TERRAS DE QUILOMBO
CAMINHOS E ENTRAVES DO PROCESSO DE TITULAÇÃO
GIROLAMO DOMENICO TRECCANI
Orelha
Durante séculos as comunidades remanescentes de quilombo permaneceram cercadas da “invisibilidade”, à qual tinham sido relegadas pela historiografia oficial. Se no passado esta invisibilidade era uma forma de proteção contra as ameaças externas, hoje milhares de comunidades negras não só desejam sair do antigo isolamento, como querem o reconhecimento de seus direitos territoriais e de seus valores culturais. Um século após a abolição formal da escravidão, os quilombos perderam a invisibilidade jurídica e conquistaram o direito a uma existência legal.
A constituição de territórios étnicos espalhados por todo o Brasil se, num primeiro momento, foi um fator decorrente da segregação social, possibilitou o fortalecimento de mecanismos de defesa da identidade cultural. Por isso o reconhecimento do domínio destes territórios é muito mais do que a concretização de uma política fundiária, pois se transformou em um elemento de resgate da cultura afro-brasileira, dando origem a uma nova cartografia social de matriz étnica, baseada na ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
A pesquisa histórica comprovou que, enquanto acontecia um lento e gradual processo de libertação dos escravos, a legislação lhes negava o acesso à terra, considerando como crime a ocupação da mesma. Infelizmente, para os negros e para o Brasil, não se concretizou o sonho da princesa Isabel em doar terras aos escravos no momento de sua libertação.
Hoje, ao expedir o título de reconhecimento de domínio, o Estado brasileiro não só repara uma dívida histórica, mas resgata elementos fundamentais de um dos grupos sociais que construiu a identidade nacional. Por isso a luta das comunidades remanescentes de quilombo por seus territórios pode ser apontada como o maior fato jurídico dos últimos quinze anos no campo brasileiro, pois esta mobilização política emerge num contexto no qual os negros resistem às medidas administrativas e políticas de negação de seus direitos.
Os quilombolas vivem na pele o que as autoridades iniciam a descobrir: quem paga a principal conta da desigualdade neste país são os negros. Por isso se associam às palavras pronunciadas pelo presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, quando assinou o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003: “O fato de os quilombos ainda não terem sido regularizados, há 115 anos da abolição, diz muito sobre a inércia branca que sempre comandou a vida política nacional”. Passados dois anos daquela data, cuja cerimônia aconteceu de maneira significativa em União dos Palmares (Alagoas), berço do mais famoso e duradouro quilombo da época colonial, muitos entraves burocráticos permanecem dificultando a massificação das titulações, mas os quilombolas têm uma certeza: seu direito à terra está chegando e sua organização saberá vencer todas as dificuldades.
Quem conseguiu derrotar o latifúndio escravocrata vencerá a guerra contra a burocracia estatal e o agronegócio.