número 4 semestral | novembro | 2011 | ¤4

glosasmpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa www.mpmp.pt

António Victorino d’Almeida Entrevista e testemunhos com a participação de Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Nuno Miguel Brito, Júlio Pomar, entre outros.

EFEMÉRIDES: MÚSICA NOS AÇORES SALÕES MUSICAIS JORGE SALGUEIRO 750 ANOS DE DOM DINIS Luís C. F. Henriques, EM LISBOA Entrevista de 300 ANOS DE DAVID PEREZ Duarte Gonçalves-Rosa (SÉCS. XIX-XX) Mónica Brito Manuel Pedro Ferreira e Antero Ávila Idalete Giga e João Paulo Janeiro mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa 3 editorial | Edward Luiz Ayres d’Abreu

4 debaixo de olho | Manuela Paraíso 9 agenda 14 dias de música electroacústica | Introdução à História do Festival | Jaime Reis

16 homenagem | António Victorino d’Almeida Eurico Carrapatoso Sérgio Azevedo Mário Zambujal Fernando Rocha Carla Seixas José Fortes António Victorino d’Almeida aos oito anos | Uma curiosidade | Mariana Calado

26 entrevista | Duarte P. Martins

42 harpejo marinho | Nuno Miguel Brito e Júlio Pomar

44 entrevista | Jorge Salgueiro | Mónica Brito

54 efeméride | A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador | Manuel Pedro Ferreira

58 David Perez: de Nápoles a Lisboa | João Paulo Janeiro

61 joly braga santos e jorge peixinho Uma Amizade Improvável? | Piedade Braga Santos

64 “canto...” primeiro de fernando lopes-graça | José Eduardo Martins

67 a música nos salões particulares de Lisboa no fim do século XIX e na primeira década do século XX | Idalete Giga

75 a obra para piano de manuel faria Uma primeira abordagem | André Vaz Pereira

81 cosmopolitismo musical na cidade da horta no final do século XIX | Luís C. F. Henriques

84 compositores descobrir | Tomás Borba | Duarte Gonçalves-Rosa

90 glosando | A convite da glosas, uma peça inédita | Antero Ávila

92 patrício da silva | Now & Then: Music From The Great Depression(s) 2010/1929 | Joana Rocha

94 festival música viva 2011 | Concerto de Abertura | Tiago Cabrita Número 4 | Novembro de 2011 | António Victorino d’Almeida

Próximo número: Marcos

direcção Edward Luiz Ayres d’Abreu

redacção Ana Atalaya, Duarte Pereira Martins, Filipe Martins, Joana Rocha, Manuela Paraíso, Miguel Martins, Mónica Brito, Philippe Marques, Tiago Cabrita

fotografia Daniel Blaufuks (p. 53) Fernando Rocha (pp. 16, 19) Paula Santos (pp. 44-50) Sara Gameiro (capa; pp. 26-41) Tim Heirman (p. 64)

design de comunicação DDLX [www.ddlx.pt] José Teófilo Duarte [Direcção de Arte] Eva Vinagre, Gonçalo Duarte, João Silva [Design e Paginação]

revisão Ana Thomaz, E. L. Ayres d’Abreu

depósito legal 327498/11

issn 2182-1380

tiragem 600 exemplares

periodicidade semestral

impressão e acabamento António Coelho Dias S.A.

O mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa, agradece a quem tenha contribuído para a concretização deste número da revista glosas: aos autores dos diversos textos, artigos, fotografias e ilustrações (André Vaz Pereira, Carla Seixas, Daniel Blaufuks, Duarte Gonçalves-Rosa, Eurico Carrapatoso, Fernando Rocha, Idalete Giga, Jaime Reis, Joana Rocha, João Paulo Janeiro, José Eduardo Martins, José Fortes, Júlio Pomar, Luís Henriques, Manuela Paraíso, Manuel Pedro Ferreira, Mariana Calado, Mário Zambujal, Mónica Brito, Nuno Miguel Brito, Paula Santos, Piedade Braga Santos, Sara Gameiro, Sérgio Azevedo, Tiago Cabrita, Tim Heirman); aos diversos entrevistados (António Victorino d’Almeida, Jorge Salgueiro, Andreia Pinto‑Correia); a Ana Atalaya, Duarte Pereira Martins, Filipe Martins, Isa Antunes, Miguel Martins e Philippe Marques, pela transcrição das entrevistas; a Ana Thomaz e E. L. Ayres d’Abreu, pela revisão geral, e a Duarte Pereira Martins, Nuno M. Cardoso, Philippe Marques e Raquel Camarinha, pela colaboração pontual; por fim, a Antero Ávila, pela composição de uma peça dedicada a este número.

 | glosas | número 4 | novembro | 2011 editorial

o “descentralizar e dinamizar a oferta cultural, corrigindo as assi­ EDWARD LUIZ AYRES D’ABREU metrias regionais”. Ora, se a glosas é, por natureza, descentralizada (não tivéssemos já leitores em Espanha, Itália, Alemanha, Brasil, E.U.A., e em todo o território português!; não pudesse ela ser lida ei-lo, o quarto número da glosas, pela primeira vez dedicada em qualquer momento temporal e geográfico!), poderá o leitor a um compositor vivo. À parte as inúmeras trincheiras que bali- acreditar que também perdemos pontos neste particular contra zam o meio musical português contemporâneo, e que o corroem a edição de um CD e um... festival de Guitarra... na Guarda!? surdamente, o certo é que a figura de Victorino d’Almeida, privilegiava-se ainda o “promover a pesquisa, a experimentação, enquanto compositor, mantém-se globalmente desconhecida do a criação e a inovação artísticas, actualizando e consolidando o teci­ grande público. Coisas que nos parecem francamente lamentáveis, ­do profissional”. E novamente: perdemos pontos. Mas como pode seja em relação a tão carismática personalidade, seja em relação um CD ou um festival de Guitarra promover mais pesquisa do que a outros tantos criadores contemporâneos. Mas o crescente reco- a glosas, que reúne vários musicólogos na sua redacção? Como nhecimento desta publicação, fruto do sucesso que tem obtido pode promover a criação mais do que a glosas, que encomenda junto dos melómanos e de novos públicos, é um dos sinais de e edita uma obra de compositor português a cada número, e que esperança que nos motivam a alargar sempre o âmbito das nossas publica uma agenda exaustiva de concertos, e que dedica deze- realizações. E, nem a propósito, parece-me inevitável dar conta, nas de páginas em entrevistas exclusivas aos criadores nacio- aos nossos sócios e leitores, da candidatura da revista ao último nais, a propósito das mais importantes estreias portuguesas, programa de “apoios pontuais” da Direcção-Geral das Artes. e que noticia tudo quanto se edita e é dado a conhecer sob diver- a candidatura tinha que ver com o contexto orçamental limi- sas formas? Como pode promover mais inovação artística, tado da associação: o crescimento da revista depende, de facto, quando tanto nos dedicamos à produção contemporânea? Como de uma relação receitas-investimento cuja dimensão dir-se-ia pode actualizar e consolidar o tecido profissional, mais do que familiar. Apesar do sucesso de vendas, o público atingido está actualiza e consolida um órgão que se quer ponte informativa e longe de ser o idealmente ambicionado. Procurávamos o investi­ de conhecimentos entre, também, os profissionais da música? mento e impulso necessários a um aumento significativo da tira­ quando se privilegia, precisamente, tudo aquilo que a glosas gem e distribuição, à melhoria de aspectos técnicos, à sua divul­ tem para oferecer de forma original, inovadora, única, perió- gação em geral. Acresce que a glosas continuava a ser produzida dica, interventiva, consequente a curto, médio, longo prazo, integralmente por colaboradores voluntários, sem quaisquer e com a qualidade já demonstrada, parece-nos extraordinaria- apoios, sem quaisquer receitas para além das que provêem das mente descabido que a nossa causa tenha sido ultrapassada por quotas anuais dos sócios e da venda directa da revista (cujo preço projectos tão estritamente pontuais, localizados, efémeros de capa equivale praticamente ao seu custo de produção). ou inconsequentes do ponto de vista macro-cultural, como são, talvez que o leitor se espante se dissermos que esta situação necessariamente, a edição de um CD e a organização de um festi­ não mudou: falhámos a candidatura. Dentre noventa e três pro- val de Guitarra, por mais notáveis que sejam os seus programas, jectos considerados para a categoria a que nos candidatámos, por mais excelentes que sejam os seus participantes!... foi-nos reconhecido o 18.º lugar. Algo que muito nos honra, crise, enfim. Mas uma crise muito para além de económica. mas apenas os primeiros quinze projectos foram apoiados... Crise da crítica, crise de política cultural, de democracia. Infeliz- E, destes quinze, apenas dois partilhavam com a glosas a área mente, também uma crise de valores que impede algumas per- artística – Música. As melhorias sucessivas, a cada novo número, sonalidades do exercício simples de resposta aos nossos apelos resultam pois da generosidade directa dos nossos amigos: e convites. (Perguntar-se-á porque razão não dedicou a glosas o novo design deste exemplar é mais um notável exemplo deste mais ou menos espaço a esta ou aquela figura, notícia, efemé- espírito de empreendedorismo melómano, a que só podemos ride. E a minha resposta continua a ser lapidar: a revista é de responder com a mais sincera gratidão. todos, e para todos. Até hoje, nenhuma participação foi recu- agora, deixamos ao leitor o prazer de conhecer alguns dos sada. Mas que podemos nós fazer contra silêncios?) pontos-chave da avaliação à nossa candidatura. A lista de subcri­ uma última nota. Por sermos convictamente democráticos, térios de apreciação privilegiava o “fomentar, preservar, valorizar e porque 100% (cem por cento) dos nossos leitores e 100% e promover o património musical e (...) a composição portuguesa”. (cem por cento) dos nossos participantes recusam a estultícia Neste particular, a revista glosas perdeu pontos contra a edição tirana do último “acordo ortográfico”, decidimos manter de um CD e um festival de Guitarra. Privilegiava-se igualmente a norma anterior.

glosas | número 4 | novembro | 2011 |  debaixo de olho o que está a acontecer na música portuguesa

exultante com a magnífica música portuguesa que lhe era dada MANUELA PARAÍSO | TEXTO a ouvir, concerto após concerto. Durante uma semana, Portugal esteve nas páginas dos jornais belgas, e não pelos habituais pio- res motivos. Senti um imenso orgulho mas também a vergonha já em plena temporada, meses após o anúncio, por parte de de, no meu país, a imprensa, com poucas excepções, ter despre- estruturas como a Gulbenkian, o São Carlos, o Centro Cultural zado o acontecimento, numa letargia colectiva que só tem expli- de Belém, das suas programações (nos dois primeiros casos, cação num preconceito (como qualquer outro, proveniente da com uma maior inclusão de repertório nacional do que habitual­ ignorância): a música clássica não vende. Nós sabemos que isso mente), o drástico emagrecimento orçamental produz cortes não é verdade. E cabe-nos ajudar a mudar o estado das coisas, que se reflectem na quantidade e qualidade da oferta das grandes quer fazendo-a, quer fruindo-a e partilhando-a. estruturas, mas também das pequenas entidades particulares dependentes de fundos públicos, pondo em causa a sua própria aniversários e concertos monográficos continuidade e sobrevivência. E muitas delas produzem alguma da mais aliciante programação de música, nomeadamente de seria de esperar: no terceiro centenário do nascimento do criação nacional. napolitano David Perez, que foi Mestre da Capela Real e director da efémera Ópera do Tejo, para cuja inauguração compôs a ópera em contra-corrente Allesandro nell’Indie, quase não se ouviu a música do compositor. A escassez de concertos que integrem peças suas mantém­no afas- ao fim de vários anos de um florescimento notável da vida tado do interesse do público. No entanto, a sua presença em musical portuguesa, resultante dum conjunto de factores, entre Lisboa influenciou profundamente a vida musical portuguesa os quais a evolução do ensino da música e a consequente res- e os compositores que nela se movimentaram. A obra de Perez posta de várias estruturas, sob a forma de encomendas de obras e o seu contributo para a História da Música no seu tempo e em e a programação de algum repertório português, olhamos em Portugal foram abordadas no colóquio que o CESEM – Centro volta, a perscrutar o terreno. Que espaço pode haver para a nossa de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da Universidade vida musical nos dias carregados que atravessamos? Cada vez Nova de Lisboa, lhe dedicou, entre 21 e 23 de Outubro, no Museu mais jovens músicos completam a sua formação noutros países de Aveiro. “David Perez e a música da sua época” teve a partici- e por lá se quedam, com melhores perspectivas para a construção pação de musicólogos portugueses, brasileiros e italianos, que duma carreira artística. Os estabelecimentos de ensino debatem-se abordaram diversos aspectos e enquadramentos da obra sacra com carências e cortes cada vez mais graves no seu financiamento. e profana do compositor, e incluíu um recital de música de Uma percentagem considerável das realizações musicais que câmara. Também em Outubro, um dos participantes no coló- fruímos parte da iniciativa independente, de artistas ou pequenas quio, o cravista João Paulo Janeiro, realizou, com os seus agru- estruturas, financiadas por fundos públicos e, por conseguinte, pamentos Capella Joanina e Flores de Mvsica, um concerto com também atingidas por cortes drásticos. As sucessivas restrições obras sacras de Perez, de Luciano Xavier dos Santos e de José orçamentais obrigam a novos emagrecimentos nas programações Joaquim dos Santos, inserido no ciclo Sons de Almada Velha das entidades públicas. Conseguirá o Teatro Nacional de São (evento programado pelo segundo ano consecutivo nas igrejas Carlos, que para a presente temporada previra um aumento sig- do concelho, com ênfase em repertório português). Entre 5 e 31 nificativo de repertórios nacionais nos seus programas, manter de Dezembro, a Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cuja essa estratégia? Poderão os poderes públicos e a comunicação Área de Música foi criada há vinte anos, apresenta uma exposi- social permanecer surdos durante muito mais tempo aos prodígios ção sobre David Perez, que inclui uma conferência por Cristina que os nossos artistas – compositores e intérpretes – têm edifi- Fernandes, um recital por Mário Marques Trilha e o lançamento cado com escassos meios? Terão os actuais decisores alguma da edição facsimilada do manuscrito das suas Variações para percepção do extraordinário valor da nossa música, não apenas Bandolim, que teve estreia moderna em 28 de Junho na BNP, no aspecto artístico mas também numa perspectiva economicista, pela Academia dos Renascidos. enquanto produto com grande potencial comercial, inserido a bnp foi uma das poucas instituições que em 2011 assinala- numa lógica de turismo cultural? Com cada vez mais músicos ram os 750 anos do nascimento de Dom Dinis, com uma confe- portugueses a serem reconhecidos e premiados no estrangeiro, rência-concerto, a 28 de Outubro, por Manuel Pedro Ferreira com o crescente interesse que o nosso património musical levanta e Ângela Correia, e a actuação das Vozes Alfonsinas, em que se noutros países (onde é valorizado), poderá Portugal continuar destacaram as cantigas de amor do rei trovador e a generalidade a fazer de conta que não existe música erudita portuguesa? da sua obra lírica, bem como a música do século XX composta perdoem-me o desabafo: assisti, em Agosto último, ao festival sobre os seus poemas. Na véspera, foi apresentado o sítio elec- Laus Polyphoniae, em Antuérpia, onde vi um público flamengo trónico dedicado às cantigas medievais galego-portuguesas

 | glosas | número 4 | novembro | 2011 (www.cantigas.fcsh.unl.pt), também da responsabilidade de Frances Lynch. O segundo teve um concerto monográfico orga- Manuel Pedro Ferreira e de Graça Videira Lopes. A efeméride nizado pela Oficina Musical, a 24 de Setembro, no Teatro da do rei trovador foi também evocada pelo Museu da Música, atra- Vilarinha (Porto), com peças de música de câmara e também vés duma exposição a decorrer até 3 de Dezembro. electrónica. Outro aniversário, o dos vinte e cinco anos de car- para 2012, estão agendados alguns eventos comemorativos reira de António Sousa Dias, teria passado ao lado não fosse dos 250 anos do nascimento de Marcos Portugal. No entanto, a inclusão dum programa evocativo no festival Música Viva, em tendo em conta que se trata do compositor português mais Setembro último. famoso de sempre, aclamado no seu tempo em Itália, França além destes concertos comemorativos, alguns outros mono- e outros países, e que durante os últimos anos tem sido objecto gráficos estão marcados para este final de ano: a 6 de Novembro, de vários trabalhos de investigação, essas comemorações sabem no Palácio Foz, a Orquestra Sinfónica Juvenil toca obras de a pouco. Algumas das iniciativas estão ligadas ao projecto Christopher Bochmann; a 26 desse mês, o Clube Literário do ­“Marcos Portugal: a obra e sua disseminação”, dirigido pelo Porto propõe um concerto com música de câmara de Eduardo musicólogo David Cranmer, e ligado ao CESEM. Entre elas, um Patriarca, que inclui a primeira audição de Zazen pelo percus- colóquio sobre o compositor, no Teatro Nacional de São Carlos, sionista Nuno Aroso. Do mesmo compositor, tinha sido estreada, a 23 e 24 de Março, a par das récitas da sua ópera O Basculho de em Março, a obra Enso, encomendada pelo Harmos Festival, Chaminé, que sobem à cena no Salão Nobre. No mês seguinte, e aguarda-se, para breve, a estreia de Processione, uma encomenda prevê-se um recital pela Academia dos Renascidos na BNP, que do Quarteto de Cordas de Matosinhos. Em Outubro, o jovem apresenta modinhas de Marcos Portugal, estando agendados compositor Nuno da Rocha programou um concerto com obras mais recitais, conferências e uma exposição importante, no que compôs ao longo da licenciatura na Escola Superior de último trimestre do ano, para a qual será publicado um catálogo. Música de Lisboa – um exemplo das possibilidades que hoje se Antes, neste final de 2011, estará já disponível oCatálogo da Obra oferecem aos estudantes de composição, mas também da capaci­ Religiosa de Marcos Portugal, tese de doutoramento de António dade empreendedora que parece ser cada vez mais necessária. Jorge Marques. Nota ainda para a série filatélica evocativa que irá ser comercializada em Portugal. outras encomendas e novas obras em 2011, assinalam-se também aniversários importantes de vários compositores no activo. Nos setenta anos de Emmanuel alexandre delgado, Peregrinação Interior: Cinco Sonetos Quinhen­ Nunes, a Casa da Música estreou obras do compositor, uma das tistas para soprano e orquestra. Estreia 2 de Abr. 2011, Igreja quais, Musivus, nas sua versão completa, a 22 de Outubro; e entre Matriz, Santiago do Cacém. A Rainha Louca, ópera em dois actos. 4 e 6 de Novembro a Culturest albergou o simpósio internacio- Estreia 8 de Jul. 2011, CCB. nal “Tempo, espaço, intencionalidade”, outra organização do álvaro salazar, 15.ª Anotação, quarteto de cordas, homenagem CESEM que propôs uma reflexão sobre a obra de Nunes e na a Lopes-Graça. Estreia pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos, qual o próprio participou. Os sessenta anos de António Pinho a 29 de Set. 2011, Cine-Teatro Constantino Nery, Matosinhos. Vargas foram comemorados com a estreia da encomenda con- andreia pinto-correia, Elegia a Al-Mu’tamid, encomenda e estreia junta, pela Casa da Música, pelo São Carlos e pelo Centro Cultu- pela American Composers Orchestra, 14 de Out. 2011, Carneggie ral de Belém, da obra Onze Cartas, cuja primeira audição foi no Hall. Esculpturas, encomenda e estreia pela OrchestrUtópica, Porto, a 1 de Outubro, e que tem estreia lisboeta marcada para 19 21 Out., CCB. Este branco silêncio (II), estreia pelo Taller Contem­ de Novembro no TNSC, com uma terceira apresentação, em porâneo, 13 de Dez., Santiago de Compostela. Xántara, estreia 2012, no CCB. Por entre várias obras tocadas ao longo do ano em pela Minnesota Symphony Orchestra, 6 de Jan. 2012. Obra esco­ concertos, aconteceram mais algumas estreias, como a de Quasi lhida pelo Composers Institute 2012. Acanto, estreia europeia una sonata, para violino e piano, por Gareguin Aroutian e Miguel pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, 8 de Jan. Delilah’s Last Henriques, encomendada pelo CCB para o ciclo “Concertos Love, pequena ópera em um acto. Estreia a 8 de Maio de 2012 à Conversa”. Por outro lado, a discografia de Pinho Vargas no Jordan Hall em Boston. ­avoluma-se com a publicação dum CD de piano solo, gravado ângela ponte, La Fontaine Rouge, para multipercussão, estreia, ao vivo, e a gravação dum monográfico, pelo Drumming Grupo a 18 de Out. por Nuno Simões, da encomenda da Casa da Música. de Percussão. cândido lima, Optic Music – Quadros Cinéticos, pianos. Impres­ mais discreta foi a passagem dos cinquenta anos de Isabel sões do Crepúsculo (Pauis), Clarinete, violino, piano. Rituais para Soveral e de Virgílio Melo, apenas assinalada com dois concer- piano - quadros de Villaiana “du moyen âge”. Cinco Momentos de tos monográficos: o da primeira no âmbito dos Festivais de Oama, Clarinete e piano. Outono, da Universidade de Aveiro, a 3 de Novembro, com obras carlos marecos, …pequena peça de pouco mais de um minuto, para voz e electrónica, uma das quais, sobre um soneto de para marimba solo, em ritmo endiabrado de quase tango…, estreia Shakespeare, em estreia absoluta, na interpretação da soprano por Pedro Carneiro, a 29 de Out., no Museu de Aveiro.

glosas | número 4 | novembro | 2011 |  No festival Laus Polyphoniae, em Antuérpia (Pedro Caldeira Cabral, Marisa Figueira, Mariana Moldão Martins, Manon Marques, Filipa Taipina, Carolina Figueiredo) christopher bochmann, Divertimento, encomenda do Festival Ensemble Consart, 9 e 11 de Ago. 2011, Castelo de Breitungen/ de Música da Póvoa de Varzim, estreia a 22 de Jul. 2011. Werra, Turíngia. Crise, estreia pela Orquestra da Radiodifusão daniel schvetz, Parábola del círculo y la piedra, concerto para da Alemanha Central (MDR Sinfonieorchester) a 26 Nov., Grande bandoneón e orquestra. Estreia pela Orquestra Metropolitana Auditório da Hochschule für Musik und Theater Leipzig. de Lisboa, a 25 de Set. 2011, São Jorge, Lisboa. miguel azguime, Conver(say)tions, estreia a 10 Abr. 2011, RED- edward luiz ayres d’abreu, ainda não vi-te as mãos. Ópera, CAT, Los Angeles. Nova obra, estreia a 30 de Março de 2012 pelo libreto de Joana Guerra. Estreia a 9 de Julho 2011, Teatro Sá Quasar Saxophone Quartet. da Bandeira, Santarém. nuno côrte-real, Ciclo de canções de Florbela Espanca. Estreia joão godinho, nova obra, encomenda do festival Musicaldas, mundial a 7 de Dez. de 2011, Teatro-Cine de Torres Vedras. estreia em Julho 2012. nuno peixoto de pinho, A Dança do velho lobo, para clarinete joão-heitor rigaud, Sonata para flauta e piano, estreia por solo, encomenda Antena 2 - RTP, para a 25.ª edição do Prémio Daniel Kessner e Dolly Eugenio Kessner, 13 Out. 2011, Conser- Jovens Músicos. A Dança do Velho homem - para percussão solo, vatório de Música do Porto; 14 Out. Clube Literário do Porto. obra encomendada por Nuno Simões, estreia dia 18 de Outubro joão madureira, Wind, Concertino para Trompete e Sopros. na Casa da Música. Encomenda, estreia mundial a 3 de Jul. 2011, Grande Auditório pedro faria gomes, obra para orquestra, estreia pela Fundação da Academia de Artes Performativas de Hong Kong (no mesmo Orquestra Estúdio, 19 Set. 2012, Centro Cultural Vila Flor, concerto foram tocadas obras de João Domingos Bomtempo, ­Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012. Joly Braga Santos, Álvaro Cassuto, Jorge Salgueiro, Jaime Reis – sérgio azevedo, Sonatina para 4 trompas, estreia por José A Omnisciência é um Colectivo, encomenda, estreia – e Luís dos ­Carlos Alves e alunos da masterclass de trompa, 18 Abr. de 2011, Santos Cardoso – Sinfonieta para banda, encomenda, estreia). Conservatório de Música Jaime Chavinha, Minde. From the top 8 Estudos literários, piano solo. Estreia mundial por Ana Telles, of the hill…, estreia por solistas do Remix Ensemble, 3 Maio a 24 de Nov. 2011, Academia das Ciências de Lisboa. de 2011, Casa da Música. Serenata em Trio, versão com saxofone, joão pedro oliveira, Vox Sum Vitae, estreia mundial a 9 de estreia pelo Entre Madeiras Trio, 15 Maio, Palácio Foz, Lisboa. Junho, em Firenze, Itália. O Pequeno Livro de Piano da Beatriz, excertos, estreia parcial a 21 jorge salgueiro, Deu-la-Deu, ópera comunitária, estreia 12 Ago. de Maio, Museu da Música, Lisboa. Missa Brevis, estreia por 2011, Monção. Lusitânia, 22 Out. Bragança. Arrábida, para harpa, ­alunos do IG, dir. Filipa Palhares, órgão António Esteireiro, 2 percussionistas e crianças, sobre textos de Sebastião da Gama. 5 de Junho, Igreja das Laranjeiras, Lisboa. Uma Pequena Sere­ Estreia 28 Out., Palmela. Ópera com libreto original de Gonçalo nata Diurna, estreia pela Orq. Câmara de Cascais e Oeiras, dir. M. Tavares, 14 de Março 2012, no Campo Pequeno. Abril, para Nikolai Lalov, 16 de Julho. O Natal do Ninhou, estreia por alunos big band e multidão, criação do teatro O Bando, 25 Abr. 2012. e professores do Conservatório Jaime Chavinha, Minde, 17 de josé luís ferreira, Avant, para ensemble e electrónica em tempo Dezembro. Uma Pequena Cantata de Natal, estreia da versão real, estreia pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble a 9 de Set. no CCB. revista, por alunos e professores do Coral Luísa Todi, Setúbal, luís soldado, Landscape in the Rain, estreia a 8 de Out., St. 17 de Dezembro. O Veado Florido (conto musical sobre texto Cyprian’s Church, Londres. Hotel Suite, ópera com libreto de Rui de António Torrado), estreia 10 Fev. 2012, Orq. Metropolitana Zink. Estreia pelo Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, de Lisboa, Montijo. Quinteto, estreia por solistas da Orquestra a 11 Nov., Royal College of Music, Londres. Serão também apre- Gulbenkian, 10 Fev. 2012, Fund. Gulbenkian. sentadas obras de Capdeville (Momento I), Pedro Faria Gomes vasco mendonça, Ping, sobre texto de Samuel Beckett. Estreia (Thanatos) e Jorge Peixinho (Llanto por Mariana). por Joana Manuel e OrchestrUtópica, 4 e 5 Nov. 2011, São Luiz manuel durão, Robin Hood, ópera para crianças, estreia pelo Teatro Municipal.

 | glosas | número 4 | novembro | 2011 festivais encontros, simpósios se ao longo dos anos se tem vindo a verificar uma maior 18 a 20 de maio de 2011 – 1.º Fórum Jovens Compositores. ­presença de repertórios portugueses nas programações das tem­ Estreia de obra de Gonçalo Gato. Mesa redonda e debate público poradas e dos festivais, não são muito numerosos os concertos sobre o ensino da composição e a interpretação da nova música. e programas assentes principalmente em música de autores Org. Miso Music Portugal. Goethe Institut, Lisboa. nacionais. Que, noutros países, programadores escolham 26 a 28 de julho de 2011 – MUSMA–Music Masters on Air. 10.º música portuguesa como força motriz dos eventos que dirigem, Encontro de Compositores. Participaram Luís Tinoco, João sabendo que ela irá interessar aos seus públicos, é facto que Madureira, Nuno Côrte-Real e João Godinho (cuja obra Fogo devia servir de exemplo. Entre 22 e 28 de Agosto, o festival de Posto, encomenda do MUSMA, teve estreia mundial). música antiga Laus Polyphoniae, de Antuérpia, ofereceu uma 24 de setembro de 2011 – Mesa redonda. Compositores à con- programação criteriosa, resultado de práticas de investigação versa. Christopher Bochmann, Sérgio Azevedo, Carlos Marecos. que permitiram a encomenda de repertórios aos artistas convi- Museu da Música Portuguesa, Casa Verdades de Faria, Estoril. dados e a estreia moderna de alguns daqueles. Música da corte 29 de setembro a 1 de outubro de 2011 – II Simpósio Interna- de Dom Dinis, obras sacras de Duarte Lobo e de João Lourenço cional de Musicologia Histórica, sob o tema “Maria Bárbara de Rebelo, o Cancioneiro de Elvas e as sinfonias de Leonora Duarte, Bragança, Infanta de Portugal, Rainha de Espanha”. Convento compositora seiscentista flamenga de origem portuguesa, foram dos Capuchos, Caparica. alguns dos muitos programas aliciantes para o público, interes- 28 a 30 de outubro de 2011 – 2.º Fórum Internacional Itine­ sado em conhecer novos repertórios, mas também para os artistas, rários Musicais ‘Música e Gesto’. Foram abordadas questões como o conceituado harpista Andrew Lawrence-King, a quem relacionadas com música portuguesa. Centro Cultural de Belém. a oportunidade de se debruçar sobre obras portuguesas suscitou Org. CESEM. a vontade de explorar melhor a nossa música. O entusiasmo com 25 a 27 novembro de 2011 – 1.º Encontro Nacional de Investi- que foram acolhidos os intérpretes portugueses, participantes gação em Música. Inclui comunicações relacionadas com música num evento em que, como sempre, actuaram alguns dos mais portuguesa (António Leal Moreira, Fernando Lopes-Graça, prestigiados agrupamentos de música antiga, como o Huelgas Frederico de Freitas, Jorge Peixinho, base da dados sobre música Ensemble, o Currende ou o Hespèrion XXI, deveria encorajar antiga portuguesa e outros). Casa da Música. Org. Associação até os mais cépticos sobre a atractibilidade de programas análogos Portuguesa de Ciências Musicais. e a excelência dos nossos músicos. Outros dois festivais de referên­ 9 a 11 de fevereiro de 2012 – Congresso Internacional “A Lín- cia, o de Ambronay e o de Lannion, respectivamente em Agosto gua Portuguesa em Música”. Inclui o I Concurso de Composição e Outubro, deram a ouvir alguma música portuguesa, como árias Caravelas e três concertos com repertório exclusivamente em da oratória A Morte de Abel, de Pedro António Avondano, pelo português. Culturgest. Org. Caravelas – Núcleo de Estudos da Divino Sospiro, com a soprano Ana Quintans e o oboísta Pedro História da Música Luso-Brasileira. Castro, e obras de compositores da Escola da Sé de Évora. em portugal, vários festivais, como o do Estoril, o da Póvoa investigação de Varzim, o Cistermúsica, o Terras sem Sombra, o Música Viva, os Festivais de Outono, prosseguem as suas opções de progra- carlos marecos. Conclusão do doutoramento pela Universi- mação encomendando obras a compositores ou escolhendo dade de Aveiro com a tese Interacção entre estruturas intervalares outras já estreadas, dando sempre algum espaço para a criação e estruturas espectrais na música instrumental/vocal, de que resul- nacional. Também eventos de menores dimensões e orçamento, tou a composição de várias obras, todas já estreadas (Inês, sete como o Síntese - Ciclo de Música contemporânea da Guarda, miniaturas sobre A Castro, para soprano e orquestra; Um sino con­ o Sons de Almada Velha, da área da música antiga, ou o Musicá- tra o tempo, para flauta, clarinete, percussão e piano; Terra, para lia, da Academia de Amadores de Música, todos realizados no orquestra de cordas; Dor e Amor, sob poemas de Nuno Júdice, Outono, incluem nos seus programas obras portuguesas. Outro para meio-soprano e ensemble instrumental; Ode a Gaia, Deusa certame que ao longo dos últimos anos tem vindo a proceder da Terra, para soprano, coro misto e electrónica). a encomendas a jovens compositores nacionais, o Prémio nuno peixoto de pinho. Plano de tese de Doutoramento pela Jovens Músicos, promovido pela Antena 2, assumiu este ano Universidade Católica Portuguesa. Processos de Reutilização o formato de festival, como comemoração pelas 25 edições do Musical na Obra do Compositor Jorge Peixinho (1940 - 1995): Suces­ Prémio, e na sua programação as obras portuguesas ocuparam sões Simétricas I, II e III. um espaço digno, integrando os concertos do Grande Auditório filipe cerqueira. Frequência do Mestrado em Interpretação Gulbenkian. Lado a lado com a estreia da obra encomendada artística na ESMAE, sobre a obra para piano solo do Padre a Carlos Caires (Instante, para orquestra e electrónica, dada Dr. Joaquim Gonçalves dos Santos, de que apresentou em recital pela orquestra da Fundação, dirigida por Pedro Neves), tivemos várias peças (Prologus: 6 Impressões musicais do Evangelho de Vathek, poema sinfónico de Luís de Freitas Branco, mas tam- S. João; Servite Domino In laetitia: Impressões Bíblicas; Ludus bém duas obras de Joly Braga Santos: o Concerto para Violoncelo ­Atonalis). e a Abertura Sinfónica n.º 3. As peças encomendadas pelo PJM para serem executadas durante as provas do concurso (compos- prémios e concursos tas por Sara Claro, Emanuel Marcelino, Ana Seara, Gonçalo Gato Lopes, Tiago Derriça, Pedro Faria Gomes, João Godinho e Filipe Edward Luiz Ayres d’Abreu, Luís Soldado, Sofia Sousa Rocha, Esteves) foram também dadas em concerto pelos antigos laure- Tiago Cabrita. Seleccionados, pelo Concurso Mini-Óperas ados que originalmente as interpretaram, e houve oportunidade (Teatro Nacional de São Carlos; Arquipélago – Associação de de ouvir novas obras para guitarra portuguesa compostas espe- Compositores de Portugal), para compor novas óperas a estrear cificamente para o recital de Miguel Amaral. dias 4 e 5 de Fevereiro de 2012, no TNSC. Coordenação de João

glosas | número 4 | novembro | 2011 |  Madureira, direcção musical de Pedro Neves e encenação de Miguel Azguime, Ricardo Ribeiro e Virgílio Melo. Ed. Miso Luís Miguel Cintra. Records, Novembro 2011. miguel azguime. Electronic Music. Ed. Miso Records, Gonçalo Gato. 1.º prémio do 6.º Concurso Internacional de ­Novembro 2011. Composição da Póvoa de Varzim com a peça Vectorial-modular fernando lopes-graça. Melodias Rústicas Portuguesas. para orquestra, estreada a 22 de Julho de 2011 no Auditório Bruno Belthoise e Christina Margotto, piano. Ed. Disques Municipal da Póvoa. Selecção para o 1.º Fórum Internacional Coriolan, Outono 2011. de Jovens Compositores do Sond’Ar-te Electric Ensemble. joly braga santos. Abertura Sinfónica n.º 3. Elegia a Vianna Estreia, nesse âmbito, da peça Configurazioni para quinteto da Motta. Alfama Suite de bailado. Variações para orquestra e electrónica em tempo-real, no dia 20 de Maio de 2011, Goethe 1973. 3 Esboços sinfónicos. Royal Scottish National Orchestra, Institut, Lisboa. dir. Álvaro Cassuto. Ed.Naxos, Outono 2011. ana telles. Piano & Electronics. Obras de Miguel Azguime, João Pedro Oliveira. Honorary Fellow of the National Academy João Pedro Oliveira, Carlos Caires e Enrique X. Macías. of Music, National Academy of Music. 1.º Prémio no concurso Ed. Miso Records, Dezembro 2011. Counterpoint, Counterpoint Society. em fase de preparação, gravação Manuel Durão. Prémio de composição da Orquestra Sinfónica ou a aguardar publicação: da Radiodifusão da Alemanha Central e o prémio do DAAD para “excepcional desempenho” de estudantes estrangeiros. armando josé fernandes. Sonata de violino e piano/Concerto para violino e orquestra Carlos Damas, violino. Orquestra concurso olga prats: irá realizar-se em 2012 a primeira edição ­Sinfónica de Córdoba. , 2012. de uma competição de piano para jovens até aos 18 anos, criada fernando lopes-graça. Sinfonia per Orquestra. Poema como homenagem à pianista, que sempre incentivou e cultivou de Dezembro. Suite Rústica nº 1. Marcha festiva (1.ª gravação o interesse pela música portuguesa, e como estímulo aos estu- mundial). Royal Scottish National Orchestra, dir. Álvaro dantes de piano para abordarem repertório nacional. Em cada Cassuto. Ed.Naxos, Primavera 2012. uma das categorias figuram peças portuguesas obrigatórias, de fernando lopes-graça. Concertos para piano n.ºs 1 e 2. Sérgio Azevedo. O concurso, que terá lugar entre 30 de Março Int. Eldar Nebolsin, Orquestra Sinfónica do Porto Casa da e 1 de Abril de 2012, é organizado pelo Conservatório Regional Música. Ed. Naxos. de Palmela, Sociedade Filarmónica Humanitária de Palmela e pelo canções tradicionais portuguesas de natal. Coro mpmp, movimento patrimonial pela música portuguesa. Informa- ­Gulbenkian, dir. Jorge Matta. ções em http://concursopiano.conservatoriopalmela.com volúpia. Música de Câmara de Nuno Côrte-Real. Int. Ensemble Darcos. discos antónio pinho vargas. Obras para percussão. Drumming GP. Drumming GP. Obras de Luís Antunes Pena e Matthias Ockert. bruno monteiro e joão paulo santos. Sonatas para Violino frederico de freitas. A Dança da Menina Tonta. O Muro de e Piano de Óscar da Silva e Armando José Fernandes. Derrete. Ribatejo. Nazaré. Royal Scottish National Orchestra, ­Ed. Movieplay, Maio 2011. dir. Álvaro Cassuto. Ed.Naxos. Gravação em Março 2012. patrício da silva. Now and Then: Music from the Great fernando lopes-graça. Obra Coral, 2.º vol. Coro Sinfónico Depression(s) 2010/1929. Lisboa Cantat, dir. Jorge Carvalho Alves. Ed. Outubro 2012. danse des sylphes. Inclui obras de Joaquim dos Santos luís de freitas branco. Trio / Concerto para Violino e e Alexandre Delgado. Adriana Ferreira, flauta. Isolda Crespi, orquestra. Carlos Damas, violino. Mission Orchestra of San piano. Ed. Numérica. José. 2013 antónio victorino d’almeida. Sinfonia. Concerto. Abertura. sete lágrimas. Diaspora II (título provisório, continuação Sonata. António Rosado, piano. Orq. Sinf. de Jovens de Santa conceptual do projecto Diaspora.pt. Concertos de apresentação: Maria da Feira, dir. Paulo Martins. Ed. Numérica. Dez 2011/Jan 2012) antónio pinho vargas. Concerto do IST – Improvisações. francisco antónio de almeida. La Spinalba. Músicos do Tejo. Ed. Althum, Setembro 2011. Joana Seara, Sandra Medeiros, L’Avventura London. smith quartet. Portuguese String Quartets with Electronics. ­Modinhas. Ed. Hyperion, Primavera 2012. Obras de Carlos Caires, Miguel Azguime, Pedro Amaral e Pedro Rebelo. Ed. Miso Records, Setembro 2011. livros luís de freitas branco. Sonatas para Violino n.ºs 1 e 2. Prelúdio. Carlos Damas, violino. Anna Tomasik, piano. casas da música do porto Ed. Naxos, Outubro 2011. 3.º Volume, de Rui Pereira, Ana Liberal e Sérgio C. Andrade. compositores portugueses xx/xxi, 4º Volume. Coro Sinfónico Ed. Casa da Música. Novembro 2011. Lisboa Cantat. Obras de Fernando Lopes-Graça, Carlos emmanuel nunes - escritos e entrevistas Marecos, Sérgio Azevedo e Vasco Pearce de Azevedo. Outubro Ed. Casa da Música / CESEM. Novembro 2011. 2011. marcos portugal - catálogo temático da música sacra antónio fragoso. Complete chamber music for violin. Carlos De António Jorge Marques. Damas, violino. Jian Hong, violoncelo. Jill Lawson, piano. Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM. Outono 2011. Ed. Brilliant Classics, Novembro 2011. diários de vianna da motta nuno pinto. Portuguese Music for Clarinet & Electronics. Organização de Elvira Archer. Obras de Cândido Lima, Carlos Caires, João Pedro Oliveira, Ed. Biblioteca Nacional de Portugal/ CESEM. Outono 2011.

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15 | bartók festival, londres 18 | 19h00 | instituto goethe de lisboa novembro pedro faria gomes miguel azguime Contours* L….., Des Cercles en Cercle, Liquidus Philarmonia Orchestra Sonorus Luminaris, Le Dicible Enfin Fini, 5 | 16h00 | biblioteca nacional, lisboa Comunicações. lançamento da glosas #4 15 | 14h30 e 16h00 Orquestra de Altifalantes mpmp 16 | 11h30, 14h30 e 16h00 Quarteto Lopes-Graça instituto goethe de lisboa 18 | 21h30 | teatro aveirense Lopes-Graça: Catorze Anotações simão costa frederico de freitas Victorino d’Almeida: Quarteto, Op.148 Quando eu nasci (Minhós Martins) Suite Africana sérgio pelágio Orquestra Filarmonia das Beiras 6 | teatro faialense, faial A Velha e o Ladrão (António Torrado) Direcção Luís Carvalho miguel azguime miguel azguime Itinerário do Sal, ópera multimédia O Rouxinol do Imperador 19 | 21h00 | teatro nacional (H. C. Andersen) de são carlos 9 | 21h00 | centro cultural de belém, Narrado por Ágata Mandillo, Ana Mandillo, antónio pinho vargas lisboa Rosinda Costa Onze Cartas antónio pinho vargas Orquestra Sinfónica Portuguesa Duas Peças 15 | 21h30 | universidade aveiro Orquestra Metropolitana de Lisboa (departamento de comunicação e arte) 19 | 21h30 | audtório municipal Direcção: Cesário Costa nuno pinto césar de oliveira, clarinet & electronics simão barreto (arranjos) 11 | contempuls festival, praga, N. Pinto, clarinete Igreja de Santa Cruz ­república checa M. Azguime, electrónica Canticus Camerae miguel azguime Ricardo Ribeiro: Intensités Direcção: A. Curado Itinerário do Sal, ópera multimédia João Pedro Oliveira: Time Spell Carlos Caires: Limiar 20 | 16h00 | museu nacional soares 11 | royal college of music, londres Virgílio Melo: Upon a Ground II dos reis, porto pedro faria gomes lançamento da glosas #4 Thanatos 16 | 21h30 | Igreja da Misericórdia mpmp Grupo de Música Contemporânea nuno côrte-real Programa e intérpretes por definir de Lisboa Monumentum In Memoriam Philippe Hirshhorn, op. 37 24 | academia das ciências, lisboa 12 | 16h00 | museu da música, lisboa joão madureira carlos seixas 16 | 21h30 | Univ. Aveiro 8 Estudos literários* Sonatas para Cravo e Órgão (Dep. de Comun. e Arte) Ana Telles, piano Concerto mpmp obras de sara carvalho J. C. Araújo, cravo e órgão Performa Ensemble 24 e 25 | 21h30 centro cultural de lagos 14 | coliseu do porto 17 | Queens College jorge salgueiro 30 | aula magna, lisboa joão pedro oliveira A Quinta da Amizade, fábula sinfónica, jorge salgueiro Entre o Ar e Perfeição op.65 A Menina de Pedra, bailado interactivo Orquestra Clássica da Academia, Direcção: Jorge Salgueiro 17 | 19h00 | instituto goethe de lisboa Orquestra Didáctica da Foco Musical Intérpretes a designar nuno pinto Direcção: Jorge Salgueiro clarinet & electronics 14 | escola superior de música Lançamento do CD 25 | zkm, karlsruhe de lisboa Miso Studio joão pedro oliveira nuno pinto N. Pinto, clarinete Angel Rock clarinet & electronics M. Azguime, electrónica Obras de Carlos Caires, Cândido Lima, Lançamento do CD 26 | casa do alentejo, lisboa Miguel Azguime N. Pinto, clarinete miguel azguime M. Azguime, electrónica No sítio do tempo Ricardo Ribeiro: Intensités Cândido Lima: Ncáãncôa Miguel Azguime : No Oculto Profuso (medidamente a desmesura)

glosas | número 4 | novembro | 2011 |  26 | 19h30 | Grande Auditório, 12 | 20h00 Hochschule für Musik und Theater, dezembro fundación juan march, madrid Leipzig, Alemanha sete lágrimas manuel durão Nana, nana Crise* 1 | haus konstruktiv, zurique MDR Sinfonieorchester joão pedro oliveira 13 | 19h30 | casa da música Direcção do vencedor do respectivo Angel Rock rui penha concurso de Direcção de Orquestra Solistas do Remix Ensemble 2 | centro cultural de cascais Nova obra para ensemble e criação visual* 26 | 22h00 | casa da cultura miguel azguime ­jaime lobo e silva, ericeira De parte et d’autre* 13 | santiago de compostela, espanha vianna da motta p. ferreira-lopes andreia pinto-correia Trio com Piano A Menina dos Fósforos* Este branco silêncio (II)* A. Tolpygo, violino ricardo ribeiro Taller Contemporaneo P. Flanagan, violoncelo Nova obra* S. Konjikusic, piano F. Ollu, maestro 14 | academia de amadores de música sérgio azevedo 26 | 21h00 | idanha-a-nova 6 | 21h30 4 Peças Breves sete lágrimas museu nogueira da silva, braga M. Cardoso, flauta transversal Mediterrae sérgio azevedo H. Carichas, piano Quinteto com Clarinete*, 26 | 21h30 Sexteto com Piano e Clarinete* 16 | 21h00 | casa da música capela de são pedro, coimbra j. d. bomtempo luís tinoco diogo melgaz Quinteto com Piano Orquestra Sinfónica do Porto Domine Hominem non Habeo j. palomino Coro de São Tomé filipe de magalhães Quinteto Direcção: Pedro Neves Sanctus Concerto mpmp Nova obra* pedro de cristo Sentica Ensemble Ay mi Dios 16 | igreja de s. domingos, lisboa Choral Poliphonico de Coimbra 7 | 21h30 | teatro-cine, torres vedras nuno côrte-real Direcção: P. Moniz nuno côrte-real Abertura Secondo Novecento, op. 25 A. Vaz Pereira, piano Ciclo de Canções de Florbela Espanca* Orquestra Metropolitana de Lisboa Eduarda Melo, soprano Direcção: J. M. Rodilla 30 | 21h30 biblioteca joanina, coimbra 9 | 21h30 | Fundação Calouste 17 | cons. jaime chavinha, minde armando leça ­Gulbenkian, Lisboa sérgio azevedo Minuete joly braga santos O Natal do Ninhou* B. Schmidt, harpa Quarteto para Cordas n.º2 Uma pequena Cantata de Natal* S. Matos, harpa A. Manzanilla, violino J. Teixeira, violino 17 | museu da música, lisboa 30 | 21h30 | clube literário do porto C. Hooley, violeta pe. dr. j. gonçalves dos santos lançamento da glosas #4 J. Lake, violoncelo Obras para piano mpmp Concerto mpmp 11 | 12h00 | casa da música Programa e intérpretes por definir F. Andrade Cerqueira, piano obras de lopes-graça e obras finalistas do i concurso 17 | auditório maestro manuel 30 | 19h00 | fundação calouste maria baltazar, lourinhã ­gulbenkian, lisboa nacional de composição da bsp Banda Sinfónica Portuguesa 18 | 17h00 | sala elíptica do convento f. antónio de almeida Direcção: A. Roque de mafra Magnificat, Beatus vir, Justus ut palma florebit nuno côrte-real Coro Gulbenkian 12 | 18h00 | palácio foz, lisboa Abertura Secondo Novecento, op. 25 Orquestra Metropolitana de Lisboa Direcção: M. Corboz ana telles – piano & electronics Direcção: J. M. Rodilla C. Müller Perrier, soprano Lançamento do CD F. Guimarães, tenor Ana Telles, piano N. McNair, órgão Carlos Caires: Duetto 1 T. Hirsch, violoncelo João Pedro Oliveira: in Tempore Miguel Azguime: De l’Étant Qui le Nie

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17-21 | zkm, karlsruhe, alemanha 6 | 21h30 | Fundação Calouste 21 | 18h00 luís antunes pena ­Gulbenkian, Lisboa teatro nacional de são carlos ... winterlich ruhende Erde... vianna da motta carlos seixas (para violoncelo solo) Quarteto para Cordas n.º1 Sinfonia para Orquestra de Cordas The Flexible Evangelist* A. Mendes, violino Orquestra Sinfónica Portuguesa (para 30 pratos diferentes e electrónica) C. Branco, violino Francesco Dillon, violoncelo B. Friedhoff, violeta 26 | 18h | biblioteca nacional, lisboa Nuno Aroso, percussão M. J. Falcão, violoncelo sérgio azevedo Luís Antunes Pena, electrónica Serenata em Trio 6 | Minnesota, EUA christopher bochmann 21 | clube literário do porto andreia pinto-correia Elegia II* música de câmara Xántara*, obra escolhida eli camargo jr Concerto mpmp pelo Composers Institute 2012 Lubramix II Programa e intérpretes por definir Minnesota Symphony Orchestra Concerto mpmp Direcção: Osmo Vänskä Entre Madeiras Trio 21 | 18h00 (M. Cardoso, flauta transversal biblioteca nacional, lisboa 7 | 18h00 F. Branco, oboé obras de david perez teatro nacional de são carlos J. Nunes, saxofone) e seus contemporâneos luiz de freitas branco Mário Marques Trilha, cravo Scherzo Fantastique 28 | 18h00 antónio fragoso teatro nacional de são carlos 21 e 22 | cinema são jorge, lisboa Nocturno j. sousa carvalho miguel azguime Orquestra Sinfónica Portuguesa Te Deum A Menina Gotinha de Água Orquestra Sinfónica Portuguesa Ópera infantil 8 | 17h00 | cinema são jorge, lisboa andreia pinto-correia 28 | 18h00 | museu da música 31 | 17h00 | igreja s. roque, lisboa Acanto ­portuguesa, cascais j. sousa carvalho Orquestra Metropolitana de Lisboa lopes-graça Te Deum Direcção: L. Shambadal 2.ª Sonata, 11 Glosas, Variações sobre Coro Gulbenkian um tema popular português Divino Sospiro 8 | 19h30 | smith square, londres Concerto mpmp Direcção: Jorge Matta nuno côrte-real P. Marques, piano Entreacto da ópera Banksters, op. 40 D. P. Martins, piano igrejas de lisboa Ensemble Darcos natais portugueses Direcção: N. Côrte-Real 29 | Villa Concordia, Bamberg, Canções de Natal de diversos autores Alemanha nacionais 13 | 18h00 luís antunes pena Coro Sinfónico Lisboa Cantat teatro nacional de são carlos Anatomia de um Poema Sonoro Direcção: Jorge Carvalho Alves j. d. bomtempo Mafalda Lemos, mezzo Requiem em Dó m, op. 23 Fabian Sattler, narração Direcção: G. Andreoli Ensemble piano possibile janeiro Kofo Yamagishi, piano 14 | 21h30 | teatro cine (torres vedras) fevereiro 3 | 21h30 nuno côrte-real Museu Nogueira da Silva, Braga Entreacto da ópera Banksters, op. 40 luiz costa Ensemble Darcos 1-7 | 19h00 Sonatina para Viola e Piano Direcção: N. Côrte-Real nuno côrte-real lopes-graça Pranto, op. 17b 4 Peças para Viola e Piano 20 | 19h00 | liceu camões, lisboa Ensemble Darcos joly braga santos (concerto aberto antena2) Direcção: N. Côrte-Real Canção lopes-graça Concerto mpmp 4 Peças em Suite 3 | 21h00 | centro cultural vila flor, B. Pires, violeta; Isa Antunes, piano G. Gramajo, violeta guimarães A. Simpson, piano f. n. dos santos pinto 8.ª Abertura Orquestra Sinfónica Portuguesa

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 11 4 | 20h00 | teatro nacional 17 e 18 | 21h00 de são carlos centro cultural de belém, lisboa março e. l. ayres d’abreu, t. cabrita, p. a. avondano sofia s. rocha, l. soldado A Morte de Abel, oratória** 12 | 18h00 Amor-Traição-Ódio E. Kirkby, Z. Tóth, S. Medeiros, teatro nacional de são carlos Orquestra Sinfónica Portuguesa D. Hansen, I. Ludlow, Divino Sospiro obras de frederico de freitas Direcção: Pedro Neves Direcção musical: E. Onofri A. Manzanilla, violino 4 Pequenas óperas contemporâneas* R. Guerreiro, violino 23 | 19h00 | el corte inglés, lisboa P. Muñoz, violeta 5 | 17h00 25 | 16h00 | museu nacional de arte A. Zupancic, violoncelo centro cultural de belém, lisboa antiga, lisboa Vento joly braga santos 14 | campo pequeno, lisboa Concerto Segundo do Tríptico da Terra Quarteto de Cordas n.º2, op.27 21 | europarque, santa maria da feira Z. Tóth, soprano A. Pereira, violino jorge salgueiro Sete Lágrimas, voz Á. Sárosi, violino Ópera com libreto original de Gonçalo Co-direcção: F. Faria/ S. Peixoto I. Skenderi, violeta M. Tavares* João Madureira: Missa De Pentecostes M. Pereira, violoncelo Intérpretes a designar

5 | 16h00 24 | 18h30 | sociedade portuguesa 16 | 21h30 | teatro-cine (torres vedras) teatro nacional de são carlos de autores, lisboa nuno côrte-real e. l. ayres d’abreu, t. cabrita, sara carvalho Dueto do 2º acto da ópera Banksters, sofia s. rocha, l. soldado The Moon Lost Her Name op. 40 Amor-Traição-Ódio n. m. henriques antónio pinho vargas Orquestra Sinfónica Portuguesa Cadenza 9 canções de A. Ramos Rosa Direcção: Pedro Neves ângela lopes L. Martins, soprano 4 Pequenas óperas contemporâneas* Peça X J. Tomé, barítono cândido lima Ensemble Darcos 10 | 21h30 | fundação calouste Oil in Love ­gulbenkian, lisboa christopher bochmann 18 | 17h00 sérgio azevedo Three Caprices centro cultural de belém, lisboa Quinteto pedro figueiredo joão rodrigues esteves E. Georgie, clarinete Freie Gesten* Laudate Dominum omnes gentes**, A. B. Manzanilla, violino Liviu Scripcaru, violino Psalmus Beatus vir concertato**, M. Kouznetsova, violeta Miserere mei Deus**, Stabat Mater R. Reis, violoncelo 24 | 13h00 ­dolorosa, Primeira Lamentação M. Plüddemann, contrabaixo foyer do cinema são jorge, lisboa ­de Quinta-Feira Santa**, Magnificat, 25 | centro cultural do cartaxo Miserere a tre cori 10 | 21h30 | cinema-teatro joaquim daniel almada Vox Luminis d’almeida, montijo Linde Direcção: L. Meunier 11 | 17h00 | centro cultural F. Llopis, percussão e de congressos, caldas da rainha 19 | 18h00 12 | 11h30 | centro cultural de belém, 25 | 16h00 | museu da música, lisboa teatro nacional de são carlos lisboa Concerto mpmp obras de f. gazul, j. a. soares, sérgio azevedo carlos seixas j. r. cordeiro O Veado Florido* Sonatas para Cravo e Órgão Quarteto Lopes-Graça Orquestra Metropolitana de Lisboa J. C. Araújo, cravo e órgão Direcção: P. Neves 23 | 20h00 25 | 16h00 | palácio nacional da ajuda teatro nacional de são carlos 13 | 18h00 joly braga santos marcos portugal teatro nacional são carlos Concerto para cordas em Ré menor, O Basculho de Chaminé obras de lopes-graça op. 17 (arr.) Orquestra Sinfónica Portuguesa e luiz de freitas branco antónio fragoso A. Stewart, violino Trio, op.2 J. P. Santos, piano D. Tzonkova, violino E. de Conca, contrabaixo A. Simpson, piano

