inercial arrefeceu e a economia se acostumou aos preços estáveis. A população, já calejada após tantos planos e com a ajuda do governo AJUDAR A POPULAÇÃO A e de jornalistas, conseguiu entender a economia da URV e contribuir para o sucesso nessa fase do plano. ENTENDER QUE HAVIAM Mas não foi fácil. O trabalho da imprensa foi decisivo para que a população entendesse efetivamente o que estava acontecendo. Mais DUAS MOEDAS, UMA DE uma vez é Miriam Leitão quem descreve o trabalho dos jornalistas naquele momento crucial: “Tinha que explicar que o país teria duas FATO E OUTRA VIRTUAL moedas, só que uma das moedas seria virtual. Uma é a moeda circu- lante, na mão das pessoas, o cruzeiro real. A outra é a Unidade Real de Valor. Aí as pessoas tinham que raciocinar com uma moeda que não existe no mundo das coisas e aceitar recontratar os seus preços, salários, aluguel, prestação da casa própria, mensalidade da escola num negócio chamado URV, que não circulava, que não tinha papelzinho escrito URV. Era abstrato. E a cada dia uma URV valia mais cruzeiros reais. As pessoas tinham que acompanhar e aderir a esse novo mundo que não tinha nenhuma garantia de dar certo.”

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PROGRAMA MILLE ON-LINE ESPERAVA VENDER 40 MIL UNIDADES - FORAM QUASE 200 MIL O Plano Real e a Fiat

O texto abaixo foi publicado em um especial da revista Época sobre os 20 anos do Plano Real

“A URV foi um alívio para a indústria. On-Line. Nele, o comprador fazia o pedido Todo mundo respirou aliviado e o mercado na concessionária por meio de um sistema percebeu imediatamente que aquela ati- de linhas telefônicas e a fábrica respondia tude ajudaria no consumo da população”, quando poderia entregar o carro. O cliente afirmou o presidente da Fiat para a América dava um sinal e, se a fábrica não cumprisse Latina, Cledorvino Belini. O presidente da o prazo, ela pagaria uma multa ao cliente. montadora era diretor comercial da Fiat no O impacto foi tão grande que, em uma início do Plano Real. Nesta época, houve semana, a empresa teve que instalar mais 200 um boom no mercado graças à estabilidade linhas telefônicas para poder abastecer todas econômica. Belini foi um dos idealizadores as concessionárias. A montadora esperava do projeto Mille On-Line, uma espécie de vender 40 mil veículos com o programa – sistema telefônico de pedidos para compra vendeu quase 200 mil. “A inflação corroía o de carros. Como a procura por veículos poder aquisitivo das pessoas. Quando veio a populares ficou muito grande, as conces- estabilidade, o consumo explodiu. Na época, sionárias começaram a cobrar ágio, um o mercado vendia 800 mil unidades por valor a mais cobrado pelos comerciantes ano. Chegou em 1997 a quase 2 milhões de quando a demanda supera muito a ofer- veículos. Nós crescemos significativamente ta. Quem tinha mais dinheiro, passava à nessa época e lançamos novos produtos. O frente de quem queria pagar o preço da país passou a ter credibilidade internacional tabela. A Fiat, então, resolveu criar o Mille que até então não tinha”, afirma Belini.

