UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

À DESCOBERTA DE – PROPOSTA DE TRADUÇÃO DE CIRCLE OF MAGIC: SANDRY’S BOOK

ANA MARGARIDA ALEXANDRE VALENTE

Trabalho de projecto orientado pela Prof.ª Doutora Maria Angélica Varandas e co-orientada pela Prof.ª Doutora Maria Teresa Casal, especialmente elaborado para a obtenção do grau de Mestre em Tradução.

2019

1 Índice

Resumo ...... 3 Abstract ...... 5 Agradecimentos...... 7 Introdução ...... 8 1. Tamora Pierce e Sua Obra ...... 9 2. Tradução de Literatura Infanto-Juvenil ...... 16 2.1. Metodologia de Tradução ...... 17 2.2. Problematização dos Conceitos ...... 22 2.3. Cultura de Chegada, Normas de Tradução e Público Alvo ...... 37 2.4. Especificidades na Tradução ...... 44 2.4.1.A Questão da Toponímia e dos Nomes de Instituições ...... 49 2.4.2.A Questão dos Antropónimos ...... 53 2.4.3.Expressões de Calão e Gíria Características dos Universos das Obras ...... 56 3. - Comentário à Tradução ...... 59 3.1. A Obra e o Receptor ...... 60 3.2. Dificuldades Tradutórias ...... 63 3.2.1. Questões semânticas ...... 63 3.2.1.1. Ambiguidades com o Género de Palavras ...... 63 3.2.1.2. Expressões de Calão e Gíria ...... 66 3.2.1.3. Vocábulos Sem Equivalência ...... 68 3.2.1.4. Vocábulos Próprios do Mundo da Obra ...... 70 a) Toponímia ...... 70 b) Antropónimos ...... 72 c) Títulos e Epítetos ...... 73 d) Outros ...... 74 3.2.2. Questões de Pragmática ...... 77 3.3.1.Expressões Idiomáticas e Provérbios ...... 77 3.2.2.1. Formas de Tratamento ...... 80 3.2.3. Terminologia ...... 84 3.2.3.1. Fiação ...... 84 3.2.3.2. Ofício de Ferreiro ...... 87 3.2.3.3. Jardinagem ...... 87 4. Conclusão ...... 89 Bibliografia ...... 92

2 Resumo

O presente relatório tem como objectivo descrever e comentar o processo de tradução integral da obra Circle of Magic: Sandry's Book, de Tamora Pierce. Nele serão abordadas as principais dificuldades tradutórias e as estratégias utilizadas para as ultrapassar, assim como outras questões relevantes no que diz respeito à tradução de literatura fantástica infanto-juvenil.

O relatório encontra-se organizado em três capítulos. No primeiro, contextualiza-se a autora biográfica e bibliograficamente. O segundo capítulo divide-se em quatro subcapítulos: o primeiro pretende apresentar uma reflexão teórica sobre tradução e a metodologia usada ao longo da tradução da obra; no segundo, enquadram-se os conceitos de literatura fantástica e literatura infanto-juvenil e sintetizam-se as perspectivas de vários autores quanto à sua definição; no terceiro abordam-se as questões do contexto de chegada, das normas de tradução nele vigentes, questões vitais na tomada de decisões tradutórias, e do público-alvo e, no quarto, o foco incide sobre aspectos especialmente relevantes na tradução de literatura infanto-juvenil, nomeadamente, associados à tradução da criatividade. Neste último ponto do segundo capítulo faz-se uma análise de traduções de obras análogas, com o objectivo de aferir estratégias usadas pelos tradutores para ultrapassar desafios relacionados com a tradução de topónimos, antropónimos e expressões de calão e gíria específicas dos universos das obras. Esta análise permitiu uma tomada de consciência das tendências na tradução de obras de literatura fantástica infanto-juvenil no contexto de chegada, contribuindo assim para auxiliar na resolução de dificuldades tradutórias que surgiram ao longo da tradução da obra em estudo. O terceiro capítulo começa com a análise do romance Circle of Magic: Sandry’s Book e seu público-alvo, prosseguindo-se então para o comentário à tradução. Os desafios que ao longo desta surgiram dividem-se em: a) aspectos semânticos - toponímia, antroponímia e expressões de calão e gíria; b) aspectos pragmáticos – tradução de provérbios e formas de tratamento; e c) tradução de terminologia técnica e científica relativa a artes e ofícios e ao campo da botânica.

