“Garrincha exercia suas picardias de malandro na lateral do campo no lado direito, longe do centro; criado nos subúrbios, jogava nos subúrbios. Jogava para um time chamado Botafogo, e esse era ele: Ao lado, Garrincha comemorando um o Botafogo que incendiava os gol na final do estádios, louco por cachaça e por de 1962 contra tudo que ardesse, o que fugia das o Flamengo, concentrações, pulando pela em que ele deu o bicampeonato janela, porque dos terrenos baldi- ao Botafogo os longínquos o chamava alguma bola que pedia para ser jogada, alguma música que exigia ser dançada, alguma mulher que queria ser beijada. [...] Garrincha morreu sua morte: pobre, bêbado e sozinho” (*).

J O S É S E B A S T I Ã O W I T T E R Garrincha, a estrela

JOSÉ SEBASTIÃO futebol mudou muito nos últimos tem- variações foram infinitas e todos nós nos acos- WITTER é diretor do pos e os “jogadores especialistas” têm, tumamos com a idéia de que um camisa 7 Museu Paulista-USP. Ogradativamente, deixado de existir. pode ser zagueiro ou “meio-campista”. Mané Estrela Solitária- um Brasileiro Desde as múltiplas experiências tentadas em Garrincha, no entanto, foi camisa 7, o grande Chamado Garrincha, de Ruy Castro, São Paulo,Companhia todos os países do mundo, nos quais se prati- especialista da ponta-direita. Nos tempos em das Letras, 1995. ca o futebol (pode-se dizer todos!), os atletas que brilhava a Estrela Solitária do Botafogo foram sendo condicionados fisicamente e o no seu peito, às suas costas estava um relu- vigor de cada um acabou por substituir prin- zente 7 a indicar sua posição: ponta-direita. cipalmente a habilidade, mas também reor- E, como ele, quantos foram os camisas 7 fa- ganizou o posicionamento dos “craques” mosos desde Luizinho, do São Paulo; Clau- dentro do campo. Os homens da minha gera- dio do Corinthians, Julio Botelho (o Julinho) ção (então futebol era jogo pra homem) lem- e depois dele . A partir daí... Não há bram-se muito bem que uma equipe era for- mais pontas-direitas, surgiram os alas, os la- mada pelo goleiro, os zagueiros, a “linha terais ofensivos, etc., etc. Outros tempos... * , Futebol média” e os avantes. Com pequenas varia- Talvez o livro de Ruy Castro Estrela So- ao Sol e à Sombra, tradução de Eric Nepomuceno e Maria ções isso se manteve até o chamado “carrossel litária – um Brasileiro chamado Garrincha do Carmo Benito, São Paulo, L & PM Editores, 1995. holandês” da Copa de 74. A partir de então as tenha, acima de tudo, o papel de contar para

196 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 9 6 - 2 0 0, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 Ao lado, Garrincha

em 58, almofadinha,

com o terno da

delegação brasileira

na Suécia; abaixo

o craque com

a taça que ajudou

a conquistar

s

o

d

a

D

e

d

o

c

n

a

B

:

s

o

t

o

F solitária

as novas gerações que houve uma história bem diferenciada do nosso mundo futebolís- tico e até, pode-se dizer, que houve no futebol brasileiro uma época a.G. e outra d.G., isto é, antes e depois de Garrincha, Manuel dos San- tos – o Mané Garrincha –, figura emblemática de nosso futebol vencedor e da nossa registrada de jogar. Havia, ao mesmo tempo, seriedade e respeito pelos adversários, irreverência e um pouco de deboche. E quan- do a “coisa” estava muito preta para a equipe brasileira – nos campeonatos sul-americanos ou mundiais – sempre se podia esperar um lance de genialidade de um de nossos jogado- res e, numa jogada individual, o problema se resolvia. Garrincha foi um desses gênios que deu vitórias ao Botafogo e à nossa seleção

