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Aparecida de Araújo Oliveira

Relações semântico-cognitivas no uso da preposição ‘em’

no português do Brasil

Belo Horizonte

FALE - UFMG Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos 2009 2

Aparecida de Araújo Oliveira

Relações semântico-cognitivas no uso da preposição ‘em’ no

português do Brasil

Pesquisa apresentada à Banca de Defesa de Tese no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras de Universidade Federal de Minas Gerais. Área de Concentração: Linguística Linha de Pesquisa: Estudos da Inter-relação entre Linguagem, Cognição e Cultura. Nível: Doutorado Orientadora: Dra. Heliana Ribeiro Mello (UFMG)

Belo Horizonte

FALE-UFMG

2009

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Ao Baiano e à Marta

À Carminha, à Gracinha, À Lucinha e ao Leninho

Ao Hebert, À Olívia e à Jackie

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Agradecimentos

Meus mais sinceros agradecimentos ...

À minha orientadora, Professora Doutora Heliana Ribeiro Mello, por sua confiança e por ter me proporcionado esta rica experiência de aprendizagem e crescimento acadêmico e de amizade, que já caminha para uma década e que espero que continue por outras mais.

Ao Professor Augusto Soares da Silva, da Universidade Católica Portuguesa, por seus ensinamentos, críticas e incentivo durante o período que me recebeu para doutorado sanduíche naquela instituição e pela amizade que tem me demonstrado desde então.

Aos membros da Banca de Defesa de Tese, Professora Margarida Salomão, Professora Ana Paula Rocha, Professor Mário Perini e Professor Luiz Francisco Dias, por suas importantes contribuições para o enriquecimento desta pesquisa e pela oportunidade que me concederam para uma enriquecedora discussão teórica.

A todos os professores e funcionários do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG – e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior – CAPES, pelas bolsas que me concederam em períodos diferentes do curso de doutorado.

Aos alunos do curso de psicologia da FUNEDI-UEMG, de Divinópolis-MG, que foram voluntários no experimento psicolinguístico, e ao meu grande Amigo, Maurício Faria, professor daquela instituição, que intermediou esse contato.

Aos alunos dos cursos de Agronomia e Administração de empresas, da Universidade Federal de Viçosa, do campus Rio Paranaíba, que também participaram como voluntários nesta pesquisa e à Professora Fernanda Alcântara, atualmente na UFV sede, que me incentivou nessa empreitada junto a esses alunos.

Ao amigo, Professor Pedro Ivo Vieira Good God, da UFV, por sua generosidade imensa e por suas soluções práticas e teóricas a respeito dos métodos estatísticos empregados nesta pesquisa.

Ao Professor Alan Jardel e a André Luiz de Souza, que colaboraram comigo nas primeiras experiências com programas estatísticos.

À Professora Hanna Batoreu, da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, por suas intervenções com relação aos usos espaciais de preposições. 6

Ao Professor Anathol Stephanovisch, da Universidade de Bremen, por seus comentários sobre a construção de um corpus delimitado.

Ao Professor Stephan Gries, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, por suas sugestões para o experimento psicolinguístico.

A Jackeline de Oliveira Souza e a Bruno Luiz Soares por sua indispensável ajuda na limpeza dos textos em HTML e na transcrição das entrevistas.

Um agradecimento caloroso a Rosália, Maria Marlene, Ângela, Roseni, Maria Ângela, Marilene, Cirene, Flávia, Fernanda, por me fazerem acreditar em meus objetivos e por me ajudarem a lidar com as perdas pelo caminho.

A esses e a toda minha família querida, que nunca desistiram de mim, mesmo eu praticamente os tendo abandonado durante esses anos de estudo.

A todos que eu não menciono aqui, por puro cansaço da memória, mas que estiveram comigo, apoiando e cuidando, ora mais visíveis, ora menos, mas sempre lá.

E obrigada a Quem cuidou de pôr toda essa gente no meu caminho e me ensinou que, assim como a maioria das coisas na vida, uma tese não se escreve sozinha. 7

Resumo

O interesse na semântica de preposições por linguistas cognitivos tem propiciado uma rica literatura sobre modelos de rede de polissemia, baseados no conceito de categorias prototípicas. Apesar de sua reconhecida coerência, esses modelos deram origem a críticas não apenas quanto à sua diversidade, mas, em particular, no que concerne a sua presumida natureza cognitiva (SANDRA & RICE, 1995 e CROFT, 1998), notadamente o grau de compatibilidade entre a visão do pesquisador e a do falante leigo. Inspirada por este último questionamento, esta tese apresenta uma análise semântico-cognitiva da polissemia da preposição em do português do Brasil, utilizando dois métodos empíricos: uma análise introspectiva baseada em um corpus de 1,2 milhão de palavras de textos jornalísticos e um experimento psicolinguístico com universitários não-treinados, falantes nativos do português do Brasil. Para explicar a polissemia dessa preposição, adotou-se especialmente o modelo teórico de linguagem baseado no uso e a noção de conceitualização (LANGACKER, 1987), a proposta da linguagem corporificada, em especial, esquemas imagéticos (JOHNSON, 1987), a noção de metáforas conceituais (LAKOFF & JOHNSON, 1980), a semântica de classes fechadas (TALMY, 2000) e funções relacionais envolvidas na semântica de preposições espaciais (VANDELOISE, 1991). O estudo explorou o aspecto cognitivo da proposta teórica em duas etapas: primeiramente, buscou-se explorar os processos cognitivos envolvidos na interpretação de usos sincrônicos da preposição e na ligação entre os mesmos, seguindo o modelo de rede esquemática (LANGACKER, 2008, 1987), que prevê relações de esquematização/instanciação e de sancionamento por extensão. A análise de 2813 ocorrências no corpus revelou dois sentidos esquemáticos para a preposição em , derivados do esquema imagético de contentor: localização e especificação. O primeiro é instanciado em vinte e duas categorias e subcategorias, que representam 86,78% dos usos, sendo oito pertencentes ao domínio espacial, três, ao temporal, e onze a outros domínios concretos e abstratos. O segundo aparece elaborado em nove subcategorias de especificação diversa, também de domínios concretos e abstratos, que emergem de efeitos funcionais de controle e de suporte. A maior parte da variação em contextos espaciais pôde ser explicada pela perspectivação conceitual e pela relação funcional Contentor/objeto contido. Os demais usos foram interpretados por meio de processos metafóricos e metonímicos. Na segunda etapa da pesquisa, 48 frases representando categorias obtidas na análise do corpus foram submetidas à avaliação de falantes não-treinados para serem agrupados por semelhança percebida. Cada informante também participou de uma entrevista após a tarefa de classificação, na qual descreveu as estratégias empregadas na sua execução. Utilizando os métodos estatísticos de hierarquia de agrupamentos e Tocher, de análise multidimensional, verificou-se um isomorfismo fraco entre a rede proposta pela pesquisadora e a avaliação dos participantes. Eles perceberam a estrutura relacional da rede e identificaram algumas das categorias menores previstas na análise de corpus, em um total de sete conjuntos de usos. A estrutura relacional da rede se manifesta, por exemplo, na associação de usos locativos e não-locativos em um grupo maior de usos metafóricos, de usos espaciais e não-espaciais em um grupo de localização e vários tipos de especificação (forma, cor, material, especificação abstrata) em uma categoria única mais ampla. Além disso, os sujeitos formaram grupos grandes e pequenos com diferentes índices de coesão interna, o que confirma a granularidade característica dessas redes, ainda que em menor escala, e a coerência das ligações entre as categorias semânticas. Palavras chave: semântica cognitiva – preposição em – rede esquemática de polissemia – perspectivação conceitual – relações funcionais – esquemas imagéticos – metáfora – metonímia – metodologia empírica

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Abstract

The great interest in the semantics of prepositions by cognitive linguists has allowed for the emergence of a wealth of network models of polysemy based on prototype theory. Despite their acknowledged coherence, these models have given rise to criticism on both their diversity and, particularly, the presumed cognitive nature of these explanations (SANDRA & RICE, 1995 e CROFT, 1998), notably the degree of compatibility between the linguist’s view and that of the non-informed native speaker. Inspired by the latter, in this dissertation we present a semantic description of the polysemy of the Brazilian-Portuguese preposition em , by using two empirical methods: introspective analysis of a 1.2-million-word corpus of journalistic texts and a psycholinguistic experiment involving untrained university undergraduates, all native speakers of Brazilian Portuguese. In order to explain the polysemy of this preposition, we adopted Ronald Langacker’s (1987) usage-based model of language and his concept of construal, Mark Johnson’s (1987) proposal of embodied cognition, mainly, his ideas about image schemata, George Lakoff & Mark Johnson’s (1980) theory of conceptual metaphor, Leonard Talmy’s (2000) closed-class semantics, and Claude Vandeloise’s (1991) study of functional relations as determinants of the meaning of spatial prepositions. The cognitive aspect of this theoretical approach was attained in two complementary stages: firstly, by following Langacker’s model of schematic network, we explored the cognitive processes involved in the interpretation of synchronic uses of the preposition, and those responsible for the coherent links obtained between them. This model consists of a structure containing sanctioning and schema/instance relations between the uses. The analysis of 2813 samples from the corpus revealed two highly schematic senses for the preposition em , derived from the CONTAINER schema: location and specification. The first is elaborated in twenty-two categories and subcategories, representing 86.78% of the uses, eight of them belonging to space domain, three, to time domain, and the remaining eleven, to various other concrete and abstract domains. As a result of the functional effects of control and support, nine categories were found to instantiate the latter sense of specification, also in various concrete and abstract domains. Most of the variation obtained in spatial contexts could be explained by construal effects and the Container/contained functional relation. Other uses were interpreted as emerging from metaphorical and metonymic processes. In the second stage of the research, thirty-two subjects were involved in a sorting task, in which they should group forty-eight sentences representing categories obtained in the previous analysis, by using a similarity criterion. This task was followed by individual interviews, in which subjects explained the strategies they used to complete the task. Statistical methods of cluster hierarchy and Tocher multidimensional analysis revealed a weak isomorphism between the network proposed by the researcher and the informants’ evaluation, i.e., they perceived its relational structure and distinguished some of the categories predicted from the corpus analysis, producing seven sets of uses. The relational structure of the network could be seen, for instance, in the association of locative and non-locative uses in a large group of metaphorical uses, of spatial and non-spatial uses in a schematic location category, and of various types of specification (shape, color, material, abstract specification) in a single larger set. Besides, subjects formed large and small groups with differing levels of internal cohesion, which corroborates the typical granularity of these networks, even if obtained on a smaller scale, and the coherent relations between the semantic categories. Key-words: cognitive semantics – Portuguese preposition em – schematic polysemy network – construal – functional relations – image schema – metaphor – metonymy – empirical methods

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...... 6

1.1. Objeto de estudo e problematização...... 6

1.2. Objetivos...... 12

1.3. Justificando a pesquisa...... 13

1.4. Resumo do capítulo e organização do texto...... 18

PARTE I – DISCUSSÃO TEÓRICA 21

2. SEMÂNTICA E COGNIÇÃO ...... 21

2.1. Corporeidade e cognição...... 22 2.1.1. Capacidades cognitivas a serviço da linguagem...... 23 2.1.1.1. A Simbolização e o sistema lingüístico...... 23 2.1.1.2. Esquematização...... 25 2.1.1.3. Comparação...... 29 2.1.1.4. Categorização...... 31

2.2. Conceitualização e linguagem...... 34 2.2.1. Definindo a categoria 'preposição'...... 36

2.3. Comentários finais sobre o capítulo...... 40

3. COGNIÇÃ O ESPACIAL E A LINGU AGEM ...... 41 3.1. Conceitos topológics e geométricos e a semântica das preposições...... 44

3.2. O conceito de ‘localização’...... 48

3.3. Limites no emprego de em como ‘localização’...... 50

3.4. Assimetria conceitual na relação trajetor-marco...... 52

3.5. Efeitos funcionais envolvidos na construção de cenas espaciais...... 55

3.6. Comentários finais sobre o capítulo...... 61 10

4. POLISSEMIA E COGNIÇÃ O...... 63

4.1. Rede de polissemia...... 64

4.2. O surgimento de um novo uso...... 67 4.2.1. Esquemas imagéticos e extensões de sentido...... 68 4.2.2. Metáforas conceituais e polissemia...... 71 4.2.3. Metonímia e a polissemia...... 74

4.3. Comentários finais sobre o capítulo...... 77

PARTE II – ASPECTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISES 78

5. METODO LOGIA – FASE I - Pesquisa de corpora ...... 80

5.1. Definindo a população...... 80

5.2. Coleta e preparação dos dados...... 81

5.3. Organização hierárquica do corpus...... 82

5.4. Listagem dos usos...... 84

5.5. Procedimentos de análise...... 86 5.5.1. Critérios para distinção entre usos...... 87 5.5.3. Metodologia para determinação dos esquemas sancionadores...... 89 5.5.4. Sentidos esquemáticos...... 90

5.6. Comentários finais sobre o capítulo...... 90

6. ANÁLISE DE OCORRÊNCI AS DO CORPUS ...... 92

6.1. Usos espaciais de em ...... 94 6.1.1. Inclusão...... 94 6.1.1.1. Inclusão em um meio...... 97 6.1.1.2 Inclusão de um trajetor vazio em um meio...... 98 6.1.2. Localização simples ou inespecífica...... 100 6.1.3. Contato...... 102 6.1.4. Proximidade/adjacência...... 108 6.1.5. Localização pontual...... 109 6.1.6. Localização no alvo de um movimento...... 110

6.2. Localização no tempo...... 114 6.2.1. Localização no interior de um intervalo de tempo...... 115 6.2.2. Localização em um marco pontual no tempo...... 117 11

6.2.3. Localização no final de um intervalo de tempo...... 118

6.3. Localização em outros domínios...... 119 6.3.1. Localização metafórica não-específica...... 120 6.3.2. Localização em grupos...... 122 6.3.3. Atividades e eventos...... 123 6.3.4. Estados e situações...... 126 6.3.5. Palavras como contentores...... 128 6.3.6. Mudanças...... 129 6.3.7. Alvo movimento metafórico...... 132 6.3.8. Alvo paciente de ação metafórica...... 133 6.3.9. Finalidade...... 134 6.3.10. Alvo de atividade cognitiva...... 134

6.4. Afastamento do conceito de localização...... 136 6.4.1. Especificação...... 137 6.4.2. Forma...... 138 6.4.3. Meio ou instrumento...... 142 6.4.4. Material...... 143 6.4.5. Cor...... 144 6.4.5. Suporte metafórico...... 145

6.5. Conclusão da análise de corpus...... 146

7. METODOLOGIA – FASE II - VERIFICANDO O STATUS

COGNITIVO DA REDE ...... 151

7.1. O experimento psicolingüístico...... 155

7.1.1. Objetivos, lógica e hipóteses...... 155 7.1.2. Participantes e método...... 156 7.1.3. Sobre o conteúdo das frases...... 158 7.1.4. Tratamento dos dados...... 158

8. EXPERIMENTO – RESULTADOS E DISCUSS ÃO ...... 162

8.1. Análise...... 162 8.1.1. A coerência das categorizações...... 162 8.1.2. Níveis de granularidade...... 167 8.1.3. A estrutura relacional...... 170

8.2. Comparação com o modelo de rede proposto...... 173 12

8.3. Comentários finais sobre o capítulo...... 174

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS E HORIZONTES DE PESQUISA...... 176

Referências ...... 179

Anexo I – Ocorrências no corpus...... 188

Anexo II – Acordo de participação...... 304

Anexo III - Classificação das frases empregadas no experimento 305 psicolingüístico......

