JORNALISMO CCL

TRABALHOS SELECIONADOS 2 SEM São Paulo UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-reitora de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte

CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro

ORGANIZADORES Prof. Dr. José Alves Trigo, Prof. Dr. Hugo Harris, Profa. Dr a. Denise Paiero, Prof. Dr. André Santoro

TCCs 2019_2 --- 2 CORPO DOCENTE DO CURSO DE JORNALISMO Ana Cassu, André Santoro, Anderson Gurgel, Angela Zamora, Arnaldo Lorençato, Carlos Sandano, Cristine Mattos, Daniel de Thomaz, Denise Paiero, Eduardo Jardim, Fernando Pereira, Fernando Moraes, Fernando Salinas, Hugo Harris, José Alves Trigo, José Maurício, Leandro Novi, Lenize Villaça, Luciano Venelli Costa, Marcia Detoni, Manoel Nascimento, Marcelo Lopes, Mil- ton Pignatari, Mirtes de Moraes, Paulo Monteiro, Paulo Ranieri, Patrícia Paixão, Priscila Felipini, Rafael Fonseca, Rachel Neves, Va- léria Martins, Vanessa Oliveira, Vanderlei Dias, Vanessa Oliveira, Vania Dohme, Vinicius Prates

T828t Santoro, André. TCCs selecionados em 2019 / José Alves Trigo, Hugo Harris, Denise Paiero. - 3. ed. - São Paulo, 2020

508 p. : il. ; 30 cm.

Inclui bibliografia: p. 431-466

1. Jornalismo. 2. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) . 3. Graduação. I. Paiero, Denise II. Harris, Hugo. III. Trigo, JoséIV, Santoro André. Título.

TCCs 2019_2 --- 3 SUMÁRIO

Análise da cobertura da Folha de S. Paulo sobre a reforma trabalhista sob a perspectiva da escola austríaca de economia ...... 7 Andre Bortoletto de Godoy

Análise do discurso da imprensa evangélica: primeiro jornal protestante no Brasil ...... 62 Beatriz Araújo de Lima e Silva

Cobertura da mídia na copa do mundo feminina de 2019 ...... 146 Giovanna Paternostro Carvalho

O uso das bases de dados digitais no jornalismo a partir do caso Panamá Papers ...... 200 Lucas Soares Martins

Mooca - só quem tem história pode contar...... 251 Beatriz Lia Santiago Sastre

Luto em luta: a evolução política de Monica Benício ...... 268 Julia Vieira Reis

Um ano com ela. Documentário performático sobre um paciente com escle- rose lateral amiotrófica ...... 284 Juliana Garcia

A violência sexual nas categorias de base do futebol brasileiro ...... 308 Lucas Ribeiro Garbelotto

Mãos que trazem à luz. Estudo jornalístico sobre parteiras para a realização do livro reportagem “mãos que trazem à luz” ...... 322 Cecília Malavolta

TCCs 2019_2 --- 4 O caminho que me guia: como a religiosidade está presente na vida das pessoas? ...... 340 Layane Oliveira Bittencourt

Vidas Elevadas ...... 358 Francesco Greco Delle Serre

Intramuros: a história desvelada do Juquery, um dos maiores hospitais psiquiá- tricos do Brasil ...... 376 Júlia Naddaf Remer

Guerreiras de fé: as mães dos presídios de São Paulo ...... 391 Beatriz de Aquino Custódio

Eternas falas de Esther de Figueiredo Ferraz ...... 410 Louise Teixeira Diório

Quilombo Dourado. Um documentário sobre a comunidade quilombola Mum- buca do Jalapão ...... 433 Fabiana Abate Guglielmi

Tropeirismo no Vale do Paraíba. Um elo entre o presente e o passado ..... 457 Ana Julia de Olliveira Paloschi

Cisne Negro companhia de dança: antes das cortinas se abrirem uma websérie sobre a cisne negro companhia de dança e a produção que antecede os espe- táculos ...... 470 Giulia Santos Cervetto

Punk! SP - como vive a subcultura punk na cidade de São Paulo ...... 485 Yolanda Silva Reis

TCCs 2019_2 --- 5 ANÁLISE DA COBERTURA DA FOLHA DE S. PAULO SOBRE A REFORMA TRABALHISTA SOB A PERSPECTIVA DA ESCOLA AUSTRÍACA DE ECONOMIA

ANDRE BORTOLETTO DE GODOY Orientador: André Cioli Taborda Santoro

TCCs 2019_2 --- 6 Resumo: A presente monografia trata-se de uma análise e crítica da cobertura jornalís- tica sobre a reformas Trabalhista sob a ótica da Escola Austríaca Econômica. O principal objetivo do trabalho é identificar pontos da cobertura midiática em dissonância com a visão da Escola Austríaca das questões político-econômicas, prosseguindo a mostrar como os dilemas mais recorrentes a respeito das re- formas seriam observados partindo-se da visão desta escola de pensamento liberal e heterodoxa. A monografia também visa, neste diálogo, avaliar a qualida- de da prática jornalística brasileira, especialmente no tocante à pluralidade de vozes nas matérias e editoriais. Outro objetivo secundário é fazer uma crítica às tendências ideológicas no jornalismo econômico que podem comprometer a cobertura de eventos tão cruciais para o país como as reformas. Para que se- jam alcançados estes objetivos, é adotado o método de análise de conteúdo, o qual, segundo Laurence Bardin, permite uma análise que pode tanto enriquecer o processo de descoberta, por meio da busca pela objetividade, quanto permi- tir confirmações e infirmações por meio da sistematização da análise.

Palavras-chave: Reforma Trabalhista; Folha de S. Paulo; Escola Austríaca de Economia; Jornalismo Econômico

Abstract: This monography is both an analysis and a critique of the media’s coverage of the 2017 Labor Reform under the optics of the Austrian School of Economics. Its main goal is to identify points of view in disagreement with the Austrian view of political economic matters, proceeding to demonstrate how these dilemmas over the Reform would be observed using this hetero- dox libertarian school of thought’s points of view. The monography also aims, in this dialogue, to evaluate the quality of the Brazilian journalistic practice, especially regarding the plurality of voices found in articles and editorials. An- other secondary objective is to provide criticism to the ideological tendencies on economic journalism that might muddle the coverage of such important happenings to the country’s future. In order to reach these goals, the content analysis method was adopted, a process which, according to Laurence Bardin, allows for an analysis that can both enrich the discovery process, through the search for objectivity, and allow for confirmations and invalidations through the systematization of the analysis.

TCCs 2019_2 --- 7 Keywords: Labor Reform; Folha de S. Paulo; Austrian School of Economics; Economic Journalism INTRODUÇÃO A presente monografia procurou discutir a cobertura da Reforma Tra- balhista de 2017 feita pela Folha de S. Paulo a partir do ponto de vista da Escola Austríaca de Economia. É inegável o papel que esta proposta teve sobre a discussão do papel do Estado na economia brasileira, dividindo a população, basicamente, entre aqueles contra e aqueles a favor dela. Neste cenário, é im- portante reconhecer o papel da mídia, desde os canais online até os grandes veículos de comunicação, na cobertura dos fatos e na exposição ao público das questões discutidas pelos políticos. Contudo, observou-se uma predominância de argumentos ortodoxos (tanto a favor como contra) nos debates e análises a respeito do tema feitos nos principais veículos do país, sem muito espaço para pontos de vista fora da curva. Portanto, a monografia buscou responder à questão: como os conceitos da Escola Austríaca de Economia, uma escola de pensamento liberal e hetero- doxo, dialogam com outros pontos de vista apresentados no debate sobre a Reforma Trabalhista? O principal objetivo, desta forma, foi encontrar e analisar pontos em dissonância com a perspectiva da Escola Austríaca sobre as questões econômi- cas e trabalhistas, utilizando-se de alguns princípios teóricos básicos e funda- mentais dessa escola para tanto. Outros objetivos foram: apresentar uma nova forma de enxergar as questões político-econômicas brasileiras; e avaliar a práti- ca do jornalismo econômico no país, especialmente nas questões da pluralidade e da neutralidade na notícia. Uma pesquisa desse tipo e com estes objetivos é importante por pos- sibilitar uma crítica do repertório das teorias econômicas presentes no jor- nalismo brasileiro ao introduzir um terceiro ponto de vista menos conhecido dos problemas. Afinal, por mais que ela apresente semelhanças com outras escolas econômicas liberais, a Escola Austríaca segue uma linha de pensamento levemente diferente desde suas origens, que remetem aos escolásticos e pós- -escolásticos espanhóis dos séculos XV e XVI. Quanto à escolha do veículo, a Folha de S. Paulo é um dos principais jornais brasileiros, de alcance nacional e grande influência sobre os rumos do debate público acerca das questões a serem analisadas e de tantas outras. Portanto, uma análise sobre a cobertura da Reforma Trabalhista feita por ele é uma boa maneira de atingir os objetivos secundários da monografia. Para a realização do trabalho, foi utilizado o método de análise de con- teúdo, que permite uma combinação de percepção e relação de conceitos, já que funciona, dentre outras formas, como “um tratamento da informação con-

TCCs 2019_2 --- 8 tida nas mensagens” (BARDIN, 2000, p. 34). Este tratamento, segundo o autor, procura ultrapassar a incerteza e enriquecer a leitura, definindo se o conteúdo da mensagem captada pelo leitor também pode ser percebido por outros e ajudando a descobrir estruturas textuais que confirmem a demonstração de- sejada a respeito da mensagem. A pesquisa em si analisou as edições impressas do jornal Folha de S. Paulo publicadas em datas chave da reforma. No caso da Reforma Trabalhista, os dias foram 23 de dezembro de 2016, 27 de abril de 2017, e 12 de julho de 2017 (os dias e os dias seguintes da entrega da proposta à Câmara dos De- putados, da votação no Senado e da sanção pelo ex-presidente Michel Temer, respectivamente). Caso não estivessem disponíveis as edições impressas, foram procurados artigos e notícias online publicados na data necessária. De cada uma das edições, à exceção da última, foi analisado um artigo editorial ou de um colunista e uma matéria jornalística, permitindo uma comparação entre as opiniões que aparecem no jornal e a cobertura factual dos eventos. Quanto aos capítulos, eles foram divididos da seguinte maneira. O pri- meiro traz uma breve fundamentação do jornalismo econômico, de seu papel e de sua situação atual com base em conceitos expostos por Bernardo Kucinski e Suely Caldas em seus livros homônimos Jornalismo Econômico e por Flávio Gordon em A Corrupção da Inteligência. O segundo introduz a Escola Austríaca de Economia e apresenta quatro fundamentos teóricos que foram utilizados para nortear a análise ao longo da monografia, tendo por base as obras de autores como Ludwig von Mises, F.A. von Hayek, Jorge Ubiratan Iorio, Fernando Chavarro Miranda e Nelson David Chávez Salazar. No terceiro foi feita uma introdução à história da Folha de S. Paulo e de sua inserção no contexto da Re- forma Trabalhista, utilizando a obra História da Imprensa Paulista de Oscar Pila- gallo e o Manual da Redação de 2018 do próprio veículo como principais guias. Em seguida, neste mesmo capítulo, vêm as análises dos materiais escolhidos, divididos da seguinte maneira: um subcapítulo para cada dia apontado anterior- mente, dividido em subcapítulos para a análise de cada matéria escolhida. E estes, por sua vez, foram baseados nas obras de autores importan- tes da Escola Austríaca (ou ligados a ela), como os já mencionados Ludwig von Mises e F.A. von Hayek, junto de Murray Rothbard e Henry Hazlitt, e de nomes que exerceram forte influência sobre ela, como Frédéric Bastiat. Even- tualmente, autores não ligados a essa escola de pensamento apareceram como uma forma de complementar ou explicar um ponto da análise, a exemplo do historiador britânico Niall Ferguson ou do documentarista e historiador sueco Johan Norberg. Por fim, vem a conclusão, a qual apresenta os resultados obti- dos ao longo do desenvolvimento da monografia.

TCCs 2019_2 --- 9 1. O Jornalismo Econômico e seu papel

O Jornalismo Econômico, apesar de seu papel de destaque nas reda- ções atuais, nem sempre esteve no topo da hierarquia jornalística. A imprensa brasileira, por exemplo, segundo Nelson Werneck Sodré (1999), surgiria como instrumento oficial e por iniciativa oficial com a vinda de D. João VI em 1808. Tudo o que era publicado passava pela censura da corte, evitando o surgimento real de qualquer veículo de oposição dentro do território colonial. Isso não impediu, contudo, o surgimento de críticas à situação política no país. “Papel específico teve, sem dúvida, oCorreio Brasiliense, mas é discutível sua inserção na imprensa brasileira [...] pelo fato de não ter surgido e se man- tido por força de condições internas, mas de condições externas” (SODRÉ, 1999, p. 20). De acordo com o autor, diversos outros exilados tomariam inicia- tivas semelhantes à de Hipólito da Costa, criador do Correio, todos entrando clandestinamente no país e com o intuito de fomentar a discussão política no país e apresentar doutrinas e visões que não seriam aprovadas pela censura Real. Dessa forma, a imprensa brasileira viu, durante mais de um século, a polí- tica assumir as rédeas das redações e ditar os rumos de seus veículos.

1.1. História e Contexto Somente no início da década de 1970 as páginas sobre economia su- biriam ao trono, com o que Bernardo Kucinski (2000) chamou de “desordem monetária”. Como ele explica em seu livro dedicado a esta editoria, foi graças a esse fenômeno que a “inflação e crises cambiais tornaram-se dramas do coti- diano” (p. 14). O caos econômico que coincidiu com a abolição do padrão-ouro nos EUA deu às editorias dedicadas ao mercado a oportunidade de ouro para tirar o posto de liderança da política nos noticiários. De acordo com Paula Puliti (2013), porém, antes disso, da virada do Sé- culo XIX para o XX até o período mencionado por Kucinski, o principal tema do noticiário brasileiro era a política. Apesar de, como explica a autora, já nesta época existir um jornalismo econômico altamente especializado e acanhado que tratava principalmente dos acontecimentos do mercado agrário-exporta- dor. Já naquele tempo, também, os principais leitores dos noticiários econômi- cos eram especialistas. Suely Caldas (2003) segue a mesma linha. Ela aponta que o jornalismo econômico é tão antigo quanto a imprensa, estando sempre presente nos no- ticiários do mundo todo. Assim como Puliti, Caldas lembra que o jornalismo

TCCs 2019_2 --- 10 econômico brasileiro nos séculos XIX e início do XX esteve intimamente rela- cionado ao mercado agrário-exportador, mais especificamente do café. Porém, durante a Era Vargas, vieram dificuldades para a imprensa como um todo. O Estado de S. Paulo1, como lembra Caldas (2003), chegou a sofrer intervenção direta do governo Vargas, lembrado por sua intensa censura. Inclu- sive, durante os primeiros anos do regime, O Estado exerceu grande resistência ao novo governo, que acabou por adotar uma política de morde e assopra em relação a São Paulo. Não agrada tanto aos paulistas para que eles não achem que, por serem detentores da economia mais forte do Brasil, possam vir a dar as cartas no governo, nem lhes desagrada a ponto de empurrá-los para a revol- ta. (PIGALLO, 2011, p. 95) Se por um lado O Estado23 se opunha ao novo governo pelas suas políti- cas crescentemente antiliberais, a Folha da Noite e a Folha da Manhã, que dariam à luz a Folha de S. Paulo, decidiram ficar ao lado do futuro ditador desde o início de seu regime. Assim, sob essa dança de poder e censura que marcaram os longos 15 anos da Era Vargas, o jornalismo econômico (e a imprensa de modo geral) viu poucas oportunidades para prosperar. Quando, no segundo governo de Getúlio, durante o período de redemocratização, a economia prosperou sob o nacional-desenvolvimentismo, “as notícias econômicas também prosperaram, embora ainda fossem publicadas de forma dispersa, em páginas diferentes, sem organização” (CALDAS, 2003, p. 12). A organização começou a tomar forma durante a Ditadura Militar, mesmo que por uma razão mais que desagradável. Novamente, a censura co- locaria o jornalismo em rédeas curtas. E de acordo com Suely Caldas, parecia não obedecer a nenhuma lógica, alcançando, muitas vezes, o absurdo, indo de notícias sobre surtos de meningite a declarações de ministros do próprio go- verno. Essa intransigência do regime militar, que ia da censura à maquiagem de dados e indicadores, como em todo governo totalitário, forçou o jornalismo econômico a se especializar na economia popular.

1 Assim como os jornais paulistas Diário da Noite e o Diário de S. Paulo, O Estado havia flertado com Getúlio Vargas e a Aliança Liberal antes da Revolução de 1930. Porém, aos poucos eles abandonaram o barco, “à medida que os novos donos do poder iam se revelando mais autoritários que liberais.” (PIGALLO, 2011, p. 93)

TCCs 2019_2 --- 11 Foi uma experiência positiva, que estimulou donas de casa a praticar o saudável hábito de ler jornal [...]. Embora os próprios jornalistas pouco valorizassem a área de abastecimento, ela caiu no gosto dos leitores e as notícias publicadas ali, com frequência, ganhavam chamada na primeira página. (CALDAS, 2003, p. 19)

Daí começou, de fato, a ascensão e organização da editoria de econo- mia nos jornais. Por isso, muitos caem no engano, como aponta Caldas (2003), de afirmarem que o jornalismo econômico foi fruto da Ditadura Militar. Mas como ficou claro ao longo dos parágrafos anteriores, essa vertente noticiosa já estava presente na imprensa desde o século XIX, com colunistas como Cinci- nato Braga e o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Austregésilo de Athayde. Porém, a ascensão ao poder não foi, necessariamente, seguida de uma produção de conteúdo mais didático e menos técnico. “Uma grave disfunção afeta o jornalismo dedicado à economia. A maioria dos leitores e dos telespec- tadores, mesmo os instruídos, como os estudantes universitários, não conse- guem decodificar o noticiário econômico.” (KUCINSKI, 2000, p. 14). Fica aí o efeito da interferência causada pelos termos técnicos aplicados por jornalistas cuja missão deveria ser atualizar e informar os leigos a respeito daquilo que ocorre em uma das áreas mais complexas e vitais da sociedade moderna. Para Kucinski, a causa é uma maquiagem ideológica neoliberal, que prioriza seduzir o leitor, e não inteirá-lo. Mas essa ideia, embora seja plausível no contexto em que o autor escreveu o livro – fim do século XX –, não é mais tão verdadeira. Se, nos dias atuais, for tomada como absoluta a percepção de Kucinski sobre ideologia, recai-se sobre uma falácia da composição, ou, de acordo com Thomas Sowell (2017), a crença de que a verdade sobre uma parte seja verdade também sobre o todo. Assim como não se pode negar a existência de editorias e até mesmo veículos orientados por uma pauta neoliberal, não é adequado presumir que isto seja válido para toda a mídia. Até porque, na academia e política brasileiras, desde meados dos anos 1940, o pensamento econômico predominante segue as ideias de Roberto Si- monsen. Como explica Andre Lara Resende,

o que Simonsen trazia de novo à discussão [sobre o desenvolvimento bra- sileiro] não era a proposta de industrialização, mas a tese de que não era possível depender apenas da iniciativa privada para promovê-la. Para Simonsen, o esforço de industrialização deveria ser liderado pelo Estado (2017, p. 23)

TCCs 2019_2 --- 12 O pensamento liberal só chegou de fato ao poder político aqui na se- gunda metade dos anos 1990, ficando lá até a crise de 2008, quando começou a perder espaço para seu arquirrival novamente. Na verdade, a ideologia pre- dominante no imaginário popular e na agenda da maioria dos partidos continua sendo a nacional-desenvolvimentista proposta há mais de 70 anos por Roberto Simonsen. Tanto que a visão do Estado como empreendedor/facilitador voltou facilmente ao comando nos mandatos de Dilma Rousseff. Os problemas eco- nômicos mundiais no primeiro ano de mandato da presidente fizeram renascer o Novo Brasil Velho,aquele que jamais desaparecera: suspeitas de interferência política na condução da política monetária; o resgate do debate entre estabili- zação e crescimento, à la Simonsen versus Delfim Netto; crédito público farto; escolha de campeões nacionais. Era esse o Brasil que renascia em 2011, [...], que parecia aniquilado depois de mais de quinze anos de esforço para estabilizar a economia e extirpar a inflação (BOLLE, 2016, p. 57-58) Mesmo que, no governo Temer, algumas pautas consideradas neolibe- rais tenham voltado ao jogo, o intervencionismo de Simonsen continua a exer- cer uma influência considerável sobre a população. O jornalismo econômico não fez mais do que seguir a maré no cenário brasileiro da época.

1.2. As questões técnicas do Jornalismo Econômico

E para entender por que o jornalismo econômico apenas seguiu a maré do cenário brasileiro na época, é preciso recorrer ao argumento de Suely Caldas (2003), que defende que o próprio jornalista tem culpa em tornar o jornalismo econômico difícil e chato. Isso ocorre, por exemplo, quando ele se limita a redigir a sua matéria no economês: “uma série de explicações técnicas, um amontoado de expressões específicas (muitas em inglês), que realmente poucos entendem (às vezes, nem mesmo ele, o repórter)” (p. 9). Essa mania do repórter de simplesmente replicar o que sua fonte tem a dizer é uma explica- ção mais condizente com a realidade brasileira atual. Pode-se considerar este hábito uma consequência dos mais de 35 anos de ditaduras pelos quais o Brasil passou no século passado. Como diz a autora, a censura do Regime Militar4 fez com que a imprensa se limitasse a publicar as

2 Embora Suely Caldas se refira apenas à censura dos Militares, é importante lembrar que o governo Vargas, especialmente durante a fase do Estado Novo, também tem sua parcela de culpa. Afinal, uma das práticas de Getúlio, como relatam Oscar Pigallo (2011) e a própria Suely (2003), era a de intervir diretamente sobre os jornais que tentassem driblar a censura prévia, como ocorreu com O Estado de S. Paulo.

TCCs 2019_2 --- 13 informações oficiais, pois a ausência de oposição significava ausência de críti- cas e contestações. Por se tratar do período da ascensão efetiva do jornalis- mo econômico, esta prática parece ter se enraizado nas diretrizes da editoria. Além disso, ela tem consequências sérias sobre a transparência da informação. Ao segui-la, o repórter se abstém do seu papel como jornalista, a saber, o de informar a população por meio de uma linguagem objetiva e com- preensível. Talvez fosse um método efetivo durante os anos da ditadura, quan- do o jornalismo econômico abordava apenas a economia popular/doméstica, preocupando-se em não transgredir os rigorosos limites impostos pelo AI-5. Mas este não é mais o caso. Agora, quem dita o que o jornalismo econômico deve cobrir são os acontecimentos no mercado especulativo e financeiro, infinitamente maior e mais complexo, que vai das ações nas bolsas de valores ao mercado cambial. Sendo assim, uma das causas dos ruídos de co- municação entre notícia e leitor é “a falta de conhecimento do jornalista [que] impede tanto a exposição coerente de suas ideias, como a filtragem crítica das premissas falsas” (KUCINSKI, 2000, p. 22). O efeito mais elementar da prática mencionada por Suely Caldas é fazer com que os cadernos de economia falhem em despertar interesse do leitor. Por exemplo, é difícil crer que a audiência média se interesse por uma matéria intitulada Bolsa dispara puxada por ações de estatais e dólar cai para a faixa de R$3,755 quando pode, em um clique ou folhear, ler a matéria Furacão Michael devasta a Flórida e deixa ao menos sete mortos nos EUA6, ou então o artigo Bolsonaro é neofascista?7. Mesmo que não estejam explícitos, diversos termos e conceitos téc- nicos são necessários para a compreensão da primeira manchete. Nas outras duas, porém, o apelo à curiosidade do público é mais efetivo. Afinal, são cha- madas objetivas, que não exigem conhecimentos técnicos para que se possa entender o assunto. Em segundo lugar, pior que falhar em gerar interesse, o abuso de termos técnicos pode induzir o leitor a conclusões falaciosas. Quando isso ocorre, pode-se dizer que o jornalista faltou, mesmo que parcialmente, com seus deveres mais fundamentais. 5 08/10/2018, Folha de S. Paulo. Disponível em: . 6 11/10/2018, Folha de S. Paulo. Disponível em: . 7 12/10/2018, Folha de S. Paulo. Disponível em: .

TCCs 2019_2 --- 14 Por isso Suely Caldas (2003) lembra que existe apenas uma única lin- guagem jornalística. Mesmo que o termo utilizado pela fonte seja crucial para o entendimento da fala, é preciso que o repórter de economia tenha conheci- mento suficiente para traduzir aquilo em termos cotidianos e de fácil entendi- mento. “Por isso, o jornalismo econômico obriga [...] à aquisição contínua do conhecimento. Neste potencial de autodidatismo, ao mesmo tempo crítico e cognitivo, está sua beleza e seu atrativo”. (KUCINSKI, 2000, p. 22). Este con- selho, embora possa parecer trivial a alguns, é crucial para que se realize um jornalismo econômico mais eficiente. Até porque, se “o comportamento de uma economia de um país, re- gião ou cidade influencia a vida das pessoas e elas precisam ser devidamente informadas para poder tomar decisões” (CALDAS, 2003, p. 11), o jornalismo econômico trabalha com algo que, no fundo, é a base de toda a ação humana. Portanto, é fundamental que haja uma preocupação em traduzir a terminologia especializada. O mesmo vale para o abuso da matemática disseminado pela ma- croeconomia. Como explica Friedrich von Hayek (2017), esse excesso é a coisa mais próxima da mágica que os economistas profissionais já encontraram, por ser muito eficaz em impressionar políticos sem formação na área. E, se por um lado, as fórmulas e algarismos seduzem os homens do poder, por outro eles enfeitiçam os leitores leigos e comprometem ainda mais o entendimento claro da notícia. Como a resolução da questão macroeconomia versus utilidade marginal se trata mais de um problema econômico do que jornalístico, não é necessá- rio aprofundar-se nela aqui. Basta ter em mente a afirmação de André Lara Resende (2017), de que os complexos modelos macroeconômicos atuais não podem ser verdadeiramente estimados. Ou seja, mesmo entre os economistas, o uso da matemática e dos números na corrente dominante mais dificulta do que facilita a compreensão dos cenários financeiros ao redor do globo. Assim, fica evidente por que o jornalista deve ter profundo conhecimento do assunto do qual está tratando, caso queira produzir conteúdo de qualidade e de fácil compreensão para o público geral.

1.3. O viés ideológico no jornalismo econômico

Também deve haver uma preocupação não apenas com os procedimentos técnicos, mas também com a honestidade no jornalismo. Para Stefan Vladutescu (2012), ela precisa da imparcialidade para se manter viva. O romeno prossegue argumentando que “sempre que a autonomia e imparcia- lidade (honestidade) são violadas, o jornalismo se torna negativo [...], ele se torna jornalismo antiético” (VLĂDUŢESCU, 2012, p. 123). É um argumento

TCCs 2019_2 --- 15 complementar à fala de Kucinski no início deste capítulo sobre a presença de vieses ideológicos no processo jornalístico. Logo, cabem aqui os argumentos de Flávio Gordon. Ao longo do livro A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil, o autor carioca explica como as ideias de Antonio Gramsci ganharam popularidade entre a esquerda no Brasil e no mundo – a saber, ao desviar o foco da disputa de classes da economia para a cultura, facilitando a disseminação das ideias dos pensadores. Em meio a isso, Gordon ressalta que, para o italiano, todo indivíduo de grande importância em determinado grupo pode ser considerado um intelectual or- gânico (seja ele um jornalista, um cineasta, um publicitário, um artista, etc.). Já o acadêmico, que se dedica única e exclusivamente aos estudos de uma área de conhecimento (mas nem por isso está isento da força ideológica de sua classe) seria o pensador tradicional Gramsciano. Além destas duas categorias distintas de pensadores, a teoria do mar- xista italiano estabelece dois tipos de filosofia diferentes: “umafilosofia espontâ- nea, embutida na linguagem, na religião popular, no folclore, no senso comum, e uma filosofia crítica, elaborada conscientemente pelo sujeito” (GORDON, 2017, p. 95). Para ele, a atuação e o papel desta segunda filosofia deveriam ser políticos, com os intelectuais agindo como direcionadores do pensamento do homem da massa. Evidentemente, essa corrupção teve grande impacto sobre a atuação jornalística. Da boca de “acadêmicos-militantes [...], nossa imprensa absorveu também mais que argumentos intelectuais em favor de tal ou qual partido, [absorveu] um marxismo cuja forma Nelson Rodrigues já diagnosticara como ‘difusa, volatilizada, atmosférica’” (GORDON, 2017, p. 117). Esse marxismo at- mosférico da academia, ao longo do tempo, deixou suas marcas na linguagem jornalística através do uso cada vez mais frequente de eufemismos e da supres- são de expressões em nome da neutralidade. Disputas ideológicas à parte, o fenômeno descrito por Gordon explici- ta todo um processo de submissão da redação jornalística à fala de especialistas. No afã de ser imparcial, o jornalista se limita a transcrever as falas ou os dados obtidos com sua fonte, em detrimento de uma avaliação crítica do conteúdo das declarações. Contraditoriamente, trata-se de uma prática que facilita tanto a cobertura tendenciosa como a disseminação de falácias e mentiras – o que compromete não só a imparcialidade, mas também a credibilidade da imprensa. Pode-se dizer então que, atualmente, o jornalista tende a priorizar a dialética do discurso dos especialistas, colocando a lógica em segundo plano. Como explica Arthur Schopenhauer, “para definir bem a dialética, deve-se, in- dependentemente da verdade objetiva (que é coisa da lógica), observá-la sim- plesmente como a arte de ter razão” (2014, p. 28). Portanto, ao seguir à risca o

TCCs 2019_2 --- 16 método jornalístico, ele se contenta em averiguar se dada afirmação aparenta ser verossímil, mas não vai profundamente atrás da verdade objetiva da fala de sua fonte, ou seja, de sua construção lógica. Os últimos parágrafos servem para validar a fala de Kucinski a respeito da necessidade de constante aprendizado na editoria econômica. Não basta ir atrás dos argumentos de economistas, homens de negócios, autoridades finan- ceiras e grupos sindicais. É preciso um vasto conhecimento prévio de todas as premissas possíveis, bem como uma análise minuciosa da verdade objetiva nelas contidas, para que se possa compreender as falas dessas fontes e colocá-las de maneira compreensível para o público. No entanto, o processo elucidado por Gordon acaba colocando em xeque a visão de Kucinski. Acrescentando-se a isso o relativamente curto pe- ríodo de tempo das ideias liberais no poder – como explicado por Lara Re- sende –, não é difícil compreender por que surgem, com frequência, críticas generalizadas ao liberalismo econômico, muitas vezes baseadas em interpreta- ções equivocadas e distorcidas das teorias propostas por linhas de pensamento deste espectro ideológico. E, se este é o caso com a visão liberal como um todo, pode-se perceber, também, por que uma introdução às ideias da Escola Austría- ca de Economia é necessária antes das análises dos artigos propriamente ditas.

2. A Escola Austríaca de Economia

O pensamento Austríaco foi formalizado como uma escola econômica de fato somente na segunda metade do Século XIX – mas suas origens podem ser traçadas para muito antes disso. Como observa Ubiratan Jorge Iorio (2017), as raízes da Escola Austríaca se encontram muito próximas do catolicismo e do pensamento continental europeu. É relevante mencionar essa característica como forma de diferenciar essa linha de pensamento de outras consideradas ortodoxas, ou mainstream.

Com efeito, o que se convenciona chamar de mainstream economics – em que se incluem os ramos mais divulgados e estudados da Economia, como o monetarismo e o keynesianismo em suas diversas manifestações – tem raízes marcadamente britânicas, a partir das obras de clássicos importantes, como David Hume (1711-1776), nascido em Edimburgo e o principal deles, Adam Smith (1723-1790), muito provavelmente nascido em Kirkcaldy (onde foi batizado), sendo ambos, portanto, escoceses. (IORIO, 2017, p. 43)

TCCs 2019_2 --- 17 A Escola Austríaca, no entanto, apresenta raízes “nos pós-escolásticos espanhóis, na França, na Itália e em países de língua alemã” (IORIO, 2017, p. 43-44). Com essas poucas linhas, já é possível notar que a visão desta linha de pensamento, embora encontre abrigo sob o guarda-chuva do liberalismo eco- nômico, não pode ser considerada irmã-gêmea de escolas como a de Chicago, que exerceu uma influência muito grande sobre o pensamento econômico, em especial nas Américas. Segundo o autor, pode-se considerar inclusive os trabalhos de Santo Tomás de Aquino como influenciadores da Escola Austríaca. Isso é possível tendo em vista os diversos pontos que o frade dominicano defendia que foram absorvidos pelos escolásticos e pós-escolásticos e, praticamente 700 anos de- pois, por Carl Menger.

Observando como evolveu o pensamento econômico desde Santo Tomás de Aquino e principalmente com os escolásticos tardios, vemos com clare- za praticamente todas as características da Escola Austríaca de Economia: Subjetivismo; Individualismo [...]; Princípio da ação humana; Preferências intertemporais [...]; Liberdade de preços [...]; Informações [para realizar uma ação] insuficientes, dispersas e interpretadas subjetivamente; [...] Como vemos, Santo Tomás de Aquino é a origem de tudo [...]. (IORIO, 2017, p. 70)

Na citação acima, foram mantidas apenas as características que têm um papel central na análise desenvolvida nesta monografia, embora existam muitas outras que definam a Escola Austríaca como uma linha de pensamento inde- pendente das outras, mesmo dentro do liberalismo. Nos subcapítulos seguintes, foram analisadas três questões centrais desta escola econômica que servem para compreender melhor de onde vêm os argumentos usados ao longo da monografia.

2.1. O subjetivismo Como já mencionado anteriormente, a Escola Austríaca diferencia-se de outras linhas liberais por seu enfoque no subjetivismo como razão para determinação de preços, característica herdada dos pensadores escolásticos do século XVI. A teoria do valor subjetivo, tão central para esta linha de pensa- mento econômico, defende que o preço é determinado pelas preferências dos consumidores, individuais e incompletas.

TCCs 2019_2 --- 18 É possível identificá-la, por exemplo, na teoria da utilidade marginal, fundamentada por Carl Menger e desenvolvida ao longo dos anos por seus seguidores. Para ela, segundo F.A. Hayek (2017), o valor não é inerente às coisas e produtos, independendo da ação humana. Ele é, na verdade, o resultado das relações entre indivíduo e produto, o que permite a uma pessoa levar em conta se o produto X vale mais ou menos do que o produto Y. Todavia, essa relação não se limita, como no caso de outras escolas econômicas, à busca pela maximização da utilidade dos recursos. Por ser subje- tiva, a avaliação do valor de um bem leva em conta todas as suas características, indo além da simples questão de oferta e procura. Ao determinar o valor que um carro deveria ter, por exemplo, o indivíduo também toma por base caracte- rísticas como “idade, design, estilo, cor, tamanho, potência, materiais utilizados, eficiência no consumo e confiabilidade, e várias dessas categorias apresentam múltiplas dimensões” (THORNTON, 2018, p. 130), além de inúmeras outras que ele achar relevantes na hora de adquirir seu novo automóvel. Isso ajuda a explicar, em linhas gerais, por que João compra apenas produtos da marca A, quando poderia muito bem adquirir um produto semelhante e mais barato da marca B. Apesar de sua relevância para a formação do pensamento escolástico e, futuramente, para as bases teóricas da Escola Austríaca sobre a economia, a visão do valor subjetivo seria abandonada por outros pensadores entre os sé- culos XVII e XIX. Nesse processo, o destaque vai para o papel do sucessor de Gershom Carmichael (1672-1719) e tutor de Adam Smith (1723-1790), Francis Hutchenson (1660-1739). “[...] Francis Hutchenson questionou a teoria do valor subjetivo e em seu lugar difundiu a teoria do trabalho e do custo de produção como teorias de valor” (MIRANDA; SALAZAR, 2018, p. 167), visão que seria então consolidada e difundida por Adam Smith em A Riqueza das Nações. Viu-se, então, a adoção de uma teoria que constatava o valor como algo inerente ao produto e à forma como ele é produzido e para que fim será utilizado pelo consumidor, sem levar em conta o subjetivismo de cada ser humano.

2.2. A ação humana e o mercado como um processo de descoberta

Dois pontos centrais e complementares da teoria econômica austríaca são o princípio da ação humana e a compreensão do mercado como um processo de descoberta. Assim como a história, a sociedade e o mercado podem ser compreendidos como “uma ordem espontânea, ou seja, um processo dinâmico de acontecimentos e decisões movidos pela ação humana, que não obedecem a estruturas previamente planejadas” (IORIO, 2017, p. 35).

TCCs 2019_2 --- 19 Este conceito de ordem espontânea, embora possa ser encontrado nas teorias de diversos autores desta linha de pensamento, foi desenvolvido, em especial, por F.A. Hayek. Para ele (2017), é justamente a adesão dos indivíduos, voluntária ou não, às práticas e tradições que mantêm esta ordem viva, que permitem o desenvolvimento da humanidade e separarão práticas saudáveis daquelas nocivas aos seres humanos. Nas palavras do próprio autor, “ao obe- decer às tradições morais geradas de forma espontânea que subjazem à ordem do mercado competitivo [...], nós geramos e acumulamos mais conhecimento e riqueza do que jamais seria possível [...] em uma economia de controle central” (HAYEK, 2017, p. 14). Mais do que isso, segundo Mises (2017), o processo de mercado pode ser considerado uma forma de plebiscito constante, por meio do qual os agen- tes que atendem às exigências e necessidades do consumidor são mantidos em atividade, enquanto aqueles que não o fazem são eliminados pela concorrência. Em outras palavras, é a ação humana, princípio segundo o qual “a ação [...], é a resposta significativa do ego a estímulos e às condições de seu entorno, é a adaptação consciente de um indivíduo ao estado do universo que determina sua vida”8 (MISES, 1998, p. 11), a responsável pelas mudanças de uma sociedade. É por isso que nas teorias da Escola Austríaca há uma presença tão forte do individualismo e do subjetivismo para explicar o funcionamento do mercado e um ceticismo com relação à eficácia da intervenção governamental e do con- trole central. Afinal, se todos os indivíduos tomam decisões constantemente com base nas informações limitadas que têm às suas disposições, não há por que imaginar que um pequeno grupo, por mais brilhantes que sejam seus integran- tes, seja capaz de decidir melhor do que milhões de indivíduos interdepen- dentes e em harmonia. Antes de serem um grupo de mentes brilhantes, eles ainda são indivíduos com conhecimento limitado a respeito de seus contextos. Ou, nas palavras de Hayek (2017, p. 120), na hora da tomada de decisão, “os membros do grupo [...] comunicarão sobretudo conclusões tiradas de seus respectivos conhecimentos individuais do problema presente”.

2.3. Os conceitos e o mercado de trabalho

Embora os itens 2.1. e 2.2. não abordem todas as características da Escola Austríaca, eles dão um panorama sobre pontos que podem ser aplicados para a compreensão do funcionamento do mercado de trabalho. É possível, por exemplo, estabelecer a escolha de um emprego ou profissão como análoga à

8 Tradução livre do autor

TCCs 2019_2 --- 20 escolha por um produto ou serviço, sem que sejam prejudicados os princípios dessa linha de pensamento. Da mesma forma, tendo por base a noção elucidada por Ludwig Von Mises (2018), de que o trabalhador vende sua mão de obra como produto ao empresário, também é possível considerar o indivíduo que procura inserir-se no mercado de trabalho como o vendedor de um produto. Ou seja, assim como no mercado de consumo, as duas partes tentam convencer-se de que são dignas de uma oportunidade para provar seu valor: os empregadores por meio da oferta de salários melhores e de um ambiente de trabalho saudável, e os empregados por meio da especialização e qualificação de sua mão de obra.

3. A Folha de S. Paulo, seu papel no jornalismo e a cobertura da Reforma A Folha de S. Paulo tornou-se um dos jornais de maior expressão em seu estado de nascimento e no Brasil desde sua criação em 1960, quando fo- ram fundidas as três “Folhas”: da Manhã, da Tarde (criada em 1949) e a da Noite. Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) publicados pelo Poder 360, o total de assinaturas digitais e circulação de edições impressas da Folha em 2017 (ano do trâmite da Reforma Trabalhista) foi superior a 285 mil exemplares9. Esse número colocou a publicação acima de todos os outros gran- des jornais do país, com uma margem de aproximadamente 42 mil exemplares impressos e digitais a mais que o segundo colocado. Dessa forma, a Folha é a maior publicação de seu estilo no país, mesmo que outros jornais, com outros perfis, possam ultrapassar sua tiragem. Com tamanha proporção, é seguro dizer que o papel da Folha na for- mação da opinião pública a respeito da Reforma Trabalhista foi primordial. Para isso, no entanto, é preciso entrar mais afundo nas diretrizes básicas do jornal. Na última edição de seu Manual da Redação, publicado em 2018, o veículo esta- beleceu, dentre outros princípios,

[...] 3. Priorizar temas que, por afetarem a vida da coletividade ou de parcelas expressivas da população, sejam considerados de interesse público; 4. Pro- mover os valores do conhecimento, da solução pacífica dos conflitos, da livre iniciativa, da equalização de oportunidades, da democracia representativa, dos direitos humanos e da evolução dos costumes; 5. Abordar os assuntos com disposição crítica e sem tabus [...], questionar as autoridades públicas e os

9 De acordo com o site da Folha de S. Paulo, a circulação total em novembro de 2017 apurada pelo ICV era superior a 292 mil exemplares. No entanto, foram escolhidos os núme- ros divulgados pelo Poder 360 porque eles indicam a tiragem apurada pelo ICV entre dezem- bro de 2016 e dezembro de 2017.

TCCs 2019_2 --- 21 poderes privados [...]; 6. Cultivar a pluralidade [...], sobretudo quando houver antagonismo entre as partes [...]; 8. Manter atitude apartidária, desatrelada de governos, oposições, doutrinas, conglomerados econômicos e grupos de pressão; (FOLHA DE S. PAULO, 2018, p. 13-14)

Estas diretrizes são bastante semelhantes àquelas encontradas no edi- torial de 10 de março de 1945, quando as Folhas passaram para o controle de José Nabantino Ramos, Clovis Queiroga e Aldicdes Ribeiro Meirelles, grupo que, segundo Gisela Taschner (1992), seria responsável pela criação da terceira publicação do grupo, a Folha da Tarde e, em seguida, no ano de 1960, pela con- glomeração delas sob o título Folha de S. Paulo. “As Folhas, seguindo a sua velha tradição de imparcialidade, não defenderão partidos políticos. [...] Imparciais na apreciação e julgamento dos acontecimentos, [...] defenderão [...] o regime democrático” (MEIRELLES, 1945, p. 1). Essa orientação, segundo Oscar Pilagallo (2011), fez com que Nabanti- no e seus parceiros colocassem as Folhas no centro do espectro político brasi- leiro embora nem sempre se mantivessem fiéis aos princípios defendidos. Uma possível explicação está no fato de que, segundo Taschner (1992), foi a partir desta transição de proprietários que as Folhas tornaram-se uma empresa que produz jornalismo visando o lucro. A mesma filosofia seria adotada por Octavio Frias após adquirir a em- presa em 1962, adaptando as práticas do jornal, como a extinção, segundo Pilagallo (2011), das assinaturas vitalícias que haviam se tornado de uma fonte de lucro num poço de prejuízo. Outra forma de garantir a lucratividade da em- presa é dando ao público o conteúdo que ele quer ter e apoiando aqueles que mais têm a ganhar com alguma causa, estratégia que seria adotada pelo jornal, por exemplo, durante o mandato de João Goulart.

A maior contribuição da Folha para o golpe se deu no campo da difusão de ideias antipopulistas. Em janeiro de 1963, [...] o jornal promoveu, com o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, o Congresso Brasileiro para Definição das Reformas de Base. Segundo Dreifuss, o congresso [...] constituiu um fó- rum para orientar a elite em relação às reformas institucionais e estruturais que Jango queria implementar. [...] Entre outras proposições, o congresso defendeu o não reconhecimento do PCB [Partido Comunista Brasileiro] e a negação do direito de voto aos analfabetos. As críticas do jornal ao governo, que sempre foram contundentes, aumentaram de tom às vésperas do golpe. A Folha trabalhava com a hipótese de que o presidente pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta. (PILAGALLO, 2011, p. 157-158)

Ao longo da ditadura militar, embora fizesse críticas pontuais e perifé- ricas ao regime, segundo Pilagallo (2011), a Folha manteria seu apoio ao gover-

TCCs 2019_2 --- 22 no, aproveitando a situação econômica favorável para crescer frente aos con- correntes, comprando jornais menores e investindo em novas tecnologias de produção, como a impressão offset. Para aumentar a competitividade do grupo, Frias inclusive ressuscitaria a Folha da Tarde em 1967, segundo Pilagallo (2011), para concorrer com o Jornal da Tarde, irmão do Estado de S. Paulo. Tratava-se de uma iniciativa da Folha para conquistar leitores do meio estudantil com um viés contrário ao regime militar, missão dada a Jorge Miranda Jordão. “Miranda Jordão montou uma redação de esquerda, com diversos jor- nalistas ligados a organizações clandestinas. [...] O mais proeminente deles, Frei Betto, [...] começou como repórter responsável pela cobertura do movimen- to estudantil” (PILAGALLO, 2011, p. 201). Contudo, essa fase de contestação terminaria após o AI-5, quando o jornal passaria tanto a ser censurado pelo governo, junto a outros veículos de imprensa, como a sofrer com a autocensura por parte de Cláudio Abramo. “‘Seguíamos as ordens que vinham pelo telefone [...]. ‘Atacar a censura foi uma opção da empresa. [...] Eu mesmo fazia a censu- ra, salvaguardando os colegas.” (PILAGALLO, 2011, p. 179). Esse fenômeno se manifestou de maneira semelhante no Estado de S. Paulo e apresentou-se como um forte gargalo sobre a produção do jornalismo político. E foi graças a essa pressão do governo sobre as redações que o jorna- lismo econômico brasileiro, segundo Pilagallo (2011), passou a prosperar. Ainda assim, a Folha viria a procurar por novos rumos editoriais ao longo dos anos 1970.

Em janeiro, Frias foi chamado ao Rio de Janeiro para um encontro com o general Golbery do Couto e Silva, futuro chefe da Casa Civil, que expôs ao empresário o projeto de abertura política [...]. Na Folha, a conversa de Frias com Golbery coincidiu com discussões internas com vista a transformar editorialmente o jornal, afastando-o do regime militar e aproximando-o da sociedade civil. [...] No fim, decidiu-se que, em qualquer situação, a Folha deveria seguir uma linha que ficasse à esquerda da adotada pelo Estado [...] A opção atendia também à necessidade de posicionamento do jornal no mercado, ocupando um espaço que, na época, encontrava-se vazio (PILAGALLO, 2011, p. 215)

Ainda assim, apesar dessa decisão, o jornal passaria a abrir espaço para intelectuais de várias tendências, indo contra a vontade de Cláudio Abramo, mas obedecendo as ideias de Frias, segundo Pilagallo (2011). Essa mudança de posicionamento e de pessoal faria a publicação ter diversas fagulhas com o governo, segundo o autor, ao longo de toda a década de 1970, ao mesmo tempo que se aproximava do desejo do público de ver o final do regime militar. Até que, com o fim da ditadura, os jornais brasileiros e paulistanos tiveram de tomar uma posição com relação aos rumos do país.

TCCs 2019_2 --- 23 Segundo Pilagallo (2011), a Folha seria o único veículo engajado des- de cedo no movimento pelas eleições presidenciais diretas, enquanto outros ainda apareciam hesitantes frente à ideia. Observou-se, desta forma, uma nova retomada de um dos princípios editoriais estabelecidos pelo grupo que seria responsável pela criação da Folha de S. Paulo ainda em 1945: a defesa do regime democrático. Devido a seu entusiasmo, “no auge da campanha, a Folha, já chama- da de ‘jornal das Diretas’, passou a participar dos atos que cobria” (PILAGAL- LO, 2011, p. 233). Foi em 1984, ano final das Diretas Já, que a Folha viria a criar seu Manual geral da redação da Folha de S. Paulo, segundo Gisela Taschner (1992), com o intuito de substituir as velhas normas de redação. Seria ele que, como na edição referenciada no início do capítulo, passaria a orientar os jornalistas empregados pelo jornal sobre as diretrizes a serem seguidas para garantir o posicionamento do jornal no debate social e a forma como suas mensagens são passadas. Dado este breve panorama histórico da Folha de S. Paulo, nota-se uma tendência da publicação em colocar-se em oposição ao poder durante pontos cruciais da história brasileira, principalmente no que diz respeito à política. Mais notavelmente, desde os anos 1970, o veículo assumiu uma posição mais à es- querda no espectro político. Essa divisão entre direita e esquerda, contudo, por ser limitante e confusa demais, foi evitada ao máximo ao longo da monografia. Ademais, desde os anos 1940, procurou manter-se fiel à defesa da democracia, com raros desvios (como o apoio e o silêncio frente ao golpe militar e ao início da ditadura). Na cobertura da Reforma Trabalhista, este padrão voltou a se repetir, com a publicação dando espaço às vozes a favor e contra o projeto, com uma leve predominância de agentes contrários a ele – de sindicalistas a juízes do trabalho e economistas. Isso não significa, é claro, que ela tenha feito oposição ou se colocado explicitamente a favor da Reforma, mas trouxe consequências palpáveis para a pluralidade do debate político-econômico em torno da ques- tão.

3.1. Crítica à cobertura da Reforma Trabalhista pela Folha de S. Paulo Com o histórico da publicação já exposto, cabe agora analisar e criticar a cobertura da Reforma Trabalhista feita pela Folha de S. Paulo sob a ótica da Escola Austríaca de Economia. O principal objetivo, como abordado na Intro- dução da monografia, é avaliar como os conceitos propostos por esta escola de pensamento liberal e heterodoxo dialogam com os discursos e argumentos encontrados nas matérias escolhidas para análise, sejam elas editoriais, artigos de opinião ou notícias de fato.

TCCs 2019_2 --- 24 3.1.1. Entrega da Reforma Trabalhista ao Congresso (23/12/2016) O primeiro momento analisado foi a edição da Folha de S. Paulo publi- cada no dia em que o ex-presidente Michel Temer entregou sua proposta inicial ao Congresso – mais especificamente, à Câmara dos Deputados. Essa data pode ser considerada o marco inicial da cobertura jornalística a respeito da Reforma Trabalhista que viria a se tornar definitiva e traz um panorama inicial do posicionamento que a publicação escolhida para análise adotaria ao longo dos meses seguintes. Nos materiais escolhidos para análise, houve uma predominância do ponto de vista contrário à Reforma. Na notícia, por exemplo, foi incluída apenas a fala de um economista favorável às mudanças na CLT, contraposta pelos pon- tos de vista de dois sindicalistas e de um jurista contrário à proposta. No artigo de opinião, foi observada a perpetuação de velhos preconceitos contrários à iniciativa privada e ao funcionamento do mercado. Mesmo que estas questões não reflitam diretamente o pensamento da publicação, é preciso ter em mente que elas moldaram o debate acerca da Reforma para uma parcela significativa da população e, consequentemente, a repercussão das mudanças na opinião pública.

3.1.1.1. Editoriais: Impopular, sem se incomodar O primeiro material jornalístico analisado, de autoria de Bernardo Mel- lo Franco, apareceu na seção de editoriais da edição impressa da Folha de S. Paulo. O trecho dele que toca no assunto desta monografia é curto, embora permita um amplo espaço para discussão. Segundo o autor, Temer “citou um conselho do publicitário Nizan Guanaes, que o incentivou a acelerar reformas sonhadas pelo empresariado10 como a flexibilização da CLT” (FRANCO, 2016, p. 2). Existem três raciocínios diferentes que podem ser seguidos a partir do trecho em itálico. O primeiro, ainda que implícito, recai sobre a divisão da sociedade entre empresários (capitalistas), trabalhadores (proletários) e con- sumidores. Perpetua-se, assim, a ideia de que há uma divisão de classes rígida, e que não há relação entre os interesses destes diferentes grupos. Ludwig von Mises, contudo, desafia esta visão emIntervencionismo . No caso desta publicação, Mises comenta que “não parece ser neces- sário acrescentar que os consumidores não são apenas consumidores, e que a totalidade de consumidores é igual à totalidade de trabalhadores, empresários e capitalistas” (MISES, 2018, p. 104). Ou seja, numa economia de mercado, todos

10 Grifos do autor

TCCs 2019_2 --- 25 atuam como consumidores, não importa qual o posto assumido na divisão do trabalho. Por exemplo, uma medida que permita a flexibilização de salários (re- movendo a rigidez de categorias altamente sindicalizadas), pode vir a baratear a mão de obra. Como consequência, a produção fica mais barata, e o valor final do produto será reduzido. Isso, por sua vez, beneficia os consumidores – sejam eles empresários, trabalhadores ou os dependentes de um dos dois. Já o segundo raciocínio trata a flexibilização das normas trabalhistas como um jogo de interesses para os empresários, que seriam os únicos a ga- nhar com isso. Na realidade, o processo deveria seguir na contramão de uma “liberalização” da economia caso o objetivo fosse beneficiar somente os do- nos dos meios de produção, em detrimento dos outros grupos da sociedade. Afinal, uma situação conflituosa entre dois ou mais grupos da sociedade “não é inerente ao funcionamento de uma economia capitalista desobstruída, e sim resultado de políticas governamentais que interferem no funcionamento de mercado” (MISES, 2017, p. 74). Tomando o exemplo anterior, não é a flexibilização de leis salariais que cria conflitos e prejuízos no funcionamento de uma economia. Na verdade, es- tes problemas só surgem quando o Estado decide acatar aos pedidos de grupos de pressão por leis mais rígidas que beneficiariam, em tese, os trabalhadores. Por fim, o terceiro raciocínio tem elementos tanto políticos como eco- nômicos, pois vê o governo como o agente responsável por proteger deter- minada parcela da população de possíveis abusos por parte do empresariado. Este ponto de vista baseia-se no pressuposto de que a economia de mercado funciona de cima para baixo. Segundo ele, os empresários são os que decidem, a bel-prazer, o que o resto da população de um país terá para consumir (bem quando como, quando e onde ela poderá obter esses bens) e em que condi- ções ela irá trabalhar. No entanto, segundo a visão que a Escola Austríaca tem do funciona- mento do mercado, quanto mais livre uma economia for, maior será o poder dos consumidores e dos trabalhadores – não dos empresários e capitalistas.

Os que pensam que a grande empresa detém um enorme poder [numa economia capitalista livre] também se equivocam, uma vez que a empresa de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos que lhes com- pram os produtos; a mais poderosa empresa perderia o poder e a influência se perdesse seus clientes (MISES, 2018, p. 39)

TCCs 2019_2 --- 26 Ainda que, na citação, Mises refira-se apenas aos consumidores, o mes- mo raciocínio pode ser aplicado àqueles que estiverem ativos no mercado de trabalho. Numa economia de livre mercado, da mesma forma que um cliente rapidamente troca de marcas ao perceber o surgimento de um produto mais eficiente ou que melhor atenda às suas preferências, um trabalhador retém o poder para decidir onde irá trabalhar e em quais condições. Dessa forma, o verdadeiro obstáculo para o progresso dos trabalha- dores é a criação (ou manutenção) de leis trabalhistas rígidas, e a resistência à flexibilização delas. São elas que impõem limites máximos ou mínimos sobre o que é aceitável para um indivíduo à procura de emprego, elevando as leis ao status de “protetoras” dos cidadãos que as obedecem. Ademais, a crítica principal aqui não é a de que o autor está errado em afirmar que as reformas atendem a desejos dos empresários. O ponto, na ver- dade, é que ele percebe e constata em seu argumento apenas um dos possíveis efeitos da Reforma Trabalhista. Como explica o economista e jornalista francês Frédéric Bastiat, nas questões econômicas

um ato, um hábito, uma instituição, uma lei, não geram somente um efeito, mas uma série de efeitos. Dentre esses, só o primeiro é imediato. Manifesta- se simultaneamente com sua causa. É visível. Os outros só aparecem depois e não são visíveis. (BASTIAT, 2010, p. 19)

Esta é a falha do argumento apresentado pelo autor do editorial em questão. Ele constata um dos efeitos, dando a ele uma conotação negativa, mas se esquece de procurar e avaliar as consequências menos visíveis e menos imediatas da Reforma Trabalhista ou de quaisquer outras tentativas de flexibili- zação da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

3.1.1.2. Mercado: Proposta é alvo de críticas de sindicalistas

A notícia Proposta é alvo de críticas de sindicalistas, publicada no ca- derno Mercado no dia 23 de dezembro de 2016, trata de uma reação dos sindicatos à proposta pontual de Michel Temer de ajustar apenas alguns pontos da CLT, enquanto a Reforma Trabalhista estivesse em trâmite. A chamada “mi- nirreforma” foi proposta no dia 22 de dezembro, e veio na forma de projeto de lei – não de Medida Provisória, como era esperado até a data da publicação. Alguns de seus pontos, inclusive, seriam incorporados ao texto final e completo da Reforma Trabalhista, apesar das controvérsias causadas por suas proposi- ções. Como se trata de uma notícia – e não de um artigo de opinião ou

TCCs 2019_2 --- 27 editorial –, é preciso observar com mais atenção a qualidade jornalística do material. A notícia expõe três posições a respeito da proposta: a dos sindicalis- tas (sendo dois líderes sindicais e uma nota da CUT), a de um juiz do trabalho e a de um economista. Não cabe, aqui, julgar se a escolha por essas fontes foi resultado de uma falta de tempo ou de recursos para a apuração, de uma falta de espaço na publicação para dar voz a outros pontos de vista ou se foi um ato deliberado dos profissionais que a redigiram. Cabe, no entanto, avaliar os argumentos de cada ponto de vista, inclusi- ve o dos autores da matéria, quando cabível. O primeiro ponto relevante para esta monografia é a fala de Miguel Torres, vice-presidente da Força Sindical. Às jornalistas Fernanda Perrin e Renata Agostini (2016, p.19), ele reforça que “a reforma não pode ser algo feito goela abaixo”. De fato, medidas impostas pelo Governo Federal podem ser vistas como “autoritárias” ou como uma imposi- ção que não leva em conta o diálogo. Contudo, mesmo a CLT e outras leis (não somente as trabalhistas) podem ser vistas dessa forma, ao estabelecer quais os parâmetros que empregador e empregado devem seguir num contrato. Segundo Frédéric Bastiat (2016), a boa lei, aquela que cumpre sua fun- ção sem se corromper e sem afetar a vida dos cidadãos sob sua jurisdição, é aquela que se limita a impedir injustiças. Mais especificamente, aquelas que afli- jam a liberdade de cada um e a propriedade privada. Para ele, o objetivo da lei é garantir a ausência de espoliação, seja ela legal (ex.: impostos, tarifas, subsídios etc.), seja ela ilegal (ex.: furtos, invasão de propriedade etc.). Nas palavras do próprio autor, “quando a lei [...] impõe um modo de trabalho, um método ou tema de ensino, um credo ou fé, [...] ela substitui a vontade de cada um pela vontade dos legisladores, a iniciativa de cada um pela iniciativa dos legisladores” (BASTIAT, 2016, p. 62). Ao fazer isso, ela também se desvia de sua função natural e passa a interferir e desestabilizar a organização de uma comunidade ou país. Ademais, é preciso perceber que estes legisladores não são alheios à realidade. Muitas vezes, eles foram eleitos com o único propósito de servir às reivindicações de grupos de pressão, ou seja, de “um grupo de pessoas desejo- so de obter um privilégio à custa do restante da nação” (MISES, 2018, p. 155). Assim, qualquer um que reivindicar da lei algo que vá além de suas funções de combate à espoliação e garantia da liberdade individual estará apenas procuran- do transformar em legislação algo que beneficia a si e a seus semelhantes, mas prejudica o restante da sociedade. Dessa forma, é a tentativa de manter a rigidez da CLT, e não as pro- postas de reduzir as funções do Estado no mercado de trabalho, que geram conflitos e impedem o progresso da sociedade brasileira. Pegue, por exemplo, um país que advoga pela restrição da imigração como forma de proteção à

TCCs 2019_2 --- 28 qualidade de vida dos trabalhadores nativos. Ao fazer isso, eles tentam proteger “o padrão elevado de seus salários contra a tendência de equiparação salarial, inerente a um sistema de mobilidade livre de trabalho específico de cada país” (MISES, 2017, p. 73). Por outro lado, também ao fazer isso, eles criam uma situação que beneficiará, no curto prazo, apenas aqueles que já estiverem inseridos no mer- cado de trabalho do país. Ao médio e longo prazo (e, às vezes, também a curto prazo), leis como as de restrição à imigração podem resultar em problemas como o encarecimento da mão de obra, a queda de produtividade, o aumento de preços dos produtos e outros efeitos negativos para a população como um todo. Eles podem ser considerados negativos porque, nos três exemplos ci- tados no parágrafo anterior a população verá, respectivamente: 1) um aumento do desemprego, resultante do corte de gastos e pessoal das empresas – ou da saída delas para outros países de mão de obra mais barata; 2) uma piora na qualidade dos produtos fabricados e uma queda na eficiência dos serviços prestados; 3) uma piora na qualidade de vida, já que as despesas mais básicas, como o gasto com alimentação, consumirão uma parcela maior dos salários e poupanças das famílias. Todos esses efeitos altamente danosos a curto, médio e longo prazo são interdependentes. Eles podem aparecer em ordens diferentes e demorar mais ou menos para serem percebidos, mas sempre resultarão de políticas e leis que restringem as liberdades individuais. Assim, fica claro que a própria CLT (e outras leis do gênero) é algo fei- to de cima para baixo, sendo danoso para a população como um todo. Também fica clara a contradição no argumento utilizado pelo líder sindical entrevistado na matéria. Afinal, o próprio código que ele visa manter é algo que pode ser considerado impositivo e até opressor. Mais adiante, há um segundo ponto levantado por outra fonte sindica- lista, o presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), Ricardo Patah. Para ele, as propostas da minirreforma, como a que permitia a adoção de jornadas de até 220 horas mensais, trariam a precarização das condições de trabalho. No entanto, é preciso compreender que esta é uma visão distorcida da proposta. Afinal, segundo a própria reportagem, “o principal objetivo da reforma é garantir que acordos entre empregados e empresa possam prevalecer sobre a legislação trabalhista em determinados casos, como para a definição da jor- nada, que, segundo a proposta, poderia chegar a 220 horas mensais” (PERRIN; AGOSTINI, 2016, p. 19). Isso significa que, para haver a suposta precarização das condições de trabalho, a empresa teria de entrar em acordo com os próprios empregados a

TCCs 2019_2 --- 29 respeito das condições nas quais eles trabalhariam. Em outras palavras, ambos precisam chegar a um consenso que possa satisfazer às suas necessidades de forma que os termos do acordo sejam mais benéficos que a manutenção das condições exigidas pela CLT – e, ainda assim, terão de garantir que este novo acordo respeite as regras estabelecidas pela Reforma. Ao enxergar a relação de maneira oposta, os sindicalistas e aqueles que apoiam suas reivindicações contra a reforma apenas reforçam o argumen- to de Ludwig von Mises, segundo o qual

ao negociarem com os empregadores, os sindicalistas agem como se somente a malícia e a ganância impedissem a ‘diretoria’ de pagar-lhes salários mais altos [ou de atender a quaisquer outras reivindicações]. Em sua miopia, nada enxergam para além dos portões da fábrica. [...] falam de concentração do poder econômico e não percebem que esse poder se concentra, ao fim e ao cabo, nas mãos do público comprador, do qual os próprios empregados compõem a esmagadora maioria. (MISES, 2017, p. 88)

Em suma, se os empresários tentarem impor acordos prejudiciais aos trabalhadores, acabarão tão prejudicados quanto se tentearem estipular preços abusivos aos seus produtos. Em ambas as situações, eles verão um declínio na performance de sua empresa, seja pela migração da mão de obra para outros empreendimentos e/ou setores, seja pela migração dos consumidores para ou- tras marcas. Este é o funcionamento sadio de uma economia de livre mercado. Com um mercado de trabalho desobstruído e livre da interferência de grupos de pressão, “todo empregador terá condições de contratar tantos trabalhadores quantos lhe forem necessários” (MISES, 2018, p. 125). Por sua vez, isso também significa que cada vez mais indivíduos terão oportunidades de se tornarem membros ativos da sociedade e de aumentarem seus padrões de vida e os de suas famílias. Vale ressaltar que numa economia como essa não há garantias de que todos obterão os mais altos cargos em suas funções, ou de que todos serão muito bem pagos (afinal, isso seria extremamente irrealista). Questões como essas ainda estão muito ligadas às leis da oferta e da demanda. Mas há, sim – e é isso que importa aqui – a garantia de que todos podem incrementar seu padrão de vida, desde que tomem a iniciativa para tal. O terceiro ponto passivo de análise é a fala do juiz do trabalho e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Ele

TCCs 2019_2 --- 30 observa que “‘A lei impõe a trava diária11, de oito horas de trabalho. Caso se confirme esse modelo, os trabalhadoresnão receberão horas extras12’” (PERRIN; AGOSTINI, 2016, p.19). Com relação a esta afirmação, é possível fazer sua aná- lise a partir dos dois trechos grifados. No primeiro, é interessante observar que a fala do juiz reforça o que já foi exposto anteriormente: a lei anterior à minirreforma já se sobrepunha às vontades e necessidades de cada trabalhador e de cada empresário. Neste ponto, a fala dele apenas reforça o ponto de Bastiat (2016) de que leis como as trabalhistas estão apenas colocando os interesses dos legisladores (e, por consequência, dos grupos de pressão) acima dos interesses do indivíduo. Quanto ao segundo, é preciso ter um pouco mais de cuidado. No projeto de lei apresentado ao Congresso, não há nada que exija a eliminação das horas extras no caso de uma negociação da jornada de trabalho. O artigo proposto apenas estabelece que o acordo prevalecerá sobre a lei em casos de negociações trabalhador-empresário que envolvam, dentre outras coisas, “II – [...] cumprimento da jornada de trabalho, limitada a duzentas e vinte horas mensais; [...] X – banco de horas, garantida a conversão da hora que exceder a jornada normal de trabalho com acréscimo de, no mínimo, cinquenta por cento” (PATRÍCIA DUQUE [Ed.], 2017, p. 4). Assim sendo, a parte do projeto de lei que aborda os acordos entre empregadores e empregados sequer chega a tocar na eliminação das horas extras. Pelo contrário, no momento de conversão, as horas que excederem a jornada diária proposta no acordo deverão ser acrescidas de 50%. E, mesmo que a visão do jurista venha a se concretizar, é preciso ter em mente que os trabalhadores não podem ser forçados a assinar um acordo com o qual não concordam. Neste novo modelo, eles ganham mais poder para ajustar as condições de trabalho de acordo com suas necessidades, aproximando cada indivíduo de seus objetivos, mesmo que o coletivo dos trabalhadores ainda se sobreponha à vontade específica de cada um. Um acordo que leve à eliminação das horas extras, portanto, seria de responsabilidade tanto do empresário como dos seus empregados. Por fim, vem a análise da fala de Sérgio Firpo, economista do Insper. Seu ponto de vista, na matéria, é o que mais se aproxima daquele usado nesta monografia. Para ele, “‘permitir que as partes negociem e que haja primazia do acordo é muito positivo. Não há por que tutelar em tudo e tratar o trabalhador como uma criança.’” (PERRIN; AGOSTINI, 2016, p. 19). De fato, essa mudança

11 Grifos do autor 12 Grifos do autor

TCCs 2019_2 --- 31 pode ser considerada um progresso, devido a todos os pontos já discutidos até aqui. Ainda assim, ela não garante a plena independência dos indivíduos na decisão sobre como usar sua mão de obra ou fornecê-la a outros membros da sociedade. É importante assinalar isso para expor o seguinte ponto: ainda have- rá, principalmente no âmbito dos grupos de empregados, uma margem muito ampla para o conflito de interesses. Até porque, cada trabalhador continua sendo um indivíduo com suas próprias percepções acerca da realidade à sua volta. E essas percepções, como lembra Hayek (2017), são constituídas a partir de informações incompletas e parciais a respeito do funcionamento da sociedade13. Dessa maneira, o progresso apontado pelo economista não seria dar autonomia total a cada trabalhador para decidir que pontos alterar de seu con- trato em relação à oferta do empregador, mas sim permitir que as duas partes (os donos de empresas e seus funcionários, ou os trabalhadores entre si) che- guem num acordo a respeito de que pontos do contrato podem ser alterados a partir da lei. Em outras palavras, o grande mérito desse ponto da minirreforma é dar uma margem de negociação para trabalhadores e empresários. É graças a ela que eles não terão mais de se submeter à CLT, que impõe a visão e os interesses dos legisladores sobre a dos indivíduos. Com a questão dos acordos trabalhadores-empresários resolvida, a matéria se volta para outra questão da representação sindical. Mais especifi- camente, ela trata da representação local, isto é, a “eleição de representante dos trabalhadores no local de trabalho” (PATRÍCIA DUQUE [Ed.], 2017, p. 4). O trecho, que corresponde a apenas três parágrafos do texto, expõe apenas o ponto de vista de Firpo como forma de dialogar com a proposta em si. Em sua entrevista à reportagem, Firpo observa que a questão da uni- cidade sindical deveria ter sido colocada em pauta na minirreforma, pois “seria interessante haver competição entre os sindicatos, justamente para garantir a representatividade” (PERRIN; AGOSTINI, 2016, p. 19). Aqui, novamente, a visão do economista cruza com a da Escola Austríaca de Economia, em especial no tocante ao papel da competição na garantia de um melhor funcionamento do setor sindical. Afinal, é somente através da existência de duas ou mais opções que um indivíduo pode avaliar e optar pela que mais atende suas necessidades, colocan- do em prática os conceitos explicados no capítulo 2.1. desta monografia. Para concluir a análise, vale observar, também seu aspecto jornalístico.

13 Essa ideia é fundamental na visão da Escola Austríaca do mercado como um processo formado a partir da interação entre inúmeros indivíduos. Uma explicação mais detalhada desta visão pode ser encontrada no capítulo 2.2 desta monografia.

TCCs 2019_2 --- 32 É possível dizer que a escolha das fontes e o uso de seus posicionamentos na matéria se assemelha muito às falhas expostas nos capítulos 1.2. e 1.3. desta monografia. Não tanto com relação à complexidade dos termos, mas sim com relação à confiança plena na fala das fontes. Mais notoriamente, isso levou a uma contradição entre a fala de Germano Silveira Siqueira sobre as horas extras e o conteúdo do texto da minirreforma, que sequer menciona a possibilidade de eliminar ou não essas horas nos acordos empresa-empregados que podem prevalecer sobre a CLT – apenas de negociar como será o regime de horas extras.

3.1.2. Dia seguinte à aprovação da Reforma Trabalhista pela Câ- mara dos Deputados (27/04/2017) Na edição escolhida para análise neste subcapítulo, a Reforma Traba- lhista já havia recebido o aval da Câmara dos Deputados e iria a votação no Senado. Com relação às matérias escolhidas, a primeira contrapõe dois pontos de vista opostos e explica as mudanças trazidas pela Reforma por meio de um infográfico. A segunda, um artigo de opinião, apresenta um ponto de vista opos- to ao da Reforma. Dessa forma, há novamente uma predominância dos pontos de vista contrários à proposta de mudar a CLT que se repete em outras notícias da edição que não foram incluídas na monografia para não comprometer a pro- fundidade das análises.

3.1.2.1. Mercado: Infográfico Trabalho Flex A notícia/infográfico Trabalho Flex, publicada na página A20 do caderno Mercado, traz um esquema mostrando as principais mudanças nas leis trabalhis- tas feitas pela Reforma. Junto a essa ilustração, há o posicionamento de Sérgio Nobre, membro da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o do executivo João Miranda. Enquanto o esquema montado no infográfico tem importância para o leitor compreender a proposta, ele não será o ponto principal da análise neste subcapítulo, mesmo que apareça como forma de complementar algum argumento. A análise será focada nas fontes mencionadas anteriormente, a come- çar pela fala de Sérgio Nobre, em entrevista feita pela repórter Fernanda Perrin. O primeiro ponto a ser observado é a introdução a seu posicionamento. Para Nobre, a Reforma Trabalhista “promove um desmanche total do sistema de pro- teção constituído desde a promulgação da CLT” (PERRIN; PORTINARI, 2017, p. 20). O trecho em itálico evidencia um apelo paternalista no ponto de vista do autor, ou seja, a visão de que o Estado serve como um protetor dos tra- balhadores (e dos cidadãos também) contra quaisquer males que possam lhes

TCCs 2019_2 --- 33 ocorrer. Contudo, Murray Rothbard (2018) lembra que, na verdade, “o Estado é aquela organização social que tenta manter o monopólio do uso da força e da violência em determinada área” (p. 23). Em outras palavras, ao contrário de ser uma instituição que procura proteger os trabalhadores (por mais que se venda como tal), pode-se ver o Estado como uma instituição que procura forçar determinada visão de mundo sobre todos os outros que não necessariamente compartilham desse ideal. Isso não quer dizer que a CLT não tenha beneficiado determinados setores da so- ciedade, afinal, como lembra Mises, não se contesta “o fato de que um privilégio concedido a um grupo definido de pessoas pode favorecer os interesses de curto prazo desse grupo [...].” (MISES, 2017, p. 70). O ponto é que ela fez isso à custa de todos os outros indivíduos, sejam eles trabalhadores que aceitariam trabalhar sob condições mais flexíveis, sejam eles empresários que gostariam de ter maior liberdade nas suas contratações. Com este aspecto esclarecido, chega a primeira resposta do sindicalista colocada na matéria. Para justificar a oposição da CUT (Central Única dos Tra- balhadores) à Reforma Trabalhista, Nobre afirma que “mudanças na legislação trabalhista têm que partir de discussões com as centrais e os demais atores” (PERRIN; PORTINARI, 2017, p. 20). De fato, quando se trata de uma reforma que afetará a vida de milhões de brasileiros, consultar a opinião pública é tão importante quanto ouvir os apelos do empresariado. Mas, em sua fala, o sin- dicalista apela apenas em nome das centrais sindicais e de outros atores, sem referir-se aos trabalhadores em si. Ao fazer isso, ele atua como porta-voz de um grupo de pressão, em busca de fazer prevalecer as vontades dos sindicatos e centrais sindicais. Em seguida, respondendo ao argumento de que a flexibilização das leis trabalhistas ajudaria a gerar emprego, o sindicalista considera que

esse discurso é mentiroso. Quando o trabalhador está protegido, com car- teira assinada, ele consome, compra uma casa. Mas, se ele tiver um contrato precário, jornada de três horas, que segurança vai ter? Quanto mais você precariza o trabalhador, menos ele consome, menos a indústria produz e menos o país cresce. (PERRIN; PORTINARI, 2017, p. 20)

Aqui, Nobre argumenta em favor dos trabalhadores que já estão empregados e trabalham registrados, ignorando os desempregados que não conseguem entrar no mercado por conta das leis altamente restritivas. Assim como o salário mínimo, que “tende a causar o desemprego permanente de uma parte considerável da força de trabalho” (MISES, 2018, p. 151), as leis que regu- lamentam o trabalho encarecem o custo da mão de obra, beneficiando apenas

TCCs 2019_2 --- 34 aqueles que já estão empregados e marginalizando todos os outros. É possível explicar melhor este fenômeno por meio da análise que Mises faz do processo de sindicalização, que também desempenha um papel importante na criação de normas e leis trabalhistas.

Enquanto a sindicalização esteve limitada a uma parte da força de trabalho [...], o aumento salarial14 obtido através da pressão sindical não chegava a causar desemprego, mas [...] Os trabalhadores especializados que perdiam o emprego em consequência da política salarial dos sindicatos passavam a disputar uma vaga de trabalhador não especializado [...]. Mas logo que toda a massa trabalhadora consegue se organizar, a situação muda. [...] o trabalhador que perdeu seu emprego na indústria onde trabalhava não consegue mais se empregar em outra função (MISES, 2018, p. 153)

Em suma, não se pode negar que a flexibilização das leis trabalhistas possa trazer impactos negativos, especialmente a curto prazo e para aqueles que já estão empregados. Contudo, para os milhões de cidadãos inativos, que totalizavam mais de 14 milhões na época em que a entrevista com Nobre foi feita, essas medidas abririam novas oportunidades para sair do ostracismo, con- dição muito mais precária do que um emprego com jornada de trabalho diária de 12 horas, por exemplo. Ademais, as falas de Nobre são reflexo do processo de preservação do Estado evidenciados por Murray Rothbard. Segundo o autor, para conseguir a aceitação da maioria, o Estado usa a ideologia para convencer as pessoas “de que seu domínio é bom, sábio, ou, ao menos, inevitável, e com certeza melhor do que as alternativas” (ROTHBARD, 2018, p. 33). Contudo, como exposto no capítulo 2.2, um controle central não será, nunca, capaz de tomar decisões melhores do que os indivíduos agindo em cooperação uns com os outros numa economia de livre iniciativa. Afinal, o poder central também é composto por indivíduos com conhecimento limitado sobre o mundo a seu redor. Outra coisa que é importante de se notar a respeito de todo o contex- to da Reforma Trabalhista é a necessidade do mercado de trabalho brasileiro de adaptar-se às condições de uma economia moderna e competitiva, reformando pontos de uma legislação criada ainda na primeira metade do século XX. Boa parte dos argumentos contrários às mudanças parte do pressuposto de que só existe uma quantidade fixa de trabalho a ser feita. Em outras palavras, vem

14 Em seu raciocínio, Mises refere-se apenas ao aumento salarial, mas o ele pode ser ado- tado também aos pedidos por benefícios como plano de saúde obrigatório, vales (transporte, refeição, alimentação, combustível etc.), fixação da jornada de trabalho, entre outras demandas sindicais.

TCCs 2019_2 --- 35 da ideia de que o mercado é uma instituição estática, que oferece sempre os mesmos recursos e técnicas para aproveitar estes recursos. Mas essa visão não poderia estar mais incorreta. Como lembra Hazlitt (2010), todo indivíduo e toda nação têm como ideal conseguir a melhor produ- ção possível com o mínimo de esforço. É por isso que “o progresso da civiliza- ção tem significado redução de emprego, não seu aumento” (p. 76). Claro, isso pode ser visto como algo negativo, principalmente por aqueles cujas profissões perderão espaço com os avanços tecnológicos. Mas isso não significa que, fu- turamente, a sociedade se encontrará em situação pior do que no presente ou que estes indivíduos não possam encontrar oportunidades em outros setores. Para exemplificar, basta ver que, no mundo ocidental, as condições de vida só tenderam a melhorar após a substituição do mercantilismo, um sistema que considerava que a pobreza era “a única maneira de incentivar as pessoas a trabalharem duro” (NORBERG, 2017, p. 72), pelo capitalismo, “criado”, segundo Mises (2018), por miseráveis que organizavam-se para criar pequenos negócios capazes de suprir a demanda de outros miseráveis por artigos básicos.

Desde 1820, o PIB per capita no mundo ocidental cresceu mais de quinze vezes. [...] O fato de que passamos a trabalhar de forma mais inteligente, com tecnologias melhores, também tornou possível reduzir as horas de trabalho. A semana de trabalho média dos americanos perdeu 25 horas desde 1860. Acrescente-se a isso o fato de que também começamos a trabalhar mais tarde, a nos aposentar mais cedo e a viver mais tempo após a aposentadoria. Se computássemos as horas extras de lazer ao salário médio, o PIB per capita cresceria em cerca de 120% (NORBERG, 2017, p. 73)

Ou seja, a liberdade de iniciativa, a procura por suprir a demanda das massas e o emprego de novas técnicas de manufatura vistos nas primeiras décadas do capitalismo foram o que permitiu à sociedade ocidental atingir um nível de vida no qual até o mais modesto dos trabalhadores vivesse melhor do que seus conterrâneos de 50, 100 anos antes. E, apesar do aumento exponen- cial da população mundial, as pessoas continuam a encontrar emprego quando tanto empregador como empregado têm liberdade de escolha, contrariando a visão quase apocalíptica de que o progresso tecnológico significa o fim de toda a mão de obra humana. Num primeiro momento, pode ser difícil de perceber como essa re- lação entre prosperidade e liberdade se dá de fato. Contudo, basta lembrar que “a liberdade do trabalhador que não tem propriedades15 consiste no seu

15 Aqui, Mises refere-se apenas aos cidadãos que não são donos do capital ou dos meios de produção.

TCCs 2019_2 --- 36 direito de escolher o local e o tipo de seu trabalho” (MISES, 2018, p. 245). E a única forma de dar ao indivíduo este direito é flexibilizando ou eliminando leis trabalhistas que exigem do empregador uma determinada política empregatícia. Somente assim, com as barreiras que encarecem a mão de obra eliminadas, é possível dar a todos os cidadãos uma oportunidade de empregar suas habili- dades de maneira a contribuir com o progresso da comunidade em que vive. Com o ponto de vista contrário à Reforma analisado, é hora de ob- servar os argumentos de João Miranda, o executivo entrevistado por Natália Portinari. Quando perguntado sobre os pontos positivos da proposta, ele diz que vê a flexibilização como uma oportunidade para a geração de emprego, e que “as negociações bilaterais permitem que as empresas se adaptem às cir- cunstâncias econômicas [sem demitir]” (PERRIN; PORTINARI, 2017, p. 20). A fala citada apresenta um raciocínio que, até então, não estava presente nas ou- tras matérias analisadas. Trata-se do lado favorável da reforma para os próprios trabalhadores que já estão empregados. Assim como aqueles que procuram por uma vaga, é preferível manter-se ativo numa situação menos confortável do que ter de integrar a massa de trabalhadores inativos. Ademais, existe outro argumento que pode ser utilizado para reforçar a visão do executivo da Votorantim. Trata-se da artificialidade inerente a leis tra- balhistas como o salário mínimo e a exigência de outros benefícios adicionais ao salário. “A primeira coisa que acontece [...] ao ser decretada uma lei que estabelece que ninguém receberá menos de US$106 por semana de quarenta horas é que, para um patrão, ninguém que não valha US$106 por semana será empregado por ele” (HAZLITT, 2010, p. 135). Mais uma vez, isso resulta na marginalização de todos aqueles traba- lhadores que não tiverem capacitação técnica ou produtividade o suficiente para atingir o valor mínimo do salário ou para compensar todos os gastos com benefícios e garantias que o empresário terá de pagar para contratá-lo. Ade- mais, Hazlitt (2010) lembra que além de privar uma parcela da mão de obra das oportunidades que lhe caberiam, leis de salário mínimo (e, por extensão, outras leis trabalhistas) fazem com que a comunidade seja privada dos modestos ser- viços que essa mão de obra mais barata possa prestar. E mesmo que este fenômeno não signifique um desemprego absoluto dessa mão de obra não registrada de acordo com a CLT, ele resultará, no limite, na intensificação do mercado de trabalho informal, fenômeno que tem sido ob- servado no Brasil nos últimos anos. Quanto a este ponto, ele também reforça a ineficiência das leis trabalhistas, já que elas acabam por reservar seus benefícios a apenas uma parcela dos trabalhadores, comprovando a visão de Mises, de Hazlitt. Quanto às outras duas respostas dadas pelo executivo, elas giram em

TCCs 2019_2 --- 37 torno do mesmo argumento: é preferível reduzir a jornada e manter os traba- lhadores ativos do que demiti-los e condená-los ao ostracismo. Existe, contudo, um ponto a ser ressaltado, quando ele diz que “a quantidade de ações traba- lhistas não conflui para a indústria ser produtiva” (PERRIN; PORTINARI, 2017, p. 20). Aqui, observa-se um reconhecimento de que a visão de Frédéric Bastiat (2016) exposta no capítulo 3.1.1.2 se concretizou. Segundo esse ponto de vista, quando a lei tenta impor um comportamento à sociedade, ela está atendendo a interesses particulares e, portanto, deixa de beneficiar a todos para privile- giar a um grupo ou um indivíduo. Isso não quer dizer, claro, que todas as ações trabalhistas são infundadas ou uma mera tentativa de se aproveitar do sistema. Argumenta-se, apenas, que a lei deixou de servir o propósito que deveria ter e acabou se tornando uma trava para o progresso.

3.1.2.2. Mercado (opinião): Novos direitos

No dia seguinte à aprovação da Reforma Trabalhista pela Câmara dos Deputados, a economista Laura Carvalho publicou, em sua coluna no caderno Mercado, o artigo Novos direitos, no qual critica o posicionamento do então prefeito de São Paulo João Dória com relação às reformas propostas pelo go- verno Temer. A autora lembra que “segundo ele [Dória], a lei trabalhista atual ‘não protege o trabalhador. Ela prejudica, à medida que não gera empregos” (CARVALHO, 2017, p. 24). Como resposta à fala do ex-prefeito e atual gover- nador do estado de São Paulo, Laura Carvalho (2017) aponta para estudos que sugerem uma piora ou estagnação no nível de empregos como consequência da desregulamentação do mercado. Ela, no entanto, não aponta para a origem destes estudos, dando a impressão de que os mencionou apenas como forma de desmoralizar os argumentos favoráveis à Reforma. De todo modo, é possível rebater afirmações do tipo simplesmente observando o progresso dos países asiáticos desde a segunda metade do sécu- lo XX.

TCCs 2019_2 --- 38 Nos anos 1960 e 1970, o autor sueco Lasse Berg e o fotógrafo Stig Karlsson visitaram vários países asiáticos, documentando a miséria e alertando sobre o desastre iminente. [...] Berg e Karlsson viram o que esperavam ver e acha- ram que o pior ainda estava por vir [...]. Mas, nos anos 1990, retornaram aos mesmos lugares e vilarejos e encontraram um continente de esperança. [...] Na Índia, eles descobriram que mesmo os vilarejos mais pobres já não chei- ravam a urina e fezes, e as palhoças de lama já começavam a ser substituídas por construções de tijolos [...]. Em 2010, a transformação fora ainda mais longe. Havia motocicletas e grandes mercados e todo mundo tinha celulares. Mesmo os mais pobres vivam em casas de tijolos com grades nas janelas. (NORBERG, 2017, p. 75)

As chaves que proporcionaram uma transformação tão radical de paí- ses e províncias como China, Índia, Hong Kong, Japão (pós-Segunda Guerra) e Coreia do Sul, segundo Norberg (2017), foram justamente a abertura para o livre comércio com outros países, começando como produtores de mercado- rias simples e chegando, gradativamente, aos níveis atuais e abrindo espaço para novos países começarem o mesmo processo. Ou seja, se a desregulamentação e a abertura comercial fizeram tanto bem para países inteiros, é difícil de ima- ginar que um processo semelhante possa ser danoso para os habitantes de um país, especialmente no longo prazo. Ademais, o progresso obtido por estes países pode ser atribuído ao Estado apenas na medida em que ele se absteve de intervir em determina- das atividades comerciais. Medidas intervencionistas acabaram por prejudicar o funcionamento dessas sociedades. Basta observar, por exemplo, a crise en- frentada pelo sistema de assistência social japonês adotado no pós-Segunda Guerra. Daquele momento da história japonesa em diante, a previdência social protegeria as pessoas contra todos os caprichos da vida moderna. Se nasces- sem doentes, o Estado pagaria. Se não pudessem pagar pela educação, o Estado pagaria. Se não pudessem encontrar trabalho, o Estado pagaria. Quando se apo- sentassem, o Estado pagaria. E, quando finalmente morressem, o Estado pagaria aos seus dependentes (FERGUSON, 2017, p. 194) Essas medidas, que seriam adotadas na década de 1960 após a saída dos EUA do território japonês, funcionou bem de início, segundo Ferguson (2017), pois pareceu para os cidadãos uma forma pacífica de engrandecimento nacio- nal. Contudo, na época em que o livro do historiador britânico foi publicado, na primeira década do século XXI, o país já enfrentava uma crise séria desse sistema devido ao envelhecimento agudo da população. “Tão bem-sucedida foi a ‘superpotência do bem-estar social’ que a expectativa de vida do Japão se tornara a mais elevada do mundo [...], com mais de 21% da população já com

TCCs 2019_2 --- 39 mais de 65 anos” (FERGUSON, 2017, p. 207). A essa altura, segundo o Ferguson (2017), nem as medidas adotadas pelo governo como o aumento da idade da aposentadoria foram capazes de resolver os problemas. De fato, a situação chegou a tal ponto que “o orçamento do serviço social do Japão agora é igual a três partes da receita dos impostos. Seu débito excede um quatrilhão de ienes, cerca de 170% do PIB” (FERGUSON, 2017, p. 207). Comparar as situações apontadas por Norberg e Ferguson é fundamental pois mostra que medidas impopulares a curto prazo, como a flexibilização das leis trabalhistas, levam a melhoras graduais na qualidade de vida da população. Por outro lado, medidas populares a curto prazo, como a criação de um sistema de bem-estar social (que engloba, dentre outras coisas, as leis e direitos trabalhistas), trazem consequências catastróficas a longo prazo. “Daí se conclui que o mau economista, ao perseguir um pequeno benefício presente, está gerando um grande mal no futuro. Já o verdadeiro bom economista, ao perseguir um grande benefício futuro, corre o risco de provocar um pequeno mal no presente” (BASTIAT, 2010, p. 19). Em outras palavras, a conclusão volta ao argumento contra a Refor- ma Trabalhista já esclarecido em capítulos anteriores: mesmo que legislações mais rígidas, repletas de direitos e ressalvas, possam beneficiar os trabalhadores (principalmente os já empregados) a curto prazo ou numa situação econômica favorável, elas tendem a prejudicar todos os cidadãos a médio e longo prazo. Em seguida, a colunista menciona um relatório de 2003 do Banco Mun- dial que concluiu que “‘ao nível macroeconômico, taxas maiores de sindicali- zação levam a uma menor desigualdade de rendimentos e podem aumentar a performance econômica’” (CARVALHO, 2017, p. 24). Antes de entrar no mérito dessa afirmação, é preciso observar como funcionava o sistema sindical brasileiro antes da Reforma Trabalhista, para contextualizá-la e rebatê-la.

Poucos sindicatos do mundo são tão protegidos quanto os brasileiros. A lei estabelece uma contribuição obrigatória16 dos trabalhadores [...]. Ao todo, são 3 bilhões de reais que vão todos os anos para a conta de sindicatos [...]. Os sindicatos tampouco precisam se preocupar com concorrentes, pois o governo reconhece apenas uma organização oficial por categoria e por local [...]. Essa regra contraria a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho17, que prevê liberdade de escolher e contribuir para o sindicato que o trabalhador preferir. E, apesar de todos os privilégios, os sindicatos brasileiros não representam os trabalhadores. (NARLOCH, 2015, p. 191-192)

16 A contribuição viria a ser revogada com a aprovação da Reforma Trabalhista 17 Grifos do autor

TCCs 2019_2 --- 40 Eis a questão: numa situação na qual o trabalhador não tem liberdade para escolher seu representante escolher não ser filiado a sindicato algum, ele se torna escravo da boa vontade daqueles que receberam o privilégio de atuar no mercado de trabalho. Assim, segundo Narloch (2015), a tendência é que não haja esforço nenhum por parte destes representantes para pensar nos trabalhadores que só contribuem porque a lei os obriga ou que não são filiados às instituições. Afinal, não importa que medidas eles tomem ou defendam, o dinheiro pago via imposto sindical compulsório continuará a ir para seus orça- mentos. Agora que a fala já está contextualizada no cenário sindical brasileiro da época, é possível se voltar para o argumento da colunista. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o papel primordial dos sindicatos deveria ser “garantir que todos os seus membros recebam, pelos serviços que prestam, o verdadeiro valor de mercado18 pelos serviços” (HAZLITT, 2010, p. 141). Dessa forma, a uti- lidade dos sindicatos, segundo Hazlitt (2010), é funcionar como uma forma de rede de apoio para trabalhadores desamparados. Mas, justamente por ser ideal, esta situação não condiz com a realidade. Muitas vezes os sindicatos excedem suas funções e tentam, por exem- plo, impor um piso salarial acima do valor de mercado de determinada profis- são. De forma semelhante ao que acontece com as leis de salário mínimo, essa “tentativa sempre acarreta desemprego [...] [e] só pode ser firmada através de alguma forma de intimidação ou coerção” (HAZLITT, 2010, p. 142). Tal intimi- dação assume diversas formas, sendo as mais utilizadas as greves e, no Brasil, a pressão política.

Mas no momento em que os operários têm que empregar a intimidação ou a violência para fazer valer suas exigências – no momento em que se utilizam de piquetes para impedir que qualquer um dos antigos trabalhadores continue a trabalhar, ou para impedir que o empregador contrate novos operários permanentes para substituí-los – o caso torna-se discutível, pois os piquetes estão [...] sendo usados não só contra o patrão, mas contra outros operários. Esses outros estão dispostos a aceitar os empregos que os antigos [...] dei- xaram vagos, e pelos salários que os antigos estavam rejeitando. (HAZLITT, 2010, p. 143)

18 Grifos do autor

TCCs 2019_2 --- 41 A consequência disso é uma situação na qual uma grande massa de trabalhadores se encontra fora de atividade ou atuando em desacordo com a lei vigente. E como no Brasil os sindicatos desfrutam de exclusividade tanto por profissão como por local, estes marginalizados ficam impedidos de encon- trar outro sindicato que possa ajudá-los em suas causas. Assim, a solução mais sensata para a situação sindical no país não seria fortalecer os sindicatos já existentes, mas sim dar a eles o tratamento do livre mercado, segundo o qual “a mais poderosa empresa perderia o poder e a influência se perdesse seus clientes” (MISES, 2018, p. 39). Somente assim os trabalhadores encontrariam-se numa situação em que poderiam usufruir de sua liberdade de escolha e aplicar suas preferências para informar ao mercado de trabalho e aos sindicatos o que mais importa para eles, sem ficarem sujeitos à imposição de regras por uma minoria dominante. Depois destes parágrafos iniciais, Laura Carvalho (2017) se volta para as mudanças sobre as relações trabalhistas trazidas por empresas como Uber e outras start-ups da era da internet. Segundo a autora, as condições nas quais os funcionários de empresas como a Uber trabalham seria mais precária do que no caso de trabalhadores não autônomos, ou registrados. De fato, não há um código de leis rígidas para esse tipo de trabalhador que imponha os privilégios que a CLT impõe sobre outros setores. Contudo, é exatamente essa estrutura trabalhista sem regulamenta- ções infindáveis que permite a estas companhias empregar um grande número de pessoas. O argumento de que “trabalhadores independentes [...] também ficam frequentemente em situação de dependência econômica em relação às empresas prestadoras” (CARVALHO, 2017, p. 24) poderia ser igualmente apli- cado aos trabalhadores registrados sob a CLT, pois eles se encontram numa situação na qual precisam manter o emprego atual, mesmo que insatisfeitos, para evitarem serem marginalizados no mercado de trabalho. Inclusive, pode-se argumentar que, por estarem livres de inúmeros vín- culos e regras impostos por sindicatos e leis trabalhistas, os trabalhadores au- tônomos gozam de ainda mais liberdade do que aqueles que estão empregados com carteira assinada. Afinal quanto mais surgirem empresas que oferecem oportunidades do tipo, mais opções de caminhos a serem seguidos o indivíduo tem. Num setor perturbado por medidas intervencionistas, por outro lado, ocorre uma exclusão dos concorrentes menores. Pegue, por exemplo, o di- reito à renda razoável, uma das demandas dos motoristas de Uber parisienses citadas por Laura Carvalho (2017). Isso significa, nada mais nada menos, do que a intenção de impor uma política de controle de preços sobre o salário. A questão é que “medidas de controle de preços provocam uma redução da produção porque impossibilitam o produtor marginal de produzir com lucro”

TCCs 2019_2 --- 42 (MISES, 2018, p. 148). No caso dos trabalhadores, como já foi abordado nesta monografia, a imposição de um salário mínimo impossibilita aqueles menos capacitados ou em situações de necessidade de venderem sua mão de obra pelo preço que de- sejariam ou poderiam, resultando em desemprego e na criação de um mercado de trabalho informal (a versão trabalhista do mercado negro). Ao fim e ao cabo, o fato de empresas como a Uber funcionarem sob uma estrutura organizacio- nal diferente daquela de companhias convencionais não altera o resultado das medidas intervencionistas sobre o mercado, já que o processo, em sua essência, é o mesmo. Ademais, outra coisa que reforça a ideia de que um trabalhador da Uber seja mais livre que o de uma indústria como a Ford ou a Volkswagen, por exemplo, é o fato de que tudo que ele precisa fazer para começar a trabalhar é cadastrar-se num aplicativo específico. Novamente, isso reduz a credibilidade de um argumento segundo o qual um motorista autônomo da Uber é menos livre ou mais precarizado que seus colegas de carteira assinada simplesmente pelo fato de não ter um código legislativo específico para sua profissão.

3.1.3. Dia seguinte à aprovação da Reforma pelo Senado (12/07/2017) Nos textos analisados neste subcapítulo foi possível observar, mais uma vez, a predominância do ponto de vista antiliberal. Mais precisamente, a presença da dicotomia empresários X sindicatos, presente em todos os outros materiais da Folha observados até o momento. É interessante notar como os trabalhadores em si ficam deixados de fora do debate, enquanto os sindicatos – que, como discutido no subcapítulo anterior, não cumprem sua função de amparo ao trabalhador brasileiro – e os especialistas contra a Reforma são as vozes mais presentes nas matérias. Dito isso, é necessário observar como essa dinâmica se apresenta nos artigos e notícias publicados no dia seguinte à aprovação da Reforma Trabalhista pelo Senado.

3.1.3.1. Mercado: Reforma beneficia apenas empresas, diz especialista

A notícia Reforma beneficia apenas empresas, diz especialista, elaborada no formato de entrevista ping-pong, traz o posicionamento de José Dari Krein, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho. Embora não se trate de um artigo de opinião, o estilo de entrevista e a manchete já evidenciam um ponto de vista contrário à Reforma. Cabe, portanto, observar quais são os pontos feitos pelo especialista e estabelecer com eles o diálogo que não foi realizado na matéria

TCCs 2019_2 --- 43 em si, a não ser como forma de contextualizar as perguntas da jornalista. Começando pelo segundo parágrafo, no qual foi colocada uma fala in- trodutória do economista. Segundo ele, “‘A regulação do mercado de trabalho não foi criada para seguir uma lógica apenas econômica, mas para preservar a vida das pessoas e garantir que a relação entre o capital e o trabalho não seja tão assimétrica’” (PERRIN, 2017, p. 22). Eis a questão: como lembra Fré- déric Bastiat (2010), toda decisão, seja ela individual ou coletiva, privada ou governamental, implica em consequências que não podem ser vistas. Ao tentar estabelecer um código de leis com a proposta de proteger o bem-estar do trabalhador, dando a ele benefícios e garantias judiciais, criou-se, ao longo do tempo, um ambiente conflituoso entre empregadores e empregados. O número de ações trabalhistas, desde que a CLT entrou em vigor em 1943, cresceu exponencialmente, chegando em 2,6 milhões só no ano de 2015 (REIS et al., 2016). Cria-se, desta forma, um cenário de insegurança que desmotiva empresas estrangeiras e nacionais a operar em solo brasileiro, como no caso do Citibank.

Enquanto a plateia de cerca de 150 pessoas aguardava em Londres [...] o anunciado “possível grande duelo” entre José Eduardo Cardozo e Sergio Moro, uma série de dados críticos em relação ao nosso país foram apresentados em diferentes palestras do Brazil Forum. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF [...] citou o caso do Citibank, que desistiu de operar no Brasil quando de- tectou que aqui obtinha 1% de suas receitas, enquanto simultaneamente sofria 93% das ações trabalhistas em que é reclamado [...]. (ESPAÇO VITAL, 2017)

Antes de prosseguir, vale esclarecer que o objetivo desta exposição não é atestar se as reivindicações dos trabalhadores eram legítimas ou não. Seu único propósito é reforçar o ponto de que a CLT, a longo prazo, comprometeu o funcionamento do mercado de trabalho brasileiro, reforçando a validade do aviso de Bastiat citado anteriormente. Com essa questão esclarecida, vem a análise da primeira resposta do especialista, a respeito da possibilidade de a Reforma Trabalhista fortalecer ou enfraquecer o poder dos sindicatos. Para ele (2017), as mudanças trarão um enfraquecimento dessas instituições ao aprofundar a fragmentação trazida pelo crescimento do setor de serviços, levando assim a um enfraquecimento das ações coletivas para estabelecer regras favoráveis aos trabalhadores. Mais uma vez, repete-se a ideia de que os trabalhadores formam sempre um coletivo e que, dessa forma, as regras aprovadas por demanda de uma parte deste grupo será benéfica a todos.

TCCs 2019_2 --- 44 Contudo, assim como os governos, segundo Rothbard (2018) não são capazes de representar um “nós” cidadão, um sindicato nunca poderá repre- sentar um “nós” trabalhador.

De nenhuma forma o governo “representa” a maioria das pessoas. Mas, mesmo que representasse, mesmo que 70% das pessoas decidissem matar os 30% restantes, ainda assim isso seria assassinato, e não um suicídio voluntário por parte da minoria sacrificada. (ROTHBARD, 2018, p. 22-23)

Pense, por exemplo, num sindicato que se encontra dividido entre aqueles a favor da criação de um piso salarial acima do valor de mercado para a profissão e aqueles contra esta medida. Seria absurdo afirmar que, em tal situação, o sindicato é a voz de todos os trabalhadores, assim como é absurdo afirmar, no exemplo citado por Rothbard, que o governo é a voz de todos os cidadãos. Em outras palavras, “não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista [...] esconda este fato” (ROTHBARD, 2018, p. 23). Essa questão fica ainda mais evidente quando é observada a atuação sindical no Brasil. Segundo dados do Ministério do Trabalho (2016), no primei- ro trimestre do ano anterior à Reforma Trabalhista, o país tinha um total de 10.926 sindicatos reconhecidos pelo órgão com aproximadamente 12,7 mi- lhões de trabalhadores filiados. Isso representa apenas 14% do total de 90,7 milhões de cidadãos ocupados no primeiro semestre de 2016, segundo dados do IPEA (2016). Dito isso, o argumento que a Reforma Trabalhista será responsável pelo fim da representação dos trabalhadores por parte dos sindicatos fica ainda mais frágil, visto que mais de 85% dos indivíduos empregados não são represen- tados pelos sindicatos, e dá ainda mais validade para a adoção de medidas que vão refrescar e remodelar o sistema no país, a exemplo do fim da contribuição sindical compulsória – medida que, por si só, já era uma infração autoritária ao direito do indivíduo de escolher como usar seus recursos da forma que julga mais apropriada. Antes de prosseguir, vale também ressaltar que o argumento anterior não se opõe ao governo democrático ou ao uso de métodos democráticos para tomadas de decisões institucionais. Seu objetivo é apenas chamar a aten- ção para a falácia por trás das metáforas organicistas usadas pelos líderes polí- ticos e sindicais para angariar apoio de seus seguidores. Em resposta à pergunta seguinte, a respeito dos contratos intermi- tentes, Krein reafirma sua posição contra a validação desse tipo de trabalho. Segundo ele (2017), esta é uma das propostas mais “draconianas” da reforma, pois “não há nenhuma evidência para dizer que o contrato intermitente vai

TCCs 2019_2 --- 45 formalizar mais trabalhadores. Até onde se formalizar, vai ser numa situação absolutamente precária. Você muda a estatística, mas não a realidade de vida das pessoas” (PERRIN, 2017, p. 22). De fato, não há como se afirmar que uma oportunidade de trabalho intermitente é uma garantia de um contrato formal no futuro. Contudo, o contrário também não é verdade: a ausência de garantias de contratação não significa a ausência de contratações permanentes. Com respeito à situação precária de trabalho, vale lembrar que o tra- balhador, enquanto cidadão livre, tem todo o direito de sair da empresa e vender sua mão de obra para outro empregador, caso se sinta insatisfeito com suas condições de trabalho vigentes. “Se um empresário se recusa a lhe pagar o salário de mercado, ele encontrará outro empregador disposto a, no seu pró- prio (do empregador) interesse, lhe pagar o salário de mercado” (MISES, 2018, p. 245), e o mesmo vale para quaisquer outros pré-requisitos que um traba- lhador tenha para escolher seu próximo emprego (distância de casa, estrutura empresarial, infraestrutura do ambiente etc.). É ilusório, no mínimo, esperar que os empresários não se importem com as condições em que seus empregados se encontram. Assim como numa economia de livre mercado o produtor precisa oferecer o melhor produto/ serviço e convencer o consumidor de que o investimento vale a pena, num mercado de trabalho livre o empregador precisa mostrar aos seus funcionários em potencial que sua empresa é melhor que a concorrente, ou ficará sem empregados e irá à falência. Só existem duas situações nas quais essa regra não funcionaria: 1) num setor controlado pelo monopólio coercivo que, segundo Lawrence W. Reed (2018), nada mais é do que o controle governamental sobre um setor, como a produção petrolífera no Brasil; 2) numa situação na qual o trabalho com- pulsório é aceito ou empregado, o que implica que “os trabalhadores nesses empregos terão que se dar por satisfeitos com salários bem menores do que os recebidos por outros trabalhadores.” (MISES, 2018, p. 158). Em ambos os casos os indivíduos são obrigados a aceitar situações de trabalho com as quais não necessariamente estão satisfeitos, mas devem fazê-lo por falta de alternativas. Por exemplo, um engenheiro que queira trabalhar com a extração de petróleo no Brasil não tem outra opção senão prestar concurso para trabalhar na Petrobras, enquanto um trabalhador submetido a uma função compulsoriamente deve se contentar com as tarefas que lhe forem designadas para não se ver desempregado. Ademais, é preciso decidir entre ter trabalhadores numa situação julga- da “precária” pelo economista e ter uma massa de cidadãos inativos. É preciso entender que “o indivíduo desempregado quer trabalhar. Quer ganhar um salá- rio, porque considera que as oportunidades que um emprego lhe proporciona

TCCs 2019_2 --- 46 são maiores do que o duvidoso valor do ócio na pobreza” (MISES, 2018, p. 156). O fato de ele aceitar trabalhar em condições que em outras circunstâncias não aceitaria não altera a realidade de que, para ele, um cargo intermitente é melhor que o desemprego, por mais que a insegurança seja maior do que num cargo de carteira assinada. Negar isso é simplesmente colocar o trabalhador como um ser desprovido de força de vontade e interesses próprios. A segunda parte de sua resposta a essa pergunta é a fala usada para introduzir seu pensamento na matéria e, como ela já foi analisada, não é preciso preocupar-se com isso. Desta forma, resta apenas a terceira e última pergunta, que aborda a severidade de alterações na CLT anteriores à Reforma Trabalhis- ta. Krein abre seu raciocínio afirmando que “nunca houve avanço tão grande sobre os direitos trabalhistas [...] esta reforma é uma desconstrução completa do nosso código de trabalho. Você vai fragilizar a regulação geral em nome da negociação particular por setores.” (PERRIN, 2017, p. 22). É interessante, aqui, analisar a conclusão presente na última frase, pois ela expõe o ponto de vista centralizador do especialista, segundo o qual um comando central é mais eficiente para garantir o funcionamento de uma so- ciedade complexa. Como já foi abordado no capítulo 2.2, contudo, uma auto- ridade ou um grupo de autoridades não pode ser considerado mais apto para a tomada de decisões do os indivíduos ou, no caso da Reforma, os agentes de diferentes setores do mercado de trabalho. O mesmo pode ser aplicado para um conjunto de leis formulado por essa autoridade ou grupo de especialistas. Basta imaginar o que acontece quan- do uma pessoa tenta controlar as atitudes de outra.

‘Imaginemos a situação mais simples possível, só entre mim e você. [...] Você, honestamente, acha que eu teria competência de controlar de forma coercitiva o que você, porventura, viesse a inventar, descobrir ou criar, o que ou com quem você deveria negociar ou se associar?’ ‘Agora, [...] vamos considerar uma situação realmente complexa: os [...] habitantes desta nação. Se eu su- gerisse que eu deveria assumir o comando de suas vidas e de seus bilhões de interações, você concluiria que eu estava delirando.’ (READ, 2018, p. 27-28)

As interferências do governo sobre as interações dos indivíduos, como lembra Mises (2018) comprometem o processo de mercado, desviando-o de seu curso natural e tornando seu funcionamento, no mínimo, ineficiente. Até mesmo os acordos coletivos que a Reforma Trabalhista permite prevalecerem sobre a lei estão longe do ideal de cada trabalhador poder controlar de que maneira irá firmar um contrato com seu empregador. Como conclusão de seu raciocínio, o economista entrevistado avalia que “[...] consumir a força de trabalho, conforme sua necessidade, não constrói

TCCs 2019_2 --- 47 o país. Isso vai reduzir os salários e demanda e criar dificuldades para a retoma- da da economia” (PERRIN, 2017, p. 22). Em primeiro lugar, é irreal afirmar que um empresário, ao contratar um ou mais funcionários, está consumindo a força de trabalho sem dar nada em troca à sociedade. Ao contratá-los, ele está dando uma garantia de que receberão um salário com o qual poderão voltar a participar ativamente da economia. Tão importante quanto essa mudança é a percepção, já apontada anteriormente na monografia, de que não existe divisão num sistema puramente capitalista: do empresário ao trabalhador autônomo, todos são consumidores. Desta forma, “na condição de assalariado, o trabalhador não consegue determinar o que pre- cisa ser produzido, mas, como cliente, torna-se o patrão e diz ao empregador, o empresário, o que fazer” (MISES, 2019, p. 99). Além disso, como explicado anteriormente neste capítulo, o cidadão livre tem todo direito de procurar outro emprego se não achar que sua ocupa- ção atual atende às suas exigências. O indivíduo sabe, muito bem, que está assi- nando um contrato por sua própria conta e risco, mesmo que o esteja fazendo como último recurso. Ele só fará isso, como já explicado, se julgar que o novo emprego, naquele momento, lhe colocará em condições superiores àquelas nas quais se encontra – mesmo que, no futuro, isso se mostre uma decisão equivo- cada. Em segundo lugar, a redução salarial só ocorreria de modo a corrigir distorções criadas por políticas como pisos salariais e na medida em que novos trabalhadores conseguissem uma vaga em sua profissão de escolha, ajustando o mercado à lei da oferta e demanda. Ademais, em profissões com muitas vagas, mas poucos interessados, o valor dos salários tenderia a subir, contrariando o argumento do especialista. Não se trata, aqui, de uma mudança controlada pelos empresários ou pelo governo. Trata-se do sistema de preços, um processo natural do mercado que funciona por meio “das constantes modificações nas inter-relações de cus- to de produção, preços e lucros” (HAZLITT, 2010, p. 109). É um erro, contudo, presumir que esta relação se dê apenas pelo custo da produção. Como dito anteriormente, a oferta e a demanda desempenham um papel crucial neste sistema. Mas há, também, a questão da subjetividade dos agentes de mercado, marcada por suas preferências e expectativas. Trazendo o exemplo da produção para o mercado de trabalho, é a expectativa de um empresário que determina quanto ele irá contratar. Caso ele avalie a oferta de mão de obra e julgue-a cara demais para o que ganhará em retorno, ele não fará seu investimento ou, então, investirá menos do que poderia, já que “tudo [...] se produz às expensas de outra coisa que tenha mais precedência” (HAZLITT, 2010, p. 111).

TCCs 2019_2 --- 48 Pegue, por exemplo, um empregador que está prestes a contratar dois indivíduos pelo salário mínimo. Para atender às necessidades de sua empresa, ele precisa de alguém competente para determinada função mas que também possa, de vez em quando, trabalhar em outras áreas da empresa. Ao olhar o currículo dos candidatos, um deles tem as habilidades para trabalhar não só na função à qual se candidatou, mas em outras também. O outro é bom no que faz, mas só tem as habilidades para trabalhar na função à qual se candidatou. Pensando a longo prazo e levando em conta suas necessidades, o traba- lhador conclui que, por um salário mínimo, é mais vantajoso contratar o primei- ro. Isso não necessariamente implica que ele nunca contrataria o segundo can- didato. Talvez ele estivesse disposto a contratá-lo, mas por um salário menor ao piso estabelecido pelo governo. Afinal, quanto mais funcionários ele tiver para dividir a produção, mais eficiente sua empresa se torna, mais consumidores ele consegue atender e mais investimento ele consegue fazer, ao mesmo tempo que os preços de seu produto diminuirão – considerando-se, claro, que seu objetivo seja atender às massas, e não criar um produto exclusivo. O resultado de todo este processo é que o salário mínimo acabou por prejudicar o trabalhador menos qualificado. É por isso que as leis do salário mínimo e quaisquer outras regulações que encareçam o custo da mão de obra, acabam por prejudicar aqueles que, para os empresários, não valem o investi- mento exigido pelo governo, condenando-os ao ostracismo ou, então, a vagas de emprego em condições inferiores às que julgariam aceitáveis.

3.1.3.2. Mercado: Entidades patronais veem redução de ações na justiça

A notícia Entidades patronais veem redução de ações na justiça, feita pelas jornalistas Joana Cunha e Tássia Kastner, preocupa-se em expor os pontos de vista do lado tanto dos empresários como dos líderes sindicais a respeito do texto da Reforma Trabalhista aprovado pelo Senado no dia anterior. Antes de avaliar o posicionamento dos representantes dos lados mencionados, vale des- tacar a fala de Alexandre Furlan, presidente de Relações do Trabalho da Con- federação Nacional da Indústria (CNI), o qual “[...] afirma que ‘a força de lei’ aos acordos entre empresas e funcionários vai reduzir as disputas na Justiça” (CUNHA; KASTNER, 2017, p. 22). Como mencionado no subcapítulo anterior, o número de ações traba- lhistas na Justiça chegava a mais de 2,5 milhões em 2015. Após a Reforma Tra- balhista entrar em vigência em novembro de 2017, foi observada uma reversão gradual desse quadro, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho (2018).

TCCs 2019_2 --- 49 Apesar de um pico no primeiro mês de validez da reforma, os números caíram drasticamente, indo de aproximadamente 289 mil neste mês para cerca de 84 mil em dezembro do mesmo ano. A estatística voltaria a crescer em 2018, mas não ultrapassaria os 200 mil por mês. O objetivo de atestar esta estatística é mostrar que a previsão de Furlan, pelo menos até o momento, tem se provado verdadeira. Cabe também analisar outros pontos feitos pelos entrevistados, co- meçando por José Pastore, presidente do conselho de emprego e relações do trabalho da FecomercioSP. Para ele “a lei, sozinha, não garante empregos. Entre- tanto, permite que o ambiente de trabalho se torne mais atrativo e sustentável. Com leis claras e existindo respeito ao pactuado, a oferta de emprego existirá” (CUNHA; KASTNER, 2017, p. 22). Enquanto sua visão condiz com o ponto de vista desta monografia, é preciso reafirmar que as leis trabalhistas, como lem- bra Bastiat (2016), são uma perversão do papel natural da legislação. Quando a lei extrapola o seu papel original, a saber, o de “organização coletiva do direito individual de legítima defesa19” (BASTIAT, 2016, p. 25), ela sofreu a “influência de duas causas totalmente diferentes: a cobiça obtusa e a falsa filantropia” (BASTIAT, 2016, p. 30). No caso da primeira, segundo Frédéric Bastiat (2016), a lei age como um perpretador da espoliação do trabalho e da propriedade de um indivíduo, fênomeno conhecido como espoliação legal. Pode-se citar, no caso da CLT, contribuições compulsórias como o im- posto sindical, o FGTS e o 13º salário, todos vendidos à população como direi- tos mas que, na verdade, acabam apenas por reduzir o salário do trabalhador para manter o funcionamento da máquina estatal ou de instituições que não representam seus interesses. Quando se fala destes impostos e contribuições, “o que há de praticamente certo é que ao pagar 100 soldos ao fisco, Jacques Bonhomme não recebe nada em troca” (BASTIAT, 2010, p. 29). Pode-se até ar- gumentar que o FGTS ou o 13º, por exemplo, são benefícios para o trabalhador pois convertem-se numa “recompensa” futura. Contudo, o fato é que ao ser privado destas partes de seus salários, que são destinadas aos cofres do governo antes de voltar às mãos do indivíduo, o trabalhador se vê com menos dinheiro no bolso ao receber o salário. Isso acaba infringindo e restringindo sua liberdade de decisão, visto que “cada pes- soa tem sua própria ordem peculiar para classificar os fins que busca. Quase ninguém é capaz de conhecer as classificações individuais alheias, e nem aquele que as faz as conhece por completo” (HAYEK, 2017, p. 132). Ao tomar uma parte do salário do trabalhador, o governo está privando-o de um dinheiro que

19 Em outras palavras, Bastiat (2016), refere-se à lei como uma forma de garantir a todos o direito de defender sua vida, propriedade e liberdade do ataque de terceiros.

TCCs 2019_2 --- 50 poderia ser usado para inúmeros fins, desde reformar sua casa até comprar alimentos de melhor qualidade. Já a falsa filantropia ocorre, por exemplo, quando a espoliação legal é aplicada com o fim de tirar para um para dar aos outros, vendida sob a ótica de ser uma ajuda do governo aos desfavorecidos. Como lembram Bastiat (2016) e Mises (2017), esse excesso do Estado, de se dispor a atender o interesse de alguns em detrimento de toda a população, apenas gera uma corrida pelo poder entre vários grupos, levando à tensão social. Mais do que isso, ela dá força ao governo para manipular a opinião pública, apoiando-se principalmente no argumento de que seu domínio é “inevitável, absolutamente necessário, e muito melhor do que os males indescritíveis que se seguiriam à sua queda” (ROTHBARD, 2018, p. 36). Um exemplo da defesa da falsa filantropia é o argumento dos benefícios garantidos aos trabalhadores de carteira assinada, colocados como “direitos” do trabalhador. Aqueles que defendem a manutenção da CLT, como já observado nos subcapítulos anteriores, apoiam-se sobre a ideia de que sem a lei, os empresários não terão incentivo para dar condições de trabalho favoráveis a seus empregados. Esta ideia, contudo, como visto no subcapítulo 3.1.3.1., não tem funda- mentos sólidos. Afinal, se deseja atrair funcionários, o empresário deve garantir condições minimamente atraentes de trabalho, seja por meio do salário, seja por meio da infraestrutura e da reputação de seu negócio. Esta é a única forma de manter-se ativo numa economia livre. Caso falhe em atender às exigências mínimas dos trabalhadores, o dono da empresa se verá automaticamente em desvantagem em relação a quaisquer outros concorrentes que estejam dispos- tos a manter seus empregados em bons ambientes de trabalho. Portanto, a ideia de que apenas o governo seria capaz de ajudar o tra- balhador e de garantir a ele tudo o que precisa por meio da corrupção da lei perde sua sustentação em um sistema no qual reinam as liberdades individuais e a concorrência entre os agentes de mercado. Neste sistema, a única atuação necessária do governo é a de garantir que os contratos estabelecidos entre trabalhadores e empresários sejam cumpridos, sem interferir nas cláusulas e nos termos deles. Outro ponto pertinente de ser analisado sob a ótica da Escola Austríaca na matéria em questão é o argumento do presidente da Anamatra, o juiz do Traba- lho Guilherme Feliciano. Segundo ele, a Reforma “não gera empregos, não aumenta a segurança jurídica, não reduz a litigiosidade na Justiça do Trabalho. Catapulta os conflitos trabalhistas, fomenta a migração para contratos precários e induz à reces- são” (CUNHA; KASTNER, 2017, p. 22). Boa parte do que foi afirmado pelo juiz já foi analisado nos capítulos anteriores, mas vale relembrar alguns pontos.

TCCs 2019_2 --- 51 Em primeiro lugar, as afirmações feitas na primeira frase não se sus- tentam frente aos dados atuais da economia brasileira. Mesmo que lenta e inconstantemente, a taxa de desemprego tem mostrado redução ao longo dos últimos dois anos, enquanto as ações trabalhistas, como mencionado no início deste mesmo subcapítulo, apresentaram redução. Quanto à segunda parte, ela volta à questão de que, para quem está desempregado, não há precarização das condições de trabalho numa contrata- ção feita sob os moldes permitidos pela Reforma. E para aqueles que já estão contratados, só haverá a suposta precarização do ambiente de trabalho – que pode, na verdade, ser percebida como uma eliminação dos privilégios dados aos trabalhadores de carteira assinada – caso os empregados e o empregador consigam chegar a um acordo coletivo que prevaleça sobre a lei. Ainda assim, a eliminação desses privilégios pode ser considerada mais benéfica que a demis- são em massa para cortar gastos. Dito isto, a análise segue para a fala de Ivone Silva, presidente do Sindi- cato dos Bancários de São Paulo. “A presidente [...] afirmou que a mudança na legislação vai ‘aumentar a rotatividade e rebaixar salários e [...] terá um efeito cascata sobre a economia nacional” (CUNHA; KASTNER, 2017, p. 22). Nova- mente, os salários só serão rebaixados de acordo com a oferta e procura pelas vagas e com a necessidade dos empregadores de ajustarem seus orçamentos à situação econômica do país. Aqueles que não estiverem dispostos a abrir mão de seus rendimentos ou que não quiserem aceitar uma oferta por considerarem o salário baixo de- mais continuarão livres para procurar uma vaga que atenda às suas preferências, mesmo que a reforma não tenha sido abrangente o suficiente para dar a eles liberdade total neste sentido – afinal, ainda existem uma série de exigências contratuais impostas pela lei, algumas tendo sido inclusive criadas pela reforma, como no caso do home office e dos trabalhadores terceirizados. Portanto, po- de-se dizer que quaisquer consequências como a redução do salário e a maior rotatividade só ocorrerão nos setores que tiverem condições favoráveis para que o processo de mercado as concretize. Não se pode presumir que todos os trabalhadores serão afetados desta maneira, visto que cada situação será con- duzida e solucionada de uma maneira diferente pelos agentes nela envolvidos.