109 anos 90: do confisco à estabilidade

POLÍTICA ECONÔMICA Todo o programa tinha como base as políticas cambial e monetária. A política monetária foi utilizada como instrumento de controle dos COMO UM TODO FOI meios de pagamentos (saldo da balança comercial, de capital e de serviços), enquanto a política cambial regulou as relações comerciais ALVO DE CRÍTICAS, MAS do país com os demais países do mundo. Foi estabelecida a paridade nos valores de reais e dólares, defen- IMPACTO DO REAL FOI dida através da política de intervenção, na qual o governo promoveu a venda de dólares e o aumento das taxas de juros nos momentos de pressão econômica. O capital especulativo internacional foi atraído MARCANTE pelas altas taxas de juros, o que aumentou as reservas cambiais, mas causou certa dependência da política cambial a esses investimentos não confiáveis em caso de oscilações econômicas. Um ponto negativo do Plano Real foi a promoção de uma enorme substituição de produtos nacionais por produtos importados durante a fase de estabilização, o que gerou o agravamento da situação fiscal brasileira. Um mês após o lançamento do plano, FHC se desincompatibilizou do cargo para se candidatar à Presidência da República pelo PSDB (seria vitorioso, derrotando Luiz Inácio Lula da Silva, e posteriormente reeleito para um segundo mandato). Rubens Ricupero assumiu o Ministério da Fazenda e em tese deveria ser o responsável por toda a condução do plano. Entretanto, durante a gravação de uma entrevista ao jornalista Carlos Monforte, da Rede Globo, sem saber que o sinal estava aberto para algumas residências que possuíam antena parabólica, deixou esca- par uma frase que selaria sua saída do governo, no mês de setembro: “O que é bom a gente fatura. O que é ruim, esconde.” Além disso, Ricupero afirmou na ocasião que era o principal “cabo eleitoral” de FHC. O Plano Real, bem como as demais políticas econômicas implemen- tadas nos anos seguintes pelos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, são suscetíveis de muitas críticas e questionamentos, as quais não serão tema desta coleção de livros, que se encerra no ano de 1994, com a chegada da tão sonhada estabilidade econômica. A questão da privatização de empresas estatais, por exemplo, é um tema que poderia ser debatido: de um lado, houve a crítica de que os valores obtidos com os leilões não cobriam os investimentos realizados durante vários anos com dinheiro público; de outro, a justificativa de que o monopólio estatal sobre determinados serviços não conseguia atender toda a sociedade, mantendo empresas sem capacidade de investimento, e que, portanto, não obedeciam duas regras básicas da economia de mercado: competição e universalização de serviços. Para se ter uma ideia do impacto que o controle da inflação sig- nificava, cabe lembrar que, em 1993, a inflação foi de 2.477,15% ao ano (IPCA). Só no mês de junho de 1994, antes de o real entrar em circulação, a inflação foi de 47,43%. Estes números significam que um carro popular que custasse R$ 35 mil em um dia sairia por quase R$ 500 a mais se comprado no dia seguinte. Um ano depois, seu valor seria equivalente a R$ 3,74 milhões.

110 CRIADORES E CRIATURAS: FERNANDO HENRIQUE MOSTRA NOVAS MOEDAS DE REAL. AO FUNDO, PEDRO MALAN

IMPACTO POLÍTICO: FHC SERIA ELEITO PRESIDENTE, E EM SEGUIDA REELEITO, GRAÇAS AO SUCESSO DO REAL

111 anos 90: do confisco à estabilidade

RUBENS RICUPERO ASSUMIU MINISTÉRIO DA FAZENDA, MAS TEVE TRAJETÓRIA CURTA

Para Miriam Leitão, a discussão sobre a quem atribuir a paternidade do Plano Real, se ao então presidente, Itamar Franco, ou ao seu ministro da Fazenda é irrelevante: “O Plano Real faz parte de uma história, não foi apenas um momento. (...) o Fernando Henrique como ministro era o único que poderia ter levado aqueles economistas para lá. Aqueles economistas eram os únicos que tinham estudado tecnologias atualizadas de combate à inflação. (...) E o presidente podia dizer sim ou não, mas ele disse sim. (...) a paternidade é dupla. Eles tiveram um papel fundamental.” Por sua vez, Gustavo Franco, que participou da elaboração do Plano Real, foi secretário adjunto de política econômica do Ministério da Fazenda e presidente do Banco Central de 1997 a 1999, relembra que, apesar do impacto imediato, os resultados foram construídos pouco a pouco: “A inflação no primeiro mês da nova moeda foi de 7%, um número enorme para os padrões de agora, mas naquele tem- po era uma grande vitória. Nos primeiros 12 meses, acumulou mais de 30%. Quando o real foi para a rua, o plano entrou em outra fase mais convencional, de combate à inflação, na qual foi fundamental a política monetária e cambial. A gente só conseguiu fazer a inflação cair abaixo de 5% no acumulado de 12 meses quase no final de 1997. Em 1998, que foi nosso melhor ano em matéria de taxa de inflação, tivemos um IPCA de 1,6% ao ano. Talvez só aí que a gente conseguiu dizer que deu certo, chegamos na inflação ‘zero’, entendida como in- flação igual à americana. Com isso, você muda a cabeça das pessoas. A desindexação ocorre como consequência de você mostrar que o Brasil não precisa ter inflação para sua economia andar.”