Notas de fim...... 308

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Esquema imagético: movimento para o interior de um CONTENTOR...... 27 Figura 2: Esquema imagético de CONTATO...... 28 Figura 3: Estrutura semântica de uma preposição...... 38 Figura 4: Há um canudo no copo...... 51 Figura 5: Tinha o olhar no copo...... 51 Figura 6: A água está fora/perto do copo...... 51 Figura 7: O princípio gestáltico da alternância entre figura e fundo...... 52 Figura 8: O contexto como referência para a figura...... 54 Figura 9: Inclusão parcial...... 58 Figura 10: Elemento funcional percebido na relação de ‘contenção’...... 59 Figura 11: A pêra está sob a/debaixo da queijeira...... 59 Figura 12: Uma lâmpada ou uma garrafa?...... 60 Figura 13: Rede esquemática...... 66 Figura 14: Sancionamento de um novo uso...... 68 Figura 15: Completamento do marco na conceitualização...... 99 Figura 16: Rede esquemática de usos espaciais e metafóricos da preposição em ...... 150 Figura 17: Instruções dadas aos participantes do experimento...... 157 Figura 18: Dendograma produzido Método Ward de agrupamento, dos níveis de semelhança atribuídos a diversos usos de em ...... 164 Figura 19: Representação 3D dos grupos de frases formados pelo método de otimização Tocher...... 172 Tabela 1: Assimetria no alinhamento trajetor-marco...... 53 Tabela 2: Estrutura temática do córpus, com a contagem de palavras por fonte...... 83 Tabela 3: Frequência de em e suas variantes formais no córpus...... 85 Tabela 4: Categorias semânticas obtidas no córpus e respectivas frequências de ocorrência 93 Tabela 5: Formação dos agrupamentos pelo método Tocher...... 166 Tabela 6: Classificação das frases empregadas no experimento psicolinguístico...... 305 6

1. INTRODUÇÃO

1.1. Objeto de estudo e problematização

A pesquisa cujo relato ora se inicia emerge do interesse amplo em se conhecerem as bases cognitivas que motivam a semântica de preposições em geral e de um interesse particular na semântica daquelas de sentido mais abstrato 1, como em do português contemporâneo do

Brasil (ou simplesmente português do Brasil). Mais especificamente, buscam-se os significados de relações evocadas por essa preposição e as possíveis conexões entre tais significados. Tendo como referência teórica a Semântica Cognitiva, considera-se que a estrutura semântica de palavras como em pode ser descrita como uma rede polissêmica, com sentidos esquemáticos e prototípicos (LANGACKER, 1987, 1991), da qual fazem parte usos nos domínios espacial, da percepção sensorial e abstratos, tais como o tempo e os estados emocionais, entre outros. Argumenta-se que tanto os usos em domínios conceituais variados quanto as interligações entre eles são cognitivamente motivados.

Como palavras relacionais (ver seção 2.2.1), as preposições possuem, em sua estrutura semântica, informações esquemáticas sobre os elementos que elas relacionam, usualmente sintagmas nominais ou formas nominalizadas, que aqui se denominam trajetor e marco . Além disso, a semântica das preposições comporta uma relação específica, que pode ser um esquema , isto é, um padrão abstrato contendo noções topológicas, geométricas ou, bem menos comumente, sobre formas de movimentos ou de regiões. Comparada a outros integrantes da categoria, a preposição em é particularmente abundante no português

1 O adjetivo “abstrato” é empregado com duas acepções distintas nesta tese: (1) um sentido abstrato é entendido como um padrão semântico obtido pela abstração de características mais gerais, comuns a vários usos; (2) considera-se abstrato tudo aquilo que contrasta com a experiência concreta. 7

do Brasil e frequentemente evoca um conteúdo convencionalizado muito abstrato, qual seja uma vaga noção [topológica] de ‘localização’ (por exemplo, NEVES, 2000. p. 670-80), embora esse sentido não se aplique a todos os usos dessa palavra.

Praticamente toda a especificidade da estrutura semântica de em resulta do contexto, isto é, das possíveis conceitualizações que emergem do domínio em que a cena se realiza e que é evocado por outras palavras colocadas com a preposição. Na elaboração do significado, o contexto – com suas dimensões física, cultural, social e linguística

(LANGACKER, 2008. p. 464) determina os aspectos mais salientes “do domínio não- discreto de aplicação semântica” (SILVA, 2006. p. 80) da preposição. A especificação a que se refere aqui engloba esquemas conceituais abstraídos de configurações espaciais, os quais incluem propriedades geométricas de entidades, efeitos funcionais da configuração espacial (VANDELOISE, 1991) e a designação de uma zona ativa (LANGACKER, 1987. p. 271-4).

Vandeloise (1991. p. 217 e 227-8), que adota uma posição monossemista com relação à semântica das preposições espaciais, postula que noções geométricas e mesmo topológicas não são suficientes para descrever o sentido desses itens linguísticos. Para explicar as possibilidades e limites no uso das preposições espaciais da língua francesa, ele propõe que os objetos se encontram em relações funcionais no espaço, as quais ele busca descrever por meio de regras.

De acordo com seu modelo, o uso da preposição dans (em , dentro de ), por exemplo, é definido pela Relação Funcional Contentor/objeto contido ( Container/contained

Relation ). Fazem parte dessa relação as noções de ‘inclusão’ e ‘controle’. Esta última parece ser central na relação funcional em questão, quando o contexto trata de contentores 8

não-canônicos, isto é, não totalmente fechados, contendo objetos que apenas parcialmente se localizam em seu interior. Observem-se seus exemplos, na página 217: Le fil est dans la pince (O fio está no alicate) versus #Le fil est dans la pince à linge (#A corda de varal está no prendedor de roupa). O uso de dans soa natural apenas no primeiro caso porque o alicate tem a função de prender, ou seja, controlar o fio, ao passo que, no segundo exemplo, o prendedor de roupas está pendurado na corda do varal, mas não a controla. Vandeloise propõe, então, que é a não-conformidade com o efeito de controle da Relação Funcional

C/c que torna inviável o uso de dans no segundo exemplo, embora a configuração espacial seja semelhante nas duas situações .

O enunciado (1) abaixo é um uso autêntico do português do Brasil, no qual a noção de ‘controle’ está envolvida no emprego da preposição em.

(1) Não me saía da cabeça a imagem do autor dos disparos, (...), sorrindo com

um fuzil nas mãos ao celebrar a chegada de 2008. (Estadão – 01.5.2008) 2

As mãos do atirador seguram um objeto de dimensões maiores, o fuzil, e, ainda assim, “controlam” sua posição. Em outras palavras, o fuzil não está totalmente incluído nas mãos do atirador, mas ainda assim, diz-se que está “em suas mãos”. A análise proposta nesta tese não adota radicalmente a posição de Vandeloise, mas considera que relações

2 A maioria dos exemplos que aparecem ao longo deste texto faz parte do córpus criado para esta pesquisa. Entretanto, é possível encontrar alguns usos retirados da Internet, os quais se apresentaram mais claros para algumas das explicações teóricas. Nesses casos, as fontes originais são apresentadas em notas de fim.

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dessa ordem explicam certos limites no uso da preposição em que recebem uma descrição mais pormenorizada na seção 3.5.

Já a conceitualização da cena descrita em (2) representa um caso de zona ativa, como definida por Langacker (1987. p. 272-4).

(2) Assim pode ser descrita a tormenta monstro que por semanas foi registrada

no planeta Saturno .i

Considerando que o significado de uma forma linguística corresponde a um conjunto de informações (sua base conceitual) do qual um aspecto é mais frequentemente evocado, muitas vezes ocorre de outra característica ser salientada em certo uso. Muito comumente, o sintagma nominal “planeta Saturno” designa um corpo celeste tridimensional esférico, circundado por anéis, de tamanho comparável ao de certo número de outros corpos celestes que compõem nosso Sistema Solar. Contudo, esse uso em particular salienta a superfície plana do planeta (onde ocorrem as tempestades) e não exatamente sua forma e localização no espaço. Diz-se, nesse caso, que a superfície é sua zona ativa atual.

Portanto, como forma de compreender a polissemia dessa preposição, são consideradas as contribuições dos diversos itens lexicais disponíveis no cotexto, em qualquer domínio conceitual. Além disso, são analisados os efeitos da chamada perspectivação conceitual ou construal (LANGACKER, 1987, 2001, 2008) no significado que o falante constrói, além de processos metafóricos e metonímicos de extensão semântica. 10

Em pode desconcertar o linguista porque pode ocorrer em contextos ainda mais variados que os que se vêem a seguir. Além disso, cada um desses casos pode ser considerado um uso convencionalizado da preposição (polissemia) ou nuances contextuais distintas de um mesmo sentido (vagueza/monossemia), dependendo do ponto de vista teórico (GEERAERTS, 1993).

(3) A água é colocada no tanque e um gerador transforma o hidrogênio que

retira da água em energia. (Estado de Minas – 06.08.2008)

(4) A recomendação para o teste genético também vai ser impressa nas caixas

dos remédios. (JB – 25.07.2008)

ii (5) Ele mantém o olhar no copo .

(6) O DEM oficializou nesta quinta-feira, 19, a candidatura do deputado ACM

Neto a prefeito de Salvador. (Estadão – 21.06.2008)

(7) Além de projetos e programas de apoio voltados ao desenvolvimento social,

o Plano prevê investimentos em outras três áreas prioritárias. (JB –

21.06.2008)

(8) A seção internacional do Japan Times trazia uma enorme foto em preto e

branco de uma favela de Recife. (Estadão – 01.05.2008)

(9) É graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. (Estado de Minas – 03.08.2008)

Levando-se em conta apenas a semântica, alguns comentários podem ser feitos a respeito dessas amostras. Os exemplos (3) a (5) representam um emprego comum da 11

preposição em no domínio espacial, quando seu complemento designa um objeto tridimensional, com um espaço interior. Nenhum deles, contudo, evoca a noção estática de

‘inclusão’. As três cenas relacionam-se, respectivamente, à ideia de ‘movimento para dentro de um contentor’ (3), ‘contato’ com uma ‘superfície’ (4) e um ‘trajeto virtual’ percorrido pelo olhar 3 (5). Esses exemplos mostram que nem sempre as propriedades geométricas do referente do complemento são suficientes ou adequadas para definir as noções espaciais percebidas. Estão em jogo a maior saliência atribuída a uma das facetas do objeto “copo” – sua zona ativa – e a construção de um movimento virtual ou fictive motion do tipo “linha de visão” (TALMY, 2000. p. 110-1).

Processos metafóricos e metonímicos estão envolvidos nos usos (6) a (9), com mapeamentos do espaço para o tempo e para outros domínios. Esses mapeamentos derivam da estrutura (elementos dispostos em certa ordem) e da lógica de esquemas – ou representações mentais – que se formam no domínio espacial, a partir da recorrência de experiências semelhantes.

O exemplo (6) é um caso de localização em um ponto do tempo, que se origina da noção de localização pontual no espaço. Como no exemplo (5), (7) também representa um caso de movimento virtual em direção a um alvo, cujo trajeto faz parte da semântica de

“investimento”. A construção com em introduz a localização no final desse trajeto, as

“áreas prioritárias”, que são conceitualizadas como objetos. Através da noção de metáfora conceitual, propõe-se a existência de um mapeamento de aspectos do esquema de TRAJETO

3 Em comunicação pessoal, o Prof. Mário Perini (UFMG) lembra que, “fisicamente, são os raios de luz que se refletem no copo e atingem o olho” e, portanto, o trajeto efetivo seria no sentido oposto. Com isso, ele sugere que, no caso em questão, “a língua reflete ainda um estágio primitivo do conhecimento” e que o fator decisivo para a codificação linguística talvez seja a ação voluntária, mais claramente manifesta em “Ela me lançou um olhar furioso”. 12

encontrado em (3) para o exemplo (7). Por outro lado, o significado dos dois últimos enunciados envolve processos metafóricos e efeitos funcionais de esquemas imagéticos. A expressão “em preto e branco” em (8) restringe a categoria “foto” a um tipo específico. Tal restrição teria origem metaforicamente no efeito funcional de ‘controle’ que emerge de uma cena espacial de inclusão, em que o contentor controla o objeto em seu interior. Um processo semelhante se dá em (9). Nesse enunciado, o controle se manifestaria na especificação da área de conhecimento – psicologia – do curso realizado.

Em suma, esses exemplos fazem parte de uma só categoria semântica complexa, dotada de sistematicidade interna, a qual se pretende explicar apresentando-se razões cognitivas.

1.2. Objetivos

Em face da problematização apresentada, este estudo visa a uma descrição semântico-cognitiva da preposição em, no português contemporâneo do Brasil, partindo do pressuposto que em representa uma categoria formada como uma rede esquemática.

Pretende-se construir um diagrama que mostre sentidos esquemáticos com características presentes em outros usos, esquemas sancionadores (ou seja, que dão origem a outros) e usos prototípicos (que aparecem com maior frequência na rede), além dos processos que motivam as diferentes extensões de usos. Além disso, pretende-se confrontar a rede proposta com a visão que falantes leigos do português do Brasil têm sobre a polissemia de em. Alcançar esses objetivos implica responder às perguntas propostas a seguir:

i. Que esquemas são observáveis nos usos espaciais da preposição em ? Que noções

topológicas e geométricas formam esses esquemas? 13

ii. Que processos cognitivos e funcionais estão envolvidos na compreensão desses

usos?

iii. Como esses esquemas dão origem a usos em outros domínios?

iv. Existe algum uso que represente o protótipo (o mais típico na rede) ligado a outros

por semelhança familiar 4?

v. Existe um esquema totalmente compatível com algum ou todos ou outros usos

descritos?

vi. Até que ponto outros falantes nativos do português brasileiro percebem semelhanças

e diferenças entre usos da preposição?

1.3. Justificando a pesquisa

A primeira motivação para uma pesquisa dessa natureza vem do autor do modelo de teoria linguística adotado nesta investigação. Langacker (2000a. p.90) defende a ideia de que “é possível haver uma explicação coerente [sobre a linguagem], na qual cada elemento componente tem um significado (na verdade, um significado relacionado àqueles que ele mostra em outros usos), e cada construção gramatical se reduz a uma configuração de

4 WITTGENSTEIN (1953) aplicou o construto semelhança de família em seu estudo da categoria ‘jogos’, cujos membros, ele argumentou, não são unidos por uma propriedade sequer que seja comum a todos. Ao contrário, conceitos como ‘xadrez’ (jogadores individuais, disputa, duração indefinida), ‘futebol’ (jogado por equipes, disputa, duração pré-definida) e ‘paciência’ (um só jogador, sem disputa, duração indefinida) são todos jogos, mesmo que não haja uma característica comum a todos os três. Na verdade, suas características se distribuem de maneira semelhante ao fenótipo entre os membros de uma família.

14

estruturas simbólicas” 5. Foi considerando essa possibilidade que se decidiu buscar uma motivação semântica de natureza cognitiva para os usos da preposição em .

O tipo de semântica a que Langacker se refere, e que aqui se assume, baseia-se em conceitos que emergem da experiência. Esses conceitos formam um contínuo estruturado, com diferentes graus de abstração e de complexidade, no qual não se observam fronteiras claras entre o significado do léxico e o da gramática.

A preposição of , investigada por Langacker naquele artigo, e uma série de outras, como o em do português do Brasil, foram, por muito tempo, apresentadas como exemplos típicos de marcadores gramaticais desprovidos de conteúdo semântico. Tal situação é fruto das ideias que marcaram um longo período do século XX (o apogeu do estruturalismo e do gerativismo), que privilegiou o estudo da forma e, por isso, caracterizou-se por “uma notável negligência de assuntos de conteúdo e de contexto” (SALOMÃO, 1990. p. 1).

Como evidência dessa visão, a maior parte das pesquisas anteriores sobre preposições da língua portuguesa, desenvolvidas dentro de outras linhas, trata das preposições ditas essenciais como um todo ou de preposições individuais, geralmente sob uma perspectiva morfológica ou sintática. A maioria dessas investigações encaixa-se na corrente gerativista (CENTOLA, 1972, SILVEIRA, 1951) ou normativo-prescritiva

(CEGALLA, 1994; LIMA, 1984; SACCONI, 1980; FARACO & MOURA, 1988), ou ainda, estruturalista (CARONE, 1988). Mais próximo da proposta teórica adotada nesta tese, Pontes (1992) descreve a relação entre a expressão do espaço e do tempo no português por meio de diferentes classes de palavras, incluindo as preposições.

5 Do original: “It is a matter of some significance that a coherent account is possible in which each component element has a meaning (in fact, a meaning related to those it displays in other uses), and each grammatical construction reduces to a configuration of symbolic structures.” (Tradução livre) 15

À exceção do inventário semântico-lexical (BERG, 2005), sobre um grande grupo de preposições do português, baseado na Teoria dos Papéis Temáticos, e investigações sobre gramaticalização de preposições (CASTILHO, 2002), de modo geral, não existe um corpo coeso de estudos sobre o sentido das preposições. Além disso, parece ser consenso, na maioria dos trabalhos, que determinadas preposições não são portadoras de sentido em alguns ambientes específicos.

Há trabalhos importantes envolvendo outros idiomas, anteriores ao nascimento da

Linguística Cognitiva, tais como o de Pottier (1962) a respeito da passagem dos casos latinos para as preposições nas línguas neolatinas e o de Bennett (1975) sobre a semântica de preposições da língua inglesa. Entretanto, a semântica das preposições começou a ganhar destaque entre os linguistas cognitivos há cerca de três décadas, em meio ao substancial incremento no número de estudos sobre a semântica das classes fechadas. Dos muitos estudos que seguiram o pioneiro trabalho Story of over (BRUGMAN, 1981), destacam-se aqui Vandeloise (1991, 1994), respectivamente, sobre preposições espaciais do francês e in do inglês; Cuyckens (1993) sobre in ; Tyler & Evans (2003) sobre preposições espaciais do inglês; Langacker (2000a) sobre a semântica de of ; Levinson & Meira (2003) sobre aposições no idioma tiriyó; Geeraerts (1992), sobre a semântica do over holandês;

Brala (2002), sobre a semântica de in e on e questões lexicográficas em dicionários croatas.