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 9 6 - 2 0 0, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 197 por não seguir as recomendações dos treina- era como uma segunda natureza para toda dores ou por ousar com suas jogadas sempre a Nação, o kit de sobrevivência de qual- genialmente iguais e que desconcertavam quer menino brasileiro incluía a bola. Mas qualquer “João” que o marcasse. só os meninos ricos tinham acesso às ma- Ruy Castro foi buscar nos documentos, ravilhosas bolas Superball, de couro mar- nas entrevistas, nas fotos e nos filmes os ele- rom, número cinco, que eram usadas nos mentos necessários para recompor a trajetó- jogos de verdade. Os outros precisavam ria desse inigualável “jogador de bola” que improvisar. A primeira bola que Garrincha foi Garrincha. É um livro que revela, que chutou era de meia, feita com uma meia localiza o homem no seu tempo... É, por ve- velha de seu tio Mané Caieira, recheada zes, uma obra contundente, mas fundamental com pano e papel de embrulho e costura- para que se possa repensar não só o futebol da na boca. Havia ainda as bolas de bexi- brasileiro, mas muito de nossa própria histó- ga e Garrincha chegou a fabricar a sua, ria. Convenço-me, depois de ter lido alguns soprando uma bexiga de cabrito e dando livros biográficos (este Garrincha e o Nelson nó na tripa. E também não era de couro a Rodrigues de Ruy Castro e o Assis primeira bola que ganhou”. Chateaubriand de Fernando Moraes), de que eles fazem falta, muita falta para a recupera- Nesses tempos os nossos heróis chega- ção de nosso passado. vam até a gente nas Balas futebol. O rádio, Garrincha, através de Ruy Castro, nos por sua vez, enriquecia nossa imaginação. conduz às décadas de 60 e 70 deste século XX Ruy Castro revela o “Mané” Garrincha de tão turbulento, em que tanto se construiu e todas as peladas, de Pau-Grande ao futebol muito se liquidou e também por isso é precio- profissional do Botafogo, onde se consagra- so. Deveria ser obra obrigatória nas escolas ria. Depois a seleção de 1958. Mais tarde a brasileiras. sua participação no Chile em 1962. O Mané Quem se detiver na leitura desta biografia Garrincha incrível, insuperável, descon- de Manuel dos Santos certamente passará a certante dentro e fora do campo. A vida de compreender um pouco melhor a própria his- Manuel dos Santos vem aos borbotões na tória do Brasil. Isso porque Ruy Castro, ao descrição vigorosa de seu biógrafo, que não retomar o homem Manuel dos Santos desde vai, ao longo das 520 páginas do livro, refor- os seus ancestrais, os fulniôs, retraça a traje- çar o mito ou endeusar o ídolo. Vai, sim, nos tória do grande herói do Botafogo da década mostrar o homem de carne e osso que viveu dos anos 50, de nosso século, desde os mo- seus sonhos e encantou a todos que acompa- mentos mais remotos até sua vida na nham o futebol. Garrincha é o ser dual de pequenina Pau-Grande, onde cresceria como Olavo Bilac, em seus versos imorredouros: ... todo menino do interior. Feliz e despreocu- “Não sou bom nem sou mau, sou triste e hu- pado, tinha nas caçadas de passarinho, na mano...”, e dentro desse mesmo dualismo, pescaria e no “jogo de bola” o seu diverti- quando de seus momentos de loucuras, vivi- mento. Melhor, tinha seu universo. Amava, dos em momentos diferentes: “[...] há dentro de fato, a liberdade. Ser livre como os passa- de mim/ Um demônio que ruge e/ Um deus rinhos parecia o seu destino... por sinal, trági- que chora...”. co destino. O livro todo é precioso, pois nos revela, Vale a pena transcrever Ruy Castro: em seus diferentes momentos, a trajetória de um homem, cujos únicos objetivos eram “jo- “[...] o pequeno Garrincha não teve gar bola” e “fazer sexo”. Fez sexo e fez mui- patinete, velocípede ou pistola d’água tos filhos. A sua mulher Nair lhe deu oito como muitas crianças do seu tempo. Tam- mulheres e parece que nada mais do que isso, bém nunca o obrigaram a usar roupinha se a descrição de sua vida com ela de marinheiro. Em compensação, teve corresponde à realidade. A vida de Nair e todas as peladas com que sonhou e mais Garrincha foi um conviver sem troca, a não algumas. Nos anos 40, quando o futebol ser nos momentos da procriação. Abando-