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24 | 18h00 4 | 21h30 teatro nacional de são carlos Museu Nogueira da Silva, Braga maio marcos portugal música de câmara O Basculho de Chaminé Concerto mpmp 8 | jordan hall, boston, eua Orquestra Sinfónica Portuguesa Programa e intérpretes por definir andreia pinto-correia Delilah’s Last Love*, ópera em um acto, 26 | 18h00 5 | 21h00 libreto: Betty Shamieh teatro nacional de são carlos Centro Cultural de Belém, Lisboa Minnesota Symphony Orchestra obras de lopes-graça f. antónio de almeida Direcção: Osmo Vänskä e luiz de freitas branco Sinfonia, em Fá Maior** I. Lima, violoncelo Divino Sospiro 13 | 17h00 J. P. Santos, piano Direcção: M. Mazzeo Centro Cultural de Belém, Lisboa diogo dias melgaz 30 e 31 | montréal, canadá 6 | 21h30 | Centro Cultural Vila Flôr, Salve Regina, In Monte Oliveti, miguel azguime Guimarães In jejunio et fletu, Adjuva nos Quasar Saxophone Quartet 8 | 17h00 | Cinema São Jorge, Lisboa f. antónio de almeida Nova peça* pedro osório O quam suavis, Si quæris miracula, Música sequencial para orquestra ­Justus ut palma florebit, Lamentatio 31 | conservatório regional de palmela sérgio azevedo prima in Sabbato Sancto a 4 concertata Concerto mpmp, integrado Sinfonietta Semplice antónio teixeira no Concurso Olga Prats joão madureira Sacram beati Vicentii, Isa Antunes, piano Greeting Tanta grassabatur crudelitas P. Marques, piano nuno maló carlos seixas D. P. Martins, piano Suite Sonatas para órgão, Sicut cedrus Reportório infanto-juvenil para piano Orquestra Metropolitana de Lisboa ­exaltata sum, Hodie nobis cælorum Rex Direcção: A. Roque M. C. Kiehr, soprano 31 | 21h00 Sete Lágrimas, voz centro cultural de belém, lisboa 12 | 21h00 Co-direcção: F. Faria/ S. Peixoto lopes-graça teatro nacional de são carlos Concerto da Camera col Violoncello joly braga santos 20 | 17h00 Obbligato Sinfonia n.º 4 Centro Cultural de Belém, Lisboa Orquestra Metropolitana de Lisboa Orquestra Gulbenkian joly braga santos Direcção: J. Judd Concerto para orquestra de cordas P. Gomziakov, violoncelo 19 e 20 | 21h e 19h, resp. | fundação Orquestra Metropolitana de Lisboa calouste gulbenkian, lisboa Direcção G. Walker pedro amaral abril Transmutations pour Orchestre (Nr. 5.3)* 25 | 21h30 | Fundação Calouste Orquestra Gulbenkian ­Gulbenkian, Lisboa Direcção: Lionel Bringuier joly braga santos 2 | s. miguel, açores Sexteto para Cordas, op. 59 6 | terceira, açores 25 | teatro o bando B. Chao, violino a alma da gente jorge salgueiro J. Lé, violino Música Regional Portuguesa Abril, para big band e multidão, L. Braga Santos, violeta com arranjos de Vasco Pearce captando o momento flash C. Hooley, violeta de Azevedo, Eurico Carrapatoso da felicidade e da utopia* V. Bartikian, violoncelo e Fernando Lopes-Graça Teatro o Bando M. Henneken, violoncelo Coro Sinfónico Lisboa Cantat Direcção: Jorge Carvalho Alves 28 | 18h00 | museu da música ­portuguesa, cascais *estreia | **estreia moderna 4 | 19h00 luiz costa academia das ciências de lisboa Sonatina para Viola e Piano, nuno côrte-real Sonata para Violoncelo e Piano Largo intimíssimo, op. 28 e Sonatina para Flauta e Piano Ensemble Darcos Concerto mpmp Direcção: N. Côrte-Real C. Atalaia, flauta transversal N. Cardoso, violoncelo B. Pires, violeta Isa Antunes, piano D. P. Martins, piano

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 13 Durante os anos de 2004-2005, mantive da Universidade Nova de Lisboa, cuja cedên- dias de música a organização de conferências e concertos cia de equipamento foi fundamental para esporádicos na Universidade de Aveiro. No a realização de uma elevada percentagem electroacústica entanto, a minha actividade composicional das actividades realizadas até hoje. Paralela- ocupava na altura grande parte do meu tempo. mente, houve sempre o apoio logístico e ins- Introdução à História do Festival Em 2004 realizei a palestra “Biological titucional do Conservatório de Música de Seia Models Applied to Music Composition”, em (principal organizador) e da Câmara Munici- Darmstadt. Em 2005 fui compositor convi- pal de Seia. Pontualmente, houve ajuda de dado no festival Hörfest, em Graz, junta- outras instituições como a Miso Music Portu- JAIME REIS | TEXTO mente com Miguel Azguime e Paula Azguime, gal, que cedeu equipamento e contribuiu para onde foi estreada a minha peça para piano a divulgação de alguns eventos. Só depois Lysozyme Synthesis. Tinha começado a fre- começámos a ter apoio da Direcção Geral das O Festival Dias de Música Electroacústica quentar anualmente os cursos Stockhausen, Artes / Ministério da Cultura para uma grande é fruto da continuação de um trabalho cola- em Kürten, e todos os seminários que podia parte das edições e actividades desde então, borativo com Julia Chmielnik, em 2003, no com Emmanuel Nunes. o que constituiu um ponto de viragem, per- festival DNI MUZYKI PORTUGALSKIEJ W só em 2006 decidi retomar as actividades mitindo ter uma produção profissional dos KRAKOWIE (Dias de Música Portuguesa em relacionadas com o festival de modo mais eventos e um aumento do número de activi- Cracóvia). Desde 2006, sem a colaboração intensivo. O Conservatório de Música de dades anuais na ordem dos 500%. da equipa de produção polaca, têm havido Seia, onde havia estudado e era agora profes- a terceira edição do festival foi mar- edições regulares do Festival Dias de Música sor, tinha boas condições para organizar cada pela presença do Trio EndPhase, consti- Electroacústica, frequentemente com mais eventos relacionados com a música electro­ tuído pelos compositores Alberto Bernal de uma edição anual, com variantes como acústica. O seu fundador, o etnomusicólogo (Espanha), Johannes Kreidler (Alemanha) Dias de Música Electroacústica no Algarve, António Tilly, possuía desde a fundação e João Pais (compositor português residente Dias de Música Contemporânea - Estágio da escola equipamento profissional, como na Alemanha, que viria a frequentar as activi- para Maestros, Compositores e Intérpretes, os sequenciadores Studio Vision, Pro Tools, dades do festival noutras ocasiões). Os alunos Dias de Música Electroacústica em Madrid, e outros. Juntando o meu equipamento ao do apresentaram um especial interesse na Dias de Música Electroacústica no Brasil, Conservatório e ao de António Tilly, foi pos- música apresentada e na aprendizagem dos Dias de Música Electroacústica em Coimbra, sível realizar um conjunto de pequenas acti- principais processos composicionais utili­ entre muitas outras actividades de carácter vidades didácticas e mostrar um pouco deste zados pelo Trio. diversificado, em localizações distintas. mundo a um público jovem, eminentemente paralelamente ao festival propria- a primeira edição, na polónia, foi con- constituído por alunos que, progressiva- mente dito, houve sempre actividades para- cebida e realizada quando tinha dezanove mente, iriam receber formação nesta área e, lelas como concertos isolados e conferências. anos. O que nos impulsionou, a mim e à por interesse próprio, viriam a constituir Em 2008, o DME#4, contou com a presença maestrina Julia Chmielnik, foi a vontade de a equipa de produção do festival. de Bruno Gabirro, Eduardo Patriarca, Hélder estudar e promover a música de composito- a primeira edição foi realizada num Abreu, Mehmet Can Özer, Simão Costa, Tiago res portugueses de vários períodos. O festival ambiente escolar, com um público pratica- Cutileiro, o violinista Luís Gomes, a violon- teve a duração de três dias. Realizei três con- mente apenas constituído por alunos do celista Marta Navarro, o maestro Pedro Pinto ferências sobre História da Música em Portu- Conservatório, que puderam escutar uma Figueiredo, o Ensemble Atelier de Música gal e houve três concertos. vasta panóplia de música electroacústica de Contemporânea da EMNSC, o trombonista o primeiro deles foi dedicado à música compositores portugueses como João Rafael, Joaquim Raposo e o percussionista Nuno religiosa, com obras corais de compositores António Ferreira, Pedro Rocha, José Luís Aroso. Seguiu-se uma edição do Festival no como Duarte Lobo e Manuel de Faria, inter- Ferreira, Carlos Guedes, Rui Penha, Rui Dias, Algarve e ainda no mesmo ano outra edição pretadas pelo coro da Academia de Música de Isabel Soveral, e outros. do Festival em Seia (onde esteve presente Cracóvia, sob a direcção de Julia Chmielnik. a segunda edição ocorreu numa escala o compositor Luís Antunes Pena, o percus- O segundo concerto foi dedicado ao reper­ mais alargada, permitindo a escuta de peças sionista Nuno Aroso, o flautista Jorge Salgado tório para voz e piano, com a presença da contemporâneas a centenas de pessoas, Correia e o compositor João Pedro Oliveira), soprano portuguesa Mariana Costa, no qual de compositores como Luís Tinoco, Carlos e concertos e conferências em locais como o foram interpretadas obras de Fernando Azevedo, Lopes-Graça, Mário Mary, Miguel Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. Lopes-Graça, Frederico de Freitas, e outros. Azguime, Simão Costa, Cândido Lima, Jorge em 2009 seguiram-se, nomeadamente, O terceiro concerto foi dedicado à música Peixinho e Luciano Berio, interpretadas pelo a primeira edição dos Dias de Música Con- contemporânea. Foram tocadas, dentre quarteto de saxofones QuadQuartet, a flau- temporânea, com a colaboração do maestro outras, peças de Emmanuel Nunes e João tista Neuza Bettencourt, os percussionistas Pedro Pinto Figueiredo e do pianista Fran- Pedro Oliveira, compositor que esteve pre- Bruno Estima e Pedro Fernandes, o saxofo- cisco Monteiro, num estágio para maestros, sente. nista Henrique Portovedo e o pianista Simão músicos e compositores, dedicado à música o sucesso do evento dependeu fun­ Costa. de Stockhausen. Seguiram-se outras activi- damentalmente do excelente nível dos intér- até esta fase, os apoios para o festival eram dades relacionadas com a obra de Jorge Pei- pretes polacos e convidados, e dos contactos extremamente reduzidos, contando funda- xinho, nomeadamente com a re-constituição da maestrina Chmielnik com o Ministério da mentalmente com fundos próprios por parte da obra Luiz Vaz 73 (de Peixinho e Ernesto Defesa e a comunidade mediática local, uma da organização. Porém, a segunda edição dos de Sousa), com o Grupo de Música Contem- vez que o seu pai, o já falecido mas famoso DME contou com um parceiro fundamental, porânea de Lisboa, no Centro de Arte actor Jacek Chmielnik, desenrolou um impor­ que viria a estar ligado a todas as actividades Moderna da Fundação Gulbenkian, onde foi tante papel nessa matéria. do Festival: o Instituto de Etnomusicologia proferida uma conferência sobre o projecto,

14 | glosas | número 4 | novembro | 2011 DME inseridos no festival aéreo Santa Cruz AirRaces, com uma enorme adesão do público às sete apresentações aí realizadas. Colabora- ram músicos como o percussionista Marco Fernandes, a violinista Joana Guerra, a vio- loncelista Vânia Moreira e o clarinetista Bruno Graça. esta tipologia de actividades coaduna‑se com a minha visão em como a estratégia para levar a música erudita contemporânea ao público não deve estar relacionada com altera- ções nas concepções estéticas dos seus pro­ Dias de Música Electroacústica em Santa Cruz dutores, mas antes nas estratégias de apre­ sentação da mesma. Não me preocupo com a par de outras actividades também em escultores Pedro Carvalho e Miriam Carmo, o potencial prestígio patente na apresentação ­Ervedal da Beira, Bairrada, Linda-a-Velha, que conceberam espaços de conexão entre de um concerto ou festival, canalizando os e no estrangeiro: Coreia do Sul (Universidade os pontos de espacialização dos sistema de apoios que generosamente me têm sido atri- de Woosuk), Madrid (Dias de Música Elec- difusão electroacústico e o espaço do antigo buídos para anúncios televisivos ou cartazes troacústica), Alemanha (cursos Stockhausen, edifício Casa da Artes / Conservatório de (que se debatem com dificuldade pelo desta- onde fui mediar um fórum sobre Stockhau- Música de Seia. que, numa cultura visual activa na qual as acti- sen e Educação Musical, apresentando vários o acolhimento por parte dos alunos vidades mediatizadas tendem a ter um carácter projectos a propósito de como a música do foi sempre muito favorável. Alguns começa- muito diferente das que procuro promover). compositor foi apresentada a alunos de dife- ram a compor as suas primeiras experiências Ao invés, a energia e recursos despendidos rentes faixas etárias). electroacústicas, outros interessaram-se pela procuram a criação de espaços e momentos em 2010 prosseguimos com um elevado produção de eventos, interpretação de música especiais, frequentemente inusitados para os número de actividades em locais diferencia- que envolvesse meios electroacústicos, audi- que assistem, mas sempre numa perspectiva dos como o Laboratório Nacional de Enge- ção de novas peças, conhecimento genérico didáctica, em que as práticas musicais são nharia de Lisboa, o Conservatório de Música técnico sobre sistemas de difusão, etc., como explicadas o mais possível num ambiente de Castelo Branco, o Museu da Música, se veio a comprovar pela criação da Associa- informal, sem o distanciamento frequente Linda-a-Velha, Universidade Nova de Lis- ção Cultural EMSCAN - Electroacoustic, entre o público e os produtores. O resultado boa, Universidade da Beira Interior (Covi- Music and Sound Courses Alumni Network, é que ao longo dos meus parcos oito anos lhã), Instituto Piaget de Almada, Japão (Keio fundada em 2010 por António Pedro Farinha de actividade na organização de eventos, University), Monte Abraão. Deu-se a repre- e Miguel Jerónimo e constituída exclusi­ passo a passo, há sempre quem fique mara­ sentação da secção portuguesa no Festival vamente por participantes e colaboradores vilhado e queira fazer parte deste campo, Internacional de Música Contemporânea da de actividades inerentes aos Dias de Música incluindo alunos, estrelas de rock, jornalis- Bahia, com o guitarrista Pedro Rodrigues e o Electroacústica, cujos membros possuem for­ tas, cientistas e políticos. maestro Pedro Pinto Figueiredo, e activida- mação diversificada nos campos do Design, em setembro ocorreram actividades des no Rio de Janeiro, Salvador, Juiz de Fora Engenharia Informática, Electrónica, Música, em São Paulo e Belo Horizonte, decorrendo e São Paulo, marcando assim os primeiros Engenharia Bioquímica, Ensino, Musicolo- assim a segunda edição do Festival Dias de Dias de Música Electroacústica no Brasil. gia, Artes Gráficas, Multimédia e Intermédia, Música Electroacústica no Brasil, tendo como Paralelamente, o compositor Francisco Pes- entre outras, e que têm desenvolvido projec- parceiros principais a UFMG, UNICAMP sanha, que acompanhava as actividades do tos interdisciplinares desde a sua formação. e Fundação para a Educação Artística de Belo festival desde 2006, organizou o Festival Dias em 2011, foram exploradas novas tipo- Horizonte. Para além de outras actividades de Música Electroacústica em Coimbra, em logias de actividade, com a edição do Festival didácticas ainda a decorrer, em Dezembro do colaboração com o pianista Tiago Nunes, Dias de Música Barroca, que contou com presente ano, está prevista uma nova edição antigo aluno do Conservatório de Seia e par- a presença do maestro, musicólogo e cravista do Festival e ciclo de conferências, onde ticipante assíduo de edições anteriores do João Paulo Janeiro e a Orquestra Barroca da estará presente o Grupo de Música Contem- festival. As actividades de 2010 culminaram ESART. Procurou-se manter a diversidade porânea de Lisboa e Gerard Pape, compositor com uma edição do festival em Dezembro, em de actividades frequentes como workshops e antigo presidente do CCMIX (Centre de Seia, onde o programa foi dividido entre con- e apresentações em locais diversos (Escola Création Musicale Iannis Xenakis), e outras ferências e concertos com personalidades Secundária de Seia, Escola Secundária Amé- personalidades. como Erik Drescher, Anete Colacioppo, Eva lia Rey Colaço – Linda-a-Velha -, CCB, Museu com a extinção do ministério da Cul- Zöllner, António Pedro Pita, Carlo Patrão, Grão Vasco e a Academia de Música de Paços tura e de tantos outros organismos, resta Américo Rodrigues, Cristina Fernandes, de Brandão). Em Maio, houve mais uma edi- saber que apoios se manterão e que novas Pedro Pinto Figueiredo, André Granjo, Diogo ção dos DME em Seia. A sétima edição contou sinergias terão de surgir. Ficará sempre Alvim, Tiago Nunes, Francisco Pessanha, com a presença das pianistas Ana Telles, Sara a força de vontade de organizar novos eventos Salwa Castelo Branco, João Pedro Oliveira, Mendes, Ana Claudia Assis, e com a Orques- e de promover e estudar a música erudita Mickael de Oliveira, José Carlos Sousa, João tra Filarmonia das Beiras, dirigida por Antó- contemporânea. Paulo Janeiro, Carlos Araújo Alves, o Grupo nio Vassalo Lourenço, interpretando peças de Música Contemporânea de Lisboa e o de Jean-Sebastien Béreau, Jaime Reis, Edson maestro João Paulo Santos, entre outros. Zampronha e João Pedro Oliveira. Ainda em O Festival contou com a colaboração dos Julho de 2011, ocorreu a primeira edição dos http://diasdemusicaelectroacustica.blogspot.com/

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 15 Homenagem ANTÓNIO VICTORINO D’ALMEIDA

16 | glosas | número 4 | novembro | 2011 agora toca a pôr o ritmo de decúbito dorsal, mas a melodia de decúbito ventral. Não me perguntem porquê, mas assim des- Pequeno improviso construído, o paradigma de compositor ircamsense que daqui emerge faz-me lembrar a história do babuíno que, numa noite a propósito de António de edénicas façanhas, conheceu intimamente a girafa. O pro- blema é que a Eva insaciável, carente como estava de mimos, lhe Victorino d’Almeida exigia sucessivos beijinhos na boca. Nunca mais aquele babu- íno, exausto como ficou, viveu uma situação de tamanho desafio EURICO CARRAPATOSO à sua natureza de trepador. concluindo: esta questão de uma suposta música conserva- dora versus uma putativa música de vanguarda já cheira mal. tal como as comparações, também as generalidades atraiçoam E cheira mal que apesta. É, aliás, no mínimo, uma questão tão o rigor das ideias. Bem sei. Mas, ainda assim, de entre os vários relativa quanto a situação descrita na maravilhosa parábola paradigmas de compositor que o século XX nos legou, parece de Michel Tournier sobre Yuri Gagarin que aqui, de memória, haver dois grupos de compositores que se destacam: aqueles que tentarei verter: o grande herói soviético, depois da viagem pensam em cada nota que escrevem, por um lado, e aqueles que épica que marca o início da era espacial, foi celebrado não escrevem cada nota que pensam, por outro. Parece um exercício apenas com o aparato espontâneo, bem como com o aparato de estilo, com o donaire tonto dos trocadilhos? Sim, mas arrisco­o por decreto. Passados alguns meses, Nikita Khrushchov chamou hoje e aqui. Aqueles que pensam em cada nota que escrevem, como Gagarin para uma audiência privada. Fecharam-se numa o Webern da Sinfonia, Op. 21, e aqueles que escrevem cada nota que câmara anecóica, garantidamente selada e sigilosa, e detonou pensam, como o Prokofiev da Sinfonia Nr. º5. De um lado parece uma pergunta sonora como um sino de bronze: “Camarada triunfar o apolíneo. Do outro, mais o dionisíaco. Gagarin: viu Deus nas alturas a que ascendeu? Deus existe?”. também sei que o mundo não é como os americanos o pintam, Gagarin abriu os olhos, fez um silêncio ensurdecedor, e na assim maniqueísta: de um lado os bons e, do outro, os maus. boleia do seu heroísmo, proferiu: “Sim, Camarada Khrushchov: Nunca é de mais, a este propósito, lembrar George Walker Bush, Vi-O. Deus existe.”. Nikita Khrushchov olhou para o local o mais terrível cowboy a oeste de Pecos, quando, naquele dia errante do seu desânimo, comentando inaudivelmente para os pré-filosófico em que identificou o Axis of Evil, proclamou com seus botões: “Bem me parecia que Deus existia.”. Aos poucos foi aquele rasgo que o mundo desde sempre, mas particularmente empalidecendo mas, subitamente, num vórtice de ira, fez-se desde então, lhe reconhece: “You’re either with us, or against us.”. escarlate, arranhou a careca e amaldiçoou todas as formas de E como poderemos todos nós – incluindo gregos e portugueses positivismo filosófico mais a inominável laicização de costu- – alguma vez esquecer aqueles olhos piscos da mixomatose, mes. E amaldiçoou o materialismo, e o comunismo, e o mar- aquele nariz aquilino e aquela voz texana de ukulele? xismo, e o leninismo, e o estalinismo, bordoando as tónicas apesar de o mundo estético não ser maniqueísta, parece claro dos inumeráveis vitupérios com o seu sapato direito. Subita- que António Victorino d’Almeida corresponde mais ao ímpeto mente recompôs-se, respirou fundo e não deixou de olhar dionisíaco. A sua genealogia pertence à admirável linhagem fixamente Gagarin nos olhos, enquanto não lhe arrancou d’Aqueles que escrevem cada nota que pensam. Isto, sem despri- ­o solene juramento de silêncio eterno sobre o teor daquela mor, por certo, para com a nobre estirpe d’Aqueles que pensam conversa. Em 12 de Abril de 1962, um ano após a façanha espa- em cada nota que escrevem. Aliás, todos nós conhecemos de cor cial, Yuri Gagarin visitou Roma e o Vaticano. Depois da ceri- e salteado o moto da grande escola genealógica portuguesa: não mónia pública, foi recebido em audiência privada pelo Papa desdenhes dos Sousas Arronches por serem Dionisíacos! Quem sabe João XXIII. Fecharam-se no papamóvel1, já de si anecóico, se não se tornarão em Apolíneos Chichorros? e é então que o Papa detona a pergunta perguntorum, como se a música de antónio victorino d’almeida aparenta ser con- diz no coimbrez da queima: “Major Yuri Gagarin: viu Deus nas servadora, muitos dirão. Vá-se lá saber se não é por isso mesmo alturas a que ascendeu? Deus existe?”. Gagarin abriu os olhos, que a melodia victoriniana é tão generosa, tendo a harmonia, de fez um silêncio ensurdecedor, e no garbo do seu heroísmo tamanho aplomb, o rasgo próprio da química dos fluídos? E o soviético proferiu: “Não, Sua Santidade: não O vi. Deus não ritmo, que é tão vívido e vivido! E a orquestração (verdadeiro existe.”. João XXIII olhou para o local errante do seu desânimo, motivo de inveja), que refulge como o oirinho reluzente da Ceuta comentando repetidamente e pianíssimo: “A mim bem me quatrocentista (citando Borges Coelho, o historiador). E a forma parecia que Deus não existia.”. Aos poucos foi empalidecendo da sua música, entroncada como o bucéfalo, que respira profunda­ mas, subitamente, num vórtice de ira, fez-se escarlate, arran- mente como o roncopata: das depressões de Morfeu até aos picos cou o camuro e, arranhando sua tão imensa quão globosa de nos fazerem ranger os dentes. Não é esta a função original da ­calvície, amaldiçoou todas as formas de religião, mais todas música, afinal? A magia? O poder de alterar estados de consciência? e quaisquer crenças em quaisquer tipos de fantasmagorias, terá a música de ser necessariamente como o cânone ircam­ vituperando os Doutores da Igreja, de Agostinho a Tomás, pas- sense a pinta? Terá o discurso musical de padecer dessa doença sando por Isidoro de Sevilha, marcando as sílabas tónicas dos agitante? De padecer de sistemática descontinuidade do dis- inomináveis agravos com o seu soberbo múleo vermelho­ curso, dada a sistemática continuidade do processo? Continhas ‑ferrari; e, finalmente, num esgar parecido ao do touro irado e mais continhas? Ainda? Ainda há quem isto reverencie? do Guernica, bramiu do alto da sua pontifícia infalibilidade: é incrível, mas parece que sim. Ainda há, efectivamente, quem “A religião nasceu no preciso momento em que o primeiro intrujão insista nesta coca: compor de zero a doze e de doze a zero (ou, conseguiu convencer o primeiro ingénuo!”. Subitamente recom- consoante as modas microtonais, de zero a vinte e quatro; de pôs-se, respirou fundo e não deixou de olhar fixamente Gagarin vinte e quatro a zero: tanto dá). Agora, toca a multiplicar acor- nos olhos, enquanto não lhe arrancou o solene juramento des. Bom: agora ponhamos os acordes de patas para o ar. Bem: de silêncio eterno sobre o teor daquela conversa.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 17 tudo é relativo, pois. Essa treta da “música conservadora” versus num meio limitado e mesquinho, como é ainda muito deste “música de vanguarda” tem muito que se lhe diga. Uma coisa nosso Portugal, os pedantes de serviço não perdoam uma tal é certa: António Victorino d’Almeida está mais preocupado em indiscrição (o meio musical português é pequeno e familiar, escrever música do que em escrever história. Para nosso grande e todos sabemos como são as famílias: as guerras civis são as alívio, o António assim permanece, livre, igual a si próprio, mais cruéis…), e muito menos um homem que, ultrapassando inteiro e limpo, tal como o imenso Orson Welles, que dizia “I pas­ a única função de músico – já de si extensíssima (pianista, com- sionately hate the idea of being with it; I think an artist has always positor, conferencista, musicógrafo, divulgador…) – toca – qual to be out of step with his time.”. Homem da Renascença – muitos outros “instrumentos”: é actor livre, sim. Que outra coisa pode ser “compor”, que não uma e realizador cinematográfico e televisivo, escritor de prosa fic- fruição total de liberdade? Liberdade, tal como foi miraculosa- cional, inclusive desenhador e caricaturista num dos seus livros mente definida no artigo 2.º da Constituição Liberal de 1822: mais recentes. Uma tal “esquizofrenia” criativa lembra o com- “A liberdade do cidadão consiste em não ser obrigado a fazer o que positor George Antheil, que patenteou nos anos 40 um novo a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe.”. Se há torpedo teleguiado em conjunto com Hedy Lamarr, uma actriz um fascismo particularmente perverso, é o fascismo estético, de Hollywood; ou a casa de Salvador Dalí em Cadaqués, onde os como aquele que uns tantos burgueses tão poderosos quanto convidados nunca sabiam o que iam encontrar; ou ainda o ine- mimados (que vêm gesticulando entre Darmstadt e Paris desde vitável Erik Satie, cujo humor, música, desenhos e invenções a 2.ª metade do século XX) nos tentam impingir, à viva força, delirantes (no melhor sentido da palavra) – desde religiões numa visão grotesca – porque historicista - de fim dialéctico da e ciências “novas” até à sua própria filosofia de vida – tanto estética. Fascismo nunca mais! Ou então, como diz o título da têm em comum com António Victorino d’Almeida. obra de Nono, après une lecture do poeta sevilhano Antonio “excessivo” é pois um conceito que se aplica como uma luva ao Machado e dedicada à memória de Andrei Tarkovsky: no hay compositor. É apenas um dos muitos paradoxos que rodeiam caminos, hay que caminar. ainda a sua figura o facto de, numa sociedade de consumo mas- sivo que tolera excessos de toda a ordem – a maior parte dos 1 Papamóvel é, aqui, um anacronismo totalmente assumido, dada a força anecóica do conceito, quais, prejudicial para nós e para o planeta – os “excessos” cria- e, mesmo antes disso, dada a ressonância irresistível do próprio logismo. tivos de Victorino d’Almeida – completamente inofensivos, desta vez – continuarem a projectar sobre ele uma aura negativa, aura à qual ele se refere por várias vezes nos seus livros e entre- vistas. Com desagrado, evidentemente. esta “aura” não tem origem, é forçoso reconhecê-lo, no vasto Sinfonia para um público que conquistou desde que, rapazinho prodígio, deslum­ brou plateias com o seu talento ao piano, e mais tarde, já jovem compositor só: adulto, com as suas primeiras peças importantes e com os progra­ mas de televisão rodados – por si – em Viena, e que representa- algumas considerações. ram para toda uma geração (para mim, inclusive) o equivalente a um apocalipse, a uma revelação. O fascínio por Viena e pela SÉRGIO AZEVEDO cultura representada por esta cidade foi, e continua a ser, no meu entender, uma das principais chaves para entender o percurso de Victorino d’Almeida, o seu humor peculiar, a sua personali- ao ser-me pedido este artigo para a glosas, quedei-me, a início, dade proteiforme, a sua produção abundante, a sua excentrici- sem saber se aceitaria ou não o encargo. Não porque o objecto dade, e a afabilidade e bonomia que cativam imediatamente as do artigo não merecesse toda a minha atenção, mas porque já pessoas. Não há um pingo de maldade, ou ódio, em António sobre ele havia escrito um extenso artigo na hoje defunta Arte Victorino d’Almeida, substituído por um sentido de humor Musical (1998), para além de mencionar António Victorino corrosivo mas nunca maldoso. d’Almeida em artigos de índole generalista, e entradas em dicio­ estas características, o compositor já as possuía, mercê da nários diversos mais recentes. Não se tratando, e já não o era em educação que recebeu e das suas inclinações genéticas, mas 1998, de um jovem compositor, sobre o qual muito se poderá Viena confirmou que não eram – ao contrário do que se poderia ainda dizer, e cuja obra se encontra ainda, e necessariamente, pensar num país atavicamente fechado e de mentalidade estreita incompleta (e a linguagem por fixar), receei repetir-me ou escre­ – lunatismos de um personagem fora deste planeta. Pelo con- ver banalidades que em nada serviriam o Homem e a Obra. trário, estava bem dentro dele, e no mundo altamente civilizado para aumentar estas dúvidas relativas à pertinência de escre- de Viena, Victorino d’Almeida sempre foi um artista respeitado ver um novo artigo, e parafraseando o conhecido paradoxo, pelo meio cultural e pelo poder político que, aliás, o condecorou ou dúvida existencial: que se dá, ou que se diz de novo, sobre ao mais alto nível. A abundância do compositor, nos países um homem que já tem tudo, ou seja, sobre o qual já tudo se ­germânicos, Áustria e Alemanha, nunca foi motivo de suspeita: escreveu? Bach, Telemann, Haendel, Haydn, Mozart, ou Hindemith, entre o próprio victorino d’almeida tem-se encarregue – feliz- muitos outros, escreveram imenso. E escreveram de forma mente – de libertar memórias, de dar a conhecer as suas ideias desigual, outra crítica que se ouve tanto, e não somente em rela- (artísticas, políticas, filosóficas, etc.), os seus gostos, de comen- ção a Victorino d’Almeida. Porém, se o preço de uma obra‑prima tar cada uma das suas obras. Enfim, de fazer uma coisa que fora for, ou forem, dez obras falhadas, que importa?2 de Portugal é algo que se espera dos criadores e artistas em geral, o humor e excentricidade, tão caracteristicamente ingleses mas que em Portugal ainda passa por vaidade, exibicionismo, como genuinamente austríacos, aqui tomados como algo per- arrogância... António Victorino d’Almeida escreve sobre si pró- turbador, lá, mais não são do que uma liberdade de estar e de ver prio e sobre a sua própria música.1 o mundo à nossa maneira. O poliestilismo, humor corrosivo,

18 | glosas | número 4 | novembro | 2011 e ambiguidade entre música “séria” e música “ligeira”, encon- garoto, um personagem singular, e vive todos os dias esse perso­ tramo-la em Weill, mas também em Hindemith, em Strauss, nagem, que toma o lugar da criança constantemente maravilhada inclusive, e em muitos outros nomes alemães e austríacos, e é pela beleza do mundo. Na sua música não há, pois, lugar para desse mundo que Victorino d’Almeida se reclama, podendo nós o tédio, o pedantismo, a falsa profundidade ou misticismo de a esses nomes adicionar o já referido francês Erik Satie, o britâ- quem disfarça a falta de ideias com ideais de superfície. nico Lord Berners ou o soviético Chostakovitch, hoje em dia tão de entre a produção musical mais recente do compositor na moda, e ao qual não só se perdoam como – ó inclemência, avultam-se dois ciclos que penso importantes, não só por serem ó martírio! – se idolatram e gravam até à exaustão os pecados ciclos que percorrem vários anos, mas porque são, hoje em dia, de juventude, tais como as apreciadíssimas Suites de Jazz e o raridades em Portugal: um ciclo de sete sonatas para piano Concerto para Piano e Trompete, ou as tentações da maturidade, (1961-1984), e um ciclo de quatro sinfonias4 (1960-2009)5. como o musical Moscow, Cheryomushki… As quatro sinfonias numeradas são: tudo isto se perdoa, tudo isto se adora, tudo isto é fado, diría- Sinfonia n.º1, opus 21 - “Benfica” (1960-rev.2005) ca. 29’ mos nós, com Lopes-Graça a revolver-se na campa. Porém, Sinfonia n.º2, opus 114 (1999) ca. 32’ tudo isto e muito mais faz parte da vida musical e artística dos Sinfonia n.º3, opus 142 - “Viana do Castelo” (2007) ca. 27’ países mais avançados do mundo, e só em Portugal constitui Sinfonia n.º4, opus 153 - “Funchal” (2009) ca. 29’ motivo de desconfiança na capacidade intelectual e artística de um homem como António Victorino d’Almeida.3 é elucidativo constatar que o interesse de Victorino d’Almeida dizia eu, no início deste artigo, que tinha dúvidas sobre o que pela sinfonia é relativamente recente, dado que, se exceptuar- escrever, e, como tem vindo a ser cada vez mais evidente, afinal mos a Sinfonia Concertante de 1970, estas quatro obras numera- ainda se pode escrever algo sobre o compositor, passados treze das e ainda a Sinfonia para um Homem Bom foram todas escritas anos desde esse meu velho artigo. entre 1999 e 2009, ou seja, à razão de uma em cada dois anos, o que de novo se poderá dizer sobre António Victorino uma regularidade somente encontrada em Joly Braga Santos. d’Almeida tem que ver, felizmente, com a sua obra musical, Representam a maturidade plena do compositor entre os seus reconhecida pelo próprio como a mais importante de todas 59 e 69 anos, mas também a ligação aos verdes vinte anos, dado as suas actividades, e digo “felizmente” porque é sinal de que que a primeira sinfonia (fora do catálogo até 2005, quando viu essa actividade não cessou. Pelo contrário: aumentou, não obs- a luz do dia graças à encomenda do Benfica6), se baseia em tante o seu já extenso catálogo. Surgiram sinfonias, obras materiais esboçados em 1960. ­de câmara, concertos e outras obras, muitas das quais têm sido quer a duração, quer a forma e linguagem destas quatro gravadas e editadas em partitura. António Victorino d’Almeida obras são notavelmente coerentes, e nelas confluem os elemen- beneficiou, como os restantes de nós, do aparecimento da AvA tos principais da estética de Victorino d’Almeida, bem como as – Musical Editions, que veio substituir a defunta Musicoteca características técnicas do compositor, nomeadamente uma como a principal editora musical portuguesa, e de um certo orquestração sempre eficaz e esfuziante, que muitas vezes boom da cultura acontecido nos últimos quinze anos, sendo que, recorre e destaca, como solistas, instrumentos menos usuais na neste momento, como sabemos, tudo ficou mais negro. orquestra tradicional, como o acordeão, o piano, o xilofone ou nestes anos mais recentes, Victorino d’Almeida não só escreveu o flexatone. As quatro obras dividem-se nos quatro andamentos dezenas de peças, mas também publicou livros e realizou novos da praxe, e neste tradicionalismo da forma (que a escolha deste programas de televisão que seguem, como seria de esperar, a linha género implica) Victorino d’Almeida procura, decerto, um condutora dos anteriores, no que toca à abordagem singela e bem­ equilíbrio entre “contentor” e “conteúdo”. Isto é, as excentrici- ‑humorada da música e da vida. Aos 71 anos, é um homem vigo- dades e exuberâncias da sua linguagem musical procuram no roso e de resposta pronta e acutilante. Criou naturalmente, desde consolo da forma clássica algo que as modere, um pouco como

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 19 nas sinfonias de Heitor Villa-Lobos, com as quais estas obras compositores que se começaram a afastar das vanguardas seriais possuem alguns pontos de contacto. A tendência descritiva, tal dos anos 60: regresso à tonalidade ou a tipos de modalismo como em Villa-Lobos ou Chostakovitch (para citar um nome arcaizante, citações, paródia, interesse pelo passado, retorno ­talvez mais próximo dos gostos imediatos de Victorino d’Almeida) às grandes formas como o concerto ou a sinfonia, à melodia é perceptível nas sinfonias, porventura eco das muitas bandas no sentido tradicional, preocupação com o resultado auditivo da sonoras e músicas de cena que o compositor escreveu. Essa ten- música, consciência do público e do papel social do compositor, dência descritiva cria uma permanente tensão com a forma, que escrita novamente direccionada para os intérpretes e as capaci- se pretende orgânica e puramente musical, no sentido de a con- dades possíveis dos instrumentos clássicos, e ainda – a cereja em tinuidade musical ser gerada por manipulações do material cima do bolo – uma grande latitude de gostos musicais, que origi- melódico, rítmico e harmónico, ao invés de ser governada por naram fusões e influências (as mais inesperadas, incluindo orock , imagens ou ideias extra-musicais. Esta tensão, tal como já em a pop ou mesmo a música disco, músicas ligeiras, que representa- Chostakovitch e até em Mahler (outro compositor com o qual ram uma bofetada na cara da “pureza” advogada por muitos dos Victorino d’Almeida tanto partilha), faz porém parte da lingua- chefes de fila do serialismo e seus derivados, nomeadamente gem e da pessoa do compositor português: é uma escolha deli- na cara de Boulez). berada, sem a qual a sua música não seria o que é. é assim que encontramos na Sinfonia de Câmara de John os grandes andamentos lentos de mahler, ou Chostakovitch, Adams a fusão entre a música hiper-expressionista dos cartoons não são, porém, the cup of tea de Victorino d’Almeida, que em geral norte­americanos dos anos 50 e a música pantonal de Schoenberg, não se demora demasiado neles, nem os prolifera em número. em Thomas Adès a utilização distorcida de um dos temas mais A sua música, como o seu autor, é em geral rápida ou mesmo muito populares do conservador Elgar no seu quarteto de cordas e o rápida, raras vezes descendo abaixo de um Andante ou Andantino. uso sem rebuços da música disco dos anos 70 em Asyla... No Con­ Ecos de Stravinsky, Weill, música popular urbana, circo, cabaret certo para Trompa de Penderecki, a união entre estilo clássico e muitos outros estilos percorrem as sinfonias de forma aluci- e modernidade radical. Ou ainda a mescla entre minimalismo, nante, lembrando a montagem trepidante e por vezes surrea- espectralismo, serialismo e tonalismo que se pode escutar no lista dos primeiros filmes mudos. Há uma componente de Quinteto com Clarinete de Magnus Lindberg, entre muitos outros humor “slapstick” em toda esta parafernália de temas, gestos, exemplos que poderia dar aqui. A música das quatro sinfonias timbres, cuja profusão ameaça, por vezes, fazer desmoronar de António Victorino d’Almeida, à sua maneira pessoal e incon- o cenário, terminando tudo em combate de tartes de creme. fundível, insere-se naturalmente nesta corrente estética, nesta enganar-se-ão, porém, aqueles que suponham, ainda que visão da música como algo que inclui, e não que exclui. por momentos, a panóplia de imagens musicais que descrevo como resultante de uma qualquer fraqueza técnica, ou de uma auto-crítica complacente para com a organicidade da forma. Pelo contrário, e como afirmei já, este estilo tão particular resulta da escolha consciente e perfeitamente assumida de um compositor que sabe o que faz, e faz o que quer, como demonstra, se necessário fosse, a deliciosa Abertura Clássica, cuja orques- 1 Um dos livros mais importantes, no que toca ao conhecimento da sua personalidade, é sem tração, manejo dos temas e forma em geral, são dignos de um dúvida o recente Ao Princípio era Eu, Autobiografia, publicado pelo Clube do Autor (2010), e ilustrado com pequenos desenhos de sua autoria. qualquer mestre de inícios de oitocentos. 2 E como poderia ser de outra forma? Haydn até para caixinhas de música escreveu, tal como seria, aliás, esta a obra orquestral que recomendaria a quem Mozart. A necessidade de ganhar a vida com a música, e a integração do compositor na socie- nunca ouviu nada de António Victorino d’Almeida, o equiva- dade, viam essas tarefas como perfeitamente respeitáveis. Nos EUA ou na Inglaterra de hoje, para só mencionar estes dois, os compositores para o cinema, ou para a TV, são respeitados lente a mostrar a Sinfonia Clássica de Prokofiev ou osGurrelieder como compositores, e muitos grandes nomes das vanguardas de Leste, como Penderecki, de Schoenberg antes de, respectivamente, a 2.ª Sinfonia ou Pierrot Pärt, Schnittke ou Gubaidulina, escreveram abundantemente para cinema, televisão ou rádio, sendo que essas actividades não diminuíram a sua estatura artística. Em Portugal, o snobismo Lunaire. melómano, um dos piores que conheço, leva pessoas e instituições a diminuírem composito- nas notas do compositor ao disco da editora Numérica, que res apenas porque estes não se encaixam num modelo de dignidade supostamente universal, algo que nunca existiu em país algum. Basta lembrar, se mais exemplos fossem precisos, apresenta a Sinfonia n.º1, pode ler-se o seguinte: “São composi­ a música escrita para exercícios de ginástica no clube de senhoras em Brno, por Janacék. ções de várias épocas, mas nas quais eu nunca hesito em compor Ainda recentemente, o compositor português Eurico Carrapatoso foi criticado – entre pare- des – por ter escrito música para um anúncio da GALP… E porque não? à minha maneira, em liberdade, sem preconceitos reaccionários 3 A este respeito, Victorino d’Almeida queixa-se sem rebuços da forma como é tratado pelo de tonalidade ou atonalidade, utilizando os sons, os timbres, as Poder: “Em toda a minha actividade há muitas coisas que faço, como os livros, os concertos comen­ harmonias, os desenhos melódicos, as consonâncias ou as disso­ tados, os programas de televisão, porque preciso de viver. Essa é a realidade. Em Portugal há uma embirração dos governantes em relação à minha pessoa. Dizem que não sou propriamente um indi­ nâncias que melhor servirem as ideias que pretendo expressar. Quer gente para me convidarem para isto ou para aquilo. Vivo do dinheiro que ganho com as múltiplas se goste, quer não - é o meu estilo.”. Este comentário, que é, efec- coisas que faço. Simplesmente nunca tive emprego. E gostava de ter um emprego. Aos 70 anos, que farei no próximo mês de Maio, gostava de ter uma vez na vida esta ideia de saber que poderia contar tivamente, uma verdadeira profissão de fé, coloca António com um salário.”. (in Jornal de Notícias, 27-12-2009, entrevista conduzida por Ana Vitória) ­Victorino d’Almeida na proa do que se denomina “pós-moder- 4 Seis, se adicionarmos duas obras sem numeração: a Sinfonia Concertante, opus 32 (1970) nismo”, algo em que se destaca por ter sido sem sombra de e a Sinfonia para um Homem Bom, opus 146 (2007). dúvidas um dos primeiros (se não mesmo o primeiro) composi- 5 Em Portugal, note-se, porque lá fora não é o caso. Em Inglaterra, EUA, Alemanha, Rússia, Polónia, Finlândia, e em muitos mais países, a escrita de sonatas e sinfonias não terminou tores portugueses a professar pontos de vista coincidentes com definitivamente com as vanguardas dos anos 60, pelo contrário, e o gosto por estes géneros os de muitos compositores conotados com essa – chamemos­ instrumentais e orquestrais parece estar a crescer cada vez mais. Em Portugal, no que toca aos principais compositores, e excepto Victorino d’Almeida, nem a sinfonia nem a sonata pare- ‑lhe assim, por agora – estética. Com efeito, e exceptuando a cem querer voltar aos tempos de Luís de Freitas Branco e Joly Braga Santos. Verdade seja dita, total falta de interesse pelo minimalismo, pelo menos enquanto e principalmente em relação à sinfonia, Portugal nunca cultivou muito o género, sendo os compositores citados a excepção que confirma a regra... compositor, Victorino d’Almeida coloca em funcionamento na 6 Esta encomenda, uma grande obra sinfónica de um compositor clássico para celebrar sua música a quase totalidade daquilo que se pode encontrar nos os cem anos de um clube, deverá ser caso único no mundo.

20 | glosas | número 4 | novembro | 2011 quando alguma iluminada cabeça (também as há, que diabo!) ponderar que num país como Portugal, abastado em cúpulas O reconhecimento várias por implantes zeros, é desperdício de lesa-pátria o des­ conhecimento ou o olvido, então, há-de lembrar-se de um tal que falta maestro de quem os portugueses gostam e a quem não falta a arte de dinamizar as artes. Espero que esse dia chegue. Não sei se ele o espera – nunca conversámos sobre o assunto – mas sou um MÁRIO ZAMBUJAL ­teimoso portuga que deseja o país servido pelos melhores de nós. há umas semanas, convidado pela editora a um comentário acerca do meu já trintão livro Crónica dos Bons Malandros, o Antó- nio Victorino d’Ameida recordou a madrugada em que lhe li, de O inigualável fio a pavio, o texto com que me propunha assaltar as prateleiras das livrarias e – isso soube-o com o decorrer dos anos – as estan- tes de largos milhares de amáveis portugueses. Confidência deste FERNANDO ROCHA tipo só se pratica com quem se nutra não só amizade sólida mas também apreço pela capacidade de bom julgador de prosas. tantos anos depois, juntámo-nos em tournée para apresenta- durante toda a minha adolescência a figura televisiva nacio- ções públicas dos livros que tínhamos acabado de publicar através nal que mais me marcou foi, sem dúvida, António Victorino da nossa comum editora: Clube do Autor. E como ambos consi- d’Almeida. Ele representava a esperança de que nem tudo o que deramos presunçoso louvar obra própria, acertámos que seria era nacional tinha, forçosamente, de ser medíocre, desinteres- eu a pronunciar-me sobre o livro dele – essas delicosas memórias de sante ou até parolo. meia vida que intitulou Ao Princípio Era Eu – e o nosso escritor­ apesar de rendido ao seu virtuosismo pianístico e deslum- ‑maestro a comentar a minha novela de paixões fumegantes, brado com a descoberta da sua obra orquestral A Fábrica dos Dama de Espadas. Assim aconteceu, com programa muito especial Sons, foram os seus programas televisivos sobre música, reali- no casino da Figueira da Foz, onde o serão contou com a pre­ zados na Áustria, que me confirmaram que estava perante uma sença de um piano e do Carlos do Carmo. À música de um fado figura ímpar no universo cultural português. nascido da inspiração do António associou-se a voz de um intér- de facto, para a altura (anos 70), os programas por ele reali- prete de eleição e, a pretexto de dois livros, fez-se uma festa. zados eram inovadores em qualquer parte do mundo. O conceito Não se deixou de conversar sobre escritas, no mesmo lugar e em visual cinematográfico, aliado a uma excelente capacidade sessões seguintes, em que foi um gosto grande ouvir o António comunicativa, diferenciava-os de todo o resto. Eram modernos! no exercício dessa outra sua virtude, que é a de comunicador. Eram cativantes! E eram visualmente elegantes! nem será exacto denominar de “outra” a capacidade de comu- anos mais tarde, após eu ter fundado a editora Numérica (anos 90), nicar, pois é justamente o que ele faz na pluralidade em que se tive oportunidade de o conhecer pessoalmente, iniciando o que divide e completa. Comunicador através da música que cria se veio a tornar uma longa parceria editorial e uma grande ami- e executa quando conversa com as teclas do piano, comunicador zade. Na realidade, nestes perto de vinte anos em que trabalhá- quando escreve histórias juntando a cultura, a invenção, mos juntos, tive o privilégio de editar mais de 20 CDs com a sua ­o humor, quando comanda uma orquestra, quando seduz música, desde sinfonias, concertos, música de câmara, música na apresentação de programas da televisão ou fala com imagens para piano, uma missa e música para filmes. Também co‑produzi de cinema. (tecnicamente) duas séries de treze episódios para televisão. em boa verdade, o António Victorino d’Almeida é, ele mesmo, Assisti a conferências, a sessões de improviso pianístico, li os em pessoa, um concerto musical. O que mais avulta é musica­ seus livros... E partilhámos muitos almoços e jantares. lidade em todas as suas múltiplas formas de se expressar. lentamente, o António foi-se transformando: da figura mediá- Nas partituras como nos parágrafos, nos ritmos, nos sons de tica passou a pessoa real sem que, em nada, isso diminuísse instrumentos e de palavras, ele escreve como um músico e gera a minha enorme admiração. Além de compositor, músico, música como um prosador perfeito. Nunca lhe ouvi um quei- escritor, comunicador, realizador de cinema, descobri outras xume acerca de ingratidões e esquecimentos. facetas não menos interessantes: desenhador, amigo dos ani- permito-me eu, no entanto, queixar-me de um país que mais mais, alguém com um grande sentido de família, generoso, não lhe concede que o aplauso dos seus admiradores. Para além paciente, obstinado, possuidor de uma energia inesgotável e de - e funcionalmente por cima - dessa vasta massa a que chama- uma tremenda capacidade de trabalho. Inspirador! mos população, existem poderes decisórios a que cumpriria a sua música reflecte todas essas características. Não catalo­ o reconhecimento de méritos raros. Não falo de subsídios ou gável, sai fora do politicamente correcto, é anti-academista, condecorações. Manifesto apenas a estranheza de não o terem moderna mas não avant-garde, livre de obsessões pela origina- ainda colocado num cargo em que pudesse servir, mais que a si lidade absoluta. A sua música é escrita como se de um improviso próprio, a cultura portuguesa. Nunca como um tacho: quem por se tratasse, de uma forma fluente e eficaz, suportada por um essa via o escolhesse mostraria absoluto desconhecimento da profundo conhecimento da História da Música. sua personailidade de cidadão exemplar. António Victorino sinto-me um privilegiado por conhecer, trabalhar e conviver d’Almeida é filho, pai, irmão das artes - e seriam sempre as com António Victorino d’Almeida. artes a ganhar caminho pela mão dele.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 21 era considerado um geniozinho do piano. Mas depois acabou por ter que se agarrar à vida. Teve a sua vida cultural em Viena Música durante muitos anos (quando voltou de Viena é que nos come- çámos a dar como amigos), tem feito imensos programas de de Câmara televisão… É um homem polivalente no bom sentido, tudo o que faz é sempre ligado à música e à cultura e tem sido um agente CARLA SEIXAS cultural muitíssimo forte no nosso país, verdade seja dita. Mas é um homem que estuda todos os dias e que se prepara. Quando gravou o CD das Valsas fez um trabalho extraordinário. É uma não me lembro exactamente de como é que o conheci: tenho leitura nova, feita com muita alegria. Tudo é discutível mas, a sensação de que o conheço desde sempre! Sempre fomos ­pessoalmente, gostei imenso, achei muito interessante. muito amigos, embora tenha quase idade para ser meu pai! recentemente, fui convidada para participar no último filme Eu estava a anos-luz do António Victorino d’Almeida, mas dele. Infelizmente não pude participar, estava nos Açores e não fomo-nos conhecendo em concertos... consegui vir antes, mas ele já me andava a falar disso há anos. comecei a ser muito amiga da família. A filha Anne [Victorino Era um sonho que ele tinha, que eu participasse nesse filme. d’Almeida], como tem mais ou menos a mesma idade da minha Eu já sabia quais eram as cenas, tinha o guião e tudo, mas efecti- Leonor, brincava muito com ela quando eram miúdas. Foi uma vamente não consegui estar a tempo. Tive imensa pena, mas relação muito familiar e muito amiga. E musical também, por- outras oportunidades surgirão. que a música está sempre presente, tanto na vida dele como na generalizando, não há dúvida nenhuma de que o António não minha. É impossível estarmos juntos sem que se fale de música, tem sido, eu acho, uma pessoa muito amada neste país. Teve de pianistas, dos acontecimentos musicais... Quando tem CDs de fazer milhares de outras coisas, sem ser o piano e a compo­ novos gosta muito de os pôr a tocar para eu ouvir e isso, para sição, para poder sobreviver, porque as pessoas não vivem do ar mim, é muito importante: vou estando a par da sua música! Algu­ e do idealismo, a vida é assim... Lamento, porque uma pessoa mas coisas eu toquei, outras -a maioria-, não… que, potencialmente, poderia dar muitíssimo mais naquele pessoalmente, gosto imenso do que compõe. É música muito campo acaba por ter de se dispersar um bocado. Eu acho que ele característica, podendo não ser considerada vanguardista. Tem é genial em tudo o que faz. Tudo o que faz, faz bem feito. Portanto, melodia, ritmo… É um homem que pode ser muito criticado nós acabamos por aproveitar o melhor que ele tem, noutro por isso, mas o facto de poder não ser vanguardista (e de os ­sentido. compositores acharem que tem de ser) a mim não me incomoda e agora falando de cenas cómicas, estava a lembrar-me (não absolutamente nada, porque eu acho que é linda. Tem coisas foi propriamente comigo mas eu sei, que a filha Anne contou­ belíssimas e extremamente inspiradas. ‑me) que ele uma vez saíu de casa e a mulher pediu-lhe para ele colaborei num cd com música dele em duas obras: uma para levar o lixo. Ele levou o saco, simplesmente não o deitou no lixo piano e pandeireta, A Canção da Pandeireta, completamente e andou o dia todo a fazer montes de coisas, e quando voltou eléctrica e delirante, e outra para lembrar a obra de Béla Bartók, ­continuava com o saco do lixo e entregou-o outra vez em casa… que é música para percussão, harpa e celesta, na qual toquei Uma coisa absolutamente extraordinária!... celesta. Uma peça lindíssima, mágica, que tem qualquer coisa de Peter Pan... A partir de uma entrevista de Duarte Pereira Martins como pianista, não acompanhei propriamente a sua carreira. Transcrição de Isa Antunes Quando era novo, acabou o curso do Conservatório e na altura

22 | glosas | número 4 | novembro | 2011 há uma pergunta que me ocorre (e sou mal visto), quando me vêm contar que demoraram muitos dias, com muitos takes, para Valsas fazer uma gravação: “Mas tu tocas assim tão mal?”. O António Victorino d’Almeida, neste aspecto, foi ultra-rápido; fez-se de Chopin a gravação em vinte e poucas horas. E não é uma questão de pre- paração… Ele não ia aprender ali em meia hora o que não apren- JOSÉ FORTES deu numa vida inteira… E há mais alguns músicos a fazer coisas deste género. Eu posso citar o exemplo do António Rosado. Estivemos dois dias a fazer a integral dos Estudos de Debussy. conhecemo-nos em gravações, não me recordo exactamente Já que estávamos lá a gravar, aproveitámos e gravámos também como é que foi… Mas foi em finais dos anos 70. A partir daí tudo o concerto. Posso dizer-lhe que o que ficou aprovado para CD correu bem. (não sei se foi editado ou não, não faço a mínima ideia) foi a gra- lembro-me também de uma história interessante, de há vação do concerto. Com a alteração de uma nota, que ele esbor- muitos anos atrás. Levei o Júlio Pereira a assistir a um concerto rachou. Uma nota! Depois ficou tudo como deve ser. Outro caso em que a primeira parte era dirigida por um determinado maes- foi o dos quatro dias para o António Pinho Vargas gravar dois tro. Ao intervalo, o Júlio Pereira diz-me: “É para isto que tu me CDs. E ele gravou quatro CDs em dois dias! Quando eles tocam trazes?...”. Eu disse-lhe para esperar, porque a segunda parte era não há nada a fazer. Ou estes são divinos ou os outros gostam com o Victorino d’Almeida. E parecia outra orquestra! Os músi- de fazer render o peixe. cos eram os mesmos, a sala era a mesma, nós estávamos sentados mas o victorino d’almeida é de facto uma excelente pessoa. nas mesmas cadeiras… Estava tudo igual, menos o maestro. De vez em quando engana-se e liga para mim. Aproveitamos Aí percebemos a importância que tem um verdadeiro maestro. para nos cumprimentar... relativamente ao disco das valsas de chopin completas, o que digo é que é um trabalho que está bem feito, e em tempo A partir de uma entrevista de Duarte Pereira Martins recorde! Gostaria de não me pronunciar sobre a questão artís- Transcrição de Miguel Martins tica. Há quem goste e quem não goste… É claro que tenho as mi- nhas ideias, as minhas apreciações pessoais em função da minha formação e da minha educação. Mas não sou crítico. Sobre a parte técnica, foi um trabalho pacífico, com algumas questões curiosas. Foi feito, digamos, de “enfiada”. Depois de estar ter- minada a gravação, o António Victorino d’Almeida disse-me: “Eu gostava só de gravar aqui umas coisas mais. Tenho a impressão de que não ficaram grande coisa…”. E gravou mais uma hora e tal de música. Bastantes repetições… Pegava num bocadinho, tocava e repetia, tocava e repetia, sem parar a meio… E quando se fez o editing, daquilo que ele gravou já extra-programa (por- tanto, depois de terminadas as gravações), foi usado cerca de 90%. Eu achei extraordinário como é que ele teve memória daquilo que fez. Tive o privilégio de ouvir a diferença e, de facto, tinha razão!