SUCESSO DO REAL FOI RESULTADO DE TRABALHO EM EQUIPE. INFLAÇÃO “ZERO” SÓ VEIO EM 1998

112 TROCA DE CRUZEIROS POR REAL: UM PROCESSO LONGO, MAS VITORIOSO

CÁLCULOS E MAIS CÁLCULOS: CONVERSÃO DA URV EXIGIU PACIÊNCIA DE VENDEDORES E CONSUMIDORES DURANTE MESES

113 anos 90: cultura e sociedade

Diversidade em meio a crises Mamonas Assassinas, os mineiros Jota Quest e Skank e, ainda, Titãs e Raimundos podem ser considerados os nomes de maior repercussão na música popular brasileira nos anos 1990, sem esquecer que as duplas sertanejas explodiram de vez, a partir do sucesso iniciado ainda nos anos 1980. Também o hip-hop e o rap abriram espa- ço, assim como o axé, este mais para o final da década, com destaque para o grupo É o Tchan. Já a banda Cidade Negra leva a fama de ter inau- gurado o reggae em verde-amarelo, dividindo atenções com o mangue-beat de Chico Science e a suavidade do Pato Fu, de Fernanda Takai. Papel fundamental no período foi exercido pela MTV Brasil, que nasceu em 20 de outubro de 1990, e foi a primeira TV segmentada do país dedicada ao público jovem.

Os Mamonas Assassinas tiveram uma carreira tão bem-sucedida quanto meteórica. Apesar do grupo ter nascido em 1990, com o nome Utopia, foi a partir de julho de 1995 que seu único álbum de estúdio, já com o nome Mamonas Assassinas, iniciou uma fulminante trajetória de sucesso. Em sete meses, venderam nada menos que 3 milhões de discos, até que um acidente de avião na Serra da Cantareira, em São Paulo, vitimou todos os integrantes da banda, em março de 1996. “Pe- lados em Santos”, “Robocop Gay”, “Sabão Crá-Crá” e “Sábado de sol” dominaram as rádios e os programas de auditório, em apresentações histriônicas dos cinco integrantes do grupo liderado por Dinho (Alec- sander Alves). “Pelados em Santos”, inclusive, deu origem, em 2008, a uma paródia criada pela torcida Guarda Popular, do Internacional. “Minha camisa vermelha” posteriormente foi adaptada por outras torcidas, como as do Flamengo, Remo, Ceará, Bahia, entre outras.

114 PATO FU DE FERNANDA TAKAI (ACIMA), CHEGADA DA MTV E TITÃS: ÍCONES DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NOS ANOS 1990

115 anos 90: cultura e sociedade

116 MURO DE BERLIM (AO LADO) DERRUBOU IDEOLOGIAS. NIRVANA FOI REFERÊNCIA DO GRUNGE

Os Mamonas bateram o recorde de vendas de um disco em um só dia (foram 25 mil exemplares em 12 horas) e estariam entre os 10 discos mais vendidos em todos os tempos no Brasil, de acordo com o livro Os 10 mais, dos jornalistas Luiz André Alzer e Mariana Claudino. Inspirado na nostalgia e nos livros sobre as décadas de 1970 e 1980, o jornalista e ex-aluno da PUC-Rio Silvio Essinger lançou o Almanaque Anos 90, pela Editora Ediouro, que reúne curiosidades e lembranças do período. No livro, Essinger defende que a primeira década totalmente democrática no Brasil, depois de 20 anos de vigência do regime de exce- ção, derrubou também o autoritarismo estético. Na música, o cenário foi democrático. Todos tiveram vez: axé music, pagode romântico, sertanejo, lambada, boy bands, grunge, funk melody e até figuras inusitadas, como Tiririca. “Deixou-se de marginalizar certos estilos, todos tiveram o mesmo destaque. O Nirvana é símbolo disso: trouxe o subterrâneo dos anos 80 e colocou para o primeiro plano. Ao mesmo tempo, surgiam tipos diversos de tribos com que o jovem poderia se identificar. Nos anos 70 você podia ser hippie, militante de esquerda ou careta. Nos 1990, abriu-se essa cartela de grupos urbanos”, argumenta Essinger. Na era da tecnologia, as ideologias acabaram meio que deixadas de lado, já que, com a queda do Muro de Berlim, caíram por terra os conceitos de esquerda e de direita, que marcavam as identidades dos jovens de 16 a 24 anos até então. “Houve um certo desencanto com a política. Os partidos se fecham para novas ideias, e o que passa a ser mais importante é a imagem do candidato, definida pelo marketeiro, desde a cor da gravata ao abraço em um popular”, afirma o diretor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, Ricardo Ismael.

