Charqueada e escravidão em Rio Grande

Beatriz Valladão Thiesen1 Claudia Daiane Molet2 Marcia Naomi Kuniochi3

Rio Grande abriga o último porto brasileiro, antes da fronteira meridional do Brasil e da entrada do Rio da Prata. Em função de sua posição geográfica, o comércio e a segurança militar estão na origem de seu povoamento, sendo possível afirmar que desde a sua fundação, em 1737, a movimentação portuária e comercial fora uma constante, recebendo inúmeras embarcações e com elas marítimos e também mercadorias.1

A partir do final do século XVIII, com a disseminação da indústria do charque, no , a economia da região foi consolidaada, dando origem a unidades produtivas escravistas nos moldes daqueles que caracterizavam a sociedade colonial brasileira: latifúndio, monocultura e mão de obra escrava. Nesse contexto, a região de foi se destacando, tornando-se o centro da produção charqueadora.

Se Pelotas ficou logo identificada com a produção do charque, a vila do Rio Grande, além de manter as atividades mercantis, ainda centralizava um território de grandes proporções, contendo muitas propriedades agrícolas. Nesse sentido, a elite riograndina tinha representantes de diferentes ramos, tanto rural como urbana, o que lhe conferia um caráter diferenciado na província, cuja produção, tradicionalmente, estava associada à pecuária. Ao contrário das outras regiões gaúchas, Rio Grande atraia uma elite interessada no porto, que integrava o circuito mercantil do Atlântico sul.

Essa diversidade pode ter sido um dos fatores que manteve a cidade do Rio Grande distante da política regional, que era centralizada nos interesses de estancieiros e charqueadores,

1 Profa. Adjunto - FURG 2 Mestranda em Ciências Sociais -UFPel 3 Profa. Associada - FURG

1 principalmente no período . Isso pode ajudar a compreender o fato de que os pesquisadores em geral não se interessaram em caracterizar com maior precisão a elite rural riograndina, e muito menos em investigar o caráter das atividades das propriedades rurais existentes em um território bastante extenso.

Dessa maneira, o estudo de uma charqueada, localizada nas imediações da então vila do Rio Grande pode contribuir para caracterizar melhor a diversidade das atividades econômicas, desenvolvidas pela elite local. Além do mais, o produtor de charque necessitava de um maior contingente de escravos para as atividades dessa indústria. Desse modo, tal pesquisa possibilitará a compreensão do espaço do trabalho bem como as condições dos escravos, em Rio Grande, local que ainda carece de estudos para o período. Importante ressaltar que a historiografia considera que o trabalho nas charqueadas foi um dos mais insalubres.

Em razão disto, este estudo pode ser uma excelente oportunidade de averiguar de que maneira o trabalho escravo participou na constituição da sociedade riograndina.

Arqueologia da escravidão

Se, por um lado, as pesquisas históricas relacionadas à escravidão possuem larga tradição, por outro, as investigações arqueológicas neste campo são muito recentes, mesmo considerando o amplo território americano. Conforme Samford (1996:87):

“A primeira escavação de um alojamento de escravos afro-americanos aconteceu em 1968, e foi só no final da década de 1970, quando as preocupações da antropologia e da história social convergiram, que questões de alcance mais abrangente começaram a ser dirigidas aos arqueólogos. Essas questões, amplamente guiadas pelos interesses de pesquisa de historiadores, envolviam o contexto do dia a dia na vida da plantation, relações sociais entre plantadores e escravos, processos de mudança cultural resultantes do contato entre americanos europeus e afro- americanos, e a presença de marcadores culturais do oeste africano dentro do registro arqueológico.” 4

Nas duas últimas décadas, as pesquisas arqueológicas neste domínio têm crescido, especialmente nos paises americanos de língua inglesa – Estados Unidos e algumas nações do Caribe. No Brasil, o primeiro estudo arqueológico de senzalas, foi publicado somente em 1993