O relatório pretende, portanto, demonstrar o método de estudo que facilitou a chegada a uma versão final da tradução, articulando os estudos literários com os estudos de tradução e com experiências práticas, sempre com o objectivo de conseguir alcançar um equilíbrio entre a tradução orientada para o contexto de partida e a tradução orientada para o contexto de chegada.

3 Ainda que a principal finalidade deste trabalho seja uma análise da tradução de Circle of Magic: Sandry's Book, a divulgação da obra desta autora torna-se inevitável e pertinente. Assim, este trabalho pretende ainda contribuir, com a tradução de Sandry’s Book, para o repertório de obras de literatura fantástica infanto-juvenil traduzidas para português.

Palavras-chave: Tamora Pierce, Sandry's Book, Tradução, Literatura Fantástica, Literatura Infanto- Juvenil.

4 Abstract

The present report aims to portray and comment on the process of the integral translation of the work Circle of Magic: Sandry’s Book, by Tamora Pierce, illustrating the main translation difficulties and the strategies used to solve them. The report also seeks to discuss important aspects concerning the translation of children’s and young adult fantasy literature.

The report is organised in three chapters. The first chapter sets out to make a biographic and bibliographic portrait of Tamora Pierce. The second chapter is divided into four subchapters: the first one aims to present a theoretical reflection on translation as well as the working methodology used in the translation of Sandry’s Book; the second subchapter introduces the concepts of children’s and young adult literature and fantasy literature, synthetizing their various definition perspectives, according to different authors; the third subchapter centres on the importance of the target audience, target culture and its translation norms, crucial factors to be considered in decision-making during the translation process; and the fourth subchapter focuses on particularly relevant aspects concerning the translation of children’s and young adult fantasy literature, i.e., linked to the translation of creativity. This last section includes a brief analysis of translations of similar texts, aiming to access strategies used by translators to overcome difficulties related to the translation of toponyms, anthroponyms and slang and idioms from the universes of those works. This analysis made it possible to become aware of the target-culture tendencies in the translation of children’s and young adult fantasy literature, contributing to the solution of problems during the translation of Sandry’s Book. The third chapter starts by analysing the work to be translated, as well as its target-audience, proceeding with the translation comment. The main translation challenges are divided into: a) semantic aspects – toponymy, anthroponymy and the translation of slang; b) pragmatic aspects – translation of proverbs and idioms and of forms of address; and c) translation of technical and scientific terminology related to arts and crafts and to the field of Botany.

The report thus aims to demonstrate the study method that led to the final version of the translation, articulating literary and translation studies with practical experiences, ever towards the goal of reaching the balance between source-oriented translation and target-oriented translation.

Although this report mainly aims to analyse the translation of Circle of Magic: Sandry’s Book, promoting this author’s work is pertinent and inevitable. With the translation of Sandry’s Book this work therefore also intends to act as a contribution to the repertoire of children’s and young adult fantasy novels translated into Portuguese.

5 Keywords: Tamora Pierce, Sandry's Book, translation, fantasy literature, young adult literature.

6 Agradecimentos

Às minhas orientadoras, Professora Angélica Varandas e Professora Teresa Casal, pela disponibilidade e pela paciência; Aos meus pais e à minha irmã, por me apoiarem incondicionalmente; À Carolina Mora, à Leonor Saragoça e à Raquel Espada, por estarem sempre aqui; À Catarina Monteiro; À Rosa Pomar, por me ter ensinado a fiar; A Tamora Pierce, por confiar nas minhas interpretações; À minha cadela Gutie, por ir comigo para todo o lado;

Um “obrigada” do tamanho do mundo.