Sobre preposições do português do Brasil, dentro do aporte da Linguística

Cognitiva, destaca-se Grenfell (2004), a respeito de locuções prepositivas. No português europeu, Teixeira (1999) estudou as preposições espaciais no eixo frente/trás e Batoréo

(2000) investigou o modo como a língua expressa a cognição espacial, incluindo, obviamente, as preposições espaciais. Como se vê, este é um tipo de trabalho pouco comum 16

envolvendo a língua portuguesa, não apenas pelo aporte teórico adotado, como pelo compromisso assumido com a investigação da língua em uso.

Ainda sobre o português do Brasil, entre as pesquisas de cunho semântico, o importante trabalho descritivo Neves (2000) apresenta uma lista de categorias de uso para as preposições, levando em conta seu comportamento semântico e sintático. Em termos explicativos, Poggio (2002), no quadro funcionalista, trata do processo de gramaticalização de preposições da língua portuguesa desde o latim. Mesmo sendo inspiradores, esses trabalhos não oferecem uma explicação cognitiva sincrônica para os usos das preposições.

Como se sabe, muitos dos elos motivadores de extensão semântica podem não ser transparentes no uso atual da língua e podem ser irresgatáveis, como admite, por exemplo,

Langacker (1987. p.118). Contudo, Heine (1997. p. 19) considera que a dificuldade (do falante nativo e do linguista histórico) em encontrar a motivação adequada para alguns usos representa, temporariamente, “uma lacuna em nosso conhecimento que ainda está por ser preenchida” 6. Em outras palavras, tal dificuldade não deve ser encarada como sinônima de arbitrariedade.

Na verdade, os falantes leigos parecem ter encontrado um modo próprio de solucionar essa questão. Eles realmente possuem intuições sobre o percurso das mudanças linguísticas – as quais Desagulier (2005. p. 32-5) denomina “sensibilidade histórica dos falantes nativos” ( sensibilité historique des locuteurs autochtones ). Para vários linguistas cognitivos, esse fenômeno, também chamado “etimologia popular” ( folk etymology ) é um

6 Do original: “Not infrequently, motivation is no longer accessible to the native speaker, nor even to the historical linguist. But this does not mean there is no motivation – it simply means there is a gap in our knowledge that remains to be fulfilled.” (Tradução livre)

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fato psicolinguístico que não pode ser desprezado. Esse tema é abordado por Lakoff (1987. p. 452) com respeito às estratégias que os falantes utilizam para a interpretação de expressões idiomáticas. Ele considera tais “teorias populares” um “fato psicológico notável”, apesar de serem totalmente espontâneas e sem base científica. E lembra-nos ainda da necessidade que as pessoas têm de criar elos de motivação para compreender significados “arbitrários” 7 e, também, de que elas “funcionam melhor quando têm mais informação que dá sentido ao que parece ser aleatório” 8.

Esse tipo de estratégia certamente se aplica à compreensão e ao uso de outras classes linguísticas, entre elas, as preposições. A partir daí, procurou-se associar as explicações cognitivas da pesquisadora para usos da preposição em às intuições que os falantes nativos revelam sobre a ligação entre tais usos. Esta comparação constitui o ponto central desta tese.

Em vista desse cenário, acredita-se que a atual proposta de pesquisa possa trazer novas informações sobre a semântica da língua portuguesa, somando-se a outros trabalhos nesta área já desenvolvidos no Brasil. Também se considera relevante aplicar uma perspectiva teórica, cuja existência é das mais recentes, a um idioma distinto daquele de seus proponentes, como comprovam os vários estudos sobre a mesma preposição over do inglês (além de BRUGMAN, 1981; LAKOFF, 1987; DEANE, 1992; DEWELL, 1994;

7 A arbitrariedade só parece existir porque as origens de algumas expressões idiomáticas ainda não puderam ser resgatadas.

8 Do original: “If we recognize the need to find motivating links that make sense of idioms, that people function more efficiently with additional information that makes sense of otherwise random information, then it is clear why people would try to make sense of idioms by finding as many motivating links as possible” (1987. p. 452). (Tradução livre.)

18

KREITZER, 1997 e TYLER & EVANS, 2003), também, sobre in e on 9 (TYLER &

EVANS, 2003; VANDELOISE, 1994; GOUGENHEIM, 1959; CLARK, 1973;

BENNETT, 1975; MILLER & JOHNSON-LAIRD, 1976; HERSKOVITS, 1982; EVANS

& TYLER, 2004). Finalmente, o uso de córpus e de dados experimentais contribui, também, para a solidificação dessa vertente teórica baseada no uso, que pleiteia para si a qualidade de “psicologicamente plausível”.

1.4. Resumo do capítulo e organização do texto

Neste capítulo foi introduzida a proposta desta investigação, fazendo-se uma breve descrição do objeto e do problema de pesquisa, bem como do quadro teórico em que ela ocorre. Foram nomeados os teóricos da Linguística Cognitiva cujo trabalho é mais relevante para a pesquisa.

Também se procurou dar um primeiro esclarecimento sobre o que vem a ser uma descrição semântico-cognitiva de uma preposição. Por meio de exemplos explicativos, foram destacados alguns conceitos chave ligados à conceitualização. Além disso, foi delineado o cenário das pesquisas sobre preposições no Brasil e no exterior, no qual se verifica uma carência de estudos em língua portuguesa nesta linha teórica.

Do final desta introdução em diante, este texto se organiza em duas grandes seções. A PARTE I, que apresenta uma discussão teórica sobre aspectos da Linguística

Cognitiva relevantes para a tese, engloba os capítulos 2, 3 e 4. O Cap. 2 discorre sobre alguns fundamentos da Semântica Cognitiva, dando destaque especial ao significado

9 Exceções importantes são estudos tipológicos desenvolvidos por Stephen Levinson e associados, Melissa Bowerman e associados, entre outros.

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corporificado. Discute-se a emergência de conceitos a partir da experiência sensório-motora e ainda o papel das capacidades cognitivas nesse processo. Essa seção inclui também uma descrição mais aprofundada do objeto de estudo baseada no papel da Gestalt na conceitualização e na convenção linguística.

No Cap. 3 tem-se uma incursão no funcionamento da linguagem como espelho de relações espaciais. Ali se introduzem construtos que funcionarão como ferramentas de análise, tais como noções topológicas, geométricas e funcionais. Particularmente, retoma-se o tema do princípio gestáltico da assimetria figura-fundo para a expressão linguística de relações espaciais que estão interligadas com aspectos do funcionamento das entidades no mundo.

Encerrando a PARTE I do texto, a polissemia é o tema do Cap. 4, que tem início com uma definição desse termo e uma explicação de sua emergência pela ótica da

Gramática Cognitiva. Explica-se como, na visão de R. Langacker, o sancionamento de novos usos para velhas formas ocorre por processo de categorização, o que conduziu a uma descrição da rede esquemática proposta por esse teórico para abrigar os fenômenos envolvidos na motivação cognitiva dos usos diferenciados de uma mesma forma. Por fim, mostra-se o funcionamento de esquemas imagéticos e mapeamentos metafóricos na polissemia.

A PARTE II, que vai do Cap. 5 ao Cap. 8, dedica-se à pesquisa empírica propriamente dita, incluindo duas seções de metodologia e outras duas de análise. O Cap. 5 descreve os procedimentos metodológicos empregados na construção do córpus de textos jornalísticos, tais como a definição da população e os métodos de amostragem. Nele 20

também são definidos os critérios para a descrição semântica das categorias encontradas no uso.

O Cap. 6 apresenta a análise das ocorrências no córpus. Inicia-se pelo domínio espacial e envereda-se pelos processos de conceitualização sancionadores de novos usos da preposição em no domínio temporal e em outros usos metafóricos. A seção inclui ainda um mapa da polissemia de em , seguindo o modelo de rede esquemática de Langacker (1987). O gráfico é um resumo das categorias semânticas obtidas através da introspecção da pesquisadora.

No Cap. 7, descreve-se a metodologia empregada no experimento psicolinguístico com falantes nativos. Sua seção inicial apresenta uma justificativa teórica para a realização dessa etapa da pesquisa. A seguir, são descritos os procedimentos estatísticos utilizados na análise dos grupos de semelhança formados com base nas categorias obtidas na seção 6.

A análise do experimento é feita no Cap. 8. Essa seção do texto apresenta os gráficos gerados com o programa GENES, pelos métodos Ward de hierarquia de agrupamentos e Tocher de otimização. Apresentam-se os resultados obtidos à luz dos critérios descritos no Cap. 5 para a análise semântica das categorias.

Finalmente, o Cap. 9 contém a conclusão desta tese, na qual são comparados os resultados da aplicação dos dois métodos distintos para análise empírica. Resume-se nessa seção o que se considera ser a polissemia da preposição em dentro de uma perspectiva semântico-cognitiva.

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PARTE I – DISCUSSÃO TEÓRICA

2. SEMÂNTICA E COGNIÇÃO

A Semântica Cognitiva questiona ideias que remetem ao chamado Paradigma

Objetivista a respeito da cognição e da linguagem. Uma delas, conhecida como a Metáfora do Tubo ou do Conduto (REDDY, 1979), é a premissa de que as palavras são portadoras de sentido (BLOOMFIELD, 1961) e que esse sentido é estático e constitui-se como categoria fechada. A Semântica Cognitiva apoia-se em duas importantes correntes complementares de pensamento. Sua base epistemológica deriva das visões de Johnson (1987) sobre uma cognição oriunda da experiência (Experiencialismo). Do lado linguístico, segue o modelo de Gramática Cognitiva (LANGACKER, 1987) 10 , baseado no uso. Por fim, como resultado da interação entre cognição geral, linguagem e experiência, também existe um forte vínculo entre a Linguística Cognitiva como um todo e a Psicologia da Gestalt, visto que o significado da linguagem se organiza pelos mesmos princípios inerentes à percepção sensorial.

Entre os semanticistas cognitivos, destaca-se, para este trabalho, a obra de

Leonard Talmy, o qual contribui com uma longa carreira de estudos sobre fenômenos ligados à conceitualização linguística e sobre a expressão linguística da cognição espacial.

De outro lado, George Lakoff, juntamente com Mark Johnson, oferece-nos os fundamentos

10 A integração entre a Semântica Cognitiva e a Gramática Cognitiva produz, em certos pontos deste texto, uma aproximação das duas no termo Linguística Cognitiva.

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para a compreensão de processos da imaginação, como a metáfora conceitual e a metonímia.

Embora emergindo do mentalismo gerativista, a Semântica Cognitiva é uma nova proposta explicativa para o significado em comparação com a Semântica de Traços e a

Lógica de Condições de Verdade. O adjetivo “cognitiva” representa uma visão do significado linguístico como conceitualização ou processamento cognitivo e, da linguagem como parte da cognição geral. Isso implica uma grande mudança no estatuto atribuído à linguagem, como mais uma modalidade da cognição geral, regida por princípios cognitivos gerais. Essa alternativa torna o falante o principal personagem da construção do significado, valorizando suas capacidades cognitivas e, portanto, incluindo os processos de conceitualização na investigação linguística.

2.1. Corporeidade e cognição

A Tese da Corporeidade, proposta por Johnson (1987) e ampliada em Lakoff &

Johnson (1999), fornece a base filosófica e psicológica da Linguística Cognitiva. Associada

à Tese Simbólica (LANGACKER, 1987 e outros), a Tese da Corporeidade postula que a linguagem é formada por representações de nosso sistema conceitual que se unem a formas lexicais e, ainda, que os conceitos se originam da experiência física (a percepção). Por essa razão, a linguagem é dita corporificada. Essa proposta visa a solucionar o problema de como as representações são criadas , qual seja como conciliar o princípio objetivista de que as representações são imagens de entidades reais com o pressuposto cartesiano de que a mente é separada do corpo. 23

Lakoff & Johnson (1999) refinam a noção kantiana de esquema argumentando que o raciocínio faz uso da experiência sensório-motora e é inseparável das características peculiares de nosso corpo e cérebro. Essa ideia é reforçada em trabalho mais recente, no qual é sugerido que as “estruturas empregadas em perceber e fazer precisam ser tomadas para dar forma a nossos atos de compreender e de conhecer ” 11 (JOHNSON, 2005. p.16).

Johnson argumenta ainda que o raciocínio envolve processos de imaginação, como vem sendo demonstrado pelas ciências cognitivas.

2.1.1. Capacidades cognitivas a serviço da linguagem

Considerada uma modalidade – ainda que mais sofisticada – da cognição geral

(JOHNSON, 1987), a linguagem utiliza e reflete várias habilidades e processos básicos que também são observados na percepção visual e na organização cognitiva global

(LANGACKER, 2001, 1987). Nesta seção, explora-se a importância dessas capacidades para a emergência de conceitos a partir de esquemas e para o modelo de categorização adotado na Linguística Cognitiva.

2.1.1.1. A simbolização e o sistema linguístico – Uma importante capacidade cognitiva geral é a simbolização , pela qual a presença de uma forma evoca no falante um significado e vice-versa. Ela está na origem da Tese Simbólica, o princípio que atribui à linguagem sua natureza semiótica (LANGACKER, 1991), distinta da noção saussuriana de signo principalmente pela dinamicidade do significado e pela atividade cognitiva do sujeito.

Outra consequência da capacidade simbólica é se considerar que todo fenômeno linguístico

– incluindo a gramática – possui motivação semântica. Isso é possível porque a língua se

11 Do original: “The basic form of the answer to this embodiment problem appears to be this: Structures of perceiving and doing must be appropriated to shape our acts of understanding and knowing. ” (Tradução livre; itálicos no original.) 24

organiza sobre o significado conceitual. De acordo com esse modelo, o falante, em sua constituição física e social, participa da formação de conceitos, por meio da abstração de padrões recorrentes (Modelo bottom-up de língua) e da construção do significado emergente.

Essa e as outras capacidades citadas ao longo deste texto têm um papel importante na concepção de língua apresentada por Langacker (1987. p.73-4 e outros): um inventário estruturado de unidades convencionais que se distinguem apenas pelo grau de abstração dos conceitos que evocam. Chamam-se unidades “convencionais” por estarem entrincheiradas – ou estabilizadas – na memória de um grande número de falantes. Como marca da natureza estruturada desse inventário, as unidades normalmente se associam, formando outras mais complexas. As unidades simbólicas propriamente ditas são formadas pelo emparelhamento de um pólo fonológico estabelecido e um pólo semântico estabelecido e a comunicação se dá por meio dessas estruturas que formam a substância essencial e suficiente da língua.

No tocante ao significado que evocam, o léxico e a gramática diferenciam-se, numa base prototípica, quanto ao grau de complexidade interna e de esquematicidade dos conceitos que codificam. Existindo apenas gradientes de abstração, um item lexical como

“criança” e um elemento gramatical como a ordem de constituintes na oração são igualmente considerados unidades simbólicas. Marcadores gramaticais (morfemas de tempo, de modo, de caso, de número etc.) e regras gramaticais possuem um pólo fonológico específico e um pólo semântico mais abstrato que itens lexicais. Mesmo as classes de palavras se constituem, grosso modo , pelo emparelhamento de uma estrutura fonológica e 25

uma estrutura semântica 12 . A organização propriamente dita da linguagem também é significativa, como o têm demonstrado a Gramática Cognitiva (LANGACKER, 1987), a

Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995) e a Gramática Radical de Construções

(CROFT, 2001). Ela ocorre por meio de um conjunto limitado de conceitos, codificados por itens de classes fechadas 13 . Como integrantes desse tipo de categoria, as preposições encontram-se a meio caminho no contínuo de abstração e contribuem para o significado da linguagem por meio desses conceitos mais básicos (TALMY, 2005a. p. 200).

2.1.1.2. Esquematização – Nossa capacidade de abstração ou esquematização permite- nos perceber padrões recorrentes no uso da língua e, a partir deles, formar esquemas que representam uma categoria ou conceito. Esses esquemas não possuem características de objetos específicos e, portanto, são um tipo de estrutura bem mais abstrata que imagens mentais. Isso acontece por comparação de experiências e seleção de aspectos comuns entre as mesmas. Os esquemas formados são organizados como gestalts e essa capacidade de estruturação é fundamental para a linguagem.