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 23 Victorino d’Almeida aos oito anos - uma curosidade Publicada na revista Os Nossos Filhos de Agosto de 1948, esta entrevista1 a António Victorino d’Almeida insere­se num conjunto de entrevistas que Francine Benoît fez a jovens promessas da música portuguesa2. Os Nossos Filhos era uma revista mensal de puericultura dirigida e editada por Maria Lúcia Namorado. Os artigos publicados diziam sempre respeito à infância, à saúde, educação e vida das crianças – e das suas mães. Benoît (1894-1990) colaborou com a revista por diversas vezes com crónicas que abordavam a relação entre a música e as crianças (nomeadamente a importância do ensino musical desde a tenra idade), assuntos que iam ao encontro dos objectivos e preocupações da revista e dos seus leitores. À data desta entrevista, transcrita em jeito de conversa amena, Victorino d’Almeida contava oito anos e estu- dava piano há dois com Marina Dewander Gabriel (1898-1969), soprano e professora de música. Apesar da idade, as suas duas apresentações em palco, num recital da Sociedade Nacional de Concertos e numa audição organizada pela professora, tinham atraído atenções, levando Benoît a adivinhar-lhe sucesso no futuro.

Fica à (re)descoberta do leitor esta curiosa entrevista. MARIANA CALADO

Este nosso pequenino entrevistado ainda não afrontou o público de Duas esperanças uma sala “pagante”. Mas já por mais de uma vez tocou com todo o sentido da responsabilidade, todo o aparato próprio para perturbar ­que despontam quem não tivesse tendência de concertista. E não somos nós a pri­ meira a ocupar-nos do rapazinho em letra redonda. Acaba de com­ pletar oito anos; estuda a valer há dois anos apenas – há mais de um FRANCINE BENOÎT | TEXTO ano já se fez ouvir numa curiosa agremiação, a Sociedade Nacional de Concertos, obra a bem dizer particular, para miúdos e dirigida por miúdos, com equilibrada colaboração de gente grande. Este ano, numa audição em casa da sua professora Marina Dewander, ­chamou sobre si a atenção de uma maneira decisiva. O António Vitorino promete tornar-se uma personalidade viva, bem fadada para o mundo. As narinas são largas, o rosto muito redondo, o cabelo rijo, a expressão dos grandes olhos tão depressa é confiante como desconfiada, e reparamos especialmente para o feitio das ore­ lhas. Ele e a Marina, como lhe chama amistosamente, entendem-se, encontraram-se em boa hora. Não nos admira a maneira desempo­ eirada como encara a música, aceitando fácilmente uma educação moderna. Entre as várias peças que toca para ouvirmos, destacam-se umas muito engraçadas páginas de Claude Pascal (1.º prémio de Roma de 1945). – Qual será então o seu compositor preferido? Pois o compositor preferido do Antoninho é, contudo, o grande ­Beethoven. Ou, mais precisamente, o que prefere tocar, é o “Für Elise”. No programa da sua última audição figura uma composição dele. Mas não é só uma que tem, são muitas, e não é aonde nos interessa menos conhecê-lo. Uma delas, bastante comprida, traduz bem a sua imaginação, o gosto dos constrastes, dos efeitos impressionantes. Tinha­lhe chamado “A minha sinfonia”, depois crismou-a a ­“Africana”.

24 | glosas | número 4 | novembro | 2011 – Porquê? … Mas enganamo-nos! Lê muito, ao que nos diz, e com preferências – Porque gosto muito de África! Elefantes, leões, caçadas! marcadas. As “Lições do Tonecas”, por exemplo (de J. Oliveira O sonho dourado do Antoninho é ir para o continente negro, que Cosme); concorda que “não é bonito, bonito, mas é engraçadís­ parece conhecer muito bem, apesar de ser só de ouvido. simo!”. Vai, depois, buscar conscienciosamente o “Romance da Regressemos à música. Raposa”, do Aquilino, sem resistir à tentação de nos falar ainda das – E se tivesse de trocar o piano por outra coisa? “Anedoctas do Sinhor Pireira”… Quando lhe perguntamos “Qual o O António não se comove; responde desembaraçadamente: desporto preferido”, não nos fala no “box”. – Desenhava! – O futebol, a bicicleta… De facto, tem uma habilidade rara para manejar o lápis. Ali mesmo, – E montar a cavalo? Ou andar de burro? sob os nossos olhos, em dois minutos, traça uma cena de “boxeurs”. – Oh! Montar a cavalo! (Até o brilho do olhar aumenta de intensi­ – Isto, agora, é pancadaria! dade; cai em si, e remata): O que é, é que nunca andei. E para corresponder ao nosso interesse, vai buscar uma quantidade – Ainda estás muito a tempo, Antoninho. Assim como ir aos leões, de folhas, todas com “boxeurs” também, desenhadas por ele, e niti­ e aos elefantes, na selva africana… damente diferenciados. Resultado de uma sessão de luta – oito – Sim, mas fico no carro, a dar tiros! “matchs”! – a que o levaram há pouco. A respeito de viagens, por enquanto só foi até ao Minho. – Mas há bocado, o que eu queria saber é se não gostava de algum – É verdade, e sobre cinema? instrumento sem ser o piano… E cantar?... Nem se pergunta! Porém, de acordo com o seu espírito inventivo e com – Cantar, não – faz uma careta. Nem lhe diria nada ter de assoprar a sua vivacidade, prefere os bonecos animados e as fitas cómicas. em qualquer desses engenhos esquisitos, uns enroscadinhos e outros – E passatempos predilectos? muito gordos. Violino, isso é que é bonito! – Brincar às paradas! – Mas os outros, não serão todos precisos para fazer uma orquestra? … Ficamos um bocadinhos perplexos. O que será o António de Sabe o que é, aprecia? ­amanhã? O que prevalecerá nele? Ou porventura será ele dos raros O pequeno ouve com atenção. Sim, sabe muito bem o que é uma que conseguem conciliar a exuberante vida muscular com o sonho orquestra, assistiu a bastantes concertos muito bons, inclusivé a um fantasista e sensível? do “Quarteto Hungaro”, o que excede a capacidade normal de uma criança tão nova. E até a “Filarmónica de Berlim” tem um lugar na 1 “Duas esperanças que despontam”, in: Os Nossos Filhos, Agosto 1948, ano VI, n.º 75, pp. 17 sua cabecinha constantemente em laboração. É a sua imaginação e 34. que o leva a não gostar de cópia, e a entusiasmar-se com a redacção. 2 As outras entrevistas de Benoît para Os Nossos Filhos foram feitas a Sérgio Varella Cid (Maio 1948, ano VI, n.º 72, pp. 16 e 17); Vasco Barbosa (Julho 1948, ano VI, n.º 74, pp. 16 Como à mistura gosta doidamente de brincar, achamos natural que e 34); Maria Leonor da Silva Fernandes (acompanhando a de Victorino d’Almeida); e Vera não lhe reste ocasião para ler… Varella Cid (Julho 1949, ano VII, n.º 86, p. 17).

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entrevista

António Victorino d’Almeida Agora com setenta e um anos, dispensa apresentações: figura incontornável no meio musical português – e não só – mantém viva como nunca a sua energia criadora. Uma conversa, pois, sobre os seus últimos projectos como compositor, escritor e realizador (uma possível 5.ª Sinfonia, a autobiografia Ao Princípio Era Eu, uma nova longa-metragem) e, inevitavelmente, sobre as vicissitudes, peripécias, histórias da sua vida.

DUARTE PEREIRA MARTINS | ENTREVISTA SARA GAMEIRO | FOTOGRAFIA ANA ATALAYA, DUARTE PEREIRA MARTINS, FILIPE MARTINS E PHILIPPE MARQUES | TRANSCRIÇÃO

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 27 A escrever música comecei aos oito anos, quando já estava no Conservatório [em 1948], porque o meu pai dizia-me sempre (o meu pai não era músico, era advogado) que o que não está escrito não existe. E é verdade! Sempre improvisei, mas nunca levei a sério a improvisação.

Todos nós sabemos que o Victorino d’Almeida é maestro, composi- mas na medida em que sei que aquilo não existe... Isto apesar de tor, pianista, realizador, e eu queria começar precisamente por haver um CD da Casa da Música do Porto, de um concerto que lá perguntar quem é que nós encontramos neste momento. fiz (foi o [Pedro] Burmester que me convidou) que foi uma Eu sou sempre compositor, o resto vem em segundo lugar. espécie de “Concerto de Colónia” meu... Consistiu em uma hora e três minutos seguidos de improvisação. Pronto, essa eu até Como complemento, distracção? a levo a sério. Escrever está muito ao meu lado. Sempre esteve, graças à for- mação que eu tive no liceu – explico isso no meu livro, na auto- Foi pensada com algum tempo? biografia. Ou fazia o liceu em casa, e o conservatório no conser- Não foi pensada. A improvisação não deve ser pensada. vatório, ou vice-versa. Era uma opção, e os meus pais escolheram a primeira. Foi uma sorte: tive realmente professores extraordi- Nem uma base? nários como o António José Saraiva, o Jorge Borges Macedo… Não, zero. Eu passei os dias anteriores a estudar Beethoven, E desde esse tempo estive ligado à escrita quase tanto como Chopin e Schumann para ter bons dedos. Mas nem toquei à música. Já o cinema é uma coisa que surge marginalmente. nenhuma música minha. E acho que foi o melhor caminho para chegar lá, para estar com os dedos em forma. Eu lembro-me Como é que começou a escrever? Foi por gosto próprio? de que à entrada a rapariga da Casa da Música perguntou-me se O meu professor de português, o Jorge Borges de Macedo (que ia fazer intervalo, e eu respondi: “Olhe, é o que se vai ver!”. (risos) tinha um ouvido de porta, não ligava nada à música) sempre se E acabou por não se fazer intervalo. interessou imenso pelo facto de eu gostar de escrever; comecei as aulas quando estava no primeiro ano. Eu era verdadeiramente Quando escreve música ou literatura é biográfico, descritivo? seu aluno em termos de escrita e ele queria que eu evoluísse Não, biográfico só este último livro é que é. o mais possível. Mais tarde, quando fui para o sexto ano, para a cadeira de Literatura, tive o António José Saraiva, que veio E não tem alguma espécie de diário? corroborar esta prática. De modo que, na verdade, foi com estes Não, nunca escrevi um diário. O livro Ao Princípio Era Eu surgiu mestres que eu aprendi. à medida que me ia lembrando das coisas.

E a escrever música? Mas a parte musical é algo mais descritiva? Estou a lembrar-me do A escrever música comecei aos oito anos, quando já estava nome das peças, principalmente das primeiras peças para piano… no Conservatório [em 1948], porque o meu pai dizia-me sem- Pois, mesmo às primeiras, cedo lhes tirei os nomes... Os prelú- pre (o meu pai não era músico, era advogado) que o que não está dios dantes tinham títulos, mas depois tirei-os. Não sou assim escrito não existe. E é verdade! Sempre improvisei, mas nunca muito para a música descritiva. Não acho que a música possa levei a sério a improvisação. E não levo! (risos) Ou melhor, levo, ou deva descrever situações muito claras.

28 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Como é que funciona então o seu processo criativo? Se não estiver para dois pianos foram escritas com catorze, quinze ou dezasseis a invadir a privacidade criativa… anos, e às vezes levava as peças para a aula e tocávamos imedia- Não! Eu gostava de poder responder, mas é difícil. Eu trabalho tamente a dois pianos! (risos) das tantas às tantas. Agora, tenho de escrever uma encomenda que me foi feita, que será provavelmente a minha quinta sin- Era a melhor maneira de ver se a obra funcionava!... fonia. Passados uns dias, quando tiver condições para isso, Era assim, exactamente! E deu-me realmente uma boa técnica, espero ir para a sala do piano e começo a compor quando disso não há dúvida nenhuma. Posso passar meses sem tocar acordo. piano (tocar mesmo, porque quando estou a compor não se pode dizer que esteja a tocar piano) e depressa recupero. Por exem- As ideias vão surgindo… plo, na Casa da Música, depois daquela improvisação, que foi As ideias às vezes são até elaboradas fora do piano, fora de casa… uma coisa dura (uma hora e três minutos seguidos), fui jantar. Mas trabalho de forma muito artesanal, como um operário. Mas se fosse preciso outra hora e três minutos estaria à vontade! Nenhuma dor muscular, nenhum cansaço especial. E isso devo Nós falámos com a Olga Prats – sei que participou agora na sua ao Campos Coelho. Depois, em Viena, marcou-me muito o Karl terceira longa-metragem – e uma das coisas que me contava Schiske, meu professor de composição. ao telefone é que no filme ficava impressionada com a sua capacidade de resistência, no que concerne à realização. Como é que se deu na altura a ida para Viena? Aquilo é duro, chegámos a fazer dezasseis horas por dia. No Conservatório, em princípio, os alunos tinham direito a concorrer a uma bolsa do chamado Instituto da Alta Cultura. E só parava quando via que os outros não estavam a conseguir De modo que eu tive bolsa e estava sempre a pensar ir para Paris acompanhá-lo. (era a cidade que eu pensava vir a ser aquela onde eu me iria Exactamente! (risos) instalar), mas houve um jantar em casa do maestro Silva Pereira que virou tudo de repente. Ele disse-me: “Não senhor, Paris Mas, voltando agora um bocadinho atrás, quais foram os professores nada, você vai é para Viena que é muito melhor. Viena assim, Viena que o marcaram mais no início? assado…”. Ele era muito impositivo com as suas opiniões! O Jorge Borges de Macedo e o António José Saraiva, sem dúvida Impôs, os meus pais aceitaram, eu também aceitei, e assim fui alguma, em matéria de formação geral. É evidente que o Campos lá parar. Coelho me marcou como professor de piano. Ele era um grande professor de piano. Para já, ele tocava fantasticamente bem. Não foi contrariado, então. Eu nunca vi ninguém a ler à primeira vista como ele. Talvez Não, não fui contrariado, mas fui um pouco curioso. Paris tam- agora o [Artur] Pizarro seja semelhante, que também foi aluno bém não conhecia, nunca tinha ido a Paris, mas pelo menos era dele. Era uma coisa impressionante. As minhas composições uma cidade que eu conhecia melhor, historicamente falando.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 29 Viena era um mundo completamente novo para mim. Foi um segunda divisão. Não se vê cá nem Abbados, nem Mutis, nem período de adaptação complicado, não era uma cidade fácil: era Zubin Mehta... cinzenta, ainda havia as marcas da guerra. Não havia ruínas, eles reconstruíram a cidade mais rapidamente do que em Lisboa Ainda conseguem alguns pianistas de vez em quando, mas em se constrói um prédio! (risos) Mas, realmente, era uma cidade termos de orquestra... sombria. As pessoas eram muito mais fechadas. Dizem-me Sim, pianistas conseguem, agora maestros só vêm se trouxerem ­certas pessoas que, ainda hoje, há problemas de xenofobia. Mas uma orquestra. Ao passo que dantes vinham mesmo dirigir a de qualquer forma acho que se fez uma evolução muito grande. nossa orquestra. E na ópera vi a Maria Callas, vi a Ebe Stignani… As maiores vedetas da ópera dessa altura vinham cá todas a Por- E o que é que encontrou de novo em Viena, em 1960, que cá não tugal. Portanto, é mentira dizer que isto está muito bom. Não havia, mesmo em termos artísticos? está nada muito bom. Em termos musicais, no que diz respeito a actividade musical, concertos, isso não tem sequer comparação. E continua a não Está cada vez pior, digamos assim. ter, Lisboa continua a ser Badajoz. Estão todos orgulhosos por- Está. E sobretudo não se desenvolve. Eu acho que a Gulbenkian que têm a Gulbenkian e o CCB. Sinceramente: quando fui para (que tem dinheiro) paga e produz com qualidade, mas pergunte- Viena havia muito mais música em Lisboa, muito mais! Incom- ­‑se: “Aumentou o número de espectadores de música?”. Não paravelmente mais. Mesmo antes, Lisboa era diferente! O Círculo aumentou! Diminui cada vez que morre alguém! Morrer alguém de Cultura Musical dava dois concertos por semana; a Sociedade é uma cadeira a menos! (risos) Eu nunca vi tanta ignorância de Concertos dava dois concertos por semana; depois havia os musical como hoje, e ignorância arrogante, porque hoje em dia Concertos de Outono, de Outubro até Março ou Abril; o São Car- a música ligeira está aí e é quem manda. los tinha uma temporada de ópera diária durante dois meses; o Coliseu tinha outro mês ou mês e meio de ópera diária e depois Mas há sinais de mudança... ainda outras coisas pequenas... E, além disso, a Orquestra da Sim, as orquestras entraram em degradação total e depois volta- Emissora Nacional (que se foi degradando até deixar de existir) ram a subir. Hoje em dia, a Orquestra do Porto, por exemplo, era uma orquestra em que vinham cá dirigir o Bruno Walter, é uma orquestra… Dizem-me que a de Lisboa [Sinfónica Portu- o Igor Markevitch, os maiores maestros. Já alguém veio cá diri- guesa] está a piorar. Eu não sei… É evidente que, enquanto gir as nossas orquestras? Não vêm. A segunda divisão mundial aquela orquestra continuar a dividir-se por duas, tendo músicos é altíssima, eu não ponho em dúvida que os maestros que vêm só para uma, nunca se poderá augurar nada de bom. A orquestra cá dirigir a Gulbenkian são pessoas de alto nível, mas são de não se pode dividir para fazer a ópera e fazer concertos. Acaba

30 | glosas | número 4 | novembro | 2011 por não fazer nada bem. Pelo menos é o que me dizem, e eu uma locutora, até inteligente, perguntou-me na televisão: “Mas acredito. Bem, mas ainda é uma boa orquestra, o que se deve ao isso não está a acabar?”... Se não querem, não querem. Acabou- facto de haver muitos bons músicos, principalmente em Portu- ­‑se. Mais fica!(risos) gal. Aí é que é a grande diferença: é que dantes havia muitos mais concertos, muito mais público… Havia uma vida musical E quanto à sua eterna ópera [Canto da Ocidental Praia, Op. 39] muito mais intensa! Mas não havia tão bons jovens músicos. que nunca foi feita: quer contar um bocadinho da história ou acha Nem pensar! que já não vale a pena? Foi uma encomenda da RTP que nunca se cumpriu… Até hoje! Não estão a ser aproveitados os bons recursos… A ópera, nessa altura, era muito cara para se fazer em palco. Estão a ser totalmente desaproveitados, o que é algo criminoso! Só era possível fazê-la em playback e gravado – para cinema Antes faziam-se concertos pela província! Toquei eu, tocou o ou televisão. Hoje em dia já não é assim. Com a tecnologia actual, Sérgio Varella Cid, tocou a Maria João Pires, tocou a Olga Prats… se quiser pôr ondas num palco, põe ondas num palco… Até isso era importante! Hoje em dia, em Portugal, quem manda é a música ligeira – aquilo a que chamam de “A Música”. O resto Por que é que não pensa em… é uma coisa que eles pensam que acabou no Mozart ou no Bee- Há uma recusa obstinada em ler a partitura. Fui lá uma ou duas thoven – mas o Beethoven nem deu por isso, porque estava surdo! vezes, mas depois chateei-me! Ainda por cima vou pedir “bata- (risos) Mas isto são opções da televisão, são os jornalistas… tinhas” a um senhor que eu nem sei quem é, nem sei o que fez… Não vou. Se não querem, não querem. Mas há óperas portugue- Acaba por ser uma questão de educação, então… sas! Estão “permanentemente” a fazer A Serrana [de Alfredo Quer dizer, a Lady Gaga é que é música, pronto! A Lady Gaga, Keil]. É uma obra muito respeitável mas... Enfim… A Trilogia os Beatles… Isso é que é música! Acabou. das Barcas de Joly [Braga Santos] nunca mais foi feita, a Mérope igualmente… Como é que se poderá dar a volta a esta situação? Porque acaba por ser um círculo vicioso… Hoje em dia, na música portuguesa, as obras são muitas vezes Durante muitos e muitos anos eu lutei contra isso… Mas agora… estreadas – e nem há grande problema em estreá-las quando são Se as pessoas querem fazer dieta, que façam! Se não querem obras pequenas – mas depois é difícil voltar a apresentá-las com comer, não comam, pronto! Se querem prescindir do conheci- alguma regularidade… mento de uma arte efectivamente importante e se querem estar O erro tem até a ver com as próprias obras estrangeiras. Em dado convencidos de que essa arte acabou, prescindam. Ainda há dias momento eu estava na Alemanha e perguntaram-me: “Ah, o que

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 31 Houve coisas do Lopes-Graça ou do Freitas Branco que pareciam umas “fandangadas” horrorosas e são peças magníficas! E eu senti isso por mim. A Fábrica dos Sons existe em disco mas é irreconhecível em relação ao que está na RDP.

é que estão agora a fazer?” – “Olhe, eu não acompanho muito E a crítica, lembra-se de como foi, em 1975? ­o movimento do São Carlos mas, segundo sei, fizeram agora o É absurdo, havia pessoas que tinham opinião a favor e contra. Wozzeck [de Alban Berg]…” – “Ah, isso é bom! Em quantas Mas aquilo está abaixo de qualquer opinião! Para mim, aquilo ­récitas?” – “Acho que duas.” – “Devem ser muito ricos!...” (risos)... não tinha crítica possível! Isto porque, quando se monta o Wozzeck, é para estar dois, três anos a rodar! Fazer duas vezes ou três o Wozzeck, só gente com Há muitos compositores que hoje em dia são discutidos, mas nós muito dinheiro! percebemos que as obras foram muito mal tocadas e as gravações pecam por isso. Na altura, o Canto na Ocidental Praia não resultou por não ter Ah, claro! Houve coisas do Lopes-Graça ou do Freitas Branco que tido ensaios suficientes... pareciam umas “fandangadas” horrorosas e são peças magní­ Aquilo nunca foi feito sequer. Foram feitos pedaços. ficas! E eu senti isso por mim.A Fábrica dos Sons existe em disco mas é irreconhecível em relação ao que está na RDP. É que aí não Houve duas versões: uma em 1973 e outra em 1975. houve cortes como na ópera, aí foi integral! E é irreconhecível! Houve uma que não foi feita de todo porque a PIDE – a PIDE, Aliás, eu usei no meu filme música do meu septeto A vida de um não a Censura – foi lá e apreendeu os programas. Nós já sabía- não-herói [Op. 34], pelo septeto da Orquestra Filarmónica de mos que aquilo nunca iria à cena. Berlim. Esse disco é fantástico! Sinceramente, aquilo que está num outro disco por aí gravado não se reconhece e, no entanto, Mas porquê? Quiseram cortar logo o mal pela raiz? são as mesmas notas, é a mesma partitura. O Joly [Braga Santos], Sim… (Até foi bom para mim… Pelo menos não ouvi aquele sempre o conheci, mas na verdade também ouvi as coisas dele aborto!) Depois, a seguir ao 25 de Abril, lá me endrominaram muito mal tocadas e eu sei bem como ele se queixava. O Lopes­ no sentido de eu aceitar uma nova tentativa mas, como não havia ‑Graça, idem. Houve uma plêiade de compositores de grande dinheiro nem tempo, aquilo que deveriam ser quinze a vinte qualidade, de enorme qualidade! Pode-se dizer que Portugal, ensaios foram quatro ou cinco… E era tudo “descosido”. O coro no século XX, esteve muito bem representado, a começar pelo até cantava por um material que não era o mesmo do da orques- caso daquele homem genial, que morreu com vinte e um anos: tra, e era tudo aos gritos no palco! Nada tem que ver isto com o [António] Fragoso… cantores como a Elsa Saque e o Álvaro Malta, que estudaram os seus papéis. Mas o que é que interessa se a orquestra estava Com que outros compositores portugueses contactou? Sei que ­a tocar outra coisa? (risos) O Silva Pereira tinha realmente uma também teve aulas com Croner de Vasconcellos. capacidade inacreditável para fazer “surf sinfónico”, andava ali O Croner de Vasconcellos… Não conheço a obra dele. Acho que a apanhar as melhores ondas e nunca caía! (risos) é pouca. Mas o concerto [para piano] do Armando José Fernandes é muito interessante!

32 | glosas | número 4 | novembro | 2011 E Ruy Coelho? que já estava experimentado. Ainda por cima era de um surrea- É um caso à parte. Ele organizava concertos em que, se faltava lismo que não tinha razão de ser. Por outro lado, a música escrita um músico, dizia: “Melhor, assim paga-se menos!”, e coisas pare- do Jorge Peixinho é uma coisa que não tem nada que ver com cidas… E o Ruy Coelho é um homem que, segundo o que conheço isto… Nem com os concertos do famoso Grupo de Música dele, agia um pouco “em cima do joelho”. Porque talento ele ­Contemporânea em que era cada um para seu lado… (risos) tinha, indiscutivelmente! E talvez até tivesse conhecimentos… Aquilo não era nada…! (risos) E técnica!… É um caso estranhíssimo. Sinceramente, gostava de, um dia, poder ouvir a música do Ruy Coelho bem tocada Era mais um divertimento? e revista! Pois… Ele precisava de ganhar a vida, não é?... Viveu sempre com dificuldades… E acho que fez muito bem! E pagavam-lhe Era isso que eu lhe ia perguntar: não acha que (era o que estávamos para isso! (risos) E se achavam que aquilo é que era bom… a dizer há pouco) é perverso julgar o compositor pela obra que não (risos) Agora a música escrita dele é uma música de grande é bem tocada? qualidade. Conheço menos a música da Constança, mas ela fez Exactamente! Aquilo era uma “chafurdação” tão grande! Agora, música muito cuidada. Não sei se ela compôs pouco ou se há a música de Ruy Coelho deveria ser, em primeiro lugar, revista, muita música que também não se conhece. Aliás, é como um respeitando o autor, porque eu penso que aquilo é muito melhor compositor que tenho muita pena que não tenha continuado do que o que ele próprio fez! Eu conheci-o pessoalmente! Ele a compor: o Álvaro Cassuto. Compunha excelentemente, não ligava nada! Ele queria era fazer e acabar… mas foi para a regência e abandonou, por assim dizer, a com- posição. Talvez por uma questão de subsistência?… Provavelmente, não sei. Eu era miúdo quando o conheci, Tem feito coisas muito interessantes como maestro… ­portanto não faço ideia… Era um tipo com muita piada a falar, Claro! E é um excelente chefe de orquestra! E em relação às até violento! Acho que o Ruy Coelho é um ponto de interrogação. minhas obras é um dos melhores a reger! Ele não é exactamente aquilo que o Lopes-Graça pensava que era! Como é que se sente um compositor e maestro a ver a sua música regida por outro maestro? E agora passando um bocadinho para a frente, que nos diz de Há um certo pânico quando o outro maestro não respeita os Constança Capdeville, Jorge Peixinho?… tempos… O tempo e o ritmo! As notas erradas ainda vá que não Sim, esses entraram num outro mundo… Quer dizer, estou vá – não quero parecer o Ruy Coelho – mas a verdade é que as a referir-me à música escrita pelo Jorge Peixinho… Quanto notas erradas ainda o público nota que estão erradas, ao passo àqueles grupos… Até eu entrei, às vezes, naqueles disparates!... que o tempo, o público pensa que é assim que o compositor Arranhar as cordas e beber água pelo bidé. Era um experimental escreveu.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 33 Aprendi a realizar à medida que ia fazendo programas de televisão em Viena, porque se não os realizasse eu, contratar um realizador austríaco custava mais que todo o orçamento! (…) E montar um filme é a coisa mais parecida que existe com compor!

Escreve sempre o tempo que quer ou uma aproximação? flagrantes porque senão eles notavam! Só eu é que seique Eu escrevo sempre o metrónomo mas, mesmo assim, muitos ­aquelas notas não são as que eu escrevi! Não são coisas gritantes, não o respeitam! E é sempre para o mais lento. Se pensarem que não é? No filme estão as notas erradas… uma peça minha está demasiado rápida, acreditem que ainda está demasiado lenta! (risos) Certos efeitos tocados de maneira Foi feito um filme com essa obra? diferente são um horror! E nesse aspecto o Cassuto sempre res- Pois, foi o filme que eu gravei agora…Chama-seO Tempo e as Bruxas. peitou os meus tempos. E quando é que vai sair? A AVA Musical Editions tem editado as suas obras… Mas há dez Bom, agora [Setembro] está em fase de mistura. A montagem já anos atrás não estavam editadas. Como é que evoluiu esta está… Penso que daqui a uns dez dias estará pronto. Depois vou situação? Já se tocam mais as suas peças? entrar noutro capítulo que é cuidar de um lançamento – que foi Para já, eu quase que fui “apanhado na curva” com o surgimento uma coisa que nunca cuidei em relação ao A Culpa, ou ao Mesas da editora, portanto quero fazer o trabalho de revisão para edi- de Mármore. ção. A maioria das peças era tocada e revista na orquestra e os músicos nem sequer emendavam! Estão a tocar sustenido, mas Como surgiu o Victorino d’Almeida realizador, e como é que se não escrevem ali o sustenido. Há um longo trabalho que eu estou integra a música nesse trabalho? a fazer – e tenho muito que fazer – para que as peças possam ser Aprendi a realizar à medida que ia fazendo programas de tele­ editadas. Aliás, as grandes editoras até têm um revisor que visão em Viena, porque se não os realizasse eu, contratar um é uma pessoa que revê melhor que o compositor! Eu dou sempre realizador austríaco custava mais que todo o orçamento! Então, o exemplo de um livro: quando um escritor entrega um livro, houve uma produtora extremamente simpática que disse: “Vá, é óbvio que está convencido que entrega um trabalho iniciado. começamos a realizar, que eu vou-lhe ensinando!”. Isto há qua- Depois vêm as primeiras provas e tem seiscentos erros! Depois renta anos! Comecei a aprender, a aprender… É evidente que aquilo é entregue a um revisor, a um especialista, e ainda tem fazer programas para a televisão não é o mesmo que uma longa- noventa erros! Bem, com a música é mais ou menos isso. ‑metragem, mas aprende-se à mesma! E montar um filme é a coisa mais parecida que existe com compor! Nota que há mais pessoas a tocar as suas obras? Acho que sim! Eu vejo muita gente aí a tocar coisas… Há gente O material tem de estar bem composto... a tocar muito bem! As gravações dos músicos da Orquestra Sim, a montagem só é boa se tudo o que for para a mesa estiver de Berlim são excelentes, apesar de duas notas erradas! Mas eu certo. Se não estiver certo, a montagem é um horror, um martírio! só reparei nelas agora na gravação! Quer dizer, não são coisas Fiquei muito contente quando verifiquei que, para a montagem

34 | glosas | número 4 | novembro | 2011 d’A Culpa, não houve um só problema! Estava tudo certo. Montou­se bardamerda!”. Eu não posso fazer isto na televisão. Eu estou em dezasseis dias! Uma vez faltou uma personagem num sítio mas em casa deles! (risos) A própria gesticulação não pode ser resolveu-se facilmente com outra imagem! exagerada. Por exemplo, a Natália Correia, que era minha quase irmã, era uma mulher espantosa a falar. Na televisão E a relação entre cinema e música? ela não era tão boa porque abria os braços de tal forma que Eu acho que são duas artes, essencialmente, do ritmo. O ritmo saía dum lado e doutro do ecrã! Tinha uma gesticulação que de uma montagem e o ritmo de uma peça de música são exacta- não dá em televisão. A pessoa em televisão tem que ser mais mente a mesma coisa. Entregar, por exemplo, um material contida, tem que caber naquela caixa. Há aquela eficácia que cinematográfico a um mau montador (não sendo o próprio rea- o [José Hermano] Saraiva tinha, mas ele sabia exactamente lizador a realizar ou não sabendo ele montar), fá-lo começar os gestos que podia fazer. Temos que saber que há diversos a molengar, a molengar, e as cenas começam a prolongar-se… tipos de casas, mas temos de arranjar um denominador Puccini é que dizia: “O melhor amigo do compositor é a tesoura!”, comum para todas. e é verdade: nunca me arrependi de ter cortado coisas! E qual é a fórmula? Tanto na música como no cinema… A fórmula!... (risos) Uma coisa que eu acho que não se pode fazer Estou sempre a cortar e nunca se perde nada! (risos) Quando se em televisão é dizer “Como todos sabem, o Beethoven…”... Ora, corta, sabe-se o que se está a cortar! Eu acho que não se deve tirar eles não sabem. (risos) A pessoa sente-se logo ofendida e inco- partido do efeito. “É um bom efeito, é porreiro, é divertido, vamos manter modada se lhe disserem um nome de que nunca ouviu falar. mais um bocadinho…”: errado! Eu, n’A Culpa, cortei muito! Durante Quando eu digo o Beethoven, até pode ser que já tenha ouvido um ano, estive sempre a cortar! (risos) O lado mais perigoso, para falar, mas se eu disser “Hugo Wolf, como todos sabem, foi um mim, é o repetir, o tirar partido do êxito. Depois a gente vê isso grande compositor de lieder...” já posso estar a ofender as pes- no teatro e cinema… A pior coisa que existe é quando o público soas! (risos) Também não se deve exagerar demasiado. Há uma começa a rir menos. É muito mau, isso estraga tudo! A gargalhada certa forma de explicar as coisas. tem que ir sempre a subir. E quem diz a gargalhada diz qualquer tipo de emoção! O Adorno é que falava muito a propósito da Lá está o denominador comum… música do Mahler: o ponto alto da obra não é necessariamente É preciso um denominador comum que abranja o mais possível. o final ou a parte mais forte. A teoria do Adorno é brilhante, todas Por isso não me importo de escrever os guiões. Neste último que as pessoas deviam aprender com ela. E não explorar a emoção saiu é que não escrevi, porque foi o único que não foi realizado das pessoas também é algo que eu considero necessário. Porque, por mim. Passava ao Domingo na RTP2. O realizador é que me no fundo, há uma certa manipulação da sensibilidade do público... fazia as perguntas e eu respondia-lhe. Era uma entrevista. ­Correu bem, mas as entrevistas são perigosas porque muitas Acha que é esse o papel do artista, também? vezes os entrevistadores são muito maus… O artista criador ou o intérprete deve ter um grande respeito pelo público, ou seja, não estar a tirar partido dele. Tem de haver Maus? um grande respeito pelas emoções que se estão a provocar nas Mal preparados… Há uns que são bons. Por exemplo, o Carlos pessoas. Isto é igual na música, no cinema ou na literatura. Cruz era fantástico! A entrevista do Carlos Cruz ao Álvaro Cunhal é uma coisa… É uma obra de arte! É a música a mais importante nos seus filmes? Ou a história? Neste é importante. A música deu-lhe o carácter. Pelo menos E como é que se define uma obra de arte? o montador, que foi também o director de fotografia, dizia: “Ah, (pausa) É complicado!… (risos) É uma obra que alia os valores agora é que eu já percebi tudo, o que você quer, o ritmo que vamos dar que pretende salientar e transmitir a um sentido de eficácia a esta coisa, só de ouvir a música que escolheu!”. nessa transmissão. Uma pessoa pode ter uma belíssima ideia e não a saber transmitir. Não tem a arte de a transmitir. A obra Mas, nas obras musicais, baseia-se também numa história? de arte é uma forma de comunicação. Um pintor comunica, um Não é uma história no sentido de dizer que “às nove da manhã, escritor comunica, um músico comunica, até o entrevistador fulano saiu de casa, desceu as escadas”... Não, não é isso. Mas comunica! Os bons entrevistadores daqui eram o Carlos Cruz, claro que se desenrola uma história que não é uma história, a Maria Elisa, a Conceição Lino (mas musicalmente…). ­literariamente falando… E esse guião – de uma sonata, de uma ­Há outros que são uma coisa horrível… sinfonia, de uma fuga, de uma obra qualquer – é um guião musi- cal, mas é um guião também. A pessoa nem sabe como há-de responder… É que nem se responde! Ficamos parados… A pior que já me Contaram-me que escreve todos os guiões quando faz televisão. apareceu foi a Teresa Guilherme. É inacreditável! Uma vez fez­ A quem dirigia os seus programas? ‑me uma entrevista em que me pergunta “Então quais são os seus Tentava dirigir-me a um público o mais abrangente possível. planos para este Verão?”. E depois foi-se embora, eu fiquei a res- Mas na televisão há também algumas regras que eu impus a mim ponder para uma cadeira. É claro que ninguém a viu sair na tele- mesmo. Se eu faço um filme ou uma peça de teatro, a pessoa paga visão, só me viram a mim sem saber para onde havia de olhar! o bilhete porque lhe apetece. Vai lá e se não gosta vai-se embora. Esta excedeu tudo, mas há os outros que começam a olhar para Na televisão eu estou a entrar em casa de uma pessoa. o lado. E a gente a responder-lhes, o que é uma coisa horrível! (risos) Depois há os outros que mesmo que estejam a ouvir, A pessoa tem de ligar a televisão… a gente sabe que eles não estão a perceber nada, portanto vai dar Mas, ainda assim, estou a entrar em casa dela. Eu posso ao mesmo! (risos) Há um vazio no olhar que é uma coisa um começar uma peça de teatro ou um filme assim: “Vão todos bocado assustadora!

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 35 Realmente, eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência.

E como é o Victorino d’Almeida escritor? Sente que a sua obra se pode dividir em fases diferentes? O mesmo que o compositor! Tenho também a tesoura – sempre Eu acho que tenho seguido sempre a mesma linha. a tesoura. Eu acho muito bem, quando se está a compor ou a escrever, que se faça mais – estamos à vontade, não estamos ali E no que concerne às influências da música não erudita? com ideias pré-concebidas… Atira-se a massa para cima da É evidente que há algumas coisas que se aprendem e há coisas na mesa. Mas depois vai-se cortando, aparando, até saber que é a música mais popular que são óptimas – as quais eu não me conta exacta para não estarmos a manipular o público. Estamos importo nada de aproveitar. Por vezes entram elementos que a emocioná-lo, sim senhor, mas não a manipulá-lo! parece que nada têm a ver com o resto. E até pode ser que não tenham nada a ver, mas todos os dias nos deparamos com situa- Ainda em relação a compositores portugueses, aquelas lições que ções que nada têm a ver umas com as outras. Há certos flashes!... recebeu do Joly Braga Santos terão sido importantes… E eu gosto de introduzir esses flashes, de uma forma coerente Sim, foram muito marcantes para mim. Para além de vir a ser, e de uma forma que não seja “a martelo”. Eu gosto, por exemplo, mais tarde, um grande amigo, foi um grande professor, um de escrever uma coisa totalmente atonal e de repente estar numa grande orquestrador. Eu aprendi muito em Viena, mas já ia com coisa totalmente tonal e ninguém ter reparado! (risos) E quando uma boa bagagem de orquestração. Claro que se aprende sempre, reparam já estou outra vez noutra coisa! É quase poder seguir ainda hoje se aprende! Mas em termos de técnicas de compo­ por uma linha dentro do mesmo estilo, e não estar sempre a tentar sição em si, a verdade é que também aprendi muito com ele. perceber se é tonal ou atonal… É preciso que seja o meu estilo.

Ao longo da sua vida, quais foram as correntes que foi seguindo? O mundo do musical americano também o fascina? Como é que se define? A Sinfonia para um Homem Bom [Op.146] foi dedicada a um Cá em Portugal, na altura, antes de ir para Viena, os composi­ amigo meu que era um homem do jazz, mas mais ainda do musi- tores que se ouviam mais eram Prokofiev, Chostakovich…, porque cal americano: Luís Pio. Era amigo do Sviatoslav Richter, era não pagavam direitos! (Não havia relações com a União Sovié- amigo do Piazzola, e não era músico! Era amigo da Olga Prats, da tica…) E Bartók também se conseguia ouvir com frequência. Maria João Pires, era amigo de todos nós e todos nós nos deixá- Schoenberg não se ouvia – encontrei o dodecafonismo ao ir para vamos fascinar por ele. Ele morreu e eu escrevi essa sinfonia fora, quando o Schoenberg já o tinha largado! Não vou dizer que que tem permanentemente alusões ao musical. Não tenho nada não conhecesse um disco ou outro, mas conhecer mesmo, não. contra! E esforço-me para manter uma linha de conduta, pelo Eram conhecidos também os franceses: Darius Milhaud, Pou- menos formalmente. Não é uma “salgalhada” de ideias! Há lenc… (Debussy e Ravel eram já de outro tempo...) Em relação substância. Há alusões quase que psicológicas. Mas a gravação ao Prokofiev e Chostakovich, foram grandes mestres! Conheci é muito fraquinha, era uma orquestra de miúdos de Vila da depois a 2.ª Escola de Viena, o Alban Berg… E também Feira. Não se pode querer mais. Até é fantástico o que conse­ ­Messiaen… guiram fazer, é muito bom! O Concerto para Flauta foi também gravado por eles, com um flautista óptimo, o Paulo Barros.

36 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Pode definir-se o seu estilo como ecléctico? nova música é a dos Xutos e Pontapés… Ou a dos Beatles, ou Podem ser vários estilos, desde que a obra tenha o meu estilo, o que quiserem. E, aí, há uma grave responsabilidade dessas que tem seguido sempre a mesma linha. E eu fico realmente correntes fanáticas de vanguarda. satisfeito quando o consigo. Mas ainda há algumas coisas que eu quero descobrir! (risos) Ou seja, os músicos acabam por ser responsáveis pelos problemas de que se queixam. E o que lhe falta? Ninguém os quer ouvir, de facto. Imagine um médico…Uma Se eu soubesse, dizia-lhe! (risos) Sei que há qualquer coisa que pessoa que chega a casa, cansada do trabalho, que se deita no eu ainda quero descobrir, que ainda me falta descobrir. sofá a ouvir uma peça de Stockhausen. Lamento muito, não acredito que essa pessoa não esteja mentalmente afectada! Tem sempre esse sentido de busca constante? (risos) Aquilo não é bem feito? Claro que é bem feito, mas está Claro, e depois há alguns períodos de repulsa pelo que se fez. completamente esgotado e, como aquilo não diz nada às pes- Mas eu acho que isso é saudável. A pessoa faz, apaixona-se pelo soas, estas vão à procura daquilo que é a música. Realmente, que está a fazer e depois diz “Isto é tudo uma grande merda!”... eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! (risos) E não um conceito de experiência.

Há muita gente a quem isso acontece antes de fazer a obra… E como a define? Qual o conceito de música? Bom, mas isso é terrível, é quase uma patologia… E quando se Em Viena, o professor Schiske dizia o que Schoenberg já lhe escreve uma obra de música deve-se depois ouvi-la (se possí- tinha dito: “substância, não ornamento!”. Ora, há-de reparar que vel). A escrever também acontece, antes de a obra estrear, eu ir essa música de vanguarda toda são só ornamentos! São giros, lá cortar umas coisas… Mas no cinema, ainda agora com este são óptimos, os efeitos! Mas deviam ser aplicados à música, filme, disse: Deixa“ -me ver esta parte que está montada, ver para à substância! Devia-se fazer música com base naquilo que eles não gostar, para criticar!”... É a experiência que se vai ganhando. realmente descobriram! E até se descobriram coisas interes- É preciso ver, também, que eu fiz desde muito cedo música para santes, incluindo o minimalismo repetitivo. Até esse – o Steve cinema e teatro. Para mim foi benéfico, porque me deu uma Reich – descobriu coisas interessantes! Mas para serem aplica- certa elasticidade. O meu espírito é completamente diferente dos em música! Eles não aplicaram música porque não eram tão quando escrevo uma sonata para piano, como a 2.ª, muito mar- bons músicos como isso… Eram mais investigadores. Não vou cada por Chostakovitch, a 3.ª ou a 6.ª, ou quando faço música dizer que não foi muito importante esse movimento. O Xenakis, para cinema. E isso ajudou-me a estar a fazer uma coisa hoje e, o Nono, também… Stockhausen também entra… Só não posso amanhã, fazer outra completamente diferente. incluir o Messiaen nesse campo. Tal como o Ligeti, estão noutro patamar. Esses continuaram na música. Bem, o Boulez também, Essas obras complementam-se ou seria impossível conter todo o as sonatas estão na música… Todavia, compôs muito poucas seu mundo num só estilo? coisas – e é muito hipócrita… Isso seria demasiado. Posso ter várias atmosferas diferentes e várias estéticas diferentes… Agora meter todos os meus mundos num só Boulez que, como Victorino d’Almeida, é também compositor mundo acaba por ser muito difícil. Ficaria uma argamassa… e maestro… Ele é um grande maestro! Mas não se consegue definir numa corrente porque tem muitas correntes… Mas acaba por não compor tanto, comparado consigo… Não me consigo definir porque não tenho nenhuma! Bom, a quantidade também conta alguma coisa mas não é um cri- tério… Simplesmente o Boulez, se reparar, diz que aqueles neti- Nunca se sentiu seduzido pelo dodecafonismo? nhos todos que ele tem são todos geniais, mas não os grava nem Aprendi algumas coisas mas nunca fui grande entusiasta, até por- os rege! (risos) Ele grava Stravinsky, ele grava Ravel, ele grava-se que sabia perfeitamente que o Schoenberg dizia: “Larga isso, o que a ele próprio, ele grava Messiaen, ele grava Webern, mas não grava havia a fazer está feito!”. E era, no fundo, a posição do Webern. os netinhos! (risos) Todos os países do mundo têm três ou quatro Depois do Webern, foi apenas repetir. É evidente que houve uma compositores que são discípulos do Boulez… evolução com o Boulez (muito mais drástico), mas acabou por ser de tal forma rebuscada que, quando digo que as pessoas em Por- Então, hoje em dia, que outros compositores considera como tugal só ouvem música ligeira, há também que pensar nas suas exemplares? razões… É que já não há paciência para ouvir a chamada “música Houve uma boa surpresa quando apareceram os russos de que de vanguarda”! Não há paciência, não há saúde! E não é vanguarda ninguém tinha ouvido falar: o Schnittke e a Gubaidulina. Mas já nenhuma: tem setenta, oitenta anos! antes tinha havido um movimento de esperança com o Pendere- cki e o Lutoslawsky. Agora o Penderecki acho que fez um recuo Estagnou no tempo? muito grande… O que eu defendo é que não se deve voltar para Tem sempre as mesmas coisas, tem sempre os mesmos efeitos, trás, deve-se ir em frente!... sempre os mesmos “rodriguinhos”... Não há paciência para aturar aquelas coisas das “semanas da música contemporânea” E a nova geração? na Gulbenkian. E cada vez há menos, porque as pessoas não vão! Em Portugal há gente muito boa! Há gente a compor e a entrar Quando, na nossa época, se pensa que não há compositores novamente nos carris da música e não nos dos efeitos, com coi- vivos, tem-se realmente a ideia de que todos os compositores sas muito interessantes. Mas não queremos coisas interessan- bons eram de “cabeleira empoada” ou, quando muito, o Chopin, tes, queremos coisas com substância! O [Nuno] Côrte-Real, ou o Liszt… E pensa-se que a nova música é o Quim Barreiros, a o [Eurico] Carrapatoso… O Alexandre Delgado… Há toda uma

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 37 série. Não quero sequer estar aqui a citar… Pode-se pensar que São aquelas que está agora a terminar, mas não são encomendas… estou a preferir uns aos outros. São compositores que estão a ter Não! São obras que eu vou fazendo… Mas às vezes as encomen- um trabalho muito louvável… Eu que o diga: sei o que era aguen- das também não são tocadas! tar sozinho o esforço de manter a música de substância em vez da do ornamento. E agora já são muitos mais os que o estão É o exemplo do Canto da Ocidental Praia… Esta Missa surge na ­a fazer. E penso que, se os há em Portugal, há-de passar-se sequência da Missa de São Judas Tadeu [Op. 84]? o mesmo pelo mundo inteiro, há-de haver um movimento da Esta é a de São Francisco de Assis. Efectivamente, o Cardeal nova geração… perguntou-me na altura o porquê de São Judas Tadeu. Eu res- pondi-lhe, na brincadeira, que era o Santo das Causas Perdidas Nunca pensou ser professor de Composição? e, para mim, a música em Portugal é uma causa perdida! (risos) Não, nunca me passou pela cabeça ser professor de Composi- Por isso escrevi na altura a Missa para um soprano e quatro ção. Quer dizer, eu já fui professor de Composição. Tive já uma instrumentistas, o que não é nada tradicional. No dia em que vez um aluno! (risos) Actualmente não compõe nada… Gosto houvesse uma orquestra e cantores e um coro aptos, eu então muito de ensinar História da Música, mas não Composição. prometi que comporia uma Missa “grande”. E escrevi, porque agora já há condições! Já há condições, a obra é que ainda não foi Mas nunca foi convidado? feita... E isso já me está a irritar um bocadinho… Não. Mas eu acho que devia ter sido, para ser professor de Orquestração. Isso eu acho que devia. O que lhe parece o actual panorama cultural português, com a passagem do Ministério da Cultura a Secretaria de Estado? Talvez se deva ao facto de não estar inserido em nenhuma das O que prevê, partindo da sua experiência como adido cultural? correntes? Teoricamente, ouvi dizer que o Francisco José Viegas vai unir Isso é de certeza. Quem não tem partido político está lixado! numa só estrutura uma série de instituições – o São Carlos, os (risos) Político ou qualquer partido. Quer dizer, não está com- Teatros Nacionais… Em termos de economia eu até aceito. pletamente lixado, mas tem muito menos onde se agarrar. Agora isto vem aumentar a responsabilidade do director único Seguir um caminho próprio, não se apoiar nem nuns nem nou- que o Secretário de Estado vai escolher. Se ele vai emagrecer ou tros, é uma opção de vida um bocadinho arriscada, mas é onde reduzir claramente o número de pessoas que vão dirigir o São me sinto melhor. Carlos e o resto, realmente esses poucos vão ter uma maior res- ponsabilidade. Vão continuar a chamar pessoas que ninguém Na busca do seu estilo mais pessoal, acaba eventualmente por sabe quem são? É que nós não temos sequer nada contra – por- conseguir os seus seguidores… Vai acontecendo? que nunca ouvimos falar deles! Claro!... Sabe que há uma grande diferença entre aluno e discí- pulo. O discípulo é aquele que segue, é mais difícil. Por isso Será que isso é um pretexto para não protestar logo à partida? é que não me cativa muito o ensino da Composição. Agora Deve ser, não sei… O [Paolo] Pinamonti ainda vinha do Teatro Orquestração, sim! A Orquestração é uma coisa concreta, quase La Fenice [em Veneza] e até parece que fez um bom trabalho, fez matemática. É onde me considero mais à vontade, é a orques- o trabalho que pôde fazer… Mas não é isso que está em causa! trar. De facto, sei orquestrar e é estúpido não ser professor. Agora esteve lá um alemão que ainda se sabe menos quem é! Eu nem sei como é que ele se chama! É uma coisa muito grave neste país… E acha que se vêem bons orquestradores hoje em dia? Ontem viajei do Porto para Lisboa de carro com a Maria Barroso. Não havendo orquestras, as pessoas acabam por não compor. Reparámos que havia vários primeiros-ministros de cujos nomes Mas o meu mundo sempre foi a orquestra, é onde me sinto bem. não nos lembrávamos – e no caso dela é mais perigoso, que Não há nada que goste mais na vida do que estar com uma é mulher de um ex-Presidente! O país foi entregue a pessoas orquestra, ensaiar com uma orquestra, ouvir uma orquestra, sobre quem até as pessoas que mais tinham a obrigação de saber escrever para orquestra e a própria atmosfera de uma orquestra. não sabem nada, não se lembram! Em meu entender, o São Carlos Eu devia ser director de uma orquestra. Não a reger! Devia ser – com o dinheiro que existe em Portugal, com a própria tradição director artístico, e não tenho dúvidas nenhumas a dizê-lo. que existe, com as condições que tem e até a estrutura – não Eu seria seguramente um grande director porque sei exacta- pode atingir um nível superior ao de um Vitória de Setúbal no mente o que é uma orquestra e não vejo por aí mais ninguém que futebol. Mas pronto: o Setúbal joga na Primeira Divisão! É digno, seja melhor nisso. É como se viu agora neste filme: estavam é o que se pode arranjar… Não vou dizer que seja o São Joanense vinte e cinco pessoas a trabalhar comigo e, de facto, houve uma ou o Alverca, não é nada disso! É perfeitamente razoável que boa liderança. É o que se pretende: tirar o maior partido possí- seja um Teatro da Primeira Divisão! Obviamente, não é a Ópera vel daquelas pessoas e saber que “vamos parar agora porque eles de Viena ou a de Berlim ou Nova Iorque ou Paris… já não aguentam mais”. Isto não tem nada a ver com o vulgarís- simo que sou como compositor. Se fosse a Ópera de Portugal já não era mau!... Ora bem! Uma vez que não se pode nunca transpor essa fasquia, Era precisamente o que a Olga Prats dizia da rodagem deste pelo menos neste momento, não se pode também ficar ali no último filme. Pergunto-lhe agora sobre as vinte e cinco obras meio da tabela contente por não descer de divisão… É preciso sinfónicas que diz nunca terem sido tocadas... jogar abertamente numa Ópera Portuguesa! Com cantores por- Agora há mais! (risos) Agora estão a juntar-se outras coisas. Está tugueses, o mais possível… a juntar-se o Concerto para Violino, está a juntar-se uma Missa (para grande orquestra e coro), está a juntar-se uma Rapsódia Isso incluiria também um director português? para Piano… Obviamente! A que propósito é que o São Joanense vai buscar um treinador estrangeiro?... Às vezes estes estrangeiros vão

38 | glosas | número 4 | novembro | 2011 buscar uma vedeta!... Isso é o mesmo que de repente pôr, no foi toda feita por aqueles de cabeleira empolada, que parou tudo Vitória de Setúbal, durante um jogo, o Cristiano Ronaldo, rode- no Mozart, ou então que são aqueles “plins”… ado por mais dez que ninguém sabe quem são! Claro que isso não serve para nada… Só serve para gastar dinheiro. Admito Mesmo que se componham coisas interessantes, se o público não que haja coisas que não se podem fazer neste momento. Mas quiser ouvir acaba por ficar tudo na mesma… Acha que é uma então vamos fazer o que o [José] Serra Formigal fez quando criou questão de marketing? a Companhia Portuguesa de Ópera. Foi a coisa mais útil que Pois… (pausa) Aí acho que temos de começar a mostrar ao poder alguma vez se fez na música cá em Portugal, porque formou toda instituído – e não digo apenas ao Governo, falo das fundações, uma série de cantores que se reproduziram - não no sentido por exemplo, que muitas vezes são mais importantes – que é exacto do termo (risos) – e a verdade é que se criou uma tradição mentira quando se diz que tudo custa milhões. Uma coisa funda­ de cantores portugueses que existe até hoje! Até estão vários no mental era nós termos efectivamente gravações de alta qualidade estrangeiro, coisa que antes não existia. Até o Serra Formigal da música portuguesa. E então vai-se dizer: “E é toda?” Toda não criar a CPO, os cantores portugueses só entregavam cartas nas existe! No momento em que estamos a ter esta conversa está-se óperas! (risos) Eram figurantes! E a partir daí surgiram até can- talvez a compor uma coisa que deveria ser provavelmente inclu- tores de grande nível… ída num eventual contrato que, se assinássemos agora, já não a incluía. Mas também não vamos ser assim tão “picuínhas”! Que acabam por sair também porque não há condições… No fundo, nós sabemos qual é a Música Portuguesa. Teria de O São Carlos é o teatro português de ópera. Pronto, acabou-se! haver uma selecção efectivamente abrangente e não subordi- Isto não é xenofobia… O que tem acontecido é não remar, não nada a gostos pessoais… O que interessa é o que tem qualidade. instigar, não manter… É não alimentar a vontade das coisas, a E a qualidade não é assim tão subjectiva!... A qualidade é objectiva vontade de fazer melhor. Uma Companhia Portuguesa de Ópera para quem quer ouvir. Eu sei perfeitamente que Paul McCartney ia esfarrapar-se toda para ser melhor que o Vitória de Setúbal! É tem qualidade. E eu não ouço! Mas, quando ouço, não comparo claro que não ia ser a Ópera de Viena… Mas pelo menos tentar ir o Paul McCartney aos Xutos e Pontapés… Sei perfeitamente que à UEFA! Assim não vai a parte alguma, anda a tentar evitar a des- não é a mesma coisa! A qualidade vê-se! Quando há um grupo de promoção! (risos) rock bom, eu também sei! (risos) Claro que se percebe, da mesma forma que se percebe quando um quarteto é bom. Garanto que De caminho vai mesmo ser despromovida… percebem! Ponha-se um quarteto bom e um mau e vão ver como É… Se isto continuar assim e se, ainda por cima, se repetir con- percebem! (risos) Outra coisa são os gostos pessoais de cada um. tinuamente o mandar vir os senhores alemães ou finlandeses ou Depois, é fazer contas, agora que só se fala em milhões, milhões, chineses ou lá o que é… Ninguém sabe quem são… Quando digo milhões, milhões… Mas quem é que pediu esses milhões? isto, não estou a dizer mal nem bem deles. Eu não sei se são bons (pausa) Há que esquecer uma orquestra portuguesa, assim como ou maus! E de facto não se pode dizer mal do trabalho que fazem há que esquecer uma orquestra formada ad hoc, ou seja, pagando porque nem sequer é criticável! É como aquelas pessoas que vão a cada artista. Eu já fiz isso uma vez e fica sem dúvida três vezes à ópera. Aquilo cheira tudo a mofo! Literalmente! (risos) Parece mais cara que uma orquestra de altíssima qualidade especiali- que enchem o São Carlos… zada em gravações. Há a de Praga, a de Sofia, a de Bucareste, e há mais… Eu acho que se dava a conhecer aos portugueses uma Depende, porque há meses fui ver a estreia moderna da Dona parte substancial do seu património cultural que é a música sin- Branca [de Alfredo Keil] em versão de concerto, a um domingo, às fónica portuguesa por um preço que não chegava a um milhão de 16h, e o São Carlos estava praticamente vazio… euros. Conseguia-se fazer, sei lá, quarenta discos, cinquenta… Mas isso é normal… Aquela gente não se interessa por música! Aquela gente interessa-se por dizer que foi à Traviata! (risos) Um problema de clarividência. Continua a dizer, como há dez “Hoje fui à Traviata!...Hoje fui ver os Mestres Cantores!”... Toda a anos, que não daria um bom Ministro da Cultura (agora, gente conhece. Agora, “hoje fui ver uma ópera que ninguém ­Secretário de Estado)? conhece”... – isso não tem interesse nenhum!... Não quero, porque tinha de me sujeitar a interesses partidários… As ideias, tenho-as… Mas não me apetece estar a ouvir os maiores Portanto não está para breve o Canto da Ocidental Praia… disparates e a dizer “sim, senhor ministro” ou “sim, senhor primeiro­ Acho que não! Não vejo nenhuma maneira… ‑ministro”. Isso não… Por exemplo, vou-lhe contar só um bocadi­ nho da história deste filme, que é, efectivamente, uma manifes- A propósito de salas vazias, acha que a música contemporânea tação de rua, um protesto, uma afirmação. Só se fala em milhões, erudita é demasiado elitista? Acaba por ser mais dirigida às o cinema custa milhões! E com o argumento falacioso de que pessoas que conseguem uma melhor educação… o cinema só se pode fazer com tanto, não se dá nada. É evidente (pausa) Aquele período entre os anos 50 e os anos 80 foi real- que há cinema que custa milhões. Nem eu quero abdicar desse mente sinistro. Era música que ninguém queria ouvir. É como cinema, porque quero ver o Lawrence da Arábia, quero ver essas os vasos comunicantes. Se se tira o líquido de um lado, entra coisas… Sim senhor, estou a favor dos milhões também. Mas outro líquido. Toda a música comercial, a “rockalhada” toda, isso é só um tipo de cinema, porque é evidente que há um vasto veio ocupar o espaço deixado pela música erudita que ninguém leque de cinema que não custa milhões. Não sei se haverá alguns queria ouvir! oportunistas que venham pedir milhões… A verdade é que há muitos que não pedem e não recebem nada, porque os que E hoje em dia ainda se sente a repercussão disso… deviam dar é que dizem que a coisa custa milhões. Então nós Estamos ainda a sofrer as consequências. Eu tenho a certeza de decidimos fazer uma “manifestação de vida”, que é uma longa­ que hoje em dia ainda há muitos compositores que lutam contra ‑metragem a custo zero! Isto custou zero! Não custou nada, foi esse desinteresse. O povo está convencido de que a música ou de graça! Ninguém cobrou nada e o filme existe! E vai sair!