7 Introdução

O presente relatório, enquadrado na elaboração do trabalho de projecto do Mestrado em Tradução da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, consiste na tradução comentada da obra de literatura fantástica infanto-juvenil Circle of Magic: Sandry’s Book, da autora americana Tamora Pierce, publicada em 1997. Visa, por um lado, ilustrar o processo de tradução do texto, apresentando as metodologias utilizadas, assim como os eventuais problemas e questões que suscitaram particular interesse dentro da perspectiva de um tradutor e, por outro, contextualizar Tamora Pierce no universo das obras de literatura fantástica, o que será fundamental na justificação da minha opção pela tradução deste texto e, também, na compreensão dos motivos pelos quais o considero um importante contributo para o conjunto de obras de literatura fantástica traduzidas para a língua portuguesa.

A primeira etapa deste trabalho consistiu no estudo da obra, o que, para além da sua leitura, implicou a elaboração de uma caracterização do texto, articulando a perspectiva dos estudos literários e dos estudos de tradução, de modo a identificar factores importantes, tais como o género textual, o enquadramento nos contextos de partida e de chegada, o levantamento de textos semelhantes e o público-alvo, entre outros. A segunda etapa compreendeu a tradução integral da obra e o levantamento e a resolução de dificuldades tradutórias, ilustrados no capítulo 3 deste relatório.

O presente relatório estrutura-se em três capítulos. No primeiro, “Tamora Pierce e a Sua Obra”, faz-se uma breve contextualização biográfica e bibliográfica da autora, explicando-se, também, os motivos pelos quais escolhi este texto para o meu trabalho de projecto. No segundo capítulo, intitulado “Tradução de Literatura Fantástica Infanto-Juvenil”, apresenta-se a metodologia usada na tradução, prosseguindo-se para a problematização dos conceitos e algumas das especificidades inerentes a estes géneros textuais. Procede-se, então, a uma caracterização da cultura de chegada e do público alvo, reflectindo-se sobre a forma como estes dois factores interagem com as normas de tradução. Por fim, faz-se uma breve análise descritiva de alguns aspectos especialmente relevantes na tradução de literatura fantástica, associados à tradução da criatividade, um factor preponderante neste tipo de obras (embora não exclusivo delas). Entre estes aspectos incluem-se a tradução de nomes próprios (topónimos, antropónimos e nomes de instituições) e de expressões de calão e gíria (variação diastrática) específicas dos universos das obras. Esta análise, em que recorri a traduções recentes, para o português europeu,

8 de obras análogas, permitiu-me tomar consciência das tendências ao nível das normas de tradução na cultura de chegada, assim como aferir estratégias utilizadas para ultrapassar dificuldades semelhantes às que me surgiram. As obras analisadas são a saga Harry Potter, de J. K. Rowling, tradução de Isabel Fraga, As Crónicas de Nárnia, de C. S. Lewis, tradução de Ana Falcão Bastos, O Ciclo da Herança, de Christopher Paolini, tradução de Ândrea Alves Silva, e O Hobbit, de J. R. R. Tolkien, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues. Examinar a forma como outros tradutores solucionaram problemas de tradução parecidos com aqueles com que me deparei auxiliou-me na minha própria tomada de decisões em alguns casos.

No capítulo 3 é feita a caracterização da obra e do público-alvo, seguindo-se-lhe a análise e o comentário da tradução, apresentando-se dificuldades tradutórias e justificações das opções tomadas, segundo a abordagem tradutória de Gideon Toury, assim como as estratégias de resolução dos desafios que surgiram, recorrendo às tipologias de estratégias propostas por Vinay e Darbelnet e por Chesterman. Discutirei questões de particular interesse, tais como a componente didáctica da obra, relacionada com os dons mágicos das quatro personagens principais, ligados a actividades quotidianas (fiação, meteorologia, jardinagem e metalurgia), que suscitou as suas próprias questões e na qual me deparei com alguns desafios bastante específicos, nomeadamente relacionados com formas tradicionais de executar artes e ofícios que diferem consoante o país onde são realizados.