4 As citações originalmente em língua estrangeira foram traduzidas livremente neste texto pelas autoras.

2 (Lima et al., 1993) e focou uma fazenda de café no município de Vassouras, no Rio de Janeiro, no século XIX. O objetivo desta pesquisa foi avaliar as práticas sócio-culturais dos povos escravizados e identificar suas estratégias de sobrevivência através de cultura material. No entanto, desde a década de 1960, existiram arqueólogos interessados na cultura material de escravos (Brochado et al., 1969; Chmyz, 1976:145; Dias, 1988:10), mas esta era entendida como o resultado de uma mistura de características européias, indígenas e africanas, seguindo uma linha teoricamente inspirada pela antropologia boasiana e defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre (Singleton and Souza, 2009). Após os anos de 1980 os estudos alteraram esta perspectiva e passaram a focalizar aspectos como o estudo da produção e comércio de cerâmica artesanal (por exemplo, Jacobus, 1997), questões relativas a distinções entre a cultura material de pessoas escravizadas e não-escravizadas (Agostini 1998a :128-134) e entre escravos, demarcando identidades culturais (Jacobus, 1997; Symanski e Souza 2001; Souza, 2002), resistência (Agostini, 1998a), e a relação entre etnia, gênero e diferença cultural (Souza, 2002). Além disto, pesquisas voltadas para questões de resistência e rebelião de escravos foram realizadas em quilombos (Allen, 1998, 2001; Funari, 1995ª, 1995b, 1996, 1997, 1998, 1999; 2001, 2003; Guimarães, 1990, 1992, 2001; Orser e Funari, 2001). As investigações mais recentes incluem o estudo de uma senzala do sul do Brasil, no município de São Martinho da Serra (Machado e Milder, 2003), um grupo de fazendas no Mato Grosso, (Symanski e Souza, 2001), e duas fazendas de açúcar em Goiás (Souza, 2001). Com exceção da primeira, estas pesquisas enfatizam, sobretudo, práticas simbólicas e rituais.

A importância da arqueologia nos estudos de escravidão está na possibilidade de acrescentar novos dados que não podem ser vistos nos registros escritos e, portanto, na perspectiva de abrir novas práticas interpretativas. Como diz Samford (1996:88-89), referindo-se a uma pesquisa realizada em uma plantation no Texas:

“Objetos simbólicos de status e poder no oeste africano permitem o exame da estrutura da comunidade de escravos e os modos através dos quais esses escravos podiam enriquecer suas vidas com artigos de profunda significância espiritual e cultural. Em um nível menos simbólico, as escavações revelam a vida material dos escravos – suas habitações, posses pessoais, ferramentas, e comida – fornecendo informação pertinente ao gerenciamento da plantation e mudanças sociais, políticas, e econômicas neste sistema. O estudo do lixo mostra como os escravos podiam melhorar a qualidade de suas vidas através de atividades como caça e pesca.”

3 Neste sentido, arqueologia e história associam-se, buscando compreender a Charqueada do Carreiros em sua relação com a sociedade riograndina da época. A pesquisa incluiu a realização de um levantamento e pesquisa em documentos históricos, bem como o estudo das evidências arqueológicas existentes sobre o solo. A coleta de informações orais é fundamental no sentido de aproximar-se da história do prédio existente e da área ao seu entorno, suas utilizações, alterações e demais intervenções que possam ter influído nas condições de conservação do sítio5.

A metodologia empregada para a localização de vestígios materiais sobre o terreno utilizou tanto o método oportunístico, quanto o método probabilístico (Neves, 1984). A técnica básica é a “tática pedestre” ou “caminhamento”: a inspeção sistemática da superfície, através de linhas de caminhamento controladas, de uma unidade de prospecção por uma equipe de pesquisadores. Todos os trabalhos foram acompanhados de exaustiva documentação, como a elaboração de diários de campo, documentação gráfica e fotográfica, além de plotagem em carta adequada.