TCCs 2019_2 --- 52 4. Considerações Finais

Observando tudo o que foi exposto ao longo da monografia, é pos- sível afirmar que a inserção de um ponto de vista da Escola Austríaca sobre o problema foi capaz de iluminar pontos obscurecidos do debate que não receberam o devido destaque através da simples exposição dos argumentos do empresariado e dos sindicatos. Um exemplo é a visão de que no mercado de trabalho tanto trabalhador como empregador estão engajados em uma troca como qualquer outra: o primeiro compra a mão de obra do segundo em troca de um salário, de forma que ambos saem ganhando. Sob um regime de livre associação, tanto um como o outro têm a res- ponsabilidade de oferecer o melhor serviço possível para conseguirem o que querem, da mesma forma que uma empresa precisa oferecer o melhor produto pelo melhor custo tendo em vista as preferências do consumidor. Ademais, não é a concorrência, mas sim a intervenção estatal e a pressão de grupos de interesse por essa intervenção que geram e perpetuam distorções no mercado, marginalizando os produtores e trabalhadores menos capazes, que se vêem forçados a operar na informalidade ou a aceitarem o desemprego enquanto não encontram uma vaga que satisfaça suas necessidades ou um empregador interessado em sua mão de obra. Isso porque a tutela do Estado sobre as interações entre indivíduos apenas tira o processo de mercado de seu curso natural, tornando-o inefi- ciente e burocrático. Mais do que isso, esse controle governamental sobre o mercado infringe os direitos individuais de cada um. Este é mais um ponto no qual a teoria da Escola Austríaca ofereceu uma visão alternativa a respeito do problema foi sobre o papel da lei, no sentido de que a própria CLT é um conjunto de regras imposto aos trabalhadores e empregadores sem levar em consideração suas opiniões. Afinal, como lembram Rothbard (2018), Mises e Bastiat, nunca um governo e suas interferências sobre o funcionamento da so- ciedade serão uma representação real das vontades de cada cidadão, mas sim dos desejos de grupos de pressão que buscam benefícios e privilégios a curto prazo em detrimento do restante da população. O mesmo pode ser dito sobre as decisões e regras sindicais num país que, como visto no capítulo 3.1.3.1., tem menos de 15% de sua força de tra- balho filiada a algum sindicato. É difícil argumentar que as vontades dos mem- bros destas instituições, que agrupavam cerca de 12,7 milhões de trabalhadores no ano anterior à Reforma, fossem benéficas para os outros 78 milhões de indivíduos em atividade ou à procura de emprego. A visão da Escola Austríaca dialogou de maneira semelhante com argu- mentos favoráveis ao projeto apresentado e aprovado pelo governo de Michel

TCCs 2019_2 --- 53 Temer, embora encontrasse pontos de concordância com eles. O principal pon- to foi a questão da perversão da lei, como explicado pelo economista proto- -austríaco Frédéric Bastiat. A verdadeira questão não é até onde a lei deveria interferir no funcionamento do mercado de trabalho, mas sim que ela não deveria interferir diretamente no funcionamento do mercado de trabalho. Em outras palavras, o papel do governo deveria ser meramente garantir o cumpri- mento dos termos de um contrato assinado entre empresário e funcionário, não o de decidir quais cláusulas podem e/ou devem ser incluídas no acordo. Dito isso, é possível concluir também que a cobertura da Reforma Trabalhista, tomando por base os textos analisados ficou bastante presa nas dicotomias empresários X sindicatos e “direitos” X “precarização”. Na maior parte das vezes, os trabalhadores apareciam não como indivíduos dotados de vontade própria e objetivos particulares, mas sim como meros integrantes de um organismo que têm apenas um modo de pensamento que pode ser facil- mente organizado e representado por sindicatos e códigos legislativos criados ou reformulados por um poder central. Contudo, como explicam as teorias da escola de pensamento usada para guiar os argumentos desta monografia, o mercado funciona justamente porque cada indivíduo tem histórico, necessidades e objetivos próprios. É com base nessa subjetividade que eles tomam suas decisões, enviando sinais para outros indivíduos a seu redor sobre como reagir e se adaptar, fazendo com que o processo de mercado funcione plenamente. Ainda assim, tendo em vista tudo o que foi discutido na monografia, não se pode dizer que a cobertura feita pela Folha tenha sido de baixa qualida- de ou deliberadamente tendenciosa. O trabalho feito pelo veículo cumpriu sua função de trazer à tona diversas questões que, de outro modo, teriam ficado de fora do debate. O único porém é que elas acabaram ficando obscurecidas pelo em- bate entre sindicatos e empresários apresentado pela publicação. Em outras palavras, os temas repetitivos trazidos por estes dois grupos acabaram se so- brepondo a outros pontos que, embora levantados, não foram abordados com o cuidado merecido. Por exemplo, as acusações de que a Reforma precarizaria as condições de trabalho ganharam muito mais destaque do que a questão das vontades e do direito de negociação e livre associação dos trabalhadores enquanto indivíduos – embora a última pudesse ser inserida com maior pro- fundidade no debate muito facilmente através da procura por pontos de vista diferentes, como o da Escola Austríaca. Também foi levantada a questão da necessidade ou não necessidade de intervenção estatal nas relações trabalhistas, que acabou se vendo na sombra da “precarização” em várias das matérias analisadas na monografia. Ao invés de

TCCs 2019_2 --- 54 assumir o papel central que poderia, ela surgia apenas esporadicamente como um argumento usado por especialistas a favor da Reforma mais para ilustrar o ponto de vista contrário do que de fato para trazer mais informações para o debate. Ademais, pensando nos pontos da posição editorial assumida pela Folha em seu Manual da Redação citados nesta monografia, bem como no que foi argumentado até o momento, pode-se dizer que a publicação cumpriu, num primeiro momento, com suas diretrizes. De fato, dadas as matérias e artigos aqui analisados, houve uma preocupação com a crítica aos principais pontos da Reforma. O jornal também não explicitou/declarou apoio ou oposição em nenhuma das notícias abordadas neste trabalho, respeitando seu pressuposto de manter-se distante de grupos de pressão. Com relação à pluralidade, contudo, vale reforçar um ponto já obser- vado nas considerações finais: embora tenha dado espaço para mais de um lado da questão em suas edições, a cobertura da Folha ficou presa na ideia de que só havia dois lados interessados na questão (os empresários e os sindicatos, vistos como representantes da classe trabalhadora). Esta ideia acabou marginalizando outras vozes que poderiam ter sido ouvidas, como os trabalhadores em si, estivessem eles empregados ou não na época da votação da Reforma Trabalhista. Ademais, foi observada uma tendên- cia a dar mais voz à oposição nas matérias analisadas, incluindo, em determi- nadas notícias, mais que o dobro de vozes contra a Reforma que o de vozes favoráveis. Todo este processo também dialoga com o que foi exposto no pri- meiro capítulo da monografia, no sentido de que a cobertura da Folha apenas reforça os argumentos de que o jornalismo econômico tende a transcrever as falas das suas fontes, sem preocupar-se necessariamente com o que ela está falando e com os impactos que as informações dadas por ela terão sobre o debate público acerca de um tema. Ele também reforça a visão de Flávio Gordon de que a imprensa bra- sileira absorveu o chamado marxismo atmosférico da academia. A própria ten- dência de escolher fontes que, em sua maioria, seguem linhas de raciocínio semelhantes às dos marxistas ou dos intervencionistas é prova disso. Portanto, pode-se concluir que a cobertura cumpriu o objetivo de co- locar em pauta a Reforma Trabalhista e esclarecer alguns de seus pontos, dando espaço para mais de um lado do problema se manifestar. Ainda assim, ela pecou na hora de se aprofundar nestes pontos de vista, acomodando-se na dicotomia “Empresários X Sindicatos” e trazendo argumentos repetitivos de ambos os lados, com raras exceções. A cobertura também pendeu, intencionalmente ou não, com base nas matérias analisadas na monografia, para o lado contrário à

TCCs 2019_2 --- 55 Reforma, o que acabou comprometendo, mesmo que não profundamente, a imparcialidade e a pluralidade de suas matérias.

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TCCs 2019_2 --- 60 ANÁLISE DO DISCURSO DO IMPRENSA EVANGÉLICA: PRIMEIRO JORNAL PROTESTANTE NO BRASIL

BEATRIZ ARAUJO DE LIMA E SILVA ORIENTADOR: José Alves Trigo

TCCs 2019_2 --- 61 RESUMO Esta monografia aborda o Imprensa Evangelica, primeiro periódico protestante no Brasil. Analisa três textos editoriais publicados durante a direção dos missio- nários e editores Ashbel Green Simonton, fundador do veículo, Alexander Lati- mer Blackford e George Whitehill Chamberlain. Mostra o advento da imprensa protestante, a criação do periódico evangélico, assim como sua relevância para os leitores brasileiros. Usa as ferramentas da Análise do Discurso. Desenvolve também uma análise semântica, presente no campo da linguística, ideologia e estudos de recepção, com a finalidade de examinar parágrafo a parágrafo dos editoriais, além de ressaltar elementos primordiais do Imprensa Evangelica.

Palavras-Chave: Análise do Discurso; Jornalismo; Imprensa Evangelica; Protes- tantismo.

ABSTRACT This monograph addresses the Imprensa Evangelica, the first Protestant journal in Brazil. It analyzes three editorial texts published during the direction of mis- sionaries and editors Ashbel Green Simonton, founder of the vehicle, Alexan- der Latimer Blackford and George Whitehill Chamberlain. It shows the advent of the Protestant press, the creation of the evangelical journal, as well as its relevance to Brazilian readers. Use the tools of Speech Analysis. It also develops a semantic analysis, present in the field of linguistics, ideology and reception studies, with the purpose of examining paragraph by paragraph of the editorials, as well as highlighting primordial elements of the Imprensa Evangelica.

Keywords: Discourse Analysis; Journalism; Gospel Press; Protestantism

TCCs 2019_2 --- 62 Considerações Iniciais

Imprensa Evangelica, primeiro periódico protestante do Brasil, foi fundado em 1864 pelo Reverendo Ashbel Green Simonton, missionário norte america- no enviado em missão pela Igreja Presbiteriana do Norte dos EUA –Presby- terian Church United States of America (PCUSA). Simonton chegou à cidade do Rio de Janeiro em 12 de agosto de 1859 com o propósito de inserir o presbiterianismo no país. A criação do jornal se deu após o reverendo perceber a crescente influên- cia que os textos de temática religiosa tinham sobre a população brasileira do século XIX. De acordo com o pastor presbiteriano Boanerges Ribeiro (1981), o Imprensa teve seu primeiro número publicado no dia 5 de novembro de 1864, produzido pela Typographia Universal de Laemmert. Todavia, devido ao rece- bimento de ameaças, a tipografia desistiu de realizar a impressão do jornal. A Tipografia Perseverança, localizada na Rua Hospício, nº 99, endereço descrito no cabeçalho do material, passa a imprimir as páginas do periódico. O próprio Simonton assumiu o cargo como editor chefe, e contou com a colaboração de seu cunhado, Alexander Latimer Blackford, responsável pela continuidade e sucesso do jornal durante os anos 1868 a 1876, e do Reverendo George Whitehill Chamberlain que esteve à frente do periódico dos anos 1877 a 1885. Ao todo, o jornal circulou por 28 anos (1864 a 1892) no Rio de Janeiro, como afirma a pesquisadora Edwiges Rosa Dos Santos (2009). As publicações não se limitavam a temas religiosos. Eram abordados va- riados conteúdos, como: estudos bíblicos, informações sobre o crescimento das igrejas reformadas, estatísticas de campo nacional e internacional, críticas, traduções de clássicos da literatura, romances, poesias, ficção, crônicas e de- mais assuntos. O público leitor do jornal era composto pela elite nacional, classe letrada, fiéis menos instruídos e até mesmo crianças. Os missionários presbiterianos almejavam alcançar a alta classe da sociedade, pois, com sua atuação, permitiriam a execução recorrente da prática protestante. Todavia, a preocupação maior dos editores estava em cumprir o propósito do Imprensa, isto é, divulgar a mensagem do Evangelho para a maior quantidade de pessoas. A partir disso, a pesquisa se responsabiliza por responder de que maneira são apresentados os elementos discursivos no Imprensa Evangelica. Busca-se dar resposta a esta pergunta usando a Análise do Discurso de três editoriais do jornal para identificar os efeitos de sentido que a fé protestante gerava no público- leitor brasileiro. Tendo como objeto de pesquisa o próprio periódico do século XIX, pri- meiro jornal protestante do Brasil, o objetivo do trabalho está pautado na

TCCs 2019_2 --- 63 realização da Análise do Discurso a fim de pontuar principais elementos do periódico, identificar os discursos e vozes existentes e analisar os efeitos de sentido que causam. Para a história do jornalismo, a temática tem a agregar por ser um docu- mento histórico, sociológico, político e religiosamente no Brasil oitocentista. Vale ressaltar que além do jornal marcar o início da imprensa protestante no país, a folha evangélica foi um importante representante da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), sendo um dos meios utilizados para a propagação do Evangelho e implantação de igrejas presbiterianas no país. Como metodologia, a pesquisa se sustentará em três: a exploratória, bi- bliográfica e documental, tendo como fonte primária o periódico evangélico disponível em acervo digital. As três publicações foram escolhidas por serem publicadas em diferentes momentos da folha, precisamente, durante a direção dos editores Simonton, Blackford e Chamberlain. A exposição do protestantismo no Brasil que inicia a pesquisa tem como base os artigos do mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Hermisten Maia Pereira da Costa, em sua série Pro- testantismo no Brasil. Já o desenvolvimento da imprensa protestante do século XIX terá como apoio a tese da pesquisadora Micheline Reinaux de Vasconcelos, que conta a trajetória da imprensa desde o período imperial até o republicano em sua pesquisa As Boas Novas pela palavra impressa: impresso e imprensa protestante no Brasil. Por último, a Análise do Discurso do periódico terá como diretriz os conceitos do pensador Bakhtin a partir do livro Introdução ao Pensamento de Bakhtin, de José Luiz Forin. Serão utilizados também demais livros que abordam a temática de análise, uma sendo da autora Diana Barros com sua obra Teoria Semiótica do Texto. O trabalho irá se apoiar também em fontes bibliográficas, a partir de pesquisas já feitas tendo como objeto de estudo o Imprensa. Livros e artigos científicos voltados à imprensa protestante brasileira também serão usufruídos de maneira qualitativa a fim de gerar conceitos e ideias, por meio da Análise de Discurso, acerca dos editoriais. Em especial, para análise da temática religiosa, escritos bíblicos serão expostos. Por fim, o periódico é um documento histórico. A busca pelo periódico publicado no século XIX foi realizado após uma simples busca na internet pelo nome do jornal. As páginas originais estão todas arquivadas, online, no site da Hemeroteca Digital Brasileira. O jornal está disponibilizado pela Biblioteca Nacional Digital (BNDigital) para consulta e download, facilitando, assim, o de- senvolvimento de toda a pesquisa.

TCCs 2019_2 --- 64 Planejamento dos capítulos

Ao todo a pesquisa está organizada em sete capítulos.

Capítulo 1 O primeiro capítulo traçará um breve histórico sobre o início do protes- tantismo no Brasil, apontando as ferramentas para a implantação da doutrina e a atuação dos primeiros missionários, inclusive, o criador do Imprensa, Ashbel Green Simonton.

Capítulo 2 No segundo capítulo será explorado o surgimento do Imprensa Evange- lica, além de realizar uma curta trajetória de cada editor e sua contribuição para o jornal, tendo como destaque a pessoa de Simonton, já que segundo a pesquisadora Edwiges Rosa dos Santos (2009) o interesse do missionário pelo contexto social, político, econômico e religioso da população brasileira foi impulsionador para a criação do jornal. O capítulo explicará com detalhes o periódico, o local em que era distribuído, seu conteúdo e função.

Capítulo 3 O terceiro capítulo abrirá a sequência das análises. O material neste ca- pítulo a ser estudado será o texto Prospecto, primeiro editorial publicado do Imprensa Evangelica. Em Prospecto, é exposto o pensamento e a doutrina de- fendida pelo jornal, assim como seu propósito de levar à população leitora a pregação do Evangelho. As análises realizadas envolvem a análise do discurso, presente na semió- tica, baseada nas ideias do filósofo russo Bakhtin, que se preocupa com a inter- pretação dos sentidos presentes no texto.

Capítulo 4 No quarto capítulo, será feita uma análise do editorial O Anno Novo, produzido no período em que Alexander Latimer Blackford foi missionário responsável pela continuidade e sucesso do jornal após a morte de Simonton.

O capítulo seguirá com a proposta de pesquisa norteada pela Análise do Discurso, no entanto, fará uso do campo semântico e também o ideológico. Trata- se de uma estrutura que será padrão para o quinto capítulo.

Capítulo 5 Neste capítulo será realizada a última análise. Em especial, a do editorial As

TCCs 2019_2 --- 65 Duas Cidades, publicado sob a direção do Rev. George Whitehill Chamberlain, terceiro editor-chefe do Imprensa. Chamberlain coordenou o periódico até o ano de 1885.

Capítulo 6 O sexto capítulo trabalhará com o plano de expressão, campo da Análise do Discurso que envolve a exploração da linguagem não verbal, isto é, imagens, diagramação, cores, fontes e ilustrações. Esses elementos serão analisados nes- te capítulo a fim de observar as principais mudanças da trajetória do periódico.

Capítulo 7 No sétimo e último capítulo, as análises serão sintetizadas para identificar a relação presente entre elas, assim como o progresso do jornal para a popu- lação e para a história da imprensa protestante brasileira.

Metodologia A monografia é de natureza semiótica, campo em que se encontra a pro- posta de análise desta pesquisa. A Análise do Discurso surge a partir da obra Discourse Analysis (1952), de Zellig Harris, linguista americano que apresenta propostas quanto à descrição de método de análise indo além de uma simples frase. A Semiótica vem do grego semeion, que significa signo. A semiótica é a ciência dos signos. Os signos são sinais, ou seja, linguagem. Dessa forma, a se- miótica se caracteriza por ser a ciência que engloba todas as linguagens (verbal ou não verbal). Segundo Barros (2008):

Um texto define-se de duas formas que se complementam: pela organização ou estruturação que faz dele um "todo de sentido", como objeto da comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário. A primeira concep- ção de texto, entendido como objeto de signific9ação, faz que seu estudo se confunda com o exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um "todo de sentido". A esse tipo de descrição tem-se atribuído o nome de análise interna ou estrutural do texto. Diferentes teorias voltam-se para essa análise do texto, a partir de princípios e com métodos e técnicas diferentes. A semiótica é uma delas. (BARROS, 2008, p. 8).

TCCs 2019_2 --- 66 De origem latina, a palavra texto vem do verbo texo, is, texui, textum, texere, que significa tecer. Fiorin (1995) explica que da mesma maneira que um tecido não é uma junção desorganizada de fios, o texto não tem como carac- terística ser um amontoado de frases, nem mesmo uma grande frase. O texto possui estrutura, garantindo sentido em sua totalidade, além de ser um objeto histórico carregado de expressão, isto é, de sinais. A semiótica possui divisões que se diferem de sua forma de análise de material de estudo, podendo ser: Peirceiana, em que o foco está na universali- dade epistemológica e metafísica; Estruturalista, com a atenção voltada para os signos verbais; Cultural em que observa a linguagem, a literatura, comunicação não- verbal e visual, mito, religião, dentre outros, e por fim, a Análise do Discur- so que tem como uma das suas vertentes a Semiótica Francesa. Por essa razão, a Análise do Discurso está inserida na Semiótica, em espe- cial, a Semiótica Francesa. Trata-se de uma extensão da Linguística, pois aplica procedimentos de análise de unidades da língua aos enunciados, abrangendo uma reflexão sobre a significação e as considerações sócio históricas de pro- dução. Para Barros (2008), a semiótica é a teoria em que explica o que o texto diz, e como faz para dizer o que diz, logo, é uma extensão da linguística. Assim, a análise da semiótica se diferencia da análise de conteúdo por sua metodologia. A professora-assistente de Psicologia na Universidade de Paris V, Laurence Bardin (1994), define a análise de conteúdo como:

Um método que pode ser aplicado tanto na pesquisa quantitativa como na investigação qualitativa, sendo que, na primeira, o que serve de informação é a frequência com que surgem certas características do conteúdo, enquanto na segunda é a presença ou a ausência de uma dada característica de conteúdo ou de um conjunto de características num determinado fragmento de mensagem que é levado em consideração (BARDIN, 1994).

Enquanto a análise de conteúdo tem como foco as técnicas de estudo das comunicações, fazendo o uso de procedimentos para descrição de conteúdos, a Análise do Discurso preocupa-se em examinar os efeitos de sentido. Em outras palavras, a análise de conteúdo, faz parte de um nível cuja a característica é ser imediata, descritiva, e, principalmente, quantitativa, ou seja, a somatória dos significados pré-determinados a partir das palavras. Alonso (1998), explica que nesse nível buscam-se distâncias ou proximidades semânti- cas. O texto em questão é direcionado para um espaço em que há frequências, de repetições e associações entre palavras, servindo como ferramenta estatís- tica. A centralidade está na palavra, em seu significado - como será visto mais à frente na análise a ser feita pela autora em sua aplicação. Nesse caso, não há sujeito, interpretação e tampouco subjetividade.

TCCs 2019_2 --- 67 Uma vez que o objetivo dessa análise é a compreensão de como um ob- jeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos, a ferramenta a ser explorada será, em sua totalidade, a Análise do Discurso. A execução da análise neste trabalho terá como norte as pesquisas do professor José Luiz Fiorin, e da pesquisadora Beth Brait a respeito da ideias do pesquisador, pensador, filósofo e teórico Mikhail Mikhailovich Bakhtin, perso- nagem inserido na história e evolução da linguagem humana uma vez que suas pesquisas orientam até hoje estudos e teorias pelo mundo. Um dos conceitos- -chave do pensador a ser utilizado para a análise será a polifonia. Um discurso verbal, no caso do jornal, tem muitas vozes e por isso é caracterizado como polifônico. Dessa forma, o papel das análises a serem executadas nesta pesquisa é de investigar quais são as vozes presentes nas publicações, as ideias centrais (ideologia), e as possíveis reações geradas. Para isso, serão utilizados os livros Elementos de Análise do Discurso de José Fiorin e Teoria Semiótica do Texto, obra de Diana Luz Pessoa de Barros. Os conceitos de Bakhtin serão explorados a partir dos estudos de Fiorin, em sua obra: Introdução Ao Pensamento De Bakhtin, assim com de Beth Brait em seu livro: Bakhtin: Conceitos-Chave e Bakhtin: Outros Conceitos-Chave e Bakhtin: Dialogismo e Polifonia. Para melhor detalhamento da atuação do jornal, o presente trabalho irá destacar pontos da obra de Edwiges Rosa dos Santos, autora do livro: O jornal Imprensa Evangelica – diferentes fases no contexto brasileiro (1864-1892). A obra traz uma síntese da introdução do protestantismo no Brasil, destaca as principais atividades dos primeiros missionários no país e descreve o contexto histórico- sociocultural e político-religioso em que estava inserido o jornal. As características do periódico serão aqui exploradas a partir das observações feitas pela autora. Em suma, o trabalho analisa três textos editoriais do Imprensa Evangelica a partir de elementos presentes na linguagem do periódico: ideias, crenças, palavras-chave, expressões, jargões e referências aos textos bíblicos; o juízo de valor e o sentido das palavras que compõem o texto opinativo também serão avaliados a fim de ter proximidade com a visão do autor para identificar os efeitos que as palavras escritas causaram aos diversos leitores que tiveram acesso à leitura desse material. Vale reforçar que a análise não se limitará ao campo linguístico, mas tam- bém ao estético que o complementa: disposição de imagens do jornal, diagra- mação, cores, imagens usadas e demais elementos visuais que dialogam com o texto.

TCCs 2019_2 --- 68 Capítulo I – O início do protestantismo no Brasil

As primeiras estratégias para a instauração do protestantismo no Brasil não foram bem-sucedidas. Os esforços estão ligados às invasões do período colonial, sendo a francesa entre 1555 e 1567 e a holandesa em 1624 e 1640, resultando então, na expulsão desses povos e por consequência, na extinção, por aproximadamente, 200 anos da doutrina no país. Parte dos invasores eram protestantes e se encontravam no contexto de Contrarreforma por parte da Europa católica. O movimento dedicava a deter e até mesmo extinguir o pro- testantismo. Anos se passaram e as tentativas de implantação continuaram sem suces- so. O quadro começou a mudar em janeiro de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. O príncipe regente Dom João VI decretou, no dia 28 de janeiro do mesmo ano, a abertura dos portos do país às nações amigas, permitindo a liberdade de comércio. Em novembro foi decretado um novo acordo que concedia privi- légios a imigrantes, resultando, assim, em uma maior entrada de anglo-saxões, sendo muitos deles protestantes. Em 19 de fevereiro 1810, Portugal assina com a Inglaterra o Tratado de Aliança e Amizade, que impedia a instalação da Inquisição Católica, conforme descrito no artigo 9º:

A Inquisição ou Tribunal do Santo Ofício não tendo sido estabelecida ou reconhecida no Brasil, Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, guiado por uma política esclarecida e liberal, aproveita a oportunidade que o presente Tratado lhe oferece para declarar, espontaneamente, em seu nome e no dos seus sucessores, que a Inquisição não será para o futuro estabelecida nos domínios da América do Sul pertencentes à Coroa de Portugal. (BIBLIOTECA NACIONAL, 1810, p.12).

Já o Tratado de Comércio e Navegação garantia a liberdade religiosa aos ingleses que iriam residir no Brasil. Esse tratado, especificamente no artigo de número 12, concedia aos estrangeiros “perfeita liberdade de consciência” para praticarem sua crença

TCCs 2019_2 --- 69 Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal declara e se obriga no seu próprio nome, e no de Seus Herdeiros e Sucessores, a que os Vassalos de Sua Majestade Britânica residentes nos Seus Territórios e Domínios não serão perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa da Sua Religião, mas antes terão perfeita liberdade de Consciência, e licença para assistirem e celebrarem o Serviço Divino em honra do Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro de suas Casas Particulares, quer nas suas particulares Igrejas e Capelas, que Sua Alteza Real agora, e para sempre, graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro dos Seus Domínios. Contanto, porém que as Sobreditas Igrejas e Capelas serão construídas de tal modo que externamente se assemelhem a Casas de habitação; e também que o uso dos Sinos lhes não seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do Serviço Divino. Demais estipulou-se que nem os Vassalos da Grande Bre- tanha, nem outros quaisquer Estrangeiros de Comunhão diferente da Religião Dominante nos Domínios de Portugal serão perseguidos, ou inquietados por matérias de Consciência tanto nas Suas Pessoas como nas Suas Propriedades, enquanto eles se conduzirem com Ordem, Decência, e Moralidade, e de uma maneira conforme aos usos do País, e ao Seu Estabelecimento Religioso e Político. (BIBLIOTECA NACIONAL, 1810, p.15).

Todavia, o tratado deixava clara a proibição do proselitismo, busca ativa por novos fiéis, e a postura contra a religião oficial do país. A penalidade atri- buída a quebra desses dois princípios era a deportação do país. Destaque para o art. 12:

Porém, se provar que eles pregam ou declamam publicamente contra a Re- ligião Católica, ou que eles pro•cu•ram fazer Prosélitos, ou Conversões, as Pessoas que assim delinqüirem poderão, manifestando-se o deu Delito, ser mandados sair do País em que a Ofensa tiver sido cometida. (BIBLIOTECA NACIONAL, 1810, p.15).

Diante desse quadro, as primeiras atividades protestantes no Brasil sur- giram com a realização de cultos religiosos. Em sua obra História da Igreja no Brasil, Hoornaert (1983) afirma que a comunidade protestante já havia sido formada no Rio de Janeiro e contava com os súditos de majestade britânica e seus capelães. Ainda que restritos em suas atividades, a presença dos protes- tantes proporcionou mudanças significativas quanto à tolerância religiosa na legislação brasileira do Império. O anglicano Robert C. Crane, que chegou ao Brasil em 1816, se destacou por ser o primeiro capelão. Cinco anos mais tarde, a primeira capela anglicana é inaugurada na cidade do Rio de Janeiro, dando início para outras que eram fundadas nas principais cidades litorâneas. Segundo Mendonça (1995), passando pela constituição de 1824 até a de 1891, a hegemonia católica foi diminuída e

TCCs 2019_2 --- 70 os protestantes foram conquistando o seu lugar no espaço brasileiro, isto inclui a participação dos estrangeiros americanos, suecos, dinamarqueses, escoceses, franceses, alemães e suíços. Esses dois últimos especialmente de tradição lute- rana. A Constituição de 1824, promulgada em 25 de março por Dom Pedro I, imperador constitucional, e defensor perpétuo do Brasil, promoveu o catolicis- mo como religião oficial e, ao mesmo tempo, confirmou a liberdade de culto.

Artigo 5º - A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo (CONSTITUIÇÕES DO BRASIL, 1948, p. 35).

É importante ressaltar que não foi o documento que fez a religião cató- lica a religião do país. O padre Júlio Maria (1950, p. 135), ao comentar sobre o artigo, afirma que uso da expressão continuará tem como papel “dar à religião, no regime por ele inaugurado, as imunidades e os privilégios legais de que ela já gozava”, em outras palavras, o registro histórico concedeu o direito da Igreja, como também a conveniência por parte do Estado. Com a permissão por parte do governo, a prática religiosa dos protestan- tes, assim como a construção de templos, passou a ser permitida. A tentativa de convencer pessoas a aceitarem o protestantismo não foi de desagrado ao imperador. Foi iniciado, de forma oficial, o processo de proselitismo religioso protestante no país. A imigração desses protestantes, colonos que tentaram construir uma vida nova no país, auxiliou na criação de condições que, mais tarde, iriam faci- litar a introdução da doutrina, principalmente, com a atuação de missionários no território brasileiro. Vale ressaltar que a chegada dos missionários não tinha como primeiro objetivo a conversão de nativos, mas sim a assistência e apoio pastoral para com os protestantes presentes no Brasil. Mendonça (1995) divide o protestantismo brasileiro do século XIX em duas fases, sendo o protestantismo de imigração e protestantismo de missão, também conhecido como protestantismo das denominações históricas: meto- distas, congregacionais, presbiterianos e batistas. Para este trabalho interessa apenas destacar as atividades das três pri- meiras denominações, pela sua atuação, assim como sua influência e atuação para com a imprensa protestante. É importante analisar, em especial, doutrina presbiteriana já que essa que usou o jornal para divulgação e propagação da religião no território nacional.

TCCs 2019_2 --- 71 1.1 Protestantismo de missão O chamado protestantismo de missão, que começa em 1835 e vai até 1889, conta com a distribuição de Bíblias e impressos religiosos, ponto de par- tida para a divulgação protestante no Brasil. Trata-se de uma parceria com as organizações protestantes e brasileiras, as chamadas sociedades bíblicas. A pri- meira sendo a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (SBBE), criada em 1804, e a Sociedade Bíblica Americana (SBA), de 1816. O objetivo era de distribuir Bíblias com linguagem simples e acessível tanto na compreensão quanto no preço do exemplar. As traduções eram, na época, divididas em duas, sendo uma protestante, com a tradução realizada pelo Reverendo João Ferreira de Almeida (1628-1691), e outra católica, traduzida pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo (1725-1797). A ação dessas entidades bíblicas se deu logo após a abertura dos portos. Mendonça (1995) afirma que essa liberdade de venda e distribuição das es- crituras sagradas a partir das agências das sociedades bíblicas brasileiras e es- trangeiras, antes mesmo da implantação das missões, transformou-se em uma estratégia para a propagação da fé protestante no Brasil. Dois agentes sociais das sociedades bíblicas, considerados os primeiros, se destacam nessa época: James C. Fletcher (1855), da SBA, e Richard Corfield (1856), da SBBE. A princípio, segundo Hermisten Maia (2009), o trabalho de circulação das Escrituras Sagradas no território brasileiro era executado por militares, comer- ciantes e diplomatas que distribuíam, irregularmente, os exemplares que rece- biam. Estrangeiros que antes colaboraram com as sociedades bíblicas, transfe- riram suas atividades para pessoas dedicadas exclusivamente à disseminação da Bíblia e, mais tarde, de edições protestantes. Mais à frente os missionários tomaram conta dessa tarefa a fim de realizar a evangelização pelo país. Vale ressaltar que a primeira denominação a abraçar as atividades missio- nárias com os brasileiros foi a Igreja Metodista Episcopal (1835-1841). Os mis- sionários metodistas desenvolveram atividades voltadas ao ensino dominical, fundando, mais tarde, a primeira escola dominical do Brasil, além de atuarem na Sociedade Americana dos Amigos dos Marinheiros (1828), como capelães oficiais.

1.2 Os primeiros missionários

1.2.1 Metodistas

O metodista Daniel Parish Kidder acompanhado dos missionários Foun- tain

TCCs 2019_2 --- 72 E. Pitts e Justin Spaulding desempenharam importante papel na propaga- ção do Evangelho. Cronologicamente, o Rev. Fountain E. Pitts chegou ao Rio de Janeiro em 19 de agosto de 1835 a fim de participar de trabalhos pastorais e estabelecer- se na cidade. O seu sucessor, Rev. Justin Spaulding, chegou no dia 1º de maio de 1836 para implementar a primeira Escola Dominical de fala por- tuguesa no país, logo, pode-se dizer que os metodistas se destacam por terem sido os pioneiros. A permanência do Rev. Pitts no Rio de Janeiro foi breve. Seu objetivo, na verdade, era ir à cidade de Buenos Aires, na Argentina. Antes de chegar ao seu destino final, Pitts permaneceu por alguns meses no Brasil, exercendo atividades que envolviam a pregação em residências e a realização de pequenas reuniões, conforme relata em uma carta enviada no dia 2 de setembro de 1835, para o correspondente da Sociedade Missionária da Igreja Metodista Episcopal (IME):

Estou nesta cidade (Rio de Janeiro) há duas semanas, e lamento que minha permanência seja necessariamente breve. Creio que uma porta oportuna para a pregação do Evangelho está aberta neste vasto império. Os privilégios religiosos permitidos pelo governo do Brasil são muito mais tolerantes do que eu esperava achar em um país católico [...]. Já realizei diversas reuniões e preguei oito vezes em diferentes residências onde fui respeitosamente con- vidado e bondosamente recebido pelo bom povo [...] (Carta in REILY, 1984, p. 81-82. Ver, também, SALVADOR, 1982, v. 1, p. 24 et seq.).

Sua perspectiva era otimista, desejando até a implantação efetiva da mis- são metodista no país. Para isso, pediu com urgência a chegada de um missioná- rio para conduzir o significativo grupo que, aos poucos, se formara. O pedido foi concedido e, em abril de 1836, chega o Rev. Justin Spaulding com sua esposa, filho e empregada. O movimento ao qual as Escolas Domini- cais pertenciam estava forte nos Estados Unidos. Assim, a atuação de Spaulding, que de certa forma é considerada empreendedora, resultou na construção da Escola Dominical. O missionário relatou o acontecido em seu relatório, rea- lizado no dia 1 de setembro de 1836, ao secretário correspondente da Igreja Metodista Episcopal (IME):

Conseguimos organizar uma escola dominical, denominada Escola Dominical Missionária Sul-Americana, auxiliar da União das Escolas Dominicais da Igreja Metodista Episcopal [...] Mais de 40 crianças e jovens se tornaram interessa- dos nela [...] Está dividida em oito classes com quatro professores e quatro professoras. Nós nos reunimos às 16:30 aos domingos. Temos duas classes de pretos, uma fala inglês, a outra português. Atualmente parecem muito interessados e ansiosos por aprender [...] (Carta in REILY, 1984, p. 83-84).

TCCs 2019_2 --- 73 Em 1837, embarcou o missionário metodista e agente da Sociedade Bí- blica Americana, Rev. Daniel P. Kidder (1815-1891). Esse se qualifica por ser a primeira figura pública a atuar no início do protestantismo brasileiro. Kidder percorreu as cidades do Brasil distribuindo e vendendo os escritos sagrados, indo a vilas, sertões e grandes centros, sem deixar de orar pelos necessitados e evangelizar.

1.2.2 Congregacionais

No ano de 1855, Dr. Robert Reid Kalley (1809-1888) chegou ao Rio de Janeiro, junto de sua esposa, Sarah Poulton Kalley (1825-1907). O casal veio da Inglaterra para a cidade de Petrópolis (RJ). Sua vinda não foi por um motivo tranquilo, afinal, o médico, pastor e mis- sionário escocês sofreu com intensas perseguições por parte da Igreja Católica Romana. Kalley era missionário na Ilha da Madeira desde 1838. Seu trabalho começou apenas como médico da região - resultando na construção de um hospital voltado para educação e religião - em 1839. Em sua obra, Jornada no Império: vida e obra do Dr. Kalley no Brasil, Forsyth (2006) descreve que as es- colas, cujo livro de estudo central era a Bíblia, cresceram e multiplicaram rapi- damente. No ano de 1843, ocorreu o início da perseguição contra o doutor. Ele ficou seis meses na prisão, teve sua casa assaltada e queimada, e sua segurança colocada em risco pelas autoridades locais. A solução foi fugir junto com alguns madeirenses convertidos. O trabalho do pastor no Brasil foi intenso, envolvendo: a organização, em 1855, da Escola Dominical em Petrópolis; confecção de Salmos e Hinos, em 1861, composto por quatro edições, somando ao todo, mais de 300 hi- nos; tradução de escritos religiosos e a fundação, em julho 1858, da Primeira Igreja Protestante no Brasil, no idioma português, a chamada Igreja Evangélica Fluminense. O missionário estava ativo nas atividades em defesa da liberdade religiosa.

1.2.3 Presbiterianos De acordo com Hermisten Maia (2007), James Cooley Fletcher (1823- 1901) foi outra figura importante para a disseminação do Evangelho. O pres- biteriano teve sua formação nas entidades de Phillps Exeter Academy, Brown University e Princeton Theological Seminary. Fletcher, antes de vir ao Brasil, dedicou-se a um estudo meticuloso a respeito do trabalho do metodista Daniel P. Kidder (1815- 1891) que descrevia suas experiências em Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, obra composta por dois volumes. No ano de 1581, Fletcher desembarca no Brasil, com objetivo de substi-

TCCs 2019_2 --- 74 tuir o antigo capelão da Sociedade dos Amigos dos Marinheiros (1828) e aten- der aos americanos e ingleses que estavam morando no país, especificamente, no Rio de Janeiro. O jovem americano tinha o apoio da União Cristã Americana e Estrangeira (1849), e desempenhou funções no campo missionário e até mes- mo, político. Segundo Vieira (1980):

James Cooley Fletcher foi um pioneiro do trabalho protestante missionário no Brasil e um dos que, muito ativamente, contribuíram para o movimento de protestantização do Império e para a luta em favor da completa liberdade de culto. (VIEIRA, 1980, p. 62).

“Homem de negócios”, como se intitulava, Fletcher foi o primeiro agente da Sociedade Bíblica Americana (1854). O pastor publicou, em 1857, o livro Brazil and The Brazilians (O Brasil e os Brasileiros) caracterizado por ser uma obra atualizada de D. P. Kidder. Sua percepção do país contribuiu para o Insti- tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual se tornou membro em 1862. Fletcher escreveu artigos para vários jornais dos Estados Unidos e Euro- pa, distribuiu Bíblias, auxiliou missionários protestantes financeiramente e até colaborou na implantação de agências bíblicas no Brasil. Porém, seu papel na missão era voltado à disseminação da Palavra de Deus, enquanto missionários como Simonton e Blackford, somaram seus esforços para a implantação da doutrina protestante no país por meio de pregações e implantação de igrejas.

1.3 Início da missão presbiteriana no Brasil Pode-se dizer, então, que o início do trabalho oficial dos presbiterianos ocorreu no dia 12 de agosto de 1859, data marcada pela chegada de Ashbel Green Simonton (1833-1967). O missionário americano foi responsável por grandes contribuições, ten- do como destaque: a fundação da Primeira Igreja Presbiteriana no Brasil (IPB); criação do primeiro jornal evangélico Imprensa Evangelica e a formação do Presbitério do Rio de Janeiro, composto por Simonton, A. L. Blackford e F. J. C. Schneider e formado pelas igrejas do Rio de Janeiro, a de São Paulo e a de Brotas e a organização do Seminário do Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1867, com quatro alunos.

1.4 Missionários e a imprensa protestante A chegada dos missionários ao Brasil no século XIX foi marcada pela introdução do protestantismo e o alcance da mensagem do Evangelho. Os pro- testantes viam em suas mãos uma ferramenta valiosa para propagação de sua fé: a impressão.

TCCs 2019_2 --- 75 Dessa maneira, a produção em grande escala de folhetos, textos, publica- ções em jornais, artigos, traduções e sermões conduziu o trabalho dos missio- nários para que fosse possível atingir o povo. Por esse motivo, nos atentaremos nas páginas a seguir ao estudo das es- tratégias utilizadas para divulgação da produção, explicando as maneiras de sua distribuição, tendo como foco a função de dois missionários que se destacaram na chamada imprensa protestante.

1.5 Surgimento da imprensa protestante

A imprensa protestante surgiu, a princípio, também com a Constituição de 1824, promulgada por Dom Pedro I, em que é concedida a liberdade de expressão dentro do espaço de tolerância permitido pelo Estado e o Brasil monárquico:

Todos podem comunicar seus pensamentos por palavras, escritos e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito, nos casos e pela forma que a Lei determinar. (CONSTITUIÇÃO,1824).

Essa concessão deu oportunidade para que os missionários que vinham, em especial, dos Estados Unidos, usufruíssem da imprensa fazendo uso de fo- lhetos, livros e pequenos impressos. O que começou com publicações, edições de colunas em jornais da época, resultou na produção do próprio veículo. Segundo a pesquisadora Micheline Reinaux de Vasconcelos (2010), inicialmente, no século XIX, os protestantes compravam espaços para publicarem seus ideais em jornais seculares como: Jornal do Recife e no Diário de Pernambuco, no Diário do Estado, do Ceará, e no Correio Paulistano e Diário de São Paulo, Correio Mercantil e do Jornal do Comércio. No mesmo século, os missionários que viam o material como uma ferra- menta de propagação da fé protestante criaram seu próprio veículo, fundamen- tando suas convicções por meio da divulgação dos textos. A imprensa no Brasil oitocentista crescia à medida que a disseminação das ideias religiosas defendi- das pelos missionários protestantes se propagava pelas terras brasileiras. Em um país de grande maioria católica romana, desde cedo, os protes- tantes no Brasil usavam periódicos de forma estratégica para promover sua religião, produzindo conteúdos apologéticos e, até mesmo, textos opinativos que confrontavam diretamente a Igreja de Roma. No veículo jornalístico era cumprida a missão dos protestantes no Brasil.

TCCs 2019_2 --- 76 Robert Kalley observou a potencialidade do impresso. O resultado foi a intensificação de suas atividades como missionário, já que se dedicava à divulga- ção e edição de impressos protestantes, tradução de livros, venda de folhetos e opúsculos, composição de artigos, muitos deles publicados pela imprensa secular, e até investimento em sua própria obra editorial com o objetivode alicerçar, no território brasileiro, doutrinas protestantes, a partir da exposição de hábitos e costumes da tradição cristã do primeiro século. Quanto ao seu trabalho literário, Vieira (1980), afirma que entre os anos de 1855 e 1866, Kalley publicou aproximadamente 35 artigos no jornal diário Correio Mercantil, tendo como destaque a tradução que fez do livro O Pere- grino de John Bunyan, publicado em capítulos. O missionário escreveu para o Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, e demais jornais. Entre 1855 e 1876, Kalley escrevia artigos com comentários de assuntos religiosos, fazendo o uso de pseudônimos que o preservam de seus perseguidores, que já sabiam quem era o autor os textos. Vieira (1980), mais uma vez, explica que os pseudônimos variam de: “um leitor constante do Correio Mercantil”, “um crente”, “devoto sincero”, “um dos discípulos do cru- cificado” e outros. Sua estratégia, que envolvia a divulgação de ideias e promoção do protes- tantismo por meio da circulação de impressos, trouxe proximidade a muitos brasileiros que ao terem acesso com os escritos, além de desenvolverem a leitura e escrita, passaram a conhecer a Bíblia, as doutrinas, se aproximando cada vez mais do Cristianismo Protestante. A pregação por meio do veículo de comunicação tornou-se, assim, muito mais eficaz que a pregação desenvolvida pessoalmente. Deve-se ressaltar que o número de pregadores era reduzido, sendo a língua portuguesa o motivo primário. Era o caso do norte americano Ashbel Green Simonton, que iniciou seus trabalhos no país como capelão, já que não sabia ainda falar português. Porém, o presbiteriano dedicou-se a aprender a língua portuguesa com a missão de pregar diretamente para os brasileiros. Além de adaptar-se com a fala, colocou em prática o seu discurso no impresso, resultando na criação do Imprensa Evangelica, primeiro jornal protestante no Brasil.

Capítulo II – Surgimento do Imprensa Evangelica

O Imprensa Evangelica, órgão oficial da Igreja Presbiteriana no Brasil (IPB), foi o primeiro jornal protestante em língua portuguesa no país. Publicado quin- zenalmente no Rio de Janeiro, o periódico circulou de 1864 a 1892, resultando, ao todo, 28 anos. Segundo o pastor presbiteriano, teólogo e escritor Hermisten Maia Pereira da Costa (2006), no dia 5 de novembro de 1864, o Rev. Ashbel G.

TCCs 2019_2 --- 77 Simonton, em parceria com amigos, publicou o Imprensa. O veículo era composto por vários textos que, segundo a pesquisadora Edwiges Rosa Santos (2009), incluíam desde assuntos sobre a fauna e flora de diversas regiões do mundo, estatísticas nacionais e internacionais, relatos sobre os avanços científicos e invenções até receitas para cura de enfermidades e outros. O Imprensa foi o grande responsável pela aproximação das igrejas protes- tantes no Brasil, servindo como ferramenta de comunicação entre os evangéli- cos e as elites brasileiras. O material defendia a liberdade religiosa e denunciava as ações e perse- guições da Igreja Romana. De acordo com Santos (2009) os textos iam além de jornalísticos. Eram também literários, trazendo clássicos da literatura protes- tante global. Em suma, o conteúdo era voltado para a disseminação da doutrina protestante com o uso de estudos bíblicos e escritos apologéticos. Era visto de forma respeitosa pelas elites da sociedade brasileira, público leitor fiel do jornal. O surgimento do Imprensa se deu após o Rev. Ashbel G. Simonton (1833 - 1867), missionário enviado ao Brasil pela missão presbiteriana da Igreja Pres- biteriana do Norte dos EUA, a Presbyterian Church United States of America, observar o crescente interesse da população brasileira, inclusive intelectuais (entende-se aqui, de cargo político na sociedade) por artigos, da imprensa da época, que abordavam temas e debates religiosos, acima de tudo de forma crí- tica à Igreja Católica. A partir desse quadro, o missionário americano, segundo Santos (2009), sentiu-se impulsionado a criar um jornal para divulgar mais da mensagem que carregava o protestantismo. Para Ferreira (2014):

A iniciativa de Simonton em criar o jornal não era fruto de um rompante de entusiasmo nem uma aventura inconsequente. Pelo contrário, ao chegar ao Rio de Janeiro, tivera a oportunidade de presenciar a mesma estratégia sendo colocada em prática com êxito pelo missionário Robert Kalley, confor- me citações anteriores. E percebeu que a imprensa carioca era ativa e abria grandes possibilidades para a inserção de material propagandístico religioso. (FERREIRA, 2014, p. 70).

Simonton e seu cunhado Blackford viram no jornal uma oportunidade de atrair aprendizes e pessoas do governo para se atentarem à causa protestante no país. De acordo com a pesquisadora Vasconcelos (2010), a maioria desse público não ia às reuniões. Logo, com a leitura do periódico, eles poderiam

TCCs 2019_2 --- 78 disseminar o conteúdo lido a essa classe social. A importância dada pelos brasileiros à imprensa foi o principal motivo para a inauguração do jornal evangélico. Em 5 de novembro de 1864, publicou- -se o primeiro número do periódico cristão, impresso na Typographia Universal de Laemmert, criada pelos protestantes Eduard e Heinrich Laemmert. A tipo- grafia era, de acordo com Halleweel (2012), a segunda maior gráfica importante no Rio de Janeiro, tanto por seu tamanho quanto influência. A tipografia loca- lizada na Rua dos Inválidos Nº 71, fora visitada inclusive por D. Pedro II, em 9 de julho de 1862. As páginas do jornal apresentavam um aspecto peculiar em sua numera- ção: era contínua, isto é, não terminava com a última folha da edição, mas sim, seguia uma sequência de um número a outro. Vasconcelos (2010), mais uma vez, explica que o motivo de Simonton ter feito isso é para que o Imprensa obtivesse o formato de jornal com uma série de fascículos que seriam enca- dernados pelos próprios leitores fazendo de um livro ou enciclopédia para ser consultado. A edição obteve, segundo Ribeiro (1981), uma tiragem de 450 exemplares, e custava $ 520 réis. Os preparativos para o lançamento do primeiro número foram de grande tensão e ansiedade por parte de seu editor, Simonton, que em seu diário, no dia 26 de outubro de 1864, registra:

Ontem de manhã Santos Neves e Quintana vieram até nossa casa receber os originais do primeiro número da Imprensa Evangélica, o jornal semanal que resolvemos publicar. Sinto mais a responsabilidade deste passo que de qualquer outra coisa que antes intentei. Primeiro nos ajoelhamos em oração e entregamos a Imprensa e nós mesmos à direção divina. O caminho parece aberto e só nos resta avançar com decisão. (SIMONTON, 1982, p.194).

No primeiro número do Imprensa (1864, n.1, p.1), os leitores já são in- formados quanto à periodicidade e conteúdo do jornal ao afirmar que: “Sahirá semanalmente em numero de 8 paginas que, além dos artigos de fundo, conterá um noticiário universal de interesse puramente evangélico”. Em Prospecto, pri- meira publicação editorial do jornal, Simonton expõe com clareza o objetivo final do jornal:

TCCs 2019_2 --- 79 No meio do cháos de idéas religiosas, que divide actualmente os homens, inútil fora descobrir-lhes as fontes d’onde borbulha o mal, separa cura-lo lhes não applicassemos meios. A propagação do Evangelho, pela vivificação da devoção domestica pelo órgão de uma folha, particularmente a isso consagrada, eis da nossa parte a applicação dos meios. [...] Este trabalho, não tendo em vistas senão os interesses exclusivamente religiosos da sociedade em geral, como em particular do individuo, estranho á toda e qualquer ingerência em politica, a todos é consagrado; porém com muita particularidade o dedicamos áquelles para quem a religião de Jesus Christo ainda não se tornou cousa indifferente, e, no meio da perversão universal de seus principios divinos, não trahirão ainda o dom mais precioso de Deos- a liberdade de consciencia perante o Evangelho. (PROSPECTO, IMPRENSA EVANGELICA, 05/11/ 1864, p. 1, preserva-se a grafia original).

O trecho, que será analisado mais à frente no próximo capítulo, reflete a preocupação do missionário em querer que seus leitores obtivessem conheci- mento sobre a religião que professam, e, aos que não possuem, que usassem o jornal como guia para os momentos de devoção doméstica particular. Em meio ao caos de ideias que cercava a sociedade, o jornal serviu como meio para levar o Evangelho à população brasileira. Ashbel G. Simonton chegou à cidade do Rio de Janeiro em 12 de agos- to de 1859, tendo apenas 26 anos de idade. Sua missão estava voltada para a implantação do presbiterianismo a fim de fundar uma igreja no país. Para isso, Simonton obteve o auxílio de seu amigo e cunhado, Rev. Alexander Latimer Blackford. O pastor Blackford e sua esposa Elizabeth, irmã de Simonton, chegaram à província do Rio de Janeiro em 25 de julho de 1860, enviados pela Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, Board of New York. Ao que diz respeito à sua denominação, Simonton se caracterizava por ser, segundo Santos (2009), o primeiro missionário no país enviado por uma junta de missões estrangeiras. O idealizador e primeiro editor do Imprensa contou com a ajuda do Rev. Alexander Latimer Blackford, Rev. José Manoel da Conceição e o pastor con- gregacional e médico Rev. Robert Kalley para a produção do jornal, sendo eles os primeiros editores.

Capítulo III – Análise do discurso de Prospecto

Publicado em 5 de novembro de 1864 e escrito pelo missionário Rev. Ashbel G. Simonton, Prospecto é o primeiro texto editorial que inaugura as publicações do Imprensa Evangelica.

TCCs 2019_2 --- 80 Figura 1. Primeira página do Imprensa Evangelica do dia 5 de novembro de 1864.

TCCs 2019_2 --- 81 Segundo o dicionário Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (2015), a palavra Prospecto tem como significado algo que pode acontecer; perspectiva; descrição de um plano de ação; programa que contém o plano, a descrição de uma obra etc. Voltando para a área da comunicação, em especial a publicitária, e de editoração, trata-se de um impresso em que é anunciado a propaganda de livro, organização, mercadoria e outros, elucidando, com exem- plos e argumentos, seus aspectos mais interessantes. Compreende-se, assim, que no primeiro texto Simonton almeja deixar claro os propósitos do jornal protestante e, para identificação dos propósitos, serão usadas as ferramentas da Análise do Discurso. A Análise do Discurso é, basicamente, a análise dos signos presentes em um discurso e seus efeitos de sentido. Ao que se sabe, tudo é signo, pois em tudo é possível transmitir um sinal, logo, tudo tem um sinal. Ao que se difere de uma Análise de Conteúdo quando se trata do discurso, a intencionalidade do emissor não é investigada, ou seja, independe de sua visão de mundo, o foco da atenção é voltado para a mensagem a ser transmitida. É por meio do observar os sinais e a relação entre eles que se constrói uma análise completa do discurso. Assim, a análise do primeiro texto do jornal Imprensa Evangelica tem como base as descrições e orientações da Doutora em linguística de texto e análise de discurso pela Universidade de São Paulo (USP), Diana Luz Pessoa de Barros. Para se realizar uma análise de discurso é preciso passar por níveis. A pri- meira delas é o nível fundamental. Nesse nível determina-se a oposição ou as oposições semânticas para que se construa todo o sentido do texto. Ou seja, a significação do texto a partir das oposições.

3.1 Prospecto 1

3.2 Nível fundamental Em Prospecto, primeira publicação do Imprensa Evangelica, as categorias semânticas fundamentais são:

Tabela I – Oposições em Prospecto

1 PROSPECTO. Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, 1864, n.1, p.1, 5 de nov. 1864. Disponível em: . Acesso em: 10 de fev.2019.

TCCs 2019_2 --- 82 Tabela 1. Fonte: Elaborada pela autora. Essas oposições se manifestam de diversas formas no texto editorial: “dis- posição para conversações santas”, “amor a Deus”, “raras vezes imitando a Jesus Cristo”, “caos de ideias religiosas”, “fontes d'onde borbulha o mal” etc. Segundo Barros (1997), as categorias fundamentais são determinadas no texto como positivas ou eufóricas e negativas ou disfóricas. No texto, reconci- liação é eufórica, e a separação, disfórica. A eufórica estabelece a relação de conformidade do ser vivo. No texto, “reformar o coração”, “propagação do Evangelho” e “vivificação da devoção doméstica”, são exemplos de euforia. Já a disfórica, é o contrário, pois é marca- da pela relação de desconformidade do ser vivo com os conteúdos represen- tados. “Atos que não correspondem à religião que professa” e “ações que não revelam algum amor a Deus” são partes que aparentam a disforia presentes no texto editorial. Tendo mencionado as relações presentes, é possível estabelecer no nível fundamental, uma ligação entre as oposições identificadas. Sendo a separação negativa e a reconciliação positiva:

A não- separação, ou seja, a negação da separação, é apresentada em "es- forços de uma alma aflita por se reconciliar com Deus". O editorial possui como conteúdo fundamental à negação da separação com Deus, identificada como negativa, ou seja, disfórica, e a afirmação da re- conciliação, é eufórica.

3.3 Nível narrativo No nível das estruturas narrativas, como explica Barros (1997), os ele- mentos das oposições semânticas determinadas no nível fundamental, são as-

TCCs 2019_2 --- 83 sumidos como valores por um sujeito. Nesse nível, não se trata mais de afirmar ou negar, de aceitar a reconciliação e rejeitar a separação, mas sim de transfor- mar, pela ação do objeto, estados de reconciliação ou de separação. Sendo assim, Prospecto, apresenta o estado do sujeito (homem), manipula- do por intimidação pelo autor do texto, ou seja, por outro sujeito. É importante ressaltar que o conceito de intimidação na Análise do Discurso é desvinculado apenas a ideia de que esta é em sua totalidade negativa. Ainda que se classifi- que como um processo em que o destinador dotado de poder faz com que o destinatário execute algo por meio de ameaça, no geral, nem a intimidação é de natureza disfórica. No presente texto será visto que o objetivo da intimidação do autor é para que este auxilie o seu leitor a tentar reconhecer seu erro. No texto, essa colocação se expressa em: “No meio do caos de ideias religiosas, que divide atualmente os homens, inútil fora descobrir-lhes as fontes d'onde borbulha o mal, se para curá-lo lhes não aplicássemos meios.” E mais à frente é afirmado que a solução para os homens que se encontram perdidos no meio do caos das ideias é o próprio jornal, que irá qualificar como uma “parte a aplicação dos meios” para que homem saia do caos para que se tenha cura. Assim que o leitor tem acesso à primeira página, é manipulado a dispor em seu coração, uma verdadeira devoção a Deus, para que seus atos e ações imitem a Cristo Jesus, Aquele a quem professam. É importante ressaltar que nem toda a manipulação é negativa uma vez que não está atrelada a ideia de enganar, mas sim de levar a convencer. É possível depreender que Simonton queira do leitor compreender sua condição em relação ao seu relacionamento com Deus, que se atente em sua hora de devoção, em seu coração e alma. Esses aspectos fazem menção à com- petência que o destinatário-sujeito precisa ter para que receba do destinador, a qualificação necessária à ação. A competência é uma condição para uma efi- ciente relação entre o emissor e o receptor. Após a análise da competência, vem a performance que Barros (1997), mais uma vez, irá descrever como aquilo que representa a ação do sujeito que se apropria dos objetos - valor que almeja. A performance do leitor é de aquisição do jornal e o que o autor considera como obtenção da liberdade de consciência perante o Evangelho. O leitor, como sujeito do fazer, realiza uma autoanálise de seus atos e ações, identificando o mal presente neles para, assim, buscar adquirir a liber- dade de consciência oferecida pelo periódico. Agora, ele se encontra livre de seus próprios julgamentos. A medida que lê, o sujeito almeja consumir mais o veículo pois, por meio dele, terá verdadeiro conhecimento e relacionamento com Deus. Mais à frente, ele explica a necessidade e a oportunidade que teve de pro-

TCCs 2019_2 --- 84 duzir o jornal. Segundo o missionário, foi visto que os homens não compreen- dem de onde ‘borbulha o mal’. A resposta é dita logo após: em suas más ações, ou seja, o pecado, que separa eles de Deus. Uma solução apontada para isso é por meio do jornal. O homem que se encontra distante de Deus, encontrará a cura, ou seja, a reforma do coração. A propagação do Evangelho e a vivificação da devoção doméstica por meio das páginas do Imprensa, essa é a sanção. Em suma, Simonton leva a acreditar que ao ler o jornal, ferramenta para cultivo de um verdadeiro conhecimento e relacionamento com Deus, o homem terá melhor compreensão da liberdade de consciência perante o Evangelho.

3.4 Nível Discursivo e elementos do discurso

O último nível a ser explorado é o das estruturas discursivas. Barros (1997) classifica esse nível como o mais superficial do percurso e o mais pró- ximo da manifestação textual. No nível discursivo são apresentadas de forma específica as categorias de pessoa, tempo e espaço, agregando, no presente nível, atores, tempo e espaço. É por meio desse nível que o leitor identifica a intencionalidade do autor. Ao que se sabe, o texto Prospecto foi realizado por Simonton a fim de que fosse exposta a proposta e temática a serem produzidas no Imprensa. O editorial preocupa-se em apresentar a opinião do jornal sobre os assuntos religiosos a serem abordados nas páginas da folha evangélica. Dessa forma, o texto, ou seja, o editorial, pode ser definido como uma realização de um enunciador. Entende-se enunciador como o autor do texto, o mesmo realiza o processo de produção a fim de obter alguma coisa.Assim, Prospecto é formado por um enunciador “autor do texto”, também chamado de destinador implícito da enunciação; um enunciatário (quem recebe a mensa- gem, nesse caso, o leitor); um narrador (o missionário Simonton, assumindo de forma inclusiva os editores do jornal) e, por fim, um narratário (tu) a partir dos actantes: pessoal “eu, nós”, tempo “agora” e espaço “aqui”, provocando o efeito de subjetividade e proximidade entre o enunciador e o texto. A subjetividade e proximidade ocorrem quando se tem a presença do pronome “eu”, valorizando, assim, a presença do narrador e o pronome “você”, marcando a presença do leitor, conhecido também como os narratários que, ao ler o material, tem a sensação de estar perante do processo de produção do texto, ou seja, a enunciação. O conceito aplicado na semiótica que diferencia pessoa, tempo e espaço, tem como nome debreagem. Em suma, é caracterizado por ser um mecanismo que aproxima e afasta a enunciação e o enunciador. O foco não está na relação

TCCs 2019_2 --- 85 da enunciação como processo e o enunciador, como sujeito que irá receber a mensagem, mas sim, no produto do processo; no produto final do ato, sendo nesse caso, o enunciado. Barros (1997) explica que na desembreagem enunciva, o que importa, no exemplo da produção científica, é a voz da ciência e não a subjetividade explí- cita de alguém, logo, a sensação que causa é de distanciamento, objetividade, de estar presente no tempo do “então” e espaço do lá. O contrário também acontece e é chamado de desembreagem enunciativa, em que se produz o dis- curso em primeira pessoa. Percebe-se em Prospecto o efeito de proximidade e subjetividade que Simonton realiza ao colocar o “nós”, primeira pessoa no singular, em vários momentos do texto. A relação “eu - tu”, com o recurso da primeira pessoa no texto, com a presença de plurais majestáticos como “temos perlustrado”, “nossos esforços” “nossa parte” “nos linjearemos” “nossa igreja “nossa folha” etc. Decerto, o autor do texto escreve incluindo sua pessoa assim como dos editores do Imprensa Evangelica, pois, diante do público leitor, tem-se uma missão: a propagação do Evangelho, utilizando como veículo o próprio jornal. O efeito de subjetividade é mostrado a partir da visão dos fatos vividos e narrados, no caso, logo no começo, por quem os viveu, nesse caso os missioná- rios na voz de Simonton, o autor do texto, ao afirmar que eles têm observado nas diversas classes da sociedade que “há disposição para conversações santas, desejo ardente de reformar o coração e esforços de uma alma aflita por se reconciliar com Deus”. A subjetividade é impregnada com a parcialidade. Diferentemente dos outros jornais, em que tem como preocupação a comunicar fatos, criando a alusão de objetividade, Prospecto deixa claro a visão do erro cometido pelos homens (e mulheres), que se dizem cristãos, na hora da devoção, ou seja, no espaço do aqui, mas apresentam “um coração inteiramente diferente daquele que revela sua vida comum” uma vez que “seus atos não correspondem à reli- gião que professa”, a fim de trazer o público leitor para perto a fim de que se identifique com o acontecimento apontado. Pode-se dizer, também que a atitude que não corresponde ao que a re- ligião declara é um dos elementos de manipulação usado para levar o sujeito executar uma ação. No presente texto, a manipulação é por intimidação, ou seja, o manipulador oferece ao enunciatário algo de valor ruim para que o enunciatário aja positivamente. A intimidação é clara em “raras vezes imitando a Jesus Cristo” e, também ao dizer que “inútil foi para os homens descobrir as fontes de onde borbulha todo o mal, se para curá-lo lhes não aplicássemos meios”.

TCCs 2019_2 --- 86 3.5 A pluralidade de vozes em Prospecto

Dentro de um texto há uma variedade de vozes, esse aspecto o faz ser polifônico. O conceito de polifonia aplicado pelo filósofo Bakhtin é caracte- rizado por ser um princípio dialógico constitutivo da linguagem e tem como principal característica a presença de vozes polêmicas em um discurso. Em Prospecto é possível notar as seguintes vozes: a do jornal, de Simon- ton, como pastor e missionário, da igreja, da Bíblia, dos protestantes, de Deus e de Jesus Cristo. Essas vozes centrais se fazem presentes logo no início do primeiro parágrafo quando é afirmado que “Temos perlustrado todas as classes da sociedade”. O plural temos tem como sujeito oculto “nós”, e, levando em consideração as vozes centrais apontadas, essa palavra, no plural, faz menção à pessoa de Simonton, aos editores do Imprensa Evangelica, ou seja, carrega a voz do jornal, já que “pelo órgão de uma folha” os missionários, ao afirmarem “nossa parte a aplicação dos meios” tem como missão levar, percorrer, andar e alcançar pessoas da sociedade, no caso, a sociedade brasileira da época, século XIX, a fim de prestarem “de um modo proporcionado, às suas mais legítimas exigências na esfera religiosa”, como mencionado no texto. Os requisitos feitos são reflexo da disposição em querer conversar mais a respeito da religião, junto a necessidade de “reformar o coração e esforços de uma alma aflita por se reconciliar com Deus”. Os protestantes ao chegarem ao Brasil, e propagarem a mensagem do Evangelho, procuravam despertar o inte- resse da população em obter uma vida que fosse voltada para Deus. Em seguida, a voz ressaltada é a que está presente na Bíblia, a certeza de que “não vivemos só para esse mundo, senão também para um outro mundo, que infalivelmente nos espera, logo que a morte nos transforma”. Da mesma forma, é possível identificar a voz em que aparece, mais uma vez, na Bíblia: “seus atos não correspondem a religião que confessa”, fazendo alusão a um trecho bíblico que mais à frente será explorado. A partir do quarto parágrafo, a voz dos missionários, especificamente os que estão à frente da edição e produção do jornal, torna-se mais presente com o uso do plural majestático em: “Se de nossos esforços”, “não conseguirmos vingar”, “nosso desígnio”, “nos lisonjearemos jubilosos”, “havermos cumprido com o nosso dever”, “nossa igreja”, “iremos dando”, “nossa folha” e, no último parágrafo “o dedicamos àqueles para quem a religião de Jesus Cristo ainda não se tornou coisa indiferente”. Jesus Cristo é a voz que conduz o propósito do jornal. Tudo gira em torno da “religião de Jesus Cristo”, e sua história descrita em seu Evangelho que, ao ser propagada nas “8 páginas, publicadas, a princípio, semanalmente, tratá verda- deira liberdade aos homens, que raramente O imitavam, uma vez que estavam

TCCs 2019_2 --- 87 presos no executar de suas obras, que por fim, foram falhas”, como é colocado no primeiro parágrafo pelo editor. Da mesma forma ocorre com Deus, que é a voz explícita e diretamente citada no texto. Nas vezes que aparece é sempre ligada à condição do homem e sua necessidade de se relacionar com Deus, exemplo: “Alma aflita por se reconciliar com Deus”, “acarretaria a justiça de Deus” “amor a Deus”, sendo a pessoa central do texto. O jornal, que defendia de fato o Cristianismo, faz menção, ainda que su- tilmente, às demais religiões e posturas erradas adotadas rigorosamente. Não é apenas em textos específicos que o Imprensa, de visão protestante, crítica à Igreja Católica Romana desde o começo, deixa clara a rejeição ao afirmar que a sociedade da época se encontrava no “caos de ideias religiosas”.

3.6 A diversidade dentro da perspectiva estrutural de análise do discurso

Realizar análise do discurso é lidar com uma diversidade de escolas e tendências epistemológicas complexas. Trata-se de um campo interdisciplinar em que as fontes se encontram nas chamadas ciências humanas, sociais, linguís- tica, semiótica, literária, sociológica e, até mesmo, psicológica. As definições de Análise do Discurso são variadas e, até hoje, motivo de discussão, podendo ser classificada como “a análise do uso da língua”, como fazem Brown e Yule (1993, p. 1), ou até “o estudo do uso real da linguagem, por locutores reais em situa- ções reais”, como define o Van Dejk (1990, p. 15), além de outros estudiosos renomados da área. Mesmo que ofereça uma vertente interpretativa, esse campo da semiótica não pode ser reduzido apenas a uma série de procedimentos e etapas mecâni- cas. O acadêmico britânico Michael Billig em seu livro Rhetorical and Discourse Analysis defende que a Análise do Discurso deve ser observada como um cam- po amplo, teórico e de abordagem transdisciplinar. Por esse motivo, a presente pesquisa deseja contribuir para uma análise tanto estrutural quanto compreensiva dos textos e, para isso, aproximará de diferentes perspectivas e alguns modelos que estão divididos em três principais: nível informacional-quantitativo (análise do conteúdo), nível estrutural-textual (análise semiótica) e nível social-hermenêutico (interpretação social dos dis- cursos). Em seguida, a análise semiótica, também definida por Alonso (1998) como “semiótica textual, “semiótica discursiva”, “semiótica estrutural”, “sócio semió- tica” ou “análise semiótica dos discursos”. Nesse nível é feita uma prática es-

TCCs 2019_2 --- 88 pecializada de leitura, como define Abril, (1994, p. 429), em que é ampliada para uma análisede significação dos textos. Para que se tenha a produção de sentido é feita, então, uma análise das condições de produção, circulação e recepção dos discursos. Por último, há a análise do discurso, também denominada como “interpre- tação social dos discursos” ou “análise sociológica dos discursos”. Em suma, o terceiro nível não busca analisar internamente o texto, nem a linguística, mas sim, de observar a reconstrução dos sentidos dos discursos. A principal preo- cupação está em identificar as relações de produção do sentido, em estudar os discursos e suas motivações, isto é, suas intencionalidades. Tendo em vista a aplicação desses três níveis e o desejo de aprofundamen- to e aproveitamento do material por parte da autora, as análises feitas a seguir, parágrafo a parágrafo, buscam contribuir para a compreensão do objeto de pesquisa, isto é, o periódico Imprensa Evangelica, visando a estrutura jornalísti- ca do texto editorial por meio da utilização de palavras e expressões da época. Importante ressaltar que o objetivo da análise a seguir é ir além do enunciado, fazendo uso de ferramentas do campo da semiótica e semântica.

3.7 Análise do texto editorial

Prospecto tem como etimologia a palavra perspectiva. Esta, por sua vez, tem como significado: “Arte ou técnica de representar tridimensionalmente, criando ilusão de profundidade e proporção das figuras, de tal forma que es- tas, no espaço do ponto de vista do observador, pareçam bem menores à proporção que cresce a distância; método que possibilita ilusão de um espaço tridimensional, pelo qual retas paralelas que se projetam longe do primeiro plano são desenhadas, na verdade, como linhas diagonais que convergem e se encontram em determinado ponto”. A tradução vai além do campo da arte e pintura. A palavra perspectiva estende-se também ao modo de se analisar uma situação; um ponto de vista de algo específico; ver ao longe; trata-se de uma visão que estende ao longe, até onde os olhos podem alcançar. Ao exercer uma relação entre a técnica artística e o impresso, o modo tridimensional de representação inicia-se com um ponto específico, chamado ponto de fuga. O ponto de fuga tem como função ser a linha do horizonte que liga todas as outras linhas, projetando o desenho. As linhas são direcionadas até este ponto de fuga, ou seja, toda a composição da imagem (como desenhos de prédios, ruas, construções e pinturas) é regida pelo ponto de fuga. Aplicando essa explicação ao nome e propósito do jornal evangélico a Imprensa, tudo liga, então, a um único ponto. A um foco: O Evangelho. O título

TCCs 2019_2 --- 89 do texto reflete a temática do ponto de vista que, por sua vez, se estende para longe, até onde os olhos podem alcançar. O texto editorial deseja trazer uma visão que está à frente de qualquer outra. Fazendo uso também do sentimento de esperança e expectativa para os leitores que ao ter o jornal em mãos, sen- tem motivados a continuar a leitura da folha. Em suma, o uso da palavra Prospecto no título do texto editorial traz a ideia de oferecer uma visão sobre determinado contexto a partir de aspectos vanguardistas, uma vez que o jornal se caracteriza por ser o primeiro impresso protestante no Brasil. Dessa forma, o editorial escrito pelo pastor presbiteriano Ashbel Green Simonton, possui além dos objetivos e propósitos que serão apresentados nas páginas do Imprensa, uma visão definida a respeito da doutrina protestante pre- sente na sociedade. As linhas desenhadas por um artista em uma folha de papel assemelham-se às linhas de palavras escritas pelos produtores do Imprensa. Todas elas, trazem uma dimensão, unindo-se apenas em um ponto específico, sendo esse, o ponto central que liga tudo: Jesus Cristo. a) Primeiro parágrafo

A primeira linha inicia-se com o plural majestático “temos”. Como visto, o verbo do presente do indicativo é carregado de vozes, a começar pela voz do próprio autor do texto, Ashbel Green Simonton. O verbo apresenta uma pluralidade que remete também às vozes: dos responsáveis pela produção do jornal, da Igreja Presbiteriana, uma vez que o jornal é o órgão principal desta igreja; dos protestantes e dos missionários que percorriam o território brasi- leiro com o propósito de evangelizar. Os verbos “temos” e, mais à frente “prestarmos”, são classificados como plurais majestáticos. No caso do texto, o tom é inclusivo, presente e envolve o pronome “nós”, que remete aos missionários e editores do jornal. Trata-se de personagens requisitados pela sociedade que buscam respostas de temática religiosa. Como citado, os missionários assim fazem “de modo proporcionado”, de forma a prestar contas as “mais legítimas exigências na esfera religiosa”. Ao mencionar “achamos disposição para conversações santas, desejo ar- dente de reformar o coração, e esforços de uma alma aflita por se reconciliar com Deus”, a causa das perguntas incessantes, tem como consequência as três ações mencionadas, que ligam a um único ponto: relacionamento pessoal com Deus. Nota-se, assim, a presença do conceito de perspectiva e tridimensionali- dade neste parágrafo. Quanto à palavra “reforma”, escolhida propositalmente pelo autor, carre- ga consigo o conceito de ideologia, definida pela crítica, ensaísta e professora

TCCs 2019_2 --- 90 Beth Brait (2005, p. 169), como “todo o conjunto dos reflexos e das interpre- tações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras […] ou outras formas sígnicas”. Dessa forma, não é apropriada a afirmação de que a ideologia é, segundo o intelectual mem- bro do Círculo de Bakhtin, uma simples expressão de ideia, trata-se de uma expressão em que há uma escolha determinada. Ao aplicar para o texto, o uso de uma palavra possui um propósito de cunho ideológico uma vez que o autor deseja expressar por meio desta o seu sistema de ideias, sua crença. Vale ressaltar que a palavra reforma é uma referência que faz alusão à pró- pria Reforma Protestante, movimento cristão ocorrido na Europa setentrional durante o século XVI e início do século XVII, liderado por Martinho Lutero por meio da publicação das 95 Teses no dia 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. O movimento deu origem às denominações históricas do protestantismo. Assim, o desejo de reformar o coração remete ao desejo de reconhecimento com a fé reformada, ou seja, a aceitação, o desejo de ter contato com as Escrituras sem intermédio de outrem e, por esta causa, a ter um verdadeiro relacionamento com o Deus da Bíblia, local em que são encontradas todas respostas para os questionamentos de escala religiosa. No momento em que é dito: "de que não vivemos só para este mundo, senão também para um outro mundo, que infalivelmente nos espera, logo que a morte nos transforma?", o autor faz alusão ao Evangelho de João em que Jesus afirma, “Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia”.(BÍBLIA, João, 15:19). 2 A frase “logo que a morte nos transforma”, faz alusão ao texto bíblico da carta de Paulo aos Filipenses em que é dito: “Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual trans- formará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas”. (BÍBLIA, Filipenses, 3: 20 e 21).3

2 Tendo como base a Bíblia de Estudo de Genebra (2009) a qual contém a introdução aos textos bíblicos, pode-se afirmar que esse evangelho foi escrito pelo apóstolo João e abor- da a vida de Jesus de forma que os incrédulos possam ir a ele pela fé e os cristãos possam desenvolver sua fé em Cristo. A tradição da igreja primitiva sugere que João escreveu esse Evangelho possivelmente em torno de 85-90 d.C. Já seu estilo característico é a ênfase em temas contrastantes, como: luz e trevas, amor e ódio, de baixo e de cima, vida e morte, verdade e mentira e outros.

3 Escrito pelo apóstolo Paulo, na epístola o autor agradece aos filipenses pela solidariedade enquanto esteve na prisão. Paulo anima-os a se unirem e ajudarem uns aos outros, mutuamen- te em Cristo.

TCCs 2019_2 --- 91 b) Segundo Parágrafo A estrutura do segundo parágrafo muda para a terceira pessoa. O foco agora está nas ações e atitudes do homem. Aqui, elimina-se a voz do autor e dos missionários e aparece a voz, primeiramente, de textos bíblicos. De ma- neira exortativa, o homem é colocado como aquele que não põe em prática verdadeiramente a sua fé. O momento de devoção torna-se, assim, um ato ao que se espera, con- trário. Mesmo sendo privado o momento entre o homem e Deus, sua vida não aparenta ser harmoniosa com o Evangelho em esfera pública. A começar pelo primeiro indício apontado: o coração. O coração é o lugar mais profundo do ser humano, é o local em quem ele é verdadeiro. O coração é mencionado em vários textos bíblicos, em especial, no livro de Lucas em que associa o coração a fonte de todo o tesouro. “O ho- mem bom do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração” (BÍBLIA, Lucas, 6:45).4 Em outras palavras, o fruto mostra a verdadeira identidade da árvore, as- sim também são as ações que expõem o caráter de uma pessoa. A justificativa para a afirmação de que o homem age mal, pois em seu coração encontra-se inteiramente diferente, é dito em seguida: “Aqui, seus atos não correspondem à religião que professa; e, se ali se mostra escrupuloso”. Pode- se, assim, dividir o espaço privado e público, sendo o público local em que o homem realiza suas boas ações do dia, mas a intencionalidade, que está em seu coração, é contrária. Faz para seu reconhecimento, para se auto vanglo- riar a fim de ter a admiração de todos. Assim, o autor afirma que as ações não demonstram amor a Deus, pois nem sempre fazer bons atos é ter um bom propósito. O contrário acontece, é por meio das práticas que o homem quer se fazer de justo, bom, adorador, mas, em seu coração, essas ações voltam-se para si, a fim de ser o deus a quem quer agradar: ele mesmo. O autor deixa claro que não são todos os casos assim, como se estivesse analisando, examinando e dando os sintomas de uma doença contagiosa, mas, não deixa de ressaltar que fazendo isso, são poucas as vezes que imitar-se a Cristo, o bom homem que se preocupava, em tudo, agradar a Deus. Mais uma vez, o público e privado são identificados no trecho, porém, dife- rente do parágrafo anterior, é colocado o público como consequência, uma vez

4 Esse livro bíblico apresenta um relato a fim de estabelecer fatos do ministério de Jesus assim como a sua relevância para a história da salvação. Lucas quis expor a verdade sobre o que Jesus realizou.

TCCs 2019_2 --- 92 que, muito o homem fala de Jesus Cristo, mas pouco, em sua particularidade, o imita. A crítica é dura e direta. O autor quer, de fato, persuadir, ferramenta da manipulação, o público a olhar para suas atitudes e avaliar se não está fazendo errado. c) Terceiro parágrafo O terceiro parágrafo inicia situando os homens (e mulheres) atuais, e logo após, volta-se para primeira pessoa do singular com o uso aparente do verbo “aplicássemos”. O narrador deixa de ser observador e aplica sobre si (autor junto aos missionários), a responsabilidade que tem, agora, de usar o meio de comunicação, ou seja, o Imprensa Evangelica, para que, por meio desta, os ho- mens - aqui, referem-se a todos que se encontram no caos das ideias religiosas-, possam obter a cura, a melhora de suas vidas doentes devido a dois fatores: o caos e a desarmonia entre os homens. Sendo a fonte de onde borbulha o mal o seu próprio coração. Uma vez que o jornal é o meio para ‘trazer a cura’ aos que necessitam descobrir de onde vem a fonte do mal, a presente sentença traz o propósito do periódico, assim como o valor agregador de missão por parte dos editores, da igreja, e missionários. Dessa forma, o jornal se identifica sua missão, de usar as páginas para divulgar a mensagem do Evangelho, ou seja, as boas notícias do Salvador Jesus Cristo, assim como trazer à tona o verdadeiro ato de devoção doméstica que precisa de vida, reanimo. d) Quarto parágrafo No quarto parágrafo, a voz de autoria é a dos missionários. Além de a utilização dos plurais inclusivos “nossos esforços”, “conseguirmos”, “nosso de- sígnio”, “nos lisonjearemos”, “havermos” e “nosso dever”, há o elemento fun- damental de sanção. A recompensa por tamanhos feitos do jornal não está no número de edições, tão pouco no sucesso de venda e circulação, mas sim, na propagação da mensagem. A tradução figurada para o “vingar”, isto é, conseguir bom êxito e resultado no que faz, esclarece o sentimento de dever cumprido. O que se pode observar também é que a afirmação “Se de nossos esfor- ços não conseguirmos vingar senão o mínimo do nosso desígnio” aponta para o erro do homem descrito anteriormente. Aqui, o contrário é apresentado e por sua vez, é o certo a ser feito. Ainda que os missionários não consigam obter êxito por seus esforços, eles, terão prazer, com alegria, de cumprir seu dever como cristãos. Como editores empenhados em trabalhar com o veículo de comunicação, o grau de satisfação está explícito ao afirmar que “nos lisonjearemos jubilosos,

TCCs 2019_2 --- 93 por havermos cumprido com o nosso dever”. Escrever, produzir e ensinar por meio das páginas não era uma tarefa fácil, mas o propósito não estava em agra- dar a eles mesmos, mas sim a Deus, e consequentemente ao próximo, ou seja, ao público que acompanhara fielmente as edições do jornal. e) Quinto e sexto parágrafos O quinto e sexto parágrafos mostram de que maneira será realizada a missão. Começando na periodicidade do texto, o conteúdo das páginas e a desenvoltura da folha. Ao contrário do jornalismo tradicional presente nos dias de hoje, nada é programado. Não se trata de um espaço que precisa ser preen- chido, mas de um assunto que, com o passar dos dias, precisa ser comentado e, por sua vez, discutido. Esse processo de produção reflete o amadorismo do jornalismo do século XIX, em que o editor- chefe também era responsável por escrever, revisar, editar além de levantar pautas úteis para o seu público. Trata- -se de assuntos variados e que, ao mesmo tempo, estão atrelados à Igreja Pres- biteriana. A igreja, é uma referência que faz alusão ao ajuntamento de pessoas que experimentam da mesma comunhão, pessoas ligadas a mesma fé, a mesma religião, neste caso a de Jesus Cristo. Pode-se notar também que o leitor é levado, junto aos editores, a pre- senciar o crescimento da Igreja Presbiteriana a ser implantada no contexto do Brasil império, pois, como relatado, o Imprensa é o órgão oficial da igreja. f) Sétimo parágrafo O parágrafo de número sete é o último. Como uma carta escrita à igreja, o enunciador finaliza apresentando o trabalho que tem em vista “senão os in- teresses exclusivamente religiosos da sociedade em geral”. Sociedade que fora mencionada no começo do texto. Mais uma vez, o campo público e privado é empregado. Sendo o público a sociedade em geral, e o privado “em particular do indivíduo”. A palavra “vistas”, faz alusão ao título, perspecto, perspectiva, olhares do autor, o que ele tem observado à medida que percorria o território brasileiro é colocado em suma, no jornal. Mais à frente há outra referência religiosa “estranho à toda e qualquer ingerência em política, a todos é consagrado”. Primeiramente, é importante destacar o jogo de contradições utilizadas propositalmente por quem escreve “estranho a toda e qualquer ingerência” e, logo após, “a todos é consagrado”. O primeiro, separa o campo de interesse político, afirmando que, por ora, esta área não será introduzida no periódico e o segundo aproxima todos os indi- víduos. O desfecho aponta para a missão que o Imprensa Evangelica se dedicará

TCCs 2019_2 --- 94 TCCs 2019_2 --- 95 Figura 2. Editorial de O Anno Novo publicado no dia 4 de janeiro de 1868.

TCCs 2019_2 --- 96 em todas as suas edições: a propagação das boas novas e a vivificação a fim de que seu público leitor tenha um relacionamento com Deus.

Capítulo IV – Análise do Discurso de O Anno Novo

4.1 O Anno Novo 5

Após a morte de Simonton, em 9 de dezembro de 1867, na cidade de São Paulo, o Imprensa Evangelica segue, a partir de 1868, sob a direção de Alexander Latimer Blackford. Edwiges Rosa dos Santos, em sua obra O Jornal Imprensa Evangelica, descreve que a gestão do reverendo tem como contexto os conflitos do governo e a religião dominante, assim como o aumento do descontentamento de diversas áreas da sociedade em relação ao sistema mo- nárquico, que leva mais tarde ao declínio desta. Anno Novo (1868, n. 1, p. 1) se caracteriza por ser o primeiro texto editorial sob sua liderança. O texto foi publicado no dia 4 de janeiro de 1868. De nova aparência, em- blemas, logo e diagramação, o editorial abre as portas para uma nova fase, sem deixar de lado seu propósito: levar a pregação do Evangelho a toda criatura e expandir o protestantismo presbiteriano. Como explorado no capítulo anterior, para que seja feita a Análise do Discurso, é necessário executar etapas, sendo:

4.2 Nível fundamental

Na estrutura determina-se a oposição ou oposições semânticas que com- põem o sentido do texto. Em Anno Novo as categorias semânticas fundamen- tais se classificam em:

5 ANNO NOVO. Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, 1868, n.1, p.1, 4 de jan. 1868. Dis- ponível em: . Acesso em: 9 de ago.2019. A grafia foi adaptada para a atual gramática a fim de obter melhor aproveitamento na análise.

TCCs 2019_2 --- 97 Essas oposições se manifestam de diversas formas no editorial: “tenham a paz que o mundo não pode dar”, “paz que é o dom de Jesus, o Salvador”, “os homens em seu orgulho valioso e atrevido”, “homens humildes e sem pre- tensões à sabedoria humana”, “invenções de sua própria sabedoria”, “preten- são ardilosa”, “anunciar o Evangelho de grande gozo”, “desuso da pregação do Evangelho”, e outros. No texto, a pregação do Evangelho e obediência ao mando do Salvador são eufóricas. Os elementos eufóricos estão presentes em: “novo título e com emblemas significativos da missão”, “importa que o Evangelho seja pregado”, “ide por todo mundo e pregai o Evangelho a toda criatura”, “aos podres anun- ciasse- lhes o Evangelho”, “conversão do mundo”, “verdadeiro Messias”, “ver- dadeira igreja de Cristo”, “salvação dos homens e edificação dos fiéis”, “meio que seu fundador ordenou para bem desempenhar ela sua missão”, “bem-estar do país e a felicidade do povo”, “pregação do Evangelho a toda a criatura” e “mando do Salvador”. Quanto aos elementos disfóricos, destacam-se: “desuso da pregação do Evangelho”, “desprezando e abandonando o simples meio que seu Fundador ordenou”, “não tem mais direito de ser chamado de discípulo de Jesus”, “não cumpre fielmente a comissão contida no último mandamento”, “substituí-la pelas invenções de sua própria sabedoria”, “trevas da idade meia”, “horren- das perseguições contra os fiéis”, “pompas vaidosas”, “luxo e esplendor de um culto aparatoso”, “ritos luzidos”, “mistérios”, “encantos”, “dogmas insanos”, “ar- mas mundanas”, “desuso da pregação do Evangelho” e “invenções humanas”. Sendo a pregação do Evangelho positiva, e, o desuso da pregação negativa, determina-se uma ligação entre as oposições presentes no nível fundamental. O não-desuso, isto é, a negação da execução da pregação, é exposto em: “importa que o Evangelho seja pregado”. A partir disso, o discípulo de Cristo,

TCCs 2019_2 --- 98 seguidor Daquele que constituiu sobre a terra a sua igreja, deve cumprir essa obrigação especial imposta. Em suma, o texto editorial contém, como conteúdo fundamental, a ne- gação do desuso da pregação, vista como disfórica, e a afirmação da pregação como cumprimento do dever da igreja, logo, eufórica.

4.3 Nível narrativo

Textos não são narrativas simples. Pelo contrário, caracterizam-se por se- rem narrativas complexas, organizadas hierarquicamente. Fiorin (2005), afirma que uma narrativa complexa é formada por uma sequência canônica, possuin- do quatro fases: manipulação, competência, performance e sanção, ferramentas que estão disponíveis no nível narrativo. A manipulação é marcada pela ação que um sujeito exerce sobre outro para levá-lo a querer ou a dever fazer algo. Quando a voz que remete à (voz) de Jesus Cristo fala a seus seguidores “Importa que o Evangelho seja pregado” acontece a manipulação e seus seguidores passam a ser um sujeito que age conforme o dever, ou seja, de acordo com “obrigação especial imposta a igreja por aquele que constituiu sobre a terra”. O sujeito não é uma pessoa, mas, sim, um papel narrativo. Há variados tipos de manipulação, porém, apenas quatro serão destaca- dos: tentação, intimidação, sedução e provocação. Em Anno Novo acontece a manipulação por intimidação, que ocorre quando o manipulador obriga o ma- nipulado a fazer algo por meio de ameaças. No texto, o autor intimida o leitor a cumprir seu dever como cristão. Essa intimidação é presente nos dizeres: “Esta é a obrigação especial im- posta à igreja”, “Quem se descuida deste dever, não tem mais o direito de ser chamado discípulo de Jesus”, “a organização ou sociedade que deixa de cum- prir este preceito” e “quem não cumpre fielmente a comissão contida no últi- mo mandamento”. Para isso, o autor baseia-se em afirmações feitas por Jesus, Aquele a quem o público do jornal segue, uma vez que são cristãos. Nota-se no sexto parágrafo que o emissor intimida o indivíduo a exer- cer com dignidade seu papel como cristão e intimida também grupo à qual pertence, ao dizer que “a organização ou sociedade que ao deixar de cumprir este preceito, não tem mais direito algum de ser considerada como verdadeira igreja de Cristo”. Todavia, nem toda a intimidação tem como finalidade ser negativa, assim como a manipulação nem sempre é negativa. No presente texto, os momentos em que o enunciador utiliza-se da ameaça, é com objetivo de despertar, orien- tar o enunciatário e a igreja de sua função. O autor preocupa-se com a conduta

TCCs 2019_2 --- 99 da igreja e seus membros. A etapa que sucede a manipulação é a competência. Essa se caracteriza pelas capacidades que o receptor precisa ter para que se tenha uma eficiente relação. Sendo o leitor o sujeito do fazer, ele é encarregado de saber sua mis- são, seu propósito pela qual alinha-se ao jornal evangélico, que é: “o anunciar o Evangelho de grande gozo, que oferece paz na terra, e dá aos homens o conhecimento da benevolência divina”, em outras palavras, saber o Evangelho. Pode-se dizer que o (re) conhecimento de sua fé, isto é, aquilo que acredita, é a ferramenta fundamental para cumprir o seu dever. Logo, o sujeito pode querer passar a ser um verdadeiro discípulo de Cris- to; a querer cumprir com a obrigação imposta, os mandamentos - e a comissão contida no último mandamento - para poder presenciar, ou melhor, fazer parte da realização da “conversão do mundo, a salvação dos homens e a edificação dos fiéis”, consequências do ato da pregação, como dito no 12º parágrafo do texto editorial. Após a competência, a fase que segue é a performance. Caracterizada por apresentar os fatores de transformação central presentes na narrativa. A performance representa a ação que o manipulador deseja que o manipulado realize. Em Anno Novo, a ação é pregar o Evangelho. A última etapa do percurso gerativo de sentido é a sanção. Fiorin (2005) afirma que essa fase é composta pela realização da performance, reconhecendo que, de fato, o sujeito fez a ação. A principal característica da sanção é a atribuição de prêmios ou castigos. No texto em questão, para os leitores, a sanção é positiva já que ao lê-lo, há sa- tisfação no saber: o dever. O público é informado. Assim, o saber torna-se eufó- rico.Trata-se de uma sanção de característica positiva, em especial para o leitor. No que diz respeito ao campo do saber, é possível exercer uma ligação entre o texto anteriormente analisado, Prospecto, com O Anno Novo, publi- cado em 1868. Sendo o primeiro texto introdutório do periódico, a sanção é negativa, pois há o não saber e o saber parcial por parte do público leitor. Já em O Anno Novo, pela escolha de palavras e angulação presente no texto, é possível dizer que a sanção é positiva. O público fiel ao jornal por qua- tro anos (1864 – 1868), encontra-se maduro e bem informado em relação à sua conduta como cristão e, principalmente, sua fé. O leitor obtém a sanção de satisfação ao ser alertado de sua função, de seu dever; compreendendo a obrigação descrita é direcionada para sua pessoa, o reconhecimento de seu chamado é despertado. Com isso, podemos afirmar que a análise dos dois textos apresenta o seguinte percurso de sanção: Não saber --- Saber parcial --- Saber integral

TCCs 2019_2 --- 100 Como mencionado, na presente fase da sanção, a principal característica é a atribuição de prêmios e castigos. Tanto em Prospecto quanto em Anno Novo, mentiras e erros são revelados, a verdade é dita e as confusões feitas “pelos homens em seu orgulho vaidoso e atrevido” são investigadas e expostas, e por fim, confrontadas. Em Prospecto, primeiro texto publicado no jornal, a sanção para o mani- pulado é negativa. Esse, é tirado de sua zona do não saber, sendo exposto à sua natureza pecaminosa e aos atos e hábitos contrários ao que diz crer e seguir. O manipulador o faz crer que o manipulado precisa obter um verdadeiro rela- cionamento com Deus. O saber parcial é construído ao longo das publicações. Começando com a afirmação do último parágrafo de Prospecto em que é dito:

[...], porém com muita particularidade o dedicamos àqueles para quem a religião de Jesus Cristo ainda não se tornou coisa indiferente, e, no meio da perversão universal de seus princípios divinos, não trairão ainda o dom mais precioso de Deus — a liberdade de consciência perante o Evangelho. (IMPRENSA EVANGELICA, 1864, p.1,).

Em suma, podemos afirmar que o texto acima tem como sanção negativa do não saber, por ser o primeiro contato com o público. Há um misto de ex- pectativas, insatisfações e curiosidades. O jornal coloca-se como responsável por cumprir a missão de informar e explicar ao seu leitor em formação. Após quatro anos, é notória a diferença de estrutura e direcionamento. O período do saber parcial passa para o saber integral. Entende-se que o lei- tor é majoritariamente cristão, convicto de suas bases de fé. Exercendo uma comparação dos primeiros anos, com base de nos dois textos, é possível dizer que, em Anno Novo, o receptor (público – leitor) tem a sanção do saber in- tegral. Ele não mais se depara com seus erros, o que deixou de fazer, mas, sim, com a reafirmação de seu dever. Ao final da leitura, o sujeito encontra-se bem informado do que deve fazer, uma vez que já possui: o saber integral de sua identidade como cristão. Outro ponto dentro da fase de sanção que pode ser destacado é a solu- ção apresentada no texto. Além de dedicar grande parte da folha apontando para o que houve e o que prevalece de errado sejam o indivíduo e a igreja, o autor aponta a solução: A simples pregação do Evangelho, curiosamente, sendo colocada e repetida vezes de diferentes formas em todos os parágrafos. Especificamente em Anno Novo, podemos deduzir que a sanção para o leitor acaba sendo positiva, já que esse adquire a satisfação de saber o proble- ma e como resolvê-lo, que seria a partir da execução da obrigação especial a

TCCs 2019_2 --- 101 ele colocado. Para o emissor, autor da mensagem, a sanção também é positiva, uma vez que está cumprindo o seu papel de informar, exortar, alertar e motivar seu público a cumprir o dever. Vale lembrar que os autores, missionários protestantes e editores do jor- nal, são claramente cristãos e estão cumprindo também essa missão. A todos foi delegada, inclusive aos escritores, logo, a sanção é positiva. Os editores vêm os frutos que os primeiros quatros anos do Imprensa Evangelica têm trazido na vida das pessoas e, principalmente, para a igreja, não apenas de época, mas também até os dias atuais, também.

4.4 Nível Discursivo

A última etapa é o nível discursivo. De acordo com Fiorin (2005), esse nível produz variações de conteúdos narrativos invariantes. Trata-se de uma estrutura mutável. Em Anno Novo, o autor do texto apropria-se de invariantes narrativas para mostrar a mudança de espaço (aqui agora; volta ao tempo para a história da era cristã), tempo (1864, quando Jesus Cristo estava na terra, os oitos primeiros séculos da era cristã, idade meia, atual estado das nações e circunstâncias atuais do Brasil) e personagens (cristãos, o homem, a igreja), ele- mentos que o autor utiliza para realizar a narrativa e, mais tarde, transformá-la em um discurso. A fase se diferencia do nível narrativo porque nela são analisadas as esco- lhas que o autor fez. A começar pelo tempo que, no texto em questão, muito se relaciona com o espaço. O primeiro parágrafo nos deduz que o tempo é aqui e agora, no espaço do Ano Novo. É a primeira publicação do ano de 1868. Essa marca é presente quando o enunciador cumprimenta seus leitores:

Ao entrarmos no Ano Novo saudamos aos nossos leitores, desejando-lhes boas festas, e o gozo de toda a felicidade e prosperidade que é lícito esperar e procurar neste mundo. Sobretudo desejamos que tenham a paz que o mundo não pode dar, e tão pouco tirar; aquela paz que é o dom de Jesus o Salvador. (IMPRENSA EVANGELICA, 1868, p.1)

Apenas neste parágrafo, é possível observar que o espaço do aqui e agora, a proximidade inclusão são identificadas a partir do uso do plural majestático, “entrarmos”, que remete a nós, isto é, os missionários e o público brasileiro. A proximidade é específica, por meio da relação entre “eu-tu”, entende-se que o discurso será voltado diretamente para o leitor do jornal. Nota-se também que as boas festas, o gozo e toda a felicidade só são en- contradas na pessoa de Cristo. O mundo possui tais coisas e, em até um pouco,

TCCs 2019_2 --- 102 é permitido esperar e procurar, todavia, a paz não é o mundo que oferece, e sim Jesus, o Salvador. “Neste mundo” é a marca do espaço. O discurso é direto e voltado apenas para os leitores cristãos que, no próximo parágrafo, entendemos que são o mesmo público que os acompanha. “Que por três anos”, é outra marca que remete ao tempo presente dos per- sonagens: após quatro anos da primeira edição. Segue utilizando-se dos plurais inclusivos, como: “nossa folha”, “temos procurado desempenhar”, “segundo o permitirem as nossas forças”.

4.5 Editorial de Prospecto e Anno Novo

O material analisado nesta pesquisa se qualifica por ser um recurso jor- nalístico comumente usado nos impressos. O editorial, na prática, é um gênero obrigatório em jornais. José Marques de Melo (1994) define que o formato do gênero editorial é feito para que a empresa jornalística assuma a sua opinião diante de algum fato, estando próximo dos artigos, colunas e cartas de leitor. O uso de opinião nos editoriais tem como modelo o jornalismo america- no. Esse texto possui dois atributos: o primeiro, realizado em primeira pessoa, no contexto de pequenos núcleos familiares ou políticos a fim de expressar para o público a opinião do editor; e o segundo para expressar a opinião da empresa jornalística, adotando uma escrita empresarial, a partir da utilização da terceira pessoa, verbos no presente, adjetivação e linguagem culta. Desse modo, é no texto editorial que:

TCCs 2019_2 --- 103 [...] o grupo proprietário e administrador do periódico manifesta sua opinião sobre os fatos que se desenrolam em todos os setores de importância e interesse para a comunidade e ligados à existência e desenvolvimento da empresa, intentando, desse modo, orientar o pensamento social para a ação na defesa do bem comum. O editorial é a voz do jornal, sua tribuna. (BEL- TRÃO, 1980, p. 51-52).

A saída da imparcialidade, como no caso das notícias, para a entrada da abordagem de posições a respeito de diversos temas ligados ao interesse pú- blico é uma das marcas de um texto editorial. O conteúdo dos editoriais está ligado às convicções do periódico. Para Hallock (2007):

O editorial, além de oferecer opinião, é um agente da voz e do conteúdo do jornal. Mais que produzir opiniões, ele representa o conteúdo total do periódico; ele coloca em domínio público assuntos, eventos e ideias para consumo e discussão em um fórum democrático. (HALLOCK, 2007, p. 162).

Além de ser porta-voz da opinião do veículo, em termos de conteúdo, o texto editorial possui uma diferenciação que o destaca. A diagramação situa-se em um espaço privilegiado assim com sua localidade: logo nas primeiras páginas. O tom presente nas linhas é autoritário, verídico, e, por fim, convincente. Alves Filho (2006, p. 87), destaca que a intencionalidade presente nos editoriais visa a aceitação do leitor quanto aos argumentos apresentados para que se tenha alinhamento à posição defendida pelo periódico. Todavia, quando o assunto é instituições jornalísticas, espera-se que haja variações mesmo pertencendo ao mesmo gênero, neste caso, o editorial, que faz parte do jornalismo opinativo. É importante reforçar que o segmento do Imprensa Evangelica é de teor religioso, e, por esse motivo, se particulariza das folhas informativas. Nesse caso, importa analisar aspectos que fazem a folha ser jornalística. Com objetivo de explorar o material de estudo, Imprensa Evangelica, pe- riódico do século XIX, apresentamos abaixo um quadro com um resumo do funcionamento do editorial no jornal. Na prática, podemos observar essas descrições tanto em Prospecto quan- to no texto que foi analisado neste capítulo, o Anno Novo, tendo como ponto de partida as funções. Como visto em Prospecto, texto editorial, que inicia as publicações do periódico, tem como funcionalidade apresentar o jornal, seu propósito e, certamente, sua posição quanto à necessidade de se produzir con- teúdo de temática evangélica. O texto editorial inicia-se com o uso da terceira pessoa, fazendo menção à empresa, neste caso em específico, quem a compõe: missionários que se dedi-

TCCs 2019_2 --- 104 cam em levar a todas as classes da sociedade uma melhor compreensão sobre a fé protestante. A temática religiosa é nítida também nas primeiras linhas de Anno Novo. O texto começa com a instituição dando as boas festas e boas-vindas ao ano que se inicia, porém, pontuando o que para o jornal é de interesse e desejo para os leitores: um ano novo centrado na pessoa de Jesus, o Salvador. Percebe- mos, então, que a introdução do editorial avalia acontecimentos recentes, exer- cendo uma ligação com a vida espiritual. Esse interesse reflete que o Imprensa quer ser: o ‘meio’ para que os leitores cresçam na fé. Mesmo utilizando a terceira pessoa como ferramenta para a produção institucional há o cuidado em deixar claro que a empresa, isto é, o periódico, deseja maior aproximação com seu público. O plural majestático é constante- mente usado no primeiro texto, adotando a ideia da missão que o jornal tem em prol da sociedade. Já no segundo caso, há uma formalidade. Usam-se passagens bíblicas para expor a opinião e orientação que o jornal adota aos leitores, uma vez que o Imprensa circulava como um material de devocional doméstico. Percebe-se, apenas pelo editorial, o crescimento do relacionamento de empresa - público, pelo constante uso do majestático. A instituição chama seu público leitor para a realização de uma ação, recurso jornalístico comumente usado em um editorial. A partir dos estudos dos editoriais é possível traçar o ethos do enuncia- dor, que Dominique Maingueneau (1995) irá classificar em três, sendo o primei- ro: o caráter, ou seja, o conjunto de características psíquicas apresentadas pelo enunciador; o corpo, basicamente, as características físicas que o enunciador apresenta; e o tom presente em seu discurso. Dessa forma, observa-se que os autores do Imprensa, tem um caráter fortemente religioso, carregado de con- vicção. O corpo é vigoroso, de um indivíduo que almeja melhorar o mundo em que se encontra, por meio do compartilhar da fé protestante. E o tom é pasto- ral, aquele que auxilia os seus com palavras de exortação e orientação. Trata-se de uma nova voz, forte, protestante, calvinista, e muitas vezes, discordante com o que está em sua volta. Voltando aos editoriais, ambos, Anno Novo e Prospecto,se encontram logo na primeira página, sofrendo alterações visuais, como justificado em Anno Novo, sendo o novo título, agora, com o uso do artigo “A Imprensa Evangelica” e emblemas significativos que, mais a frente, serão esmiuçados. Outra alteração é a periodicidade que, por questão financeira, foi decidido não manter semanal- mente, como explica a pesquisadora Santos (2009):

TCCs 2019_2 --- 105 Com autorização e apoio financeiro do Board de Nova York, o reverendo Si- monton fundou o primeiro periódico evangélico brasileiro e latino-americano. O primeiro número do Imprensa Evangelica foi publicado num sábado, 5 de novembro de 1864, e seus editores perceberam que o projeto inicial publicação semanal seria inviável. Para garantir a qualidade editorial do periódico e não prejudicar o trabalho de evangelização, seria preciso alterar a periodicidade do jornal. (SANTOS, 2009, p.63).

Ao veículo evangélico circulou de 1864 a 1892 por todo o Brasil. Ainda que tivesse um segmento específico para o público cristão, o jornal deixava clara sua preocupação em alcançar a todos. Essa era a missão do Imprensa.

4.6 Elementos do discurso

O Anno Novo apresenta uma estrutura pouco variável. Como citado, o texto editorial jornalístico assemelha-se a outros, pois a invariante narrativa é composta por: saudação, que o enunciador faz ao enunciado, exposição do assunto central, que de forma resumida faz menção ao dever do cristão, a con- clusão e finalização a partir da opinião que o enunciador possui. Todavia, o texto também é formado por estruturas variáveis, que são re- vestidas de diferentes personagens (missionários editores, público cristão, igre- ja, homens vaidosos, Deus, Jesus Cristo, Apóstolo Paulo, judeus, gentios, homens humildes. Espírito Santo), colocadas em espaços (aqui) e tempos (ano novo, três anos de jornal, quando Jesus ia subir aos céus, quando Cristo estava na terra, quatro primeiros séculos da era cristã e mais quatro primeiros séculos). O enunciador utiliza-se de invariáveis narrativas perante variações discur- sivas para apontar a mudança de personagens, espaços, tempos não alterando o propósito e o resultado do dever de pregar a Palavra de Deus. O texto inicia-se de forma direta aos leitores cristãos, apontando para o que está acontecendo no presente momento: a entrada de mais um ano letivo (aqui). O que começa com agora, muda, a partir do terceiro parágrafo para (lá), remetendo a um episódio nos tempos de Jesus, em especial, “quando ia subir ao céu para assentar-se sobre o trono de seu reino na glória em que habitava eternamente com o Pai”, últimos momentos estando Ele aqui na terra. A partir do quarto parágrafo, a aplicação das palavras muda o tom do texto, que antes ia de amigável e próximo, trazendo um sentido para mais sério, direto, realizando imposições para os que pensam em continuar descumprindo seu dever e, assim, desobedecendo a Cristo. Esses, segundo o texto, não são verdadeiros seguidores, pois enganam aos outros e a si mesmos. Do sexto parágrafo para frente é onde ocorre o maior uso de manipu- lação por intimidação. O manipulador intimida os leitores quanto ao dever a

TCCs 2019_2 --- 106 ser cumprido, uma vez que são a igreja de Cristo. A cada parágrafo, o leitor é convencido dos erros cometidos ao apropriarem-se do desuso da simples pre- gação do Evangelho. Diferentemente da persuasão, o convencimento ocorre de maneira racional. O manipulado é convencido completamente que deixar de cumprir o mandamento é um erro que o tira da posição que diz ser: cristão.

4.7 Ideias no discurso Dentro do texto, há a materialização da ideologia na linguagem. A Análise de Discurso tem como papel importante a reflexão de como esses sistemas de ideias se manifestam na língua. Bakhtin, pesquisador, pensador, filósofo e teóri- co, norteia, por meio de suas pesquisas, o processo para identificar diferentes ideias que marcam o discurso. Para o filósofo, o discurso é composto por discursos ditos e esquecidos, isso quer dizer que nenhum é original. O sujeito não é a fonte do dizer por- que sempre necessita de outro. Esse outro, no caso é oco-enunciador, público leitor que aceita e executa parte do discurso. Esse é o conceito do dialogismo apontado por Bakhtin. Em Anno Novo, podemos, então, concluir que nenhum discurso possui originalidade, uma vez que se apropriou de outro já existente.

4.8 As vozes do Anno Novo

No livro Bakhtin: conceitos-chave, organizado pela crítica, ensaísta, profes- sora Beth Brait, o pesquisador Paulo Bezerra (2005) define a polifonia como:

O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro "eu para si" infinito e inacabável. Trata-se de uma "mudança radical da posição do autor em relação às pessoas representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades. (BEZERRA, 2005, p.194).

A presença de várias vozes e os vários pontos de vista são elementos que compõem o discurso. Essas vozes se caracterizam por serem sorrateiras, discretas, mas presentes. Podemos, então, classificar as vozes do texto no que diz a respeito, primeiramente dos missionários editores do jornal presente em afirmações como: “saudamos aos nossos leitores”, “nossa folha”, “temos procu- rado desempenhar”, “continuaremos segundo o permitirem as nossas forças”. A voz de Jesus Cristo, quando é dito: “Nosso Senhor Jesus Cristo”, “verdadeiro Messias”, “Salvador enviado por Deus”, “Cristo”, “religião de Jesus crucificado”, “seu Fundador”, “Divino Mestre”, “Dom de Jesus o Salvador”, “Importa que o

TCCs 2019_2 --- 107 Evangelho seja pregado”, “Ide, disse ele”. Bíblia, citado em: “Vede Mateus 6.3” “comissão contida no último mandamento”, “1 Coríntios 1.25”. E a do apósto- lo Paulo, quando mencionam sua fala: “o que para Deus parece astúcia, é mais sábio que os homens: e o que parece para Deus uma fraqueza é mais forte que os homens”.

4.9 Análise do texto editorial

Embora esta pesquisa tenha sido norteada pela Análise do Discurso, neste capítulo, será dada uma ênfase à questão semântica, que é um dos elementos de linguística, e que por sua vez, junto com a ideologia e estudos de recepção, conceituam a Análise do Discurso. Anno Novo inicia-se saudando aos leitores desejando boas festividades quanto o ano que se inicia (ano 1868). O título “Anno Novo” traz alusão a expectativas, comemorações. Ao que é novo, o que contém novidade, novidade esta que será explorada mais à frente. Espera-se, assim, que o discurso seja composto por elementos eufóricos que são apresentados logo no primeiro parágrafo, o de saudação. a) Primeiro Parágrafo O parágrafo apresenta um trocadilho feito pelo autor. Ao que se sabe, na época comemorativa, é comum o desejo de: “boas festas, felicidade e prospe- ridade”, mas o enunciador aponta para a razão de comemorar tais coisas. De fato, ele deseja isso aos leitores, pois, apesar de serem desejos comuns, são permitidos. É admissível anelar por essas coisas. O mundo, por sua vez, é colocado como algo negativo, disfórico para o emissor. Percebe-se essa entonação negativa em dois momentos: ao usar o “sobretudo”, e o “que o mundo não pode dar, e tão pouco tirar: a paz que é dom de Jesus, o Salvador”. Ao pontuar “que é lícito esperar e procurar neste mundo” é feita uma referência que faz alusão ao texto bíblico de 1 Coríntios em que é dito: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam” (BÍBLIA, 1 Coríntios, 10.23).6 Em suma, o trecho bíblico expõe uma orientação quanto ao desfrutar das coisas a fim de obter o verdadeiro prazer. Dessa forma, entende-se que nem toda a forma de prazer é permitida. Carregada de significados, a palavra “paz”, que é citada em “tenham a paz

6 Trata-se de mais uma carta escrita pelo apóstolo Paulo, desta vez, com o objetivo de combater toda a rebeldia, as divisões e falta de amor causada pelo orgulho na igreja de Corinto.

TCCs 2019_2 --- 108 que o mundo não pode dar, e tão pouco tirar; aquela paz que é o dom de Jesus o Salvador”, faz alusão a paz com Deus que o Evangelho promete e desenvolve, isto é, em primeiro lugar a paz entre o homem e Deus que foi restaurado e reconciliado através da morte de Jesus Cristo e da paz entre as pessoas. b) Segundo parágrafo O segundo parágrafo é caracterizado por apresentar as mudanças esté- ticas do jornal, ou seja, “novo título e com emblemas significativos da missão”. Há contraste entre o velho e o que é novo. Ao examinar o conteúdo do jornal, Santos (2009), precisamente pontua os emblemas adicionados, sendo:

“O cabeçalho foi reformulado, o tipo de letra do título foi alterado, e incluiu- -se entre as palavras do título um emblema: um coração com uma âncora no centro em formato de cruz encravada na rocha. Ao redor do coração, numa faixa "A qual esperança com laço, o texto de Hebreus (6:19) temos como âncora da alma, firme e inabalável" e, prendendo esse laço, a palavra Jesus entrelaçada na base. Dois versículos foram incluídos abaixo do título, um de cada lado: "Importa que o Evangelho seja pregado" (Marcos 13:10) e "Tende confiança: Eu venci o mundo" (João 16:33). Os demais dados do cabeçalho permaneceram inalterados, e o sumário constava de todos os periódicos abaixo do cabeçalho, do lado direito. “. (SANTOS, 2009, p.84).

Mesmo adentrando a novidade do ano que se inicia (1868) contém a mes- ma missão, que por três anos o Imprensa Evangelica procura realizar. Outra palavra que é composta por diferentes significados e destacada pelo autor, é “gozo”. Refere-se ao Evangelho de grande gozo. O gozo faz men- ção à felicidade da comunhão com o próprio Deus. A boa notícia consiste no fato de que Jesus viveu e morreu para que a alegria de Deus pudesse estar presente e ser completa. Observa-se a partir da sentença “que por três anos, temos procurado desempenhar”, que três anos, são resumidos em três missões, em três esferas: Divina, voltada a Jesus; Terra, ou seja, aos povos e grupos étnicos, e nações; e aos homens, voltando seus olhos para o alto, para o que é divino. De forma imagética, quando é dito que “oferece paz na terra, e dá aos ho- mens, o conhecimento da benevolência divina”, desenhamos uma paisagem que possui alto e baixo, subida, descida e subida, de novo, sendo a vinda do Salvador, que trouxe paz na terra entre os homens. Cristo se torna homem, vive entre a humanidade, morre, ressuscita ao terceiro dia e breve voltará para buscar os seus, esse ato é a benevolência de Deus, Pai. “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (BÍBLIA, João, 3: 16).

TCCs 2019_2 --- 109 Ao final do parágrafo é deixado claro o propósito da folha: a pregação do Evangelho. Doutor em Teologia, John Piper, em sua obra Deus é o Evangelho, define o termo Evangelho como:

A palavra traduzida Evangelho no Novo Testamento é euangelion (eu agge 'lion). Esta palavra se forma de um prefixo que significa bom ou alegre e de um radical que significa mensagem ou notícia. Esta palavra foi usada amplamente no mundo do Novo Testamento para expressar “uma mensagem de vitória, mas também foi usada com referência a mensagens pessoais ou políticas que traziam alegria".5 Em um período da história em que não havia imprensa, rádio ou televisão, o mensageiro que trazia as boas notícias as entregava pessoalmente. Eram anunciadas em forma de proclamação. E tinham consigo um sentimento de celebração. O mensageiro exultava com as notícias que trazia. Eram boas-novas. (PIPER, 2006, p.22)

Piper também explica que o que faz de o Evangelho ser de fato boas novas é a existência de um Deus vivo que criou o céu e a terra, e todas as coisas. É incluído também que Ele é o Rei do universo e que nesse momento, por meio de Jesus Cristo, tem autoridade no mundo, por amor do povo chamado de seu. Em outras palavras, Ele reina. Há boas coisas, lícitas, como visto no primeiro parágrafo, mas o sentido de seu reinado se concretiza, pois, segundo o teólogo, em um mundo de afli- ção e pecado, não pode haver boas notícias se Deus não se introduz, não se apresenta primeiramente com autoridade. Em suma, a boa nova é que o Rei do universo, o Senhor, o Messias, Cristo Jesus, veio para ser Salvador. O verbo “proclamar” remete à época da história em que não havia meios de comunicação, era o mensageiro que levava as boas notícias pessoalmente, e, para fazer isso, as notícias eram anunciadas de forma proclamada. Por esse motivo, o enunciador pontua a necessidade de que o Evangelho deva ser pre- gado, trata-se de uma alusão ao livro de Marcos, especificamente, no capítulo de número 13, é dito: “importa que o Evangelho seja primeiramente pregado entre todas as nações”. (BÍBLIA, João, 13: 10). A presença do plural majestático é destacável em “o Salvador a quem ser- vimos”. O plural aponta para um público específico, os seguidores do Salvador, neste caso, de Cristo Jesus. Assim, pode-se dizer que os leitores desta edição para frente é são: cristãos que precisam conhecer o Senhor a quem dizem ser- vir, uma vez que a eles foi colocada uma ordem clara de que: “que o Evangelho seja pregado a todas as nações”, ou seja, a todas as pessoas. Esse é o papel que os cristãos devem desempenhar.

TCCs 2019_2 --- 110 c) Terceiro parágrafo O enunciador desenvolve a afirmação feita no primeiro parágrafo, desta vez, acentuando a pregação do Evangelho como uma “obrigação especial im- posta à sua igreja por aquele que a constituiu sobre a terra”. Apesar de palavras, em primeiro plano, opostas, “especial”, diz respeito ao que é único, singular, particular da igreja de Cristo. A figura da igreja se caracteriza por representar o corpo de Cristo. Também é chamada de “noiva de Cristo”, “povo de Deus”, “povo feito filho de Deus” e demais coisas. A explicação aplica-se ao conceito de polissemia. Do grego polysemos, a polissemia tem como definição “algo com muito significados”, isto é, uma palavra polissêmica reúne diversos significados. Há pluralidade de significados. Classifica- se por ter a presença de diferentes signos. Alguns credos antigos retratam a igreja como “única santa, católica e apos- tólica”. Simplificando as palavras polissêmicas: única, por ser uma só, um só corpo; Santa porque a pessoa do Espírito Santo, habita, consagra e dirige os membros que pertencem à igreja de Deus; Católica uma vez que o significado é por todo o mundo. Logo, o dever de pregar o Evangelho é diretamente a todos os membros que igreja consiste. Quem não cumpre, não tem parte com o ministério. Jesus Cristo veio e começou o seu ministério na terra e, antes de subir aos céus, deixou a obrigação, o compromisso, o mandamento de pregar o seu Evangelho. Afirma-se assim que o elemento central do texto é o dever do cris- tão quanto à pregação, como destacado ao final do parágrafo. d) Quarto parágrafo O principal ponto é o mandamento: “Ide, disse ele, por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”.Referência que faz alusão ao texto do livro de Mateus, em que é falado “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu ordenei a vocês. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”. (BÍBLIA, Mateus, 28: 16-30). 7 e) Quinto parágrafo O conceito de dever é atrelado à identidade de quem o executa. O dis- cípulo de Jesus é aquele que segue a Cristo, logo, o que o seguidor de Cristo deve fazer é cumprir o mandamento. Isto inclui também a igreja, pois, como é

7 O livro de Mateus tem como propósito inspirar os cristãos a tarefa de promover o reino de Deus ao apresentar Jesus Cristo como o rei. Em suma, o Evangelho de Mateus apre- senta os ensinos de Cristo sobre a pessoa dele e o reino no céu.