Numa perspectiva biológica, Langacker (1987. p.100 e 162) explica que cada evento cognitivo deixa traços neuroquímicos que vão se repetindo toda vez que eventos semelhantes ocorrem, gerando um efeito de reforço progressivo. A cada uso, os esquemas vão se acomodando na memória do falante, na forma de rotina estabilizada. Assim ocorre o

12 TAYLOR (2002a) e LANGACKER (2008) oferecem uma explicação bastante clara a respeito de como as classes gramaticais se constituem como estruturas simbólicas, que se encaixam em uma hierarquia de conceitos (esquemas e instâncias).

13 Segundo TALMY (2000. p. 23), embora as “categorias fechadas” normalmente façam jus ao seu rótulo por terem relativamente poucos representantes e não aceitarem novos membros com muita frequência, essa é uma definição a ser testada empiricamente. Teoricamente, não é de todo impossível que, em certo idioma, exista uma categoria gramatical com centenas de membros altamente específicos ou, ainda, que possa acolher novos integrantes.

26

entrincheiramento ou a aquisição do conhecimento linguístico. Gradativamente, uma dada estrutura se torna unidade simbólica para o falante.

As estruturas mentais oriundas da experiência sensório-motora constituem um tipo especial a que se denomina esquemas imagéticos . Eles derivam de experiências frequentes no cotidiano e são essenciais na explicação do significado de expressões linguísticas que se referem a circunstâncias espaciais tanto estáticas quanto dinâmicas. Uma definição proposta por Johnson (1987. p. 29) diz que um conceito ou esquema possui um nível básico de especificidade e não se refere a nenhuma instância de uso em particular e, tampouco, apenas à capacidade linguística. Um esquema é um “padrão, forma ou regularidade recorrente em/de nossas atividades contínuas de ordenação [ações, percepções e concepções]” 14 .

Uma longa lista desses esquemas é tomada da literatura em Hampe (2005. p.2-3): alguns foram apresentados originalmente por Johnson (1987) e Lakoff (1987) –

CONTENÇÃO/CONTENTOR, PERCURSO/FONTE-PERCURSO-ALVO, PARTE-

TODO –, por Johnson (1987) – CONTATO, SUPERFÍCIE, OBJETO, COLEÇÃO – e outros, por Lakoff (1987) –VERTICALIDADE e FRENTE-VERSO.

A emergência desses esquemas deve-se à constituição do organismo humano, às percepções, aos sentimentos e também às ações do corpo.

Na Linguística Cognitiva, é tradição fornecer representações pictóricas de esquemas imagéticos como estratégia descritiva. Naturalmente, não se postula que essas ilustrações, de caráter didático, correspondam às representações mentais do falante. Como

14 Do original: “A schema is a recurrent pattern, shape, and regularity in, or of, these ongoing ordering activities [actions, perceptions, and conceptions].” (Tradução livre.)

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parte da interpretação do exemplo a seguir, pressupõe-se uma configuração espacial de movimento para dentro de um CONTENTOR.

(10) Imaginem uma jarra despejando suco num copo .iii

FIGURA 1 – Representação do esquema imagético complexo que inclui um ‘trajeto’ para dentro de um ‘contentor’: o retângulo menor representa o contentor (copo) e tem seu interior em foco. A seta representa a orientação do movimento evocado pelo verbo “despejar”. A entidade que se desloca (suco) aparece como o círculo. Esse esquema é neutro quanto aos eixos vertical, horizontal e ortogonal.

Nesse exemplo, as noções de ‘alvo do movimento’ e ‘localização no interior de um contentor’ são inferências feitas a partir do verbo, da preposição e do conhecimento enciclopédico do falante a respeito do contexto situacional.

Os esquemas imagéticos possuem uma estrutura e uma lógica de funcionamento

(ver seção 4.2.1). Essas estruturas são compostas por elementos geométricos e topológicos que identificam uma série de objetos e relações. O esquema imagético de CONTENTOR, apresentado no exemplo acima, parece ser central na semântica da preposição em .

Prototipicamente, ele envolve um objeto de duas ou três dimensões. Esse objeto é constituído por um lado exterior, um limite ou fronteira e um interior, no qual se situa outro objeto (LAKOFF & JOHNSON, 1999. p. 32-3). A emergência desse esquema imagético 28

decorre de padrões percebidos em situações como estar em/dentro de uma sala, observar um objeto no interior de outro etc.

Por sua vez, o esquema de TRAJETO, que também faz parte do exemplo (10), é constituído por um ponto de partida ou origem, um alvo ou ponto final e uma sequência de localizações contíguas ligando os dois extremos. Esse esquema não inclui direção, a qual acaba sendo imposta pelos variados propósitos que as pessoas têm ao seguir um trajeto. O embasamento espacial desse tipo de esquema está em experiências como ir de casa para a escola ou observar um caminho percorrido por uma pedra lançada num lago. Ao final, vai- se de um ponto A para um ponto B e, portanto, segue-se em direção a B.

Outro esquema que também se aplica a certos usos dessa preposição é o de

CONTATO com uma superfície, quando duas ou mais entidades se tocam, como na situação descrita em (11). Existe uma noção topológica de ‘contato’ entre a “quadra” e

“acampar”. A prototípica configuração bidimensional do marco favorece a emergência desse esquema. Mais que isso, através de seu conhecimento leigo sobre a física do dia-a- dia, o falante compreende o efeito funcional de ‘suporte’ por parte da quadra em relação à atividade, uma consequência muito comum em tal configuração espacial.

(11) Se for preciso, vamos acampar na quadra . (Estado de Minas – 05.08.2008)

FIGURA 2 – Representação do esquema de CONTATO, sem orientação intrínseca, no qual se destaca uma base sobre a qual se apoia um objeto. 29

Esses são alguns dos esquemas imagéticos relacionados à semântica da preposição em . Enquanto sua adequação a esses usos e na descrição de outras preposições é incontroversa entre semanticistas cognitivos, existe certa dificuldade em determinar critérios para o emprego do termo imagético (GRADY, 2005). Certos padrões motores, de dor, de emoção, de relações etc., nem sempre permitem a criação de imagens mentais.

Johnson (1987. p. 23, e ao longo dessa obra) utiliza o termo amplo – esquema –, sem especificação, para se referir a esquemas ‘imagéticos’ ou ‘corporificados’, o que é razoável em face de sua clara posição a respeito da base corpórea dos mesmos. Nesta tese, o termo

“esquema” também é aplicado àqueles imagéticos ou não.

Ressalva-se, porém, que a noção de ‘localização’ não constitui um conceito imagético nos termos descritos acima. Vandeloise (1991), por exemplo, a considera uma relação funcional, tendo em vista que o ser humano naturalmente busca localizar uma entidade em relação a outra. Em suma, a ‘localização’ pode ser considerada um esquema mais abstrato que se realiza imageticamente quando associado a outros elementos, constituindo, assim, instâncias mais específicas, com posição própria na rede esquemática de polissemia da preposição em.

2.1.1.3. Comparação – Como dito acima, a formação de esquemas também requer o emprego da capacidade de comparar experiências e perceber diferenças e semelhanças.

Para isso, fazemos uso de padrões que permitem categorizar um novo evento. A comparação ocorre em todos os domínios: percepção tátil de temperaturas diferentes, reconhecimento de duas fotografias como idênticas, identificação de diferenças na articulação de fonemas etc. 30

Por comparação, pode-se também reconhecer que usos distintos de uma mesma palavra são elaborações de um sentido mais abstrato, em um mesmo domínio ou em domínios conceituais diferentes, como apresentado abaixo:

(12) Use um grampo na ponta da linha para facilitar a troca de isca. iv

(13) Os cabos foram levados no cruzamento das ruas do Lavapés e Glicério.

(Estado de Minas – 06.08.2008).

(14) No dia 29 de maio , o deputado foi preso por lavagem de dinheiro e

formação de quadrilha. (JB – 21.06.2008)

(15) A fórmula é literalmente cozida na farmácia e embalada em pacotinhos de

plástico. (Estadão – 01.05.2008).

(16) A queda nos termômetros nos últimos dias foi causada por uma massa de ar

polar seca. (Estado de Minas – 05.08.2008).

(17) Na década passada houve uma onda de suicídio: 264 em cinco anos .v

Em uma primeira comparação, os exemplos (12) e (13) evocam uma estrutura comum de ‘localização pontual’ no espaço, diferindo entre si apenas no tamanho envolvido.

O mesmo esquema pode explicar o exemplo (14), do domínio temporal, havendo, nesse caso, uma conceitualização metafórica do “dia 29” como um ‘ponto’ específico no tempo, semelhante às entidades espaciais “ponta da linha” e “cruzamento”. Os enunciados (15),

(16) e (17) compartilham o mesmo padrão abstrato – a noção de ‘localização no interior de um CONTENTOR’ – também no domínio espacial (“em pacotinhos de plástico”) e no temporal (“nos últimos dias”, “em cinco anos”). A diferença na dimensão dos marcos 31

aparece no domínio temporal. Porém, embora a duração varie significativamente, são sempre períodos, conceitualizados com um limite inicial, um limite final e uma região interior, à maneira de um contentor. Finalmente, abstrai-se um padrão mais esquemático de

‘localização’ ao se compararem os seis exemplos juntos (ver seção 3.2). Diz-se que esse conceito é instanciado ou elaborado pelas noções mais específicas, quais sejam,

‘localização pontual’ e ‘localização dentro de um contentor’, ou ainda, que o conceito mais abstrato sanciona os mais específicos (LANGACKER, 1987. p. 68-9; TAYLOR, 2002a. p.

140).

2.1.1.4. Categorização – A esta altura, parece claro que abstrair e comparar fazem parte do processo da categorização . Essa importante capacidade cognitiva corresponde ao modo como os seres humanos agrupam eventos, ações, emoções, relações espaciais, relações sociais, governos, doenças, teorias etc. de acordo com seu tipo. Isso nos permite funcionar melhor no mundo e sobreviver como espécie (LAKOFF & JOHNSON, 1999. p. 17-9;

LAKOFF, 1987. p. 6).

Esse processo pode gerar tipos diferentes de relações entre os membros de uma categoria. A comparação dos enunciados (12) a (17) demonstra um modelo de categorização baseado em esquematicidade (LANGACKER, 1987. p.68 e 74-5), equivalente a uma relação taxonômica, que revela um padrão recorrente de ‘localização’. O grau de compatibilidade entre esse conceito superior mais abstrato e os inferiores – as suas instâncias – pode variar, afetando a estrutura da categoria que se forma: categoria hierárquica (total compatibilidade) ou categoria prototípica (compatibilidade parcial).

Tal como na taxonomia hierárquica proposta por Lineu nas ciências naturais, a tradição semântica tem lidado com conceitos como categorias clássicas , cujos membros 32

possuem determinadas características comuns a todos. Tais categorias são geralmente compreendidas como “recipientes” abstratos contendo elementos (coisas) que compartilham, pelo menos, uma propriedade comum. Sendo comum a todos, essa propriedade – ou traço – é o padrão que define a categoria (LAKOFF, 1987. p. 6).

Categorias clássicas, usualmente representadas pelo critério binário +/- traço, aplicam-se a relativamente poucas situações. Um exemplo seria o conceito/categoria

‘Senador’. Um indivíduo minimamente informado sobre a vida política do Brasil não teria dúvidas em dizer que os senhores Eduardo Suplicy e Pedro Simon pertencem a essa categoria, tendo em vista a função que desempenham no Senado, o processo eleitoral pelo qual passaram, o período de duração de seu mandato etc.

Contudo, na maioria das vezes, pertencer ou não a uma categoria é uma questão menos nítida, principalmente porque a categorização envolve impressões individuais e, principalmente, culturais. A cultura representa um componente de peso na construção das categorias que seguem um padrão prototípico . Estudos de base psicológica e antropológica, tais como os de Wittgenstein (1953, sobre categorias de jogos), Berlin &

Kay (1969, sobre a denominação básica para cores), e Eleanor Rosch (1978 15 apud SILVA,

2006. p. 298, sobre a categorização) demonstraram que uma categoria natural inclui um ou mais elementos com representatividade central, denominado protótipo , e outros mais periféricos. Portanto, pertencer ou não a uma dada categoria é uma questão de gradação e resulta de princípios como semelhança de família, os quais são estabelecidos culturalmente.

15 ROSCH, Eleanor. Principles of categorization. In: ROSCH, Eleanor; LLOYD, Barbara (Ed.). Cognition and categorization. Hillsdale, N.J.: Erlbaum, 1978. p. 27-48.

33

Como exemplo de categoria prototípica, tomem-se algumas situações bastante diversas, que, no entanto, parecem estar relacionadas: um trem viajando de Belo Horizonte a Vitória, dunas que lentamente avançam sobre uma cidade, um globo que gira em torno de si mesmo, um olhar colocado sobre alguém do outro lado de uma sala, uma pedra de gelo que se transforma em uma pequena poça d’água. Apesar da diferença de velocidade do movimento ocorrido, o primeiro e o segundo exemplos parecem ser mais claramente identificáveis com a ideia de um trajeto que vai de uma origem a um alvo. O terceiro implica outra forma de movimento, em que os marcos inicial e final se localizam no mesmo ponto em um mesmo objeto e, portanto, tecnicamente, o deslocamento final é igual a zero.

Menos claro é o trajeto virtual descrito pelo olhar, que por si, é fruto da ação voluntária e da atividade sensorial de um agente estático. Finalmente, um falante leigo sobre conhecimentos linguísticos certamente não associaria, de imediato, a mudança de estado físico a um esquema de TRAJETO.

Nesses casos, o conceito ‘movimento’ é uma categoria com vários membros, na qual alguns parecem ser exemplos mais característicos que outros. Tomando-se uma propriedade básica do movimento na Física – o deslocamento físico ao longo de um eixo – percebe-se que esta não está presente em todos os membros que aparecem acima.

Mas o que une todos esses usos? Primeiramente, ao contrário do leigo, o linguista tem dificuldade em não perceber um TRAJETO na maioria dos exemplos. Mas, mesmo o falante não treinado perceberá algum tipo de semelhança, pelo menos entre os dois primeiros exemplos. De todo modo, dir-se-á que o conceito de ‘movimento’ é 34

esquemático 16 a todos os usos ou pelo menos aos dois primeiros. O movimento rotatório do globo só é detectado – e caracterizado como tal – quando o conceituador percebe haver uma distância entre os dois momentos em que um dado ponto no mapa-múndi passa a sua frente ou, talvez, pelas faixas coloridas formadas pela distorção dos mapas dos países. Os demais envolvem o que Langacker (1987. p.168-71) descreve como movimento abstrato em domínios diferentes, nos quais já não se faz referência a um trajeto físico, isto é, o processo metafórico já se perdeu para o leigo.

Na Linguística Cognitiva (por exemplo, LANGACKER, 1987. p.69), e consequentemente neste texto, as categorias linguísticas são entendidas como pertencentes a este último tipo, isto é, possuindo membros mais prototípicos (aqueles que evocam mais diretamente o esquema da categoria) e menos prototípicos (incluídos na categoria por associação indireta ou por determinada semelhança). Em se tratando do significado linguístico, os conceitos associados às formas linguísticas são, na verdade, princípios de categorização entrincheirados, que permitem identificar um evento cognitivo novo como instância ou membro de uma classe (TAYLOR, 2002a. p. 43).

2.2. Conceitualização e linguagem

Compreender a mente corporificada e a cognição como fruto da experiência resulta em uma maneira diferente de conceber o conhecimento linguístico. Uma visão tradicional, adotada na Semântica Composicional ou Fregeana, por exemplo, afirma que o falante domina uma lista de significados atrelados a formas linguísticas, como em um

16 O termo “esquemático” é um construto teórico e, portanto, não se alega que o falante leigo o utilize em seu raciocínio. 35

dicionário. Porém, descrever a maneira como isso ocorre representa um problema, dada a infinidade de conceitos a serem armazenados. Trata-se da questão da subespecificação do significado linguístico: como uma palavra pode “conter” todos os significados que lhe são atribuídos nas incontáveis situações de uso?

Mas como salienta Silva (2006. p.298-9), um número delimitado de primitivos – por volta de sessenta – não seria suficiente para explicar o significado de uma palavra em toda a sua abrangência. Por essa razão, a Semântica Cognitiva considera que o chamado

“significado contingente” se constitui a cada instância de uso da linguagem e se baseia em um rico sistema prévio de informações, sobre vários domínios. As informações se organizam como uma rede estabilizada na memória de longo prazo do falante, a qual se denomina conhecimento enciclopédico . Como o falante também domina as relações simbólicas da língua, a cada uso de uma forma, uma parte dessa rede é ativada em seu cérebro. E, ainda, como as situações de uso nunca são exatamente as mesmas, os conceitos ativados na rede também variam. Formas associadas a itens lexicais polissêmicos, por exemplo, ativam uma rede semântica com vários sentidos convencionalizados, um dos quais se torna o foco da atenção do falante em um dado evento cognitivo 17 .