A Charqueada do Carreiros

Relatos de moradores levaram-nos à “chácara da charqueada”, localizada nas imediações da Universidade6, no Bairro Carreiros7. Uma visita ao sítio, em novembro de 2010, ofereceu a ocasião de uma inspeção visual da superfície do solo. Este estudo superficial permitiu registrar alguns indícios de estruturas já suprimidas da paisagem, bem como estruturas ainda presentes, como é o caso da unidade residencial existente: uma antiga casa, em que mora uma família, ocupando parte dos onze cômodos, porque as más condições do telhado e a queda de algumas paredes inviabilizaram a moradia em grande parte da residência. Esta casa, de paredes de tijolos de grandes proporções, telhas de barro capa-e-canal, assoalho e forro de madeira, e paredes internas de pau-a-

5 O potencial arqueológico, entendido aqui como “a probabilidade de ocorrência de vestígios culturais materiais que apresentem significância para um dado contexto” (Juliani, 1996: 26), deve ser considerado tendo em vista, principalmente, a variável grau de preservação do solo. Sabe-se que são vários os fatores que interferem na probabilidade de existência ou não de vestígios materiais em determinadas áreas, entre os quais são fundamentais os contextos ambiental e histórico. No entanto, o grau de preservação do solo é determinante, na possibilidade de serem encontrados vestígios de ocupações humanas passadas. 6 Universidade Federal do Rio Grande, Campus Carreiros. 7 A Charqueada está localizada onde atualmente existe uma vila que se constituiu a partir da implantação de um “lixão” pela prefeitura do município do Rio Grande.

4 pique, faz parte de uma “chácara” onde são produzidas hortaliças. Ela localiza-se8 a cerca de 200 m do Saco do Martins, na Lagoa dos Patos, que constitui o limite norte da Chácara. Pelo lado sul, tem- se acesso à propriedade pela rua Roberto Socowski, também conhecida como estrada da Charqueada, ou estrada dos Carreiros, pelos moradores locais. A oeste, a cerca de 700 m, localiza- se o Arroio Martins.

A antiga estrutura arquitetônica é, ainda hoje, o elemento central da paisagem e sua fachada principal está voltada para o sul. Porém, só um olhar atento pode ver os vestígios de uma construção solene, cuja imponência se expressava na altura das portas e do pé direito, na espessura das paredes e nos elementos decorativos da fachada, mais que na extensão de sua área. Pensar a presença desta estrutura, aparentemente tão antiga não apenas por sua tipologia arquitetônica e técnicas construtivas, mas também pelo seu papel no imaginário local9, é pensar o processo de ocupação do território Riograndino.

O estabelecimento de uma propriedade, que justificasse tal estrutura, não poderia estar ligado à pequena propriedade açoriana, responsável pelo povoamento da Vila do Rio Grande de São Pedro no período de 1752 a 1763. Uma sesmaria explicaria, por outro lado, a presença de uma casa como aquela cujos remanescentes encontram-se junto à antiga Estrada da Charqueada. Queiroz afirma:

“Os donos de sesmarias foram povoadores da Colônia do Sacramento e, em maior número, os do Rio de Janeiro, alguns oficiais superiores, e pessoas destacadas em serviços à Coroa no ‘continente’ do Rio Grande, com Cristóvão Pereria” (Queiroz; 1987:75)

Com a ocupação espanhola, foi impedida a permanência de portugueses no centro da vila, ou nas proximidades do canal, e o esquema de segurança adotado pelos espanhóis determinou o assentamento de quatro núcleos de colonos nas suas imediações (Queiroz; 1987:117) :

− núcleo da Torotama, que já existira anteriormente, recebeu a maior parte das famílias portuguesas, formando o Povo Novo, nas terras pertencentes a Manuel Fernandes Vieira,

8 As coordenadas geográficas são: 32º 04’08 29” Sul e 52º 11’0271” Oeste. 9 Os moradores locais fazem referência a uma data que estaria impressa na fachada e que teria caído, junto com a parede onde se localizava, durante um temporal no ano de 2003. Segundo tais moradores, a data seria de 1720. Ainda que nos pareça por demais recuada, esta informação sugere certa antiguidade.