TCCs 2019_2 --- 111 apontado: “a organização ou sociedade que deixa de cumprir este preceito não tem mais direito algum de ser considerada como verdadeira igreja de Cristo”, dessa maneira, a identidade do indivíduo e da comunidade, é centrada na figura de Jesus Cristo. f) Sexto parágrafo Apenas no sexto parágrafo é feita a primeira aparição do nome de Jesus Cristo. O nome, possui diversas atribuições que foram anteriormente mencio- nadas “Jesus, o Salvador”, “Cristo”, “Salvador”, “Messias”, “Jesus”, “aquele que a constituiu” etc. O parágrafo, assim, concentra a apresentação de quem estipulou, ordenou, mandou, falou. “Nosso Senhor Jesus Christo”, percebe-se mais uma vez o uso do plural majestático “nosso”. O manipulador junta-se ao manipulado, deixando claro que ambos possuem a mesma crença e obrigação. Ao mencionar que aos pobres deve ser pregado o Evangelho, o autor, mais uma vez, apropria-se de uma passagem bíblica para sustentar sua fala. Dessa vez, a passagem encontra-se no texto de Lucas, em que é dito: “Então, Jesus lhes respondeu: Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres, anuncia-se-lhes o Evangelho”. (BÍBLIA, Lucas, 7.22). g) Sétimo parágrafo A partir desse parágrafo, começa a manipulação por intimidação, em que são destacados os erros que cometem aqueles que dizem seguir a religião de Cristo. Pode-se entender que serão observadas as pretensões, as ambições que os ministros, seguidores de Cristo, possuem. Pode-se dizer que a característica da intimidação é de ser observadora. O autor convida a observar aqueles que dizem ser cristãos. Observar suas ações, falas e atos públicos. O trecho também remete ao perfil apresentado no primeiro texto do Im- prensa Evangelica, Prospecto: “Aqui, seus atos não correspondem à religião que professa; e, se ali se mostra escrupuloso em praticar ações que lhe acarretariam a justiça de Deus”. h) Oitavo parágrafo No parágrafo de número oito, o ato da ressurreição de Jesus e sua apa- rição aos discípulos, é resumido em apenas uma palavra: Comissão. A Grande Comissão é caracterizada por ser um apelo para que os cristãos atendam seu chamado para irem ao mundo como missionários. O episódio ocorreu com a presença dos seus onze discípulos. Eles eram ouvintes do mandamento, se- guidores de Jesus, e possuíam até cargos relevantes sendo fundadores e até

TCCs 2019_2 --- 112 mesmo líderes de igreja. Dessa maneira, pregando o Evangelho, os membros da igreja seriam ensinados a cumprir o que o Senhor ordenou, inclusive, fazer discípulos. i) Nono parágrafo É relatada de forma incisiva a importância da pregação das boas novas. Mais uma vez, o autor faz uso de elementos eufóricos e logo em seguida disfó- ricos no mesmo parágrafo. O contraste, jogo de palavras e contextos, remetem a uma balança. Ora move para um lado, ora para outro à medida que colocam o peso do que deve fazer e não fazer, do certo e errado, verdadeiro e falso, bom e ruim, como visto em “meio ordenado por Cristo para a conversão do mundo, a salvação dos homens e a edificação dos fiéis”, e “orgulho vaidoso e atrevido”, “substituí-la pelas invenções de sua própria sabedoria”. Especificamente, nesse caso, a pregação entra em contradição com as invenções dos homens orgu- lhosos. A pregação é a própria sabedoria de Deus, a sabedoria dos homens é loucura. Ao mesmo tempo, os argumentos utilizados pelo autor do discurso o fazem colocar-se em um espaço público em que precisa convencer os leitores do jornal, isto é, usar racionalmente argumentos para convencer por completo, a cumprirem o seu dever como cristãos. Ao fazer isso, o manipulador prega as boas novas de Cristo aos corações que se encontram indecisos, perdidos e ignorantes a tudo o que tem sido en- sinado, seja nas Escrituras Sagradas, seja nos cultos em comunhão com a igreja. j) Décimo parágrafo A voz do apóstolo Paulo aparece no décimo parágrafo acompanhado da passagem bíblica pela qual ele foi o enunciador. “o que parece em Deus uma estultícia; é mais sábio que os homens: e o que parece em Deus uma fraqueza é mais forte que os homens”. (BÍBLIA, 1 Coríntios, 1.25). Pode-se dizer, assim, que o editorial preocupa-se em trazer uma variedade de versículos e, em es- pecial, de vozes, para que seu argumento seja rico e próximo ao que se pode classificar de impessoal. O ponto-chave de todo o discurso é quando dito: “Os triunfos do cristia- nismo foram todos ganhos pela simples pregação do Evangelho. ” O parágrafo em questão deixa claro que o cristianismo não é composto por um sistema de regras, histórias ou somente leis, o que caracteriza a sua popularização é o poder de convencimento que possui até hoje. Todos ganhos pela pregação do Evangelho, que Piper define como a boa nova de que Deus, em Cristo Jesus, pagou o preço do sofrimento, para que pudéssemos ter o prêmio de desfrutá-

TCCs 2019_2 --- 113 -lo para sempre. Deus pagou o preço de seu Filho para nos dar o prêmio dele mesmo. k) Décimo primeiro parágrafo O parágrafo é caracterizado por sua análise histórica, mudando de tempo e espaço e voltando para as primeiras eras do cristianismo a fim de apontar triunfos que foram ganhos com o uso da exposição das boas novas. Em primeiro momento é usada a afirmação que faz menção ao que está descrito em 1 Coríntios: “pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as des- prezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus”. (BÍBLIA, 1 Coríntios, 1.27).

Brevemente, nessa passagem é afirmado que Deus não funciona como homem que tenta exaltar a capacidade de outros homens. O contrário. Ele fez, escolhendo aquele que o homem rejeitaria. Foram esses homens humildes que, nos primeiros séculos da era cristã, “fizeram substituir as religiões dominantes pela religião de Jesus em quase todo o mundo civilizado”, como apontado. Trata-se de homens que foram chamados para confundir os sábios que consideram loucura a religião de Jesus crucificado. E assim fizeram mesmo com toda a influência das conveniências, do poder e esforços dos governos civis e perseguições. Ao falar “homens humildes e sem pretensões”, percebemos que o uso da palavra é o ponto principal que diferencia do homem vaidoso: sua pretensão. Enquanto um almeja realizar sua missão em nome de Deus, o outro deseja exaltar a si mesmo. l) Décimo segundo parágrafo A reviravolta do texto acontece neste parágrafo. Os mandamentos orde- nados foram descumpridos e abandonados pela igreja, voltando-se para “a fon- te de onde borbulha o mal”, como mostrado em Prospecto, o próprio homem, sua natureza e seus desejos que não passam de egoístas, vaidosas. A relação foi rompida e, em vez de apoiarem na pessoa do Espírito Santo, isto é, a Deus, o homem apoiou a si mesmo, ao braço “secular”, que remete ao mundano, às coisas do mundo que, como visto no primeiro parágrafo do texto, são disfóricas. “Fundador” remete à pessoa de Cristo, elemento principal para o funda- mento da igreja que, como visto, é composta por pessoas da mesma fé. Povo que foi feito filho de Deus por meio de Jesus Cristo.

TCCs 2019_2 --- 114 m) Décimo terceiro parágrafo A vozes da idolatria, politeísmo e filosofia destacam-se por serem crenças e ídolos que os homens faziam para si. Isso quando é mencionado em: “o que a idolatria, o politeísmo e a filosofia não podiam resistir enquanto se seguia a simplicidade insinuada pelo Divino Mestre”. Enquanto essas vozes carregavam sua complexidade em grande escala para vários lugares, o estilo de conduta, crença e vida dada por Deus, o Divino Mestre era simples. Percebe-se que o “Divino Mestre”, foi empregado para se sobressair aos demais ídolos. Mais uma vez é feito o jogo de contradições, ao apontar o erra- do para que o certo se destaque por ser o que é: correto. O relato do autor segue carregado de elementos disfóricos. Perdeu-se o espírito de saudação, gozo, felicidade, deixando para trás o clima de ano novo festivo, e passa-se a alertar quando os acontecimentos que envolvem a igreja. Ao advertir dos fatos que envolvem a igreja, e seu histórico, os leitores não apenas se informam do que aconteceu e quais foram as consequências, mas também motivam-sede sua missão a fim de que outros homens e mulheres (termo homens, refere-se à humanidade e não apenas a um gênero específi- co), possam deixar para trás “ritos luzidos, mistérios, os encantos, os dogmas insanos e as armas mundanas” que os prendem, para seguir com simplicidade, apenas um Deus. n) Décimo quarto parágrafo Chegamos na fase do sentimento de decadência presente no texto. Após oito séculos, a falta da pregação do Evangelho resulta no avanço das invenções, produções e criações do homem, distorcendo mandamentos já estabelecidos por Deus. É chegada a Idade Média, chamado de “idade meia”. Trevas e luz, bem e mal. O enunciador simula uma batalha. Ora triunfando, ora mostrando os pontos em que o mundo cristão foi ameaçado, perseguido, julgado, insultado, ferido, assim como Cristo. Ao citar que “o mundo chamado cristão ficou envolto nas trevas da idade meia que se estenderam como uma mortalha hedionda sobre as nações que o tinham abraçado”, mortalha, vestimenta com que se envolve o cadáver de pessoa que será sepultada, faz alusão ao tecido que usaram para envolver Jesus após a sua crucificação. Já hedionda, tem como significado “horrível”, “pavo- roso”, “repulsivo”, “depravado” e “imundo”, ou seja, as trevas da idade média foram expandidas assim como a vestimenta que serviu para cobrir o corpo de Cristo, após sua morte de cruz. O trecho mostra que esse tecido foi alongado para todas as nações que creem. Nele. Pode-se dizer que a sentença trata da violência aos cristãos na época da Inquisição, na idade média.

TCCs 2019_2 --- 115 o) Décimo quinto parágrafo Neste parágrafo, as consequências apontadas são as trevas e escuridão. Em lugar de anunciar o evangelho, cerimônias e ritos, no lugar da razão, sen- tidos e emoção. Homem coloca-se no lugar de Deus e, com suas pretensões, passa a produzir corrupções e a desmoralizar a sociedade. p) Décimo sexto parágrafo A disputa prossegue e dessa vez, com o manipulador convencendo seu público da falha que homens cometem ao abandonar em o uso da pregação das boas notícias, caindo para as trevas ao invés da luz, e seguindo para as próprias ideologias. Convencer, segundo o dicionário Aurélio tem como significado de vencer completamente; confundir um adversário; provar a culpabilidade; de- monstrar vitoriosamente seja um erro, falha etc. Racionalmente, o manipulador aponta provas de que a sociedade caminha para seu atual estado de queda porque a igreja não atentou ao cumprimento de sua missão, para isso, o autor intimida o leitor, colocando sobre ele o peso do fazer. Basta olhar a história da era cristã brevemente apresentado no discurso. Homens esqueceram-se de sua missão, não servindo de testemunho para as demais nações. q) Décimo sétimo parágrafo Em meio ao que o enunciador pontua como caos, é apresentada uma solução: responder às necessidades do país. Nota-se, assim, a responsabilidade que tem para formar uma sociedade através de doutrinas e mandamentos que trazem sabedoria, paz entre os homens e avanço. Albert Mohler Jr. (2008), reco- nhecido como um dos líderes mais influentes dos Estados Unidos pelas revistas Time e Christianity Today, afirma que a cultura, o governo, a lei e a sociedade ocidentais eram baseadas em princípios cristãos. O professor afirma que a solicitude com o indivíduo, o compromisso com os direitos humanos e o respeito pelo bem, belo e verdadeiro aconteceu devi- do às convicções cristãs e da influência da religião. Esse é verdadeiro testemu- nho que os missionários do jornal se preocupam em passar, apesar da realidade que a igreja cristã se encontra. O indiferentismo e incredulidade que vão além do campo religioso; o des- leixo moral com a negação de qualquer coerência para identificar o mal como mal ou o bem como bem e o abatimento, abaixamento, enfraquecimento social, são aspectos que segundo o emissor, apontam para o responsável por atender essas condições, ou seja, a todos: missionários que escrevem nas páginas do jornal, leitores cristãos que tem seu papel na sociedade, independente da pro-

TCCs 2019_2 --- 116 fissão que exercem e, em especial, a igreja que deve despertar “do descuido de instruir o povo e do desuso da pregação da palavra de Deus”, uma vez é que uma comunidade que está sob a autoridade do Deus. O chamado para usar o Evangelho que foi confiado para ser pregado é de anos. A sociedade continuará enfraquecida se os cristãos assim não despertarem e seguirem, não a sua pró- pria sabedoria, mas a de Deus. r) Décimo oitavo parágrafo Ainda que no parágrafo anterior o escritor apresenta os pontos negativos e falhos, ao final, o texto termina com palavras de incentivo, técnica usada em vários veículos, para que o leitor, ora intimidado, ora culpado, termine esperan- çoso. É árdua a tarefa, que exige correções, estudos, compreensão e compro- misso. O autor não se preocupa pelo mero cumprir, mas por impactar o país, servi-lo. Esse é o propósito do Imprensa Evangelica. Ao final, o autor deixa o leitor curioso das demais coisas que estão por vir no jornal. Como a data que marca o ano novo, o autor cria expectativas e chama para que ambos, ele e seu público, desfrutem dos demais conteúdos que estarão presentes no periódico cristão.

Capítulo V - Análise do discurso de As Duas Cidades

O terceiro e último texto que compõe as análises do presente trabalho foi publicado na cidade de São Paulo, em 5 de janeiro de 1884. O periódico estava na direção de outro missionário americano, George W. Chamberlain. O reverendo, que nasceu no Estado da Pensilvânia (EUA), veio ao Brasil em 21 de julho de 1862 a partir de uma carta de recomendação feita pelo editor chefe antecessor, reverendo Blackford, que tinha interesse em seu co- nhecimento a respeito das Escrituras. Chamberlaim ajudaria no projeto de alfabetização de adultos. Anos depois, o reverendo foi encaminhado para o campo missionário. Chegou a auxiliar Si- monton, foi ordenado, voltou para os Estados Unidos para estudar teologia no Seminário de Princeton e também arrecadou dinheiro para sustento da igreja no Rio de Janeiro e em São Paulo. Casou-se e retornou ao Brasil em 1868. Assumiu a igreja de São Paulo no lugar de Blackford assim como a redação do Imprensa, que havia se mudado para a capital, também como afirma a historia- dora Edwiges Rosa Santos:

TCCs 2019_2 --- 117 8 AS DUAS CIDADES. Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, 1864, n.1, v.20, p.1, 5 de jan. 1884. Disponível em: . Acesso em: 24 de ago.2019. A grafia foi adaptada para a atual gramática a fim de obter melhor aproveitamento na análise.

TCCs 2019_2 --- 118 Figura 3. Editorial de As Duas Cidades publicado no dia 5 de janeiro de 1884

TCCs 2019_2 --- 119 O jornal Imprensa Evangelica era editado no Rio de Janeiro desde sua fun- dação; entretanto, em 9 de outubro de 1879, foi transferido para São Paulo. Como justificativa, os editores apontaram o fato de a cidade paulista abrigar a elite intelectual da Igreja Presbiteriana, porém a saída de Blackford também contribuiu para essa mudança, pois, do núcleo inicial de fundação do jornal (Simonton, missionários que atuaram na Blackford, Francis Joseph Christopher Schneider e Chamberlain), o reverendo Chamberlain preenchia requisitos necessários para dar continuidade ao trabalho jornalístico. Para conciliar o trabalho na direção da Escola Americana (cf. GARCEZ, 1970) e ajudar na direção do jornal, o escritório da redação foi transferido para São Paulo. (SANTOS, 2009, pg.101).

Chamberlaim assumiu a tarefa de ser o editor- chefe, estando à frente do jornal nos anos de 1877 a 1892. Santos (2009) separa os 28 anos de veiculação do Imprensa em quatro fases. A fase sob a coordenação do missionário é clas- sificada como a terceira. A quarta e última fase encerrou o trabalho do jornal evangélico e contou com a ajuda de vários missionários e até pastores locais da cidade, terminando oficialmente suas atividades em 1892.

5.1 As Duas Cidades 8

5.2 Nível Fundamental

No texto que abre o jornal de volume 55 as principais categorias semân- ticas fundamentais identificadas são:

As oposições são manifestadas no texto nos seguintes momentos: “Não falamos dos idiotas e dos ignorantes”, “falamos dos homens inteligentes e ins- truídos”, “o nascimento e a morte são mistérios igualmente incompreensíveis”, “admitiram sempre a imortalidade da alma”, “ verem que tudo passa tudo de- cai, tudo morre”, “Neste mundo, estamos por pouco tempo”, “As coisas deste

8 AS DUAS CIDADES. Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, 1864, n.1, v.20, p.1, 5 de jan. 1884. Disponível em: . Aces- so em: 24 de ago.2019. A grafia foi adaptada para a atual gramática a fim de obter melhor aproveitamento na análise.

TCCs 2019_2 --- 120 mundo não têm base firme”, “mundo é passageiro, tudo é vaidade”, “uma cida- de permanente, uma morada segura”, “cidade santa, a nova Jerusalém celeste santa”, “Morar com Deus na sua casa”, “se não estivermos com Deus no céu, estaremos com satanás no inferno” e outros. Como explorado nas duas análises anteriores, classificam-se como positi- va (eufórica) ou negativa (disfórica), as categorias do nível fundamental. Sendo a cidade mundana, disfórica e a cidade celeste, eufórica. Diferença deixada clara no título do texto editorial. Em As Duas Cidades, “a nova Jerusalém celeste santa”, “coisas de cima”, “morada no céu”, “cidade eterna”, “cidade futura” fazem menção a elementos de euforia. Quanto à disforia, temos no texto como: “a terra fosse para eles morada permanente”, “fundamento muito instável”, “Tudo aqui do mundo é passageiro” etc. Ao exercer uma relação entre os dois elementos opostos, vemos que:

O texto As Duas Cidades tem como conteúdo fundamental a negação da imortalidade do homem, vista como negativa (disfórica), e possui como afir- mação o Cristianismo, que traz a luz da existência humana, além de garantir morada em uma cidade estável e eterna.

5.3 Nível narrativo Ao levar em consideração os elementos opostos identificados acima, po- demos assumir que o enunciador de As Duas Cidades, manipula o enunciatário por intimidação, a fim de que ele creia que a vida humana não termina na terra, e que a vida, a existência do sujeito (do homem, isto é, humanidade), não tem um fim em si mesma. Essa afirmação aparece ao dizer que: “Os maiores filósofos admitiram sempre a imortalidade da alma e o povo em geral tem sempre acreditado nela, mas como se pôde alcançar a felicidade eterna, não lhes foi dado a descobrir”. Após alguns parágrafos, o autor instiga o público leitor para que esse seja orientado a seguir o caminho da vida eterna ao reforçar a crença claramente defendida pelo jornal: “O Cristianismo tira ao homem este duplo engano e lança uma viva luz sobre a nossa existência”. Assim, o leitor é convencido de que as coisas do mundo em que vive não possuem fundamento e são instáveis, e que tolo é quem vive “como se a terra

TCCs 2019_2 --- 121 fosse para eles morada permanente”. Os idiotas e ignorantes, constroem “a fama, felicidade mundana, riquezas, glória”, como algo sólido e permanente, todavia, essas ambições comuns a toda a humanidade, não passam de uma cons- trução feita com areia, isto é, não tem base firme e segura. O convencimento, em suma, acontece à medida que crenças filosóficas (existência do homem, para onde vai), são expostas e aos poucos, desmascaradas. Já a intimidação, é carregada de plural majestático, levando a entender que o autor motiva seu público a seguir para a direção certa, como um guia que está à frente da multidão, chamando atenção, esclarecendo e explicando dúvidas que surgem à medida que avança, rumo ao lugar ao qual foi designado. O autor reforça os comandos: “Procuremos, portanto, essa cidade, mas não do modo insensato como muitos o fazem. S. Paulo exorta-nos a buscá-la, pensando nas coisas de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus; não amando o mundo nem as coisas que são do mundo, mas buscando primeiro o reino de Deus e sua justiça; santificando-nos, crendo em Cristo de todo o coração e já aqui pela fé vivendo santa e piamente como se morássemos no céu em nossa cidade”. É possível deduzir que Chamberlain e seus companheiros, missionários da redação do jornal, almejam que o leitor saiba por definitivo que foi criado para morar, eternamente, em outro lugar, junto a Cristo. Para isso, o manipulado deve almejar sair da cidade presente e mundana para ir à cidade eterna, estável, celeste. Essa característica é atribuída a figura do peregrino. O querer faz menção a competência, conceito presente no nível de mani- pulação. O destinatário - sujeito necessita obter o saber, querer e poder para que, por fim, execute a ação esperada pelo destinador. A performance, etapa presente no processo de manipulação, por parte do leitor é de deixar de lado a coisa do mundo e buscar as coisas do alto, a cidade eterna e celestial. A recompensa é dita no próprio texto, quando diz que: “O Cristianismo tira do homem este duplo engano e lança uma viva luz sobre a nossa existên- cia”. Satisfação no saber qual o sentido da existência humana - reparemos a praticidade que o autor consegue responder à questão que, por anos, nenhum filósofo conseguiu ao certo responder -, descoberta da felicidade eterna e a garantia da cidade eterna para aqueles que creem na obra que Cristo Jesus fez. Essas são as sanções destacadas na leitura do texto. Dessa forma, entende-se que Chamberlaim leva ao convencimento de que o jornal é a ferramenta, é o guia, a pista que aponta para o caminho que leva seus leitores à cidade eterna. A primeira página é um convite para que juntos (editores, leitores, cristãos da época e os de hoje), reconheçam seu papel como peregrinos, e busquem esperançosos o dia em que irão para a cidade santa.

TCCs 2019_2 --- 122 5.4 Nível Discursivo e elementos do discurso Podemos dizer que a pergunta principal que essa etapa carrega é “qual é a história presente?”. Para respondê-la, apontamos para as marcas que o texto expõe, analisamos quem são como são e, em especial, o porquê delas estarem ali. Ao final, traçamos uma relação. O que a autora Barros (1997) define como superficial, é o que está nitidamente exposto no texto. As marcas são: pessoa, tempo e espaço, estruturas que são consideradas fixas. O editorial As Duas Cidades traz uma abordagem reflexiva. Diferente das outras edições, o formato dessa é como uma conversa. O autor chama para perto, é convidativo, incisivo, sem deixar de lado o seu tom intimidador. O enunciador preocupa-se em convencer o enunciatário de que sua felicidade não está nas conquistas presentes no mundo, mas, sim, no que está por vir. Ao considerar as estruturas fixas e estáveis no texto, é possível definir que a história se passa no espaço (terra, vida presente na terra), tempo (pre- sente, porém esperançando-se quanto ao futuro, ao que está por vir), isto é, (lá); fazendo uso de personagens (Jesus, homens inteligentes e instruídos, ho- mens da terra, filósofos, apóstolo João, Apóstolo Paulo), exercendo uma relação entre “nós e eles”. Uso do plural majestático, nós (relação eu e tu), é constante e cumpre o papel de aproximação do enunciador e enunciatário. Ao especificar quanto ao sistema de crenças (cristãos e não cristãos), pode-se dizer também que o uso do pronome em primeira pessoa do plural, constrói a relação próxima “nós e eles”. Coloca-se uma distância com “eles”, os que resumem a vida humana na terra. Essa relação fica nítida em: “Neste mundo, estamos por pouco tempo, e somos peregrinos: nossa mira é o céu”, “A nossa casa terrestre tem só areia por alicerces”, “Procuremos, portanto, essa cidade, mas não do modo insensato, como muitos o fazem” etc. Mais uma vez, o autor se inclui no texto, junto as vozes e todos os missionários que editam e auxiliam na produção do jornal, afinal, todos estão seguindo o mesmo caminho rumo a cidade.

5.5 Análise do texto editorial A terceira e última análise desta pesquisa acompanha o que foi proposto no terceiro e justificado no quarto capítulo. A seguir, será feita uma avaliação, parágrafo a parágrafo, a partir das ferramentas da linguística, especificamente, a semântica, junto com uma perspectiva ideológica e os estudos de recepção. Desde o começo, o título “As Duas Cidades” remete a uma divisão, sepa- ração, atribuindo elementos já vistos no nível fundamental, leva a entender que o autor irá desenvolver uma reflexão comparando dois elementos, nesse caso,

TCCs 2019_2 --- 123 dois lugares. a) Primeiro parágrafo O primeiro parágrafo tem como temática principal a razão. O enunciador diferencia os seres animais dos humanos, seres racionais, afirmando que apenas estes que possuem o poder do raciocínio. Quando feita essa separação, é criti- cado que entre os seres humanos, são poucos os que sabem de fato responder a pergunta “para onde vão”. Para muitos, a questão filosófica não tem resposta. Trata-se de um misté- rio não revelado, incompreensível. O parágrafo se estrutura pelo uso das opo- sições entre: seres irracionais e racionais; grande multidão e pequeno grupo; nascimento e morte. O tom de sarcasmo e provocação estão presentes desde as primeiras linhas. Tendo apenas um momento em que o enunciador, ao usar o recurso do plural majestático, coloca-se no discurso, especificamente, quando pergunta: “por que existimos?”. Entende-se, assim, que o texto tem como propósito res- ponder essa pergunta, a fim de mostrar o propósito de cada criatura racional nesta terra. Podemos dizer também que esta dúvida nos remete ao questionamento secular do autoconhecimento, já proposto por Sócrates, em sua famosa frase “Conhece-te a ti mesmo”. b) Segundo parágrafo Outra provocação é realizada pelo manipulador: o texto em questão, não busca fazer menção aos idiotas, ignorantes - que são colocados como nume- rosos, porém, não superiores - mas sim, ressaltar o que ele qualifica como inteligentes e instruídos que reconhecem que, por eles mesmos, ou seja, por sua natureza e raciocínio, não conseguiriam responder à pergunta e muito me- nos resolver os problemas da existência humana. Essa postura é vista como humilde. Temos uma clara divisão dos homens que não sabem para onde vão, po- rém, buscam a solução em si mesmos (ignorantes) e aqueles que são instruídos e entendem que não conseguem tirar essa dúvida buscando em si a resposta. (Inteligentes). Outra vez, as oposições são empregadas no texto. c) Terceiro parágrafo Além de confortar aqueles que se dizem sábios, o enunciador confronta os grandes filósofos e seus conceitos, principalmente, a imortalidade da alma, pensamento que tanto admiram. A busca pela imortalidade é claramente cri- ticada ao dizer: “e o povo em geral tem sempre acreditado nela; mas como se

TCCs 2019_2 --- 124 pôde alcançar a felicidade eterna, não lhes foi dado a descobrir”. A terceira provocação é feita. O autor afirma a incapacidade que os gran- des pensadores têm quanto ao conceito de felicidade eterna, dando a entender, mais uma vez, que o texto irá trazer a resposta de como obtê-la. O ser humano em sua natureza, sendo imortal, não terá a garantia de uma felicidade imortal, é eternamente insatisfeito porque olha para si mesmo. O elemento ‘vida presente’ é o centro, é o foco da atenção, da sua existên- cia. Trata-se do aqui e agora ou, em outras palavras, do famoso Carpe Diem, ex- pressão latina criada por Horácio (23 a.C) em seus Odes (Carmina, I, 11), que tem como objetivo encorajar o indivíduo a não se preocupar com o amanhã, aproveitar o dia de hoje, pois, “Comamos e bebamos porque amanhã morre- remos”. Esse trecho é uma referência que faz alusão, especificamente, ao livro de Isaías capítulo 22, em que é questionado o comportamento daqueles que focam no agora, em seu próprio prazer: “Em vez disso, vocês dançam e brincam; abatem gado e matam ovelhas, comem carne e bebem vinho. Dizem: Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. (BÍBLIA, Isaías, 22:13). O comportamento, visto como disfórico é descrito no próximo parágrafo, em que é dito: “Outros há que, apesar de verem que tudo passa tudo decai, tudo morre, vivem como se nunca tivessem de morrer; como se a terra fosse para eles morada permanente”. Morada, é a palavra-chave do texto. O parágrafo em questão faz menção a elementos que não são bons e o hipótese de a terra ser uma morada permanente, permite a abertura de uma discussão que é explorada ao longo do texto editorial. d) Quarto parágrafo Após gerar dúvidas e expectativas, no quarto parágrafo, é apresentada a solução para o livramento dos erros e comportamentos vistos como inaceitá- veis pelo editorial. A solução está na viva luz presente no Cristianismo. “Duplo”, remete a uma dicotomia, número fixo e destaque no título do texto. Duplo engano da imortalidade do homem e da vida presente. Duplo remete também ao que é simultâneo. Assim como as duas cidades, estamos em terra, mas não para sempre. Outro lugar está sendo preparado. O trecho bíblico do livro de Hebreus é usado para responder à pergunta “para onde vou”, apresentada no começo do texto. O autor não se apropria de sua visão de mundo, mas, sim, daquilo que fundamenta sua fé, as Sagradas Escrituras. A citação baseia-se no fato de que pertencemos Deus, os filhos Dele voltarão para Ele. O lugar atual em que moram, a terra, é efêmera, curta. Percebemos que

TCCs 2019_2 --- 125 é descrito como uma viagem. Dessa forma, há um prazo estipulado. Em uma aplicação prática, a palavra tem por definição, segundo dicionário moderno Michaelis (2019), o substantivo feminino que diz respeito ao “Ato de ir de um lugar para outro e o resultado desse ato”, “percurso para se deslocar a algum lugar, podendo ser próximo ou distante”, “Espaço que se percorre durante uma jornada”. Com isso, é passada a mensagem de que a vida não é o cerne da existência humana, não há nada fixo. Trata-se de um resultado de um ato, uma ação, um percurso a ser traçado, um espaço. O editor conclui dizendo que esse ato de viajar tem como fim a busca da futura cidade. O autor deixa claro que tirou essa conclusão a partir das palavras do apóstolo registradas em Hebreus. e) Quinto parágrafo É explicado o contexto do trecho mencionado no livro de Hebreus, em que é afirmado que “não temos neste mundo uma cidade permanente; aguar- damos a cidade por vir”. (BÍBLIA, Hebreus, 13:14). 9 O editor do Imprensa Evangelica, deixa clara essa relação do novo para com o antigo. Há uma intertextualidade apontada pelo próprio manipulador. Os textos se encontram e conversam quando o assunto é sacrifício. Para que isso fique nítido, o missionário contextualiza o seu leitor a respeito da passagem, descrevendo o que está descrito em: “O sumo sacerdote leva sangue de animais até o Lugar Santíssimo como oferta pelo pecado, mas os corpos dos animais são queimados fora do acampamento” (BÍBLIA, Hebreus, 13:11). Sumo sacerdote, representando o pecador, isto é, a humanidade. Sangue de animais é a oferta para ser oferecida. Lugar santíssimo faz menção ao tabernáculo. Essa era a ordenação feita diariamente para purificação externa. Logo após o autor faz alusão ao versículo de número 12: “Assim, Jesus também sofreu fora das portas da cidade para santificar o povo por meio do seu próprio sangue” (BÍBLIA, Hebreus, 13:12). As vítimas pela propiciação dos pecados são as ofertas, puras, (sangue de animais), foram levadas para serem oferecidas, assim como Cristo foi levado ao Calvário. O episódio do antigo testamento faz alusão à obra que Cristo veio e fez, no Novo Testamento. Sendo ele levado para fora da cidade, assim devem fazer os que são de Cristo, como é dito em, “Portanto, saiamos até ele, fora do acampamento, suportando a desonra que ele suportou. Pois não temos aqui nenhuma cidade permanente, mas buscamos a que há de vir”. O autor se apro-

9 Localizado no Novo Testamento, Hebreus relata em cada capítulo a superioridade de Jesus Cristo e como ele é o cumprimento das promessas de Deus feitas no Antigo Testamento.

TCCs 2019_2 --- 126 pria dos versículos bíblicos, de forma que venha mostrar de onde sustenta sua crença, nas Sagradas Escrituras; apropriando-se do discurso de outrem, nesse caso, do apóstolo. Os que são de Cristo reconhecem que suas atividades na terra não são para sempre, uma vez que foi chamado para, assim como Jesus a sair da cidade e ir para Jerusalém, referência que faz alusão à morada eterna, à terra prome- tida, porém, no céu. O manipulador deduz que a palavra do apóstolo interliga com o conceito de peregrinação terrestre. Os seguidores de Cristo - e o autor, com o uso do plural majestático também se inclui nesse quadro - têm como missão serem peregrinos, sua estadia na terra é por pouco tempo, logo, o destino final está nas coisas do alto; “nossa mira é o céu”, é o que afirma. Além de despertar o lado esperançoso do leitor ao afirmar que há um lugar futuro em que ele estará, o enunciador traz a realidade à medida que intimida o seu público sobre a efemeridade que a vida na terra, vemos isso em “nossa mira é o céu”, “Qual das cidades que agora existem têm fundamentos mais seguros? ”, “As coisas deste mundo não têm base firme”, “A nossa casa terrestre tem só areia por alicerces”, “Tudo aqui do mundo é passageiro, tudo é vaidade”. f) Sexto parágrafo No parágrafo em questão, o manipulador centraliza a base de todo o seu ato de convencimento, aproximando a realidade histórica, bíblica com o indiví- duo. Agora, não se trata apenas do fato de que a morada terrena é passageira e instável, mas também que a natureza do indivíduo possui essa característica. O convencimento acontece quando o manipulador, autor do texto, res- salta o que há de negativo no manipulado. Esse, por sua vez, é levado a acreditar que suas ações e fundamentos não têm base e são como o autor compara, como areia ou sombra. Outra metáfora utilizada são os laços que prendem o humano à terra. O editor identifica que “o amor à família, às riquezas, à sede de honra e de fama; projeto, esperanças e milhares de outras coisas terrestres”, são per- mitidas - remetendo, à advertência feita no início texto de Ano Novo - mas são basilares. Mais uma vez, a intimidação ocorre com uma pergunta: “Quando seremos sábios e edificaremos sobre a rocha viva que é Deus?”. A falta de sabedoria é criticada, mas a intimidação se mantém com tom ameno a partir do uso do plural majestático. Afinal, todos caminham para a cidade futura e estável, descrita no próximo parágrafo.

TCCs 2019_2 --- 127 g) Sétimo parágrafo O elemento terra é aplicado em um sentido figurado neste parágrafo, de forma a justificar a colocação feita sobre a rocha vida, no parágrafo anterior: Deus é a rocha viva. É feito, então, um paralelo de um solo cambaleante, re- metendo ao lugar inseguro e a necessidade natural de, em meio a esse caso, procurar um lugar seguro, firme, sólido para se salvar. O solo remete à terra, o vacilo, ameaça, perigo. Trata-se da vida terrena que todos são submetidos, a busca por um lugar seguro é a atitude involuntária da humanidade. Conclui-se que nenhum lugar na terra tem como fundamento algo firme, assim como uma rocha. O autor aguça a curiosidade do leitor em querer des- vendar o local de maneira que esse pode obter uma morada segura e perma- nente. Trabalha-se com a perspectiva de prêmio, recompensa que irá atrair e chamar para perto o público, nesse caso, que irá melhor convencê-lo. h) Oitavo parágrafo No oitavo parágrafo é dada a resposta para o problema central. Encontra- se, especificamente, em mais uma passagem bíblica. Livro de segunda carta aos Coríntios, especificamente, no capitulo cinco, segunda parte do versículo um. O livro foi escrito pelo apóstolo Paulo, relatando que a morada eterna está garantida para aqueles que são de Deus. Morada não feita pelas mãos humanas, logo, não falha, caída e vacilante, mas eterna e nos céus. No parágrafo a seguir, de número nove, são descritos mais detalhes do que ele chama de edifício:

Este edifício é vasto, porque contém muitas moradas (S.João XIV;2); é mesmo uma cidade, cidade santa, a nova Jerusalém celeste santa, a nova Jerusalém celeste, onde o Senhor tem o seu tabernáculo e o seu templo. Virão do oriente e do ocidente, no norte e do sul, assentar-se à mesa com Abraão, Isaque, Jacó; ali reunir-se- hão no grande dia, grandes multidões de todas as nações e tribos e povos que há na terra, e o Cordeiro estará no meio delas e será a sua lâmpada. (EVANGELICA, 1884, pg. 1

A ilustração serve para trabalhar com a imaginação que se baseia no espa- ço (nos altos céus), na característica que o difere da terra (santa e celeste), e na quantidade de pessoas que descreverão sua localização (oriente e do ocidente, no norte e do sul), o que farão (sentar mesa), e até mesmo quantos irão (gran- des multidões de todas as nações e tribos e povos que há na terra). A recompensa maior, e que remete à verdadeira luz citada logo no come- ço do editorial, é que todos estarão com o Cordeiro. Cordeiro é uma referên- cia que faz alusão à pessoa de Cristo Jesus, Aquele de sangue puro, sem peca- dos, foi morto no lugar dos pecadores, como é descrito no livro de Isaías: “Ele

TCCs 2019_2 --- 128 foi oprimido e afligido; e, contudo, não abriu a sua boca; como um cordeiro, foi levado para o matadouro; e, como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca”. (BÍBLIA, Isaías, 53:7). Outra referência que faz alusão à pessoa de Cristo é o fato de Ele ser a luz do mundo. Essa afirmação está presente no livro de João, quando Jesus afirma para seus discípulos: “Eu sou a luz que vim ao mundo, para que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas”. (BÍBLIA, João, 12:46). Sendo Ele o Deus da Salvação, Cristo também é quem ilumina as mentes e corações, traz esclarecimento, entendimento. Mais uma recompensa apontada pelo autor. Uma promessa que há de ser cumprida. i) Décimo parágrafo Neste parágrafo, o manipulador convida a fazer junto com o manipulado a procura da cidade celestial. O manipulado, porém, é advertido que não deve ser feito de maneira ilógica como os “idiotas e ignorantes”, apresentado no se- gundo parágrafo, têm feito por suas próprias luzes, isto é, conhecimento, lógica e razão. O caminho lógico está em seguir o que o apóstolo mais uma vez men- cionado fala: (a) pensando nas coisas de cima, (b) buscando primeiro o reino de Deus e sua justiça, (c) santificando-nos, (d) crendo em Cristo de todo o coração, e por fim, (e) vivendo santa e piamente como se morássemos no céu em nossa cidade. Sendo a primeira colocação, a, uma referência ao livro de Colossenses, em que é falado: “Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra; Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus”. (BÍBLIA, Colossenses, 3:2). Em seguida, o autor retira o discurso presente no livro de primeira João para se apropriar dele. Dessa forma, (b) faz uma clara alusão aos versículos 15 a 17, vejamos: “Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém ama o mun- do, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo — a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens — não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre”. (BÍBLIA, 1 João, 2:15 - 17). Já o elemento (c), tem como fonte o discurso já dito em Mateus: “buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos se- rão acrescentadas”. (BÍBLIA, Mateus, 6:33). Lembrando-se de santificar -se, (d), uma vez que primeira Tessalonicenses mostra: “porquanto Deus não nos chamou para a impureza, e sim para a santi- ficação” (BÍBLIA, 1 Tessalonicenses 4:7). Ou seja, ser semelhante a imagem de

TCCs 2019_2 --- 129 Cristo, filho de Deus. E para isso, esse deve ser crido de todo o coração (e). São passos que o autor desenvolve para que sejam seguidos visando a terra celeste, de forma a viver com se já estivesse morando nela. j) Décimo primeiro parágrafo Após serem oferecidas as ferramentas para chegar à cidade eterna, são apresentados os motivos para buscar a morada do céu. A intimidação é feita de forma a convencer, de uma vez por todas, o leitor a tirar seus olhos nas coisas que acreditam ser boas na terra, e olhar para o que foi prometido “Pensando nesta promessa que nos faz, o que serão para nós a terra, a pátria, as posses- sões?

Desculpar-nos-emos, portanto, quando Deus nos convida para seu ban- quete?”, o tom de leveza segue para um mais pesado e decisivo. É a cartada final que o autor, já satisfeito em mostrar motivos pelo qual a busca vale a pena, deixa: “E quando nos lembrarmos de que, se não estivermos com Deus no céu, estaremos com satanás no inferno; não nos deverá levar isso a buscar a Deus e a cidade eterna?”. Cabe agora ao manipulador decidir. k) Décimo segundo parágrafo

Como se estivesse lendo a mente do seu público, o editor responde pela última vez uma possível pergunta que poderia ser feita: Para onde toda essa busca leva? Ao próprio Jesus. O enunciador apropria-se do livro de João, na ín- tegra: “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (BÍBLIA, João 14:6), e também em: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem”. (BÍBLIA, João 5:9). A viagem tem como destino final Jesus Cristo. Sua morte de cruz deu acesso à vida celeste, enquanto caminhava para ao local de sacrifício, Ele em sua santidade, estava preparando o lugar de cada seguidor seu no céu. São men- cionadas as doze portas com referência ao episódio presente no último livro das Escrituras, o Apocalipse, especificamente, no capítulo 21 em que é descrito cidade santa. l) Décimo terceiro parágrafo

O último pedido feito, também conhecido como apelo, é para que os cris- tãos se unam ao seu mestre, saiam da cidade e seus enganos e caminhem para a cidade futura, já que estando firmes terão aproximação com o Pai porque

TCCs 2019_2 --- 130 não são mais “estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus”. (BÍBLIA, Efésios 2:19).

Capítulo VI - Plano de Expressão

O texto pode ser considerado uma unidade de sentido construída pelo plano de conteúdo (propriamente o discurso) e de expressão (linguagem, ver- bal e não verbal). A junção desses dois é o que chamamos de enunciação. Em outras palavras, trata-se do ato de produção de um texto. Analisar a enunciação composta pelos dois planos garante com que se tenha uma integração e com- preensão do discurso como um todo. No momento em que elementos que compõem a diagramação da notícia (imagens, textos, recursos gráficos etc.), são colocados dentro de um forma- to gráfico e obtém uma significação, passam a atuar como enunciados e, por consequência, a integrar um dispositivo de enunciação (jornal) pertencendo, assim, a um discurso. Em especial, o discurso jornalístico impresso. O linguista francês, especialista em Análise do Discurso, Charaudeau (2006), define dispo- sitivo como: [...] uma maneira de pensar a articulação entre vários elementos que for- mam um conjunto estruturado, pela solidariedade combinatória que os liga. Esses elementos são de ordem material, mas localizados, agenciados, repar- tidos segundo uma rede conceitual mais ou menos complexa. O dispositivo constitui o ambiente, o quadro, o suporte físico da mensagem, mas não se trata de um simples vetor indiferente ao que veicula, ou de um meio de transportar qualquer mensagem sem que esta se ressinta das características do suporte. Todo dispositivo formata a mensagem e, com isso, contribui para lhe conferir um sentido. (CHARAUDEAU, 2006, p. 104) O autor destaca que os dispositivos da imprensa, no caso, os jornais, têm como principal exigência a presença de sua visibilidade, legibilidade e inteligibi- lidade. As páginas do jornal devem ser arquitetadas para que as notícias sejam de fácil identificação e apreensão do leitor.

Figura 4. Cabeçalho do Imprensa Evangelica de 5 de novembro de 1864.

TCCs 2019_2 --- 131 Por esse motivo, serão pontuados fatores positivos e negativos quanto ao plano de expressão do Imprensa, buscando identificar as relações que há com o discurso (plano de conteúdo), isto é, as ideias presentes nos editoriais, com a linguagem (em especial, a não verbal) que o complementa. A análise contribuirá, para que se tenha uma significação global do texto. Para analisar o plano de expressão dos textos editoriais do jornal, utilizaremos estas três dimensões: a) diagramação b) cores e c) ilustrações.

6.1 Tipografia

O Imprensa Evangelica se classifica por pertencer ao período tipográfico (1808 até início de 1920). Essa fase tem como marca a presença de uma impres- são de aparência artesanal, assemelhando-se a livros. Isso, porque os recursos gráficos eram de difícil acesso. Poucos tinham o privilégio de obter uma identi- dade própria que o destacasse. Pode-se dizer que o caso do Imprensa é exceção, uma vez que possuía uma tipografia de fonte única, em cor preta e em negrito para o nome do jornal. Diferentemente dos livros, o título “Imprensa Evangelica” ganha maior destaque por ocupar um espaço significativo na primeira página do periódico. O logotipo do periódico remete a escritos de fonte serifada, por serem gran- des, marcantes e com traços pesados. Este recurso é usado para, literalmente, deixar sua impressão. E forte marca em ser o primeiro jornal evangélico a ser circulado em todo o país. A periodicidade é destacada seguido do número do jornal, dia, mês e ano da publicação. Esse padrão adotado nas primeiras edições tem como objetivo otimizar as principais informações, uma vez que a folha estava começando a circular entre a população. Como mencionado, os recursos gráficos neste período tipográfico eram escassos e se limitavam a filetes, breves mudanças de fontes (tipografia) e uso de poucas ilustrações. No periódico, os elementos visuais seguem um padrão, contendo margens grandes, a ponto de se aproximarem das extremidades e a separação do início de uma nova coluna marcada por uma linha, também cha- mada de linha fio. Esse formato permite que os textos fiquem grandes, soman- do a mais uma característica do período tipográfico a qual o jornal pertence. A diagramação contava com um formato linear, verticalizada, em que o texto iniciava à esquerda, descia e continuava no topo da coluna, à direita. A posição dos elementos era simétrica, não havendo o uso de retrancas no texto jornalístico deste período. Os escritos começavam logo na primeira página e seguiam, de cima para baixo. Muitos escritos jornalísticos tinham como referência materiais literários.

TCCs 2019_2 --- 132 Por essa razão, os textos, inclusive do Imprensa, eram longos, transitando do campo informativo para o literário. A imparcialidade, objetividade e pluralidade de fontes são termos desconhecidos para essa época. O espaço para produ- ção era voltado apenas de textos de opinião, debate e discussões de temática específica. Os títulos dos noticiários, eram compostos de notas curtas, em negrito e com pontuação no final. O formato muda em ocasiões especiais, como: ora- ções, hinos e leituras bíblicas. Há um uso, de certa forma, exagerado da grafia por conta da falta de ferramentas para a diferenciação dos conteúdos aborda- dos no jornal. A aplicação do título variava entre si, desde uso de caixa alta, sem o recur- so do negrito e vice-versa, reflexo de limitações técnicas. É o caso da falta de letras de uma única fonte, como explica o mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Eduardo Nunes Freire (2009): O tipógrafo compunha as páginas com os caracteres na rama (mesa de composição), para depois do material ser impresso, serem reutilizados em outras páginas. Dependendo da quantidade de páginas compostas ao mesmo tempo, isso limitava a construção de frases, obrigando o tipógrafo a variar as fontes à medida que iam acabando as opções. Isso se dava mais nos títulos, pois os artigos podiam ser compostos nas linotipos. Portanto, a mistura de fontes e tamanhos, tão típicas da época, não se dava apenas por gosto do tipógrafo, mas por limitações da própria técnica. (FREIRE, 2009, p.6). As palavras possuem uma fonte condensada, isto é, apertada. A fonte é lisa, não possui serifa, dificultando, assim, a leitura. No contexto do Imprensa, pode-se dizer que o formato foi feito para que, primeiramente, tivesse melhor aproveitamento de espaço para suas reflexões, já que a folha só chegava nas mãos de seu público a cada quinze dias; e, segundamente, para economia de dinheiro e tempo. Quanto o texto era grande e necessitava de mais espaço, o autor separa em dois e deixa um aviso no final, entre parênteses de “conti- nua…”, sendo considerado, de fato, uma estratégia de engajamento e fidelidade por parte do leitor. Ainda que os missionários tivessem o apoio financeiro do Board de Nova York, Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, não conseguiriam comprometer-se todas as semanas para a produção do pe- riódico. Os protestantes realizavam outras atividades no território brasileiro, inclusive a pregação do evangelho e apoio às igrejas e líderes. Seria, portanto, inviável a realização do jornal em grande escala.

TCCs 2019_2 --- 133 Figura 5. Ilustração Imprensa Evangelica de 7 de abril de 1866

TCCs 2019_2 --- 134 6.2 Principais mudanças editoriais

Ano de 1865 Ao final da última folha, da última edição publicada no ano, é colocada uma espécie de lista com todos os artigos publicados e suas respectivas páginas. Pode-se dizer que o artifício lembra um catálogo organizado pela ordem de publicação de cada artigo do Imprensa. O leitor poderia acompanhar e exami- nar se perdeu alguma reflexão, se leu todas ou, simplesmente, ter orientação de qual página está cada texto do jornal.

Ano de 1866 É no ano de 66 que as primeiras ilustrações são adicionadas à folha evan- gélica, especificamente, nas reflexões feitas pelos autores. As figuras servem para exemplificar os personagens e o tema abordado no texto, fazendo com que o leitor interaja com as ilustrações. Trata-se de grandes imagens que ocu- pam uma página. A posição desses desenhos encontra-se no centro, levando a entender que toda a atenção está na imagem, cerne do texto. A partir dela é que o autor discorre a reflexão. É o local onde o leitor deve focar. Trata-se de um objeto de fixação.

Ano de 1867 A primeira página é marcada por alterações gráficas significativas para o jornal. A começar pela fonte do título “Imprensa Evangelica”, que sofre modi- ficações em sua tipografia. O que antes era fina e em caixa alta, agora, ganha espessura em seus traços. As palavras aparecem em negrito, dando força à cor preta. Esse recurso tem como propósito deixar de vez a sua marca e para que se tenha melhor associação entre os leitores. Logo abaixo, a periodicidade do jornal é alterada de “todos os sábados”, como descrito na primeira edição, para “publica-se nos primeiros e terceiros sábados”, localizado abaixo do nome do periódico. Ao lado do período de pu- blicação, aparece o valor da assinatura e o endereço da redação. Ao abrir o texto editorial, o jornal realiza um sumário, destacando todos os textos publicados, seus títulos e as páginas em que se encontram. Esse re- curso, frequentemente usado nos veículos jornalísticos, oferece ao leitor um breve resumo do que será desenvolvido na publicação, assim como o auxilia a uma busca rápida. No geral, essa ferramenta foi, e ainda é atualmente, utilizada

TCCs 2019_2 --- 135 Figura 6. Primeira página do Imprensa Evangelica de 5 de janeiro de 186

Figura 7. Primeira página do Imprensa Evangelica de 4 de janeiro de 1868.

TCCs 2019_2 --- 136 para facilitar a localização dos artigos e texto já publicados. Outro destaque que vale a pena ser dado são as partituras incorporadas à categoria de hinos que, nos anos anteriores (1964 a 1966). Estavam presentes apenas as letras. Havendo a possibilidade de tocar enquanto acompanha a letra da canção. Por se tratar de um jornal que se classifica como meio para que o leitor execute sua devoção doméstica, tendo a possibilidade de fazer a leitura do jornal acompanhado, espera-se que as canções sejam cantadas e tocadas, em uma espécie de culto doméstico. Trata-se de uma escolha que os editores fazem de adicionar ou não as partituras, já que não são todas as folhas que a possuem.

Ano de 1868

É nesse ano que vemos dois elementos importantes para o jornal. “Im- prensa Evangelica” ganha um artigo e muda para “A Imprensa Evangelica”. Entre as duas palavras, há a adição do que podemos chamar de logo, tendo como base dois emblemas, sendo o primeiro, um texto com base em Hebreus, capítulo 6, versículo 19, em que é dito: “A qual esperança temos como âncora da alma, firme e inabalável”, a ilustração traz a representação de um coração, com uma âncora no centro, no formato de cruz. O segundo emblema são os versículos citados “Importa que o Evangelho seja pregado”, apresentado no livro de Marcos 13:10 e “Tende confiança: Eu venci o mundo”, como citado em João, livro bíblico do Novo Testamento, capí- tulo 16, versículo 33. Especificamente, na edição de número 12, a categoria - o equivalente hoje ao “caderno” do jornal - ganha um recuo de margem de forma a sobressaltar o título de cada notícia. Dessa vez, cada chamada é deixada na segunda linha, o texto correspondente passa a ficar ao redor dela. Outra mudança feita nessa mesma edição é a descrição “publica-se nos primeiros e terceiros sábados”, a partir desse número a periodicidade é informado em um quadro à parte, no final do último texto publicado.

Ano de 1878 até a última publicação

Para encerrar a análise da diagramação, assim como a linguagem não ver- bal presente na folha religiosa, os anos seguintes a 78 possuem como destaque três alterações de peso: o nome do jornal volta a ser “Imprensa Evangelica”, a fonte, porém, muda de estilo e tipografia. Percebe-se com isso o desejo de atualizar e seguir as referências proporcionadas da época. Com o passar das edições, acrescentam-se colunas de texto totalizando

TCCs 2019_2 --- 137 quatro. As matérias com maior destaque - como o caso do falecimento do editor- chefe - possuem margens em negrito. Símbolo do luto por parte dos editores. Há também a utilização de anúncios, como de eventos a serem realizados pela Igreja Presbiteriana, locais de venda das Escrituras Sagradas, indicações de igrejas pelo Brasil (edição de 1892 recomendava aos seus leitores cultos rea- lizados nas igrejas presbiterianas, batistas e até mesmo metodistas da época), venda de exemplares pautados de acordo com o interesse do jornal, ou seja, voltados para o campo religioso.

Considerações Finais Foi longo o caminho para que o primeiro jornal protestante do Brasil chegas- se às mãos dos leitores. Resultado de tentativas, estratégias, investimentos, doações, envios, estudos, conjunto de impressos, traduções e até mesmo perseguições. A luta para a liberdade da prática protestante no país teve que ser conquis- tada e foi após a aprovação, por parte da família real, em específico, do príncipe regente Dom João VI, que as primeiras linhas da história da imprensa protestan- te começaram a ser redigidas. Mãos de americanos, ingleses, escoceses, homens, mulheres, pastores, missionários, todos protestantes, auxiliaram na formação dos primeiros materiais. A perspectiva de um jovem missionário, inquieto em seu trabalho de trazer respostas claras aos que ansiavam por esclarecimentos na esfera religiosa, foi o fator inicial para a criação do Imprensa Evangelica. Desde o começo, o veículo não escondeu sua identidade cristã ao apregoar mensagens bíblicas e afirmações de fundamento histórico. Os textos francos, às vezes ríspidos, dão forma ao periódico, que se importava com a vida religiosa da população, principalmente, a vida religiosa doméstica. É no lar em que a base cristã é construída. Pode-se classificar audacioso o trabalho de recortar quase 30 anos de cir- culação de um veículo, todavia, o desafio de aprofundar-se nos editoriais mostra apenas a superfície de um documento tão rico em detalhes. Para suprir a curiosi- dade da estudante, o trabalho teve como principal apoio às ferramentas da Análise do Discurso, que na sua proposta, busca examinar os prováveis efeitos de sentido provocados. Falar em Análise do Discurso, a primeiro plano, pode parecer amplo. O termo carrega considerações díspares e pouco exploradas para os que possuem apenas um primeiro contato. A presente pesquisa teve como preocupação examinar minuciosamente a in- tencionalidade do autor ao redigir o texto editorial, por meio dos signos inseridos no texto, levando em conta, claro, a proposta da folha evangélica, assim como sua relevância e singularidade.

TCCs 2019_2 --- 138 As oposições tratadas em cada texto editorial se relacionam, uma vez que abordam questões de debate até os dias de hoje. O bom contra o que é ruim, o que é certo e o que é classificado como errado, são temáticas recorrentes em qualquer discurso, não deixando de ser assunto para o Imprensa discutir desde sua primeira publicação. Por ser tratar diretamente de um veículo religioso, a oposição presente em “céu vs. inferno”, é bastante desenvolvida, o que muda são os campos em que são introduzidas, variando de aspectos sociais, culturais e até mesmo pessoais. Ressaltando a oposição de “trevas vs. luz”, apontada no último texto analisado, As Duas Cidades, é possível afirmar que o jornal traça essa luta em todos os seus conteúdos. Das notícias até os hinários, o periódico identifica as trevas e as expõe, à medida que a luz, a mensagem do evangelho, as dissipam. A partir da análise foi possível notar que as trevas são encontradas no ser que busca traçar uma vida olhando para si. Esse, por sua vez, não encontra as respostas que busca. Os três textos editoriais possuem uma característica que resume todos os demais materiais do jornal: intimidação. Os escritos editoriais começam e acabam com a manipulação por meio da intimidação. O manipulador impõe sobre o manipulado uma atitude para que seja feito algo a respeito de sua condição. Reforme o coração a fim de obter a reconciliação com Deus (Prospecto), cumpra o dever como cristão de pregar o evangelho (Anno Novo), busque a cidade eterna, e não a morada efêmera na terra (As Duas Cida- des), resumem o que o autor deseja que o leitor faça. Como visto na pesquisa, o uso do plural majestático, principal marca do enun- ciador em seu discurso, foi utilizado constantemente nos três editoriais de maneira a soar como inclusão, tanto dos editores do jornal para o público, e também entre os missionários que produziram o Imprensa, uma vez que a presença da voz dos escritores é apenas uma, representando, assim, a empresa, neste caso, a redação. O uso do plural reflete também na preocupação por parte do autor, visto que o desde o começo o jornal deseja exercer uma proximidade direta com seu público por meio da relação “eu-tu”, isto é, “nós”. Fato é que, tendo o jornal seu desígnio bem definido e alinhado, a sanção cumpre seu objetivo. O saber passa a ser integral. A formação do público-leitor a respeito de sua fé, ao sanar dúvidas e esclarecer erros cometidos com a finalidade de instruir nas páginas do periódico a conduta correta, é feita desde a primeira folha publicada. Entretanto, tamanha dedicação em levar a fé protestante não está imune aos desafios. O jornal circula no período chamado tipográfico. Os materiais eram caros, de difícil acesso e manutenção, isto, por sua vez, refletiam nas publicações, tornando-as carentes de recursos estéticos que envolve a variedade de imagens, fotografias, cores e grafias. A persuasão por parte do enunciador era limitada, pois este não tinha recursos suficientes para despertar mais atenção de seu público

TCCs 2019_2 --- 139 leitor. Apenas as palavras tinham esse poder, por isso, o periódico era carregado de textos longos, a fim de que o leitor, aos poucos, consumisse o conteúdo religioso. Diante disso, realizar a Análise do Discurso do Imprensa passa a ser um de- safio. Trata-se de um período em que o conteúdo se sobressai e não o campo das ideias. O material, a acessibilidade dos exemplares, o contexto histórico em que estava inserido, os aspectos visuais e os registros pendiam para que a análise se ba- seasse apenas na de conteúdo, já que, para esse campo de pesquisa, apenas poucos elementos bastam. O interesse da autora em querer descobrir os efeitos de sentido que os editoriais possuem foi o fator motivador para que a Análise do Discurso estivesse presente na pesquisa. O desejo de aprofundamento solicitou a utilização de outras ferramentas, como foi o caso da análise semântica e as investigações das ideias de cada editorial a fim de obter melhor aproveitamento do material. Resulta-se, então, em um trabalho em que as avaliações se complementam para que se tenha uma melhor compreensão da relevância e atuação da folha evan- gélica. Em suma, o Imprensa Evangelica se destaca por ser um trabalho que envolve a produção de conteúdos cristãos para outros cristãos com o propósito de que todos firmemente cumpram a missão designada, ou como explanado no último editorial, que percorram a caminhada cristã até a cidade eterna. Referências Bibliográficas

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TCCs 2019_2 --- 144 COBERTURA DA MÍDIA NA COPA DO MUNDO FEMININA DE 2019

GIOVANNA PATERNOSTRO CARVALHO ORIENTADOR: Carlos Sandano

TCCs 2019_2 --- 145 Resumo

Esta pesquisa levanta a discussão de como as mulheres são representadas na mídia esportiva. Será abordado como matérias jornalísticas carregam significa- dos em seu conteúdo e como esse fator pode afetar na propagação da imagem das atletas. Os autores Valentin Voloshinov e Mikhail Bakhtin formam a base teórica desta pesquisa, com ele foi possível analisar a semiótica das matérias jornalísticas escolhidas. Também foi levado em conta o espaço que a Copa do Mundo Feminina de 2019 ganhou nos programas televisivos. A análise foi feita com exemplo de canal aberto e fechado.

PALAVRAS-CHAVE: Signo; Representatividade; Feminino; Atleta; Dialogismo;

Abstract

The research brings to discussion how women are treated and represented in the sports media. It will be approached how, in this case, television news carry meanings in their content and how this factor can affect the propagations of the athletes’ image. Valentin Voloshinov and Mikhail Bakhtin are the authors who formed the basis theory of this research; therefore it was possible to analyze the semiotics of the chosen journalistic articles. It also took in account the space that the 2019 Women’s World Cup gained on television programs. The analysis was made with an example of open and closed channel.

KEYWORDS: Sign, Representativeness, Feminine, Athlete, Dialogism; World Cup.

TCCs 2019_2 --- 146 Introdução A presente pesquisa aborda como o feminino é representado na cober- tura jornalística feita na Copa do Mundo feminina que aconteceu na França. O foco se dá nas escolhas de pautas e na linguagem da semiótica cultural e no significado que as seguem. Também foi analisada a maneira como as perso- nagens são representadas nas reportagens e que imagem está sendo passada para o público. Além de como esses fatores podem dar continuidade à falta de representatividade feminina tanto no futebol quanto em outras modalidades e a desigualdade salarial entre os gêneros esportivos. A maneira em que os gêneros são apresentados pela televisão pode influenciar no comportamento e até mesmo na maneira de pensar das pessoas. Através dos veículos televisivos é possível compreende- mos as transformações que aconteceram na sociedade ao longo do século XXI e a imposição de como se viver. Segundo Trevor Ibbotson, o in- teresse por uma reportagem pode ser determinado, muitas vezes, pelo local onde certo grupo mora e sua situação econômica e social.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento da tecnologia da TV sofreu uma parada… Mas, entre o final dos anos 40 e o começo dos 50, a TV entrou na vida de praticamente todos os países e se firmou como meio de informação e comunicação de massa. (PATERNOSTRO, 1999, p.24)

Há iniciativas que ganharam espaço na televisão como o ESPNW, uma co- bertura jornalística feita por mulheres para dar espaços as atletas e informar as fãs de esporte. O Olhar ESPNW era um programa televisivo da iniciativa e que entrava na programação uma vez por mês, nele são explorados temas conside- rados tabus como a violência e o abuso sexual, além de mostrar as dificuldades em que se encontra o esporte feminino. Mas em outubro de 2019, o programa teve sua última edição. A presente pesquisa tem como objetivo principal juntar informações so- bre o significado da representatividade do feminino e a desigualdade de gê- neros na mídia esportiva e pensar uma nova maneira de abordar as mulheres no esporte, além de mostrar como foi feita a cobertura televisiva na Copa do Mundo feminina na França. Procurei demonstrar o espaço obtido pelas atletas na televisão e como o jornalismo é peça importante para incentivar investimentos em modalidades femininas e dar exemplos de atletas que são bem sucedidas para as jovens que almejam um futuro no esporte. Com esse objetivo em mente, a pesquisa procura responder a uma questão. De que ma- neira podemos contribuir para uma cobertura jornalística mais significativa do feminino no esporte?

TCCs 2019_2 --- 147 O gosto pelo esporte começou quando assisti à Olimpíadas de Londres. Com o jornalismo encontrei uma maneira de trabalhar no meio, tendo habili- dade física ou não. Mas ao ingressar na faculdade me identifiquei, também, com o jornalismo cultural, o que acabou dificultando a escolha do tema para o meu TCC. O projeto ESPNW foi algo que nunca vi antes nas programações televisi- vas, o que acabou chamando a minha atenção. Senti a necessidade de falar sobre a desigualdade que as atletas sofrem e como não são valorizadas pelos veículos, principalmente a televisão. A metodologia usada é de pesquisa aplicada entre a TV aberta e paga, com o foco em notícias sobre a Copa do Mundo da França. Os canais analisados foram a Globo e a ESPN. Para ilustrar o que acontece na TV aberta, escolhi o programa, semanal, Esporte Espetacular da Rede Globo. No canal pago, ESPN, o objeto foi o telejornal SportsCenter da meia-noite, o mais importante da grade. O futebol é a base da análise e desta forma mostro a cobertura das mí- dias nesta que é a modalidade mais popular do Brasil. O período escolhido foi entre maio (pré mundial) e, junho e julho de 2019, quando ocorreu a Copa do Mundo Feminina de Futebol e a Copa América (masculino). O mundial é o foco principal da monografia. Já a Copa América é analisada com fator de influência na linha editorial tanto do Esporte Espetacular quanto do Sportscenter. A análise de mídia utilizou pensadores e escolas para que fosse possível ter um entendimento maior do que é fazer jornalismo. Os autores ajudaram na compreensão e identificação das ideias que auxiliaram a moldar o jornalismo como é apresentado hoje. Ao analisar a linguagem usei Mikhail Bahktin e Valen- tin Voloshinov como base na semiótica. Desta forma é possível compreender como cada palavra é considerada um signo ideológico, logo pode representar algo que desde sempre esteve inserido na nossa cultura, consciente ou incons- cientemente. Livros sobre o jornalismo na TV e sobre reportagens televisivas também foram aproveitados para que houvesse, também, o entendimento da linguagem usada na televisão. E assim foi possível fazer uma análise que não só atingisse o significado das palavras e identificação de signos, mas que entendes- se como essa ideia, junto com o discurso televisivo pode ter um impacto na sociedade. Também usei como base as teorias de Nelson Traquina e de Robert Park (A Era Glacial do Jornalismo) que ajudaram a compreender quais as funções do jornalismo e consequentemente aprender sobre como a profissão está atuan- do atualmente. Desta forma é possível pensar um novo significado da para o jornalismo quando falamos do feminino no esporte.

TCCs 2019_2 --- 148 Representatividade na mídia esportiva Antes de analisarmos o objeto de estudo, é necessário entender a lin- guagem e seu significado. Quando há uma frase ou uma palavra, em qualquer tipo de discurso, ela carrega uma ideia. O indivíduo é capaz de entender a mensagem que está sendo passada por conta da maneira que a sociedade foi construída, de sua ideologia. Em seu livro ‘Marxismo e a filosofia da linguagem’, Valentin Voloshinov (2006, p.29) afirma: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo”, ou seja, aquilo que é ideológico é um signo. Logo, não há ideologia sem significado. Ainda segundo o autor, um instrumento de produção se sustenta, pois não há um sentido exato. Apenas desempenha uma função, mas o mesmo pode ser convertido em um signo ideológico. Ele utiliza a foice e o martelo para explicar o caso. Juntos estes dois representam o emblema da União Soviética, ou seja, são capazes de adquirir um sentido. Os signos podem vir de instrumentos, ou até mesmo de comidas. Voloshi- nov exemplifica este caso ao falar do pão e do vinho que para os católicos representam o corpo e sangue de Jesus Cristo. Apesar desse significado, em outras situações representam apenas um produto de consumo.

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou aprendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica. (VOLOSHINOV, 2006, p.32)

Quando falamos em consciência deve-se ter em mente que ela não deriva da ideologia. Já os fenômenos ideológicos têm a ver com os signos sociais. “As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas.” (Voloshinov, 2006, p. 34). Para o autor a existência do signo é a materialização da comunicação social. A comunicação social não se apresenta de maneira mais clara e objetiva do que na linguagem. Podemos concluir que a matéria jornalística até pode se sustentar, ou seja, não carregar um significado, desde que seja colocada apenas a apuração empí- rica. Mas há uma transformação quando a matéria é inserida em um contexto social e desempenha certo papel. Logo, as reportagens passam a ter sentido através da linguagem utilizada e do âmbito em que está inserido. No jornalismo o significado é massivo, atinge de maneira ampla para que a mensagem possa chegar ao emissor e ser entendida. A função do profissional não é convencer seu público de algo, mas sim fazê-lo questionar o que acontece na sociedade.

TCCs 2019_2 --- 149 Porém muitas vezes, o jornalista, pode cair na peça dos signos que foram inse- ridos na nossa vida desde os primórdios. Há uma relação entre a realidade (os fatos) e os signos. Para entender essa junção é necessário um estudo do material verbal do objeto em questão. No caso desta pesquisa são as reportagens analisadas. Por exemplo, na Copa do Mundo a atacante Marta não pode jogar a partida de estreia do Brasil por estar lesionada. Este é o fato, mas ao mencionarem o efeito que a falta da jogadora teria na equipe, taticamente e emocionalmente, temos a inserção dos signos. “De fato, a essência deste problema, naquilo que nos interessa, liga-se à questão de saber como a realidade (a infraestrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação.” (Voloshinov, 2006, p.40). A palavra tem caráter de ubiquidade social que é a capacidade de estar em diversos lugares ao mesmo tempo. Valentin Voloshinov (2006, p.40) afirma que a palavra consegue adentrar qualquer tipo de relação que o indivíduo possa ter. Seja de base ideológica ou em encontros casuais da vida cotidiana. É possível concluir que o signo atrelado a uma palavra propaga-se rapidamente e com as novas tecnologias, é de maneira quase que instantânea graças a essa habilidade ambígua. A palavra, ainda segundo o autor, é o signo mais sensível das transforma- ções sociais. São lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não apresentam uma qualidade ideológica nova e consolidada. “A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças so- ciais.” (Voloshinov, 2006, p.41). É a chamada psicologia do corpo social (teoria de Plekhánov). Podemos afirmar que há uma conexão entre a base do que é sócio-político e a ideologia em si que se evidencia na forma de interação verbal. A psicologia do corpo social é algo exteriorizado na palavra, no gesto e em uma ação. “Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no mate- rial verbal” (Voloshinov, 2006, p.42). Desta forma é mais fácil entender como a palavra ajuda na troca de experiências e cultura. A sociedade foi construída em cima de signos que, através do material verbal, ganhou força e moldou a maneira como agimos e pensamos.

As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possíveis entre indivíduos, todas as formas e os meios de comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na criação ideológica. Por sua vez, das condições, formas e tipos da comunicação verbal derivam tanto as formas como os temas dos atos de fala. (VOLOSHINOV, 2006, p.42)

TCCs 2019_2 --- 150 Ao explicar estas relações, o autor afirma que nada mais é do que o meio ambiente inicial de interação entre os indivíduos. Nele podemos encontrar for- mas e aspectos da criação ideológica de forma ininterrupta, são elas as conver- sas no corredor, em uma reunião, jantar de domingo com a família. Ela se ma- nifesta em diversos discursos e evidencia a ligação entre os tipos de interação social (linguagem gestual e gestos condicionados, por exemplo). Não podemos excluir a situação social do indivíduo ao falarmos da interação verbal, pois cada um reage de maneira sensível ao que ocorre na sociedade. “Assim é que no seio desta psicologia do corpo social materializada na palavra acumulam-se mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que, mais tarde, encontram sua expressão nas produções ideológicas acabadas.” (Voloshinov, 2006, p.42). Tome como exemplo a seguinte situação: uma pessoa faz embaixadinhas com uma bola. A hipótese é de que seja um jogador de futebol ou um menino com o sonho de ser o próximo Pelé. Esta pessoa em questão ganhou de seu pai a bola de futebol. O passatempo favorito dos dois é passar os domingos juntos assistindo ao time de coração. Mas e se revelarmos que a pessoa nunca foi um menino e sim uma menina que sonha em ser a próxima Marta? Talvez soe estranho, porque a sociedade se construiu na ideia de que esporte não é para mulher, principalmente o futebol, e ao longo dos anos essa ideia foi passa- da para nós através das nossas interações verbais. Signos carregam ideologias e palavras, por sua vez, ajudam a disseminar o significado. Há representações masculinas em qualquer área de formação. No documentário, Miss Representation (2011), disponível na Netflix, há entrevistas com estudantes do ensino médio, no Estados Unidos, que contam como a de- finição de “mulher” as afetam.

As mulheres com menos de 40 anos são 39% da população dos Estados Unidos. Entretanto são 71% das mulheres na televisão. Já as que têm mais de 40 anos equivalem a 47%, mas só 26% na televisão. (MISS... 2011)

Sobre a psicologia social, Voloshinov (2006, p.40-42) conclui que há dois pontos a serem discutidos e analisados. O primeiro seria o conteúdo do tema em questão, em um dado momento. No caso desta pesquisa o período é a Copa do Mundo Feminina de 2019, na França. Mas por que este torneio? Por que ao longo da competição esse era o assunto mais comentado em todo o mundo? A hipótese é: vivemos em uma época na qual as mulheres estão toman- do conta do espaço de representação. O empoderamento feminino foi silencia- do, mas hoje consegue articular novas representações no jornalismo esportivo. As mulheres estão se sentindo cada vez mais confortáveis para falarem sobre suas vidas e questionar o significado do “papel da mulher” imposto pela

TCCs 2019_2 --- 151 sociedade. Atletas como Marta, Alex Morgan e Ada Hegerberg destacaram a importância do investimento no futebol feminino e da representatividade para as jovens que no futuro poderão tornar-se jogadoras de futebol ou de outra modalidade. Por isso, estão consolidando-se como símbolo da luta por igualda- de no esporte feminino.

[…] Para jornalistas, os assuntos são considerados relevantes à medida que interessam a um grande número de pessoas, quando causa impacto ou afeta a vida dos cidadãos. Esse conceito de notícia se aplica a todos os veículos. O que muda é a maneira como as informações são transmitidas. […] (BISTANE; BACELLAR, 2006, p.41)

No decorrer do mundial da França uma personagem ganhou destaque: Megan Rapione. A atleta americana já tinha chamado a atenção por causa de seus embates com o presidente norte-americano Donald Trump. Mas quando há Copa do Mundo uma frase ou um gesto ganha uma proporção muito maior. A capitã da seleção dos Estados Unidos tem voz ativa em defesa da comuni- dade LGBT e reivindicações pela igualdade no esporte e não escondeu sua personalidade forte ao declarar que não iria à Casa Branca caso a sua equipe ganhasse o campeonato1. Trump respondeu que era necessário conquistar a Copa do Mundo antes de recusar o convite da Casa Branca. Outro objetivo é analisar os tipos e as formas de discursos utilizados para comentar os temas escolhidos. O jornalismo se encaixa neste ponto ao pensar na maneira que utilizará a palavra para carregar o sentindo desejado e poder atingir o seu público-alvo. Em 2007 tivemos uma pesquisa intitulada: ‘Guerra dos Sexos’ na cobertura jornalística dos jogos olímpicos: uma tensão inventada, escri- ta pelos brasileiros Bruno Boschilia e Sidmar dos Santos Meurer. Os autores afirmam que o esporte tornou-se um elemento de elevação de audiência dos variados tipos de veículos. Para exemplificar, utilizam a grade de programação da televisão que se altera para transmitir os eventos esportivos. “A atual con- figuração do modelo esportivo não pode ser compreendida se dissociada da esfera midiática” (Boschilia e Meurer, 2007, p.57). Eles ainda dizem que o esporte em si não consegue se sustentar e ren- der resultados para a mídia, por isso é preciso transforma-lo em algo atrativo para o consumo do público. Boschilia e Meurer nos mostra como os veículos de televisão criam tensões para vender este espetáculo. Em dado momento é analisado como se usa a figura mulher-mãe a cima da mulher-atleta. “A situação de gravidez da atleta é ressaltada ao ser inscrita num sentido diferenciado de

1 É costume dos norte-americanos visitar a sede do governo quando ganham algum campeo- nato.

TCCs 2019_2 --- 152 atuação, na qual se relativizam os aspectos competitivos em favor de uma lo- gica de participação.” (Boschilia e Meurer, 2007, p.59). É importante evidenciar, novamente, que ao longo dos anos signos ideológicos tomaram forma e, con- forme novas sociedades surgiam, ganhavam cada vez mais força.

O sujeito discursivo, locutor, ao produzir um dizer sobre a presença da mulher no esporte, o fara através da mediação, de um processo interpretativo sobre discursos que já foi estabelecido historicamente e se mantem em nível de anonimato. O locutor, durante o processo de formação discursiva, mesmo que de forma inconsciente, toma parte de inúmeros outros discursos, já es- tabelecidos, repletos de ideologias, tabus e predisposições, que se estabilizam durante a narrativa. (BOSCHILIA E MEURER, 2007, P. 61)

Por isso, é tão difícil desmitificar estereótipos, é algo que está enraizado no indivíduo a partir do momento em que ele é inserido na cultura de certo corpo social. Como já falado, a palavra carrega significado. Logo, leva uma ideia ou conceito àquele que recebe a mensagem. José Arbex (2002, p.10), em ‘O Po- der da TV’, afirma que a televisão é o mundo da simulação, capaz de manipular imagens e, consequentemente, falsificando o discurso. Por isso, o trabalho do jornalista é tão importante e deve ser tratado com muita cautela. Ao mesmo tempo em que os profissionais acreditam incentivar o pensamento crítico do espectador, ele pode estar, mesmo que inconscientemente, propagando con- ceitos que tomaram forma na sociedade e que estão consolidados há muito tempo.

Na TV, a imagem se opõe ao pensamento, porque convida permanentemente o telespectador a identificar a “realidade” com aquilo que ele vê, e o teles- pectador se sente confortável por ter um acesso tão direto, tão imediato, ao mundo do “real”. (ARBEX, 2002, P. 10)

Para o sociólogo Robert E. Park (2008. p.51), é função da notícia orien- tar o homem e a sociedade no que chamamos de mundo real. Ainda segundo Park, a proporção que uma notícia toma é capaz de determinar a extensão da participação política da sociedade. “A notícia, como “algo que faz as pessoas falarem”, tende a possuir o caráter de um documento público e está limitada de um modo característico a eventos que causam mudanças súbitas e decisivas.” (Park, 2008, p.51). A importância de uma reportagem vem do fato de ser capaz de surpreender e emocionar o público. Ao impactar o telespectador é plausível que haja comentários, ou seja, a matéria jornalística será lembrada e passada a frente. Dessa forma, as chances de propagação aumentam. Mas de que maneira pode-se atingir esse objetivo? Trazendo notícias que tenham significado para a

TCCs 2019_2 --- 153 sociedade, só assim ela terá algum impacto. Como discutido anteriormente, a palavra é capaz de carregar um sentido, seguindo esse pensamento é possível considerar a imagem como uma palavra já que traz significado. Mas devemos ter cuidado ao falarmos dos signos e a comunicação social. Quando há um sistema de comunicação organizada não há espaço para o signo a não ser como um objeto físico. Por isso é importante entender o momento em que estamos analisando. Segundo Voloshinov (2006, p.132), cada discurso, ou enunciação, depende de um tema. É ele que vai dar um sentido completo à frase que queremos ana- lisar. Utilizemos o mesmo exemplo que Valentin: “Que horas são?”. Essa oração, a cada vez que usarmos, terá um significado diferente. Ela irá depender de algo além da linguística, os elementos não verbais (cultura de dada sociedade). Para Mikhail Bakhtin, nós não escolhemos uma frase apenas pelo fato de escolher. Tomamos essa decisão de acordo com o nosso ponto de vista. “A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é sobre um determinado gênero do discurso, guia-nos no processo do nosso discurso.” (Bakhtin, 2003. P. 286). Podemos concluir que Megan entendia o momento em que vivia e o espaço discursivo que tinha. Com as suas bases culturais soube aproveitar bem o mo- mento para falar com a palavra e o corpo.

O problema da significação é um dos mais difíceis da linguística. As tentativas de resolução desse problema têm revelado o estreito solilóquio da ciência linguística com particular clareza. Com efeito, a teoria que se apoia sobre uma compreensão passiva não nos dá os meios de abordar os fundamentos e as características essenciais da significação linguística. (VOLOSHINOV, 2006, p.131)

Como já mencionado, Megan Rapione tornou-se personagem importante durante a Copa do Mundo de 2019. Além de seu embate com o Presidente americano Donald Trump, a capitã da seleção estado unidense também causou polêmica ao não cantar o hino nacional durante o mundial. O gesto foi um protesto contra a desigualdade social e o abuso de autoridade cometido por policiais nos Estados Unidos. Por essas e outras ações, a atacante americana tornou-se uma das personagens principais do mundial, principalmente com a sua pose característica ao comemorar o gol com os braços abertos. Megan já era sinônimo de força para as compatriotas, e após os episódios na França transformou-se em símbolo para as mulheres do mundo todo que um dia so- nham com a igualdade de gênero.

TCCs 2019_2 --- 154 Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos social- mente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo. (VOLOSHI- NOV, 2006, p.44)

Sobre a seleção americana, as atletas decidiram processar a Federação Americana de Futebol (US SOCCER), dias antes da Copa, ao alegar discrimi- nação de gênero. É importante ressaltar que essa não é a primeira vez que as atletas se unem para protestar contra a diferença de tratamento nos Estados Unidos. A principal reclamação é de que jogam mais partidas e saem mais vito- riosas que a seleção masculina, mas mesmo assim recebem menos. Para Voloshinov, todo signo ideológico é marcado pelo horizonte social e o que vai determina-lo é a época e o grupo social há quem se refere. Apesar de tudo, a sociedade está em constante movimento, por isso devemos analisar o momento em que os objetos ou indivíduos estão situados. Nos Estados Uni- dos a seleção feminina é tetra campeã mundial e olímpica e lideram o Ranking da FIFA. Já a masculina não conquistaram os mesmos títulos e ocupa a 30ª colocação no Ranking da FIFA.

O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes. (VOLOSHINOV, 2006, p.45)

Segundo apuração do ESPNW, o lucro entre março e abril de 2017, do futebol feminino, foi de US$ 17,6 milhões (R$ 70,4 milhões), já a do masculino foi de US$ 9 milhões (R$ 36 milhões). Mas o bônus na última participação em Copa foi de US$ 75 milhões (R$ 300 milhões) para as atletas contra US$ 407 milhões (R$ 1,6 bilhões) recebidos pela equipe masculina. Essa é a situação atual das seleções do Estados Unidos. Não é surpresa alguma que cada vez mais o discurso utilizado pelas pessoas, em sua maioria mulheres, seja de protesto. A desigualdade de gêneros está sendo, cada vez mais, discutido e é importante que também haja espaço para debates na mídia. A bicampeã olímpica Jaqueline Carvalho, em agosto de 2018, deu uma en- trevista para o canal pago ESPN Brasil, no programa Bola da Vez. Nela foi ques- tionada sobre o que achava da visibilidade dada para o esporte, principalmente no feminino. Segundo Jaqueline, se esse espaço fosse maior é provável que não só o vôlei, mas outras modalidades também conseguissem mais patrocínio, pois as empresas verão uma boa chance de investir nas modalidades e nessas meni-

TCCs 2019_2 --- 155 nas que estão chegando e querem fazer carreira no esporte.

2Claro que podemos esboçar explicações fáceis para estas grandes dispari- dades. O esporte profissional masculino é bem estabelecido, muitas vezes atraindo grandes multidões pagantes e enormes receitas de TV. Patrocina- dores reúnem-se com mais dinheiro. Isso simplesmente não acontece na maioria dos esportes profissionais femininos, especialmente as de equipe. (INTELLIGENCE 2017)

Voloshinov (2006, p.45) afirma que a comunidade social utiliza um código ideológico único. Já as classes sociais diferentes usam uma só e na mesma língua. O signo é a arena na qual se desenvolve a luta de classes, é vivo e móvel, capaz de evoluir. “O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar- -se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade.” (Voloshinov, 2006, p.46). Mas deve haver um cuidado na maneira em que o signo é usado. A representação dominante tende a impor um caráter irrefutável que está acima de qualquer diferença de classe. Desta forma, a palavra torna-se monovalente. A televisão é capaz de levar diversos discursos de maneiras mais dinâmicas que outras plataformas. Quando algo está na TV, as proporções são maiores e por isso a visibilidade é algo tão importante. Boschilia e Meurer (2007, p. 58-59) afirmam que a mídia buscava criar um espetáculo, pois o esporte sozinho não conseguiria se sustentar. A Copa do Mundo Feminina ganhou destaque justamen- te por esse dinamismo da televisão. A todo o momento algo estava sendo pas- sado com o mundial em destaque. Os debates sobre o investimento no futebol feminino e as questões de gêneros tudo por conta da exposição que o mundial teve. Segundo reportagem da Globo3, a FIFA estimou atrair 1 bilhão de pessoas em 135 países, durante toda a Copa do Mundo. No jogo entre Brasil e França, foram mais de 30 milhões de telespectadores. A Rede Globo transmitiu, pela primeira vez, o mundial e alcançou por volta de 30 pontos de audiência. Na final da Copa de 2015, os Estados Unidos teve cerca de 25 milhões de pessoas as- sistindo. É importante ressaltar que as americanas estavam disputavam a final e

2 Of course we can sketch easy - true - explanations for these great disparities. Men’s professional sport is well established, often attracting big paying crowds and more importantly huge TV revenues. Sponsors flock in with more money. This just doesn’t happen in most wom- en’s professional sport, especially team sport. 3 Os dados foram extraídos da matéria realizada por Carol Barcellos e que foi ao ar no Esporte Espetacular, no último dia da Copa do Mundo da França.

TCCs 2019_2 --- 156 levaram o título em cima das japonesas.

O esporte além de ser um extraordinário veiculo de afirmação e expressão de valores de uma sociedade baseada no modelo capitalista e nas relações de consumo, tornou-se um importante - se não fundamental - elemento de elevação de vendas e audiência das variadas formas de agentes midiáticos. (BOSCHILIA; MEURER, 2007)

A Holanda, que disputou o título com as americanas, teve quase um quar- to de toda a população do país assistindo a partida das oitavas. O número superou o da final da Liga das Nações em que a seleção masculina disputava, mas acabou perdendo para Portugal. Na Itália o foram 7,3 milhões de pessoas assistindo o jogo contra o Brasil. Quase duas semanas antes os homens haviam enfrentado a Grécia pelas Eliminatórias da Eurocopa e teve 2 milhões a menos de audiência. Os números chamam a atenção de patrocinadores que querem aparecer e ter os seus nomes atrelados à modalidade, porque receberão um bom retorno pela parceria. Ou seja, isso indica que há sim um mercado no futebol feminino, um que valha a pena investir.

3. Entidades futebolísticas 3.1 FIFA

A Federação Internacional de Futebol Associação, mais conhecida como FIFA, é uma organização internacional, com base em Zurique na Suíça, sem fins lucrativos que dirige as diversas modalidades do futebol (futsal, futebol de areia e futebol). A própria organização se descreve como uma das federações espor- tivas que desempenhou um papel pioneiro na área de governança e trabalha para sob o Código de Ética.

4Para garantir a separação de poderes o Comitê de Ética independente, es- tabelecido como o terceiro órgão judicial sob o Código de Ética da FIFA, é responsável por cuidar de toda a comunidade de futebol e ajudar a enfrentar os desafios atuais do esporte, como apostas ilegais, suborno e outras atividades proibidas. Sob o Código de Ética, sanções disciplinares podem ser impostas a funcionários infratores, jogadores, agentes de atletas e agentes de jogo. (FIFA)

4 To ensure a separation of powers, the independent Ethics Committee, established as the third judicial body under the FIFA Code of Ethics, is responsible for watching over the entire football community and helping to tackle current challenges in football such as illegal betting, bribery and other prohibited activities. Under the Code of Ethics, disciplinary sanc- tions can be imposed on offending officials, players, players’ agents and match agents.

TCCs 2019_2 --- 157 Após algumas polêmicas, a FIFA tenta manter um perfil de transparência. Por isso, no site da entidade é possível achar relatórios financeiros e governa- mentais. O site da FIFA é em inglês, entretanto pode mudar para as opções: espanhol, francês, alemão e japonês, mas não há versão em português. Os rela- tórios são de difícil acesso, mas a partir do momento em que o público conse- gue encontrar, acha uma variedade de documentos. O relatório que chamou a atenção para esta pesquisa foi a intitulada Wo- men’s Football Stragegy (Estratégia no futebol feminino). Nele é possível enten- der os planos que a Federação tem para a modalidade no feminino continuar a crescer e se desenvolver. A própria FIFA, neste relato, afirma que a situação do futebol feminino é precária e precisa de uma mudança fundamental. A primeira Copa do Mundo feminina foi em 1991. As seleções sub-20 só tiveram a oportunidade de jogar um mundial em 2002 e a sub-17 em 2008. Desde então, segundo o relatório da FIFA, o nível futebolístico vem aumentan- do e a atenção da mídia cresceu exponencialmente, assim como a popularidade do futebol feminino. Para ilustrar esse fato, no dia 9 de junho de 2019 a seleção brasileira fez o seu primeiro jogo contra a Jamaica no mundial da França. A partida foi às dez e meia da manhã, no horário de Brasília, no domingo. Esta foi a primeira vez que a Rede Globo transmitiu um jogo da seleção em Copa do Mundo e mostrou to- tal respeito pela modalidade ao colocar o narrador de maior prestígio do canal, Galvão Bueno, para comandar a transmissão. A audiência da emissora dobrou, foram 20 pontos de média no Rio de Janeiro em comparação aos 10 pontos que tiveram nos quatro domingos anteriores com a transmissão do Campeo- nato Brasileiro. Em São Paulo foi 19 pontos de público, um crescimento de 9 pontos em relação aos domingos anteriores.

5Basta olhar para o enorme sucesso da Copa do Mundo do Canadá em 2015, para uma indicação de quão popular e poderoso o esporte está ao redor do mundo. O evento criou quase 500 milhões de dólares de atividade econô- mica no país sede. A final dos EUA contra o Japão foi o jogo de futebol mais assistido na história dos EUA. Sete partidas durante o torneio tiveram mais de 50.000 espectadores presentes e um total de nove bilhões de impressões foram registradas no Twitter. (FIFA, 2018, P.4)

5 One only needs to look back at the enormous success of the FIFA Women’s World Cup Canada 2015™ for an indication of just how popular and powerful the sport is around the world, as the event created nearly half a billion dollars of economic activity in the host country. The USA v. Japan final was the most watched football match in US history. Seven matches during the tournament had more than 50,000 spectators in attendance and a total of nine billion impressions were registered on Twitter.

TCCs 2019_2 --- 158 A entidade ainda afirma que anos de negligência e falta de investimento impediram meninas e mulheres de praticar futebol e alcançar posições adminis- trativas e de governança no esporte. Esta falta de mulheres no futebol, dentro e fora de campo, revela que menos vozes serão ouvidas, consequentemente, menos mudanças ocorrerão. Em 2016 o congresso da FIFA deu os primeiros passos para retificar o problema. Uma das reformas pensadas era de que cada confederação tivesse em seu conselho, no mínimo, uma representante feminina. Surgiu então a Estratégia de Futebol Feminino da FIFA. Com o objetivo de empoderar a organização a tomar novas medidas para resolver as deficiências históricas em recursos e representação das mulheres no esporte. Em paralelo irá defender uma posição global contra a discriminação de gênero jogando futebol. Para que os planos da Federação sejam concretizados eles têm três tópicos como base: Aumentar a participação; Melhorar o valor comercial e construir fundações. A organização deixa claro que quer levar o futebol a lugares no qual a mo- dalidade não é tão praticada, mas que o foco deve ser onde já foi iniciado. Desta forma, haverá o desenvolvimento da prática nesses países que o futebol já foi inserido. A FIFA (2018, p.6) afirma querer ajudar meninas e mulheres a terem, cada vez mais, acesso ao futebol e de alguma forma inspirar as confederações a olharem com mais atenção para o futebol feminino e que no futuro possa haver ligas com mais qualidade. Para que tudo isso seja feito é necessário dinheiro, por isso a entidade também tem planos comerciais. O melhor método de conseguir arrecadar ca- pital é comercializar eventos e competições, como por exemplo, a Copa do Mundo. A FIFA (2018, p.7) terá oportunidade de expandir o desenvolvimento do futebol feminino ao criar novas fontes de receitas dos eventos femininos ao mesmo tempo em que tenta achar benefícios para todos os envolvidos. Assim que estiver incluído comercialmente é possível ver razões para continuar com o incentivo. As competições existentes serão aperfeiçoadas para aumentar a qualidade do futebol e os benefícios comerciais. Novas competições também estão nos planos da organização para que mais oportunidades apareçam e se- jam adicionadas para as mulheres. A entidade busca transformar o seu ambiente para que seja mais favorá- vel para as mulheres, tanto as atletas quanto as que trabalham dentro da FIFA. Ainda querem desenvolver programas de formação de liderança destinados a mulheres para que elas consigam atrair cargos de alto escalão no mundo fute- bolístico, principalmente fora de campo. A FIFA sempre trabalha para fortalecer as relações na comunidade futebolística. Ao prestar mais atenção para os inte- resses femininos irá agregar positivamente para crescimento do jogo e trazer

TCCs 2019_2 --- 159 mais olhares para os diferentes tipos de modalidade do futebol para que todos se tornem um só.

6A FIFA se concentrará no desenvolvimento das mulheres, dentro e fora do campo, em todos os níveis. Juntamente com as confederações, iremos apoiar associações membros no desenvolvimento do futebol local, para aumentar a participação feminina no futebol, e fazer tudo o que é necessário para garantir que meninas e mulheres tenham segurança de jogar e governar o jogo. (FIFA, 2018 P.10)

Entre dos planos está aumentar o número de jogadoras para 60 mi- lhões até 2026. Segundo um estudo da UEFA (Union of European Football Associa- tions), na temporada 2016/2017, na Europa, a soma de atletas profissionais e se- miprofissionais foi de 2.853. A organização também pretende elevar os padrões dos clubes e ligas em todas as associações membros. Com isso, é esperado que até 2022 100% dos integrantes tenham desenvolvido significativamente as condições e estratégias relacionadas ao futebol feminino em seus países.

CBF A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) é a organização máxima do futebol nacional brasileiro, com sede no Rio de Janeiro. O Brasil tem uma insti- tuição futebolística desde 1914 e era conhecida como Federação Brasileira de Sports (FBS). A CBF surgiu como parte da Confederação Brasileira de Despor- tos (CBD) em agosto de 1916, mas a entidade existe, nos moldes atuais, desde setembro de 1979. Ela surgiu por causa de uma determinação da FIFA de que cada país deveria ter uma organização com dedicação exclusiva no desenvolvimento do futebol. Segundo a própria instituição, cabe a eles o planejar, coordenar e exe- cutar os principais campeonatos nacionais. É importante destacar que, dife- rentemente da FIFA, a CBF cuida exclusivamente do futebol de campo, outras modalidades, como o futsal, tem uma organização própria. A confederação tam- bém administra as seleções de futebol e suas respectivas categorias de base. “Atualmente, são contempladas as categorias profissionais e de base, tanto para o futebol masculino quanto para o futebol feminino. Ao todo, 17 torneios estão

6 FIFA will focus on developing the women’s game, both on and off the pitch, at all levels. Together with the confederations, FIFA will support member associations in developing football locally, to retain and grow female participation in football, and do all that is necessary to ensure that girls and women have clear pathways to play and govern the game.

TCCs 2019_2 --- 160 sob gestão da CBF.” (Assessoria Cbf, 2018, online). Mais adiante na pesquisa, veremos durante a análise do Esporte Espetacular que a maioria das competi- ções que a instituição conduz tem o foco no futebol masculino. Apesar disso, a instituição evidencia o seu compromisso com a sociedade e por isso criou a CBF Social. Através de suas iniciativas, a CBF Social busca uniformizar uma metodo- logia que traduza a essência do futebol brasileiro para que, através do esporte, possa promover melhorias à sociedade, de modo a maximizar o bem-estar daqueles atendidos pelas diversas ações executadas pelo programa. (ASSESSO- RIA CBF, 2018, ONLINE) Ainda afirmam ter uma visão que ultrapasse as quatro linhas do campo. A intenção da CBF Social é: “[...] transpor o DNA do futebol brasileiro como fator de integração social e desenvolvimento da cidadania.” (Assessoria Cbf, 2018, online). Apesar de assegurar a inclusão não é possível ver uma preo- cupação com a questão de gêneros. Ao buscar, no próprio site da CBF, os integrantes da diretoria da entidade não é possível encontrar o nome de uma mulher. E como veremos mais à frente, houve um tempo em que a seleção feminina não era considerada a “seleção principal”, pois este posto era do time masculino. Logo elas não podiam usar certos estabelecimentos da Granja Co- mary, o centro de treinamento da Seleção. É dever de a organização ter projetos para o futuro do futebol no país. Todavia, diferentemente da FIFA, não foi possível achar informações que ex- pliquem os planos da CBF para a modalidade, nem masculina e nem feminina. Apenas um relatório de gestão de 2017 foi encontrado e o foco é mostrar como foi o ano da CBF e do futebol brasileiro, não há um edital apenas para falar sobre as projeções do futuro. No tópico “Seleções” há uma pequena introdução de como foi o ano das equipes. Mas há mais sobre as con- quistas do time masculino, apenas duas linhas que expressam, bem ra- pidamente, o que a seleção feminina conquistou: “A seleção feminina principal também fechou o ano com um excelente resultado, sagrando-se campeã do “Marvel Track Cup”, torneio internacional disputado na China.” (CBF, 2017, online). Mais adiante, no relatório, há um tópico designado apenas à seleção femi- nina. Resumidamente são apontados os resultados que o time teve ao longo do ano de 2017. Foi uma temporada de altos e baixos e por isso a entidade decidiu fazer algumas mudanças na comissão técnica e Vadão assumiu como técnico do time. O que chama a atenção neste relatório é o gráfico apresentado. Nele é mostrado o desempenho da equipe nos anos 2015, 2016 e 2017. Há uma redução significativa de jogos disputados pela seleção. Enquanto no primeiro ano o time somava 23 partidas, no último caiu para 14 o número de jogos. Este

TCCs 2019_2 --- 161 fator também pode ser uma das razões para a equipe não conseguir chegar ao nível de rendimento desejado. É importante ressaltar que depois da Copa do Mundo de 2019, novamente, a CBF optou por mudar o técnico. No dia 25 de julho, Pia Sundhage foi confirmada como a nova técnica da seleção. Desde que assumiu o time foram disputadas quatro partidas (3 vitórias e 1 empate). A falta de planejamento é ainda maior com as seleções de base. As equipes masculinas (sub-15, sub-17 e sub-20) participaram de um total de 45 jogos em 2017. Já as meninas (sub-17 e sub-20), neste mesmo período, tiveram apenas 3 partidas, todos disputados apenas pela seleção da sub-20. “É importante ressaltar que os números incluem as categorias Sub-20 e a Sub-17, sendo que a última, apesar de não ter tido compromissos em termos de jogos oficiais, realizou ao menos 3 períodos anuais de treinamentos na Granja Comary.” (Brasil, 2017, p.52, online). Mesmo praticando algumas atividades na sede da se- leção, a equipe feminina do sub-17 ficou parada. Sem jogos e um planejamento para essas meninas, não há evolução e consequentemente, o nível da seleção feminina como um todo não aumenta, pois não haverá atletas novas para cons- truir novas gerações. É possível notar o quanto o mundial da França influenciou as ações da CBF nos meses que sucederam (julho e agosto). Algumas jogadoras como Cris- tiane e a ex-zagueira da seleção, Juliana Cabral e os torcedores começaram a cobrar movimentação de quem dirige o futebol feminino no país. Quase um mês depois (20 de agosto), as comissões técnicas das seleções sub-17 e sub-20 foram anunciadas. Simone Jatobá, medalha de prata na Copa do Mundo de 2007 e na Olimpíada de 2008, é a técnica da seleção sub-17 e Lindsay Camila Teles Carvalho será a auxiliar. Já a seleção su-20 terá Jonas Urias como técnico, antes de assumir a equipe ele comandou o time feminino do Sport Club Recife, sua auxiliar será a Jéssica Lima. O desenvolvimento destas equipes será em conjun- to com a Pia Sundhage. Em setembro a equipe de Jonas Urias disputou a Liga Sul-Americana Sub- 19 na qual saiu vitoriosa. A competição serviu de preparação para o Sul-Ame- ricano Sub-20 que acontece no ano que vem. Jonas afirma que a jornada ainda é longa e que o time precisa criar sua identidade. A situação mais delicada é a da sub-17 que ainda não disputou jogos. Mas a comissão técnica está se reunindo para decidir os próximos passos a serem tomados. A Confe- deração sempre deixa o site e as redes sociais atualizadas. Este é um ponto positivo para quem procura saber das seleções femininas. Mas ainda é difícil saber e entender os projetos da entidade em relação a esses times.

TCCs 2019_2 --- 162 4. Análise de Mídia 4.1 Representação

4.1.1 Pré-Copa do Mundo O Esporte Espetacular é um telejornal esportivo, semanal, da Rede Globo. Apresentado por Bárbara Coelho e Lucas Guitierrez, o programa vai ao ar todo domingo pela manhã com notícias da semana. O Esporte Espetacular se assemelha ao noticiário. Por ser semanal dá mais espaço ao jornalismo narrati- vo. Não há tantas matérias imediatistas. As reportagens especiais ganham mais destaques, sendo comum ter conteúdos com 12 minutos, ou até mais. Sem deixar de lado as últimas notícias, consideradas mais “quentes”. Por isso, o tele- jornal ocupa entre 2h e 3h da grade televisiva da Globo. No livro Reportagem na TV, Alexandre Carvalho e outros autores comentam sobre os motivos que levaram a esse modelo de jornalismo ter crescido principalmente em canais abertos como a emissora em questão.

De um lado está o desejo do jornalista em fazer bom jornalismo, com his- tórias impactantes, personagens representativos, com tempo e acabamento mais cuidadoso. De outro, há a questão mercadológica, a competição entre os veículos de comunicação, em que cada um busca diferenciais para atrair o público, seja ele leitor, ouvinte, internauta ou telespectador. (CARVALHO et al., 2010, P. 22)

As matérias especiais são as mais procuradas pelo público, pois elas pro- curam ter identificação com a pessoa que estão vendo pela televisão. A Televi- são é uma ferramenta de representatividade da “realidade”. É comum vermos veículos produzirem materiais que prepare o telespectador para torneios que estão prestes a começar. O Esporte Espetacular usou dessa tática e produziu uma série especial para contar a história da seleção brasileira feminina de fute- bol, já que a Copa do Mundo começava em junho. Comandada por Carol Barcellos, as reportagens foram atrás de nomes importantes de gerações da seleção. A primeira das três matérias conta a histó- ria das pioneiras da modalidade. O segundo episódio é sobre a geração Marta, ou como a ex-meio campo da seleção, Milene Rodrigues, prefere: geração guer- reiras. Já a última dessa série foi ao ar no dia da estreia do Brasil no mundial e serviu para “passar o bastão” para a nova geração que se forma e convidar o telespectador para ouvir a voz dessas mulheres que por tanto tempo lutaram para serem ouvidas. No dia 19 de maio de 2019, foi transmitida a primeira reportagem da série especial com a seguinte manchete: “Superando preconceitos e humilhações, o

TCCs 2019_2 --- 163 futebol feminino no Brasil reside às vésperas de mais uma Copa do Mundo.”. O título chama a atenção e é instrumento fundamental para que o leitor se sinta intrigado e veja o que está sendo passado. Para que qualquer história seja contada é necessário que o autor se conecte com a personagem, já que é a sua função passar adiante a história da personalidade para quem está assistindo.

[...] o autor acentua particularidade as sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam; [...] (BAHKTIN, 2003, p.4).

A jornalista Carol Barcellos que encabeça as matérias passa por uma iden- tificação com a pauta e as personagens que fizeram parte da reportagem. Por ser a autora, ela é quem decidirá o que será evidenciado de suas fontes, princi- palmente por ter uma ideia do que quer para o conteúdo. O que entra na edi- ção final não é por acaso, cada palavra e imagem é pensada para que a história impacte o telespectador. Nos primeiros 2 minutos de VT (Videoteipe), jogadoras de futebol, tanto em atividade quanto aposentadas, falam frases que já ouviram durante a trajetória no esporte. Entre muitas das expressões estão “Mulher-macho” e “Futebol é coisa de homem”. Isto é algo que as machucaram e não é fácil de expor. Jornalistas es- portivas (assim como todas as mulheres) já sofreram preconceito e por isso conseguem ter uma empatia maior com a sua personagem. É capaz de extrair mais delas e passar para o telespectador, com mais precisão, o sentimento das atletas. Ao falar: “Ofendidas, humilhadas, algumas mulheres foram até agredidas porque queriam jogar bola. Contar a história do futebol feminino é contar uma história de resistência. […]” Barcellos define o tom da reportagem. Ela não quer passar um sentimento de que suas personagens são “coitadinhas”, elas são fortes, determinadas e resistentes. Cada palavra que o indivíduo da voz não está sozinho, tem significado. Mas não há ideologia, apenas quando inserimos o consenso social é que pode ser ex- teriorizado como material ideológico. “Cada signo constituído possui seu tema. Assim, cada manifestação verbal tem seu tema.” (Voloshinov, 2006, p.44). No caso do primeiro episódio, o tema é a história do futebol feminino, no Brasil, e as mu- lheres que se tornaram pioneiras da modalidade. Segundo Voloshinov (2006, p.45), o tema e a forma de um signo não podem ser separados, são as mesmas condições que dão vida a ambos. Para exemplificar ele utiliza o grito de um animal, independentemente do que está acontecendo na esfera social esta reação é puramente natural que remete à dor. O grito não traz consigo uma expressão semiótica, mas o signo sim. Para entendermos melhor

TCCs 2019_2 --- 164 essa situação, utilizemos a frase que Formiga ouviu (enquanto buscava ser uma atleta profissional) e compartilhou na reportagem: “vai lavar louça”. O enuncia- do em questão, sozinho, não carrega em si um significado ou tema. Mas esta frase foi dita por um homem em direção a uma mulher. Pode-se concluir que o comentário tenha o intuito pejorativo de atingir o sexo femi- nino, pois é utilizado no nosso dia a dia. A oração analisada estava inserida no ambiente esportivo, com uma mulher jogando futebol. A interpretação muda e significa que a mulher não sabe o que está fazendo (jogar bola) e deveria voltar a fazer o que sabe (cuidar da casa). Essa fusão entre o signo e o tema reflete-se na língua e foi propagada em grande escala, pois está inserida no mundo ao longo da história. A jornalista apresenta o conteúdo, para o público ao ilustrar, com fotos, os times da seleção de 1988, 1991 e 1999. Épocas em que era muito mais difícil para as mulheres jogarem profissionalmente. “Elas transformaram em esporte o que era visto como palhaçada. Nos primeiros registros o futebol feminino aparece no Brasil como se fosse atração de circo.” (Barcellos, 2019, online). Carol ainda afirma que o problema não era o futebol, era a sociedade e o país. O começo da reportagem parecia mais do mesmo, com nomes importantes do futebol feminino, como Marta, Formiga e Cristiane. Mas elas serviram como abertura para que o público se interessasse e enfim ouvissem as personagens principais. Carol Barcellos conta fatos que normalmente são deixados de lado, por exemplo, como o futebol foi proibido para as mulheres por mais de 30 anos. Ela traz nomes importantes para a sua narração e as proporcionou um ambiente favorável para que pudessem dizer a sua história e receber o devido reconhecimento pelo o que fizeram. Além de narrar a história do futebol feminino através dos anos, a jornalista revela como ainda fechamos os olhos para esse passado que não é tão longe as- sim. Em 1999 a seleção brasileira feminina ganhou sua primeira medalha em um mundial (bronze). Esta seria comemorada até hoje se pertencesse à seleção mas- culina. Nomes como Zico, Rivellino e Emerson Leão, que estiveram na conquista do bronze de 78, são lembrados até hoje. Conseguiram se manter no mundo do futebol. Mas elas caíram no esquecimento, trabalham como anônimas. Elane é ex- -meio-campista da seleção feminina e esteve na conquista de 99, hoje ela trabalha como motorista de ônibus. Ao longo da reportagem Carol constrói sentidos que quer passar para o público.

O olhar do repórter dá o tom da matéria. É ele quem vivencia o fato, que percebe as sutilezas das situações, que estabelece um contato direto com os personagens envolvidos, olho no olho. É ele quem mais sofre o impacto da emoção ou da revolta provocadas pelo assunto tratado. […] (CARVAVLHO et. al, 2010, P.44)

TCCs 2019_2 --- 165 No primeiro capítulo desta pesquisa comentamos como há uma relação entre a realidade (fatos) e os signos, sendo este último capaz de ser fiel ou distorcer os fatos. Segundo Voloshinov, isso acontece por causa da infraestru- tura em que o signo ideológico está inserido. No dia 2 de junho, duas semanas depois da estreia da série especial e uma antes da Copa do Mundo começar, foi ao ar a segunda reportagem sobre a história da seleção feminina. O tom de luta e resistência permanece no segundo episódio da série, uma nova geração de jogadoras é apresentada ao público. É nesta matéria que começa a construção de Marta como símbolo de uma seleção e de perseverança. Mas para compreender o porquê da atacante representar tanto para o futebol é preciso conhecer a história da atleta que foi considerada seis vezes melhor do mundo. Nascida em Dois Riachos, cidade de Alagoas, com pouco mais de 11 mil habitantes, Marta passou pelo Vasco e um pequeno time de Belo Horizonte antes de ir para a Suécia e se transformar nas atletas que conhecemos hoje. Após um breve resumo sobre a série é mos- trado como Marta foi “destinada” para o futebol. Depois a narrativa passa por conquistas importantes na carreira da atacante como ela se tornou importante para o esporte e virou embaixadora da ONU. Com apenas uma aspas da per- sonagem principal conseguimos entender a sua índole:

Eu não fui lá e falei “Sou rica, tenho dinheiro pra caramba. Me dá este posto aí!”. Não é dinheiro, e sim uma história de vida que influencia outras pes- soas a lutarem pelos seus objetivos. Este é o maior prêmio da minha vida. (MARTA, 2019)

Ela teve uma infância difícil e buscava, no futebol, uma diversão. Mas no momento em que suas habilidades apareceram ela começou a sofrer bullying por jogar melhor que os meninos. “O fenômeno psíquico, uma vez compreen- dido e interpretado, é explicável exclusivamente por fatores sociais, que deter- minam a vida concreta de um dado indivíduo, nas condições do meio social.” (Voloshinov, 2006, p.47). Marta passou por várias situações em que sua força foi testada, um exemplo foi quando o time feminino do Vasco foi fechado por falta de incentivo (veremos mais a frente sobre essa história). Barcellos mostra o presente e o passado da atacante, além de introduzir a seleção brasileira. Essa relação começa na Copa do Mundo de 2003, Marta ainda não tinha o título de Rainha que possuí hoje. Há uma brincadeira com esse fato, já que na mesma época o foco da mídia era na “princesa” da seleção, Milene Rodrigues. A palavra “fenômeno” é referência ao fato de que Milene era a esposa de Ronaldo fenômeno e por isso chamava mais atenção da mídia na época. “[…]

TCCs 2019_2 --- 166 os jornalistas me perguntavam como era estar na Granja Comary junto com o meu marido” (Rodrigues, 2019, online). Nas aspas de Milene podemos perce- ber que o futebol não era o que interessava. Apesar de fazer parte da seleção, mesmo que na reserva, a ex-meio-campista só era perguntada sobre o marido. Ela ainda fala sobre o pré-conceito que as pessoas tinham sobre quem era, baseados no fato de morar em Madrid e ser casada com a estrela da seleção masculina ganhadora do pentacampeonato. Em 2004, na Olimpíada de Atenas, foi o ano em que Marta se destacou, assim como a seleção feminina. Mesmo com a ausência da seleção masculi- na, as atletas continuaram a andar na “sombra” deles. René Simões, técnico da equipe feminina na época, relata as dificuldades que passaram dentro da Granja Comary. O primeiro dia de treinamento era na academia, quando as atletas chegaram com o preparador físico encontraram a instalação fechada. Ao questionarem receberam a resposta: “não pode usar porque é só para o time principal” (seleção masculina). Mesmo com todas as adversidades elas chegaram à final olímpica pela primeira vez. As americanas venceram o Brasil na prorrogação e ficaram com a medalha de prata. “E nessas olimpíadas, e hoje, acabaram dois preconceitos: o homem não pode chorar e mulher não sabe jogar futebol”. (Uchôa, 2004, online). As aspas são da reportagem feita pelo jornalista Marcos Uchôa na final. Este é um ponto interessante da matéria, pois mostra como, por um breve mo- mento, houve esperança que a situação do futebol feminino fosse mudar. Não era mais possível falar que futebol não era coisa de mulher.

Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. (VOLOSHINOV, 2006, p.46)

Algumas críticas são feitas em relação à empolgação da torcida e de veícu- los jornalísticos durante os grandes eventos esportivos, como Copa e Olimpía- das. A toda hora são feitas reportagens que tragam personagens importantes do esporte feminino em geral, para que assim o público as possa conhecer melhor. Durante estes períodos as manifestações em redes sociais aumentam. Há o que podemos chamar de “explosão” de comentários e animação em volta das modalidades femininas neste período. Uma hipótese para isso tudo acontecer seria a esperança. A mídia cria um espetáculo para que possa ser mostrado um futuro diferente, em que as mu- lheres irão aparecer mais no dia a dia dos telejornais esportivos. Muitas vezes essa tática é realizada para que a população esqueça um pouco os problemas

TCCs 2019_2 --- 167 que ocorrem na sociedade, mesmo que momentaneamente. O momento em que as mulheres mais ganham foco é durante as Olimpíadas, mas nunca houve algo que fizesse essa animação se tornar em um plano que desse garantia de desenvolvimento no esporte feminino no Brasil, principalmente quando se tra- ta do futebol. Pouco tempo depois de Atenas, em 2004, as atletas foram esquecidas no- vamente, pela mídia e pela CBF, e só iriam ser lembradas antes do Pan-Ameri- cano de 2007 no Rio de Janeiro. Nesta época, a seleção estava desacreditada e as notícias que apareciam diziam que essa era a modalidade feminina mais fraca, que não havia procura por ingressos. Não acreditavam que as jogadoras pudes- sem lotar um estádio. Mas ao chegarem a final do Pan, entraram no maracanã lotado de brasileiros. Temos novamente uma prova de que há público para o futebol feminino. No ano seguinte mais uma final olímpica, mas não consegui- ram vencer as alemãs. Apesar de terem sido marcadas como uma geração de prata, elas ganha- ram algo maior, mais significativo: “Para a emancipação feminina, o valor do pa- pel da mulher no esporte e na sociedade brasileira... isso nunca será perdido”. (Bial, 2019, online). É desta forma que a segunda parte da série especial termina. Com uma esperança, mesmo que ainda tivesse trabalho a ser feito as atletas não seriam mais colocadas para baixo.

4.1.2 Mundial em cena Em Estética da criação verbal, Bakhtin (2003, p.25) afirma que o autor é capaz de modificar todas as particularidades do herói do mesmo modo que nós reagimos a manifestações dos que fazem parte de nossas vidas. Vivemos em um momento polarizado do mundo, na qual as noções de certo e errado estão distorcidas, mas mesmo assim só há essas duas opções, não há algo no meio. “Na vida, o que nos interessa não é o todo do homem, mas os atos isolados com os quais nos confrontamos e que, de uma maneira ou de outra, nos dizem respeito.” (Bakhtin, 2003, p.25). No momento em que temos um autor, alguém que conduza a narrativa é possível enxergarmos o todo.

[…] na base das reações de um autor às manifestações isoladas do herói, haverá uma reação global ao todo do herói cujas manifestações isoladas adquirem importância no interior do conjunto constituído por esse todo, na qualidade de componentes desse todo. (BAKHTIN, 2003, P.26)

Tome Marta novamente como exemplo, a atacante é famosa por ter ga- nhado seis vezes como melhor do mundo e é a maior goleadora em Copas (fe- minina e masculina). Mas a partir do momento em que o jornalista entende seu

TCCs 2019_2 --- 168 personagem e o rumo de sua matéria, tudo fica claro para o telespectador. Ele ou ela vai conhecer a história de Marta, vai saber o que ela passou até chegar a fase atual de sua vida. Dessa maneira fica mais fácil de compreender o por- quê de o nome “Marta” ter tanta relevância no futebol e na luta pela igualdade de gênero (e, consequentemente, na criação de espaços para discussão sobre representatividade). Será possível entender o significado que a atleta carrega consigo. Nove de junho, segundo dia de competição da Copa do Mundo e a es- treia da seleção brasileira contra a Jamaica. O último episódio da série especial é apresentado e logo no primeiro minuto de VT revemos as conquistas de Marta, Formiga e Cristiane. As três são remanescentes da geração que vimos na reportagem anterior e a Copa da França pode ser a última das atletas. Dão destaque para a oportunidade de vê-las jogando em uma Copa do Mundo (primeira vez que um jogo da seleção feminina, em mundial, será transmitido na Globo). Sutilmente muda o foco da história para a Ludimilla, uma das oito estrean- tes do time brasileiro. Ao longo da reportagem vamos conhecendo a atleta. Ca- rol Barcelos conduz a matéria de maneira delicada e a cada minuto que passa o telespectador se sente mais intimo da atacante. Descobrimos o apelido dado à Ludimilla quando criança, Pepê. Depois disso, quando se refere à jogadora, Carol começa a chama-la pelo apelido de infância. Aos 8 minutos de VT Carol amarra todas as histórias contadas na série e “passa o bastão” para a nova geração. É importante ressaltar que essa re- portagem foi a última a entrar no ar durante o programa Esporte Espetacular, depois aconteceria o jogo de estreia do Brasil. Ao analisarmos apenas a série especial é importante ressaltar alguns pontos. Como os componentes de uma obra, no caso a reportagem, que é passada para os telespectadores através da Carol Barcellos. No caso do jornalismo devemos ser o mais imparcial possível, mas não há como não deixar um pouco que seja da reação à história que foi contada.

Só elas sabem o caminho até aqui. Então vamos junto, com o nosso peito. Agora é pra explodir mesmo, carregando o Brasil nas pernas. É hora de soltar a voz por tanto tempo calada. É a hora delas. (BARCELLOS, 2019)

No mesmo dia, o Esporte Espetacular apresentou duas reportagens so- bre o jogo entre Brasil e Jamaica. O primeiro conteúdo que vai ao ar sobre o mundial é justamente sobre o adversário do Brasil. Lizandra Trindade é a res- ponsável pela matéria. A jornalista fala rapidamente sobre o histórico da equipe (veremos mais a frente na análise do Sportscenter) e passa para a entrevistada,

TCCs 2019_2 --- 169 a embaixadora da seleção feminina da jamaicana. Cedella Marley, filha de Bob Marley, conta como o seu pai era apaixonado por futebol e a fez se interessar pelo o esporte. Então ela decidiu investir nas jogadoras e ajudá-las a terem melhores condições. A atacante da seleção, Khdija Shaw conta que as oportunidades não eram grandes na Jamaica e seus pais não a encorajavam a continuar jogando porque não iria levar a lugar nenhum. Ela ainda conta que falava para a sua mãe que iria participar de uma Copa e inspiraria outras meninas a seguirem os seus sonhos. Ao expor a história de superação das jamaicanas, Lizandra traz particulari- dades das personagens que faz com que o telespectador se identifique. Bakhtin afirma: “Todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva.” (Ba- khtin, 2003, p. 289). Ele ainda diz que quando uma frase é envolvida pelo con- texto é capaz de assumir a plenitude de seu sentido. As orações utilizadas pela jornalista estavam bem inseridas no contexto atual do futebol feminino e nos dá ideia de como é a situação do esporte na Jamaica. Ao olharmos mais a fundo para o enunciado é possível descobrir que há atitudes responsivas para ele. Bakhtin (2003, p.289) utiliza a frase “O sol saiu. É hora de me levantar.” Para explicar esse contexto. Podemos tirar duas conclusões: a primeira é de realmente temos que levantar, pois se não ficará tarde e a segunda é de que está muito cedo e ainda temos um tempo antes de levantar. É possível ter diferentes sentidos dependendo do ponto de vista do indivíduo ou do que algo signifique para ele. Na reportagem, isso pode ser observado nas sonoras das atletas, por exemplo, a Khadija. “[…] não existiam muitas oportunidades na Jamaica” (Shaw, 2019, online). A primeira hipótese é de que a falta de investimento no futebol feminino é por conta da situação econômica do país. Já a segunda nos diz que é por serem mulheres jogando futebol. Se for alguém que entende das questões de desigualdade irá escolher a segunda opção, enquanto alguém que acredita que não há tantos pré-conceitos sobre mulheres serem atletas pode escolher a primeira hipótese. Os apresentadores Bárbara e Lucas chamam Carol Barcellos que está na França. Ela traz as últimas informações da seleção antes da partida contra a Jamaica. Depois entra uma matéria do Guido Nunes com as notícias da semana da seleção e a coletiva de imprensa com o Vadão, técnico do Brasil. O desta- que é para os problemas físicos que o time teve, foram três cortes por lesões antes do mundial e Marta ficou fora da estreia pelo mesmo problema. Falou do momento em que a seleção estava vivendo e evidenciou, novamente, que a equipe depende da atacante. No fim a reportagem não passou do Básico, não há tanto envolvimento do repórter por ser uma notícia factual, ela é bem-feita. Não há mal uso de palavras, o que é uma preocupação já que poucos jornalistas, homens, cuidaram de reportagens durante a Copa do Mundo.