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 39 Com entradas livres, já agora? Tchaikovsky, em Moscovo. Tenho a experiência de dois grandes (risos) O filme custou zero! Fez-se em vídeo. Não vamos consi- concursos. Diz-se que a apreciação da arte tem que ser subjec- derar como peso orçamental as cassetes de vídeo que custam tiva. Muito bem, é o tal gosto. Mas exige-se ao júri que seja ¤7,50. Foram quinze… (risos) As próprias pessoas pagaram objectivo. Daqui resulta que o júri é obrigado a apertar os parâ- a gasolina, vivíamos na casa uns dos outros, gravámos no norte metros, dentro daquilo que é a qualidade. Portanto, aquilo que do país… E por isto é que o filme custou zero. Não estou a dar num concerto não interessa nada, seja uma nota errada, seja até o exemplo de que as pessoas trabalhem a custo zero, não é isso. uma branca ou outra coisa qualquer, num concurso é inultra- É apenas para mostrar que é mentira “os milhões”, é mentira! passável! Já tive dezenas de casos de pessoas com mais talento Tanto é mentira que até a zero se consegue fazer. que outras, que eu próprio tive de classificar com pior nota por- que, objectivamente, eles erraram nalguma coisa, e os outros No fundo a maneira de fazer o filme demonstra a união… acertaram tudo. Ainda que todos soubessem que eles tinham Ninguém nos cala! E o filme vai ser a demonstração mais cabal disso. menos talento! Eu não acho que um concurso reflicta, nem por E é uma longa-metragem, tem cerca de uma hora e quarenta sombras, a justiça. É impossível! minutos! (risos) Eu ainda pensei que não desse, mas deu à vontade. Hoje em dia, sabemos que é muito difícil a um jovem músico singrar O que espera da crítica a este filme? na carreira sem ganhar concursos. E se os bons ficam para trás… Não sei… Eu acho que há determinadas pessoas que eu conheço Claro! Mas nem sempre os bons ficam para trás. Temos aqui que, teoricamente, irão dizer mal. Mas eu até me dou bem com o caso recente do Raúl Costa, que acompanhei desde miúdo. Fui elas! eu que o pus em contacto com o Artur Pizarro. Ele tinha deci- dido concorrer ao Concurso de Newcastle. O Artur disse-lhe: Por algum motivo em particular? “Olha que o Concurso de Newcastle não é um grande concurso… Sim, ainda que isto que se possa inserir no chamado “cinema de Ganhá-lo é bom, aliás, ganhar é sempre bom, nem que seja “na Baixa autor”... Por exemplo, ainda há uns dias estive em Cerveira num da Banheira”. Perdê-lo é muito mau, precisamente porque não é um debate em que estava o Soutinho, o arquitecto, entre outros. grande concurso. Perder o de Varsóvia é normal, perder o Tchaikovsky Estava também um cineasta, mas daqueles que ninguém sabe é normal… Agora perder o de Newcastle é mau, de modo que eu não quem é. Sinceramente, ninguém sabe quem é! Quem devia ter te aconselho minimamente a ir!”. Então o Raúl disse muito ido era o João Botelho, mas ele não foi porque havia jogo do ­simplesmente: “Então tenho de ganhar.” E foi. E ganhou! (risos) Benfica! (risos) E portanto mandou alguém para o substituir. Portanto, às vezes, há casos em que os bons ganham mesmo. Por Esse senhor começou a dizer mal do cinema mais comercial, outro lado, ainda que não seja para mim de modo algum a forma mas assim com um desprezo… Comecei a ver passar à minha ideal, é indiscutível que pode abrir muitas portas. frente o Al Pacino, o Robert De Niro… (risos) Ele a falar dessa gente toda como se fosse tudo uma merda! “Bom é o cinema de Mas a avaliação torna-se muito mais difícil num concurso de autor, não é essas porcarias!”. E eu disse-lhe: “Ouça, vamos lá ver Composição… uma coisa…”... Foi um tumulto na sala, porque realmente as Eu, num de Composição, nem imagino!... Participei num como pessoas estavam todas a reprimir-se! Estavam ali a ser ofendi- concorrente! Foi o meu genro que lá me meteu… E até ganhei, das, porque no fundo todas elas iam ao cinema. E viam o cinema juntamente com outro português! Era uma obra para tuba e ser tratado com todo o desprezo por aquele badameco que nin- orquestra, o Concerto [Op. 144], e o outro ganhou com uma obra guém sabe quem é! (risos) de câmara para tuba. Foram dois portugueses a ganhar nos Esta- dos Unidos da América. Mas eu não concorri, foi ele que man- Mas que é um teórico… Nós estávamos há pouco a falar dos dou as obras para lá!... Também deve haver poucas obras para músicos que acabam muitas vezes por ser os causadores do tuba… (risos) Não deve ter havido grande concorrência… desprezo que há pelos próprios músicos. Pois! Mas acho que no cinema é pior neste momento… Há Para acabar, pergunto-lhe se tem alguma obra preferida, alguma menos gente apta do que na música, ou pelo menos há muita obra que o tenha marcado especialmente? gente naqueles grupos a fazer assim umas curtas e médias Eu considero que, dado o tempo que passou e que me permitiu metragens meio-estranhas… Enquanto que há uma plêiade de pensar e repensar e cortar e deliberar, eu estou convencido que compositores portugueses a trabalhar! a minha melhor obra é o Canto da Ocidental Praia. Estou absolu- tamente convencido disso. Então acha que a música está a seguir por um bom caminho? A música está a seguir o seu caminho, quer se goste do que as A sua voz de auto-censura alguma vez tentou encontrar na obra pessoas andam a fazer ou não. Desde que haja qualidade, já se os motivos pelos quais ela não foi feita? pode fazer um julgamento objectivo. Podemos com um alto grau Claro que andei à procura deles! Se eu me fiasse apenas nos elo- de justiça julgar a qualidade. Ninguém é obrigado a gostar do gios do Swarovski e do João de Freitas Branco… Eu tenho-os aí, Manoel de Oliveira, mas ninguém pode negar que aquilo tem feitos à partitura, só à partitura, porque aqueles ensaios para qualidade. Eu não gosto, mas acho que tem altíssima qualidade! nada serviram. Aquilo foi um horror. Só que o [Hans] Swarosvski disse-me uma coisa que é um bocado violenta, mas que é ver- Mudando agora de assunto, o mpmp participa na organização do dade: “Só um parvo é que escreve uma obra destas numa língua que Concurso de Piano Olga Prats, dando primazia à música portu- ninguém fala!”... (risos) Não é que ninguém fale mas que nin- guesa. O que acha dos concursos, como os de Composição? guém canta. De facto não é uma língua muito cantável… Sinceramente, eu não sei quem ganha esses concursos, não ligo muito… Os concursos de piano são sempre injustos. Eu já estive Algumas cantoras estrangeiras tentam, mas o resultado… no júri do Concurso Vianna da Motta e no júri do Concurso É uma coisa espantosa, soa muito mal… Eu não percebo nada!

40 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Eu considero que, dado o tempo que passou e que me permitiu pensar e repensar e cortar e deliberar, eu estou convencido que a minha melhor obra é o Canto da Ocidental Praia.

Mesmo com as portuguesas tenho alguma dificuldade em perce- Ele não misturava as coisas. Quando escrevia “O Cochicho”, era ber… Já me passou pela cabeça, para o tempo das minhas netas “O Cochicho”, mas quando escrevia uma peça para órgão era ou bisnetas, fazer a ópera em alemão. Camões está todo tradu- diferente… zido em alemão, e bem traduzido. Mas as pessoas confundem, também quando são maldosas. Tem Não descontextualizaria o libreto, digamos assim? medo que isso também lhe aconteça, com os fados que escreveu, Não, não… A ópera é cantada em português, em castelhano, em ou com a música para teatro? italiano e em latim, porque são as línguas que o Camões utilizou (risos) Não estou minimamente preocupado com isso! (risos) e as línguas das figuras que o influenciaram. Quando aparece o Até porque isso é uma atitude reaccionária… Dante canta-se em italiano, com Garcilaso [de la Vega] é em castelhano, com o Virgílio canta-se em latim. Não podia deixar Para terminar, pergunto-lhe só o que está para breve? de usar o italiano porque senão perdia-se o efeito da entrada de (pausa) Agora tenho uma obra sinfónica, para a qual já tenho Dante. Quanto ao francês, não gosto muito, a não ser naquelas algumas ideias… cançonetas, estilo Piaff… Mas essa é para ser tocada? E Poulenc, Ravel, Debussy? Eu sei lá!... Já não sei nada… Ela foi encomendada no tempo do O Ravel, por acaso, fez uma coisa muito boa, que foi acabar com anterior governo, portanto, se calhar, para este já não há a acentuação das sílabas fracas do francês (os “e’s” fechados), dinheiro… Em termos de música é isso. Depois há também o que os cançonetistas não usam. Por exemplo, em L’enfant et les filme, que qualquer dia será entregue. sortilèges e em L’Heure Espagnole, canta-se como se fala. Eu acho isso muito melhor porque se percebe muito melhor. E literatura? Sim, há um livro, mas que está ainda embrionário. Agora neste Uma última pergunta, em jeito de comparação: Frederico de momento estou a trabalhar realmente naquela obra sinfónica, Freitas escreveu alguns fados e é um compositor um pouco para apresentar no próximo ano. Já não tenho muito tempo, mas menosprezado devido a essa veia mais popular… também ninguém me obrigou a fazer uma sinfonia!...

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 41 Harpejo Marinho

Fernando Pessoa e Alberto Marceneiro, acrílico e pastel s/ tela. Reprodução de original a cores de Júlio Pomar, gentilmente escolhido e cedido pelo autor para esta rubrica. Fundação Júlio Pomar (© Júlio Pomar / FJP / SPA).

42 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Harpejo Marinho NUNO BRITO | TEXTO para uma criança que vai nascer vai ser tocada em Viena, ao cair JÚLIO POMAR | IMAGEM da tarde, pelas quatro mãos quentes de duas gémeas; um arco-íris duplo vai-lhes entrar pela janela, começa no Arizona e atravessa o Atlântico, a Europa toda, com o pássaro de fogo a balançar-se em cima dele: metade noite, metade dia, metade roxo, metade música. As suas quatro mãos, ainda por se formarem na barriga da mãe, com a sua anca ainda por ser abraçada por um fabricante de sinos do futuro. As cartas que lhe vai escrever são ainda espasmos de estrela… Uma das gémeas põe tinta vermelha no bico dum pião e papel de celofane branco no chão. Lança o fio, o pião gira no papel e escreve: Perder é uma matéria orgânica como a chuva lá fora ou o musgo que cresce nas fontes de Minos: A música, no seu espalhar-se, só permite a subida. não digo que deus seja uma barrigada de riso, digo que nos temos de rir com mais força se nos queremos aproximar dele” – avisa­nos Henry Miller, com o pássaro de fogo na boca. Esta será a primeira variante de uma novela que nos avisa que a música é a primeira memória. o medo de parar bombeia o sangue para todo o lado. Outro nome seria dado ao coração assim que aparecesse a escrita. O medo de parar bombeia a música para cada artéria. Em cada célula uma aparição mariana, sinfonia nuclear para dois cravos e uns búzios, a música a tornar-se subaquática assim que os violoncelos descem o nível do mar, a tensão de duas cordas no sonho gordo de um cavalo-marinho; o seu leite quente amamenta as sereias recheadas de segredos (ouvem-nos de Debussy, ao longo da costa da Córsega). o arco-íris entrava pela janela; o pássaro de fogo também entrava pela janela e observava, do parapeito, as duas gémeas a olharem para o pião, a sua rota a girar agora em cima de uma partitura, escrevendo a suite número dois. Lá fora, no estendal, passa um filme sobre a revolução. O pátio está cheio de cravos. O arco-íris deita a sua ponta a dormir entre dois vasos de flores amarelas. O sol nada nos olhos das duas gémeas.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 43 entrevista Pudessem estas páginas abranger as cerca de cento e oitenta obras diversas que se encontram no seu catálogo. Jorge Salgueiro (1969-) divide o seu tempo entre a direcção artística do grupo de teatro O Bando e a função de compositor residente na Foco Musical. Acaba de assinar Lusitânia, cuja invulgar partitura dispõe oitenta músicos num rectângulo em torno do público, mas já tem prevista para o próximo ano uma ópera sua com texto de Gonçalo M. Tavares. Até lá, já se terá ouvido no Castelo de Palmela a obra Arrábida, que escreveu para a cerimónia de candidatura desta região a Património Mundial. Entre todos estes projectos, dois dedos de conversa sobre percursos, influências, óperas, sonhos, ideias. Sobre a Arte e o seu papel na sociedade, políticas culturais, estratégias. Sobre Música. Jorge Salgueiro

MÓNICA BRITO | ENTREVISTA PAULA SANTOS | FOTOGRAFIA

44 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Começou a compor aos catorze anos. Houve algum momento Acha que uma experiência internacional é essencial para um assinalável que o levou a descobrir a sua vocação? músico português ter uma formação completa? Houve. Eu tocava na banda dos Loureiros em Palmela e, um dia, (pausa) Talvez sim... Não lhe sei responder muito concreta- fizemos um primeiro ensaio para o Concerto para Clarinete n.º 1 mente. Hoje em dia há imensos professores portugueses e não de Carl Maria von Weber. Essa obra marcou-me muito profun- portugueses, de grande qualidade, a ensinar em Portugal. Acho damente. Foi como se me tocasse no âmago. Foi de tal forma que cada pessoa tem que encontrar o seu caminho e tentar ir ao emocionante para mim que percebi que era o que queria fazer: encontro daquilo que procura. entrar no mundo emocional das pessoas. Digamos que rompeu dentro de mim uma paixão avassaladora. A partir daí, comecei Posso reformular perguntando-lhe como considera o ensino em a escrever música. Portugal nos dias de hoje. Eu não sou do meio académico, não é uma coisa na qual pense Teve formação musical logo nessa altura? todos os dias. Acho que o ensino está bastante melhor, pelo Sim, nessa época frequentava a Academia Luísa Todi, em Setúbal. menos há uma abrangência muito maior em todo o país. Uma vila como Palmela, que é relativamente pequena, tem um con- Chegou a ir para o estrangeiro? servatório. E isto é um facto em imensas localidades do país. Fui como intérprete, integrado em orquestras nas quais repre- O ensino articulado é uma realidade e, na minha altura, não sentava Portugal. Estive na Orquestra dos Jovens do Mediterrâ- existia. Há uma democratização do ensino, disso não tenho neo, na Orquestra dos Jovens da Comunidade Europeia, na dúvidas. Há acesso mais facilitado ao ensino da música e julgo Orquestra de Corfu (Grécia), na Banda dos Jovens da Europa... que, com a quantidade, também vem a qualidade. Agora, em Até perto dos 25 anos, eu estava muito dividido entre a escrita paralelo com outras realidades europeias, não faço ideia... e o trompete, que era o meu instrumento. Mas, de facto, as coi- sas começaram a crescer de tal forma que me tomavam, cada Nunca pensou em utilizar a sua experiência numa actividade uma delas, imenso tempo... como a de professor? Eu cheguei a ensinar e acho que, de facto, não é uma actividade Sentiu que teve de optar? fácil. Só deve ensinar quem tem aptidão para o ensino. É uma Senti mesmo que tinha de optar. Não lhe vou dizer que tenha vocação. E ensinar é uma coisa de que não gosto. Procurei ao “dormido sobre o assunto”... Digamos que a composição inva- longo de toda a minha vida fazer tudo para que a minha sobrevi- diu completamente o espaço da interpretação. E eu acho vência dependesse apenas da criação. que é um pouco natural, porque nós, enquanto compositores, ­continuamos a tocar, mas não apenas um instrumento: passa- Nem que lhe fizessem uma proposta irrecusável hoje. mos a tocar os instrumentos que “queremos”, através da escrita Não, de todo... Dou-lhe um exemplo: vou fazer uma conferência e dos outros intérpretes. É um meio de expressão mais alargado. que me vai custar imenso. Não é a relação com o público que me Também outra coisa me pareceu importante na altura: o traba- vai custar, não tenho dificuldade em falar com o público, tenho lho de intérprete é um trabalho de atleta, enquanto que a com- imenso prazer nisso. Mas, quando se fala para uma plateia, posição está escrita e toma vida por si. Ou seja, para além da é preciso ter coisas importantes para dizer. Não devemos ocu- parte intelectual, há um lado de atleta que obriga o instrumen- par o espaço e o tempo das pessoas a falar de coisas das quais não tista a uma prática diária, de várias horas, se quiser estar a um temos a certeza, em que não acreditamos profundamente, ou se nível muito alto. Na composição não há uma perda, pelo contrá- não é bem o que queremos fazer... rio, cada obra acrescenta e traz mais experiência. É claro que a escrita requer prática, quanto mais se escreve mais próximo se É uma responsabilidade. chega da linguagem que se procura. Isso também se consegue, Sim. A palavra e o tempo são coisas muito preciosas e devem ser por exemplo, desenhando muito. usadas com todo o cuidado.

Há quem diga que todos temos uma capacidade inata para Disse-me que não gosta de falar em coisas nas quais não pensa desenhar, sendo apenas uma questão de desenvolvê-la. Isso diariamente. O que é que ocupa o seu pensamento enquanto com- aplica-se também à Música? positor? Tem preocupações que o levam a tentar transmitir uma Não faço ideia... Não gosto muito de falar sobre coisas que não mensagem quando compõe ou quando dirige as suas obras? conheço completamente. Desconheço se são capacidades ina- Sim. Eu penso que o lado estético é muito importante para o tas, ou desenvolvidas pelo meio ou pelo trabalho. Há uma série desenvolvimento do ser humano. Alguém que tenha esse lado de factores que contribuem para que se tenha determinadas absolutamente desenvolvido e aguçado jamais aceitará, por capacidades, não há-de ser apenas um. É o meio social, a famí- exemplo, ver uma rua cheia de papéis. Essa pessoa procura estar lia, as características individuais... minimamente bem na relação com os outros e tudo isso tem a ver com estética. Penso que a arte pode entrar um pouco no No seu caso houve alguma influência familiar? subconsciente de quem não trabalha diariamente na sua produ- Não, não tinha músicos na família, antes pelo contrário. O meu ção, de quem tem contacto com a arte nem que seja pelos espa- irmão, mais velho do que eu, ouvia imensa música na altura do ços públicos, pela arquitectura ou pela televisão. Muitas vezes rock progressivo e isso também influenciou um pouco esta pro- a palavra utilizada é “cultura” - se as pessoas forem mais cultas cura de aprender um instrumento. Mas o meu irmão é engenheiro. terão um maior nível de exigência. Sim, isso é verdade, mas eu A tendência familiar era para ir para uma profissão mais cientí- utilizaria a palavra “estética”. E é isso que procuro no desenvol- fica e menos artística, digamos assim. vimento da minha obra: encontrar a essência daquilo que

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 45 é o meu pensamento, em termos de produção artística. Toda essa relacionamento com os músicos e, digamos, com a realidade, procura vai ao encontro de um enquadramento no mundo, numa é permanente. Mas numa ópera eu não trabalho só com músi- tentativa de que os artistas tenham influência no dia-a‑dia das pes- cos, é também com o encenador, libretista, coreógrafo, bailari- soas, precisamente pelo desenvolvimento do seu lado estético. nos, actores, cantores...

Costuma ter algum tipo de retorno da forma como o seu trabalho A ópera é, nesse sentido, uma obra completa. chega às pessoas? É. E é este relacionamento que me dá prazer. Mas há uma falha Tenho imenso. É claro que o dia corre muito melhor se tivermos grave da criação contemporânea, dita de “elite”, no relaciona- energias positivas e se as pessoas mostrarem fraternidade para mento com as outras artes. Os músicos hoje continuam a com- connosco. Gosto das pessoas, gosto de gostar das pessoas e gosto portar-se como se estivessem a meio do século XX. Veja um que as pessoas gostem de mim. Mas, sabe, isso não é muito grupo de música contemporânea e observe a forma como os importante para mim... Como artista, confesso que são muito músicos se vestem. É provável vê-los todos de preto, mas um pouco importantes para mim as opiniões, tanto as boas como as preto desgastado, pouco cuidado, com os cabelos desgrenhados más. As más revelam apenas o carácter das pessoas; as boas eu e um aspecto a atirar para o intelectual. Isto continua a aconte- relativizo muito. Tenho uma aguda consciência daquilo que pro- cer, como se continuássemos em 1960... É uma falta de noção de curo e, como sei que ainda não encontrei o que procuro, não vale tudo aquilo que se passou nas artes durante o restante século. a pena dizerem-me que é belo ou não. E quem diz o comportamento e a postura que as pessoas têm em palco diz também de muitas das obras, que supostamente são Se eu lhe disser que tem um percurso ecléctico e inovador no modernas mas que continuam com o mesmo tipo de pensamento panorama musical português concorda comigo? que era o das décadas de 50, 60 e 70, não mais do que isso. Concordo. A primeira razão é precisamente o meu distancia- mento do mundo académico e as implicações estéticas que isso Houve uma estagnação no tempo? tem. Repare: hoje em dia, devido a essa democratização do Eu tenho essa opinião. Acho muito importante esse relaciona- ensino e até devido à subida do nível de vida dos portugueses, há mento com as outras artes e com a realidade, com a nossa imensa gente a escrever música. De facto, o panorama geral é de contemporaneidade. A televisão faz parte do nosso dia-a-dia, uma grande diversidade e riqueza, mas, naquilo a que podemos assim como as cidades, o 11 de Setembro, o cinema, as artes per- chamar de “elite”, eu diria que é um mundo demasiada e estra- formativas. Quantas vezes eu fui ver orquestras e percebi clara- nhamente académico. Estamos a falar de Arte, não de Ciência. mente que os músicos não têm a noção de que quando metem os E isso leva-me a observar, com estranheza, um certo desafasa- pés em cima do palco já começou o espectáculo? Há músicos que mento das “elites” em relação ao tempo, um anacronismo muito pensam que o espectáculo só começa quando se toca a primeira grande. A academia é, por natureza, conservadora. Mas isso nota e isso é algo absolutamente errado. As pessoas não saem também tem uma explicação: é que, quem tem poder de decisão, para ir ouvir as notas todas afinadas e tocadas no tempo certo. por falta de coragem ou conhecimento, acaba por decidir com Jamais! Saem para terem um momento diferente no seu quoti- base em critérios “científicos”. Um dia destes para se ter uma diano, um momento que remeta para outra realidade, que as encomenda da Gulbenkian é necessário ter um doutoramento; complemente como ser humano. Que as inspire para o dia o decisor sente-se inseguro com a falta de sustentação científica seguinte, que lhe abra a alma e suscite criação, paixão, fraterni- para justificar a sua opção. Isso é ridículo. Portanto, diria que dade, esperança, vida. É um outro tipo de inteligência, que se me sinto um pouco como um “resistente”. Sinto que o meu tra- poderia dizer uma inteligência emocional. É o tal lado estético balho é muito observado, mas, de certa forma, é também da vida, um outro tipo de pensamento. Mas eu diria que não “escondido”. Tentam um pouco “emprateleirar” ou fazer de é um mal português, é europeu. Os nossos modelos são sempre conta que não existe. Também nesse sentido, sim, acho que sou os europeus e, portanto, achamos que quando fazemos igual um caso isolado no panorama musical português. estamos, necessariamente, a fazer bem.

Se pudesse eleger um género preferido, das suas áreas de Como se trava esse “mal europeu”? trabalho, qual escolheria? Faz falta aos músicos, pelo menos no ensino superior, terem Eu escrevo música, mas tenho uma enorme paixão pela pintura, uma cadeira de teatro. Porque é que os actores têm uma cadeira pela escrita, pela arte em si. Acho que poderia ser outra coisa se de voz na sua formação e os músicos não têm uma de teatro?... aquele dia do concerto de Weber tivesse sido diferente... Se, em Numa orquestra com cem músicos provavelmente só dez terão vez do concerto, eu tivesse visto um quadro do Francis Bacon, se uma noção ou saberão realmente o que é estar em palco. Pisar calhar hoje seria pintor. Aquilo de que gosto, que me emociona um palco requer, naturalmente, uma presença física. Há músi- tremendamente, o que me dá grande prazer é o relacionamento cos que têm uma presença fabulosa, ou porque é inata ou porque com outros artistas, nomeadamente pintores e escritores. têm consciência dela. Voltamos à questão de ter jeito para dese- É extremamente emocionante para mim acompanhar o seu tra- nhar: o porquê não sei, é múltiplo, o que é certo é que têm essa balho, eles acompanharem o meu, conviver, beber e dar de capacidade de comunicação. Mas não há formação para isso e a beber a outros criadores. Não posso esquecer algumas pessoas esmagadora maioria dos músicos bem necessita. com quem trabalhei, como o João Aguiar, o Miguel Esteves Car- doso, o João Brites, a Rita Melo e a Risoleta Pinto Pedro. Posso Essa sua paixão pelo cruzamento de diferentes tipos de artes estar a ser injusto por referir só alguns, poderia continuar com explica a sua entrada no universo do grupo de teatro O Bando? mais uma série de nomes. Tendo como base isto, e respondendo Muito do que estou a falar aprendi na relação com os artistas à sua pergunta, eu talvez destacaria as minhas óperas, porque e com as companhias de teatro com quem trabalhei, nomeada- é nas óperas que tenho contacto com uma diversidade maior de mente O Bando. No entanto, nenhuma das coisas que me vão artistas. Muitas vezes dirijo as minhas obras, portanto o meu acontecendo são programadas, a não ser a minha intenção

46 | glosas | número 4 | novembro | 2011 e determinação de ser criador através da música. Todo o resto são deixas que a vida me dá e às quais eu vou respondendo. Neste caso, tratou-se de um convite e, mais tarde, passei a integrar a direcção artística, da qual já faço parte há dez anos.

Como director artístico do Teatro O Bando, considera que o trabalho desenvolvido tem tido a visibilidade que gostaria? O Bando tem, digamos, três pontos de acção. Um são as itine- râncias, espectáculos comprados que fazem carreira em todo o país; outro são as co-produções, em geral com os teatros nacionais e outras instituições de maior capacidade, geralmente centradas em Lisboa ou no Porto; e depois, com a vinda para Palmela, surge a actividade na sede. Apesar de a sede estar a 30 minutos de Lisboa, são 30 minutos que pesam na decisão das pessoas. Este espaço continua a ser uma referência para trazer públicos, podia ser apenas para produções ou ensaios, mas não o é. O Bando tem interesse em fazer espectáculos na sua sede e tê-la como ponto de referência. E aqui é que eu julgo que é preciso uma estratégia que dê enquadramento e que consiga um maior relacionamento do público com este espaço.

E, quanto à visibilidade do seu restante trabalho, os prémios têm tido algum peso na sua carreira? Quando eu era intérprete, fui a vários concursos e ganhei sem- pre. Até um dia... Nesse dia em que não ganhei fiquei muito triste. No dia seguinte, fiz uma “revolução” na minha cabeça e decidi não concorrer a mais nada. Não é que não saiba perder, mas achei que não fazia sentido submeter a actividade artística a provas como se de atletismo se tratasse. Como posso eu sub- meter as minhas obras à apreciação de um júri que muito prova- velmente considerarei menos apto que eu próprio?

Voltando ao teatro, existe alguma espécie de fórmula para aprofundar a relação entre um texto e a música que se cria? Sim, existe. O meu trabalho no Teatro O Bando, em concreto, Já revelou a importância que a ópera tem para si. Foi por isso que tem aprofundado dois aspectos na produção do grupo: a criação aceitou o desafio de Deu-La-Deu, que juntou em Monção centenas de um espaço emocional e a criação de um espaço físico. Quando de pessoas num espectáculo aparentemente inédito? fizemos o Ensaio sobre a Cegueira, o libreto/romance falava de Não é um caso isolado... Vou agora começar a minha nona ópera, uma grande metrópole. É claro que não havia possibilidade, que estreará em 2012. Das oito que já foram feitas diversas tive- nem sei se isso é importante, de recriar no palco essa grande ram um número superior a cem pessoas envolvidas. cidade, de forma real. A música pode dar o espaço àquele momento teatral. No teatro, o que é mais importante é que Sim, mas nenhuma nestas circunstâncias. a obra de arte consiga criar códigos com o público, de forma O que esta teve de diferente é que praticamente só tinha dois a que este consiga decifrá-los e que veja para além do que aquilo profissionais, que eram as duas personagens principais. Tudo que lhe é mostrado. Se eu disser que um telemóvel é um com- o resto era feito com a comunidade. Foi uma experiência, boio, e se estabelecer esse código logo desde o início, esse digo‑lhe, muito marcante. Gostava de ter tempo, um destes objecto pode ser mais credível como tal do que propriamente dias, para escrever as coisas que aconteceram e os pensamentos um comboio a passar em cima do palco. É nesse sentido que que me traz aquela experiência. (pausa) Acho engraçado que a música pode dar mais credibilidade ao objecto artístico. Uma a imprensa cultural muito facilmente faça entrevistas ou repor- gravação que tenha uma acústica de uma igreja pode remeter tagens a propósito de uma estreia no Teatro Nacional de São inconscientemente o espectador para esse espaço, sem saber Carlos mas não sobre uma ópera que se faz em Monção. Ora, isto que está a ser levado. A música pode contemplar este lado da é o contrário de tudo aquilo que devia acontecer. Como se cos- espacialidade, mas também pode colocar o espectador num tuma dizer, notícia não é o cão que morde o homem mas determinado tempo. Se a música for do período da Renascença, ­o homem que morde o cão. Uma ópera em Monção devia ter uma imediatamente nos leva a uma outra realidade cronológica. cobertura, pelo menos, equivalente a uma estreia no São Carlos. Mas acho que aquilo que de mais importante a minha música Não posso esquecer que muitos daqueles que cantavam eram acrescentou à produção que o Bando já vinha fazendo de forma pessoas que entravam a trabalhar, no campo, quando o sol nas- brilhante - desde 1974 - é algo que é muito difícil de explicar cia, e só não trabalhavam até ao pôr-do-sol porque vinham e de mensurar, que é um espaço emocional. O Bando tem uma de propósito para fazer um ensaio connosco. Com orquestras, linguagem muitas vezes abstracta e, por vezes, a abstracção e a eu assisti a ensaios em que músicos, ao primeiro segundo após arte conceptual perdem laços na comunicação com o público. a hora marcada, se levantaram e saíram. Um jovem que toca Julgo que a minha música ajuda a construir esses laços. trompa fez, por vários dias, uma caminhada de seis quilómetros

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 47 da sua aldeia para os ensaios, porque não tinha transportes. mais caros que podiam; agora que não há, pedem aos portugue- Eu pergunto se isto não é uma lição. Não é só para os músicos, ses para fazer mais barato. Isto é uma realidade. Basta ver aquilo é um estímulo para todos nós. Estas histórias podiam muito bem que a Gulbenkian e a Casa da Música fazem. Os maestros das ser contadas por um jornalista que acompanhasse a produção. principais orquestras portuguesas são estrangeiros. Acha nor- mal a Orquestra da Casa da Música ir ao Brasil, num evento Foi a Câmara Municipal de Monção que organizou este evento, em maravilhoso para mostrar uma parte do nosso país e da nossa homenagem a uma personagem popular da região. cultura, e o que toca é uma sinfonia de Mahler dirigida por um Se Deu-La-Deu tivesse vivido em Lisboa ou no Porto seria uma alemão? As pessoas que dirigem este país não têm noção daquilo heroína nacional. Como a lenda vem de Monção quase ninguém que se está a perder. É como regar o deserto! Nós precisamos de sabe concretamente de quem estamos a falar. Lenda ou facto, ter contacto com os estrangeiros e de trocar experiências com é dos momentos mais belos da nossa história. Sim, foi uma eles, mas há situações especiais. Este caso é paradigmático: encomenda da câmara. Aliás, devo referir que não fui o único a orquestra deveria ter tocado música portuguesa dirigida por artista a ir a Monção fazer uma produção deste tipo. A Madalena portugueses. E eu dou-lhe vinte nomes de maestros portugue- Victorino também fez um espectáculo muito interessante com ses que poderiam perfeitamente ter dirigido aquela digressão. a comunidade, em torno da chegada do comboio à localidade. As Fico muito magoado com isto, porque vejo que o nosso país, além Comédias do Minho, uma companhia que trabalha naquela de ter poucos meios, gasta mal o pouco que tem. zona, desenvolve um trabalho fantástico com as comunidades de vários concelhos. Neste caso, eu não inventei nada. Simples- O facto de ter desaparecido o Ministério da Cultura tal como mente colaborei e apaixonei-me por aquela gente e por aquele o conhecíamos vem contribuir para alguma mudança? projecto. Não, isso é absolutamente lateral à questão fundamental que é: a Cultura merece 1% do Orçamento do Estado, seja com um Reparei, no passado, um certo criticismo seu sobre o papel de Ministério, seja com uma Secretaria, seja com o que for. Aquilo alguns meios como a rádio, que poderia ter um papel mais que é dado à cultura é irrisório, lutar por esse 1% é a questão preponderante na divulgação. Ainda mantém essa opinião? fulcral. Talvez um dia se perceba que o futuro deste país não Mantenho. Devia ser normal ligarmos a rádio e ouvirmos, na é fazer mais brinquedos como os chineses numa hora, porque Antena 2, música portuguesa. E não é. os chineses vão sempre fazem muito mais e mais barato que nós. Se somos um país que tem no Turismo um pilar da Economia, Isso tem a ver com uma deficiência na programação ou com o então a Cultura é uma parte integrante desse Turismo. Portugal público em si? só pode ser interessante se tiver uma identidade. Se for igual Lamento ter que dizer mas parece-me que tem a ver com a nossa a Espanha, França, Inglaterra ou Alemanha, os turistas virão cá mentalidade portuguesa. Repare, enquanto havia dinheiro no Teatro pelo sol e apenas por isso, e serão cada vez menos. Esse 1% Nacional de São Carlos, chamavam os cantores estrangeiros é fundamental para que possamos ter uma identidade e o país

48 | glosas | número 4 | novembro | 2011 possa ter um valor acrescentado. É um investimento. Há estudos é preciso uma técnica e treino tão intensos como para o canto que comprovam que cada euro que se gasta na área da Cultura lírico. E o resultado é absolutamente diverso daquilo que é co- triplica, em diversas actividades, em termos de lucro. Não pode- nhecido de todos os séculos, no mundo ocidental. Eu diria que mos pensar em competir a nível industrial com uma China, os diversos tipos vocais nessa ópera me abriram janelas, como Índia ou Brasil, é impossível! Não tenho dúvidas de que a Cultura artista, que me permitiram depois fazer, por exemplo, O Salto, é uma parte fundamental para o desenvolvimento deste país. O que é também uma obra que me deixa uma excelente recordação. que é Barcelona, Paris ou Nova Iorque? São cidades profunda- mente marcadas por movimentos artísticos e pela vida que a arte Se pudesse voltar atrás, mudaria algum pormenor no seu lhes traz. trabalho? Mudaria tudo. A primeira obra que iria escrever seria como Gostava, portanto, que houvesse mais apoios para perpetuar a primeira que vou fazer a seguir e não aquela que fiz aos catorze as suas obras. anos. Se soubesse o que sei hoje, começava a escrever como já Todos os artistas gostavam. Nós temos duas orquestras sinfóni- escrevo agora. Que é para ter tempo... Não sei se, no meu tempo cas mais a da Gulbenkian e eu já gravei mais discos do que essas de vida, vou ter oportunidade de chegar àquilo que procuro. orquestras. Não seria tão fácil, nos concertos semanais ou quin- zenais, tocarem uma obra portuguesa, para ficar gravada e em O que é que procura? boas condições? Nós temos os meios, só que são mal aproveita- (pausa) Procuro o momento em que o Pollock deixa cair a tinta dos. Não conhecemos a ópera portuguesa. Ao sábado à tarde, há em cima da tela e descobre uma nova forma de pintar, é esse uma transmissão de uma ópera internacional na Antena 2 e ouvi momento que procuro... Por isso, gostava de ter catorze anos uma ópera francesa do período romântico de um compositor agora e saber o que sei hoje. Pelo menos saberia, em termos teó- pouco conhecido. Era pouco interessante, mas, de facto, estava ricos, que teria mais tempo para chegar a esse momento. muito bem cantada e muito bem tocada. Os franceses tocam e divulgam a sua música. Bastava fazermos um DVD por ano com Desde esses catorze anos, quais as suas maiores influências uma ópera portuguesa para termos um conhecimento e uma musicais? realidade completamente diferente. Toda a História da Música... (risos)

O que é que impede, na prática, que isso seja concretizado? Não há, nessa história, o seu ‘Pollock’? Os portugueses são autofágicos, “matam-se” uns aos outros... Há, sim, em diversas fases da vida há muitos. Mas há cada vez Pode parecer uma imagem violenta e uma ideia repetida mas menos... Se calhar, cheguei a uma fase em que já não há ninguém. faço-o na esperança de alertar para a importância de valorizar- Já ninguém me “ajuda”, agora. mos mais o que somos e fazemos. Enquanto isso não acabar, não é possível. Nós não vamos estar sempre em deferência para com Isso é bom? outras realidades culturais. Os portugueses têm que ter isto em É mais difícil... Não é mau nem bom, sinto-me mais sozinho. mente. Não é possível enquanto as pessoas que dirigirem não Porque caminhei, durante muitos anos, com muita gente. Imitei tiverem o mínimo de sensibilidade para isso. Quantos directo- muita gente, aprendi assim. Apaixonei-me por muitos composi- res dos teatros D. Maria II ou São João já foram estrangeiros? tores, alguns portugueses. Mas estou cada vez mais sozinho. Provavelmente terá havido, mas não me lembro de nenhum. Porque é que o Director do São Carlos pode ser estrangeiro e um Pode citar-me alguns nomes? Primeiro-Ministro não pode? Não me refiro às questões de É muito difícil porque são imensos... Às vezes nem é o composi- direito constitucional, refiro-me a questões de princípio tor em si, nem é a obra total, é um “momento” em que há um e mentalidade. Vamos tentar com os nossos meios ter um teatro despertar para a magia que é escrever sons num papel, em que de ópera ao nível dos europeus e de todo o mundo ocidental? uma pessoa é tocada por algo. Lembro-me perfeitamente de É impossível, temos é que ter um teatro de ópera que seja dife- certos momentos e continuei sempre a ouvi-los. É uma coisa rente, que tenha identidade, qualidade e rigor, e que revele um que só ouvindo é que se percebe... Tem uma força visceral, que repertório singular, seu, juntamnete com os grandes clássicos. depois nos leva para um mundo em que se quer fazer milhares É um problema de política, de mentalidade, de falta de estratégia de coisas. Umas concretizamos, outras nunca chegamos lá. A para o país. Quem dirige ao mais alto nível as instituições cultu- nível nacional, posso dizer que uma personalidade muito rais deveria saber e ter uma estratégia para criação de riqueza importante na minha adolescência foi António Victorino nacional através da Cultura. d’Almeida. Aqueles programas que apresentava na televisão foram muito importantes no estímulo e paixão que desenvolvi Destacaria alguma das suas oito óperas? pela música e pela história da música. As minhas três sinfonias, Talvez a Saga, por muitas razões. A primeira são as palavras, que por exemplo, são cíclicas por influência do Luís de Freitas são da Sophia de Mello Breyner. Cada palavra, uma após outra, Branco e do Joly Braga Santos. Digamos que me interessa muito parece uma pérola, um objecto finalizado e esculpido, é impres- encontrar, lá está, aquela certa “identidade”. Hoje em dia, não sionante... Depois há o lado vocal, que na ópera é preponde- me interessa tanto a música folclórica, ou algo mais ligado a uma rante. Apesar do devir dos tempos, a ópera manteve sempre certa ruralidade, como Lopes-Graça fez, apesar de também estar a voz lírica. Neste caso, a Saga integra outros tipos vocais que presente em várias obras minhas. É mais difícil encontrar essa não tenho conhecimento de terem aparecido noutras óperas, identidade não tendo como referência a música tradicional por- nomeadamente – e a mais relevante – a voz gutural, que surgiu tuguesa, mas é também isso que procuro. Depois dos meus 20 na música heavy metal. É um tipo de voz com a qual me impres- anos, a música de cinema influenciou-me muito. Acho que siona trabalhar, porque verifiquei que tem uma profundidade alguns dos nossos grandes compositores da actualidade estão tão grande quanto a voz lírica. Para se cantar daquela forma, precisamente aí, porque é aí que há dinheiro. Quem tem

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 49 sempre. Faz parte da natureza de auto-destruição do Homem, é uma luta permanente. Se eu conseguir, por essa paixão, mudar um pouco a vida das crianças, é o mais importante.

Qual o seu sítio preferido para compor? Não sou nada romântico com essas coisas... (risos) Componho no computador.

Escolhe este espaço/estúdio onde nos encontramos? Este é um local sonhado e concretizado por mim para estar rodeado de coisas de que gosto. Este sítio foi construído para eu criar. Para me rodear dos meus quadros, livros e discos. Está tudo organizado porque tenho pouco tempo. É aqui, neste espaço sonhado. O meu Olimpo.

Podemos dizer que o seu acto de composição, aqui ou noutro sítio, é sinónimo de solidão? Não é possível ser de outra maneira. As pessoas já fazem tanto barulho dentro de mim que, se o fizerem à volta, então é impos- sível. Quando estou sozinho, todas as pessoas que existem na minha vida estão dentro de mim e fazem imenso barulho. Mexem-se, falam comigo, cantam, ralham-me, amam-me, detestam-me. Essas pessoas estão todas dentro de mim, é um desassossego. Tenho que estar mesmo sozinho, fisicamente.

Costuma ouvir música para ganhar inspiração? Não. Ouvia há uns anos atrás. Faz parte daquele caminhar para a solidão. O Al Berto disse, no fim da sua vida, que estava a che- gar à sua perfeição: o silêncio. Caminhamos sempre para o si- lêncio e para a solidão. dinheiro procura os mais talentosos e há, de facto, grandes cria- dores na área do cinema. E depois, é claro, as grandes referên- Nos projectos em que trabalha com textos de outros artistas, há cias da música ocidental: Stravinsky é incontornável. um processo de acompanhamento mútuo do trabalho que está a ser feito? Também compôs para crianças. É diferente ou difícil? Depende. Há artistas com os quais sei que vou ter que falar. Por Não, não é assim que vejo. Não procuro estratégias de educação exemplo, as palavras do João Aguiar tinham um contexto muitas por via directa das minhas obras. Todos dizem que escrevem vezes histórico, mudar uma palavra ou uma vírgula podia não ser sem tratarem as crianças como “coitadinhas”. O que isso quer simples. Na Orquídea Branca, uma ópera que fiz para os 500 anos dizer é que difere em cada um de nós. Há quem ache que deve do Funchal, que teve um impacto enorme na cidade, havia um escrever acordes e melodias muito interessantes e complicados jardineiro a falar com uma princesa. Tentei mudar algumas para cultivar as crianças. Eu não quero nada disso. Eu quero que palavras da conversação e o João chamou-me a atenção que não elas se apaixonem! Se eu conseguir que as crianças se apaixo- era possível porque estava a introduzir anacronismos na relação nem pelo objecto artístico, essa é a melhor contribuição que entre as classes sociais, que na altura eram muito mais estratifi- lhes posso dar. Se depois elas quiserem conhecer a erudição das cadas do que agora. O Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, erudições isso é lá com elas; mas aquilo que gostaria é que, deu-me o texto e disse-me para eu fazer o que quisesse. E fiz quando trabalho para crianças, as consiga emocionar, que aquilo que quis. as consiga apaixonar de tal forma que possa mudar um pouco as suas vidas. Essa liberdade criativa é essencial ou é perigosa? O silêncio é que é devastador. Se houver uma indicação “Eu quero Lembra-se de alguma peça em que isso tenha acontecido? azul” ou “Eu quero com vinte trombones” é óptimo. O “deserto” Não vou ter a pretensão de dizer isso, que o consegui... É apenas é pior porque começamos com uma folha em branco. Se é um o meu objectivo. Quero que as crianças se apaixonem pela arte, projecto próprio, já existe logo um motor dentro de nós; mas se pelo prazer e fruição da arte, pelo artifício, por esta forma de é para corresponder a uma pretensão alheia, então convém que expressão humana que é tão peculiar e que nos faz divergir dos haja esse motor para a obra. Quando existe uma indicação é po- animais. Desenvolvemos também uma inteligência para além sitivo porque é uma estrada para caminhar. Tanto faz se é para da racional, é um lado mais afectivo, de desenvolvimento das a direita ou para a esquerda. emoções, da percepção de uma realidade que não é presente. Conseguir que as crianças, através disso, gostem dos seres Aqui também se aplica a velha máxima de que o difícil é começar? humanos. Fazer com que os seres humanos gostem dos seres O difícil não é começar, o difícil é saber onde se vai chegar. É ter humanos não é tão simples assim. Hoje em dia há uma grande uma semente para a obra. É ter “o porquê”. Vamos escrever por- luta para que as pessoas respeitem os animais, mas a verdade quê? Já há tantos milhares de obras, porquê mais uma? É essa é que a luta do amor pelo ser humano continua e vai continuar resposta que temos que encontrar.