NA ERA DA TECNOLOGIA PÓS QUEDA DO MURO, PERDEM FORÇA AS IDEOLOGIAS DE ESQUERDA E DE DIREITA

117 anos 90: cultura e sociedade

COLLOR DECIDIU O jovem de qualquer época se motiva a se envolver nas questões públicas pela possibilidade de transformação. Na última década do EXTINGUIR A EMBRAFILME século XX, a juventude percebeu que, ao não influenciar nas deci- sões dos partidos, a saída era se engajar em movimentos culturais e E CAUSOU IMPACTO sociais, como o Greenpeace. “Nos anos 1980, achava-se que com a vitória de um presidente eleito pelo povo tudo iria mudar, mas com a eleição de Fernando Collor de Mello, veio a frustração. A campanha NEGATIVO NA de impeachment, em 1992, trouxe jovens para a cena, mas a partir dali não houve grande participação política”, diz Ismael. PRODUÇÃO NACIONAL

CRISE NO CINEMA Um dos segmentos mais afetados pelo governo Collor de Mello foi o cinema. A crise econômica dos anos 1980 e a incapacidade do Estado em ampliar os investimentos na Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A) foram, aos poucos, tornando a empresa incapaz de competir e regular o mercado cinematográfico. Além disso, setores da sociedade civil estavam incomodados com a interferência do Estado na economia, e a imprensa, influenciada pela ideologia neoliberal, criti- cava as ações do governo na cultura, considerando-as protecionistas. A Embrafilme havia sido criada pela Ditadura Militar, em 1969, como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC) com objetivo de distribuir e promover filmes nacionais no exterior. Foi comandada pelo cineasta , entre 1975 a 1978, e por Carlos Augusto Calil – indicado por profissionais do campo cinematográfico – entre 1985 e 1986. Muito próxima dos cineastas, a empresa produzia filmes comerciais e autorais, respeitando muitas vezes a legitimidade de alguns diretores e produtores, e não o fortalecimento da indústria cinematográfica como um todo. Em 1987, a empresa havia passado por uma reforma, procurando dar agilidade à instituição, separando as funções comerciais e culturais, mas o resultado foi pouco expressivo. O corporativismo presente entre cineastas e produtores – que dificultava a adoção de uma política de produção mais independente –, o desinteresse do Estado em formular uma política cultural consistente e a forte crise econômica dos anos 80 foram enfraquecendo a Embrafilme. Até que em 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello decretou o fim da empresa, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do Cinema Brasileiro, em uma atitude que simbolizou o encerramento de um ciclo da história cinematográfica brasileira. A partir deste momento, o cinema perdeu seu principal agente financiador, distribuidor e regulamentador, além de ficar sem nenhum mecanismo de proteção frente ao cinema estrangeiro, tendo que competir em um mercado dominado pelo filme norte-americano, ao qual o público viu-se cada vez mais acostumado. O cinema brasileiro passou a ser considerado uma mercadoria como qualquer outra, de acordo com a visão neoliberal vigente no período.

118 ARTIC SUNRISE, BARCO QUEBRA-GELO DO GREENPEACE (EM AÇÃO ABAIXO) NA DENÚNCIA DE CRIMES AMBIENTAIS: APELO JUNTO AOS JOVENS

119 anos 90: cultura e sociedade

WALTER SALLES DIRIGIU O LONGA TERRA ESTRANGEIRA: DENÚNCIA DE UMA ERA DE DESCRENÇA NO BRASIL EM TEMPOS DE COLLOR

Um dos principais efeitos do desmonte da estrutura institucio- nal do cinema brasileiro, em 1990, foi a paralisação quase total da produção de filmes nacionais de longa-metragem, pela inexistência de mecanismos oficiais de fomento e financiamento aos produtores e realizadores. Para se ter a dimensão do que significou esta medida governamental, basta comparar a produção dos anos 1970, de 100 filmes por ano, chegando a alcançar 35% do mercado interno da década seguinte, com a de 1992: apenas dois filmes produzidos. O longa Terra Estrangeira, de e Daniela Thomas, te- matiza este período histórico brasileiro. Lançado em 1995, o filme retrata o que significou aquele governo e principalmente o Plano Collor para a sociedade brasileira: um momento de descrença em relação ao futuro do país e de falta de projetos coletivos. Esta situação se refletiu no campo cinematográfico, em que a viabilização de um filme dependia de iniciativas individuais, e o projeto de um cinema que refletisse a cultura brasileira e tentasse uma identificação popular foi bruscamente rompido. A criação da Lei Rouanet, em 1991, e a Lei do Audiovisual, em 1993, foram instrumentos muito relevantes para o restabelecimento da atividade cinematográfica brasileira e, de certa forma, serviram como uma nova es- perança para os cineastas. Por meio delas, o governo estabeleceu medidas de incentivos fiscais às pessoas físicas e jurídicas para atrair o investimento de empresas nacionais e internacionais para as atividades culturais.