5 que se retirara na invasão. Com a volta do proprietário, em 1777, as cento e doze famílias do Povo Novo de Torotama foram transferidas pelo General Böhm para Rincão d’el Rey, no continente.

− núcleo dos paulistas, ao longo do caminho que vai da Vila ao arroio do Taim, O nome do local é anterior à invasão, e origina-se do principal colono que aí se estabelecera.

− núcleo do Saco da Mangueira, nas proximidades deste local.

− núcleo dos Carreiros, a uma légua da vila.

Mais uma vez é Queiroz quem afirma:

“Depreende-se dos levantamentos das propriedades da Freguesia do Rio Grande em 1786, que o sistema de reocupação do território e de ocupação dos novos campos foi, em tudo, semelhante ao da fase inicial de ocupação do ‘continente’, com o predomínio das sesmarias sobre as maiores e melhores extensões de terra” (Queiroz; 1987:140)

A pesquisa na documentação escrita trouxe à tona o inventário de Antônio Martins Freitas10, com data de 1864, onde aparece a descrição de uma charqueada localizada nos Carreiros. Antonio Martins de Freitas era filho de Joaquim Martins de Freitas11, morador da vila do Rio Grande nas primeiras décadas do século XIX, na época do segundo vilamento, após a expulsão dos espanhóis (Monteiro; 1947: 131).

As charqueadas, segundo Gutierrez, começaram a surgir a partir de 1780.

“As bibliografias uruguaia e rio-grandense assinalaram a data de 1780 como o início das atividades charqueadoras, com vistas à comercialização. Na banda de cá, parece que o pioneiro foi o português, fabricante de carne seca, no Ceará, José Pinto Martins, que, fugindo das secas dos anos de 1777, 1778 e 1779, veio parar às margens do São Gonçalo ou do arroio Pelotas, onde estabeleceu a primeira fábrica de carne salgada. Na Banda Oriental, consta como precursor o espanhol Francisco Medina” (Gutierrez; 2001:47)

10 Inventários post mortem. Rio Grande. Cartório de Órfãos e Ausentes, m. 38, n. 808, a. 1864. APERS 11 Estes nomes, provavelmente, podem explicar a toponímia local.

6 Gutierrez afirma, ainda, que “o período de permanência dos espanhóis em Rio Grande, durante os anos de 1763 a 1776, e o tratado de Santo Idelfonso, assinado em 1777, antecederam a instalação do pólo charqueador pelotense.” (Gutierrez; 2001:41)

O inventário de Antonio Martins de Freitas apresenta dados que merecem ser enfatizados e pensados. Em primeiro lugar, menciona uma charqueada, seus elementos constituintes, sua localização e o valor atribuído:

“Um estabelecimento de charqueada nos carreiros com todos seus pertences para poder trabalhar compreendendo casa de moradia, galpões, senzala, graxeira, varal, curraes, curra, horta, pomar com diversas árvores frutíferas, cercados, plantações, com campo fora para pastoreio, dividindo-se pelo Norte com o mar, pelo Leste com campos do herdeiro Capitão Antonio Martins de Freitas, pelo Sul em parte com a estrada dos carreiros e em parte com campos de Porfírio Canseira de Lima e pelo Oeste cercas adentro com o arroio de Joaquim Martins e pelo Norte lado de fora com o potreiro grande da herança e d’esse ponto com campos de Porfírio Canseiro de Lima onde existe um marco de pao e d’ahi uma linha reta a divisa do landim que divide o potreiro grande com o terreno da chácara da herança. 16:000$000” (o grifo é nosso)

Não há dúvidas da existência de uma charqueada na área que é alvo desta pesquisa. O espaço ocupado por ela corresponde ao padrão encontrado por Gutierrez para a instalação das charqueadas: “A localização seguia dois critérios, a proximidade dos rebanhos de gado e a dos cursos de água navegáveis, com acesso ao Atlântico, favorecendo, consequentemente, a exportação”. (Gutierrez; 2001:62)