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12 12 12 vento e pistões como um pássaro a passar, enérgico 173 12 œb œ œb œ œb œ Ó ‰ ≈ œ œ œb œ ≈ ‰ Ó ‰ ≈ œn œn œb œ ≈ ‰ Ó ‰ ≈ œn œn œb œ ≈ ‰ Œ Ó & œb œ œ œb œb œ œn œb œb œ œn œb f 12 12 œn œb 12 12 œn œb 12 12 œn œb œb œ œb œ œb œ vento e chaves12 como um pássaro a passar, enérgico œ œ œb œ œn œn œb œ œn œn œb œ K Ó ‰ ® œb œ œ œb ®≈ ‰ Ó ‰ ® œb œ œn œb ®≈ ‰ Ó ‰ ® œb œ œn œb ®≈ ‰ ® r ® ≈ ‰ Ó & 12 œn œb œn œb œn œb f 12 12 12 12 12 vento e cilindros12 como um pássaro12 a passar, enérgico œ œ œb œ œ œn œb œ œ œn œb œ & Ó ‰ œ œb œb œ ŒÓ ‰ œn œb œb œ ŒÓ ‰ œn œb œb œ Œ ≈ ≈ Œ Ó f œ œb œ œn œn œb œ œn œn œb œ œn 12 12 12 12 12 12 vento e chaves como um pássaro a passar, enérgico 12 12 12 12 12 œb œ œ œb œ œ œb œ œ & Ó ≈ ® œ œb œ œ ® Œ Ó ≈ ® œn œb œn œ ® Œ Ó ≈ ® œn œb œn œ ® Œ ≈ ® ®Œ Ó f œ œb œ œn œ# œ œb œ œn œ# œ œb œ œn œ# œ œb œ 12 œn œb œ 12 œn œb œ 12 vento e vara como um pássaro a passar, enérgico ? œ œ œb œb œ œ œn œb œb œ œ œn œb œb œ Ó ≈ œ œb œ œn ≈ Œ Ó ≈ œn œb œ œn ≈ Œ Ó ≈ œn œb œ œn ≈ Œ ‰ ŒÓ f 12 12 12 12 12 œ œ œ œ œ œ vento e chaves12 como um pássaro a passar, enérgico œ œ# œb œn œ# œb œn œ# œb 12 œ œ œ rK œn œ œ rK œn œ œ rK & Ó ® œb œn œn œ# ® ≈ ‰ Ó ® œb œn œn œ# ® ≈ ‰ Ó ® œb œn œn œ# ® ≈ ‰ ‰ ® ®≈ ‰ Ó f 1212 1212 1212 vento e pistões12 como um pássaro a passar, enérgico 12 & Ó œ œ œb œ œb Œ Ó œn œn œb œ œb Œ Ó œn œn œb œ œb Œ ‰ ≈ ≈ ‰ Ó f œ œb œ œb œ œb œ œ œb œn œb œ œn œb œn œb œ œn œb œn œb 12 12 12 12 12 12 vento e chaves12 como um pássaro a passar,12 enérgico rK rK rK Œ Œ ≈ ® œ œb œ œ œb ® Œ Œ Œ ≈ ® œn œb œ œ œb ® Œ Œ Œ ≈ ® œn œb œ œ œb ® Œ ‰ ≈ ® ®‰ Ó & œ œb œ œ œb œ œ œb œ f œn œb œ œ# œn œb œ œ# œn œb œ œ# 12 12 12 vento e pistões como um pássaro a passar, enérgico 12 œb œ œb œ œb œ 12 Œ Œ ≈ œ œ œb œ ≈ Œ Œ Œ ≈ œn œn œb œn ≈ Œ Œ Œ ≈ œn œn œb œn ≈ Œ Œ ‰Ó & œb œ œ œb œb œ œn œb œb œ œn œb f 12 12 œn œ# 12 12 œn œ# 12 12 œn œ# vento e chaves12 como um pássaro a passar,12 enérgico Œ Œ ® œ œ# œ œ œb ® ≈ Œ Œ Œ ® œn œ# œ œ œb ® ≈ Œ Œ Œ ® œn œ# œ œ œb ® ≈ Œ Œ ® ®≈ Ó & œ œ œ œn œ œ œn œ œ f 12 œb œn œn œ# 12 œb œn œn œ# 12 œb œn œn œ# vento e cilindros como um pássaro a passar,12 enérgico 12 12 12 12 12 12 12 ? 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glosas | número 4 | novembro | 2011 | 51 Atribuir-lhe a tal identidade. emocionem tanto as pessoas? Os artistas de vanguarda deve- A identidade, a motivação, o fim. Isto remete para a tal questão riam envolver-se mais e não ter medo de serem amados pelo de falar para uma plateia, seja ela qual for. Pode até ser um grande público. maestro em frente a uma orquestra. Há maestros que falam, falam, e muitas vezes não há nada para dizer. É essa noção de Da próxima vez, se conseguir subir ao palco do Coliseu, vai deixar que a Palavra e o Tempo são dois parâmetros sagrados. Se temos este “recado”? a oportunidade de falar, então é bom pensarmos no que vamos Não, não há recados para ninguém... Eu estou a construir as dizer. Se há realmente coisas importantes para dizer, então que minhas ideias, quem estiver interessado em ouvir, ouve-me. sejam ditas. Se não há, é belo o silêncio. Sabe, o mais difícil Julgo que este novo clima de restrição de meios vai obrigar os entre dois amantes é chegar ao momento em que o silêncio deixa artistas a encontrarem estratégias de sobrevivência que, se de ser desconfortável. Fazer uma viagem em silêncio, sem que calhar, terão de passar obrigatoriamente por uma aproximação cada um necessite de o explicar ao outro. ao público. Estes novos tempos vão exigir que as pessoas pen- sem neste relacionamento. Prefere trabalhar uma obra de raíz, a partir de um texto que acompanhe desde o seu nascimento? Os artistas portugueses encostam-se aos subsídios? Prefiro textos originais. Uma adaptação de uma obra feita em Os artistas portugueses procuram os meios de sobrevivência 1998 é mais anacrónica do que um original sobre o século XIV. que lhes permitam desenvolver a sua actividade. Se o apoio do Eu prefiro sempre os originais porque estou a lidar com matéria Estado for uma porta, pois com certeza que a aproveitam, isso viva que é viva comigo. O criador está a pensar ao mesmo tempo é normal. O Estado é fundamental para si próprio e para nós. que eu. A criação de uma obra de arte, num dado momento, É fundamental para a estratégia do país e dos próprios artistas. constitui-se como síntese do tempo em que é feita. Foi a falta de subsistência que levou, após dez anos de vida, ao fim Há pouco falava de uma democratização do ensino e da música. do seu projecto Negros de Luz? Pensa que o facto de óperas suas terem sido nomeadas para os Os Negros de Luz são um caso de sucesso em termos humanos. Globos de Ouro é um sinal de mediatismo e de que chega a um Não tem nada a ver com o público, ou com o sucesso comercial, público mais vasto? porque esse então não existiu mesmo. Tem a ver com o facto de Por acaso reflecti sobre isso na altura. E até tive pena que não um grupo de onze pessoas se ter mantido em torno de um pro- tivesse ganho, na segunda nomeação, porque se fosse falar ao jecto, durante dez anos. As pessoas acreditavam que ali estava receber o prémio iria chamar a atenção para esse facto: é a a nascer qualquer coisa que, por sua vez, procurava outra coisa segunda ópera nomeada num espaço de três anos, o que é uma qualquer. Gente da área da música dita clássica que estava a pro- indicação sobre a popularidade que o género pode ter. Por acaso curar um novo caminho, através de uma forma que é comum foram minhas, podiam ser de outros autores, o importante é que a todas as pessoas, que é a canção. Através de outro tipo de pos- foram nomeadas num terreno de acção onde não é suposto. tura, este grupo queria influenciar não só quem estava do lado Já não falo do prémio que a Sociedade Portuguesa de Autores e a da música erudita mas também quem não estava. Havia um RTP atribuíram à ópera Quixote. Neste caso, o espírito é outro, ­estímulo para procurar qualquer coisa... E acho que nunca é contemplada uma parte do pensamento mais artístico, menos encontrámos. A sensação que se tem é que estava quase..., figurativo, digamos. Nos Globos não, é mais valorizado o lado quando acabou. de entretenimento. Se pudesse oferecer a uma personalidade a revista glosas, a quem Isso é pernicioso? ofereceria e porquê? Nada! É uma característica. Porque é que há-de ser? Isso é um Isso é uma pergunta muito difícil... (pausa) Ofereceria a uma mal das artes do século XX, de que - espero - o XXI se liberte. dessas pessoas que tomam decisões e que afastam os portugue- Está quase. É por causa disso que depois se impõem estas ses do seu próprio país. novelas na televisão. Se os artistas de charneira se interessas- sem por continuar a produzir e a pensar estratégias de comu- Para terminar, disse, uma vez, algo que achei muito interessante: nicação, se calhar não davam novelas de tão má qualidade só uma ou duas pessoas durante um século têm a capacidade de na televisão. gerar uma linguagem musical, enquanto que o Jorge está a gerar um “sotaque”. O que é facto é que subsiste uma certa ideia de que quanto maior (risos) É verdade. Aparece um Fernando Pessoa, aparece um a dose de entrenimento menor a qualidade. Stravinsky, aparece um Beethoven... Não concordo com essa ideia. Basta pensarmos em óperas como a Carmen ou a Flauta Mágica, ou em milhares de outras obras Existe veleidade em dizer que apareceu um Jorge Salgueiro? de arte. Repare, isto anda tudo sempre um pouco à volta do Ainda sou novo, tenho esperança. Neste sentido, ainda sou uma mesmo, e agora estamos a falar de entretenimento. Eu vi há criança. Posso vir a mudar o pensamento do século XXI, porque pouco tempo um vídeo, no YouTube, de uma criança com cerca não? Se não tivesse sonhos, e permanecesse apenas o lado de três anos a dirigir a 5.ª Sinfonia de Beethoven em frente lúcido e consciente, suicidava-me. Eu e os outros. Se não fôsse- a uma aparelhagem. A criança sabe de cor a música e no final mos inconscientes, no sentido de ainda sonhar, não havia cria- rebola-se no chão com uma alegria esfuziante. Ela delira, dança ção. É esse sonho que nos faz criar a todos, a cada pessoa, não e dirige de uma forma que nos contagia com aquela euforia. só ao artista. Somos o centro do nosso mundo. A pessoa mais A energia contida naquela música também é entretenimento. indigente que vemos na rua tem todas as esperanças do mundo. Se tem a capacidade de fazer aquilo a uma criança, porque é que Ainda que as tenha perdido, continua a ser o centro do seu uni- enquanto artistas não somos capazes de produzir obras que verso. É como nós, os artistas. No sonho tudo é possível.

52 | glosas | número 4 | novembro | 2011 sitor amadurece as suas obras de forma distinta. No meu caso, penso durante alguns meses e quando me sento a escrever já tenho uma ideia bastante clara da estrutura”, afirma a compositora. “O ama­ durecimento interior de Elegia a Al-Mu’tamid demorou cerca de três meses e a escrita em si cerca de um mês. É uma peça bastante con­ templativa e, de certa forma, dramática. Talvez uma das mais com­ plexas que escrevi até ao momento.” Contextualizemos, desde logo, a origem e a importância da figura central, habitualmente conhecida como o ‘Rei-Poeta de Sevilha’. Na verdade, ao con- trário do que se possa imaginar, foi em Beja que nasceu e em Silves que se tornou governador. “Os nossos vizinhos Espanhóis têm sido bastante efusivos a incluir Al-Mu’tamid na sua história, mas infelizmente Portugal parece que quer esquecer os seus grandes no próximo número nomes do esplendoroso Al-Andalus...” mónica brito entrevista é perceptível uma das temáticas que mais capta o seu interesse: a utilização de teorias e fórmulas poéticas e rítmicas derivadas da Idade Média. Estas são, aliás, objecto do seu doutoramento, ANDREIA PINTO-CORREIA através do qual aprofunda a forma como a música contemporâ- Nova Iorque auscultou a pulsação da música contempo­ nea absorve estas influências. Após concluir todos os estudos rânea. Coube à compositora portuguesa a abertura de um nos Estados Unidos, incluindo o mestrado, é neste país que festival planetário no lendário Carnegie Hall. Andreia prossegue a sua formação e passa cerca de sete meses por ano. Para a conclusão da tese, terá de prestar provas de conheci­ mento, escrito e oral, da língua árabe. O trabalho de investigação inclui ainda uma dissertação escrita sobre técnicas de composi- MÓNICA BRITO | Texto ção e uma peça de meia hora para orquestra sinfónica, precisa- mente em torno do poeta homenageado neste festival. “Sou uma grande leitora de Al-Mu’tamid desde a adolescência e tenho inúme­ naquela cidade que nunca adormece, na sala que tantos ras peças inspiradas na sua poesia. Recentemente tive o prazer de, sonham um dia vir a pisar. Elegia a Al-Mu’tamid foi uma das obras finalmente, conhecer o Adalberto Alves, de quem me tornei amiga com o privilégio de inaugurar o SONiC: Sounds of a New Cen- e que foi, de certa forma, uma das pessoas que me acompanhou ao tury, evento com magnitude para reunir cerca de cento e cin- longo dos anos nesta epopeia pelas nossas raízes esquecidas.” quenta compositores de todo o mundo. A jovem Andreia Pinto- diz estar rodeada de excelentes artistas. Muitos deles têm ­‑Correia junta-se, assim, a um vasto leque de participantes que desempenhado um papel determinante na sua carreira. “Tive o inclui conceituados ensembles norte-americanos, grupos con- privilégio de conhecer e partilhar momentos com o grande investiga­ vidados da Holanda e do Brasil e as presenças de Bruno Manto- dor em Arte Islâmica Oleg Grabar, já falecido, que foi uma grande vani, Matthias Pintscher ou Nico Muhly. A compositora elucida inspiração para prosseguir com os meus interesses.” Na sua área, de que forma surgiu esta oportunidade. “Talvez o factor que pro­ realça a importância de ter estudado, este Verão, com o compo- porcionou uma maior visibilidade foi a encomenda do Tanglewood sitor e maestro alemão Matthias Pintscher, uma experiência Music Center / Boston Symphony Orchestra, uma encomenda anual que inclusivamente alterou a forma como, até então, pensava a feita a um compositor de destaque das novas gerações. A estreia no música. Esta comunicação entre domínios artísticos e diferen- Seiji Ozawa Hall correu muito bem e foi um grande cartão de visita a tes nacionalidades, assegura, é natural no território norte-ame- outras excelentes oportunidades, dando-me visibilidade imediata ricano. “É, de facto, estonteante a quantidade de compositores, no panorama de música contemporânea dos Estados Unidos.” assim como o seu nível. Tenho colegas da Turquia, Rússia, Ingla­ em 2009, já sobressaía como um dos quatro compositores terra, Espanha, Grécia, Israel, Brasil e China, entre muitos outros seleccionados para o Ear Shot/ National Orchestra Network, representantes de outros países. Cada um com a sua História, com a programa destinado a apoiar novos talentos para escrita orques- sua Cultura, a sua forma de ver o mundo e sentir a música. É bas­ tral. Sucedem-se várias distinções, entre prémios, menções tante enriquecedor estar e viver num ambiente culturalmente tão honrosas e composições a convite da American Composers variado. Quer nos circuitos mais académicos ou em grandes festi­ Orchestra. Até ao dia, há cerca de um ano, em que recebe um vais, é possível ouvir compositores que representam as mais diversifi­ telefonema com uma encomenda muito especial. “É uma honra cadas correntes estéticas, tendo direito à sua voz. Um exemplo perti­ ter sido escolhida, independentemente de ser ptortuguesa ou não. É nente é este do Sounds of a New Century.” preciso ter em conta de que os Estados Unidos têm neste momento no velho continente, ‘a música é outra’. Sobre esta obra, cerca de quarenta mil compositores de música contemporânea. O manifesta o desejo de que venha a ser interpretada em Portugal. nível da minha geração é muito alto, incluindo representantes de Subscrevemos. Outros trabalhos já estão, entretanto, no hori- todo o mundo a participar activamente em festivais, concursos e resi­ zonte. “Não pretendo ser uma compositora ‘exótica’ de música fol­ dências. Claro que há sempre um gosto bastante especial em sentir clórica. Pretendo, sim, incorporar, de uma forma equilibrada, ele­ que há uma voz portuguesa no meio de mais de uma centena de com­ mentos da minha cultura em composição contemporânea. Eu vejo positores, escolhidos no meio de milhares, e que essa voz vai ser esta questão da aceitação da diversidade estética e cultural como ouvida numa das mais prestigiadas salas de espectáculo do mundo, algo benéfico e saudável, que me ajuda a crescer e a amadurecer como na noite mais especial do festival.” pessoa e como artista.” o momento afigurou-se como ideal para concretizar algumas será possível, numa entrevista alargada, conhecer melhor a ideias já em esboço. A peça começa a ganhar vida. “Cada compo­ sua arte. O próximo número da glosas é imperdível.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 53 efeméride

A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador *

acções; basta a presença de certas palavras-chave, como amigo MANUEL PEDRO FERREIRA | TEXTO (namorado) ou delgada (elegante) para identificar este género. como exemplo, temos os primeiros versos da cantiga “Levan- tou-s’ a velida”, de Dom Dinis. Aqui, o “l” e o “v” de alva estru- dom dinis (ou deniz), nascido em 1261 e Rei de Portugal entre turam todo o texto; alva significa branca, limpa, reluzente, mas 1279 e 1325, data da sua morte, é um personagem de primeira também o momento em que o sol se levanta, remetendo-nos importância na tradição trovadoresca ibérica. A sua corte foi, para o género da alba: depois da morte do seu avô Alfonso X, o Sábio, em 1284, o último refúgio dos trovadores galego-portugueses. Mas o rei português Levantou-s’ a velida, não se limitou a acolhê-los; juntou-se-lhes de forma excepcio- levantou-s’ alva nalmente produtiva. Educado por mestres como Nuno Martins e vai lavar camisas e Domingos Jardo (que havia estudado na Universidade de eno alto: Paris), a produção literário-musical de D. Dinis bebe tanto na vai-las lavar alva. tradição local como no exemplo provençal, com destaque para a influência de Bernart de Ventadorn e de Jaufre Rudel. Apesar de Levantou-se a louçãa, compôr sobretudo cantigas d’amor, legou-nos corrosivas canti- levantou-s’ alva gas satíricas, que só recentemente começaram a merecer aten- e vai lavar delgadas ção, e mais de cinquenta cantigas d’amigo, exemplares na sua eno alto: economia e no seu ritmo. Encontram-se nos seus poemas subtis vai-las lavar alva. alusões a textos de outros autores; nem sempre as fronteiras entre géneros são rigorosamente respeitadas. esta composição ilustra um processo poético arcaico: construir os géneros poéticos galego-portugueses são definidos não em uma estrofe a partir da repetição variada da anterior. Este pro- função da forma poética, mas do conteúdo. A cantiga d’amor, cesso, a que se chamou “paralelismo”, favorece uma grande embora decisivamente influenciada pela canso occitânica — o regularidade na distribuição dos acentos do texto, e encontra-se mais aristocrático dos géneros trovadorescos — é em geral relati­ em muitas cantigas d’amigo. Todavia, há muitas outras que vamente curta e inclui, em cerca de metade dos casos, um refrão seguem princípios de construção mais modernos. Embora não (D. Dinis usa-o quase em dois terços das suas cantigas d’amor). tenhamos acesso à música das cantigas d’amigo de D. Dinis, Por vezes acrescenta-se, depois da última estrofe, um ou mais podemos concluir, através de uma análise das suas cantigas versos de conclusão, a que se chama “fiinda”. A cantiga d’amor não-paralelísticas, que raramente se mantém um esquema apresenta, de forma retoricamente elaborada, os sentimentos acentual fixo nos versos que ocupam posições equivalentes nas amorosos do poeta por uma mulher pertencente à nobreza, estrofes; quando há coincidências acentuais, estas aparecem enquanto a cantiga d’amigo, de factura frequentemente mais frequentemente entre versos alternados, sugerindo que a can- simples, é posta na voz de uma jovem mulher, ou representa as suas tiga se teria cantado com diferentes frases musicais.

* Breve introdução ao tema, com especial atenção à dimensão musical. Texto baseado na versão original de um artigo publicado em castelhano, francês e inglês in Goldberg – Revista de Música Antigua, nº 40 (Junio 2006), pp. 52-59; a bibliografia e a discografia foram actualizadas.

54 | glosas | número 4 | novembro | 2011 elsa gonçalves diz-nos que D. Dinis “deixou na sua poesia uma invulgarmente moderna, embora houvesse já então técnicas de condensação, recapitulação e síntese da tradição poética em que se notação mais sofisticadas, inventadas para a polifonia erudita formou e, ao mesmo tempo, uma espécie de confronto criativo com os desenvolvida no ambiente universitário de Paris. textos que cita, ou aos quais alude”. A sua obra, a mais extensa de uma das curiosidades (e dificuldades interpretativas) das todos os autores galego-portugueses, inclui 137 composições melodias do “Pergaminho Sharrer” é o número anormalmente (73 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo, 10 cantigas satíricas e elevado de notas por sílaba — três notas, em média. Na tradição 3 pastorelas) e foi muito apreciada, tanto no seu tempo como provençal e francesa, a maioria das sílabas é cantada com uma só depois da sua morte. Nesta ocasião, um jogral de León escreveu nota. Este carácter florido, ou melismático, das cantigas de D. os seguintes versos: Dinis, poderá relacionar-se com algumas das Cantigas de Santa Maria de Alfonso X, e também com as canções do trovador Gui- Os trobadores que pois ficarom raut Riquier, que passou vários anos na corte castelhana. Por en o seu regno e no de Leon, outro lado, há quem interprete a música do parisiense Jehannot no de Castela, no d’Aragon, Lescurel (c. 1300?) como sendo a transposição escrita, para os nunca pois de sa morte trobaron. géneros em voga no início do século XIV (“formes fixes”), de E dos jograres vos quero dizer: uma tradição ornamental de origem trovadoresca. Nesta hipo- nunca cobraron panos nen aver tética tradição tardia, as notas correspondentes a cada sílaba e o seu bem muito desejaron. seriam amplificadas com “floreios” vocais. Estes “floreios” não teriam precisado, no ambiente trovadoresco francês, de ser apesar de se conhecerem os textos das suas cantigas desde o escritos na pauta. Será possivelmente dessa tradição que fala o século XIX (através de cópias tardias de uma antologia medieval, tratadista Johannes de Grocheio no tratado De Musica (c. 1300) talvez o Livro das Cantigas do Conde de Barcelos, filho bastardo quando nos diz: “o cantus coronatus tem sido chamado por alguns do rei), acreditava-se que a sua música se tinha perdido na tota- de conductus simples; a bondade da sua poesia e da sua música leva lidade. Todavia, em Julho de 1990 o professor americano Har- os mestres e estudantes [da arte trovadoresca] a coroá-lo à volta dos vey Sharrer encontrou em Lisboa, nos arquivos nacionais, as tons, como nos franceses Ausi com l’unicorne ou Quant li roussi­ melodias (incompletas) de sete canções, num fólio fragmentá- gnol. Costuma ser composto por reis e nobres e é cantado na presença rio escrito por volta de 1300. A este documento (Lisboa, Arquivo de reis e senhores da terra de modo a comover os seus ânimos no sen­ Nacional da Torre do Tombo, Fragmento, cx. 20, n.º2) veio a tido da audácia e da fortaleza, da magnimidade e da liberalidade, chamar-se, em homenagem a quem o descobriu e estudou, coisas que levam, todas elas, à boa governação”. Se o cantus corona­ “Pergaminho Sharrer”. As canções nele contidas são cantigas de tus era um tipo de canto lento e ornamentado, digno de reis e de amor (trovas em galego-português de assunto amoroso), o que nobres, tal como o descreve Grocheio, não haverá melhor ilus- as torna, juntamente com as cantigas d’amigo de Martin Codax, tração desse estilo musical do que as cantigas do rei português. as únicas composições trovadorescas ibéricas actualmente conhecidas com a sua música. a divulgação da descoberta um trovador completo, no século XIII, devia ser capaz não só de inventar o texto literário, mas também de criar e controlar a pouco mais de um ano após a descoberta do “Pergaminho execução da respectiva melodia. Sendo neto de Alfonso X, D. Sharrer”, a sua música foi pela primeira vez apresentada ao Dinis teve acesso ao trovadorismo galego-português praticado público e parcialmente cantada por um intérprete moderno. na corte castelhana e à música andaluza que aí era conhecida. Isso sucedeu em Outubro de 1991, em Lisboa, durante um Con- Como filho do rei português Afonso III (dito o Bolonhês por ter gresso internacional de Literatura Medieval. Para essa ocasião, passado mais de quinze anos no norte de França como Conde de o tenor Gonçalo P. Gonçalves gravou experimentalmente a can- Boulogne), D. Dinis bebeu na tradição galego-portuguesa da sua tiga VI. Uma tentativa de execução profissional deste repertório corte, por sua vez influenciada pelo exemplo dos trouvères do deu-se a 2/9/1992 em Utrecht (Holanda), por Stevie Wishart e o norte de França, com quem o pai e o seu séquito tinham convi- seu grupo Sinfonye; ainda nesse mês o concerto foi repetido em vido. O casamento com D. Isabel, filha dos reis de Aragão, em Londres. Nesses concertos o material foi livremente conden- cuja corte se cultivava o trovadorismo occitano, ofereceu-lhe sado, e a execução foi sobretudo instrumental. A 12/2/1994, em um canal de acesso privilegiado à tradição poético-musical da Davis (Califórnia), Paul Hillier, a solo, cantou pela primeira vez zona pirenaica. o conjunto das sete cantigas, reconstruídas por M. P. Ferreira, a análise da música das cantigas de d. dinis revela um com- seguindo-se a sua primeira gravação comercial. A primeira positor de tipo tradicional, muito ligado à oralidade, mas, não apresentação integral na Europa deu-se em Leiria (Portugal) obstante, subtil no tratamento do pormenor. Longe de eviden- em Junho de 1995, pelas Vozes Alfonsinas, tendo como solista o ciar a influência do canto eclesiástico, parece bem enraizado barítono Luís Rodrigues. nas tradições trovadorescas europeias, mas com uma tendência a edição moderna destas cantigas sofreu vários sobressaltos: para a ornamentação melódica que se afigura mais tipicamente em 1993, o documento foi sujeito a uma tentativa de restauro ibérica, ou tardia. A música flutua de acordo com uma pulsação que o desfigurou, apagando parte da notação musical, já lacu- regular que abarca uma ou duas posições silábicas. Comparado nosa na origem. Tendo o descobridor do fragmento adiado sine com Martin Codax, o estilo musical é muito diferente, emocio- die a publicação do seu estudo do manuscrito, a divulgação da nalmente mais neutro e notoriamente mais solene, mas tam- edição/reconstrução das melodias pelo seu colaborador musi- bém formalmente mais variado, o que se pode atribuir tanto ao cológico, pronta no Verão de 1994, ficou comprometida. Reali- carácter mais aristocrático do género cantiga d’amor, como ao zaram-se vários concertos e saíram três gravações discográficas, elevado estatuto social de Dom Dinis. A notação musical das até ser possível a publicação do livro Cantus coronatus (Kassel: suas cantigas (que se pode atribuir a raros copistas musicais e Reichenberger, 2005), que tem permitido a mais músicos e não ao rei) é, no contexto dos cancioneiros profanos europeus, melómanos apreciar e apropriar-se deste repertório único.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 55 CRONOLOGIA 1307 — Novo empréstimo de D. Dinis ao rei de Castela 1308 — Tratado de comércio com o rei de Inglaterra 1196 — Datação da primeira cantiga conhecida em Galego­ 1309 — D. Dinis auxilia militarmente a guerra contra Granada ‑Português, por Johan Soarez de Paiva 1311 — Nasce o primeiro neto de D. Dinis, futuro Alfonso XI 1253 – Casamento do rei D. Afonso III de Portugal (separado da de Castela e Leão Condessa Matilde de Boulogne) com D. Beatriz de Guillén, filha 1314 – D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis, torna-se Conde de de Alfonso X de Castela e Leão Barcelos 1261 – Nascimento de Dom Dinis, primeiro filho varão de D. 1318 – Peregrinação de D. Dinis a Santiago de Compostela Afonso III e D. Beatriz 1319 — Início da guerra civil que oporá até 1324 D. Dinis e o 1263 –Tendo a Condessa Matilde falecido, o papa legitima príncipe herdeiro D. Afonso, apoiado por sectores da nobreza o segundo casamento de D. Afonso III que contestam a política centralista do rei 1265/1267 – Dom Dinis visita o seu avô D. Alfonso X em Sevilha, 1321 — Aprovação papal da fundação da Ordem de Cristo, a qual, levando-lhe cavaleiros para o seu esforço de guerra. Assinatura por proposta de D. Dinis, herdará os bens dos Templários do tratado de Badajoz, pelo qual D. Alfonso X cede a Dom Dinis 1323 — D. Dinis cria uma cátedra de Música na Universidade a posse nominal do Algarve (conquistado e ocupado desde 1250 portuguesa pelos portugueses) 1324 — Tratado de paz entre D. Dinis e o príncipe herdeiro 1278 – D. Afonso III organiza a “casa” de D. Dinis, associando-o 1325 — Morte de Dom Dinis ao governo do reino c.1340-54 – D. Pedro, Conde de Barcelos, colige um Livro das 1279 – Morre D. Afonso III. D. Dinis sobe ao trono Cantigas, grande colectânea da poesia galego-portuguesa, que 1281 – Casamento, por procuração, entre Dom Dinis e D. Isabel em testamento lega a D. Alfonso XI, rei de Castela, seu sobrinho. de Aragão, filha do rei D. Pere III Compila também um Livro de Linhagens e redige a Crónica 1282 — D. Isabel chega a Portugal. D. Beatriz vai para Sevilha Geral de Espanha de 1344, depois traduzida para castelhano apoiar o pai, Alfonso X, na luta contra o infante D. Sancho. Dom Dinis chega a acordo com os bispos portugueses para pôr termo BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA ao conflito que se arrastava desde 1275 1285 – A infanta D. Branca, irmã de D. Dinis, torna-se abadessa HISTÓRIA de Las Huelgas (Burgos). Nasce por volta deste ano o filho bas- José Augusto S. M. PIZARRO, D. Dinis, Lisboa: Círculo de Leitores, tardo de D. Dinis, D. Pedro, futuro Conde de Barcelos 2005 1288 — D. Dinis pede a Roma que reconheça e apoie a fundação POESIA de uma Universidade em Portugal Elsa GONÇALVES, “Denis, Dom”, in Giulia LANCIANI & Giu- 1291 – Nasce o infante D. Afonso, herdeiro da coroa seppe TAVANI (coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega 1292 — D. Dinis envia cavaleiros para ajudar no cerco e con- e Portuguesa, Lisboa: Caminho, 1993, pp. 206-12 quista de Tarifa D. DINIS, Cancioneiro, ed. Nuno Júdice, Lisboa: Teorema, 1998 1293 – Liberdade de comércio entre Portugal e a Inglaterra MÚSICA 1295 — D. Dinis funda o Mosteiro de Odivelas, onde será sepul- Manuel Pedro FERREIRA, Cantus Coronatus — Sete cantigas d’El­ tado. Declara guerra a Castela, que termina com a cedência ‑Rei Dom Dinis/ Seven Cantigas by King Dinis of Portugal, Kassel: a Portugal de Moura, Serpa e Mourão, e promessa de cedência Reichenberger, 2005 de outras localidades Manuel Pedro FERREIRA, Antologia de Música em Portugal na 1296 – D. Dinis ocupa Salamanca, Tordesillas e Simancas, Idade Média e no Renascimento, 2 vols. e 2 Cds, Lisboa: Arte das incorporando depois no reino a comarca de Ribacôa (Castelo Musas / Cesem, 2008 Rodrigo, Alfaiates, Sabugal). Combate naval entre Portugal Manuel Pedro FERREIRA, Aspectos da Música Medieval no Oci­ e Castela. Adopção do Português como língua oficial da chance- dente Peninsular. Vol. 1: Música palaciana, Lisboa: Imprensa laria régia Nacional/ Fundação Calouste Gulbenkian), 2009 1297 – Assinatura do tratado de Alcañices, que estabelece o tra- çado das fronteiras entre Portugal e Castela-Leão. Passam para DISCOGRAFIA o domínio português localidades na Ribacôa e também Olivença e Campo Maior, perto de Badajoz. D. Dinis faz doações às ordens As sete cantigas de Dom Dinis serão de seguida referidas pelo militares seu número de ordem no “Pergaminho Sharrer”, que conserva 1298 — D. Dinis presta auxílio militar ao rei de Castela a sua música: 1299 — D. Dinis organiza uma Capela Real no seu Palácio 1300 — D. Dinis doa a cidade de Leiria à rainha D. Isabel. Exílio Cantiga I: “Pois que vos Deus, amigo, quer guisar” em Castela do infante D. Afonso. Por volta deste ano é compi- Cantiga II: “A tal estado m’adusse, senhor” lado o cancioneiro musicado de que o “Pergaminho Sharrer” Cantiga III: “O que vos nunca cuidei a dizer” é o único testemunho Cantiga IV: “Que mui gran prazer que eu ei, senhor” 1302 — Casamento do rei Fernando IV de Castela com D. Cons- Cantiga V: “Senhor fremosa, non poss’eu osmar” tança, filha de D. Dinis Cantiga VI: “Non sei como me salv’ a mia senhor” 1303 — D. Dinis empresta um milhão de maravedis ao rei Cantiga VII: “Quix ben, amigos, e quer’ e querrei” de Castela 1304 — D. Dinis arbitra o conflito entre Castela e Aragão, e tam- bém o conflito entre o rei castelhano e os pretendentes ao trono

56 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Paulina Ceremuzynska: Cantigas de amor e de amigo, Paul Hillier, Margriet Tindemans, Theatre of Voices: ­Clave Records 3015-CD (2004) | 51’ 41’’ Cantigas from the Court of Dom Dinis. Harmonia Mundi/ France, HMU 907129 (1995) | 69’ 35’’ Não tendo acesso à edição crítica deste repertório, em 2004 ainda Paul Hillier fez a estreia moderna, integral, das sete cantigas de inédita, e não se deixando intimidar pelo estado lacunoso Dom Dinis, na Califórnia, em Fevereiro de 1994, e gravou-as na do manuscrito, Paula Ceremuzynska e a harpista Zofia Dowgiallo sequência desse concerto; baseou-se numa edição preliminar procederam a reconstruções hipotéticas de algumas passagens de M. P. Ferreira. O disco inclui ainda duas Cantigas de Santa de modo a chegar a uma edição cantável. Porém, baseando-se prova­ Maria (198 e 327) e cinco poemas galego-portugueses cantados velmente em fotografias que reflectem a degradação do perga- sobre melodias retiradas dessa mesma colecção. Estas canções, minho original (na sequência de uma desastrada tentativa de que contêm uma boa dose de lirismo e de humor, constituem restauro), não conseguiram evitar pequenos erros de leitura e, a primeira parte do CD. As sete cantigas de D. Dinis aparecem devido ao desaparecimento de uma clave de dó, uma fantasiosa de seguida, agrupadas, sendo unicamente separadas por prelú- escala musical na cantiga III. O seu trabalho é, apesar de tudo, dios instrumentais algo longos (entre c. 30’’ e 1’ 30’’), compos- criterioso, e a opção por uma forma musical contínua na cantiga II tos por Margriet Tindemans. Domina a voz solo de Hillier. Dado (do tipo CD/E em vez de AB/C, proposto por Ferreira) que tanto as cantigas como os prelúdios usam material melódico merece atenção. Neste CD de 2004 a voz é geralmente acompa- similar, a sequência gera alguma monotonia. A interpretação nhada por uma harpa, às vezes substituída por alaúde ou fídula, tem como principais qualidades a sobriedade e a total adesão ou reforçada por percussão. A interpretação valoriza o detalhe ao sentido do texto poético, o que leva a um fraseado largo, nos motívico e o diálogo com o instrumento acompanhante, produ- limites da capacidade respiratória do cantor. As versões das zindo uma textura densa, decorativa, de agradável audição; às vezes cantigas I, II, III e V são especialmente conseguidas; Hillier está perde-se direccionalidade melódica, como na cantiga I, mas isso menos à-vontade nas cantigas IV, VI e VII; aliás, a reconstrução é parcialmente compensado pela energia rítmica e pela limpi- melódica em que se baseia na cantiga IV foi posteriormente dez vocal. As “fiindas” dos poemas são devidamente marcadas. modificada pelo editor. A dicção é clara e adequada, se bem que desnecessariamente arcaizante na realização do “c”. As cantigas V e VI são executadas Vozes Alfonsinas, dir. Manuel Pedro Ferreira: O Tempo dos de forma especialmente convincente, o mesmo sucedendo, apesar Trovadores/ The Time of the Troubadours, Strauss/PortugalSom, da edição desadequada, com a cantiga III. A rara sensibilidade SP 4287 (2000) | 69’ 24’’ de Paulina Ceremuzynska está ainda patente na excelente inter­ pretação de quatro cantigas d’amigo de Martin Codax (I-II-V-VII), Este disco, gravado em 1999, inclui, a par de duas cantigas de que ombreia com as melhores gravações disponíveis, quando não D. Dinis (I e VII) seis Cantigas de Santa Maria (narrando as supera. Em complemento, duas cantigas adicionais de D. Dinis ­milagres ocorridos em Portugal), alguns contrafacta galego­ (“En grave dia” e “Amigo, queredes vos ir”) são-nos propostas ‑portugueses e três canções árabo-andaluzas. A opção, relativa- com uma melodia nova e outra do trovador occitano Cadenet. mente a D. Dinis, foi de usar vozes a solo (o tenor Arménio Granjo interpreta a cantiga I, o barítono Luís Rodrigues, a VII), Vozes Alfonsinas, dir. Manuel Pedro Ferreira: Antologia embora se recorra a uma nota-pedal para destacar o refrão da sonora — Dos Visigodos a Dom Sebastião, in Antologia de primeira peça. As edições usadas foram as de M. P. Ferreira, Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, Lisboa: a quem coube igualmente a direcção artística. Procurou-se Arte das Musas / Cesem, 2008 | MU 0104 (2008) | 66’ 00’’ sublinhar a continuidade do texto, sem deixar de explorar os detalhes retóricos da linha melódica; se na cantiga I o resul- Entre as composições incluídas neste disco antológico, contam­ tado é comparável à gravação de Hillier, na cantiga VII a adesão ‑se duas novas gravações das cantigas I e IV do Pergaminho à ironia do poema resulta numa prestação mais convincente. Sharrer: a primeira com diferente solista do disco anterior Este CD inclui ainda a cantiga de D. Dinis “Senhor, pois me non (Gonçalo Pinto Gonçalves), e acompanhamento de alaúde queredes” cantada sobre uma melodia do trovador francês (Nuno Torka Miranda), beneficiando do à-vontade interpre­ Conon de Béthune. tativo ganho através da repetida apresentação em concerto; a segunda, a voz solo, segundo a edição definitiva de M. P. Fer- reira (mesmo cantor). O volume II da Antologia em que se integra este CD oferece ainda uma edição revista da cantiga VI. Esta última gravação é a única das quatro aqui referidas que se encontra ainda disponível comercialmente, através da wook.pt.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 57 efeméride David Perez De Nápoles a Lisboa

logo após ter completado a sua formação, em 1733, terá JOÃO PAULO JANEIRO | TEXTO entrado ao serviço do Príncipe de Aragona, Diego Naselli, com o qual desenvolveu uma relação de profunda amizade e admira- ção. Prova disso mesmo é a pensão vitalícia que lhe foi atribuída évora, 1991. numa das minhas demandas por peças de com- por este monarca siciliano, mesmo após David Perez ter saído positores portugueses do século dezoito, passíveis de serem definitivamente do seu serviço, em 1748; é dado com provável incluídas num programa de concerto dedicado à Natividade, por Maurício Dottori, musicólogo que estudou extensivamente resolvi estudar um conjunto de responsórios destinados à Festa a sua obra, que Perez, num gesto de homenagem ao seu patrono, dos Reis que se encontram guardados na Biblioteca Pública terá identificado várias obras da sua autoria com o nome de de Évora: Magi Veniunt, Omnes Saba, Reges Tharsis, Iluminare, ­Egidio Lasnel, anagrama de Diego Naselli. In Columbae specie, Hodie in Jordane. Algumas destas peças têm a relação profissional com naselli ter-se-á iniciado em compositor identificado, outras não. Porém, todas se destinam 1734, ano do qual datam as suas primeiras cantatas latinas llium a um conjunto de vozes agudas, violinos e órgão. palladio astu subducto expugnatum e Palladium, executadas no foi nesta circunstância que tive o primeiro contacto com colégio dos jesuítas de Palermo. Em 1738 é nomeado vice­mestre ­fontes musicais de obras de David Perez, podendo constatar na da Real Capela da Capela Palatina desta cidade, e, em 1739, execução prática a espessura da sua arte enquanto compositor, ascende ao cargo de mestre de capela, tendo a sua reputação e, posteriormente, o alcance que teve a sua vinda para Lisboa, profissional completamente consolidada a partir desta altura. em 1752, na actividade musical do país. aproximadamente até metade do período em que perma­ david perez nasceu em nápoles em 1711, sendo filho de Giovanni neceu ao serviço da capela do Príncipe de Aragona, em 1744, Perez e Rosalina Serrari. Em 1722, ingressou no Conservatório David Perez terá escrito essencialmente música sacra e algumas de Santa Maria do Loreto, onde teve a sua formação de músico ­serenatas avulsas. Deste período é uma missa para dois coros prático e compositor, tendo estudado canto, contraponto e cravo e grande orquestra, datada de 24 de Fevereiro de 1740, que, com Francesco Mancini e Giovanni Veneziano, e violino, certa- mais tarde, em 1761, viria a refazer por ocasião do baptizado mente, com Francesco Barbella — embora, posteriormente, seja do Príncipe da Beira e do Brasil, filho de D. Maria I. É também referido que terá sido discípulo de Leonardo Vinci —. Segundo desta época a sua ópera Il Siroe, re di Persia, estreada a 4 de Novem­ o célebre viajante inglês, Charles Burney, Perez era um violi­ bro de 1740 no Teatro de San Carlo de Nápoles, onde actuaram nisita extraordinário: “li suonatore dificilíssimo”. Característica os castrados Gaetano Majorano, conhecido por Caffarelli, que pude constatar em várias obras suas, pela dificuldade e Giovanni Manzuoli. Esta viria a ser a ópera com que se estreou de execução das partes destinadas a este instrumento. na corte portuguesa, a 12 de Setembro de 1752.

58 | glosas | número 4 | novembro | 2011 a sua primeira obra do género operático foi, no entanto, La nemica amante, a qual foi escrita para o aniversário do Rei Carlos I em 1735, e apresentada nos jardins do palácio real de Nápoles e no Teatro de São Bartolomeu desta cidade. No libreto, o empresário do teatro refere-se a David Perez e a Giovanni Battista Pergolesi como “dei buoni virtuosi di questa città”. posteriormente, veio a desenvolver uma carreira brilhante como compositor de música dramática em toda a Itália e também na Áustria, vindo a competir em provas públicas com Nicolò Jommelli pela posição de mestre de capela do Vaticano no ano de 1749. esta contenda resultou a favor de jommelli, mas um colega, Girolamo Chiti, mestre de capela de San Giovanni in Laterano, com estatuto respeitado no meio, referencia-o numa carta ao Padre Martini como muito mais competente que Jomelli: “compõe, canta e toca como um anjo”. Porém, assinala um traço de persona­ lidade: o hipocondrismo, que mais tarde viria a ter razões para desenvolver, em Lisboa, na sequência do terramoto de 1755. é no contexto de uma tournée de sucesso enquanto compo­ sitor de ópera que, em Abril ou Maio de 1752, em Milão, Perez é convidado a servir na Corte Portuguesa, sendo-lhe oferecido o posto de Mestre de Música da Princesa do Brasil (futura D. Maria I), Mestre de Capela no Seminário da Patriarcal, e Mestre da Música da Corte, tudo a troco do salário absolu­ tamente extraordinário de 2.000$000 reis (2 contos de reis). A título comparativo, refira-se que o salário de um músico per- tencente à Orquestra da Real Câmara, em 1762, oscilava entre esta política de apoio à música profana, levada a cabo pela 260$450 e 345$600 réis. Coroa, era expressão do esforço de afirmação real pela activi- conjuntamente com o compositor, veio também na altura, dade operática, por contraste com o favorecimento da música e posteriormente, uma plêiade de cantores famosos, a maioria religiosa protagonizado por D. João V. Paradoxalmente, contra- dos quais de origem italiana, além de técnicos, encenadores riando todos os planos de reactivação da actividade operática e instrumentistas, que permitiriam incrementar e consolidar em Portugal, esta diminuiu significativamente com o terramoto, decisivamente a implantação da ópera italiana em Portugal. e muitos dos estrangeiros que tinham vindo abandonaram David Perez podia assim contar com os melhores meios possí- o país, vítimas do pavor que o cataclismo produziu. Caffarelli, veis para a execução das suas obras, tanto do ponto de vista que tinha sido contratado em 1755, participou em quatro óperas musical, como do teatral, o que terá contribuído também para e partiu para Madrid, onde estava Farinelli. a sua decisão de permanecer em Lisboa até ao fim da sua vida. o contexto social lisboeta era pesado, alimentado por vários entre os cantores contratados para a Corte de Lisboa conta- profetas da desgraça, entre os quais o jesuíta Gabriel Malagrida, vam-se verdadeiras estrelas do universo operático europeu: e aproveitado pelos meios clericais para a expansão do senti- Gizziello, Manzuoli, Caffarelli, Raaf, Elisi, Puzzi, Reyna, entre mento de culpa pela procura do luxo e da magnificência no culto outros. Na primeira ópera de Perez apresentada a 12 de Setem- de actividades mais mundanas, como a ópera italiana, em detri- bro de 1752, no Paço da Ribeira, actuou já o famoso Gizziello, mento da música religiosa mais conservadora. contratado em Milão por quantias, consideraram muitos, abso- este ambiente pesado que lisboa e o país carregava no pós- lutamente exorbitantes. Seguiram-se as récitas de Demofonte, ­‑terramoto, e que culminou com o desaparecimento de dezenas Olimpiade e L’eroe cinese, em 1753, Adriano in Siria, L’ipermestra, de milhares de pessoas, bem como de um vasto património onde em 1754, e Allessandro nell’ India a 31 de Março de 1755, por oca- se inclui a famosa Livraria Real, resultou numa mudança signi- sião de inauguração da sumptuosa Casa da Ópera, designada por ficativa da actividade musical. Recentrada novamente na esfera Ópera do Tejo, considerada logo uma das maiores da Europa do religioso, surge marcada por um pietismo e misticismo (mas que, malogradamente, viria a ser destruída sete meses ­particulares. depois, aquando do terramoto). Deste espectáculo há memórias são estas também algumas das qualidades que marcaram impressionantes, onde se destaca o aparecimento em palco de a música fúnebre que se executava em Lisboa. Neste sentido, um conjunto de cavalos, representando uma falange de Mace- o célebre viajante inglês William Beckford, que passou por dónios. Além destas óperas, várias outras foram apresentadas ­Portugal em finais do século dezoito, relata-nos no seu diário no Teatro de Salvaterra. a experiência de audição das famosas matinas de David Perez

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 59 e da Missa de Requiem de Jommelli: “Fui aos mártires para ouvir de material pedagógico para o ensino musical das princesas — as famosas matinas de Perez. A música, majestosa e comovedora, solfeggi —, e alguma música instrumental, neste período, Perez para além de toda a descrição, a esplêndida decoração da igreja fora escreveu apenas cinco óperas e algumas serenatas. Nesta fase substituída por paramentos de luto, o coro forrado de preto, os altares final da sua vida foi também professor de canto de Luísa Aguiar, velados, o altar-mor coberto de panejamentos púrpura e ouro, e no que mais tarde veio a ser conhecida por Luísa Todi. meio do coro catafalso rodeado de castiçais e altas velas. […] Primeiro sofreu de pleuresia, sendo que, no ano da sua morte, em 1778, um silêncio tremendo e depois o solene ofício dos finados. Os músicos D. Maria I fê-lo Cavaleiro da Ordem de Cristo. Faleceu no dia até empalidecem quando cantam Timor mortis, etc. […] Depois 30 de Outubro por volta do meio-dia, após ter sido entregue aos do Requiem, a Missa Solene de Jommelli em comemoração dos cuidados dos frades Capuchinhos Italianos, dos quais recebeu defuntos. Fecha com o Libera me, Domine. Eu tremia todo e pouco a Extrema-Unção. A rainha ordenou um funeral com a devida faltou para chorar. […] Tão majestosa e comovedora música foi pompa, com todas as despesas pagas pela Coroa, durante o qual coisa que nunca ouvi e que talvez nunca mais ouça, porque a chama terá sido executado o Matuttino de morti, pelos músicos da Capela do entusiasmo religioso está a apagar-se em quase toda a Europa Real. e ameaça extinguir-se totalmente dentro de poucos anos. Como ainda a situação privilegiada que David Perez usufruiu em Portugal arde em Lisboa, consegue produzir, em nossos dias, a mais impres­ permitiu-lhe trilhar um caminho num certo sentido mais indi- sionante expressão musical. Todas as figuras da orquestra parecem vidual, livre dos constrangimentos do meio musical italiano, compenetradas do espírito daquelas terríveis palavras que Perez notando-se na sua escrita uma preferência crescente pelo pathos e Jommelli musicaram com uma tão tremenda sublimidade. Não só em detrimento da exibição superficial da bravura. O ritmo har- a música, até o sério porte dos executantes e dos sacerdotes que ofi­ mónico das suas obras tende a ser mais lento, e grande parte ciavam, bem como, na verdade, de toda a congregação, era de molde da expressão do sentido do texto depende essencialmente do tra­ a transmitir um solene e religioso do mundo além­campa.”. tamento motívico e da orquestração, verificando-se a procura este expressivo testemunho da época relativo à data de 26 de uma expressão mais intuitiva, o que o afasta de algumas das de Novembro de 1787 reporta-se a uma das circunstâncias em convenções da retórica barroca. que o famoso Matuttino de Morti foi executado, no contexto das a sua produção musical é extensa tanto no domínio da ópera cerimónias da Irmandade de Santa Cecília de Lisboa. O texto como no da música religiosa, e em ambos os géneros se encon- traduz de um modo extremamente vivo a experiência auditiva tram composições extraordinárias, das quais o Matuttino de morti e o contexto de execução, pleno de rituais e de teatralidade, em é, sem dúvida, um dos exemplos mais notáveis. que as grandes celebrações religiosas da capital se encontravam a sua obra religiosa foi estimada e copiada um pouco por mergulhadas. toda a Europa. Em Portugal, encontrei peças de David Perez em no mesmo ano em que perez foi convidado a integrar a Acade­ quase todos os arquivos musicais que visitei, sejam eles públi- mia de Música Antiga de Londres, foi feita uma edição impressa cos ou privados, estejam elas catalogadas ou não. Mas, neste desta obra naquela cidade, em 1774, apoiada por um conjunto aspecto, estamos ainda numa fase demasiado filológica da musi- de subscritores notável. Trata-se de uma das mais belas edições cologia para termos uma imagem global da produção musical da época, e é a única obra de sua autoria que Perez viu impressa. dos compositores activos em Portugal, no século dezoito. Rotei- depois do terramoto, acompanhou a deslocação da Corte para ros, inventários e catálogos dos arquivos musicais nacionais a Ajuda, vindo a residir bastante próximo da Real Barraca, num continuam por concluir e difundir, impedindo que a relevância prédio que faz esquina com a Rua do Jardim Botânico, hoje da nossa História da Música tenha o seu devido alcance no con- o Ajuda-Clube. Nos restantes vinte e três anos da sua vida escre- texto europeu. veu quase exclusivamente música religiosa, numa produção para vinte anos depois de ter transcrito os responsórios dos Reis quase todos os contextos litúrgicos, em que a música polifónica da Biblioteca Pública de Évora, e após ter estudado a escrita de poderia ter um papel relevante. Cerca de cento e quinze obras Francisco António de Almeida, posso agora avançar com a hipó- litúrgicas, dentre as quais missas, antífonas, litanias, salmos, tese de que o responsório Hodie in Jordane, que supus ser, na responsórios, lamentações, hinos, motetes, oratórias e sequên- altura, de David Perez, se trate afinal de uma obra de Almeida. cias, sendo a maior parte delas para solistas, coro e orquestra, por todo o trabalho que falta fazer em Portugal, no âmbito excepto se se destinavam à Patriarcal. Predominam as peças da musicologia, é que as iniciativas que contribuam para o estudo, dedicadas à Virgem Maria, facto ao qual não será alheio o espe- a difusão e o conhecimento do nosso património musical devem cial apreço pelo culto mariano existente em Portugal. Além merecer o nosso total apoio.