198 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 9 6 - 2 0 0, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 s

o

d

a

D

e

d

o

c

n

a

B

Em 1982, com

delirium tremens,

pouco antes da

morte — o fim do

gênio do futebol

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 9 6 - 2 0 0, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 199 nada, virou mártir. Mas não deixou de exigir deria acreditar que Garrincha poderia agre- e receber tudo que pediu a Garrincha quan- dir alguém, muito menos uma mulher como do este a deixou para viver com . Elza Soares, a quem tanto amava. Mas o fez Foi correto com Nair, saindo de casa prati- e, então, o desencanto a fez abandonar Mané. camente com nada. Não foi poupado pela Ruy Castro é simplesmente precioso na des- imprensa, pelos fãs e pela sociedade conser- crição da vida de Elza e Garrincha como vadora, que via no seu ato um desrespeito à companheiros. Das peripécias do Rio aos instituição familiar. Garrincha saiu de casa, desmandos da Itália, sempre precioso e con- mas não deixou de estar presente quando tundente. necessário. Não foi um bom pai, e isso não As tristezas e mágoas guardadas por se deve ao seu insaciável desejo sexual, mas Garrincha com relação ao Botafogo, o apoio sim, e desde muito cedo, ao seu gosto pela ou não de amigos e instituições, e a bebida. Acompanhar a sua entrega ao álcool incontrolável busca do álcool nos anos fi- foi o que fez com maestria o seu biógrafo. nais de sua vida, levam o leitor a entender o Mas fez muito mais... Retomou o momento muito daquilo que vive um alcoólatra, seja da aproximação com Elza Soares para colo- ele um homem público, um ídolo, ou um car um pouco da história mal contada ou cidadão comum. É esse incontrolável delí- desfocada em seu verdadeiro lugar. A déca- rio que exige a maior quantidade de bebida da de 60 é a era do apogeu e, paradoxalmen- a cada recaída que vai mostrando esta bio- te, a do princípio da decadência. É também grafia de Garrincha. A falta de reconheci- o período em que Garrincha vive o único mento e mesmo de carinho e atenção vai amor de sua vida. A chegada de Elza em sua contribuindo para o desgaste final. Aos pou- vida é um momento mágico, e a Copa de cos o homem só, que fora Garrincha, come- 1962 é, sem dúvida, a copa do amor. ça a sofrer a amarga solidão. Nem os arrou- Garrincha prometeu a copa para Elza Soares bos sexuais e uma nova gravidez de uma de e a ela a ofereceu, depois de sua maior atu- suas “amadas” iriam conseguir dar sentido a ação como jogador. Não se pode esquecer seu mundo. Vai se consolidando a Estrela que Mané jogou por dois no Chile. Pelé se Solitária, e o parágrafo final da obra dá o tom contundiu logo no início da competição e desse abandono e a frieza das instituições. Garrincha ocupou o espaço deixado pelo Vamos a Ruy Castro: “Um edema pulmonar companheiro e continuou ponta-direita. Fez colheu-o no meio de uma longa madrugada. tudo que precisava fazer no seu posto e foi Às seis horas da manhã, o enfermeiro Aimoré ainda infernizar a vida dos zagueiros como apareceu para conferir as pulsações. O cora- centro-avante, meia-esquerda, etc., etc. Es- ção não batia. Aimoré chamou a Dra. Fátima. tava como nunca motivado, e os detalhes Ela constatou o óbito. Sentou-se à sua mesa e que Ruy Castro nos entrega em seu livro, fez um comunicado à direção...”. com a presença de Elza Soares no Chile, É o fim de Garrincha... dizem tudo. Era o Garrincha estimulado pelo O livro tem a completá-lo fotos muito homem Manuel dos Santos, cujo coração bem escolhidas, que retratam bem Mané transbordava de felicidade pela aproxima- Garrincha... Tem também uma forma nova ção de sua nova musa. Tudo o que parecia de agradecer e a bibliografia é cuidadosa e mais uma aventura espetacular de Garrincha, se encerra com a obra completa de Garrincha, no entanto, passou a ser um dos mais belos que reproduz as participações de Mané nos casos de amor do século XX. Indiscutivel- jogos dos clubes pelos quais atuou, e tem mente, o verdadeiro amor de Garrincha foi uma observação que vale transcrever: ... “A por Elza Soares. Ela foi, além de sua grande quantidade de gols marcados por Garrincha parceira, um suporte nos seus momentos de é ilusória. Deve-se considerar que, no míni- embriaguez e depressão. Nunca lhe faltou mo, um terço dos gols marcados por seus como companheira e com ele ficou até os times saiu de seus pés”. momentos em que o alcoolismo o transfor- mou em um homem violento. Ninguém po- Beleza de obra!

200 R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 2 9 ) : 1 9 6 - 2 0 0, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6