Gutierrez estabeleceu “uma tipologia da charqueada, constituída de três atividades: criação de animais, produção de charque e de elementos cerâmicos. Essa solução pode ser encontrada na Banda Oriental e no Continente de Rio Grande, desde os últimos vinte anos do século XVIII, e no século XIX.” (Gutierrez; 2001:62)

Com exceção da olaria, pode-se observar esta mesma constituição na Charqueada do Carreiros, através de outros bens de Raiz mencionados no inventário:

7 “Um campo, crias adentro, denominado potreiro grande nos carreiros com algum mato dentro, dividindo-se pelo Norte com o mar, por leste com o arroio de Joaquim Martins, Sul com a estrada dos carreiros, pelo Oeste com a divisa do Landim que divide com o campo da chácara da herança”.

4:000$000

“Uma chácara no lugar dos carreiros com casa térrea de moradia forrada e assoalhada coberta de telha com uma cozinha também coberta de telha com diversas qualidades de árvores frutíferas cercados e curral dividindo-se ao Norte com o mar, Leste um potreiro grande da herança e divisa do Landino em direção ao mar, pelo Sul com a estrada dos carreiros e pelo Oeste com campo da herança divisa do Polidoro”.

6:000$000

“Um campo de lugar denominado carreiros que principia a centrar-se pelo Sul de um marco de pao que serve de limite e campo de pastoreio do estabelecimento da charqueada e dos valos e tapumes do Porfírio e d’este ponto a encontrar com a marca da onça e d’este ponto em linha reta ao marco que fica no canto da estrada do albardão, seguindo em direção pela frente do campo dos Mathias e seus herdeiros e d’este ponto a rumo do Oeste ao capão do Turuman de dentro, e d’esta divisa em continuação ao lado de Oeste até o arroio das cabeças e d’ahi pelo arroio do pao ao arroio das cabeças na estrada dos potreiros e vai ao capão da invernada continuando d’este ponto pelo lado do Norte até um marco que divide os campos do falecido Justino José d’Oliveira atualmente de uns ingleses e d’ahi a rumo direito ao mar, a encontrar com o marco na b eira da praia que seria também de divisa com os mesmos ingleses, d’esse marco por leste com a divisa do Polidoro, terrreno da chácara da herança seguindo-se a divisa do Landim e d’ahi a rumo direito ao marco de pao que fica ao sul nas imediações dos cercados de Porfírio Canseiro de Lima”.

12:000$000

“Uma casa de taboas coberta de telhas dentro do campo acima descrito que serve de pasto, com um curral e um cercado para plantação”.

200$000

Estão incluídos, ainda, dois hiates: um deles, denominado Viamense, de 1.600 arrobas; e o outro, denominado Independente, de 1.000 arrobas. Além disto, constam “bens a liquidar”: “1.400

8 arrobas de charque embarcados no Pachabote nacional Viamão e remetido para Pernambuco a consideração do senhor Manoel Inácio de Oliveira”. A venda do charque rendeu mais de 4:000$000 (quatro contos de réis), que também foi dividido entre os herdeiros, conforme aparece registrado no inventário.

Nesta primeira etapa do trabalho arqueológico, nosso objetivo foi procurar localizar as diversas estruturas que, com a casa principal, comporiam a Charqueada dos Carreiros: galpões, senzala, graxeira, varal, currais, curra, horta, pomar, cercados. Além disto, procuramos aquilo que Gutierrez chamou de fluxograma dos terrenos da charqueada:

“(...) a disposição dos terrenos da charqueada configurava um fluxograma definido. Depois de comercializados, os animais seguiam para o potreiro de fora, dali para o potreiro do meio. Nesses dois locais, os rebanhos aguardavam o abate. No último terreno, às margens de um curso de água, as reses eram transformadas em carne salgada e em seus subprodutos.