60 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Joly Braga Santos Jorge Peixinho Uma amizade improvável?

onde fora um aluno brilhante. Uma vez em Itália, rapidamente PIEDADE BRAGA SANTOS | UM TESTEMUNHO aderiu às correntes mais avançadas da música da época. Mas isso não impediu que se entendesse com o meu Pai desde o iní- cio. Apesar das diferentes personalidades e escolhas estéticas, a geração de jorge peixinho operou uma absoluta ruptura no tinham em comum a paixão pela música, o empenho numa car- meio musical português, tanto estética como de atitudes, ante reira profissional na composição, a integridade artística eas uma sociedade fechada, conservadora e preconceituosa. Rup- mesmas atitudes perante o meio cultural português da época. tura ainda mais notável quando estávamos em plena ditadura e a as bolsas eram curtas, sobretudo a de Joly Braga Santos, que travar uma guerra colonial. Que o primeiro campeão da sua tinha a mulher e uma filha para sustentar. E ambos preferiam música e responsável pela estreia das suas primeiras obras, gastar dinheiro em livros, partituras e bilhetes para os concer- durante a década de sessenta, tenha sido Joly Braga Santos, tos e para a ópera. compositor que se encontrava nos antípodas estéticos da van- jorge peixinho estava alojado num pequeno quarto e ia guarda, parece, à primeira vista, improvável. comer fora todos os dias. Um dia, a minha Mãe sugeriu que o joly braga santos e jorge peixinho conheceram-se em Roma Jorge colaborasse nas compras da mercearia e fosse lá comer a em 1959. Peixinho acabara de chegar com uma bolsa da Gul- casa, em vez de gastar o dinheiro no restaurante. Foi assim que benkian. Ia estudar com Boris Porena e Godoffredo Petrassi, o conheci, tinha pouco mais de um ano de idade e, segundo a também professor do meu Pai. Joly e a mulher viviam então em minha Mãe, eu já dizia tudo. Roma, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Conhece- criou-se entre os três uma enorme amizade, fundamentada ram-se no Conservatório e rapidamente se tornaram amigos, não apenas nos interesses comuns a estudantes de música numa apesar da diferença de idades entre ambos. O meu Pai admirava cidade estrangeira, mas também na possibilidade da troca de no Jorge a sua sólida formação musical, óbvio talento e inteli- impressões e ideias sobre arte - todas as artes e não apenas a gência artística, e empenho absoluto e apaixonado na composi- música -, que o convívio familiar quase diário proporcionava. ção, notáveis num rapaz tão novo. E o Jorge, um rapaz um pouco Passeavam muito por aquela maravilhosa cidade de Roma, iam solitário, pela primeira vez no estrangeiro, deve ter-se sentido aos concertos, aos museus, ao cinema, e tudo era pretexto para atraído pela personalidade calorosa e proverbial generosidade conversas e aprendizagem. do meu Pai, ajudado pelo temperamento acolhedor da mulher. o peixinho era, como todos sabem, um excelente pianista. Poderia o peixinho tinha terminado o conservatório em Lisboa ter seguido uma carreira profissional se não tivesse escolhido

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 61 Jorge Peixinho e a sua namorada, à esquerda, com Joly Braga Santos, à direita a Composição. Ajudou muito a minha Mãe nos seus estudos no voltámos para portugal no verão de 1961. A minha irmã Conservatório, onde estava inscrita nas classes de Canto e Piano. nasceu a 15 de Agosto. O meu Pai não voltou para o Porto. Tinha Acompanhava-a frequentemente ao piano durante os ensaios, conseguido um modesto lugar na Rádio em Lisboa, como maes- dando sugestões musicais utilíssimas e deu‑lhe uma ajuda pre- tro assistente, posição que tinha a grande vantagem de lhe dei- ciosa na preparação das aulas e dos exames. xar tempo livre para compor. Continuava, porém, a dirigir regu- em 1961, quando JBS foi convidado para dirigir um concerto larmente a Orquestra Sinfónica do Porto, que fora entretanto para a RAI, com a Orquestra Scarlatti de Nápoles, pensou ime- integrada na Emissora Nacional. diatamente em incluir no programa obras de dois talentos o peixinho tinha ido estudar composição para a Alemanha, emergentes da nova geração de compositores portugueses: primeiro para Darmstadt e depois para Basileia, na Suíça, com Álvaro Cassuto e, claro, Jorge Peixinho. E foi assim que aconte- uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Voltou em 62 e aterrou lá ceu a primeira estreia internacional destes dois músicos com as em casa cheio de novidades, desejoso de retomar as conversas obras Variações para Orquestra de Cassuto e Políptico 1960 de Pei- com o meu Pai e de lhe mostrar as obras que tinha escrito. Foi xinho, em primeiras audições absolutas. Uma obra sua, outra de uma alegria! Experimentou logo falar comigo em italiano, para Fernando Lopes-Graça e peças dos séculos XVII e XVIII - o auge ver se eu me tinha esquecido... “Não, não”, exclamou a minha da polifonia portuguesa - compunham o resto do programa. Mãe, “continuamos a falar italiano cá em casa!”. O convívio regu- o diálogo entre as antigas e novas gerações, a natural evolu- lar foi retomado, e até reforçado, pois, no ano seguinte, sem ção histórica das estéticas esteve sempre presente, era mesmo conseguir mais adiamentos, o Jorge foi chamado para fazer intrínseca na atitude mental de JBS perante a música e os seus a tropa. Destacado para a recruta em Tancos, podia vir a Lisboa criadores. Fora essa a lição e o exemplo do Mestre, Luís de Freitas ao fim-de-semana. Chegava lá a casa para jantar todas as sextas­ Branco, assimilada pelos seus alunos, e que compositores como ‑feiras, cansado, esfomeado, com a farda suja e aquele cheiro Fernando Lopes-Graça, Joly e Artur Santos sempre seguiram. a quartel, que ainda hoje recordo. Mas tinha os bolsos cheios não me recordo desses anos em itália. Era muito pequena. Mas de rebuçados que nos trazia da messe! A minha Mãe dava-lhe fui testemunha de uma amizade ímpar e singular que perdurou rapidamente uma toalha e depois de uma passagem pela casa até à morte precoce de JBS e continuou através da mulher e das de banho, mais composto e sem a farda, sentava-se no sofá com filhas. Eu e a minha irmã adorávamos o Peixinho. Era uma pes- um suspiro de satisfação. Estava novamente num ambiente soa cheia de qualidades humanas e tratava-nos com a maior das caloroso e familiar. A tropa foi um sofrimento para o pobre ternuras. Jorge! Sabia‑lhe bem brincar connosco, pegar-nos ao colo,

62 | glosas | número 4 | novembro | 2011 tocar-nos canções no velho piano. Até a minha irmã, uma titura?”. “Pois”, respondeu o meu Pai, “mas tu fazes música, não criança tímida e assustadiça, não resistia à bondade e ternura artes plásticas ou desenho! Queres ou não que a obra seja tocada? É com que o Jorge nos tratava. Tornava-se mais faladora na sua que vais perder uma semana de ensaios antes que os músicos deci­ presença e frequentemente lhe subia para o colo, para espanto frem isto!”. Era, como sempre, o conselho do músico eminente- inicial dos meus Pais. mente prático que o meu Pai era. A sua proverbial distracção assistir às conversas entre todos à mesa foi uma aprendiza- referia-se aos pormenores da vida diária, concentrado gem fascinante, que ainda hoje recordo com a maior das sauda- ­que estava no seu mundo musical interior. Mas a expressão des. O Peixinho ia frequentemente para o velho piano de casa desapontada do Peixinho comoveu a minha Mãe, que sugeriu: dos meus avós, de armação em madeira e com um vago som a “Deixa a partitura assim, é um belíssimo manuscrito. Mas faz outra, cravo – na época era o que havia lá em casa - ler as partituras do e partes de orquestra para os músicos, com a notação convencional, meu Pai, e as dele. E quando, em 68 ou 69, os meus Pais pude- se queres que a obra se toque. Não te lembras do trabalhão que ram finalmente comprar um piano novo, ninguém ficou mais nos deu apagar, antes do primeiro ensaio, os comentários sarcás­ contente que o Peixinho. Olhou para o instrumento entusias- ticos e ordinários dos músicos, no material de orquestra da obra mado - ele podia lá resistir a um piano -, sentou-se e começou a do Penderecky que veio de Espanha?”... tocar Bach. Eu fiquei de boca aberta! Posso dizer que foi ele que em 1970 ambos participam, com Luís Felipe Pires, no IV Curso me ensinou a gostar de Bach. Um intérprete que é também com- de iniciação à Música Contemporânea, organizado pela Funda- positor tem uma noção muito mais aguda da dialéctica perma- ção Calouste Gulbenkian, precursor da Semana de Música Con- nente entre harmonia e contraponto, e a maneira como Peixinho temporânea que esta instituição patrocinaria uns anos mais tocava tornava tudo transparente e audível. Ouvir Bach é um pra- tarde. É também o ano da fundação do Grupo de Música Con- zer emocional, mas também intelectual, se nos dermos ao traba- temporânea. E, ainda, do início da reforma do ensino do Con- lho de abrir bem os ouvidos e seguir o diálogo extraordinário que servatório em que tanto Jorge Peixinho, como Joly, João de Frei- nos é oferecido... tas Branco e outros, participaram entusiasticamente. O meu Pai a colaboração musical entre ambos continuou durante toda esperara por esta reforma quarenta anos! Pôde finalmente a década de sessenta. Em 1963, JBS estreou, com a Orquestra transformar o ensino da Educação Musical e da Composição, Sinfónica do Porto, a obra Políptico 1960 que executara em Nápo- que vinham do princípio do século, e reintroduzir a cadeira de les em 61. Análise Musical, que fora do Mestre Luís de Freitas Branco e em 1965, num concerto da juventude musical portuguesa, que era agora a sua. Foram tempos de muito trabalho para todos, foi a vez de Sobreposições, integrada num concerto de música mas também tempos de mudança e de muitas esperanças. E uma de vanguarda com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional, época de colaboração activa e prática entre Jorge Peixinho e Joly, no qual foram executadas, ainda, obras de Penderecky, Cristobal unidos por um mesmo ideal, cimentado em conversas e troca de Halffter e Álvaro Cassuto. ideias ao longo de doze anos de uma amizade sem falhas. 1965 foi também o ano do happening na Galeria Civilização, não falavam de política. O meu Pai sabia das convicções acontecimento que pôs em polvorosa a elite cultural lisboeta. ­ideológicas do Peixinho e respeitava-as. E Peixinho tinha uma Com organização do Jorge e colaboração de poetas e outros rara compreensão das razões muito íntimas e pessoais que leva- músicos, o evento entrou na história familiar por via da requisi- ram o meu Pai a recusar-se a tomar posições públicas sobre ção, pelo próprio, dos nossos instrumentos musicais de brin- o regime, apesar de o detestar. Prova do seu carácter muito car. Umas marimbas, uma pandeireta, várias caixas de música, especial foi a lealdade que sempre demonstrou para com uma flauta de plástico comprada na Feira Popular... Todos, aliás, o amigo, mesmo em momentos difíceis. Em 1970, após a estreia já bastante gastos pelo uso. A minha Mãe recolheu-os cuidado- da Trilogia das Barcas na Gulbenkian, surgiram diversas críticas samente num saco para lhos entregar. Aquilo intrigou-nos. mais ou menos verrinosas na imprensa. O Peixinho, que assis- Para que fim queria o Peixinho os nossos velhos brinquedos? tira ao espectáculo e que, emocionado, felicitara entusiasti­ Dias depois, quando apareceu para jantar, como de costume, camente o meu Pai no final, apareceu lá em casa no dia seguinte, perguntei-lhe. O Peixinho lá me explicou como pôde. Tendo furioso com o que os críticos diziam. Foi o meu Pai que o acalmou. entendido a questão, perguntei muito depressa: “Mas se vai usar “Não ligues! Isso não tem importância nenhuma!” – disse-lhe. “O que os meus brinquedos eu não posso assistir?“. “Claro que sim”, tem importância é que foi um grande sucesso de público e penso que ­respondeu ele, cortando pela raiz a recusa que a minha Mãe é a minha melhor obra até agora. Já estou habituado aos críticos tinha debaixo da língua. Felizmente, nessa noite, não havia e não ligo nenhuma.” ensaios – a minha Mãe na altura ainda cantava e tinha uma vida após a formação do grupo de música contemporânea, profissional atarefada – pelo que pôde acompanhar-me ao ­Peixinho pediu ao meu Pai, por diversas vezes, que escrevesse famoso happening. A Galeria estava cheia e acabámos sentadas uma peça. Este ainda iniciou um Epitáfio a Bruno Maderna, que no chão a um canto. Mas divertimo-nos imenso! entretanto falecera, mas, por razões desconhecidas, não chegou uma tarde, o peixinho apareceu lá em casa com uma parti- a terminar a obra. Só em 1988, o ano fatídico da sua morte, lhe tura nova. Estávamos em finais dos anos sessenta porque já lá surgiu uma ideia e uma oportunidade. Desde o início dos anos estava em casa o piano novo. Eu espreitei mas não vi propria- oitenta que, por força de problemas de visão, escrevia sobretudo mente pautas. Eram mais uns desenhos. O meu Pai colocou a música de câmara. Depois da leitura de um poema de António partitura no piano e pôs-se a analisar aquilo, tendo o cuidado de Machado, poeta castelhano que muito apreciava, escreveu decifrar primeiro o glossário inicial da nova notação. Depois de Aquella tarde, para soprano ou tenor e conjunto orquestral. apreciar atentamente a obra durante longos minutos, perante a O Peixinho ficou radiante. A obra era linda! Foi estreada em ansiedade crescente do amigo, pronunciou com aquela sua voz Fevereiro desse ano, nos ”Encontros” da Gulbenkian. Escassos pausada: “Sabes, estou convencido que tudo isto podia ser escrito meses depois, a 18 de Julho, falecia Joly Braga Santos. O seu com recurso à notação convencional...”. O Peixinho, interdito, desaparecimento colocou um ponto final numa das amizades reagiu: “Mas não ficava tão bonito! Não achas que é uma linda par­ mais singulares do século XX português.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 63 “Canto...” Primeiro de Fernando Lopes-Graça José Eduardo Martins

Um novo livro a merecer a nossa atenção, Impressões sobre a Música Portuguesa, acaba de ser editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra. O seu autor, o ilustre pianista José Eduardo Martins, surpreende-nos pela diversidade e premência dos seus textos, que percorrem a música portuguesa do barroco à contemporaneidade, abordando-se a interpretação, a análise, a pianística, os aspectos da vida musical, assim como figuras relevantes da música em Portugal que o pianista conheceu ao longo de mais de cinquenta anos. Disso exemplo é o seguinte artigo, gentilmente cedido para publicação na glosas.

a vasta produção composicional de Fernando Lopes-Graça de orquestra”, com caligrafia hesitante – tardia? – fariam supor apresenta cumeeiras que longe estão de um debruçamento mais que o autor já estivesse satisfeito com a expansão, não retor- expandido. Livros e artigos competentes, edições que estão a nando ao material primeiro. merecer o acompanhamento de equipas especializadas, grava- a leitura do manuscrito de Canto de Amor e de Morte para piano ções a resgatar a cada ano criações que causam admiração junto (ex. 1), primeiro momento do pensar criativo do autor vertido do público, pela feitura e interpretação, são factores que impul- para o papel pautado, trouxe nessa vestimenta inicial uma série sionam homeopaticamente o conhecimento de um vasto de problemas. As rasuras tornaram-se menos importantes do manancial, certamente um dos mais expressivos corpus da que o termo “corrigir” escrito pelo mestre de Tomar em tantos segunda metade do século XX. Melhor seria a divulgação se segmentos. As notas colocadas no pentagrama, no jorrar da alguns dos nomes mais ventilados da interpretação portuguesa criação, inúmeras vezes inseridas de maneira a possibilitar a no Exterior se propusessem a um mínimo debruçar. Hélas, isso dúvida, a ausência de muitos sinais referentes à agógica, dinâ- basicamente não acontece. mica e articulação – presentes nas versões –, igualmente a sus- as consultas aos catálogos da obra de Fernando Lopes­ citar outros questionamentos, tornaram imperativo o coteja- ‑Graça1, levaram-me ao interesse por Canto de Amor e de Morte mento desse primeiro impulso com os manuscritos copiados (1961) em seu original para piano solo e suas duas versões para cuidadosamente por Lopes-Graça para as versões adequada- quarteto de câmara e piano (1961) e para orquestra (1962). Soli- mente transcritas e aprovadas para serem executadas. Sob outro citei cópias a Romeu Pinto da Silva, responsável pela funda- aspecto, concernente a uma das características da anima, as mental Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes-Graça, indicações metronómicas da versão camerística serviram de e que tem o mérito de colher, durante anos de convívio, inten- orientação quando há ausência dessa marcação no original. ções do mestre tomarense. Gentilmente me enviou reproduções Seria imensa, contudo, a possibilidade decorrente do som do fotocopiadas dos três manuscritos em questão. Considere-se quarteto e dos instrumentos de orquestra, que faz entender a inicialmente que Lopes-Graça, ao realizar as duas versões de magia do manuscrito original, momento em que ideias “ampli- Canto de Amor e Morte para piano, já as deveria ter em mente no ficadas” já se mostravam subjacentes. Só após pormenorizar sentido de expandir a criação essencial. Ter abandonado o esses aspectos fulcrais da leitura foi possível verificar que manuscrito original em sua configuração básica, a admitir rasu- Canto... está absolutamente completo, a não faltar rigorosa- ras e palavras concernentes às correcções que deveriam ser fei- mente nada essencial. A diferença de cerca de vinte compassos tas, anotar com firmeza quantidade abundante de dedilhados entre o original para piano e as versões conhecidas seria conse- em segmentos precisos, a contrapor uma ainda provável indeci- quência de determinados prolongamentos sonoros existentes são no que tange outras indicações, teriam levado Lopes-Graça nas visões posteriores. Sob égide outra, já prefigura o original a entender Canto de Amor e de Morte como uma obra que ultra- todos os anseios timbrísticos que vieram a partir da instrumen- passaria, em sua visão pessoal macroscópica, os limites do tação. Pode-se entender o “orquestral” em tantas intenções no piano. As inserções, na página de rosto do original para piano, Canto... primeiro. Essa assertiva não apenas dimensionaria uma das palavras “inutilizar” e da frase “há versão de câmara e versão visão abstracta não desprovida de emoção, mas também a longa

64 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Ex. 1

Ex. 3

Ex. 2

permanência nas baixas intensidades, evidenciando mais agu- depararmos com uma obra conclusa, original para piano e rigo- damente as dissonâncias mínimas e os contrastes dinâmicos. A rosamente estruturada na mente e na pena de Lopes-Graça. A não dinamização prolongada em segmentos longos e lentos de timbrística das versões apenas enriqueceria a construção inter- Canto... implicaria um cuidado diferenciado quanto à interpre- pretativa do original para piano. Demonstra essa polivalente tação. O todo da criação primeva indicaria sensível percepção presença instrumental no pensar do autor. do equilíbrio a produzir em Canto de Amor e de Morte, no original a leitura de dois textos emblemáticos, escritos por Jorge Pei- para piano, efeitos desconhecidos em outras obras de Lopes­ xinho e Mário Vieira de Carvalho a respeito de Canto de Amor e de ‑Graça. Morte (1961) em sua versão camerística com piano, leva o leitor a manutenção dos dedilhados de Canto... original na versão a querer conhecer mais aprofundadamente essa obra. Qual a camerística é prova incontestável de que o primeiro manuscrito razão dessas menções assinadas por duas figuras essenciais na esteve sempre presente na edificação da visão subsequente (exs. modernidade musical portuguesa? Lembre-se que ambos des- 2, original, e 3, versão camerística). Frise-se, também, que pro- conheciam o original para piano. Canto... pairaria no cimo da cedimentos técnico-pianísticos, e outros, apresentando seme- produção musical em toda a História da Música em terras lusía- lhanças no original e na versão – dinâmica, agógica e articulação das, segundo os ilustres autores. Em análise competente, o –, caracterizam essa fidelidade à partitura básica, apesar de compositor Jorge Peixinho observa com contundência: “O Canto algumas indefinições do manuscrito para piano, nesses aspec- de Amor e de Morte é, de facto, uma cúpula na música portuguesa: tos. Essas constatações levaram o intérprete a recorrer sempre à o ponto final de uma dialéctica entre diatonismo e cromatismo, versão de câmara quando surgiram dúvidas, inclusive ampa- resolvida ainda no âmbito de um contexto tonal levado às últimas rando-se nas notações dos instrumentos de corda. consequências e, por isso mesmo, expressão dramática da incapaci­ logicamente, as duas versões apresentam diferenças, sendo dade de ‘síntese’ que só uma nova organização do espaço sonoro que a segunda, para grande orquestra, Lopes-Graça conside- poderia atingir; e, ao mesmo tempo, a obra mais consequente e coe­ rou-a não uma versão orquestral, “mas como uma nova obra”2. A rente na relação entre os diversos níveis de organização que a música comparação entre os três manuscritos foi imprescindível, mercê portuguesa, com toda a verosimilhança, terá alguma vez logrado”3. do facto de que Lopes­Graça não passou a limpo o primeiro Mário Vieira de Carvalho busca captar esse de profundis que ímpeto criativo para piano solo. Sob outra égide, o mestre toma- caracteriza a obra: “Movimento em suspensão. Profunda tristeza. rense, graças à versão camerística definitiva e copiada com Introspecção pungente. Valeram a pena o sonho, a luta, a esperança? esmero, tem o cuidado de assinalar com precisão – como era seu A experiência íntima da pessoa que sofre, do artista que se põe em hábito – a trama musical e a rica sinalização, a tornar o piano, causa e à sua trajectória e ao seu destino, do cidadão frustrado pelo que percorre parte considerável da versão, salvaguarda para falhanço de alternativas socialmente libertadoras – é essa experiên­ cotejamentos. Se essas observações se fazem necessárias, frise­ cia íntima, onde tudo se mistura e tudo se condensa num sofrimento ‑se, não influem na coesão do original face à versão. Transferir maior, que está incorporada em cada nota do Canto de Amor e de determinadas indicações existentes na versão para o original Morte (1961)”4. Jorge Peixinho escreve ainda que, em Canto de tornou-se imperativo. O facto primordial é a certeza de nos Amor e de Morte, “não é legítimo falar de funções tonais hierarquica­

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 65 mente definidas e muito menos de tonalidades, mas sim de centros virtuais de polarização tonal. A dialéctica entre diatonismo e croma­ tismo é, por conseguinte, resolvida não a partir de um sistema restrito de hierarquização tonal, mas de um processo sistemático de organi­ zação intervalar, coerente e unificador.”5. canto de amor e de morte torna-se, numa apreensão técnico­ ‑pianística, glossário de fórmulas existentes ou que percorre- riam outras criações. Detectam-se na obra elementos recorren- tes e vindouros. Poder-se-ia acrescentar, sob égide outra, que há a presença de um idiomático tipificado, actuante na obra de Lopes-Graça destinada ao piano quando a temática é a morte. Processos que caminham desde os Três Epitáfios de 1930 esta- riam a demonstrar um arquivo técnico-pianístico. A proposta para o terceiro dos Epitáfios – Para o Autor – não anunciaria a presença da morte, acompanhante do compositor em sua tra- jectória como homem, músico e pensador, mors certa hora incerta? Alguns motivos – ou mesmo células geradoras – que tendem ao desenvolvimento estariam a evidenciar que Lopes­ ‑Graça tem impregnado esse código voltado à morte, sendo possível supor que a ideia, ao surgir, já encontraria formatações definidas aprioristicamente. Se algumas são originais em Canto..., encontra-se-iam sur le tard nas Músicas Fúnebres (1981- 1991), sob diferentes vestimentas. uma situação singular surgiu quando pensei gravar e apre- sentar Canto de Amor e de Morte para piano solo. Pode o intér- prete desrespeitar a intenção do compositor que assinalou tar- diamente – seria possível supor – a palavra “inutilizar” no frontispício do manuscrito? Esse questionamento esteve pre- sente de maneira até conflitante, mercê da leitura prévia do que reza a Tábua... concluída por Romeu Pinto da Silva: “O Canto de Amor e de Morte começou por ser uma peça para piano solo que o compositor decidiu inutilizar, logo após a conclusão da versão de câmara, com o intuito de impedir a sua execução futura. Mas, talvez por esquecimento, não consumou a destruição da partitura que foi gada ou jogada ao fogo, fatalmente Canto... iria para o acervo do encontrada intacta em 1994 pelo próprio Lopes-Graça, durante as compositor no fundamental Museu da Música Portuguesa, o que pesquisas que precederam a organização desta Tábua. Manifestando realmente ocorreu. Num futuro sem data, serviria para possível a sua total oposição a que a obra fosse executada, o compositor acei­ tema de mestrado ou doutorado, com envolvimento maior ou tou mantê-la mas sem número de opus”6. menor por parte de um orientando. Antecipei­me, é certo, ao concluir a leitura de Canto de Amor e de Morte, na certeza de jamais movido por interesse outro que não a qualidade ímpar de que ela estava rigorosamente conclusa, corroborava os pensa- Canto de Amor e de Morte para piano solo, como também pela mentos de ilustres predecessores no julgamento da obra na ver- mais profunda admiração, respeito e gratidão pelo extraordiná- são camerística, Jorge Peixinho e Mário Vieira de Carvalho. rio compositor Fernando Lopes-Graça8. Acrescentaria que não apenas é uma das cumeeiras da criação em Portugal, como uma das mais significativas composições para piano solo da segunda metade do século XX em termos mundiais. Numa outra visão, considerando o exposto na Tábua..., que me colocou em incómoda posição de consciência, mormente se considerar o afecto pessoal que sempre tive pelo grande mestre Lopes-Graça, desde o convite que ele me fez para um primeiro recital na Academia de Amadores de Música em 1 Teresa Cascudo. Fernando Lopes-Graça. Catálogo do espólio musical. Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1997; Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes Graça. Iniciada Lisboa, no distante 1959, fiquei mergulhado num turbilhão de pelo compositor. Concluída e acrescentada com documentação e informações várias por ideias contraditórias. Ao me decidir por apresentá-la em Romeu Pinto da Silva. Portugal, Caminho, 2009. público em Maio de 2010 em várias cidades portuguesas, sendo 2 Tábua Póstuma da Obra Musical de Fernando Lopes Graça, op. ct. p.181. que a primeira se deu no templo de Lopes-Graça, a A.A.M., fui 3 Jorge Peixinho. Canto de Amor e de Morte – Introdução a um Ensaio de Interpretação Morfológica. levado por duas decisões após longos solilóquios: pode uma Porto, Maio de 1966, p.35. 4 Mário Vieira de Carvalho. Pensar a Música, Mudar o Mundo: Fernando Lopes-Graça. Porto, obra prima ser escondida? Veio-me o pensamento expresso em Campos das Letras, 2006, p.95. O Nome da Rosa, de Umberto Eco: “a ciência usada para ocultar, 5 Jorge Peixinho. op.cit. p.35. 7 ao invés de iluminar” . Por que razão Lopes-Graça, um memo- 6 Romeu Pinto da Silva. op. cit. P. 181. rialista nato, não destruíu de vez o original para piano, reco- 7 Umberto Eco. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, 7.ª ed., p. 206. mendando a Romeu Pinto da Silva que mantivesse esse primeiro 8 Canto de Amor e de Morte, as integrais das Músicas Fúnebres e de Cosmorame e mais a Canto... sem opus? Poetas, escritores, pintores e compositores colectânea Música de Piano para as Crianças foram por mim gravadas em Maio de 2010 na cidade de Mullem, na Bélgica Flamenga, tendo como engenheiro de som Johan Kennivé. destroem tantas vezes criações que não lhes agradam... Não ras- Os dois CDs já se encontram masterizados.

66 | glosas | número 4 | novembro | 2011 A música nos Salões Particulares de Lisboa no fim do século XIX e na primeira década do século XX A Humberto d’Ávila, in memoriam

para a revista quinzenal A Arte Musical, de 1899 a 1911, fundada IDALETE GIGA | TEXTO e dirigida por Michel’Angelo Lambertini (1862-1920) e na qual eram noticiados todos os concertos públicos e privados, assim como os respectivos programas, compositores e intérpretes, no universo musical do fim do século xix e da primeira acompanhados de algumas críticas. Trata-se de uma fonte docu- década do século XX, um dos aspectos pouco explorados e que, mental preciosa para o estudo do período aqui considerado. pelo seu significado artístico no contexto social da época, merece Compilada em vários volumes encadernados (desde 1899 ser objecto de estudo, é o que se refere à actividade musical que a 1915), faz parte do riquíssimo espólio musical do Conde de se praticava nos salões particulares de Lisboa. Redondo, adquirido pelo Núcleo de Musicologia do extinto Ins- a origem das festas musicais de carácter privado parece datar, tituto Português do Património Cultural, onde trabalhei no fim contudo, dos princípios do século XVIII, pois em Lisboa existiu dos anos oitenta, sob a orientação do saudoso e competente uma tradição de “saraus musicais de senhoras” realizados na musicólogo Humberto d’Ávila. O referido espólio encontra-se Corte, que foi continuada por famílias da aristocracia portu- actualmente no Arquivo de Música da Biblioteca Nacional. guesa, e, no século XX, também pela burguesia. os salões que vão ser referidos no presente estudo perten- o contexto sócio-político e cultural ciam, uns, a aristocratas amadores de música, outros a pedago- gos e artistas das classes burguesas. Neles, vamos encontrar a partir da segunda metade do século xix, a geração de 70 personalidades não só do mundo da música, mas também das (Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins...), com outras artes, e que foram marcos importantes da cultura portu- as célebres Conferências do Casino, abriu um período de doutri- guesa. É o caso das irmãs Guilhermina e Virgínia Suggia, Vianna nação revolucionária que se prolongou até à queda definitiva da da Motta, Alfredo Keil, Alexandre Rey Colaço, Ernesto Vieira, Monarquia Portuguesa. Não conseguindo as reformas radicais Moreira de Sá, Michel’Angelo Lambertini, Tomás Borba, Teófilo dos seus quadros e métodos governamentais, o Regime foi Braga, Jaime Batalha Reis, Manuel de Oliveira Ramos, António enfraquecendo progressivamente até ao colapso. No princípio Arroyo, Columbano, Malhoa e tantos outros que mencionarei. do século, quem governava efectivamente o País? Era uma classe os concertos privados não tinham todos o mesmo carácter. de burgueses ricos, ligados à banca, ao grande capital, ao grande Uns estavam associados a acontecimentos mundanos; outros comércio, aliados à nobreza. Estreitamente ligada ao capital tinham nítidas preocupações de divulgação musical. Era o caso estrangeiro e à exploração das colónias, tal classe via na Monar- dos concertos históricos promovidos por Sarah Motta Vieira quia o símbolo da ordem e da manutenção dos seus privilégios Marques e dos concertos de música popular ou erudita portu- e lucros. Por outro lado, apoiava também a Igreja e contava ainda guesa no salão da condessa de Proença-a-Velha. com as patentes mais importantes do Exército, saídas das suas quanto ao período escolhido, 1899 a 1911, foram três as razões fileiras. O grande inimigo desta burguesia rica não era, contudo, que me levaram a considerá-lo. 1. É um período de viragem a classe operária e os camponeses. Era, sim, a classe média, política do Regime Monárquico para a I República, marcado por grupo social maioritário que pululava nas cidades de Lisboa extrema agitação social a todos os níveis, em que se poderão, e Porto. Este grupo social era composto por pequenos comer- de certa forma, avaliar alguns dos reflexos de tal viragem. 2. É, ciantes e industriais, o médio e pequeno funcionalismo público, por assim dizer, o “canto do cisne” dos concertos privados, rea- patentes médias do Exército e da Marinha, estudantes universi- lizados na maioria dos salões. Com excepção dos concertos tários e ainda alguns pequenos e médios proprietários rurais. ocorridos na residência de Elisa de Sousa Pedroso e que, a partir Esta média burguesia irá servir de base de apoio do Partido dos anos 20, têm lugar sobretudo em salões públicos, as festas Republicano que derrubará a Monarquia. musicais de carácter privado vão escasseando cada vez mais. a situação política e social era de extrema instabilidade. Durante A importante divulgação musical iniciada por Emma Santos os dois anos de reinado de D. Manuel (1908-1910), teve este Fonseca, cujos concertos e conferências, também em salões monarca de mudar sete vezes o seu Ministério. Dominavam a cor- públicos, foram compilados em vários volumes, teve lugar rupção política, as questiúnculas pessoais e as lutas partidárias. a partir dos anos 20 até aos anos 40. Não será, pois, considerada Todos os sectores da vida nacional se encontravam desorganizados. neste estudo. 3. Consultei revistas da época, com especial realce antes da queda do regime, os dois grandes partidos eram

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 67 o Partido Regenerador e o Partido Progressista. O Partido Repu- camadas privilegiadas da sociedade lisboeta se refugiassem, por blicano, formado por elites intelectuais e pela pequena burgue- assim dizer, nos seus palacetes, onde as festas e concertos sig- sia, foi sempre aproveitando todas as dissenções e instabilidade nificavam, certamente, para uns um narcótico para esquecer existentes para, a pouco e pouco, ganhar terreno. Os seus ideais, o incómodo clima revolucionário que então se vivia, e para fortalecidos pela Maçonaria e pela Carbonária, espalharam-se outros uma realização pessoal, um empenho sincero na divulga- de norte a sul do País. A atmosfera social era de permanente agi- ção da música, uma esperança, uma fresca brisa na aridez cultu- tação. No mundo laboral, por toda a parte, eclodiram greves que ral em que o País estava mergulhado. se agudizaram em 1909. Lisboa e arredores eram as zonas gre- após algumas reformas iniciadas pela i república, houve vistas por excelência. uma certa acalmia. Porém, estavam longe de responder às 1898 a 1908 é, por outro lado, uma década de ininterrupta for- necessidades sócio-culturais e económicas do País. Reformas mação de associações de classe (sindicatos) e realização de con- radicais não se fizeram. Surgiram, contudo, importantes grupos gressos corporativos e pluriprofissionais. Um sem-número de femininos e feministas que intervieram activamente na socie- periódicos, todos de carácter libertário e de inspiração socia- dade portuguesa e que os nossos historiadores têm sistematica- lista e/ou anarquista, é publicado em várias cidades do País. mente ignorado. Lutando pela igualdade de direitos e pela sua Traduzem-se as obras de Kropotkine (A Anarquia- Sua Filosofia emancipação, desejando uma sociedade mais justa, mais livre, e seu Ideal; A Moral Anarquista). Publica-se Os Famintos - Episó­ mais fraterna, muitas mulheres destacaram-se nas Artes, na dios da Vida Popular, de Jean Grave. Traduz-se deste filósofo Ciência, na Educação, na Literatura, no Jornalismo, na Justiça. anarquista A Sociedade Moribunda e a Anarquia. Nascem grupos Criaram grupos de estudo e periódicos para intervir na socie- anarquistas em várias cidades – Alvorada da Liberdade, Acção dade. O direito ao voto, por que tanto lutaram, foi-lhes, con- Directa e Intransigente, os Poliglotas, todos estes em Lisboa. tudo, negado pela I República. Este sinal de miopia política foi Publicam-se obras de crítica à política cultural como Analfabe­ um erro gravíssimo que teve consequências nefastas, quer no tismo e Educação, de Agostinho de Campos – 1902, Teatro Livre desenrolar da situação política, quer no futuro do desenvolvi- e Arte Social, de Ernesto Vieira - 1902, A Voz do Artista – 1904, mento económico, social e cultural do País, que se viu privado Harmonias Sociais, O Problema Humano e a Futura Organização da inteligência e da criatividade das mulheres empenhadas Social - 1907, de Manuel de Arriaga, A Nacionalização do Ensino numa verdadeira mudança para Portugal. - 1911, de João de Barros, O Ensino e a Educação em Portugal – no campo da música, pedagogos e artistas esperavam reformas 1907, de Velhinho Correia. sérias. Logo após a implantação da República, muito se discutiu toda a propaganda revolucionária atacava o Regime Monár- e escreveu sobre a questão da reforma do Conservatório Nacio- quico e a Igreja, como bodes expiatórios de todos os males sociais nal pela qual se bateram Lambertini, Vianna da Motta, Fran- – fome, condições miseráveis de trabalho, analfabetismo, falta de cisco Bahia, Alexandre Rey Colaço. Tal reforma nunca chegou escolas, a questão das colónias transformadas em lugares de a concretizar-se. A questão era que a reforma deveria ser reali- degredo, as finanças exaustas, a corrupção política e económica. zada por pedagogos e artistas profissionais e não por amadores Nesta atmosfera de descontentamento e instabilidade a todos os incompetentes e burocratas. níveis, e que já ninguém podia conter, não admira que certas Hoje, passado mais de um século, a questão parece manter-se! os salões e os promotores dos concertos Realizavam-se concertos nos salões dos seguintes promotores:

Viscondes de Carnaxide José Ferreira Braga Maximiano Silva Condessa de Penha Longa Palmira Baptista Mendes Francisco Bahia Condessa d’Almedina Alberto e Clara Sarti Adelaide Lima Cruz Condes de Proença-a-Velha Manuel Pereira António Arroyo Condes de Sabugosa José Pacini E.B. Kneese Sarah Motta Vieira Marques Mme Bensaúde José Lino Júnior Alexandre Rey Colaço Cândida Cília Lemos Eulália Costa Neves Elisa Baptista de Sousa Pedroso Alexandrina Castagnoli Curado Antero d’Araújo Neuparth e Carneiro Manuel Garcia da Silva Victor Hussla Hernâni Braga Carolina Palhares Palmira Feio

No conjunto destes salões há que realçar três que foram os mais importância, sobretudo a partir dos anos 20, altura em que, importantes: O salão de Sarah Motta Vieira Marques, o salão dos movida pelo espírito nacionalista que então dominava, a pia- condes de Proença-a-Velha e o salão de Alexandre Rey Colaço. nista amadora passa a organizar, não só na sua residência, mas Os concertos neles realizados destacavam-se dos restantes por também em salões públicos, concertos anuais destinados à di- terem, sobretudo, um carácter de divulgação musical. Por outro vulgação da Música Portuguesa, pedindo inclusivamente aos lado, eram aqueles onde, com mais assiduidade, se realizavam compositores que lhe enviassem as suas obras. “matinées musicais”. Rey Colaço chegou a organizar, na sua casa, A propósito da importante acção de Elisa de Sousa Pedroso como concursos de piano e concertos mensais em dias fixos, para divulgadora da Música Portuguesa afirma João de Freitas Branco: apresentar os seus melhores discípulos que eram, curiosa- Elisa de Sousa Pedroso não se limitava ao papel de animadora e mente, na sua maioria, mulheres. patrocinadora, por isso ela própria era pianista de mérito. Levou O salão de Elisa de Sousa Pedroso (filha dos viscondes de Carna- a públicos estrangeiros a mensagem de compositores portugueses.1 xide), inaugurado em Março de 1900, adquire uma grande

68 | glosas | número 4 | novembro | 2011 os concertos e seus objectivos Geralmente associados a festas, os concertos tinham, no entanto, os mais variados fins:

Concertos de encerramento - salão de Sarah Motta Vieira Marques Apresentação de discípulos já das festas de Inverno: e salão de Elisa de Sousa Pedroso. consagrados: - salão da condessa de Penha Longa. Concertos dedicados exclusivamente - salão de Rey Colaço. “Festas íntimas” com o principal à música vocal portuguesa de carácter Festas para despedida de grandes objectivo de apresentar artistas histórico: virtuoses: já consagrados: - salão dos condes de Proença-a-Velha. - salão de Mme Bensaúde. - salão de Mme Bensaúde e salão dos Vale a pena citar algumas passagens Concurso para execução de obras para viscondes de Carnaxide, que acerca de um destes concertos: A these da piano entre as alunas mais talentosas: apresentaram o violoncelista espanhol interessantíssima matinée era a adaptação - salão de Rey Colaço. Pablo Casals. da língua portugueza á melodia vocal e o Audições oferecidas à Imprensa Audições exclusivamente dedicadas à desenvolvimento da nossa arte pelos periódica por artistas em princípio interpretação de obras primas: elementos estheticos que nos pode fornecer de carreira: - por exemplo, o Stabat Mater de a musa popular e a poesia portugueza de - salão de Alexandrina Castagnoli e salão Pergolesi foi dado, integralmente, no todos os tempos. (...) Escolhemos do de E.B.Knee. salão dos condes de Proença-a-Velha. riquíssimo Parnaso nacional composições Concertos em honra de personalidades Concertos consagrados a um só que abrangem toda a evolução poetica do do mundo das letras ou da política: compositor, precedidos ou não de Lyrismo portuguez na sua variedade de - salão de Sarah Motta Vieira Marques conferência: escolas, tratadas musicalmente segundo e salão de Carolina Palhares. - salão dos condes de Proença-a-Velha diversas transformações de cada época. Concertos de carácter histórico, e salão de Alexandre Rey Colaço. E o articulista conclui: (...) Aqui ficam os precedidos sempre de conferências: Conferencistas : António Arroyo, Manuel primeiros esforços para demonstrar que a - salão de Sarah Motta Vieira Marques. de Arriaga e Jaime Batalha Reis. língua portugueza se presta admiravelmente Conferencistas: Manuel de Oliveira “Saraus musicais” para festejar o novo ao canto, e que as nossas melodias Ramos, Ernesto Vieira, Tomás Borba, ano artístico populares encerram a tonalidade da António Arroyo. - salão de Sarah Motta Vieira Marques. nossa patria.2 Concertos para comemorar Concertos aos quais se associava Concertos dedicados exclusivamente acontecimentos festivos na família dos também a poesia: à música de ópera: promotores: - salão dos condes de Proença-a-Velha. - salão dos condes de Proença-a-Velha.

Nesta época, para além dos concertos realizados em casas particulares, muito se ficou a dever a outras iniciativas. Vamos encontrar os seus fundadores a colaborar, com frequência, nos saraus musicais dos grandes salões. As três iniciativas mais importantes foram:

1 - Sociedade de Amadores 2 - A Schola Cantorum 3 - A Sociedade Artística de Música de Câmara Fundada por Alberto Sarti (professor de Concertos de Canto Esta sociedade, criada em 1899 por um de canto, maestro e pianista), realizou Fundada por um grupo de amadores de pequeno número de artistas (Michel’ inúmeros concertos que eram sempre música, presidido pela condessa de Angelo Lambertini - piano; Augusto noticiados na rubrica “Concertos” da Proença­a-Velha, juntamente com a Schola ­Gerschey - violino; António Lamas - violeta; revista Arte Musical. O seu grande Cantorum, contribuiu para a divulgação D. Luiz da Cunha Meneses - violoncelo), objectivo era a divulgação da música de várias obras primas da música vocal. dava três séries de concertos anuais sacra, realizando ciclos de conferências Os concertos eram geralmente precedidos para a divulgação da música de câmara. e ciclos de concertos históricos. de conferência – Oratórias de Perosi, Stabat Em 1909 organizou o 1.º Concurso de Alberto Sarti dava também aulas gratuitas Mater de Pergolesi, Chansons de Miarka Música Portuguesa para obras de música de canto, destinadas aos alunos que de Alexandre George, Olav Trygvason de de câmara, no qual foi premiado Luiz de desejavam seguir a carreira do teatro Grieg, Missa do Papa Marcello de Palestrina, Freitas Branco, assim como Júlio Neuparth e não dispunham de recursos para fragmentos da Paixão Segundo S. Mateus e Rodrigo da Fonseca, com obras que custear a sua educação musical. de Bach, Terra Prometida de Massenet, ficaram na História da Música Portuguesa. As Sete Palavras de Cristo de Haydn.

os compositores

Através dos programas de que há referência, noticiados na revista Nota-se assim, uma predominância dos compositores românti- A Arte Musical, analisando o conjunto dos 89 concertos realizados cos, com excepção de Mozart e Bach. Contudo, um grande nos salões particulares entre 1899 e 1911, pude constatar quais os número de outros compositores eram apreciados. Mencionarei compositores que apareciam repetidamente nos referidos progra­ a seguir, por anos, todos os compositores que figuraram nos mas: Schumann, Chopin, Beethoven, Grieg, Mozart, Bach, Massenet, programas. Indicarei apenas as datas de nascimento e morte Wagner, Saint-Saëns, Mendelssohn, Liszt, Brahms e Schubert. dos menos conhecidos.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 69 1899 – Liszt, Bach, Sarasade, Wieniawski, Mendelssohn, Dohler (1814-1856) - Vidal, Grieg, Foá, Fontenailles, Schumann, Gounod, Mascagni, Grieg, Schumann, pianista e compositor de ópera, austríaco, Haendel, Mozart, Gluck, Massenet, Chopin, Lacome, Massenet, Lassen que viveu quase sempre em Itália, Liszt, Strauss, Chopin, Quaranta, Óscar da Silva, (1830‑1904) - compositor belga, de origem Lefebvre, Chaminade, Brahms, Rubio, Locatelli, Millandre, Liszt, Martucci dinamarquesa, Chaminade, Rossini, Mary-Anne Holmes (1847-1903)-compo- (1856-1909) – pianista, compositor e Pergolesi, Scarlatti, Beethoven, Popper sitora francesa de origem irlandesa, aluna director de orquestra italiano. (1843-1913) – violoncelista e compositor de César Franck e amiga de Saint-Saëns. 1907 – Chopin, Schubert, Rey Colaço. checo, Saint-Saëns, Victor Hussla, Godard 1902 – Mozart, Mendelssohn, Schubert, 1908 – Claude Gervaise (1540-60) – (1849-1895) – compositor francês, Rotoli Haydn, Bach, Falconeri, Peri, Caccini, compositor francês que escreveu um (1847-1904) – compositor italiano Monteverdi, Cavalli, Cesti, Scarlatti, considerável número de obras instru- e professor de canto , Vidal (1863-1931) - Haendel, Pergolesi, Jomelli, Gluck, mentais, Peri, Monteverdi, Praetorius, compositor francês, Raff (1822-1882) – Weber, Berlioz, Rossini, Wagner, Beetho- Cavalli, Lully, Haendel, Bach, Couperin, pianista e compositor suíço, assistente de ven, Chopin, Sgambati (1841-1914) – Rameau, Pergolesi, Gluck, Haydn, Mozart, Liszt em Weimar, Mozart, Dubois, pianista e compositor italiano, aluno de Beethoven, Wagner. Schubert, Paisielo, Rubinstein, Mendels- Liszt e amigo de Wagner. Widor, Marcos 1909 - Weber, Schubert, Mendelssohn, sohn, Verdi, Bizet, Alexandre George. Portugal, Artur Napoleão, Tomás Borba, Schumann, Chopin, Rossini, Berlioz, 1900 – Saint-Saëns, Godard, Alfredo Rey Colaço, Óscar da Silva, Vianna da Wagner, Brahms, Grieg, César Franck, Napoleão, Óscar da Silva, Schubert, Wagner, Motta, Salvini, Bizet, Tirindelle (1858- Saint-Saëns, Massenet, Rimsky‑Korsakov, Bach, Beethoven, Liszt, Mendelssohn, 1937) – violinista e compositor italiano. R. Strauss, Debussy, Delibes, Taubert, Brahms, Chaminade, Schumann, Sinding 1903 – Wagner, Beethoven, Schumann, Lalo, Pierné, Lehman, Liszt, (1856-1941) – um dos maiores composi- Alkan, Brahms, Mozart, Schubert. ­Tschaikowsky, Mozart, Beethoven, Bach, tores noruegueses, Grieg, Noguez (?), 1904 – Wagner, Massenet, Bizet, Schubert, Widor, Chaminade, Gabriel Grovlez. Fillipucci, Verdi, Lacome, Chopin, Tosti. Chopin, Beethoven, Mendelssohn, Mozart, 1910 – César Franck, Puccini, Wagner, 1901 – Bach, Scarlatti, Weber, Beethoven, Gluck, Schumann, Hunbolt, Chaminade. Gallupi, Rameau, Mozart, Arensky, Schumann, Widor, Couperin, Quaranta, 1905 – Wagner, Lefebvre, Bizet, Beethoven, Schumann, Chopin, Brahms, Svendsen, Massenet, Grieg, Svendsen (1840-1911) - Grieg, Gounod, Fauré, Schumann, Brahms, Donizetti, Liszt, Verdi, Bach, Saint-Saëns, compositor e director de orquestra Tosti, Pinserti, Puccini, Bach, Scarlatti, Weber, R. Strauss, Saint Heller, norueguês, Wagner, Saint-Saëns, Popper, Chopin, Debussy, Delioux, Liszt, Saint- ­Tschaikowsky, Vianna da Motta, Berlioz. Godard, Chopin, Rameau, Moszkowski ‑Saëns, Alkan, Massenet, Mendelssohn, 1911 – Liszt, R. Strauss, Papini, Ries, (1854-1925) – pianista e compositor de Weber, Arenski, Haydn, Rubinstein, Bellini. Saint-Saëns, Mendelssohn, Schumann, origem polaca, Wieniawski, Sinding, 1906 - Mendelssohn, Brahms, Widor, Arensky, Czerny.

Como se pode verificar, há uma repetição constante dos mesmos compositores do passado, exceptuando os compositores portugueses que raramente aparecem, e um ou outro da mesma época. Os compositores portugueses estavam, sobretudo, interessados, e de certa forma comprometidos, com o espírito nacionalista que então dominava, e foi nele que, de modo geral, se inspiraram para criar as suas obras. Por outro lado, o grande apego ao passado não desencadeou nenhum movimento anti­romântico que se possa considerar ­significativo.

Os concertos históricos

Ai do Payz em que os homens só se juntem retira valor às conferências realizadas há mais de um século, para tratar de política! e cujo conteúdo poderá servir para estudos futuros. Ai d’esses homens, mas sobretudo ai de nós, No primeiro destes concertos, Ernesto Vieira desenvolve a sua sujeitos aos seus desvarios! conferência incidindo em obras quer vocais quer intrumentais de compositores que vão do Renascimento ao Barroco (neste (Ernesto Vieira, in “Conferência do 1.º concerto histórico”) começando com o nascimento da ópera), terminando o mesmo com obras de Haendel e J.S. Bach. É muito interessante a análise Realizados no salão de Sarah Motta Vieira Marques e partindo que Ernesto Vieira faz, por exemplo, comparando estes dois da sua própria iniciativa, os quatro concertos históricos tiveram grandes génios da História da Música, concluindo que Bach início em Dezembro de 1908 terminando em Fevereiro de 1909. é divino e Haendel humano. Pretendiam mostrar a evolução da música erudita através das No segundo concerto histórico, Tomás Borba vai retomar o pe- diferentes épocas e eram precedidos de uma conferência expli- ríodo barroco apresentando obras instrumentais de Couperin, cativa. A revista Arte Musical publicou, na íntegra, quer os pro- Rameau, obras vocais de Pergolesi e Gluck, passando pelo gramas quer as conferências dos quatro concertos em que inter- periodo clássico da escola de Viena com Haydn e Mozart e ter- vieram, respectivamente, Ernesto Vieira, Tomás Borba, António minando com Beethoven. Arroyo e Manuel Ramos. Qualquer das conferências é notável A conferência do terceiro concerto histórico, apresentada por não só pela grande erudição, mas também pelo rigor histórico Antonio Arroyo, é a mais extensa das quatro realizadas. O autor revelados pelos seus autores. Há, naturalmente, aspectos discu- comenta não só as obras, mas sintetiza também a vida de cada tíveis, vistos à luz da musicologia contemporânea, o que não compositor e o contributo que cada um deu na sua época, para

70 | glosas | número 4 | novembro | 2011 o enriquecimento da História da Música. Incide sobretudo em devidamente consagrados e justamente queridos, e os Srs. Rey Colaço, obras vocais (duetos de ópera) e instrumentais (piano), de Benetó, Maurício Bensaúde, C. Mackee, Antonio Lamas e Luiz da compositores românticos - Weber, Schubert, Mendelssonh, Cunha, profissionaes ou amadores que ninguem desconhece, nem Schumann, Chopin e Rossini. nunca deixou de applaudir.4 O quarto e último concerto histórico teve como conferencista Manuel Ramos que continuou o comentário de obras vocais Sobre o terceiro concerto histórico: e instrumentais de compositores românticos e pós-românticos Eis o programma do 3.º Concerto Histórico, que no palacete Ferreira (Berlioz, Wagner, Brahms, Grieg, C. Franck, Saint-Saëns, Mas- Marques se effectuou em 3 de janeiro passado. A seguir á enunciação senet, R. Korsakoff, R. Strauss, terminando com uma obra vocal das peças que compuzeram esse programma, reproduzimos a magis­ e outra instrumental - quarteto de cordas - de Debussy). tral conferência do sr. Antonio Arroyo, primoroso trabalho historico Na rubrica “Concertos” da Arte Musical de Dezembro de 1908, e crítico, que sentimos o mais justificável desvanecimento em publi­ refere o articulista: car, e que constituirá, assim o esperamos, para os nossos amaveis Graças á corajosa e porfiada boa vontade da Exma Srª D. Sarah leitores, um verdadeiro regalo d´arte.5 Motta Vieira Marques, realizou-se em 20 d´este mez o primeiro d´estes concertos. Amadora que é uma artista, e temperamento verdadeira­ Sobre o quarto concerto histórico: mente rico em dotes vários, a Srª D. Sarah Marques estava natural­ Damos hoje publicidade á ultima conferencia effectuada nas salas da mente indicada para fazer vingar esta sympathica e civilizadora talentosa amadora de canto, srª D. Sarah Vieira Marques, comple­ tentativa, d´uma tão alta intenção esthetica e d´um tão distincto tando assim a serie dos quatro notaveis discursos, que acompanharam cunho educativo.(...) Assim, limitar-nos-hemos a agradecer á srª D. os concertos historicos pela mesma illustre senhora organizados. Vem Sarah Marques, em primeiro logar o novo e importante serviço que firmada esta ultima conferencia pelo sr. Major Manuel d´Oliveira á educação musical portugueza quiz prestar com a organização dos Ramos, um dos nossos mais auctorizados críticos d´arte .6 seus concertos d´um tão intellectual relevo, e depois a distincção con­ cedida a este jornal, permitindo-nos nós juntar n´este ponto, ao seu No mesmo concerto refere Manuel Ramos, no início da sua con- illustre nome o nome egualmente consagrado de Ernesto Vieira, o qual ferência: (...) Entendo, pois, que o primeiro dever de justiça, é assig­ não esqueceu de certo os admiradores e amigos que n´esta folha tem.3 nalar o serviço que á nossa cultura musical Madame Sarah Marques, acaba de prestar. Madame Sarah Marques, certamente no seu amor Sobre o segundo concerto histórico: desinteressado, na sua dedicação tenaz por esta ordem de cousas, De antemão, o applaudido compositor e crítico musical que é Thomaz estou certo que voltará a uma nova iniciativa.(...) É claro que ha mil Borba, soube justamente apreciar o que seria essa inolvidavel sessão modos de fazer series interessantíssimas no que diz respeito á cultura musical; e nós nada melhor poderiamos accrescentar ao que elle musical. Poderia, por exemplo, fazer succeder a esta serie historica disse a tal respeito. uma serie geographica. Podia tratar-se separadamente da musica Limitamo nos pois a saudar a fórma superiormente modelar como os franceza, allemã, scandinava e russa. Este é um ponto de vista, mas diversos numeros do programma foram executados, e o relevo artís­ elles multiplicar-se-hiam.(... ) Madame Sarah Marques, que levou tico e a elevação esthetica que lhes deram as Sras D. Sarah Marques, a cabo, com tão brilhante exito, esta serie de concertos historicos, D. Elisa Baptista de Sousa Pedroso, D. Ida Blanck, D. Maria Macieira encontrará no seu espirito esclarecido e na sua cultura musical, certa­ Lino, D. Gabriella Strauss e D. Ernestina Freixo, nomes já todos elles mente, todos os elementos para uma nova cruzada.7

os intérpretes e a crítica

Quanto aos intérpretes, vamos encontrar, entre eles, os pró- A revista Arte Musical recebia, habitualmente, convites para prios promotores dos concertos. É interessante referir que nes- assistir a tais concertos, o que lhe permitia noticiá-los, publi- tes havia quase sempre a colaboração simultânea de simples cando, na íntegra, os programas, intérpretes e alguma crítica. amadores e profissionais, o que denota, certamente, uma preo- cupação de que tais “festas íntimas” apresentassem um bom No salão do visconde de Carnaxide escreve Ernesto Vieira na nível artístico. Vão aparecer nomes bem conhecidos que se rubrica Concertos: celebrizaram internacionalmente, juntamente com outros mais O exmo Sr. Visconde de Carnaxide, em íntima reunião, offereceu no apagados, mas também significativos no meio artístico lisboeta dia 5 de fevereiro alguns momentos deliciosos de boa musica, primo­ da época. rosamente desempenhada. Sua exma filha, a exma srª D. Elisa Bap­ Em relação à crítica, pouco há a referir de relevante. Em geral, tista de Sousa executou a “Phantasia Hungara” de Liszt; Moreira de era favorável quer em relação aos promotores dos concertos, Sá um trecho da 4ª sonata de Bach, as “Arias Bohemias” de Sarasate quer aos intérpretes. Não admira que assim fosse, dado o e uma mazurka de Wieniawski; a exma srª condessa de Proença a ambiente familiar, íntimo, em que aqueles se realizavam. Intér- Velha cantou o “Sonho de Elisa” e a ária da “Dinorah”.8 pretes e audiência repetiam-se sistematicamente. Os concertos tinham geralmente uma audiência restrita, composta por fami- “Matinée musical” no salão dos condes de Proença-a-Velha: liares e amigos dos seus promotores, assim como outras pessoas A Srª condessa mimoseou o selecto auditorio com a execução, deveras das suas relações (artistas, pedagogos, etc.) que eram convida- primorosa, dos mais variados trechos de Massenet, Saint-Saëns, dos para o efeito. Por outro lado, haveria certamente interesse Schumann, Wagner, Bach, Rossini e outros. Como se vê, generos em estimular os artistas que, no meio de tão grande aridez cul- totalmente diversos em que a nobre dilettante evidenciou mais uma tural, iam praticando, com entusiasmo, a arte dos sons. vez a grande maleabilidade do seu talento e uma intelligencia de interpretação, bem pouco vulgar.9

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 71 “Festa íntima” no mesmo salão: Croner, consistindo esses premios em volumes de musica, offerecidos (...)O eminente poeta Theophilo Braga illustrou o programma com expressamente pelo illustre e antigo amador, o Dr. João D´Korth.13 uma tradução portugueza d´uma ballada de Goethe, Le Roi des ­Aulnes, em que o divino Shubert se inspirou para a composição de Alguns anos mais tarde, já no princípio da I República, a propó- uma das suas dolentes melodias. Esta melodia foi magistralmente sito de uma matinée musical em casa de Rey Colaço para apre- interpretada pela srª condessa, estando ao piano Mlle Baptista sentação dos seus melhores alunos e em que o próprio partici- de Sousa.10 pou asim como Elisa de Sousa Pedroso, Joana Rey Colaço e Maria Antónia de Castro Freire, refere a Arte Musical: Resumindo a nossa No salão de Sarah Motta Vieira Marques: impressão pessoal, podemos affirmar, que, na lamentavel situação (...) O cyclo foi fechado por forma brilhante e variada em casa do artística a que a nossa capital está reduzida, a audição Rey Colaço, exmo sr. Antonio Ferreira Marques. Sua exmª esposa, a tão apre­ como manifestação de boa arte, marcou uma excepção que encantou ciavel cantora D. Sarah Ferreira Marques encantou o auditorio com a todos.14 ­trechos de Paisello, Pergolesi, Rossini, Rubinstein, Saint-Saëns, apresentando assim specimens de differentes epocas e oppostos As irmãs Guilhermina e Virgínia Suggia aparecem com frequên- estylos. Sauvinet, Jose Carneiro, Julio Magalhães, dr. Ferreira cia, quer em concertos públicos, geralmente de beneficência, ­Cardoso ( o primoroso flautista) os professores Collaço e Bahia, todos a favor das mais variadas causas sociais, quer nos concertos contribuiram para que variedade e abundancia constituissem a nota ­realizados nos salões particulares. caracteristica do programma. Em todo o caso, excellente musica, optimamente interpretada e enthusiasticamente applaudida.11 No salão de Sarah Motta Vieira Marques (depois de terem reali- zado um concerto de beneficência em favor das Escolas Móveis, “Matinée de alumnos” no salão de Rey Colaço: no dia 25 de Abril de 1904, em Lisboa) tal como é referido na (...) Ouvindo os discípulos de Colaço transvê-se a cada passo a mão rubrica Concertos da Arte Musical: genial que os conduziu e admira- se a precisão, a pureza de technica, As duas talentosas irmãs offereceram no dia seguinte uma interes­ o mimo, o primor da dicção, que constituem outras tantas qualida­ sante matinée á illustre amadora a srª D. Sarah Marques em cujo des do mestre e que, seja dito em boa verdade, alguns dos alumnos palacete foram também muito ovacionadas.15 apresentados tem conseguido assimilar com raro talento.12 No salão de Alberto e Clara Sarti: Concerto e concurso no mesmo salão: Alberto Sarti e sua esposa D. Clara Sarti dois habilíssimos educa­ Efectuou-se em casa de Rey Colaço um explendido concerto, em que dores de canto, que tem poderosa e efficazmente concorrido para tomaram parte a srª D. Elisa Baptista de Sousa Pedroso, com o im­ o seu desenvolvimento em Lisboa, organizaram duas matinées em promptu em la bemol de Schubert e a polonaise em la de Chopin, sua casa Rua Castilho, 34, onde se apresentaram os seus melhores as srªs D. Laura Wake Marques e D. Gabriela Jardim, que cantaram discípulos d´ambos os sexos.16 um dueto, a srª Etelvina Serra que disse um monologo, as srªs D. Christina Mouchet e D. Beatriz Corrêa que tocaram o rondó em la Pelo seu significado artístico, é interessante referir um dos menor de Chopin e o sr. Angelo Barata que tocou o Clair de lune. concertos realizados no salão de Mme Bensaúde: Deliciosa mati­ Houve alem disso um concurso com o Capricho em fa sustenido menor née no dia 19 em casa de Madame e Alfredo Bensaúde, para despe­ de Mendelssonh, em que foram concorrentes algumas das melhores dida das duas insignes virtuoses Mlles Gabriella Jardim e Christina discípulas de Rey Colaço. O Jury, que era composto da srª D. Elisa Mouchet. (...) Mlles Mouchet e Jardim partiram já para a Madeira Pedroso e dos srs Augusto Machado e Thomaz Borba concedeu os pre­ e Açores onde vão realizar alguns concertos, sendo interessante regis­ mios ás alunas D. Maria Costa, D. Albana de Sommer e D. Laura tar que são as duas primeiras artistas portuguezas educadas aqui que se dedicam á carreira de concertistas.17