Dentro da discussão sobre a motivação semântica para os fatos da língua, Talmy

(2000. p.21 e 93) define o significado como uma “representação cognitiva”

(“conceitualização” em LANGACKER, 2001 e 1987) que emerge de vários processos cognitivos, a partir do significado referencial dos elementos da sentença, da compreensão do contexto situacional, do conhecimento de mundo etc. Esse significado conceitual é

17 Um evento cognitivo é qualquer tipo de ocorrência cognitiva. Do ponto de vista biológico, trata-se do “acionamento de um neurônio” ou uma grande rede deles (LANGACKER, 1987. p. 100). 36

“evocado” através da linguagem no discurso, de onde a importância dada ao conceituador.

Na visão de ambos os autores, o significado inclui, também, o conteúdo de ideias e de experiências ligadas ao afeto e à percepção.

Um importante componente da conceitualização é aquele que Langacker (2001) denomina perspectivação conceitual (construal ). Ele representa a capacidade humana de elaborar ou construir uma cena de vários modos. Langacker descreve várias dimensões da perspectivação, entre elas a perspectiva e o ponto de vista e a saliência focal ou proeminência . Esta última está diretamente relacionada ao princípio da assimetria figura- fundo da Teoria da Gestalt.

Dois dos tipos de saliência focal apresentados por Langacker (1987, 2001 e outros) são a designação de um perfil (profiling ) e a assimetria (ver seção 3.4) entre entidades envolvidas em uma relação.

O perfil de uma expressão linguística caracteriza-se como o foco principal de atenção dentro da base ou domínio conceitual que ela evoca e corresponde àquilo que a expressão designa, ou seja, seu “referente conceitual” (LANGACKER, 2001. p. 21). A proeminência também está presente na definição das classes de palavras. Langacker (1987) e Taylor (2002a) as definem com base na natureza dos referentes esquemáticos que seu perfil evoca. Substantivos evocam ‘coisas’ e verbos designam ‘processos’. Estes últimos, assim como adjetivos e preposições, encontram-se entre os itens com perfil relacional .

2.2.1. Definindo a categoria ‘preposição’

A distinção semântica entre as preposições em geral e outras classes de palavras, adotada consensualmente na Linguística Cognitiva, foi proposta por Langacker (1987. p.

214-20 e 299-301). De acordo com esse autor, as preposições, conjunções, adjetivos e 37

advérbios designam relações atemporais 18 entre duas entidades denominadas trajetor e marco 19 , normalmente marcadas pela assimetria conceitual (ver seção 3.4), exceto no caso de algumas conjunções. Langacker (1987. p. 243) sugere cautela ao se considerar adjetivos, advérbios e preposições como classes distintas, usando apenas critérios sintáticos, por exemplo, a ideia de que a preposição normalmente precede um marco explícito, elaborado como um substantivo ou sintagma nominal. A preposição pode ser um adjetivo quando seu trajetor é um substantivo e, um advérbio, quando seu trajetor é um processo.

Por sua própria natureza, as predicações 20 relacionais dependem conceitualmente das entidades que relacionam. Como exemplo, os substantivos livro e livraria (coisas) podem ser conceitualizados sem se fazer referência a outros objetos. Isto é, pode-se imaginar qualquer livro ou qualquer livraria sem que outra entidade seja, necessariamente, trazida para o foco de atenção do conceituador. Já a elaboração do sentido da preposição em requer, em (18) abaixo, que os conteúdos de “o novo livro” e de “as grandes livrarias” também sejam acessados.

(18) O novo livro está em todas as grandes livrarias . (JB – 21.06.2008)

18 Para LANGACKER (1987. p. 222), mesmo expressões como depois de e antes de são relações atemporais visto que, embora especifiquem as posições relativas de dois eventos no tempo, perfilam uma relação estática entre eles. Assim, embora o tempo seja o domínio primário nesses casos e o trajetor e o marco dessas relações sejam processos, esses são conceitualizados como entidades unitárias e a configuração obtida é única e consistente, com todas as facetas da cena simultaneamente disponíveis para a conceitualização de resumo e não em sequência como acontece nas relações temporais perfiladas por verbos (ver seção 6.3.3 desta tese).

19 Esses termos recebem as seguintes denominações por diferentes autores: trajector e landmark (LANGACKER, 1987 e outros), figure e ground (TALMY, 2000), cible e site ou target e ground (VANDELOISE, 1991 e 1994).

20 Predicação é o termo empregado por LANGACKER (1987. p.97) para designar o pólo semântico de qualquer expressão linguística.

38

Isso ocorre porque em contribui para a emergência de um esquema no qual as

“livrarias” (o marco) fornecem a ‘localização’ do “livro” (o trajetor). Em virtude dessa interdependência, essas duas entidades abstratas compõem o perfil semântico de em e das preposições de um modo geral. Tal fato inviabiliza investigações descontextualizadas de membros dessa classe de palavras e demanda a aplicação de uma análise semântica

“distribuída” (SINHA & KUTEVA, 1995).

O diagrama abaixo é uma representação pictórica de um esquema preposicional.

Contudo, é importante esclarecer, mais uma vez, como Langacker (2008) o faz, que esse tipo de representação tem apenas um caráter didático e que, obviamente, não são postuladas quaisquer semelhanças com representações mentais de qualquer conceito.

e1 e2

FIGURA 3 – Diagrama simbolizando a estrutura semântica de uma preposição

FONTE – LANGACKER, 1987. p. 215.

Como é padrão nas notações de Langacker, na FIG. 3, linhas e contornos espessos representam elementos em perfil: e1 e e2 constituem eventos cognitivos – no caso das preposições, entidades conceitualizadas – e a linha entre eles, algum tipo de relação. Com essa notação, Langacker inclui as entidades relacionadas como parte da estrutura semântica da preposição, muito embora, o que esteja realmente em destaque seja a relação existente entre elas. No exemplo (18), o significado da relação necessita da presença explícita do 39

trajetor (novo livro) e do marco (grandes livrarias), instanciando as entidades esquemáticas que ajudam a compor o esquema preposicional.

A especificação das entidades envolvidas é, com certeza, muito vaga no caso da preposição em. Contudo, grandes diferenças tipológicas são observadas na codificação de esquemas espaciais (KUTEVA & SINHA, 1994. p. 221), que, por vezes, pedem abordagens analíticas diferenciadas. Alguns idiomas organizam conceitos espaciais em classes fechadas formadas por um grande número de elementos, os quais representam noções bastante específicas. Entre essas línguas, o tiriyó, falado no norte do Brasil e no Suriname, expressa, por meio de posposições, noções bastante exóticas, como ‘aquático’ (LEVINSON &

MEIRA, 2003). Por outro, há preposições como across e along do inglês, cuja escolha pelo falante depende, entre outras coisas, de propriedades geométricas de elementos da cena espacial (SINHA & KUTEVA, 1995. p. 180; TALMY, 2005a. p. 202-4). E, por último, há preposições que subespecificam conceitos bastante familiares como ‘inclusão’ e ‘suporte’ 21 .

Esse é o caso de em do português e en do espanhol, amplamente empregados em contextos semelhantes àqueles em que se usam as preposições inglesas in , at e on (BRALA, 2002) e seus correspondentes aproximados dans , à e sur do francês. Essa diversidade é corroborada pela sobreposição parcial de em com outras formas do português do Brasil, tais como sobre , em cima de, dentro de e junto a.

21 VANDELOISE (1991 e 1994) considera ‘contenção’ um resultado funcional e ‘inclusão’ uma noção topológica. Essa última visão é a que se assume neste trabalho. A título de exemplificação, considera-se que, como efeito funcional de sua ‘inclusão’ em um balão, o ar é ‘contido’ por ele.

40

2.3. Comentários finais sobre o capítulo

Nesta parte do texto, procurou-se demonstrar a base epistemológica da abordagem de investigação assumida nesta tese. A opção pela Linguística Cognitiva como suporte teórico baseia-se na crença de que a linguagem é necessariamente fundamentada pela experiência e nas condições que foram dadas aos seres humanos para interagir e sobreviver. Em razão disso, também se acredita que a base corpórea de nosso sistema conceitual e as possibilidades de ampliação dos conceitos para novos domínios permitirão justificar a não-

-arbitrariedade da linguagem como um todo e, consequentemente, do fenômeno linguístico que se propõe investigar aqui.

A esse respeito, juntamente com os conceitos de trajetor e marco, a noção de esquemas imagéticos – entre os quais, CONTENTOR – e suas possibilidades de extensão, encontram-se no cerne da semântica da preposição em. Levando em conta sua origem na experiência corpórea, entende-se que o próximo passo para a compreensão da estrutura e do funcionamento desses esquemas é conhecer a maneira como a linguagem lida com a experiência espacial. Por essa razão, esse é o tema escolhido para a seção que vem a seguir. 41

3. COGNIÇÃO ESPACIAL E A LINGUAGEM

A cognição espacial está no centro de nosso pensamento e raciocínio. Sua inegável importância pode ser reconhecida, por exemplo, na influência da geometria, astronomia e cartografia no desenvolvimento das ciências e da tecnologia (LEVINSON,

2003. p. xvii).

Mas essa centralidade do domínio espacial para a existência humana é ainda mais básica. É possível identificá-la em expressões linguísticas empregadas no cotidiano, tais como “perder o rumo” (no português do Brasil), que, no domínio espacial, descreve uma situação em que um motorista se encontra perdido em uma estrada, não sabendo qual direção tomar. Mas esta expressão pode evocar, igualmente, outra experiência em que um fato inesperado e impressionante deixou alguém des norte ado, isto é, sem saber que decisão tomar (domínio psicológico). Casos como esse demonstram a penetração de conceitos espaciais em vários domínios da cognição. Mais que isso, o caráter fundamental e primário das experiências espaciais caracteriza-as como origem e modelo para a organização do raciocínio como um todo (SWEETSER, 1990; LAKOFF, 1987).

Contudo, ainda que básica e cotidiana, a cognição espacial é um fenômeno altamente complexo. Ela envolve capacidades como a percepção e a categorização da forma de diferentes objetos, o reconhecimento de diferentes orientações no espaço e a capacidade de perceber e categorizar relações topológicas entre objetos. Também é de primordial importância a capacidade humana de perceber e conceber uma cena a partir de perspectivas distintas ou, ainda, enfatizando aspectos diferentes da mesma (LANGACKER, 42

2001; ver também TALMY, 2000 e LEVINSON, 2003). Muito dessa complexidade passa-

-nos despercebida em face da primariedade e recorrência desses processos em nossas vidas.

Outro tipo de complexidade está envolvido na conceitualização de espaço . No pensamento ocidental, desde a Grécia Antiga, a busca da definição adequada para o termo vem produzindo diferentes ideias quase sempre baseadas em conceitos do senso comum a respeito de lugar . Essas definições vão desde ideias sobre um “vazio” ou “éter” até aquelas a respeito de um “espaço material”, tridimensional.

Aristóteles, por exemplo, definiu o espaço como uma série de lugares

“aninhados”, contidos em outros maiores, até o último limite externo, que continha todo o universo. Já na Renascença, o espaço passou a ser “um vazio infinito, tridimensional”, ideia que, mais tarde, inspirou Isaac Newton no desenvolvimento da distinção entre o espaço absoluto (não relacionado a coisa alguma externa; não sensível) e o relativo (“lugares” definidos como a posição de qualquer corpo em relação a outro conceitualizado como fixo).

A validade do conceito de espaço absoluto foi mais tarde contestada por Leibniz, para quem o espaço nada mais é que a localização das coisas, ou seja, uma rede de lugares.

Posteriormente, Kant retomou o conceito de espaço absoluto, atribuindo a esse um caráter intuitivo e apriorístico, independente das relações concretas propostas por Leibniz.

Finalmente, já no século XX, os diferentes graus de complexidade desses dois conceitos são refletidos na afirmação de Einstein (1954. p. xiii): “Com relação ao conceito de espaço, parece que ele foi precedido pelo conceito psicologicamente mais simples de lugar” 22 .

22 Do original: “Now, as for the concept of space it seems that it was preceded by the psychologically simpler concept of place”. EINSTEIN, A. Foreword. In: JAMMER, M. (Ed.), Concepts of space: the history of theories of space in physics . Cambridge, MA: Harvard University Press, 1954. Apud LEVINSON, 2003. p. 326. (Tradução livre). 43

Essa brevíssima apresentação (adaptada de LEVINSON, 2003. p. 6-14) do entrelaçamento dos conceitos de lugar e espaço ao longo da história tem por finalidade realçar o fato de que a cognição espacial do senso comum – que se reflete na linguagem – baseia-se na localização relativa a outros corpos e não na existência abstrata de um espaço sem limites.

Certamente, nossa maior familiaridade com a conceitualização de lugares sugere uma explicação intuitivamente simples: uma extensão infinita vazia e sem marcas – o espaço abstrato – é funcionalmente ineficiente para efeitos de localização, além de ser psicologicamente menos real. Quando um marco está localizado em algum ponto do espaço, esse ponto é um lugar, qual seja o lugar onde se encontra o marco. Mas a definição dessa localização com base no espaço abstrato não nos é psicologicamente possível ou mesmo necessária, porque é um marco, e não o espaço, que serve como referência para que se possa situar outro objeto (LYONS, 1977. p. 690).

A conceitualização do espaço no senso comum e, consequentemente, na linguagem, é capturada e descrita com detalhe em Talmy (2000). Nas páginas 180 e 181, ele sugere que nossa cognição espacial se baseia em um volume de espaço (que aqui se entende como uma porção do espaço não delimitado, ou space ), dentro do qual coisas existem e eventos ocorrem. Nesse volume de espaço um objeto também se localiza em relação a outro.

A experiência desse pesquisador com estudos tipológicos levou-o a propor algumas generalizações sobre a representação desse domínio em classes fechadas de palavras, dentre as quais se encontram as preposições. Segundo Talmy (2000 e 2005a), 44

essas palavras costumam codificar noções topológicas e umas poucas noções geométricas.

Dessas, as últimas são informadas com maior precisão pelas palavras de classes abertas.

3.1. Conceitos topológicos e geométricos e a semântica das preposições

Como mencionado na Introdução , descrições da semântica de preposições costumam fazer uso de noções geométricas e topológicas. A topologia e a geometria descrevem o espaço de modos distintos, porém, complementares.

A topologia lida com noções gerais e intuitivas, isto é, que dependem do conceituador. São noções de ‘extensão’, ‘dimensão’, ‘separação’, ‘vizinhança’, ‘distância’,

‘proximidade’, ‘continuidade’, ‘limite’ e ‘inclusão’, algumas das quais frequentemente são evocadas por preposições (TALMY, 2000. p. 27-28). Além disso, a topologia descreve objetos como sendo múltiplos, internamente coesos, ou possuindo uma extensão linear.

Como exemplo, esta última propriedade faz parte do esquema de TRAJETO evocado pelas preposições espaciais across e through da língua inglesa e pelo verbo de movimento

“atravessar” do português do Brasil.

De particular importância para a discussão proposta nesta tese é a noção topológica de ‘inclusão’, intimamente relacionada à semântica de em . Tal noção pode se manifestar de maneiras diferentes, em conformidade com o tipo de objetos envolvidos na relação espacial. Abaixo, observam-se cinco variações contextuais desse conceito, descritas por Vandeloise (1991. p. 211) em empregos espaciais da proposição francesa dans : inclusão total, sem contato (19); inclusão total, com contato (20); inclusão parcial, com sobreposição de limites das duas entidades (21); inclusão total em contentor aberto, com 45

contato (22) e inclusão total, com contentor aberto e sem contato (23). Em todas elas, o marco é necessariamente conceitualizado como uma região ou objeto tridimensional.

(19) La mouche est dans le coffre-fort. [A mosca (voando) está dentro do cofre]

(20) Les bijoux sont dans le coffre-fort. [As joias estão dentro do cofre]

(21) Le chien est dans la niche [O cão está dentro da casinha (com a cabeça para

fora)]

(22) Le vin est dans le verre [O vinho está dentro do copo]

(23) La mouche est dans le verre. [A mosca está (voando) dentro do copo].

Por sua vez, as diversas modalidades da geometria abordam noções absolutas

(que teoricamente não dependem do conceituador) 23 , tais como medidas, número de dimensões, direção, ângulos etc. O número de dimensões faz parte da descrição de pontos, linhas, superfícies e volumes. Já a noção de ‘direção’ está presente, por exemplo, na semântica de atrás de e diante de , acima de e abaixo de , à direita de e à esquerda de . Essas noções dependem da posição de um objeto em relação a outro (o qual pode ser o próprio conceituador) que se encontra no centro de um sistema triaxial de coordenadas

(VANDELOISE, 1991. p. 3-4; ver também LEVINSON, 2003 como um todo).