TCCs 2019_2 --- 170 Copa do Mundo x Copa América

Chegamos no dia 16 de junho, segunda semana da Copa do Mundo e Apenas 3 dias de Copa América. Antes de fazer contato com a corresponden- te Carol Barcellos, Lucas Gutierrez chama o público para assistir a terceira partida da Seleção brasileira, dessa vez contra a Itália. Conforme os dias foram passando e a competição avançando o sentimento de mudança e evolução au- mentava. E com isso em mente Lucas questiona Carol sobre o clima na França e se, naquele momento, era possível dizer que o mundial estava mudando a his- tória do futebol feminino no mundo todo. A jornalista responde: “A visibilidade, sem dúvida, é a maior até agora”. Logo em seguida ela dá algumas informações sobre a Copa do Mundo: os ingressos da semifinal e final esgotaram em 48 horas, 130 emissoras estiveram envolvidas e este foi o mundial mais assistido (135 países). É assim que a reportagem especial sobre a evolução do futebol feminino é apresentada.

Em todos os casos semelhantes, a oração é o elemento significativo do con- junto de um enunciado, e ela adquiriu o seu sentido definitivo apenas nesse conjunto. (BAKHTIN, 2003, P.288)

Há o constante uso de frases de efeitos nas matérias de Carol Barcel- los. Nesta em particular, enunciados como: “Orgulho de ser mulher” e “Essa é uma história sobre vozes, por muito tempo, silenciadas” estiveram presentes logo no começo do conteúdo, o que faz o telespectador entender qual será o tom da reportagem. Sabemos que será algo mais politico e que irá expor a desigualdade, principalmente salarial, entre o futebol feminino e o masculino. Mas o que surpreende é ter repórteres homens, ao lado das mulheres, dando a notícia. Ao longo da pesquisa tem sido discutida a importância da representati- vidade da mulher, em especial a atleta. E como é importante que as jornalistas tenham mais voz na hora de comentar, pois há uma empatia e entendimento pelo o que as atletas passaram. No caso desta matéria há um jornalista homem falando sobre o assunto, um ponto positivo já que um dos temas discutidos nesta análise é a desigualdade entre homens e mulheres. Isso nos mostra que não é feita diferença entre os gêneros, nenhum dos dois está sendo excluído. Para que a discussão continue avançando é importante que tenha a inclu- são e tanto homens quanto mulheres possam falar abertamente sobre qual- quer assunto. Dessa forma os espaços para discussões podem tomar novos horizontes. Sem falar no significado que esta ação tem. Ao ver essa reportagem

TCCs 2019_2 --- 171 no ar, uma menina tem a esperança de que no futuro seja natural homens e mulheres falando sobre o esporte feminino. O jornalista Guilherme Roseguini fez parte da reportagem ao trazer a situação da Seleção americana para o foco. “Hoje, elas recebem bem menos do que eles e fazem resultados muito melhores.” (Roseguini, 2019, online). No capítulo sobre representatividade já foi comentado o processo que as ame- ricanas moveram contra a Federação americana. Roseguni completa falando como alguns jogadores do time masculino deram apoio às atletas. Lucas Gui- tierez aparece logo depois para ilustrar a relação das cidadãs americanas com o futebol. “Os jornalistas precisam comunicar através das fronteiras de classes, étnicas, políticas e sociais existentes numa sociedade” (Traquina, 2008, p.46). É possível perceber que os dois jornalistas tomam cuidado com os termos usados durante as passagens. O mais interessante é o uso da palavra “Seleção” sem o feminino, ou seja, há uma diminuição na distinção das seleções, apesar de ainda usarem “time feminino” e “time masculino”. Ao falarem sobre a representatividade e como ela é capaz de inspirar meninas, do mundo todo, a continuarem praticando o esporte, Bárbara Coelho assume a liderança da reportagem. Novamente trazem a Marta e evidenciam como ela se tornou embaixadora da ONU mulheres em busca de igualdade de gênero no esporte. A correspondente em Londres, Mariana Izidro, aparece para falar sobre o futebol na Inglaterra A estimativa é de que há três milhões de praticantes da modalidade, entre as mulheres. A diferença salarial das atletas de seleção chega a ser de quase 100 vezes menos. Este é um momento que se cria uma ponte para ilustrar a situação da Alemanha. Segundo a reportagem, o país é o único a ser campeão em Copa do Mundo com as duas seleções e a equipe feminina já ganhou a Eurocopa oito vezes. “Apesar das conquistas, muitas jogadoras, inclusive algumas que estão disputando o mundial, se dividem entre treinos, jogos e estudos. Elas sabem que precisarão de uma nova profissão quando pendurarem as chuteiras” (Izidro, 2019, online). No fim, a matéria traz um ar de esperança, esse sentido é dado ao co- mentar a história de Nati Pereira de 11 anos. Ela joga pelo time masculino da base do Avaí, pois não há equipe feminina. O uso de crianças é frequente, no jornalismo e no cinema, para representar o futuro, seja do mundo de modo geral ou de uma determinada nação. Neste caso, Nati ilustra a próxima geração de atletas brasileiras. Evidencia como as atitudes das jogadoras influenciarão meninas a acreditarem que podem ser atletas profissionais. Recentemente, ela assinou o seu primeiro contrato com uma marca esportiva. A próxima reportagem tem a seleção italiana como foco, já que será a próxima adversária do Brasil. Para ilustrar o crescimento do futebol feminino

TCCs 2019_2 --- 172 na Itália, Raphael De Angeli abre sua matéria com a torcida. Eles demonstram sua alegria e empolgação ao ver a seleção jogar e definem como um momento incrível. É válido ressaltar que a equipe não disputava uma Copa do Mundo des- de 1999. Raphael da uma introdução para o momento que o time e o futebol italiano passam, logo após é apresentada a personagem principal. Antes de enfrentar o Brasil, foram duas vitórias. A primeira, contra a Austrália, foi de virada no último minuto da partida. Já a segunda, contra a Ja- maica, uma goleada por cinco a zero. O jornalista explica para o público que a evolução que a seleção italiana passa acontece por causa do desenvolvimento da liga profissional no país. Foram 23 atletas convocadas, dessas, 22 atuam na Itália. A Juventus cedeu oito dessas jogadoras. É importante mencionar que De Angeli, no começo da reportagem, se refere à equipe como “Seleção Feminina”, para apresentar ao telespectador. Mas após esse momento ele só utiliza as palavras “Seleção”, “time”, “equipe”, nada mais é atrelado ao feminino. Algo que alguns veículos costumam fazer quase que o tempo todo. Ao mencionar a Juventus, o jornalista cria um gancho para introduzir a personagem Sara Gama. A zagueira veste a Azurra há 13 anos e esteve em 112 partidas oficiais. Ela é membro da Federação Italiana de Futebol e é presidente de uma organização criada para o desenvolvimento do futebol feminino italiano. Uma marca de brinquedos, para comemorar o dia da mulher, fez bonecas de diversas profissões para homenageá-las. Sara foi uma dessas personalidades. Ela entende o quão importante esta ação é para que as meninas se sintam repre- sentadas.

Ter sido escolhida como a modelo de inspiração para as crianças é uma hon- ra. Fiquei muito feliz. Quando me convidaram eu aceitei na hora, mesmo na infância tendo brincado mais com uma bola do que com a boneca. (GAMA, 2019, ONLINE)

Sara Gama é capitã da seleção italiana, a primeira pessoa negra a assumir o posto (entre homens e mulheres). Ao mesmo tempo em que Sara é apresen- tada o seu significado aumenta. Sonoras das jogadoras e outros tipos de infor- mações reforçam o quanto ela significa para o país e para a luta pela igualdade. Como já mencionado, Voloshinov afirma que não há ideologia sem significado e algo que seja ideológico pode ser considerado um signo. Logo, é possível di- zer que Sara se tornou símbolo dessa geração da seleção italiana. As ações da capitã e as falas de suas companheiras de equipe reforçam essa representação. Girelli, a meio-campista da seleção diz: “Sara é uma líder. É muito importante para nós em momentos cruciais da partida. Melhorou muito nos últimos anos e é um ponto de referência para nós.”. Ainda segundo o autor, a palavra tem

TCCs 2019_2 --- 173 capacidade de registrar as mudanças mais íntimas, pois ela é o signo mais sensí- vel a mudanças. Por isso quando temos aspas como a de Girelli somos capazes de entender a magnitude do conceito que Sara, assim como outros nomes importantes, carrega. O Esporte Espetacular continua a falar de Copa do Mundo após a Repor- tagem da Sara. Mostram a situação do Grupo C que contém o Brasil e explica quais times passam para as oitavas de final. Cria-se o gancho para falar da seleção brasileira que jogará contra a Itália. Após informar sobre a próxima fase, o Lu- cas Gutierrez faz contato com a Carol Barcellos que está na França. A repórter acentua o fato de Formiga não jogar por ter recebido o segundo cartão amarelo. Realça o fato de ser a despedida da atleta em mundiais: “Todo mundo quer dar uma despedida à altura de tudo o que a Formiga representa para a seleção brasileira” (Barcellos, 2019, online). Novamente uma reportagem que tem o foco em Marta, Formiga e Cristiane. Toda vez que elas são destacadas, as palavras “mais experientes” e “mais importantes” aparecem. Como já discutido, Voloshinov fala sobre como um discurso depende de um tema e como este dará um sentido mais completo ao enunciado analisado. Ele utiliza a frase: “que horas são?” e afirma que a cada vez que propagarmos essa oração ela tomará um sentido diferente. É o que acontece quando as palavras que destacamos à cima são repetidas em reporta- gens distintas. As três são tratadas, pela mídia e pelas outras atletas do time, como pi- lares. Segundo a reportagem, são 16 anos em que elas jogam juntas e por isso é difícil imaginar a seleção sem o trio. Para evidenciar ainda mais a relevância delas, a jornalista Lizandra Trindade, traz recordes em que são donas (entre homens e mulheres). A primeira vez que ouvimos falar de do trio brasileiro seguido das palavras “experientes” e “importantes”, ou até mesmo sobre os recordes que quebraram, pode ser entendido como algo mais técnico, apenas em relação à seleção. Mas cada vez que escutamos as mesmas palavras o sig- nificado muda e consequentemente aumenta. Na terceira ou quarta vez que vemos uma reportagem falando das atletas concluímos que não apenas tati- camente relevantes. O valor que elas carregam é maior, vai além das quatro linhas do campo. São consideradas imprescindíveis para o time do Brasil, para suas colegas de equipe, para o futebol e para as meninas que as assistem. Outra matéria que enfatiza as jogadoras é a de Carol Barcellos que foi ao ar no dia 23 de junho, antes do jogo entre França e Brasil pelas oitavas de final da Copa do Mundo. Ao chamar a reportagem Barcellos primeiro fala das difi- culdades que o time irá enfrentar na partida contra as anfitriãs. “[…] O Brasil sabe da força que tem do outro lado. Mas o mais importante é que o Brasil sabe, também, da força que tem ao lado dele. […]” (Barcellos, 2019, online). É

TCCs 2019_2 --- 174 neste momento que Barcellos fala de Marta e do aumento de sua participação durante os jogos, já que vem se recuperando de uma lesão, e de Formiga que também se recupera de lesão e ficou de fora da partida contra a Itália por estar suspensa. A atleta que fica nas entrelinhas é Cristiane. Ao longo das reportagens feitas para o mundial foi construída e reforçada a imagem do trio brasileiro. Como falado anteriormente, há o uso, repetido, de palavras para ressaltar o significado de importância das atletas. Toda vez em que as qualidades da equipe são expostas, o nome das três vem à cabeça. E mesmo que a jornalista não tenha mencionado Cristiane, o nome da atacante aparece em nosso incons- ciente. O conceito do que elas representam já está inserido em nós. Relembremos o que foi dito em relação à imagem. Voloshinov utiliza a foice e o martelo para mostrar como a imagem pode carregar um sentido e por isso pode ser considerada palavra. O interessante deste conteúdo é a edição, em especial no final. A jornalista termina falando que a França tem ao seu lado o favoritismo e o Brasil tem a experiência e a atitude. No momento em que Barcellos diz “Experiência” a imagem de Marta aparece. Já com a palavra “Atitude” Cristiane é evidenciada. É algo sutil na edição, mas que não passa despercebido.

Não significa que a nossa escolha sobre o que é notícia deva partir da premissa se há ou não imagens. Mas significa que o pauteiro deva sempre pensar nas imagens ao construir a matéria, pois é esse o nosso diferencial em relação aos outros veículos. (CARVAVLHO et. al, 2010, P.37)

Dessa forma, aos poucos, o público que recebe a mensagem olha as atle- tas e associa às qualidades ditas no material apresentado. Deve ser destaca- do, novamente, o uso da palavra “experiência” relacionada a umas das três personagens que são consideradas símbolo dessa geração da seleção. Outra reportagem que traz uma importante representação é a de Lizandra Trindade com o foco em Tamires. A lateral esquerda da seleção é a personagem principal da matéria, já que ela é a única mãe da equipe. A atleta comenta que as com- panheiras de time brincam com ela ao falarem “Respeita a mãe da seleção”. E em seguida, a frase da jornalista que expõem o tom da reportagem: “Respeita! É pelo lado dela, o esquerdo, que acontecem as melhores jogadas do Brasil.” (Trindade, 2019, online). Ao longo do conteúdo apresentado, o telespectador conhece outro lado da Tamires e entende que ser mãe não é uma fraqueza e sim uma motivação a mais. Há casos de atletas como Dani Lins e Juliana Veloso que sofreram com a falta de garantia e até preconceito por terem o desejo de engravidar. Mas, infe-

TCCs 2019_2 --- 175 lizmente, estes casos não são exclusivos do esporte. A mulher, até hoje, ainda é subestimada ao se tornar mãe. Muitas escutaram a frase: “agora ela tem outras prioridades” e por isso acabam sendo deixadas de lado em seus trabalhos. A matéria apresentada no Esporte Espetacular, pela Lizandra, veio para descons- truir a ideia de que uma mulher, quando engravida suas prioridades mudam e não estão mais aptas para determinar certa função em seu trabalho. “E se pas- sar pela cabeça de alguém que a Tamires está divida, a maternidade multiplica as forças.” (Trindade, 2019, online). A atleta afirma que ao tornar-se mãe as coisas mudaram, e reafirma que está mais forte para enfrentar os desafios. Uma semana depois, dia 30 de junho, as fases do mundial e da Copa Amé- rica se encontram. As duas competições estão nas semifinais, mas uma informa- ção as diferencia. A seleção feminina não conseguiu ganhar da França e caiu nas oitavas, já a equipe masculina ainda está viva no torneio e encara a Argentina. Por isso há uma mudança no Esporte Espetacular.

Embora os valores-notícia façam parte da cultura jornalística e sejam parti- lhados por todos os membros desta comunidade interpretativa, a política editorial da empresa jornalística pode influenciar diretamente o processo de seleção dos acontecimentos por diversas formas. (TRAQUINA, 2008, P.93)

Antes as reportagens eram intercaladas entre as competições. Mas nesta semana é possível perceber que priorizaram a Copa América, é importante destacar que o UFC e o Brasileirão também apareceram no começo do pro- grama, não foi apenas o torneio sul-americano. A primeira matéria a aparecer traz, rapidamente, como foram os jogos de Holanda e Suécia nas quartas de final (mais para frente as seleções se enfrentariam pelas semis). Outra notícia com foco no futebol feminino é sobre a peneira que foi feita em São Paulo para meninas que sonham em ser atletas profissionais. O jornalista Renato Cury nos explica que meninas de 14 a 17, de diversos estados, vieram até a cidade paulistana para mostrar suas habilidades para representan- tes de 18 clubes paulistas e quem sabe conseguir uma vaga no time. A iniciativa tem o apoio de Aline, ex-jogadora da seleção que foi prata na Olimpíada de Atenas, 2004, e campeã pan-americana em 2007. Aline também é diretora de futebol feminino da FPF (Federação Paulista de Futebol), ela afirma que é tarde para acontecer uma peneira, mas que é bom estar acontecendo para que o atraso na modalidade seja reduzido. Reinaldo Carneiro Bastos, presidente da FPF, revela que a peneira passou de 400 inscritas e que foi algo inesperado para a federação e ainda diz: “Não se tem, no Brasil, a dimensão e o potencial do futebol feminino.”. Novamente temos um bom exemplo de como imagem e palavra se com-

TCCs 2019_2 --- 176 plementam para passar uma ideia. “Enquanto a peneira rolava no campo, uma visita deixou as meninas assim […]” (Cury, 2019, online). Ao mesmo tempo em que esta fala é reproduzida, imagens de Cristiane, chegando na peneira, são mostradas e a que ganha destaque é de uma menina que olha com um sorriso no rosto para a atacante. O ponto principal desta matéria é relatar o fato de que as categorias de base, há tempos, foram deixadas e isso terá um impacto na seleção principal. “Hoje a gente percebe que tá um pouco parado. A sub-20 não fez nada o ano inteiro, a 17 não fez nada o ano inteiro. Então como é que você vai querer que uma menina da 20 suba para a seleção principal se ela não está fazendo nada? […]” (Cristiane, 2019, online).

4.1.4 Final dupla

O mundial e a Copa América estiveram em ação ao mesmo tempo. Mas como a competição masculina tem um formato menor, calhou de a final ser no mesmo dia da Copa do Mundo. Por isso Lucas Gutierrez e Bárbara Coelho apresentaram o Esporte Espetacular direto do estádio Maracanã, onde o jogo entre Brasil e Peru iria acontecer. Como esperado, o primeiro assunto é a se- leção masculina e a do Peru. É mostrado como as duas equipes chegaram até a final. Depois a apresentadora Bárbara faz contato com Carol Barcellos que está no estádio Parc Olympique Lyonnais, em Lyon, onde ocorreu a partida entre Estado Unidos e Holanda. A jornalista dá ao público algumas informações sobre as duas seleções antes de o boletim entrar no ar. A matéria é de Raphael De Angeli que apresen- ta as duas equipes através da torcida. Os americanos vêm com a “confiança”, foi o primeiro país a esgotar os ingressos da fase de grupo, justamente pelo time estar em sua terceira final, consecutiva, de mundial. Já os holandeses têm a “ousadia” ao seu lado. Desde que a seleção venceu a Eurocopa de 2017, a torcida às seguem com o “mar laranja” que é considerada a festa mais bonita desse mundial. De Angeli então apresenta as equipes ao mostrar os pontos fortes de cada uma. A Holanda tem a melhor goleira da competição, a Sari Van Veenendaal que em setembro foi nomeada a melhor do mundo em sua posição pela FIFA. Sari realizou defesas que ajudaram a seleção holandesa a se classificar para a final. Outro destaque do time é a Vivianne Miedema que é considerada um fe- nômeno já que neste mundial se tornou a maior artilheira da Holanda. A bola parada é outro ponto a ser destacado já que o time marcou seis vezes dessa maneira. Pelo lado das americanas a “estrela” Alex Morgan, artilheira da seleção na Copa com seis gols, ao lado de Megan Rapinoe que é outro destaque da equipe.

TCCs 2019_2 --- 177 A capitã do time se recuperou de uma lesão muscular e participou da sua ter- ceira final. Outro ponto forte são as jogadoras. A técnica aproveitou a qualidade de todas durante a Copa, apenas as goleiras reservas não entraram em campo. O mundial só volta a ser destaque no meio do programa. Mas a matéria que mais chama a atenção é a sobre os melhores momentos da Copa do Mun- do. O conteúdo mostra o que o mundial representou e o significado que teve. Carol Barcellos diz que esta poderia ser a “Copa do Barulho” pela repercussão que teve. Depois as mulheres entram em foco. A jornalista então traz números que demonstram o porquê da competição ter uma relevância tão grande para o futuro da modalidade. Com 135 países e 1 bilhão de pessoas esta foi a Copa mais assistida. Neste momento temos o uso de algumas palavras que estão presentes em outras matérias. Este é o mesmo caso analisado na reportagem em que Marta, Formiga e Cristiane foram destaque antes do jogo contra a Itália. O uso constante de palavras como “força” e “talento” traz um significado diferente a cada vez que é ouvida. Ela irá propagar um sentido quando estiver atrelada ao futebol feminino. Pode ser entendido como uma “cutucada” nas pessoas que não acreditavam que as mulheres pudessem jogar futebol. Ou ape- nas para realçar a força e o talento das atletas, algo mais simples e objetivo. De uma maneira ou outra, essas duas palavras tinham como propósito enaltecer o que foi mostrado ao longo do mundial. Ao falar sobre a visibilidade que a competição teve, Barcellos cria um gancho para introduzir a recepção da competição no Brasil. Primeiro é des- tacado o gesto que Marta fez ao marcar um gol e apontar para a chuteira com o símbolo de igualdade de gênero. Essa imagem representa pelo o que a atacante luta, mas Carol evidencia outro fato. Marta, naquele momento, se igualava a Kloose como artilheira em Copas. Mas depois ela anotaria outro gol que a deixaria como a maior goleadora de mundiais. Depois, é relembrado o jogo entre Brasil e França. Neste trecho da reportagem a jornalista afirma que chorar nunca foi um sinal de fragilidade e depois é colocada na edição a sonora de Marta após a partida, em que a jogadora faz um apelo: “O Futebol feminino depende de vocês pra sobreviver. Então pensem nisso. Valorizem mais! Cho- rem no começo para sorrirem no fim”. E, como era de se esperar, a matéria acha o seu caminho de volta ao trio brasileiro (Marta, Formiga e Cristiane). A jornalista fala como esta pode ser a última Copa que a Rainha Marta jogue. Em relação à Formiga revela que a joga- dora de 41 anos depois de sete mundiais decidiu que continua na seleção, mas que a competição na França seria a sua última. Cristiane também se despediu das Copas. Mas há um ar de esperança na matéria. Barcellos afirma que era hora de renovar a seleção. Com a seleção brasileira fora do mundial era ne- cessário achar outro foco, outra maneira de continuar cobrindo a competição.

TCCs 2019_2 --- 178 O caminho foi como Barcellos diz: “continuar não só no mais belo fu- tebol, mas também nas mais fortes vozes”. Neste momento Megan Rapinoe vira destaque da reportagem. É nele que há um contraponto com o que foi dito anteriormente pela própria jornalista, pois afirma que às vezes o silêncio faz mais barulho. Esta é uma referência à decisão de Rapione de não cantar o hino nacional dos Estados Unidos antes das partidas. Também é mencionado o caso em que a atacante disse que não iria à Casa Branca em caso de vitória americana no mundial. A capitã do time é uma ativista dos direitos LGBT e das mulheres, ela afirma que os ideais do Presidente Trump não condizem com o que ela acredita. Carol Barcellos termina a reportagem dizendo que a Copa do Mundo chega ao fim, mas que não está acabando. Neste momento percebemos que há um legado deixado pela competição e Carol confirma essa hipótese ao fa- lar: “[…] que as luzes continuem acesas, porque o barulho não vai parar”. A matéria termina com imagens das atletas, de diversas seleções comemorando os gols. Mas ao juntar as palavras de Barcellos com a edição é possível concluir que as jogadoras estivessem celebrando tudo o que a Copa representou.

4.2 Desigualdade de gênero

A pesquisa do jornal britânico, Sports Intelligence, realizado em 2017, mostra que a média salarial de um time da Premier League (campeonato de maior prestígio da Inglaterra) é de 2,6 milhões de libras. Esse valor é 99 ve- zes superior ao que FA Women’s Super League (campeonato feminino inglês com a mesma relevância da Premier League) arrecada. Ou seja, mulheres que chegaram à elite de seus esportes continuam a ganhar menos que os homens. Neymar Jr, ainda segundo o Sporting Intelligence, ganha mais que as sete jo- gadoras de futebol mais bem pagas do mundo, isso se somarmos os salários delas.

7A desigualdade de gênero no futebol é mais enraizada do que na política, nos negócios, na medicina e na exploração espacial, de acordo com uma pesquisa salarial que comparou o status de emprego e a remuneração de milhares de jogadores de futebol masculinos e femininos em todo o mundo. (KELNER. 2017)

Segundo a reportagem de Martha Kelner (2017) para o jornal britânico,

7 Gender inequality in football is more entrenched than in politics, business, medicine and space exploration, according to a salary survey that compared the employment status and pay of thousands of male and female footballers worldwide.

TCCs 2019_2 --- 179 The Guardian, a diferença salarial entre homens e mulheres, muitas vezes, é explicada por causa do mercado. O argumento é de que o esporte masculino é mais bem sucedido que o feminino. Este discurso reflete no gênero esportivo que também visa o lucro, neste caso, através da audiência e patrocinadores. Por isso que editorialmente o esporte masculino, principalmente o futebol, recebe mais espaço nos telejornais.

4.2.1 O mundial na sombra do nacional

O Sportscenter da ESPN Brasil, com os apresentadores Paulo Soares e Antero Greco tornou-se o de maior audiência da emissora. Tem o formato de telejornal diário, portanto, é costume que o programa tenha reportagens mais factuais. Durante a semana ele entra na grade em horários alternados entre 23h da noite e 01h da manhã, dependendo das rodadas do campeonato brasileiro e outros jogos do calendário de futebol. Nos fins de semana passa entre 21h e 23h da noite. Em todas as edições são 1h de telejornal, no total. Por ser um programa que vai ao ar depois dos jogos, as notícias são ime- diatistas. O diferencial do Sportscenter são os comentários de Antero Greco. É difícil vermos algum noticiário que seja tão “quadradinho” parar e ter um momento de reflexão sobre o assunto que está sendo tratado. “Cada veículo tem linguagem, limitações e recursos próprios” (Bistane; Bacellar, 2006, p.41). É usual, do programa, ter um boletim relacionado ao Palmeiras, por exemplo, e logo em seguida a análise do Antero. A cobertura da Copa do Mundo feminina no Sportscenter começou no dia 7 de junho, junto com o mundial. Não houve conteúdo especial no período pré-copa, diferentemente do que aconteceu na Copa América. No primeiro dia cobrindo o campeonato foram apenas 3 minutos e 10 segundos sobre o futebol feminino, enquanto o futebol masculino (assuntos como Brasileirão, Série B, eliminatórias da Eurocopa e Copa América) obteve 48 minutos e 23 segundos do telejornal. Apenas no segundo bloco o Paulo Soares faz uma introdução sobre o jogo que deu o pontapé inicial da competição. Apresentaram os gols entre França e Coreia com OFF-vivo, recurso muito utilizado no Sportscenter para dar resultado de uma partida. Antero Greco comenta, rapidamente, sobre como o futebol feminino vem evoluindo, mas nada muito aprofundado. Eden Hazard,logo vira o assunto já que estava para mudar de time na Europa (de- pois foi confirmado que o atacante iria para o Real Madrid). O mundial volta a ser foco no terceiro bloco do SC, neste momento é um boletim assinado por Bibiana Bolson. A matéria não provia de muitas imagens base para cobrir o Off com a informação dada e a jornalista não aproveitou da melhor maneira

TCCs 2019_2 --- 180 o material que tinha à sua disposição. O destaque da matéria é a Cristiane, atacante que está em sua quarta Copa do Mundo. Podemos concluir que a ESPN não estava preparada para cobrir o evento, tanto que em seu primeiro dia teve de “improvisar” um boletim que não tinha a qualidade que sabemos que a emissora é capaz.

Jornalismo é notícia. Ela é a razão de ser do jornalista. E do jornalismo. Cons- truída com inteligência, com conhecimento do assunto, com encadeamento de ideias, coisas que exigem bons profissionais. (COELHO, 2003, P. 48)

No dia 8 de junho há uma evolução no material apresentado. O boletim é assinado por Natalie Gedra, correspondente da ESPN. A repórter, que está na França, traz informações sobre a seleção brasileira e confirma que Marta não jogará a partida de estreia e ainda lembra que a zagueira Érika foi cortada do mundial por causa de uma lesão. Depois apresenta a Jamaica, adversário do Brasil, que está participando da Copa do Mundo pela primeira vez. Apesar de o conteúdo ter dado um salto de qualidade, foi o único com foco no futebol feminino e teve apenas 1 minuto e 56 segundos em todo o telejornal. Por ser fim de semana a cobertura foi maior no pós-jogo de Palmeiras X Atlético-PR e Grêmio X Fortaleza. No livro ‘Teoria do Jornalismo’, Felipe Pena (2005, p.126) afirma que o jornalista é responsável por decidir o que é notícia. Este boletim, em especial, é um bom exemplo para analisarmos esta teoria. Nesta logica é possível concluir que o sistema atual do jornalismo utiliza o modelo de newsmaking, de Mauro Wolf e Nelson Traquina. Esta tese contempla critérios como a noticiabilidade, valor-notícia e construção de audiência, ou seja, sempre está preocupado com a notícia. Mas apesar disso, não chega a ser um espelho da realidade e sim uma construção social da realidade que é vendida através da televisão. “Dessa forma, é no trabalho da enunciação que os jornalistas produzem os discur- sos, que, submetidos a uma série de operações e pressões sociais, constituem o que o senso comum das redações chama de notícia.” (Pena, 2005, p.128). Anteriormente vimos como a audiência interfere na questão econômica do esporte (investimento, patrocínio e até em salários de atletas), neste momento podemos perceber que também influência o jornalismo.

O imediatismo é definido como um conceito temporal que se refere a espaço de tempo (dias, horas, segundos) que decorre entre o acontecimento e o momento em que a notícia é transmitida, dando existência a esse aconteci- mento. (TRAQUINA, 2008, P. 37)

TCCs 2019_2 --- 181 É comum que um telejornal, em especial, o esportivo aconteça logo depois de um jogo para que seja feito o pós-jogo. Este é o momento em que a emissora prende a atenção do torcedor. Ele está à procura de saber o que os jogadores e técnicos irão falar da partida, principalmente quando há polêmica envolvendo arbitragem. Para quem monta o jornal, é difícil manejar tempo para falar tudo o que for possível sobre o que aconteceu na rodada do brasileirão, por exemplo. Como falamos, ao longo da pesquisa, é preciso parar e analisar o período em que algo está acontecendo. Neste caso, fim de semana com finais da NBA, rodada de Brasileirão, Fórmula 1, Grand Slam de tênis e Seleção bra- sileira estreando em Copa do Mundo. Por tudo o que o mundial representa pode-se imaginar que um telejornal começaria com notícias da Seleção e comentários de como foi a partida. Mas a escolha editorial foi de falar do Brasileirão e no sábado (dia 08 de junho) a seleção masculina que se preparava para amistosos entrou no programa antes do time feminino do Brasil. Já no domingo, dia de estreia na Copa do Mundo, a reportagem só aparece no segundo bloco e depois do pós-jogo de Santos X Atlético Mineiro.

Segundo Bourdieu: “a informação sobre a informação é o que permite decidir o que é importante”. De fato, isso acontece, o que explica a grande semelhança no noticiário dos diferentes meios de comunicação. Como resultado, temos o empobrecimento do exercício do jornalismo e a limitação de assuntos em pauta. (BISTANE; BACELLAR, 2006, P.46)

No dia 9 de junho, estreia da seleção brasileira, com vitória, no mundial. O apresentador Fernando Nardini chama o boletim da Natalie. É a primeira vez que há uma cabeça para o VT sobre a Copa do mundo. A reportagem traz sonoras das duas torcidas e mostra que os jamaicanos estão bem felizes e ani- mados com a seleção. Natalie contextualiza essa alegria ao falar da história do futebol feminino na Jamaica. A seleção tinha perdido investimento e buscava patrocínio para manter-se em atividade. Cedella Marley, filha de Bob Marley, virou embaixadora global do futebol feminino no país e decidiu colocar a Fundação Bob Marley como patrocinadora máster do time. Desde então, mais patrocínios chegaram e as atletas ganharam mais estrutura. Conseguiram resultados extraordinários até conquistar a vaga na Copa do Mundo de 2019. Ao mostrar a torcida brasileira, Natalie consegue o gancho para começar a falar do Brasil que fez 3 a 0 na Jamaica. Novamente, o destaque é Cristiane que foi a autora de todos os gols. Aqui temos uma ma- téria em que o foco foi quase total na seleção da Jamaica e mesmo assim houve

TCCs 2019_2 --- 182 uma maneira de trazer umas das três atletas que representam a equipe brasi- leira. Mais uma reportagem que reforça a dependência da equipe em relação a essas atletas e, consequentemente, a importância e relevância delas aumentam. No dia 10 de junho, novamente, o segundo bloco foi aberto com a Copa do Mundo. O boletim da Natalie Gedra trazia informações do jogo entre Fran- ça e Noruega. Também falou sobre a situação da Marta (lesão) e da seleção australiana a próxima adversária do Brasil na competição. É importante ressal- tar que a seleção masculina foi pauta durante o primeiro bloco, com destaque para Neymar que na época enfrentava uma acusação de estupro. Antes da saída para o intervalo foi dado os gols da partida entre Canadá e Camarões. 11 de junho, um dia marcado por recordes quebrados e pelo esporte fe- minino tomando um espaço maior no Sportscenter, foram quase oito minutos de futebol feminino no telejornal. O programa abriu falando sobre a partida en- tre Estados Unidos e Tailândia que terminou em vitória das americanas por 13 a 0, o jogo foi o de maior placar em todas as Copas (masculina e feminina). O tradicional boletim de Natalie Gedra foi apresentado ainda no primeiro bloco, normalmente as matérias sobre o mundial feminino só apareciam no segundo. Apesar disso, as reportagens eram algo corriqueiro, do dia a dia.

À medida que as notícias começaram a ser tratadas como um produto, uma forma nascente de “empacotamento” apareceu. As notícias tornaram-se crescentemente estandardizadas ao tomarem a forma a que chamamos hoje “pirâmide invertida”, enfatizando o parágrafo de abertura, o lead. (TRAQUI- NA, 2008, P.59)

As matérias da Natalie seguem o padrão jornalístico, mas a jornalista tem um diferencial que não torna seu conteúdo maçante. Há uma linha seguida, com começo meio e fim. Temos o lead que abre a reportagem, mas ao fazer a passagem, Natalie traz um gancho que dá sobrevida à sua reportagem. Gedra é capaz de trazer um bom conteúdo jornalístico que não apenas informa o pú- blico, mas dá a chance do mesmo de tirar as próprias conclusões sobre o que está sendo reportado. Mais à frente veremos como as matérias da jornalista se tornam um pouco mais políticas.

4.2.2 O momento da virada

Em uma reportagem apresentada pelo Esporte Espetacular, o CEO do Orlando Pride, time de Marta e Alex Morgan, fala sobre a importância de exis- tir um mercado e como ele deve vir primeiro para que o futebol cresça. Cada vez mais meninas se interessam em jogar futebol, logo o mercado brasileiro

TCCs 2019_2 --- 183 aumenta. Por enquanto modalidade ainda passa por mudanças. No Brasileirão feminino, o número de equipes competindo foi de 16 para 36 em 2019. O cam- peonato nacional também mudou e tem uma competição para as jogadoras de base, o brasileiro sub-18. Apesar do avanço a diferença ainda é grande. Há 13 competições para os times masculinos enquanto os femininos têm apenas três torneios para disputar. Sem falar que as categorias de base, da seleção, ficaram sem jogar no último ano por não haver alguém que olhasse para elas como um produto que pudesse ser cuidado. No 14 de junho fazia uma semana que a Copa do Mundo tinha começado e no mesmo dia a Copa América teve início. A Seleção masculina já tomava boa parte do Sportscenter, mas o espaço cresceu ainda mais, principalmente porque a competição acontecia no Brasil. Apenas três minutos e trinta e sete segundos foram destinados ao futebol feminino. “O fato é que os jornalistas se valem de uma cultura própria para decidir o que é ou não é notícia.” (Pena, 2005, p.71). Entretanto ao boletim que foi ao ar sobre o mundial falava, justa- mente da desigualdade de gêneros.

Os valores-notícia de construção são qualidades da sua construção como no- tícia e funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser realçado, o que deve ser omitido, o que deve ser prioritário na construção do acontecimento como notícia. (TRAQUINA, 2008, P.78)

Natalie dá destaque para a diferença salarial e de premiações entre o masculino e feminino. Para expor a situação ela utiliza a Ada Hegerberg como personagem. A norueguesa, desde 2017, decidiu não defender a Seleção de seu país por causa da maneira com que o futebol feminino é tratado. Ela é a atual detentora do título de Bola de Ouro e pediu para não ser convocada para a Copa como uma forma de protesto. Gedra também traz uma pesquisa divulgada pela France Football, na qual mostra que Neymar ganha 267 vezes mais que Ada (jogadora mais bem paga no futebol feminino). Para evidenciar ainda mais essa diferença a jornalista “desce alguns degraus” e fala de Gareth Bale que não anda em sua melhor fase e recebe 100 vezes mais que a norueguesa. A grande sacada de Natalie Gedra foi escolher trabalhar a pauta justa- mente na estreia da Copa América. A jornalista abre a reportagem dizendo como a Copa do Mundo tornou-se uma plataforma para discussões. Ao longo da pesquisa muito se foi dito sobre arenas e espaços de debates. As mulheres conseguiram isso com o Mundial e com proporções maiores graças a audiência que o torneio teve. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin afirma: “Por sua precisão e simplicidade, o diálogo é a forma clássica de comunicação discursi-

TCCs 2019_2 --- 184 va.”. Também falamos sobre dois pontos importantes (tema e tipos e formas de discurso), segundo Voloshinov, na hora de analisar algo, principalmente quando se trata de um signo. O tema representa o momento em que a fala está inserida, neste caso: Copa do Mundo (feminina) e Copa América (masculina) acontecendo ao mes- mo tempo. A jornalista não só aproveita do momento, mas também da ma- neira de expor a sua fala, ou seja, a forma de seu discurso. Natalie aproveita o que a linguagem (principalmente jornalística) tem de melhor: a simplicidade e objetividade. Ela usa respostas que foram dadas ao longo dos anos, por diri- gentes do futebol, para explicar a falta do investimento no futebol feminino. A resposta vem de maneira simples e com algo que é difícil de contra argumen- tar. Os números.

O velho argumento é que o futebol masculino gera mais interesse que o feminino e que por isso deve ganhar mais. O contra-argumento, agora, é que o feminino pode sim ganhar mais público e gerar sua renda se for melhor divulgado. Nesta Copa da França, por exemplo, foram mais de um milhão de ingressos vendidos em um país empenhado em fazer a modalidade crescer. (GEDRA, 2019)

O espaço dado às mulheres cresceu, durante a segunda semana do mun- dial, e em algumas edições elas ocuparam dez minutos do telejornal. As repor- tagens além de trazer o factual começaram a ter conteúdos especiais, algo que na Copa América já acontecia antes mesmo do torneio iniciar. A jornalista Dé- bora Gares, que agora está na Rede Globo, estava cobrindo a Copa América e mesmo assim trouxe histórias de mulheres no futebol, relacionado ou não à Copa do Mundo. Ela apresentou ao público uma matéria especial.

O que torna uma reportagem especial é o tratamento muito mais primoroso, tanto de conteúdo quanto plástico. Ela nos permite aprofundar assuntos de interesse público, que podem estar retratados em uma única reportagem ou em uma série. (CARVALHO et al., 2010, P.21)

No dia 17 de junho foi ao ar uma matéria da Débora Gares com duas personagens apaixonadas pelo futebol. Os personagens devem ser os mais representativos em relação à história que queremos contar, assim como as fontes oficiais. (Carvavalho et. al, 2010, P.33). A primeira a ser apresentada é Marta, e como de costume são destacados os recordes da atacante para mostrar a sua importância: “A seis vezes melhor do mundo, a maior artilheira da história dos mundiais, maior craque da seleção brasileira tem um passado mineiro.” (Gares, 2019). A partir desse momento entra a segunda personagem

TCCs 2019_2 --- 185 Vera Lúcia Pereira Lima que foi treinadora de Marta no Santa Cruz, time ama- dor de Belo Horizonte. O caminho das duas se cruzou quando o time feminino do Vasco encer- rou as atividades e Marta não tinha para onde ir. Através de uma colega, ela descobriu o time de Vera e decidiu ir para a cidade mineira. Débora revela para o público a maneira simples que a atacante vivia naquela época. Vera relembra de momentos em que teve a ajuda de Marta para empurrar o carro que usavam para buscar mantimentos para as atletas. Depois de três anos juntas os cami- nhos tomaram rumos diferentes.

Em 2004, Marta finalmente tomou a decisão de ir para a Suécia onde viu sua carreira deslanchar. Vera continuou seu trabalho e amparo e formação de atletas e conseguiu formar seu próprio time, o Juventus BH. Mesmo vitorioso nos campos, o projeto acabou poucos anos depois por falta de patrocínio. (GARES, 2019)

Ao longo da Copa do Mundo eram comuns reportagens especiais em que Marta fosse a personagem principal, com foco nas suas raízes e o caminho que a levou a ser Melhor do Mundo. Mas o conteúdo de Débora, apesar de no inicio parecer mais do mesmo, tomou um rumo diferente. Ela contou o que aconteceu entre o período de Marta após o Vasco e antes da Suécia. O mo- mento que definiu o futuro da atacante. Conforme o mundial avança e a fase de grupos vai chegando ao fim o tempo que é dedicado ao torneio aumenta. Mas as reportagens especiais, como a de Débora Gares, perdeu espaço para o factual.

Na TV, sob o império da visualização, como diria Virilio, somos escravos da superficialidade. Organizada no tempo e não no espaço, a notícia televisiva sofre com mais intensidade os efeitos da velocidade. O “furo de reportagem” não espera a edição do dia seguinte, deve ser veiculado na hora, ao vivo e em cores. (PENA, 2005, P. 71)

O Sportscenter mudou de estratégia, e apesar de ainda colocar as notí- cias da Copa no segundo bloco, passou a colocar no ar tudo o que tinha de conteúdo sobre o futebol feminino um seguido do outro. O tempo era mais apertado com mundial avançando e a Copa América, que acontecia no Brasil, também prosseguindo. O telejornal precisava ser mais objetivo para que as notícias do dia coubessem, mas ainda houve matérias do torneio masculino que podem ser considerados como reportagem especial. No dia 19 de junho foram oito minutos e meio com os jogos da Copa em destaque. Os rotineiros boletins de Natalie Gedra tornaram-se mais polí-

TCCs 2019_2 --- 186 ticos. “Um fato só se torna realidade se tomarmos conhecimento dele. Caso contrário, fica restrito ao universo em que ocorreu. Sendo assim, os meios de comunicação podem interferir na forma como percebemos a realidade.” (Bis- tane; Bacellar, 2006, p. 84). A jornalista, como sempre, cobria uma partida e trazia informações sobre o mesmo e com a participação da torcida. Mas, desde que a Copa América começou, suas reportagens tiveram uma mudança. De alguma maneira, muitas delas orgânicas, Natalie expunha a situação da seleção que ela escolhia como personagem do boletim e mostrava o quanto o corrido representava para o time. Para exemplificar, iremos analisar o boletim que Natalie fez pós-jogo en- tre a Escócia e a Argentina. O time sul-americano perdia de 3 a 0, mas conse- guiu empatar a partida. O resultado foi comemorado, pelas jogadoras e torce- dores, como uma vitória, principalmente pela maneira como ocorreu a virada. A seleção da Argentina ficou dois anos sem jogar por falta de incentivo finan- ceiro. Mesmo assim, elas se juntaram e disputaram a Copa América na qual terminaram em terceiro lugar e foram para a repescagem das eliminatórias que as levariam para o mundial. A equipe é formada por atletas profissionais e amadoras, por esses e outros motivos a Copa se tornou tão simbólica para as argentinas. Ao comemorarem com a torcida falaram sobre a importância que essa participação tem, elas esperam que haja um avanço no futebol feminino da argentina. Nas sonoras8 feitas por Natalie as palavras que as atletas mais utilizavam eram: “garra”, “orgulho” e “coragem”. No dia 20 de junho a fase de grupos foi encerrada e por isso boa parte da cobertura focou nas seleções que passaram e em mostrar ao público como seria a competição daqui para frente. Tivemos o OFF-VIVO, característico do programa para mostrar os gols de jogos, e depois vinha uma tela de classifica- ção do grupo que aqueles times pertenciam. Depois veio o tradicional boletim de Natalie que destacou o jogo entre Holanda e Canadá. Além de falar da par- tida foi mostrada a festa da torcida holandesa como um gancho para evidenciar o crescimento da modalidade no país desde que a seleção venceu a Eurocopa de 2017. O ponto alto da reportagem foi conseguir uma sonora com o Minis- tro do Esporte da Holanda.

[…] a relevância é outro valor-notícia de comunidade jornalística. Este valor- -notícia responde à preocupação de informar o público dos acontecimentos que são importantes porque têm um impacto sobre a vida das pessoas. Este valor-notícia determina que a noticiabilidade tem a ver com a capacidade do acontecimento incidir ou ter impacto sobre as pessoas, sobre o país, sobre a nação. (TAQUINA, 2008, P.80)

8 Maneira como são chamadas as entrevistas durante uma matéria jornalística.

TCCs 2019_2 --- 187 Ao introduzir uma fonte oficial a relevância de uma notícia aumenta. Nes- te caso, mesmo que não seja tão relacionado ao Brasil (não é o Ministro do nosso país) traz reflexões para o público. É possível ver o Ministro dos Espor- tes da Holanda engajado com a modalidade. Só de estar na França já mostra o apoio e importância que dá à seleção holandesa. Bruno Bruins ressalta os holandeses que vieram de ônibus até a França para apoiar a equipe. “[…] Eles precisam dirigir centenas de quilômetros e a velocidade máxima não é mais que 55 ou 60 km. Eles se esforçaram muito para isso. Amanhã, o ônibus retor- na e segunda ou terça-feira ele volta para a França de novo.” (Bruno Bruins, 2019). Diferentemente das outras reportagens da jornalista, essa traz sonoras de homens que vieram torcer e prestigiar as mulheres (inclusão de gêneros). Depois de mostrado todas as partidas do dia foi ao ar uma tela que mos- trar o panorama de jogos do mata-mata. Até aí o noticiário ocorria normal- mente como todos os dias, mas o VT do ESPNW teve um conteúdo que não agradou, porque veio logo depois desse esquema das oitavas e falou pratica- mente a mesma coisa. Foi algo repetitivo, o material poderia ter tido outro assunto ou abordar de maneira diferente. O boletim do dia 21 de junho teve a checada da seleção brasileira em Le Havre para enfrentar a França pelas oitavas de final. Natalie reforça que as anfitriãs são uma das favoritas ao título, que estão na cidade desde terça-feira (18.06) e esse descanso maior seria uma vantagem em relação às brasileiras. Sobre o time de Vadão, a repórter já abre espaço para a sonora de Kathellen, zagueira da seleção. “Eu acho que a gente não deve ter medo da seleção da França. Porque, querendo ou não, o Brasil tem um nome também.” (Kathellen, 2019). As aspas da atleta reforçam o que comentamos desde o início da pes- quisa: uma ideia pode ser passada através de palavras. A seleção feminina teve sua história e ganhou respeito no cenário mun- dial, por isso a palavra “Brasil” não está mais sozinha. Ela carrega um significa- do, o de todo o esforço das jogadoras que passaram pela equipe e a fizeram crescer. Por isso quando falamos “a camisa pesa” ou “esse time tem nome” é fácil de entender o que estão querendo dizer. Da mesma maneira quando, no capítulo sobre representatividade, falamos do martelo e a foice e como pode- mos associar ao comunismo. Logo depois, a jornalista dá informações sobre a Formiga que tem ex- pectativa de jogar, mas não foi vista trabalhando com a bola durante o treino. Pela primeira vez os apresentadores comentam o boletim que é passado. Paulo Soares afirma que é um jogo realmente muito difícil e que as brasileiras terão que jogar o “fino da bola” para avançarem no mundial. É um momento bem rápido e depois seguem com o telejornal. Apesar disso é importante ver uma

TCCs 2019_2 --- 188 interação, já que a última edição do Sportscenter é conhecida por ser mais analítico.

4.2.3 Tropeço no último dia

O sociólogo Robert Park (2008, p. 23) caracterizava a notícia como um modo de conhecimento. Já na visão de Nelson Tranquina (2005, p. 19-20) pode ser considerado como a realidade, todavia com cautela já que muitas vezes essa “realidade” é apresentada quase como uma telenovela. “Os jornalistas vêem os acontecimentos como ‘estórias’ e as notícias são construídas como ‘estórias’, como narrativas que são isoladas de ‘estórias’ e narrativas passadas” Traquina (2005, p. 21). O último dia de competições como a Copa do Mundo e a Copa América servem para que o jornalismo (não apenas o esportivo) passe conhecimento ao público ao mesmo tempo em que narramos um acontecimento. O Sports- center começou a contar a história da vitória brasileira na Copa América. Co- locaram no ar as reações dos jogadores depois do jogo contra o Peru e depois Antero Greco analisou qual era o significado da conquista da competição para a seleção de Tite. A escolha do telejornal em noticiar primeiro a vitória do Bra- sil não foge do esperado, considerando a relevância (regional) desse torneio.

A relevância da distribuição noticiosa é uma questão central no processo de produção da notícia. Por um lado, a distribuição de rede articula-se com as questões de “noticiabilidade”. Assim, as fontes são quem são porque estão diretamente ligadas a sectores decisivos da atividade política, econômica, social ou cultural. Por outro lado, conhecendo-se a distribuição da rede noticiosa de um meio de comunicação social, sabe-se quais são os critérios de noticialidade porque se rege. (TRAQUINA, 2005, P. 189-190)

O futebol faz parte da cultura brasileira, na verdade é o que nos define, somos conhecidos como “o país do futebol”. Faz todo o sentido que a modali- dade seja prioridade em um telejornal esportivo. Após a cobertura jornalística da Copa América, a Copa do Mundo feminina ganha destaque no segundo bloco do Sportscenter. Uma matéria simples e rápida do ESPNW com foco na seleção americana e na brasileira. Este é um momento importante já que, segundo as ideias de Robert Park, está sendo passado conhecimento. É explicado o porquê de o time dos Estados Unidos se dar tão bem em competições. Isso se dá graças ao trabalho que é feito nas categorias de base. Dessa forma, atletas chegam à equipe principal estando muito bem preparadas. O Brasil vem como contraste à seleção tetra campeã mundial. As categorias de base, como falado no capítulo da CBF, não são bem desenvolvidas e isso,

TCCs 2019_2 --- 189 consequentemente, afeta os campeonatos nacionais. Na matéria é destacado o campeonato brasileiro sub-18, no qual as jogadoras disputam os seis jogos do torneio em apenas dez dias. Mas a reportagem que, nos conceitos de valor notícia, deveria ter en- trado antes no jornal foi ao ar apenas na abertura do último bloco. A matéria que deu a notícia sobre os Estados Unidos campeão do mundial foi um vídeo das americanas comemorando o título ao som de We Are The Champions. Os apresentadores fazem comentários e dão os parabéns às atletas, mas nada de muito significativo. Neste momento é possível perceber que não houve tanta preocupação na maneira em que a história é contada. Apesar de ser um programa que claramente prioriza o futebol, ainda não se preocupa tanto com a modalidade feminina.

Considerações finais Ao longo da Copa do Mundo foi constante o uso de Marta, Formiga e Cristiane como personagens. Conforme a competição acontecia, outras atletas ganhavam destaque, mas a maioria falava sobre o trio. A todo o momento era reforçada a importância das três jogadoras. Mas o significado delas vai além do que acontece nos campos, elas são nomes importantes em discussões sobre a igualdade de gênero no futebol feminino. Por isso, é natural que elas sejam des- taque de algumas reportagens. Marta foi eleita seis vezes a melhor do mundo. Formiga é a atleta que mais participou de mundiais, foram sete e Cristiane é a maior artilheira em Olímpiadas. Mas ao analisar o discurso usado é possível concluir que as matérias pro- duzidas neste período reforçavam o conceito de representação das jogadoras. Há a criação de um sentido envolvendo Marta, Formiga e Cristiane. Com o fim do mundial é possível que o público tenha criado uma relação de afeto com as personagens. Elas se tornaram exemplos e inspiração para as mulheres. Houve identificação entre o trio e a telespectadora, justamente pela maneira que elas foram representadas. Tudo isso por conta do uso de certas palavras que ser- viram para a construção do significado dessas atletas. Os conteúdos analisados do Esporte Espetacular, quando o assunto en- volvia a seleção brasileira, era quase certo que uma das três iria tornar-se o foco. O uso de palavras como “força”, “experiência” e “importantes” foi cons- tante nas reportagens para exemplificar o que as jogadoras significavam para a equipe e a modalidade. Mas a utilização de certas expressões e frases de efeito não se restringiu apenas a reportagens sobre o trio e o time brasileiro. Megan Rapinoe e Sara Grama também ganharam destaque em alguns conteúdos. A intenção era sempre de fortalecer a imagem das atletas como pilares e força de uma seleção e de lutas pessoais (por exemplo, direitos LGBT’s e das mu-

TCCs 2019_2 --- 190 lheres). Muitos dos conteúdos evidenciavam o fato delas estarem envolvidas em questões dentro e fora do campo. Sara Gama, por exemplo, faz parte da Federação Italiana de Futebol. O Esporte Espetacular, por usar muito de matérias especiais, consegue trabalhar melhor a ideia de representação e a produção de significados. Há uma gama maior de conteúdos em que o público consiga criar laços com as personagens que são apresentadas. Como dito anteriormente, foi possível ob- servar o cuidado na escolha de palavras e imagens, mas também no tipo de história a ser contada. Apesar de o conteúdo, principalmente com Marta no foco, continuar na mesma linha (por exemplo, falar sobre suas raízes e como isso a levou a ser Embaixadora da ONU) as jornalistas achavam uma maneira de colocar, nas reportagens, a luta da atleta. Já no Sportscenter a questão mais trabalhada foi a da desigualdade de gê- neros. Por isso a análise teve de ser diferente. Além de observar o significado que as reportagens traziam foi levado em consideração o espaço que o mundial tomava dentro do telejornal e com isso parte da análise do Sportscenter foi quantitativa e focava nos valores-notícia que o jornalismo tem como base. Foi possível concluir que o telejornal prioriza o futebol comparado com as outras modalidades. Mas ao comparar o esporte entre os gêneros pode-se constatar que o masculino era prioridade editorial. Um exemplo é a maneira como a cobertura das finais dos torneios foi realizada. Enquanto a Copa América foi assunto de praticamente o noticiário todo o mundial foi o último assunto do dia e com uma reprodução do Instagram da seleção americana. Como mencionado durante a análise, Natalie Gedra foi a responsável pela cobertura da Copa do Mundo Feminina na ESPN. Marta, Formiga e Cristiane também foram o foco de matérias que envolviam o time brasileiro. Mas o dife- rencial do conteúdo de Gedra foi expor, de maneira orgânica, o que acontece com o futebol feminino no mundo. Houve uma mudança no conteúdo da jor- nalista quando a Copa América começou no Brasil. No dia em que o torneio teve início, Gedra preparou um boletim no qual abordou as diferenças salariais entre o masculino e feminino, ainda expôs o porquê de não haver mais descul- pas a serem dadas para explicar a distinção entre as duas modalidades. A queda da equipe brasileira na competição também teve impacto na maneira como a cobertura do mundial era feita. As matérias em si não tiveram tantas mudanças, obviamente que Marta, Formiga e Cristiane perderam o espa- ço enquanto outras atletas que continuavam na Copa ganharam. O que mudou foi a linha editorial dos programas, a valorização da Copa América tornou-se mais evidente. Novamente uso como exemplo a escolha do Sportscenter em dar mais valor à final masculina do que do torneio feminino. É importante res- saltar que o Brasil venceu a Copa América e isso torna a notícia mais relevante.

TCCs 2019_2 --- 191 Mas a Copa do Mundo também tem um alto valor-notícia. Já em relação ao Esporte Espetacular tivemos reportagens mais focadas no pré-jogo da final, mas as notícias apareceram depois da Copa América, mais para a metade do programa. Apesar disso, o material apresentado tem qualidade. É possível extrair alguns sentidos e signos. A matéria em questão traz os melhores momentos da Copa do Mundo, a mensagem passada ao lon- go de todo o conteúdo é de mudança. O mundial feminino finalmente teve o holofote merecido e pôde mostrar que tem força e mercado para continuar a crescer. Além disso, Megan Rapinoe foi mostrada como a personagem princi- pal do torneio e como suas atitudes inspiraram as mulheres. Comecei esta pesquisa com a intenção de mostrar como a cobertura jornalística nos esportes femininos é falha. Mas fui surpreendida com a qualida- de das reportagens apresentadas. As matérias jornalísticas não são mais como antes em que há sexualização das mulheres. Há uma mudança ocorrendo, mui- to por conta de as jornalistas começarem a tomar a frente em reportagens em que o feminino é destaque. O maior problema que analisei foi o editorial dos programas, pois as modalidades masculinas ainda são a preferência. Ao longo da pesquisa percebi a proporção que uma reportagem pode tomar e o quanto de signos pode carregar. Acredito que a pergunta problema tenha sido respon- dida. Através da construção de significados e sentidos é possível que tenhamos uma melhora na cobertura jornalística do feminino no esporte. Desta forma, haverá mais identificação do público com as atletas que estão em destaque e, consequentemente, os espaços de representação serão maiores.

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TCCs 2019_2 --- 198 O USO DAS BASES DE DADOS DIGITAIS NO JORNALISMO A PARTIR DO CASO PANAMA PAPERS

LUCAS SOARES MARTINS Orientador: Francisco Redondo Periago.

TCCs 2019_2 --- 199 RESUMO O objetivo desta monografia é apresentar as mudanças que o uso das ba- ses de dados digitais trouxe para o jornalismo investigativo. O ponto de partida foi o caso Panama Papers, que utilizou o conceito de big data de uma forma nunca empregada no jornalismo. O processo foi por meio do estudo da bio- grafia sobre o tema, analisando as alterações sofridas pelo trabalho jornalístico com o adendo do digital. Neste projeto também foram estudados os progra- mas utilizados pelos profissionais para realizar a curadoria de dados e dissertar sobre até que ponto esses programas mudaram a forma de se fazer jornalismo.

Palavras-chave: dados, jornalismo, investigação, bases, digital

ABSTRACT The objective of this monograph is to present the changes of that the databases brought to investigative journalism and like the press converts this content in information from the case Panama Papers. At the time, more than 11 million data leaked and needed to be studied by a group of more than 400 journalists. To obtain a unique result, a bibliographic review on the subject should be analyzed and the data analysis programs should be studied in Panama Papers. This work aims to analyze the digital databases and their implications for investigative journalism.

Keywords: data, journalism, research, digital

TCCs 2019_2 --- 200 INTRODUÇÃO A abordagem desta monografia é sobre a importância das bases de dados digitais no jornalismo investigativo, usando como ponto de partida o caso Panama Papers. Sendo assim, analiso aqui projetos focados em jornalismo investigativo de veículos brasileiros e internacionais que utilizaram informações coletadas utilizando programas de análise de dados para sua realização. O Panama Papers é considerado, de acordo com o Consórcio In- ternacional de Jornalismo Investigativo (ICIJ, em inglês) o maior vazamento da história do jornalismo de dados pela quantidade de informações, onde os métodos foram utilizados para analisar mais de 11,5 milhões de documentos sigilosos de autoria da Sociedade de Advogados Panamenha Mossack Fonseca, que fornecem informações detalhadas de mais de 214.000 empresas de paraí- sos fiscais.Os dados foram analisados por um grupo de mais de 400 jornalistas de 109 veículos de 80 países diferentes1. Mas o volume de um vazamento não é o mais importante, milhares de dados sem relevância não tem função alguma, a quantidade não reflete necessariamente a relevância que essas informações possuem para o mundo. O trabalho levou mais de um ano sendo um dos maiores furos jornalís- tico internacional das últimas décadas. Mais quais mudanças esse caso trouxe para o jornalismo de dados digitais? E quais as implicações disso para o futuro da profissão? Será que o trabalho do jornalista mudou após isso? Objetivo des- te trabalho é entender como o jornalismo de dados digitais mudou a profissão e as implicações que isso pode ter no futuro. Para efeito de comparação, no caso Cablegate, houve um vazamento de 1,7 gigabytes de dados através do site Wikileaks. A ação se tornou um marco na história do jornalismo de dados, alterando a forma como a profissão é pra- ticada. Os procedimentos adotados passaram a ser replicados em quase todos os grandes vazamentos de dados que ocorreram. O desenvolvimento desse tipo de técnica depende diretamente do avanço da tecnologia, principalmente em relação ferramentas de programação e busca. Saber usar esses programas e analisar esse tipo de dados vem se tor- nando mais uma parte dos conhecimentos necessários para os jornalistas. As principais ferramentas utilizadas são softwares como o Google Spreadsheets, o Open Refine, o Open Office, o Many Eyes, ou o Timerics além do software Excel. Essas ferramentas permitem a visualização das informações de forma mais organizada e rápida, facilitando o trabalho do jornalista. A natureza do trabalho desses profissionais se alterou na medida que

1 Disponível em: https://www.icij.org/investigations/panama-papers/pages/panama-pa- pers-about-the-investigation/ Acesso em 15 de julho de 2019

TCCs 2019_2 --- 201 novas formas de comunicação foram surgindo. Atualmente grandes empresas vêm investindo em setores de análise de dados, tanto jornais tradicionais como o The Guardian e o The New York Times e até companhias recentes criadas após o surgimento da internet, como o Google, por meio do Google Search. Decidi desenvolver esse tema, pois acredito que o futuro do jorna- lismo digital passa pela base de dados e a “big data”. Esses mecanismos já são parte da apuração nas redações jornalísticas e um melhor uso delas pode ser uma saída para tornar o trabalho jornalístico um produto mais eficiente. Nesta monografia foi feita uma pesquisa exploratória por meio do levan- tamento de uma bibliografia sobre o tema. Também foi necessário coletar e analisar estatísticas sobre o caso. A ideia foi tentar entender a quantidade de dados aproveitados e descartados na produção de uma reportagem investiga- tiva e a forma como isso ocorre, isto é, os métodos utilizados nesse processo. Sendo possível, dessa forma, compreender a extensão e variedade de formatos que esta área possui. Outro aspecto importante é explicar como o jornalismo investigativo se modificou com a utilização das bases de dados digitais. Para isso foi feito um comparativo com reportagens realizadas em uma época pré-popularização da internet com as de hoje em dia. Uma pesquisa qualitativa analisa a forma como as bases de dados digi- tais foram utilizadas no caso Panama Papers. Os resultados mostram como o jornalismo explorou a tecnologia para se desenvolver e as implicações, tanto positivas, quanto negativas, que isso trouxe para o desenvolvimento deste tra- balho. A base teorica desta monografia é feita principalmente em livros de Philip Meyer, considerado o “pai do jornalismo de dados” e que já escreveu diversas obras sobre o tema, além de Paul Bradshaw, que também trabalhou em projetos relacionados ao jornalismo de dados e produziu diversos livros a aera. Outros autores como Simon Singh passam uma abordagem mais técnica das tecnologias utilizadas em programas de criptografia e big data. Já Manuel Castells e Marshall McLuhan trazem uma abordagem mais conceitual do tema. Por fim, Marcelo Trassel, Suzana Barbosa e Walter Teixeira Lima Junior também tiveram suas obras utilizadas na biografia deste trabalho. Além dos autores, grande parte da minha pesquisa foi feita com base em entrevistas dos jornalistas envolvidos no caso Panama Papers, como Mar Cabra, do ICIJ e Frederik Obermaier e Bastian Obermayer, os primeiros jor- nalistas que tiveram acesso às informações vazadas pela fonte anônima. Além de uma entrevista feita pelo autor com Mateus Netzel, jornalista brasileiro que trabalhou no caso. Fora isso, também utilizo dados oficiais divulgados pelo ICIJ, publica-

TCCs 2019_2 --- 202 ções governamentais, e reportagens feitas na época do caso por grandes veí- culos midiáticos. As principais fontes neste caso ficaram por conta do jornal britânico The Guardian e pela revista americana Forbes além do jornal The New York Times. No primeiro capítulo desta monografia, vemos um retrospecto para entender como ocorreu a evolução do jornalismo no meio digital, ou seja, como os veículos começaram a lidar com o advento da internet e principal- mente, com as bases de dados digitais. Aqui foram abordadas obras de autores com visões contrastantes sobre essas mudanças causadas no jornalismo. No capítulo sobre o Panama Papers, existe uma linha do tempo des- crevendo a ordem dos fatos, com diversas entrevistas nos envolvidos no caso, incluindo os principais jornalistas que participaram do projeto. O objetivo tam- bém é falar sobre as consequências do vazamento no mundo inteiro, inclusive no Brasil, que contou com a participação de repórteres brasileiros. Vamos também tentar entender as tecnologias utilizadas no Panama Pa- pers e como os vazamentos foram possíveis. O VeraCrypt2 foi fundamental para garantir a segurança das informações, além de outras tecnologias como o sistema de nuvem da Amazon e programas desenvolvidos pelo próprio ICIJ es- pecialmente para o projeto. Analise aqui também se estende para os profissio- nais que trabalharam no caso, que em muitos dos casos precisaram apreender como lidar com essa tecnologia. Para entender como o Panama Papers foi possível, é necessário tam- bém um retrospecto sobre o mais famoso vazamento de dados recente, o caso Cablegate, conhecido também com Wikileaks, que tem como um de seus principais responsáveis, Edward Snowden. Ainda consta um capítulo explicando como funcionam as colaborações no jornalismo investigativo, conhecido como crowdsourcing,3 parte fundamental do Panama Papers e que tornou o caso possível.

JORNALISMO DE DADOS

Pode se dizer que qualquer dado usado na elaboração de notícias, é jor- nalismo de dados, mas o termo, e o trabalho do jornalista dentro das redações mudou drasticamente com a tecnologia. Hoje, jornalismo de dados pode ser considerado o trabalho de encontrar notícias dentro dos dados e em muitos 2 Disponível em: https://www.forbes.com/sites/thomasbrewster/2016/04/05/panama- -papers-amazon-encryption-epic-leak/#9503e8e3a343 Acesso em 15 de julho de 2019 3 Crowdsourcing é um modelo de criação e/ou produção, que conta com a mão-de- -obra e conhecimento coletivos, para desenvolver soluções e criar produtos

TCCs 2019_2 --- 203 casos pode ser elevado a uma escala muito maior. O European Journalism Centre e a Open Knowledge Fountation concluí- ram em 2012 o The Data Journalism Handbook”4, um guia que explica o jorna- lismo de dados e suas principais técnicas. A obra foi elaborada durante a edição de 2011 do Mozilla Festival. De acordo com o capítulo do livro escrito por Paul Bradshaw, não existe uma definição exata para o que é jornalismo de dados. O autor define dado como tudo aquilo que pode ser descrito com números de forma digital. Ou seja, nesse caso, dados não são apenas números ou textos, mas também fotos, vídeos, áudios e todo tipo de conteúdo que está na internet. É uma definição ampla, mas é tão ampla quanto essa área pode abranger. Bradshaw, foi um dos que estudaram de forma crucial a prática do jorna- lismo de dados e é citado diversas vezes nessa monografia. Em 20105, o jorna- lista escreveu um artigo em que explica como os profissionais devem trabalhar essas novas técnicas e utilizar a tecnologia a seu favor.

Jornalismo de dados é enorme, eu não quero dizer ‘enorme’ como na moda – embora se tenha tornado moda nos últimos meses – mas ‘enorme’ como ‘incompreensivelmente enorme’. Ela representa a convergência de um número de campos que são significativos e seu próprio direito – a partir de pesquisa investigativa e estatística para design e programação. A ideia de combinar a habilidade de contar histórias importantes é poderosa – mas também intimi- dante (BRADSHAW, 2010, online, tradução nossa)

O autor diz que o uso do termo jornalismo de dados nem sempre é coe- rente com sua pratica6. Para ele, bancos de dados digitais não são apenas pilhas de informações com documentos e fotos. Muitas vezes, os jornalistas buscam informações em código binário, com uma série de zeros e uns, fazendo também um trabalho próximo dos programadores.. Talvez pelas novas possibilidades que se abrem quando se combina o tradicional ‘faro jornalístico’ e a habilidade de contar uma história envolven- te com a escala e o alcance absolutos da informação digital agora disponível (BRADSHAW, 2014, ONLINE, tradução nossa) Bradshaw defende que o uso de dados no jornalismo por si só não é

4 Disponível em: https://datajournalism.com/read/handbook/one/introduction/what-is- -data-journalism Acesso em 16 de setembro de 2019 5 Idem: http://www.theguardian.com/news/datablog/2010/oct/01/data-journalism-how- -to-guide. Acesso em 20/10/2018 Acesso em 10 de setembro de 2019

6 BRADSHAW, Paul. O que e o jornalismo de dados. Manual de Jornalismo de Dados. Sao Paulo: Abraji, 2014.

TCCs 2019_2 --- 204 uma novidade. Há décadas o trabalho jornalístico também envolve passar horas lendo documentos e buscando informações. Portanto o que hoje chamamos de jornalismo de dados se refere a união da tecnologia com o trabalho jornalístico tradicional, sendo assim, uma nova maneira de se fazer jornalístico. Para Meyer (1991), dados brutos não possuem relevância suficiente. Essa importância se dá após essas informações serem analisadas e explicadas, de for- ma que possam ser entendidas pelo público. Isso passa também pela inclusão de métodos científicos no trabalho dos jornalistas. Ainda de acordo com o autor, essa semelhança entre cientistas e jornalistas acontece principalmente pelo fato de ambos trabalharem com a elaboração de hipóteses e procuram indícios que comprovem suas teorias adotadas, no entanto, é necessário tomar cuidado para não tornar este trabalho enviesado. Ele cita o físico Lawrence Cranberg como um dos pesquisadores que apro- ximou o método cientifico do jornalismo “o próprio jornalismo é uma ciência e ... um jornalista responsável e devidamente qualificado é um cientista praticante” (MEYER, 1991, p.29; CRANBERG, 1989, p.46, tradução nossa). Cranberg ainda menciona os benefícios da abordagem cientifica no jornalismo, como uma racio- nalização da ordem social. Além de saber como obter informações impressas ou no ar, ele também deve saber como colocá-las na cabeça do receptor. Em resumo, um jornalista pre- cisa ser um gerente de banco de dados, um processador de dados e um analista de dados. (MEYER, 1991 p.25, tradução nossa) De acordo com Rogers, Schwabish e Bowers (2017) existem três formas principais do jornalismo de dados ser praticado. A primeira é o jornalismo diário, que utiliza os dados em menor escala, geralmente com fatos cotidianos, muito utilizado na cobertura tradicional dos jornais em diversas editorias. Este formato consiste na aplicação dos dados no jornalismo tradicional e não necessariamente precisa de um conhecimento específico na área. A segunda é um modelo mais clássico de jornalismo investigativo, com uma equipe de repórteres dedicados, trabalhando em um projeto que geralmente leva um grande período para ser concluído. Esse formato também costuma ser mais caro e leva um certo tempo para quer o retorno financeiro seja obtido. É o modelo que mais avaliamos nesta monografia, bastante utilizado em grandes investigações como Wikileaks e o Panama Papers. Os autores ainda citam uma terceira forma, que consiste na explicação dos dados para o público através dos jornalistas. Nesse formato, o profissional en- contra as notícias dentro dos dados, e contextualiza o conteúdo para o consu- midor. Esse modelo já é utilizado nas redações há bastante tempo, mas vêm se aperfeiçoando com os dados digitais, que contribuem às três formas citas nesses exemplos.

TCCs 2019_2 --- 205 A história dos dados no jornalismo

O primeiro exemplo que se tem notícia do uso de dados no jornalismo está em uma edição do The New York Times de 18497. Este jornal continha uma página inteira com um gráfico ilustrando informações sobre uma epidemia de cólera que atingiu a cidade naquele ano. Nessa época a medicina não tinha identificado as causas da doença. Mas o jornal, no entanto, publicou dos dados alertados sobre a taxa de mortes das pessoas contaminadas. Mostrando a necessidade de mais esforço da sociedade para combater a enfermidade.

Figura 1: Gráfico sobre o desenvolvimento da malária em NY Fonte: New York Times (1849)

A enfermeira Florence Nightingale enviou em 1858, gráficos relatando a taxa de mortalidade dos soldados do exército britânico após ter trabalhado na Guerra da Crimeia. Ela foi uma das pioneiras no uso do gráfico setorial (popu- larizado com o nome de gráfico de “pizza”) em larga escala. A publicação dessas informações fez com que Florence também seja considerada uma das primeiras jornalistas de dados. O jornal The Guardian, que hoje se destaca com o projeto DataBlog, do qual ainda vamos analisar em outro capítulo desta monografia, já trabalhava com dados desde sua primeira edição impressa. Ainda que de uma forma sim-

7 Disponível em: https://www.nytimes.com/2014/03/04/health/florence-nightingales- -wisdom.html Acesso em 30 de setembro de 2019

TCCs 2019_2 --- 206 ples, o jornal mostrou uma tabela com todas as escolas da cidade britânica de Manchester com a capacidade de alunos e seus custos.

Figura 2: Diagrama de Florence Nightingale Fonte: The Guardian (2010)

Jornalismo de precisão e reportagem assistida por computador

A primeira experiência conhecida do uso das bases de dados digitais no jornalismo aconteceu em 1967, quando Philip Meyer utilizou um computa- dor para analisar informações sobre moradores de Detroit que tinham parti- cipado de manifestações naquele ano. O método foi batizado pelo autor como “Reportagem Assistida por Computador” (RAC)8. A partir disso, Meyer se tor- nou uma referência no estudo e análise de base de dados. O autor foi o responsável pela criação do termo “jornalismo de pre- cisão”, que também é o nome de um de seus livros mais conhecidos, publi- cado originalmente em 1973. O chamado Jornalismo de precisão aproxima o jornalismo da ciência utilizando métodos científicos para analisar e investigar informações.

O novo jornalismo de precisão é o jornalismo científico. Isso significa tratar o jornalismo como se fosse uma ciência, adotando o método científico, a objeti- vidade científica e os ideais científicos para todo o processo de comunicação de massa. Se isso soa absurdamente pretensioso, lembre-se de que a ciência restringe ela mesma sobre suas realizações e suas possibilidades e tem suas próprias sanções contra a pretensão. (MEYER, 1973, P.4 tradução nossa)

8 MEYER, Philip. Precision Journalism: A Reporter’s Introduction to Social Science Meth- ods. 1979

TCCs 2019_2 --- 207 O método não envolve necessariamente o uso de computadores, mas o autor, junto com os redatores do jornal Detroit Free, popularizou o uso das máquinas para análise de dados durante uma investigação jornalística dos protestos que aconteceram na cidade durante o ano de 1967. Para cumprir a demanda, Meyer passou nove meses em Harvard, estudando o caso. A reporta- gem rendeu um prêmio Pulitzer para a equipe do jornal. Apesar disso, a aplicação do uso de computadores no jornalismo du- rante as décadas de 60 e 70, ainda estava longe de revolucionar a profissão. Como o próprio autor afirma, apesar das máquinas, os métodos não eram muito diferente do já aplicado anteriormente. “Descobrir os fatos e contar o significado deles sem perda de tempo. Se existem instrumentos que nos auto- rizam a cumprir esta tarefa com maior poder, veracidade e luzes, deveríamos utiliza-lós ao máximo” (MEYER, 1973, P.15, tradução nossa) Segundo Coddington (2014), a Reportagem Assistida por Computador (RAC), se baseia no uso de computadores para fazer análises quantitativas de dados para o aperfeiçoamento das notícias. Foi a partir do final dos anos 80, com o aumento do uso de computadores nas redações, que o jornalismo de precisão passou a ser mais reconhecido. Meyer (1991), também afirma que, com a aproximação do jornalismo da ciência, muitos profissionais precisam de uma formação complementar. Pois o Jornalismo de Precisão tem suas características especificas, e essas característi- cas trazem a necessidade de habilidades diferentes. Apesar disso, o autor garan- te que o jornalismo de dados não é uma ciência, e sim, uma forma jornalismo que parte de uma perspectiva de cientifica. Ele ainda explica algumas habilidades necessárias para que os jornalistas possam aprimorar seus trabalhos e analisar os dados de maneira mais precisa. O autor defende que os seguintes tópicos façam parte do trabalho da aplicação do jornalismo: “Como encontrar informação; como avaliá-la e analisá-la; como transmiti-la de forma que supere a sobrecarga informacional e chegue ao públi- co que a necessita e deseja” (MEYER, 1991, p.26, tradução nossa) Alguns dos primeiros repórteres a utilizarem computadores em uma redação de jornal, estão Donald Barlett e James Steele do Philadelphia Inquirer. Em 1973, a dupla utilizou uma máquina da IBM para revelar irregularidades em condenações dadas a criminosos violentos. Steele explicou, em um artigo publicado na revista Time em 20109, como o computador auxiliou na produção

9 Disponível em:http://content.time.com/time/magazine/article/%200,9171,961680- 2,00.html.%20Acesso%20em%2028/11/2010. Acesso em 15 de julho de 2019

TCCs 2019_2 --- 208 da série de reportagens publicadas na década de 70, mais de 30 anos antes da entrevista.

Se nós fizéssemos todo o trabalho da forma normal para a época, nós estarí- amos ainda trabalhando nele. O computador não toma o lugar da reportagem tradicional, analisando ou consolidando. É somente outra ferramenta (STEELE, 2010, ONLINE)

De acordo com o jornalista português, Antônio Fidalgo, em seu artigo Sintaxe e Semantica das Noticias Online: Para um Jornalismo Assente em Base de Dados10. As bases de dados digitais são a verdadeira mudança que o jornalis- mo online vai sofrer em relação a mídia tradicional, seja ela veículos impressos, rádio e até mesmo televisão. Fidalgo acredita que essas bases de dados são a maior contribuição da internet para o jornalismo e é justamente esse aspecto que diferencia as duas mídias. “A grande diferença entre um jornal on-line feito apenas em html11 e que de certo modo ele e um produto único, ainda que recorrendo a templates, ao passo que um jornal assente em base de dados e sempre o resultado de uma determinada pesquisa”. (FIDALGO, 2010, p.3). A revolução trazida pelas bases de dados inclui também a forma como essas notícias são produzidas. Hoje, as redações funcionam quase que total- mente no uso de computadores. Se antes era preciso uma folha de papel para entregar um texto para o editor, hoje isso pode ser feito com poucos cliques, sem contar a facilidade para o uso de fotografias e vídeos, que conseguem ser processados com muito mais rapidez, além de serem armazenados em bancos de dados maiores e mais acessíveis. Mas o autor diz que isso pode ir além, sendo possível inclusive que as ba- ses de dados analisem as notícias com base em um programa de computador para verificar e identificar nomes, cidades datas e eventos citados no texto redigido, isso já acontece de uma maneira manual, onde os profissionais podem realizar pesquisas, mas Fidalgo acredita que todo esse processo pode chegar em outro nível.

10 Idem : http://www.bocc.ubi.pt/pag/fidalgo-jornalismo-base-dados.pdf Acesso em 20 de agosto de 2019 11 HTML é uma linguagem de marcação utilizada na construção de páginas na Web. Do- cumentos HTML podem ser interpretados por navegadores

TCCs 2019_2 --- 209 Introduzida e classificada a notícia, ela poderia de imediato ser editada (título com determinado tamanho de letra, lead colocado a itálico na primeira página, com um link para a página respectiva da notícia) e apresentada no jornal on-line. Podendo, no entanto, introduzir pontos de segurança, como a verificação e confirmação da notícia por parte da chefia da redação e da direção do jornal” (FIDALGO, 2010, p.8)

Reportagens online podem unir imagens, vídeos, texto e infográficos den- tro de uma página construída com uma dashbord12 responsiva, que interage com o leitor. Esse modelo serve como uma espécie de filtro para o usuário, que pode ler o conteúdo de várias formas diferentes. O The New York Times se tornou referência na produção de reportagens multimídia depois da publicação de uma matéria especial, que continha um formato copiado e modificado hoje por diversos sites pelo mundo. Intitulada Snow Fall: The Avalanche at Tunnel Creek13, a reportagem foi publicada em 2012 e mostra as consequências de uma avalance que aconteceu em fevereiro daquele ano no estado de Washington. Por conta de seu formato inovador, a matéria levou diversos prêmios como o Pulitzer Prize de 2013 na categoria Feature Writing e o Peabody Award 2012.

O NOVO JORNALISTA

Um jornalista de dados precisa ser um profissional com conhecimento em diversas áreas, pois com as redações cada vez mais enxutas, uma mesma pessoa muitas vezes precisa pesquisar, analisar reorganizar e interpretar cole- ções de dados digitais, para torná-los um conteúdo noticioso. Essas técnicas vêm sendo empregadas com cada vez mais frequência no trabalho dos jornalis- tas e são fundamentais para o desenvolvimento da profissão. Uma das tarefas fundamentais dos jornalistas que trabalham com da- dos, segundo Manovich (2001), é saber a melhor maneira de noticiar os fatos baseados nas informações coletadas. De acordo com o autor, as novas tecno- logias proporcionaram uma espécie de hipernarrativa, que seria o resultado do trabalho feito com as bases de dados. No fim das contas, o material criado funciona apenas como “um conjunto de links”, já que os dados permanecem em seu local de origem.

12 Dashboards são painéis que mostram métricas e indicadores importantes para alcan- çar objetivos e metas traçadas de forma visual, facilitando a compreensão das informações geradas

13 Disponível em: http://www.nytimes.com/projects/2012/snow-fall/index.html#/?part=- tunnel-creek Acesso em 20 de setembro de 2019

TCCs 2019_2 --- 210 Apesar disso, alguns argumentam que a prática de explicar dados não significa necessariamente jornalismo. Silver (2013) defende que a coleta e o uso de informações é apenas a primeira parte do JD. De acordo com ele, a segunda parte da prática do JD seria a organização de maneira cronológica dos dados, e a terceira, que o autor classifica como fase de explanação, consiste na iden- tificação do “lide” utilizado no jornalismo tradicional, respondendo o “quem”, “quando”, “como”, “onde” e “por que”. A quarta e última fase dependeria do uso de ferramentas de análise de estatísticas para tentar prever como esses eventos poderão se comportar no futuro. Anderson discorda desse argumento. Segundo o autor, não apenas o uso de dados, mas também a simples apropriação da tecnologia torna-se inadequa- da para definir Jornalismo de Dados. Isso porque, se entendermos o jornalismo como um conjunto de infor- mações que une dados, informações e entrevistas, então o jornalismo de dados tem um enredo que nunca seguiria uma ordem cronológica de aperfeiçoamen- to, como sugere a visão tecnológica, mas sim de uma maneira descompassa, que evolui a partir da mudança na forma como as técnicas são empregadas, não dependendo necessariamente do avanço da tecnologia.. Como explica Flew14, “quando a informação era escassa, a maior parte de nossos esforços estavam voltados a caçar e reunir dados. Agora que a informação é abundante, proces- sá-la tornou-se mais importante” (FLEW, 2012, p34, tradução nossa). Lima Junior (2012) classifica o chamado “hacking jornalism”, como uma habilidade necessária para os novos jornalistas. O autor explica que isso só é possível com um uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), que ganharam relevância no jornalismo de dados. Meyer (1973)15 explica a forma como jornalismo de precisão, alterou a forma como os profissionais da área trabalham. No mesmo trecho da obra, o autor ainda sustenta como a mídia ganhou mais confiança quando passou a utilizar esse modelo.

14 FLEW, T.; SPURGEON, C.; DANIEL, A.; SWIFT, A. The promisse of computacional jour- nalism, 2012. Disponível em: http://dx.doi.org10.1080/17512786.2011.61665 Acesso em 15 de setembro de 2019 15 MEYER, Philip. Precision Journalism: A Reporter’s Introduction to Social Science Meth- ods. 1979

TCCs 2019_2 --- 211 O jornalismo de precisão ameaçou as tradições da passividade e da inocência jornalística. A antiga tradição sustenta que a mídia deve reportar notícias, não fazer notícias. O envolvimento da imprensa nas pesquisas de opinião pública foi criticado pelo fato de que a mídia não deveria fazer pesquisas, mas deveria esperar passivamente até que outras pessoas as fizessem e depois reportar sobre elas. Pesquisas de mídia também violam a regra da inocência. Um repórter deve ser uma pessoa que revê tudo, algo que ele ou ela não pode fazer se estiver sobrecarregado com muito conhecimento especializado. (MEYER, 1973, P.26, tradução nossa)

O exemplo que ele utiliza são os das pesquisas eleitorais. Nos anos 1980 os jornais começaram a perder a confiança nas pesquisas de intenção de voto que, até aquele período, eram realizadas pelos próprios políticos. A partir daí a imprensa passou a financiar sua própria coleta de dados. O tema colocou os jornais diretamente envolvidos na disputa eleitoral, se antes eles apenas reportavam as pesquisas, agora a imprensa era diretamente responsável por elas. Isso fez com que os veículos, segundo o autor, deixassem de serem passivos e claro, rendeu e ainda rende diversas críticas profissão.

“O tema subjacente da maioria das críticas modernas ao jornalismo é que a mídia é dominada com demasiada facilidade por políticos poderosos e seus habilidosos especialistas, cujos desejos também determinam casualmente o que é definido como notícia e o que não é” (MEYER, 1979, P.4, tradução nossa)

Novas redes em contato com o jornalismo

Quando estamos falando da internet utilizada para produção de con- teúdo jornalístico, passamos por uma mudança muito mais profunda. O jorna- lismo ainda está se adaptando as novas redes e a evolução tecnológica foi tão rápida que a profissão tem dificuldades de absorver essas novas configurações. A imprensa esteve presente na internet desde seu surgimento. Segundo Sala- verria (2014)16, a partir do fim dos anos 1980, os jornais impressos dos Estados Unidos já possuíam edições digitalizadas e disponíveis de forma online. Essa predominância da mídia impressa, somada a baixa velocidade de internet na época, fez com que o texto se tornasse a linguagem predominante na web.

16 SALAVERRIA, Ramón. Webjornalismo: 7 Características que Marcam a Dife- rença, 2014

TCCs 2019_2 --- 212 O texto atua como elemento de contextualização e de documentação por excelência; informa o utilizador sobre os aspectos essenciais da informação que este tem diante de si, ao mesmo tempo que se apresenta como a via mais eficaz para oferecer dados complementares. De todos os formatos comuni- cativos disponíveis, o texto oferece o conteúdo mais racional e interpretativo (SALAVERRÍA, 2014, p. 33, tradução nossa)

A partir do fim da década de 1990, com o aumento da tecnologia, as pá- ginas da web puderam ser aperfeiçoadas e tendo imagens e vídeos para com- plementar seu conteúdo. Nessa fase, jornais do mundo inteiro já publicavam seu conteúdo online e de forma imediata, mudando a forma como as redações trabalham. De acordo com Bradshaw (2014)17, o hipertexto presente na navega- ção online moldou a interação na web. O autor diz que os links gerados em pá- ginas que levam a outras páginas, chamado de hipertexto. Esse formato quebra o modelo adotado no jornalismo impresso, na internet o texto ganha camadas e pode ser lido de diversas formas. Isso difere da base do texto jornalismo, a pirâmide invertida. De acordo com o jornalista Jack Fuller18, o principal obstáculo enfren- tado pelo jornalismo na era digital está em entender a lógica de um sistema aberto e descentralizado, com novas opções de consumo e modalidades de transmissão de conteúdo, se opondo a escassez de informação que os modelos tradicionais implementaram. Em 1996, o jornalista já havia explicado sua preocupação com o papel do jornalismo na era digital. Fuller destaca a importância de manter a ética jornalística mesmo com as mudanças sofridas pela profissão. Casos como o Panama Papers e Wikileaks reforçam a necessidade de uma visão que preserve os valores éticos na hora de lidar com esses tipos de dados.

Eletrônico ou em papel, os jornais devem ter editores humanos. Devem continuar a refletir as complexidades da personalidade humana, a demonstrar julgamento e caráter, e a assumir uma voz destacada na comunidade a qual serve (FULLER, 1996, p.228)

17 BRADSHAW, Paul. O que e o jornalismo de dados?. Manual de Jornalismo de Dados. Sao Paulo: Abraji, 2014 18 FULLER, Jack. News Values: ideas for an information age. London: The University of Chicago Press, 1996.

TCCs 2019_2 --- 213 Kovach e Rosenstiel (2004)19 também reforçaram as mudanças do jor- nalismo investigativo com o passar das décadas e a evolução desse trabalho com o avanço da tecnologia. Os autores defendem que a informação jornalísti- ca enfraqueceu a partir do momento que a internet tornou os dados acessíveis para todos. A obra destaca que não importa a época e nem o lugar, os conceitos jornalísticos precisam ser mantidos para que a informação seja passada com qualidade. Mesmo que não tenham sido criadas propriamente para a prática jor- nalística, as redes sociais se tornaram a principal forma de distribuição de notí- cias online. Ainda de acordo com Bradshaw20, a partir de 2009, as redes sociais promoveram uma mudança profunda na forma como a sociedade consome notícias “Os novos operadores no mercado da informação, como o Facebook, o Twitter e os agregadores de notícias, superaram as marcas tradicionais em termos de popularidade e rentabilidade”. (BRADSHAW, 2014, p.155). A principal vantagem desse modelo é a interatividade que a internet permite, os internautas fazem o papel de distribuição que antes pertencia aos veículos Segundo Barbosa (2003)21, dessa forma, o papel do jornalista nesse meio fica comprometido. Assim como McLuhan analisa em A Galáxia de Gutemberg, sempre que uma nova tecnologia surge, é necessário um processo de adaptação por parte da sociedade que a utiliza. Esse processo é diferente dependendo da cultura da sociedade onde essa nova tecnologia está sendo implementada. O comporta- mento do usuário se torna imprevisível neste caso.

O surto de uma nova tecnologia, que estende ou prolonga um ou mais de nossos sentidos em sua ação exterior no mundo social, provoca, pelo seu próprio efeito, um novo relacionamento entre todos os nossos sentidos na cultura particular assim afetada (MCLUHAN, 1966, p.51)

Adaptação dos profissionais

Toda essa mudança no trabalho dos jornalistas exige também uma adaptação dos profissionais. Para trabalhar com dados digitais, muitos repór-

19 KOVACH, Bill e ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. Trad. Waldir Dupont. São Paulo, 2004 20 BRADSHAW, Paul. O que e o jornalismo de dados?. Manual de Jornalismo de Dados. Sao Paulo: Abraji, 2014. 21 BARBOSA, Elisabete. Jornalistas e publico: novas funçes no ambiente on-line. In: FI- DALGO, Antonio.

TCCs 2019_2 --- 214 teres precisam de um certo conhecimento da tecnologia adotada e dos soft- wares utilizados no processo, para que o trabalho consiga ser feito de forma competente. Hoje, com redações cada vez menores, quando maior a variedade de conhecimentos que um jornalista possui, maiores são as chances dele se destacar nessa área. Stray (2016)22 afirma que os dados digitais, quando são visualizados em sua forma original na internet, não são capazes de falar por si próprios e pre- cisam da interpretação jornalística para que consigam fazer sentido. Segundo o autor, esse filtro pode revelar o elemento mais importante contido naquelas informações e torna-las mais próximas do mundo real. Para ele, o jornalismo de dados combina os números com elementos do cotidiano para criar notícias. A visão de Stray contrapõe aquilo o que Träsel (2014)23 diz, o autor acredita que umas das grandes vantagens do jornalismo guiado por dados é justamente o fato da modalidade poder ser analisada pelo público, por isso, segundo ele, também faz parte do trabalho do profissional apresentar o ma- terial original para que todo mundo tenha acesso, libertando a informação do monopólio de governos e instituições de pesquisa privadas. Ainda assim, Träsel diz que o poder da informação continua nas mãos das autoridades. Howard (2012)24 defende que o jornalista de dados precisa conseguir entender do tema com autoridade, já que muitos desses artigos serão utili- zados por profissionais da área na qual a reportagem é escrita. Por tanto, é fundamental traduzir os dados para que eles sejam compreendidos pelo leitor da melhor maneira possível, mas sem perder o peso da informação. O The Guardian desenvolveu um projeto chamado Datablog, onde reú- ne todos os artigos feitos pelo jornal que utilizam bases de dados digitais ou big data em seu processo. No ambiente virtual também estão disponíveis diversos dados “crus” utilizados na produção das reportagens. Esse modelo incentiva o jornalismo colaborativo e ainda dá a possibilidade de profissionais ainda mais especializados analisarem aquelas informações. No Datablog25 do jornal britânico, Paul Bradshaw, novamente, fala so- bre as habilidades necessárias para os jornalistas de dados, e aponta alguns dife-

22 Disponível em: https://www.cjr.org/tow_center_reports the_curious_journalists_gui- de_to_data.php Acesso em 16 de agosto de 2019 23 Idem: https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/1984-6924.2014v- 11n1p291 Acesso em 16 de agosto de 2019 24 Idem: https://www.theguardian.com/news/datablog/2010/oct/01/data-journalism-how- -to-guide 25 Disponível em:: https://www.theguardian.com/news/datablog+media/data-journalism Acesso em 18 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 215 renciais que os pesquisadores de dados precisam ter para conseguirem realizar matérias com a autoridade necessária atualmente. 1. Encontrar dados: “Encontrar dados” pode envolver qualquer coisa desde possuir conhecimento de especialista e contatos para ser capaz de usar as habilidades para produzir reportagens através do computador ou utilizar o computador para ajudar nas habilidades, para alguns, possuir habilidades técni- cas especificas como MySQL ou Python para reunir dados. 2. Análise de dados: Analisar dados significa a necessidade de possuir bom entendimento do jargão e o contexto mais amplo no qual os dados estão inseridos. A familiaridade com a planilha de dados pode ajudar a poupar muito do tempo. 3. Visualização de dados: Visualizar e converter dados tem sido histo- ricamente responsabilidade de designers e programadores, mas com a mento do número de pessoas com experiência editorial tentando executar as duas tarefas, - particularmente por causa da ampliação da consciência do que e pos- sível e particularmente pela diminuição de barreiras na experimentação dessas atividades. 4. Converter dados: Ferramentas tais como ManyEyes para visualização e Yahoo! Pipes para fusão de dados tem sido uteis para obter dos estudantes de Jornalismo rapidamente o entendimento de suas possibilidades. (BRADSAH- AW, 2010, ONLINE, tradução nossa) Meyer (1991)26 também fez uma listagem com as principais atribuições de um jornalista de dados. Essas recomendações servem como orientação para os profissionais que coletam eu usam essas informações. Interessante notar que tais princípios foram escritos no início da década de 1990, mas se mantém atuais até os dias de hoje. 1. Reúna-o. Querendo ou não você nunca tentará imitar cientistas em seus métodos de coleta de dados, você pode lucrar se souber alguns de seus truques. É sempre bom lembrar, como o professor H. Douglas Price disse-me em Harvard na primavera de 1967, que “os dados não vêm da cegonha.” 2. Armazene-o. Jornalistas à antiga armazenam dados em pilhas de papel em suas mesas, em cantos de seus escritórios, mas Computadores são melho- res. 3. Recupere-o. As ferramentas do jornalismo de precisão podem ajudá-lo a recuperar dados que você mesmo recolheu e armazenou, ou ainda dados que alguém armazenou por motivos completamente alheios a seu interesse. 4. Analise-o. Análise jornalística muitas vezes consiste em apenas triagem

26 MEYER, Philip The new precision journalism. Bloomington: Indiana University Press, 1991 (Tradução do autor)

TCCs 2019_2 --- 216 para encontrar e listar os desvios interessantes, mas também pode envolver pesquisas para o nexo de causalidade implícita, para os padrões que sugerem que fenômenos diferentes variam juntos por razões interessantes. 5. Reduza-o. Redução de dados tornou-se tão importante no jornalismo como a coleta de dados. Uma história boa notícia é definida pelo que deixa de fora, bem como o que inclui. 6. Comunique-o. Um relatório não lido ou não entendido é um relatório desperdiçado. (MEYER, 1991, p. 33, tradução nossa)

O CASO PANAMA PAPERS

Em 2014, o repórter Bastian Obermayer,27 do jornal alemão Süddeutsche Zeitung recebeu a seguinte mensagem de uma fonte anônima: «Olá. Meu nome é John Doe. Interessado em dados?». Obermayer então respondeu: “Sim, estamos muito interessados”. Começou aí a investigação da qual estamos tratando. “Mi- nha vida está em perigo. Nenhum encontro, nunca. Eu quero denunciar todo o material e tornar estes crimes públicos.”, (OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, 2017) continuou a fonte antes de começar a transferir cerca de 11.5 milhões de documentos dos registros da firma de advocacia Mossack Fonseca. “Jornalistas investigativos são geneticamente programados para levantar suas orelhas para esse tipo de oferta”, escrevem Frederik Obermaier e Bastian Obermayer, no livro Panama Papers. Considerado como “o maior vazamento da história do jornalismo de dados” (BLAACK, 2016, online)28, o Panama Papers foi responsável pelo vaza- mento de mais de 11,5 milhões de documentos confidenciais de autoria da so- ciedade de advogados panamenha Mossack Fonseca que fornecem informações detalhadas de mais de 214 mil empresas de paraísos fiscais. Um grupo de mais de 400 jornalistas de 109 veículos de 80 países diferentes foi necessário para realizar a investigação. O trabalho levou um ano e é considerado o maior furo jornalístico internacional das últimas décadas.

260 gigabytes representam quase um milhão de e-mails e vários milhões de páginas de documentos secretos. Deveríamos ser capazes de fazer algo com tanta informação. Mas “o maior vazamento de todos os tempos” deve ser uma manchete que captura as pessoas (OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, 2017 P.13)

27 EMAYOBER. B, OBEMAIER. F, The Panama Papers: Breaking the Story of How the Rich and Powerful Hide Their Money, Oneworld Publications, 2017 28 Disponível em: https://policyreview.info/articles/news/what-big-data-leaks-tell-us- -about-future-journalism-and-its-past/413 Acesso em 21 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 217 Um número de 2,6 terabytes de documentos foram vazados. Uma fonte não identifica cedeu as informações ao Süddeutsche Zeitung, jornal de maio circulação na Alemanha, que por sua vez, compartilhou os arquivos com o Con- sórcio Internacional de Jornalistas Investigativos29. A investigação revelou os nomes de 143 políticos, além de familiares e pessoas próximas que contribuíram com as fraudes. Alguns nomes notáveis de políticos envolvidos com o caso são: Petro Poroshenko, presidente da Ucrânia, Sigmundur David Gunnlaugsson, primeiro-ministro da Islândia e Maurício Macri, presidente da Argentina. Outros nomes de pessoas conhecidas também sur- giram nas investigações, como o do argentino Lionel Messi, do músico Sergei Roldugin e até mesmo o ator chinês Jackie Chan. Durante um ano, o ICIJ envol- veu na investigação do caso cerca de 80 países e mais de 100 publicações. No Brasil, participaram da investigação o jornal O Estado de S. Paulo e a emissora RedeTV! e o portal UOL.

Figura 3: Gráfico mostra os maiores paraísos fiscais do mundo Fonte: ICIJ (2016)

Segundo o ICIJ, até março de 2019, os 22 países afetados pelo escân- dalo conseguiram recuperar 1,2 bilhão de dólares. A polícia do Reino Unido conseguiu recuperar 252 milhões de dólares dos sonegadores. O comunicado ainda destaca que o valor na Alemanha foi de 183 milhões, na França 136 mi-

29 Idem: https://www.icij.org/investigations/panama-papers/pages/panama-papers-about- -the-investigation/ Acesso em 10 de outubro de 2019

TCCs 2019_2 --- 218 lhões e na Austrália 92 milhões. “Os ‘Panama Papers’ permitiram aos governos recuperar fundos ocultos e, também, a longo prazo, modificar o comportamen- to e a atitude dos cidadãos”, informa o consórcio. Offshore é, em tradução livre, fora da costa, são entidades abertas fora do país onde sua real sede está. Geralmente funcionam em nações onde as taxas de tributação são menores e as leis mais brandas para crimes econômicos. As- sim surgem os chamados paraísos fiscais.

É claro que existem muitas razões para usar uma empresa offshore e, é claro, possuir uma não é, por si só, uma ofensa criminal. Mas o fato é que as pessoas frequentemente recorrem a uma empresa offshore anônima porque querem esconder algo - do contribuinte, da ex-mulher, do ex-parceiro de negócios ou dos olhares indiscretos do público. (OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, 2017 P.16)

No Panama Papers, a maioria dos documentos são específicos demais para serem lidos através de um software30. Nesse caso, jornalistas de dados estavam acostumados a lidar com “dados estruturados”, que podem ser através de métodos quantitativos e assim gerarem estatísticas. Dessa vez, apenas uma pequena parte dos documentos era de dados estruturados, um ou outro no meio de milhões de e-mails pessoais, documentos digitalizados, etc. Segundo Blaack (2016)31, a única forma de transformá-los em notícia seria através da implementação de um método qualitativo, algo relativamente novo para pro- gramadores e completamente novo para jornalistas. Esse fenômeno só foi possível graças ao uso da big data no jornalismo. O processo seguiu o modus operandi utilizado anteriormente no vazamento do Wikileaks, que se tornou padrão nesse tipo de caso. Os bancos de dados mostram a necessidade dos jornalistas de se juntarem a entidades capazes de extrair, analisar e até mesmo interpretar suas informações. De acordo com a jornalista Mar Cabra32, que trabalha na unidade de pes- quisa de dado do ICIJ e fez parte diretamente do Panama Papers, sendo a prin- cipal representante do consórcio no processo, esta foi a quarta investigação do grupo envolvendo offshores.

30 OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, The Panama Papers: Breaking the Story of How the Rich and Powerful 31 Disponível em: https://policyreview.info/articles/news/what-big-data-leaks-tell-us- -about-future-journalism-and-its-past/413 Acesso em 21 de agosto de 2019 32 Idem: https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/00-17167-panama-papers- -mar-cabra-editora-de-dados-do-icij-fala-do-desafio-de-cshecar-11-milhoes Acesso em 5 de julho de 2019

TCCs 2019_2 --- 219 Nós usamos dois meses entendendo os dados e seus diferentes formatos para entender como poderíamos processá-lo. Nós usamos plataformas que já usamos em investigações anteriores, mas melhoramos para trabalhar com essa quantidade de dados” (CABRA, 2016, ONLINE)

Além das ferramentas de banco de dados, foi necessário um proce- dimento óptico para indexar os documentos, já que cerca de um terço do material coletado eram imagens em pdfs ou tifs. Para visualizar as informações foi utilizado o software Neo4j. Essa foi a principal ferramenta que os jornalistas tiveram para minerar mais de 2,6 terabytes. Ainda segundo Cabra33, o trabalho precisou ser feito de forma manual. Por isso foi importante contar com jornalistas que entendessem de criptografia e programação. Por outro lado, nem todos os profissionais envolvidos com o projeto são especialistas nessas áreas, por tanto os programas usados para as análises precisam ser acessíveis. Todas essas adaptações precisaram ser feitas pelas equipes do ICIJ.

Mossak Fonseca A Mossak Fonseca é uma sociedade de advogados fundada em 1986 no Panamá pelo alemão Jürgen Mossack e pelo panamenho Ramón Fonseca. O grupo trabalha com offshores e oferece serviços de gestão de capital, atuando em nome de mais de 300.000 empresas, incluindo algumas das maiores institui- ções financeiras do mundo como o Deutsche Bank, HSBC, Société Générale, Credit Suisse, UBS e o Commerzbank. Em 2013, empregou mais de 600 pes- soas, e seu faturamento ultrapassou US$ 42 milhões. A sociedade geriu cerca de 80.000 empresas até 2009. Os números dão conta de que foram movimentados secretamente mais de um bilhão de dólares entre empresas bancárias e offshores. Mais de quinhentos bancos re- gistaram cerca de 15600 empresas de fachada com a Mossack Fonseca. Entre eles, só o HSBC e os seus afiliados criaram mais de 2300 no total. Em conjunto, o Dexia (Luxemburgo), J. Safra Sarasin (Luxemburgo), Credit Suisse (Ilhas do Canal) e a UBS (Suíça) requisitaram mais de 500 empresas offshore para os seus clientes.

33 Disponível em: https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/00-17167-panama- -papers-mar-cabra-editora-de-dados-do-icij-fala-do-desafio-de-cshecar-11-milhoes Acesso em 5 de julho de 2019em

TCCs 2019_2 --- 220 Figura 4: Gráfico sobre o aumento das offshores da Mossack Fonseca Fonte: ICIJ (2016)

Os fundadores da empresa ficarem presos de fevereiro a abril de 2017 por lavagem de dinheiro e irregularidades em conexão com a Operação Lava Jato, no Brasil. Na época, policiais e investigadores invadiram os escritórios da Mossack Fonseca no Panamá e em El Salvador. O escritório sede da companhia fechou em março de 201834, quase dois anos depois dos escândalos: “A deterioração da reputação, a campanha de mídia, o cerco financeiro e as ações irregulares de algumas autoridades panamenhas causaram danos irreparáveis, cuja consequência obrigatória é a cessação total das operações ao público”, diz o comunicado divulgado pela sociedade na época do fechamento. Nos documentos divulgados, 29 milionários da lista das 500 pessoas mais ricas do mundo segundo a revista Forbes, são citados. Incluindo políticos como os presidentes Mauricio Macri da Argentina, Khalifa bin Zayed Al Nahyan dos Emirados Árabes Unidos, Petro Poroshenko da Ucrânia, o Rei Salman da Arábia Saudita e o Primeiro-ministro islandês Sigmundur Davíð Gunnlaugsson. o antigo primeiro-ministro da Geórgia (Bidzina Ivanishvili), do Iraque (Ayad Allawi), da Jordânia (Ali Abu al-Ragheb), do Catar (Hamad bin Jassim bin Jaber Al Thani) e da Ucrânia (Pavlo Lazarenko), assim como o presidente do Sudão Ahmed al-Mirghani e o Emir do Catar Hamad bin Khalifa Al Thani.

34 Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/epicentro-do-panama-papers-escri- torio-mossack-fonseca-fecha/ Acesso em 29 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 221 Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ)

O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativo35 é um grupo formado por 190 jornalistas de mais de 65 países. O objetivo do consórcio é revelar falhar nas administrações públicas, abusos de poder, delitos internacio- nais e casos de corrupção. O ICIJ36 funciona como uma espécie de clube de jornalistas investigativos que você só pode participar por meio de uma indicação ou de um convite. O consórcio é uma iniciativa do The Center Of Public Integrity, uma ONG ame- ricana que colabora para o jornalismo investigativo. Todo esse movimento foi fundamental na organização das ações do Panama Papers. As investigações feitas pelo grupo são publicadas em jornais do mundo inteiro. No Brasil, alguns membro e ex-membros são os jornalistas Fernando Rodrigues, Angelina Nunes, Marcelo Soares, Claudio Tognolli e outros. O ICIJ já divulgou casos em veículos nacionais como O Globo, Folha de S.Paulo, UOL, Poder360, Revista Piauí e a Agência Pública. A investigação mais relevante do Brasil envolvendo o consórcio foi quando o jornalista Fernando Rodrigues obteve uma lista de clientes brasileiros. O levantamento revelou depósitos milionários que eram realizados na suíça usando empresas offshores. Os maiores representantes do ICIJ no Panama Papers foram a jornalista espanhola Mar Cabra, chefe de pesquisa do consórcio e Roberto Durval, pro- gramador costa-riquenho. Os dois foram enviados até Munique, na Alemanha, para cuidar pessoalmente do caso ao lado dos repórteres do Süddeutsche Zei- tung. A função da dupla foi montar um plano de como lidar com aqueles dados, já que eram especialistas nesse tema. Para conseguir o apoio do ICIJ, os repórteres do Süddeutsche Zeitung explicam que a quantidade de dados foi fundamental, “Quanto maior o va- zamento, maior a probabilidade de jornalistas individuais encontrarem boas histórias envolvendo seus próprios países” ( OBEMAYER. B, OBEMAIER, 2017. P.56). O Contato inicial foi feito com o diretor do consórcio, Gerard Ryle, que rapidamente se interessou em ajudar na operação.

35 Disponível em. http://icij.org/about/ 29 de agosto de 2019 36 OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, The Panama Papers: Breaking the Story of How the Rich and Powerful Hide Their Money, Oneworld Publications, 2017

TCCs 2019_2 --- 222 CROWDSOURCING E A COLABORAÇÃO NO JORNALISMO

A ampla investigação realizada no Caso Panama Papers só foi viável graças a um trabalho de colaboração de diversos meios de comunicação e profissionais de várias áreas diferentes. Esse modelo de trabalho é conhecido como crowdsourcing37. De acordo com Trassel (2009)38, esse processo já foi visto anteriormente no jornalismo e originalmente envolvia a participação de leitores. Com advento da internet, o crowdsourcing se tornou muito mais co- mum. Segundo o autor, as facilidades no compartilhamento e organização de arquivos ampliou o alcance desse processo “a participação da audiência e um fator constituinte do jornalismo em base dados”. Esse modelo ainda envolve a participação de outros profissionais, que colaboram com a investigação jorna- lística. Apesar disso, contar com a participação de internautas no processo de apuração nem sempre pode gerar um resultado positivo. Johan Ingles-le Nobel, ex-editor da revista Jane’s Intelligence Review, especializada em geopolítica e segurança militar, utilizou os conceitos para tentar criar uma rede de colabora- ção entre jornalistas e internautas. Nobel publicou um artigo em 1999 no slashdot39, popular site de no- tícias colaborativo abastecido pelos próprios leitores, e apesar da tentativa, o próprio jornalista considerou que o modelo não foi utilizado da maneira certa, já que os temas tratados no artigo eram muito técnicos e as informações abas- tecidas pelos internautas acabaram não sendo confiáveis. O jornalista Robert Cringley40 é um dos críticos do formato, ele con- siderou que o uso do Slashdot não pode substituir o trabalho da apuração jornalística “a única maneira de escrever notícias é escrever notícias. Você faz o melhor que pode e aquenta as consequências, porque censura dos ‘nerderati ’ ainda é censura. É por isso que jornais fazem erratas” (CRINGLEY, 1999, online)

37 Crowdsourcing é um modelo de criação e/ou produção, que conta com a mão-de-obra e conhecimento coletivos, para desenvolver soluções e criar produtos 38 TRÄSEL, Marcelo. A Apuração Distribuída como Técnica de Webjornalismo. São Paulo, 2009. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/20558167/A-apuracao-distribuida-como-tecni- ca-de-webjornalismo-participativo 39 Disponível em: https://www.forbes.com/asap/2000/0221/043_5.html Acesso em 11 de agosto de 2019 40 Idem: http://www.pbs.org/cringely/pulpit/1999/pulpit_19991007_000626.html. Acesso em 02 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 223 Mas existem exemplos bem-sucedidos desse tipo de colaboração. A ProPublica é um dos mais notáveis. Desde 2007 a agência que funciona sem fins lucrativos liberou a publicação de seus textos e disponibilizou diversos bancos de dados para a realização de reportagens. No artigo Why We’re Giving Away Our Reporting Stephen Engelberg e Paul Steiger, respectivamente o diretor e o fundador da ProPublica, explicam o modelo.

Nos últimos dois anos, os repórteres do ProPublica fizeram um trabalho notável ao examinar como os estados supervisionam a má conduta de profissionais médicos, principalmente enfermeiros. Hoje, estamos fazendo algo relativamente incomum para uma organização de notícias no meio de uma reportagem: estamos publicando ideias e técnicas jornalísticas que nos permitiram fazer essa reportagem. (ENGELBERG; STEIGER, ONLINE, 2010, tradução nossa)

As principais matérias desenvolvidas pela ProPublica envolvem veículos locais, que juntos, em uma rede, conseguem produzir conteúdo de relevância nacional. Joseph Lichterman, atual editor do grupo, explica o conceito no artigo ProPublica Uses a Reporting Recipe to Cook up Collaboration41, publicado pela NiemanLab “A ProPublica está comprometida em tornar públicos os dados que usa e lançou um programa de armazenamento de dados para tentar monetizar alguns dos conjuntos de dados que obtém. Mas não é a primeira vez que o ProPublica cria uma receita de reportagem ou tenta conectar outros jornalistas com fontes” (LICHTERMAN, 2014, ONLINE). O exemplo mais relevante de reportagem desenvolvida com o mode- lo foi a série Dollars for Docs42, que contou com a colaboração de veículos como Chicago Tribune, Boston Globe, the Nightly Business Report on PBS, NPR News e Consumer Reports. A investigação revelou um esquema onde médicos recebiam de laboratórios farmacêuticos para receitar determinados medicamentos para pacientes. Ainda desta monografia vamos ver outro exem- plo desenvolvido pela mesma agência.

41 Disponível em: https://www.niemanlab.org/2014/08/how-propublica-uses-a-reporting- -recipe-to-cook-up-collaboration/ Acesso em: 3 de agosto de 2019 42 Idem: https://projects.propublica.org/docdollars/ Acesso em: 3 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 224 Figura 5: Reportagem Dolar For Docs Fonte: ProPublica (2013)

No caso do Panama Papers, como foi desenvolvido pelo ICIJ, todos os participantes do projeto precisaram seguir regras rígidas. Stock (2017)43 explica em que essas regras são necessárias que esse tipo de investigação possa ser realizado. Segundo o autor, um controle ainda mais rigoroso na apuração é pre- ciso. Ele afirma que os exemplos mais bem-sucedidos foram os que adotaram essas medidas de colaboração logo no começo de seu desenvolvimento. CONSEQUÊNCIAS DO PANAMA PAPERS De acordo com ICIJ44, logo após as primeiras reportagens publicadas, o primeiro ministro da Islândia, Sigmundur David Gunnlaugsson, renunciou ao cargo. As investigações apontaram que o político omitiu a participação em em- presas offshore de seu patrimônio quando foi eleito deputado pela primeira vez. Sigmundur David Gunnlaugsson negou as acusações na época.

43 Disponível em: http://newslab.org/journalism-collaboration-how-to-work-well-with- -partners/ Acesso em 3 de agosto de 2019 44 Idem: https://www.icij.org/investigations/panama-papers/panama-papers-helps-reco- ver-more-than-1-2-billion-around-the-world/ Acesso em 24 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 225 Figura 6: Capa The New York Times sobre a renúncia do primeiro ministro Fonte: The New York Times (2016)

O ex-primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, foi condenado a 10 anos de prisão. Ele chegou a ser chefe de governo no Paquistão três vezes e é suspeito de comprar apartamentos de luxo em Londres através de uma socie- dade offshore. O ICIJ ainda informa que além desses casos, após o Panama Papers, um ministro da Espanha também renunciou ao cargo. A Nova Zelândia chegou a mudar sua legislação para combater evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. O Reino Unido recuperou milhões de dólares desviados através do mecanismo e a Argélia abriu uma investigação sobre um famoso empresário do país. “Um dos benefícios duradouros dos Panama Papers é que agora temos as leis, e temos o compromisso do governo e o compromisso de nos apoiar.” (FITZGIBBON, 2018, online, tradução nossa), chegou a afirmar na ocasião Chris Jordan, chefe do Gabinete Fiscal Australiano45. Nos Estados Unidos, quatro pessoas estão sendo acusadas de diversos crimes como lavagem de dinheiro, fraude eletrônica e evasão fiscal. Além, como já foi citado, do fechamento dos escritórios da Mossack Fonsseca e a prisão temporária de seus fundadores. O presidente da Argentina, Mauricio Macri, teve revelada a ligação com a uma empresa offshore com sede nas Bahamas. O político, no entanto, nunca declarou o fato ou qualquer rendimento referente a essa empresa quando se tornou presidente do país. Um dos pontos altos de sua campanha eleitoral era o combate à corrupção.

45 Disponível em: https://www.icij.org/investigations/paradise-papers/fairy-tales-spaghet- ti-patience-authorities-responding-paradise-papers/ Acesso em 20 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 226 Figura 7: Notícia do jornal Clarín sobre o presidente Macri Fonte: Clarín 2016

O pai do primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, Ian Came- ron, era responsável por um fundo de investimento supostamente sediado nas Bahamas, que nunca pagou impostos em território britânico. O fundo gerava milhões de dólares em nome de outros clientes. Foi descoberto que tudo se passava no Panamá. Ian faleceu em 2010. Em 2019, muitos processos ainda estão em andamento e a real dimensão das consequências dessa extensa investigação só poderá ser percebida daqui a alguns anos. Atualmente atualizações sobre os vazamentos continuam saindo.

Panama Papers no brasil

Com as altas taxas de tributação, o Brasil sempre foi um grande alvo dos paraísos fiscais. Os principais destinos dos centros financeiros pouco regula- mentados dos brasileiros são locais conhecidos por esse tipo de prática como a Suíça e alguns lugares do Caribe, como o Panamá. Segundo dados do ICIJ, de 2004 a 2013 o Brasil teve uma média de U$ 22 bilhões por ano em saídas ilícitas de financiamento via offshores. Esse dinheiro deixa de ser utilizado dentro do país, de um modo geral, isso prejudica o crescimento de uma nação emergente. Com esses números, é fácil imaginar que quando os documentos do Panama Papers foram divulgados, diversos brasileiros estavam entre os nomes que apareceram. Os citados foram listados como tendo contas offshore e en- volvimento com negócios fraudulentos e lavagem de dinheiro. Os nomes mais notáveis entre os citados estão o do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, preso no final de 2016 após ter

TCCs 2019_2 --- 227 sido acusado de ter mais de U$ 40 milhões vindos de suborno em contas secretas, do senador Edison Lobão, do ex-ministro da fazenda Delfim Neto e do ex-deputado federal João Lyra. Além desses, outros 23 brasileiros foram citados nos vazamentos O procurador-geral do Panamá estipulou na época dos vazamentos que o dinheiro da Mossack Fonseca com o Brasil vem de subornos, circulados por certas empresas e entidades.

Figura 8: Notícia Estadão sobre Panama Papers Fonte: Estadão (2016)

Outro político condenado pelos documentos do Panama foi o ex-go- vernador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral. Foi acusado de repassar taxas de suborno em contratos de construção no estado com a empreiteira Odebrecht. Esses fundos eram repassados para os irmãos Renato e Marcelo Chebar, que colocavam o dinheiro em bancos offshore criados com empresas de fachada. Todas essas empresas estavam operando pelo escritório da Mossack Fonseca. O empresário Eike Batista, que chegou a ser o homem mais rico do Brasil, controlava 22 offshores estruturadas pela Mossack Fonseca. A empresas, que eram declaradas legalmente à Receita Federal, foram usadas para realizar investimentos no exterior e para a compra de itens de luxo. Eike foi condenado em julho de 2018 por corrupção e lavagem de dinheiro. Na época das investigações, a Receita Federal informou que divulgaria os dados após as investigações: “Sobre os documentos que integram o deno- minado Panama Papers, a Receita Federal informa que tais informações, após serem validadas juridicamente para sua utilização pelo Fisco, serão cotejadas com as informações prestadas pelos respectivos contribuintes e, nos casos em que não declaradas, serão objeto de autuação, com multas que podem chegar a 150% do valor do ativo omitido (patrimônio da offshore)”, informou o órgão no período. Mais de três anos se passaram e, de acordo com a receita, a enti- dade ainda não conseguiu concluir o levantamento.

TCCs 2019_2 --- 228 O jornalista Fernando Rodrigues foi um dos que liderou a cobertura do portal UOl no caso Panama Papers. Além do site, o jornal O Estado de S. Paulo e a emissora RedeTV! estiveram envolvidos na cobertura brasileira. Nes- se caso, os profissionais procuraram pelo nome pessoas consideradas “PEPs”, que significa “pessoas politicamente expostas, em inglês”. Os repórteres utilizaram a base de dados ICIJ para procurar conferên- cias entre os nomes. 1.061 deputados estaduais eleitos em 2014, 424 vereado- res e 551 pessoas que exerceram o cargo de deputado federal desde fevereiro de 2015 são alguns dos que foram checados na ferramenta. Mateus Netzel, um dos jornalistas que trabalhou com Fernando Ro- drigues na cobertura do caso, relatou em entrevista como foi o processo de análise e divulgação dos dados, Segundo Netzel (2019)46, a maior dificuldade estava no volume de informações e na quantidade reduzida de pessoas para lidar com tantos dados.

Foi uma dificuldade muito grande desde o começo, era um volume de dados enorme e nós éramos quatro pessoas. Quatro pessoas que não estavam 100% do tempo dedicados a isso. A gente tinha que trabalhar normalmente e fazer isso no tempo que restava, além de ser um assunto muito difícil de lidar. (NETZEL, apêndice A, 2019).

Além deles, pessoas ligadas a presidência da República como ministros e ex-ministros além da própria presidente na época e juízes do Supremo Tri- bunal Federal (STF), tiveram seus nomes conferidos. Funcionários públicos e senadores também passaram pela varredura. Além de 30 mil servidores mais bem remunerados do Executivo; 1.404 juízes federais, 354 desembargadores e 8.970 funcionários da Câmara e do Senado. Netzel (2019) ainda explicou que a repercussão do Panama Papers aqui no Brasil foi limitada. O jornalista acredita que a razão disso ter acontecido é por conta da complexidade do assunto e do pouco interesse público que ele gera já que a princípio, manter dinheiro no exterior não é crime. E na época em que a maioria das informações foram divulgadas, a operação Lava Jato47 estava em seu auge.

46 Dispinível no apêndie A desta monografia. 47 Segundo o MPF: A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais.