A tradução de Circle of Magic foi elaborada com recurso a duas versões do mesmo texto: uma edição em papel, publicada pela Scholastic Press, assim como uma versão em audiobook, produzida pela Full Cast Audio e narrada pela própria Tamora Pierce. Recorrer a uma versão em formato de audiobook foi fundamental para ultrapassar alguns obstáculos, como adiante veremos.

1. Tamora Pierce e Sua Obra

Tamora Pierce nasceu a 13 de Dezembro de 1954, em South Connellsville, na Pensilvânia, EUA. Apaixonada pelos livros, foi instigada pelo pai a começar a escrever as suas próprias histórias, quando este a ouviu a contá-las a si própria enquanto lavava a louça.1

No sétimo ano de escolaridade, a professora de Inglês apresentou-lhe os romances fantásticos de J. R. R. Tolkien. Pelas palavras da própria autora,

1 Tamora-pierce.net About, “Tamora Pierce Biography,”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/about/

9 I tried to write the kind of thing I was reading, with one difference: the books I loved were missing teenaged girl warriors. I couldn’t understand this lapse of attention on the part of the writers I loved, so until I could talk them into correcting this small problem, I wrote about those girls, the fearless, bold, athletic creatures that I was not, but wanted so badly

to be.2

A preocupação com a representatividade feminina em papéis tradicionalmente ocupados por personagens masculinas é, então, uma das principais linhas orientadoras da obra de Pierce.

Estudou na universidade da Pensilvânia, tendo-se licenciado em Artes e Serviço Social. Depois de um período de bloqueio literário, conseguiu terminar o seu primeiro romance de capa e espada com raparigas adolescentes como protagonistas, embora nunca o tivesse publicado. Era, na altura, pioneira neste tipo de literatura, i.e., romances de fantasia com raparigas adolescentes. Já havia, nos anos setenta, autoras a escrever romances fantásticos com protagonistas femininas, como Marion Zimmer Bradley (1930-1999), Suzy McKee Charnas (1939), ou Anne McCaffrey (1926-2011), mas eram romances cujas protagonistas eram mulheres celibatárias ou homossexuais (excepto no caso de Anne McCaffrey e Marion Zimmer Bradley).3 Além disso, os romances destas autoras destinavam-se a leitores adultos.

Em 1976, Tamora Pierce é convidada pelo pai e pela madrasta para ir viver com eles em Idaho, onde arranja um emprego num lar de raparigas adolescentes. Nessa altura, preparava-se para enviar para as editoras um romance de mais de setecentas páginas, intitulado The Song of the Lioness. As adolescentes do lar gostariam de o ter lido, mas o director considerava que o conteúdo da história não era adequado. Por esse motivo, Pierce contava às raparigas uma versão editada, apropriada para a sua idade, isto é, sem conteúdo passível de censura por parte dos directores do lar, como relações sexuais, por exemplo.

Quando, por fim, começou a trabalhar com uma editora de Nova Iorque, a sua agente sugeriu que transformasse o romance numa tetralogia de livros para adolescentes e a autora percebeu que, de certa forma, já o fizera.4

Em 1983 publica o primeiro romance juvenil, Alanna: The First Adventure. Continuavam a ser muito poucas as autoras a publicar obras com protagonistas femininas, especialmente romances juvenis.5 Alguns exemplos eram Robin McKinley (1952), que, para além de

2 Pierce, Tamora, “Tamora Pierce Biography,” Tamora-pierce.net. http://www.tamora-pierce.net/about/ 3 MuggleNetVid, “MuggleNet Interviews Author Tamora Pierce”, canal do Youtube MuggleNetVid, https://www.youtube.com/watch?v=JPxzZWHY2tE 4 Tamora-pierce.net About, “Tamora Pierce Biography,”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/about/ 5 MuggleNetVid, “MuggleNet Interviews Author Tamora Pierce”, canal do Youtube MuggleNetVid, https://www.youtube.com/watch?v=JPxzZWHY2tE

10 romances originais com protagonistas femininas, readaptava contos de fadas, dando-lhes uma vertente feminista, e que começou a publicar um pouco antes de Pierce; e também Elizabeth Moon (1945), autora de The Deed of Paksenarrion.