Dentro de uma abordagem semântica mais ortodoxa, noções geométricas aparecem em estudos como os de Gougenheim (1959) e Clark (1973), sobre as preposições inglesas at , on e in , relacionadas, respectivamente a uma, duas e três dimensões. Essas

23 Na verdade, VANDELOISE (1991. p. 3 e 4) questiona exatamente a validade de certas descrições exclusivamente geométricas que se propõem independentes do conceitualizador. 46

descrições estritamente geométricas parecem insuficientes em face de exemplos como (24) e (25) a seguir, em que at e in aparecem com o mesmo marco (Berlim). De acordo com a proposta de “descrição funcional” de Vandeloise (1994, 1991), o falante não conceitualizaria a cidade de Berlim como um ponto (sem dimensões) em (24) e depois como um contentor (tridimensional) em (25). Ainda nessa linha de raciocínio, o uso de at no exemplo (24) é licenciado porque Berlim simplesmente localiza o trajetor de maneira precisa, isto é, Berlim é a última de uma lista de cidades em que Hitler esteve. Na segunda parte do enunciado, a função de conter o trajetor está ligada ao prédio da Chancelaria do

Reich, fisicamente mais consoante com a descrição de um contentor. Em (25), estaria em jogo o fato de Berlim ser o refúgio de Hitler, exercendo sobre ele certa ação protetora e de controle.

(24) …and finally, from 16th January till the end at Berlin, in the Reich

Chancellery , which he never left. [... e, finalmente, de 16 de janeiro até o

fim, “situado em” Berlim , na Chancelaria do Reich, da qual ele nunca saiu.]

(25) Hitler was now back in Berlin , facing the last desperate battle of the war.

[Agora Hitler estava de volta dentro de Berlim , enfrentando a última

desesperada batalha da guerra.] (TREVOR-ROPER, 1947. p. 52 e 91)

Os estudos de Gougenhein (1959) e Clark (1973) são propostas bastante fechadas, que defendem o modelo clássico de categorização e, portanto, acabam por ser contestadas devido ao grande número de contraexemplos encontrados. Como se leu anteriormente, a categorização linguística não se dá de maneira absoluta. Além disso, são as propriedades 47

espaciais (que aqui se entendem como geométricas e topológicas) e outras características das “entidades fisicamente relevantes” que impõem limites às relações em que essas entidades se envolvem e, como consequência, aos tipos de significado espacial expressos pelas preposições (ZELINSKY-WIBBELT, 1993. p. 4-5).

Já na Semântica Cognitiva, Talmy (2000. p. 192), demonstra como as preposições espaciais across e through da língua inglesa representam o marco esquematicamente, com conceitualizações geométricas distintas. Essas preposições descrevem um movimento ao longo de um TRAJETO com características próprias, de um lado a outro de uma região: o trajeto descrito por across ocorre sobre um ‘plano delimitado’ e por through , em um

‘fechamento’ linear, ou seja, possuindo uma forma cilíndrica.

(26) A bike sped across the field. [Uma bicicleta acelerou pelo campo. > Uma

bicicleta atravessou o campo a grande velocidade.]

(27) The bike sped through the tunnel. [A bicicleta acelerou pelo túnel. > A

bicicleta atravessou o túnel a grande velocidade.]

Avançando um pouco com os exemplos de Talmy, a bike sped through the field evocaria a dimensão vertical do campo, salientando uma plantação de milho ou trigo que lá existisse e envolvesse o trajetor nesse eixo. Além disso, #The bike sped across the tunnel não parece adequado, porque o ciclista teria que se movimentar a grande velocidade de um lado a outro da estrada (plano delimitado) que passa sob o túnel. Esse é um caso em que o contexto claramente determina a escolha da preposição. 48

As três preposições – across , through e, ainda, dans – “representam o marco como possuindo um ou outro tipo qualitativo de configuração geométrica integrada”

(TALMY, 2000. p. 192). Isso torna seu uso mais limitado que o da preposição em , a qual aparece em construções que evocam variados tipos de noções geométricas e topológicas.

Por essa razão, não se espera encontrar na análise situações nas quais a escolha do falante pela preposição em seja determinada exclusivamente pelas propriedades geométricas do marco.

3.2. O conceito de ‘localização’

Talmy (2000. p. 189-91) cita localização (location ) e movimento (motion ) como os dois principais conceitos envolvidos na representação linguística do espaço. Para os fins propostos aqui, interessa no momento apenas o primeiro desses conceitos. A ‘localização’ é uma noção básica, de natureza topológica, muito esquemática, ligada à noção de estaticidade. Essa noção implica a posição de um objeto (figura-trajetor) em relação à de outro (fundo-marco), conceitualizado como fixo .

Além disso, como explica Levinson (2003. p. 66), essa noção pode ser elaborada de duas maneiras gerais. Primeiro, a categoria ‘localização’ pode incluir conceitualizações que dependem de um sistema de coordenadas e envolver contrastes como anterioridade e posterioridade e superioridade e inferioridade 24 . Alternativamente, a ‘localização’ (que

24 Ordenadas absolutas (por exemplo, em cima de/embaixo de; norte/sul); ordenadas intrínsecas a um objeto (a parte anterior de um cadeira ou de um veículo) e ordenadas relativas a um conceitualizador (direita/esquerda; antes/depois). Esses conceitos são amplamente explorados por TEIXEIRA (1999) na descrição de locuções prepositivas do português europeu no eixo horizontal frente/trás. (Ver também VANDELOISE, 1991, para preposições espaciais do francês)

49

Levinson denomina ‘coincidência’) pode ser elaborada independentemente de qualquer um daqueles sistemas de ordenadas, como no exemplo “A temporada nacional de corridas de rua tem início em Belo Horizonte” 25 . “Em Belo Horizonte” informa apenas uma localização para o trajetor “início”.

A localização pode manifestar-se ainda como inclusão – “...um pão fresquíssimo, daqueles que queimam a mão, no saco de papel ” – , contato – “Comerciantes reclamam do excesso de materiais na calçada ” – e proximidade – “Braga fica perto do Porto”.

Portanto, o conceito de ‘localização’ é um hiperônimo de outros, tais como aqueles expressos por junto a , dentro e fora de , perto e longe de , acima e abaixo de etc.

O emprego do termo ‘coincidência’ por Levinson é, contudo, controverso.

Vandeloise (1991. p. 159), por exemplo, argumenta que ‘coincidência’ é, idealmente, uma noção simétrica. Porém, a “função” de localização – equivalente a situar uma entidade em relação a outra – é altamente assimétrica (ver seção 3.4). Uma manifestação dessa assimetria está no fato de o marco ser normalmente maior que o trajetor, o que não viabiliza a coincidência de localização entre os dois. Esse fenômeno fica demonstrado na comparação entre os enunciados abaixo, que demonstram a impossibilidade de alternância entre o trajetor e o marco.

(28) A fábrica da maior indústria nacional de chinelos fica em Campina

Grande . (JB – 21.06.2008)

25 Adaptada do exemplo original The tournament is at Wimbledon . Levinson atribui a at Wimbledon a função de mera localização.

50

(29) # Campina Grande fica na fábrica da maior indústria nacional de

chinelos .

Dessa forma, assume-se aqui a posição de Vandeloise, eliminando-se o nível

‘coincidência’ da hierarquia original de Levinson e denominando-se ‘localização simples ou inespecífica’ os casos como “em Belo Horizonte” do enunciado mais acima,

‘localização pontual’, aqueles em que o marco realmente apresente essa configuração e

‘coincidência’, apenas os usos em que um evento ocupe toda a extensão de um marco espacial e, também, temporal.

3.3. Limites no emprego espacial de em

Apesar do alto nível de esquematicidade do pólo semântico da preposição em , há limites observáveis em sua aplicação, facilmente demonstráveis com uma entidade concreta, como é o caso de “copo”. Enquanto construções como (4a, b e c) e (5a, b e c) são possíveis descrições das situações representadas nas FIGURAS 4 e 5, dificilmente um falante nativo concordaria que (6a) descreve a situação esquematizada na figura correspondente.

51

FIGURA 4 FIGURA 5 FIGURA 6 a – Há um canudo no copo . a – Tinha o olhar no copo . a – # A água está no copo . b – Há água no copo . b – Pôs a mão no copo . b – A água está fora do/ junto c – Há linhas no copo . c – Tinha a mão no copo . ao copo.

Como se observa em (4 a-c) e (5 a-c), o significado de em traduz-se de seis maneiras diferentes pelo menos, com um mesmo marco: ‘inclusão parcial’ em 4a, ‘inclusão total’ em 4b, ‘parte-todo’ em 4c, ‘ponto final de um trajeto virtual’ em 5a, ‘ponto final de um trajeto real’ em 5b e ‘contato’ em 5c. Em outras palavras, para cada uma das situações esquematizadas nas FIGURAS 4 e 5, pelo menos três descrições diferentes foram possíveis, e em cada uma dessas descrições, a relação evocada por em foi distinta.

Contudo, embora o significado ‘localização’ de em possa ser altamente esquemático, não se trata de uma espécie de “arquipreposição”, que indica simplesmente que um objeto está posicionado “em algum lugar” com relação a outro objeto. Um exemplo disso pode ser visto na FIG. 6, a qual representa uma situação de ‘proximidade’, mas também de ‘exclusão’, que não pode ser descrita pela preposição em . Tal limitação conduz

à hipótese de que, na ausência de contato entre o trajetor e o marco, como em 6a, a 52

semântica de em pressupõe a existência de certo controle do trajetor pelo marco, como será discutido em momentos diferentes desta tese.

3.4. Assimetria conceitual na relação trajetor-marco

Segundo o princípio gestáltico da alternância entre figura e fundo, o sistema perceptivo humano é capaz de destacar uma figura focal em uma cena e perceber outras sensações como num plano de fundo. Na imagem clássica reproduzida abaixo, um observador considerado normal ora percebe um vaso preto, ora dois rostos mais claros em baixo-relevo, voltados um para o outro, mas nunca o vaso e os rostos ao mesmo tempo

(STERNBERG, 2000. p. 120).

FIGURA 7 – O princípio gestáltico da alternância entre figura e fundo.

FONTE – STERNBERG, 2000. p. 121.

Como foi discutido na seção 2.2, a relação de assimetria entre um trajetor e um

marco é uma dimensão da proeminência focal, relacionada a esse mesmo princípio da

Gestalt. Observando o uso da linguagem, Talmy (2000) sistematizou uma série de

distinções conceituais entre o trajetor ( objeto primário ) e o marco ( objeto secundário )

baseadas na assimetria figura-fundo, que ocorrem com frequência. Sua lista é reproduzida

na TAB. 1 e é seguida por exemplos de aplicação em alguns contextos espaciais. 53

TABELA 1

Assimetria no alinhamento trajetor-marco

Objeto primário Objeto secundário

I Possui propriedades espaciais (ou Atua como uma entidade de referência, temporais) desconhecidas a serem possuindo propriedades conhecidas que determinadas. podem caracterizar os aspectos desconhecidos do objeto primário.

II Mais móvel. Mais permanente na localização.

III Menor. Maior.

IV Geometricamente mais simples em seu Geometricamente mais complexo em seu tratamento (frequentemente tratamento. conceitualizado como um ponto 26 ).

V Mais recente na cena/na consciência. Aparece mais cedo na cena/na memória.

VI Mais relevante Menos relevante.

VII Sujeito a ser menos percebido Mais imediatamente perceptível. imediatamente.

VIII Mais saliente uma vez que tenha sido Menos saliente uma vez que o objeto percebido. primário tenha sido percebido.

IX Mais dependente. Mais independente.

FONTE – TALMY, 2000. p. 183.

Como consequência do princípio I de assimetria focal, o fundo é referência para a figura. Desse modo, alterações no fundo determinam mudanças na conceitualização da figura.

26 Ver crítica de VANDELOISE (1991. p. 5-6) a respeito dessa característica. 54

A FIG. 7, desta vez reproduzida com um fundo mais rico em detalhes, demonstra o papel deste na percepção da figura. O contexto mais informativo (vaso, mobília e ângulo de incidência da luz) dá ao observador a certeza de que a imagem na metade direita da fotografia é a sombra do vaso projetada na parede.

FIGURA 8 – O contexto como referência para a FIG. 3.

FONTE – STERNBERG, 2000. p. 121.

Na linguagem espacial, em particular no uso de preposições, os efeitos da assimetria se fazem presentes em configurações que evocam o sentido de ‘localização em algum lugar’ ou de ‘na proximidade de algum lugar’ cuja localização e propriedades geométricas são conhecidas dos interlocutores (VANDELOISE, 1991. p. 21-3; TALMY,

2000. p. 182-4). A locução prepositiva perto de , por exemplo, permite uma alternância entre entidades, desde que essas apresentem certas características semelhantes, como fica demonstrado nos exemplos abaixo, adaptados da página 184 da segunda obra:

(30) A casa de Jade fica perto d a minha.

(31) A bicicleta está perto d a casa.

(32) ?A casa está perto d a bicicleta. 55

Além das entidades esquemáticas e da ‘proximidade’ topológica, perto de especifica a relação desigual entre elas, no sentido de que o marco (casa) serve de referência para a localização do trajetor (a bicicleta) 27 .

Na sequência do texto, pode-se ver como Vandeloise (1991) lida com o conceito de ‘localização’ como uma das possíveis Relações Funcionais existentes entre entidades do domínio físico.

3.5. Efeitos funcionais envolvidos na construção de cenas espaciais

Para Vandeloise (1994 e 1991), mais que noções geométricas ou lógicas (baseadas em restrições seletivas), a investigação semântica dessas palavras deveria se basear no conhecimento enciclopédico sobre o tipo de relações que realmente se estabelecem entre entidades no espaço.

Assim, por exemplo, o último critério da assimetria mencionado anteriormente diz que o marco serve de referência para a localização do trajetor. Na prática, a função de localização é facilitada se o referente do marco tiver uma localização estática. Segundo esse autor (1991. p. 21-3), a assimetria resulta em um princípio geral da linguagem – baseado na experiência do mundo – de acordo com o qual “um objeto de localização desconhecida não pode ser situado a não ser por referência a outro cuja posição seja mais conhecida” 28 . Ele

27 Em comunicação pessoal, o Prof. Luiz Francisco Dias (UFMG) observa que o exemplo (32) soaria inadequado em uma interpretação sitiante (permanente) da localização da casa, porque subverte os critérios II e III: o trajetor (casa) ser mais estático e maior que o marco (bicicleta). Por outro lado, uma interpretação cenográfica (temporária) da cena trataria a casa como um objeto móvel e daria maior aceitabilidade ao enunciado.

28 Do original: “An object whose location is unknown cannot be situated without reference to an entity whose position is better known.” (VANDELOISE, 1991. p. 21-2). (Tradução livre)

56

afirma ainda que, das três características – tamanho, mobilidade e informação nova –, esta

última tem prioridade sobre as demais, como demonstram estas construções com a locução prepositiva près de da língua francesa:

(33) L’épingle est près d u château. [o alfinete está perto d o castelo]

(34) ? Le château est près d u pin. [o castelo está perto d o alfinete]

(35) Regarde l’étoile filante! Près d u clocher. [Olhe a estrela cadente ! Perto d a

torre da igreja]

(36) ? Regarde le clocher! Près de l’étoile filante. [Olhe a torre da igreja ! Perto

da estrela cadente]

(37) Le Cameron est près de l’équator. [A República dos Camarões fica perto d o

Equador.]

(38) La grue est près d es chalands. [A grua está perto d as balsas.]

A estranheza causada pelos dois primeiros exemplos deve-se, a princípio, à enorme diferença entre os tamanhos do alfinete e do castelo. É essa estranheza que

Vandeloise visa a destacar ao escolher entidades de dimensões tão desproporcionais em seus exemplos. Esses dois enunciados representam com clareza dois aspectos – tamanho e mobilidade – da função de ‘localização’. É antinatural procurar um castelo tomando-se como referência um alfinete, especialmente porque este é um objeto móvel e de difícil visualização em uma tomada que inclua, ao mesmo tempo, o castelo. Já a mobilidade da estrela cadente não permite que se localize, por meio dela, a torre da igreja, que é estática. 57

Pode-se observar, entretanto, que os dois últimos exemplos não seguem os critérios de tamanho e mobilidade, nessa ordem. Até mesmo por sua concretude, o território dos Camarões é, sem dúvida, maior que uma linha imaginária tal como o Equador.

Entretanto, a localização desse país parece ser menos conhecida que aquela da linha abstrata criada para ser referência mundial de latitude. O mesmo pode ser dito a respeito das balsas, cuja movimentação se dá dentro de uma região conhecida do falante e do ouvinte e, por isso, elas podem servir de referência para a localização da grua.