TCCs 2019_2 --- 229 A repercussão não foi tão grande no brasil quanto em outros lugares porque é um assunto muito complexo e tem pouco interesse público nisso. Não é como corrupção e a rigor, não é crime. Embora seja moralmente questioná- vel, guardar dinheiro no exterior não é crime. Isso não tem o mesmo apelo que corrupção, acho que por isso não tanta repercussão por aqui, mas já esperávamos isso. (NETZEL, apêndice A, 2019).

Netzel ainda minimizou as consequências do caso aqui no Brasil. Se- gundo ele, apesar do grande volume de dados, em comparação com outros paí- ses, poucas mudanças aconteceram por aqui após a divulgação das informações. A atenção das autoridades na época estava voltada para casos de corrupção que envolviam diretamente políticos brasileiros.

As consequências diretas foram poucas, o que aconteceu é que a polícia federal criou novas regras para fiscalizar paraísos fiscais e esse tipo de coisa. E muita coisa que a gente divulgou acabou sendo investigado na Operação Lava Jato. Agora na Islândia, por exemplo, o país teve que aprovar uma nova legislação, teve uma grande mudança no parlamento local (NETZEL, apêndice A, 2019).

TECNOLOGIA NO PANAMA PAPERS

Como já foi mencionado, cerca de 2,6 terabytes de dados com mais de 11,5 milhões de arquivos sobre operações internas da Mossak Fonseca foram divulgados48. A investigação divulgou cerca de 40 anos de registros sobre mais de 210 mil empresas em 21 jurisdições offshore, de acordo com o ICIJ. “Os dados mostram que a Mossack Fonseca trabalhou com mais de 14.000 bancos, escritórios de advocacia, incorporadores de empresas e outros intermediários para criar empresas, fundações e fundos para os clientes”, in- forma o site do ICIJ. Os gráficos com as principais informações estão presen- tes no anexo dessa monografia. As tabelas foram organizadas pelos jornalistas Rigoberto Carvajal, Mar Cabra, Álvaro Ortiz e Fernando Blat, já citados nesse projeto. No Brasil, de acordo com informações divulgadas pela RedeTV!, um dos veículos responsáveis pela curadoria das informações no país, foram reve- ladas 1.700 offshores. Após o vazamento, “John Doe”, que nunca teve sua identidade real revelada, divulgou uma declaração dizendo49: “Decidi expor a Mossack Fonseca 48 Disponível em; https://www.icij.org/investigations/panama-papers/pages/panama-pa- pers-about-the-investigation/ Acesso em 12 de agosto de 2019 49 OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, The Panama Papers: Breaking the Story of How the Rich

TCCs 2019_2 --- 230 porque achei que seus fundadores, funcionários e clientes deveriam responder por seus papéis nesses crimes, e apenas alguns deles vieram à tona até agora. Levará anos, possivelmente décadas, para que toda a extensão dos atos sórdi- dos da empresa se torne conhecida” (OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, 2017 P.16). A tecnologia foi um fato crucial para que o Panama Papers acontecesse. Como já analisamos, o jornalismo já utilizava bases de dados digitais há bastante tempo, mas somente com a popularização dos computadores e consequente- mente o aumento dos softwares para análise e armazenamento de dados, isso ganhou uma escala relevante. Mas como o jornalismo pode se aliar a cibercultura sem se tornar irrele- vante? Nos últimos anos diversos grupos de mídia apostam em uma convergên- cia entre os meios digitais, apostando em “um só jornalismo”. A web continua- rá provocando mudanças nas redações. Ainda de acordo Kovach e Rosenstiel (2005), os autores reforçam que independente das alterações sofridas pela profissão, é necessário “dar aos cidadãos a informação de que necessitam para serem livres e autogovernarem-se”. Sandano (2015) também avalia a aplicação da tecnologia no jornalismo. O autor ressalta que existem visões opostas a respeito disto. Um tipo de con- traponto de ideias que coloca em conflito entre interpretações que enxergam essas mudanças como algo positivo e outras que consideram algo negativo. Isso ultrapassa a barreira das redações e está incluso dentro de um espectro político e social. O jornalista também exemplifica essa estrutura citando alguns exemplos, como o Wikileaks. De acordo com Castells (2003)50, a digitalização das informações mu- dou o comportamento do usuário na internet, consequentemente, o jorna- lismo utiliza dessa digitalização como fonte para suas matérias, como já foi analisado. Isso mudou a forma como o trabalho é executado, de certa forma, o deixando mais fácil, por outro lado, essa facilidade acaba deixando algumas lacunas abertas.

Uma vez que dados são coletados em forma digital, todos os itens de in- formação contidos no banco de dados podem ser agregados, desagregados, combinados e identificados de acordo com o objetivo e o poder legal. Por vezes, trata-se simplesmente de fazer perfis agregados, como em pesquisa de mercado, seja para o comércio ou para a política. (CASTELLS, 2003, p.176)

and Powerful Hide Their Money, Oneworld Publications, 2017 50 CASTELLS, Manuel. A Galaxia da Internet. Editorar Zahar; 1ª Edição, 2003

TCCs 2019_2 --- 231 Por outro lado, tal mecanismo pode representar um risco a privacidade do internauta, por isso, a importância de maior que garantam a segurança do usuário, como a criptografia. Ainda sim, as informações digitalizadas estão sujei- tas a ações de hackers e falhas do próprio sistema.

Criptografia

A criptografia se tornou um elemento do cotidiano das pessoas e acendeu a discussão em torno da liberdade. Será que a nossa privacidade é mais importante que a segurança? O impacto disso na sociedade vem gerando um debate sem precedentes. Pierry Levy defende que a importância da criptografia para a segurança de dados, segundo o autor, essa tecnologia de segurança é a camada mais im- portância de proteção da privacidade do usuário. Já Simon Singh em O Livro dos Códigos51 alerta para os riscos de deixar informações confidenciais na web, visto que esse tipo de material está cada vez mais valioso.

À medida que entramos no século XXI, os defensores das liberdades civis começam a pressionar pelo uso generalizado da criptografia de modo a proteger a privacidade dos indivíduos. Ao lado deles fica a comunidade dos negócios, que precisa de uma criptografia forte para proteger suas transações no mundo em rápido crescimento do comércio via Internet. Ao mesmo tempo, as forças da lei pedem um uso mais restrito da criptografia. (SINGER, 2006, p.2)

A legislação é outro elemento que ressalta essa discussão. Nos Estados Unidos, por exemplo, as leis são extremamente rígidas em relação a esse tipo de tecnologia. A Agência de Segurança Nacional (NSA) exige que as empresas de tecnologia mostrem para o governo seus algoritmos de criptografia antes utilizá-los. No caso Panama Papers, o uso da criptografia e o anonimato foram fundamentais para o desenvolvimento do projeto. Isso porque até as fontes que vazaram a documentação precisava garantir sua segurança Para garantir a segurança dos documentos, voltamos coma explicação de Mar Cabra para a revista Forbes. A chefe de dados e pesquisa do ICIJ, diz que a equipe dividiu os arquivos em discos rígidos e utilizaram o software Ve- raCrypt para criptografar as informações. O programa lançado inicialmente em 2013 é uma versão atualizada do TrueCrypt, código que foi descontinuado. O programa ainda garante a segurança dos jornalistas e de todas as

51 SINGH, Simon. O livro dos códigos: a ciência do sigilo – do antigo Egito à criptografia quântica. 6.ed, 2007

TCCs 2019_2 --- 232 pessoas envolvidas, já que o sistema pode manter dois programas operacionais funcionando ao mesmo tempo. Ou seja, se uma pessoa for obrigada a revelar informações, será revelada uma camada superficial, com informações desim- portantes. No entanto, ao digitar uma senha escondida, os documentos são revelados como explicam os jornalistas do Süddeutsche Zeitung52

São usados para​​ preparar um disco rígido externo para que ele aparece à primeira vista apenas para ser criptografado. No entanto, neste disco rígido, ao lado da unidade criptografada visível, há é um segundo criptografado e invisível. O FBI, a alfândega ou qualquer outra pessoa obrigará Roberto ou Mar a no disco rígido e descriptografar a unidade, eles vão digitar a senha da unidade visível. Isso será iniciado, e nele teremos salvo algumas pastas contendo alguns arquivos que parecem secretos e importantes, mas na verdade não são. A presença de uma segunda unidade não é visível nem verificável. (OBERMAIER; OBERMAYER, 2017, p.35)

Mar Cabra ainda disse para a Forbes que toda a equipe utilizou a nu- vem da Amazon, que também é criptografada, para armazenar as informações. Todo o software usado foi de código aberto, ajustado para atender às necessi- dades dos repórteres. A plataforma de busca permitia que os jornalistas conse- guissem fazer consultas com nomes de pessoas e lugares. Baseado no Apache Solr, a ferramenta conseguia localizar um determinado dado, entre os milhares, com algumas palavras chaves. A interface foi construída usando o Blacklight, também em código aberto. Cabra explicou para a revista a importância dos programas que, en- quanto precisam ser seguros, também precisam ser fáceis de usar, já que a equipe de jornalistas que trabalharam no caso é enorme e a maioria não era especialista em programação ou em dados. Uma vez construídos os programas, mais de 400 repórteres, que se en- contrariam pessoalmente em eventos organizados pelo ICIJ ao longo de 2015 e 2016, precisavam apenas do link e de uma senha gerada aleatoriamente para começar a visualizar e buscar as informações. Os jornalistas poderiam usar a visualização integrada de dados, usan- do uma mistura de tecnologia do banco de dados de gráficos Neo4j com Linkurious para facilitar o trabalho de fazer conexões entre arquivos. O Google Authenticator foi outra plataforma usada para garantir a segurança das informações com a verificação de dois fatores, fornecendo um código único adicional para ser inserido após a senha ser fornecida. Isso era necessário para acessar o ambiente virtual onde a equipe trabalhou. A rede foi

52 OBEMAYER. B, OBEMAIER. F, The Panama Papers: Breaking the Story of How the Rich and Powerful Hide Their Money, Oneworld Publications, 2017

TCCs 2019_2 --- 233 criada no Oxwall53, mais uma ferramenta de código aberto. Esses programas tiveram as suas próprias modificações feitas pelo ICIJ. Para auxiliar na pesquisa, alguns repórteres ainda usaram o Nuix, uma ferramenta proprietária frequentemente usada por órgãos de segurança públi- ca para descobrir evidências em bancos de dados. O programa já foi utilizado por organizações como o Serviço Secreto dos EUA e pela União Européia. Apache Solr é uma plataforma de pesquisa corporativa de código aber- to, escrita em Java, do projeto Apache Lucene. Seus principais recursos incluem pesquisa de texto completo, destaque de ocorrências, pesquisa facetada, clus- tering dinâmico e análise de documentos.

Como os vazamentos foram possíveis?

Já vimos como esses dados chegaram até o ICIJ através de uma fonte anônima e como o consorcio fez para distribuir essas informações pelos jor- nais do mundo inteiro. Mas como essa fonte conseguiu ter acesso a tudo isso? Bem, de acordo com uma reportagem especial publicada pela revista americana Forbes na época dos vazamentos, um hacker conseguiu acessar os arquivos da Mossack Fonseca, devido a falhas no sistema de segurança vir- tual da empresa. Segundo a reportagem a principal falha estava na falta de crip- tografia do sistema. Os e-mails internos da empresa não eram criptografados, como foi revelado pelo especialista em segurança e privacidade Cristopher Soghoian. A companhia também utilizada uma versão antiga do Wordpress, que ficou marcada por conter falhas de vulnerabilidade. Mas a parte mais grave, ainda segundo a Forbes, era o portal que os consumidores acessavam dados sigilosos. O site funcionava em uma versão do Drupal 7.23, lançado três anos antes do Panama Papers e na época já relatava pelo menos 25 casos de falhas de privacidade de acordo com o CVE Details. Mounir Idrassi, o principal desenvolvedor do VeraCrypt, disse para a revista Forbes54 na época dos vazamentos que seu software corrigiu muitas falhas descobertas no TrueCrypt e usou algoritmos mais fortes. Idrassi afirmou que como a senha usada para bloquear e desbloquear os dados é forte “é vir- tualmente impossível decifrar os volumes da VeraCrypt”, completou. “É um momento de orgulho saber que VeraCrypt foi útil para reve- 53 De acordo com o site do programa: Oxwall é uma plataforma de mercado social de código aberto compatível com dispositivos móveis que pode ser adaptada às suas necessida- des. Ajudamos você a iniciar seu negócio no mercado por uma fração de tempo e custo. 54 Disponivel em: https://www.forbes.com/sites/thomasbrewster/2016/04/05/panama- -papers-amazon-encryptioepic-leak/ Acesso em 20 de agosto de 2019

TCCs 2019_2 --- 234 lações tão importantes, especialmente no clima político atual, onde o uso de criptografia é difamado em quase todos os meios de comunicação”, acrescen- tou Idrassi em entrevista para Brewster (2016) Mar Cabra ainda afirmou que o grupo teve apenas um problema com o VeraCrypt. Segundo a jornalista, uma unidade foi corrompida enquanto os dados eram extraídos e a equipe precisou reiniciar o processo. Isso pode ter deixado as informações vulneráveis, mas não há indícios de que os arquivos tenham fugido das mãos dos jornalistas.

PANAMA PAPERS TERIA ACONTECIDO ANTES?

Como citamos anteriormente, o Panama Papers foi um marco na his- tória do jornalismo de dados e do próprio jornalismo investigativo. Toda essa operação, contudo, foi antecedida por movimentos que de certa forma prepa- raram o terreno para o maior vazamento da história. O que nos leva a pensar que sem a tecnologia atual, um vazamento do tamanho do Panama Papers seria impossível. Vamos começar recapitulando a forma como a tecnologia foi utilizada nesse caso. Iniciando pela fonte, que enviou anonimamente os dados para os jornalistas. Temos dezenas de outros casos de fontes anônimas no jornalismo, a mais famosa delas no Watergate, cujo nome inspirou o Cablegate, que já citamos anteriormente. Naquela ocasião, o repórter do Washington Post se encontrou com sua fonte pessoalmente. No caso que estamos estudando, tudo ocorreu de maneira digital. Em entrevista para o Jornalismo nas Américas, Mar Cabra, uma das líderes da investigação no ICIJ, explicou como o grupo se preparou após rece- berem os documentos. A equipe utilizou como base principalmente procedi- mentos adotados em outros vazamentos, tanto do ICIJ, que já tinha experiência na área, como em outros casos famosos, como o Wikileaks.

Quando recebi os documentos, a primeira reação foi ‘meu Deus, como vamos lidar com isso?’. Foi um desafio interessante, mas havíamos aprendido nas investigações anteriores feitas a partir de vazamentos que precisávamos investir tempo analisando os dados antes de começar qualquer reportagem. Nos Panama Papers, aplicamos várias lições aprendidas nos projetos anteriores, o que nos ajudou a não cometer os mesmos erros”(CABRA, 2016, ONLINE)

O “John Doe” era uma fonte ao qual nem os jornalistas sabiam a ori- gem. Também já vimos isso no jornalismo anteriormente, um processo seme- lhante poderia ser feito por meio de cartas, mesmo tornando o movimento

TCCs 2019_2 --- 235 mais lento, seria uma troca de mensagens viável. No e-mail, tudo ocorre de maneira quase instantânea. Por tanto a maior diferença entre o que foi feito no Panama Papers e o que era feito anteriormente está no volume de dados e nos programas usados para filtrar essas informações. Para início, será que essas informações teriam vazados em uma era pré-internet? Da forma como ocorreu, não. Considerando que as empresas que de tecnologia da informação sempre trabalham, ou deveriam trabalhar, para de- senvolver sistemas de criptografia mais robustos e garantir a segurança de seus clientes, a suposta falha ocorrida na Mossack Fonseca mostra que o ambiente virtual ainda está longe de estar completamente seguro. Novamente em O Livro Dos Códigos, Singh explica que sempre em que um sistema de segurança é criado, vai existir alguém tentado encontrar falhar. Nessa lógica, apesar de cada vez mais a discussão em cima de privacidade e segurança estar aumentando, 100% nunca é certeza.

Os codificadores têm buscado sempre criar códigos cada vez mais fortes, para defender as comunicações, enquanto os decifradores inventam sempre métodos mais poderosos para atacá-los. Em seus esforços para preservar ou destruir o sigilo, ambos os lados se apoiam numa grande variedade de discipli- nas e tecnologias, da matemática à linguística, da teoria da informação à teoria quântica. E, em troca, os criadores e os decifradores de códigos enriqueceram estas áreas, acelerando com seu trabalho o desenvolvimento tecnológico, principalmente no caso do computador moderno (SING, 1999, p.7)

Outro ponto crucial está na distribuição dessas informações, ICIJ con- tou com a colaboração de dezenas de veículos de várias partes do mundo e entregou partes do material que foi analisado por cada um desses. Sem o uso da tecnologia, tal grau de colaboração seria praticamente inviável e uma equipe local não daria conta de lidar com uma quantidade de dados tão grande, ou seja, sem a internet, o Panama Papers não teria a dimensão que conseguiu. Neste caso, a própria fonte sugeria a necessidade de colaboração com outros veículos, em uma das mensagens trocadas com Frederik e Bastian. Ele ainda diz ter noção do impacto que as reportagens teriam após sua divulgação. Isso mostra a interferência do responsável pelo vazamento até mesmo no pla- nejamento da divulgação.

Quero que você̂ faça reportagens sobre o material e torne esses crimes públicos. Essa História pode se comparar com os documentos de Snowden, mas você̂ está publicando em alemão. Você̂ precisa se associar ao New York Times ou a um jornal inglês do mesmo calibre. (OBERMAIER; OBERMAYER, 2017, p.14)

TCCs 2019_2 --- 236 “John Doe” ainda explica sobre a necessidade de se ter um parceiro publicando o conteúdo na língua inglesa, para que o produto alcançasse o maior número de pessoas possível. Frederik e Bastian tinham experiência com cober- turas menores, onde, inclusive já haviam trabalhado juntos e ainda conheciam o modus operandi de outros vazamentos, como o tão citado Wikileaks. Neste caso, “John Doe” orientou os jornalistas sobre como proceder e indicou in- clusive os primeiros contatos que a dupla de investigadores deveria fazer. No Cablegate, Snowden chegou a sugerir a colaboração entre Glenn Greenwald e Laura Poitras.

Os Documentos do Panamá demonstram o quanto a mídia normalizou o vazamento desde que o jornalismo do WikiLeaks “implodiu” em 2010. Para ser claro, normalizar o vazamento não significa que vazamentos enormes se tornaram “normais”, mas que a maneira como os jornalistas lidam e ra- cionalizam esses vazamentos foi rotineiro e se encaixou em sua identidade profissional. (BAACK, 2016, ONLINE)

Segundo Baack (2016) uma das principais diferenças entre o Wikilea- ks e o Panama Papers está na transparência dos casos, enquanto o Wikileaks disponibilizou um volume de informações enorme para o público, o Panama apresentou conteúdo extremamente filtrado. O autor diz que diferentemente dos vazamentos encontrados no Wikileaks, nesse caso o site, o Panama Papers contou com a responsabilidade jornalística muito forte. Ou seja, as informações do Cablegate não foram inteiramente divulga- das, mas não houve uma curadoria tão específica quando no Panama Papers e a identidade dos envolvidos não foi preservada Edward Snowden, Julian Assange e os outros responsáveis pelos vazamentos receberam represálias do governo dos Estados Unidos, tema que será aprofundado no próximo capítulo. Este ponto pode explicar o motivo da identidade de “Jon Doe” se manter um mis- tério.

OUTROS EXEMPLOS

O Caso Wikileaks

Já entendemos como foi o caso Panama Papers e principalmente, suas “inspirações”. Bom, o principal espelhamento deste vazamento se dá com o Cablegate, ocorrido alguns anos antes e se tornou o caso de maior repercus- são midiática envolvendo esse tipo de situação, e que até hoje ganha novos

TCCs 2019_2 --- 237 capítulos. Vamos entender melhor como tudo aconteceu. Em novembro de 2010 o mundo se surpreendeu quando cinco dos maiores jornais começaram a publicar, em uma operação conjunta, uma sé- rie de informações confidenciais distribuídas pela Wikileaks. The Guardian, Le Monde, New York Times, Der Spiegel e El Pais foram os responsáveis por sele- cionar os trechos de maior relevância dos documentos e publicá-los. No entanto, quem detém o real poder sob os dados, e quem obteve e liberou o acesso a eles é a Wikileaks. A organização sem fins lucrativos é sedia- da na Suécia e fundada por Julian Assange. O grupo publica em sua página, fotos, documentos e informações vazadas de governos ou empresa sobre diversos assuntos, muitas vezes de forma anônima. Cerca de 800 colaboradores fazem parte da Wikileaks atualmente, en- tre programadores, jornalistas, engenheiros e matemáticos que atuam em prol da liberdade de imprensa. Até junho de 2019, a organização fundada em 2006 já publicou mais de 10 milhões de documentos, de acordo com o site oficial da associação55. O Cablegate é um marco para o jornalismo global e revolucionou a forma como o mundo lida com vazamentos de dados. Na época, o principal foco dos documentos publicados explorava a relação dos Estados Unidos com países do Oriente Médio, no entanto, conforme as informações foram sendo divulgadas, outras nações passarem a ter seu nome ligado a escândalo, incluindo o Brasil. Como o jornalista Simon Rogers afirmou para o jornal britânico The Guardian, um dos responsáveis pela divulgação das informações, em 2011, “O Wikileaks não inventou o jornalismo de dados, mas deu às redações uma razão para utiliza-lo”, (ROGERS, 2011).

Edward Snowden

Edward Snowden se tornou um dos maiores símbolos do chamado “Ca- blegate”. O analista e sistema que já trabalhou para a CIA e para a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), divulgou detalhes dos sistemas de Vigilân- cia Global de comunicações e tráfego de informações executadas pelo governo dos Estados Unidos. Snowden foi acusado roubo de propriedade do governo, comunicação não autorizada de informações de defesa nacional e comunicação intencional de informações classificadas como de inteligência para pessoa não autorizada e até o momento está com asilo político na Rússia.

55 Disponível em: https://wikileaks.org/What-is-WikiLeaks.html Acesso em 4 de outubro de 2019

TCCs 2019_2 --- 238 Em artigo publicado no site espanhol La Vanguardia56, o escritor Manuel Castells analisa as mudanças que o caso wikileaks trouxe para o jornalismo investigativo, principalmente a respeito das bases de dados digitais. Segundo o Castells, um vazamento desse tamanho só foi possível por conta da era em que estamos vivendo.

As revelações de Edward Snowden sobre as práticas de espionagem permanen- te, no mundo inteiro (com escassa proteção judicial ou simplesmente ilegais) expuseram uma sociedade em que nada pode escapar à vigilância do Grande Irmão, nem Angela Merkel. Não foi sempre assim, porque não estávamos digitalizados e não existiam tecnologias suficientemente potentes para obter, relacionar e processar essa imensa massa de informação. A emergência do chamado big data, gigantescas bases de dados em formatos comunicáveis e acessíveis. (CASTELLS, 2016, ONLINE, tradução nossa)

O autor afirma que o mundo que estamos vendo não está distante da- quele retratado na famosa obra de ficção científica distância, 1984, de George Orwell, onde as pessoas vivem sob constante vigilância de um governo autori- tário, liderado pela simbólica figura de um suporto ditador, chamado na obra de “Grande Irmão”. No artigo, Castells reitera a evolução tecnológica como um fator determinante para essas mudanças.

O exemplo da ProPublica

A ProPublica é uma organização sem fins lucrativos, sediada em Nova York e especializada na produção de jornalismo investigativo independente. As investigações feitas pela corporação são conduzidas por sua equipe de repór- teres e os resultados são repassados para outros jornais “parceiros”, como a CNN, USA Today, New York Times, Los Angeles Times, Washington Post, Huffin- gton Post, Newsweek, Reader’s Digest, BusinessWeek e a National Public Radio, entre muitos outros. A agência desenvolveu diversas iniciativas relacionadas ao jornalismo de dados. Aqui vamos focar no projeto Opportunity Gap, um aplicativo de notícias feito em 2012 pela ProPublica que mapeou e analisou diversas escolas públicas do Estados Unidos. O material coletado rendeu 52 mil reportagens geradas algoritmicamente pela Narrative Science, uma startup sediada em Chi- cago que desenvolveu a tecnologia.

56 Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/manuel-castells-vigiados-e-vendi- dos-1429210534 Acesso em 4 de outubro de 2019

TCCs 2019_2 --- 239 O repórter Scott Klein,57 que participou da pesquisa, disse na época que o Opportunity Gap só foi possível graças a grande colaboração entre a ProPublica e a Narrative Science, e que as duas equipes tinham um mesmo objetivo: “fazer com que os dados digam histórias”. Dessa forma então o grupo adicionou narrativas em cada página das escolas baseadas nos dados encontra- dos.

Qualquer que seja o futuro da indústria de notícias, parece claro que isso envolverá muitas coisas. E do nosso ponto de vista, a geração algorítmica de histórias parece uma solução intrigante para o problema de escalar o jornalis- mo narrativo na era da big data. Isso nos ajudou a ajustar nosso jornalismo de dados para um novo público e a criar histórias em grande escala que seriam impensáveis de​​ outra maneira (KLEIN, 2013, ONLINE)

O Opportunity Gap expõe um elemento crucial no jornalismo de dados, que aparece também no Panama Papers: a necessidade de filtrar o conteúdo. Já citada por Philip Meyer. Neste caso, os softwares e os repórteres selecionaram apenas os resultados mais relevantes obtidos no catálogo. Além disso, o crowdsourcing também está presente nessa situação, mostrando a colaboração não apenas entre repórteres e programadores, mas também contando com o público para obtenção de dados. A ideia é defendida por Trassel (2010), que afirma que a grande colaboração dentro do jornalismo está na contribuição dos leitores para o aperfeiçoamento das reportagens. “a participação da audiência é um fator constituinte do jornalismo em base da- dos”, disse o autor. Holanda (2007) 58 afirma que a situação é complexa e precisa de extre- mo cuidado e curadoria para que erros éticos não sejam cometidos durante a abordagem. Já que todos podem participar da notícia, corre o risco de o fato ser fraudado e as informações perderem credibilidade. O QUE VEM A SEGUIR?

É difícil imaginar o futuro do jornalismo de dados, que também acaba passando pelo jornalismo como um todo, sem pensar na tecnologia. Como já vimos, a rotina das redações é alterada o tempo todo, e isso não deve mudar agora. De um modo geral, como foi defendido por Philip Meyer, os jornalistas devem se adaptar as novas tecnologias, exigindo novos tipos de conhecimentos

57 Disponível em: https://www.propublica.org/nerds/how-to-edit-52000-stories-at-once Acessado em: 09/10/2017. Acesso em 21 de setembro de 2019. 58 HOLANDA, André. Estratégias de abertura: O jornalismo de fonte aberta dos casos Indymedia, CMI, Slashdot, Agoravox, Wikinotícias e Wikinews. UFBA. 2007.

TCCs 2019_2 --- 240 por partes dos profissionais. Por outro lado, segundo Thompson (2010)59, os softwares de análise e distribuição de dados digitais estão cada vez mais acessíveis. De certa forma, fazer jornalismo de dados nunca esteve a um alcance tão baixo e os programa- dores também estão cada vez mais perto do dia a dia das redações. Os algoritmos de edição de texto também vêm se aperfeiçoando, es- tamos chegando em um ponto onde não apenas os computadores poderão corrigir a gramática da escrita, mas também verificar dados, informações e até mesmo juntar dados para formar uma narrativa, com vimos no caso do Oppor- tunity Gap. O que também vai exigir mais conhecimento computacional dos profissionais nas redações. Esses algoritmos ainda podem ser difíceis de explicar aos leitores, eles podem exigir conhecimento técnico para entender, podem mudar rapidamente e as empresas privadas muitas vezes mantêm os detalhes de sua operação em sigilo. Em alguns casos, mesmo as empresas ou agências governamentais que possuem os algoritmos podem não ter total transparência sobre seu funciona- mento. Exemplos de falhas algorítmicas incluem quando o Google Translate faz traduções incorretas conforme relatado pelo Mental Floss, ou quando o Apple Maps direciona os drivers para o local errado, conforme destacado pela Forbes. Erros algorítmicos podem se tornar relevantes quando prejudicam sistematica- mente certos grupos, refletindo o viés das entradas de dados. Sua eficácia, no entanto, muitas vezes não é 100%. Um artigo feito pelo Nemanlab60 em 2019, cita diversos exemplos de ferramentas que deram errado. De acordo com eles, algoritmos podem errar desde coisas simples, como tra- duções no Google, até exemplos mais completos como um robô desenvolvido pela Amazon que teve seu desenvolvimento interrompido após apreender a tomar decisões sozinho e favorecer candidatos homens em processos seleti- vos. Outros exemplos de algoritmos que podem ser discriminatórios incluem a tecnologia de reconhecimento facial da Microsoft e da IBM, que, como foi informado pela Wired, tem taxas de precisão mais baixas para indivíduos que não eram homens brancos. O artigo escrito ainda ressalta a importância dos dados digitais para o futuro do jornalismo e foca na formação de profissionais mais qualificados. “todo jornalista é capaz de exercer as funções de um jornalista de dados, basta

59 Disponível em: https://www.wired.com/2010/03/st-thompson-cyborgs/ Acesso em 21 de setembro de 2019 60 Idem: https://www.niemanlab.org/2019/02/acing-the-algorithmic-beat-journalisms- -next-frontier/ Acesso em 20 de setembro de 2019

TCCs 2019_2 --- 241 que o mesmo tenha consciência da importância dessas funções” (MARCONI, DALDRUP, RAJIV PANT, 2019, ONLINE). Como já mencionamos, o jornalismo de dados sempre está aliado a tec- nologia e nos últimos anos as IAs (inteligências artificiais) vem desempenhando um papel crucial nisso, principalmente na hora de analisar grandes volumes de informações. Fazer isso sem utilizar tecnologias inteligentes seria quase inviável. Portanto os programas que ajudam a analisar e filtrar dados em meio a ban- cos enormes se tornaram fundamentais para que esse trabalho seja possível. Como ocorreu no caso Panama Papers e foi analisado anteriormente nesta monografia. Um exemplo do que está sendo desenvolvido para o futuro é uma tecno- logia desenvolvida dentro do Google News Initiative. O protótipo explora a in- ternet para tentar prever a probabilidade de determinados assuntos e notícias estarem em alta no dia seguinte. A ideia da companhia é utilizar essa tecnologia para auxiliar jornalistas investigativos, tornando o trabalho desses profissionais mais rápido. Outro movimento que vem ganhando força com o passar dos anos é a falta de confiança do público pelos veículos tradicionais de imprensa. Debord (2012) analisa que um dos motivos para isso estar ocorrendo é a falta de pro- ximidade entre as redações e o público. Dessa maneira o consumidor não se vê representado nos jornais tradicionais e acaba buscando informações de outras maneiras. É aí que empresas como Google, Facebook e Twitter ganham força. O engajamento desses ambientes é muito maior que a maioria dos sites de notícias. A questão que entra em debate é a confiabilidade das informações destacadas nesses sites, já que o conteúdo pode ser produzido praticamente por qualquer pessoa. Uma pesquisa realizada em 37 países pelo Fórum Econômico mundial revelou que apenas 17% dos entrevistados acessam notícias várias vezes por dia. 48% disseram que se informam uma vez por dia e outros 35% foram clas- sificados como usuários casuais, e acusam notícias menos de uma vez ao dia. Outra polêmica a ser mencionada é o fato de os usuários dessas redes acabarem ficando “presos” em bolhas de informações. Isto é, eles vêm apenas aquilo que lhe interessa e acaba tendo uma visão distorcida da realidade. Tanto o Facebook quanto o Google criaram iniciativas para tentar reduzir a quanti- dade de informações falsas distribuídas em suas plataformas. Essas medidas, no entanto, ainda não tiveram resultados consideráveis.

TCCs 2019_2 --- 242 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta monografia foi possível avaliar as mudanças que o caso Panama Papers trouxe para o jornalismo de Dados digitais. Partindo de uma perspec- tiva histórica e analisando as possibilidades para o futuro da profissão. Foi feita também uma comparação entre casos de jornalismo investigativo realizados em uma era pré popularização da internet e de casos feitos com o auxílio dessa tecnologia. Os resultados dessa pesquisa bibliográfica mostram que o Panama Pa- pers só foi possível por conta dos grandes avanços tecnológicos aos quais a profissão vem se adaptando com o passar dos anos. Sem o auxílio dessas fer- ramentas, as informações dificilmente teriam vazado fazendo com que a análise desse material levasse um tempo muito maior e necessitaria ainda de uma equi- pe formada por um número muito grande de pessoas para que os resultados pudessem ser divulgados de forma responsável. Como todas as mudanças em que a profissão está sujeita, isso resulta em uma necessidade de capacitação dos jornalistas atuais, para poderem lidar com esses tipos de dados e tecnologias, já que muitos softwares são utilizados para trabalhar com essas informações e garantir a segurança e anonimato das fontes utilizadas durante o processo, como vimos. Um dos fundamentos desta monografia está no modus operandi do Pana- ma Papers e em como este caso representou uma grande mudança na forma como o mundo lida com o jornalismo de dados em uma colaboração sem pre- cedentes. O objetivo principal não é mostrar a importância ou relevância do vazamento, e sim suas implicações para o trabalho do jornalista. A segurança inclusive é parte fundamental do jornalismo de dados, já que muitas vezes, inclusive no caso Panama Papers, as informações são forneci- das anonimamente, isso já ocorreu em investigações anteriores, mas hoje esse pode ser feito com muito mais eficiência, já que o envio de arquivos digitais ocorre de maneira muito mais rápido. Além disso, o contato pode ser feito de qualquer lugar do mundo. Isso também acaba sendo para necessário proteger as informações em sua fonte original. Os dados do caso Panama Papers provavelmente chegaram até Frederik Obermaier e Bastian Obermayer por conta de falhas na segurança da Mossack Fonseca. Isso, claro, não impede vazamentos de dados, em outros casos, como no Cablegate, as informações vieram a público por conta de pes- soas que trabalham no local de origem desses dados. Com os dados, o jornalismo passa a ter uma abordagem cientifica. Isso aproxima as duas áreas e deixa o jornalismo mais objetivo. Quando lidamos com dados e vazamentos, são necessários métodos que ajudem na avaliação

TCCs 2019_2 --- 243 dessas informações, pois nesse meio, é fácil ser influenciado e acabar publican- do informações com caráter tendencioso. Os dados já fazem parte do trabalho diário do jornalista. Eles estão pre- sentes em exemplos mais simples. Desde monitoramento do comportamento de usuários nas redes sociais, até em pesquisas eleitorais. O trabalho do profis- sional de imprensa está em analisar essas informações e avaliar aquilo que seja mais noticioso de interesse público. A tecnologia também muda a forma de distribuição desse conteúdo e a maneira como o público interage com ele. Projetos como o DataBlog do The Guardian e até mesmo reportagens como a SnowFall, do The New York Times, são exemplos disso. Esses formatos mostram como o público contribui para a visualização do conteúdo. Isso é importante porque traduzir um grande volume de dados em conteúdo é um extremamente demorado e lento. Novas formas de visualização podem facilitar a leitura dessas informações. Essa foi uma dificuldade apontada por muitos dos repórteres envolvidos caso Panama Papers. O conteúdo era extremamente complexo e apesar de sua relevância, nem sempre isso se traduzia para um apelo popular. Dessa forma, o caso não teve uma repercussão tão grande em alguns lugares, como no Bra- sil, onde apesar de ter um certo resultado político, não teve grande atenção midiática. Já em outros países mais afetados pelas investigações, como a Nova Zelândia, o caso chegou alterar leis de combate a corrupção no país. Outro elemento que já havia sido utilizado no jornalismo investigativo anteriormente, mas que ganhou novas dimensões com o caso Panama Papers, é a colaboração entre veículos diferentes. Neste caso, dezenas de jornais do mundo inteiro participaram da ação, tornando cada informação mais relevante para seu determinado país. No entanto, até nesse modelo, a tecnologia este- ve presente, pois o compartilhamento dos arquivos e até o contato entre os veículos foi feito de forma online. Sem a internet, um trabalho de colaboração nesse nível seria muito mais difícil e complexo. A bibliografia sobre jornalismo de dados, baseada principalmente na obra dos jornalistas Philip Meyer e Paul Bradshaw, apresenta a visão dos au- tores sobre os temas propostos, além de contrapor e complementar versões contraditórias. Manuel Castells e Simon Singh são outros autores utilizados para a base teórica desta monografia. Por ser uma temática com bastante en- volvimento com tecnologia, muitos dos autores são contemporâneos. Como disse o ICIJ, os desdobramentos e consequências do Panama Papers ainda não acabaram, mas o auge do caso ocorreu em 2016, e além, de render diversas investigações policiais e casos na justiça, o vazamento deixou diversas lições que podem ser utilizadas pelos jornalistas. O caso uniu vários elementos que já haviam sido explorados em casos anteriores, listamos nesta

TCCs 2019_2 --- 244 monografia os principais. A análise de dados digitais está se consolidando como modelo de jor- nalismo online. Os exemplos citados nessa monografia permitem compreen- der a extensão e variedade de formatos essa área possui. Portanto, é possível presumir que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo jornalismo inves- tigativo, incluindo o de dados, está no financiamento dessas reportagens, já que esse formato geralmente exige tecnologia e profissionais com conhecimentos específicos, vimos esses modelos. Hoje as pessoas podem optar por obter as informações desejadas de vá- rias fontes, muitos dos quais são gratuitos. Além disso, o público outrora amplo anteriormente apreciado pela grande mídia, hoje é mais fragmentado, exigindo que as empresas personalizem seu conteúdo ou programação para mercados de nicho. Isso coloca em xeque os modelos de negócios baseados na venda de espaço publicitário em jornais e televisão aberta. Os resultados apresentados nessa monografia auxiliam os veículos a apostarem em novos projetos, utilizan- do as bases de dados digitais e modelos de colaboração. Por isso a solução adotada pelo Panama Papers de fragmentar o pro- jeto, e de certa forma, dividir seus gastos, acabou se mostrando uma fórmula bem-sucedida, que pode ser replicada em outros projetos no futuro. Dessa for- ma, fragmentando os custos e a equipe, reportagens deste tamanho se tornam possíveis. Ademais, ainda estamos apenas no começo da era da Big Data e o jornalismo investigativo ainda está começando a se adaptar ao uso desses re- cursos. Esses tipos de vazamentos devem ocorrer com mais frequência e as técnicas empregadas na divulgação e análise do dados devem ser ainda mais elaboradas. Todo avanço tecnológico na área comunicacional afeta o jornalismo e isso não deve mudar, portando, é seguro dizer que, talvez o caso Panama Pa- pers seja apenas o começo de uma nova era para o jornalismo investigativo.

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TCCs 2019_2 --- 249 MOOCA - SÓ QUEM TEM HISTÓRIA PODE CONTAR

BEATRIZ LIA SANTIAGO SASTRE Orientadora: Denise Paiero

TCCs 2019_2 --- 250 RESUMO

Esta pesquisa embasou o livro-reportagem Mooca: Só quem tem história pode contar. Localizado na Zona Leste de São Paulo, o distrito da Mooca foi escolhido como temática central pelo seu bairrismo característico. Além disso, a região é uma das mais antigas da cidade e tem histórico político, imigrante e operário. O objetivo deste relatório é apresentar dados sobre o bairro, bem como Jornalismo Literário, Livro-reportagem e Perfis. A metodologia utilizada na pesquisa foi a qualitativa: as informações foram colhidas por meio de obser- vação e análise. Como resultado, foi produzido um livro composto por perfis. A obra apresenta histórias de vida dos moradores, visitantes e admiradores do distrito, como o grupo musical Demônios da Garoa e o cantor Ary Sanches; bem como registra a memória dos lugares mais importantes do bairro, dentre eles o Di Cunto e o Casarão do Vinil. Com linguagem descontraída, o fio con- dutor do livro-reportagem é um passeio pela Mooca.

Palavras-chave: Mooca; Perfil; Jornalismo; Jornalismo Literário.

ABSTRACT This research based the book Mooca: Só quem tem história pode contar. Located in the East Zone of São Paulo, in Brazil, Mooca district was chosen as main focus due to its characteristic localism. Besides that, the area is one of the oldests in the city and it has got political, operary and migrant historic. The ob- jective of this report is to present information about the neighborhood, as well as Literary Journalism, Profiles and New Journalism. The methodology used was qualitative: the data were obtained thru observation and analysis. As a result, a book composed by profiles was produced. Mooca: só quem tem história pode contar presents ‘mooquenses’ (residents, visitants and admirers’ biographies). Demônios da Garoa and Ary Sanches are examples. The book also registers the memory of the most important places there (Di Cunto, Casarão do Vinil, etc.). With simple language, what conducts the story is a tour thru Mooca.

Key-words: Mooca; Profile; Journalism; Literary Journalism; New Journa- lism

TCCs 2019_2 --- 251 INTRODUÇÃO

Este Trabalho de Conclusão de Curso apresenta a Mooca em um livro- -reportagem por meio de histórias de moradores e lugares do bairro. A Mooca é um distrito da Zona Leste de São Paulo (SP), que possui cerca de 340 mil habitantes distribuídos em uma área de 35 km² (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2017). De acordo com a reportagem A história da Mooca, dos índios aos “moo- quences” (ESTADO DE S. PAULO, 2015), a localidade foi inicialmente habitada por indígenas, mas fundada oficialmente por jesuítas sob o nome de “Arraial de Nicolau Barreto” em 1556. E, como indicado pela matéria da Veja São Paulo A origem do nome de al- guns bairros da capital (FREITAS, 2017), “Mooca” vem do tupi-guarani e significa “eles estão fazendo casas” ou “casa de parentes”, pela notável movimentação de pessoas na região a partir do século XVI. No entanto, foi somente ao final dos anos 1800 que o local começou a tomar grandes proporções. Assim como Brás e Bixiga, o bairro foi destino de muitos imigrantes da época, que foram direcionados a trabalhar nas indústrias dos respectivos distritos. Foi na Mooca, por exemplo, que a maior rede de tecelagem daquele tem- po foi criada: o Cotonifício Rodolfo Crespi. A fábrica foi de tamanha relevância que seus funcionários criaram até um time de futebol: o Juventus. Além disso, segundo a reportagem 1ª greve geral do país, há 100 anos, foi iniciada por mulheres e durou 30 dias da BBC (COSTA, 2017), a primeira greve geral do país ocorreu ali. A influência europeia, principalmente da Itália, ainda se mostra em ou- tros detalhes no bairro. As pizzarias e cantinas, dentre elas a São Pedro, Ângelo e Di Cunto são exemplos disto. Croatas e lituanos também deixaram sua marca no distrito quando o povoaram. Há associações de tais nacionalidades presentes na Mooca até os dias de hoje (Sociedade Amigos da Dalmácia), sem contar nomes de vias que fazem menção aos países, como a Rua Lituânia. Além de ser um local rico culturalmente, a Mooca chama atenção por personalidades que nasceram ali, como o ex-governador de São Paulo José Serra, os integrantes do grupo musical Demônios da Garoa, e o jornalista Mino Carta, que tem um livro publicado sobre a região [Crônicas da Mooca: com as bênçãos de San Gennaro, (2009) ]. O distrito ainda possui importância pessoal para mim, pois foi onde cresci e vivi diversos momentos até então, muitos destes, compartilhados e contados

TCCs 2019_2 --- 252 a colegas da faculdade. Desde o começo da graduação, tais relatos lhes desper- tavam curiosidade sobre a Mooca, principalmente de compreender o motivo de tanto carinho pelo bairro. Portanto, acredito que não poderia me formar sem reunir em um livro-reportagem um retrato da localidade. A escolha por livro também não tardou. Ingressei no curso de Jornalis- mo por conta da escrita: foi com ela que aprendi a me expressar da melhor maneira. E, ao longo dos últimos anos, apesar de descobrir outras formas de comunicação, pude aperfeiçoar minha técnica de redação e me apaixonar cada vez mais por este formato de texto. Além disso, como descrito por Edvaldo Pereira Lima em Páginas Amplia- das (2009), o livro-reportagem “cumpre um relevante papel, preenchendo va- zios” (2009, p. 15-16) de todos os veículos de informação.

Mais do que isso, avanca para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efemero da mensagem da atualidade. (LIMA, 2009, p. 15-16).

O jornalismo trabalha com velocidade: quanto mais rápida uma informa- ção for passada, melhor. É uma constante corrida contra o tempo. Por isto, reportagens longas não possuem tanto espaço nas grandes mídias. Quando se teve quase um ano para produzir um texto, sem ligações com empresas de comunicação, e ainda sob orientação profissional, foi possível “avançar para o aprofundamento do conhecimento”, que Lima mencio- na (2009). A reportagem em livro em questão é constituída por perfis de moradores e ambientes do distrito, cujos elementos comuns são as histórias e o amor pela Mooca. Optar por perfis também partiu de um gosto particular. Tive contato com o estilo logo nos primeiros semestres da faculdade, após ser colaboradora da editoria Share Your Story na Redação Virtual Mackenzie, em 2017. Acredito que esta seja a forma mais humana de se fazer jornalismo. Há to- tal dedicação às “histórias de vida”, como esclarecido por Sergio Vilas-Boas em Perfis e como escrevê-los (2003). Principalmente tendo em vista que a intenção é ilustrar o bairro ao leitor que não o conhece, de maneira que passe a enten- der as razões pelas quais a Mooca é encantadora aos olhos de seus moradores. Em outras palavras, a obra pretende criar empatia.

TCCs 2019_2 --- 253 Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias ex- perimentadas pelo personagem. (BOAS, 2003, p.15)

Visando a sintetizar o local, a problemática proposta foi: Como um livro- -reportagem pode apresentar o bairro da Mooca a quem não o conhece? Desta maneira, este trabalho teve como objetivos principais produzir um livro-reportagem, investigar a história da localidade e caracterizar a Mooca de forma integral. Já os propósitos secundários consistiram em entrevistar personalida- des do distrito, conversar com moradores e proprietários de estabelecimento do bairro, bem como compreender o regionalismo tão presente no local. Como parte da metodologia qualitativa, agendei entrevistas com os “mooquenses”, observei o comportamento das pessoas que vivem ou frequen- tam o bairro, assim como seus diversos locais (parques, casas, empresas e co- mércios). Como complemento à observação, fiz anotações e tirei fotografias dos ambientes e cidadãos que passavam pelas ruas da Mooca. Feito isto, trans- crevi as entrevistas e trabalhei no texto final e nas fotos, relacionando-as com fatos históricos, que foram investigados por meio de pesquisa teórica.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2. 1 Mooca Como apontado anteriormente, a Mooca é um bairro localizado na Zona Leste da cidade de São Paulo, SP. O distrito, por vezes, confunde-se com vizi- nhos como o Belém e a Vila Prudente. O tamanho do local, bem como o histó- rico imigrante, político e operário levam a essa falta de percepção de espaços. Em Crônicas da Mooca: Com as bênçãos de San Gennaro (2009), Mino Carta reforça a influência europeia na região e como se deu a alocação dos migrantes nas diferentes partes do distrito no século XX. Segundo o jornalista, boa parte dos cidadãos vieram da Campânia, no sul da Itália, e eram conhecidos como “napolitanos” ou “campanos”, afinal a maio- ria era natural de Nápoles (2009, p. 29). No bairro, eles se instalaram, principal- mente, na região citada como baixa, isto é “que se espraia até pouco acima do número mil da rua da Mooca” (2009, p. 29). Carta também descreve a movimentação dos “hungareses” no distrito naquele tempo. Ou seja, pessoas que vieram do leste e centro europeus. Den- tre elas, é possível mencionar russos, lituanos, húngaros, poloneses, iugoslavos, alemães, sérvios, croatas, etc (2009, p.45).

TCCs 2019_2 --- 254 O distrito também foi um dos principais centros operários de São Paulo durante as primeiras décadas de 1900. Como explicado anteriormente, foi na Mooca que a maior rede de tecelagem da época se estabeleceu (Cotonifício Rodolfo Crespi). Há quem diga ainda que a região cresceu junto com a cidade, como descrito no artigo A cultura como forma de resistência ao processo de metropolização: o caso do bairro da Mooca-SP (CASTRO; ANTONIO FILHO, 2017). O início do século XX foi marcado pelos europeus fugindo das guerras. Eles vinham ao Brasil com a promessa de emprego nas lavouras de café. Contu- do, quando chegavam aqui descobriam que se tratava de um trabalho análogo à escravidão. Como a região abrigava a Hospedaria dos Imigrantes, tornou-se um dos principais destinos deles.

Muitos imigrantes “fogem” das lavouras de café, por causa da crise no setor e se estabelecem na cidade, participando do processo de industrialização. Assim, muitos italianos se fixam nas regiões do Brás e da Mooca, principal- mente pela presença de indústrias têxteis, tornando esse lugar um ambiente de trabalho e moradia. Dessa forma a indústria ajuda na ascensão desses bairros estruturando-os e tornando-os um atrativo a mais para os imigrantes que chegavam. (CASTRO; ANTONIO FILHO, 2017, p.2)

As condições de trabalho, bem como a influência do pensamento euro- peu, na época de caráter socialista, ajudaram ainda a criar um ambiente propício aos movimentos ligados à política. Com relação ao passado político, isto é descrito de maneira clara por Adriano Duarte (2002). Ele ressalta os números do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) da mesma época em sua tese de doutorado Cultura popular e cultura política no após-guerra: redemocratização populismo e de- senvolvimentismo no bairro da Mooca 1942-1973. De acordo com o pesquisador, durante o período pós Segunda Guer- ra Mundial, os comícios organizados no bairro contavam com a presença de aproximadamente mil pessoas que discutiam, na maioria das vezes, questões relativas ao próprio distrito. No artigo O Populismo Visto da Periferia: Adhemarismo e Janismo Nos Bairros da Mooca e São Miguel Paulista, 1947-1953 (2004), produzido pelo mesmo autor e Paulo Fontes, a visão é reforçada. Os textos indicam a presença política atuante na região, especialmente em torno das personalidades de Jânio Quadros (vigésimo segundo presidente do Brasil) e Ademar de Barros (interventor de São Paulo, indicado por Getúlio Vargas durante o Estado Novo em 1938, e que, posteriormente, adotou uma postura oposicionista e criou o Partido Social Progressista - PSP, considerada

TCCs 2019_2 --- 255 uma das principais legendas no país até os anos 1960). Os estudos confirmam a atuação do partido nos bairros da Mooca e São Miguel, e como isso influenciou a região.

No Bairro da Mooca, em 1947, o diretório do PSP contava com 25 subde- legados, cada um coordenava entre cinco e dez inspetores-de-quarteirão(...) O bairro era então todo esquadrinhado e cada rua tinha o seu inspetor de quarteirão, subordinado a um subdelegado indicado diretamente pelo diretório distrital do PSP (DUARTE, 2004, p.5)

Atualmente, entretanto, o que se vê pelas ruas é só uma lembrança da tentativa de ação nas mudanças do país. E, se antes o distrito era considerado como classe baixa economicamente, pela presença das fábricas, ao longo do tempo esta percepção foi mudando. Segundo a reportagem Os melhores bairros da cidade em 23 categorias (VEJA SÃO PAULO, 2017), a Mooca é uma das regiões mais seguras para se viver na capital paulista. As informações foram obtidas por meio de boletins de ocorrência registrados em diversas delegacias de São Paulo. Dentre elas, o 18º Departamento de Polícia (localizado no distrito) registrou somente 34,8 incidentes (como furtos, roubos e homicídios) para cada 100 mil habitantes. Apesar de o índice parecer alto, ele é consideravelmente inferior ao nível mé- dio da cidade, que é de 809.

2.2 Livro-reportagem

De acordo com Edvaldo Pereira Lima (2009), o livro-reportagem é uma modalidade jornalística que visa a aprofundar um assunto que não foi explicado integralmente nas notícias diárias, dando foco, principalmente, aos personagens que compõem a história ou fato. Quando menciona o começo do que chama de “Jornalismo Interpre- tativo”, como era nomeado na época (entre 1910 e 1920), Lima descreve que a comunicação via telégrafo já existia. E, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial houve a problemática da falta de conexão e sequência entre os fatos narrados. A “solução” encontrada foi o “Jornalismo Interpretativo”, que nas pa- lavras dele:

Busca não deixar a audiência desprovida de meios para compreender seu tem- po, as causas e as origens dos fenômenos que presencia, suas consequências no futuro. Vai fundamentar sua leitura da realidade na elucidação dos aspectos que em princípio não estão muito claros. (LIMA, 2009, p. 20).

TCCs 2019_2 --- 256 Lima (2009) também indica a questão da temporalidade, e como ela pode deixar a reportagem o mais completa possível. Tendo em vista que o tempo de produção deste Trabalho de Conclusão de Curso foi mais longo que o habitual ao jornalismo - aliado à rapidez de informações – foi possível produzir algo maior e com mais qualidade. Há ainda a presença do “jornalista-autor” - uma das principais figuras na produção de um texto como este. O conceito foi indicado por Alexandre Za- rate Maciel e Heitor Costa da Lima Rocha no artigo Desvendando o contem- porâneo: o papel do jornalista-autor de livros reportagem (2016). Segundo a dupla, ainda que a modalidade literária siga critérios de apu- ração jornalísticos, como a objetividade e imparcialidade, há a chance de se produzir um conteúdo de caráter autoral. Desta maneira, a obra fica numa linha tênue entre a literatura e o jornalismo. Além disso, uma das principais características do redator de um livro-re- portagem, como contou Eduardo Belo em Livro-reportagem (2006, p.14), é a habilidade escrita. Ainda que os jornalistas não trabalhem em uma redação convencional, escrevem para a televisão, rádio e internet. E, como apontado anteriormente, acredito que a melhor forma de expressão é a textual, por isso optei pelo livro-reportagem.

2.3 Jornalismo Literário

Como apontado por Ciro Marcondes Filho em Comunicação e Jornalismo: a saga dos cães perdidos (2000), o jornalismo nasceu da literatura. Ele estabelece uma divisão das fases pelas quais a profissão passou (Pré- Jornalismo, Primeiro Jornalismo, Segundo Jornalismo, Terceiro Jornalismo e Quarto Jornalismo). De acordo com o autor, no Pré-Jornalismo o formato dos folhetins da época se assemelhava ao de livros. E, durante o Primeiro Jornalismo as infor- mações eram passadas pelos intelectuais, principalmente escritores. No Brasil, temos como exemplo de autores que também se dedicaram à transmissão de notícias Machado de Assis, Graciliano Ramos, José de Alencar, Nelson Rodri- gues, dentre outros. No entanto, não é porque o passado jornalístico remonta à literatura, que atualmente este recurso foi perdido. Obras como Zero Zero Zero de Roberto Saviano (2013) e Todo dia a mesma noite de Daniela Arbex (2018) são exemplos disto. Um texto escrito desta forma é algo que o jornalismo tradicional não permitiria. Mas, cabe ao “Novo Jornalismo” - como também ficou nomeado o estilo a partir da década de 1960. A ideia é descrita por Tom Wolfe e Gay Talese

TCCs 2019_2 --- 257 em The New Journalism (1973). Por sua vez, Felipe Pena (2006) descreve o jornalismo literário como uma “estrela de sete pontas”, cujo texto “deve servir para algo mais do que simples- mente embrulhar o peixe na feira”.

Significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos. (PENA, 2006, p. 6)

2.4 Perfis Perfil é um modelo do jornalismo cujo foco são as pessoas, ou melhor, os personagens, em vez do fato que ocorreu em si. Sergio Vilas-Boas relata em Perfis e como escrevê-los (2003) que no Brasil, a modalidade teve início com a circulação da revista Realidade ao final dos anos 1960. Uma das principais características do estilo são as longas e aprofundadas entrevistas com as pessoas futuramente retratadas. Além disso, Vilas-Boas conta que diferentemente de biografias ex- tensas, com os perfis, há a possibilidade de “focalizar apenas em alguns momentos da vida” (2003, p.13) do entrevistado. Sendo assim, pude mol- dar os textos a minha maneira, de forma que também seguissem a ética jornalística. O objetivo foi registrar a memória da Mooca por meio das pessoas e dos lugares. Para mim, esses são os principais fatores que deixam o bairro como é, e que me fazem ter tanto apreço pelo mesmo. Lima (2009) aponta que há dois tipos de perfis, o de “personalidade pública” e o de “personagem anônima”. Ambos puderam ser aplicados na minha obra. O primeiro segue a “Jornada do Herói”, ou seja, são biografias cur- tas de famosos, e geralmente são divididas em Cotidiano, Chamado à aventura, Recusa do chamado, Testes, Internalização e Retorno - como acontece nos relatos do cinema e da literatura. Enquanto que os “anônimos”, em grande parte das vezes, “represen- tam um determinado grupo social”. Como a Mooca possui um bairrismo forte, esta regra também pôde ser seguida na maior parte do texto.

TCCs 2019_2 --- 258 3. DESENVOLVIMENTO DA PEÇA 3.1 Pré-produção

Para o desenvolvimento da peça realizei uma pesquisa teórica sobre o tema e modalidade jornalística, pratiquei a observação participativa no ambiente e com os personagens retratados, assim como entrevistei os perfilados, fotografei, escrevi, e foi realizada a diagramação do produto final. Os autores utilizados como base para o referencial teórico foram Edvaldo Pereira Lima, Eduardo Belo, Alexandre Zarate Maciel e Heitor Costa da Lima Ro- cha, que descrevem a modalidade de livro-reportagem; Lima e Sergio Vilas-Boas, com suas perspectivas sobre perfis; Felipe Pena, Ciro Marcondes Filho e Tom Wolfe, cujas obras apresentam o jornalismo literário. Já com relação à temática, as princi- pais fontes usadas foram Mino Carta, Adriano Duarte, Paulo Fontes, Danilo Martins de Castro e Fadel David Antonio Filho. A observação com os entrevistados e locais foi participativa, afinal o objetivo era encontrar aspectos que pudessem caracterizar os perfilados de forma física e emocional, bem como descrever os ambientes em que se encontravam. Tal estilo foi inspirado no livro de crônicas A Vida Que Ninguém Vê (2006), de Eliane Brum. A autora apresenta pessoas comuns sob o olhar da grande mídia, com uma abordagem mais humanizada. No encerramento do livro, ela aponta que uma forma de buscar personagens é treinar a maneira de ver o mundo, como exemplo, pode-se tentar olhar para baixo. Outra referência foi Cidade do Paraíso: há vida na maior favela de São Paulo (2013). Escrito por Vagner de Alencar e Bruna Belazi, o texto traz um retrato de Paraisópolis por meio de histórias do cotidiano da favela. Acredito que as personagens mais interessantes do livro-reportagem sejam Ruth e Nelsa. Encontrei-as por acaso ao realizar minha primeira entrevista, que ocorreu na padaria Santa Branca. O perfil de ambas foi a prática do que Lima (2009) classificou como personagens “anônimos”. Além da busca por personagens entre cidadãos “comuns”, agendei entrevistas com personalidades conhecidas do distrito, como os Demônios da Garoa e Ary Sanches. Apesar da fama do grupo e do cantor, consegui contatá-los sem com- plicações e as conversas foram conduzidas com liberdade: ambos pareciam estar confortáveis em falar sobre a Mooca. Para a construção destes perfis, inspirei-me na “jornada do herói”, também citada por Lima (2009). As fotografias do livro-reportagem procuraram ilustrar as pessoas e espaços descritos no texto. A principal influência para este modelo foi a página Humans of New York (STANTON, 2019), que exibe perfis de cidadãos comuns que transitam pela cidade norte-americana. As imagens do site são tiradas no ambiente em que os

TCCs 2019_2 --- 259 entrevistados estão, portanto não há um cenário específico nem muito elaborado, o objetivo é apenas a representação.

3.2 Produção escrita Desde o começo da graduação sou apaixonada pelo que Vilas-Boas chama de “Histórias de Vida”, definição também utilizada por pesquisadores da área de Ciências Sociais, como o autor indica (2003). Como a intenção foi escrever uma longa reportagem composta por per- fis, o elemento principal foram as pessoas. Tive como fio condutor do livro um passeio pela Mooca. Então, a tentativa de “humanização” de personagens e locais fez parte de toda a obra. Tal característica é descrita pelos autores do Referencial Teórico [Vilas-Boas (2003) e Lima (2009)]. Citando os ensinamentos de Vilas-Boas, trabalhar com perfis tem “proces- sos de criação multidimensionais” (2003, p.13), aos quais é necessário combi- nar “memória, conhecimento, imaginação, sínteses e sentimentos” (2003, p.13). Desta forma, foi necessário realizar uma verdadeira análise em torno dos per- filados. Em Perfis e como escrevê-los, o escritor menciona:

A profissão de repórter nos credencia a ficar conectados com pessoas muito interessantes, e às vezes a uma distância física que o leitor comum dificilmente poderia estar. No entanto, transmitir uma compreensão – ainda que abreviada e efêmera – sobre alguém é delicado. Não basta embaralhar fatos biográficos ou aspear frases do personagem. (VILAS-BOAS, 2003, p. 14)

Além desta, outras técnicas e dicas demonstradas por Vilas-Boas foram aplicadas. O autor diz, por exemplo, que não seria possível aproveitar todo o conteúdo das entrevistas (2003, p.15). Esta situação ocorreu com a persona- gem Elizabeth Florido, cujo diálogo durou cerca de duas horas e foi reduzido a poucas páginas de texto. De qualquer forma, Vilas-Boas aconselha: “mesmo assim, continue indo além. Sempre.” (2003, p. 15). O escritor ainda indica que algumas conversas pareceriam monótonas ou aparentemente sem conteúdo. Caberia à autora decidir o que fazer com aquele material: “desistir da matéria, tentar marcar novo encontro, ou se virar com o que tem” (2003, p.15). A princípio, o diálogo com Angelo Agarelli aparentava não render um bom perfil, afinal o personagem repetia informações que esta- vam em seu site Portal da Mooca. Porém, nas entrelinhas da entrevista havia conteúdo digno de publicação. De qualquer forma, mesmo com diversos autores de referência, plane- jamento e acompanhamento da orientadora, conciliar as atividades rotineiras com a execução deste projeto foi trabalhoso. Vilas-Boas também informou so-

TCCs 2019_2 --- 260 bre a questão da temporalidade em seu livro.

O tempo para digerir as leituras, percepções e insights podem não ir além de uma noite, e você tendo ainda de dividi-los com preocupações domésticas, financeiras e outras. Muitas ideias interessantes escapam-lhe, ou lhe ocorrem tardiamente. Mas isso acontece até com quem tem tempo para escrever um livro. (VILAS-BOAS, 2003, p. 15)

Portanto, tais contratempos estavam previstos e os direcionamentos do autor neste sentido foram extremamente úteis. Ao longo da graduação, trabalhos inteiramente autorais foram poucos. Por seguirmos as regras de noticiabilidade, não tínhamos tanto espaço para produzir conteúdos mais livres. Sendo assim, já que existiu a oportunidade de realizar uma escrita criativa dentro do curso e ainda entrega-la como relatório final da graduação, acredito que ser “jornalista-autor”, como descrito por Za- rate Maciel e Rocha (2016), foi de grande aprendizado.

3.3 Finalização Com relação aos aspectos mais técnicos do livro, ele foi dividido em capí- tulos, cujos títulos tem alguma relação com o perfil apresentado. A capa possui coloração predominantemente laranja, afinal remonta aos tons dos tijolos das fábricas na Mooca. Além disso, há a ilustração do Cotonifí- cio Rodolfo Crespi em uma cor mais clara para criar um contraste. Para a organização do título e subtítulo, as principais referências foram as obras Roma: Uma história em sete invasões (KNEALE; SILVEIRA, 2018) e Gê- nesis (SALGADO, 2013). A primeira foi utilizada de forma a “brincar” com as letras do nome do livro. Já a segunda inspirou a dar destaque ao título. Por dentro, a obra apresenta algumas fotografias. As imagens foram reuni- das em uma galeria ao final do livro. Quando comecei a entrevistar meus personagens, não me dediquei tanto aos recursos visuais. A intenção inicial era que por meio da escrita o público- -alvo tivesse características suficientes para criar um retrato da pessoa ou local em sua mente. Contudo, após conversas com a orientadora e o diagramador, percebi que possivelmente as imagens fariam falta. Então, decidi coloca-las no encerramento da obra. O texto é apresentado com uma fonte sem serifa, para auxiliar a leitura. Cada perfil é introduzido por uma página com o título em caixa alta e negrito para dar destaque em meio ao fundo alaranjado. Além disso, as quebras na escrita estão representadas por uma ilustração do Cotonifício Crespi (outro mecanismo visual). A diagramação foi produzida por Bruno Leão.

TCCs 2019_2 --- 261 4.CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização do relatório e produção do livro-reportagem foram procedi- mentos diferentes de qualquer outra atividade realizada na graduação. Grande parte dos trabalhos feitos no curso foram em grupo. E, a pesquisa bibliográfica era algo que raramente executávamos, pois o objetivo era colocarmos efetiva- mente a mão na massa para produzir conteúdo jornalístico. O fato de ter de fazer uma pesquisa e um livro sozinha foi desafiador. Tal dinâmica não havia sido praticada antes, portanto foi passível de erros, dificulda- des e problemas que demandaram aspectos além dos critérios noticiosos e éti- ca jornalística: foi necessário também criar mais responsabilidade e maturidade. No entanto, acredito que todos os objetivos apontados na Introdução foram cumpridos, sejam eles primários ou secundários. Para mim, conclui-los foi uma das tarefas mais simples dentro da execução do projeto, pois estavam bem estabelecidos desde o começo - não tinha muito como sair daqueles pro- pósitos. A pergunta-problema também foi fundamental para a produção do livro- -reportagem. Ela ajudou-me a definir o público-alvo e auxiliou-me a recordar o que eu estava escrevendo e para quem. Como moro na Mooca desde que me conheço por gente, para mim é fácil falar sobre o bairro. Porém, no caso desta obra, eu deveria ser tão clara quanto possível para o leitor ter um verdadeiro retrato do distrito, sem precisar de muitos recursos extras. Ainda assim, optei por colocar materiais adicionais para a compreensão total do bairro. São eles: fotografias que buscam ilustrar pontos que podem ter ficado a desejar no texto e páginas finais contendo o endereço e telefone dos locais mencionados na obra. A metodologia foi uma das partes mais gostosas de se cumprir, afinal con- sistia em observação dos cidadãos da Mooca e diálogos com eles, bem como pesquisa de fatos históricos. Ao escolher tal tema em 2018, eu acreditava saber de tudo sobre o bairro em que vivo. Porém, ao longo da realização do projeto, descobri tantas informações, que por vezes sentia como se não soubesse nada de meu distrito. Por outro lado, este aspecto também me inspirava a continuar escrevendo. Uma das questões que mais me surpreendeu foi justamente o referencial teórico. Entender o passado da Mooca foi crucial para explicar como ela é hoje em dia. A problemática imigratória, operária e política, ainda que sejam carac- terísticas de séculos anteriores, mostram reflexos atualmente. Mas também, outros espaços (Javari Streat Park) assemelham-se a bairros mais desenvolvidos da cidade, como a Vila Madalena. Apesar de ter optado por um assunto do qual achava “dominar” e gos-

TCCs 2019_2 --- 262 tar, como mencionado anteriormente, enfrentei contratempos até a conclusão deste projeto. O principal deles foi em minha vida pessoal. Passava por dúvidas com rela- ção à minha formação no momento em que comecei a efetuação da pesquisa e obra. Havia saído do meu estágio, por sentir que não estava na profissão certa, e iniciara a trabalhar como professora de inglês. De certa forma, aprofundar-me em um tema que tanto adorava, fazia com que eu sentisse identificação com a atividade de jornalista. O contato com os personagens e poder contar seus relatos reforçava ainda mais este sentimento, tanto que decidi reduzir minha carga horária no emprego para poder dedicar- -me mais ao Trabalho de Conclusão de Curso. Agora que me formo, ainda estou incerta quanto ao meu futuro. Porém, tenho a certeza de que a conclusão deste projeto serviu para alguma coi- sa. Lembrei, inclusive, das recomendações do autor Felipe Pena. A luz que a produção do livro-reportagem acendeu dentro de mim cria esperança para a publicação por uma editora e me move a pensar em próximos trabalhos, como por exemplo, a escrita de mais uma obra com perfis de bairros de São Paulo.

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TCCs 2019_2 --- 265 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 266 LUTO EM LUTA: A EVOLUÇÃO POLÍTICA DE MONICA BENÍCIO

JULIA VIEIRA REIS Orientador: Carlos Eduardo Sandano

TCCs 2019_2 --- 267 RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo retratar a com- plexidade de Monica Benício em um perfil político e pessoal feito de maneira polissêmica dentro de um contexto ligado ao combate a violência, luto e ma- nifestação em prol da luta LGBTQI+ e feminista. A peça destaca a evolução da viúva de Marielle Franco como figura importante na transformação política e social dentro do campo ativista, em um contexto que gira em torno da vida conjunta de um casal de mulheres moradoras de uma periferia do Rio de Ja- neiro.

Palavras-chave: Monica Benício, Marielle Franco, política, feminismo, Rio de Janeiro, segurança pública, LGBTQI+

ABSTRACT

This undergraduate theases aims to portray the complexity of Monica Benício in a political and personal profile made in a polysemy manner within a context linked to the fight against violence, mourning and demonstration in fa- vor of the LGBTQI + and feminism fight. The final paper highlights the evolution of Marielle Franco’s widow as an important figure on the political and social transformation within the activist camp, within a context about a joint life of a couple of women living in a periphery of Rio de Janeiro.

Keywords: Monica Benício, Marielle Franco, politics, Rio de Janeiro, femi- nism, public security, LGBTQI+

TCCs 2019_2 --- 268 INTRODUÇÃO

Diante personagens reais e complexos que carregam vivências trau- máticas e delicadas é necessário encontrar melhores maneiras de contar es- sas histórias. Com o auxílio de artigos acadêmicos e técnicas jornalísticas, é possível trazer um novo olhar a partir da riqueza de detalhes contextuais e sensibilidade de escrita. É necessário experimentar novos personagens que contenham diferentes vivências e complexos para entender qual formato de jornalismo pode ser fle- xível, somado a maneiras de apuração mais humanas e sentimentais na prática do jornalismo. Em vista disso, a pergunta problema deste trabalho é: “É possível praticar um jornalismo que retrate fielmente a complexidade de um perfil dinâmico e sensível como a de Monica Benício?” O perfil jornalístico de Monica Benício se encaixa no objetivo de res- ponder a pergunta problema, a partir do formato jornalístico escolhido, porque contém três principais pilares que a tornam uma figura polissêmica: sua ima- gem representativa para o público LGBTQI+, como lésbica e viúva de Marielle Franco; um trabalho e postura diante o combate à violência no estado do Rio de Janeiro e um legado político em ascensão depois do assassinato da ex-ve- readora. Segundo DIAS (1998) o perfil é um dos principais formatos do jornalismo interpretativo, feito a partir de uma narrativa que tem como foco a vida de uma personagem real. É fato que este gênero está em constante transformação e estilos que compõem a linguagem jornalística (SILVA, 2010). A complexidade de Benício foi um desafio para a mídia tradicional, que, com dificuldade, atribuiu palavras de referência à carioca que antes não eram usadas. Um exemplo é o uso da palavra “viúva”, que geralmente é usado nos discursos tradicionais em padrões heteronormativos. Ao atribuir essa palavra a Monica em lugares em evidência, a consequência se torna imediata, trazendo um embate nas discussões conservadoras, visto que a história de Marielle Fran- co alcançou públicos de maneira hegemônica. Essa questão é demonstrada na análise de Araújo & Faria (2018) em uma edição da revista CLAUDIA.

É significativo, ainda, observarmos que Monica Benício foi referida como viúva, pois embora a morte de Marielle tenha sido muito noticiada, o fato de ela ter sido uma mulher lésbica foi muitas vezes silenciado, já que há uma marginali- zação ainda maior para as mulheres homossexuais. (ARAUJO & FARIA, 2018)

TCCs 2019_2 --- 269 Benício era casada com Marielle Franco, eleita vereadora, com quarenta e seis mil votos no estado do Rio de Janeiro, pelo PSOL, em 2016. A parlamentar foi assassinada a tiros em março de 2018 no centro da cidade. Desde então, a investigação corre em segredo de justiça. A morte se tornou uma grande discussão política pelo que a carioca lu- tava no seu mandato, em prol dos direitos LGBTQI+, feministas, negro e pe- riférico. A moradora da comunidade da Maré procurava a fundamentação dos direitos humanos e se manifestava, principalmente, contra a violência policial nas comunidades do Rio de Janeiro. Desde então, sua esposa Monica, que trabalhava no campo da arquitetura, se tornou para a mídia, ativistas e ONGs internacionais a voz de cobrança em prol da conclusão do caso de assassinato de Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, que estava presente no momento do atentado e também foi atingido. Com todos esses elementos históricos, Monica se tornou uma persona- gem de característica polissêmica, segundo termos definidos por Beth Brait em 1987, que é apresentado “a partir de sua complexidade, normalmente dinâmica e particularizada às idiossincrasias humanas.”

A contemporaneidade tem no sujeito o seu fio condutor; o jornalismo tem no personagem o centro do perfil. Através deste formato, sem dúvida, podem ser construídos verdadeiros retratos jornalísticos (...) Nesse contexto (...) a personagem se liga a fatores essenciais do seu convívio para conceber sua visão de mundo. (BRAIT, 1987)

Ao visibilizar o discurso LGBTQI+, periférico e feminista, a arquiteta não costuma esconder seu lado pessoal, evidenciando somente o político. A partir dos estudos cognitivos de representação social da psicologia fun- damentada por Doise (2002), é constatado que a figura de Benício em relação ao caso de Marielle Franco viralizou nos círculos sociais de resistência progres- sista por representar causas em comum.

REFERENCIAL TEÓRICO

A partir da teoria de ação cognitiva desenvolvida por Bennett e Segerberg (2012), a figura de Benício viralizou como símbolo de lutas sociais e progressis- tas graças a intersecção entre o campo digital e coletivo da internet e organi- zação de movimentos sociais e protestos.

TCCs 2019_2 --- 270 Enquanto a ação coletiva impõe a necessidade de criação de um “nós” por meio de consensos e eventuais apagamentos de diferenças e divergências, a lógica da ação conectiva intensifica a possibilidade de personalização. (BENNET & SEGERBERG, 2012)

Dessa maneira, coletivos foram organizados para cobrar e acompanhar o fluxo de investigação do caso. Através do que Marielle Franco representava, a mídia começou a trazer novos discursos e fontes que não costumavam ser tradicionais: as maiorias minorizadas. O discurso das fontes, que tinham relação com Marielle Franco eram figu- ras negras, LGBTQI+ e periféricas. Isso foi, por necessidade técnica, colocado em pauta na mídia, de maneira mercadológica por conta da cultura popular e no objetivo de embater as fake news que viralizaram na época.

Neste caso, a força da internet foi fator importante na disseminação dos debates de assuntos com grande repercussão e também como resistência à propagação das notícias falsas que foram geradas. Em meio ao fluxo de notícias, as comunidades periféricas, negra e LGBT uniram-se para que o discurso de Marielle ficasse ainda mais forte e rebater as falsas informações que tentavam atacar a imagem e trajetória da vereadora. (BARBOSA & SANTIAGO, 2018)

O papel de Monica em meio a toda essa questão foi de principalmente vi- sibilizar o relacionamento entre duas mulheres em um país que silencia o públi- co lésbico e LGBTQI+ na mídia, assim começando a traçar um legado político. A imagem da arquiteta, portanto, traz uma complexidade ao denotar o sentido da palavra “viúva” que se é trabalhado nos discursos heteronormativos. A figura de Monica como viúva, assim como apresenta a revista CLAUDIA foi pouco usada no discurso midiático nos dias seguintes ao atentado.

Não se pode negar que a homofobia brasileira traz desafios aos modos de dizer do jornalismo, visto que a grande imprensa ainda passa por tensões que marcam as construções de gênero e sexualidade no Brasil. Essas tensões fazem parte de disputas de sentidos em que diversos atores sociais (religiões, instâncias de defesa dos direitos humanos e comunidade LGBT, partidos polí- ticos, dentre outros) buscam imprimir às informações jornalísticas referentes às questões que envolvem a sexualidade. (HIGIDIO, 2017)

Desta maneira, Monica se fazia bastante presente dentro das redes sociais e do que representava através da figura de Marielle Franco. Em meio a compli- cações nas investigações, ela como representante política do público LGBTQI+

TCCs 2019_2 --- 271 e feminista foi chamada para diversas atuações e discursos envolvendo os direi- tos humanos, pauta que também dedicou sua vida acadêmica. Visto que hoje, após receber centenas de ameaças de morte, a levando a solicitar proteção internacional à Anistia, Benício marca presença em congres- sos internacionais e manifestações de grande poder ideológico. Assim, a arqui- teta deixa de exercer seu papel de costume para representar as ideais que sua esposa representava, assumindo uma agenda de representação ativista. Ao mesmo tempo em que se tornava figura pública, Monica nunca tinha se preparado para estar em um palanque de representação social de tal nível.

[...] a adesão prioritária a valores universais e de harmonia social está siste- maticamente em relação com uma representação mais favorável e com um comprometimento mais pessoal em relação aos direitos humanos, enquanto que um posicionamento oposto é acompanhado de ceticismo. Ainda, uma consciência e uma experiência mais aguda de conflitos e de injustiça condu- ziriam a um comprometimento mais pessoal, oposto a uma atitude governa- mentalista. (DOISE, 2002)

A carioca se tornou herdeira simbólica da vereadora, que não foi tão reconhecida em vida, mas que depois de sua morte levantou um grande movi- mento social pelo que tem como causa todo o contexto de combate à violên- cia nas comunidades periféricas.

BIOGRAFIA

Para a compreensão do leitor diante essas questões é preciso abordar uma nova forma de se fazer biografia, pesquisado por Eduardo Silva (1997) e complementado por Schmidt (1998).

Os trabalhos recentes procuram fugir deste viés apologético, encarando seus personagens como vias de acesso para a compreensão de questões e/ ou contextos mais amplos. (SCHMIDT, 1998)

Através de um estudo de Dom Obá II d`África, Silva (1997) procurou recuperar uma ambiência cultural e universo simbólico prevalecentes em todos os personagens daquela sociedade do século XIX. Assim como Silva, o jornalista Fernando Morais afirma que “um perso- nagem me seduz quando, além de ter tido uma vida rica, interessante, permite que, por intermédio de sua trajetória, seja possível recontar um pouco da his- tória não oficial, da história que não nos contaram nos bancos de escola”. A história não oficial e subjetiva da vida de Monica em relação aos

TCCs 2019_2 --- 272 complexos de uma vida ao lado da vereadora Marielle Franco tem importância histórica e jornalística diante complexos técnicos e de mediação social. Segundo Medina (1996) a entrevista é uma dos principais braços da mediação social, em que mantém o “real imediato”, com intersecção do autor da obra. Diante uma peça jornalística de peso, não se trata o jornalismo como algo completamente imparcial. Quando o contexto e legado político é ativista, o livro e outras retratações se torna ativista, logo o jornalismo vira uma forma de ativismo.

Além disso, todo jornalismo é uma forma de ativismo. Toda escolha jorna- lística necessariamente abraça suposições altamente subjetivas - culturais, políticas ou nacionalistas - e serve aos interesses de uma facção ou de outra. (KELLER, 2013)

Nessa escolha, os vínculos entre o público-alvo e a peça são diretos, fazendo com que o leitor cultural atue na mediação. Nisso, é necessário a con- textualização do cenário de violência na cidade do Rio de Janeiro e relatos de moradores para humanizar e detalhar cada história. Esse lado polifônico traz uma dinâmica melhor a personagem principal, aumentando a perspectiva de vivência e coro pois o enriquecimento na participação desse leitor cultural depende de “competência ética, técnica e estética”.

A cosmovisão complexa e interpretação se expressa no ato jornalístico por excelência, quando o mediador capta, se relaciona e reporta o real presente; se pões serviço de um projeto de leitura permanente no ato analítico e se concretiza no ato expressivo da mensagem mediadora. (MEDINA, 1996)

Nesse sentido, o personagem também estabelece uma tríade entre o indivíduo e o coletivo em que vive reformando seus comportamentos e ações socioculturais. A linguagem acaba sendo, então, recheada de argumentos, emoções e conceitos culturais exigindo uma escrita longe de ser simples ou reduzida.

JORNALISMO LITERÁRIO

O jornalismo literário, muito usado nas redações atualmente, é uma técni- ca que amarra o texto poético e os critérios de noticiabilidade. Isso possibilita que o jornalista crie um texto com suas marcas pessoais, com contextualização e imersão do produto.

TCCs 2019_2 --- 273 [O jornalismo literário] significa potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead (...) e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos (PENA, 2011).

A maneira mais bem definida para configurar a linguagem e o tipo jor- nalístico desta edição é a literária. Segundo Lima (2004, p. 173), a partir do mo- mento em que o texto jornalístico evoluiu da notícia para a reportagem, é que surgiu a necessidade de se buscar outras técnicas para um melhor tratamento da mensagem. E dessa maneira que a literatura se aproxima do jornalismo para surgir uma narrativa extensa e estereotipada que busque trazer um corte amplo e real. Para o autor, o jornalismo literário significa potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcio- narem visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide, evitar os definidores primários e, principalmen- te, garantir perenidade e profundidade aos relatos. Para Pena (2006) com isso, “busca-se a permanência. Busca-se influenciar ‘o imaginário individual e coletivo em diferentes contextos históricos’”. Neste contexto, as técnicas do jornalismo literário se dão necessárias para encontrar as ferramentas e histórias de pessoas que merecem ter seu nome registrado no tempo, sem as amarras e delimitações do jornalismo de hardnews. Os relatos possuem mais detalhes e imersão para ter fidelidade à realida- de dos fatos em que o narrador é em terceira pessoa para simular “um registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à materialização dos seres que a vivem” (Schmidt, 1998).

DESENVOLVIMENTO DA PEÇA PEÇA, ESTILO E LINGUAGEM

O livro-reportagem em questão conta a vida e o contexto de Monica Be- nício, não somente depois de sua ascensão na vida política, mas também todo a sua trajetória como moradora do Complexo da Maré no Rio de Janeiro. “Luto em luta: a trajetória política de Monica Benício” conversou com o produto e o formato de mediação social, citado no capítulo anterior, que exige uma linguagem e relação ampla com os personagens. Foi realizada fotos exclusi- vas da família de Benício e alguns documentos de memória de sua relação com

TCCs 2019_2 --- 274 sua esposa e irmãos. Porém, por conta de escolha estética, foi escolhida uma ilustração para a capa do livro, junto com uma identidade visual mais leve e mi- nimalista para equilibrar o tom da peça, que não tem o objetivo de ser pesada, ou de alguma forma fúnebre. Para separar as partes do livro de maneira linear, foi aplicada uma página exclusiva para o número e nome do capítulo, com cor diferenciada da do res- tante da peça. A diagramação aplicada foi simples, de cores pretas e brancas com espa- çamento artístico e destaque para olho em itálico. Essa escolha permite trazer destaque para as falas de maior impacto e relevância dentro do livro. A fonte Times New Roman, tamanho 12 está presente em todo o miolo, no texto tradicional. A opção de usar tamanho 14 foi por questões estéticas, na orelha e verso do livro. Os nomes dos capítulos carregam um ar de jornalismo literário para a peça destacando a subjetividade da personagem. Nomes como “A Maré da Infância” e “As sementes que viraram frutos” tem como objetivo oferecer um tom poético e ambíguo, trazendo uma leveza ao tema.

FONTES

Para a escolha das personagens, objetivou-se inicialmente, a personagem central e as pessoas que vivem a sua volta e são importantes para sua vida. Assim como, sua mãe, pai, familiares, amigos e figuras já conhecidas na mídia como Talíria Petrone e as deputadas estaduais que tinham grande contato com Marielle Franco e Monica. Algumas entrevistas foram realizadas pessoalmente, no Rio de Janeiro, e outras via vídeo conferência. A entrevista é a etapa mais importante na elaboração do perfil, porque é onde se busca aproximação com o personagem, não deixando se limitar com perguntas duras ou totalmente preparadas.

Ao lidar com o perfil humanizado, consciente ou inconscientemente, se faz presente o imaginário, a subjetividade. Como enquadrar nos limites de um questionário fechado, duma cronologia rígida, de uma presentificação radical uma personagem que ultrapassa estes ditames?” (MEDINA, 1990)

Este trabalho se encaixa na categoria de biografia autorizada, segundo conceito de Sérgio Vilas Boas (2002). A peça tem como objetivo a imersão do leitor com a personagem, a fim

TCCs 2019_2 --- 275 de relatar fielmente a fonte principal e seu contexto diante do que pensa e sen- te não só em relação ao fato do assassinato de sua ex-mulher, mas tudo aquilo em sua volta, assim como angústias, medo, e viver sendo uma mulher lésbica e periférica nas comunidades que estão historicamente sob combate armado no Rio de Janeiro. Os personagens complementares foram essenciais para a construção do livro, visto que Monica, por questões psicológicas, não se lembra muita coisa do passado. Além disso, por ter grande experiência em entrevistas e debates, sua fala muitas vezes acaba sendo mais técnica e igual a outras entrevistas que já deu em veículos de comunicação. Considera-se que a entrevista da mãe, dona Ângela, e melhor amiga, Aria- ne, foram extremamente necessárias e permitiram ter acesso a histórias de infância que deram uma outra dinâmica na peça, com a contextualidade procu- rada para entender na prática esse tipo de jornalismo possível para retratar um personagem polissêmico. Foi necessário entrevistar pessoas da família para ter essa ideia, mas tam- bém foi importante falar com figuras políticas para entender o que é a figura de Monica para a política institucional e quais são os interesses e expectativas em relação a Benício dentro de um contexto de crescimento político. Em paralelo, ativistas de direitos humanos e jornalistas cariocas também somaram com sua visão de correspondente, o que permitiu ter uma visão completa de ambiência ao que se trata do contexto histórico da violência nas comunidades do Rio de Janeiro. Estar lá e entender como funciona a cidade trouxe grande peso na cons- trução da peça.

ESTRUTURA

O livro é dividido em cinco capítulos, que de maneira progressiva, acom- panha a evolução de Monica Benício como pessoa. Antes de começar, há o “Pre- fácio”, que prepara o leitor ao descobrir os objetivos dessa peça e bastidores de apuração. “A Maré da Infância”, que é o primeiro capítulo, conta um pouco dos tempos de criança vivendo no Complexo da Maré. Depois disso, “A morte do amigo” é um capítulo inteiro dedicado a contextualização da violência no esta- do do Rio de Janeiro, com uso de dados e relatos de especialistas. Toda a evolução de capítulos e discursos no texto tem uma preocupa- ção de contexto, ambiência e sensibilidade aos personagens. A estrutura tem como objetivo mostrar que o homem é o produto do meio e absorve vivências

TCCs 2019_2 --- 276 para a construção de seu ser. Cada quebra de capítulo tem um final cativante, para instigar o leitor. A página de entrada tem caráter minimalista, com um fundo preto 70%, represen- tando luto e construção, fazendo referência ao que a figura de Monica é hoje. Cada capítulo tem em torno de dez páginas e todos são em terceira pessoa, com exceção do “Prefácio”. O capítulo um, “Maré da Infância”, como dito, conta a história da infân- cia de Monica como moradora do Complexo da Maré. Nessa seção, as falas de sua mãe, Ângela, são essenciais para traçar uma trajetória de memória afetiva da arquiteta, humanizando seu cotidiano de primeira infância e complexos a sua volta em um cenário de violência e coletividade. O segundo capítulo, “A morte do amigo”, contextualiza justamente esse cenário de violência, a partir de uma situação traumática e inesquecível para Monica. Dentro desse contexto, foi possível falar um pouco mais sobre a deficiência da segurança pública no Rio de Janeiro, a partir de fontes coadju- vantes que foram extremamente necessárias para a construção de um perfil detalhado da cidade. Uma grande preocupação foi construir cada capítulo ligado ao outro. Visto que todo esse contexto foi importante para a construção da Monica como ser humano, o terceiro capítulo, “O ativismo e olhar crítico de Monica”, conta exatamente essa percepção pessoal que a levou a se construir e blindar em torno desses complexos. O quarto capítulo, “Marielle Franco, presente” contextualiza o evento que mudou a vida de Benício. Nesse capítulo, a personagem principal é retrata- da com bastante sensibilidade e detalhe, no objetivo do leitor compreender o que se passou durante momentos de tristeza e luto profundo. Os depoimentos de amigos e estudos profissionais sobre psicologia e neurologia foram essen- ciais para a construção dessa seção, visto que é um ponto extremamente difícil de Monica se expressar. O último capítulo, “Quando as sementes viram frutos”, tem o objetivo de trazer esperança para os leitores. A seção se concentra nos momentos pos- teriores ao assassinato, depois que nomes políticos que tinham Marielle como inspiração se levantaram para reagir contra a violência e tiveram resultados nas urnas e na política institucional. Ao mesmo tempo, tem um final não concretiza- do, visto que as etapas ainda estão acontecendo e a personagem principal não sabe como será seu futuro, visto o andamento das investigações e as expecta- tivas do PSOL à ela. A estratégia de terminar o livro com uma aspa de Monica é para que o leitor acabe de ler e tenha uma reflexão sensível em torno do tema.

TCCs 2019_2 --- 277 PRODUÇÃO

Antes de começar as entrevistas oficiais, foi desenvolvido com a ajuda de meu orientador, um roteiro detalhado para que o tema não fosse prejudicado com as notícias e investigações do assassinato de Marielle Franco. Durante essa pré-produção foi dado devida atenção à minha segurança durante a apuração, e a responsabilidade ao citar nomes, histórias e contextos que poderiam desviar do tema, assim como o possível envolvimento de milicia- nos no caso Marielle e o andar da investigação que vem sendo divulgada com êxito pela grande mídia. Por essa questão, desenvolvemos um roteiro totalmente focado na histó- ria e evolução política de Monica Benício, que teve sua esposa como uma das grandes influências, se tornando algo inevitável de não tocar no assunto. Por esse motivo, foi dedicado os dois últimos capítulos para contextualizar todos esses momentos, visto que também há um interesse público. Nas entrevistas, foi preciso ter um senso de filtrar algumas falas ou si- tuações, visto que os personagens estavam pessoalmente envolvidos no caso Marielle e tinham muita coisa a falar em relação a isso, inclusive não oficiais. Foi respeitado o pedido de não divulgação de algumas informações. No geral, toda a apuração precisou ser tratada com extremo cuidado e respeito, não se prendendo a perguntas diretas ou roteiros. Na produção do livro escrito, destaquei as falas, as separei em ordem cro- nológica e segui o roteiro já pré-produzido juntamente com meu orientador. A escolha da foto para a capa já havia sido pensada previamente e encomendei a ilustração durante a produção da peça. A diagramação foi feita após a conclusão dessa parte e mandada para a gráfica logo após. Depois de algumas alterações feitas a partir da prova forne- cida pela empresa, a produção foi finalizada.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi um desafio escrever um livro lidando com personagens duos e sensí- veis, mas também uma lição de vida. O principal objetivo do trabalho é de ofe- recer aos leitores uma biografia sem estereótipos e fiel aos relatos de Monica Benício, seus amigos, familiares e especialistas que vêm, em paralelo, acompa- nhando todo o curso das investigações de Marielle Franco e a superação da perda. Para isso, tive de obter alguns conhecimentos técnicos da psicologia e ter bastante sensibilidade aos detalhes, para poder descrever na peça. Detalhes

TCCs 2019_2 --- 278 como gestos, olhares inseguros e pausa na fala ofereceram uma riqueza a mais no contexto de entrevistas. Também usei como técnica não ficar presa a perguntas já preparadas e sim tratar tudo como uma grande conversa. Me encontrei em lugares públicos e descontraídos em que cada personagem se sentisse à vontade. Além do peso histórico que busquei, também tive como objetivo principal o respeito à dor dessas pessoas e à integridade física de todas elas, inclusive eu. Com isso, criei um elo muito especial com todas as fontes e acho esse resulta- do extremamente positivo. Uma das principais dificuldades foi lidar indiretamente com um assunto que ainda está em curso. A investigação da morte de Anderson Gomes e Ma- rielle Franco está sob segredo de justiça e bastante especulação midiática. A cada semana é divulgada uma nova informação. Por conta disso, a escolha foi de focar nas percepções temporais da própria personagem, mais lidando com o passado e sobrevivendo no presente, do que contextualizar com mais detalhes o andar das investigações, como explicado no capítulo anterior. Isso me deu uma outra percepção de resultado e estrutura, porque tive que me atentar a detalhes de pré-produção para não correr riscos quando o livro fosse oficial- mente publicado para à Banca. Com a humanização dos personagens e o detalhamento de pensamentos, sentimentos e ambientação aprendi muito ao buscar um jornalismo sensível e de ampla relação com os personagens, que se não fosse isso, não confiariam em mim o suficiente. Lidei, durante a produção, com questões socioculturais entre o território e o sujeito na base da contextualização historicamente detalhada e tive acesso à personagens essenciais para o livro por conta de todo esse cuidado na apuração. Assim, percebo que a metodologia e os referenciais teóricos escolhidos foram uma ótima escolha na produção da reportagem. Com a ajuda do meu orientador, conheci “Povo e Personagem”, da autora Cremilda Medina, que foi uma das minhas principais bases de leitura, assim como “Dom Obá II D’África. Príncipe do povo” de Eduardo Silva. Mesmo tendo conhecimento de que preciso melhorar cada vez mais, a minha evolução na escrita foi muito satisfatória para mim. Produzir um livro exige uma expertise de linguagem, expressões e técnicas. Pretendo publicá-lo em breve, mas quero, primeiro, aperfeiçoar ainda mais essa parte. Com base nisso, conclui-se que a pergunta problema “é possível praticar um jornalismo que retrate fielmente a complexidade de um perfil dinâmico e sensível como a de Monica Benício?” foi respondida de maneira positiva, usando de discursos polissêmicos e técnicas dos autores citados neste relatório.

TCCs 2019_2 --- 279 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, Edna; FARIA Luisa. CONGRESSO NACIONAL UNIVERSIDADE, EAD E SOFTWARE LIVRE, 9., 2018, Minas Gerais. O feminino e a tem- poralidade. Minas Gerais: Universidade Federal de Minas Gerais, 2018. 1 v. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2019.

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MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível. São Paulo: Ática, 1990. MEDINA, Cremilda. Povo e Personagem. São Paulo: Editora da Ulbra, 1996.

TCCs 2019_2 --- 280 SHMIDT, Benito Bisso. Luz e papel, realidade e imaginação: as biografias na história do jornalismo, na literatura e no cinema. São Paulo, 1998. SILVA, Amanda Tenório Pontes da. A vida cotidiana no relato humanizado do perfil jornalístico. 2010. 10 f. Tese (Mestrado) - Curso de Jornalismo, UFPB, Paraíba, 2010.

SILVA, Eduardo. Dom Obá II D’África: O Príncipe do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

TCCs 2019_2 --- 281 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 282 UM ANO COM ELA Relatório de Realização de Documentário Performático sobre um Paciente com Esclerose Lateral Amiotrófica

JULIANA GARCIA Orientador: Hugo Harris

TCCs 2019_2 --- 283 RESUMO

Esta peça visa um documentário com embasamento em técnicas do jor- nalismo. O produto floresceu do acompanhamento ao decorrer de um ano de um paciente, Victor Garcia, portador de Esclerose Lateral Amiotrófica, doença degenerativa rara. A partir das gravações feitas por sua filha Juliana Garcia, ques- tionamentos sociais acerca dos cuidados com cidadãos com alguma desordem motora e toda rede de suporte aos mesmos foram instigados. Portanto, duran- te todo o processo do trabalho acadêmico, a pergunta-problema foi: “Como um documentário pode trazer visibilidade para a ELA, a partir de um portador da doença?”. A questão em debate aflorou a partir de uma pesquisa quantita- tiva informal1, compartilhada no Facebook com 222 pessoas, em que 45.9% responderam que não conheciam a doença. Para desenvolver a parte teórica, foram analisadas obras básicas do documentário, nomes como Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, Bill Nichols e Fernão Pessoa Ramos foram consultados para engrandecer o conhecimento pré-apurado durante a graduação de Jornalismo. O conteúdo final expõe a perspectiva performática, com preocupação poética, pessoal e que procurou certo distanciamento na hora de mostrar os fatos e posicionamentos dos entrevistados. Por fim, a finalização da peça expandiu re- pertório, perspectiva de narrativas e olhar crítico sobre trabalhos particulares.

Palavras-chave: 1. Documentário Performático 2. Esclerose Lateral Amio- trófica 3. Jornalismo

TCCs 2019_2 --- 284 8

ABSTRACT This piece aims at a documentary based on techniques of journalism. The product flourished from follow-up over a year of a patient, Victor Garcia, with Amyotrophic Lateral Sclerosis, a rare degenerative disease. From the recor- dings made by her Juliana Gracia, social questions about caring for citizens with some motor disorder and the entire support network for them were instigated. Therefore, throughout the academic work process, the problem question was: “How can a documentary bring visibility to ALS from a carrier of the disease?”. The issue under discussion emerged from an informal quantitative survey2, sha- red on Facebook with 222 people, in which 45.9% answered that they do not know the disease. To develop a theoretical part, basic works of the documen- tary were analyzed, names such as Counselo Lins and Cláudia Mesquita, Bill Nichols and Fernão Pessoa Ramos were consulted to improve the pre-deter- mined knowledge during the Journalism course. The final content exposes the performative perspective, with poetic, personal concern that sought a certain distance when showing the facts and positions of the interviewees. Finally, the completion of the lay expanded repertoire, narrative perspective and critical eye on personal work.

Keywords: 1. Performative documentary 2. Amyotrophic Lateral Sclerosis 3. Journalism

TCCs 2019_2 --- 285 INTRODUÇÃO

A presente pesquisa deu base para o documentário do perfil de um por- tador de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). De acordo com o site da As- sociação Pró-Cura da ELA, a doença atinge os neurônios motores do corpo, responsáveis pelos movimentos voluntários dos músculos, até que ocorra a paralisação completa do sistema pulmonar, que pode levar à morte. Conforme informações do site do Instituto Paulo Gontijo (IPG), esta rara desordem afeta, em média, 15 mil brasileiros, ou seja, menos de 1% da população nacional. E, com base em estudos epidemiológicos da organização norte-ame- ricana ALS CARE, citados pelo Pró-Cura (2019, web)1, 60% dos diagnósticos ocorrem em homens e 93% desses em brancos. Além disso, os casos começam a ser mais frequentes quando esses pacientes atingem os 40 anos. Contudo, a partir dos 70, a porcentagem no sexo masculino e feminino tende a se igualar. Em contramão a esse dado, a primeira ocorrência de sintomas de pro- gressiva paralisia dos membros, registrada pelo escocês anatomista, cirurgião e fisiologista Sir Charles Bell, foi de uma mulher de meia idade em 1830. Segundo o Movimento em Defesa dos Direitos da Pessoa com ELA (MOVELA), mesmo depois de um século, a cura ainda não foi descoberta. Somente um remédio, o Riluzol, capaz de retardar por três meses a completa degeneração do sistema nervoso, que tende a acontecer entre 3 e 5 anos após o diagnóstico. Contudo, em março de 2018, de acordo com o portal de Saúde do Go- verno, o Ministério da Saúde destinou R$2,3 milhões para a construção de um laboratório de células-tronco, que devem ajudar no tratamento da doença de Lou Gehrig, outro nome dado à ELA. A ação, da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS), coloca em prática o projeto ideali- zado pelo médico e diagnosticado com esclerose Hemerson Casado. Em entrevista ao Jornal de Brasília (2015, web)2, a Profa. Melinda Beccari, pesquisadora de ELA em parceria com o Grupo Fleury e com o Instituto Paulo Gontijo (IPG), afirmou que a aplicação de células-tronco pode ser capaz de estacionar o avanço do quadro clínico, que muitas vezes está em uma situação avançada, já que o período até a identificação pode ser de, em torno, 11 meses. A razão para demandar tanto tempo, comenta, na mesma matéria, o Prof.

1 http://procuradaela.org.br/pro/a-ela/quem-desenvolve-ela/ - Acesso 14 set. 2019

2 http://www.jornaldebrasilia.com.br/saude/diagnostico-de-ela-no-brasil-demora-em-media- -quase-um-ano/ - Acesso 19 ago. 2018

TCCs 2019_2 --- 286 Dr. Acary Souza - neurologista e um dos fundadores da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (ABrELA) –, é o desconhecimento sobre a doença. Essa falta de informação leva a pergunta problema que procurei responder com o presente trabalho: “Como um documentário pode trazer visibilidade para a ELA, a partir de um portador da doença?”. Essa questão me instigou de forma pessoal, já que o personagem da obra, Victor Garcia, é o meu pai. Por isso, o mecanismo que usei para responder a indagação foi pela captura de cenas que evidenciam a evolução dos sintomas durante um ano. O grande objetivo deste material foi fazer o público perceber a necessi- dade de se criar empatia por quem tem dificuldades motoras ou disfunções de saúde e chamar a atenção do poder público sobre a maior necessidade de investimentos em pesquisas sobre a Esclerose Lateral Amiotrófica no Brasil. Em segundo plano estava o foco em realizar um produto jornalístico que infor- masse aos cidadãos sobre a enfermidade degenerativa e seus desfechos, além de poder trabalhar habilidades de gravação e roteirização ao construir o vídeo. Para tornar esses planos possíveis e para que, no fim, a peça pudesse ser usada como portfólio profissional, foram feitas entrevistas com médicos in- fluentes na área. Fontes como o Dr. Acary Souza, que acumula 35 anos de experiência no tema e é membro fundador da ABrELA - que presta suporte aos pacientes e familiares de Esclerose Lateral Amiotrófica -, engrandeceram a discussão tanto do projeto escrito quanto do resultado audiovisual, através do compartilhamento de histórias e esclarecimento de dúvidas sobre a vida com ELA. Outro item desmembrado foi o acompanhamento da rotina do persona- gem do documentário, que, por vontade própria, também quis ter sua luta re- latada para mostrar às pessoas a força não só física, mas psicológica que acaba sendo enfraquecida com o quadro. Por meio do audiovisual, área que quero seguir profissionalmente no jor- nalismo, que a representação de um aspecto da vida pode ganhar diversos olha- res, já que depende da perspectiva que o diretor cria à peça, como Bill Nichols (2010, p.20) defende:

Quando acreditamos que o que vemos e testemunho do que o mundo e, isso pode embasar nossa orientação ou ação nele. [...] Assim fazem muitos documentários, quando têm a intenção de persuadir-nos a adotar uma de- terminada perspectiva ou ponto de vista sobre o mundo.

TCCs 2019_2 --- 287 O foco trabalhado durante as gravações foi o retrato fiel do dia a dia do paciente da doença de Lou Gehrig, a fim de combater o desconhecimento acerca dela na sociedade e atingir notoriedade sobre o assunto. A justificativa pela escolha de fazer um documentário se dá, como defende Luiz Carlos Lucena, em seu livro Como Fazer Documentários: conceito, lingua- gem e prática de produção (2012), pela facilidade em disponibilizar um vídeo na internet. Onde a rede e capaz de atingir, independentemente da classe e etnia, “pessoas nos quatro cantos do planeta”. Com isso em foco, a metodologia que tomei para início de discussão foi o acompanhamento íntimo com o portador, o levantamento de dados, bi- bliografias e a conversa com especialistas em neurologia. Afinal, a formação em jornalismo ensina a se munir antes de sair à campo, isto é, a apuração dos fatos deve ser bem-feita antes da construção do produto. A princípio, o documentário dirigido por J. Clay Tweel, A Luta de Steve (2016), sobre o caso de um jogador norte-americano diagnosticado com ELA e a produção de Petra Costa, Elena (2012), sobre a recuperação com o passado e um tratar de contas com a morte da irmã, apresentam visões de edição, posi- cionamento de câmera, melodias, aspectos linguísticos e audiovisuais que vão ao encontro com a vertente social que procuro mostrar na produção.

REFERENCIAL TEÓRICO

O perfil de um portador de ELA no Brasil Doença Dificuldade ao andar, comer, falar e respirar são algumas das consequên- cias que a ABrELA (Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica) cita como os desdobramentos da Esclerose Lateral Amiotrófica, ou conhecida nos Estados Unidos como Lou Gehrig e na França como doença de Charcot, em portadores da degeneração. De acordo com Adriana Leico Oca, em ELA: Escle- rose Lateral Amiotrófica (2018):

é uma doença neurológica que causa paralisia progressiva em praticamente todos os músculos esqueléticos, comprometendo a motricidade dos membros, a fala, a deglutição e até mesmo, a respiração. Os pacientes, frequentemente, vivem em média de dois a cinco anos após o início dos sintomas. Cerca de 10- 20% dos casos, possui sobrevida com os sintomas motores acima de cinco anos. [...] o acometimento da doença não se restringe à esfera motora, podendo se associar a síndromes demenciais [...], a sintomas e sinais de parkinsonismo e a outras complicações neurológicas e sistemáticas. (OCA et al., 2018, p. 25 e 26)

TCCs 2019_2 --- 288 Oca ainda escreve que a ELA não tem explicação científica, contudo estu- dos a relacionam ao fator genético. A enfermidade se encontra entre as doen- ças raras do mundo, “cerca de dois casos para cada 100.000 pessoas/ano”. (p. 38). Sendo que “calcula-se que 1 em cada 200 indivíduos tenha um membro familiar afetado pela ELA”. (p. 38). Do número de pessoas atingidas pelo mal, a cada três homens existem duas mulheres afetadas. A maior porção também é na população branca e no homem, com idade média de 57 anos. Segundo o portal de informações da ALS Canada (2018, web)3, a doença de Lou Gehrig para de transmitir informações entre o cérebro e o resto dos músculos, o que leva a completa paralisação do sistema nervoso e à morte.

A forma mais comum de ELA é chamada ELA esporádica, ou seja, a doença pode afetar qualquer pessoa, independentemente do sexo, etnia ou idade, embora na maioria das vezes acometa pessoas entre 40 e 60 anos. O outro tipo de ELA é chamado ELA familiar, o que significa que é capaz de ser pas- sado de um pai para o seu filho. Aproximadamente 5 a 10% dos casos de ELA são familiares.

Quanto ao número de pessoas atingidas em patamar global, a ALS estima que sejam mais de 200.000, das quais, o site do Instituto Paulo Gontijo (IPG) rastreia 15 mil brasileiros dessa porcentagem. Mas, para a Assistente Social Fabiana Theodoro4, da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (ABrELA), as pesquisas no Brasil para rastrearem a porcentagem de atingidos por ELA caminham de forma difícil, já que a pessoa demora cerca de um ano para descobrir o problema. Porém ressalta:

Apesar da lentidão no diagnóstico, o que dificulta criar um índice oficial, que precisa ser pesquisado, por no mínimo 2 anos, os órgãos em apoio à ELA querem se unir para elaborar uma estimativa média de quantas pessoas no Brasil vivem com a doença.

Por mais que o número de atingidos, mesmo que enquadrados como pa- cientes de uma doença rara, seja grande, um alto volume da população ainda desconhece a doença de Lou Gehrig. Em pesquisa quantitativa informal7, divul- gada no Facebook, onde 222 pessoas participaram, 45.9% responderam que

3 https://www.als.ca/about-als/what-is-als/ - Acesso 29 out. 2018 4 Informação concedida em entrevista para a autora deste trabalho no dia 24 de outubro de 2018

TCCs 2019_2 --- 289 não conheciam a doença. Contudo, 69.8% recordam do “Desafio do Balde de Gelo”, chamado em inglês de “The Ice Bucket Challenge”, que arrecadou US$ 115 milhões para a causa, número levantado pela ALS Association durante os dois meses de maior compartilhamento do projeto. Em divulgação do G1 (2017, web)5 a brincadeira, criada em 2014 pelo ame- ricano Anthony Senerchia Jr., que faleceu da doença em 2017, teve como viés ilustrar por alguns segundos a paralisia do corpo, como acontece com a evolu- ção da ELA, tornar notável a rara disfunção e adquirir fundos para ajudar com a causa no país.

Tratamento Como já citado, a Esclerose Lateral Amiotrófica não tem cura. O único tratamento usado, conforme Oca (2018) relata, são as drogas inibidoras da ex- citotoxicidade pelo glutamato, conhecidas por Riluzole ou Riluzol, que “prolon- ga a vida de 3 a 6 meses.” (p. 51). Além disso é primordial o acompanhamento interdisciplinar com “enfermeiro, fisioterapia motor e respiratório, fonoaudio- logia, médico, nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional [...] advogado, arquiteto, assistente social, dentista, educador físico e farmacêutico” (p. 58) para manter a mínima qualidade de vida do paciente. O remédio, segundo a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (2017, web)6, pode ser retirado gratuitamente pelo SUS. Entretanto, uma série de atrasos nos repasses acontecem, já que a medicação é importada. Exem- plos de locais que sofreram com a falta de distribuição: Piracicaba (ROCHA, 2018, web)7; Alagoas (MENDES, 2018, web)8; São Paulo, 2018, notícia divulgada no (GLOBO, 2018, web)9. Sobre o atraso, em outubro de 2018, na cidade de São Paulo, a atendente Juliana da Ouvidoria do SUS10, que não quis identificar seu sobrenome por

5https://g1.globo.com/bemestar/noticia/morre-aos-46-homem-que-inspirou-desafio-do-balde- -de- gelo.ghtml - Acesso em 29 out. 2018 6http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relacao_nacional_medicamentos_rename_2017. pdf - Acesso em 29 out. 2018 7http://www.gazetadepiracicaba.com.br/_conteudo/2017/04/canais/piracicaba_e_re- giao/477353- remedios-de-alto-custo-estao-em-falta-na-cidade.html - Acesso em 29 out. 2018 8https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2018/09/portadores-de-ela-denunciam-falta-de- medicamento-em-alagoas-_61444.php - Acesso em 29 out. 2018 9https://globoplay.globo.com/v/7101104/programa/?fbclid=IwAR2tt9iPskf7Rl6ncBOeEOA- C7OP- 5WNtBcKvoHGqX_MM1mz1YF2C23GpWz4 – Acesso em 29 out. 2018 10 As informações foram passadas por meio de telefonema, feito dia 04 de outubro de 2018, ao número (11) 3066-8359, responsável pela Ouvidoria do SUS

TCCs 2019_2 --- 290 medo de comprometer seu trabalho, informou:

esse medicamento não é a Secretaria da Saúde que faz a compra, ela só distribui. O Ministério da Saúde envia aos estados e os estados fazem a dis- tribuição nas farmácias de alto custo. O que o Ministério nos informa é que o medicamento está em atraso por conta do fornecedor, então não temos como dar uma previsão de retorno do Riluzol.

Em muitos casos como esse, os pacientes precisam pagar do próprio bol- so o remédio, de R$2,5 mil para uma caixa de 30 comprimidos de 50g em redes privadas, informação do portal Terra (SIQUEIRA, 2015, web)11, para manterem o tratamento em dia. Os custos para preservar a vida dos enfermos também au- mentam a partir da necessidade do aparelho de comunicação visual por com- putador, que tem valor mínimo de R$30 mil, citado pelo programa Profissão Repórter (GLOBO, 2018, web)12.

O que é documentário? Depois que o escocês John Grierson usou pela primeira vez o termo “do- cumentário”, como um gênero independente e não ficcional, estabelecido pela Escola Inglesa de Documentário, no artigo Flaherty`s Poetic Moana para o Jornal New York Sun – 08 fevereiro de 1926 –, muitos intelectuais passaram a problematizar o tipo de filme e o seu papel na sociedade. Como escrito no artigo de Max Well, Escola Britânica: a definição de documentário nos anos 30 (2018, web)13: “ci- neastas que viriam a optar por um cinema não-ficcional tiveram que lidar com as conotações de evidência e prova que o termo documentário determina.”

Um deles foi Fernão Pessoa Ramos. Isso fica claro em: Mas afinal...o que é mesmo documentário? (2008). O autor defende que o estilo de documentário clássico, dominante até 1950, com o uso de voz over, também chamada de voz de Deus, que narra os fatos ilustrados de maneira onisciente para guiar o espectador durante o filme, perde a força em 1990, quando o documentário direto exibe uma alternativa de produção. O método utilizado por essa nova

11https://www.terra.com.br/noticias/brasil/ela-portadores-de-doenca-degenerativa-nao-rece- bem- medicamentos,703bc72e442180210adf2959ea5d26e3f65xRCRD.html – Acesso em 11 nov. 2018 12 https://globoplay.globo.com/v/7079840/ - Acesso em 29 out. 2018 13 https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/13765/13765_5.PDF - Acesso em 28 out. 2018

TCCs 2019_2 --- 291 forma, que surge na França, Canadá, Estados Unidos e Inglaterra, de acordo com a análise feita do livro citado acima pela Revista de História e Estudos Culturais (DIAS, 2009, p.8), abandona, muitas vezes, a autoridade da locução, para abrir espaço às entrevistas, presença do cineasta nas gravações e a possibilidade de “manipular” o sentido da obra. Com essa ideia, Ramos (2008, p. 25) resume que:

O documentário, antes de tudo, é definido pela intenção de seu autor de fazer um documentário (intenção social, manifesta na indexação da obra, conforme percebida pelo espectador). Podemos, igualmente, destacar como próprios à narrativa documentária: presença de locução (voz over), presença de entrevistas ou depoimentos, utilização de imagens de arquivo, rara utilização de atores profissionais (não existe um star system estruturando o campo documentário), intensidade particular da dimensão da tomada. Procedimentos como câmera na mão, imagem tremida, improvisação, utilização de roteiros abertos, ênfase na indeterminação da tomada pertencem ao campo estilístico do documentário, embora não exclusivamente.

Outro ponto que o escritor debate em seu livro é quanto ao uso de ganchos relacionadas ao povo para fazer as afirmações sobre o mundo, que o documentário prevê. Ele defende que a utilização da imagem da população é feita, normalmente, de modo mais natural. Contudo, Consuelo Lins e Cláudia Mesquita ao analisarem diversas obras produzidas no Brasil, em Filmar o real: sobre o documentário brasileiro con- temporâneo (2015), concluem que hoje o assunto é priorizado em detrimento do todo, ou seja, as gravações tendem a ter uma abordagem mais íntima das “experiências socialmente demarcadas”:

Ao invés de almejarem grandes sínteses, análises ou interpretações de situ- ações sociais mais amplas, os documentários buscam seus temas através do recorte mínimo, abordando experiências e expressões estritamente individu- ais. [...] evitando o ensaio que poderia, a partir de características transversais ou generalizações, relacionar tais experiências àquelas de outros indivíduos ou grupos, pela via da intepretação ou do diagnóstico. (2015, p. 49 e 50)

Outro aspecto que quem está na posição de documentarista leva em conta, mas dessa vez estabelecido muitas vezes antes de iniciar as gravações, é quanto ao modelo de filmagem que vai ser trabalhado. E entre as formas utili- zadas na produção do documentário, Bill Nichols (2010) relata seis principais métodos de gravação: o poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático.

TCCs 2019_2 --- 292 Sobre esses modos, que “distinguem o documentário de outros tipos de filme”, Nichols coloca a seguinte importância sobre o uso deles em um filme:

determinam uma estrutura de afiliação frouxa, na qual os indivíduos trabalham; estabelecem as convenções que um determinado filme pode adotar e propiciam expectativas específicas que os espectadores esperam ver satisfeitas. Cada modo compreende exemplos que podemos identificar como protótipos ou modelos: eles parecem expressar de maneira exemplar as características mais peculiares de cada modo. (2010, p. 135)

Assim, entende-se que a estética que se usa para relatar o tema da peça também é responsável por gerar, ou não, a interpretação pela qual o artista ansiava com a exibição do documentário.

Um olhar poético e performático dentro do documentário

Como citado anteriormente, o americano Bill Nichols resume seis “subgê- neros do gênero documentário”, dos quais o perfil poetico se caracteriza por “enfatizar associações visuais, qualidades tonais ou rítmicas, passagens descriti- vas e organização formal” e o performático por “enfatizar o aspecto subjetivo ou expressivo do próprio engajamento do cineasta com seu tema e a receptivi- dade do público a esse engajamento. Rejeita ideias de objetividade em favor de evocações e afetos.” (2010, p. 62 e 63)

Entretanto, é possível mesclar os estilos, como fez a diretora Petra Costa em Elena (2012), que construiu uma narrativa, de início poética, que se interliga ao modo performático conforme o andamento do filme. Segundo o Doutorado defendido por Hugo de Almeida Harris (2018), Elementos Constitutivos do Documentário Elena, de Petra Costa, a união dos modelos palpita no especta- dor a sensibilidade necessária para que ele vivencie a história como se fosse parte dela. Harris ainda explica o porquê desse casamento fluir bem:

Talvez por essas características de subjetividade é que haja uma certa aproxi- mação entre o documentário poético e o performático. O poético já demons- tra uma subjetividade marcante na forma de trabalhar os elementos do filme, organizando-os numa estética apurada. Partir para o performático pode ser apenas a concentração do foco narrativo, do fio condutor, em um personagem ou ator-social específico, que pode ser o próprio documentarista. A somatória dos dois é possível, aliando liberdade estética e narrativa. (2018, p. 82)

TCCs 2019_2 --- 293 Pode-se dizer que, segundo as classificações de Nichols, Elena também trabalha um pouco do estilo participativo, já que como Harris constata, o do- cumentário performático vai ao encontro do participativo. Enfim, ambos os modelos trabalham a estética na filmagem. Diferente do que ocorria no documentário clássico, que se assemelha mais ao tipo exposi- tivo, que de acordo com Nichols “enfatiza o comentário verbal e uma lógica argumentativa” (2010, p. 62). Agora na questão do tema a ser trabalhado, onde haja evidência da sub- jetividade e a preocupação com a estética, como requerem o modo poético e performático, pode- se citar, além de Elena, o documentário A Luta de Steve, de J. Clay Tweel (2016). O documentário traz à tona, através da sensibilidade do diretor, as dificul- dades, a relação que por vezes se estremeceu entre o personagem principal e a família, fora o acompanhamento da doença ELA em um paciente específico, o aclamado jogador da NFL Steve Gleason. Aqui percebe-se a emoção acima da razão, ênfase em experiências de vida, relatos, depoimentos, argumento lógico posto de lado para abrir espaço à criatividade do documentarista e maior experimentação, características essas descritas por Bill para explicar o modo poético e performático.

Construção de perfil

Quando o assunto e “perfil”, usado como metodo jornalístico ou literário, o autor, professor e cofundador da ABJL (Associação Brasileira de Jornalismo Literário), Sérgio Villas Boas (2014, web) 14 é mestre em explicar o que esse estilo significa:

o perfil é um tipo de texto biográfico sobre uma – uma única – pessoa viva, famosa ou não. [...] Cada ser humano tem um perfil, assim como cada perfil só pode ser sobre um ser humano. Se a individualidade fosse banida do mundo e os humanos não passassem de robôs programáveis, sem estilo nem identidade, o texto do tipo perfil simplesmente não existiria. O perfil expressa a vida em seu contexto. Atém-se à individualidade, mas não se restringe ao individualismo anedótico, folclórico, idiossincrático.

Uma das grandes diferenciações da construção de um perfil para matérias jornalísticas de hard news está na apuração, que segundo Camila Freitas e Kátia Regina Souza, no trabalho Jornalismo e Literatura: A construção de perfis de celebridades na revista Rolling Stone (2018, p. 224), o profissional de imprensa

14 https://www.sergiovilasboas.com.br/thinking/a-arte-do-perfil/ - Acesso em 27 out. 2018

TCCs 2019_2 --- 294 tende a pautar um personagem que deseja narrativamente. Ou seja, além de detalhar o fato principal, o encontro entre jornalista e en- trevistado resulta em uma troca de detalhes além das informações pré-apura- das, envolve aspectos sensoriais que ajudam a montar e a entender melhor o gancho da matéria. O documentário Zion (2018), de Floyd Russ, pode ser citado para exem- plificar a passagem anterior, já que é notável a busca por informações e a mi- nuciosa presença do documentarista, mesmo que sem aparecer na frente das câmeras, para entender e relatar o assunto com preocupação.