Alanna: The First Adventure foi publicado pela Atheneum e é o primeiro romance da tetralogia. É a história de Alanna, uma rapariga nobre que quer ser armada cavaleira. Passa-se no universo de Tortall, um universo semelhante à Europa feudal, onde, naturalmente, as mulheres não podem ser cavaleiras. Alanna contraria todas as regras para conseguir concretizar o seu sonho e salva o reino de Tortall no processo.6

Depois da tetralogia Song of the Lioness, Pierce escreve The Imortals (cujo primeiro livro, Wild Magic, é publicado em 1992), outra tetralogia cuja história também se passa no universo de Tortall e em que a personagem principal, uma rapariga órfã chamada Daine, descobre que tem um dom mágico: consegue comunicar com animais e criaturas lendárias. Naturalmente, um dos temas que mais se destaca nesta saga é, precisamente, a protecção dos animais e o respeito por eles.7

Pierce escreve mais quatro sagas do universo de Tortall. The Protector of the Small (que começa com , 1999), mais uma tetralogia, conta a história de Keladry of Mindelan, uma rapariga que pretende seguir as pisadas de Alanna e tornar-se cavaleira, o que já é permitido, embora não seja visto com bons olhos pela maioria dos habitantes de Tortall. Nesta tetralogia, deparamo-nos com assuntos como a discriminação de género, assédio sexual e capacitação feminina. Para além disto, Keladry é uma personagem dotada de um forte sentido de justiça, nunca voltando as costas aos que dela precisam, o que faz desta saga um autêntico código de valores de cavalaria adaptado aos dias de hoje, pois aborda temas bastante actuais e debatidos no presente.8

Depois desta tetralogia, Tamora Pierce publica Tricksters (Trickster’s Choice, 2003 e Trickster’s Queen, 2004), um conjunto de duas obras cuja protagonista, Alianne, é a filha de Alanna e, tal como a mãe, anseia por aventura. Depois de ser capturada por vendedores de escravos, é comprada por uma família que vive nas Copper Isles, um território ocupado e onde a população nativa vive escravizada pelos colonos. Alianne irá, então, colaborar na conspiração para derrubar o governo e libertar os nativos, usando os conhecimentos de espionagem que

6 Tamora-pierce.net Bibliography, “Song of the Lioness”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-song-of-the-lioness/ 7 Tamora-pierce.net Bibliography, “The Immortals”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-immortals/ 8 Tamora-pierce.net Bibliography, “Protector of the Small”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-protector-of-the- small/

11 aprendeu com o pai. Esta obra aborda o tema da escravatura e ensina algumas noções de espionagem.9

Beka Cooper (, 2006, , 2009 e , 2011) é uma trilogia em que a personagem principal, que lhe dá o nome, é membro da guarda do Preboste. Embora seja a quinta saga publicada sobre o universo de Tortall, decorre várias centenas de anos antes das restantes, pelo que a autora usa um vocabulário com alguns arcaísmos. Esta trilogia mostra-nos uma Tortall mais crua, onde a escravatura e o trabalho infantil são vistos como algo normal até, obviamente, Beka Cooper contribuir para a sua abolição.10

Por fim, e até agora, temos The Numair Chronicles (Tempests and Slaughter, 2018), que nos mostra a juventude de Numair, o mago protector de Daine em The Immortals.11

A obra de Pierce engloba ainda outro universo, o de , de cuja primeira história fiz a tradução para este projecto. Embora tenha algumas semelhanças com a mundividência da Idade Média, como vemos retratada nos romances de Tortall, o universo de Emelan afasta-se das semelhanças com a Europa dessa época, como explica a autora:

The Circle of Magic universe has its roots in the medieval and Central Asia: a crossroads of cultures and peoples, where trade and the pursuit of knowledge bring four

ends of a vast continent together.12

Sandry’s Book apresenta, portanto, uma maior diversidade cultural e étnica, havendo personagens de aspecto bastante heterogéneo, provenientes de vários pontos do continente onde se localizam as nações do universo da obra e com características físicas bastante diversificadas.