Na apresentação dos nomes a seguir indicados, que foram extraídos dos programas dos concertos privados, publicados na revista Arte Musical, podemos constatar, de facto, a presença de muitos artistas profissionais e amadores que actuavam, frequentemente, nos salões particulares: cantores

Condessa de Proença-a-Velha, Condessa Macieira, Ferrucio Corradeti (cantor (esposa de Vianna da Motta), Ermelinda de Alto Mearim, Sarah Motta Vieira do S. Carlos), Maria Pia Castelo Branco, Stegner, Mme Bensaúde, Ida Blanck, Marques, Clara Sarti e Alberto Sarti, Berta Lupi, Maria Meireles Canto e Alice Rey Colaço, Joana Colaço, Maria Maria Teresa Dinis, Paulo Quental, Castro, Carolina Palhares, Virgínia Melo Colaço, Irene Gilman, Emília Possoz, viscondessa de Almeida Araújo, e Castro, Cândida Cília Lemos, Ema Joana Possoz, Maria José Arroyo, Alvaro Andrés Perello, Pallet, De Luca (estes Navarro Hogan, Laura Matos, Marcos Baptista, Guilherme Ribeiro, Luis Coruche três últimos, cantores de S. Carlos), Foá, Léon Jamet, Laura Wake Marques, (discípulo laureado de Sarti), Mlle Angelina Valadim, Laura Sauvinet, Artur Trindade (cantor bolseiro do Bettencourt, Mme Pinto Leite, Mlle Gabriela Strauss, Leonor Marques Governo), Cândida Kendall, Maurício Saldanha da Gama, Pinto da Cunha, Costa, Leopoldina Cordeiro, Maria de Bensaúde (barítono famoso), Maria Adélia Heinz, Africa Calimerio. Jesus Câmara, Sofia de Roldan, Alberto Emília Macieira Lino, Berta Bivar

72 | glosas | número 4 | novembro | 2011 pianistas Joyce, Palmira Rangel, Joana Colaço, Desiré Bettencourt, Bernardo Moreira de Sá, Pacques , Artur de Greef, Virgínia Baptista. Luiz Barbosa, Tomaz de Lima, João Aires Vianna da Motta, Alexandre Rey Colaço e de Campos, Camilla Casais de la Rosa, suas discipulas laureadas (Maria Costa, instrumentistas de corda Eugénio Crespo, Luisa Campos, Ivo da Albana de Sommer, Laura Croner, (violoncelistas, violetistas, Cunha e Silva, Mathieu Crickboom, Carlos Carolina Alzina), Francisco Bahia e suas ­violinistas e harpistas) Estevão de Sá, Miguel Ferreira, Elsa discípulas (Ema Caldeira, Sara Alcobia, Ruegger, João Evangelista da Cunha e Silva. sua filha Maria do Carmo Baía, Arminda Guilhermina Suggia, Pablo Casals, José Cruz, Lucinda Carraça) Michel’Angelo Carneiro, Júlio Magalhães, Cunha e Silva, flautistas Lambertini, Óscar da Silva, Moreira de Sá, Henrique Sauvinet, Rodrigo da Fonseca Vírgínia Suggia, Elisa Baptista de Sousa (harpista), Cecil Mackee, Victor Hussla e Ferreira Cardoso, Henrique dos Santos. Pedroso, Maria José Baptista de Sousa, sua discípula laureada (Alice Dias da Silva), Alexandre Ferreira, Sousa Timóteo da Silveira, Joana Távora Folque, organistas Judite Deslandes, Alberto Sarti, Alberto Coutinho, Andrés Goni, Nastrucci, Sousa, Hernani Braga, Berta Coelho Augusto Morais Palmeiro, António Ernesto Maia, José Bonet. Campos, Ester de Campos, Delfina Pinto, Duarte da Cruz Pinto, José Henriques dos Santos, Enrique Arbós, Agustin Rubio, Maria Magalhães, Luisa da Mota Cardoso, declamadores Adriana Magalhães, Judite Cordeiro Josefa Martinez Vieira (harpista do S. Fernandes, Palmira Baptista Mendes, Carlos), Neuparth e Carneiro, Câmara Adelaide Weinstein, Augusto Rosa, Virgínia Moreira, Lídia Rangel dos Santos, Fernandes, Manuel Gomes, Francisco Etelvina Serra, Branca de Gonta Colaço, Ernestina Freixo, Cristina Mouchet, Benetó, António Lamas, Luiz da Cunha José Castro Guimarães. Beatriz Correia, Angela Barata, António Meneses, Júlio Cardona, Alexandre

Como podemos observar, há uma predominância de cantores e pianistas. Este facto prende-se com o tipo de obras que integravam os programas onde a voz e/ou o piano eram uma constante.

o povo anónimo de lisboa

Não deixa de ter interesse referir o que se passava, simultanea- artístico do povo de Lisboa, está no accordeon (...) uma bagattella de mente, entre as camadas populares da capital. 6.615 accordeons n´um anno, ou seja um accordeon para cada 54 Na rubrica “Noticiário” da Arte Musical de Setembro de 1910, encon­ habitantes.18 tramos uma curiosa estatística sobre a tabela de instrumentos que entraram na Alfândega de Lisboa durante o ano de 1909: Não tendo acesso aos salões particulares da aristocracia ou da alta e média burguesia lisboeta, não estando sequer cultural- Pianos, Harmónios e Pianolas 343 mente educado para acorrer aos concertos públicos frequenta- Harpas 1 dos também pela burguesia endinheirada, o povo manifestava- Violinos 133 ­­se e continuaria, aliás, a manifestar-se, de forma bem Violoncelos 8 diferente, sem ter verdadeiro acesso aos escassos bens cultu- Violas francesas 124 rais e sem ter, possivelmente, consciência de que eles existiam. Instrumentos de latão 1 Os sucessivos governos da República não souberam ou não qui- Instrumentos para banda 1 seram fazer reformas radicais, que apostassem seriamente na Realejos 1 educação do povo. O analfabetismo continuou a reinar de norte Acordeões 6.615 a sul de Portugal, cujos reflexos deixaram muitas sequelas que não desapareceram completamente, até hoje. Apesar da pro- Perante esta disparidade de números, com uma incidência no gressiva democratização do ensino desde a Revolução dos Cra- exagerado número de acordeões, o articulista tira, num tom iró- vos, a verdade é que ainda não existem iguais oportunidades nico, a sua conclusão: (...) A conclusão mais interessante que concretas de acesso ao ensino e à cultura musical para todos os podemos tirar do quadro é que o verdadeiro, o grande enthusiasmo cidadãos portugueses.

estilos e formas musicais

A forte dependência da influência italiana, de carácter operático, presente, ou em composições a solo (sonatas, nocturnos, valsas, por um lado, e alemã, com os grandes românticos, por outro, mazurcas, polacas, etc.) ou como instrumento acompanhador reflectiu-se nos estilos e formas musicais então praticados. Há, do canto. Porém, muito mais raro na música de câmara (sonatas assim, uma predominância da música vocal. Os duetos, árias de para violino e piano ou violoncelo e piano, por exemplo). ópera, de oratórias, romanzas, barcarolas, preghieras, lieder, Quanto à música de câmara para instrumentos de corda, a solo ou eram uma constante nos concertos dos salões particulares. em pequenos conjuntos (quartetos, quintetos), a sua prática era O piano, o rei dos instrumentos do século XIX, estava sempre insignificante se comparada com a música vocal e pianística.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 73 conclusão

Apesar do seu carácter privado, num ambiente apenas acessível Vemos um Theatro lyrico, onde se não cuida senão de proteger à a grupos pertencentes, em geral, à aristocracia e alta burguesia, outrance as pretensões gananciosas dos emprezarios, que occupados é inegável a importância artística que a actividade musical nas mil combinações uteis e praticas da assignatura, não podem ou adquiriu nos salões particulares de Lisboa. Essa importância, não querem incommodar-se com assumptos de arte, de que a propria que aos olhos do observador actual poderá ser minimizada atra- maioria do seu publico não faz afinal grande caso. É que no fim de vés de juizos de valor precipitados, tinha, contudo, um signifi- tudo vemos a par d´isso a indifferença, o desprezo, e por vezes o sorriso cado de peso na sociedade de então. compassivo e humilhante d´aquelles que podendo fazer alguma cousa O objectivo deste pequeno estudo foi mostrar, como num filme, pela arte preferem gastar a sua influencia e a sua actividade nas a paisagem musical num determinado contexto, tal como foi substanciosas luctas da eleição e na edificante collocação dos pintada, tal como foi vista e vivida pelos artistas, quer amadores ­afilhados. quer profissionais, dessa sociedade, na viragem do século XIX A conttrapor-se a todo esse abandono governamental e a essa indi­ para o século XX e, simultaneamente, na viragem política da fferença por parte das grandes entidades pseudo-artísticas, temos, Monarquia para a República. louvado Deus, a iniciativa particular, sempre enthusiastica e cora­ Um excerto da revista Arte Musical de Março de 1900, na rubrica josa e que apesar das mil difficuldades que a cada momento se anto­ Concertos, ajudar-nos-á a compreender melhor o que, a nível lham, vae seguindo o seu caminho com a confiança e a serenidade musical, puderam significar as iniciativas particulares se compa- dos que cumprem uma missão civilizadora e util. (...) É pois á ini­ radas com a restante actividade musical praticada em Lisboa. Com ciativa individual que temos de fazer os mais clamorosos appelos; a excepção da Academia dos Amadores de Música, o articulista com o resto suppomos que não se pode contar19. lamenta-se das poucas audições musicais da quinzena, sobretudo Isto passava-se em 1900! Com a implantação da República, dez os concertos públicos, cada vez mais raros na capital : anos depois, vamos assistir a um arrastamento destes problemas. Vemos um Conservatorio, cuja principal ambição é produzir muito, Foram, de facto, os concertos privados realizados sobretudo nos sem se preocupar se produz bem. salões particulares que, no estreito ambiente cultural lisboeta, não deixaram morrer a Música.

1 in História da Música Portuguesa, Publicações Europa- bibliografia consultada LOPES-GRAÇA, Fernando, Introdução à América, Lisboa, 1995, p.307 Música Moderna, Biblioteca Cosmos, 2 in Arte Musical nº 98 de 31 de Janeiro/1903, Anno V, pp. Lisboa, 1942 20-21 ÁVILA, Humberto d´, Lambertini e a 3 in Arte Musical n.º 241 de 31 de Dezembro de 1908, Anno Odisseia do Museu Instrumental, separata LOPES-GRAÇA, A Música Portuguesa e os X, p. 246 seus Problemas, Obras literárias de F. L. 4 in Arte Musical n.º 242 de 15 de Janeiro de 1909, Anno do catálogo Instrumentos Musicais 1747- XI, p. 9 1807 – Exposição no Palácio de Queluz, Graça, vol. III, Lisboa, 1973 5 in Arte Musical n.º 244 de 15 de Fevereiro de 1909, Anno Julho-Setembro 1984, Instituto Português MARQUES, A. de Oliveira, História de XI, p. 40 do Património Cultural, Lisboa, 1984 Portugal, vol. II, Palas Editores, Lisboa, 6 in Arte Musical nº 245 de 28 de Fevereiro de 1909, Anno XI, p. 64 BRITO, Manuel Carlos de, Conciertos en 1978 7 idem, p. 65 Lisboa a finales del siglo XVIII, separata de SARAIVA, J. Hermano, História Concisa 8 in Arte Musical n.º 3, de 15 de Fevereiro de 1899, Anno I, la Revista de Musicologia, vol. VII, nº 1, de Portugal, Publicações Europa- pp. 25-26 Madrid, 19 América, Lisboa, 1980 9 in Arte Musical n.º 6, de 31 de Março de 1899, Anno I, p.47 FONSECA, Carlos da, História do SÉRGIO, António, Breve Introdução da 10 in Arte Musical n.º 11 de 15 de Junho de 1899, Anno I, Movimento Operário e das Ideias Socialis­ História de Portugal, Clássicos Sá da p. 89 tas em Portugal, I- Cronologia, Colecção Costa, Lisboa, 1977 11 in Arte Musical n.º 12 de 30 de Junho de 1899, Anno I, p. 98 Estudos e Documentos, Publicações Periódicos e Dicionários Europa-América, Lisboa, s.d. 12 in Arte Musical n.º 28 de 28 de Fevereiro de 1900, Anno II, A Arte Musical – Revista quinzenal, p. 31 BRANCO, João de Freitas, História da 13 in Arte Musical n.º 122 de 31 de Janeiro de 1904, Anno ­Direcção de Michel´Angelo Lambertini VI, p. 49 Música Portuguesa, 2ª edição, revista e (nºs 1 a 296) aumentada, Publicações Europa- 14 in Arte Musical n.º 289 de 31 de Dezembro de 1910, Lisboa, 1899 a 1911 Anno XII, p. 245 América, Lisboa, Mem Martins, 1995 Eco Artístico – Revista Theatral, Lisboa, 15 in Arte Musical n.º 128 de 30 de Abril de 1904, Anno VI, LAMBERTINI, Michel´Angelo, Concerts p.118 1911 a 1913 16 in Arte Musical n.º 126 de 31 de Março de 1904, Anno et virtuoses, in Encyclopédie de la Musique, VI, p. 95 Dictionnaire du Conservatoire, Espagne­ La Nuova Enciclopedia della Musica, 17 in Arte Musical n.º148 de 28 de Fevereiro de 1905, Portugal, vol. V, Paris, 1920 Garzanti Editore, Milano, 1984 Anno VII, p. 47 The Grove Concise Dictionary of Music, 18 in Arte Musical n.º 282 de 15 de Setembro de 1910, LAVIGNAC, Albert, Encyclopédie de la Anno XII, p. 191 Musique et Dictionnaire du Conservatoire, Edited by Stanley Sadie, London, 1988 19 in Arte Musical n.º 29 de 15 de Março de 1900, Anno II, Paris, 1920 pp. 35-36

74 | glosas | número 4 | novembro | 2011 A obra para piano de Manuel Faria uma primeira abordagem

(Polifonia) e Licinio Recife (Composição). Tendo regressado a Portugal no final desse ano lectivo, devido aos conflitos provo- cados pela II Guerra Mundial, voltou a Roma em 1942 para aí obter o diploma de Maestro em Composição e a Licenciatura em Canto Gregoriano (1943). regressado a braga em 1946, passou entretanto por Paris, onde recebeu influências dos compositores franceses (facto que se reflecte em grande parte da sua obra). Em Braga, onde é no- meado professor do Seminário Conciliar, iniciou uma intensa actividade no ensino, direcção coral e animação musical religiosa, dedicando-se ainda à composição e à crítica musical. Foi bol- seiro do Instituto de Alta Cultura e da Fundação Gulbenkian, para estudos que realizou mais tarde em Itália. Obteve ainda o “Prémio Nacional de Composição Carlos Seixas” da Secretaria de Estado de Informação e Turismo, em 1971. a partir de 1976, iniciou um movimento de Coros Paroquiais, que desenvolveu uma intensa actividade musical na região, tendo como princípio “proporcionar aos milhares de coralistas meios de aperfeiçoamento espiritual e técnico, através de cursos e encontros de nova feição” (Faria, Manuel: 1981). Foi neste espírito pró­ ‑activo que, em 1979, se realizou o I Curso de Formação de Regentes de Coros Amadores na Póvoa de Varzim, sob a direcção de Mário Mateus e Manuel Faria. ANDRÉ VAZ PEREIRA | TEXTO foi director do orfeão de braga e foi também um dos funda- dores e directores da Nova Revista de Música Sacra (N.R.M.S.)1, publicada em Braga, tendo regido um Curso Livre de Harmonia padre e compositor, Manuel Faria nasceu em São Miguel de destinado a estudantes de Humanidades, Filosofia e Teologia Ceide a 18 de Novembro de 1916 e faleceu no Hospital de Santo dos Seminários. Entre 1976 e 1981 colaborou ainda com a Rádio António, no Porto, a 5 de Julho de 1983. Em 1928, entrou para o Renascença no programa “Ao Encontro da Grande Música” Seminário de Nossa Senhora da Conceição (Braga), onde estudou (Faria:1992, Martins: 2008, Pereira: 2009). Música com o Pe. Alberto Brás, sendo ordenado sacerdote em as obras investigadas no âmbito da minha tese de mestrado2 1939. Seguiu então para Roma em 1939, onde estudou no Ponti­ foram: Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do Seminário ficio Instituto di Musica Sacra (P.I.M.S.), com Rafael Casimiri (1934), O Barbosa foi ao mar (1935), Marcha fúnebre (1941), Adeus

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 75 (1948), Quatro pequenas peças para piano (1961) e Sonatina para dades técnicas do intérprete. Acaba, assim, por ser um primeiro piano (1982). Para além destas, estão também presentes no testemunho da importância do contexto religioso na sua obra. espólio as obras: Romanza senza parole (1942), Fala um anjo (1950), O meu relógio (1955) e Tiroliro (incompleta e sem data) que terão aqui algum espaço de análise. Também se encontram o barbosa foi ao mar (1935) catalogadas as peças Momento musical (1979) e Dança de Roda (1975) que foram englobadas na Sonatina para piano (1982) a obra o barbosa foi ao mar foi escrita em Braga a 12 de como 2.º e 3.º andamentos, respectivamente. Novembro de 1935 e é um dos primeiros exemplos do naciona- as obras serão apresentadas por ordem cronológica, com lismo presente na obra de Manuel Faria. O tema utilizado tem pequenas incursões às palavras de Manuel Faria, presentes em uma raiz popular, provindo de um contexto lúdico (Faria, Fran- vários artigos escritos pelo próprio, que espelham os contextos cisco: 2009). Manuel Faria colocou também no M.O. as quadras popular, religioso e académico em que esteve envolvido. desta canção: “O Barbosa foi ao mar/ Em manhã de nevoeiro /O que trouxe no anzol /Foi os cornos dum carneiro/Olha para a água/Ri-te para mim/Bate o pé na areia/Faz terrim, tim, tim.”. Fantasia brilhante sobre dois temas do hino do semi- assim, manuel faria “brincou” com este tema, harmoni- nário (1934) zando-o de forma romântica. Constatámos esta alusão ao nacio- nalismo romântico no espólio literário, através da conferência a fantasia brilhante sobre dois temas do hino do Seminário de Comemoração do Centenário de Frederico Chopin (1949): Nossa Senhora da Conceição foi composta em Braga a 24 de Março de 1934 e estreada em “Braga, na Academia de Santa Cecília” (Faria, Era ao piano que [Chopin] matava as saudades da pátria, ora evocando as glórias do Cristina: 1992). Baseia-se num hino escrito pelo Pe. Benjamin passado nas polacas grandiosas, cavaleirescas, ora desenhando em graciosos ritmos de Oliveira Salgado, e foi escrita quando Manuel Faria era aluno de mazurka ou valsas a imagem fagueira da sua vida familiar e campesina. (Faria, do Pe. Alberto Brás, no Seminário de Nossa Senhora da Conceição. Manuel: 1949: p. 5) É uma das suas primeiras peças, visto que as obras mais antigas datam de 1934. A Fantasia foi dedicada da seguinte forma: manuel faria não deixa dúvidas quanto ao seu amor pelo género popular, dando a este uma importância vital não só na Ao amigo, companheiro e conterrâneo Benjamin de Oliveira Salgado, exímio composi­ sua obra, mas na sua vida quotidiana: tor e ilustre pianista, oferece, dedica e consagra o autor, Manuel Ferreira Faria (Faria, Manuel: 24 de Março 1934). A música popular tem para nós a mesma importância da terra onde nascemos, da fa­ mília onde crescemos, como da educação que nos encaminhou nos primeiros passos benjamin de oliveira salgado (Joane, 8 de Maio de 1916 – nas sendas do mundo. (Faria, Manuel: S/d Música popular e música erudita: p.20) Joane, 28 de Janeiro de 1978)3 foi colega de Manuel Faria no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, na altura, sendo também aluno do Pe. Alberto Brás. Foi uma pessoa muito tiroliro (incompleta e sem data) importante na vida do compositor, como nos relata o seu irmão Francisco Faria e o seu afilhado e aluno de piano Boaventura à semelhança da peça o barbosa foi ao mar, esta obra é tam- Faria: bém testemunho da importância do contexto popular na sua obra. Apesar do documento não ter data, o material utilizado, Foi um homem muito importante na sua vida. (…). A vila de Famalicão sofreu uma bem como o tipo de obra (variações), é em tudo idêntico às peças alteração profunda com a administração dele. Seguiram de certo modo caminhos dife­ escritas entre 34-39. Ainda sobre a música popular, o composi- rentes, o Manuel nunca exerceu nenhum cargo político ou público, o Padre Benjamin sim, tor refere: seguiu esse caminho. (…) Podemos até dizer que o Padre Benjamin era mais do gosto popular do que o meu irmão. O meu irmão era mais erudito… (Faria, Francisco: 2009) A autêntica música popular é como o “alecrim doirado, - que nasce nos montes – sem ser semeado”. Assim o povo a canta, sem a ter aprendido de ninguém. Não se sabe de No que concerne a sua relação com Benjamim Salgado, posso afirmar que este compo­ quem nasceu, nem onde, nem como. É como uma cristalização da própria alma portu­ sitor retribuía a Manuel Faria a mesma cordialidade e evidenciava a sua admiração guesa (Faria, Manuel: Música popular e música erudita: p. 10). pelo talento artístico deste (Faria, Boaventura: 2009) Quanto à integração dos actuais compositores nessa tradição, não vejo mesmo outra esta fantasia é referida no primeiro catálogo feito por saída, pois como vamos assimilar culturas estranhas, se não somos capazes de assi­ Francisco Faria na N.R.M.S. em 1983 duas vezes, e com títulos milar a nossa? Se no passado nos faltam «grandes» é precisamente por olharem mais parecidos: Fantasia brilhante e Fantasia brilhante sobre dois temas para fora do que para dentro. (Faria, Manuel: 1961). do hino do Seminário. Após pesquisa na B.G.U.C. verificámos que, de facto, existem duas partituras escritas com um dia ape- tiroliro apresenta um manuscrito de duas páginas escritas a nas de diferença. No entanto, e após análise dos manuscritos lápis, sendo o discurso interrompido a meio da segunda página. originais, apurámos que a versão de 24 de Março de 1934 é uma A obra é pautada por uma linguagem tonal, apresentando o tema versão mais elaborada da primeira versão, tendo o manuscrito principal em vozes internas na mão direita. original (M.O.) final uma capa onde escreve a dedicatória, rea- firmando a data de 24 como a data de composição. no que diz respeito à linguagem musical, esta obra ainda não marcha fúnebre (1941) evidencia quaisquer traços do modernismo que tanto caracteri- zará a obra de Manuel Faria. É uma obra tonal que visa explorar a marcha fúnebre, apesar da tentativa de a tornar numa obra não só os temas do Hino do Seminário, como também as capaci- para orquestra, permanece como sendo uma obra para piano

76 | glosas | número 4 | novembro | 2011 solo. As duas primeiras páginas do M.O. têm várias marcações a assim, na primeira parte, verificamos um discurso tonal (em lápis, fruto de tentativas de orquestração, acrescentando várias Ré menor5), desenvolvido através de uma célula rítmica, com a notas que iriam alterar profundamente o sentido tonal da obra utilização de tercinas [reminiscente da Marcha fúnebre (1.º (apesar desta conter várias influências impressionistas na secção andamento) da 5.ª Sinfonia de Mahler]. Ainda na primeira sec- central “Religioso”). No M.O. da Marcha fúnebre verificámos que ção, utiliza ritmos de colcheia pontuada com semicolcheia, Manuel Faria refere como local de composição S. Miguel de Ceide. muito utilizados no período romântico, nomeadamente por Manuel Faria escrevia as suas obras em S. Paio de Ceide e, como Beethoven ou Chopin. se sentia “expatriado” em S. Paio, por ser natural de S. Miguel de Ceide, acabava por referenciar as obras como tendo sido compostas em S. Miguel de Ceide (Faria, Francisco: 2009). escrita em dezembro de 1941, esta obra situa-se num período de transição entre a primeira e a segunda vez que esteve em for- mação no P.I.M.S. de Roma (para onde voltou em Fevereiro do ano seguinte). esta obra resulta, assim, de uma homenagem não só a D. Maria Clementina Pires de Lima Tavares de Sousa mas também à própria família Pires de Lima, uma vez que foi através desta que conseguiu contacto com António Faria Carneiro Pacheco4, que era, na altura, embaixador de Portugal no Vaticano (Faria, Francisco: 2009). Maria de Lourdes Pires de Lima Tavares de Em cima: tema da secção central da obra com pedal de tónica na mão esquerda (m.e.) Sousa efectuou recolhas e harmonizações de canções populares, e acordes de 7.ª na m.d. Em baixo: junção dos dois temas principais na coda final. sendo autora do livro Folclore musical e tendo igualmente reali- zado conferências no âmbito do folclore musical, como Uma Canção popular minhota e sua origem litúrgica (1940). Apesar das dúvidas que se possam colocar sobre o facto desta obra ser para piano (uma vez que as extensões escritas para a mão direita são impossíveis de alcançar em simultâneo por um só intérprete), a primeira página do M.O. (Faria, Manuel: 1941) não deixa dúvi- das, tendo sido acrescentado a lápis um ponto de interrogação por outro autor. ao nível da linguagem musical, é uma obra que apresenta dois ambientes contrastantes em carácter, bem como ao nível das influências e técnicas de composição. Ao nível da forma, a na secção central, domina uma linguagem impressionista, obra tem uma estrutura tripartida, sendo a terceira parte uma utilizando longos pedais de tónica, dominante e sub-dominante reexposição da primeira, aproveitando temas também da na mão esquerda, com utilização constante de pedal (própria da segunda parte. linguagem impressionista), enquanto que na mão direita se observam sequências de acordes de 7.ª sucessivos, todos execu- tados sem levantar o pedal de ressonância. Na terceira secção e na coda final, verificamos a utilização dos temas da primeira e segunda secção em simultâneo, dando assim uma maior coesão e sentido de unidade à obra.

romanza senza parole (1942)

Obra composta em Roma a 28 de Julho de 1942 (manuscrito com quatro páginas a lápis), Romanza senza parole resulta de um Figurações rítmicas exercício académico, pelo que podemos verificar em vários da primeira parte. pontos do manuscrito com a indicação “Tema Dato” a lápis azul. Esta peça desenvolve-se numa tonalidade de Mi Maior, englo- bando três temas referenciados pelo compositor (Tema A, c. 1- 17, tema B, c. 18-55 e tema C, c. 56 até ao final). À semelhança das Quatro pequenas peças para piano, é fruto não só do contexto académico em que Manuel de Faria se inseriu, mas também um testemunho da sua formação em Itália, onde teve como profes- sores D. Gregório Suñol (Canto Gregoriano), Cesare Dobici (Contraponto), Raffaele Casimiri (Polifonia), Eduardo Dagnino (Crítica e Estética), Licínio Recife (Composição) e Ferruccio Vignanelli (Órgão) (Martins: 2008). apesar desta ser uma obra completa, a última página do manuscrito não apresenta o discurso musical de forma continu- ada devido às várias correcções feitas pelo compositor.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 77 adeus (1948) Manuel Faria foi, enquanto professor, o Mestre dos mestres. Pedagogo inato, nunca desistia de um aluno, com a desculpa de que não tinha ouvido (sempre o ouvi dizer: a peça adeus foi composta em braga a 16 de Outubro de 1948, “o ouvido educa-se!”). Inerente à exigência que colocava no ensino da música, era, não tendo nenhum dedicatário. O M.O. da peça tem apenas duas igualmente, a sua compreensão para quem denotava maiores dificuldades, a sua ge­ páginas escritas a lápis, existindo no verso da primeira uma nerosidade para com os que erravam. (Faria, Boaventura: 2009). harmonização de Manuel Faria do Hino da Juventude Cristã Por­ tuguesa do compositor Armando Leça. Adeus é uma peça com uma linguagem modernista, com utilização de acordes de 7.ª e quatro pequenas peças para piano (1961) 9.ª, típicos do impressionismo francês. A utilização de 7.ª e 9.ª acaba muitas vezes por se traduzir na sobreposição de acordes as quatro pequenas peças para piano foram compostas em com tonalidades que têm entre si várias notas em comum. Roma. As datas de composição variam poucos dias entre si em Outubro de 1961, sendo a primeira (Invençãozinha) composta a 16, a segunda (Prelúdio) e a quarta (Scherzetto) a 18, e a terceira fala um anjo (1950) (Melodia) a 19. Foram investigados dois manuscritos diferentes desta obra, constando a seguinte dedicatória no verso da capa da esta obra, escrita em braga, contém referências contraditó- partitura original oferecida a Cristina Faria: “Para a Cristininha, rias em relação ao facto de ser para piano ou órgão. Também a com muitas desculpas por estas esquisitices, o tio Manuel” (Faria, sua data, apesar de estar referida no manuscrito, tem sido alvo Manuel: 1961: p. 2). No outro manuscrito, verificamos que este de leituras ambíguas. Na tese de Cristina Faria está catalogada contém várias anotações de instrumentação das quatro peças como sendo uma obra para piano que data de 1950. Contudo, há que são (segundo informação resultante da investigação de duas referências na biblioteca que a classificam como reportó- Paulo Bernardino sobre a música instrumental de Manuel Faria) rio para órgão e com data de 7 de Fevereiro de 1958 ou 7 de a instrumentação das peças n.os 3, 7, 8 e 9 das Nove pequenas Novembro de 1958. Estas divergências justificam-se com o facto peças para orquestra de câmara (1961-65), havendo algumas de o compositor tanto utilizar numeração romana como árabe diferenças entre esta instrumentação e a versão final. na data do mês, para além da pouca clareza na indicação do ano. a estreia destas peças data de 7 de julho de 1962, em Braga, Analisando o manuscrito, verificamos que a leitura mais prová- pela pianista Maria de Lourdes Álvares Ribeiro, sobre a qual o vel será 7 de Novembro de 1950. compositor escrevia, a 12 de Junho, no Diário do Minho, as a ambiguidade da instrumentação também é justificada; no seguintes palavras: entanto, a indicação no início da partitura “Tudo uma 8.ª acima do princípio ao fim” (Faria, Manuel: 1950) e a tessitura das notas Cumpre dizer duas coisas: - que a pianista os valorizou com uma execução muito in­ agudas escritas (uma oitava abaixo do que soa), indiciam que a teligente, e que o público as recebeu com uma surpresa cheia de simpatia, premiando obra é, efectivamente, para piano. Se a ausência de indicações assim o muito esforço (senão valor) dum compositor, que será talvez insignificante no de pedal poderia sugerir uma obra para órgão, podemos tam- panorama nacional, mas é em Braga, até à data, o único no género, bem que posto à bém constatar no segundo andamento da Sonatina para piano margem de tudo o que não seja trabalho desinteressado. (Faria, Manuel: 1962). que nem sempre o compositor escrevia pedais. Ao nível do dis- curso musical, desenvolve-se uma certa “metamorfose” até estas peças são fruto do contacto de Manuel Faria com à tonalidade de Dó Maior (com que acaba), apresentando a sua Goffredo Petrassi, enquadrando-se no contexto académico. As 7.ª maior logo no primeiro compasso, iniciando a viagem até ao últimas três peças são escritas usando uma linguagem dodeca- acorde perfeito maior final. À semelhança da peça Adeus, apre- fónica serial. No entanto, a peça Invençãozinha (primeira peça a senta várias sucessões de acordes de 7.ª e 9.ª, com uma recor- ser escrita) contém em si uma pequena homenagem a J. S. Bach, rente utilização de cromatismos, de alguma forma característi- que se expressa não só na sua polifonia, como também na suges- cos de um certo modernismo francês, pelo qual Manuel Faria tão de cadência picarda final após intensa politonalidade (utili- tinha especial apreço. zando doze tons no mesmo compasso). As restantes três peças são escritas segundo os padrões dodecafónicos seriais, podendo­ ‑se vislumbrar a série dodecafónica logo no início do Prelúdio. o meu relógio (1955) Manuel Faria referiu-se ainda ao dodecafonismo destas obras em carta a Frederico de Freitas: esta é uma pequena peça infantil cujo manuscrito tem duas páginas. Podemos ler a dedicatória “para a Cristininha” feita no Depois de ter estudado o dodecafonismo estou como o burro no meio da ponte. Por um aniversário de Cristina Faria, já nos anos 60. Foi executada em lado não há meio de forçar a minha sensibilidade a aceitar as cacofonias (para mim é Braga pela dedicatária, numa audição de intercâmbio entre o o termo) do Schoenberg e do Webern. Por outro lado, encontro cheios de beleza o Alban Conservatório Regional de Coimbra e o Conservatório Calouste Berg e o Dallapicola (embora com restrições a respeito deste), e doutra parte ainda, fui Gulbenkian de Braga (Faria, Cristina: 1998). Foi composta no há dias ouvir as minhas três peças dodecafónicas (rigorosamente) para piano e sabe mesmo ano que O livro da Maria Frederica (1955) do seu amigo e que as achei bonitas? Por isso não sei o que faça. (Faria, Manuel: 1962). compositor Frederico de Freitas, com o qual contactou desde 1951, quando este era maestro da Orquestra Sinfónica do Con- no entanto, o tratamento interpretativo destas peças, servatório de Música do Porto. Existe correspondência trocada principalmente ao nível do pedal de ressonância, teve como entre os compositores até Dezembro de 1979, um mês antes da principal referência o compositor Olivier Messiaen, em que a morte de Frederico de Freitas. Boaventura Faria, aluno de piano utilização do pedal tem uma função preponderante na obtenção do compositor, relata-nos ainda o seguinte: de sonoridades que sustentem as várias dissonâncias e choques harmónicos criados pela série dodecafónica. Tal facto foi-nos relatado em entrevista pela pianista Maria de Lourdes Ribeiro:

78 | glosas | número 4 | novembro | 2011 O que mais preocupava o P. Faria era o espectro tímbrico, (…) é necessário compre­ manuscritos presentes na B.G.U.C. não terem dedicatória, encon­ ender que movimento e gesto são coisas diferentes porque o último está acoplado à trámos, no verso da partitura oferecida pelo compositor à pianista, intencionalidade e o primeiro não. Ora nos sons do arco-íris essa acoplagem, implica a seguinte dedicatória: “A Maria de Lourdes A. Ribeiro com admi­ a participação do braço e de todo o corpo, com especial incidência nos aspectos de­ ração e afecto, Natal de 1982.” (Faria, Manuel: 1982). No entanto, pendentes dos pedais, uma vez que temos de jogar com a palete dos harmónicos (…). apenas o primeiro andamento foi composto nesse ano, uma vez Quanto aos compositores nomeados temos sobretudo Messiaen (Ribeiro, 2009). que o segundo e o terceiro andamentos eram peças já existentes e que foram integradas na Sonatina para piano em 1982. maria de lourdes ribeiro acrescenta ainda que “era preciso assim, o segundo andamento foi composto originalmente uma experimentação sonora que quase abusasse do pedal para dar o como Momento musical, sendo esta peça composta em Ceide, a 4 efeito das sonoridades e coloridos necessários” (Ribeiro, 2009). O de Março de 1979, e dedicada no aniversário de Cristina Faria manuscrito revela também no final a seguinte frase: “O uso do como consta no manuscrito: “À Cristininha no dia dos seus radio­ pedal requer especiais cuidados, com a preocupação do timbre.” sos 18 anos, o tio Manuel” (Faria, Manuel: 1979: p. 1). O terceiro (Faria, Manuel: 1961). andamento da Sonatina para piano foi escrito, em primeira ins- manuel faria escreve ainda, em relação a Olivier Messiaen, as tância, como Dança de Roda, composta em Ceide, a 5 de Feve- seguintes palavras no seu artigo Olivier Messiaen - compositor reiro de 1975. Esta peça foi também dedicada a Cristina Faria. católico: a estreia desta obra esteve mais uma vez a cargo da pianista Maria de Lourdes Álvares Ribeiro, a 7 de Julho de 1984, num concerto organizado pela Associação de Coros Paroquiais de Vila Nova de Famalicão, que teve lugar no auditório da Fundação Cupertino de Miranda (Martins, 2008 e Faria, Francisco: 2009). Neste concerto participou também o Coro D. Pedro de Cristo dirigido por Francisco Faria (Faria, Francisco: 2009). existem dois manuscritos da Sonatina para piano na B.G.U.C., M.O. de Olivier Messiaen - compositor católico, p.10. sendo que num deles não figura a primeira página do segundo andamento. A obra apresenta uma grande heterogeneidade de Messiaen, longe de ser um académico pedante, que giza regras para pontificar numa estilos entre os três andamentos, o que poderá dever-se ao facto escola, mostra-se antes o artista seguro da sua técnica, que toma plena consciência de ter sido escrita em períodos diferentes (embora todos perío- dos seus meios pelo que se exprime e se realiza a sua mensagem de beleza. [p.10] (…) dos de maturidade). Essa era também uma das características de Parece-me até que, se podemos considerar a música de Stravinsky paralela ao cubis­ Manuel Faria enquanto compositor, como nos relata o seu irmão mo, e a de Schöenberg a certas congeminações colorísticas derivadas de Picasso, tam­ em entrevista: “Pode-se dizer que foi um compositor que dedicava bém podemos ver em Messiaen um fruto espontâneo do clima em que vagueia mais ou muito pouco tempo à composição, de modo que hoje fazia um pouco e menos tontamente o existencialismo literário. [p.12] (Faria, Manuel, S/d: p.9-12) parava e só continuava passado um tempo.” (Faria, Francisco: 2009). é também importante salientar que, em 1959, Jorge Peixinho assim, verificámos no primeiro andamento raízes dodecafó- estuda em Roma com Goffredo Petrassi (Martins: 2008), com- nicas, tendo também influências neoclássicas e neomodais, uti- pondo as Cinco pequenas peças para piano6, atonais, usando lizando a escala de tons inteiros em conjunto com a escala cro- diversas técnicas de origem dodecafónica, tal como nos relata mática para obter sonoridades com os 12 tons, alcançando assim Cândido Lima: um dodecafonismo não sistemático. A sua forma é muito seme- lhante à forma sonata utilizada por Francis Poulenc (com uma As Cinco pequenas peças (1959) abrem um novo universo no pensamento e na obra forma ABA, sendo que o B é exposto mais como um tema lento de Jorge Peixinho. O dodecafonismo e o serialismo, que nestas peças têm a sua primei­ do que propriamente como um desenvolvimento de sonata). ra manifestação, ainda de natureza claramente académica, irão desempenhar uma função estruturadora e catalizadora em toda a sua música. no entanto, o experimentalismo seguido por Peixinho não encontrava eco na obra de Manuel Faria que, no seu artigo Música de Laboratório, dizia o seguinte:

Terá a música de ser apeada do seu milenário trono de rainha das Artes para se sentar envergonhada no banco de aula de ciências electroacústicas? (…) Venham (…) to­ dos os ensaios e novas técnicas disciplinares – música dodecafónica, serial, concreta, electrónica (…) atómica ou sideral (…) venha (…) como subsídio para a grande sín­ c. 7-8 com escalas de tons inteiros intercaladas na mão direita e terceiras cromáticas na tese (…). Agora fazer de isso a música pura que substitui toda a do passado, não nos mão esquerda. comove (…). (Faria, Manuel, 1960). o segundo andamento apresenta uma linguagem com uma envolvência e tratamento típico do impressionismo francês. sonatina para piano (1982) A utilização de acordes de 7.ª e 9.ª é abundante, tal como nas peças Adeus e Fala um anjo. Ao nível da utilização de pedal, apenas a sonatina para piano foi composta em braga no mês de o M.O. do Momento musical (1979) apresenta as indicações Junho de 1982, aproximadamente um ano antes do falecimento do de pedal do compositor. Nenhum dos dois manuscritos da compositor. Esta, enquanto obra de três andamentos, foi dedi- ­Sonatina para piano (1982) presentes na B.G.U.C. apresenta cada a Maria de Lourdes de Sousa Álvares Ribeiro. Apesar dos qualquer tipo de indicação de pedal.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 79 o terceiro andamento é uma peça de cariz nacionalista moder- Ribeiro, Maria de Lourdes Álvares. 3 de Novembro de 2009. nista, muito à semelhança de Bartók ou Lopes-Graça. Os ritmos Manuel Faria e o Piano. Porto. vivos e bem marcados das danças de roda tradicionais (como documentação não publicada aliás sugere o título da peça Dança de roda, escrita em 1975 e Faria, Boaventura. 6 de Novembro, 2009. Manuel Faria “reutilizada” neste andamento), são assim o mote para um tra- e o Piano. Coimbra. tamento rítmico e melódico simétrico. Os intervalos apresenta- Faria, Cristina. 18 de Outubro de 2009. Manuel Faria e o Piano. dos ao longo de uma grande parte da obra são executados de Coimbra. forma simétrica, utilizando entre eles eixos de simetria, marca- Faria, Francisco. 15 de Setembro, 2009. Manuel Faria e o Piano. dos pela dissonância Lá com Lá # em simultâneo, sendo a obra Coimbra. pautada por intervalos de 4.ª e 5.ª. Faria, Manuel. 1949. Comemoração do centenário de Frederico Chopin. In Espólio literário de Manuel Faria. Faria, Manuel. 1957. O Motu Proprio de Pio X e a música conclusões moderna. In Espólio literário de Manuel Faria. Faria, Manuel. S/d. Música popular e música erudita. nas obras investigadas, identificámos vários métodos de ­In Espólio literário de Manuel Faria. composição com os quais qualquer intérprete deverá estar Faria, Manuel. S/d. Olivier Messiaen – compositor católico. familiarizado para melhor compreender e interpretar a obra In Espólio literário de Manuel Faria. para piano solo de Manuel Faria. Uma utilização cuidada a nível do pedal, no que diz respeito à música com forte influência francesa, ou um extremo cuidado com a articulação e gradação musicografia dinâmica, patente na Segunda Escola de Viena, são alguns dos (todos os documentos fazem parte do Espólio musical de requisitos básicos para podermos executar de forma esclarecida Manuel Faria, da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra) e academicamente fundamentada as obras investigadas. Por último, de salientar os contextos popular, religioso e académico, Faria, Manuel. S/Dt. Tiroliro. que formam a espinha dorsal da sua produção musical e que não Faria, Manuel. 7 de Novembro, 1950. Fala um anjo. devem ser negligenciados na análise da obra para piano de Faria, Manuel. 1955. O meu relógio. Manuel Faria. Segundo o seu irmão Francisco Faria: “aquele Faria, Manuel. 24 de Março, 1934. Fantasia brilhante sobre dois espírito foi cimentado em duas colunas firmes – a alma do povo e a fé temas do hino do seminário. na igreja de Jesus Cristo e moldado por dois amores: o amor à sua Faria, Manuel. 12 de Novembro,1935. O Barbosa foi ao mar. terra e aos seus e o amor a Deus.” (Faria, Francisco: 1983: p. 2). Faria, Manuel. Dezembro, 1941. Marcha fúnebre. Faria, Manuel. 28 de Julho, 1942. Romanza senza parole. Faria, Manuel. 16 de Outubro, 1948. Adeus. referências bibliográficas Faria, Manuel. Outubro, 1961. Quatro pequenas peças para piano. Faria, Manuel. 5 de Fevereiro, 1975. Dança de roda. Lima, Cândido. 2005. Jorge Peixinho – uma poética do piano. Faria, Manuel. 4 de Março, 1979. Momento musical. Centro de Informação de Música Portuguesa. Faria, Manuel. Junho,1982. Sonatina para piano. Sousa, Maria Clementina Pires de Lima Tavares de. 1940. Uma Canção popular minhota e sua origem litúrgica. Vol. 18. Lisboa: Comissão Executiva dos Centenários. Sousa, Maria Clementina Pires de Lima Tavares de. 1942. Folclore musical. Porto: Portucalense. Faria, Cristina. 1998. Manuel Faria, vida e obra. Famalicão: 1 A Nova Revista de Música Sacra é publicada trimestralmente e a primeira edição data de Janeiro de 1971, sendo que a última revista da 1.ª série data de 1973. Só em 1977 a N.R.M.S. Câmara Municipal de V. N. Famalicão. voltou a ser impressa, tendo a primeira revista da 2.ª série o número 1. O ano de teses publicação era assim o Ano IV. A N.R.M.S. teve como directores o Cónego Manuel Faria Faria, Cristina. 1992. Manuel Faria: O homem e o sacerdote / O entre 1971 e 1983 (ano da sua morte) e António Azevedo de Oliveira, que sucedeu ao compositor após a sua morte. compositor e o pedagogo, Ciências Musicais da Faculdade de 2 A catalogação de referência para esta investigação, bem como da tese de mestrado Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra. Manuel Faria e o Piano. Das fontes primárias à performance de 2009, apresentada na Martins, Celina Teixeira. 2008. O tríptico para órgão de Manuel Universidade de Aveiro sob orientação de Helena Marinho, foi a de Cristina Faria (Faria, Cristina: 1992 e 1998), que foi o resultado da sua tese de 1992, editada em 1998 pela Faria no contexto do repertório organístico do século XX, Departa- Câmara Municipal de Famalicão. Na catalogação referida verificamos várias obras para mento de Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro, Aveiro. piano presentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (B.G.U.C.). (Pereira, Pereira, André. 2009. Manuel Faria e o piano. Das fontes André. 2009) 3 Padre, compositor e director de coros. Foi também professor de Canto Gregoriano, primárias à performance, Departamento de Comunicação e Arte, História da Música, Piano e Harmónio no Seminário Concilia de Braga. Foi também Universidade de Aveiro, Aveiro. director do Correio do Minho e director-geral da Fundação Cupertino de Miranda. Foi membro da comissão bracarense de Música Sacra, tendo colaborado com a N.R.M.S., revistas/periódicos onde tem obras publicadas. Faria, Francisco. 1983. A Música de Manuel Faria. 4 (1887-1957) Professor de direito em Coimbra e Lisboa. Foi Ministro da Instrução A fidelidade ao espírito. Nova Revista da Música Sacra, Ano IX Pública de 18 de Janeiro de 1936 a 28 de Agosto de 1940. Fundador da Mocidade Portuguesa (1936), da Mocidade Portuguesa Feminina (1937), sendo deputado entre 1934 2ª série nº 27, 1-7. e 1938. Embaixador de Portugal no Vaticano de 1940 a 1946. Faria, Manuel. Junho1960-a Música de laboratório. Praça Nova. 5 Já a 17 de Maio de 1937, Manuel Faria compunha um Requiem também em Ré menor, Faria, Manuel. Setembro/Outubro, 1961. Entrevista a Manuel no “dia do falecimento do saudoso mestre Sr. Padre Alaio”. Faria. Gazeta Musical e de Todas as Artes, Ano X, 2ª Série 6 Gravadas pelo próprio Jorge Peixinho e, recentemente, pelo pianista Miguel Borges Coelho, sendo actualmente investigadas por Francisco Monteiro, juntamente com nº 126/127. a restante obra para piano e música de câmara do compositor.