Outra relação funcional apresentada por Vandeloise (1991. p. 215-6; 1994. p. 172) que pode explicar certos desvios da assimetria trajetor-marco denomina-se C/c

(Contentor/objeto contido). Nessa relação funcional, um contentor exerce um controle sobre – ou contém – o trajetor nele incluído.

O exemplo (39) representa um caso de ‘inclusão parcial’ que recebe aqui uma explicação com base na Relação C/c.

(39) ... a época é ótima para adquirir um pinheiro natural, uma vez que ele não

secará ao ficar apenas um mês no vaso .vi

O esquema evocado inclui um trajetor (pinheiro) que normalmente é maior que o marco (vaso). A inversão da assimetria nesse exemplo de ‘inclusão parcial’ é licenciada pelo contexto situacional, que informa ao falante sobre a relação C/c emergindo dessas configurações. Em outras palavras, o vaso ‘controla’ a localização do pinheiro (ver também seção 4.2.1). Alternativamente, poder-se-ia afirmar que está em jogo aqui a capacidade do falante para conceitualizar o trajetor utilizando processos metonímicos (as raízes da árvore). 58

Entretanto, o falante dificilmente empregaria o termo “pinheiro” nesse caso apenas em referência a suas raízes.

O conhecimento enciclopédico sobre a estrutura e propriedades físicas de líquidos e de gases também explica outro caso de inclusão parcial: a espuma da cerveja está dans le verre [no copo] . O líquido que é contido pelo copo é a mesma substância que forma a estrutura gasosa da espuma, a qual pode se manter fora do copo, mas ainda presa a ele. O impacto dessas diferenças conceituais varia de língua para língua. No português do Brasil, a construção “no copo” seria mais aceitável, enquanto “dentro do copo”, provavelmente não.

FIGURA 9 – Inclusão parcial.

FONTE – VANDELOISE (1991. p. 34).

Outro exemplo bastante citado (de VANDELOISE, 1994) é o esquema espacial de

‘inclusão total’, topologicamente idêntico em duas cenas, mas que requer expressões distintas na língua inglesa. Ele sai do escopo dos parâmetros de assimetria sugeridos em

Talmy (2000) e demonstra como os empregos de in e under são condicionados pela função de ‘contenção’ do marco. A fumaça é localizada e controlada pela cúpula, enquanto a pera está apenas situada em relação a ela. 59

FIGURA 10 – Elemento funcional percebido na relação de ‘contenção’.

FONTE – BRALA, 2002. p. 5.

(40) The smoke is in the cheese cover .[Lit.: A fumaça está dentro da tampa da

queijeira .]

(41) The pear is #in/under the cheese cover.[Lit.: A pera está dentro/debaixo da

tampa da queijeira .]

FIGURA 11 – A pera está sob a/debaixo da queijeira .

Acontece, porém, que no português do Brasil seria perfeitamente aceitável afirmar que a fumaça e a pera estão na queijeira. Essa relação específica é expressa de maneira distinta em nossa língua, não se destacando apenas a cúpula ( cover ), mas o objeto inteiro.

Desse modo, “A pera está sob a queijeira” implica uma relação diversa entre os dois objetos, como na FIG. 11 acima. 60

Por essa mesma razão, pode-se falar sobre a exigência de um contentor com abertura voltada para cima ou para baixo apenas por questões pragmáticas. A relação C/c se manifesta na hipótese “fumaça + contentor aberto”. Devido às propriedades físicas da fumaça, o aspecto funcional prevaleceria e o emprego de em só seria possível com o contentor voltado para baixo:

(42) #A fumaça está na tigela . / A pera está na tigela .

Como última demonstração do efeito de ‘controle’ na relação C/c, explora-se esse limite imposto à distribuição de em através da seguinte situação:

FIGURA 12 – Uma lâmpada ou uma garrafa?

FONTE – VANDELOISE, 1994. p. 172.

Do ponto de vista da conceitualização, a figura acima pode ser interpretada como um esboço de uma garrafa com uma tampa ou como uma lâmpada em um bocal.

Entretanto, apenas o primeiro de cada par dos exemplos abaixo parece linguisticamente adequado.

61

(43) O pior é que a lâmpada que iluminava o fundo da casa queimou, foram

colocar uma lâmpada no bocal , mas Régis escorregou, caiu e trouxe junto

o bocal. vii

(44) # O pior é que a lâmpada que iluminava o fundo da casa queimou, foram

colocar o bocal numa lâmpada , mas Régis escorregou, caiu e trouxe junto

o bocal.

(45) Coloque a tampa na garrafa , depois vire a garrafa de ponta cabeça na pia. viii

(46) # Coloque a garrafa na tampa , depois vire a garrafa de ponta cabeça na pia.

O efeito funcional do marco é novamente resultado de sua “energia” para determinar a posição do trajetor. Nos casos acima, é o bocal que segura a lâmpada e, ainda, a garrafa que, mesmo sendo um marco móvel, determina a posição da tampa. Como se verá na seção 4.2.1, esse efeito funcional sanciona usos do conceito de ‘controle’ em domínios abstratos tais como:

(47) O futuro desta campanha está em suas mãos . (Estadão – 01.05.2008)

3.6. Comentários finais sobre o capítulo

Nesta parte do texto, buscou-se destacar a relevância das experiências espaciais para a cognição em geral, bem como demonstrar a complexidade envolvida em seu processamento. Uma das consequências dessa complexidade é não se poder restringir a análise semântica das preposições espaciais a noções puramente geométricas ou topológicas. Procurou-se demonstrar a necessidade de se empregar conceitos topológicos, 62

geométricos e funcionais (ou do conhecimento de mundo), bem como certos componentes da perspectivação conceitual e a convenção linguística.

Entre as noções espaciais discutidas, recebeu maior atenção a ‘localização’, a qual se procurou definir como uma noção esquemática em relação a outras como ‘inclusão’,

‘contato’, ‘proximidade’ etc. Nesse sentido, ficou demonstrado que a preposição em apresenta limites em sua aplicação como ‘localização’, aparentemente sendo necessário a

‘inclusão’ do trajetor em certa “zona de controle” ou “influência” do marco. Esses limites impostos à distribuição de em são devidos à assimetria frequentemente observada entre o trajetor e o marco das preposições espaciais em geral, assimetria essa potencializada pela noção topológica de ‘localização’.

Um terceiro elemento que interfere no emprego de em como ‘localização’ tem fundo pragmático, isto é, depende do conhecimento do conceituador sobre como objetos físicos interagem no mundo ou sobre propriedades físicas desses objetos.

Além de explicar limites na distribuição de em no domínio espacial, os fenômenos discutidos acima têm grande importância na emergência de extensões de sentido para domínios abstratos, como se discutirá na sequência do texto. 63

4. POLISSEMIA E COGNIÇÃO

Esta seção apresenta o fenômeno da polissemia e sua relação com a conceitualização. Embora o tema da plurissignificação linguística já fosse do interesse de filósofos como Aristóteles e Santo Agostinho (SILVA, 2006. p.17), o termo polissemia somente veio a ser cunhado por Michel Bréal em 1897. A polissemia designa o fenômeno bastante abundante na linguagem em que sentidos novos são dados a uma mesma forma,

“sem que o sentido antigo seja extinto”.

Esse fenômeno, abundante entre elementos de classes tanto abertas como fechadas, contrasta com a homonímia , a qual se caracteriza pela associação acidental de múltiplos sentidos a uma mesma forma linguística. A polissemia difere também da monossemia , que é marcada pela existência de um sentido muito abstrato, mas que permite variações contextuais (SANDRA & RICE, 1995. p. 98).

Para marcar a existência de polissemia, pode-se fazer uso de paráfrase. Esse recurso é empregado com certa frequência neste estudo para demonstrar como em se sobrepõe a certos usos de um grupo de preposições e locuções prepositivas estabelecidas de sentido mais “concreto”, tais como de (especificação), dentro de (inclusão), em cima de

(contato) etc. Dessa forma, é mais fácil identificar usos distintos que devam ser considerados convencionalizados, como nestes exemplos retirados do córpus, todos com a preposição em.

(48) Agora imagine que a água que você tem para beber e cozinhar seja a que está

no/dentro do copo à direita da fotografia. (Estado de Minas – 10.08.2009) 64

(49) São três placas de bronze postas uma acima da outra na/sobre a parede

frontal do MHAB. (Estado de Minas – 05.08.2008)

(50) Em/de bronze e granito , [o monumento] representa a conquista do território

e da liberdade. (Estado de Minas – 05.08.2008)

(51) Pouco após o fim do discurso de Hillary, o salão foi inundado por uma chuva

de papel picado nas/com as cores da bandeira americana . (Estadão –

01.05.2008)

Essa pequena amostra contém quatro usos considerados distintos neste estudo. A diferença mais marcante entre eles está nos três domínios conceituais em que os usos se dão: (48) e (49), no domínio espacial; no domínio das substâncias e das propriedades físicas, (50) e, no domínio das cores, (51). Além disso, os usos espaciais diferem a respeito do tipo de esquema imagético que evocam, por exemplo, CONTENTOR e CONTATO.

4.1. Rede de polissemia

A polissemia tem importância crucial na evolução das línguas. A “liberdade” que os falantes têm para usar as palavras em contextos diferentes afeta o sistema linguístico por inteiro, uma vez que as palavras vizinhas também são atingidas pelo mesmo efeito. Como consequência, esse mecanismo transforma a língua no curso do tempo.

Mas a despeito de seu forte apelo diacrônico inicial, nem sempre a história da palavra soluciona o debate da polissemia (VICTORRI & FUCHS, 1996. p. 11-2). Muitas vezes, não há pistas sobre a etimologia de uma palavra ou não se sabe ao certo a que período da evolução linguística se deve retornar: neste caso, ao latim ou ao indo-europeu? 65

Em uma perspectiva sincrônica, a unicidade deve ser sustentada por argumentos tais como a existência atual de elementos comuns entre os diferentes usos do termo e de sentidos intermediários entre os sentidos mais distanciados daquele que, na visão cognitiva, denomina-se “sancionador” (LANGACKER, 1987. p. 66-71), sem um salto abrupto entre os usos. Em termos de polissemia, a Semântica Cognitiva pleiteia a possibilidade de explicar os elos entre os diversos usos por meio de algum processo cognitivo, como os mencionados neste texto.

Muitas vezes, tais explicações convergem para a representação dos diferentes usos e as relações entre eles em termos de um ou outro modelo de rede de polissemia (SANDRA

& RICE, 1995), por exemplo, o de Lakoff (1987) e o de Tyler & Evans, (2003).

Neste estudo, a organização dos usos é proposta por meio de uma Rede

Esquemática (LANGACKER, 1987. p.74-6), que inclui relações de categorização do tipo esquema/instância para unidades simbólicas, padrões ou generalizações (esquemas em cada nódulo) e o sancionamento de novos usos (categorização de usos sem status de unidade linguística). O sancionamento pode ser total, quando um uso apresenta compatibilidade completa com o padrão (unidade convencionalizada). Entretanto, normalmente ocorre apenas sancionamento parcial, isto é, o padrão ou esquema superior não é de todo compatível com o novo uso e, ainda assim, o usuário da língua o percebe como membro da categoria que o padrão representa. Esse é o tipo de categorização baseada em protótipo. A figura a seguir é um exemplo de aplicação dessa rede com conceitos nominais. 66

FRUTO

FRUTA TOMATE

MAÇÃ BANANA PERA

FIGURA 13 – Rede esquemática

FONTE – LANGACKER (1987. p.74)

As relações verticais no diagrama acima representam categorização por elaboração (considerando a direção das setas). Isso implica que cada esquema na extremidade final da seta é um exemplo, uma instância ou elaboração do esquema de onde parte a seta. Assim, FRUTO é um conceito bastante esquemático, que incorpora noções muito abstratas encontradas em FRUTA e TOMATE e, ainda, em MAÇÃ, BANANA e

PERA. Ser recoberto por algum tipo de pele ou membrana seria uma das características de

FRUTO. Por outro lado, TOMATE e FRUTA são instâncias ou elaborações de FRUTO.

O exemplo também inclui a representação de uma extensão de sentido, o qual aparece como uma seta horizontal tracejada entre FRUTA e TOMATE. Isso quer dizer que o conceito FRUTA deu origem ao conceito TOMATE como outra instância de FRUTO

(Ver também TAYLOR, 2002a. p. 138-40). 67

Não se deve pensar, contudo, que o emprego da rede esquemática exclua a análise diacrônica. Na verdade, a diacronia pode colaborar para a explicação dos processos cognitivos de extensão propostos através desse modelo, ao revelar contextos de descoberta, períodos e tendências de estabilização de novos usos. Segundo o autor do modelo (1987. p.70), a interface convenção-uso é a origem da mudança linguística, uma vez que usos inéditos e os critérios de categorização que permitiram seu sancionamento podem vir a se tornar unidades simbólicas e adquirir certo grau de convencionalização, como se discute abaixo.

4.2. O surgimento de um novo uso

Como salienta Langacker (1987. p. 65-6), “são os falantes que criam expressões novas e não as gramáticas” 29 . O processo envolve um “esforço construtivo”, o qual, segundo esse autor, é semelhante à tarefa de solucionar um problema. Além do conhecimento da convenção linguística, entra em jogo uma série de habilidades cognitivas tais como a memória, a capacidade de planejamento, de comparação e de julgar graus distintos de semelhança.

Além dos recursos mencionados mais acima, o falante também utiliza sua capacidade de conceitualizar uma única cena de maneiras distintas ( construal em

LANGACKER, 2001) e de imaginação, isto é, sua capacidade de criar metáforas e metonímias conceituais, que permite ao falante solucionar o problema de escolher, entre os

29 Do original: “Putting together novel expressions is something that speakers do, not grammars.” (Tradução livre)

68

elementos linguísticos convencionalizados disponíveis – as chamadas “unidades simbólicas” –, aquele que melhor se ajusta ao novo uso pretendido.

Quando o falante descobre a expressão mais adequada, entende-se que foi encontrada uma estrutura alvo que sanciona o novo uso. O diagrama na página seguinte representa esse processo.

Gramática (convenção linguística)

Julgamento de categorização

PÓLO SEMÂNTICO PÓLO SEMÂNTICO subespecificado USO DETALHADO . . . Pólo fonológico Pólo fonológico‘

Estrutura sancionadora Estrutura alvo

FIGURA 14 – Processo de sancionamento de um novo uso.

FONTE – LANGACKER, 1987. p. 67.

A categorização por julgamento de semelhanças e diferenças não representa o final da explicação para o surgimento de usos novos. A emergência também põe em jogo os

“processos imaginativos” metafóricos e metonímicos e efeitos de perspectivação conceitual.

4.2.1. Esquemas imagéticos e extensões de sentido 69

A maneira como nossa cognição lida com esquemas imagéticos é uma das motivações para a extensão semântica. Em função de sua estrutura e propriedades, os esquemas têm um papel proeminente na geração de novos sentidos. Esquemas são constituídos por uma estrutura interna ou gestalt , que comporta elementos dispostos conforme uma dada configuração. Como exemplo, a noção de ‘movimento’ é constituída por uma entidade que se desloca e o TRAJETO que ela percorre, o qual inclui ainda um ponto inicial e um ponto final e, às vezes , características específicas do tipo de movimento.

Além disso, eles também se caracterizam por certa “lógica básica” (ver seção

2.1.1.2), que corresponde a vinculações ou consequências naturais da estrutura de uma cena espacial. O esquema de CONTENTOR, por exemplo, é formado por uma área delimitada por uma fronteira. Em cada um dos exemplos abaixo, essa configuração gera consequências que podem ser inferidas pelo falante (JOHNSON, 1987. p. 22):

1. O objeto contido é protegido contra forças externas, neste caso, o calor do

ambiente.

(52) Ela estava preservada em gelo desde sua captura no Mar de Ross. (Estadão –

01.05.2008)

2. As paredes do contentor podem ocultar ou não o objeto contido.

(53) As aves estavam escondidas (...), acondicionadas em uma caixa de papelão

dentro de uma bolsa de viagem. (Estado de Minas – 2007)

3. O objeto contido tem localização relativamente fixa. 70

(54) Em abril, a cantora passou a noite numa cela policial , mas foi libertada sem

acusação. (JB – 17.05.2008)

4. Ocorre “transitividade da contenção”, ou seja, um objeto A contido em um

contentor B, o qual está contido em um contentor C, também está contido em C.