No terreno da charqueada, próxima ao potreiro do meio e afastada d’água, a primeira instalação era a mangueira de matança, composta de um brete e uma cancha. Daí, a divisão em duas linhas de produção: uma, a dos derivados, seguia para as casas que serviam de graxeira e de salgação dos couros; a outra, a do charque, ia para os galpões de charquear e salgar. Os quartos, destinados aos trabalhadores livres, e a senzala, compartilhava um grande galpão, que também utilizados como armazém, cocheira e estrebaria. A residência dos senhores ficava próxima a beira d’água, mas, afastada do espaço da produção”. (Gutierrez; 2001:127) A pesquisa foi altamente prejudicada pela existência de grande quantidade de lixo acumulado sobre o terreno, que inviabilizou a observação direta do solo. Ao mesmo tempo, a atual densidade de construções, também impediu, um caminhamento mais amplo. No entanto, alguns resultados foram obtidos com o caminhamento controlado pela área, tendo sido encontrado:

- uma valeta de aproximadamente um metro de profundidade que se estende no sentido norte-sul por toda a extensão do lote, até a lagoa, estando associada, em grande parte de sua extensão, a taquarais.

- um poço, na área localizada aos fundos da casa, sob uma figueira.

- caminhos que ligam, separam e demarcam distintas áreas (moradia, horta, praia).

9 A área foi medida e mapeada, e este mesmo procedimento foi empregado na estrutura da casa. Verificou-se que foram realizadas diversas intervenções que alteraram sua forma, aparência e função, no curso dos anos. Até onde foi possível observar, sem o auxílio de uma escavação estratigráfica, a casa, originalmente, era o que se conhece como “casa em fita” e corresponde ao que Gutierrez descreve como uma das tipologias da casa senhorial:

“Joana vivia numa morada de casas com 14,08m de frente, construídas de paredes de pau-a-pique, com pilares, forro e assoalho de madeira, cobertas de telhas, com senzala e cozinha. E, com caminho, que chegava na vila. Nesse primeiro quartel de produção charqueadora, configurava-se uma das tipologias das casas senhoriais, a edificação em forma de fita, com várias portas e respectivos espaços independentes, que tinham a função de abrigar os proprietários, agregados, trabalhadores livres e escravos. Provavelmente, a casa do senhor protegesse apenas os cativos domésticos e de ofício”. (Gutierrez; 2001:112)

É interessante observar que, quando analisa instruções para a construção de senzala, Marquese cita instruções para a cafeicultura fluminense, nos oitocentos:

“Esta deveria ser erguida em uma só linha, num lugar sadio e enxuto, com quartos de 24 palmos quadrados e com uma varanda de oito palmos de largos em todo o seu comprimento; cada cubículo deveria acomodar quatro escravos solteiros e, no caso dos casais, marido e mulher com os filhos. As portas dos cubículos estariam voltadas ao quadro da fazenda, que conformava uma espécie de pátio em torno do terreiro, sendo cada face ocupada respectivamente pela casa do senhor, pelos paióis, armazéns e cavalariças, pelos engenhos de pilões e de mandioca, e pela senzala: assim, a moradia escrava permaneceria sempre sob a vista e o controle do senhor”. (Marquese; 2004: 281-2) Com relação à valeta verificada ao longo do terreno, Gutierrez fornece uma possível explicação. Ao descrever a charqueada Pavão, de Rafael , diz:

“O programa de necessidade da estância do Pavão era o seguinte: uma morada de casas de vivenda e cozinha, coberta de telhas e paredes de tijolos, em que vivia o casal, em mau estado; junto a essa, uma outra casa pequena, velha, de tijolos e telhas; perto das casas, um pomar, cercado, com algum arvoredo; dois galpões cobertos de capim e dois potreiros limitados por valos, arrombados em algumas partes.” (Gutierrez; 2001:61) (o grifo é nosso)

10 O inventário contém a lista de escravos a serem partilhados e a ocupação de cada um, conforme se pode observar na tabela abaixo:

Ocupação do escravo Número Percentual

Carneador 18 26

Salgador 7 10

Descarnador 2 3 62,3

Chimango 11 16

Graxeiro 5 7,5

Campeiro 6 8,7

Marinheiro 6 8,7

Pedreiro 2 3

Carpinteiro 2 3

Servente 2 3

Cozinheiro 2 3

Alfaiate 1 1,5

Roceiro 1 1,5

Costureira 3 4,5

Criança 1 1,5

Total 69 100

Esta listagem é altamente significativa, no que tange aos parâmetros apresentados por Gutierrez. Segundo ela, a media de escravos por proprietário era de 84 cativos. “os escravos especializados na fabricação do charque eram os mais numerosos, correspondendo a uma média de 53% do total de cada charqueador”. (Gutierrez; 2001:90)