DESENVOLVIMENTO DA PEÇA

Estilo e formação do documentário A grande inspiração para a realização da parte prática do meu documen- tário foi a obra Elena, já citada. A escolha se deu pelo modelo de argumentação poético e, ao mesmo tempo, performático usado pela diretora Petra Costa. Como consta na análise de Hugo de Almeida Harris, esse último modo:

serve para tornar o cineasta protagonista e focar o tema do filme em sua busca. Isso leva a uma construção narrativa extremamente pessoal e subjeti- va que pode ser discutida em seus parâmetros éticos. Mesmo sendo focada no realizador, ou num personagem específico eleito por ele, não deixa de ser uma representação da realidade, uma janela para o mundo, aberta para o espectador ter acesso. (2018, p. 84)

Ou seja, a minha intenção foi “fugir” da forma científica de abordar uma doença, repleta de entrevistas com especialistas, para levar humanização ao tema, forma que acredito que o jornalismo deveria seguir. Entretanto, isso não quer dizer que não fiz o uso dessas artimanhas durante as imagens, já que em certos momentos foram necessários, como em esclarecimentos médicos sobre a doença. Outra maneira que esse filme me inspirou foi na retomada da história de infância da fonte principal até a sua situação presente, onde a explicação do enredo do drama é regada por poesias, que transparecem a situação de vida da falecida irmã de Petra. Essa volta ao passado é importante no meu documen- tário e foi retomada por meio de vídeos e imagens caseiras, porque a pessoa em questão foi atleta de Triátlon, componente do Exército Brasileiro e sempre manteve uma vida ativa.

TCCs 2019_2 --- 295 Contudo, mesmo eu tendo um laço familiar e um sentimento aflorado de empatia e amor pelo paciente, diferente do que a diretora fez, optei por não interferir, pelo menos como pessoa presente no documentário. Já que a minha aparição na frente das câmeras dificultaria as gravações que foram feitas somen- te por mim. Fora que poderia mudar o modelo de roteiro pré-estabelecido, em que o objetivo era mostrar o cotidiano de um paciente com ELA e de sua família. Mesmo sendo filha, carreguei o cargo de diretora de um filme pela pri- meira vez, portanto preferi não arriscar criar um ruído de comunicação fruto de possíveis problemas nas gravações. Então, fiquei ausente, como fez J. Clay Tweel em A Luta de Steve (2016). Mas, ainda assim, interferi em off nas filmagens para instigar meu pai a se abrir e compartilhar seus reais sentimentos sobre a situação. Durante o documentário, trouxe relatos dos familiares (esposa, filho e filha) do paciente, como estratégia de mostrar como a vida de quem está ao redor também fica suscetível aos desdobramentos que a doença causa a quem foi diagnosticado. Quanto às fontes que usei para enaltecer o cotidiano do personagem Victor Garcia, tive em mente o foco no inesperado, onde estive à mercê do que o entrevistado principal procurou fazer em seu dia-a-dia. Além disso, como planejado, entrevistei profissionais de um dos grandes centros de apoio à ELA no Brasil: a ABRELA. Conversei com o responsável do projeto e um dos mais indicados médi- cos na área de Esclerose Lateral Amiotrófica, segundo a Associação Pró-Cura da ELA, o Dr. Acary Souza Bulle Oliveira e a assistente social Fabiana Theodoro. Para que isso fosse viável, comprei equipamentos de gravação, como a Câmera Canon 80D. Esse investimento se deve não só pela necessidade em entregar um trabalho de qualidade, como também em adquirir um material que eu possa usar após a universidade para pôr em prática o meu amor pela fotografia e o audiovisual. Fora isso, obtive dois microfones de lapela, para usar em ambientes ba- rulhentos e por segurança obter um áudio limpo, um microfone direcional, para evitar que ruídos externos guiassem a atenção de quem assistisse para longe do assunto em questão e por nem sempre conseguir colocar o lapela no paciente, já que muitas vezes estava sem camiseta ou tomando medicação. Para completar, usei um tripé, conforme necessidade, para ter imagens estabilizadas e não prejudicar a edição final. Como proposto pelo Art. 11 do Conselho Nacional de Educação, sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Jornalismo, a apresentação e execução do produto jornalístico para a banca de avaliação

TCCs 2019_2 --- 296 deve ser construída individualmente. Entretanto, como permite o documento, houve a necessidade de auxílio para carregar material, para isso contei com o suporte da minha mãe Carla Faiad Garcia. Quanto à edição, a previsão era para que eu a fizesse, porém como a ideia do documentário foi trabalhar a gravação durante um ano, sobrou apenas um mês para essa etapa até a entrega final do audiovisual. Sendo assim, a ad- ministração entre faculdade e serviço não favoreceriam o produto. Optei por contratar Jéssica Lopes, recém-formada em Rádio e TV no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), já que trabalho com ela e pude checar a edição mais de perto. Contudo toda a parte criativa, de elaboração de ideias, decupagem, trans- crição, roteirização do vídeo e a parte de comunicação foram feitas por mim, para que o contato estabelecido entre o documentário final e eu fossem de completo entendimento.

Estrutura do documentário O trabalho foi o acompanhamento do paciente de Esclerose Lateral Amiotrófica, Victor Garcia, onde o fio condutor foi o avanço das consequências da doença em um ano. Contudo, não escolhi especificar os meses na edição, porque a fluidez dos acontecimentos podia não ser equilibrado nas diferentes épocas do calendário. Optei por deixar que os avanços se entrelaçassem, mos- trassem o decorrer da enfermidade, durante os dias de gravação por si só. O nome do trabalho apareceu logo no início: Um Ano com Ela, justificado no primeiro parágrafo desse tópico. Assim como em Elena, as primeiras cenas foram a retomada de momentos gloriosos do enfermo, acompanhadas por voz over, um recorte da memória pessoal mais feliz até como foi o momento em que eu, diretora do filme, e minha família descobrimos que meu pai estava com ELA. Em relação à trilha sonora, para evitar a solicitação de direitos autorais foram usados apenas sons e músicas de trilha branca, ou seja, de uso público. Porém, essa decisão também aumentou o tempo de busca de músicas que encai- xassem, pelo menos, devidamente nos trechos dos vídeos. Já que imagem, som e narração devem formar um casamento perfeito para obter o resultado que se propõem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando me propus a documentar a vida do meu pai, Victor Garcia, e a de minha família, sabia que não seria fácil. E foi um baita desafio, não só pela aborda- gem delicada, pessoal do tema, como também por ter que pensar em todas as

TCCs 2019_2 --- 297 esferas do produto final sozinha. Para mim, ficou muito claro como no jornalis- mo audiovisual é importante a presença de uma equipe, de diferentes pontos de vista, porque tarefas divididas são elaboradas com maior precisão e agilidade. Contudo, a experiência foi muito válida para treinar multifuncionalidades. Quanto aos objetivos que eu tinha desde o início, sobre alertar o poder público, criar um produto que refletisse como a Esclerose Lateral Amiotrófica se desenvolve para que quem assistisse se transportasse para a realidade do portador, acredito tê-los atingido. A minha estratégia foi mesclar relatos coti- dianos da família, entrevistas, argumentos médicos e noções pessoais minhas – essa em forma de voz over – para criar a atmosfera, atrelados a imagem. Entretanto, fiquei insatisfeita com a maneira que as falas se costuraram. A intenção não foi criar uma reportagem, mas sim um filme lento, diário, em que o espectador não fosse bombardeado por entrevistas a todo momento, apenas quando necessário. Por mais que eu não tenha gostado, essa foi a única saída en- contrada, além da gravação de imagens de cobertura, para quem não conseguiu passar manhãs e tardes em casa durante o ano de gravação. Obrigações como faculdade, trabalho e plantões aos finais de semana me tomaram o tempo de gravação que tive que suprir no roteiro com entrevistas. De início tentei até deixar a câmera ligada em ambientes onde o persona- gem principal passava a maior parte do tempo, porém o enquadramento ficava errado, a bateria acabava, o áudio parecia sem controle. Por isso abri mão dessa solução. Se nesse caso a resposta que encontrei não foi das melhores, em outras situações percebi a evolução que tive desde o início do trabalho. Como pensar nas cenas que fizeram parte da edição durante a entrevista, criar perguntas fora do roteiro e manejar a câmera DSLR com agilidade. O meu conhecimento intelectual também cresceu com a leitura dos re- ferenciais, optei por autores com explicações básicas sobre o audiovisual, já que eu não poderia fazer o meu primeiro documentário “correndo com uma Ferrari”. Devo citar que minhas leituras favoritas foram: Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo (LINS; MESQUITA, 2015), já que analisa diversas produções brasileiras e Como Fazer Documentários: conceito, linguagem e prática de produção (LUCENA, 2012), que realmente dá dicas do início ao fim sobre gravações. Quanto às leituras sobre a Esclerose Lateral Amiotrófica, usei o livro in- dicado pela ABrELA: ELA: Esclerose Lateral Amiotrófica (OCA, 2018) e sites confiáveis aconselhados pelo Prof. Dr. Acary Souza. Acredito que as pré-apurações foram essenciais para o andamento e aprofundamento das entrevistas. Ajudaram a criar empatia com os profissionais e personagens, mas sem perder as rédeas da conversa.

TCCs 2019_2 --- 298 Entretanto, vale ressaltar que nas entrevistas com meu o pai, uma grande dificuldade surgiu: separar o meu eu – filha, do meu eu – jornalista. Isso ficou evidente quando assisti ao material bruto. Para agravar a situação, o personagem chave não é de se abrir quando o assunto é sentimento, falar de suas fraque- zas, ou seja, a dificuldade foi mútua durante a conversa, mesmo em ambiente familiar. Mais um fator de empecilho foi a presença da câmera. Cada vez que eu a ligava meu pai parecia se encobrir de um tom de voz diferente, de uma postura maquiada, usava de um “personagem” para contar de si. Apenas para citar rapidamente outros problemas: passar os vídeos ca- seiros de fita cassete para MP4; impossibilidade de liberação para gravar em ambientes que pertencem ao Estado, tanto na tentativa de filmar dentro da Farmácia Popular de Alto Custo da Vila Mariana, quanto no Setor de Investi- gação de Doenças Neuromusculares da UFSP, impedindo dias de gravação e acompanhamento de consultas; os equipamentos de áudio comprados chega- ram atrasados, então os primeiros vídeos estão com o som mais sujo, o que me obrigou a usar voz over; enquadramento à mercê de movimentos inesperados, vale lembrar que eu entrevistei e gravei sozinha; filmagem ao decorrer de um ano diminuiu o prazo de edição para um mês. Embora muitas adversidades tenham ocorrido, acredito que eu tenha con- seguido criar um produto que informe sobre a ELA de forma sensível. Fora que só revalidou a minha paixão pelo audiovisual e como quero seguir nes- ta área profissionalmente. O documentário também me deu mais tempo ao lado do meu pai, trazendo amadurecimento pessoal e jornalístico durante as entrevistas. Um dos debates profissionais que tive durante as gravações foi quanto a ética no jornalismo, qual o limite entre exibir ou não. Quanto vale uma imagem? A cena pode ser substituída por uma narração que agregue o mesmo valor com teor mais empático? Qual o melhor jeito de informar? Não deixar de pensar a maneira de comunicar o tema proposto! Essa afirmação será minha bússola como jornalista. Outro fator que me chamou atenção durante a realização do documentá- rio foi o alargamento da pauta. Todo dado pode ser atualizado, fontes diversas têm direito de resposta, é dever do jornalista atentar aqueles que podem en- grandecer ao seu trabalho e a sociedade. Além disso, pude trabalhar na íntegra de um roteiro - mesmo que tenha sofrido algumas mudanças durante a edição - projetar, idealizar um filme é exercitar diversos sentidos do corpo, portanto quando eu escrevia arquitetava o casamento entre imagem e som. Para salientar, creio que a pergunta problema “Como um documentário

TCCs 2019_2 --- 299 pode trazer visibilidade para a ELA, a partir de um portador da doença?” tem como resposta a evidência do sincronismo em que o corpo e a família ruíram ao mesmo tempo. As imagens, o texto e a liberdade criativa que o paciente me deixou ter passaram ao produto audiovisual a perspectiva real e sentimental de cada membro da família, transportando o espectador para dentro daquela realidade e o forçando a notar a ELA após o fim do documentário. Ainda é incerto o futuro desse filme, mas se depender de mim ele cir- culará muito pela web, participará de prêmios e quem sabe não mereça uma reedição, já que o material bruto tem mais de 10h. Por fim, após olhar para trás e pensar que se passou um ano desde a esco- lha do tema do meu primeiro documentário, eu posso dizer que fiquei muito feliz com o resultado dadas as circunstâncias. E só tenho a agradecer por todos que tiraram um tempo para fazer parte disso, principalmente ao meu pai.

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TCCs 2019_2 --- 305 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 306 A VIOLÊNCIA SEXUAL NAS CATEGORIAS DE BASE DO FUTEBOL BRASILERO

LUCAS RIBEIRO GARBELOTTO Orientador: Francisco Periago

TCCs 2019_2 --- 307 RESUMO O futebol é um esporte que, principalmente em países com grandes desi- gualdades sociais, em especial no Brasil, ainda é tido como esperança no futuro de muitas famílias. Porém, a realidade é bem diferente do que se observa nos grandes veículos de mídia. Esse trabalho tem como objetivo, a partir de inúme- ras pesquisas e entrevistas com especialistas no tema, relatar a violência sexual nas categorias de base do futebol brasileiro. A fim de alcançar um sonho, jovens se submetem a situações criminosas. Para explanar o assunto principal do tra- balho, será realizado um programa de rádio com especialistas no assunto, além de um jogador que sofreu com a violência e contará suas experiências. Palavras-chave: Radiojornalismo, Abuso Sexual, Categorias de Base, Fute- bol, Brasil.

ABSTRACT Soccer is a sport that, especially in countries with social inequalities, espe- cially in Brazil, is still a hope in the future of many families. However, the reality is very different from what is observed in the great media vehicles. This work has as objective, from innumerable researches and interviews with specialists in the theme, to approach sexual abuse in the youth academy of Brazilian soc- cer. To explain the main subject of the work, a radio program will be held, with some specialists, and a soccer player who lived with this problem along his career.

Keywords: Radio Journalism, Sexual Abuse, Youth Academy, Soccer.

TCCs 2019_2 --- 308 Introdução Este projeto tem por objetivo quebrar alguns paradigmas sobre o es- porte mais popular do mundo, por meio de um programa de Rádio. Apesar da visão que o mundo inteiro se acostumou a ter sobre o futebol, dentro e fora de campo, com salários astronômicos, carros luxuosos e patamar de vida de dar inveja, a realidade é diferente. Nos últimos anos, alguns jogadores profissionais começaram a se mo- bilizar para que, cada vez mais, fossem feitas denúncias sobre a exploração sexual de garotos que sonham em ser jogadores de futebol. Num país que vive uma realidade em que muitas pessoas ainda estão na pobreza, famílias deposi- tam toda sua esperança em meninos, de 10 a 18 anos, para ter uma condição de vida digna. Recentemente, em matéria divulgada pelo Esporte Espetacular, da Rede Globo, em meio as denúncias de atletas da ginástica olímpica brasileira, um olheiro do Santos Futebol Clube – um dos clubes de maior prestígio no país – foi acusado de abusar sexualmente de garotos. (ESPORTE ESPETACULAR, 2018, online) O objetivo é salientar que, apesar do machismo instaurado na socieda- de, esses casos precisam ser levados a público. O jornalista Breiller Pires, que trabalha para o Jornal EL PAIS, veículo de origem espanhola com filial no Brasil, divulgou um estudo baseado em pro- cessos instaurados perante o Poder Judiciário, que confirma um aumento dos casos levados adiante. Atualmente, existem aproximadamente 100 denúncias envolvendo jovens jogadores de futebol e violência sexual. Um dos percursores do projeto Chega de Abuso no Esporte, o ex-go- leiro Alê Montrimas, com passagens por clubes como Bragantino, Botafogo-SP e Portimonense-POR, lançou o livro Futebol: Sonho ou ilusão, em que relata tudo que sofreu durante sua carreira. O ex-atleta dedica um capítulo especial de seu livro para falar sobre assédio sexual e proposta de prostituição que recebeu durante a carreira. A partir de tudo que envolve o assunto abordado, a principal pergunta é: Como contribuir para a quebra desse tabu e qual o motivo dele ainda ser obscuro? O objetivo principal é mostrar para a população em geral que apenas um número mínimo de jogadores alcança o estrelato e maioria dos atletas vi- venciam varia dificuldades, desde financeiras até a submissão sexual. A ideia é realizar um programa de rádio, em que um ex-jogador expli- que como as situações aconteceram em sua carreira. Também estará na bancada uma assistente social do futebol, fundamental no crescimento psicológico de garotos que vivem longe de seus familiares, um advogado, que enaltecerá

TCCs 2019_2 --- 309 diferenças entre assédio e abuso sexual, além de especialistas com projetos na área. O universo do futebol parece um conto de fadas, mas a trajetória pode ser muito cruel. Recentemente, alguns jogadores se juntaram, pela primeira vez, para falar abertamente sobre o assédio, algo retratado com frequência na sociedade, mas ainda ofuscado no esporte mais popular do planeta. Com base em processos na justiça, o EL PAIS levantou 111 casos, isso desde 2011. A partir de documentos já publicados, de matérias especiais da televi- são e de uma pesquisa aprofundada na justiça sobre os casos, serão levantados números para relatar o grave problema pelo qual passa o futebol no Brasil. Livros de psicologia também serão utilizados, para entender como um garoto que passa necessidades entende o caso. Embasando o assunto, também houve a necessidade da leitura de al- guns livros, realizando uma pesquisa qualitativa aprofundada. Desde o surgi- mento do futebol no Brasil, com livros como de Marcos Guterman, O Futebol explica o Brasil, e Marcos Alves de Souza, A Nação em Chuteiras. Quanto a violência sexual, utilizei para pesquisa principalmente dois autores: Ilma Ribeiro Silva, em Abuso e Trauma, e Marceline Gabel, em Crianças Vítimas de Abuso Sexual. Por fim, além do conhecimento adquirido durante o curso, aprofundei o Jornalismo de Rádio a partir de três principais autores: Emma Rodero Antón, em Producción Radiofónica, Edileuza Saores, em A Bola no Ar, e Gisela Swetlana Ortriwano, em A Informação do Rádio. Executei uma entrevista com um ex-atleta que contou, de maneira detalhada, como vivenciou tudo em seus templos de atleta. Além do jogador, também foram abordados assuntos psicológicos por uma assistente social es- pecializada em esporte. Foram ouvidos jornalistas que já se aprofundaram em casos de violência sexual, com embasamento para contribuir com o programa.

1. Referencial teórico 1.1 O Futebol no Brasil O futebol chegou ao Brasil em 1884. Charles Miller, filho de pai escocês e mãe brasileiro, foi aos 10 anos de idade estudar na Inglaterra e, quando voltou às terras brasileiras, trouxe consigo uma bola e algumas regras que aprendera no continente europeu. No dia 14 de abril de 1885, em São Paulo, ocorreu a primeira partida da história. Na ocasião, participaram ingleses que moravam na capital paulista e faziam parte da elite social. Com o passar dos anos, o futebol tornou-se uma das ferramentas res- ponsáveis por unir pessoas de diferentes em classes sociais em torno de algo

TCCs 2019_2 --- 310 comum que os move, assim deixando de lado interesses individuais.

[...] Os torcedores se congregam entre si e em torno de seu time de forma automática, irrefletida, como pessoas de um mesmo núcleo familiar ou inte- grantes de sociedades ainda rudimentares. Dessa maneira, o esporte de massa é uma das poucas manifestações que parecem resistir à individualização e à defesa de interesses particulares como resultado da crescente complexidade social. (GUTERMAN, 2006, pg. 19)

Segundo Souza (1996), o futebol possui uma particularidade que se dá em virtude de sua popularidade. Por ser um esporte privilegiado em relação aos meios de comunicação, toda uma nação pode praticar e assistir, fazendo com que haja uma manifestação coletiva em todo o país. Além da propagação em massa, a idolatria dos fanáticos pelos jogadores dentro do campo, mesmo sem sequer chegar perto ou conhecê-los, também faz parte do universo do esporte. Os donos do espetáculo propagam sentimentos para centenas de pessoas que estão ali apenas para incentivá-los em virtude de uma paixão.

O futebol é um espetáculo coletivo que se torna ritualístico ao identificar os espectadores com o drama que se desenrola em campo. O “drama” do futebol está inserido num grande teatro de arena (o campo), em que os jogadores, ao desempenharem seu papel, tornam-se coatores com os quais o público se identifica ritualmente. Ao se identificar com os jogadores no ritual dramático, o público sente que eles realizam proezas nas partidas, que o gratificam profundamente, pois tal realização de proezas não é feita pelos jogadores somente para eles próprios, mas também para o público. (SOUZA, 1996, pg. 27)

No Brasil, a prática do esporte mais popular do mundo fez com que o país criasse uma identidade, uma maneira de atuar diferente da que o mundo conhecia, diferenciando do iniciado pelos ingleses. “Os amantes do chamado “futebol-arte” o vinculam ao “autêntico” traço de brasilidade, como se não fôs- semos capazes de sermos eficientes tecnicamente, como os europeus, apenas instintivamente, como os artistas africanos”. (GUTERMAN, 206, pg. 33) Pentacampeão do mundo, o futebol brasileiro ainda serve de esperança para muito atletas mudarem de vida, mas a realidade por trás de tudo que é visto na televisão ainda é diferente. Em balanço divulgado pela CBF em 2017, foram contabilizados 28.203 atletas sob contrato no futebol. Dentre todos os jogadores, 23.238 (82,4%) ganham até R$ 1.000,00

TCCs 2019_2 --- 311 como remuneração. Já 3.859 (13,68%) ganham, por mês, entre R$ 1.001,00 e R$ 5.000,00. Com isso, (usando valores da época) 96,08% dos futebolistas no Brasil ganham perto de 6 salários mínimos. (CBF, 2018, online).

1.2 A violência sexual e sua influência no futuro dos jovens Segundo levantamento divulgado pelo Ministério da Saúde, o número de casos de abuso sexual em crianças e adolescentes cresceu aproximadamen- te 83% nos últimos anos. Dos dados levantados pela Organização, que apontam para 184.524 registros, 31,5% são contra crianças e 45% contra adolescentes. (Ministério da Saúde, ONLINE, 2018) Para o Ministério da saúde, são consideradas formas da prática do cri- me: assédio, pornografia infantil, estupro e exploração sexual. Segundo os da- dos, os casos mais recorrentes se referem ao estupro. Estudos de especialistas demonstram que essas práticas podem afetar o futuro das vítimas de maneira perigosa. As marcas não são apenas físicas, mas também psíquicas, sexuais e sociais.

Os sintomas construídos durante uma experiência traumática afetam não somente os pensamentos do indivíduo, mas a sua memória, o estado de consciência e todo o campo de ação, de iniciativa e de objetividade na vida. Muitas vítimas criam uma área de proteção em volta de si que as impede de continuar com a vida normal. Uma vítima de violência físi- ca, seja ela estupro ou pancadas, evita sair de casa, tem medo de andar sozinha, rejeita sexo ou qualquer contato físico. (SILVA, 2000, p. 32)

Além da prática única, segundo a OMS, na maioria das vezes os casos são recorrentes e podem ocorrer dentro da própria casa. O perigo da reinci- dência faz com que o problema se agrave. Ameaças podem ocorrer para que o adolescente não se manifeste, assim causando transtorno psiquiátricas agressi- vos.

Os sintomas atingem todas as esferas de atividades, podendo ser simbolica- mente a concretização, ao nível do corpo e do comportamento, daquilo que a criança ou o adolescente sofreu. Ao passar por uma experiência de violação de seu próprio corpo, elas reagem de forma somática independentemente de sua idade, uma vez que sensações novas foram despertadas e não puderam ser integradas. (PRADO, 2004 p. 64)

A não divulgação dos acontecimentos, tal como citado anteriormente,

TCCs 2019_2 --- 312 prejudicam não só o futuro dos jovens, mas contribuem para a manutenção de um tabu, em específico no futebol, esporte amplamente popular ao redor do mundo.

1.3 Jornalismo esportivo no rádio Assim como o futebol, nos anos 30, o Rádio ainda era tido como algo de elite. Segundo Soares (1994), ambos pretendiam iniciar sua profissionaliza- ção para quebrar o paradigma da elitização que ficou enraizada desde a chega- da ao Brasil. Com o começo da forte popularização do esporte, o medo dos gran- des responsáveis pela propagação da modalidade no Brasil fez que com que as elites tivessem receio ao início das transmissões de rádio. Porém, com o passar dos anos, as arquibancadas se enchiam da mesma forma com que o povo acompanhava os jogos em suas casas, ao redor de ami- gos e familiares, e os donos de emissores viram no esporte sua maior probabi- lidade de enriquecimento.

[...] Jornalismo esportivo mantém-se, desde as primeiras transmissões, entre os gêneros de maior faturamento publicitário do rádio, principalmente para as emissoras com tradição na cobertura do futebol. (SOARES, 1994, pg. 45)

Os locutores e narradores, responsáveis por conduzir as transmissões, tem a responsabilidade de fazer com que, através de suas vozes, os ouvintes imaginem e fiquem entretidos com o que ocorre dentro de campo. De início, o ritmo era diferente do que é visto nos dias atuais. Os nar- radores conduziam de maneira cadenciada. Hoje, nomes come Nilson César, Oscar Ulisses, Ulisses Costas e José Silvério, são extremamente ágeis em suas falas e fazem com que, independentemente da situação, os fanáticos pelo rádio esportivo acompanhem de forma compenetrada seus clubes de coração.

Na corrida pela preferência popular, as emissoras que investem na cobertura esportiva estão sempre preocupadas em manter a imagem de um prefixo forte e bons profissionais. Nesse confronto, o locutor esportivo é a peça mais importante e por isso o grito de gol se torna muito caro para a rádio que quer em seus quadros um profissional conhecido do público. Eles são disputados com propostas e contratos milionários. (SOARES, 1994, pg. 48)

A emoção da locução, aliada ao ritmo implementado por narradores e seus bordões, fazem com que o rádio esportivo siga como uma das formas de

TCCs 2019_2 --- 313 propagação do esporte mais popular do mundo. Além das partidas em si, o jornalismo esportivo no rádio também con- ta com inúmeras programas de debate semelhantes ao que é visto na televisão. Em geral, programas como Esporte em Discussão e Arquibancada, da Jovem Pan, contam com uma forma de linguagem descontraída, afetando um público mais jovem, que está acostumado a ver jogos em canais como Globo, SporTV ou ESPN.

2. Desenvolvimento da peça 2.1 Realização e estilo de linguagem A execução da peça foi realizada por meio de um programa de rádio, elencando tópicos fundamentais para o entendimento da violência sexual. O personagem principal do programa é o ex-jogador Alê Montrimas, que contou durante os 20 minutos dois casos: primeiro, como aconteceu o assédio sexual em sua carreira. Depois, salientou que também recebeu convites para se prostituir. Por fim, relatou como grandes jogadores apoiam causa e o porquê de ainda terem receio de falar sobre violência sexual. Para a peça seguir como o planejado, formei um “time” com credibi- lidade no assunto, dessa forma, passando clareza e informação em relação ao tema, que necessita de delicadeza. Como base para o programa, acompanhei reportagens feitas por rá- dios como Band News, Bandeirantes, CBN e Jovem Pan, principalmente em ma- térias que se aproximem do meu tema. Apesar do esporte estar diretamente ligado ao assunto, fiz um estudo em cima de matérias que abordem temas não habituais aos ouvintes do esporte, assim lhes prendendo a atenção para o ‘Lado B’ do esporte de base no Brasil. Como dito anteriormente, foi realizado um programa formado por entrevistas, facilitando tanto a audiência, para que entenda de maneira clara o que cada parte do programa pretende passar, além de direcionar personagens específicos de cada realidade. A escolha pelo Rádio aconteceu por ser um meio de propagação rápi- do e democrático, além de querer um custo mais acessível para produção.

Os fatos podem ser transmitidos no instante em que ocorrem. O aparato técnico para a transmissão é menos complexo do que o da televisão e não exige a elaboração necessária aos impressos para que a mensagem possa ser divulgada. O rádio permite “trazer” o mundo ao ouvinte enquanto os acon- tecimentos estão se desenrolando. (ORTRIWANO, 1985, p. 80)

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Como locutor – utilizando experiência que adquiri durante três anos no programa Arquibancada Mack - conduzi as ideias principais do programa atra- vés de um texto que aproxime o público e chame atenção para as manchetes. O tema foi conduzido com seriedade, mas de forma leve, envolvendo os três integrantes da bancada, além de duas entrevistas realizada previamente.

[...] É a voz do locutor que humaniza e personifica as palavras porque a voz, por ser a expressão mais etérea da corporeidade, sugere a definição de uma imagem ou de uma pessoa com corpo, uma estética e um caráter. É a voz do locutor que sugere, evoca, acompanha e estabelece os laços emotivos com o ouvinte (ANTÓN, 2005, p. 59)

Mantendo o respeito e explorando o lado profissional dos entrevista- dos de maneira a extrair tudo que a carreira profissional os ensinou sobre o tema, pude trazer abordagens verdadeiras e imprescindíveis para o aprofunda- mento de um tema que, se mal colocado, pode acarretar situações indelicadas para todos os participantes da bancada.

2.2 Abordagens O programa começou com uma breve apresentação dos integrantes da bancada e dos entrevistados previamente. A primeira abordagem realizada foi saber dos especialistas como começaram a tratar a violência sexual no futebol. Quais as primeiras barreiras que enfrentaram, se conversaram com algumas pessoas e o porquê do interesse num assunto tão delicado, que ainda incomoda muito os grandes clubes do Brasil. Na sequência, entramos de vez no assunto ao ouvir a palavra do ex-jo- gador Alê Montrimas, que contou casos de violência sexual em sua carreira e de convites abusivos, como a prostituição. A partir do depoimento, questionei a Silvana, assistente social, que contou, num primeiro momento, que teve muitas portas fechadas quando tentou entrar nos clubes. Depois, entendemos o papel da família, principalmente daquelas que vivem em situações precárias, dessa forma, abrindo espaço para a violência sexual. Dando sequência, para que o ouvinte entenda o que é violência sexual, seja por abuso ou assédio, coloquei a palavra do advogado Lucas Grandotto. De maneira didática, o Doutor explicou não só diferenças, mas também as penas devidas para cada crime. Pedro Rubens, jornalista convidado, relatou dificuldades e também qual foi seu principal personagem, ex-jogador do Santos. Envolvendo também o lado pessoal dos garotos, fiz questão de enten-

TCCs 2019_2 --- 315 der como o machismo, enraizado em nossa sociedade, afeta a exposição da violência sexual. Intermediando e ligando os assuntos, Montrimas também nos contou como os grandes jogadores enfrentam a situação e tratam a exposição ao assunto. Em paralelo, explicou que já realizou um trabalho de racismo com os jogadores, e as dificuldades que atletas têm de entender situações. Rubens nos contou como foi o contato com jogadores ao escrever seu livro. Por fim, expliquei um pouco da minha motivação em realizar esse pro- jeto e agradeci os convidados, que me parabenizaram pela produção.

2.3 Equipe Para a produção do programa, convidei cinco pessoas para participar do projeto. Três estiveram na bancada ao meu lado: Breiller Pires, jornalista da ESPN Brasil e EL Pais, Pedro Rubens, jornalista e autor do livro Silenciados, e Silvana Trevisan, assistente social do futebol, com passagem por clubes como Corinthians, Juventus e Santos. Também participaram, por meio de entrevistas, o ex-goleiro Alê Mon- trimas, que relatou casos de violência sexual em sua carreira, além do advogado Lucas Grandotto, que esclareceu dúvidas sobre o assunto. No Mackenzie, a ajuda dos integrantes da Rádio foi fundamental. Além dos operadores de áudio, Reginaldo e Emerson, mas também do Lucas Abru- nhosa, sonoplasta que já havia realizados projetos anteriores.

2.4 Estrutura A estrutura do programa ficou conforme o planejado. Consegui abor- dar todos os aspectos, extraindo conteúdo qualificado dos entrevistados. Comecei entendendo quando meus convidados passaram a falar sobre a violência sexual, dessa forma criei embasamento para atrair e manter a com- preensão dos ouvintes. Entrelaçando assuntos, dei ritmo ao programa durante os vinte minu- tos determinados pela comissão organizadora dos Trabalhos de Conclusão de Curso.

3. Considerações finais Desde o início do curso de Jornalismo, minha ideia era fazer um tra- balho final relacionado ao esporte. Porém, queria fazer algo extracampo, que acrescentasse tanto em minha carreira, quanto ao jornalismo em geral. A partir de algumas leituras, vi que a violência sexual no futebol, princi- palmente com jovens, ainda é algo obscuro na mídia. A partir de conversas com

TCCs 2019_2 --- 316 alguns professores, que também apoiaram o tema, comecei a buscar fontes. Por trabalhar na ESPN Brasil, consegui alguns contatos e fui em busca das melhores fontes para meu trabalho. Fazendo algumas ligações e mantendo conversas, formei uma equipe de referência no tema. Por exemplo, Breiller Pires, um dos percussores do assunto no Brasil, e o ex-goleiro Alê Montrimas, que dá palestras ao redor do país sobre tudo que sofreu quando jogador. Tam- bém busquei pela Silvana por ser especialistas no relacionamento com jovens e ter vivenciado o dia a dia de atletas dentro de grandes clubes do futebol brasileiro. Definir por um programa de rádio foi relativamente fácil. No 3º semes- tre, entrei para o programa Arquibancada Mack, projeto da Rádio Mackenzie, onde fiquei por quatro semestres, sendo três deles como coordenador. Com ajuda dos sonoplastas e da professora Lenize, à época nossa mentora, desen- volvi algumas habilidades, apresentando e comentando o programa. Por criar afinidade com o veículo e acreditar em seu potencial de propagação, defini como minha forma de apresentar o trabalho. Durante todos os anos da Rádio, pelo menos os que participei ati- vamente, nunca havíamos fundamentado pautas extracampo. Ao falarmos da violência sexual, quebramos paradigmas da própria rádio, pois uma das minhas intenções foi deixar um legado aos alunos que seguiram trilhando seu caminho dentro de um estúdio tão importante no meu desenvolvimento como jornalis- ta. Quanto ao programa em si, foi uma das experiências mais enriquece- doras da minha vida. Os principais profissionais na abordagem da violência se- xual do país apoiaram a causa que eu propus, e fizeram de tudo para contribuir. Com o trabalho, consegui criar vínculos profissionais e pessoais importantes que, sem dúvidas, podem me ajudar no futuro. Se esse programa chegar aos ouvidos de uma pequena parte da po- pulação, já será um grande prazer. Causar impacto social, principalmente em relação ao futebol, seria uma honra para concluir um curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e carregar esse nome por todo o país. Um país apaixonado pelo esporte mais popular do mundo.

TCCs 2019_2 --- 317 4. Referencial Bibliográfico

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BREILLER, Pires. Jogadores brasileiros se unem em campanha contra o abuso sexual no futebol. 2018. Disponível em:

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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. Brasília, 2012. Disponível em:

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SILVA, I. R. Abuso e trauma. São Paulo: Vetor, 2000.

SOARES, Edileuza. A bola no ar: O rádio esportivo em São Paulo. São Paulo: Summus,Editorial,1994.

SOUZA, Marcos Alves de. A Nação em Chuteiras: Raça e Masculinidade no Futebol Brasileiro. 1996. 152 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Antro- pologia, Universidade de Brasília, Brasília, 1996.

TCCs 2019_2 --- 319 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 320 MÃOS QUE TRAZEM À LUZ ESTUDO JORNALÍSTICO SOBRE PARTEIRAS PARA A REALIZAÇÃO DO LIVRO REPORTAGEM “MÃOS QUE TRAZEM À LUZ”

CECÍLIA MALAVOLTA Orientador: André Santoro.

TCCs 2019_2 --- 321 RESUMO Este trabalho de conclusão de curso teve como principal objetivo a pro- dução de um livro-reportagem com perfis de mulheres diferentes com uma causa em comum: assistir outras mulheres a darem à luz. A parturição sofreu diversas modificações e intervenções desde que a figura masculina entrou em cena na obstetrícia. Desde então, o parto, algo natural e acompanhado por mulheres, conhecidas como benzedeiras e parteiras, tornou-se um evento ci- rúrgico. Com o passar do tempo, houve um resgate do parto fisiológico como padrão de normalidade, bem como uma recuperação ancestral de culturas e rituais na hora do parto. Realizado através de entrevistas e vivências com par- teiras tradicionais, urbanas ou enfermeiras especializadas em obstetrícia, “Mãos Que Trazem À Luz” aborda o nascimento como um evento que acontece com a assistência de várias pessoas: gestante e parteiras, presentes para auxiliar a chegada de um bebê.

PALAVRAS-CHAVE parteiras; parto humanizado; livro-reportagem; jornalismo literário.

ABSTRACT This paper had the main finality of producing a book-article with profiles of different women with a common cause: help other women to give birth. Partu- rition suffered many modifications and interventions since men started show- ing up in this scene. Since then, the birth, something that once was natural and made by women, known as midwifery, has become a surgical event. Over time, there was a rescue of physiological birth as a standard of normality, as well as an ancestral recovery of cultures and rituals at birth. Held through interviews and experiences with traditional, urban midwives or midwifery nurses, “Mãos que trazem à luz” shows birth as an event that happens with the assistance of sever- al people: pregnant women and midwives, present to assist the arrival of a baby.

KEYWORDS: midwife; humanized birth; book-article; literary journalism.

TCCs 2019_2 --- 322 INTRODUÇÃO Este Trabalho de Conclusão de Curso fundamentou a realização do li- vro reportagem “Mãos Que Trazem À Luz”, o qual fala sobre parto, rituais de nascimento e os diferentes perfis de mulheres que têm como trabalho ajudar grávidas a darem à luz, abordando profissionais de ramos diferentes a cada capí- tulo: uma parteira e benzedeira tradicional xamânica, uma aprendiz de parteira indígena, duas parteiras urbanas e uma enfermeira obstetra. Nos últimos anos, graças ao feminismo e à maior circulação de informa- ções, as mulheres passaram a ter mais consciência de seus direitos no parto e o que os profissionais da saúde poderiam ou não fazer com a paciente antes, durante e depois do nascimento de um bebê, o que gerou mais discussões e aumentou a visibilidade do tema. Pautas como violência obstétrica e parto humanizado passaram a ser mais comentadas, inclusive no meio médico. Dessa maneira, começaram a aparecer ainda mais reivindicações por atendimentos que respeitassem a mulher e seus direitos. Para um parto ser considerado humanizado, ele deve ter como figura principal a mulher, e o não o profissional obstetra. Realizado em casa, banheiras ou hospitais, as vontades da gestante devem ser levadas em consideração e o mínimo de intervenção médica é feita, apenas quando há risco para a saúde da grávida e do bebê. Fora isso, o médico é um espectador que presencia o parto para dar apenas auxílio. O termo “parto humanizado” surgiu no início do século XX, com o mé- dico obstetra Fernando Magalhães (DINIZ, 2005, p. 628) – ainda que os pro- cedimentos defendidos por ele fujam do conceito que temos hoje do que é humanizar um processo de nascimento. Ele defendia o uso de fórceps, por exemplo, como uma maneira de tornar o parto mais natural e humano, algo hoje considerado violência obstétrica por não ser uma intervenção necessária. No início de maio de 2019, o Ministério da Saúde vetou o uso do termo violência obstétrica porque, de acordo com o ministro Luiz Henrique Mandet- ta, “tem conotação inadequada” (FOLHA, 2018, online). Como consequência, isso invalida todo o trabalho de reconhecimento e conscientização que tem sido feito, além de desqualificar movimentos que lutam pelo fim dessa violência. A violência obstétrica é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um conjunto de condutas condenáveis, como atos de desres- peito, maus tratos, abusos e negligências por parte do profissional responsável contra a mulher e o bebê. Pode acontecer antes, durante e depois do parto e é tida como violação dos direitos humanos. Além disso, é mais comum do que se imagina: segundo o estudo “Mulheres Brasileiras e o Gênero no Espaço Público e Privado” da Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC), uma a cada quatro mulheres no Brasil sofrem com esse tipo

TCCs 2019_2 --- 323 de problema (VENTURI ET AL, 2010, n.p). A violência obstétrica apresenta cinco subtipos, sendo eles: violência por negligência, quando o atendimento à gestante é negado ou dificultado; violência física, que se refere a práticas e intervenções desnecessárias sem o consenti- mento da mulher; violência verbal, a qual se dá quando comentários ofensivos e constrangedores são feitos contra a mulher; violência psicológica, que abrange todo e qualquer tipo de comportamento ou comentário que faça a mulher se sentir inferior, vulnerável, insegura ou abandonada; e por fim a violência obsté- trica em casos de aborto, seja atrasando propositalmente o atendimento à pa- ciente, questionando o motivo do aborto e realizando procedimentos invasivos sem consentimento ou explicação (HAMERMULLER; UCHÔA, 2018, online). Ela pode ser praticada ainda por médicos obstetras, enfermeiros, anestesistas, técnicos de enfermagem e também por profissionais responsáveis pela recep- ção e administração do hospital, sendo ele de rede pública ou particular. Teoricamente, os procedimentos e direitos durante o atendimento à ges- tante não diferem dependendo da rede de saúde onde o parto é realizado. Mas, devido aos diferentes níveis de poder aquisitivo, tipo de parto e hospital, existe uma enorme disparidade de tratamento por parte dos profissionais nas redes públicas e privadas. Enquanto maternidades de hospitais privados, ainda que não em sua maio- ria, estão cada vez mais equipados com salas específicas para atender gestantes de maneira humanizada e profissionais bem preparados, gestantes que utilizam a rede pública de saúde se deparam muitas vezes com médicos e enfermeiros obstetras que não sabem lidar com grávidas - e muitas vezes não o querem, agredindo moral e verbalmente as pacientes, além de submetê-las a procedi- mentos desnecessários – com os quais essas mulheres não concordariam se, em algum momento, suas vontades fossem questionadas. O Brasil é um dos países que mais realiza cesáreas no mundo. Atrás ape- nas da República Dominicana, ele ocupa o segundo lugar no ranking com 55,5% dos partos realizados por meio dessa cirurgia. Em casos especiais, a cesárea pode salvar vidas, mas tem sido feita com mais frequência do que o necessário (LANCET, 2006, p. 40-44). Os números citados acima são muito mais altos do que a média reco- mendada pela Organização Mundial da Saúde, de 10 a 15% (OMS, 2015, online). Uma discrepância tão grande ajuda a apontar a realidade do cenário médico brasileiro e como a indústria de partos funciona no país – cheia de operações e intervenções desnecessárias. Cesáreas tornaram-se as opções mais escolhidas por médicos devido ao valor pago pela cirurgia, mais alto do que o oferecido para realizar um parto normal. Além disso, existe também a questão do tempo: ao optar por acom-

TCCs 2019_2 --- 324 panhar o trabalho de parto natural de uma única gestante (que pode durar mais de 24 horas entre as fases latente, ativa e expulsiva), esse médico poderia atender mais pacientes realizando cesáreas, que são rápidas e podem ser feitas várias ao longo do mesmo dia. Diante desse cenário, há o resgate do que o parto representa para quem o vê como momento de renascimento e ligação com a ancestralidade: denomina- das parteiras, elas são mulheres que têm como função auxiliar a grávida a dar à luz, sem tirar dela o poder de decisão ou protagonismo como pode acontecer em partos hospitalares. Segundo o Ministério da Saúde (2009), parteira tradi- cional “é aquela que presta assistência ao parto domiciliar baseada em saberes e práticas tradicionais e é reconhecida pela comunidade como parteira”. Tam- bém pode ser conhecida como “aparadeira” ou “comadre” – termo originário da expressão popular, usado para se referir ao apadrinhamento – embora o Estado adote o termo “de tradição” para valorizar a cultura de cada mulher e região na qual ela atua. Dentro da parteria tradicional, abordada pelo primeiro capítulo de “Mãos Que Trazem À Luz”, os conhecimentos são passados por meio da oralidade – inclusive quando essas profissionais realizam cursos para se iniciarem nesse ofício e terem o entendimento de rituais e técnicas aprofundadas, algo relativa- mente novo levando em consideração a idade que essa profissão tem. “Embora seja uma das profissões mais antigas do mundo, registros históricos mostram que os primeiros cursos direcionados para formação de parteiras no Brasil, datam de 1832 (NASCIMENTO ET AL, 2009, p. 3)”. Apesar da idade, a neces- sidade de dar destaque e valorizar essa profissão foi percebida apenas duas décadas atrás, quando, então,

o Ministério da Saúde, a partir de 2000, adotou várias iniciativas para melhorar a atenção à gestação, ao parto, ao nascimento e ao puerpério. Entre elas, encontrava-se o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais, que re- colocou a melhoria do parto e nascimento domiciliar assistidos por parteiras tradicionais na pauta de discussão com gestores estaduais e municipais, como uma responsabilidade do SUS e uma atribuição da atenção básica. (MINISTÉ- RIO DA SAÚDE, 2010, p. 11)

Com a criação do programa, o projeto de valorização do ofício de par- teiras veio à tona. Pertencentes a culturas distintas – indígenas, ribeirinhas, quilombolas, urbanas – o resgate da tradição se uniu às novas técnicas e desco- bertas científicas que constituem a medicina moderna. Diante de tais informações, a pergunta-problema que norteou a produção deste Trabalho de Conclusão de Curso foi: um livro-reportagem pode traçar o

TCCs 2019_2 --- 325 perfil de mulheres que têm como ofício assistir outras mulheres a darem à luz, sendo denominadas de parteiras dentro das circunstâncias nas quais trabalham, e mostrar os diferentes rituais que envolvem o trabalho de parto e nascimento? O objetivo principal foi a produção de um livro-reportagem sobre par- teiras e rituais de nascimento traçando o perfil de cada uma das personagens – uma parteira tradicional xamânica, uma aprendiz de parteira indígena do povo Guarani Mbya, duas parteiras urbanas anteriormente graduadas como enfer- meiras obstetras e uma enfermeira obstetra – bem como suas histórias de vida, rituais de trabalho e métodos que utilizam enquanto ajudam outras mulheres a darem à luz. Já os objetivos secundários foram divididos em etapas: estudar rituais de nascimento e traçar perfis diante das ramificações da profissão de parteira; levantar dados sobre parto humanizado, violência obstétrica e a indústria do parto, considerando a alta taxa de cesáreas realizadas pelo Brasil; e estudar sobre jornalismo e livro-reportagem.

REFERENCIAL TEÓRICO

1.1 Parto humanizado e violência obstétrica De acordo com o “Programa Humanização do Parto no Pré- -natal e Nascimento”, estabelecido pelo Ministério da Saúde em 2002,

(...) toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério; toda gestante tem direito de saber e ter assegurado o acesso à maternidade em que será atendida no momento do parto; toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura, de acordo com os princípios gerais e condições estabelecidas na prática médica; todo recém-nascido tem direito à assistência neonatal de forma humanizada e segura (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 6, online).

Caracterizado por levar as vontades da gestante como prioridade, ter acompanhamento de doulas e de quantas mais pessoas – da família ou equipe de assistência – forem necessárias, usar de artifícios como banheiras, salas pre- paradas com luz, temperatura ambiente e essências, com o mínimo de interven- ções médicas, o parto humanizado é uma recapitulação do que era o nascimen- to antigamente, antes de deixar de ser um evento exclusivamente fisiológico e então, ser transformado em um ato cirúrgico e frio (CHAUVET, 2013). Em uma reportagem escrita para a Revista Piauí, a repórter Vanessa Barbara, que descreve a experiência do seu parto no Brasil com uma obstetra de convênio,

TCCs 2019_2 --- 326 ainda completa: “O que era para ser um evento fisiológico iniciado e executado pelo corpo da mulher, se tornou uma cirurgia com hora marcada e uma dúzia de espectadores” (BARBARA, 2019, p.58). Antes de tudo isso e até mesmo mais importante do que resgatar antigos costumes da parturição e empoderar a mulher em um dos momentos mais naturais da vida,

o conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhe- cimentos, práticas e atitudes que visam a promoção do parto e nascimento saudáveis e a prevenção da morbi-mortalidade materna e perinatal (MINIS- TÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 9, online)

O termo “humanizar”, aplicado em partos, surgiu no início do século XX com Fernando Magalhães, pai da obstetrícia brasileira, e também foi empregado pelo professor Jorge de Rezende, na metade do século (DINIZ, 2005, p.628), ainda que as medidas defendidas por ambos hoje sejam desqualificadas como humanizadas e encaixadas na categoria de violência obstétrica. Apesar de todas as medidas existentes para tornar o parto e o atendi- mento médico à gestante o mais humanizados possíveis, sem intervenções des- necessárias ou desrespeitos por abuso de autoridade e valorizando o trabalho exclusivo do corpo da mulher durante o nascimento,

hoje, cada vez mais, são os obstetras que “fazem” o parto, sob aplausos moderados da plateia – e suas práticas ocasionalmente causam complicações que só eles são capazes de resolver. Isso, por sua vez, aumenta ainda mais a vulnerabilidade da mulher, a quem só resta permanecer deitada com as pernas presas em estribos, expressando-se o mínimo possível para não aborrecer o cirurgião (BARBARA, 2019, p.58)

Desrespeitando a vontade e direitos da gestante, o obstetra faz o que bem entende com o corpo da paciente que está atendendo – desde manobras proibidas pela OMS que comprovadamente causam problemas para a saúde física dela, como a de Kristeller (técnica que consiste em pressionar a barriga da grávida, por consequência o útero, para acelerar a saída do bebê durante partos normais e que pode causar graves lesões) e fazer cortes que, a não ser em causas muito específicas, não precisam ser feitos e colocam a mulher em uma situação de pura humilhação sem motivos, senão por costume da equipe médica. Os exemplos citados anteriormente encaixam-se na categoria de violên- cia obstétrica – problema que hoje, segundo o estudo “Mulheres Brasileiras e o Gênero no Espaço Público e Privado” (2010) da Fundação Perseu Abramo em

TCCs 2019_2 --- 327 parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC), atinge uma a cada quatro mulheres no Brasil.

1.2 Rituais de nascimento e a indústria do parto Conforme as mulheres dão à luz ao longo dos anos, os rituais que cercam o momento do nascimento, ainda que presentes o tempo todo, são modificados a cada geração ou descoberta da medicina.

Segundo Maldonado (1991), até o século XVI o parto era considerado “as- sunto de mulher”, existiam as parteiras que a ajudavam na parturição e a criar um clima emocional favorável para a parturiente. Havia nessa época grande variedade de talismãs, orações e receitas mágicas para aliviar as dores das contrações (...) Pouco a pouco, em determinadas circunstâncias, o parto foi assumindo características diferentes (...) Gradualmente, entre os séculos XVI e XVII começou a surgir na assistência ao parto a figura do cirurgião, e conse- quentemente a parteira foi perdendo a primazia (MATEI ET AL, 2003, p. 17)

A figura masculina surgiu aos poucos na cena do parto e, conforme ganha- va espaço, abdicava dos conhecimentos anteriores à sua chegada para valer-se apenas do que lhe convinha como fato. Os avanços da medicina auxiliaram, de forma positiva, o nascimento a se tornar um evento mais seguro. No entanto, abrir mão do conhecimento ancestral e de parteiras transformou-o em algo sem ligações emocionais, apenas técnico. O documentário “O Renascimento do Parto” (CHAUVET, 2013) explica que, até a era industrial, o parto era tido como um processo mui- to simples e natural, que fazia parte do tecido social. Foi só depois da entrada da figura masculina e dos hospitais que o nascimento se tornou um evento ci- rúrgico e frio, diferente de quando era realizado exclusivamente por mulheres, as parteiras. Acompanhando a mudança de cenário e rituais, os partos ci- rúrgicos – cesáreas agendadas – ganharam cada vez mais espaço nas salas de parto e cada vez mais médicos adeptos a eles (e somente a eles).

No parto normal, a paciente sofre, sangra ou grita por horas a fio só para obter um resultado que poderia ser alcançado em menos de uma hora, de forma mais limpa, educada e a tempo de o médico ir jantar em casa. Consi- derando a remuneração paga pelos convênios para o parto vaginal, não com- pensa passar tanto tempo com uma única paciente quando se poderia estar atendendo várias mulheres no consultório ou efetuando múltiplas cirurgias (BARBARA, 2019, p.61)

TCCs 2019_2 --- 328 Como em uma indústria de parto, o cenário ainda conta com uma sociedade que está acostumada a menosprezar mulheres e subestimar suas capacidades – com parturição não é diferente. Por isso, ao longo da gestação e exames médicos, elas são desmotivadas e encorajadas a acreditar que não são capazes de parir seus filhos de maneira natural – uma ideologia que fez o Brasil se tornar o segundo país do mundo a mais realizar cesáreas.

Essa realidade evidencia que o uso abusivo da cesariana pode causar mais dano do que benefício e ilustra o que Illich conceitua como contraprodutividade (...). No caso em questão, a cesariana que produz morbidade e mortalidade materna e neonatal (LEÃO ET AL, 2013, p. 2396)

Existem diversos estudos, como o publicado no periódico de ciência Obstetrics&Gynecology (2006) que mostram que o risco de morte materna é 3,6 vezes maior do quando ela é submetida a uma cesárea do que quando há um parto normal. Para o bebê, além de implicar em riscos como problemas de respiração, ainda há uma relação no Brasil com alta taxas de crianças prematuras, de 11,5%, uma vez que o procedimento é agendado antes que haja maturidade fetal (DENEUX-THARAUX ET AL, p.541, online). Ainda em sua reportagem, Vanessa Barbara completa que os obstetras criam desculpas além das clássicas e “apelam para a absoluta falta de sentido, amparando-se na confiança das gestantes: a lista conta com ‘alergia a placenta’, ‘asma’ (...). Já no âmbito da redundância, registra-se: ‘Falta de dilatação antes do trabalho de parto’”. Não é à toa que o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking de países que mais realizam cesáreas no mundo todo. De acordo com dados do relatório “Monitoramento de Cesáreas e Classificação de Robson”, as maternidades da rede privada no município de São Paulo apresentaram uma taxa de 82,6% ce- sáreas no ano de 2017, em comparação com o número de 34,4% da cirurgia realizada em hospitais públicos (SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE, 2017, online).

1.3 Livro reportagem Marcelo Bulhões, em seu livro “Jornalismo e Literatura em Convergência”, afirma que “o jornalista é uma espécie de ‘historiador da vida contemporânea’” (2007, p. 11). Essa missão a ele incumbida traz consigo, ainda que implicitamen- te, o papel da literatura e o questionamento de como esses dois gêneros, ainda que distintos, trabalhem de maneira conjunta.

TCCs 2019_2 --- 329 Para responder à questão, é possível recorrer ao exercício diário de cada um deles. Edvaldo Pereira Lima, em seu livro “Páginas Ampliadas: O Livro-Re- portagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura”, descreve as incum- bências do primeiro citado:

O jornalismo, como segmento da comunicação de massa, exerce a função aparente de informar, explicar e orientar. (...) O que diferencia de fato o jornalismo de outras atividades é o desempenho da tarefa informativa e orientativa. (LIMA, 2004, p.11)

A literatura, por sua vez, segundo Bulhões, tem poucas coisas em comum com o jornalismo, com uma linguagem que “não é mera figurante, mas centro das atenções. Se há algo para comunicar na literatura, esse algo só existe pelo poder conferido à conduta da própria linguagem” (2007, p.12). Assimila-se, en- tão, que a finalidade da literatura não é a comunicação, como é para a atividade jornalística. Com a missão de realizar seu trabalho de forma objetiva, clara e rápida, o jornalismo parece se distanciar da literatura. Entretanto, “o que está em ques- tão é que elas [palavras] constroem uma realidade centrada no modo com os quais se arranjam, se articulam e se movimentam”. (BULHÕES, 2007, p.14). A literatura, portanto, recria a realidade quando modifica sua aparência e sua maneira habitual de ser transmitida. Sendo o jornalismo uma maneira de transmitir fatos de maneira objetiva, a reportagem mostra a notícia de uma maneira ampliada, abordando detalhes minuciosamente, e ainda, segundo Lima, distinguindo-se de outras publicações jornalísticas pelo conteúdo (factual), tratamento (estilo), e função. O livro-reportagem, por sua vez, traz o conteúdo jornalístico em um formato diferente do que estamos habituados a ver, como o factual. Por ter mais possibilidades, as pautas abordadas por eles podem ser mais aprofundadas, assim como a apuração e o trabalho do profissional em si.

Dentro da perspectiva do desenvolvimento do jornalismo, de invenção e reinvenção de técnicas, procedimentos e modelos, além da inovação de meios e suportes, encontra-se o livro-reportagem. Este modelo vem crescendo no circuito editorial. Entre os motivos para o aumento no número de publicações de livro-reportagem estão: a queda do custo da impressão, a possibilidade de publicar em novas plataformas, o interesse do público, e também ser uma alternativa aos profissionais jornalistas de desenvolverem, por meio de um suporte específico, um texto diferenciado da prática das hard news (ROCHA; XAVIER, 2013, p.141)

TCCs 2019_2 --- 330 Enquanto o parto é um tema muito complexo e cheio de informações em suas entrelinhas, o livro-reportagem visa abordar assuntos complexos de maneira completa e detalhada, razão pela qual esta é a melhor peça para falar sobre o nascimento e os rituais, problemas e métodos que o envolvem. Carlos Rogé Ferreira traz ainda reflexões que tornam con- ceito e propósito do livro-reportagem ainda mais importantes e, por sua vez, mostra o conteúdo que há nas entrelinhas da produção desse tipo de peça: é o conceito de ruptura, exposto em seu livro “Literatura e Jornalismo, Práticas Políticas” e discutido no quarto capítulo do volume.

Se uma das principais ideias propostas é a de tentar verificar a proximidade entre o livro de reportagem e a literatura (...) inclusive aquela que transgride a norma ao trabalhar com elementos jornalísticos, tal procedimento só pode ser entendido dentro do tipo de abordagem geral desenvolvida pelo autor. (...) No entanto, “ruptura” não se refere apenas ao que não é publicado nos jornais, “ruptura” diz respeito ao que o sistema não quer ver nem discutir, não quer que se pense ou sinta, que se difunda ou discuta, caso haja publicação (FERREIRA, 2004, p. 324)

O livro-reportagem, portanto, tem como função além da comunicação, como um veículo jornalístico, pautar e trazer à tona personagens e histórias que são deixados de lado pela grande mídia. Dentre as obras jornalísticas estudadas ao longo do curso de jornalismo, a autora e jornalista que mais serviu como inspiração devido ao seu estilo de texto foi Eliane Brum. Em “A mulher que alimentava” (ÉPOCA, 2008, online), primeira reportagem que li escrita por ela, percebi a maneira delicada e, ainda assim, forte de traçar perfis e conta histórias, tornando cada detalhe da perso- nagem retratada extremamente vívido, quase palpável. John Hersey, ao segmen- tar cada capítulo de “Hiroshima” (2002) com a narrativa de um personagem diferente que sofreu com o ataque nuclear à cidade japonesa, explicita o poder que um texto construído da maneira correta tem sobre o leitor. Daniela Arbex, com seu livro “Holocausto Brasileiro” (2013), também serviu como inspiração para desenvolver meu estilo de texto. Por fim, a apuração de conteúdo, estilo de escrita e a mistura entre jornalismo e a narrativa quase que poética de João do Rio em “As Religiões no Rio” (2006) coroam o cenário de inspirações que compõem o resultado estilístico de “Mãos Que Trazem À Luz”.

2. DESENVOLVIMENTO DA PEÇA O livro-reportagem escrito para a realização deste Trabalho de Conclusão de Curso nasceu da vontade de contar histórias. Inicialmente planejado para

TCCs 2019_2 --- 331 falar sobre mulheres grávidas e mães no sistema penitenciário feminino no es- tado de São Paulo, o produto chegou ao seu tema final depois de quatro tenta- tivas de encontrar uma pauta que pudesse satisfazer minha vontade de contar histórias sobre temas pouco abordados. Por isso, então, “Mãos Que Trazem À Luz” traz diferentes personagens que têm em comum o ofício de trabalhar com partos e ajudar grávidas a terem seus filhos: uma parteira e benzedeira tradicional xamânica, uma aprendiz de parteira indígena, duas parteiras urbanas e uma enfermeira obstetra. A apuração para a produção do livro-reportagem iniciou-se com a ideia de descrever o parto e profissionais que o assistem de maneira mais técnica. Entretanto, conforme tive acesso à informações e fiz contato com determi- nadas fontes, a divisão de capítulos passou a abordar perfis de mulheres que ajudam outras a trazer seus filhos ao mundo. O primeiro capítulo foi escrito baseado na personagem Ciléia Biaggioli, parteira de tradição que mora na região de Parelheiros e atende mu- lheres que a conhecem por indicação. A entrevista foi feita em sua casa, assim como as fotos tiradas para servirem de referência para as ilustrações do livro foram feitas lá, na mesma data. O segundo capítulo trouxe o perfil de Laura, uma mulher indígena do povo Guarani Mbya residente da aldeia Tape Mirĩ que se considera uma aprendiz de parteira. Para conversarmos, fui até a terra indígena Tenondé Porã, perto de Parelheiros, e conheci sua família, bem como as aldeias vizinhas. Co- nheci Laura por intermédio de Ciléia, sua antiga conhecida, que me levou até ela durante uma manhã de terça-feira. Tentamos conversar com outra parteira, mais experiente, mas ela não quis participar do livro como fonte ou fornecer informações sobre sua cultura. Já o terceiro capítulo foi escrito com base em duas personagens: Mayra e Karina, enfermeiras-obstetras de formação que, ao longo da carreira, optaram por seguir uma linha humanizada e escolheram trabalhar com partos domicilia- res e doulagem. Para entrevistá-las, visitei-as em São Carlos duas vezes e com- pareci a um ritual de passagem de uma de suas clientes, a gestante Fernanda, que me recebeu em seu Chá de Benção. A apuração do quarto capítulo foi feita em um encontro combinado com a fonte, Mariana Silvestre, enfermeira obstetra de uma maternidade pública. Por questões burocráticas, foi preciso manter o nome do hospital onde ela trabalha em sigilo no livro. Contatei Mariana após receber indicação de uma jornalista que também conversou com ela e a usou como fonte, na época em que estava produzindo seu Trabalho de Conclusão de Curso, um documentário sobre a escolha do parto. O epílogo foi escrito após uma visita à maternidade pública Gota de Leite,

TCCs 2019_2 --- 332 em Araraquara. Após a orientação da assessoria de imprensa da Fungota e da chefe de enfermagem Rosi, que me recebe logo na entrada da maternidade, fui encaminhada até o quarto 105-B, onde conheci Francielle Quintino, uma puérpera ex-usuária de cocaína e alcoólatra, e sua filha de apenas um dia, Ana Vitória. Conversamos no quarto, o qual ela dividia com outra mãe, e enquanto a entrevistava, pude entender a movimentação do lugar e presenciar os dois bebês sendo vacinados. Como base referencial para escrever o livro, também estudei reportagens sobre parto e excessos de cesárea no Brasil, como “De cócoras no país da cesárea” escrita pela jornalista Vanessa Barbara para a Revista Piauí e assisti a trilogia de documentários “O renascimento do parto”, de Eduardo Chauvet. A matéria de Vanessa me forneceu diversas informações e dados sobre pesqui- sas e nascimentos realizados no Brasil, além de me possibilitar entender sua experiência como mãe tentando dar à luz por parto normal no segundo país do mundo que mais realiza cesáreas. O documentário me ajudou a entender melhor sobre parto humanizado, indústria da cesárea, benefícios e malefícios que essa cirurgia pode trazer para mãe e bebê e a importância de rituais de nascimento e ancestralidade no momento do parto. Por fim, ainda que houvesse um roteiro a ser seguido, decidi deixá-lo de lado e escrever o conteúdo conforme o que eu produzi fazia sentido quando colocado lado a lado com o que eu tinha em mente, o que resultou em um livro-reportagem que mostra o perfil de mulheres que ajudam outras a trazer seus filhos ao mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Produzir um livro sempre foi um grande desejo. A leitura e, por consequência, a escrita, coisas antes consideradas como hobby, tornaram-se minha verdadeira vocação. Contar histórias tornou-se a motivação para come- çar a faculdade de jornalismo. A construção de “Mãos Que Trazem À Luz” se deu de forma lenta, dife- rente do que eu imaginei inicialmente. Seguindo a ideia original, o livro trata- ria de mães e gestantes no sistema carcerário, porém a pauta estagnou ainda durante o processo burocrático e não pode mais ser levada adiante. A próxi- ma opção, então, era produzir uma grande reportagem online falando sobre a importância e o impacto que o empoderamento feminino tem na criação e desenvolvimento de meninas de até 12 anos. Mas, assim como da primeira vez, a pauta foi derrubada. Foi apenas em maio, após o pronunciamento oficial feito pelo Ministério da Saúde, durante o governo do atual presidente da república Jair Bolsonaro,

TCCs 2019_2 --- 333 sobre o termo violência obstétrica (cuja conotação ao ser usado foi denomina- da como “inadequada”), que o livro-reportagem ganhou forma. Usei o aconteci- mento como gancho para construir uma linha de raciocínio e falar sobre parto humanizado e violência obstétrica. Posteriormente, já no segundo semestre do ano, a ideia foi lapidada e a construção narrativa do livro girou em torno de perfis de mulheres que ajudam outras a darem à luz. Ao todo, colhi histórias de onze personagens, ainda que tenha optado em deixar a maior parte delas de lado e focar em outras específicas. Conforme entrevistava uma fonte e contava o que pretendia fazer, recebi inúmeras indica- ções de parteiras, enfermeiras, médicas e outras pessoas que poderiam servir de inspiração para escrever o texto. O projeto, então, foi finalizado com a his- tória de cinco mulheres: Ciléia Biaggioli, parteira tradicional que segue a linha do xamanismo; Arayvoty, aprendiz de parteira indígena também chamada de Laura; Karina Groote e Mayra Ribeiro, enfermeiras obstetras que resolveram se dedicar ao parto domiciliar e deixar de lado o conceito de parto hospitalar; Mariana Silvestre, enfermeira obstetra que atende partos em uma maternidade pública; e Francielle Quintino, mãe de uma menina de apenas um dia de vida quando a entrevista foi feita, nascida prematura com apenas 32 semanas de gestação. A mim, a produção de “Mãos Que Trazem À Luz” agregou muito como realização de um sonho e concretização de um ciclo. Escrever um livro sempre esteve entre as coisas que mais gostaria de fazer, antes mesmo de escolher o jornalismo como profissão. Concluir essa meta, então, é apenas o início de uma carreira à qual me dedico desde que comecei a trabalhar na área, em uma redação. Por fim, conhecer e transcrever a história de cada uma das personagens agregou conhecimento e me fez crescer não somente como jornalista, mas também como mulher, de modo que passei a enxergar o parto e o nascimento como eventos de resgate ancestral e de empoderamento, até mesmo como ato político, não apenas como o surgimento de uma nova vida. A pergunta-problema, usada para nortear o Trabalho de Conclusão de Curso e produção da peça (“um livro-reportagem pode traçar o perfil de mu- lheres que têm como ofício assistir outras mulheres a darem à luz, sendo deno- minadas de parteiras dentro das circunstâncias nas quais trabalham, e mostrar os diferentes rituais que envolvem o trabalho de parto e nascimento?”) foi de- vidamente respondida durante a execução de cada capítulo e desenvolvimento narrativo do livro. Cada um dos quatro capítulos de “Mãos Que Trazem À Luz” mostra, dentro de suas singularidades e histórias de vida, perfis diferentes de mulheres que, ainda que tenham trajetórias distintas, estão unidas pelo propó- sito de proporcionar a outras mulheres um parto respeitoso, de resgate e da

TCCs 2019_2 --- 334 maneira como elas desejam, inserindo suas próprias características de rituais e cultura enquanto trabalham.

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TCCs 2019_2 --- 337 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 338 O CAMINHO QUE ME GUIA: COMO A RELIGIOSIDADE ESTÁ PRESENTE NA VIDA DAS PESSOAS?

LAYANE OLIVEIRA BITTENCOURT Orientadora: Denise Cristine Paiero.

TCCs 2019_2 --- 339 RESUMO

As religiões, ao longo dos séculos, manifestaram-se em diversas socie- dades e culturas, trazendo perspectivas singulares sobre a vida e sobre o divino. Sobretudo, no Brasil, no qual há a previsão de crescimento da diversidade religiosa, milhares de pessoas se integrem à crenças e insti- tuições religiosas em busca de respostas, conexões, conforto e conheci- mento. O jornalismo audiovisual, em especial, o formato websérie, ilustra e identifica as pontuais causas para que jovens façam parte de grupos religiosos, suas visões de mundo e senso de respeito às diferenças.

Palavras-chave: religiões; divino; diversidade religiosa; crença; respeito; jornalismo

TCCs 2019_2 --- 340 ABSTRACT

Over the centuries, the religions have manifested themselves in several societies and cultures, bringing unique perspectives about life and the divine. Especially, in Brazil, where the religious diversity is expected to grow, thousands of people join to religions institutions in search of an- swers, connections, comfort and knowledge. The Audiovisual journalism, in particular, the webseries format, illustrates and identifies the specific causes for young people to be part of religious groups, their worldviews and a sense of respect for differences.

Keywords: religions; divine; religious diversity; belief; respect; journalism

TCCs 2019_2 --- 341 1. INTRODUÇÃO

A fim de entender como a religião está presente na sociedade e como a religiosidade se expressa nesse meio, este Trabalho de Conclusão de Curso foi desenvolvido. Por meio de uma websérie jornalística composta por três episódios, no qual temas como crença, livre-arbítrio, influência dos preceitos religiosos e respeito ao próximo procurei refletir sobre o tema religião e re- ligiosidade. Para Jostein Gaarder (2000), quando crianças temos o interesse de des- cobrir as coisas, quase instintivamente. Assim, a curiosidade e a vontade latente de entender o mundo acaba se tornando uma forte característica dos seres humanos. Para o autor, o homem precisa se orientar e, para isso, ele deve com- preender a sua própria existência. As dúvidas que surgem nesse contexto, para Gaarder (2000), formam a base das religiões. Ainda segundo o autor, dificilmente encontra-se alguma so- ciedade que não tenha flertado minimamente com algum tipo de crença. Muitas delas se estruturaram entre grupos e determinaram a arte, política, costumes, valores, ética das sociedades. Na série de documentários desenvolvida por Morgan Freeman, A História de Deus (2016)1, é debatido como essa influência se manifestou na história, a partir das ações dos homens. Discute-se também como a conexão de um indi- víduo com o divino dá novas perspectivas sobre a vida e, principalmente, sobre a figura de Deus e seu poder na sociedade. Contudo, sujeitos como Galileu Galilei, Charles Darwin, Sigmund Freud, entre outros, fizeram com que essa soberania centrada na religião fosse ques- tionada. A era da modernidade, por exemplo, é marcada pela secularização2 e, que segundo Wilmar Luiz Barth (2007), é muitas vezes, compreendido com a ideia de uma “vida sem Deus e sem religião”. Contudo, há ainda o desejo de destinar um novo papel para essa figura sobrenatural e divina, pois o ser humano crê ser capaz de conduzir seu destino sem ela, ao mesmo tempo em que quer conhecê-la. Assim, “busca estabele- cer novos paradigmas de compreensão do mundo, de si mesmo e de Deus” (BARTH, 2007, p. 99). Surge a ideia do livre-arbítrio. A partir dessa busca, Karla Regina Macena Patriota (2009), apresenta que

1 “A História de Deus” é a exploração épica de Morgan Freeman e uma reflexão íntima sobre Deus. Cada episódio apresenta uma grande questão sobre o divino: desde o mistério da Criação, ao verdadeiro poder dos milagres até à promessa da ressurreição. 2 Conceito da Sociologia para explicar o processo de abandono gradual da religião sobre os diversos aspectos da vida social moderna, em detrimento do avanço da ciência e tecnologia.

TCCs 2019_2 --- 342 o fator “religião” dá lugar à “religiosidade”, manifestada afetivamente na vida das pessoas, sem qualquer relação com doutrinas ou instituições eclesiásticas. Nesse contexto, Gaarder (2000) e Barth (2007) observam os principais efeitos: algumas pessoas mantém sua crença, a maioria se divide entre uma ou mais e há quem rejeita e torna-se um “sem religião”. Nessa perspectiva, cada indivíduo se torna o protagnista de sua vida, através de seu poder de decisão. A partir disso, este Trabalho de Conclusão de Curso refletiu como o in- divíduo pode se identificar com uma forma de religiosidade e crença, seja in- tegrando-se à uma instituição religiosa ou não. Além disso, apresentou, em um recorte, como essas diferentes camadas dialogam entre si e encontram pontos de convergência. Também tirou o foco sobre a associação que se observa sobre religião, alienação e fanatismo, ao retratar jovens engajados nesse meio. Para isso, foi escolhida como peça para o desenvolvimento deste trabalho, uma websérie com três episódios, no YouTube. Portanto, a pergunta central que envolve este TCC é: como uma websérie poderá retratar a religiosidade presente na vida das pessoas? Em cada episódio, um tema central foi discutido entre os praticantes de algumas das religiões mais predominantes no Brasil, de acordo com o censo de 2010 divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): cato- licismo, protestantismo, umbanda, islamismo, budismo e ateísmo. O objetivo foi entender o que levou essas pessoas a encontrarem sua conexão com o divino e, sobretudo, a se agregaram a uma ideologia, compartilhando suas vivências, ensinamentos e ideias. Considerando a diversidade religiosa presente no Brasil, a temática é fun- damental para colocar em discussão a intolerância. Liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição no Brasil, no entanto, os casos de discriminação religiosa chegaram a 537 casos em 2017, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos. O assunto interessa ao público mais jovem, engajado por essas causas e com forte presença meio digital e na Internet. Por isso, o formato websérie foi divulgado na plataforma YouTube, a qual tem uma grande quantidade de usuários ativos, é um serviço com foco no audiovisual e tem fácil acesso, sen- do gratuito. Além disso, a websérie, segundo Dorneles Daniel Barros Neves e Eutália Silva Ramos (2015), tem potencial para reinventar o jornalismo, por ser um meio de divulgação mais aberto, plural, inovador e online, capaz de criar sensações a quem assiste. Apesar de estar presente em um ambiente católico, valorizo a liberdade religiosa e a busca do próprio contato com a religiosidade e, como jornalis- ta, tenho o objetivo de abordar a temática. Após assistir o documentário, “A História de Deus” (2016), encontrei a minha motivação para realizar o TCC e

TCCs 2019_2 --- 343 propor o tema, principalmente, porque apesar do jornalismo abordar o assunto pelo seu compromisso social, ainda não acontece de forma minuciosa. Portanto, com a intenção de desconstruir, de certa forma, alguns precon- ceitos, este trabalho partiu de uma pesquisa sobre como a questão é abordada na mídia e na sociedade. Para discutir sobre religiosidade, religião e intolerân- cia, autores como Jostein Gaarder (2000), Umberto Eco (1999), Mircea Eliade (1992) e Edgar Morin (2000) foram consultados, além de sites especializados e outros autores. Para o processo criativo, o consumo de produtos audiovisuais, sobretudo webséries, não necessariamente relacionadas ao tema, foram cru- ciais. Dessa forma, os pontos apresentados guiaram o trabalho a responder à pergunta-problema e afirmaram ser possível compreender melhor o impacto da religiosidade na vida de cada indivíduo e, ainda mais, como elas dialogam entre si. Através do modelo audiovisual, o relato de histórias, crenças, modos de ver a vida e poder de escolha foram expressados de maneira potencializada a imergir sobre o tema.

TCCs 2019_2 --- 344 2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A religião e religiosidade A origem da religião sempre foi pauta para discussão entre muitos pen- sadores e especialistas. Jostein Gaarder (2000) afirma que muitos já tentaram defini-la, agrupando todos os tipos de crenças e atividades religiosas, para ele, em “uma espécie de mínimo denominador comum”. No entanto, segundo o autor, essa tentativa é derrubada ao perceber a complexidade das religiões. Para muitos estudiosos, como o etimologista brasileiro Silveira Bueno, o vocábulo “religião” vem do latim religare, que significa religar, atar e ligar bem. Padre Fábio de Melo (2017) traduz a palavra como a oportunidade de reunir Deus e os seres humanos. Com a secularização, o homem estava separado de Deus e cabe à religião atar novamente os laços que unem a humanidade à esfera divina. Mircea Eliade (1992) utiliza, a partir das experiências religiosas de cada indivíduo, o conceito de dualidade do que é sagrado e o que é profano. O sa- grado “é a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo” (ELIADE, 1992). O historiador afirma que o ser humano vive sua realidade, ou seja, no profano, mas está em busca do sagrado, aquilo que é desconhecido e não pertence ao seu mundo. Para Barth (2007), o homem é atraído pela experimentação e já não aceita ter a imposição da sociedade, pois acredita apenas no que vivencia.

Cada pessoa se torna um cientista, querendo “experimentar tudo e de tudo!”, como direito que lhe cabe. Não basta mais “aquilo que nossos pais nos contaram”, senão aquilo que cada um mesmo experimenta. O fator de avaliação dessas experiências não é objetivo, mas subjetivo, a partir dos efeitos, resultados e do papel que a mesma experiência joga no universo de sensações pessoais. (BARTH, 2007, p. 98)

Dessa forma, o homem quer experimentar Deus, a religião e, principal- mente qual a consequência do seu contato com o divino. O seu único objetivo, segundo Barth (2007) é suprir o desejo antigo de conhecer a si mesmo. Para Ivan Manoel (2007), essa motivação é o que faz o homem conduzir a história da humanidade com base em sua opção pessoal, seja ela de seguir os preceitos religiosos ou pelo desejo de ir contra a eles. Ele ainda afirma que essa busca, assim como Eliade (1957) apresenta, faz com que o homem tome os rumos de sua vida e história baseada na procura pelo que é sagrado. Surgem, então, dois universos distintos: material e abstrato.

TCCs 2019_2 --- 345 O primeiro é a vida presente e o outro para onde os homens irão.

“Se esse final bom ou ruim, e algo que depende inteiramente da vontade humana. Posta assim a questão, explicita-se que o problema todo radica na vontade e na liberdade humana, atributos que conhecemos pela denominação de livre-arbítrio” (MANOEL, 2007, p. 112).

Barth (2007), observa que mesmo com o período de secularização, há a eminente vontade de descobrir mais sobre a questão divina. Assim, há um processo de religião “à la carte”. Aqui, o indivíduo, conhecendo tantas “opções” de crenças, junta os aspectos que mais lhe interessam e encontra um possível ponto em comum. Com a fé guiando o homem, outro conceito surge: a religiosidade. Manoel (2007) apresenta o termo como “a condição de característica exclusivamente humana que revela um atributo humano de busca do sagrado, sem especificar o que seja esse sagrado” (MANOEL, 2007, p.107). Para o autor, muitas religiões se fundamentam nesse termo, mas nem sempre a religiosidade se manifesta por meio de religiões institucionalizadas.

2.2 Diversidade religiosa O Brasil é um país continental repleto e vasto em pluralidade de religiões e culturas, originárias do território e vindas de outros povos. Segundo o último censo demográfico divulgado pelo IBGE3 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), temos 64.6% brasileiros que se consideram católicos, 22,2% protes- tantes, 2% espíritas, 0,3% do umbanda e candomblé, 8% sem religião e 2,7% se enquadram em outras religiosidades. O levantamento do Instituto Datafolha4 confirma com clareza: o Brasil está passando por uma transição com o crescimento da pluralidade religiosa. Desde 1994, os católicos perderam 25%, os evangélicos ganharam 15% e os sem religião aumentaram 9%. O Instituto ainda projeta a inversão da hegemo- nia, entre os dois grandes grupos, acontecendo no ano de 2028. Apesar da forte influência da religião em núcleos da sociedade, segundo Karla Regina Macena Patriota (2009) após a época de secularização e um pos- sível descrédito das religiões, observa-se um retorno à conjuntura política nas sociedades ocidentais. A união entre a religião e a mídia é considerada pela

3 O censo demográfico foi realizado em 2010 e teve como objetivo identificar a religião (ou a não religião) declarada dos brasileiros. 4 O Instituto Datafolha realiza desde 1994 pesquisas para traçar um perfil reli- gioso da população brasileira. O mais recente é datado de 2016.

TCCs 2019_2 --- 346 a autora, como responsável pela expansão para outros grupos da sociedade, como o campo político-ideológico. “A mídia mostra-se como o mais novo ho- rizonte visível de propagação para a mensagem religiosa”, diz Patriota (2009). Além disso, de acordo com a autora, as inúmeras igrejas desejam a pre- sença cada vez maior na mídia, como estratégia para garantir e promover sua visibilidade e existência social. Assim, vemos um material farto para atingir os espectadores, tanto no que diz respeito à vida comum, quanto à esperança de uma vida transformada, o qual “modela o pensamento, as identidades e a pró- pria religiosidade” (Patriota, 2009) O resultado disso é observado no campo político, no qual vemos um grupo ganhando destaque, com participação direta no Congresso Nacional: a Frente Parlamentar Evangélica, ou simplesmente bancada evangélica. De acordo com José Artur Tavares de Brito, o posicionamento desse grupo é assumir e marcar uma posição na política a fim de fazer desse mundo, um “lugar melhor”. Apesar disso, esse pluralismo, para Gaarder (2000), sucumbe em intolerân- cia, preconceito e violência religiosa. Proveniente desde a falta de informação ao fanatismo, essa visão mais conservadora impede a tolerância às diferenças. E esse termo, segundo o autor, é palavra-chave para o estudo das religiões. “Com frequência, a intolerância é resultado do conhecimento insuficiente de um as- sunto. Quem vê de fora uma religião, enxerga apenas suas manifestações, e não o que elas significam para o indivíduo que a professa” (GAARDER, 2000, p.16). Para o autor, uma atitude tolerante pode coexistir com a crença e fé. O problema não é fazer propaganda, mas faltar com respeito a opinião e pers- pectiva de outros. Infelizmente, esse comportamento vem de muitas outras civilizações e perdura até os dias de hoje, marcada pela violência e discursos de ódio. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, o Disque 100, re- cebe uma denúncia de violência religiosa a cada 15 horas. Em 2017, a maioria das vítimas de intolerância é de religiões de origem africana, com 39% das denúncias. Lideram o ranking umbanda (26 casos), candomblé (22) e as demais matrizes africanas (18). Depois, vêm a católica (17) e a evangélica (14). Apesar disso, Nicolas Corrent (2016) defende a importância humanitária das religiões e destaca como a responsável por promover o respeito e paz.

As religiões trabalham em função de um mundo, justo, solidário como pela paz e principalmente pelo respeito a todos sem distinções, podendo as pessoas a ter o direito de escolha religiosa, ou por não, optar por seguir nenhuma religião, sendo livres para decidirem e sem usarem a violência para chegar a essa escolha. (CORRENT, online, 2016)

TCCs 2019_2 --- 347 O poder de escolha, segundo Corrent (2016) é um direito, assegurado pela lei, de liberdade de culto. Para o autor, as pessoas são e devem ser livres para escolherem qual religião querem seguir ou se não querem optar por ne- nhuma, sendo esse o grande preceito de muitas crenças: a liberdade.

2.3 Websérie jornalística Pensando no conceito de ser livre, a Internet deu espaço para os indiví- duos navegarem e terem acesso a informações de maneira muito rápida. Ela também concedeu lugar para o jornalismo se apresentar com uma visão dife- renciada a respeito da comunicação. Nesse contexto, a pesquisadora Raquel Ritter Longhi (2014) aponta como a trajetória do jornalismo está marcada, nos meios digitais, pelo audiovisual. De acordo com Cebrián Herreros (2007, p.74), conforme citado por Ritter (2014, p. 76) “o audiovisual é veículo e meio para a informação“. Para autora, esse elemento faz parte da mensagem, não somente para comunicar, mas para expressar narrativas. Segundo José Jullian Gomes de Souza e Paulo Eduardo Cajazeira (2015), “o audiovisual é um campo consolidado nos meios de comunicação tradicio- nais como um dos recursos mais utilizados de difusão da imagem e do som”. No Brasil, o formato se expande desde o jornalismo televisivo até as narrativas construídas em telenovelas, séries e minisséries. Souza e Cajazeira (2015) ainda aponta que com a expansão da Internet e a possibilidade de uma nova maneira de comunicação, o digital, produtos audiovisuais foram desenvolvidos especificamente para esse meio. Para os au- tores, também surgiu a oportunidade de produzir e circular conteúdos através interatividade na Internet.

Assim, temos uma fusão desses meios confluindo para um novo sistema de mídias mais elaborado, hipertextual, interativo e multimídia dando origem a novos produtos audiovisuais como, por exemplo, as webséries ficcionais e as documentais. (SOUZA e CAJAZEIRA, online, 2015)

Portanto, um dos formatos que se destaca, inclusive, no meio jornalístico, é a websérie documental, não apenas por se conectar à ideia do novo e digital, que por si só já atrai olhares, mas também ao conceito de trazer novos for- matos para informar. Segundo os autores, no jornalismo, há uma tendência em produzir conteúdos que descentralizam a figura do jornalista e abrem o diálogo para quem tem acesso a produção.

TCCs 2019_2 --- 348 Os agentes receptivos já buscavam uma maior partici- pação e era possível observar os passos iniciais por essa interatividade entre o conteúdo e o público. Esse paradig- ma da convergência digital, que modifica a percepção dos formatos jornalísticos, da interação com os novos meios e, principalmente, do papel que o espectador possui na mídia atual, tem sido utilizado pelo jornalismo como uma das tendências em produzir novos conteúdos mais dinâmicos e interativos. (SOUZA e CAJAZEIRA, online, 2015)

Segundo Neves e Ramos (2015), a websérie tem potencial para crescer no campo jornalístico, por atender a uma demanda por conteúdos diversificados disponíveis da web, cuja produção se diferencia das mídias tradicionais. Além disso, “o conteúdo sob demanda permite ao espectador, agora consumidor, escolher o que, onde e quando assistir” (NEVES e RAMOS, 2015). Por isso, esse formato tem atraído o público, pois é ele quem se torna protagonista ao escolher o que quer ver, quando e por quanto tempo, através da Internet, de um computador ou celular. A apropriação desse formato para o meio jornalístico fornece segundo Souza e Cajazeira (2015), “a maior participação do público, as ferramentas dis- ponibilizadas pela Web, a identificação do público com esse conteúdo e a busca por processos de interatividade e diálogo com as outras mídias”. Nesse meca- nismo, é propiciado o valor de uma nova experiência ao telespectador. O webjornalismo tem então o potencial de explorar todo o leque de possibilidades fornecidas na Internet e enfrentar os novos desafios na área de comunicação. Assim, apresenta um novo olhar sobre como contar histórias. Por isso, a peça trabalhada nesse TCC foi uma websérie jornalística ou documental pautada no audiovisual.

3. DESENVOLVIMENTO DA PEÇA

3.1 Definição dos episódios A peça escolhida para o desenvolvimento do trabalho foi a websérie. Para retratar os ideias de pessoas de diferentes crenças e opiniões, a websérie foi dividida em três episódios, cada um com duração entre 5 a 8 minutos. Em cada um deles, um assunto central foi explorado, por meio de entrevistas com especialistas e personagens. Assim, os episódios foram divididos da seguinte maneira: A crença: o primeiro capítulo teve como tema “Crer ou não crer?” e

TCCs 2019_2 --- 349 juntou vários pontos de vista sobre como é acreditar ou não em algo e se é possível escolher no que acreditar. Cada personagem compartilhou as motiva- ções pessoais que os levaram a seguir àquela ideologia. O Eu: o segundo episódio se centrou na questão “Como eu me enxer- go?”e exploroucomo cada um vê o seu papel dentro da sua crença e na socie- dade, de acordo com os valores passados pela motivação religiosa. Além disso, abordam os principais ganhos e aprendizados adquiridos. O Outro: por fim, o terceiro e último episódio fala sobre “Como eu en- xergo o outro?”e abordou como eles lidam e enxergam as outras pessoas, principalmente quem possui uma crença diferente da sua. Assuntos como res- peito, amor ao próximo, preconceito e intolerância religiosa foram abordados, bem como foi enfatizado a importância do diálogo, proposta fundamental nesse TCC.

3.2 Fontes e entrevistas Cinco grandes vertentes foram apresentadas através de seus seguidores: catolicismo, representada pela Ana Carolina Viana; umbanda, pela Letícia No- gueira; protestantismo, pela Milena Gonçalves; islamismo, por Mariam Melhem; budismo pela Bruna Polachini e; ateísmo, por Clístines Merlucci. Além disso, o teólogo Nivaldo Dutra trouxe uma visão mais ampla e teórico sobre os temas guiando o produto. A ideia foi retratar a diversidade cada vez mais presente no Brasil e com- provada pelos estudos e pesquisas do IBGE, trazendo ao máximo uma varieda- de de crenças e ideias. Ainda mais, aproximar suas diferenças em uma espécie de diálogo aberto e democrático. Além disso, a participação de um ateu, por mais que o mesmo não se vincula a nenhum grupo físico, é essencial para des- mistificar ideias e trazer um novo posicionamento sobre esse grupo de pessoas. A escolha de entrevistar predominantemente personagens teve o objeti- vo de distanciar os discursos oficiais vindos de figuras vinculadas às instituições e dar voz a jovens ativos que, socialmente, levantam bandeiras de tolerância, liberdade e, socialmente, levantam bandeiras de tolerância, liberdade e modera- ção. Portanto, crentes mais moderados foram escolhidos para sustentar esses temas. Assuntos que foram abertamente expostos durante as entrevistas, cujas conversas duravam mais de 40 minutos recheados de conhecimento. Inicialmente, para a gravação foram utilizadas duas câmeras e também uma GoPro para fazer um making of. Além disso, as sonoras foram captadas pela utilização da lapela e a trilha foi utilizada com sons próprios do ambiente. As entrevistas foram realizadas em plano fechado e primeiro plano nos ambientes respectivos às crenças dos personagens. O intuito principal foi dar espaço àquelas histórias, as deixando mais íntimas do espectador. Junto aos

TCCs 2019_2 --- 350 depoimentos sobre suas motivações, foram captadas imagens dos locais que os mesmos frequentam (igrejas, templos, centros, mesquitas, etc). Para essas, foi utilizado plano geral, mas em boa parte, o plano detalhe para capturar aspectos centrais e simbólicos desses espaços. O processo de gravação foi uma experiência por si só única. A cada en- trevista marcada, havia-se o cuidado ao representar de forma adequada cada particularidade dos grupos, sem generalizações e pré-conceitos. Ao chegar nos locais, antes de iniciar a gravação, eram propostas rezas, orações, visitas, pales- tras, tours e explicações mais aprofundadas, uma verdadeira imersão. Desde assistir missas, usar o hijab e fazer uma aula de meditação. Entretanto, em de- terminados locais e ambientes havia a proibição de realizar a gravação, mas sem causar muitos impactos para a execução da peça.

3.3 Construção e finalização da peça

A intenção foi criar uma identidade para cada uma das sonoras e deixar fácil de distinguir cada personagem com suas características, as quais são bem distintas de certa maneira. As narrações que introduzem os episódios foram instrumentos para guiar quem assiste ao tema, de forma reflexiva e imagéti- ca, acompanhando a complexidade e subjetividade do tema. Em contrapartida, dados e informações foram aplicados para apresentar veracidades aos temas apresentados, estes, foram criados por um produtor audiovisual. Pensar a divisão de temas por cada episódio foi crucial para o processo de construção da peça, a fim de transmitir a essência das histórias tão distintas en- tre si, mas conectadas de certa forma, em um diálogo, novamente democrático. O objetivo principal foi intercalar cada narrativa entre si, sem perder aspectos particulares e expor assuntos para reflexão. O recurso próprio do modelo audiovisual e, sobretudo, utilizado no campo jornalístico possibilita a criar uma conversa com base nos depoimentos apresentados. Todo esse processo resultou em uma websérie jornalística denominada “O caminho que me guia”, composta por três episódios. Muitas vezes asso- ciadas como um “manual da vida”, as religiões e/ou ideologias são a base para que os personagens apresentados possam, de fato, viver, passando por desafios, descobrindo seu papel na sociedade, lidando com outras pessoas, se conectan- do de maneira espiritual e encontrando sua satisfação pessoal. Por isso, o título da peça foi escolhido com base na premissa de que esses caminhos auxiliam muitas pessoas, mas também são muito particulares. Quando questionados se suas crenças eram como uma espécie de guia para eles, a resposta foi um ca- tegórico “sim”.

TCCs 2019_2 --- 351 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ir a campo e conceber uma narrativa diferente de tudo que havia feito, foi um grande aprendizado e uma intensa aula prática. Desenvolver a peça concre- tizou a curiosidade de me aprofundar pelo tema e trazer um produto com va- lor relevante para debates em campos sociais, culturais, religiosos e ideológicos. Todo o processo de apuração, produção, gravação e edição foram pontos fundamentais para enaltecer o assunto e trazê-lo para discussão. A imersão nas histórias, nos locais e nas ideias enriqueceram meu repertório pessoal e retira- ram diversos pré-conceitos existentes, além de satisfazer meu desejo de criar, através do jornalismo, um produto interessante, didático e reflexivo. Cada um dos entrevistados, trouxe por meio de suas histórias, vivências e ensinamentos, elementos íntimos de suas vidas, trazendo ao produto final uma variedade de pontos de vistas, cada um com sua identidade e particularidade. De antemão, esperava-se que as divergências entre as crenças ganhassem des- taque durante as conversas, mas pelo contrário, apesar de existirem diferenças em diversos quesitos, as semelhanças percebidas são o que mais chamaram a atenção e potencializaram o debate a respeito da tolerância, respeito e liber- dade religiosa. A participação de jovens bate de frente com a problemática de asso- ciar religião à alienação, tão exposta pelas mídias brasileiras, intensificada por discursos no campo ideológico e político. Assim, a peça final teve capacidade de transmitir de uma maneira menos estereotipada, a relação existente entre pessoas e religiões. Recorte ainda muito tímido presente no meio jornalístico, afinal, a mídia pouco aborda essas questões tão fundamentais para o debate atual, em que vemos discursos de ódio presentes a todo o instante, em com- portamentos, falas, comentários e, até mesmo, em ações. Ainda mais, tratou pelo viés desses personagens, assuntos como livre-ar- bítrio, autoconhecimento e respeito ao próximo com uma roupagem pouco apresentada e aberta ao diálogo, principalmente no audiovisual. Muitas notícias e discursos apresentam grupos que agem obcecados em converter e alienados em abraçar o poder, questões que não condizem com as premissas originais das religiões. Assim, deturpam o real valor de impacto na vida das pessoas, no que diz respeito, à acolhimento, autoestima, reinserção na sociedade, esperança sobre a vida, entre outras coisas. Em meio a isso, a websérie “O caminho que me guia”, retratou esses aspectos e respondeu a pergunta-problema, por se aprofundar no universo au- diovisual, expressando as ideias de maneira mais penetrante, dando identidade

TCCs 2019_2 --- 352 às pessoas e criando certa proximidade entre os personagens e quem assiste, trazendo uma visão mais ampla e menos fechada sobre os temas abordados. Todo o percurso foi enriquecedor para meus conhecimentos e pretendo não parar com a pesquisa a fim de entender a complexidade, quase sem fim, das religiões e suas vertentes. Afinal, as pautas trabalhadas nesta websérie são apenas parte de uma temática imensa e vasta. Por estar veiculado na plataforma do YouTube e ser acessível a familiares e amigos que acompanharam de perto, aos entrevistados que compartilharam suas histórias e a um vasto público tão curioso quanto eu, tenho grande expectativa de que esse produto alcance muitas pessoas e no futuro, eu possa dar continuidade a ele apresentando ou- tros pontos fundamentais para o entendimento da temática trabalhada. Mesmo com a convicção e minha escolha de seguir o catolicismo, a curio- sidade é algo inerente a minha pessoa e me movimenta a buscar me aprofundar no assunto. Conhecer pessoas, crenças e locais tão diferentes da minha rotina é o que tiro de mais valioso desse processo e finalizo satisfeita com o resultado.

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TCCs 2019_2 --- 355 Para conhecer o trabalho completo, acesse os QR Codes abaixo

TCCs 2019_2 --- 356 VIDAS ELEVADAS

FRANCESCO GRECO DELLE SERRE Orientador: Hugo de Almeida Harris

TCCs 2019_2 --- 357 RESUMO Neste livro fotográfico o tema principal é o Minhocão e como esta gigante obra é compreendida pelos habitantes da região. O principal objetivo foi iden- tificar o que significa o Elevado Presidente João Goulart para os entrevistados a partir de seus perfis e ligações com a via, dentro das fotografias. Em seguida, analisar a situação econômica que a construção trouxe para a região depois de tantos anos – ou até mesmo assim que foi finalizada, entendendo como houve a desvalorização de grandes imóveis do local. As entrevistas e as fotografias foram os principais métodos utilizados, para que houvesse a possibilidade de contar a narrativa destas pessoas ilustrando ao leitor o que significa o Minho- cão, tendo em vista a subjetividade da pessoa ao falar e a minha ao fotografar. Para isso, Edvaldo Pereira Lima, no livro “Jornalismo Literário para iniciantes” foi importante para a liberdade da escrita, assim como “O olho do fotógrafo”, de Michael Freeman, ensinando sobre a composição da imagem. Como resulta- do, um livro com entrevistas naturais que mostram a verdadeira face de quem vive pelo Elevado e demonstra todo o caminho percorrido, incluindo descrição do cenário a partir também das fotografias. O processo foi bastante trabalhoso, mas cada foto foi escolhida com o intuito de passar alguma mensagem ao leitor, que pode entender também o significado do Minhocão. Palavras-chave: Elevado Presidente João Goulart; Perfis; Fotografia; Jorna- lismo.

ABSTRACT In this photo book the main theme is the Minhocão and how this giant is understood by the inhabitants of the region. The main objective was to identify what High President João Goulart means to interviewed from their profiles and road links within the photographs. Then analyze the economic situation that the construction brought to the region after so many years - or even as soon as it was completed, understanding how there was the devaluation of large pro- perties of the place. Interviews and photographs were the main methods used, so there was the possibility of telling the narrative of these people illustrating to the reader what the Minhocão means, in view of the subjectivity of the person speaking and mine when photographing. For this, Edvaldo Pereira Lima, in the book “Literary Journalism for Beginners” was important for freedom of writing, as well as Michael Freeman’s “The Eye of the Photographer”, teaching about the image’s composition. As a result, a book with natural interviews that show the true face of those who live in the High and show all the way, including description of the scenery from the photographs. The process was quite toil-

TCCs 2019_2 --- 358 some, but each photo was chosen in order to convey a message to the reader, who can also understand the meaning of the Minhocão. Key-words: Elevado Presidente João Goulart; Profiles; Photography; Jour- nalism.

TCCs 2019_2 --- 359 INTRODUÇÃO Este relatório descreve a realização de um livro fotográfico a respeito das disparidades de perfil daspessoas que tenham ligação com o Elevado Presiden- te João Goulart, contando também com percepções sobre diferenças geográfi- cas, sociais e artísticas que se relacionam ao local. Popularmente conhecido como Minhocão1, o Elevado vai muito além de apenas concreto e carros passando sobre durante boa parte do dia. Há uma grande história por trás – social, geográfica, artística e até mesmo política – que se relaciona com os moradores das regiões que abrange. Não apenas os habitantes, mas ações políticas envolveram ainda o nome do Minhocão, sendo alterado desde a sua inauguração, feita por Paulo Maluf, em 1971. Em 2016, o ex-prefeito Fernando Haddad fez uma mudança no nome, retirando a alusão e homenagem ao ex-presidente do Brasil Marechal Costa e Silva, segundo do regime militar, o substituindo por Elevado Presidente João Goulart, deposto pela ditadura. O Elevado recebeu o apelido de Minhocão ainda em sua construção, pela população que morava próxima da gigantesca obra. Foi chamada desta forma pela semelhança - não física - a uma minhoca, que “comia” a cidade e se “arras- tava” no meio dos edifícios da região. Ainda em 2018, o ex-prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, sancio- nou uma lei que cria e autoriza o Parque Minhocão. A decisão não foi totalmen- te aceita, já que Dória também vetou a demolição do local. Isso está previsto no Plano Diretor da cidade desde 2014, que apenas determina o fechamento aos finais de semana. Um avanço recente quanto às polêmicas que foi ligada, principalmente para a saúde de quem lá reside. Tendo em vista a complexidade e importância deste Elevado para a cidade de São Paulo, contando além do aspecto social, geográfico e artístico, a mobili- dade urbana, a pergunta problema deste projeto é: como um livro fotográfico pode retratar as disparidades de perfis de pessoas que caracterizam o percur- so do Elevado Presidente João Goulart? O principal objetivo foi desenvolver um livro fotográfico, avaliando por meio das imagens e de perfis o que é e o que significa o Elevado para a região e para as pessoas que residem ou trabalham próximos a este símbolo da cidade. Em seguida, o objetivo secundário se tornou identificar as diferenças eco- nômicas e sociais que formam o entorno do Minhocão, criando por meios das fotografias uma reportagem. Há também ponto importante a se destacar: as fotografias não foram apenas jornalísticas, mas também artísticas. Durante a

1 Minhocão: nome popular do Elevado Presidente João Goulart. Ao longo deste traba- lho, o Elevado será abordado e chamado por Minhocão – e se tratando de um nome próprio, a palavra será iniciada com letra maiúscula.

TCCs 2019_2 --- 360 produção, os objetivos foram invertidos em ordem, já que depois de realizar algumas entrevistas ficou perceptível que as disparidades estariam dentro dos perfis - e que dessa forma seria possível conhecer quem está ao lado do Ele- vado. Ainda como parte do objetivo secundário, investigar a história do Minho- cão e as políticas públicas relacionadas a ele, estudar técnicas de fotografia para a cidade, assim como a construção de perfis. Estudar jornalismo literário, utili- zando exemplos do New Journalism, como o livro “Hiroshima”, de John Hersey. Analisar grandes reportagens, para estudar e aplicar técnicas de reportagem para a realização da peça foram realizados, para o mínimo de conhecimento durante o procedimento. Esse tipo de pesquisa e análise, principalmente fotográfica, foi importante para identificar como é uma das mais conhecidas regiões da cidade de São Pau- lo, e como afeta o cotidiano de quem está nas proximidades. Leis recentemente homologadas definirão o futuro do Elevado. Existem movimentações políticas para que seja demolido, seja mantido ou vire parque de uso comum - o que já está previsto no Plano Diretor de 2014, feito pelo ex-prefeito Fernando Haddad. Este caso deve ter uma definição até 2030, que é data limite proposta no documento oficial. O assunto é motivo de discussão desde os anos 80, começando pelo projeto do arquiteto Luiz Antônio Pitanga do Amparo, que apresentou uma nova cara ao Minhocão. Luiz o transformou em parque, mas sem deixar de ter transporte, que neste caso seria apenas público. Em 1993, houve a primeira proposta oficial da ex-prefeita Luiza Erundina, que esteve à frente deste posto na cidade entre 1989 e 1992. A principal acusa- ção de Erundina era que o Elevado foi o principal fator da degradação da região. O Minhocão abrange os bairros de Santa Cecília, Barra Funda, Campos Elíseos e República, mas também os conecta por vias que levam às zonas oeste e leste. Neste trajeto, geograficamente e socialmente a cidade se altera, desde as pessoas que andam e residem, até as arquiteturas dos edifícios que estão por perto. São os mais diversos cenários, com artes em laterais de prédios, nas co- lunas do Elevado e variados comércios, que são ótimos exemplos da disseme- lhança na região. Além disso, a grandiosa obra, realizada aos moldes da Transamazônica, foi elaborada para facilitar o trânsito da capital paulista, dando maior mobilidade para a ligação entre a Zona Leste e Oeste, cortando boa parte da região cen- tral, onde também se conecta. Hoje é questionada pela quantidade de carros que fazem o local perma- necer em trânsito, assim como em outros locais da cidade. Segundo dados do

TCCs 2019_2 --- 361 site oficial da Câmara Municipal de São Paulo, cerca de 70 mil carros passam por dia – mesmo que a tendência seja diminuir, devido ao horário de funciona- mento – o que prejudica a saúde daqueles que vivem em frente local, devido à proximidade do Elevado. O jornalismo de cotidiano é importante para questionar o urbanismo e as artérias da cidade, de como essa “válvula de escape” é representada e como influencia a capital paulista, entendendo o posicionamento da população em relação ao tema. Vale destacar que no censo de 2010, das 90 mil pessoas que moram entorno do Minhocão, 40 são da faixa etária de 30 a 59 anos, o que mostra a longevidade de quem moral neste local – comparado ao censo de 2000, eram cerca de 34 mil na mesma faixa etária. Como responsável por passar a informação correta à população, o jorna- lismo faz esta ligação para entender as decisões do prefeito sobre o assunto. Além disso, pode trazer comentários e problemas – assim como soluções - que hipoteticamente acontecerão por conta de movimentações política que sejam tomadas, acarretando em toda a cidade. Para poder realizar este trabalho, a metodologia teórica foi baseada em artigos, livros, documentários e matérias jornalísticas, como: os documentários “Ponto de vista”, de Caroline Carvalho, Fabio Santana e Ingid Mabelle e “Ar- quitetura: Minhocão”, de Paulo Markun e Sergio Roizenblit; o artigo “Minhocão: Ressignificação do espaço por meio de intervenções culturais”, da Leila Barros Moura, a matéria “O que é e para que serve o Minhocão”, do site Jornal Nexo; e o livro “Barra Funda”, de Aideli Brunelli, Ana Paula Karruz, Dilze de Lima, Fernando Machado, Krystyna Okrent, Liliana Bosisio, Lina Gumauskas, Roseli Sobral, Simone Lins e Solange dos Santos. Para a fotografia, os livros: “O olho do fotógrafo”, de Michael Freeman; “A ilusão Espetacular: Introdução à Fotografia”, de Arlindo Machado; “O Ato Fotográfico: Memória, prospecção e produção de sentidos na velhice”, de Joana Sanches-Justo; e “O Enquadramento: um olhar sobre a cidade, fotografia e sua história”, de Jussara Moreira de Azevedo. Sobre o texto e o jornalismo literário, que também teve espaço, foram utilizadas as seguintes referências: “Jornalismo e Literatura em Convergência”, de Marcelo Bulhões; “Pensando contra os fatos: Jornalismo e Cotidiano – do senso comum ao senso crítico”, de Sylvia Moretzsohn; “Jornalismo Literário para iniciantes”, de Edvaldo Pereira Lima; e “Técnicas de Reportagem: Notas sobre a Narrativa Jornalística”, de Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari. Estas pesquisas foram utilizadas para a compreensão de como a cida- de era organizada, para a função dessa construção na capital, de forma que a abordagem prática seja feita com repertório pessoal, além de dados oficiais da Prefeitura de São Paulo.

TCCs 2019_2 --- 362 A metodologia prática foi baseada em entrevistas com moradores dos prédios, que tenham seu apartamento muito próximo ao Elevado, vendo os carros passarem e a diferença que é quando não estão circulando por lá, retra- tando os lados bons e ruins desta obra. Comércios e artistas também estavam nos objetivos para entrevistas – como o artista plástico José de Carvalho Neto, que mora em frente ao Elevado, assim como o fotógrafo Felipe Morozini. Apenas Felipe foi entrevistado, pela di- ficuldade de contato que tive. Por muitas vezes tive de usar o Instagram, e mes- mo assim tive fontes que não responderam - como a fotógrafa Raquel Brust. Os professores de arquitetura da FAAP, Marcos Costa e Marina Grinover, dariam um peso do olhar clínico ao assunto, mas ao decorrer da produção, escolhi a realização de perfis, o que não tornava necessária a entrevista destes professores. As fotografias antigas do Minhocão foram concedidas pelo Estadão, que por telefone liberaram o uso acadêmico.

REFERENCIAL TEÓRICO ELEVADO PRESIDENTE JOÃO GOULART A área que o Minhocão abrange é movimentada durante todo o dia, consi- derando os pontos de ônibus e estações de metrô que ficam abaixo da via, e os 70 mil veículos que passam sobre ele diariamente, segundo a Câmara Municipal de São Paulo – esta estimativa tende a cair, por conta da modificação de horá- rios de abertura e fechamento. Segundo dados de Bertoni (2016), o Minhocão custou cerca de 40 mi- lhões de cruzeiros, o que equivale cerca de 400 milhões de reais. Foram 420 dias de obras (ou 14 meses), 3.100 operários, 32 mil toneladas de cimento, além de 80 desapropriações durante o período de construção. Torres (2015) explica a insatisfação da população que essa grandiosa cons- trução no centro de São Paulo gerou desde o princípio, ocasionando esse mal- -estar nos 3,4 quilômetros, que liga a Zona Oeste à Leste, já que as residências – que são consideradas harmoniosas e seguras – se opõem à rua, estranha e perigosa, dada a proximidade às varandas dos apartamentos. Contando ainda com dados do site oficial da Câmara Municipal de São Paulo, em pesquisa do Datafolha em 2015, apenas 7% da população gostaria desta via demolida. 53% dos entrevistados gostariam que fosse mantido como está, e 23% optam pelo parque. O restante não soube responder. Moura (2017) elucida que com a construção e o favorecimento da po- pulação que possui a facilidade do automóvel para locomoção na cidade de São Paulo, este pode ser um exemplo de distinção entre pessoas de diferentes

TCCs 2019_2 --- 363 classes, usando as moradias que foram construídas ao redor do Minhocão.

O histórico das políticas urbanas da cidade de São Paulo sempre favoreceu as classes dominantes e setor industrial, com tratamento desigual e injusto a po- pulação de baixa renda. Parte desse padrão de “desenvolvimento” adotado se dá pela chamada globalização, que favorece a integração de mercadorias entre os países, padronizando o modo de vida das pessoas. (MOURA, 2017, p.6)

A autora ainda diz que, dessa forma, pode-se entender a construção da via, que primeiramente foi vetada pelo prefeito vigente Brigadeiro Faria Lima em 1968, mas passado para o próximo prefeito, caso quisesse construir. Foi quando o militar Costa e Silva indicou Paulo Maluf para a prefeitura de São Paulo. Este colocou a obra para ser realizada, ainda mais por viver no tempo onde as construções deveriam ser grandiosas, assim como a Transamazônica, característica da época no governo militar. Assim, onde havia concentração de carros por conta do comércio, cinemas e casas luxuosas – resquícios dos anos 30 e 40 – o Minhocão nasceu. Brunelli, et al (2006) explica que a partir da construção da via elevada, os bairros do entorno foram afetados. As elites de Santa Cecília e Campos Elísios, locais que hoje ainda há antigos casarões, praticamente perderam o luxo das décadas anteriores e a disparidade que tinham em relação aos outros bairros. Isso se dá muito por conta da comercialização e deterioração que o Elevado trouxe ao local, ligando à antiga e operária popular Barra Funda, mudando o ambiente de grandes casas para humildes cortiços. (BRUNELLI, et al, 2006, p.28)

A década de 1940 marcou a cidade de São Paulo, urbanisticamente, em virtu- de dos grandes projetos viários das avenidas e por uma densa verticalização (prédio mais altos e com apartamentos menores). Entretanto, a Barra Funda parece não ter sido efetivamente afetada, exceto quando da construção da Via Elevada Presidente Artur da Costa e Silva – o “Minhocão” – entre os anos de 1969 e 1971, que até hoje é apontado como agravante no processo de estagnação e deterioração do bairro. (BRUNELLI, et al, 2006, p.29)

Florence (2010) explica que o Minhocão já faz parte da cidade, mas que inúmeros prédios da região são ignorados por sua presença, o que gera rela- ções de apego e dependência à quem tem relação diária, deixando claro a po- sição desta obra viária no centro da capital paulista, abrigando mais polêmicas. O autor também expõe as aprendizagens acadêmicas acerca deste assun- to, sobretudo na área de arquitetura e urbanismo, que também discute a sua utilidade, não somente a engenharia de trânsito. Assim, comprova quando diz que a construção não é aclamada pela crítica arquitetônica, contando que nas

TCCs 2019_2 --- 364 universidades de arquitetura o “descaso com o patrimônio” é exemplificado no caso do Minhocão. Diante de todos os problemas que esta construção causou ao local, como aos moradores, que segundo Carneiro (2018) respiram 79% de poluição a mais do que a média da cidade, além dos limites de ruídos que estão acima do limite recomendável – 55 decibéis. Carneiro (2018) propõe, a partir da criação da lei que transforma o Mi- nhocão em parque, que haja essa conversão parcial ou integral do parque. Des- sa forma, possíveis valorizações imobiliárias e propostas para o entorno do parque podem acontecer, e dentro do prazo de dois anos, deverão constar no PIU (Projeto de Intervenção Urbana – aprovado por João Dória durante seu mandato na prefeitura de São Paulo).

FOTOJORNALISMO Como expõe Machado (2015), a fotografia é um texto, entendendo pela interpretação, mas que se constrói a partir de seus elementos expressivos. Antes de entrar no jornalismo, a fotografia tem um significado, seja artística ou relatar fatos – da mesma forma que um texto escrito pode ser feito. Freeman (2012) explica que as fotografias têm um contexto único e es- pecial, e a partir disso são criadas, podendo permanecer sem alterações até a imagem final, ou recortada e estendida. A composição destas fotografias tradi- cionais é pensada exatamente no final, depois do disparo. Porém se originadas da percepção e imaginação particular de quem está com a câmera, assim como uma pintura, o processo da fotografia se transforma na seleção de cenas e eventos que a deixam mais realista, tratando exatamente do real. Sanches-Justo (2013) aborda a fotografia no mesmo sentido particular, não funcionando apenas como um artefato social ou até mesmo um objeto co- lecionável, como a sociedade costuma fazer com as fotos. A câmera é o próprio instrumento de mediação que pode assim tornar visível as particularidades do mundo a quem a realiza ou a quem a observa. Com a construção dos sentidos a partir da foto, a autora explica que é possível criar uma narrativa, se aproximando então do propósito do fotojor- nalismo. Fistarol (2003) acredita, junto ao editor-chefe do jornal A Notícia, Robert Adams, que a foto jornalística nunca perderá a credibilidade que alcançou du- rante os anos, sempre tentando deixar o mais original possível, mas que algu- mas montagens sobre elas podem pôr em cheque esta mesma confiança. Para a autora, a fotografia na imprensa tem duas bases: “ético/moral do indivíduo dentro do fazer jornalístico [...]. A segunda diz respeito à coletividade ética dentro dos jornais” (FISTAROL, 2003, p.60), fazendo com que o jorna-

TCCs 2019_2 --- 365 lismo não vire, com o auxílio da fotografia, um mero espetáculo de imagens, onde priorizam quem saiba criar imagens – não fotografando e reinventando realidades, o que não está de acordo com o fotojornalismo, que busca a reali- dade por si.

JORNALISMO LITERÁRIO Lima (2010) aborda o jornalismo literário como uma área diferente ao jornalismo tradicional, baseado no determinismo, encontrando alguém ‘culpa- do’ de algo. Para o autor “o jornalismo literário desvenda a realidade social. A que não vemos. A que não queremos ver. Ou a que adoramos descobrir” (p.88). Lima ainda relaciona o jornalismo literário à psicologia, desempenhando um papel sociológico, com retratos de situações e grupos sociais traçados, efetivamente lendo indivíduos. A psique, portanto, está entre as missões de compreensão de mundo, confrontando os valores, tendências e características mais profundas – de forma que o perfil se encaixe para retratar a pessoa. Sodré e Ferrari (1986) abordam que os perfis podem ser de diferentes personagens, que são divergentes entre si. O personagem-indivíduo, quando o retrato é mais psicológico do que propriamente referencial; o personagem-tipo, quando o jornalista tem em sua frente personalidades, celebridades; e por últi- mo o personagem-caricatura, que já percebe-se pela denominação uma pessoa literalmente personagem. Os autores também buscam explicar o jornalismo literário utilizando o exemplo da crônica nas reportagens, onde nem sempre é muito nítida esta diferenciação. A reportagem, para eles, deve ser feita quando o jornalista está no local do acontecimento, com o testemunho do fato, podendo utilizar como artifício do narrador, ou seja, minimamente deve parecer que esteve presente.

O que estamos chamando de reportagem-crônica, portanto, tem caráter mais circunstancial e ambiental. Sendo pequena, não é notícia, nem tem abrangência da grande reportagem. Não se inscreve nos modelos de fact-story, action-story ou quote-story, embora possa usar alguns de seus recursos. Chega perto da crítica social e da opinião velada. (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.87)

Bulhões (2007) se vale de uma explicação para o jornalismo e a sua ligação com a literatura, que teoricamente deveriam andar em vias diferentes, mas em um olhar retrospectivo dá a entender que há reciprocidade entre as partes que se atraem. As relações de convivência e conexão não foram com- pletamente cortadas, o que causa esta ligação.

TCCs 2019_2 --- 366 Para o autor, um dos grandes obstáculos entre jornalismo e literatura é o padrão criado no Estados Unidos, que foram repassados a países como o Brasil, que o utilizam como o novo jornalismo – sendo hegemônico no mundo todo. “A partir daí, pode-se considerar que as expressões de convergência en- tre o jornalismo e a literatura se tornariam mais complexas” (BULHÕES, 2007, p.29).

DESENVOLVIMENTO DA PEÇA ESTILO E LINGUAGEM

A peça é um livro fotográfico, que contou também com entrevistas e perfis, de forma que ficassem harmoniosas com o contexto das fotografias do Minhocão. Os perfis foram traçados mais objetivamente, diferente de como planejado no início, mas que seja apenas uma apresentação e que se conectem com as fotografias. O fotojornalismo estará em conexão com a subjetividade, já que o livro também tem sua parte literária. Basicamente, o jornalismo com a fotografia está para congelar os fatos e passar adiante, para que sejam publicadas com rapidez e informem o público, mas neste caso o tempo de produção e execu- ção das fotos é um dos principais parceiros. Neste caso, uma câmera amadora e o celular foram os objetos que utilizei para realizar as fotos - pois eram as possibilidades que tinha em casa. O tempo para a produção deste livro não poderia ser considerado como um inimigo, já que as fotografias não foram produzidas apenas com o objetivo de denunciar como está o Minhocão nos dias de hoje. Colocá-lo em confronto com a realidade que existe na capital, pegando pequenos detalhes que o carac- terizem, de modo que realmente o torne único na cidade. Da mesma forma que estes dois campos conversam, foi importante tra- zer dados e contextos que coloquem o leitor na história efetiva do Minhocão, para que este entenda do que se trata esta construção no meio de edifícios no centro de São Paulo antes de serem apresentados às personagens - por isso a escolha de colocar como introdução. Ouvir diversos pontos de vista sobre um mesmo ‘objeto’ é fundamental para que o leitor crie sua própria conclusão do assunto, o que pode ser consi- derado como relevante, já que a subjetividade conversará com o imediatismo da denúncia – caso ela exista de fato.

FONTES As fontes que este trabalho teve foram pessoas que estão ao redor do

TCCs 2019_2 --- 367 Minhocão, desde comerciantes, até os moradores dos edifícios que têm apenas alguns metros de distância para o concreto e o asfalto da via elevada. Uma pessoa que seria interessante: o arquiteto Luiz Antonio Pitanga do Amparo, criador da ideia revolucionária para o Elevado se tornar mais atual, tendo mais de uma opção para o Minhocão, em que não se baseia na criação efetiva de um parque, mas a modernização do local, de forma quiçá futurista. No caso, Luiz não foi entrevistado, já que Felipe Morozini, fotógrafo e partici- pante da Associação Parque Minhocão, me pareceu uma fonte mais interessan- te por ter realizado projetos em prol do objetivo que busca. Também era planejada uma conversa com os professores de arquitetura da FAAP, Marcos Costa e Marina Grinover. Contudo, durante a execução do trabalho, optei em não levar para o lado de especialistas no assunto, mas o sen- timento de quem estava ali perto cotidianamente e o que poderiam me dizer sobre o Elevado. Uma conversa fluida e verdadeira. Entrei em contato com Felipe Morozini através do Instagram do Parque Minhocão, página da Associação que faz parte e tem grande notoriedade den- tro deste grupo. A mesma forma de contato foi realizada com Iarlei Rangel, diretor do Grupo Esparrama. Os dois já eram personagens com quem planejei conversar desde o começo, por habitarem a região e participarem de grandes “projetos”. O Castelinho da Rua Apa também era um objetivo, e gostaria de conver- sar com a pessoas que possuía aquele local, que foi restaurado recentemente. Dessa forma encontrei Maria Eulina, que brigou durante 20 anos para ter o local à disposição de sua ONG. O foco sempre foi conversar e fotografar pessoas comuns que tivessem ligação com o local e o assunto, e dessa forma o trabalho foi realizado. Souza, cabeleireiro, é conhecido de Paulo Orlando, dentista na Barra Funda – meu amigo. Dessa forma encontrei Souza e achei relevante colocá-lo no livro por sua longa história com o Elevado. As outras duas fontes não foram exatamente planejadas, assim como Souza, apenas as encontrei ao sair para fotografar e procurar por mais histórias. Comerciantes foram fundamentais para entender como o movimento se dá naquela região e qual a ‘responsabilidade’ do Minhocão nisso. Além deles, talvez as mais importantes fontes: moradores. Estes deram declarações e serão acompanhados por algumas horas para que seja notada e recordada para o tra- balho, de forma que foi exatamente traduzida para o livro. Durante o ano, con- versei com outras pessoas que estavam envolvidas com o local, para entender o sentimento sobre aquele assunto, mas apenas as entrevistas mais “formais” fizeram parte do produto.