(55) As aves estavam escondidas (...), acondicionadas em uma caixa de papelão

dentro de uma bolsa de viagem . (Estado de Minas – 2007)

5. As paredes do contentor restringem e controlam forças no seu interior.

(56) O local (...) abriga o segundo maior passivo ambiental do estado, com cerca

de 29 mil metros cúbicos de resíduos tóxicos (...) armazenados em valas e

em galões enterrados no solo . (JB – 21.06.2008)

A importância dessas vinculações está nos efeitos de sua recorrência. Embora nem todas elas sejam produtivas no português, considera-se que tenham potencial para desencadear processos de extensão semântica, reforçando a estabilização de expressões na língua. No último dos casos acima, o efeito inferido – de controle sobre a entidade contida

– reflete-se na construção “está nas POSS mãos” ou “está nas mãos de X”, usada para indicar que X tem o poder para decidir ou agir sobre uma determinada situação.

(57) (47) O futuro desta campanha está em suas mãos . (Estadão – 01.05.2008)

4.2.2. Metáforas conceituais e polissemia 71

Contrariando o pensamento preponderante até então, Lakoff & Johnson (1980) propuseram um status primordial para os processamentos metafóricos em nossa cognição.

Esse reconhecimento permitiu que a metáfora ultrapassasse, por assim dizer, os limites do universo imaginativo e literário, situando-a como um procedimento padrão do sistema cognitivo, refletido na linguagem, no pensamento e nas ações humanas. De acordo com essa proposta, ao se comunicarem, as pessoas utilizam incontáveis metáforas convencionalizadas, que estão entrincheiradas em sua memória.

As metáforas correspondem a mapeamentos motivados entre domínios conceituais. Estes podem ocorrer por força de semelhança perceptual ou funcional e por correlação de experiências (LAKOFF & JOHNSON, 1980; GRADY, 1997).

Nos exemplos a seguir, de semelhança funcional, entende-se que há uma raiz comum nas palavras empregadas em cada par ((58) e (59); (60) e (61)), sendo que os falantes utilizaram a estrutura de conceitos do domínio concreto para organizar sua experiência conceitual em domínios abstratos. Entre os elementos comuns mapeados, encontra-se a relação de ‘suporte’ originada de nosso conhecimento a respeito da gravidade e das propriedades físicas de entidades concretas: no domínio físico, a pedra fornece suporte para manter a construção de pé; a pilha de jornais serviu de anteparo ou apoio para a caneca. O mapeamento ocorre em direção ao ‘suporte abstrato’: é necessário que o governo dê seu suporte ao projeto, o suporte dos eleitores através de seu voto permitirá que o político seja eleito etc. O fenômeno se faz presente em todos os exemplos abaixo, que não acidentalmente, são de idiomas diferentes:

72

(58) A água escorria como cachoeira dos dois lados do casebre, apoiado apenas

sobre uma pedra que não parecia durar muito até que deslizasse morro

abaixo. (Estadão – 01.05.2008)

(59) Um projeto desse porte tem que ter o apoio do Governo também. (JB –

17.05.2008)

(60) Penn used a moment to sip her coffee. “Gah!” (…) She quickly placed the

mug on the newspaper pile and said… [Penn fez uma pausa para um café.

“Eco!” (...) Ela logo colocou sua caneca sobre a pilha de jornais e disse…] ix

(61) Remember, elected officials are always aware of upcoming elections and

want to count on your vote. x [Lembrem-se: funcionários eleitos estão

sempre atentos às próximas eleições e querem contar com seu voto.]

Outros mapeamentos metafóricos ocorrem por semelhança perceptual (GRADY,

1997), o que corresponde à associação de conceitos devido a semelhanças físicas ou características abstratas percebidas. No exemplo abaixo, é bem possível que, na origem desse uso metafórico hoje convencionalizado, tenha ocorrido um processo de extensão semântica por meio de mapeamentos de um domínio físico fonte (instrumento de percussão

> sino) para outro domínio físico alvo (vestuário > calça comprida) por força da forma semelhante.

(62) Esses valores foram traduzidos na moda através de roupas soltas - como

saias longas, batas e calças boca-de-sino . (JB – 15.08.2008)

73

Especialmente devido ao seu caráter consciente, o processo de semelhança perceptual distingue-se da correlação de experiências (GRADY, 1997). Este último se dá quando duas experiências distintas frequentemente ocorrem juntas, sendo associadas no nível conceitual, e uma passa a incorporar o sentido da outra e vice-versa. Por exemplo, quando formamos uma pilha de livros, quanto mais livros há, mais alta é a pilha.

Considerando que a linguagem reflete nosso pensamento, expressões como “os juros subiram” = “os juros aumentaram”, demonstram como, em nossa cultura, esses dois conceitos estão interligados. Por força da recorrência, essas associações conceituais entram para nossa memória de longo prazo, fornecendo mais uma fonte de motivação para a polissemia.

A correlação de experiências distingue-se da lógica básica de esquemas imagéticos porque não é uma consequência obrigatória. No exemplo dado, o número de livros poderia ser aumentado sem haver um correspondente incremento da altura da pilha, caso fossem alinhados lado a lado em uma estante.

Ao explicar o fenômeno, Grady (1997) observa que, frequentemente vivenciamos episódios básicos delimitados no tempo, nos quais percebemos uma forte correlação entre uma “circunstância física” (marcados pela intencionalidade) e uma “resposta cognitiva”

(gerada por uma capacidade inata). Essas coocorrências acabam por gerar uma associação natural entre as duas dimensões, a ponto de associarmos o esquema físico a outra situação vivenciada em outro domínio, a qual gere uma resposta cognitiva semelhante. Comumente conceitualizamos “dificuldade” empregando esquemas de “peso”, ao associarmos a sensação de desconforto e tensão tanto ao ato de levantar um peso como ao de superar uma dificuldade. Em nossa língua, então, referimo-nos a uma “tarefa pesada” ou a “ser um peso 74

para alguém”. Essas já são metáforas convencionalizadas que todos entendemos sem conscientemente evocarmos qualquer experiência física.

No que concerne o uso das preposições, a correlação de experiências provavelmente explica certas construções com a preposição sob convencionalizadas no português do Brasil, em que a resposta cognitiva a uma experiência no domínio físico aparece explícita, como descrito abaixo (OLIVEIRA, 2007. p. 239). Na cena espacial, a situação de risco decorre da natureza do marco (laje quebrada ao meio). O perigo é previsível, nesta e em outras situações semelhantes, vivenciadas diretamente ou por meio de relatos.

(63) Além do risco às pessoas que trabalhavam sob a laje quebrada ao meio, os

cinco peritos queriam evitar mais danificações às hastes e ao resto do pilar. xi

A resposta cognitiva de risco potencial é de tal modo recorrente, que não mais carece da cena espacial motivadora e se projeta para outros domínios, gerando construções estabilizadas contendo palavras como “risco” e “ameaça”.

(64) Pesquisa da ONU revela que jovens estão sob alto risco . xii

(65) Proibição de caça às baleias sob ameaça em reunião no Alasca.xiii

4.2.3. Metonímia e polissemia

Outro processo cognitivo que pode sancionar novos usos de uma forma é a metonímia. Enquanto a metáfora conceitual é uma maneira de compreender um conceito 75

através de outro, a metonímia é tradicionalmente descrita como um modo de se referir a uma entidade X por meio de outra Y, sendo que X e Y estão fortemente associadas na experiência (LAKOFF & JOHNSON, 1980. p. 36).

Uma distinção mais recente e, talvez, mais esclarecedora entre os dois fenômenos aparece em CROFT (2002. p. 178-9): a metáfora implica mapeamentos entre domínios pertencentes a diferentes matrizes (LANGACKER, 1987, cap. 4) e a metonímia envolve a saliência de aspectos de domínios pertencentes à mesma matriz. Uma matriz é o conjunto de domínios interligados que constituem a base conceitual que uma forma linguística evoca, ou seja, a porção do conhecimento enciclopédico que constitui seu pólo semântico

(Ver também TAYLOR, 2002b. p. 324-5).

Um tipo comum de relação metonímica é a relação parte-todo (TAYLOR, 2002a. p. 111-2; LAKOFF & JOHNSON, 1980. p. 38), que envolve o fenômeno da zona ativa, discutido na Introdução . Recapitulando, a zona ativa atual é a faceta que mais se salienta na conceitualização de uma entidade em uma dada situação de uso. Os exemplos abaixo, adaptados de Taylor (2002a. p. 111) demonstram como o termo “árvore” é empregado para designar partes diferentes de uma mesma coisa.

(66) Os pássaros passam a noite naquela árvore .

(67) Um pica-pau fez um ninho naquela a árvore.

(68) Havia um balanço naquela árvore.

Em cada exemplo, partes distintas da árvore são evocadas, ou seja, há três diferentes zonas ativas do referente de “árvore”. Em (66), a copa da árvore é esta parte; em 76

(67), trata-se da porção do tronco utilizada pelo pássaro para fazer seu ninho e em (68), a zona ativa é algum galho mais resistente da árvore ao qual o balanço está atado. Esses usos, nos quais o nome do todo é empregado para designar uma parte, são resultados pragmáticos das diferentes cenas e, seria um exagero afirmar que a construção naquela árvore é polissêmica.

Contudo, a metonímia pode explicar o emprego da preposição em para designar a localização no alvo de um movimento (TAYLOR, 2002b. p. 330) em contraste com uma localização estática.

(69) Muito antes de Cristo, alguns “sábios” já sabiam que vivemos em um

mundo redondo . (Estado de Minas – 05.08.2008) – LOCAL ESTÁTICO

(70) ... pela presença de Selma na vida do filho, pelo o que ela fez por ele, por tê-

lo colocado no mundo . (Estado de Minas – 05.08.2008) – ALVO

O primeiro uso é um caso de ‘localização simples’ enquanto o segundo representa a elaboração de uma relação estática como ‘ponto final’ de um TRAJETO. Como já mencionado, esse esquema imagético é constituído por um ponto inicial, um ponto final e uma distância entre eles. Mas nesse caso, o ponto final é mais saliente, o que demonstra que o fenômeno da metonímia é uma “ramificação” daquele descrito por Langacker como

“zona ativa” (TAYLOR, 2002a. p. 112) e pode, assim, gerar um novo emprego da preposição, que represente mais uma instância do sentido de ‘localização’.

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4.3. Comentários finais sobre o capítulo

Nesta seção do texto buscou-se descrever a polissemia como fruto da capacidade cognitiva de categorização e da necessidade de se lidar com a desproporção entre a grande quantidade de fenômenos a serem descritos e o número reduzido de formas linguísticas disponíveis.

Argumentou-se que a categorização (prototípica) de novos usos pode ocorrer por semelhança com um padrão pré-estabelecido e também por meios menos diretos, como correlação de experiências, efeitos funcionais e lógicos de determinadas configurações espaciais e por raciocínio metonímico.

Procurou-se descrever o modo como as relações entre os sentidos ou usos podem ser organizadas em um modelo de polissemia em rede. O modelo proposto é a rede esquemática (LANGACKER, 1987), a qual comporta relações do tipo esquema-instância e de extensão. Na sequência, são descritos os procedimentos a serem adotados para a análise da polissemia da preposição investigada, seguindo esse modelo.

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PARTE II – ASPECTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISES

Cada vez mais a Linguística Cognitiva tem sido chamada a demonstrar, na prática, seu pressuposto de ser um modelo teórico “baseado no uso” e, assim, validar com dados reais os muitos construtos de que faz uso. A maneira como se tem buscado cumprir esse propósito vem sendo refinada nos últimos anos, como avaliam Gries et al. (2005) e Gries et al. (2009). Na maioria das descrições linguísticas, não apenas se tem substituído “sentenças construídas” por amostras autênticas da língua, como também se tem trabalhado com frequências de uso e de distribuição de morfemas em córpus construídos segundo metodologias bem definidas.

Enquanto esta última etapa coloca a Linguística Cognitiva efetivamente nos parâmetros do probabilístico, Gries et al. (2005. p. 636) consideram que o conceito de

“modelo baseado no uso” inclui tanto a pesquisa de córpus como a experimental. Dessa forma, segundo esses autores, seria desejável não apenas avançar na metodologia de córpus, mas também caminhar para a estratégia metodológica denominada “evidência convergente”, ou seja, corroborar os resultados da análise de córpus por meio de experimentos psicolinguísticos.

No caso específico desta tese, procurou-se alinhar com esta nova etapa da

Linguística Cognitiva, interpretando-se a noção de “modelo baseado no uso” em termos de pesquisa quantitativa de córpus e de experimentação com falantes nativos. Como mencionado na Introdução , foram dois os objetivos principais assumidos: produzir uma representação da rede esquemática para a preposição em , como proposto por Langacker 79

(2008 e 1987), e verificar o status cognitivo das diferentes categorias de uso e das relações entre elas.

Assim sendo, a investigação se desenvolveu por dois métodos empíricos complementares, que foram a observação de dados não eliciados num córpus e a observação de dados eliciados através de experimentação com falantes nativos do português brasileiro. O uso das duas abordagens – de córpus e experimental – tem a vantagem adicional de anular diferenças entre informantes no tocante ao nível de acessibilidade ao conteúdo conceitual. Tais diferenças podem ser descritas como variações entre os aspectos linguísticos que recebem maior atenção consciente e, ainda, entre os níveis diferenciados de prática com a introspecção linguística. (TALMY, 2005b. p.2, 11).

A análise de amostras retiradas do córpus teve por finalidade produzir uma série de usos da preposição em e, com base nos aspectos teóricos discutidos na PARTE I, fornecer explicações cognitivas sobre a motivação para a ocorrência dos mesmos. Uma vez que a segunda etapa visou a testar a validade dos resultados obtidos na primeira, as categorias semânticas resultantes proveram o objeto a ser investigado no experimento psicolinguístico.

A fim de reproduzir o mais fielmente possível o encadeamento das fases da pesquisa e de não distanciar as descrições da metodologia das análises resultantes de cada uma delas, nesta PARTE II do texto optou-se por apresentar separadamente a discussão metodológica de cada uma dessas fases precedida da respectiva análise dos dados.

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5. METODOLOGIA – FASE I - Pesquisa de córpus

O uso de córpus é totalmente coerente com o quadro teórico escolhido, na medida em que a Linguística Cognitiva se define como uma teoria baseada no uso ( Usage-based –

LANGACKER, 2000b, outros) e tem como um de seus mais importantes construtos a noção de esquema: uma abstração de padrões recorrentes no uso . Sendo assim, nesta pesquisa, padrões semânticos recorrentes para em são inferidos de usos diversificados da língua portuguesa em páginas on-line de jornais da região sudeste do Brasil. Tem-se, por objetivo, determinar o uso mais prototípico no córpus, assim definido como o esquema mais recorrente na rede (GEERAERTS, 1988; GILQUIN, 2006).

5.1. Definindo a população

Na criação do córpus desta pesquisa, procurou-se basear em Biber (1993), no tocante a certos critérios qualitativos e quantitativos que, segundo o autor, devem nortear a busca pela representatividade em pesquisa de córpus. Buscou-se o registro formal do português brasileiro escrito, publicado em contexto jornalístico.

A partir daí, decidiu-se que a população alvo da pesquisa seria formada por textos jornalísticos da região sudeste do Brasil, e tomou-se como “moldura de amostragem” (p.

243), reportagens e editoriais das edições on-line dos jornais “O Estado de Minas”, “O

Estadão” e “Jornal do Brasil”, publicadas entre 2007 e 2008. Esses jornais têm grande alcance na região geográfica escolhida e adotam uma linha editorial semelhante. Além disso, acredita-se ainda que eles atinjam um grupo de leitores aproximadamente similar.

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5.2. Coleta e preparação dos dados

Como afirma Biber (1993. p. 244), a definição da moldura de amostragem deve também levar em conta a razão custo-benefício, ainda que em detrimento da representatividade ideal. Neste estudo, por exemplo, a escolha das edições a serem incluídas foi determinada pela disponibilidade de tecnologia que permitisse acessar e baixar as páginas dos periódicos utilizados.

Utilizou-se o software HTTrack Website Copier/3.x© 30 , (SARDINHA, 2004. p. 46-

50), que permite ao usuário baixar páginas inteiras da Internet. Isso foi feito nos dias 01.05,

17.05, 20.06, 21.06, 22.06, 24.06, 25.06, 24.07, 25.07, 15.08 de 2008. Como esse programa baixa arquivos em HTML, foi necessário aplicar um tipo de operação de “limpeza”, na qual se separaram fragmentos dessa linguagem de programação dos textos propriamente ditos, em língua portuguesa.

De:

JB Online :: TR- Regras para a circulação de caminhões valem a partir de segunda- feira - 01/05/2008

(Fonte: Jornal do Brasil Online, 17.5.2008)

Para:

JB Online :: TR- Regras para a circulação de caminhões valem a partir de segunda-feira - 01/05/2008

Também foram excluídos do córpus textos de tabelas, que são apresentadas entre

....
, em HTML, como no exemplo na página seguinte, do jornal O Estado de Minas, 03.12.2007, baixado em 22.06.2008.

30 Disponível gratuitamente no endereço www.httrack.com. 82

Daniela Galvão - Aqui