120 O MITO SE FOI: DEPOIS DE SAGRAR-SE TRICAMPEÃO, SENNA MORREU EM UMA CURVA DE ÍMOLA EM 1994

A propósito da Lei Rouanet, no início do ano de 1991, o embai- CRIAÇÃO DAS LEIS xador Sérgio Paulo Rouanet cientista político e especialista em teoria crítica da cultura foi nomeado Secretário de Cultura (Collor havia ROUANET, EM 1991, E DO extinto o Ministério e criado a Secretaria, dias após tomar posse). Rouanet permaneceu no cargo entre março de 1991 e outubro de 1992, AUDIOVISUAL, EM 1993, e foi o responsável pela elaboração do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que ficaria conhecido pelo sobrenome de seu criador. SERVIRAM DE ALENTO O projeto introduziu regulamentações à lei federal de incentivo fiscal, incorporando elementos das leis estaduais e municipais de incentivo fiscal existentes no Rio de Janeiro, São Paulo e no Distrito Federal e PARA A CULTURA de outras experiências no âmbito internacional. Desde então, foram mais de 35 mil projetos financiados. Em 2013, o volume de recursos aplicados via Lei Rouanet ultrapassou R$ 1,2 bilhão, abatidos no Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas.

COTIDIANO Ano icônico na economia, por marcar a criação do Plano Real, 1994 também entrou para a história em momentos opostos no esporte. Em 1º de maio, a morte de Ayrton Senna em acidente no autódromo de Ímola, na Itália, comoveu e parou o país, bem como consternou milhões de fãs de Fórmula-1 espalhados pelo planeta. Pouco mais de dois meses depois, a

121 anos 90: cultura e sociedade

CAPITÃO DO TETRA: A ERA DUNGA DEU A VOLTA POR CIMA E LEVANTOU A TAÇA EM 1994

Seleção Brasileira treinada por Carlos Alberto Parreira e comandada dentro de campo por Romário e Bebeto celebrou a conquista do tetracampeonato mundial de futebol ao derrotar a Itália de Roberto Baggio na final da Copa dos Estados Unidos. O título veio após o fracasso em 1990, quando foi inaugurada a chamada “Era Dunga”, em homenagem ao estilo do volante e capitão brasileiro, símbolo de um estilo de futebol mais cauteloso, defensivo, menos vistoso e mais focado em resultados. Também em 1994 morreram Antonio Carlos Jobim, o Tom, um dos maiores expoentes da música brasileira em todos os tempos, e Kurt Cobain, do Nirvana, símbolo do grunge de Seattle que marcou a época. A professora Silvia Ramos destaca, entre os acontecimentos marcan- tes na cena política brasileira dos anos 1990, no campo de iniciativas da sociedade civil, o surgimento de grupos de jovens de favelas e periferias ligados a iniciativas de cultura e arte. Em geral, começam como projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, frequentemente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos desses em- preendimentos são os grupos Olodum, em Salvador, o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (CUFA), no Rio de Janeiro, além de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip-hop nas periferias de São Paulo, nas vilas de Porto Alegre, nos aglo- merados de Belo Horizonte e em bairros pobres de Recife, Brasília e São Luís. “Esses grupos expressam, por meio de diferentes linguagens (como a música, o teatro, a dança e o cinema), ideias e perspectivas dos jovens das favelas. Ao mesmo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da criminalidade e do fracasso associados a esse segmento da sociedade”, afirma Silvia, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.

GRUPOS DE JOVENS DAS FAVELAS USAM CULTURA E ARTE PARA ESCAPAR DO ESTEREÓTIPO DA VIOLÊNCIA

122 OLODUM, EM SALVADOR: MÚSICA, TEATRO, CINEMA E DANÇA COMO INSTRUMENTOS DE EXPRESSÃO DAS PERIFERIAS

TOM JOBIM: O MAESTRO SE FOI EM 1994, UM ANO DE MARCANTES PERDAS E GANHOS

123 fontes consultadas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E/OU ICONOGRÁFICAS

Alexandre, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo : DBA Artes Gráficas, 2002.

Alzer, Luiz André. Almanaque Anos 80. Rio de Janeiro : Editouro, 2004.

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Bueno, Eduardo. História do Brasil. Porto Alegre : Zero Hora / RBS Jornal, 1997.

Cândido, Carlos Alberto. 60 anos de grandes obras e histórias: a construção do Brasil. Porto Alegre : Quattro Projetos, 2011.

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IMAGENS

Agência O Globo: pág 52 (embaixo), 58, 59, 60, 61, 67, 70, 77, 110, 111, 112 (duas), 115 (alto), 116, 117 (embaixo)

Agência RBS: 62, 63 (duas), 110, 117 (alto)

Folha Press: capa (canto inferior direito), 55, 107

Luis Tadeu Vilani: pág 32

Demais imagens: reproduções obras citadas acima e/ou divulgação

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