TCCs 2019_2 --- 368 EQUIPE Como o projeto se baseia em um livro fotográfico, a equipe variou por eu ter sido apenas acompanhado por minha namorada e meu pai, mas boa parte do tempo estive sozinho – em que apenas eu produzi algo, mesmo com com- panhia. Uma escolha pensada para tornar o momento mais confortável para a pessoa que estava disposta a me conceder a entrevista e ser fotografado. Como a peça é um livro fotográfico, necessita diagramação, então Almeri- no Gonçalves, formado em jornalismo na Universidade Presbiteriana Macken- zie, foi contratado para realizar esta função. Tivemos uma boa relação, para que ficasse da forma que imaginei, mas seguindo um roteiro, tendo em vista o que poderia ser viável ou não para o projeto - e confiando na capacidade de quem estava do outro lado. Daniel Bocatto, repórter dos canais FOX Sports, também formado em jornalismo, mas pela Universidade Metodista de São Paulo, foi contratado como revisor. Por já ter trabalhado desta forma em outras ocasiões, tive a confiança que Daniel realizaria um bom trabalho, assim como Almerino. E nesses momen- tos, a comunicação com ambos foi fundamental.

2.4 CAPÍTULOS Inicialmente, o livro era planejado para ter dois grandes capítulos, sepa- rando o Minhocão em suas partes fundamentais para que fosse compreendido, mediante sua complexidade geográfica e social. Na prática, com a mudança de objetivos primário e secundário, inverti a ordem de importância e assim separei em 6 capítulos com personagens. Além disso, conta também com a introdução, que é fundamental para entender o que é o Minhocão e como surgiu, assim como as considerações finais pensa no futuro. A partir disso, podemos entrar nas histórias das pessoas que tem relação com o Elevado, seja ele em qualquer nível. Desta maneira, no primeiro capí- tulo, coloquei Carlos, que tira sua renda de vendas no Minhocão e perto do Mackenzie – me permitiu que usasse sua imagem e entrevista através de um áudio gravado no momento do encontro. Depois, Felipe Morozini, membro da Associação Parque Minhocão. Em seguida, outra pessoa que tira o sustento de um comercio que está ligado ao Elevado, mas não exatamente nele. Hoje, a loja “Elvis Arte e Decoração” não existe mais. Foi demolida e se tornará um edifício do projeto Minha Casa, Minha Vida. No capítulo 4, uma pessoa que além do salão, mora em frente ao Mi- nhocão. Por mais que as fotos tenham sido produzidas dentro do salão - onde passa maior parte do tempo, Souza contou uma história emocionante desde

TCCs 2019_2 --- 369 que chegou a São Paulo e pela família que construiu (sempre perto da Praça Marechal que adora, como disse várias vezes durante a entrevista). Nesta ligação, Maria Eulina, que veio do norte do Brasil, tem uma his- tória de bons anos com o Minhocão - e que nela está ligado ainda o caso do Castelinho, um local conhecido da região que permaneceu abandonado por muitos anos. E por último Iarlei Rangel, diretor de um grupo de teatro que faz apre- sentações em ligação direta ao Minhocão. O mais interessante foi saber como eles realizavam as peças e de onde o grupo surgiu, dando voz e imagem às pessoas que estão ali, tão perto da via, mas “escondidas” dos automóveis que passam durante o dia em suas janelas, esparramando ruídos perturbadores. Foi interessante colocar neste momento os depoimentos dos moradores, de como é ter o Minhocão de vizinho e ainda pensando nas mudanças que po- dem ocorrer, desde parque até a demolição. Será que a demolição causaria falta de identidade? As opiniões são diferentes e era exatamente uma das coisas que busquei quando fiz o trabalho. Ao longo destes capítulos, as entrevistas com moradores e trabalhadores que passam horas próximos ao Minhocão foram objetivamente colocadas nas páginas que signifiquem algo, que tenham ligação direta às fotos. Já falando so- bre as fotos, primeiramente as separei por mais relevantes e artísticas a partir do que as personagens disseram. Assim, editei algumas colocando com preto e branco e o diagramador Almerino Gonçalves, tratou outras específicas, que tenham ficado estouradas ou muito escuras. Para as fotografias das crianças presentes no livro, foram utilizadas para fim acadêmico, da mesma maneira que as imagens cedidas pelo Estadão. Portanto, cabe ao leitor captar as informações principais que estão nas entrevistas e realizar uma conexão com as fotografias do livro, fazendo desta forma, também, um perfil do inanimado Minhocão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de realização da pesquisa e do produto em si foi uma verda- deira aula prática de jornalismo e sensibilidade. Jornalismo por saber diferen- ciar o que era importante e interessante para o projeto, e sensibilidade para as fotografias, já que é o carro chefe do TCC. Mesmo que nenhuma entrevista tivesse sido combinada previamente, não foi um problema. Muitos amigos colaboraram para que eu pudesse entrevistar algumas pessoas da região, já que moro próximo ao Elevado e também sei de alguns pontos que seriam importantes que eu fosse à campo, como o Casteli- nho da Rua Apa. É claro que antes houve um estudo, e nisso muito se encaixa o referencial teórico, que deu bagagem para pesquisar apenas itens certos e de

TCCs 2019_2 --- 370 relevância para o trabalho. Tendo em vista as movimentações políticas que aconteceram no começo de 2019, feitas pelo atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas, o Minhocão vol- tou a ser pauta de discussões - exatamente quando o projeto iniciava de fato. Para que as entrevistas acontecessem de forma natural, os livros foram importantes, para que o entrevistado não se sentisse incomodado em contar alguma história que lhe fosse delicada - o que não aconteceu em nenhum mo- mento. Mesmo assim, as fotografias continuam como o carro-chefe deste produ- to. Antes de tudo, houve um planejamento para que fossem apenas jornalísticas, evidenciando como está o local por onde em média passam 70 mil carros por dia. Mas, com as conversas e os pontos levantados pelos entrevistados, já num primeiro momento, a mudança teve de chegar e a subjetividade recebeu o es- paço necessário nas fotografias. A pergunta problema de como um livro fotográfico poderia retratar as disparidades de perfis de pessoas que caracterizam o percurso do Elevado Presidente João Goulart foi respondida, pois há uma diferença (muito grande) entre alguns moradores e comerciantes sobre o Minhocão. Aquele espaço para carros é visto de diversas formas, inclusive pensando para o futuro da região, que é a grande preocupação da maioria. Vale salientar que o salário médio na região fica em cerca de 3 mil reais segundo estudo da Prefeitura. Uma localida- de em que não há pobres ou ricos, mas classe média que possa pagar a moradia. Com o estudo da região e a preocupação dos personagens, pode-se notar que uma mudança de ares está a ponto de ocorrer, porém apenas com o tempo e a realização de algumas políticas públicas irá acontecer de fato. Dessa forma, nota-se também que houve uma mudança grande entre os moradores de antes do Elevado e depois da construção, já que pessoas de rendas menores tiveram a possibilidade de morar no centro de São Paulo, principalmente numa região bem localizada como esta - e principalmente, um detalhe que poucos sabem e só pode ser percebido com as conversas: a maio- ria dos moradores está há muito tempo. No caso dos entrevistados, chegam a 19 anos. Tudo a partir da pergunta problema, que deu a liberdade de produção e entendimento da história e relação da pessoa com o Elevado. A produção deste livro me obriga a continuar atento aos acontecimentos da região e como será afetado depois da criação do Parque Minhocão efetiva- mente, na extensão superior à Rua Amaral Gurgel.

TCCs 2019_2 --- 371 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TCCs 2019_2 --- 372 2019. Disponível em: . Acesso em: 21 mai. 2019. LIMA, Edvaldo Pereira. Jornalismo Literário Para Iniciantes. São Paulo: Clube dos Autores, 2010. 148 p. MACHADO, Arlindo. A Ilusão Espetacular: Introdução à fotografia. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. 163 p. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2018. MINHOCÃO: demolir ou virar parque?. Roteiro: Fred Melo Paiva. 2015. (27 min.), son., color. Série Cidade Ocupada (com Fred Melo Paiva). Disponível em: . Acesso em: 04 set. 2018. MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos: Jornalismo E Cotidiano - Do Senso Comum Ao Senso Crítico. São Paulo: Revan, 2007. 304 p. MOURA, Leila Barros. MINHOCÃO: Ressignificação do espaço por meio de intervenções culturais. 2017. 40 f. TCC (Graduação) - Curso de Escola de Co- municações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2018. PONTO de Vista (Minhocão). Produção de Caroline Carvalho, Fabio Santana, Ingrid Mabelle. São Paulo, 2016. Son., color. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2018. SANCHES-JUSTO, Joana. O Ato Fotográfico: Memória, prospecção e produ- ção de sentidos na velhice. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. 142 p. Dis- ponível em: . Acesso em: 10 out. 2018 SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnicas de Reportagem: Notas sobre a Narrativa Jornalística. 5. ed. São Paulo: Summus, 1986. 144 p. TORRES, Yanne Nigro. Minhocão: Entre o céu e o chão: Metamorfoses espaciais na metrópole paulistana. Presidente Prudente: Unesp, 2015. 125 p. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2018.

TCCs 2019_2 --- 373 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 374 INTRAMUROS: A HISTÓRIA DESVELADA DO JUQUERY, UM DOS MAIORES HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS DO BRASIL

JÚLIA NADDAF REMER Orientador: Vinícius Prates.

TCCs 2019_2 --- 375 RESUMO

Intramuros retrata a história de Divina dos Santos Rodrigues, antiga paciente do Asilo Colônia da Sucursal do Juquery do Hospício de Alienados de São Paulo, uma das maiores instituições manicomiais do Brasil, consolidada como um marco da psiquiatria no país e conhecida popularmente pela superlotação e pelos maus-tratos. Obras como do filósofo Michel Foucault, do renomado escritor Roberto Machado e da jornalista Daniela Arbex, serviram como emba- samento para o desenvolvimento deste livro. Através das memórias de Divina e de outros personagens presentes na obra, como funcionários e pacientes, a tra- jetória da loucura, tal como o surgimento deste conceito, é narrada, dialogando com o cenário atual da psiquiatria e da sociedade brasileira, e promovendo uma reflexão acerca do modelo asilar e de exclusão, ainda presente na atualidade. Palavras-chave: Juquery; Loucura; Manicômio; Jornalismo.

ABSTRACT Intramuros portrays the story of Divina dos Santos Rodrigues, a former patient of the Asylum Colony of the Juquery Branch of the Alienados Hospital of São Paulo, one of the largest asylum institutions in Brazil, consolidated as a landmark of psychiatry in the country and popularly known for overcrowding and mis- treatment. Works by philosopher Michel Foucault, renowned writer Roberto Machado and journalist Daniela Arbex served as the basis for the development of this book. Through the memories of Divina and other characters present in the work, such as staff and patients, the trajectory of madness, as well as the emergence of this concept, is narrated, dialoguing with the current scenario of psychiatry and Brazilian society, and promoting a reflection on asylum and exclusion model, still present today. Keywords: Juquery; Madness; Asylum; Journalism.

TCCs 2019_2 --- 376 INTRODUÇÃO O tratamento embasado no confinamento é visto como uma -alter nativa para a “cura” de transtornos mentais e demais patologias associadas à psiquiatria desde meados do século XV, quando surgiu o primeiro hospital psiquiátrico, na Europa, como demonstra a Revista Latino-Americana de Enfer- magem da Universidade São Paulo (USP, 2005). Inicialmente, essas instituições abrigavam não só pacientes com doenças mentais, mas também pessoas margi- nalizadas, consideradas pela sociedade como ameaças à ordem social, trazendo à tona o conceito do aprisionamento como meio disciplinar e de precaução contra todos aqueles que não seguiam tendências normativas, condenadas pela população. No Brasil, não foi diferente. Fundado no século XIX, em 1898, no mu- nicípio paulista de Franco da Rocha, pelo médico Francisco Franco da Rocha, como Asilo Colônia da Sucursal do Juquery do Hospício de Alienados de São Paulo, a instituição, que buscou nas colônias agrícolas de reabilitação francesas a inspiração para o empreendimento, se alicerçava a um conceito ainda detur- pado e primitivo de “loucura”, o que provocava internações em massa, muitas vezes diagnosticamente injustificadas, como foi o caso de Divina dos Santos Rodrigues, 62 anos. Nascida em Franco da Rocha, Divina não conheceu os pais biológicos, apenas a madrasta, Jandira, casada e mãe de dois filhos. A mulher, que a adotou ainda prematura, criou a menina sob os preceitos do trabalho doméstico desde muito cedo — aos sete anos, Divina já ajudava nas tarefas de casa. A violência também sempre esteve presente em seu cotidiano, impedindo o fortalecimento do vínculo com a matriarca, o que, posteriormente, ocasionou sua ida, aos 13 anos, a um internato religioso em Atibaia, interior paulista, no qual permaneceu até os 18 anos. Anos após adentrar a instituição, sob o pretexto de uma “perda de consciência”, supostamente relacionada à morte de seu animal de estimação, Nininho, as funcionárias do colégio decidiram que o melhor a ser feito era encaminhá-la ao hospital psiquiátrico, sustentando uma justificativa superficial que, à época, tornou-se suficiente para sua reclusão. Em 1975, o Juquery oficia- lizou-se como o lar de Divina, e assim se manteve, até meados de 1990. O local, aos poucos, eximia o caráter de “hospital” e transformava-se em um verdadeiro “depósito de gente”. De acordo com o trabalho de douto- rado de Evelyn Sá — “Análise de uma organização pública complexa no setor saúde: o conjunto Juquery, no Estado de São Paulo” — apresentado para a Universidade São Paulo (USP), em 1983, o Juquery alcançou seu apogeu em 1968, época da ditadura cívico-militar, com uma margem de 14.438 pacientes, exemplificando o fato de que o estabelecimento serviu não só como um asilo

TCCs 2019_2 --- 377 de “loucos”, mas também daqueles que não eram quistos por políticos e milita- res. Paulatinamente, o número de assistidos foi decaindo, totalizando 5.448, em 1975, ano em que Divina tornou-se interna. Durante anos na instituição, Divina sentiu na pele o verdadeiro signifi- cado do sofrimento e da marginalização. Castigos físicos e psicológicos, abusos indiscriminados de medicamentos e brigas diárias faziam parte da rotina do Juquery, assim como o “eletrochoque”, cientificamente denominado como ele- troconvulsoterapia, temido não só pela mulher, mas por todos pacientes. No final da década de 70, o Movimento da Luta Antimanicomial ganhou força, combatendo a ideia do isolamento de pessoas com doenças mentais e também os preconceitos e maus-tratos que as cercavam. A ação se esten- deu até o final do século XX, tendo sua grande vitória em 2001, com a Lei 10.216/200, nomeada “Lei Paulo Delgado”, que trata da proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo de assistência para um viés mais humanitário. Atualmente, o Ministério da Saúde, através da nota técnica 11/2019, ad- vertiu sobre possíveis alterações na política de saúde mental. Dentre as mudan- ças, está o financiamento de aparelhos de eletroconvulsoterapia, a viabilização da internação de crianças e adolescentes e a inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial (RAPS). O documento, que teve ampla repercussão, gerou também debates na comunidade médica, sob a argumentação de que as normativas presentes ferem os preceitos da Lei Paulo Delgado, retomando o modelo manicomial de assistência e representando um grave retrocesso. Após inúmeras contestações, o órgão retirou a nota do ar, sem maiores declarações. Diante deste cenário, a proposta principal deste Trabalho de Conclusão de Curso é mostrar como se dava o tratamento de saúde mental dentro de um ergástulo psiquiátrico no Brasil, no caso, o Juquery, pelas vivências de uma paciente. Secundariamente, o objetivo do projeto é elucidar a população sobre a trajetória da psiquiatria, através de um resgate histórico, que dialogará com o panorama atual. Portanto, a pergunta-problema resume-se em: “É possível um livro-re- portagem elucidar a população sobre a realidade intramuros de uma das maio- res instituições manicomiais do Brasil, de modo a dialogar com o atual cenário da psiquiatria, através dos olhos de uma antiga interna?” Para responder essa questão, a obra conta com intensa apuração, além de depoimentos de pessoas próximas à personagem central e de fun- cionários que trabalharam no Juquery na época retratada, como a enfermei- ra Ana Maria Campanhola e o antigo carcereiro e paciente, Walter Farias. São exibidas discussões e falas de especialistas renomados do meio psiquiátri-

TCCs 2019_2 --- 378 co, que fazem uma avaliação acerca do cenário atual da especialidade, juntamen- te com toda polêmica que o cerca. O livro reúne um compilado de memórias pessoais e coletivas, que interligam-se e dialogam entre si, promovendo uma visualização honesta da vida em uma colônia psiquiátrica e permitindo, inclusive, a quebra de dogmas e preconceitos que permeiam, desde os primórdios, o conceito de “loucura”. Esta modalidade jornalística foi escolhida por sua possibilidade de aprofundamento na história, o que viabiliza uma ampla abordagem de distintas temáticas, relacionadas direta ou indiretamente ao Juquery. Permite também a utilização de imagens no decorrer do texto, ilustrando vivências e fomentando a imaginação do leitor. Os capítulos foram divididos de forma a oferecer uma contextualiza- ção histórica e filosófica, tanto do manicômio de Franco da Rocha, como da concepção da “loucura” e do surgimento da psiquiatria como especialidade médica. Nesta conjuntura, a obra alia a apuração e as características jornalís- ticas com declarações e informações de personagens impactantes, permitindo um retrato fiel da realidade representada, de modo a conscientizar a população sobre a história do aprisionamento da loucura e promover reflexões sobre o cenário atual.

REFERENCIAL TEÓRICO

O papel social do Juquery Ao analisar o Hospital Psiquiátrico do Juquery desde seu advento, é possível notar, paulatinamente, seu papel social. No século XIX, quando funda- da, a instituição se alicerçava ao conceito de loucura da época, que consistia em uma modalidade de exclusão, inserida em uma sociedade praticamente polari- zada entre senhores e escravos, onde havia uma margem grande de “inadapta- dos” aos quais se buscavam repreender e disciplinar (CARNEIRO, 1993). Em meio às grandes reformas urbanas que ocorriam em São Paulo neste período, a psiquiatria e a medicina foram utilizadas a serviço das políticas de sanitarismo, higienismo, segurança e controle social. Buscava-se uma espécie de normalização da sociedade baseada na ideia de uma cidade limpa (em vários aspectos), composta por indivíduos “sãos” (MACHADO, 1978). Com o avanço do capitalismo e o desenvolvimento industrial, a cidade paulista tornou-se uma opção para muitos, principalmente imigrantes. Conse- quentemente, seu crescimento foi inevitável, o que gerou uma concentração de pessoas miscigenadas socialmente, economicamente e moralmente. Essas mudanças não agradaram a elite e o governo, que logo buscaram alternativas

TCCs 2019_2 --- 379 como forma de “higienização”, sendo o Juquery, uma delas:

(...) a população da capital paulista aumentava vertiginosamente com o desen- volvimento da indústria e a chegada dos imigrantes. E assim a paisagem urbana passava a integrar também desempregados, mendigos, prostitutas, sifilíticos, alcoólatras, ex-escravos, pessoas com deficiência física e doentes mentais. Preocupada em evitar a degradação moral e a disseminação do que considerava “doenças sociais”, burguesia e ciência idealizaram um local distante da capital para receber essa massa de excluídos tida como improdutiva (SONIM, 2015).

Nos últimos vinte anos do século XIX, o discurso médico, mais espe- cificamente o psiquiátrico, passou a adquirir cada vez mais prestígio sobre os assuntos relacionados às doenças mentais. Ainda assim, várias disputas foram travadas para que se definisse a quem competia julgar as responsabilidades legais ou incapacidades civis em casos de suspeitas de alienação mental. Defen- dia-se com mais intensidade a retirada dos alienados das prisões (e também das Santas Casas) e seu envio para instituições destinadas especialmente ao seu tratamento (ENGEL, 2001), como o Juquery. Já no século XX, a entidade passou a sofrer com a superlotação, tendo seu ápice na época da ditadura cívico-militar (1964-1985), intensificando a re- lação histórica entre as instituições de saúde mental e as graves violações dos direitos humanos. Em apenas dez anos, entre 1957 e 1968, o número de inter- nos duplicou, de 7.099 para 14.438 (SÁ, 1983). A maior parte dos pacientes não possuía sequer diagnóstico de doença mental, tendo em seu cerne: imigrantes, usuários de drogas, pessoas sem trabalho fixo (“vagabundos”), deficientes fí- sicos, homossexuais, além de mulheres que desafiavam normas de conduta e sexualidade, como prostitutas, “histéricas” e mães solteiras. Neste mesmo período, o local também passou a ser destino de mili- tantes políticos contrários ao regime. Os casos foram descobertos pela Assem- bleia Legislativa do Estado de São Paulo, no início da década de 1990, através de uma Comissão de Representação, instaurada para apurar a relação entre o regime militar e o Juquery, O Asilo Colônia da Sucursal do Juquery do Hospício de Alienados de São Paulo consolidou-se como forte instrumento político e ideológico, tendo um papel social fundamental à época, que se sobrepôs ao próprio âmbito psi- quiátrico.

Sociedade disciplinar e o modelo manicomial O conceito de Sociedade Disciplinar, elaborado e enunciado pelo filó- sofo francês Michael Foucault (1926-1984), começou a se estruturar no século

TCCs 2019_2 --- 380 XVIII e estendeu-se até o século XIX, tendo seu apogeu no início do século XX, a partir de uma reforma gradual nas políticas de punição. Cada vez mais a cultura espetaculosa dos castigos era velada, dando margem às políticas de cor- reção e disciplina, voltadas aos criminosos e, posteriormente, aos “alienados” (FOUCAULT, 2005). Em consonância, a ideia de poder também foi repensada. Dentro do contexto da Sociedade Disciplinar, os “saberes” eram grandes aliados dos “po- deres”, ou seja, o conhecimento funcionava como uma espécie de instrumento de natureza estratégica, atuando como um dispositivo do poder que viabilizava e legitimava a aplicação de medidas soberanas (FOUCAULT, 2005 p. 27). Partindo desta premissa, é possível estabelecer uma reflexão acerca do discurso do médico e da loucura, uma vez que, dentro do espectro do período da Sociedade Disciplinar, os médicos, julgados como profundos conhecedores da razão, viam-se capazes de fazer com que os alienados se redimissem dos comportamentos inerentes à loucura, sendo, portanto, destinados à internação. Nesta perspectiva, a relação intrínseca entre o poder e a loucura se materializa. O poder passou a ser pensado a partir do conceito de exclusão e reclusão, e a prática médica contribuiu para outra forma de suplício, permitindo adestrar os corpos de todos aqueles julgados “loucos” (mendigos, prostitutas, desempregados, imigrantes):

[...] ao poder do médico em tomar decisões fundamentais sobre a vida do outro. É através do corpo que o poder em estado de força age sobre as mentes. [...] corpo submetido a um sistema de coerção moral onde sujeitado revela um sentido ontológico nulo e vazio [...] (PEREIRA, 2003 p. 82-83).

Dessa forma, o modelo manicomial surge como um alicerce à sobe- rania e à disciplina, permitindo a exclusão de todos aqueles que não seguiam tendências normativas, através de práticas punitivas e de adestramento, como o abuso medicamentoso, os castigos físicos e o uso da eletroconvulsoterapia, camuflada como uma alternativa terapêutica, presente no Juquery e nos demais hospícios da época. A punição e a vigilância funcionam, neste sistema, como mecanismos do poder, utilizados para docilizar as pessoas, para que essas se adequem às normas estabelecidas nas instituições (FOUCAULT, 2005).

A Luta Antimanicomial No Brasil, em 1978, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Men- tal, relacionado ao movimento de Reforma Sanitária, resultou na derrocada da chamada “indústria da loucura”, caracterizada pelo surgimento em massa de instituições psiquiátricas e pela precariedade assídua dos serviços. Os diver-

TCCs 2019_2 --- 381 sos representantes desse modelo, como técnicos de saúde, militantes sociais e acadêmicos, apresentaram inúmeras reivindicações acerca do modelo asilar, denunciando a ineficácia do sistema e também a debilidade do mesmo. Posteriormente, no final da década de 1980, as requisições resultaram no fechamento de algumas entidades psiquiátricas, e também no surgimento dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dando origem ao Mo- vimento da Luta Antimanicomial, uma ação coletiva em prol de “uma sociedade sem manicômios” (BATISTA, 2014). Anos depois, esses movimentos foram consolidados através de mudan- ças nas áreas legislativa, jurídica e administrativa. A III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, em Brasília, firma a obrigatoriedade do Estado na proteção e assistência de pessoas portadoras de doença mental, por meio da inserção das políticas da reforma psiquiátrica ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a regulamentação da Lei Paulo Delgado, que garante direitos a esse nicho e redireciona o modelo de tratamento da loucura.

O Jornalismo Investigativo O Jornalismo Investigativo foi escolhido como a modalidade a ser tra- balhada por permitir a reconstrução de acontecimentos, a exposição de injus- tiças e, principalmente, a demonstração dos meandros da corrupção no setor público (SEQUEIRA, 2005). Tais características somam-se como fundamentais para a apuração dos relatos de Divina e, consequentemente, do Juquery, por tratar-se uma instituição pública com uma história ainda “velada”. Através desta vertente, fomentada pelo caráter de denúncia e pelo compromisso social, é possível expor a dura realidade daqueles que viviam entre os muros do manicômio de Franco da Rocha, como os métodos puniti- vos, o uso indiscriminado de medicamentos e a animalização dos “loucos”. O jornalismo investigativo costuma apelar para os padrões morais existentes, que possuem valores reconhecidos pela sociedade como um todo, e cuja transgres- são é chocante (BURGH, 2008), como é o caso do Juquery. Em “O Holocausto Brasileiro”, a jornalista Daniela Arbex faz um tra- balho semelhante, porém mais aprofundado, sobre o manicômio de Barbacena, em Minas Gerais. Em seu livro-reportagem, histórias dos personagens são re- tratadas de modo a convergirem com o caráter de denúncia da obra, materia- lizando os inúmeros abusos presentes em Barbacena. Esta linha jornalística possui características específicas vinculadas à re- velação de fatos, a um maior compromisso com o interesse público e com a fiscalização dos poderes (MARTINO, SILVA, 2013). A instituição psiquiátrica tra- tada no trabalho em questão, representa um órgão que, há muito tempo, clama por uma vigilância eficaz, considerando o fato de que a mesma serviu como

TCCs 2019_2 --- 382 alicerce para o âmbito governamental, principalmente na época da ditadura cívico-militar, ocasionando internações em massa, sem diagnósticos plausíveis e com um tratamento invasivo e infundamentado. É necessário ressaltar que, pelo fato desta modalidade atuar com questões delicadas e ao mesmo tempo impactantes, os cuidados do enunciador com a forma de exposição do texto devem ser redobrados, de modo a não infringir os limites éticos da profissão. O embasamento argumentativo é fundamental, como em toda prática jornalística, mas, neste caso, é ainda mais criteriosamente avaliado pelo enunciatário. O jornalismo, dentro de todas suas vertentes e particularidades, é in- timamente dependente da confiabilidade de seu público, detendo, privilegiada- mente, o capital simbólico em sua natureza de fazer crer, ou seja, o capital do jornalismo é a “credibilidade”, que está constantemente em disputa entre os jornais e entre os jornais e os demais campos sociais (ZAMIN, MAROCCO, 2010). Sem estes fatores, a repercussão e o discurso presente no trabalho do enunciatário corre um risco latente de permear a banalização e, portanto, pre- judicar o desenvolvimento e apuração das denúncias.

A forma de retratação A escolha da elaboração de um livro-reportagem se dá, primordial- mente, pela oportunidade do profissional de desenvolver a temática com pro- fundidade, utilizando todo seu potencial como construtor de narrativas da rea- lidade (LIMA, 2009, p.34). Essas características consolidam-se como essenciais para um relato fiel da história de Divina e do Juquery. A modalidade permite, também, evidenciar os valores jornalísticos como elementos essenciais para a construção da memória e do conhecimento social, utilizando os saberes do reconhecimento, do procedimento e de narra- ção, que são invocados ou retransformados pelos autores (TRAQUINA, 2001). Como não necessita girar em torno do factual, o livro-reportagem também goza, segundo Lima (2009, p.85), de uma “liberdade do eixo de abor- dagem”, que possibilita a fomentação da imaginação do leitor através de uma linguagem mais “descontraída” e de uma estruturação narrativa mais contex- tualizada. Sendo assim, este meio de retratação torna-se ideal para a apresen- tação das memórias de Divina e dos demais personagens.

DESENVOLVIMENTO DA PEÇA

O processo de realização Conforme exposto anteriormente, o livro-reportagem foi escolhido como modalidade de execução da peça por permitir um maior aprofundamen-

TCCs 2019_2 --- 383 to nas memórias dos personagens e, portanto, uma maior autonomia ao autor referente à escolha do eixo de abordagem, o que possibilita, também, o uso de recursos variados, como a utilização de imagens que dialoguem com o texto. Para isso, quatro encontros foram realizados com Divina em sua resi- dência, no município paulista de Franco da Rocha, o qual foi possível ter acesso através de transporte público, como trem e metrô. Durante as visitas, questões acerca de sua infância e de suas memórias no Juquery foram levantadas e discu- tidas minuciosamente, de modo a permitir a recriação de cenários e a contex- tualização de suas vivências. Fotos também foram tiradas, tanto de Divina como de seus familiares, como alternativa para a ilustração do texto. Em uma das visitas à Divina, foi feita a tentativa de entrada no Juquery. Entretanto, as autoridades do local não permitiram o total acesso aos estabe- lecimentos, e inviabilizaram, também, o registro fotográfico. Com isso, fez-se necessária a utilização de fotos de terceiros, no caso, Osmar Bustos, fotógrafo oficial do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que esteve no hospital psiquiátrico em 2016 e autorizou a publicação das ima- gens. Uma série de livros, artigos e reportagens foram utilizadas para em- basamento da narrativa, tal como dados referentes ao número de pacientes presentes na instituição e informações sobre todo projeto arquitetônico da en- tidade. Essa conjuntura permite a melhor visualização do Juquery, não só como instituição psíquica, mas também como um marco consolidado na história da psiquiatria brasileira. Uma vasta pesquisa bibliográfica foi feita, relacionada ao surgimento do conceito de “loucura” e também ao desenvolvimento da psiquiatria como especialidade médica. Concepções de filósofos, como Michel Foucault, estão dispostas ao longo da obra, permitindo uma reflexão acerca da temática, como mencionado anteriormente. Foi realizada uma pesquisa de campo nos arredores do Juquery, com a observação detalhada da arquitetura da instituição, e também com con- versas com moradores do município, muitos, familiarizados com o hospital. Posteriormente, foi efetuada uma visita ao Centro de Atenção à Saúde Mental (CAISM), da Vila Mariana, em São Paulo, para melhor entendimento de como funciona uma entidade psiquiátrica atualmente, e também para a execução de entrevista com Jair Mari, professor titular do local, que discorreu sobre a nota técnica 11/2019. Todo trabalho que diz respeito à apuração jornalística, contato com fontes, pesquisa, decupagem e escrita do livro-reportagem, foi realizado exclu- sivamente pela autora da obra. Apenas a diagramação do produto contou com o respaldo de uma profissional.

TCCs 2019_2 --- 384 O livro-reportagem em questão trabalha diretamente com a modali- dade do jornalismo investigativo e possui um forte caráter de denúncia, já que muitos relatos e informações expostas comprovam os maus-tratos e abusos presentes no Juquery. Sendo assim, fez-se extremamente necessária a exposição de diversos depoimentos, de modo a corroborar as lembranças da personagem central e também acrescentar informações, mantendo a imprescindível imparcialidade característica do Jornalismo. A linguagem utilizada na obra não pode ser definida, em suma, como coloquial. Entretanto, a narrativa foi orquestrada de modo a fazer-se facilmente compreendida pelo enunciatário, contendo, também, algumas notas de rodapé, relacionadas principalmente à explicação de termos científicos e à bibliografia de informações citadas. As imagens dispostas nos capítulos, grande parte referentes à arqui- tetura do Juquery, serão expostas em preto e branco, para promover a ideia de atemporalidade. A foto escolhida para a capa da obra, também seguirá esse padrão.

Fontes Além de Divina, rica personagem principal responsável pela viabilização dessa obra, outras fontes foram utilizadas para o enriquecimento do texto. En- tre elas, está a antiga enfermeira do Juquery, Ana Maria Campanhola, que firmou amizade com muitas das alienadas, inclusive Divina, eximindo seu caráter de algoz. O homem que deu origem ao livro “O Capa-Branca”, Walter Farias, também foi entrevistado, juntamente com o autor da obra, o jornalista Daniel Navarro Sonim. O depoimento de Walter foi de extrema importância, já que possui tanto a visão de funcionário, quanto a de paciente. Atualmente, ambos viajam Brasil à fora, disseminando a realidade intramuros do manicômio de Franco da Rocha, e atuando como ativistas na Luta Antimanicomial. A declaração de uma antiga moradora de Franco da Rocha, Elnira Pe- reira, também foi exposta no decorrer dos capítulos, como forma de demons- trar a visão dos moradores da região em relação ao hospital psiquiátrico e seus pacientes. Por fim, alguns especialistas do meio psiquiátrico foram entrevistados, promovendo um debate acerca do panorama atual da psiquiatria e discorrendo sobre a nota técnica 11/2019, publicada pelo Ministério da Saúde. Dentre eles, está Jair Mari, como citado anteriormente; Maria Alice Scardoelli, diretora do Departamento de Psiquiatria do Juquery; Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), e Antonio Rabelo, coor-

TCCs 2019_2 --- 385 denador e criador do CAPS II da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Resultado final Todo esse processo de apuração e escrita resultou no livro-reporta- gem intitulado “Intramuros: a história desvelada do Juquery, um dos maiores hospitais psiquiátricos do Brasil”. No total, a obra apresenta cerca de 76.000 caracteres em texto corrido e uma média de quinze fotos, dispostas ao longo dos sete capítulos. As técnicas e metodologias utilizadas permitiram a promoção de um vasto conhecimento, alusivo não só à realidade velada do Juquery, mas também ao surgimento e a caracterização do conceito de “loucura”. Além disso, o con- tato com as fontes foi extremamente enriquecedor, e serviu como instrumento para a quebra de estigmas e para a promoção de uma visão clara e concisa referente à marginalização e às relações de poder. Em todo desenvolvimento da obra, o enfoque consistiu não só em expor a realidade das políticas e ideologias arraigados ao Juquery, mas também em representar, com o máximo de fidelidade possível, personagens reais, de importância imensurável para o entendimento dos efeitos provocados pelos abusos, preconceitos e submissão, característicos de instituições manicomiais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção deste Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) resultou em um amplo leque de aprendizados e de crescimento pessoal. As entrevistas feitas e o contato com os personagens permitiram um amadurecimento e um maior entendimento sobre a realidade de cada um deles. Através dos depoimentos e informações coletadas, foi possível esta- belecer um cenário fidedigno sobre a realidade intramuros do Juquery que, indubitavelmente, não é inerente a ele. As atrocidades presentes na instituição refletem as relações de poder dispostas em todo meio social, e exemplificam o caráter de uma sociedade abarcada pelo preconceito e pela precariedade. Tendo em vista o atual panorama psiquiátrico brasileiro, foi possível, também, compreender a fragilidade das conquistas do Movimento Antimanico- mial e como todo passado relacionado ao modelo asilar ainda gera um grande receio àqueles que tiveram, ainda que minimamente, contato com ele. Em suma, a experiência de desenvolvimento desse produto materia- lizou-se como uma exemplificação do que é jornalismo — escrever histórias reais, sobre pessoas distintas e muitas vezes de difícil acesso; colher o máximo possível de informações, mantendo seu ímpeto jornalístico e seu compromisso

TCCs 2019_2 --- 386 com a verdade; expor o caráter de denúncia também presente no cerne da profissão, de forma concisa e pertinente; e tratar de temas relevantes e muitas vezes banalizados ou mal compreendidos, para que não sejam esquecidos. Apesar dos empecilhos e dificuldades, o resultado final desse livro-re- portagem foi satisfatório e condizente com o esperado. Divina, Walter, Ana Ma- ria e tantos outros personagens, foram responsáveis pelo entendimento maior do que é jornalismo, e de qual é seu papel na sociedade. Intramuros retrata a história de Divina dos Santos Rodrigues, antiga paciente do Asilo Colônia da Sucursal do Juquery do Hospício de Alienados de São Paulo, uma das maiores instituições manicomiais do Brasil, consolidada como um marco da psiquiatria no país e conhecida popularmente pela su- perlotação e pelos maus-tratos. Através das memórias de Divina e de outros personagens presentes na obra, como funcionários e pacientes, a trajetória da loucura, tal como o surgimento desse conceito, é narrada, dialogando com o cenário atual da psiquiatria e da sociedade brasileira, e promovendo uma refle- xão acerca do modelo asilar e de exclusão.

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TCCs 2019_2 --- 388 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 389 GUERREIRAS DE FÉ: AS MÃES DOS PRESÍDIOS DE SÃO PAULO

BEATRIZ DE AQUINO CUSTÓDIO Orientadora: Denise Cristine Paiero

TCCs 2019_2 --- 390

RESUMO Esta pesquisa dá base ao livro-reportagem Guerreiras de Fé: as mães dos presídios de São Paulo, cujo principal objetivo é retratar a vida de mães de detentos por meio do jornalismo literário humanizado. As características deste tipo de for- mato foram utilizadas para narrar os sentimentos e histórias dessas mulheres, tanto dentro das unidades prisionais quanto no dia a dia. No livro, há quatro personagens principais: Tatiana, mãe de Rafael e Tiago; Marcia, mãe de Rodrigo; Suely, mãe de Lucas; e Fernanda, mãe de Bárbara e Wesley. Todos os filhos ci- tados tiveram passagem pelo sistema penitenciário. Ao longo dos 10 capítulos que compõe o produto, as emoções das genitoras são destrinchadas em meio a suas vivências, expectativas e dificuldades. Para fundamentar a pesquisa, foram realizadas consultas em artigos, que ajudaram na compreensão sobre o sistema penitenciário e sobre a estrutura da sociedade na qual estamos inseridos. Des- sa forma, foi possível entender que a culpa carregada pelas mães de detentos tem também um caráter cultural, uma vez que a responsabilidade pelo sucesso dos filhos é colocada em suas costas. Isso explica o porquê de tanto precon- ceito e estigma, cuja existência é reforçada pelas mulheres entrevistadas que vivem tal realidade. Sites oficiais, como o da Secretaria de Administração Peni- tenciária, e Lei de Acesso à Informação também foram utilizados para obtenção de dados. Além das entrevistas, foram realizadas algumas fotos, que ajudam na compreensão e identificação dos personagens que as permitiram. Palavras-chave: Jornalismo; livro-reportagem; humanização; mães.

TCCs 2019_2 --- 391 ABSTRACT This research bases the book report Guerreiras de Fé: as mães dos presídios de São Paulo, whose main objective is to portray the lives of prisoners’ mothers through humanized Literary Journalism. The characteristics of this type of book were used to narrate the feelings and stories of these women, both inside the prison units and in their daily lives. In the book there are four main characters: Tatiana, mother of Rafael and Tiago; Marcia, Rodrigo’s mother; Suely, Lucas’s mother; and Fernanda, mother of Barbara and Wesley. All of the mentioned sons had been in the jail. Throughout the 10 chapters of the book, the mothers’ emotions are unraveled so as their experiences, expectations and difficulties. To base the research, articles were consulted, which helped to understand the penitentiary system and the structure of society in which we live. Thus, it was possible to understand that the guilt carried by these mothers has also a cultural explanation, since the responsibility for the success of their children is placed on their backs. This explains why there is so much prejudice and stigma, whose existence is reinforced by the interviewed women who live such reali- ty. Official sites, such as the Secretaria de Administração Penitenciária, and Lei de Acesso à Informação were also used to obtain data. In addition to the interviews, some pictures were taken, which help to understand and identify the charac- ters who allowed them. Keywords: Journalism; book report; humanization; mothers.

TCCs 2019_2 --- 392 INTRODUÇÃO Este projeto de pesquisa embasa o livro-reportagem sobre mães de pre- sidiários em São Paulo. A escolha da peça deve-se à vontade de escrever com fôlego sobre um tema atemporal e dar voz às mulheres que, além de encarar difíceis realidades, são vítimas de julgamentos por parte da sociedade.

Apesar de todo o caráter vexatório da experiência das visitas para os visi- tantes, importa-se perceber que, para a unidade familiar, ela é de profunda importância, no sentido da preservação da afetividade e dos vínculos familiares. É por meio das visitas que o cenário caseiro pode ser levado para o espaço carcerário (CABRAL; MEDEIROS, 2015, p. 61).

Apesar dos familiares de detentos muitas vezes serem “taxados como pessoas de má conduta e caráter, as quais colocam em risco a paz de outras famílias ao seu redor” (CABRAL; MEDEIROS, 2015, p. 63), a manutenção do contato entre presos e entes queridos é fundamental, inclusive para que haja incentivo a um futuro longe da criminalidade (TAVARES, MENANDRO, 2008). Porém, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, a grande maioria das visitantes é do sexo feminino, 534.110 mulheres cadastradas con- tra apenas 139.805 homens. Entre elas, encontram-se as mães, que dificilmente abandonam seus filhos no cárcere, pois, como observa Samara Feitosa,

Para muitas [...] a maternidade é uma missão para a vida toda. Muito embora seus filhos já estivessem criados, fossem adultos e, muitos deles agora tam- bém pais, isto não diminuía a responsabilidade que elas tinham sobre eles” (FEITOSA, 2017, p. 43).

O desejo de conhecer a fundo a temática do livro surgiu enquanto lia Estação Carandiru, de Drauzio Varella, e me deparei com a seguinte frase:

As famílias madrugam na porta, mulheres na imensa maioria. São namoradas, esposas, irmãs, tias e a inseparável mãe, difícil de abandonar o filho preso, por mais crápula que ele seja. Em dez anos na cadeia, assisti a tais demonstrações de amor materno que, confesso, encontrei sabedoria no dito: amor, só de mãe (VARELLA, 2017, p.51).

Isso me impactou profundamente e me peguei refletindo sobre como se- ria para essas mulheres, cujo amor incondicional é retratado em diversos mo- mentos da obra, conviver com a dor de terem seus filhos atrás das grades. Para cumprir com meu objetivo de narrar suas trajetórias e vivências, desvendar

TCCs 2019_2 --- 393 seus sonhos, medos, culpas, esperanças e dificuldades, optei pelo produto escri- to, pois, como observa Sergio Villas Boas em Perfis e Como Escrevê-los, histórias de vida narradas em texto têm o poder de causar impacto e identificação, uma das características que busquei com afinco garantir, dado o preconceito que as mães sofrem ao serem incompreendidas e julgadas.

Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias. Empatia é a preocupação com a experiência do outro, a tendência a tentar sentir o que sentiria se estivesse nas mesmas situações e circunstâncias ex- perimentadas pelo personagem (2003, p.14).

O nome do livro, Guerreiras de Fé: as mães dos presídios de São Paulo, foi escolhido de acordo com certos critérios: primeiro porque a fé é um elemento significativo para muitos dos personagens retratados, independentemente da religião professada. Além disso, a expressão “guerreiras de fé” exibe uma união entre o sagrado e o rap, estilo musical nascido para dar voz à periferia e que muitas vezes trata do cotidiano dos marginalizados. Não é à toa que o rapper Emicida foi escolhido para a epígrafe e a expressão acima aparece na música Vida Loka Parte II dos Racionais Mc’s. Pedaços das letras compostas pelo grupo deram nome a diversos capítulos do livro, justamente por seus versos de de- núncia e que abordam a temática do produto em várias músicas. A presença da figura da mãe também é forte na obra do grupo, já que a dona Ana, progenitora do vocalista Mano Brown, é citada em canções como Nego Drama, Jesus Chorou e Eu Sou 157. Quanto ao subtítulo, a palavra “presídio” foi escolhida estrategicamente, uma vez que, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, ela é usada “como sinônimo genérico de unidade prisional, podendo ser utilizado tanto para Centro de Detenção Provisória, Penitenciária, Centro de Progressão Peni- tenciária, Centro de Ressocialização, etc.” (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012). A pergunta-problema que esta peça responde é “de que maneira o jor- nalismo-literário humanizado pode retratar a vida de mães de presidiários por meio de um livro-reportagem?” e, para tornar isso possível, procuro abordar a vida das personagens de forma sensível e tratar dos mais variados aspectos de suas histórias, colocando elementos sobre seu passado, presente e expectati- vas para o futuro. Como o objetivo é dar voz às mães, não desejei entrevistar especialistas ou secretarias que cuidam do sistema carcerário. A Secretaria de Administração Penitenciária aparece apenas para enriquecer o texto com da- dos e estatísticas. Apesar de ter buscado estudos e reportagens sobre o tema na internet, a

TCCs 2019_2 --- 394 maior parte da pesquisa foi feita em campo, prática essencial ao jornalista literá- rio, conforme afirma Edvaldo Pereira Lima, emJornalismo Literário para Iniciantes.

Acontece que o jornalista literário é um escritor da vida real. Quer dizer, ele une o escritor – aquele que tem bom domínio da narrativa escrita – ao repórter. E como tal, precisa ir a campo, colocar o pé na estrada, mergulhar na realidade, conhecer as coisas por dentro (2010, p.31).

Ainda que alguns capítulos tratem especificamente de alguns personagens, busquei entrelaçar os perfis em toda a narrativa, como faz Josmar Jozino (2008) na obra Casadas com o Crime, uma grande inspiração para minha peça e que cumpre tal proposta com maestria. Juntas, as características de Guerreiras de Fé: as mães dos presídios de São Paulo levam ao que mais espero com esse projeto: humanizar os relatos de mulheres que sofrem com seus filhos no cárcere, pois “o ato de reconhecer o mundo e lhe imprimir o toque humano é, sem dúvida, tão científico quanto relacionador” (p. 60), como comenta Cremilda Medina (2003).

REFERENCIAL TEÓRICO 1.1 Mães de Presidiários em São Paulo

Atualmente, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, existem 173 unidades prisionais em São Paulo, nas quais encontram-se 11.604mulhe- res e 222.695 homens privados de liberdade. Embora seus familiares sofram “as consequências da sanção penal aplicada ao membro da família condenado” (CABRAL, MEDEIROS, 2015, p. 51), as mães são as maiores vítimas, pois segun- do Feitosa:

Estas mulheres traziam arraigadas as marcas de um ideal de família onde desempenho satisfatório de seus papéis trazia as possibilidades do sucesso ou do insucesso para esta instituição; por isso mesmo sustentavam a deter- minação em não abandonar dentro do sistema penitenciário os membros da família que mais sofreram as consequências de seu fracasso. O preço a pagar pelo seu insucesso era o compartilhamento da pena. Enquanto seus filhos a cumpriam dentro dos muros da prisão, elas a cumpriam do lado de fora; fiéis, incansáveis, e a espera para, enfim, poderem em algum momento, ter a oportunidade de redimirem seus erros na reconstrução de uma família mais próxima ao ideário por elas desejado. (FEITOSA, 2017, p. 58)

TCCs 2019_2 --- 395 O suposto fracasso das mulheres quanto à educação dos filhos faz com que o substantivo “mãe” ganhe um companheiro e se torne então “mãe de preso” (SPAGNA, 2010). Tal estigma a acompanha durante e depois à passagem do filho pelo sistema penitenciário e coloca em xeque até mesmo sua honesti- dade, já que agora ela é identificada não apenas como alguém que deu à luz, mas como quem detém uma característica relevante para a sociedade (MESTRE, 2016). O mesmo, porém, não ocorre com o sexo oposto.

A culpa, nesse caso, está sendo relacionada à mulher, até mesmo porque o homem, nesse contexto, é ausente. Quando uma mãe fala “nunca se fala pai de bandido”, ela expressa não apenas a ausência deste no acompanhamento do filho, como o fato de a sociedade eximir socialmente o homem dessa culpa de ter um filho envolvido com a criminalidade. De certa forma, percebemos que ao mesmo tempo em que o pai é o protagonista que é reconhecido diante de uma conquista do filho, a mãe é reconhecida como a culpada pelos fracassos do filho, pelo envolvimento com a “criminalidade” (MESTRE, 2016, 123)

Dentro de uma sociedade patriarcal, na qual a mulher é vista como – e obrigada a ser – imagem e semelhança de Maria, mãe de Jesus Cristo (BADIN- TER, 1985), a culpa e a passividade são dois fatores que regem seus atos. Por se sentirem responsáveis pelos crimes dos filhos, elas aceitam a se submeter a processos constrangedores para adentrar o presídio (MESTRE, 2016), chama- dos de revista vexatória. Proibida em São Paulo pelo ex-governador Geraldo Alckmin na lei nº 15.552, de 12 de agosto de 2014, a prática é considerada abusiva por obrigar a mulher a retirar suas roupas, dar pulos e se agachar com um espelho colocado entre as pernas, permitindo a visualização completa dos orifícios por parte dos agentes, responsáveis por impedir a entrada de drogas, celulares e outros objetos proibidos nos presídios (BEZERRA, 2017). De acordo com a Secre- taria de Administração Penitenciária, das 173 unidades prisionais no estado, 143 contam com scanner corporal, ferramenta que dispensa a necessidade da revista vexatória, mas ainda não há previsão para que todos os ambientes sejam reformulados (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2012). Ainda que assegurada como um direito do preso pela Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal no artigo 41, inciso X, a visita pode ser utilizada pelo Estado como um instrumento punitivo, já que intimida os familiares (BEZERRA, 2017), e disciplinar, “mostrando que o Estado, mais uma vez, suprime e detém o poder sobre os seus corpos” (Idem, 2017, p. 120).

TCCs 2019_2 --- 396 1.2 Livro-reportagem Edvaldo Pereira Lima (2009), define que o surgimento do livro-reporta- gem tem muito a ver com a necessidade do jornalista em contar com profundi- dade aquilo que ele não tem espaço para dizer na imprensa cotidiana.

É visando uma narrativa ampliada que o jornalista se propõe a produzir um livro-reportagem. É na expectativa de encontrar a explicação que o jornal não deu ou de ser informado das ações de bastidores, subjacentes à ocorrência relatada na revista, que o leitor pode motivar-se a um aprofundamento na grande-reportagem que o livro propõe (LIMA, 2009, p. 39)

Esse aprofundamento apontado pelo jornalista deve encontrar um equi- líbrio entre o extensivo - que bombardeia o leitor de dados, estatísticas e nú- meros – e o intensivo, que aumenta qualitativamente a taxa de conhecimento por meio de análises multiangulares de consequências, efeitos, etc. (Idem, 2009, p. 40). Entretanto, não é apenas essa a característica que diferencia o livro-repor- tagem das demais publicações. Segundo André Santoro (2014, p. 36), a tempora- lidade do conteúdo da publicação “pode retroceder várias décadas, séculos até, em direção ao passado, para apresentar situações e personagens que há muito não frequentam o noticiário tradicional”.

Quanto ao processo de elaboração, o livro-reportagem é construído com ferramentas do jornalismo, e não só no que diz respeito à linguagem (organi- zada de forma a facilitar a compreensão do texto, como é praxe no discurso jornalístico), mas também com base em elementos de diagramação caracterís- ticos da imprensa, como títulos, subtítulos, intertítulos, indicações de autoria e ilustrações ou fotografias com créditos e legendas (Idem, 2014, p. 35)

Para Josmar Jozino, em entrevista concedida à Ponte Jornalismo em 16/07/2018, o livro-reportagem é uma saída para o jornalista, uma vez que “é uma reportagem bem mais completa, bem mais ampla, sem interferência de edi- tor ou linha editorial”, ainda que, como tenha ilustrado Santoro (2014), utilize as ferramentas jornalísticas.

1.3 Perfis

De acordo com Sergio Vilas Boas (2003), é possível caracterizar os perfis em uma expressão: Histórias de vida. “Essa modalidade dá atenção total ou parcial às narrativas sobre as vidas de indivíduos ou de grupos sociais, visando

TCCs 2019_2 --- 397 humanizar um tema, um fato ou uma situação contemporânea” (VILAS BOAS, 2003, p. 16-17). Dessa forma, é necessário entender a escrita como um meio de retratar a pessoa em questões que não interessem apenas ao leitor, mas ao próprio en- trevistado. Isso deve-se ao fato de que é complicado transmitir compreensões sobre pessoas, uma vez que há uma série de fatores que podem perturbar a pesquisa do perfil, como por exemplo, pouco tempo de entrevista ou até mes- mo preconceitos com relação ao personagem (VILAS BOAS, 2003). Para construir a narrativa, entretanto, Vilas Boas garante que “olhar pa- cientemente não basta. Os observadores mais atilados fazem uso de todo o tipo de informação sensorial – olfato, tato, audição etc” (2003, p. 29). Esse material, segundo ele, não será completamente utilizado, pois “di- ferentemente das biografias em livro, em que os autores têm de enfrentar os pormenores da história do biografado, os perfis podem focalizar apenas alguns momentos da vida da pessoa” (VILAS BOAS, 2003, p. 13).

1.4 Jornalismo Literário Felipe Pena (2006, p. 105) afirma que as características básicas do jornalis- mo literário, nascido na primeira metade do século XX, incluem: “imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização”, mas André San- toro (2014) vai além. Ele define que, enquanto a objetividade é priorizada nas notícias, o estilo ganha uma camada de texto sem teor informativo (SANTORO, p. 27). Isso se daria porque “o Jornalismo Literário foge das fórmulas rígidas de estruturação. Suas referências narrativas (procedimentos e técnicas) vêm da literatura”, como pontua Sergio Vilas Boas (2003, p. 10). A consolidação do jornalismo literário na imprensa norte-americana teve como marco importante a grande reportagem Hiroshima, de John Hersey, de 1946 (SANTORO, 2014). Divulgada pela The New Yorker, o sucesso da obra ultrapassou os limites do tempo e se concretizou em forma de livro. Inclusive, isso não poderia ser diferente, já que, de acordo com Pena (2006, p. 15), a pe- renidade é característica marcante no estilo. “Uma obra baseada nos preceitos do jornalismo literário não pode ser efêmera ou superficial. [....] Um bom livro permanece por gerações”. Uma das características do jornalismo literário é o formato de texto mais livre, sem as amarras que prendem o jornalista durante a redação de um fato noticioso. Como explica Felipe Pena (2006, p. 15), esse tipo de linguagem “evita os definidores primários, os famosos entrevistados de plantão […] É preciso criar alternativas, ouvir o cidadão comum, a fonte anônima, as lacunas [...]”.

TCCs 2019_2 --- 398 Isso é possível observar em todo o processo de formulação de um texto de Jornalismo Literário, já que as pautas nem sempre seguem os critérios de noticiabilidade, a apuração é bem mais aprofundada - jamais podendo se mos- trar superficial - e a redação, como dito anteriormente, não se prende ao lide e à pirâmide invertida (SANTORO, 2014).

1.5 Humanização

Segundo o dicionário Aurélio, humanizar significa dar condição humana a, civilizar. Dessa forma, o jornalismo humanizado

(...) não se propõe apenas a produzir textos diferenciados, com linguagem que usufrui dos recursos da literatura, que valoriza personagens. Mais que isso, busca a essência das ações humanas – é um olhar, uma perspectiva, um ponto de partida diferenciado. (ALVES; SEBRIAN, 2008, p.2)

Quando o retrato do personagem é humanizado, “um bandido pode ser retratado como tal, mas também como um sujeito que tem pendores huma- nitários, como no livro Abusado” (SANTORO, 2014, p. 77). Para que isso seja possível, é necessário não apenas noticiar, mas observar, refletir e ponderar (ALVES; SEBRIAN, 2008, p. 2). Segundo Medina,

Os leitores rejeitam as cargas conceituais, os quadros puramente estatísticos, as teses ou as informações dogmatizadas. Manifestam claramente a preferência pela informação humanizada, vivida, exemplificada na cena cotidiana e prota- gonizada pelos heróis da aventura contemporânea (MEDINA, 2003, p. 53).

O motivo desse processo ser traçado assim se deve à necessidade que a reportagem tem em contar uma boa história. E essa narrativa, quando provinda da vida de pessoas comuns, seduz o leitor, pois é o cotidiano que está sendo retratado (MEDINA, 2003, p. 53). Inclusive, de acordo com Felipe Pena (2006), a produção se inicia com a escolha do tema, que deve ser pensado de modo a contribuir para a solidariedade e para o conhecimento da população. Dessa forma, se torna necessário “romper com as rotinas industriais da produção da notícia. É preciso superar as superficialidades das situações sociais e o predomínio dos protagonistas oficiais” (MEDINA, 2003, p. 93) para que seja possível democratizar as vozes e mergulhar nas histórias anônimas. (MEDINA, 2003).

TCCs 2019_2 --- 399 DESENVOLVIMENTO DA PEÇA Pré-produção

Os primeiros passos da apuração deste livro-reportagem foram dados na internet, em busca de pastorais, ONGs e páginas de apoio a familiares ou feita pelos próprios. Apesar da maior parte dos personagens serem indicações de amigos e fontes passadas – com exceção da família de Fernanda, das mães en- trevistadas no CDP do Belém e do Seu Zé -, várias pessoas negaram fazer parte do projeto. Quanto aos perfis escolhidos, não tive como premissa entrevistar mães com base na diversidade dos crimes cometidos pelos filhos. Para guiar as entrevistas, preparei uma série de perguntas que fiz às quatro personagens principais – Tatiana, Marcia, Suely e Fernanda -, em especial sobre o que é ser mãe, como os problemas dos filhos começaram, o que sentiram em determinados momentos, qual a rotina em casa e nos dias de visita e detalhes sobre suas expectativas. Porém, com o intuito de adentrar a vida de cada uma e não engessar a conversa, permiti que fossem contando livremente suas his- tórias, pegando ganchos no que falavam e fazendo perguntas não programadas. Isso possibilitou que elas ganhassem mais confiança em mim e permitiu o olho no olho durante a conversa, sem a presença intimidadora da lista de perguntas. Com exceção de Tatiana, que preferiu não me encontrar na frente de seus filhos mais novos, as entrevistas com as protagonistas foram realizadas em suas casas. No caso de Fernanda, fui tanto na de seu namorado, no extremo leste, quanto na dela, na zona sul, próxima a um local que, segundo o motorista do Uber, era chamado de Buraco do Sapo devido à alta periculosidade. Cada conversa com as quatro mães ultrapassou três horas de duração. No caso de Marcia, saí de sua casa bem depois das 23h de uma sexta-feira, com uma bagagem de perrengues que começaram com muita gritaria após uma barata voadora pousar no rosto da mãe enquanto ela contava uma histó- ria pesada. Por colocar o celular em modo avião – com o intuito de nenhuma ligação ou mensagem interromper a gravação da entrevista - e demorar tanto tempo com ela, meus pais entraram em desespero, principalmente depois de meu namorado revelar ter ido até o endereço da entrevistada e se deparado com uma idosa surda-muda que o assustou quando tocou a campainha. O que ele não sabia – nem eu, previamente – é que para acionar o apartamento de Marcia era necessário tocar três vezes. Quando coloquei meu celular no modo normal, percebi o quão longe essa preocupação tinha ido: amigos, familiares e um namorado bem bravo me mandando mensagem e ligações preocupadas. Apesar de haver muito material para decupar, foi enriquecedor passar

TCCs 2019_2 --- 400 esse tempo com elas. Participei de almoços, jantares, celebrações, conheci vá- rios membros de suas famílias e pude observar um breve pedaço da dinâmica de seus dias. Com exceção de Geisa, que teve bastante receio em assinar a autorização de imagem por medo de que fosse usada contra ela e a rendesse uma nova passagem no sistema prisional, não tive problemas com isso. Somente com relação às fotos tive dificuldade. Para proteger a identidade das mães que participaram do livro e que não quiseram expor seus nomes verdadeiros, as autorizações de voz foram obtidas, mas mantidas sob sigilo. Por esse motivo, somente os documentos assinados por Fernanda, Bárbara e Suely aparecem neste relatório. Devido às preocupações de Geisa, seus dados também foram resguardados. Além das entrevistas, fui até o CDP do Belém na manhã do dia das mães com o objetivo de imergir na realidade de tantas mulheres. Meu intuito inicial era acompanhar Tatiana em uma de suas longas viagens, mas devido a seus pro- blemas familiares, a ideia tornou-se inviável. Para obter informações específicas e atuais, usei a Lei de Acesso à Informação como base de pesquisa e contei com câmera fotográfica e gravador de voz do celular para captar as informações necessárias.

2.2 Produção Decidi iniciar o livro-reportagem com uma história que me impactou du- rante a entrevista com Tatiana, uma das personagens mais expressivas na peça. Além disso, o relato inicial me ajudou a mostrar ao leitor a humanização das histórias, colhidas, como aconselha Cremilda Medina (2003), de pessoas que vivenciam as lutas do cotidiano na pele. Quanto à linguagem escolhida, utilizei as ferramentas do jornalismo li- terário que, como observa André Santoro (2014), permitem que o autor fuja do lide, da pirâmide invertida e obtenha maior liberdade para transmitir o que foi observado com aprofundamento. Dessa maneira, pude inserir detalhes das expressões dos personagens, de suas roupas, tons de voz, bem como correla- cionar momentos a metáforas. Em algumas partes, busquei narrar a cenas passadas como se elas estives- sem acontecendo em tempo real, bem como faz Patrícia Zaidan na grande-re- portagem Altamira: a cidade mais cruel e violenta com as mulheres, publicada em 28 de agosto de 2017 no portal da revista Cláudia. Embora não seja um livro, uso de inspiração aqui o modelo de jornalismo literário aproveitado pela jor- nalista para relatar momentos importantes. Embora poética, a linguagem é simples, uma vez que o livro se destina a várias classes sociais, em especial às mães que dele participaram e às mulheres que vivem realidades semelhantes. Para ser fiel às as personagens e garantir que

TCCs 2019_2 --- 401 suas vozes fossem ouvidas por meio de suas palavras, optei por colocar bastan- tes travessões. Também mantive alguns erros gramaticais e de concordância em seus depoimentos, característica que gera maior identificação com a linguagem falada. Além disso, para garantir o entendimento de quem se interessa pelo tema, mas não possui conhecimento prévio, montei um glossário no final com termos e gírias utilizados por quem vivencia a realidade do sistema prisional. Enquanto a escrita carrega uma carga literária significativa, as fotos são objetivas, buscando mostrar a realidade sem muita delonga.

2.3 Pós-produção Embora a capa do livro tenha sido realizada por Rafaella Vendrame, a idea- lização do desenho partiu de mim e, graças às opiniões e talento dela, chega- mos a um resultado que une traços pretos a algumas cores, que representam a esperança em um local tão cinzento. Inclusive, essa esperança é abundante na mãe, fonte de amor e força. Já a diagramação foi feita por Raquel Leal que, da mesma maneira, acres- centou suas visões ao projeto previamente pensado. O preto e branco, pre- sente nas páginas que iniciam cada capítulo, complementam a ideia que o livro busca passar graças a seus significados. Enquanto a cor escura representa a tris- teza, solidão, religião e perda, o branco remete à pureza, inocência, sabedoria, espiritualidade e paz (ALBUQUERQUE, 2014). O recuo no início dá um tom poético à diagramação, diferenciando-se do convencional. As citações também foram escolhidas como forma de destacar frases im- pactantes das mães e dispostas conforme a temática do capítulo, independente- mente de aparecerem no corpo do livro ou não. Já as fotos foram organizadas de modo que possuíssem uma narrativa, agrupando as imagens de personagem por personagem e, com o intuito de valorizar seu conteúdo simples, a maioria foi disposta em página dupla.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Escrever um livro-reportagem sobre mães de presidiários foi uma grande experiência para mim. Foi observar de perto a resiliência, a fé, a força e espe- rança de mulheres tão julgadas pela sociedade, mas mais que isso: fez com que eu me despisse de preconceitos, conhecesse realidades tão difíceis e aprendes- se a tocar uma alma humana com grandes professoras da vida que superam dificuldades todos os dias. Durante o projeto, pude enxergar – na teoria com os artigos lidos e na prática com as personagens – o peso que as mulheres carregam desde cedo.

TCCs 2019_2 --- 402 A ideia de que a maternidade é inexorável ao feminino e que os resultados da vida de um outro ser dependem exclusivamente da mãe que o criou me fez refletir muito sobre o grande fardo, culpa e ideias de perfeição colocados sobre elas. Ao mesmo tempo, observar seus olhos, expressões e sentimentos quando falam dos filhos que gestaram me faz entender que, apesar da construção social e cultural na qual estamos inseridos, o amor de mãe é quase que transcendente, impossível de ser explicado. Por meio desta peça, procurei explorar a força que habita nessas mulhe- res, utilizada para voltar à superfície depois de se afogarem em um mar de caos. Antes de mais nada, é um livro para mães de presidiários, portanto fugi de qual- quer sensacionalismo ou vitimização dos personagens. Como disse Suely, no final da entrevista, “é bom poder conhecer a história de mães que passam por coisa parecida”. Todas, inclusive, apresentaram em maior ou menor grau grati- dão pela escolha do tema e alívio em poder contar suas histórias, pois apesar de muito julgadas, são mulheres, segundo as próprias, invisíveis na sociedade. Elas e seus filhos. Ninguém quer contato com quem vive na margem. Portanto, o livro-reportagem chega a ser uma oportunidade de represen- tação, respondendo à pergunta-problema ao dar voz às mães e permitir que contassem vivências, dores, alegrias, projetos e transmitissem suas personali- dades, seja por meio de lágrimas e angústias ou pelas risadas e serenidade que carregam. Em uma época tão polarizada social e politicamente, abordar um tema que provoca polêmicas e produz chamas de ódio – em especial por humani- zar personagens considerados como párias e não condenar seus crimes – foi desafiador, mas cumpriu com meu objetivo de trazer uma visão diferenciada e incitar a identificação com um problema que permeia a sociedade. Quantas vezes não ouvi críticas de adeptos do “bandido bom é bandido morto” quando as mães de criminosos aparecem chorando na televisão após seus filhos terem sido cravejados de balas pela polícia? Elas são condenadas junto e sua dor se torna ilegítima. Com Guerreiras de Fé, busquei mostrar o outro lado da história, a família dos culpados e não das vítimas, e desconstruir a ideia de que as mães são sempre responsáveis pelo caminho que os filhos escolhem. Essa tomada de consciência por parte delas, quando percebem que não foram as culpadas pelo ocorrido, é um dos momentos mais marcantes para mim. Um choque de realidade para elas e, espero, para quem lê. Não tenho a audácia de garantir que opiniões mudarão por meio deste projeto, mas sei que ele pode contribuir muito para um entendimento mais ponderado sobre a justiça, o racismo velado, os julgamentos mal feitos e a falta de empatia, compreensão e identificação com a dor alheia. Não posso negar que o humilde conhecimento prévio – adquirido por

TCCs 2019_2 --- 403 meio de livros e reportagens - que tinha sobre o mundo do crime e a dinâmica do sistema penitenciário me ajudaram muito, mas ir a campo foi essencial. Ficar horas em entrevista, conhecer familiares dos personagens, observar um presí- dio e as moradias, tudo trouxe uma riqueza enorme para o texto. Aprendi muito do jornalismo durante a realização do projeto, desde a procura por fontes até a diagramação que seria utilizada. Foi um grande treino de entrevista conversada, de atenção aos detalhes contados, de edição textual e organização com base na importância das informações. Montar o livro foi qua- se como um quebra-cabeça, no qual demoramos mais para encontrar o lugar da peça do que para encaixá-la no todo. Espero ter a oportunidade de levá-lo adiante e permitir o contato de outras pessoas com tais histórias.

REFERÊNCIAS

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TCCs 2019_2 --- 407 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 408 ETERNAS FALAS DE ESTHER DE FIGUEIREDO FERRAZ

LOUISE TEIXEIRA DIÓRIO Orientador: Prof. Dr. Marcel Mendes.

TCCs 2019_2 --- 409 RESUMO

Esta pesquisa tem como tema a biografia cultural de Esther de Figueiredo Fer- raz, figura ímpar na valorização feminina, no direito penal e da mulher e na educação. Foi a primeira mulher a integrar o corpo docente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP, a primeira mulher a integrar o Conse- lho da Ordem dos Advogados do Brasil, a primeira mulher na América Latina a ocupar a reitoria de uma universidade e a primeira mulher Ministra de Estado, na pasta de Educação e Cultura. O objetivo é apurar o protagonismo feminino na figura de Esther, com depoimentos de pessoas contemporâneas à época - Cláudio Lembo, Evelin Atalla Scaf, Maria Lúcia Dias Figueiredo, Ivette Senise Ferreira e Luiz Carlos de Arruda Camargo - e apoio de materiais históricos, como clippings, gráfico textual, fotografias, acervo museológico e bibliografias. Os principais teóricos utilizados foram os jornalistas Edvaldo Pereira Lima e Carlos Rogé Ferreira, o sociólogo Pierre Bourdieu e o historiador Philippe Levillain. Como resultado, foi produzido o livro-reportagem Eternas Falas de Esther de Figueiredo Ferraz para narrar o perfil histórico da personagem e sua representatividade feminina.

Palavra-chave: Esther de Figueiredo Ferraz. Jornalismo histórico. Livro-repor- tagem. Representatividade feminina.

TCCs 2019_2 --- 410 ABSTRACT

This research is about the cultural biography of Esther de Figueiredo Ferraz, a unique figure in female valorization, criminal and women’s law and education. She was the first woman to join the Law School, at São Paulo University, the first woman to join the Brazilian Bar Council, the first woman in America Latina to occupy the rectory of a university and the first female Minister of State. The goal is to ascertain the female protagonism in the figure of Esther, with some people testimonials - Claudio Lembo, Evelin Atalla Scaf, Maria Lucia Dias Figuei- redo, Ivette Senise Ferreira and Luiz Carlos Arruda Camargo - and support of historical materials, such as clippings, textual graphic, photographs, museum collection and bibliographies. The main theorists used were the journalists Ed- valdo Pereira Lima and Carlos Rogé Ferreira, sociologist Pierre Bourdieu and historian Philippe Levillain. As a result, was produced the book called Eternas Falas de Esther de Figueiredo Ferraz to narrate the character’s historical profile and female representation.

Keywords: Esther de Figueiredo Ferraz. Historical journalism. Report Book. Female representation.

TCCs 2019_2 --- 411 INTRODUÇÃO

Este projeto de Trabalho de Conclusão de Curso configura-se num livro- -reportagem, intitulado Eternas Falas de Esther de Figueiredo Ferraz correspon- dente à biografia cultural de Esther de Figueiredo Ferraz, com foco em seu protagonismo feminino. O título da obra surgiu a partir do prefácio do livro Falas de ontem e de hoje (2000), escrito pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins. Segundo Gandra, dominar a arte de falar é admirável e “embora em Esther essa arte tenha sido a consequência de seu talento jurídico e de educadora, o certo é que a leitura de suas ‘eternas falas’ trouxe-me a lembrança da ‘persuasão do falar’ de Vieira e de Bossuet, que, no mesmo tempo em espaços diferentes, souberam perpetrar a comunicação inteligente e densa, como faz Esther.” (in FERRAZ, 2000, p.13). A meu ver, não há título que expresse melhor o conteúdo deste livro, que tem como objetivo eternizar a trajetória de vida de Esther de Figueiredo Ferraz. Nascida em 6 de fevereiro de 1915, em São Paulo, filha do fazendeiro Odon Carlos de Figueiredo Ferraz e da dentista Julieta Martins de Figueiredo Ferraz, teve cinco irmãos – Lúcia, José Carlos, Julieta, Manoel e Heloisa. Ainda bebê, mudou-se para Mococa com a família e voltou para São Paulo, ainda na infância, para estudar no Colégio Sion e, posteriormente, no Colégio Liceu Nacional Rio Branco e no Ginásio do Estado. Em 1935, obteve licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Filosofia São Bento e, em 1944, formou-se em Direi- to pela Faculdade do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP). Apaixonada pela educação, em 1947 prestou concurso de livre-docência na Faculdade de Direito da USP, onde teve a inscrição indeferida com o ar- gumento de que, por ser mulher, não cumpria o requisito mínimo. Renitente, impetrou um mandado de segurança, fez o exame e foi aprovada, tornando-se a primeira mulher a integrar o corpo docente da afamada faculdade das Arcadas, lecionando a disciplina de Direito Penal. Em 1965, tornou-se Reitora da Universidade Mackenzie, cuja cadeira ocu- pou até meados de 1971. Rompeu novamente uma barreira ao ser a primeira mulher da América Latina a assumir a reitoria de uma instituição de ensino superior, mesma instituição em que integrou o corpo docente da Faculdade de Direito. Foi durante seu mandato, por exemplo, que ocorreu a “Batalha da Maria Antônia”, conflito entre estudantes polarizados, respectivamente, no campus da Universidade Mackenzie e nos prédios da Faculdade de Filosofia da USP. (MENDES, 2016) Em 1982, recebeu o convite do presidente João Figueiredo – que apesar do sobrenome não guardavam relação de parentesco – para exercer o cargo de

TCCs 2019_2 --- 412 Ministra da Educação e Cultura. Tornou-se então a primeira mulher a assumir tal posição na política brasileira, onde permaneceu até 1985. Uma de suas prin- cipais contribuições foi a concretização da Emenda Calmon, que regulamentou a reserva obrigatória de um percentual dos recursos financeiros do país para a Educação. A ideia inicial desta pesquisa surgiu com um incômodo pessoal sobre a falta do retrato feminino na historiografia do Mackenzie. Exímias mulheres fi- zeram parte dos quase 150 anos de história, porém poucas são citadas com frequência dentro da academia. Como exemplo, cito a pioneira da Escola Ame- ricana, a professora Mary Ann Annesley Chamberlain, esposa do missionário George W. Chamberlain, que em meados de 1870 abriu sua própria residência para dar aula às crianças. Foi precursora das classes mistas, sem distinção de gênero, raça ou etnia e a favor da educação e formação integral do ser humano, sem aplicar castigos e lições decoradas. (MENDES, 2016). A princípio, o desejo era fazer um trabalho sobre ela, porém por se tratar do século XIX, os docu- mentos são praticamente inexistentes, dificultando o embasamento para um projeto bem estruturado e consistente. O nome da Dra. Esther de Figueiredo Ferraz surgiu após pesquisas sobre outras possíveis abordagens e após uma conversa com o meu orientador, Prof. Marcel Mendes. A inspiração deu-se por intermédio do documentário “Tempo e História – Trajetória da Jurista Esther de Figueiredo Ferraz”1, da TV Justiça, que serviu de base para o desenvolvimento desta pesquisa. Doutra parte, já havia tomado conhecimento da figura de Esther anteriormente, devido ao con- tato com o acervo do Centro Histórico e Cultural Mackenzie, local em que realizei meu estágio durante a faculdade. Diante disso, a pesquisa buscou responder à seguinte pergunta-problema: Quais foram os desempenhos da professora Dra. Esther de Figueiredo Ferraz ao longo da vida, no universo cultural, que destacaram seu protagonismo femi- nino? O objetivo primário desta pesquisa é apurar o protagonismo feminino na figura da Esther, suas contribuições socioeducacionais, tanto para o Mackenzie quanto pelas plagas que percorreu, e unir os fragmentos de sua história em uma obra de natureza biográfico-cultural. O objetivo secundário é estudar téc- nicas de livro-reportagem e biografia cultural. Quanto ao objetivo específico, narrar a biografia cultural de Esther de Figueiredo Ferraz por meio de retratos, fragmentos textuais, clippings e entrevistas com pessoas contemporâneas a ela, bem como suas obras autorais e aquelas em que a biografada é objeto de

1 Disponível em: Acesso em 15 fev, 2019.

TCCs 2019_2 --- 413 citação. Esther de Figueiredo Ferraz obteve destaque em diversas áreas pelas quais percorreu e, no Mackenzie, isso ocorreu principalmente em dois momentos: 1) Quando integrou o corpo docente da Faculdade de Direito após a indicação do professor Jânio Quadros, que havia sido eleito para a Presidência da República; 2) Quando seu nome foi indicado na lista tríplice do Conselho Universitário da Universidade Mackenzie e submetido ao Conselho Deliberativo da Mante- nedora, o Instituto Mackenzie, onde mereceu entusiástica aprovação. Segundo Marcel Mendes, “a ascensão de Esther de Figueiredo Ferraz à reitoria da Uni- versidade Mackenzie2 [...] revestiu-se de certo simbolismo, acarretando para a instituição prestígio e visibilidade.” (MENDES, 2016, p. 318) Para a realização do presente projeto foram lidas as obras autorais de Esther, Caminhos Percorridos (1983) e Falas de Ontem e de Hoje (2000), além da edição especial da Revista do Advogado em homenagem à professora Esther de Figueiredo Ferraz, ano XXIX, nº 104, de julho de 2009. No campo de técnicas de livro-reportagem e biografia, as principais obras lidas foram Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura (2009), do jornalista Edvaldo Pereira Lima; Literatura e Jornalismo, Práticas Políticas – Ensaio de Cultura (2004), do jornalista Carlos Rogé Ferreira; Razões práticas sobre a teoria da ação (2011), do sociólogo francês Pierre Bour- dieu e Por uma história política (2003), organizado pelo historiador francês René Rémond. Quanto aos documentos de acervo histórico, fez-se necessário consultar a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e a Empresa Brasil de Comunica- ção (EBC), de Brasília e visitar o acervo arquivístico do Colégio Sion de Notre Dame, da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo e o acervo do Centro Histórico e Cultural Mackenzie. Além disso, também foi consultado o acervo de memórias da advogada aposentada Evelin Atalla Scaf e do advogado Luiz Carlos de Arruda Camargo, que juntamente com seu irmão Guilherme de Arruda Camargo, doou a mim uma parte valiosa do acervo guardado por eles após a morte de sua tia Esther. Adicionalmente, foram utilizados recursos de história oral por meio de cinco entrevistas com pessoas contemporâneas à personagem.

2 Apenas em 1996 a instituição assumiu a confessionalidade no nome, tornando-se Uni- versidade Presbiteriana Mackenzie. (Mackenzie em três séculos, 2013 p. 149)

TCCs 2019_2 --- 414 2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Livro-reportagem O termo “livro de reportagem” passou a ser utilizado apenas em 1952, por Antonio Olinto, um dos precursores, com o intuito de se diferenciar dos famosos “livros de viagens”. Segundo Olinto, o livro-reportagem se apresenta como literatura quando supera o aspecto imediatista do jornalismo e se molda à propriedade original e pura dos acontecimentos. (FERREIRA apud OLINTO, 2003, p. 320). De acordo com Santoro (2014), a reportagem tem, em geral, um cará- ter aprofundado, com prazos de entrega maiores e é responsável por reunir informações fragmentadas que contextualizam seus elementos constituintes, diferenciando-se das pautas quentes, que possuem um teor imediatista, comuns nos noticiários diários. Segundo esse mesmo autor:

O jornalismo literário pode ser definido a partir de vários tipos de narrativas, veículos e autores que povoam a imprensa ocidental desde o final do século XIX. Mas o que é ele, afinal? Segundo autores como Edvaldo Pereira Lima (2004), Felipe Pena (2006), Tom Wolfe (2005) e Norman Sims (2007), o jorna- lismo literário pode ser definido como um conjunto de estratégias de produção de textos que almejam oferecer uma experiência de leitura diferente daquela experimentada por consumidores de informação da grande mídia – geralmente voltada à disseminação de notícias mais curtas e concisas, com informações mais superficiais, e escritas com base em padrões pré-estabelecidos, como o “lead” e a “pirâmide invertida”, que não costumam estar associados a um tratamento estético cuidadoso. (SANTORO. 2014, p. 26)

Assim como as notícias do cotidiano de jornais impressos e televisivos, o livro-reportagem utiliza no mínimo três itens básicos para a construção de um bom texto jornalístico: A pauta: escolha do tema que será tratado, da atualidade ou não, de inte- resse do público em geral ou de um nicho específico. A apuração: coleta de dados sobre o tema, entrevistas. De acordo com Santoro, “o aprofundamento de um texto jornalístico é proporcional ao tempo de que o repórter dispõe para coletar as informações.” (2014, p. 27) O lead e/ou pirâmide invertida: indicadores das seis perguntas básicas de um texto noticioso e sua ordem de importância – “o quê?”, “quem?”, “quan- do?”, “como?”, “onde?” e “por quê?” – cujas respostas devem ser dadas logo no primeiro parágrafo. É de se ressaltar que no livro-reportagem os itens citados acima possuem grau mais acentuado de profundidade informativa: narram-se os contextos an-

TCCs 2019_2 --- 415 teriores, presentes e posteriores ao fato. Segundo Santoro (2014, p. 36):

Ao contrário de outras produções jornalísticas, que tendem a priorizar fatos restritos ao passado próximo, o livro-reportagem pode retroceder várias décadas, séculos até, em direção ao passado, para apresentar situações e personagens que há muito não frequentam o noticiário tradicional.

Esse, sem dúvida, é o caso de Esther de Figueiredo Ferraz, personagem retratada na presente pesquisa. Segundo Carlos Rogé, reportar um evento ou situação não tem ligação direta com a realidade, sendo, na verdade, apenas uma recriação do que é real. Isso porque é inescapável ao ser humano separar o objeto do sujeito, apoian- do-se de alguma forma às capacidades emocionais humanas. (2003, p. 281). Enquanto integravam o corpo docente da Escola de Comunicações e Ar- tes da USP, os jornalistas Paulo Roberto Leandro e Cremilda Medina constata- ram alguns fatos interessantes durante pesquisas de reconstituição da história da reportagem. Segue um exemplo disso. Em 1910, a imprensa norte-americana entrou em um dilema: o telégrafo já estava funcionando e as agências de no- tícia administravam bem a demanda de coleta e distribuição de informações ao redor do mundo, porém se surpreenderam com o surgimento da Primeira Guerra Mundial. De acordo com Lima (2004), foi a partir desse ponto que a im- prensa percebeu que não havia sentido se limitar simplesmente aos fatos, sem adquirir a capacidade de fazer uma conexão entre os acontecimentos. (p.19). O livro-reportagem desempenha como função material o mesmo papel que qualquer outro veículo de informação. Ainda segundo Lima (2004), o catali- sador do livro-reportagem é a grande reportagem, enquanto no jornalismo co- tidiano esse dinamizador é a notícia. (p. 39) A diferença de ambos é que o livro possui um caráter mais profundo, dá sentido à existência dos acontecimentos e proporciona uma sobrevida ao passado. Lima traduz isso como “o retorno do que já foi, para lhe reposicionar em termos do que representa hoje.” (2004, p. 46). Segundo Silva (2018), o cruzamento de história, jornalismo e literatura é algo complexo e deve se conter para não simplificar acontecimentos histó- ricos do passado. (p. 434). De acordo com esse autor, o ponto principal está em pensar no historiador como repórter retomando o termo polissêmico de cronista que interpreta o passado. Neste caso, “o termo cronista, contudo, foi ganhando cada vez mais uma acepção literária, a literatura no jornalismo. A crô- nica explora profundamente a compreensão, a empatia, a descrição, a narração, a reconstrução.” (SILVA, 2018, p. 439).

TCCs 2019_2 --- 416 2.2 Biografia A origem etimológica da palavra personagem advém do termo “personna- ge”, em francês. De acordo com o dicionário Aurélio, personagem refere-se à “representação de um ser humano em uma obra de arte” ou “pessoa impor- tante e célebre”. No estilo biográfico, o foco principal é o percurso, a estrada e suas en- cruzilhadas, a corrida e a trajetória de vida de um sujeito específico. De acordo com Bourdieu:

Tentar compreender uma vida como uma série única e, por si só, suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligação que a vinculação a um “su- jeito” cuja única constância é a do nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em consideração a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diversas estações. (BOURDIEU, 2011, p. 81).

O que o sociólogo Pierre Bourdieu explica no trecho acima é que não há a possibilidade de compreender a trajetória de um indivíduo apenas com fragmentos de sua vida. Dessa forma, colocam-se em risco as noções do senso comum, intituladas de superfície social, que pressupõe a vida como uma “histó- ria e que uma vida é inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de uma existência individual, concebida como uma história e a narrativa dessa história.” (2011, p. 74). Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as biografias decaíram para um limbo de descrédito. Isso ocorreu devido à descrença das pessoas pela jornada do herói3, onde a sociedade passou a crer mais em si mesma, ou seja, na impor- tância das grandes massas, muito mais do que em indivíduos ilustres retratados na história. Philippe Levillain define tal fato como o “reflexo de um mal estar diante do gênero biográfico.” (LEVILLAIN, 2003, p. 142) Outro fator que influenciou a aversão ao estilo biográfico foi a exacerba- da utilização de elogios incutidos nas narrativas biográficas, confluindo a histó- ria sagrada e a história profana para explicar ou celebrar figuras exemplares. (Op. Cit., p. 149). Na década de 1980, houve uma nova ascensão da biografia, consagran- do-lhe o verbete nos dicionários e a volta da discussão entre historiadores e

3 Também conhecida como Monomito, a Jornada do Herói é um conceito con- cebido pelo antropólogo Joseph Campbell que explica a narrativa de um indivíduo basicamente em um chamado, a iniciação e o retorno, dividido ao todo em 12 fases e descritas na obra O Heróis de Mil Faces (1949).

TCCs 2019_2 --- 417 pesquisadores. Segundo Levillain, tal acontecimento foi o que rompeu o “invó- lucro factual, isto é, o invólucro temporal como princípio de inteligibilidade, a história transformada em ciência social rompera com a lógica da narrativa, que é um encadeamento ininterrupto entre o antes e o depois.” (Op. Cit., p. 163) De acordo com Levillain, atualmente a biografia histórica

[...] é o melhor meio, em compensação, de mostrar as ligações entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade, e de experimentar o tempo como prova da vida. Seu método, como seu sucesso, deve-se à insi- nuação da singularidade nas ciências humanas, que durante muito tempo não souberam o que fazer dela. (Op. Cit., p. 176)

Ainda segundo Levillain, a biografia carrega uma posição de excelência quanto retrata a diversidade da condição humana, sem isolá-la da sociedade e sem exaltá-lo como uma figura impassível de aspectos negativos. (Op. Cit., p. 176). Em complemento a isso, e de acordo com Jean-François Sirinelli, a história dos intelectuais se tornou um campo autônomo que cruza temas políticos, sociais e culturais. A trajetória dos intelectuais poderia ser melhor esclarecida por meio do estudo do seu pertencimento a “redes de sociabilidade”, conceito esse abordado pelo autor, mas que deixa de ser aplicado ao estudo em tela, pelos seus naturais limites como trabalho acadêmico. (SIRINELLI, 2003, p. 232, 248) De acordo com Schmidt, no Brasil, as biografias passaram a ter maior visibilidade no fim da década de 1980, com a ascensão de livros sobre celebri- dades ou de indivíduos que haviam caído no limbo da memória nacional. Além disso, afirma que o festejo maior foi da classe jornalística, pois devido ao texto envolvente e à escrita minuciosa, conquistou o gosto do público. Extrapolando essa ideia, o mesmo autor ainda afirma:

[...] a massificação e a perda de referenciais ideológicos e morais que marcam a sociedade contemporânea têm como contrapartida a busca, no passado, de trajetórias individuais que possam servir como inspiração para os atos e condutas vivenciados no presente. (Op. Cit., p.4).

Diferente de Levillain, Schmidt sugere que há no enunciador uma espécie de voyeurismo velado “que impele muitos autores a investigar minuciosamente a vida privada dos outros, sobretudo dos personagens destacados, a fim de demolir mitos (transformando-os em ‘gente como a gente’) ou simplesmente para saciar a curiosidade dos leitores.” (SCHMIDT, 1997, p. 4). Enfim, devidamente ressalvado gênero biográfico adotado, que é o de uma

TCCs 2019_2 --- 418 biografia cultural, passa-se ao relato da elaboração da “peça”.

3. DESENVOLVIMENTO DA PEÇA

3.1 Memorial de Realização da Peça

A peça desenvolvida é um livro-reportagem biográfico, com ênfase na biografia cultural de Esther de Figueiredo Ferraz e suas contribuições para a va- lorização feminina, com o intuito de destacar suas principais ações no ambiente acadêmico, no direito e na política. De forma secundária, busquei pincelar sobre suas particularidades no âmbito pessoal, como sua relação com a música e a poesia. Para iniciar a pesquisa, foram consultadas as documentações do Centro Histórico e Cultural Mackenzie, da Faculdade de Direito do Largo São Fran- cisco (USP), do Colégio Notre Dame de Sion e da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Ao todo, foram analisados mais de mil documentos, das mais variadas espécies, como: fotografias, atas, periódicos, prêmios, certifica- dos, vestuários, jornais, cartas, entre outros. Entretanto, devido ao tempo de pesquisa e produção disponível, e aos requisitos para o Trabalho de Conclusão de Curso, foi necessário simplificar os processos para finalizar em tempo hábil, porém todos os documentos consultados foram catalogados e guardados para oportunidades futuras, como o mestrado ou a publicação de um projeto edi- torial mais aprofundado. Simultaneamente à pesquisa de acervo, fez-se indispensável o trabalho de campo com história oral, por meio de entrevistas. Diversas pessoas foram contactadas ao longo da apuração, desde aquelas que auxiliaram na mediação entre jornalista e fonte, até os próprios entrevistados. A primeira entrevista ocorreu no dia 29 de maio com o advogado Cláudio Lembo, em seu escritório localizado no Jardim Paulista e, alguns meses depois, em 11 de junho fui à residência da professora Maria Lúcia Dias Figueiredo, próxima à rua Oscar Freire. No dia 28 de junho, acompanhada da minha mãe Cenise Vieira Teixeira, estive na residência da advogada aposentada Evelin Atalla Scaf, no Paraíso. No mês seguinte, no dia 4 de julho, fui ao Alto de Pinheiros entrevistar a advogada aposentada Ivette Senise Ferreira em sua residência e, no dia seguinte, estive na Sé, zona central da cidade, no escritório do advogado Luiz Carlos de Arruda Camargo, sobrinho de Esther. Em outro momento, no dia 18 de agosto, fui à residência do Luiz Carlos, acompanhada do meu pai Alcir Diório, para buscar o acervo pessoal de sua tia – Esther de Figueiredo Ferraz – que foi doado a mim, por ele e por seu irmão Guilherme de Arruda Camargo.

TCCs 2019_2 --- 419 Para completar o quadro de imagens da trajetória política da protagonista, consultei o acervo EBC/DF regido pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável por manter todos os documentos do Governo Federal, o que resultou na disponibilização de três fotografias gratuitas, por se tratar de uma produção acadêmica, sem teor lucrativo ou comercial. Todas as entrevistas foram gravadas pelo celular e os meios de locomoção usados foram ônibus, metrô, aplicativo de carona e, por muitas vezes, a pé. Todo o trabalho que diz respeito à apuração da obra, pesquisas em do- cumentos de arquivo, contato com fontes, entrevistas, decupagem e texto foi realizado exclusivamente pela autora da obra. No processo de diagramação e impressão do livro foi contratado o serviço de um designer e de uma gráfica especializada.

3.2 Definição de Estilo e Linguagem Trata-se de um livro-reportagem biográfico, escrito na terceira pessoa do singular, com trechos e transcrições adicionais da própria Esther, ou que a citam, para, de certa forma, elucidar os aspectos temporais da história. Diversas fotografias foram utilizadas para ilustrar o livro, com o intuito de aproximar o leitor de uma forma dinâmica e visual. Diferente de muitas biografias atuais, cujo protagonista permanece em vida, nesta pesquisa foram utilizados dois recursos possíveis: os documentos de arquivo e os relatos de pessoas contemporâneas a Esther de Figueiredo Ferraz, por meio de história oral. Com base nisso, busquei relatos de diferentes fontes e informações em diversos arquivos.

3.3 Fontes O primeiro contato com as fontes ocorreu via e-mail e foi agendada uma data no melhor local e horário para cada entrevistado, sendo eles; Luiz Carlos de Arruda Camargo, advogado e sobrinho de Esther de Figuei- redo Ferraz, que me recebeu em seu escritório, no dia 05/07/2019 e em sua casa, no dia 18/08/2019, quando doou para mim um acervo inédito de sua tia. Além disso, foram feitos diversos contatos por ligação e mensagens de texto via o aplicativo WhatsApp; Evelin Atalla Scaf, advogada e amiga de longa data de Esther de Figueiredo Ferraz, me recebeu em sua casa no dia 28/06/2019, na região do Paraíso, e ce- deu imagens e documentos de seu acervo. Também foram realizados diversos contatos com ela por telefone e por email com seu sobrinho juiz Ricardo Felício Scaff; Cláudio Lembo, advogado, político e professor, me recebeu em seu escri-

TCCs 2019_2 --- 420 tório no dia 29/05/2019, na região do Jardim Paulista. Nosso contato deu-se via e-mail e encontros no Centro Histórico e Cultural Mackenzie; Ivette Senise Ferreira, advogada e professora, me recebeu em sua residên- cia 04/07/2019, na região do Alto de Pinheiros. Nosso contato deu-se via e-mail; Maria Lúcia Dias Figueiredo, me recebeu em sua residência no dia 11/06/2019, na Oscar Freire, além de me emprestar um precioso livro genealó- gico da família Figueiredo Ferraz. Nosso contato deu-se via e-mail e mensagens de texto via o aplicativo WhatsApp. Além dessas fontes, outras quatro foram procuradas, porém sem sucesso, sendo elas: Gilda de Figueiredo Ferraz, advogada e sobrinha de Esther de Figueire- do Ferraz. Meu primeiro contato com ela foi via e-mail, que me encaminhou para sua secretária. Desde abril, houve três horários de entrevistas agendados, todas que iriam ocorrer no escritório da advogada, nos dias 29/05, 03/07 e 01/08/2019. A primeira entrevista foi desmarcada por mim, após receber a con- firmação do Dr. Cláudio Lembo com disponibilidade no mesmo dia e horário. Já as outras duas entrevistas foram desmarcadas pela fonte no dia anterior às datas, devido a compromissos na agenda; Benedito Guimarães Aguiar Neto, atual reitor da Universidade Presbite- riana Mackenzie. Meu contato com ele foi por meio do e-mail, que aceitou o convite prontamente e pediu para acertar as datas com a secretária. A entrevis- ta foi agendada para o dia 17/07/2019, porém dois dias antes foi cancelada pela fonte devido a compromissos na agenda; Álvaro Villaça Azevedo, advogado e professor. Foram encaminhados diversos e-mails e realizadas algumas ligações para o seu escritório, porém ambas sem resposta; Eduardo Tuma, vereador, responsável pelo projeto de lei nº 172/2019 que tem a proposta de dar o nome de Esther de Figueiredo Ferraz a uma via ele- vada na região de Pinheiros. Foram encaminhados diversos e-mails e realizadas algumas ligações para o seu escritório, porém sem êxito.

3.4 Execução e Finalização Este trabalho teve como resultado o livro Eternas Falas de Esther de Fi- gueiredo Ferraz. O processo de pesquisa e apuração durou quase um ano, desde a decisão do tema e primeira orientação com o Prof. Marcel Mendes, até chegar no “produto” final impresso. Ao longo da pesquisa, alguns títulos passaram em mente, porém nada sintetiza melhor este projeto editorial do que o termo “eternas falas” utilizado pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins no prefácio do livro Falas de ontem e de hoje (2000), de Esther de Figueiredo Ferraz.

TCCs 2019_2 --- 421 Foram diversas entrevistas, pesquisas, leitura de documentos e livros, digitalização de fotos e arquivos, criação e edição de textos e outros processos de apuração. O livro contém ao todo 110 páginas, porém todo o processo ultrapassou essa marca. Com tantos documentos encontrados, fez-se neces- sário otimizar a pesquisa com uma curadoria rigorosa do que deveria ser lido e utilizado neste projeto. Como exemplo, cito as fotografias escolhidas para o livro que, ao todo, eram mais de 150 imagens, porém reduzidas em pouco mais de 30 fotos para o projeto final. As únicas partes terceirizadas neste projeto foram a diagramação do livro, realizada pelo jornalista e designer Almerino Gonçalves e a impressão das 25 cópias, feita pela Gráfica Imagem Digital, na Rua da Consolação, 1689. Foi gas- to aproximadamente R$3.000,00 para este projeto, contanto os desembolsos com locomoção, alimentação, compra de livros e materiais de pesquisa, diagra- mação e impressão.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O início da produção deste projeto foi um tanto inusitado. Devido ao meu estágio no Centro Histórico e Cultural Mackenzie, sempre tive em mente o desejo de aproveitar o meu TCC para fazer algo relacionado à história do Mackenzie. A principal inspiração, obviamente, era o professor Marcel Mendes. Mal sabia eu que teria a honra de ser orientada por ele. Por diversas vezes mudei de tema, até que finalmente criei coragem de enviar um e-mail ao professor Marcel para esboçar as minhas ideias e possíveis abordagens que, a princípio, eram sobre a figura de Mary Ann Annesley Cham- berlain. Em meados de janeiro recebi uma resposta muito carinhosa do profes- sor, durante seu período de férias, sobre o meu interesse em pesquisar sobre a fundadora da Escola Americana. Entretanto, havia um empecilho que foi muito bem ressaltado por ele: por se tratar do século XIX, poucos documentos es- tariam à minha disposição e, quiçá, para um bom embasamento eu teria que visitar acervos localizados em Nova Iorque, o que, claramente, era impossível pelo tempo hábil e financeiro. Desacreditada, decidi voltar para o tema anterior a tudo isso, ainda no 6º semestre, que dizia respeito aos trabalhos missionários realizados pela institui- ção “Jocum”, o que muito me agradava, porém não era exatamente o que eu queria falar. Para a minha surpresa, no último dia disponível para inscrever os temas do TCC I, recebi a visita do Prof. Marcel Mendes no prédio 1, onde sou estagiária. Após uma longa conversa, chegamos num consenso com relação ao nome de Esther de Figueiredo Ferraz como protagonista da minha pesquisa.

TCCs 2019_2 --- 422 Cativado pelo tema proposto, o Prof. Marcel Mendes sugeriu que ele próprio fosse o meu orientador. Tudo foi acertado no mesmo dia com o coordenador do curso de jornalismo, Prof. Rafael Fonseca Santos, que gentilmente aquiesceu ao pedido. O meu intuito ao contar tudo isso é evidenciar que os bons professores instigam os alunos a confiar no próprio potencial, a confrontar as encruzilhadas ao longo do processo de formação e a se tornar o melhor profissional possível. A honrosa orientação do Prof. Marcel Mendes me ensinou tudo isso e muito mais, principalmente a lição do que é ser um bom professor. Após todo esse processo de escolha do tema, um fato triste veio a ocor- rer na minha família. De fevereiro a abril, meu projeto foi interrompido pela dolorosa perda da minha avó materna Cerides Vieira Fernandes, que era uma mulher forte e inspiradora. Foi então em meados do mês de abril que tudo começou a andar, de fato. Comecei a coletar os documentos arquivísticos e a realizar as entrevistas. Imergi na história de Esther de Figueiredo Ferraz e, de certa forma, me afeiçoei à sua figura. Infelizmente não tive o privilégio de conhecê-la, mas era como se a cada carta, relato, livro e fotografia eu me tornasse um pouco amiga dela. A produção deste trabalho me mostrou como é ser um repórter na prá- tica. Sair a campo atrás da notícia, entrevistar diversas pessoas, observar bem cada ambiente em que transito, consultar relatórios, dados, atas e até arquivos históricos e, o principal, ouvir mais e falar menos. Além disso, me trouxe a con- firmação de que é este tipo de dinamismo e correria que me apetece, que me dá vontade de trabalhar e de pesquisar um assunto a fundo até descobrir de alguma maneira as respostas para os meus questionamentos. Pensando no quesito social, este trabalho é de extrema importância para a história da política brasileira e dos diversos entraves femininos. Afinal, como pode a sociedade brasileira não saber quem e quando foi que o Brasil teve a primeira mulher no Ministério? Qual é a consequência de tal falta de informa- ção? Para mim, esse é apenas um exemplo de tanta desinformação que vemos atualmente. Uma nação sem conhecimento do passado, fica à mercê de seu próprio desengano no futuro. O exemplo de figuras e fatos da história é essen- cial para o desenvolvimento da juventude e da sociedade em geral. No âmbito jornalístico, reportagens sobre acontecimentos históricos são importantes para elucidar e perpetuar a memória de um povo. A meu ver, nós jornalistas, temos como pauta principal os acontecimentos diários, que são de extrema importância, mas dificilmente levamos esses assuntos a fundo depois, nem investigamos as consequências e o desenrolar posterior a cada fato. Digo isso, pois muito do que acontece hoje, tem explicação no passado ou pode ter terríveis consequências no futuro.

TCCs 2019_2 --- 423 Acredito que a pergunta-problema foi respondida, porém continuo com o desejo de aprofundar mais este projeto. Com isso, decidi seguir a sugestão do meu querido orientador e dar sequência ao tema no Mestrado de Educação, Arte e História da Cultura, e elaborar um projeto editorial completo. Decidi me inscrever para iniciar a pós-graduação Stricto Sensu no 1º semestre de 2020.

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TCCs 2019_2 --- 430 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 431

QUILOMBO DOURADO UM DOCUMENTÁRIO SOBRE A COMUNIDADE QUILOMBOLA MUMBUCA DO JALAPÃO

FABIANA ABATE GUGLIELMI Orientador: Vanderlei Dias de Souza.

TCCs 2019_2 --- 432 RESUMO

A Comunidade Quilombola Mumbuca é o primeiro povoado da região do Jala- pão (TO), e suas origens remontam ao século XIX, quando escravos fugidos do sul da Bahia encontraram o local praticamente inabitado. Viviam da agropecuá- ria de subsistência e do escambo da arte que acompanha o desenvolvimento do povoado até os dias de hoje: o artesanato do Capim Dourado, do qual foi pioneira. O objetivo deste trabalho foi desenvolver um documentário que mostre os aspectos culturais da comunidade, assim como as transformações sofridas após a inserção de seu território no Parque Estadual do Jalapão, em 2001. Durante a elaboração deste projeto, a falta de um material de apoio confiável e amplo sobre Mumbuca demonstrou a falha, por parte da mídia, em retratar as diferentes identidades culturais que formam o Brasil, um país dono de um passado escravocrata e de muita diversidade. Por isso, trata-se de um documentário etnográfico cujos depoimentos dos nativos do povoado são va- lorizados prioritariamente.

Palavras-chave: Mumbuca; capim dourado; Parque Estadual do Jalapão; docu- mentário; jornalismo.

ABSTRACT

he Mumbuca Quilombola Community is the first group to populate the Jalapão area (Tocantins, Brazil). The community’s history goes all the way back to the 19th century, when the slaves who ran away from the south of Bahia found this uninhabited land. Back then, they lived off of subsistence farming and bartering of art, their well-known Capim Dourado (Golden Grass), which is, until today, a very popular merchandise. The goal of this project was to create a documentary that shows not only the culture aspects of the community, but also the transformations that occurred after the community was established as part of the Estate Park of Jalapão, in 2001. During the production of this short movie, the lack of support and aid directed to the Mambuca’s population, sho- wed how the Brazilian media fails to provide an accurate image of the different cultures that make up Brazil. Therefore, the project can be considered an eth- nographic documentary where the words spoken by the inhabitants of Jalapão were extremely valued.

Keywords: Mumbuca; Golden grass; Jalapao State Park; documentary; jour- nalism.

TCCs 2019_2 --- 433 INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso teve como objeto de pes- quisa a Comunidade Quilombola Mumbuca, localizada dentro dos domínios do Parque Estadual do Jalapão1, no município de Mateiros, Tocantins. Remanes- cente de quilombolas e indígenas, a Mumbuca é uma das oito comunidades do Jalapão. Como produto final, houve a realização de um documentário cujo ob- jetivo foi contar história do povoado, seus costumes e dificuldades territoriais. Como é o caso da maioria dos territórios de negros refugiados, o local onde a comunidade está é de difícil acesso, e se manteve isolado por muito tempo. Por isso, o tempo em Mumbuca passou de uma maneira diferente. Enquanto as grandes cidades possuíam eletricidade desde a época colonial2, a comunidade só foi saber do que se tratava em 20013. Diante disso, o projeto buscou responder à seguinte pergunta-problema: “como abordar jornalistica- mente e de forma poética o objeto de pesquisa mencionado?”. Atualmente, Mumbuca abriga cerca de cem pessoas. As casas ainda são feitas de barro, com telhado de palha ou taipa de mão4, e o saneamento bási- co é precário. Foi com o surgimento do artesanato do Capim Dourado5 que Mumbuca começou a se desenvolver. Em 2000, com a criação da Associação do Capim Dourado, o comércio da arte se tornou sua principal fonte de renda, de acordo com o portal ArteSol6.

São pulseiras, brincos, chaveiros, bolsas, cintos, vasos, brinquedos e peças de decoração, entre outros. Para evitar a extinção do capim, a regulamentação do Tocantins proíbe a saída do material “in natura” da região. Somente as peças já produzidas pela comunidade local podem ser comercializadas. (BRASIL, 2016)

1 Na região leste do Estado do Tocantins, abrange os municípios de São Felix do Tocan- tins, Mateiros, Rio do Sono, Lizarda, Santa Teresa do Tocantins e Novo Acordo. 2 Em 1879, Dom Pedro II concedeu a Thomaz Alva Edison a permissão de introduzir no país aparelhos de sua criação destinados à utilização de eletricidade na iluminação pública. 3 Como conta Antônia Ribeiro, “Dona Tonha”, em entrevista a esta autora. 4 Conhecida também como pau-a-pique, trata-se de uma técnica em que as paredes são armadas com madeira ou bambu e preenchidas com barro e fibra. 5 O Capim Dourado é uma flor da família das sempre-vivas (Eriocaulaceae) que nasce no cerrado, e é de sua haste que o artesanato é feito. 6 A ArteSol é uma organização sem fins lucrativos que atua há quase 20 anos investindo na valorização e promoção do artesanato tradicional nacional, através de estratégias sustentá- veis das comunidades em que atuam.

TCCs 2019_2 --- 434 A relação da autora do projeto com o tema se dá pela afeição pelo audio- visual e assuntos culturais, principalmente aqueles que dizem respeito à forma- ção da identidade do povo brasileiro e a aspectos da história que não são muito noticiados pela editoria de cultura, como as comunidades quilombolas. O vídeo foi o produto escolhido por favorecer a manifestação de emoções, conectando o telespectador às personagens com o artifício do áudio e imagens atraentes. A musicalidade está muito presente no cotidiano do povoado, e é explorada no documentário. A metodologia que embasou a construção desse projeto consistiu em um estudo sobre a Comunidade Quilombola Mumbuca, o Parque Estadual do Jalapão, o artesanato do Capim Dourado e as questões territoriais sofridas pelo povoado após a criação do Parque Estadual do Jalapão. O contato inicial com pessoas da comunidade foi difícil, mas a autora conseguiu se comunicar com uma das habitantes, Ilana Cardoso, que trabalha com turismo sustentável7 e de base comunitária. Foi por intermédio dela que a viagem até o Jalapão foi programada. Questionamentos que o trabalho procurou responder com essa peça fo- ram: como começou o povoado? Qual a história do Capim Dourado? Do que e como eles viviam antes do Parque? Quais são seus costumes ancestrais, e o que mudou de 20018 para cá? Qual a forma de medicina utilizada? Como a música está presente no dia a dia daquele povo? O resultado é o curta-documentário de 23 minutos Quilombo Dourado, que também buscou mostrar um pouco da experiência pessoas da autora- nas narrações em primeira pessoa-, assim como a vasta natureza do Jalapão. O elemento-chave da jornada foi a imprevisibilidade e o máximo de natu- ralidade e comprometimento com a realidade possível. A proximidade duran- te uma semana com as personagens e a convivência diária foi essencial para compreender as singularidades dos habitantes de Mumbuca e estabelecer uma relação de confiança. O que os telespectadores verão no documentário e nes- te projeto é uma outra face do Jalapão, que vai além das belezas naturais que atraem turistas cada vez mais. Quilombo Dourado enaltece as pessoas que lá vivem e possuem uma cultura própria. As pessoas que preservam o paraíso nacional há séculos.

7 De acordo com o Ministério do Meio Ambiente e a EMBRATUR, o ecoturismo é um segmento que usa de forma sustentável os recursos naturais e patrimônios culturais. Há con- tato direto com o meio ambiente, não só o preservando, mas também expandindo uma cultura de consciência de preservação. 8 Quando ocorreu a criação do Parque Estadual do Jalapão.

TCCs 2019_2 --- 435 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1. O Parque Estadual do Jalapão

O Tocantins (TO) foi criado em 1988 através da promulgação da Cons- tituição Federal. Estamos falando do estado mais novo do Brasil, que guarda muitos mistérios sobre sua história. As raízes da região remontam à corrida do ouro da primeira metade do século XVIII, como conta Ricardo Martins em seu livro Jalapão, história e cultura de 2012. O ciclo econômico estabeleceu uma população fixa que misturou branco europeu, índio e negro africano, formando uma identidade cultural singular. O Parque Estadual do Jalapão (PEJ) fica na região leste do TO, a aproxima- damente 310 quilômetros da capital Palmas. Seus limites abrangem os municí- pios de São Felix do Tocantins, Mateiros, Rio do Sono, Lizarda, Santa Tereza do Tocantins e Novo Acordo, segundo o site Turismo Tocantins. Definido pela Lei Estadual 1.203 de 12 de janeiro de 2001, o Parque per- tence à categoria de Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral do Estado de TO. De acordo com o Site Oficial do Governo de Tocantins, dentre os objetivos dessa UC estão preservar a biodiversidade, disciplinar o processo de ocupação, assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais e me- lhorar a qualidade de vida dos residentes, preservando a cultura e a tradição local (CALDAS, 2017). Desde 2001, com a incorporação de seu território ao PEJ, a Comunidade Quilombola Mumbuca tem suas tradições alteradas e sofre com a ameaça de ter sua terra perdida. Há um conflito em que de um lado temos Mumbuca e outros quilombos, que há gerações dependem da natureza como recurso de sobrevivência, e de outro o Governo do Tocantins e a NATURATINS (Instituto Natureza do Tocantins), que almejam uma natureza intocada. Cabe ao NATU- RATINS administrar o PEJ e adotar as providências necessárias ao cumprimen- to da Lei 1.203, de acordo com seu Art. 5º:

Para os fins deste artigo o NATURATINS poderá agir em parceria com entida- des de direito público ou privado, nacionais, internacionais e estrangeiras, bem assim com organizações não governamentais que atuem na área de proteção do meio ambiente e tenham representação no Estado.

2.2. A Comunidade Quilombola Mumbuca As origens de Mumbuca são controversas, pela ausência de estudos apro-

TCCs 2019_2 --- 436 fundados sobre o assunto. Não há material suficiente para entender a trajetória do povoado, ou um autor que tenha se dedicado especificamente a isso.Porém, com o artifício da pesquisa e os relatos dos nativos, foi constatado pela autora que sua criação se deu no século XIX, quando escravos fugidos do sul da Bahia descobriram a região, na época inabitada9. Seu nome deriva da espécie de abelha silvestre “Mombuca”, e seus mora- dores dizem que é porque o inseto era abundante por lá. Sobre seu passado de escravidão, ninguém pareceu saber muito a respeito. Quando indagados, a res- posta era sempre a mesma: “foi um tempo sofrido, tudo que nós tínhamos vinha da Bahia, a viagem levava 30 dias de jumentinho, aqui só ficou quem aguentou”. A principal figura de Mumbuca é Vó Laurina, como é chamada por todos, que faleceu há alguns anos. Mas algumas de suas netas estão vivas para contar a história. Uma delas é Doutora, que recebeu o apelido por ser a curandeira do quilombo. Ela conta que sua avó veio da Bahia com seu avô Solivéro e foi quem descobriu o Capim Dourado nos campos em meio ao outro capim, desenvol- vendo o artesanato e iniciando a tradição. Na comunidade todos falam sobre Vó Laurina, e a celebram nas cantigas de roda. O Capim Dourado é típico das veredas de solo úmido do cerrado, e apesar do nome, trata-se de uma flor resistente que continua com viço mesmo depois de arrancada na época certa. A história que corre no povoado é que foi Vó Laurina quem desenvolveu a arte de tecer a haste da flor com a seda de buriti10. Apesar disso, Barbosa e Silva (2018, p.36) acreditam que a técnica tenha sido criada pelos índios Xerente11 e repassada à Mumbuca. Há alguns anos, o povoado não conhecia dinheiro e vivia apenas de sub- sistência e escambo12. Hoje, o artesanato do Capim Dourado é reconhecido como Patrimônio Histórico do Tocantins pela Lei nº 2.106/2009 e gera uma renda mensal mínima por trabalhador de até dois salários mínimos13. Com o

9 Fato também constatado por Ricardo Martins em seu livro Jalapão, história e cultura (2012). 10 O buriti é uma palmeira que pode alcançar 30m de altura típica dos terrenos alagáveis como as veredas do cerrado. A fibra de sua palha, também chamada de seda, é uma ótima matéria prima para o artesanato. 11 Suas terras são foco de brigas territoriais desde a criação do Estado do Tocantins em 1989. 12 Conta “Doutora”, curandeira do povoado, em entrevista à autora. Os homens iam à Bahia em uma longa viagem de jumento trocar o Capim Dourado por outras mercadorias. 13 De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Governo do Tocantins no relatório Minuta do Projeto de Lei de Uso Sustentável do Capim Dourado e do Buriti (Brasília, novembro de 2016).

TCCs 2019_2 --- 437 sucesso de Mumbuca, mais de 16 comunidades passaram a vender a arte. Adel- sino Gomes14, em entrevista para a autora, relata que já não há mais a mesma quantidade da planta nos campos, e que muitos não respeitam o período certo de colheita e até roubam Capim Dourado das áreas do pessoal de Mumbuca. Até os anos 80, a comunidade se manteve fora do mapa por conta do difí- cil acesso, o que perdura até hoje. A única forma de chegar ao quilombo é por estrada de terra, sem iluminação ou sinal de internet. Em entrevista à autora, Maureni da Silva Tavares15 conta que a primeira vez que viu um carro foi aos 18 anos de idade, e que todos ficaram apavorados com a novidade. Eletricidade e sinal de TV só chegaram em 2001, como contam os moradores. A incorporação dos limites da comunidade ao PEJ mudou o estilo de vida dos remanescentes de quilombolas. Em Mumbuca, todo mundo é família, e por muito tempo se relacionavam entre si, afinal, não conheciam nada além. Hoje, isso já não acontece com tanta frequência, pois além de existirem outros povoados próximos, Mumbuca já tem uma escola, e alguns jovens cursam facul- dade e trabalham em Palmas.

Hoje eles vivem a revolução da integração. Em pouco mais de 20 anos uma nova cultura surgiu, uma nova forma de ver e aceitar o mundo está mudando suas tradições, sua forma de se relacionar, seus casamentos. (JUNQUEIRA, 2014, online)

Muitas tradições de seus ancestrais ainda vigoram, como a culinária típica, o artesanato, a medicina natural que utiliza ervas do cerrado, as casas de palha e as cantigas de roda. Na comunidade, homens e mulheres sempre tiveram papéis bem definidos; as mulheres são maioria e são respeitadas e admiradas, afinal, são as responsáveis pelo artesanato do Capim Dourado. A Associação do Ca- pim Dourado do Povoado de Mumbuca foi criada em 2000 por artesãs que sentiam a necessidade de se organizar formalmente e estimular o comércio (REZENDE, online). Enquanto isso, a maioria dos homens trabalha na roça de toco16, plantando arroz, feijão e mandioca, o que mais dá na terra arenosa e é a base da alimentação do povoado, segundo José Ribeiro da Silva em entrevista à autora.

14 Adelsino é nativo de Mumbuca, agricultor, artesão e dono de um restaurante no povoado. 15 Remanescente de quilombola, nasceu e vive em Mumbuca, onde aos 36 anos cria doze filhos e é artesã. 16 Conhecida também como roça xavante, a área de uma mata preta e fértil, normal- mente perto de córrego, é aberta através do corte das árvores com machado, foice ou facão. No período seco, a área é queimada para que matéria orgânica seja depositada novamente. Essa técnica de plantio é comum aos povos indígenas.

TCCs 2019_2 --- 438 Um fato a ser ressaltado é que Mumbuca é uma comunidade evangélica apesar de ser quilombola. Santinha17, como é apelidada, conta que seus antepassados eram católicos, mas que não sabe ao certo quando isso mudou. Nascimento e Abib (2016, p.38) citam que o povoado começou a sofrer influência religiosa a partir de missões evangélicas dirigidas por norte-americanos em 1970:

Quanto a esse fenômeno Antônio Liberac Cardoso Pires (2006) aponta que atualmente na comunidade, com o processo de evangelização, diversas práticas lúdicas que eram realizadas foram abandonadas. Essas mesmas práticas podem ainda ser encontradas “em outras comunidades da região do Jalapão que não apresentam fortes traços de evangelização” (2006, p. 75). (NASCIMENTO; ABIB, 2016)

Com a criação do Parque e do NATURATINS, muitas regras foram impostas às comunidades quilombolas. Houve pressão, durante anos18, para que os moradores saíssem de suas casas. Após o processo de reconhecimento como remanescente de quilombola pela Fundação Cultural Palmares, Mumbuca e outros povoados ga- nharam força para permanecerem em suas terras (REZENDE, online). Isso porque, segundo o Artigo 68 da Constituição Federal de 1988, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

Os moradores da região envolvidos com o PEJ demonstraram pouco esclare- cimento sobre a importância do mesmo, principalmente aqueles que proprie- tários que foram afetados pela área atual da Unidade, e que os levou a não enxergar com simpatia e segurança a criação do PEJ. Além disso, o Parque está atraindo muita gente de fora, inclusive alguns empreendedores, investidores e especuladores imobiliários que acabam pondo em risco os aspectos culturais de algumas comunidades bastante arraigadas com as condições ambientais da região. Esse receio de perder a identidade cultural precisa ser bem trabalha- do no sentido de preservar os aspectos positivos e de desestimular outros danosos ao meio ambiente como o fogo. (TOCANTINS, 2003)

Dentre as providências adotadas pelo NATURATINS em conjunto ao ICM- Bio19 com a criação do PEJ está o Protocolo do Fogo, que promove ações de comba-

17 Diomar Ribeiro Gomes é uma das anciãs de Mumbuca. 18 Segundo “Tia Nêi”, em entrevista à autora, foram quase dez anos de muita pressão do Governo. 19 Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.

TCCs 2019_2 --- 439 te aos incêndios florestais e controle às queimadas. Porém, durante anos os nativos foram obrigados a deixar a técnica de limpeza do solo de lado- algo que faz parte de sua cultura. Aldina Batista Dias dos Santos é a principal voz ativista das comuni- dades quilombolas do Jalapão e está presente em todos os processos territoriais e ambientais desde a criação da UC. Em entrevista para a autora, contou que muitos conflitos surgiram na época devido à falta de conhecimento sobre as leis (por parte dos locais) e a falta de respeito dos órgãos ambientais com as tradições dos locais. Outra medida que afetou o povoado foi a Portaria Naturatins n° 362, em vigor no TO desde maio de 2007. Ela estabelece regras para a coleta do Capim Dourado, estipulando sua colheita entre os dias 20 de setembro e 30 de no- vembro e fiscalização através de uma carteira de licença. Desde então, os nati- vos de Mumbuca reclamam que muitas pessoas não seguem as regras impostas, o que acaba os prejudicando.