80 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Cosmopolitismo Musical na Cidade da Horta no Final ­do Século XIX Cidade da Horta com a vista do Pico Fayal – Açores. Bilhete-postal emitido no início do século XX. Editor deconhecido.

entre os navios que demandam o porto da Horta encontram- Luís C. F. Henriques | Texto ­‑se grandes navios de passageiros, assim como navios de guerra das potências mundiais. Estes últimos incluem os maiores navios de linha das respectivas marinhas de guerra de países com uma maior incidência a partir da segunda metade do como os Estados Unidos da América, Reino Unido, Alemanha, século XIX, a ilha do Faial e mais concretamente a cidade França, Itália, entre outros. Com estas esquadras geralmente da Horta tornaram-se num ponto de confluência dos mais vinha uma banda de música ou outro agrupamento musical que, diversos meios culturais. Vários factores contribuíram para esta a pedido das autoridades locais, apresentavam-se em concertos confluência cultural à terceira cidade insular em termos de na cidade ou em recepções dadas pela elite local aos oficiais dos importância, situada na periferia do reino português. navios5. Esta interacção irá ser importante para a criação, assim a história da cidade da horta reflecte um crescente grau como para o desenvolvimento, das bandas filarmónicas locais, de cosmopolitismo, construído ao longo dos séculos. Isto acon- que se começa a fazer sentir de forma mais sistemática a partir tece já aquando do seu povoamento, em finais do século XV, com da década de setenta do século XIX. a chegada de flamengos, assim como de gentes provenientes os saraus musico-literários eram eventos sociais caracterís- do Norte e do Sul do continente português. A baía onde é implan­ ticos da burguesia local. Neles, os membros das famílias mais tada a cidade, desde o primeiro povoamento, oferece carac­ proeminentes tinham a oportunidade de exibirem a sua habili- terísticas excepcionais como porto de abrigo. Este facto será dade, tanto musical, como também literária. Os programas ­preponderante na história desta cidade aberta ao mar. Será, ­misturavam música e poesia. O programa musical compunha-se pois, a exploração do mar como meio de comunicação, um dos de pequenas peças para piano ou para voz e piano, ou outro ins- factores dos quais advirão os proveitos a nível económico, social trumento, como o violino ou a flauta. Estas compreendiam valsas, e, consequentemente, a nível cultural1. fantasias, romanzas, ou árias avulsas retiradas das óperas mais no século xix irá existir um crescente fluxo de navios a deman- conhecidas de compositores como Giuseppe Verdi, Gaetano dar o porto da Horta, nomeadamente navios a vapor. Com a cons­ Donizetti ou Vincenzo Bellini. Compositores amadores locais trução do porto artificial em 1876, apesar da abertura da doca também aparecem representados nestes programas, escrevendo de Ponta Delgada, acentua-se cada vez mais este fluxo marítimo. peças de carácter mais ligeiro, como polkas ou mazurkas, sobre- Este facto potencia o estabelecimento na Horta de empresas de tudo para piano. A poesia, regra geral, era da autoria de escri­ apoio a esses mesmos navios, fornecendo-lhes carvão, víveres, tores locais versando a temática da insularidade como também reparação de avarias, entre outros serviços2. da saudade6. Estes poetas chegam a ganhar alguma popularidade a primeira empresa a radicar-se na Horta para esse serviço na ilha do Faial, ilhas vizinhas, e até mesmo a nível regional. é a do cônsul-geral dos Estados Unidos da América nos Açores, Estas reuniões culturais realizavam-se em amplas salas, geral- John Bass Dabney. Esta empresa atingirá o seu apogeu com o seu mente em edifícios públicos (como é o caso do palacete do filho Charles William Dabney3. A família Dabney será, até à sua Governo Civil), ou em casas da burguesia mais abastada como retirada do arquipélago em 1892, determinante a nível cultural é disso exemplo o Palacete de Santana, pertença de Rodrigo na Horta do século XIX. Esta família de origem americana Alves Guerra, segundo barão de Santana7. ­pertencente a uma classe burguesa endinheirada irá promover as sociedades e clubes também têm um papel importante na os mais diversos eventos sociais, nos quais a música estará prática musical na Horta do final do século XIX. Estas também ­destacadamente representada. A elite burguesa da cidade fará promovem soirées e bailes onde se reúne a burguesia da cidade8. também parte integrante deste círculo social4. Sociedades como o Ginásio Clube, Sociedade Amor da Pátria,

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 81 Sociedade Humanitária, são autênticos motores da cultura, subsi­ Simaria na Horta é decisiva para vida musical na cidade16. Este, diando escolas, constituindo bibliotecas e promovendo a prática para além de violinista, torna-se director musical tanto da orques­ do teatro assim como da música9. tra que funda como também de várias filarmónicas da ilha, a burguesia estrangeira também tem um papel activo nestas abrindo uma aula de música em 189617. Será uma das figuras reuniões. O já mencionado vice-cônsul americano Charles musicais da ilha durante a primeira metade do século XX. ­Dabney, assim como o vice-cônsul alemão, entre outros, pro- francisco xavier simaria irá ter um papel preponderante na movem soirées, jantares e outros eventos, onde é convidada dinamização e florescimento de algumas bandas filarmónicas a burguesia local. Estes eventos decorrem nos mesmos moldes como a Nova Artista Flamenguense e Artista Faialense. As bandas que os patrocinados pela burguesia, utilizando também os mes- filarmónicas constituem-se na ilha do Faial ao longo da segunda mos espaços acima mencionados. metade do século XIX. Estas são muito provavelmente as entida- estas festas são também animadas por agrupamentos instru- des musicais mais cosmopolitas na Horta dos finais do século. mentais de maior dimensão: as orquestras10. Estas têm um papel Isto acontece sobretudo pelo motivo apontado anteriormente. fundamental na vida musical da cidade da Horta e até mesmo nas As esquadras das Marinhas de Guerra de vários países escalavam ilhas do Faial e Pico. Contam-se cinco agrupamentos deste tipo o porto da Horta, para receber carvão e víveres. Ao fazê-lo demo- na Horta a partir da década de setenta11. Estes grupos tinham as ravam-se alguns dias pelo porto, sendo que as bandas que mais diversas funções, que iam desde a actuação nas festas da vinham a bordo costumavam ir a terra e presentear a cidade com sociedade e no teatro até ao acompanhamento de cerimónias um concerto, geralmente no coreto do jardim público. litúrgicas. Estas orquestras começam por surgir no âmbito das esta proximidade proporcionava o contacto e a troca de experi- associações recreativas. Cada associação possuía um palco onde ências, assim como de repertório18. Existem casos em que obras se realizavam espectáculos de vária ordem com frequência. escritas por compositores locais, como é o caso de Simaria, É disso exemplo a Sociedade Humanitária que, no início da são oferecidas a essas mesmas bandas19. Começam também década de oitenta, cria a sua própria orquestra, sob a direcção do ­a figurar nos programas, publicados nos jornais da cidade, pianista José Cândido Bettencourt Furtado12. Esta orquestra irá, anunciando concertos pelas filarmónicas de obras com títulos em 1884, dar origem à célebre orquestra “João de Deus”. que sugerem uma ligação a esses navios de passagem pela Horta. a orquestra “joão de deus”13 surge assim, em 1884, de músi- Do Brasil também chegam obras, que são tocadas tanto pelas cos pertencentes à orquestra da Sociedade Humanitária com filarmónicas como pelas orquestras já mencionadas no teatro a inclusão de novos elementos. Tem por fundadores João de da cidade. Deus Teixeira e o pianista e organista Henrique de Sousa Fur- o teatro tem um papel central na sociedade da cidade da tado. Esta orquestra parece ter sido a primeira a funcionar como Horta. É aqui que se desenrola grande parte da vida musical uma associação autónoma. Contudo, não o podemos afirmar da cidade. Aliada à prática teatral existe também uma prática com certeza pois um outro agrupamento do género já existente, musical que se estende desde os concertos por assinatura à zar- a orquestra “4 de Novembro”, parece partilhar o mesmo esta- zuela e opereta, passando pela comédia ornada de música20. tuto. Esta será, indubitavelmente, a orquestra mais bem organi- Os amadores locais têm um papel importante, promovendo zada que existirá na cidade da Horta. Será também a orquestra récitas e espectáculos de variedades em que está sempre pre- mais requisitada, para os mais variados eventos. Estes serviços sente uma das orquestras da cidade. Passam também pela Horta, são, na sua maioria, de acompanhamento das cerimónias litúr- companhias de zarzuela e ópera cómica. É disso exemplo a com- gicas celebradas nas igrejas da Horta, como também por toda panhia do actor micaelense radicado em Lisboa, Pedro Cabral. a ilha do Faial14. A igreja detém a maior percentagem de requi­ Nesta companhia vem como director musical Alexandre Ferreira, sições. Esta orquestra, junto com a capela da Matriz da Horta, irá músico da orquestra do Teatro de S. Carlos21. Vem também vários estrear a 21 de Agosto de 1898, nas Festas do Bom Jesus de São anos à Horta a companhia de Santos Jr., da qual é director musi- Mateus do Pico, a música composta especialmente para a festa cal o já mencionado Francisco Xavier Simaria, acabando este pelo, na altura recém-laureado, Tomás Vaz Borba. A orquestra por se radicar na Horta. Os espectáculos promovidos no teatro, também tem um papel importante no teatro União Faialense no na maioria dos casos por assinatura, conjugam a recitação de acompanhamento das companhias de zarzuela e de variedades poesia com números musicais, geralmente voz ou instrumento que passam pela cidade. solista acompanhado de piano. para além da orquestra “joão de deus” tiveram actividade na o piano é um instrumento central na música burguesa do Horta a já citada orquestra “4 de Novembro”, a orquestra “União final do século XIX. Na Horta, como na ilha do Faial, isso não Musical” e a orquestra “Simaria”. A orquestra “4 de Novembro” é excepção. Não existe exactidão quanto ao número destes ins- parece ser, destas formações, a mais antiga. O seu nome já apa- trumentos existentes na ilha mas, pelo número de oficinas rece na imprensa faialense na década de setenta15. Esta orques- de manutenção, presume-se que o seu número seria elevado. tra mantém-se em actividade até meados da década de noventa, Chegam a existir na cidade da Horta, no início da década de altura em que deixamos de ter notícia sobre as suas actividades. noventa, cinco casas de pianos22. Estas dedicavam-se à impor- Muito provavelmente, dada a hegemonia da orquestra “João de tação dos instrumentos de França, Inglaterra e Estados Unidos Deus”e a criação de uma nova orquestra, terá sido dissolvida. da América. Para além disso também disponibilizavam serviços Esta nova orquestra surge em 1894 e dá pelo nome de “União de manutenção dos instrumentos, como sejam a afinação, Faialense” por estar ligada ao teatro com o mesmo nome, e tem encordoamento ou outro trabalho específico. por director José Cândido Bettencourt Furtado. Mantém-se em a casa que terá maior actividade na comercialização e manu- actividade até 1902, altura em que se funde com a orquestra tenção de pianos será a casa de João de Deus Teixeira. João de “Simaria”, da qual era director Francisco Xavier Simaria. Sima- Deus, como era conhecido, nasce na ilha do Pico em 1852. Filho ria, primeiro violino na orquestra do Teatro de S. Carlos, chega de pai incógnito, cedo vem para a Horta onde passa a sua juventude à Horta como director musical de uma companhia de zarzuela. no Asilo de Infância Desvalida, instituição pública que acolhia Acaba por se fixar na cidade da Horta em 1896. A presença de os órfãos, filhos fora do casamento e expostos. Aí deve ter rece-

82 | glosas | número 4 | novembro | 2011 bido alguma educação musical, provavelmente por via eclesiástica. a música sacra, pela ligação à igreja católica, tem bastante Teixeira vem a abrir a sua casa e oficina não só de importação importância no contexto da prática musical no Faial. Na cidade e manutenção de pianos como também de outros instrumentos, da Horta todas as igrejas (Conceição, Carmo, São Francisco, nomeadamente de órgãos de tubos. Para além de artífice, tam- Matriz e Angústias) possuem uma capela de música, algumas bém é músico sendo fundador da orchestra que ostentará o seu com órgão de tubos28. nome, fundada em parceria com Henrique de Sousa Furtado, destas capelas destaca-se a capela da matriz pela sua intensa onde, para além de director, também é primeiro violino. actividade musical. A igreja Matriz da Horta, pela sua importân- merece especial destaque a existência na cidade da Horta, nos cia central na cidade, tem um papel difusor da música religiosa finais do século XIX, de duas oficinas de organaria. A primeira na ilha do Faial e vizinha ilha do Pico. A Capela da Matriz é fre- oficina pertenceu a João de Deus Teixeira (1852-1904) ea quentemente requisitada para cerimónias religiosas nestas duas segunda a Manuel de Serpa da Silva (1848-1928). Estes não são ilhas. É escrita música propositadamente para esta capela. Esta propriamente construtores de órgãos de tubos, apesar de serem provém do Brasil, onde músicos emigrantes enviam obras frequentemente tidos como tal23. Estes mestres marceneiros, de sua autoria ou de autores conhecidos para serem feitas nas como frequentemente eram designados, encomendam órgãos, festividades das suas paróquias de origem. Na ilha do Pico tam- produzidos em série, nos Estados Unidos da América, França ou bém isso acontece, com especial relevo para as festividades Reino Unido, montando-os mais tarde nas igrejas a que se desti­ do Senhor Bom Jesus, na freguesia de São Mateus. nam24. Durante o processo de montagem dos instrumentos por a horta do século xix é uma cidade que se situa na periferia vezes introduziam melhoramentos por eles desenvolvidos, como do Reino de Portugal, mas, ao mesmo tempo, é uma cidade que é o caso dos foles e do método de inserção de ar nos mesmos. se situa no centro do Atlântico, ligando a Europa à América. Este o marceneiro e organeiro (títulos pelos quais é tratado) ponto é determinante para o entendimento da vida musical Manuel de Serpa da Silva nasceu na cidade da Horta em 1848. desta cidade, na segunda metade do século XIX. Apesar da sua Na década de oitenta emigra para os Estados Unidos da América condição periférica, a cidade da Horta possui todas as caracte- primeiramente para trabalhar como marceneiro na então flores­ rísticas de uma cidade cosmopolita, recebendo em certa forma, cente e lucrativa indústria baleeira. Nos Estados Unidos parece para além da cultura local, uma cultura internacional. ter adquirido e aperfeiçoado os conhecimentos que já possuía, regressando à ilha do Faial no final da década de oitenta. Abre oficina nesta cidade, iniciando a importação de uma série de órgãos de tubos da Costa Leste americana. Estes órgãos são uma inovação em termos técnicos pois são instrumentos “moder- 1 Ricardo Madruga da Costa, “Faial (Ilha)”, Enciclopédia Açoriana, http://pg.azores.gov.pt/ nos”, não possuído quaisquer semelhanças aos instrumentos drac/enciclopedia.html. 25 2 Maria Isabel João, Os Açores no Século XIX: Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas já existentes, de características ibéricas . (Lisboa: Edições Cosmos, 1991), 198. os seus órgãos encontram-se distribuídos pelas ilhas de 3 Ibid., 117. ­S. Miguel, Terceira, S. Jorge, Faial e Flores. Para além de montar 4 João Afonso, “Dos Anais da Família Dabney para a história oitocentista dos Açores numa os instrumentos, a oficina de Serpa da Silva também reparava perspectiva atlântica” in O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX (Horta: Núcleo Cul- e mantinha tanto os instrumentos encomendados, como tam- tural da Horta, 1995), 231-266. 5 O Telégrafo, 27 Setembro, 1894. bém os outros instrumentos “históricos” já existentes. Note-se 6 O Telégrafo, 30 de Novembro, 1896. a peculiaridade de serem, na sua maioria, provenientes das 7 Marcelino Lima, Famílias Faialenses (Subsídios para a História da Ilha do Faial) (Horta: casas Machado e Cerveira e Fontanes. Este, por assim dizer, Tip. Minerva Insulana, 1922), 525-526. “serviço de manutenção” levava Serpa da Silva a frequentes 8 O Telégrafo, 30 de Dezembro, 1895. ­viagens para todas as ilhas do arquipélago onde, por vezes, 9 Marcelino Lima, Anais do Município da Horta (História da Ilha do Faial), ed. facsimilada se demorava alguns meses nas reparações e manutenção dos (Horta: Câmara Municipal da Horta, 2005), 450. 10 O termo “orquestra” não é utilizado na sua acepção actual mas sim significando um grupo órgãos assim como também em concertos de harmónios, ins- instrumental heterogéneo, que actualmente poder-se-ia designar como “ensemble”. 26 trumento bastante popular nas ilhas durante este período . 11 Luís C. F. Henriques, “As Orchestras no Faial 1880-1940: A Orchestra 4 de Novembro”, A oficina de Manuel de Serpa da Silva, para além da comercia­ Inédito. lização de órgãos de tubos e harmónios, também se dedicava 12 Lima, Anais do Município da Horta, 450. à manutenção de pianos e à construção e comercialização de 13 O seu nome advém de João de Deus Teixeira, co-fundador e director da mesma até 1900. instrumentos de cordas. Antes de se especializar na organaria, 14 Luís C. F. Henriques, “As Orchestras no Faial 1880-1940: A Orchestra João de Deus”, inédito. Serpa da Silva já construía bandolins, violas da terra, guitarras 15 O Faialense, 29 de Setembro, 1878. 16 Carlos Lobão, org., Francisco Xavier Simaria: In Memoriam (Horta: Centro de Estudos e cavaquinhos. Especial destaque tem o rabecão (contrabaixo e Cultura da Câmara Municipal da Horta, 1989), 10. de cordas) que fez para a orquestra “4 de Novembro”, na qual 17 O Telégrafo, 21 de Outubro, 1896. tocava violino. Aquando da sua morte, em 1928, há referência 18 Ibid. à existência na sua oficina de um piano de meia cauda em estado 19 Ibid., 5 de Dezembro, 1894. avançado de construção27. 20 João A. Ribeiro, “Espectáculos no Faial e na Periferia Açoriana no Século XIX” in O Faial e a Periferia Açoriana nos Sécs. XV a XIX (Horta: Núcleo Cultural da Horta, 1995), 373-387. na horta, para além da oficina de Manuel de Serpa da Silva, também se dedica à importação e montagem de órgãos de tubos 21 Ibid., 12 de Julho, 1890. a casa do já mencionado João de Deus Teixeira. O volume de 22 O Faialense, 15 de Maio, 1892. negócio de Teixeira é bem mais modesto que o de Serpa da Silva, 23 Luís C. F. Henriques, “Manuel de Serpa da Silva: Breve Resenha Biográfica” Inédito. 24 Ibid. ficando-se pela montagem de quatro instrumentos, distribuí- 25 Ibid. dos pelas ilhas do Faial e Pico. Como Serpa da Silva, também 26 Ibid. João de Deus Teixeira, através da sua casa, repara estes instru- 27 A Democracia, 2 de Junho, 1928. mentos, deslocando-se com frequência à ilha do Pico. Estes 28 Luís C. F. Henriques, “A Prática de Música Religiosa no Faial no Final do Século XIX”, órgãos têm um papel central na prática de música religiosa. Inédito.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 83 Compositores a descobrir TOMÁS BORBA DUARTE GONÇALVES-ROSA | TEXTO

tomás vaz borba nasceu na freguesia de Nossa Senhora da terminados os estudos oficiais, não deixou de continuar Conceição da cidade de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Arqui­ a apetrechar-se de conhecimentos que o levariam ao magistério, pélago dos Açores, a 23 de Novembro de 1867. quer no Conservatório Real de Lisboa, quer na Real Academia cedo se manifestou a sua vocação. Ainda criança, iniciou de Amadores de Música, na Escola Normal de Lisboa, no Liceu a sua aprendizagem musical na chamada Claustra da Sé, sendo da Lapa, cujo orfeão dirigiu, e no Liceu Maria Pia, onde, com simultaneamente moço-cantor da Capela da Catedral de Angra. o apoio da reitora, Dr.ª Domitila de Carvalho, realizou revolu- Aí teve como professores Guilherme Augusto da Costa Martins, cionária e inovadora acção pedagógica, introduzindo a ginástica Zeferino da Silveira e José Pedro Soares, entre outros, tendo rítmica nos currículos escolares daquele estabelecimento de como condiscípulos Aniceto dos Santos, Vieira Mendes, Alfre­ ensino. Os conhecimentos, adquiridos por aturados estudos, do Campos, António José da Rocha, o notável tenor Francisco haviam de conferir-lhe também o necessário métier que trans- de Paula Moniz Barreto e o distinto compositor Pedro Machado formaria radicalmente as suas composições, tornando o seu tal- de Alcântara. ento – antes experimental, frágil e amadorístico – depois sólido, estudou no seminário de angra, onde se formou em Teologia. amadurecido e profissional. ­Depois de ordenado Presbítero, por não poder continuar a desen­ tomás borba possuía uma curiosidade natural e insaciável por volver a sua vocação musical, dadas as limitações da Claustra da aprender e saber. Assim é que, simultaneamente com a forma- Sé, vai viver para Lisboa, partindo de Angra a 21 de Abril de 1891. ção teológica e musical, vai frequentar o Curso Superior de no conservatório faz um percurso brilhante, estudando Letras de Lisboa. Na altura, estudar letras era, sobretudo num piano com Francisco de Lacerda, outro açoriano, da ilha de S. sacerdote, uma escolha relativamente ousada. Se se considerar Jorge, e harmonia, fuga e contraponto com Frederico Guimarães que o Padre Tomás Borba vai estudar, além de Filosofia Moderna, e Eugénio Ricardo Monteiro de Almeida. Foi tal a sua dedicação Sânscrito e Literatura e Filosofia Védica, a curiosidade e o res- ao estudo que concluiu os cinco anos do curso de Piano em apenas peito pelo pensamento oriental, que ele manifestamente três; Harmonia , que se distribuía por três anos, concluiu-a assume, afiguram-se quase heréticos. Tomás Borba em apenas um; frequentou também a aula de con- para além de teófilo braga, foram também seus professores traponto e fuga conseguindo fazer o curso de cinco anos em neste curso Augusto Maria da Costa e Sousa Lobo, Guilherme ­apenas três . de Vasconcelos Abreu, Francisco Adolfo Coelho, e Zósimo

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­Consiglieri Pedroso. A abertura a novas ideias e o convívio com na realidade a maior parte das composições de Tomás Borba intelectuais de quadrantes ideológicos diferentes não o faziam destinam-se ao ensino da música nas escolas e à prática coral vacilar nas suas convicções. Em entrevista a Dinis da Luz, já no dele decorrente. fim dos seus dias, refere: “Teófilo Braga foi meu professor no Curso a sua grande preocupação foi a educação musical do povo. Superior de Letras. Além disso, mais do que isso, foi meu amigo Para a implantação destas disciplinas nos currículos escolares e conselheiro até. Falava-me sempre com a maior delicadeza espiri­ muito lutou, designadamente como vogal do Conselho Superior tual, embora tivéssemos filosofias opostas.”. A amizade e admira- de Instrução Pública. Foi ele o primeiro a ocupar este cargo, ção são recíprocas. Borba escreveu algumas canções para letras após a reforma que decretou que este Conselho passasse a incluir do seu professor, algumas de pendor religioso: disso é exemplo um professor do Conservatório. uma peça coral natalícia, Nasceu o Messias, que também aparece além disso, foi encarregado de fazer os programas aprovados num cânone, porém com o título de Hora de Resgate. A 16 de pelo Decreto 6.203, de 7 de Novembro de 1919 – para o ensino Outubro de 1913, Teófilo Braga, em bilhete-postal, mostra a sua primário geral e superior, e para o ensino normal –, elaborar admiração pelo seu antigo discípulo nestes termos: manuais, ser o mentor da legislação que regulamentava a con- tratação de professores . O Diário do Governo, a 30 de Agosto de Ex.mo amigo 1919, mandaria, pelo Ministro de Instrução Pública, que, nas Dá-me muita honra a elaboração musical de qualquer texto meu pelo delicado talento condições estipuladas pelo n.º 2 da Portaria, de 8 de Agosto do meu glorioso patrício, com o que só compete confessar-me imensamente obrigado de 1919, Tomás Vaz de Borba e Pedro José Ferreira fossem agre- e seu velho amigo e admirador gados à comissão de elaboração de programas, a fim de se encar- Teófilo Braga regarem dos de Canto Coral e Ginástica, respectivamente. Para os níveis de ensino antes referidos, Borba publicou os manuais ainda, sobre a composição sacra e o seu relacionamento com Escola Musical, em três volumes, O Canto Coral nas Escolas, em Teófilo Braga, Borba inclui numa conferência sobre a Música quatro volumes, Canções para as Crianças, para as Mães e para as Sacra Renascentista – que proferiu a 31 de Outubro de 1938, Escolas, em dois volumes, Vá de Roda, O Canto Infantil e Toadas a anteceder um concerto com música daquela época –, um pará- da Nossa Terra. grafo com que argumenta a sua predilecção pela música para no que respeita ao ensino liceal, o Decreto 6.132, de 26 de as escolas, apesar da superioridade da música de inspiração Setembro de 1919, nos quadros de distribuição das disciplinas, ­religiosa: atribuiria à disciplina de Canto Coral a mesma carga horária antes definida pelo diploma de 1918, porém, tanto num como Uma vez dizia-me Teófilo Braga, que foi dos meus mestres – por mais paradoxal que noutro decretos, os programas da recém-criada disciplina ainda isto vos pareça, tratando-se de um filósofo desorientado e de um padre no exercício das não eram incluídos. Só em 1932, o Decreto 21.150 de 13 de Abril suas funções – foi dos meus mestres o que melhores conselhos me deu, não só na ori­ aprovaria e especificaria os programas de Canto Coral para as entação da minha vida artística, mas ainda na conduta moral da minha vida social: 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª classes dos liceus, tendo Tomás Borba edi- “Meu amigo, não se agarre demasiado à música profana; componha um Stabat tado apara esse ensino os manuais Solfejos, Canções e Cânones, Mater, um Te Deum, um Salmo, uma Missa, um Dies Irae, uma Salve Regina, em dois volumes. porque na música religiosa encontrará temas de expressão e força emotiva, que noutra para elaborar os primeiros manuais, como em Portugal parte não achará nunca, por mais talento que possua ou mais técnica escolar que ten­ ainda não houvesse o tipo musical, comprou na Alemanha os ha adquirido. Ninguém tem pejo ou vergonha de se dirigir a Deus, para Lhe pedir um instrumentos e máquinas necessárias e, em sua casa, em parce- pouco do seu amor ou da sua clemência sobre as misérias da vida, ao passo que nen­ ria com o violinista Gustavo de Lacerda (irmão de Francisco), hum homem, por mais sincero que se suponha ser, se dirige sem certo acanhamento mesmo perdendo dinheiro, venceram a luta, sendo editadas as a uma dama, para lhe dizer, embora com requintes de delicadeza: minha senhora, eu obras musicais para crianças. amo-a.”. Pena foi que, por circunstâncias superiores à minha vontade desordenada, outra luta vencida foi a introdução do solfejo entoado nas eu não tivesse seguido à risca este conselho bom do mestre, que não era, sei-o eu, tão ­escolas de música e noutros graus de ensino. No entanto, a má ateu como as ligeiras críticas biográficas o têm pintado. Porque eu, em vez de compor orientação política desviou os propósitos do pedagogo de alcan­ hinos de louvor ao Deus Eterno, como me competia – sendo padre, de mais a mais çar os objectivos em que assentava a sua nobre intenção de edu- – tenho levado quase a vida inteira a escrever cantigas, sem número, para a rapaziada car artística, estética e musicalmente, o povo português. Luís das escolas. Resta-me a consciência de que também não cometi um grande pecado de Freitas Branco, na conferência que proferiu no primeiro assim procedendo. ­aniversário do falecimento de Borba, lembra as palavras que

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o mestre lhe dissera na última vez em que falaram: “Nunca a coragem e nobreza de carácter de Borba manifestam-se ­estivemos tão mal em matéria de ensino de solfejo e de canto nas esco­ claramente ao enfrentar o poder político do Estado Novo, convi- las, desde que, em tempos, chegámos a ter um início de organização dando, em 1941, Lopes-Graça a assumir funções em instituição bem orientada.”. Neste estado de espírito viria a falecer, lem- de que era director, a Academia de Amadores de Música, quan- brando Luís de Freitas Branco que, nos alicerces da renovada do aquele vira o pertinente concurso anulado e fora proibido de escola musical nacional, “as primeiras pedras foram colocadas ensinar pelo Ministério do Interior, devido às suas convicções pelo Prof. Padre Tomás Vaz de Borba”. políticas. Borba arrostou com uma situação que lhe poderia ter desde que assumiu o cargo de docente no Conservatório – onde saído muito cara, apesar da sua idade, da condição de sacerdote leccionou Harmonia, Contraponto, Composição, Português, e da posição destacada que ocupava. Canto Coral, e História da Música e Literatura Musical, disci- na academia de amadores de música, para onde entrou como plina esta criada por sua iniciativa, a qual vinha regendo ainda docente em 1906/07, como Director Artístico – cargo que ocu- antes dela ser criada oficialmente –, Borba esteve presente em pou entre 1922 e 1932, e 1937 até morrer em 1950 –, elevou todas as reformas do Conservatório, destacando-se de modo o nível daquela instituição que, em 1922, via o seu futuro muito particular a de 1919, que criou disciplinas de cultura geral negro. Borba encetou um trabalho de “restauração”, de modo por que tanto se debatera. A cultura do artista músico era uma que o número de alunos aumentou, e o nível de ensino também, das suas preocupações. Também para o ensino especializado dada a qualidade dos docentes contratados. Nos concertos que da música publicou manuais: Exercícios Graduados de Solfejos, promoveu, deu lugar aos mais novos , aos artistas e compositores em três volumes, Novos Exercícios Graduados de Solfejo, em dois portugueses. O interregno na direcção artística deveu-se ao volumes, Solfejos Autógrafos de Compositores Portugueses, Manual ­Decreto 19.244 de 16 de Janeiro de 1931, que regulamentava de Harmonia, Trechos Selectos para Uso das Classes de Português do o ensino particular, e que dizia no art.º 17, § único: “é proibido Conservatório Nacional de Música de Lisboa e Trechos Selectos para aos funcionários [do ensino oficial] dirigir ou exercer o ensino em Uso da Classe de Francês do Conservatório Nacional de Música. Em cursos de explicações, salas de estudo ou pensionatos escolares [no co-autoria com Fernando Lopes-Graça, foi publicado após a sua ensino particular] a alunos do grau ou curso a que pertencem os esta­ morte um Dicionário de Música, em dois volumes. belecimentos de ensino [oficial] em que estão empregados.”. Após a sua para além de funções docentes, exerceu, no Conservatório, os aposentação, em Novembro de 1937, retomou o cargo de Director cargos de Director da Biblioteca e Conservador do Museu. Por Artístico da Academia. Colaborou com Emma Romero Santos várias vezes o quiseram nomear Director do Conservatório, e, Fonseca da Câmara Reys na organização de primeiras audições apesar de várias recusas, exerceu o cargo provisoriamente em em Portugal de peças de diversas épocas e nacionalidades. 1913 . como compositor, em 1895, findos os estudos, estreou-se com lopes-graça, seu aluno, refere-se ao cuidado que o mestre uma Missa para solistas, coro e orquestra, executada na presença colocava numa pedagogia musical correcta, afirmando que, da Família Real, na Igreja dos Mártires. Por encomenda da à frente de um escol de dois ou três pioneiros, por direito Comissão do Centenário da Índia, compôs um grande Te Deum histórico, está Tomás Borba, lutando contra “ideias e concepções para solistas, coro e orquestra, obra de grandes proporções, rotineiras”, vendo “com mais clareza e sem preconcebimentos escle­ de pathos wagneriano, onde se misturam a linguagem modal rosantes os complexos problemas de uma arte complexa entre todas”. e cromática, com momentos impressionistas. Por questões Nunca, como professor, Borba foi o mestre-escola cuja férula orçamentais, a obra não chegou a ser estreada. Mais tarde, foi cortasse os arrojos e as audácias das índoles mais rebeldes. Era executada acompanhada só com piano. um “espírito fundamentalmente liberal”. Ao orientar determi- em idade madura, a sua composição veio a confinar-se a um es- nado aluno (hoje sabemos ter sido o próprio Lopes-Graça), na tilo de cunho nacional marcado pela singeleza, que contém pá- aula de composição, perante a liberdade responsável do pupilo, ginas de verdadeiro interesse. Borba defendeu a criação de uma Borba reconhecia os “direitos que a personalidade artística tem canção erudita portuguesa assente numa estilização da música a desabrochar e a afirmar-se de acordo com os imperativos do seu popular e nos modos gregorianos . eu íntimo, da sua visão ou concepção pessoal do fenómeno criador”; a sua obra divide-se por vários géneros. O catálogo foi por ao examinar uma partitura desse discípulo, “primeiros frutos da mim elaborado entre 2005 e 2008, sob orientação do arquivista sua, aos olhos de tantos, iconoclasia artística”, disse o Mestre estas José Elmiro Rocha, tendo sido publicado on-line a 1 de Outubro palavras, decerto tolerantes e incitadoras: “Eu já não posso acom­ de 2008, contendo o meu nome como primeira menção de res­ panhá-lo. Mas ande para diante, você é que deve estar na razão.”. ponsabilidade.

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de todas as suas composições, as suas eleitas são, conforme de Emma Romero Santos da Fonseca da Câmara Reys, Borba, com afirmou em entrevista a Dinis da Luz, aquelas que escreveu para o requintado humor e com a riquíssima escrita que lhes eram crianças . ­peculiares, conta um interessante episódio com ele passado: tal foi o seu entusiasmo na educação musical das crianças que introduziu no Liceu de Maria Pia de Lisboa, como já se disse, Eu não sei se o hábito faz o monge ou se é o monge que faz o hábito. Do que eu não a experiência da Ginástica Rítmica, para a qual escreveu as cha- ­duvido é que as nossas profissões imprimem carácter. Estando eu em Roma, por ocasião madas Canções de Gestos . das festas jubilares do Ano Santo, hospedado, com uma das minhas sobrinhas, numa o documento que melhor sintetiza o pensamento borbiano pensão religiosa, onde se hospedavam também alguns portugueses e vários sacerdotes é a tese que proferiu no Primeiro Congresso dos Músicos Portu­ de nacionalidades diferentes, um deles verdadeiro tipo de alemão, porque alemão era, gueses, realizado em Lisboa, em Junho de 1913 : cumprimentando-me no momento da partida para o seu país, quis saber não só qual • Razões para uma urgente criação da disciplina de Canto Coral era a minha nacionalidade, mas ainda que funções exercia na minha terra. Fiz-lhe nas escolas. constar, naturalmente, que não passava de um simples padre, que dizia quotidiana­ • Razões para que o artista músico fosse apetrechado com uma mente a sua missa, porquanto era um músico modesto e empregava toda a minha sólida cultura geral. actividade no lugar de professor que ocupava no Conservatório, embora sem prestí­ • A criação de uma música portuguesa eminentemente assente gio notável. O jovem sacerdote chama imediatamente para junto de nós os do grupo nas características da identidade nacional. de que fazia parte e, com ar alegre e sorridente de quem se sentia muito satisfeito, é-me difícil resumir a personalidade de borba. Aconselho grita­-lhes, com toda a força de que os seus pulmões germânicos dispunham: “Eu não a leitura de testemunhos de alguns dos seus alunos . Entre muitos vos dizia que este padre tinha cara de professor?” O que tinha na minha cara, e tenho, discípulos, foram seus alunos nomes eminentes da música além das rugas e tecidos flácidos – prenúncios fisiológicos de uma idade já adiantada ­portuguesa: Francine Benoît, António Lima Fragoso, Croner – não sei. Mas fiquei a ruminar no caso, e cada vez me convenci mais e convenço de de Vasconcellos, Flaviano Rodrigues, Varella Cid, Ruy Coelho, que o hábito do cachimbo nos põe a boca à banda, como muito bem expressa o nosso Eduardo Libório, Lopes-Graça, Artur Santos, Armando José prolóquio popular. Fernandes, Florinda Santos, Luís de Freitas Branco, Pedro de Freitas Branco, Ivo Cruz, Artur Fonseca – primeiro director lopes-graça sintetiza a personalidade do artista e do Mestre do Conservatório Regional de Angra do Heroísmo –, Marina nestes termos: “Um apóstolo da educação, um mestre exemplar, um Dewander Gabriel, também natural de Angra. espírito ilustrado, tolerante, liberal e largamente compreensivo.” . na apresentação, no conservatório de lisboa, a 29 de Março na sua última aula, no conservatório, a 23 de Novembro de 2009, da monografia que publiquei com o títuloTomás Borba, de 1937, Borba leccionou uma grande lição sobre o tema: Labor para a inauguração, em Maio de 2008, da Escola de que é pa- omnia vincit (O trabalho tudo vence) . A concluir deixou a men­ trono e que tem o seu nome, em Angra do Heroísmo, Rui Vieira sagem da consciência de responsabilidade que o artista tem Nery, que também foi o prefaciador da obra, disse – cito de perante a comunidade. O valor nacional será engrandecido memória –: “Sem embargo, em Borba temos o exemplo de um sacer­ com a colaboração séria dos artistas que, com a sua produção, dote que vem dos Açores, de quem seria de esperar uma postura alimentam a Pátria: ­conservadora, mas que, pelo contrário, é um homem que é um pensa­ dor livre e que se dá com os melhores intelectuais portugueses, sem Nas minhas prelecções vos repeti mais duma vez, como hoje, que quem nesta casa acepção política e ideológica, estabelecendo amizade com Manuel [o Conservatório] entra iluminado, por Deus, com uma pequena faixa que seja do Arriaga, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, entre outros. Numa época fogo sagrado da divina arte, contrai perante o país inteiro uma grande e grave respon­ em que se notava a divisão entre uma direita e uma esquerda esquizo­ sabilidade por que é em nós que a Pátria tem postos os olhos como factores necessários frénicas, que não falavam uma com a outra, da qual são conhecidos os da sua grandeza nacional. Porque uma nação estruturiza-se não pelo número de espa­ atritos ferozes entre a República e a Igreja, Tomás Borba lida com das, de baionetas, nem pelo tiro mais ou menos acertado dos seus canhões, mas com esses intelectuais com um à-vontade e uma independência de espí­ as telas harmoniosas dos seus pintores, os contos elevados dos seus poetas, os sonhos rito surpreendentes, revelando uma natural capacidade de navegar elevados dos seus arquétipos e as sinfonias inspiradas dos seus compositores. Camões, ­nestas águas, mantendo relações cordiais e fraternais com pensa­ Duarte Lobo, Marcos Portugal, Luísa Rosa de Aguiar, Grão Vasco e Afonso Domingos dores, poetas, compositores e intelectuais de todo o espectro ideológico deram à Pátria que glorificaram muito mais que os mais arrojados impulsos conquis­ e cultural português.”. tadores de D. Afonso Henriques, as mais ardilosas diplomacias do Marquês de Pombal acerca da sua vocação pedagógica, na já mencionada confe­ e os mais impetuosos avanços guerreiros de Afonso de Albuquerque ou Sá da Bandeira. rência que proferiu, sobre música sacra renascentista, a convite Os guerreiros e os diplomatas defendem-na, mas somos nós que a alimentamos.

88 | glosas | número 4 | novembro | 2011 1 A aula de Harmonia era “denominada desde há muitos anos Curso Elementar de Composição”. 17 Cf. Tomás Borba, terceira tese do primeiro Congresso dos Músicos Portugueses: “Educação Cf. Francine Benoit. “No Centenário de Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes. dos Artistas Músicos, Seu Aperfeiçoamento Técnico e Instrução Literária: Vantagens N.º 198, Lisboa, Novembro de 1967. ­da Associação para o Desenvolvimento Intelectual dos Associados”, Boletim da Associação 2 Cf. “Thomaz Borba”, Eco Musical (29-1-1911). N.º 5, Lisboa. “Na música tem-se distinguido de Classe dos Músicos, Tomo I, n.º 6, Lisboa, 1913. de uma maneira tão elevada, que poucos têm sido os grandes músicos portugueses que o têm igua­ 18 Francine Benoît, “No Centenário de Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, lado. Dedicou-se com tão ardente amor ao estudo, que fez o curso geral de piano (5 anos) em n. º 198, Lisboa, Novembro de 1967; Luís de Freitas Branco. “No Primeiro Aniversário do 3 anos, e completou o curso de harmonia (3 anos), apenas em um ano. Frequentou depois a aula Falecimento do Professor Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, n.º 6, Lisboa, de contraponto e fuga, regida por Frederico Guimarães, e conseguiu fazer este curso em 3 anos. Março de 1951; “Um Exemplo Raro”, Arte Musical (22 – 2 – 1937), n.º 251, Lisboa. Não pararam porém aqui os seus estudos artísticos, porque algum tempo depois empreendia uma 19 Este compositor tinha uma grande admiração por Borba: “(…) Ele tinha uma enorme viagem aos mais notáveis países da Europa, procurando com todo o ardor, completar o estudo admiração por três professores: Tomás Borba, Luís de Freitas Branco e Marcos Garin (…)”.Cf. ­prático que o nosso Conservatório lhe não pôde dar.” Mónica Brito, “Associação António Fragoso: entrevista a Eduardo Fragoso Martins Soares”, 3 Domitila de Carvalho notabilizou-se pelos três cursos que frequentou na Universidade Glosas (Maio de 2010). N.º 1, Lisboa. A afeição era recíproca. Por ocasião da morte prema- de Coimbra (Matemática, Filosofia e Medicina), pela acção a favor da educação das mulhe- tura de António Fragoso, Borba chorou-o publicamente: “A terrível epidemia que reina – ou o res na defesa da criação do primeiro Liceu feminino, Liceu de Maria Pia de Lisboa de que foi quer que fosse – roubou-nos agora, há dias, sem piedade nem dó (…) a amais bem fundada e primeira reitora, pela participação em iniciativas feministas e pacifistas, sendo Monár- lídima esperança da nossa escola de arte, um rapaz de vinte anos, que (…) deixa em preciosas quica e católica, e por um percurso político que a levou a pertencer ao grupo das três pri- páginas de música que todos devemos beijar, a afirmação mais bem argumentada que se pode levar meiras deputadas do Estado Novo. aos tribunais da história, a afirmação e a prova do seu talento e da sua grande alma de artista. 4 Cf. “Thomaz Borba”, Eco Musical (29-1-1911). N.º 5, Lisboa. “(…) não podíamos certa­ (…) Se como mestre muitas vezes o feri no seu legítimo orgulhos – porquanto os voos da sua ima­ mente olvidar uma alma eleita de artista e de bondade, que pelos seus vastos estudos literários e ginação, ou antes dos seus sonhos de criança, não queriam conhecer outras regras que as da fan­ pela afabilidade e rectidão do seu carácter, tem conquistado a consideração e a estima de todos tasia e do sentimento – como artista e, mais ainda, como português, choro hoje lágrimas de sangue aqueles que têm a honra de bem o conhecerem. Referimo-nos a Tomás Borba, esse raro vulto de sobre a tumba que no-lo arrebatou para sempre, e sem dó sequer de quem via em António Fragoso professor erudito que o nosso Conservatório se orgulha de possuir. Caminhando sempre só, sem mais que o afecto esfacelado de um pai que chora, o bem esperançado orgulho de uma raça que auxílios nem proteccionismos, contando unicamente com a grandeza do seu talento e a vontade precisa futuro. (…) António Fragoso (…) tem a abençoar-lhe a memórias lágrimas íntimas mas invencível do saber, Tomás Borba chegou a triunfar completamente nos estudos musicais e literá­ muito sinceras dos que lhe adivinharam o talento. Chorá-lo-á Marcos Garin e Luís de Freitas rios, completando estes últimos no Curso Superior de Letras, onde teve como professor o grande Branco, chorá-lo-ei eu.”. filósofo Teófilo Braga. (…) Tomás Borba tem o Curso Superior de letras, e a sua autoridade de 20 Cf. Tomás Borba. “António Fragoso”, Eco Musical (10-9-1917). N.º 307, Lisboa. António literato e músico proficiente honra sobremaneira a classe musical do nosso país que, ao contrário Fragoso havia dedicado ao seu mestre Tomás Borba o Trio em dó sustenido menor op. 2, exe- do que dizem alguns pedantes, possui verdadeiros talentos, tanto artísticos como literários.” cutado em concerto, inteiramente preenchido com obras suas, na Academia de Amadores 5 Cf. Dinis da Luz “O Padre que Ensinou Solfejo a Portugal”, Diário dos Açores (18-12-1948), de Música, a 16 de Maio de 1916. N.º 21032, Ponta Delgada 21 Cf. Emma Romero Santos da Fonseca da Câmara Reys. Divulgação Musical – Programas, 6 A reorganização do Conselho Superior de Instrução Pública, após a proclamação da Repú- Conferências, Crósticas. Vol. 5: (1938-1939), [s. ed.], Lisboa, 1940. blica, foi estabelecida pelo art.º 4.º do capítulo I do Decreto de 27 de Abril de 1911. 22 Cf. Fernando Lopes-Graça. A Música Portuguesa e os Seus Problemas. Edições Cosmos, 7 Cf. Tomás Borba. Ninguém melhor do que Eu (carta a destinatário não mencionado). Lisboa, ­Lisboa, 1973. 1937. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo. Fundo Tomás Borba. 23 Cf. Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Angra do Heroísmo, Fundo Tomás Borba. (PT/BPARAH/TB/03 – 01/02). Texto da última lição, PT/BPARAH/TB/02/09. 8 Cf. Carta a Hermínio do Nascimento, pertencente ao fundo deste compositor e professor do Conservatório (que se encontra depositado na Biblioteca Nacional) sobre a feitura dos seus manuais escolares e de solfejo; diz Tomás Borba: “(…) Limitei-me a fazê-los – e com que canseiras e lutas! – quando ninguém pensava no solfejo cantado nas escolas, montando uma ­tipografia para editar os primeiros volumes e perdi dinheiro. (…)”. 9 Cf. Luís de Freitas Branco. “No Primeiro Aniversário do Falecimento do Professor Tomás Borba”, Gazeta Musical e de Todas as Artes, n.º 6, Lisboa, Março de 1951. 10 Cf. Arte Musical (28-2-1913), n.º 341, Lisboa. “Pela recusa do Sr. Alexandre Bettencourt de Vasconcelos para desempenhar provisoriamente as funções de director do Conservatório, foi nomeado para esse lugar o professor Tomás Borba.” 11 Cf. Fernando Lopes-Graça, “No Primeiro Centenário do Nascimento de Tomás Borba”, A União (1 – 4 – 1968), n. º 21 694, Angra do Heroísmo. 12 Em 1944/45, já coadjuvado na Direcção Artística por Fernando Lopes-Graça, e com cola- boração da cantora Marina Dewander Gabriel (também natural de Angra do Heroísmo), Borba organizou uma série de recitais para apresentação de Jovens concertistas, entre os quais se destacou José Carlos Sequeira Costa que interpretou obras de Bach: Prelúdio e Fuga em fá menor, e Prelúdio e Fuga em dó sustenido menor; de Beethoven: Variações em fá maior op.23, e Rondó e Capricho op.129; de Chopin: Sonata em si menor op. 58 – a) Allegro maestoso, b) Scherzo: molto vivace, c) Largo, d) Presto ma non tanto; de Vianna da Motta: Balada; de Ravel: Jogos de Água; e de Liszt: S. Francisco de Paula Andando sobre as Ondas. Lopes-Graça iniciou a sua actividade na Academia como colaborador de Tomás Borba, em 1941. Todavia a referência à sua coadjuvação na direcção artística de Borba só é referida pela primeira vez no Relatório de Contas de 1944/45. Data de 2 de Outubro de 1943 o termo de posse de Fernando Lopes Graça como professor de Piano e Composição, decorrente da sua nomeação a 14 de Agosto do mesmo ano, que derivava da indicação e parecer favorável do director artístico Tomás Vaz de Borba, conforme o termo de posse que consta no Arquivo da Academia. 13 Cf. Tomás Borba. “A Canção Portuguesa”, Eco Musical (16-7-1912, 23-7-1912, 1-8-1912). N.os 74, 75, 76, Lisboa. 14 Em cujos títulos encontramos, dentre outros, obras didácticas, música sacra, canção erudita de câmara, música para orquestra, música de câmara, música para piano, recolha de música popular e teatro escolar musicado (a propósito do teatro escolar musicado, importa lembrar que muitos dos libretos, inspirados em contos tradicionais, são de Virgínia Gersão (1896-1964). Licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra, e pos- suindo também o Curso da Escola normal de Coimbra, foi professora da Escola Normal de Benfica e do Ensino Secundário. Na sua carreira parlamentar, Virgínia Gersão integrou a na próxima rubrica Comissão de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Morais e Espirituais). 15 Cf. Dinis da Luz. “O Padre que Ensinou Solfejo a Portugal”, Diário dos Açores (18-12- Compositores a descobrir 1948), n.º 21.032, Ponta Delgada. “ — Dos seus trabalhos – pergunto – quais mais aprecia? Adivinhe quem é o compositor a descobrir da próxima edição — Os que fiz para as escolas, toadas e obras didácticas.” da glosas e receba um CD com obras de António Victorino 16 Cf. Frederico de Freitas, “Tomás Borba – Troveiro do Canto Infantil, Lembrado no Seu d’Almeida. Será premiada a primeira resposta correcta recebida. Centenário”, Panorama. n.º 25, 4.ª série, Lisboa, Março de 1968. “Estas canções de gestos não são outra coisa do que jogos ritmo-musicais, experiências semelhantes às que Jacques Dalcroze, Envie as suas sugestões para [email protected] . pela mesma época, defendia no seu livro L’ Éducation par le Rytme (1907) como processo de pedagogia infantil. Dado, porém, que só por 1912 Dalcroze realiza as primeiras demonstrações públicas dos princípios propostos no seu método, poderá concluir-se que a prioridade das experi­ ências na educação da criança pelo ritmo, música e movimento — princípios dos quais derivou o que mais tarde veio a ser conhecido por ginástica rítmica — pertence ao Prof. Tomás Borba.”

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 89 glosando A CONVITE DA GLOSAS, UMA PEÇA INÉDITA ANTERO ÁVILA | PRELÚDIO

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Patrício da Silva

Now & Then Now & Then: Music from the Great Depression(s) 2010/1929

O novo CD do compositor Patrício da Silva, gravado ao vivo em Dezembro de 2010 em Pasadena, Califórnia, foi recentemente lançado, fruindo em pouco tempo de generosas críticas positivas e uma óptima recepção por parte do público. Como sugere o seu título, este CD responde à actual crise mundial que progressivamente se compara à Grande Depressão Americana de 1929.

of the Arts (MFA) e na Universidade da Califórnia (Ph.D). JOANA ROCHA | TEXTO ­Realizou ainda um pós-doutoramento em composição algo- rítmica no Ircam (França). O seu currículo prima por diversos prémios, entre os quais Internacional Barto Prize, Gould Family apesar do seu percurso ser pouco conhecido em Portugal, Foundation Composers Award, Ojai Festival Music for Tomorrow, Patrício da Silva goza de uma carreira em contínuo crescimento Fundação Luso-Americana e American Music Center, tendo nos Estados Unidos da América, onde a maior parte da sua edu- ainda obtido a Otto Eckstein, a Norton Stevens e a Susan and cação musical teve lugar, permitindo assim a participação neste Ford Schumann Fellowships. disco de nomes como Michael Kudirka, Yevgeniy Milyavskiy, as suas obras já foram apresentadas em diversos palcos de What’s Next? Ensemble, e ainda Ian Whitcomb – considerado renome internacional como Ojai Music Festival, Aspen, Ruhr estrela de rock durante a Invasão Britânica dos anos 60, histo- Festival, Schleswig Holstein Music Festival, London Festival of riador de música popular americana e celebrado autor de After American Music, Auditório de Galícia, Yamaha’s YASI em Nova the Ball. York, LASO e Culturgest. Em 2009, por convite do maestro “now & then” apresenta novas obras do compositor com uma Christoph Eschenbach, a sua obra Three Movements for Solo Piano enorme diversidade de caracteres, técnicas e resultados sono- foi executada por Tzimon Barto num concerto organizado pela ros consequentes, bem como uma série de arranjos de canções Beethoven-Haus em Bonn para a aquisição do manuscrito das populares da era da Grande Depressão Americana. Das várias Variações Diabelli. Trabalhou com diversas orquestras e instru- obras originais destaca-se o Concerto para Guitarra pela sua mentistas como Memphis Symphony Orchestra, Moscow Piano entusiástica recepção do público e críticas favoráveis: “Smooth, Quartet, What’s Next? Ensemble, Stefan Asbury, Gloria Cheng, Refreshing and Exciting” – Paulo Alves Guerra, RDP Antena 2; Joana Carneiro, entre tantos outros, destacando-se a Berkeley “Amazing and Inspiring” – William Powers. Symphony Orchestra, na qual foi compositor residente (2008-10). o compositor confirma assim a tendência para a produção musical de qualidade em tempos erróneos, visto este disco não ter sido criado para a actual situação de “Grande Depressão” mas está disponível no antes como uma consequência inevitável da mesma, trazendo Now & Then iTunes e Amazon. O Concerto uma lufada de ar fresco ao ambiente repressivo. Tal como afirma para Guitarra está disponível Ian Whitcomb: “When you have bad times, you have great music.”. gratuitamente na página do estudou piano com Jorge Moyano e compo­ patrício da silva compositor. sição com António Pinho Vargas na Escola Superior de Música www.patriciodasilva.com de Lisboa, prosseguindo os seus estudos no Califórnia Institute

92 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Excerto de Keep Calm and Carry On (Concerto para Guitarra), gentilmente cedido pelo compositor

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 93 festival concertomúsica de abertura viva 2011

No passado dia 9 de Setembro, a 17.ª Edição Festival Música Viva deu início ao seu programa de concertos e workshops no Centro Cultural de Belém em Lisboa. Este festival, que sempre se caracterizou pelo estímulo dado à criação musical e interdisciplinar (portuguesa e internacional) e pela divulgação da música que é feita hoje, promovendo a enorme diversidade estética que se vai reinventando permanentemente, assume um papel de relevo maior na oferta cultural portuguesa.

de The Hymn of the Pearl, da chinesa Leilei Tian, e Golden Circle, do TIAGO CABRITA | CRÍTICA irlandês John McLachlan. A segunda parte foi exclusivamente portuguesa e apresentou outra estreia, Avant, de José Luís Ferreira, e ainda Um silêncio a somar-se ao silêncio, de Tiago Cutileiro. Este esta edição, ao contrário de outras que se estenderam ao Porto (Casa foi, desde logo, um dos factores positivos do concerto: em cinco da Música) e a outros espaços de Lisboa (Instituto Franco-Portu­ peças, três delas eram estreias e todas surgiram como resultado guês, Fundação Calouste Gulbenkian, Mosteiro dos Jerónimos), de encomendas feitas pela MisoMusic ou pelo Sond’Ar-te Electric limitou-se ao CCB, o que por certo será consequência dos cortes Ensemble. Outro aspecto positivo foi o facto de a lotação do Pequeno orçamentais que todos conhecemos na Cultura em Portugal. Ainda Auditório estar praticamente esgotada. assim, numa atitude de coragem e perseverança, que tem sido, a direcção de laurent cuniot foi muito competente ao longo aliás, uma das características da MisoMusic Portugal (a face mais do concerto, demonstrando grande segurança e clareza no gesto, vísivel da intensa actividade de Miguel e Paula Azguime), o Festival sendo que o maestro se revelou bastante confortável com a diver­ apresentou-se com um programa extremamente apelativo e diverso, sidade de estéticas que este programa propôs. Da peça de Flo do qual se destacam, para além do concerto inaugural, a noite em Menezes será interessante realçar a abordagem escolhida, com torno do compositor António de Sousa Dias – compositor em um claríssimo cariz dramático: uma placa de plástico flexível foco nesta edição –, o concerto bipartido entre a Orquestra de e transparente pendurada no lado esquerdo do palco para onde, Altifalantes e o Quarteto de Cordas de Matosinhos e, finalmente, em determinados momentos, um dos músicos do ensemble se o concerto protagonizado por Pierre-Yves Artaud e Ana Telles. deslocava e intervinha, ou abanando a referida placa (simulando no concerto inaugural, protagonizado pelo Sond’Ar-te Electric o som do vento em agitação), ou ganhando relevo instrumental Ensemble e dirigido por Laurent Cuniot, o programa apostou na sobre o ensemble. diversidade estética e apresentou na primeira parte O Farfalhar a peça de leilei tian, The Hymn of the Pearl, de uma enorme sensi­ das Folhas, do brasileiro Flo Menezes, e ainda as estreias absolutas bilidade e delicadeza, foi uma surpresa muito positiva, revelando

94 | glosas | número 4 | novembro | 2011 Na foto, da esquerda para a direita: Joana Gama (piano), Suzana Lidegran (violino), Nelson Ferreira (violoncelo), Monika Streitová (flauta transversal), Nuno Pinto (clarinete), Laurent Cuniot (direcção). um equilíbrio interessante entre uma postura contemplativa, alterações se processam de uma forma muito lenta e quase própria da cultura oriental, e uma estética ocidental marcada, imperceptível. Estas transformações progressivas permitem ao por exemplo, pela inclusão do ruído, de efeitos multifónicos ou ouvinte aperceber-se do trabalho que o compositor realiza com ainda através do trabalho mais acentuado de elementos como o som: rico, interessante e cuidado. É uma peça, por isso, que o ritmo. Deste modo, a peça de Leilei Tian ajudou a diversificar convida à introspecção e à viagem a outras paisagens que não as e a surpreender, trabalhando o som e o seu pormenor com cui- urbanas. A electrónica funciona como uma espécie de pedal que dado e riqueza. Destaque ainda para o papel da flautista Monika se vai, também, alterando de modo quase imperceptível, ao longo Streitová, de inquestionável e sólido domínio técnico. da obra. O amargo de Um silêncio a somar-se ao silêncio prende­se de golden circle, do irlandês John MacLachlan, importa realçar com a sua duração. Apesar de todas as qualidades referidas ante­ o trabalho harmónico e textural do Ensemble, desde texturas riormente, atrevo-me a dizer que vinte minutos tornam a peça, pontilhistas até sonoridades mais cheias e contínuas. em determinados momentos, previsível, o que acaba por fazer a peça de josé luís ferreira, Avant, foi um dos momentos altos esmorecer um pouco a expectativa criada ao longo da primeira deste concerto. Em constante e rico diálogo com a electrónica dezena de minutos. (aliás, uma das grandes qualidades desta obra), o ensemble protagonizado por um ensemble cujos músicos se revelam produziu variadíssimas texturas, trabalhando e produzindo extremamente empenhados, competentes e entrosados na inter- timbres muitíssimo interessantes. Muito bem articulada em pretação das mais diversas novas músicas da actualidade, sempre termos formais, com uma linguagem clara e apelativa, Avant foi com alto padrão qualitativo, este concerto inaugural do Festival executada com visível segurança e prazer pelos músicos do Música Viva foi mais um momento marcante na divulgação da Sond’Ar-te e Laurent Cuniot. Música em Portugal. Outro factor positivo, como já anteriormente a obra de tiago cutileiro, Um silêncio a somar-se ao silêncio, referido, foi a aposta clara num concerto representativo de uma deixou uma sensação agridoce. Desde logo, existe um lado profun­ enorme diversidade estética. Que venham, por este e por muitos damente contemplativo em que, tal e qual como numa paisagem, as outros motivos, pelo menos outros 17 Festivais Música Viva.

glosas | número 4 | novembro | 2011 | 95 espaço dedicado às entidades colaboradoras do mpmp edições numérica | www.numerica-multimedia.pt

OBRAS DE ANTÓNIO DANSE DES SYLPHES SWING.PT CANÇÕES DA ÁSIA VICTORINO D’ALMEIDA Adriana Ferreira, flauta Nuno Silva, clarinete Coro de Câmara de Lisboa ­transversal Isolda Crespi, piano Mitchell Fennell, direcção musical Teresita Gutierrez Marques, “Este disco reúne quatro obras Banda Sinfónica do Exército direcção do compositor António Este registo discográfico assume ­Victorino d’Almeida que são este título – “Dança dos Silfos” –; SWING.PT é um CD gravado As canções populares têm uma bem demonstrativas do seu não só por ter uma obra pelo clarinetista português importância enorme junto das domínio das formas e estruturas representativa desta inspiração Nuno Silva, acompanhado pela populações, afirmando musicais, facto que confere ao “sobrenatural”, mas porque Banda Sinfónica do Exército ­e fortalecendo a sua identidade compositor uma versatilidade se apresenta auspiciosamente e com direcção musical do maes­ cultural. Assim, a escolha do inquestionável, mantendo como um registo singular de tro americano Mitchell Fennell. repertório aqui incluído foi feita intacto o seu cunho pessoal. obras cintilantes de repertório A ideia deste projecto surgiu em criteriosamente, tomando em Marca indelével que permite para flauta (e piano), alicerça- 2004 quando Nuno Silva fez consideração a qualidade identificar, com relativa das numa energia além- uma digressão pela costa oeste musical das harmonizações, facilidade, uma linguagem que ­‑humana. Por entre sopros, dos EUA com o California State mas também a popularidade, apresenta características influxos e respirações, University Wind Ensemble, o significado, e a carga próprias, sem embargo de se flutuaremos entre obras interpretando Black Dog de Scott simbólica das canções em si. reconhecer uma natural vibrantes em linguagens McAllister. O sucesso destes Tal como a canção popular evolução, fruto da experiência e posturas próprias, voaremos concertos em Los Angeles, San é a manifestação da identidade criativa acumulada e da por diferentes geografias Francisco e Reno foi o gerador cultural, ela também reflecte igualmente natural maturação e espaços. desta ideia que foi sendo amadu­ os intercâmbios culturais do pensamento estético do recida desde então, culminando que se realizaram ao longo compositor, reflectindo a sua Sonate, de Mélanie Bonis na concretização deste trabalho. de séculos. Neste contexto, actual forma de ser, ver e estar (1858‑1937); Ballade et Danse As obras apresentadas neste CD a passagem dos portugueses no Mundo.” Victor Dias (2011) des Sylphes, Op. 5, de Joachim foram escolhidas com o intuito por estas regiões (Malaca, ­Andersen (1847-1909); Minuetto, de poder demonstrar alguma da ­Indonésia, Malásia, Singapura, Sinfonia para um Homem Bom, de Joaquim dos Santos excelente música ameri­cana Coreia, Formosa, Macau, Japão, op. 146; Concerto para Flauta, (1936‑2008); Sonatine, de Henri composta exclusivamente para Tailândia, Filipinas, Timor­ op. 161 (Encomenda da Comissão Dutilleux (1916); The Panic Flirt, instrumentos de sopro. A es- ‑Leste) deixou marcas Nacional para as Comemorações de Alexandre Delgado (1965-); treia nacional das obras aqui indeléveis, visto que ainda hoje do Centenário da República, Sonata, de Serguei Prokofiev gravadas foi da respon­ a língua portuguesa continua Estreia Mundial no 32.º Festival (1891‑1953). sabilidade de Nuno Silva. presente em muitas canções Internacional de Música de Verão e nas próprias línguas locais, de Paços de Brandão); Abertura Black Dog, Scott McAllister; quando não dando origem Breve, op. 145; Sonata n.º5, op. 44. ­Derivations, Morton Gould; a línguas que, etimologicamente, ­Summertime, George Gershwin; se baseiam no idioma português. Prelude, Fugue and Riffs, Leonard Bernstein