11 No nosso caso, temos um total de 69 escravos, sendo que 62,3% são especializados na produção do charque: 18 carneadores, 7 salgadores. 2 descarnadores, 11 chimangos e 5 graxeiros.

“Os mais numerosos, os carneadores, podiam assumir a tarefa de charquear, além de abater, esfolar e esquartejar. Atingiam 44% de toda a escravaria que trabalhava na indústria da carne, ou seja, 15 trabalhadores por estabelecimento. Possivelmente, poderiam ser substituídos pelos chimangos. Salvo engano, os chimangos, que tomaram o nome da ave de rapina, retiravam dos ossos o resto das carnes. Os serventes, que lidavam diretamente com o charque constituíam 20% desse grupo de cativos”. (Gutierrez; 2001:91)

A existência de 6 escravos marinheiros (8,7%), ainda que comparativamente em um percentual menor, também vem ao encontro da proposta de Gutierrez para as charqueadas de Pelotas:

“Dentro do universo daqueles cativos que se ocupavam das tarefas referentes à produção da carne salgada e de seus subprodutos, 14% dedicavam-se ao transporte entre Pelotas e o porto de Rio Grande. Os escravos marinheiros nunca faltavam no plantel dos charqueadores. Alcançavam em média de sete marujos por senhor. ” (Gutierrez; 2001:91)

Marquese comenta sobre a “reafirmação do escravismo”, na primeira metade do século XIX: “Tanto em Cuba quanto no Brasil, o tráfico negreiro transatlântico foi o motor da expansão da agricultura escravista de exportação”. (Marquese; 2004: 266)

Apesar de não citar o sul do Brasil, dentre as regiões produtoras, da mesma forma, a implantação das charqueadas no Rio Grande do Sul, a partir de 1780, é característico da expansão da fronteira agrícola, no caso, de derivados de gado. Os números significativos do comércio de escravos na primeira metade do século XIX, para o Brasil, sugerindo uma “segunda escravidão”, inscrevem a economia gaúcha nos mesmos moldes do restante do país.12

12 Gabriel Santos Berute encontrou dados sobre o tráfico interno de escravos na pesquisa em andamento para a sua tese de doutorado.

12 A unidade produtiva da charqueada correspondia ao padrão escravista: produção em larga escala, por meio da utilização de grandes plantéis de escravaria, conforme analisou Cardoso. (2003)

Além disso, em artigo sobre os registros paroquiais de Rio Grande, o proprietário da charqueada do Carreiros, Antônio Martins de Freitas, aparece na segunda colocação dentre os proprietários com o maior número de registros nos livros de batismo e óbito. Vale frisar que, frente aos 4 registro de batismo, aparecem 32 de óbitos, o que pode caracterizar a exploração intensa dessa escravaria, como também as condições insalubres de trabalho.

Considerações finais

As evidências observadas nos trabalhos de prospecção arqueológica e comparadas com as informações da documentação encontrada não deixaram dúvidas de que a Charqueada dos Carreiros enquadra-se no sistema produtivo de produção de charque, conforme consta na literatura sobre o assunto.

Todas as evidências apontam para o fato de que parte da elite riograndina compartilhava de modus operandi semelhante àqueles empregados pelos grandes proprietários das charqueadas pelotenses no trato escravista com vistas à produção em larga escala. Não restam dúvidas que o trabalho escravo é parte integrante da formação da sociedade local.

Tudo isso vem a reforçar a importância da continuidade dos estudos sobre o objeto de pesquisa, tanto por meio da coleta de relatos de antigos e atuais moradores do entorno, assim como com a realização escavação estratigráfica.

Referências Bibliográficas

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