Os campos limpos úmidos de ocorrência de capim-dourado são manejados com fogo, pois esta espécie é resistente à queimada e a sua floração é esti- mulada no ano seguinte à queima. Assim, é preciso regulamentar o uso de queimas controladas para o manejo de campos limpos úmidos, de forma a permitir a geração de renda e garantir que matas e outras vegetações sensíveis ao fogo não sejam queimadas. (MIRANDA, 2016)

2.3. Jornalismo Cultural Em Jornalismo Cultural no Século 21 (2015, p.31), Franthiesco Ballerini aponta a dificuldade em definir o termo “cultura”, já que abrange costumes e valores. Ressalta que na época de Voltaire e Kant20 era um conceito usado para designar civilização, processo de evolução moral e racional. Somente a partir do século XIX o conceito começou a migrar para o campo antropológico, voltando-se aos costumes dos povos, independentemente do saber acadêmico (BALLERINI, 2015). Em um país com tantos povos e etnias como o Brasil, a diversidade cul- tural deveria ser mais valorizada e aprofundada pela editoria de cultura dos veículos de comunicação. O entretenimento faz parte do espectro cultural da editoria, e o objetivo aqui não é distingui-lo ou diminuí-lo, mas sim deixar a crítica de que o Jornalismo Cultural que está sendo feito hoje é pouco voltado aos traços que formam a identidade cultural de nossa nação. Traços esses como as comunidades quilombolas e indígenas, que são pouco vistas pela grande mí- dia e pelo Estado. Ballerini (2015, p.33) lembra que a cultura tem importância vital no en- tendimento do comportamento humano ao longo da história. Para McCracken

20 Segundo Silva (1997), em citação de Ballerini (2015).

TCCs 2019_2 --- 440 (2003)21, “a cultura detém as lentes através das quais todos os fenômenos são vistos”, porém ela se manifesta das mais diferentes formas, e, por isso, alguns autores dividiram-na em popular, erudita e de massa. Não é novidade que a internet coloca em cheque a comunicação impressa cada dia mais. Com isso, é claro que o Jornalismo Cultural também mudou radicalmente, já que acompanha as alterações estruturais do momento. Basica- mente, é uma editoria em crise de identidade, como diz Cerigatto (2015, p.40). Com relação à Comunidade Mumbuca, é importante citar que não acon- tece apenas um abandono social por se tratar de uma cultura popular, mas tam- bém por se tratar de cultura negra, indígena e quilombola. Como já foi comen- tado, a falta de estudos concretos sobre o povoado, suas origens e costumes, é alarmante. Não existe um livro que aborde Mumbuca aprofundadamente, por se tratar de publicações mais fotográficas do que literárias. Não há também ne- nhum documentário ou filme oficial, a não ser alguns poucos vídeos informais no YouTube. Na televisão, as reportagens realizadas focaram a natureza do Jala- pão, e não os povos que ali vivem em condições desfavoráveis e em constante atrito com as organizações ambientais. Em novembro desse ano, o Jornal da Record lançou a série As belezas do Jalapão. Como o nome já diz, as pessoas não são seu foco. O episódio onde aparece Mumbuca é, na realidade, sobre o Capim Dourado, mas não aborda as histórias por trás dele ou algo além. “Os documentários dão-nos a capacidade de ver questões oportunas que necessitam de atenção”, pontua Nichols (2010, p. 26). Todos sabem que ainda existem comunidades quilombolas, isoladas não apenas territorialmente do res- to da civilização, mas culturalmente também. A Comunidade Mumbuca, como muitas outras, possui estilos de vida e tradições desconhecidas pela maior par- te das pessoas. Os problemas que sofrem relacionados a reconhecimento de terra, preconceito, saneamento básico, não chegam aos ouvidos alheios.

2.4. Documentário Etnográfico e Linguagem Durante a visita da realizadora desse projeto à Mumbuca, diversas ques- tões sobre a abordagem do produto final foram levantadas. Como retratar aquela realidade de maneira atraente ao espectador? Como conquistar a con- fiança de pessoas que são receosas, pois já viram sua história ser distorcida? Como organizar os mais de 15 depoimentos? Como participar do filme e rela- tar a experiência pessoal da diretora? Bill Nichols, em Introdução ao Documentário (2010), diz que todo filme é um documentário, mesmo as mais extravagantes ficções. Isso porque tudo re- flete uma cultura. Para ele, os documentários transmitem um conceito mesmo

21 Em citação de Ballerini (2015).

TCCs 2019_2 --- 441 que indiretamente. É, portanto, a combinação do subjetivo e do objetivo que forma um documentário, e a forma como o “outro” é retratado é reflexo da ética do jornalista. O cineasta deve se perguntar sobre o que ele vai falar (algo de interesse comum a todos), de quem ele vai falar (lembrando que o telespec- tador não possui laços com a personagem), e para quem ele vai falar. José da Silva Ribeiro (2007) fala que o filme etnográfico funciona como arquivo de uma enciclopédia sobre as sociedades, e que descreve as técnicas, o habitat, o artesanato, as formas de agricultura e os rituais de um povo. Para Eliot Weinburger, o “cinema etnográfico pode ser um subgênero do documentário ou um ramo especializado da Antropologia e equilibra-se precariamente nos limites de ambos” (RIBEIRO, 2007, p.10). Dessa forma, Quilombo Dourado é classificado como tal. Jean Rouch é um dos pais do cinema etnográfico da França e do mundo. Fundou um comitê cujo principal objetivo era criar uma ponte entre a antropo- logia e o cinema. Ele conta22 que é normal reduzir, por exemplo, um dia inteiro de filmagens a alguns segundos de filme. Quando a montagem dos filmes com sincronização de som e imagem se tornou possível, questionou-se o que era realidade, e com isso surgiu o termo “cinema-verdade”. A questão é que, a partir do momento que fragmentos das filmagens são selecionados e organizados, a história muda. É por isso que “nos filmes etnográficos e documentários, a ‘realidade’ será sempre um ‘ponto de vista documentado’, como dizia Jean Virgo, autor do filme À propos de Nice (1929)” (PEIXOTO, 1999, p.102). A linguagem documental permite que o autor explore o lado imagético, poético e criativo do produto, sem interferir na credibilidade- imposta através dos relatos de personagens, documentos e registros. Diferente da notícia, o documentário não trata necessariamente de temas atuais. Não é pautado pelo imediatismo, e, por isso, explora os assuntos com mais profundidade. Nichols (2010) relata que um documentário não necessariamente perten- ce a apenas um gênero- observativo, expositivo, poético, reflexivo, performáti- co, participativo. No caso de Quilombo Dourado, a obra possui traços poéticos e participativos, pois utiliza um padrão mais livre de imagens, trabalha mais com as emoções e a diretora é uma personagem ativa no enredo. Quanto à abordagem narrativa, a peça possui traços típicos do chamado Jornalismo Literário23 (JL), gênero este muito caracterizado pelos filmes de 22 Em entrevista para Ribeiro (2007, p.34). 23 Começou a ser chamado como tal na década de 60, mas o gênero começou a crescer na década de 1960, nos EUA, quando era conhecido como New Journalism. Tratava-se de uma nova forma de fazer reportagens, fora dos padrões convencionais e inspirada pelos romances do século 19, segundo Tronco (2007).

TCCs 2019_2 --- 442 Eduardo Coutinho24. Tronco (2007) cita que a partir dessa época as reporta- gens se tornaram mais extensas e intensas. Permitiam que o jornalista se en- volvesse com a produção em outro nível, passando semanas em um ambiente observando os detalhes imperceptíveis em um primeiro momento. O próprio Jean Rouch agregou ao gênero uma nova pitada; a narração em off feita por ele mesmo. Portanto, é do Jornalismo Literário que surge o Cinema-Verdade. Aspectos do JL que podem ser notados em Quilombo Dourado são a maneira como a autora interagiu com as personagens, a todo momento as dei- xando confortáveis e mantendo a pauta sempre aberta para que eles falassem o que quisessem, e a imersão da autora naquele ambiente durante dias, criando uma relação além da repórter-entrevistado. Além disso, os offs autorais e o uso de símbolos para contextualizar as personagens também se relacionam ao JL.

DESENVOLVIMENTO DA PEÇA O intuito desse documentário foi apresentar a Comunidade Quilombola Mumbuca como um povoado que cresceu em uma realidade paralela ao resto do Brasil, longe do capitalismo e até mesmo do turismo durante dois séculos. A proposta foi trazer personagens ícones do quilombo para discutirem sobre sua história, seus costumes, religião e dificuldades com relação aos limites impostos pela criação do Parque Estadual no Jalapão. Como Jean Rouch dizia, um filme é um fragmento de uma realidade, “um ponto de vista documentado, a partir do momento que um dia de filmagem se transforma em alguns minutos na edição do material”25. Quando pensei no roteiro para a montagem de Quilombo Dourado, com 15 entrevistas em mãos e diversos temas sendo abordados, não sabia decidir “que história iria contar”. Poderia ter seguido inúmeros caminhos, cada um conduzindo a uma abordagem completamente diferente. Então, escolhi contar a história do povoado, do Capim Dourado, da questão territorial e da cultura de Mumbuca. Uma versão entre várias que esse documentário poderia ter tido. Com o tema decidido, a primeira coisa que fiz foi tentar entrar em con- tato com algum habitante da comunidade. Mandei e-mail à Associação do Ca- pim Dourado de Mumbuca, mas não tive resposta. Alguns dias depois, recebi uma solicitação de amizade no Facebook de Ilana Cardoso, que trabalha com turismo em Palmas, é quilombola e membro da Associação. Contei a ela sobre minha proposta de TCC e ela se mostrou muito animada em ajudar. Eu já sabia que a colheita do Capim Dourado aconteceria de 20 de setem- 24 Dirigiu documentários como Cabra Marcado para Morrer; Santa Marta; Duas Semanas no Morro; Babilônia 2000 e Santo Forte. 25 Em entrevista à Ribeiro (2007).

TCCs 2019_2 --- 443 bro a 30 de novembro, e que dos dias 11 a 16 de setembro haveria a Festa da Colheita, portanto teria que realizar as filmagens ainda no sexto semestre do curso, sem um orientador. Infelizmente, já estávamos no mês nove, e o preço das passagens aéreas estava fora do meu orçamento. Minha preocupação era conseguir filmar os campos cheios de capim, mas Ilana disse que, indo em novembro, não haveria problema. Assim, programei a viagem para 31 de outubro a 08 de novembro. Para minha surpresa, só quando cheguei lá descobri que na verdade as veredas não estavam tão fartas, e não consegui capturar as imagens que pretendia. A princípio, gostaria de ter embarcado nessa jornada sozinha, mas logo percebi que viajar ao Jalapão não é tarefa simples, principalmente para uma mu- lher no Brasil. Assim, meu pai prontamente se ofereceu para me acompanhar, até porque seu trabalho (Consultor Ambiental) exige que ele conheça o país todo. Foi uma ajuda imensa tanto para carregar os equipamentos quanto como companhia, mas realizei as gravações totalmente sozinha. Eu não sabia o que esperar dessa viagem. Ainda estava em fase inicial deste relatório e não tinha uma ideia concreta do que eu queria mostrar no documentário. Com muita pesquisa e a ajuda de Ilana, levantei alguns tópicos importantes que gostaria de abordar, mas não fiz um pré-roteiro, já que não sabia quem seriam minhas personagens. A ideia sempre foi me hospedar na casa de alguém do povoado para me aproximar mais da realidade e do cotidiano daquelas pessoas. Descobri então que Dona Antônia, tia de Ilana, havia montado uma pousada em sua própria casa; a Pousada e Restaurante da Tonha. Foi lá que me receberam da melhor forma durante aquela semana. Poucos dias antes da viagem, eu e meu pai descobrimos que não é per- mitido alugar um carro nas locadoras de Tocantins com menos de 21 anos de idade- e meu pai não possuía carteira de motorista. Dessa forma, Ilana me indicou um guia que poderia nos levar até o povoado; o Damião. O único jeito de chegar à Mumbuca é através de uma estrada de terra, sem iluminação ou sinal de celular, com um carro 4x4, já que o caminho é complicado. São mais ou menos 8 horas e 30 minutos de viagem (340 km). Só posso dizer que ficamos gratos por ter um guia.

Gravações Todas as filmagens aconteceram entre 31 de outubro e 08 de novembro de 2018, quando eu ainda cursava o sexto semestre da faculdade, e não tinha orientador. A busca por personagens foi feita 100% in loco, e eu não havia um pré-roteiro.

TCCs 2019_2 --- 444 Levei como equipamento duas câmeras alugadas da faculdade, uma câme- ra própria para fotos e um microfone de lapela. Apesar de ter levado baterias extras das máquinas alugadas, duas delas estavam viciadas26 e eu tive o trabalho dificultado. Na comunidade, só há sinal de internet na escolinha27 e o 4G nem existia. Além disso, as tomadas elétricas eram poucas, e eu só conseguia recar- regar as máquinas durante a noite. Meu primeiro e ultimo dia de viagem foram de estrada, apenas. No se- gundo e terceiro dia encontrei obstáculos: quando estava visitando a Loja do Capim Dourado, conversei com a mocinha que trabalhava no caixa. Ela tinha 18 anos. Logo me perguntou o que eu estava fazendo lá, e quando eu disse que gravaria um documentário sobre a comunidade para meu TCC de Jornalismo, ela fechou a cara. Fez diversas perguntas e disse que alguns pesquisadores já haviam feito trabalhos sobre o povoado, distorcendo a realidade. E o pior, nunca mais voltaram para mostrar o resultado do estudo, eles tiveram que descobrir sozinhos. Esclareci a ela que meu objetivo era contar uma história e nada mais. Por isso havia escolhido o formato de documentário, para que eu contasse tudo da maneira mais realista possível. Ela entendeu, mas disse que o que a deixava chateada era que eles (Mumbuca) não eram um objeto de estudo. Eram pes- soas normais, apenas. Esse ocorrido me fez pensar muito em Janaína Amado (1998 apud ROUCHOU, 2003, p.4), que dizia que o entrevistador deve sempre lembrar que a conversa exibida trará consequências ao entrevistado. Por isso, é preciso ética, respeito e comprometimento. O documentarista está contando uma história real que pode trazer complicações a suas personagens. Jean Rouch28 diz que “no filme etnográfico, para mim, a coisa mais impor- tante é o feedback, isto é, a devolução às pessoas que filmamos do filme que fizemos sobre elas”. Por isso, prometi a mim mesma que voltaria ao Jalapão em 2020 para mostrar em primeira mão às pessoas que me ajudaram e me acolhe- ram, o resultado do trabalho. Também pretendo continuar a edição deste filme, para que eu possa divulgar futuramente um produto mais completo. Voltando à viagem, outro empecilho que encontrei foi o fato de que pre- cisaria da autorização do presidente da Associação do Capim Dourado para começar as entrevistas. Por conta dos ocorridos, eles têm receio de qualquer

26 A bateria de uma câmera está viciada quando sua carga descarrega rapidamente, sem atingir seu potencial total. No caso da câmera que levei, a bateria se esgotava em aproxima- damente três minutos. 27 Mumbuca possui uma escola que vai até o ensino fundamental, e lá é o único lugar do povoado com Wi-Fi. 28 Em entrevista para Ribeiro (2007, p.41).

TCCs 2019_2 --- 445 pessoa de fora. Só pude encontrá-lo no dia seguinte, pois ele estava na roça. No começo ele parecia bem desconfiado, e demorou a entender que se tratava de um documentário. Dona Tonha me ajudou a ganhar sua confiança, e ele logo se animou com a ideia. Concedeu permissão, mas disse que eu teria dificuldade em obter as autorizações de uso de imagem e voz, pois lá todos são analfabe- tos. Realmente, tive de pegar as autorizações em vídeo, mas não consegui que todos os entrevistados o fizessem. Dessa forma, quanto eu retornar ao Jalapão, pretendo encontrar uma outra forma de adquirir as autorizações por escrito.

3.2. Entrevistas

Ao todo, foram 15 entrevistados. Procurei colocar o máximo de fontes no documentário, mas infelizmente a seleção do material teve que ser limitada ao tempo de duração do curta. Desde o primeiro dia, Dona Tonha e Damião me apresentaram para muita gente, todos muito simpáticos e receptivos. As conversas que tive com as pessoas enquanto não estava filmando foram muito especiais, e gostaria de as ter capturado, mas é aquela história: a maioria das pessoas se intimida com uma câmera, e acaba não se abrindo tanto.

OS ENTREVISTADOS FORAM: -Adelsino Pereira Gomes: agricultor e dono do Restaurante da Vila junto com sua esposa e filhos. -Aldina Batista Dina dos Santos: acompanha os processos territoriais das comunidades quilombolas do Jalapão e é casada com o pastor. -Antônia Ribeiro da Silva: dona da Pousada da Tonha e ex-vereadora de Mateiros (2005). -Damião Carlindo Saraiva da Silva: guia turístico da Rota Nativa Ecoturis- mo, morador de Mateiros. -Diomar Ribeiro Gomes (Santinha): artesã e responsável pelas cantigas de roda, tal como Maurício. -Emivaldo Rufo Cunha: conhecido como Feio Véio, se mudou para o Jala- pão em 1984 e se casou com uma quilombola de Mumbuca. É um dos fundado- res de Mateiros, onde possui a Pousada e Restaurante Beira da Mata. -Geiciane Ribeiro da Silva: filha de Dona Tonha e José, ajuda a manter a pousada. -Ilana Ribeiro Cardoso: nasceu em Mumbuca, estuda Turismo em Palmas e é guia na Rota Nativa Ecoturismo, que trabalha com o turismo de base comu- nitária na região. -José Ribeiro da Silva: marido de Dona Tonha, é agricultor.

TCCs 2019_2 --- 446 -Josilene Carvalho da Silva: é a dona e cozinheira do Restaurante Viola de Buriti. -Judite Ribeiro de Sousa: nasceu em Mumbuca, mas se mudou para Goiânia aos três anos de idade. É bordadeira profissional na máquina industrial. -Laurina Ribeiro da Silva: esposa de Adelsino cuida do restaurante e foi presidente da Associação do Capim Dourado por dois anos. Não é mais artesã por um problema de saúde. -Maureni da Silva Tavares: aos 36 anos, é mãe de doze e artesã. -Maurício Ribeiro da Silva: toca a viola de buriti e é o responsável pela maioria das cantigas de roda do povoado. Também cuida do Restaurante Viola de Buriti com sua esposa Josilene. -Noemi Ribeiro da Silva (Doutora): é a curandeira da comunidade desde criança. Aprendeu a “medicina do cerrado” com sua mãe, e é também artesã.

3.3. Linha Narrativa e Montagem da Peça O documentário Elena, de Petra Costa, serviu de inspiração para a produ- ção deste, tanto na construção de uma narrativa mais lírica e poética, quanto na captura das imagens e no texto dos offs, que funcionaram como fio condutor da história. Com o material bruto em mãos e as entrevistas decupadas, construir uma linha de pensamento foi mais difícil do que pensei. Realizei um roteiro, mas foi na mesa de edição que a história criou vida. Contratei o profissional Carlos Jar- dim para ajudar na edição, mas nada foi feito sem a minha supervisão. Diversos trechos, na verdade, foram obras minhas, assim como o teaser. Construir uma narrativa que seja poética e ao mesmo tempo inclua mui- tas personagens e falas não foi fácil, pois uma coisa é quase oposta da outra. Porém, acredito que eu tenha sucedido em criar um equilíbrio entre essas duas coisas. As imagens que gravei foram fundamentais para criar a atmosfera mais artística, tal como os offs incluídos posteriormente.

TCCs 2019_2 --- 447 CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes de mais nada, fiz este documentário para a Comunidade Quilombo- la Mumbuca, em resposta ao tratamento que me foi dado durante a semana em que estive lá. Cada uma das pessoas com quem interagi me recebeu de braços abertos dentro de suas casas me mostrando seus costumes e crenças, apesar de já terem passado por situações nas quais pessoas abusaram de sua confiança e distorceram os fatos. Por mais que tenha estudado sobre o local previamente, só entendi real- mente o que é Mumbuca durante a estadia. Sinto como se tivesse passado mais tempo no povoado, pois o vínculo que desenvolvi com aquelas pessoas foi maior do que eu poderia ter imaginado. Para mim, a experiência foi além da produção de um TCC. Foi pessoal. Tenho orgulho do meu produto final e, principalmente, de seu processo de criação. Durante as gravações, procurei deixar as pessoas confortáveis, pois não queria que ninguém se sentisse explorado ou objetizado. Claro que condu- zi as entrevistas, mas deixava minhas fontes falarem abertamente sobre o que quisessem. As entrevistas foram quase como conversas normais que tivemos off câmera. Inclusive, sinto que falhei no quesito direção, pois usei tanto da naturalida- de e espontaneidade que dirigi muito pouco as filmagens. E, se o tivesse feito, as cenas e enquadramentos, além das imagens de apoio, teriam ficado melhores. Na edição, senti falta de algumas imagens de cobertura justamente por conta disso. Aprendi com esse trabalho a não ter vergonha de dirigir, pois isso é uma coisa normal dos documentaristas e contribui muito com o resultado final. Uma questão em que fui bem-sucedida nesse trabalho foi introduzir Mum- buca em todos os sentidos. As trilhas sonoras utilizadas foram ou captadas in loco – pois a músicalidade faz parte de seu dia a dia – ou retiradas dos CDs de Maurício e Santinha, que me foram dados justamente para essa finalidade. Os sons da comunidade contribuem demais para levar o telespectador àquela atmosfera. Decidi incluir narrações feitas por mim para conduzir a história, e busquei colocar um pouco da minha experiência pessoal em uma delas, feita em primei- ra pessoa. Porém, muitas outras vivências especiais poderiam ter sido relatadas, apenas escolhi não as colocar por conta do tempo de duração do curta. Uma delas foi o aniversário de Ilana, onde todos do povoado se uniram em uma prainha, cozinharam juntos, cantaram e rezaram. Lá, ao invés de cantar parabéns com bolo e velinhas, todos se dão as mãos em uma roda e dizem palavras bo- nitas ao aniversariante. Depois, rezam cada um ao seu modo, mas juntos e em voz alta. É encantador e assustador ao mesmo tempo. Esse trabalho foi essencial para minha formação como jornalista e me fez

TCCs 2019_2 --- 448 aguçar ainda mais minha paixão por audiovisual. Sempre gostei de fotografia, mas antes das gravações desse documentário eu nunca havia gravado nada, mui- to menos editado. E quanto ao universo cultural, sempre gostei muito, por isso estagiei em uma revista de viagens de jornalismo literário e pretendo continuar nesse ramo. Meu objetivo era mostrar um pouco dos costumes de Mumbuca e a ques- tão territorial, além de suas belezas naturais, e acredito que tenha consegui- do o que queria. Na edição, apesar de não ter conseguido incluir a pegada poética tanto quanto queria, fiquei feliz com o resultado, que uniu o artísti- co e o jornalístico na medida do possível dentro dos 25 minutos máximos de duração. Portanto, minha pergunta-problema foi respondida positivamente. “Como abordar jornalisticamente e de forma poética o objeto de pesquisa mencionado?”: deixando com que suas fontes abordem abertamente os temas que acreditam ser necessários; capturando imagens esteticamente agradáveis; incluindo momentos “de respiro”, com silêncio ou trilha; definindo muito bem o foco que será dado ao filme; colocando um toque pessoal ao documentário; tendo sensibilidade para saber quando filmar e quando não; com respeito e ética, acima de tudo. Com esse curta, acredito que pude contribuir na divulgação de um tema pouco abordado pela editoria de cultura, apesar de se tratar de um importan- te aspecto da identidade de nossa nação. O documentário também ajudará a despertar nos telespectadores uma ideia diferente sobre o que é o Jalapão, que não é feito apenas de fervedouros, cachoeiras e dunas de areia.

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TCCs 2019_2 --- 453 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 454 TROPEIRISMO NO VALE DO PARAÍBA Um elo entre o presente e o passado

ANA JULIA DE OLIVEIRA PALOSCHI Orientador: Arnaldo Lorençato.

TCCs 2019_2 --- 455 RESUMO

Todos os dias nos reinventamos como indivíduo, conhecemos novas culturas e absorvemos novos costumes na sociedade. Esse cenário pode trazer ques- tionamentos sobre as nossas raízes e culturas. Impulsionado por esse pro- pósito, este trabalho foi criado com o intuito de mostrar como a cultura so- brevive em meio a tanta novidade que diariamente afeta a vida da população. Refazendo a andança de um tropeiro no Vale do Paraíba e mostrando como a cultura caipira ainda faz parte da vida de quem mora nessas cida- des, é possível notar que muito dos costumes ainda é mantido e preservado por pessoas que se importam com a tradição que vem desde o século XIX. Deste modo a tradição tropeira é enaltecida em variáveis vertentes como a gastronomia, a música e a relação com a fé.

Palavras-chaves: Documentário; Cultura; Jornalismo; Tradição; Tropeiro; Tro- peirismo; Vale do Paraíba

ABSTRACT Every day we reinvent ourselves as individuals, know new cultures and absorb new costumes in society. This structue can raise questions about our origin and cultures. Driven by this, this work was created in order to introduce how culture survives in the midst of so much news that daily affects the life of the population. Redoing a tropeiro’s wanderings in the Paraíba Valley and showing how the rustic culture still goes through the lives of those who live in these cities, it is possible to notice that many habits are still kept and preserved by people who care about the tradition that comes from the nineteenth century. This way the tropeiro’s habits is praised in different ways like gastronomy, music and relationship with faith.

Keywords: Documentary; Culture; Journalism; Tradition; Tropeiro; Tropeirismo; Paraíba Valley

TCCs 2019_2 --- 456 INTRODUÇÃO Este projeto teve como finalidade a produção de um documentário sobre a cultura caipira no Vale do Paraíba. Mesmo com a tecnologia que a cada dia se reinventa, ainda é possível en- contrar lugares que fazem questão de preservar as suas raízes. Exemplo disso é o Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, às margens da Rodovia Presiden- te Dutra (BR-116). Aziz Ab’saber, geógrafo nascido na região, explica que esse nome é por conta da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul e delimita apenas uma parcela socioeconômica localizada no início do rio que, mais a frente, che- ga a cortar quase todo o estado do Rio de Janeiro (AB’SABER, 2007). De acordo com o último levantamento feito em 2010 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Vale do Paraíba é formado por 39 muni- cípios e seu espaço possui 16.180km². Até a data do estudo, isso representava mais de 5% da população do Estado de São Paulo. Por estar em uma boa localização e contar com terras ricas em minerais, o plantio do café transformou a região e a deixou internacionalmente conheci- da por ser o lugar que mais exportava café no mundo no século XVIII. Apesar dessa cultura ter início antes da época cafeeira, foi após o declínio deste mo- mento que a fase tropeira passou a ser mais que uma atividade econômica local e, nascia ali, um novo modo de vida: o caipira. Em toda a extensão regional, a atividade tropeira tornou-se um hábito e com regras bem pontuadas. Em toda essa área e mais um pouco da Serra da Bocaina, o tropeirismo foi marcado por costumes peculiares e por abranger diversos tipos de atividades comerciais. Cavalos, burros e mulas eram o meio de transporte encontrado para fazer o translado de uma cidade a outra com mercadorias para vendas, escambos e desbravar novos caminhos. O caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz ‘caí’ que quer dizer: ‘gesto de macaco ocultando o rosto’. ‘Capipiara’, que quer dizer o que é do mato. ‘Capiã’, de den- tro do mato: faz lembrar o ‘capiau’ mineiro. ‘Caapi’ — trabalhar na terra, lavrar a terra — ‘caapiára’ lavrador. E o caipira é sempre lavrador, segundo Cornélio Pires (1987). Por estarem sempre à procura de novos lugares com terras férteis e movimentações comerciais da época, os tropeiros são considerados como os responsáveis pela abertura das estradas que hoje cortam a região. Desde en- tão foram herdadas muitas tradições que resistem e são presentes na vida da população local. Desse modo, como um documentário pode revelar o modo como a cul- tura caipira resiste no Vale do Paraíba através de um caminho feito por um tropeiro? Visando responder essa questão, este trabalho teve como objetivo, pri-

TCCs 2019_2 --- 457 meiramente, mostrar como atualmente resiste, em muitos momentos de forma intuitiva, a memória construída sobre essas pessoas que ajudaram na atual con- figuração regional. Também mostrar como costumes atuais se misturaram com os costumes tropeiros e assim, apresentar como a tradição se mantém viva e se faz necessária para conhecer as cidades que pertencem ao Vale do Paraíba e a história dessa população tão representativa no estado de São Paulo. Para realizar o meu objetivo, refiz o trajeto de vida de meu bisavô e tro- peiro, José Rodrigues de Souza, que nasceu em Silveiras e passou por algumas outras cidades. O início foi sua cidade natal, em seguida passei por Lavrinas e, por último, São Luiz do Paraitinga finalizando onde ele terminou sua vida. Assim, apresentei detalhes da história regional de uma maneira mais ampla, entretanto, tendo como fio condutor um motivo pessoal e familiar.

A ideia de falar sobre um tópico ou assunto, uma pessoa ou indivíduo, empresta um ar de importância cívica a esse trabalho. (...) Comparada com “que história vou contar?”, a pergunta “sobre o que vou falar?” dirige nossos pensamentos para a esfera pública e para o ato social de falar aos outros sobre um tópico de interesse comum. Nem todos os documentários adotam essa postura, mas ela está entre as formas mais comuns de estruturar um documentário. (NICHOLS, 2005, p. 25)

O intuito do estudo foi mostrar como cada cidade onde José passou tenta manter a tradição caipira que em minha família ainda se faz muito presente. Além de ser um tema que marcou a história do estado de São Paulo e suas configurações atuais.

No documentário, o estilo deriva parcialmente da tentativa do diretor de traduzir seu ponto de vista sobre o mundo histórico em termos visuais, e também de seu envolvimento direto no tema do filme. Ou seja, o estilo da ficção transmite um mundo imaginário e distinto, ao passo que o estilo ou a voz do documentário revelam uma forma distinta de envolvimento no mundo histórico. (NICHOLS, 2005, p. 77)

O produto final foi elaborado para conseguir transmitir informação, au- mentar o conhecimento cultural de maneira simples e de forma transparente para diversos tipos de público. O documentário representa o mundo histó- rico ao moldar seu registro fotográfico de algum aspecto do mundo de uma perspectiva ou ponto de vista diferente (NICHOLS, 2005). Ou seja, um docu- mentário jornalístico pode ser um dos meios mais adequados para o registro histórico e a construção da memória coletiva.

TCCs 2019_2 --- 458 1. REFERENCIAL TEÓRICO

1.1 Cultura Popular A cultura popular é considerada pelo conjunto de diversos elementos específicos de uma região ou sociedade. O que caracteriza a cultura pode ser encontrado pela gastronomia, literatura, arte, danças, músicas, festas e etc.

O complexo dos modos de vida, dos usos dos costumes, das estruturas e organizações familiares e sociais, das crenças do espírito, dos conhecimentos e das concepções dos valores que se encontram em cada agregado social: em palavras mais simples e mais breves, toda atividade do homem entendido como ser dotado de razão. (SATRIANI, 1986, p. 41)

Entre linguagens que definem certa população está a música. No caso do caipira ou caboclo, como é chamado em outras regiões, para ajuntar os vizinhos e se divertir depois de um dia de trabalho com agricultura, na roda de fogo, to- cavam viola e cantavam modas. A viola caipira é o coração da música brasileira (NEPOMUCENO, 1999).

Esculpida num toco de pau com dez cordas de tripa e tocos cravelhais, deu forma às melodias e cadência às poesias que aos poucos definiram o perfil musical do povo da terra. (NEPOMUCENO, 1999, p. 55)

A cultura nacional e a cultura regional – no Brasil, por exemplo, defen- de-se a ideia de várias culturas regionais e não de uma cultura heterogênea – também produzem sentidos sobre a identidade dos indivíduos. Cada região brasileira é marcada pela sua gastronomia.

Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o ingere. (DA MATTA, 1986, p.56)

1.2 Cultura Popular no Vale do Paraíba

O Tropeirismo marcou a alteração no modo de viver de uma população. A atividade foi fundamental para a expansão comercial e crescimento popu- lacional no que hoje é conhecido como Vale do Paraíba. O papel do tropeiro, no século XIX, pode ser visto como a síntese entre dois fatores: tecnologia rudimentar e grande empreendimento mercantil, pois, devido ao traçado das estradas que conectam o litoral ao interior do Brasil – mal conservadas, extre-

TCCs 2019_2 --- 459 mamente estreitas e sinuosas –, apenas a mula de carga reunia condições de trafegar pelos tortuosos caminhos que serviam ao escoamento da produção cafeeira para os portos, de onde seguiam para os mercados consumidores no exterior (FRANCO,1983). Por conta das más condições de trajetos e necessidade de descanso tanto do tropeiro quanto dos animais, eram erguidos ranchos, locais que serviam para abrigar a tropa no final de cada dia.

Depois de estabelecidos os ranchos, os fazendeiros não tardavam em erguer uma capela, símbolo de sua devoção, em seguida instalava-se uma pequena venda para suprir as necessidades básicas dos tropeiros e viajantes em geral que por ali trafegassem. Depois, algumas famílias fixavam moradia no entorno e estava dado o ponto de partida para o estabelecimento de mais uma vila no interior do país. (ALMEIDA, 1981, p.19)

A relação do tropeirismo está intimamente ligada à gastronomia que mar- ca a região até os dias de hoje. Naquela época, era comum comer aquilo que cultivava em seus próprios territórios, o que conhecemos hoje como agricultu- ra de subsistência. Dessa forma, o “cozinhar” era simples, usava-se praticamen- te aquilo que é considerado como natural, derivado da terra. As receitas típicas da região são marcadas por fortes temperos e uso de muita carne e legumes. Muitas dessas receitas são comumente lembradas apenas em festejos pontuais, como é o caso do fogado, prato servido com arroz, feijão, carne cozida com batata e macarrão, em São Luiz do Paraitinga. Ainda assim, São Paulo está a perder a sua tradição culinária e devemos recuperá-la (BELLUZO, 2008). A fes- ta do Divino Espírito Santo que ocorre anualmente no mês de junho, onde é dis- tribuído o prato típico para as pessoas, é uma manifestação que, segundo João Leiva (2014), pode ser consideradas como fato social, conjuntos de cerimônias, de rituais coletivos que visam a celebrações de cunho religioso ou profano que durante a realização, as pessoas não são apenas observadores, consumidores, mas sim, sujeitos das ações, atores.

As comunidades, por vezes um número inimaginável de pessoas, se envolvem em todas as etapas: na preparação, que não raro, significa meses de trabalho, no cerimonial (ao mesmo tempo de fruição e de atuação), no rescaldo e no retorno à rotina. Nessas festas estão inseridos os folguedos – congo ou congadas, moçambiques, folias ou caia-pós -, representações que se dão por vezes em cortejo. Têm por cenários ruas e praças públicas das cidades, espe- cialmente nos dias de festa em louvor dos santos padroeiros e do calendário litúrgico ou profano. (LEIVA, 2014, p. 142)

TCCs 2019_2 --- 460 Essa festa é um grande exemplo de união de diferentes formas de cultura: ela une apresentações e cultos religiosos, gastronomia típica e apresentações musicais e mostra a cultura paulista tradicional. Assim é que tem estado em evidência aquela que convencionamos chamar a face recatada de São Paulo, sua cultura identitária, que se espelha em tantos traços multifacetários. É um universo cultural dinâmico, que resiste aos tempos e se renova constantemente (LEIVA, 2014).

1.3 Documentário

O documentário é uma linguagem audiovisual que oferece mais liberdade para desenvolvimento das ideias e também maior liberdade estética em relação ao formato reportagem, composto de cabeça, off, sonora e passagem. A primeira etapa para construir um produto neste formato é realizar pes- quisas sobre o tema, assim como fazer seleções de informações para ver o que será cabível à peça. Segundo Rosenthal, o que direciona a pesquisa é a hipótese de trabalho, ou seja, “dentro dos limites de seu assunto, você deve tentar des- cobrir tudo aquilo que for dramático, atraente e interessante” (ROSENTHAL, 1996, p.37). Apresentando fatos e experiências reais, o documentário é um produto que exige maior flexibilidade e cuidado durante a captação e edição do con- teúdo, para deixar esclarecida a mensagem ao receptor sem distorcer qualquer realidade.

Documentários de arquivo, históricos ou biográficos, podem ser “escritos” antes do início das filmagens. O mesmo já não ocorre se a abordagem do assunto exigir o registro de um evento que não esteja necessariamente vincu- lado à vontade de produção do filme, como documentários que exploram um corpo-a-corpo com o real, aspecto que define a estilística do Documentário Direto [...] Essa ausência de roteiro, às vezes valorizada e defendida naquilo que seria a diferença principal entre documentário e ficção, antes de ser um facilitador contribui para gerar dúvidas freqüentes entre aqueles que buscam iniciar carreira como documentaristas. (PUCCINI, 2009, p.177)

Em comum com o jornalismo, o documentário tem o foco de retratar a realidade, investigando, pesquisando e apresentando o conteúdo com veracida- de. Desse modo, o documentário muitas vezes é fundamentado nas relações subjetivas do passado e presente, mostrando como episódios que aconteceram anos atrás podem estar presentes no dia a dia.

TCCs 2019_2 --- 461 2. DESENVOLVIMENTO DA PEÇA 2.1 Pesquisa, apuração e execução

Primeiramente, a metodologia que se utilizou para entender o que é o tema em si foi a pesquisa e a apuração de dados através de livros que narram a história de toda uma população. Rosa Jamile Japur, Monteiro Lobato e George Oliven foram alguns dos autores lidos para compreender mais sobre a cultura abordada. Esta pesquisa se fez necessária para entender a identidade cultural caipira e tropeira e os elementos simbólicos que nele estão envolvidos, deixan- do de lado qualquer ligação emocional relativa ao tema. Após, ter maior embasamento teórico e um repertório mais rico sobre o assunto, consegui desenhar quais seriam boas opções de entrevistados e o que eles poderiam agregar ao meu trabalho. Estudei possibilidades nas três cidades do Vale do Paraíba escolhidas (Silveiras, Lavrinhas e São Luiz do Paraitinga), e em cada uma tentei dar atenção a um tema diferente, mas todos com o mesmo ponto em comum: o tropeirismo e a cultura caipira. A primeira cidade, situada mais ao fundo do Vale, Silveiras, foi usada para introduzir ao assunto e deixar em destaque a relação com a gastronomia. Por isso, entrevistei o chef que hoje cuida do Restaurante do Ocílio, conhecido pela farofa de Içá feita através da mistura de farinha e Içá frito na banha de porco. Na segunda, Lavrinhas, escolhi falar sobre música, focando na viola caipira, por ter sido palco de mais de 15 edições do Festival de Viola Caipira realizados pelo Sr. João, um de meus personagens. Por último, São Luiz do Paraitinga, foi escolhida para fechar o roteiro com duas entrevistas sobre a ligação da fé com as mani- festações culturais que ainda se mantém presente. Para essa parte, entrevistei o casal Sr. Zinho e Dona Rosa, que ajudam há mais de 20 anos o preparo da Festa do Divino. Esses três aspectos são referência na vida do caipira local. Com o intuito de fazer esse raciocínio predefinido ser desenrolado sem amarras durante todo o documentário, busquei utilizar uma linguagem simples e leve. Além disso, tive a intenção de fazer que a narrativa falasse por si mesma, sem necessitar da intervenção constante de um narrador em off ou de muitas legendas. Para a execução, utilizei a técnica do documentário participativo, que se- gundo Nichols (2005) enfatiza a interação do cineasta e tema. A ideia é enfa- tizar a verdade como se vê e não uma verdade manipulada por atores e cenas, essa técnica ajudou quando os entrevistados sentiam-se envergonhados por estar com uma câmera por perto. Também utilizei técnicas do documentário observativo. Ele representa, “a vida no momento em que ela é vivida” (NI- CHOLS, 2005, p. 150). Os agentes sociais, ou personagens, excluem a presença

TCCs 2019_2 --- 462 do cineasta, tornando a realidade mais convincente, mais pura, porém essa rea- lidade sempre estará sob o ponto de vista de alguém. Foi assim, observando uma atividade no dia 19 de junho, por volta da meia noite, enquanto as carnes eram cortadas para o preparo do fogado, em São Luiz, que conheci uma de minhas melhores fontes, o Sr. Zinho. Para realizar as gravações utilizei da câmera Nikon D7200, a câmera de um Iphone X e um Samsung S10. Também fiz imagens de apoio com aGo Pro, no entanto, comparada as outras imagens e pelo estilo da peça, não acredito que tenham ficado boas o suficiente e, por isso, preferi deixa-las de lado. Grande parte das imagens captadas e utilizadas no documentário foi feita durante o mês de setembro. Já havia gravado todo o material que seria necessário ante- riormente, mas, infelizmente, fui roubada no dia 11 de setembro e todo meu conteúdo foi levado, ficando apenas algumas imagens de apoio da festa de São Luiz do Paraitinga. Também por conta disso, contei com ajuda de meu padrasto, Gerson Monteiro, para a captação de novas imagens. Mesmo assim decidi que iria refazer o que fosse necessário para comple- tar o trabalho. Contei com a ajuda de meus pais e viajei novamente para todas as cidades, onde refiz todas as entrevistas e novas imagens. Com isso, foram cerca de seis finais de semana captando o conteúdo.

2.2 Entrevistas A abordagem usada com os personagens na maioria das vezes foi através da boa observação e conversa. Como o tema permite uma imersão, aproveitei que a maioria das cidades que formam o Vale Histórico no Vale do Paraíba são construídas ao redor de praças, e as visitei em busca de fontes. Afinal, estes são os lugares onde as pessoas costumam se encontrar e conversar, principalmente os idosos, que certamente tem uma boa experiência de vida e bagagem para dividir conosco. Por tratar de um assunto sem grandes pontos delicados, não encontrei resistência por parte das pessoas abordadas para as entrevistas. Ao contrário, todos foram gentis e muito acolhedores. Emocionei-me em alguns momentos, principalmente quando todos se mostraram solidários e disponíveis, mais uma vez, para gravar o material que já tinha sido feito uma vez. As entrevistas foram feitas na casa de cada entrevistado. No total, foram cinco entrevistados que encontrei nessas visitas de imer- são e minha avó, Arailde Oliveira, 76 anos, como fio condutor e contado a história de seu pai, José Rodrigues, vivendo em tropas. Eles são: Silveiras - Mateus Araújo, 33 anos, chef e dono do Restaurante do Ocílio; Lavrinhas – João Luiz de Oliveira, 71 anos, agricultor aposentado e Reinal- do Oliveira, 34 anos, engenheiro;

TCCs 2019_2 --- 463 São Luiz do Paraitinga – José Eugênio Filho (Zinho), 82 anos, agricultor aposentado e Rosa Maria Antunes, 64 anos, professora aposentada. A minha procura foi por personagens que não tivessem títulos de espe- cialistas no assunto. Queria trazer um tom de quem realmente viveu e vive a vida caipira de forma natural e intuitiva. Os mais novos, por exemplo, Mateus e Reinaldo, de 33 e 34 anos respectivamente, apesar de não terem vividos os anos em tropas com pais ou avós, foram criados com essa cultura e trabalham para mantê-la viva. De alguma forma e não muito distante, todos os personagens tem relação com o tropeirismo: os mais velhos, como minha avó, Sr. João e Sr. Zinho, vive- ram as andanças em tropas com a família. Os mais novos cresceram e respira- ram a mesma cultura, que acreditam ser fundamental sua preservação.

2.3. Edição

Depois de captar as imagens, sonoras, entrevistas e dados, contei com a ajuda de Ana Carolina Freitas. Nesta parte do processo de construção do produto, ela me auxiliou na sobreposição e cortes das entrevistas com imagens ao fundo, deixando que a história fosse narrada pelos personagens e trazendo um tom de poesia para o material. O mérito das reflexões que a relação das imagens e do áudio que um documentário pode causar é predominantemente da edição e, por isso, escolhi contar com um apoio. Os sons tem muita importância, principalmente os que remetem a cultura caipira: o barulho dos animais, o andar e até mesmo o silêncio são detalhes que quis atenuar na edição colocando em conjunto com imagens que também transmitem essa riqueza de detalhes. Este meio também é muito importante, pois o arranjo de sons e imagens acarreta a organização e elaboração lógica do produto final. O documentário, como sequência organizada de sons e imagens, constrói metáforas que atribuem, inferem, confirmam ou contestam valores que cercam as práticas sociais sobre as quais, nós, como sociedade, continua- mos divididos (NICHOLS, 2010, p.107). Por outro lado, a voz do entrevistado pode ser utilizada para diversos tipos de efeitos dentro do documentário, segundo Lins e Mesquita (2008). Des- ta forma, as sonoras foram utilizadas como forma de narração em pequenas partes da peça. Para cada nova cidade que está sendo citada, pedi para ser feito um mapa em animação e assim, como todo o resto do conteúdo, simplificar e mostrar sobre o lugar que irá ser abordado na sequência. Não tive nenhum problema quanto à edição, apenas pelo imprevisto que tive com o roubo do material, acabei passando para a pessoa que iria me ajudar

TCCs 2019_2 --- 464 com certo atraso na data limite de entrega do produto. Entendendo a situação, Ana Carolina correu com os prazos e conseguiu entregar um vídeo faltando pequenos ajustes. Passei para ela um roteiro já com a minutagem e arquivos que queria que fossem usados, acredito que isso tenha sido um facilitador nessa hora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o último ano, ao realizar as pesquisa sobre o tema que iria abor- dar, descobri muito mais que a história de uma população e dados sobre ela: consegui entender melhor minhas raízes. Entendi o significado de muitas cren- ças, atitudes e visões diferentes de um mesmo universo. Através da peça que produzi, senti-me muito desafiada em ter que mos- trar vidas e histórias que se cruzam com uma cultura tão rica e importante. Para isso, procurei trazer relatos verdadeiros e experiências reais que a valo- rizassem. Acredito que este ponto tenha contribuído para a resposta da per- gunta-problema deste projeto: “como um documentário pode revelar o modo como a cultura caipira resiste no Vale do Paraíba através de um caminho feito por um tropeiro?”. Como base de estudo, utilizei-me de boas referências bibliográficas, cami- nhei por diversos autores sobre cultura popular, cultura regional, gastronomia, música entre outros assuntos e abordei essas temáticas durante a peça. Partin- do do ponto em que todas as fontes e personagens tem extrema ligação com o tema através de sua própria criação e vivência, explorei e permiti que eles próprios transmitissem e explicassem sobre os temas abordados. Este trabalho de conclusão de curso trouxe grandes experiências em mi- nha vida. Como tive de ir pessoalmente a algumas cidades para conhecer pes- soas e apurar histórias, pude ter a oportunidade de encontrar seres humanos maravilhosos que, muito além de apenas desatar a falar sobre seus “causos”, enxergaram em mim e neste trabalho a possibilidade de valorizar algo que muitas vezes é deixado de lado: nossa cultura. Após o desligar da câmera, em cada lugar que eu passava eram mais algu- mas horas de conversas, cafezinhos e almoços. Todos eram de origem simples, trabalharam parte de vida em roças e plantando para viver, não chegaram a ter- minar o primário, mas a receptividade e carinho com que era recebida fazia-se o luxo de cada casa visitada. Entretanto as pessoas com quem mais convivi na capital paulista não faziam ideia deste “mundo interiorano”. Enxerguei então a possibilidade de unir o assunto ao jornalismo e assim, ajudar na informação e estudo de uma cultura pouco conhecida para muitos. A prática jornalística para mim sempre foi além de contar história; está

TCCs 2019_2 --- 465 em mostrar novas realidades, ressignificar aspectos na vida de outras pessoas e tocá-las através de narrativas relevantes. Por conta disso, utilizei de um fio condutor pessoal, para atravessar um assunto histórico e extenso. Busquei sempre utilizar de linguagens simples, sem florear e complicar o entendimento de quem esteja assistindo. Fiz uso de palavras comuns, sem gran- des dificuldades de raciocínio por dois motivos: o primeiro é pelo fato de que nos lugares que foram procurados não se tem o costume de refinar a fala, e isso não quer dizer que eles estejam errados, ao contrário, é o estilo daquele lugar e das pessoas que ali vivem. O segundo é consequência do último, os próprios personagens deram vida a narrativa. Por fim acredito que este trabalho tornou-se um projeto que uniu o jor- nalismo e a cultura de uma forma em que valores e propósitos andam lado a lado.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

ALMEIDA, Aluisio de. Vida e morte do tropeiro. São Paulo: Martins; EDUSP, 1981. AB’ SABER, Aziz Nacib. O que é ser geografo: memórias profissionais de Aziz Ab’ Saber. Editora Record. Rio de Janeiro, 2007. BELLUZZO, Rosa. São Paulo Memória e Sabor. São Paulo: Editora UNESP, 2008. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3. ed. São Paulo: Kairós, 1983. JAPUR, Jamile. Cozinha tradicional paulista. São Paulo: Folc-Promoções, 1963 KARAM, Francisco. A moral profissional e a ética jornalística. UFSC, Floria- nópolis, 2009. Disponível em: Acesso em: 28/10/2018. LEIVA, João. Cultura SP: hábitos culturais do paulista. São Paulo: Tuva Edito- ra, 2014. LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas. 20. ed. São Paulo: Brasiliense, 1978.

TCCs 2019_2 --- 466 LUCENA, Célia. Saberes e sabores do país de origem como forma de inte- gração. Cadernos CERU, série 2, v. 19, n. 1. Disponível em: Acesso em: 23/05/2019 NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Editora 34, 1999.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 5ª ed., 2010. OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo. A diversidade cultural no Brasil- -Nação. Petrópolis: Vozes, 1992. PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Editora Imprensa Ofi- cial do Estado, 1987. PUCCINI, Sérgio. Introdução ao roteiro de documentário. Disponível em: Acesso em: 29/10/2018 ROSENTHAL, Alan. Writing, directing, and producing documentary films and videos.Carbondale. Southern Illinois University Press, 1996. SATRIANI, Luigi M. Lombardi. Antropologia cultural e análise da cultura subalterna. São Paulo: Editora Hucitec, 1986

TCCs 2019_2 --- 467 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo

TCCs 2019_2 --- 468

CISNE NEGRO COMPANHIA DE DANÇA: ANTES DAS CORTINAS SE ABRIREM

Uma websérie sobre a Cisne Negro Companhia de Dança e a produção que antecede os espetáculos

GIULIA SANTOS CERVETTO Orientador: Arnaldo Lorençato

TCCs 2019_2 --- 469 Resumo Este trabalho tem como intuito mostrar os bastidores da Cisne Negro Com- panhia de Dança, de São Paulo, que há quase cinco décadas se dedica a dança e leva, ao Brasil e ao mundo, sua arte, preparando espetáculos desde “O Quebra- -Nozes” até obras com origem de danças brasileiras. Dividido em quatro episódios, em formato digital na plataforma de compartilha- mento de vídeos Youtube, a websérie sobre a Cisne Negro retrata as pessoas por trás da história, desde a criação das coreografias e obras, da produção, dos ensaios e treinamentos até o momento onde o espetáculo acontece, também conta a história da Companhia Cisne Negro, que tem um dos maiores ícones da dança brasileira como sua fundadora, Hulda Bittencourt. Hulda trouxe o Royal Academy Ballet para São Paulo. Meu trabalho de conclusão de curso busca uma nova perspectiva para o jor- nalismo cultural, se aproximando do espectador ao compartilhar seu conteúdo em uma plataforma digital altamente acessada nos dias atuais.

Palavras-chave: Jornalismo, Cisne Negro Companhia de Dança, dança, arte, bas- tidores, cultura, websérie

Abstract This final project aims to disclose the backstage of Cisne Negro Dance Com- pany, Brazilian institution native of São Paulo, which for almost five decades has been dedicated to the art of dance, carrying offering its interpretation of art to Brazil and to the world, producing shows that goes from “The Nutcracker” to pieces originated from Brazilian dances. Divided into four episodes in digi- tal format on the Youtube video sharing platform, the Black Swan web series portrays the people behind the scenes, from the creation of choreography and the plays, from production, rehearsals and trainings to the moment the show happens. This project also tells the story of the Black Swan Company, which has one of the greatest icons of Brazilian dance as its founder, Hulda Bittencourt. Hulda brought the Royal Academy Ballet to São Paulo. This essay also seeks a new perspective for cultural journalism, getting closer to the viewer by sharing its content on a highly accessed digital platform today.

Key words: Journalism, dance, art, behind the scenes, culture, web series.

TCCs 2019_2 --- 470 Introdução Este projeto tem como objetivo embasar a produção de uma websé- rie para a plataforma Youtube, retratando os bastidores e as pessoas por trás da realização de espetáculos da Cisne Negro Companhia de Dança. Também procura se aprofundar no dia-a-dia, na carreira e na motivação do time e dos bailarinos da Cisne Negro Companhia de Dança que trabalham diariamen- te para criar, produzir, coreografar e ensaiar espetáculos de dança, desde o clássico do ballet «O Quebra-Nozes» até a coreografia “Goitá», com direção artística de Hulda Bittencourt e Dany Bittencourt, que tem como base alguns estilos de danças populares brasileiras como frevo e maracatu. A escola e o estúdio de dança Cisne Negro foram fundados em 1958 por Hulda Bittencourt e seu marido Edmundo Rodrigues Bittencourt. Juntos, cons- truíram um estúdio de ballet para que Hulda pudesse ensinar tudo que apren- deu com seus professores de dança - entre eles a professora de ballet clássico Maria Olenewa, a pioneira do ballet no Brasil. Com isso, Hulda Bittencourt se consagrou uma das maiores bailarinas do Brasil.

Hulda Bittencourt, a diretora artística do Cisne Negro, foi uma das alunas de Olenewa. Com a mestra, Hulda descobriu a força da dança, uma arte que ainda precisava se estruturar de muitas formas em um país jovem e sem tradição cultural do balé. Olenewa fez despertar em Hulda o talento de educadora. Desde então, Hulda vem se dedicando a formar artistas, coreógrafos e públi- cos. (INSTITUCIONAL Cisne Negro Cia de Dança, 2006, p. 23)

Enquanto ensinava ballet apenas para mulheres, Hulda - a primeira pessoa a introduzir o sistema do Royal Academy of Dancing em São Paulo - recebeu uma proposta dos alunos de Educação Física da USP, que queriam que ela os ensinasse a dançar ballet. O grupo foi criado, surgindo assim a Cisne Negro Companhia de Dança, em 1977. A trajetória tanto do estúdio quanto da companhia é considerada bem- -sucedida, pois, ao longo de suas cinco décadas, vêm formando grandes baila- rinos que viajam o Brasil e o mundo, sempre com produções de relevância no meio. Com frequência, conta com a presença de bailarinos renomados, como a bailarina Ana Botafogo que participou do espetáculo H.U.L.D.A em homena- gem aos quarenta anos da Cisne Negro em 2017. Em 1983, sob a direção de Hulda Bittencourt, foi produzida, pela primeira vez, a obra natalina de Tchaikovsky, “O Quebra-Nozes”, que posteriormente recebeu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Desde então, “O Quebra-Nozes” é apresentado anualmente pela companhia. Hulda Bittencourt nasceu em uma pequena cidade do interior paulista,

TCCs 2019_2 --- 471 chamada Santa Cruz do Rio Pardo. De origem humilde e simples, Hulda se apai- xonou pela dança bem jovem. Sua filha, de nome artístico Dany Bittencourt, já começou “a dançar dentro do ventre de sua mãe” e sua primeira apresentação de dança foi aos três anos de idade no Teatro Municipal de São Paulo. Hoje, após se formar em ballet e participar em companhias de dança no Canadá, é a diretora artística da Cisne Negro, junto com sua mãe. O nome da companhia se deve ao estilo e personalidade de sua fundado- ra. O Cisne Negro é alusão ao ballet Lago dos Cisnes, com autoria musical de Tchaikovsky, em que nele são representados dois cisnes: o cisne branco que é mais delicado e com movimentos mais suaves; e o cisne negro, que demonstra mais força e garra em sua apresentação. A companhia prepara diversos espetáculos ao longo do ano e possui em seu repertório obras como: O Quebra-Nozes, H.U.L.D.A, Ziggy, Goitá e muitas outras coreografias criadas ao longo da existência da companhia, com partici- pações de coreógrafos como Victor Navarro e Rui Moreira. O Lago dos Cisnes não está no repertório da companhia. A pergunta-problema do trabalho: Como a imprensa com uma produção audiovisual, em formato de websérie na plataforma Youtube, mostra a história, os personagens e os bastidores da Cisne Negro Companhia de Dança e infor- ma o público? O objetivo principal do trabalho: mostrar o ponto de vista daqueles que estão trabalhando diariamente dentro da companhia, a respeito de criação e concepção do espetáculo e coreografia, os ensaios intensos com os bailarinos, e a produção por trás que antecede todos os espetáculos, utilizando como base o jornalismo cultural e os ensinamentos em audiovisual. É, também, realizar uma websérie em uma plataforma totalmente digital, que irá, em quatro episódios, contar a história da Cisne Negro Companhia de Dança, seus personagens e os bastidores. Os objetivos secundários do trabalho são: histórias podem ser narradas em diversos formatos no âmbito do jornalismo cultural. Além disso, ao pensar no espaço de mídia tradicional, como jornais e revistas, com frequência a dança é abordada sem os recursos visuais, sonoros e sinestésicos cruciais para a compreensão de uma obra. Em vista disso, pode-se concluir que uma arte como a dança pode ser mais bem apreciada por meio de um produto audiovi- sual, formatado para as novas tecnologias e dias atuais, com episódios de curta duração que não entendiam o espectador. Em todos esses âmbitos procuro, pelo meio das entrevistas, com imagens que ilustram a dança e com o som que é essencial para uma produção audiovi- sual, transmitir a informação ao público-alvo. Assim, os espectadores e admiradores de espetáculos de dança poderão

TCCs 2019_2 --- 472 ver a arte, a dança e a apresentação por outra ótica, entendendo como funciona o processo desde a criação até a realização do espetáculo, a história por trás e todo o esforço físico e mental depositados na obra para que ela encante pessoas de todas as idades pelo Brasil e pelo mundo. O motivo para a realização deste trabalho está vinculado à busca por aproximação com o público. Quando o assunto é jornalismo cultural, a arte é feita para todos os gostos e, com uma plataforma digital, essa proximidade fica maior. No entanto, mesmo assim, a informação é transmitida ao público de maneira mais conveniente para o novo modelo de consumo de informação que existe nos dias de hoje. A metodologia utilizada para a elaboração da peça segue um cronograma de pesquisas, seguido pela abordagem do protagonista da peça - a Cisne Negro Companhia de Dança - com captações de imagens e entrevistas com diretores artísticos, ensaiadores, bailarinos e produtores como fontes. Também fazem parte do processo etapas como entrevistar personagens icônicos como: a fun- dadora da companhia, Hulda Bittencourt, e sua filha Dany Bittencourt que está na companhia desde o início; os bailarinos André Santana e William Gasparo; a ensaiadora Patrícia Alquezar, que dançou por muitos anos na companhia e a produtora Raquel Andreoli, que é filha de um dos bailarinos do primeiro elenco da companhia. E, por fim, a edição do material, em episódios que contam a nar- rativa, buscando a riqueza que a dança traz ao ambiente no qual está inserido. Na parte teórica, são utilizados livros com assuntos sobre documentários e webséries, para trazer um maior embasamento a respeito do tema. Fazem parte também da análise, livros sobre espetáculos e dança, como “Análise dos Espetáculos” de Patrice Pavis, que abordam a perspectiva do projeto como são feitos os espetáculos, e também “Cisne Negro Cia. de Dança - 30 anos” que conta a história da Cisne Negro, essencial para pesquisa sobre o objeto de estudo, pois mostra os primeiros trinta anos da companhia; “Entrevista - o Diálogo Possível” de Cremilda Medina, para entender o processo de um diálo- go que é muito utilizado nas gravações de entrevistas, mostrando a perspectiva jornalística sob a entrevista. Como parte da referência, foi utilizado o autor Nestor Canclini, para entender questões sobre multiculturalidade e a globali- zação nos dias atuais que trazem novos olhares para a mistura de culturas, e entender a dança e o seu meio social. Para compreender a estruturação de uma websérie, suas linguagens e melhores práticas para a sua construção de uma no formato de documentário, foram lidas publicações como: “Introdução ao documentário”, de Bill Nichols, “Como fazer um documentário” de Luiz Carlos Lucena e “Webséries - Criação e Desenvolvimento”, de Guto Aeraphe. E, para a base de entendimento sobre dança, livros como: “Figuras da Dan- ça” do Governo de São Paulo, e “Linguagem da dança”, por Débora Sicupira

TCCs 2019_2 --- 473 Arzua Tadra e “Dança moderna: Fundamentos e técnicas” por Miriam Giguere. E, por último, para o entendimento do principal meio digital que o produto está inserido, as informações retiradas e fornecidas pelo meio Youtube, que mostram o engajamento que a plataforma traz para o público. Com esse meio com alto poder disseminador de informação, o espectador da websérie poderá escolher o tema que o interessa, atingindo o público-alvo do projeto.

1. Referencial Teórico 1.1 A dança

A dança, a arte de movimentar o corpo em certo ritmo de acordo com a habilidade de cada um, é uma das três principais artes cênicas da antiguidade em conjunto com o teatro e a música. Pode se caracterizar tanto por movi- mentos aleatórios e improvisados - a dança livre - ou então pode ser composta por movimentos previamente estabelecidos, como a coreografia, que é um dos objetos mais importantes da produção de um espetáculo. Pode ser utilizada como forma de expressão artística, bem como simples divertimento e pode ser considerada um esporte, pois sua atividade é consi- derada intensa e expõe o corpo humano a movimentos que requerem muito treinamento e talento, movimentos escolhidos de forma muito semelhante à escolha de sequências de linguagem verbal, visual ou musical.

A dança como manifestação artística, é uma produção particular e singular, que se torna coletiva à medida que o artista estabelece as relações com o público. Para que a dança seja apreciada, passamos pela fruição da obra, que é o momento onde o artista (coreógrafo, bailarino) se une por meio da percepção e raciocínio que a obra coreográfica desperta. Nesse momento, o fenômeno artístico atinge o fenômeno educacional, ao produzir significado artístico. (TADRA, 2012, p.47)

Sendo assim, pode-se entender que a dança possui uma linguagem própria que se traduz em movimentos, além de um conjunto de normas, que determi- nam o porquê de um movimento ser seguido do outro. Todos esses elementos tornam a dança uma forma de arte. A dança nos dias atuais está presente em muitos ambientes culturais, como performances de arte e também apresentações musicais e videocli- pes. Além disso, existem competições de dança e espetáculos com bailarinos profissionais, e as companhias de dança que os preparam para os espetáculos. Em São Paulo, algumas companhias de dança são reconhecidas por sua excelência e também êxito em formar seus alunos para serem grandes solistas

TCCs 2019_2 --- 474 ao redor do mundo. Uma dessas companhias é a Cisne Negro Companhia de Dança, muito reconhecida pelos estilos de ballet clássico e contemporâneo e por apresentar anualmente o espetáculo de ballet “O Quebra-Nozes”.

1.3 A dança do aspecto cultural e sociológico

É um instrumento cultural que remonta ao tempo de pré-civilização, pois a dança é um dos mais antigos códigos de comunicação do homem, anteceden- do até mesmo a comunicação oral e escrita. Todos os povos do mundo criaram maneiras de se expressar através da dança, desde rituais religiosos, passando por momentos de celebração e até intimidações como forma de proteção. A dança não é somente um conjunto de movimentos conforme um ritmo, mas, também, traz informação e cultura, situando o mundo sobre o ponto de vista social e histórico. Como arte, a dança pode ser expressa com ou sem música, por meio de movimentos que possuem algum tipo de significado já pré-determinado (coreografia), e com um público já determinado. Como diversão, pode ser encontrada em qualquer ambiente de festa e evento social, independentemente de seu estilo de movimento. Como esporte, tais como competições de ginástica artística, ginástica rítm- ica e nado sincronizado, e estão presentes em diversos tipos de competições desenvolvidas no mundo da dança, praticadas em grupos ou individualmente, muitas vezes divididas por idade, sexo do participante e estilo de dança, como ballet clássico, dança contemporânea, de salão, sapateado, jazz, street dance, entre outros. Atualmente, existem muitos estilos de dança que também podem ser misturados entre si, sem contar as danças culturais e étnicas e as utilizadas em rituais. Os tratados sobre dança surgiram a partir do século XVI. Cada país eu- ropeu criou seus próprios estilos. Primeiro eram coletivas, depois foram adap- tadas para os pares. No século XIX, surgiram danças mais sensuais, como o maxixe - dança originada no Brasil - e o tango, oriundo da Argentina. Da mes- ma forma que todos os outros elementos de cultura, a dança evoluiu e se trans- formou na mesma medida que as populações se transformavam e migravam. Esse aspecto pode ser analisado principalmente pela teoria de multicul- turalismo de Canclini, 2008, onde se discute as questões de identidade do ser humano pós-moderno, pela globalização, de suas culturas que foram se mistu- rando e assim criando novas identidades. Muito disso pode ser observado nas danças atuais, onde existe uma mistura tanto da música quanto da dança. Uma

TCCs 2019_2 --- 475 dança pode possuir mais de um estilo propriamente qualificado e mais de um estilo de música para acompanhar essa mistura.

1.4 A entrevista e o diálogo

O diálogo é uma das ações mais comuns do mundo. A comunicação entre o emissor e o receptor gera o diálogo: ele pode ser claro ou possuir ruídos e isso depende de como a comunicação é gerada. Porém, o diálogo é a melhor forma para que exista a exposição de pensamentos, sentimentos, desejos e ideias. Na narrativa, a história de seus personagens é compartilhada pelo autor, de maneira com que ele consiga passar de forma mais fiel os sentimentos, ideias e história de seu personagem para o espectador. No meio audiovisual, esse diálogo pode ser expresso mais claramente, pois quem é personagem pode ter um lugar de fala na narrativa, ao invés de depender da escrita do jornalista. Uma história contada pelo próprio personagem deixa a narrativa com mais personalidade. A entrevista é um dos trabalhos do jornalista mais essenciais, pois se trata de onde ele consegue entender e conhecer melhor sua fonte, e tam- bém retirar as informações mais necessárias para a sua produção jornalísti- ca. Onde ele de fato vai escutar a história e conseguir realizar seu trabalho. Depende de sua pauta e também de como ele irá interagir com sua fonte, e trabalhar sua articulação e racionar e selecionar perguntas para o entrevistado, se aprofundando no assunto e aumentando seu repertório ao pesquisar sobre o assunto.

A entrevista, nas suas diferentes aplicações, é uma técnica de interação so- cial, de interpenetração informativa, quebrando assim isolamentos grupais, individuais, sociais; pode também servir à pluralização de vozes e à distribuição democrática da informação. Em todos estes ou outros usos das Ciências Hu- manas, constitui sempre um meio cujo fim é o inter-relacionamento humano. Para além da troca de experiências, informações, juízos de valor, há uma ambição ousada que filósofos como Martin Buber já dimensionaram: o diálogo que atinge a interação humana criadora ou seja, ambos os partícipes do jogo da entrevista interagem, se modificam, se revelam, crescem no conhecimento do mundo e deles próprios. Esta situação, que pode ser rotulada de ideal, se realiza no cotidiano, até mesmo em uma entrevista jornalística levada às últimas consequências. (MEDINA, 2005. p.08)

O papel de mediação do jornalista, que prepara a pauta, realiza a produ- ção jornalística e utiliza seu olhar crítico para poder passar a história de seus personagens para o espectador, leitor (ou consumidor de qualquer que seja a

TCCs 2019_2 --- 476 mídia que ele está utilizando), é de extrema importância para que o conteúdo seja bem feito. É importante que, por mais complexo que seja o assunto, ele consiga entender, perpetuando assim a troca entre jornalista e entrevistado, e para que passe adiante a informação para o objeto final. 1.5 Documentário audiovisual em formato de websérie

De acordo com Nichols (2001), não há uma única definição para os documentários. Podem ser reconhecidos os gêneros de documentários como poético, expositivo, onde o diretor do documentário se preocupa na maior parte do tempo com mostrar o ambiente da maneira que ele é. No participativo, como o próprio nome já diz, o diretor participa e encaminha o documentário para o roteiro que ele procura. De acordo com ele, existem também os mo- delos observativo e performático, facilitando a distinção dos gêneros, mesmo que nenhum documentário possua apenas uma dessas interpretações - pois um bom documentário sempre possui mais de um tipo de gênero que auxilia em um melhor entendimento do assunto que está sendo retratado. Esses tipos de segmentações auxiliam na maneira como o documentário vai impactar o espectador. A websérie produzida neste projeto precisa que os gêneros estejam alinhados, para que as sensações possam ser passadas àqueles que assistirem.

Os modos adquirem importância num determinado tempo e lugar, mas per- sistem e tornam-se mais universais que os movimentos. Cada modo pode surgir, em parte, como reação às limitações percebidas em outros modos, como reação às possibilidades tecnológicas e como reação a um contexto social em mudança. Entretanto, uma vez estabelecidos, os modos superpõem- se e misturam-se. Os filmes, considerados individualmente, podem ser caracterizados pelo modo que mais parece ter influenciado sua organização, mas também podem combinar harmoniosamente os modos, conforme a ocasião. (NICHOLS, 2001, p. 63)

Nichols acredita que o documentário deve ajudar o espectador a con- seguir melhorar seu entendimento e também se envolver com o que acon- tece na tela como se estivesse imerso. O documentário é diferente do filme, pois este necessita de um roteiro específico e fictício para sua produção. O documentário não necessariamente precisa da jornada do herói para sua pro- dução, afinal, em tese, mesmo que os personagens de um documentário sejam pessoas reais vivendo em seu cotidiano e contando suas experiências, o docu- mentário poderá impactar a vida do espectador. Poucas vezes uma pessoa que não trabalha com produção audiovisual

TCCs 2019_2 --- 477 terá a chance de falar perante uma câmera. Por conta disso, o documentário pode sair com um tom mecânico e pouco espontâneo, mas pode ser utilizado em seu roteiro para uma interpretação da informação do espectador. Como todos os documentários produzidos, as questões estéticas são parte essencial da produção e precisam de atenção como luz, enquadramento e som.

Diferentemente dos filmes de ficção o discurso do documentário envolve di- ferentes formulações, que podem ou não ser dirigidas diretamente ao público. Esse fato possibilita várias opções divididas basicamente em duas categorias: o discurso direto, em que uma voz fala com a câmera e, por extensão, conosco, de forma direta; e o discurso indireto que não é dirigido à câmera ou ao público - como na ficção, em que em geral ninguém fala diretamente conosco. (LUCENA, 2012, p. 15)

Para Lucena (2012) diferente de Nichols (2001) as variações de docu- mentários são existentes, mas na verdade o documentário deve ser dividido de duas maneiras: a do discurso direto e a do discurso indireto, como nos filmes onde, na maioria das vezes, não existe um diálogo com o espectador.

1.6 Youtube

É notável a crescente evolução das mídias digitais nos dias atuais, e a forma como o consumo de informação via internet aumentou significantemente nos últimos anos. A plataforma Youtube foi criada em 2005 por Jawed Karim, Steve Chen, Chad Hurley, e ganhou uma popularidade muito grande. A plataforma é livre e permite que seus usuários criem conteúdos em vídeos e então os publique na plataforma para o que o público, ao pesquisar palavras chaves relacionadas ao assunto, seja levado a uma série de vídeos que ele pode escolher para se informar e entreter. Atualmente o Youtube tem mais de 1,9 bilhão de usuários conectados e diariamente, os usuários assistem mais de um bilhão de horas de vídeo e geram bilhões de visualizações. Mais de 70% dessas visualizações vêm de dispositivos móveis e o Youtube pode ser navegado em 80 idiomas diferentes, abrangendo 95% dos usuários da internet. A disseminação de informação no meio digital é atualmente muito maior do que o meio tradicional.

2. Desenvolvimento da Peça

2.1 Formato escolhido

TCCs 2019_2 --- 478 O formato de websérie foi escolhido para esse projeto, pois ele é rico sob o ponto de vista audiovisual e auxiliará no aspecto mais importante do tema, mostrando para o público a arte da dança e a musicalidade presente neste universo. Além de seus diversos cenários onde os espetáculos acontecem, o foco principal é abordar a visão sob os bastidores e os ambientes nos quais a narrativa se passa. Todos esses personagens participam ativamente de cada etapa que antecede o espetáculo. A música em si não é mandatória em uma apresentação, mas ela faz com que o público em geral se identifique e engaje com o espetáculo de forma mais rápida. No caso da Cisne Negro Companhia de Dança, a música pode fazer alusão ao espetáculo de Tchaikovsky “O Lago dos Cisnes”, uma obra muito importante e bem conhecida dos amantes do ballet. A websérie será dividida em quatro episódios de curta-duração, de aproximadamente quatro a seis minutos cada. A curta-duração é essencial para a plataforma que o produto se encontra, pois, os consumidores de mídias di- gitais têm a tendência a se cansar rapidamente. Por isso, um produto mais rápido mantém o público mais focado. Cada episódio representa um aspecto dos bastidores da companhia e as peças-chaves para cada momento que o elemento é necessário no processo da obra, sendo esses: Hulda Bittencourt e um pouco de história: Neste episódio a fundadora da Cisne Negro Companhia de Dança conta a história que está por trás da Cisne Negro, traz seu olhar e paixão pela dança, sua perspectiva sobre qual era a intenção na criação da companhia e também traz a história de Hulda Bitten- court, um personagem icônico com muitos feitos. Além da companhia, Hulda dançou por muitos anos na televisão brasileira e também foi aluna de uma das pioneiras do ballet clássico no Brasil. Direção e criação: Neste episódio, a diretora artística da companhia que é a Dany Bittencourt conta mais sobre como é a ideia da coreografia, os pas- sos para que o espetáculo aconteça, quais são os pontos importantes que não podem faltar para que fique tudo correto na hora da apresentação e fala um pouco sobre audições. Conta também sobre sua paixão pela dança. Assistência e produção: Neste episódio, há a participação da Raquel, que, além de filha de um dos bailarinos do elenco que originou a companhia, também trabalha na companhia com as questões burocráticas que são essenciais para o espetáculo. Ela também é formada em produção de espetáculos culturais. Raquel mostra o lado menos chamativo, mas crucial para que todas as obras saiam de acordo com o esperado. Ensaios e treinamento: Neste episódio, há a participação da ensaiadora Patrícia Alquezar que, além de ensaiadora, foi também bailarina da companhia por muitos anos. Juntamente com ela, há a participação de dois bailarinos

TCCs 2019_2 --- 479 homens, André Santana e William Gasparo que contam sua perspectiva sob os ensaios e preparação física. O episódio é ilustrado com diversas cenas de dança e ensaios. Cada episódio é construído em formato de entrevista com os diretores criativos, ensaiadores, bailarinos e produtores da companhia. Acompanhado de imagens do local que auxiliam na interpretação e ilustração das falas, juntamente com uma narração.

2.2 Equipe e produção da peça

Toda a peça foi produzida pela autora deste trabalho, com o auxílio da equipe Cisne Negro Companhia de Dança, que esclareceram quais os melhores personagens e quais os aspectos importantes para serem abordados sobre a história deles. Toda a produção prática de pautas, pesquisa sobre os persona- gens, pesquisa de campo, contato com as fontes e follow-up fizeram parte deste projeto. No aspecto do vídeo, a direção, entrevistas, captação de imagens, roteiro, técnico de som e luz foram desenvolvidos pela autora, sempre embasada pelas práticas aprendidas em sala de aula no curso de jornalismo e, também, recursos aprendidos na universidade como fotografia e edição de vídeos. A escolha de ser responsável por todas as etapas do projeto, aconteceu para que a imersão no trabalho fosse total, buscando a melhor parte do jorna- lismo que é o envolvimento pessoal em cada etapa, desde a ideia até a execução.

Considerações finais

A produção desta peça teve como principal objetivo passar a experiência e trazer para o público uma perspectiva diferente sobre a dança e jornalismo cultural. Quando encontramos notícias e informações sobre a arte, normal- mente nos deparamos com a obra em si, ou o espetáculo pronto, porém, todo o trabalho realizado antes, fica praticamente oculto e, sem ele, nada acontece- ria. A websérie traz um olhar diferente sobre o ballet, e aproxima o público, minimizando um possível estigma de que a arte não é para todos. A paixão pela dança representada na peça mostra que a arte inclui e deveria ser para todos. De maneira mais sucinta, a websérie trouxe a voz desses personagens além da dança, suas histórias e dedicação. O projeto passou por um processo longo até a decisão do tema, que a

TCCs 2019_2 --- 480 princípio era direcionado a bailarinos diversos. Também passou por no mínimo quatro tipos de temas e dois tipos de peças até encontrar a Cisne Negro. A escolha da companhia surgiu no meio do processo de encontrar fontes para o tema anterior. O encontro foi emocionante, pois toda a história da companhia e como cada pessoa que trabalha lá se envolve com a arte, (principalmente Hul- da Bittencourt - que é um personagem ícone e sua história) traz a verdadeira experiência em ser jornalista e conhecer pessoas que mudam perspectivas em vários assuntos e são fatores de transformação no ambiente onde estão. Como conclusão dessa jornada, saio com uma nova perspectiva da arte – além da de praticante, professora de dança para crianças e admiradora. Sob a perspectiva de uma graduanda em jornalismo, entendi que não se trata apenas da beleza e delicadeza nas quais a dança se encerra, mas sim do suor e garra por trás de todos os trabalhos. Entender a dinâmica dos bastidores me fez ver que o produto final é muito importante, mas ele não existiria sem toda uma equipe com vontade e paixão em cada passo.

TCCs 2019_2 --- 481 Referencial Bibliográfico

AERAPHE, Guto. Webséries: criação e desenvolvimento. Belo Horizonte: [s.n.], 2013 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. LUCENA, Luiz Carlos. Como Fazer um documentário. 2. ed. São Paulo: Sum- mus, 2012. 128 p. MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005 NEGRO, Cisne. Institucional, 30 anos Cia. São Paulo: Editora Retrato, 2006. 143p. NICHOLS, Bill. INTRODUÇÃO AO DOCUMENTÁRIO. Estados Unidos: Campo Magnético, 2001. 270 p. (1). ONLINE, Site Cisne negro ZIGGY 2019 Disponível em: Acesso em: 30 abril 2019 PAULO, Governo de São; DANÇA, São Paulo Companhia de. Figuras da Dan- ça: Hulda Bittencourt. São Paulo: Miração, 2009. 30 p. PAVIS, Patrice. Análise dos espetáculos, a: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo: Perspectiva, 2003. 323 p. TADRA, Débora Sicupira Arzua et al. Linguagem da dança. In: EDITORA IBPEX (Org.). Por dentro da arte. Curitiba: Ibpex, 2009. Cap. 4. p. 272-339. TADRA, Débora Sicupira Arzua; VIOL, Rosimara; ORTOLAN, Sabrina Mendes. Linguagem da Dança. 2. ed. Curitiba: Intersaberes, 2012. 118 p. VALÉRY, Paul. A alma e a dança: e outros diálogos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 120 p. ONLINE, Site Youtube. Sala de Imprensa. 2019. Disponível em: . Acesso em: 04 ago. 2019.

TCCs 2019_2 --- 482 Para conhecer o trabalho completo, acesse os QR Codes abaixo

TCCs 2019_2 --- 483 PUNK!SP COMO VIVE A SUBCULTURA PUNK NA CIDADE DE SÃO PAULO

YOLANDA SILVA REIS Orientador: Carlos Sandano

TCCs 2019_2 --- 484 RESUMO

Este livro-fotográfico/reportagem buscou analisar a presença do subgênero musical punk na cidade de São Paulo nos dias atuais. O desejo foi apresentar os preceitos da subcultura e seus hábitos, e conhecer melhor os membros e ações do grupo no dia a dia. A peça tem como objetivo analisar como o grupo influencia a cidade, e vice e versa. A relevância está em explorar uma subcultura presente no dia a dia social, mas sem muita documentação acadêmica. Para apresentar as ideias, um livro-fotográfico foi produzido, com foco, também, na escrita. Nele, buscou-se trazer uma visão mais clara dos paradigmas da comu- nidade, e, ao mesmo tempo, mostrar uma visão mais individual dos membros do grupo, por meio de histórias pessoais e únicas. A pesquisa foi exploratória e descritiva. O projeto aqui submetido visa a pesquisa a ser realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do curso de Jornalismo.

Palavras-chave: Punk, São Paulo, livro-reportagem, livro-fotográfico

ABSTRACT

This photo book pursue to analyze the presence of the musical sub- genre punk at the city of São Paulo nowadays. It intends to present the precepts of the subculture and their habits, and to know better the members and actions of the group on their everyday lives. The objective of this research is to analy- ze how the group impact the city, and vice-versa. Its relevance is to explore a subculture that is present on the social life, but with not many academic docu- mentations.To present the ideas, a photo-book was made. The objective was to bring a clearer vision of the community’s paradigms, and at the same time, show a very individual view of some of the group’s members, through personal and unique history. The research will be exploratory and descriptive. This project aim the research to be conducted for the Term Paper of the Journalism college.

TCCs 2019_2 --- 485 Key-words: Punk, São Paulo, non-fictional book, photo book.

1 INTRODUÇÃO

Desde a industrialização, e mais recentemente com a introdução dos ele- trônicos nas nossas vidas, o homem enfrenta um processo que pode ser con- siderado uma alienação constante. Isso já é algo quase inato a nós, e aceitamos como se fosse parte de nossa vida. Eventualmente, porém, algum grupo de pessoas, principalmente aqueles que não se encaixam tão bem à ideia de so- ciedade tradicional, percebe essa alienação e distanciamento e luta contra isso. Recentemente, vemos cada vez mais casos de pessoas lutando contra racismo, machismo e homofobia. Mas, na maioria das vezes, o grupo, aqui chamado de subcultura (JOSEPHSON e JOSEPHSON, 1962) se fecha em si mesmo e foca em um só problema. As subculturas começaram a ganhar força há aproximadamente 50 anos, quando o movimento de contracultura tomou as ruas de países europeus, le- vando jovens indignados com os paradigmas da sociedade à luta. Nesse mo- mento, o rock se revelou como o que seria conhecido até hoje: um modo de jovens rebeldes se descobrirem como cidadãos e lutarem contra a estagnação político-social. O rock era a alma da contracultura (O’HARA, 1995), mas não demorou muito para que virasse algo comercial. Aí então surge o movimento Punk Rock, ou hardcore, como forma de contestar diretamente o sistema ca- pitalista e o governo.

For the large number of people on welfare (...)- especially young people, the outlook for bettering their lot in life seemed bleak. In this atmosphere, when the English were exposed to the seminal Punk Rock influences of the New York scene, the irony, the pessimist and the amateur style of the music took on overt social and political implications, and British punk became an self-con- sciously proletarian as it was aesthetic. (HENRY, 1989. p. 8)1

Como explica Viana (2012), o punk nasceu nos Estados Unidos, mais pre- cisamente em Nova York, por meio da música. Bandas como New York Dolls,

1 “Pelo grande número de pessoas recebendo auxílio monetário do governo (...)- espe- cialmente jovens, a perspectiva de uma vida melhor parecia sombria. Nessa atmosfera, quando os britânicos foram expostos às influências seminais do Punk Rock da cena de Nova York, a ironia, o pessimismo e o estilo amador da música tomaram implicações sociais e políticas, e o punk britânico se tornou auto-conscientemente proletário tanto quanto era estético.” Tradução livre da pesquisadora.

TCCs 2019_2 --- 486 Sex Pistols e Ramones traçaram aquilo que seria conhecido como o visual punk, e com músicas barulhentas e ambientação urbana chamaram atenção. Pouco tempo depois, o punk migrou para a Inglaterra, onde ganharia força política, pois era uma forma dos jovens ingleses se expressarem de modo mais intenso. Isso tudo, na década de 70. No Brasil, o movimento chegou um pouco mais atrasado, principalmente porque vivíamos em época de ditadura militar, e o movimento ia contra tudo aquilo que nosso governo pregava: nacionalismo, tradições familiares e absolutismo. Seguindo a influência grã-bretanha, os punks começaram a engatinhar no berço esplêndido de São Paulo, marcando traços da cultura urbana, e moldando a cena jovem e urbana até os dias de hoje.

(...) o punk extrapola uma mera atitude rebelde para firmar-se enquanto uma cultura. Como disseminador de uma crítica radical, o punk nunca morre, o fato é que está aí por mais de trinta anos, transformado, aderido ao contexto histórico e, por isto mesmo vivo. (...) as referências originais do punk no Brasil encontram-se em São Paulo, não no interior, nem em outras capitais, muito embora considere relevante a produção do movimento fora do contexto paulistano. Definindo o punk como um estilo que ultrapassa a mera moda, percebe no movimento uma resposta do subúrbio contra o sistema exclu- dente. Enquanto na moda o indivíduo perde a sua identidade, porque absorve de fora, das revistas, uma identidade programada; no estilo, ao contrário, o indivíduo torna-se um sujeito, com poder de decisão e com ideias próprias. No caso do punk o estilo converte-se no reflexo de uma cultura de resistência. (VIANA, 2012, p. 299)

A cidade de São Paulo respira, inspira e transpira cultura urbana jovem. Não se anda pelo centro sem ver alguns adolescentes passeando sobre rodi- nhas de skate. A Avenida Paulista, sua principal avenida, é pontuada de graffitis e lambe-lambes com temas artísticos e políticos. A rua Augusta, hoje centro de concentração de jovens, permite aos seus transeuntes uma enorme liberdade sexual. O centro da cidade está sempre tomado por jovens reclamando seus direitos e expondo suas ideias. Completamente contestadora. Isso liga-se diretamente ao movimento punk, que iniciou esse processo entre o final da década de 1970 e começo dos anos 1980. Trouxe ideais de re- volução para um mundo envolto em desesperança – no Brasil, havia a Ditadura Militar; na Europa, uma onda de desempregos; nos EUA, uma crise econômica causada pelo petróleo. Dentro do ambiente urbano, seguiram a onda da con- tracultura e de revolução dos anos 1960 e 1970 para trazer novos ideais e, ao contrário da geração anterior, tentar encontrar na ação direta um sentido para a vida. Nascia ali o mais controverso estilo: o punk. Os pretextos e os ambientes do punk ecoaram nas evoluções sociais. Eles eram a favor do feminismo, da contestação, da igualdade e da liberdade, enfim.

TCCs 2019_2 --- 487 As ideias revolucionarias garantiram a duração do estilo. Hoje, as subculturas urbanas (definidas por Josephson e Josephson [1962] como um grupo fechado em si mesmo e com um estilo em comum) são diferenciadas e definidas, mas todas elas têm, em maior ou menor grau, semelhanças com o punk. Então, se a cultura urbana paulistana e o punk se fundem, este trabalho apresenta o seguinte problema: como um livro-reportagem fotográfico pode representar a subcultura punk em São Paulo? O trabalho buscou apresentar como vive, hoje, a subcultura hardcore na cidade de São Paulo. Seus hábitos, sua vivência urbana, como essa influencia a cultura urbana e, principalmente, quais são seus pensamentos e ideais. Foram explorados e expostos os modos de vida das pessoas que fazem parte do meio. Tanto em sua vida pública - como parte da tribo, como em sua vida privada, mostrando seu posicionamento diante da máquina social e como elas se en- caixam. Para isso, porém, houve, também, uma contextualização histórica inicial - de modo a dar base para os ideais de hoje. O objetivo principal foi, então, desenvolver um livro-reportagem fotográ- fico, também com grande foco em texto. As imagens foram feitas em diversos eventos, como shows, festas, passeatas, manifestações e encontros na rua. Os personagens das fotos foram pessoas que fazem parte ativamente do movi- mento - como músicos das bandas punks e plateia. Assim, esperei abranger dois aspectos da subcultura e da vivência urbana: um, contado por imagens – por- que de vez em quando, uma imagem conta toda uma história por si só. Outro lado foi por meio de palavras, mesmo, para contar o que não foi capturado em imagens. O livro cumpriu o objetivo de mostrar os ideais, o dia a dia, o visual, a vivência e as histórias que correm todos os dias pela cidade de São Paulo, mas quase ninguém para e percebe. Além disso, houve a conclusão jornalística de desenvolvimento de entrevistas, produção de textos como reportagem e de imagens como informativas e com objetivo documental. A pesquisa se apresentou em duas etapas. A primeira, com pesquisa ex- ploratória. Foi feito um levantamento bibliográfico mais apurado, e diversas entrevistas com especialistas e pessoas capacitadas a falar sobre o assunto, de modo a fazer um levantamento qualitativo. A segunda etapa foi uma pesquisa explicativa: através de inserção no meio, trouxe fatos e traços sociais, também de modo qualitativo. A peça final foi resultado da união dos dois métodos, de modo a mostrar uma visão mais clara sobre a realidade da cena underground de São Paulo. Os dois principais autores usados no levantamento histórico e ideológico foram O’Hara e seu livro More Than Noise, the Philosophy of Punk, 1995; e Alexandre, autor de Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos anos 80, 2012, ambos

TCCs 2019_2 --- 488 para contextualizar, respectivamente, a cultura punk e seus valores, e a cultura punk no cenário brasileiro e paulistano. Para desenvolvimento da peça, o princi- pal autor foi Dubois e a peça O Ato Fotográfico e Outros Ensaios, 1993 - além de análises midiáticas do trabalho de Henri Cartier-Bresson, assim como de seu artigo L’instant Décisif [O Instante Decisivo]. Já a estética foi um mix de ideais. Um pouco dela baseou-se na obra de Henry, Break All Rules! Punk Rock and the Meaning of a Style (1989). Outra parte, em fanzines da época (muitas com uma ou poucas edições, nenhuma assinada com algo além de um apelido ou primeiro nome). Discos de diversas bandas também influenciaram na montagem final.

REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 Preceitos 2.1.1 Análise histórica

Como explica O’Hara (1995), a Inglaterra dos anos 1970 enfrentava uma séria crise política e segregação econômica. Os jovens de subúrbio (a maioria de classe média) não via uma perspectiva de vida diante de uma sociedade “quebrada”, onde o desemprego batia à porta para todos aqueles que já não tivessem dinheiro. Isso causava revolta. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos, ocorria o fim do movimento de segregação racial. Pretos e brancos agora tinham os mesmos direitos. Mas os brancos ainda detinham o poder. Isso também causava indignação nos jovens periféricos e mais pobres, que viam o racismo como irracional. Os direitos humanos começavam a ser levados mais a sério, inclusive com a declaração do então presidente Jimmy Carter, que ameaçou romper laços diplomáticos com todos os países que ignorassem os direitos humanos deliberadamente. No Brasil, vivíamos em meio a uma ditadura militar. Depois de muita re- pressão, as pessoas estavam lutando e morrendo por uma redemocratização. De acordo com Alexandre (2002), começaram a ser mais frequentes os ataques com bomba da população, os levantes populares, e os pedidos de anistia política a todos aqueles que tinham sido exilados. Em ascensão, a revolta dos jovens re- volucionários que pediam ora um regime de esquerda, ora uma democracia, ora anarquia. O cenário econômico também não era nada promissor. Os projetos de infraestrutura (como a Transamazônica e a usina de Itaipu) se mostraram falhos; os métodos de retrair a inflação também. A inquietação popular era enorme. De modo mais global, vivíamos o que poderia se chamar de pós-contra- cultura (embora essa ainda não tivesse extinta, e sim progredindo). Segundo Pereira (1988), a década de 60 veio para contestar o modelo padrão de vida.

TCCs 2019_2 --- 489 Jovens começavam a quebrar regras de vestimenta, sexo, drogas e música. Foi criada uma “consciência etária”2. Desde então, a juventude e a adolescência são tidas como épocas de rebeldia. Se nos anos 60 houve essa transformação, os anos 70 trouxeram a ra- dicalização. E o principal motor disso foi o punk. Os adolescentes dos anos 70, principalmente no final da década, cresceram em um mundo onde por um lado havia gritos de revolução, e do outro havia guerras, autoritarismo e crise econômica. Foram criados com a idéia de revolução e uma sociedade desman- telada. A vontade de mudar era grande. Os meios, pequenos. Portanto, usaram o meio tão usado antes como forma de rebeldia: a música. As letras de música punk eram inicialmente sobre o sistema social: a obri- gação de ir para a escola, trabalhar, casar, ter filhos. Com pouca perspectiva econômica e de futuro, se encaixar na máquina parecia improvável. Pouco de- pois, os discursos se tornaram mais políticos. Como explica O’Hara (1995), exigiam um governo mais justo, focado no desenvolvimento social e na dimi- nuição da diferença. No Brasil, na época, ainda estava em vigor o AI-5, que controlava os meios de comunicação e a arte. Era difícil importar e produzir músicas com teor crí- tico ao governo de modo escancarado. Mas isso não impedia. Nos subúrbios da zona norte de São Paulo, no bairro da Vila Carolina, jovens periféricos já demonstravam sua indignação montando gangues e criando pequenas revolu- ções. Alexandre (2002) conta como o punk foi nascendo aqui pouco a pouco, com a importação ilegal de discos, vendidos nos portos e revendidos em becos da cidade. Alguns adolescentes rebeldes foram conhecendo a música por meio desses e de fanzines3, que mostravam um pouco do movimento internacional. Esses jovens criaram o primeiro grupo punk do Brasil, o Carolina Punk, uma gangue de adolescentes mal-encarados que brigavam por tudo. Aos pou- cos, o movimento foi se espalhando pela cidade, combinado à cultura urbana. O objetivo então era tomar o centro, chamar a atenção, e revolucionar. Não à toa, um dos primeiros grupos chamava-se AI-5 e cantava versos como “Eu não agüento mais ouvir falar em John Travolta/nem em Olivia Newton John/Eu não suporto mais ouvir falar nem/nos Bee Gees e na roqueira Rita Lee”. Os shows eram pontuados com sexo, drogas e muitas, muitas brigas. Mas, em todos os aspectos, era um ambiente livre. As músicas cantavam sobre racismo, machismo, xenofobia e homofobia. Iam contra o nacionalismo e o autoritarismo. Portanto, 2 Consciência etária: termo cunhado por Pereira, diz que é na adolescência que a pes- soa tem inclinação a criar uma consciência e contestar o mundo. 3 Fanzine: espécie de revista de baixo custo, sobre assunto específico. Feita a mão, em casas, e impressas em cópias baratas em preto e branco. Muitas vezes desenvolvidas com re- cortes de outras revistas.

TCCs 2019_2 --- 490 não demorou a conquistar jovens revolucionários. Com o advento da música jovem como modo de contestação social, o punk foi perdendo terreno ao longo dos anos. Outros gêneros foram surgindo, como heavy metal, que prometiam trazer as mesmas questões. Mas apesar de tudo, o punk não morreu. E está intrinsecamente ligado à cidade grande e à sua cultura. Shows ainda acontecem diariamente em porões, bares e cenários underground. Em um cenário internacional, a banda Panic! at the Disco, com influências punk e rock clássico, esteve entre os dez discos mais vendidos de 2017. As bandas Green Day e Blink-182, precursores do punk nos últimos 20 anos, lançaram discos em 2016, e alcançaram cerca de 750 mil cópias físicas vendidas (os dados não abrangem vendas digitais e downloads ilegais). Em um mundo onde cada vez mais se discutem direitos humanos e discri- minação social, não é de admirar que o punk ainda encontre espaço, pois esse foi o primeiro gênero musical a levantar as questões. Na cidade de São Paulo, pelo menos uma vez por semana é possível en- contrar shows de punk. As casas ficam lotadas com pessoas de todas as idades, dos 16 aos 66, cantando a plenos pulmões sobre as injustiças sociais. As pautas do punk nunca se desgastam ou saem de moda no cenário urbano. Em abril de 2018, a banda Não Há Mais Volta anunciou um ato a ser realizado no feriado do Dia do Trabalho na Praça da Sé, organizado por algumas pessoas da plateia. Junto ao convite, vem um discurso. Se como exemplifica Henry (1989), o punk nasceu por conta da falta de empregos dos jovens, ainda hoje faz sentido a indignação, já que temos a maior taxa de desemprego de jovens nos últimos 30 anos, segundo a Organização Internacional do Trabalho. A média é que, a cada três pessoas entre os 14 e 24 anos, uma esteja desempregada. A média se equivale à Síria. Nos shows de punk, fala-se sobre desemprego, falta de dinheiro e oportunidades, depressão. E então, canta-se sobre isso.

2.1.2 Visão política Outro ponto em voga é o posicionamento político. O’Hara (1995) explica que em sua maioria, os punks são anarquistas e contra o fascismo. Nos últimos cinco anos, temos visto na sociedade uma onda crescente de ideais fascistas. Nas ruas de grandes capitais do mundo inteiro, pessoas marcham pregando a supremacia branca e o totalitarismo governamental (aconteceram protestos racistas em Boston e em Charlottesville [em agosto de 2017], ambas cidades dos EUA; aqui no Brasil, diversas manifestações pré-eleição de 2018 mostravam mensagens de apoio à Ditadura Militar). A suástica, usada por Hitler, vira estan- darte e aparece ilustrando cartazes e pixada em muro. Agora, levemos em conta que grupos punk “organize benefit and (...) di-

TCCs 2019_2 --- 491 rectly work with needy people. We (the punks) oppose racism, sexism, ho- mophobia, militarism, violence, ageism, economic inequality and censorship among other things.”4 (Folheto apud O’Hara, 1995). Logo, é esperado que a subcultura punk se levante contra o fascismo. Nasce aí um subgrupo punk: o Antifa (antifascismo). Gentili explica que o Antifa é quase tão antigo quanto o fascismo, e age até hoje na sociedade.

(...) l’antifascismo militante contemporaneo si sia rivelato decisivo l’incrocio tra politica di strada, sottoculture giovanili, musica, proletariato illegale e gang. All’interno di um simile DNA non c’è molto spazio per le istituzioni, ormai al culmine di quel percorso che ha sortito l’effetto di espellere l`antifascismo da qualunque consesso civile, con il paradossale risultato di tornare a trasformare in banditen. (...) Ed è a partire da questa osservazione che antifa coglie un risultato, sollecitando chiunque si occupi di storia a mettere in discussione le categorie impiegate fino a oggi per periodizzare l’agire umano. (GENTILI, 2014, p.6)5

Antifa e punk estão intrinsecamente ligados. As maiores bandas punk can- tam sobre isso, e os principais precursores de grupos Antifas carregam estan- dartes punks em suas roupas. A banda punk Flicts, uma das principais do ce- nário nacional, serve de hino com seus versos “Antifa!/ Desmascarar o facho6/ desmascarar o fascista que é você”. Os grupos antifascismo atuam diretamente na cidade, fazendo atos, fechando ruas, andando pelo centro. Nas periferias, há uma atuação direta pelos grupos Juventude Antifascista e Periferia Antifa. Eles reúnem jovens para dar cursos, discutirem assuntos em voga no cenário político e social, além de tomarem a frente com governantes para tentarem melhores condições de vida para jovens em situações vulneráveis. Outro propulsor comum à subcultura punk é o anarquismo. O’Hara (1995) explica que o anarquismo obedece à vários ideais hardcore, portanto

4 “organizamos benefícios e (...) trabalhamos diretamente com pessoas necessitadas. Nós (os punks) nos opomos ao racismo, sexismo, homofobia, militarismo, violência, discrimina- ção etária, desigualdade econômica e censura acima de tudo.” Tradução livre da pesquisadora. 5 “O antifascismo militante contemporâneo provou ser o cruzamento decisivo entre política de rua, subculturas jovens, música, proletariado ilegal e gangues. Dentro desse DNA não há muito espaço para as instituições, agora no auge do percurso que teve o efeito de expulsar o antifascismo de qualquer congresso civil, com o resultado paradoxal de voltar a se transformar em bandidos. (...) E é dessa observação que Antifa atinge um resultado, instando qualquer um envolvido na história a questionar as categorias empregadas até hoje para perio- dizar a ação humana.” Tradução livre da pesquisadora. 6 Gíria dos antifas para “fascista”.

TCCs 2019_2 --- 492 seria o meio político mais aceito.

Punks have turned to anarchism as an alternative to the world`s existing system and the continue cycle of oppression each revolution brings. The nature of governments (and hierarchies in general) involves oppression and exploitation of the people living under it (or affected by it). Unlike other youth bourgeois counter-cultures, punks reject communism and the left wing of traditional democratic governments as well as capitalism. Reforms made by ruling parties are often condemned as stateist (favoring the maintenance of a formal government) and superficial. Reforms are granted to appease and not to free the people involved. Regarding communist, many punks have been in agreement with the movement’s support of woman’s right, the working class, and a shared distaste for capitalist society. (but) anarchist realize (..). that the realities of communism have been far from the goals of an ideal anarchist state. 7 (O’HARA, 1995, p. 57).

Portanto, não é difícil imaginar o porquê do punk ainda hoje estar presente e atuante em nossa sociedade e em nossa cidade mesmo nos dias de hoje.

3 DESENVOLVIMENTO DA PEÇA

A pesquisa foi apresentada no formato de um livro-reportagem foto- gráfico, o qual explorou, no início, o contexto histórico do punk, e desenvol- veu-se majoritariamente apresentando as vivências e histórias de personagens da subcultura punk na cidade de São Paulo. Foi dividido em sete capítulos: os dois primeiros são, basicamente, con- texto histórico. Para desenvolvê-lo, baseei-me em entrevistas e nos textos do referencial teórico. Os outros capítulos exploram mais ativamente os paradig- mas da subcultura. Foram escritos com base na vivência e em entrevistas, além de relatos e registros audiovisuais. O livro foi dividido de modo cronológico (para a narrativa) e em sete

7 “Punks se viraram para o anarquismo como uma alternativa aos sistemas existentes no mundo de um ciclo contínuo de opressão que cada revolução traz. A natureza de governos (e hierarquias no geral) envolvem opressão e exploração das pessoas que vivem sob eles (ou são afetadas por eles). Ao contrário de outras contra-culturas burguesas, punks rejeitam comunismo e a esquerda de governos democratas tradicionais tanto quanto o capitalismo. Re- formas feitas pelos partidos de poder são com frequência tidas como estatistas (favorecendo a perpetuação de um governo formal) e superficiais. Reformas são garantia de apaziguar, e não libertar o povo. Quanto ao comunismo, muitos punks apoiam os ideais de direitos das mulhe- res, da classe trabalhadora e um desgosto pelo capitalismo. (mas) anarquistas percebem (...) que as realidades do comunismo estavam longe dos objetivos de um estado anarquista ideal. “ Tradução livre da pesquisadora.

TCCs 2019_2 --- 493 capítulos, cada um apresentando um preceito da subcultura punk - embora esses, eventualmente, se misturem (principalmente para a extensão da peça não destoar de outras do estilo). A divisão aconteceu para poder detalhar cada aspecto e dividir as histórias. São os capítulos: um prefácio explicando, em pouco mais de uma página, o surgimento do movimento globalmente; uma contextualização do caos político nos EUA, Inglaterra e Brasil no final da década de 1970 (data do surgimento do punk); o começo do punk no Brasil - em São Paulo, Zona Norte - e a ex- ploração do meio urbano; a rixa eterna entre a subcultura e a Polícia Militar; as visões antifascistas; os posicionamentos anarquistas e, por fim, a exaltação da liberdade (narcótica, sexual, de gênero). O início da apuração foi com idas a shows e eventos punks. O objetivo principal era a captura de imagens, mas acabei encontrando boa parte das fon- tes lá. Entre conversas em fumódromo e bares, ouvi histórias inacreditáveis e conheci pessoas incríveis, que me ajudaram a ter uma visão completamente di- ferente de um submundo escondido na cidade. Outras entrevistas foram feitas com integrantes de bandas do movimento, tanto atuais quanto precursoras do movimento. Outros materiais apurados foram fanzines escritas entre 1982 e 1991, e uma de 2014; músicas antigas e novas, algumas internacionais mas majoritaria- mente de bandas de São Paulo. Além disso, também foi importante o documen- tário Botinada: A Origem do Punk no Brasil (2006), do radialista e especialista de rock Gastão Moreira; outro produto audiovisual interessante (pois citado por uma das fontes) foram reportagens feitas pelo programa de televisão Fan- tástico, da TV Globo, em 1982. Percebi uma divergência entre produtos feitos por pessoas envolvidas no meio e fora dele - e tentei achar um equilíbrio no discurso ara, assim, alcan- çar o objetivo principal dessa peça: desmistificar o punk e trazer à tona suas principais vertentes e ideais, e como isso influenciou e influencia a cidade de São Paulo. Para isso, vali-me de uma prática mais jornalística de descrição de cenários e apuração de dados. Cerca de uma dúzia das fotos são de terceiros, e foram usadas, majorita- riamente, como contexto histórico - não havia possibilidade de fazer fotos no estilo hoje em dia. Algumas são, também, capas de discos e pôsteres de eventos da década de 1980, e fotocópias de fanzines. De produção da autora, há 40 imagens, coloridas e pretas e brancas- como exigido pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie e pela secretaria do Centro de Comunicação e Letras. A parte textual, porém, ultrapassou os 25 mil caracteres tidos como mínimo, e há mais de 50 mil (excluindo as letras de música usadas para contexto), número exigido para uma grande reportagem. Pela exploração

TCCs 2019_2 --- 494 de ideias, configura-se um pouco como ambos, mas o foco é na fotografia. O visual da peça foi, em partes, inspirado nas fanzines, bem populares en- tre os punks: alusões a papel rasgado, recortes, e partes datilografas. Porém, o visual é, acima de tudo, limpo e espaçado - com imagens pesadas e escuras, não ficaria legível algo totalmente “punk” no estilo. As cores da paleta principal foram o rosa, o verde e o amarelo, todos em tons bem vívidos - inspirados nos trabalhos dos Sex Pistols, primeira banda punk da história, e no single “God Save The Queen,” (1977), o mais famoso da banda (a capa mostra um recorte da rainha Elizabeth II com os olhos tampados pela frase “Deus salve a rainha,” uma ironia dos anarquistas).

3.1 Livro-fotográfico Como explicou Dubois (1993), a fotografia nasceu, para a mídia, como algo passível de “prestar contas do mundo com fidelidade,” ou seja, espelhar o real e fazer valer o que mostra, puramente. Não demorou para ir além: da imagem, além do real, logo vieram as explorações de signos e a foto passou a ser “como a língua, [...] culturalmente codificada.” (Dubois, 1993, p. 26) Baseando-se no ideal de Alexandre (2002), nota-se que não há, necessaria- mente, um “real” quando se trata da captação de imagens sociais. Há diversos lados da história, e é impossível analisar as imagens da peça desenvolvida aqui se ignorarmos o lado semiótico (e, no caso, social) de cada uma das fotos. Explora-se, então, o que Dubois (1993, p. 27) chamou de “a fotografia como transformação do real,” ou seja, trabalhos levando em conta a semiótica dos signos apresentados. Para o autor (idem), essa abordagem da fotografia é principalmente váli- da para explorar um lado antropológico do fato apresentado. “A significação das mensagens fotográficas é de fato determinada culturalmente, ela não se impõe como evidência para qualquer receptor, sua recepção necessita de um aprendizado dos códigos de leitura. Todos os Homens não são iguais diante da fotografia.” Para ele, portanto, a imagem tem o poder de, semioticamente, transmitir imagens que vão além do “preto no branco.” Mas, para isso, é necessário uma significação prévia – para deixar evidente ao receptor a mensagem. Parte daí a necessidade do texto em Punk!SP. Com o contexto de cada capítulo, a significa- ção faz-se presente – de outro modo, os signos seriam perdidos. Isso vai ainda de acordo com a anedota que Dubois contou na obra citada acima, extraída do artigo “On The Invention of Photographic Meaning,” de Alan Sekulla:

TCCs 2019_2 --- 495 O antropólogo Melville Heskovits mostrou um dia a uma aborígene a foto de seu filho. Ela foi incapaz de reconhecer a imagem até o antropólogo atrair sua atenção para os detalhes da foto (...) A fotografia não comunica qualquer mensagem para aquela mulher até ter uma descrição. (...) Uma transposição para a língua que torne explícitos os códigos que procedem à composição da foto é necessária para sua composição pelo aborígene. O dispositivo fotográ- fico é, portanto, de fato um dispositivo codificado culturalmente. (SEKULLA apud DUBOIS, 1993, p. 42)

Com a junção, então, da imagem como fuga do real por si só e alinhada ao artifício da linguagem (os textos apresentados), apresenta-se ao leitor um significado pleno e completo daquelas histórias e preceitos. Foi inspirada no trabalho de Dubois e Sebastião Salgado, fotógrafo reco- nhecido por trabalhos exploratórios, que decidi me aprofundar no fotodocu- mentarismo para esta peça. Vale ressaltar que a diferença entre este meio e o fotojornalismo é, como explicou Sousa (1998), o imediatismo – pois este quer mostrar um fato único e aquele deseja explorar um assunto mais a fundo.

Em sentido restrito, o fotojornalismo distingue-se do fotodocumentalismo. Esta distinção reside mais na prática e no produto do que na finalidade. Assim, o fotojornalismo viveria das feature photos e das spot news, mas também, e talvez algo impropriamente, das foto-ilustrações, e distinguir-se-ia do fo- todocumentalismo pelo método: enquanto o fotojornalista raramente sabe exactamente o que vai fotografar, como o poderá fazer e as condições que vai encontrar, o fotodocumentalista trabalha em termos de projecto: quando inicia um trabalho, tem já um conhecimento prévio do assunto e das condições em que pode desenvolver o plano de abordagem do tema que anteriormente traçou [...] O documentalismo social, enquanto forma mais comum de fotodo- cumentalismo, procura abordar, mais ou menos profundamente, quer temas estritamente humanos quer o significado que qualquer acontecimento possa ter para a vida humana ou ainda as situações que se desenvolvem à superfície da Terra e afectam a mundivivência do Homem. Enquanto o fotojornalista tem por ambição mais tradicional “mostrar o que acontece no momento” (Sousa, 1998, s.p.)

3.2 Grande reportagem Como relatou Martinez (2009), o jornalismo literário (ou grande repor- tagem) é um gênero em expansão. Faz sentido em uma sociedade que um grande furo não vale para um só – em menos de uma hora, já estará em todos os lugares. Há, então, a possibilidade de diferenciar-se ao aprofundar-se em um assunto. A escolha do estilo é plausível nesse modo. Para o modelo e para a proposta, também, faz sentido uma apresentação apresentada e diferenciada do texto. Se explora-se uma cultura inteira, não

TCCs 2019_2 --- 496 precisamos de um lead, e sim de profundidade e entendimento. Junta-se ao tema, também, por tentar quebrar um padrão imposto há muito: o “jornalismo quadrado,” para dar espaço ao que Castro (2010, s/p) chamou de “uma anar- quia estilística.” Mas é importante notar que a quebra, aqui, é no estilo, e nunca no valor notícia. Este é o objetivo do jornalista literário: contar uma história. Verdadeira. E bela.

É, por isso mesmo, um tipo específico do fazer jornalístico que não exclui a princípio nenhum recurso metodológico ou narrativo: diálogos, perfis, contos, cordéis, entrevistas, poesias, pingue-pongues, crônicas, matérias informativas convencionais, relatos na primeira pessoa, notinhas, cartas, ensaios, artigos, fragmentos, tudo ou quase tudo é permitido desde que se saiba usar com ta- lento, engenho e bom senso. É exatamente por ser livre, desafiador e arriscado ao ser manipulado, que o Jornalismo Literário foi pouco entendido, até porque pode ser visto mais como uma anarquia estilística do que em seu aspecto sistêmico e complexo.[...] Convém dizer também que o que está em discussão no Jornalismo Literário é a própria noção de informação, que amplia o seu espectro, deixando de ser matematizada (o máximo de informação no mínimo espaço) para ser multifocal e complexa (possibilidades múltiplas; diversidade na unidade e economia da informação unida à beleza da expressão). (idem)

Assim, procurei, ao mesmo tempo, contar essa verdade e explorar os limites da escrita criativa com as técnicas jornalísticas padrões.

3.3 Diagramação A escolha do livro-fotográfico foi, principalmente, pelo processo de se- miótica através da linguagem, das imagens, do formato, dos signos no geral. A subcultura punk é rica em signos de representação visual e textual. Desde os seus trajes, passando pelos seus valores e indo até seus atos, um livro-foto pode demonstrar aos leitores um pouco mais sobre esse meio antropológico. Primeiro, tratemos sobre o visual. A peça foi inspirada nas antigas fanzines. No surgimento da cena underground, a grande mídia retratava os punks como baderneiros, violentos, rebeldes e sem respeito (O’HARA, 1995). Não havia espaço para as bandas nas revistas de música e nem para a ideologia em lugar algum. Portanto, para driblar isso, o método usado foi a fanzine. Nos porões de suas casas, jovens usavam papel barato, recortes de fotos e cópias em toner para falar sobre os shows, o movimento, e seus atos. As fanzines tinham uma proposta gráfica impensável, porém uniforme, pelo modo como eram feitas. As letras eram batidas em máquina de escrever, as imagens recortadas grosseiramente com tesouras, formando colagens. Nos rostos das pessoas, muitas vezes havia rabiscos, de modo a identidade não ser

TCCs 2019_2 --- 497 reconhecida facilmente. Não eram coloridas, eram feitas em sulfite simples, sem numeração, grampeadas. A peça a ser realizada terá sua proposta gráfica inspirada nas fanzines: a montagem, a tipografia, os recortes. Porém, será apresentada em couchet, com capa maleável, e colorida. Porém, apesar da inspiração, não há como apresentar um trabalho acadê- mico de qualidade com um visual 100% artesanal e desleixado, pois a leitura não é contínua e a página, extremamente poluída. Por isso, há inspirações, mas as fontes serão sem serifa, as imagens priorizando recortes retos. Há alguns momentos em que a inspiração fica mais evidente: o primeiro deles, nas páginas retiradas de fanzines antigas. No segundo, nas montagens e sobreposições de fotos. E, por último, nas páginas de músicas apresentadas - datilografadas de fato em máquinas de escrever, usando papel vegetal, e colando à mão nas páginas apresentadas. Nelas, também, há códigos QR. Quando lidas, as imagens codificadas le- vam à página no YouTube na qual a música em questão está hospedada. É uma maneira de fácil acesso tecnológico. Ao todo, o livro tem 112 páginas dividas assim:

3.3.1 Capítulo Um - Prefácio Como forma de, inicialmente, contextualizar, o primeiro capítulo do livro buscou apresentar o movimento. Como surgiu, como se espalhou, sua refração ou propagação - tudo isso com um viés social do mundo da época. É o único com citações diretas de outros autores e livros acadêmicos.

3.3.2 Capítulo Dois - O Mundo em Caos - 1976 Aqui, há uma visão global da tensão do mundo. O foco é, principalmente, o clima da Guerra Fria nos EUA e Europa e a repressão da Ditadura Militar no Brasil. Além disso, fala-se da crise econômica advinda do petróleo e inflação em nível global, que resultavam na miséria.

3.3.3 Capítulo Três - Material de Conteúdo Subversivo - 1977 É a parte textual que mostra a resposta dos jovens a isso - e o surgimento do punk como contestação no mundo todo. Fala do que eles tratavam nas mú- sicas e nas fanzines, e contextualiza com as reivindicações atuais. O título foi dado para relembrar a justificativa que os oficiais da Ditadura Militar davam para recolher material punk, interromper shows e prender mú- sicos: nos relatórios, dizia-se que era tudo “material de conteúdo subversivo.”

TCCs 2019_2 --- 498 3.3.4 Capítulo 4 - Pânico em SP Este é uma grande mistura entre os anos 1970 e os anos 2010 para mos- trar um aspecto quase intocado em todas essas décadas: a rixa entre a Polícia Militar e os punks. Há relatos antigos e novos, mas focando no atual. O nome do capítulo é uma alusão à faixa “Pânico em SP,” da banda paulis- tana Inocentes.

3.3.5 Capítulo Cinco - Bella, ciao Um dos maiores e principais do punk é o antifascimo. Aqui, exploro as brigas atuais do grupo com o movimento político atual - focando nas brigas e lutas diárias do grupo, que acontecem todos os dias e a céu aberto em São Paulo, mas passa despercebido. O título do capítulo é uma alusão à canção italiana “Bella Ciao,” hino da nação europeia na luta contra o fascismo da II Guerra Mundial.

3.3.6 Capítulo Seis - Deus salve o presidente Outro ideal presente na maioria dos integrantes da contracultura é um posicionamento político a favor da anarquia. Herda esse ideal muito pelo con- texto em que surgiu o movimento, a Guerra Fria, pois via-se pontos negativos em ambos os viés políticos. Hoje, porém, são aceitos posicionamentos mais voltados para a esquerda. O nome dado ao trecho é uma alusão à “God Save the Queen,” música de 1977 dos Sex Pistols - o maior hino anarquista da época. Como aqui não há rainhas, quem precisaria se cuidar é o presidente.

3.3.7 Capítulo Sete - Onde está a liberdade? No capítulo final, deixa-se um pouco de lado as lutas diretas para focar num aspecto mais leve e que é, ao mesmo tempo, tudo o que os punks (e talvez todo o mundo) mais deseje: a liberdade para fazer o que quiser e ser quem quiser, também. Falarei, aqui, da igualdade de gênero, da liberdade sexual, da liberdade nar- cótica, e da sensação de igualdade. O título é uma alusão à canção “Liberdade [Onde está],” 1993, dos Garotos Podres.

TCCs 2019_2 --- 499 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este não foi um trabalho fácil. A começar pelas dificuldades que, imagino, todo aluno enfrenta (a vontade de fazer um bom trabalho, o prazo, as tecnicida- des). Depois, pelo tema sensível, e pela proximidade necessária às fontes – não se consegue uma confissão do fundo do coração do dia para a noite. Mas esta seja, talvez, a recompensa do jornalista – uma bela história. A peça mudou bastante desde a construção do projeto de pesquisa. Ini- cialmente, um documentário seria desenvolvido. Ele foi enterrado após per- ceber que não é fácil fazer um sozinha. As entrevistas, em shows e eventos, aconteceriam de madrugada. Não há ajuda disponível a esse horário – e não há dinheiro para contratá-la, tampouco. Sendo impossível olhar uma câmera e nos olhos de quem entrevista ao mesmo tempo, e ajustar o som enquanto ouve o que se diz, foi descontinuado. Mas havia, também, a proposta de um folheto/fanzine para acompanhar o DVD. Para este, fotos, algumas já clicadas. A proposta era contar histórias que ficassem de fora do documentário, que seria algo mais explicativo. Segui nesta linha, e fiz um livro-fotográfico. E, também, um material equivalente auma grande reportagem – havia histórias suficientes para isso. Foram necessários alguns ajustes, mas em suma, tudo andava como o pla- no. Meu objetivo inicial é – e sempre foi, desde o início desta empreitada – mostrar como vive a subcultura punk na cidade de São Paulo. Principalmente, aqueles aspectos escondidos por trás dos estereótipos da violência e arruaça. Mostrar a alma e coração das entrelinhas das histórias difíceis. Por isso, mantive os formatos de pesquisa (exploratória e explicativa). Não houve alteração na primeira parte. Na segunda, no lugar de vídeo, usei palavras escritas. Foi, talvez, uma boa escolha. Pude exercitar o que sempre mais gostei de fazer – de redações em folhas de almaço ao término de graduação. Foi um bom modo de explorar cada aspecto de uma pesquisa descritiva, pois a seleção e apresentação de informações dependeu de mim e de minhas obser- vações – não apenas do que resolveram me contar na frente de um microfone e de uma câmera. Mas na escolha do texto escrito, houve o medo de não ser tão exata quanto palavras ditas seriam. Contar as histórias, porém, foi um pouco complicado. Minhas fontes não querem que ninguém saiba seus nomes (apenas um menino quis me dizer o nome de verdade. Os outros, foram apelidos como “Meleca,” “Bobão,” “Mos- ca.”) e têm medo de mostrar o rosto pela ameaça constante. Para um livro-fo- tográfico e grande reportagem, foi um desafio bem grande.

TCCs 2019_2 --- 500 O referencial teórico também teve alterações. Em primeiro lugar, para as bases das peças. Mas, também, de conteúdo exploratório. Não encontrei, real- mente, um livro que falasse do punk no Brasil. Não um que tivesse menos de 30 anos, por aí. É difícil fazer uma análise social (e parcialmente política), como aluna de graduação, de um fenômeno não muito explorado. Por isso, toda a base teórica e social foi escrita com “naquela época,” lembrando o início do movimento no final dos anos 1970 e início de 1980. Dali, retirei padrões de comportamento e de ideologias. Para fazer análises atuais, baseei-me em fanzi- nes publicadas depois dos anos 1990 e em entrevistas com “a galera” do punk. Uma pesquisa mais leve, creio, para tentar criar um panorama atualizado de um fenômeno de décadas. No geral, o referencial teórico ajudou bastante na parte técnica – mas deixou um pouco a desejar nas bases teóricas. Este, porém, foi um trabalho no qual foi possível fazer a vontade de mui- tos jornalistas – mergulhar em um tema, conhecê-lo a fundo, dissecá-lo, viver, aprender, e levar todo o tempo do mundo para apurar. Para, então, apresentar este calhamaço-de-um-assunto-só, tão característico do aclamado “jornalismo literário” que não nasce em um mês só (e, por horas, dá vontade de arrancar os cabelos e jogar a toalha e gritar “eu não aguento mais!” Mas aguentamos). Foi um trabalho difícil para duas mãos – a pesquisa bibliográfica, as pes- quisas de campo, as entrevistas, a escrita dos textos, captura de fotos, edição das mesmas, diagramação (e a descoberta autônoma de quais são as escolhas certas para um livro), correção, revisão, mais uma correção, relatos acadêmicos – mas acredito ter explorado bem o que me propus a estudar. Descobri, nessa pesquisa, mais do que os olhos poderiam ver de qualquer outra maneira. Vi um mundo que não conhecia de estar sempre sentada em confortáveis cadeiras de ótimas escolas. E acredito que, como uma jornalista, consegui apresentar um pouco dessa história oculta para aqueles que leem. De um jeito, espero, que envolva e entretenha – e faça reflexão. Esse é, afinal, o desejo de um bom texto.

TCCs 2019_2 --- 501 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

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TCCs 2019_2 --- 503 TCCs 2019_2 --- 504 Para conhecer o trabalho completo, acesse o QR Code abaixo TCCS

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