As obras deste universo dividem-se em duas tetralogias e três romances separados. A primeira tetralogia, Circle of Magic, é composto pelos livros Sandry’s Book (1997), Tris’s Book (1998), Daja’s Book (1998) e Briar’s Book (1999). Cada um destes quatro livros foca-se nas habilidades da personagem que lhe dá o nome, embora o primeiro, que traduzi, não se centre exclusivamente em Sandry, pois procura apresentar todos os intervenientes na saga.13

A segunda tetralogia, The Circle Opens, foca-se novamente em cada um dos jovens, já mais crescidos, e na aprendizagem que fazem com cada um dos seus mentores, já fora do templo. Cada um dos jovens encontrará o seu primeiro aprendiz e as narrativas incidem sobre

9 Tamora-pierce.net Bibliography, “Tricksters”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/tricksters/ 10 Tamora-pierce.net Bibliography, “Beka Cooper: A Tortall Legend”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/beka-cooper-a- tortall-legend/ 11 Tamora-pierce.net Bibliography, “The Numair Chronicles”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-numair-chronicles/ 12 “The Circle Universe”, Tamora-Pierce.net, disponível em http://www.tamora-pierce.net/series/the-circle-universe/, acedido a 7-9-2019. 13 Tamora-pierce.net Bibliography, “Circle of Magic”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-circle-of-magic/

12 o modo como lidam com isso. São eles (2000), sobre Sandry e o seu primeiro aprendiz, cujo dom da magia se manifesta através da dança; Street Magic (2001), sobre Briar e a sua aprendiz, cuja magia se manifesta através dos minerais; Cold Fire (2002), sobre Daja e as suas duas aprendizes, duas irmãs com magia de cozinha e de carpintaria; e Shatterglass (2003), sobre Tris e o seu aprendiz, que trabalha a magia através do trabalho com vidro.14

Depois desta tetralogia, existem mais três romances, The Will of the Empress (2005), em que as quatro personagens principais se juntam para uma viagem ao império de Namorn; (2007), em que acompanhamos a aprendiz de Briar numa viagem com Niko, um mago, e Rosethorn, uma dedicada do templo do Círculo Sinuoso15; e Battle Magic (2013), que relata a atribulada viagem de Briar, Rosethorn e Evie, a aprendiz de Briar, depois de este a ter encontrado, no livro Street Magic.16

Em ambos os universos, as personagens da obra de Pierce são ricas e bem desenvolvidas, com características que colocam o leitor em contacto com as mais diversas áreas do conhecimento e com temas bastante pertinentes, importantes e actuais. Em Protector of the Small, o problema da discriminação de género é evidente, podendo, atrevo-me a dizer, fazer-se um paralelismo com temas muito actuais, como o movimento #MeToo,17 a igualdade salarial e de oportunidades de trabalho entre homens e mulheres, entre outros. Outras causas pelas quais se luta actualmente também estão bem presentes na obra de Pierce, como a causa animal, bem representada em Sandry’s Book, no salvamento do cachorro, na feira, ou em The Immortals, em que a personagem principal tem uma íntima relação com toda a espécie de animais, apelando não só à sua protecção, como alertando para importantes noções sobre o comportamento animal e, também, para problemas ambientais que prejudicam todo o planeta, como a poluição ou a invasão dos habitats naturais (?).

A tolerância para com a diferença também parece ser uma linha orientadora de Tamora Pierce, em vários aspectos. A tolerância para com culturas diferentes é um deles – com os Vendedores,18 alvo de desconfiança e discriminação pela cultura de maioria, diferença essa que Sandry faz questão de minimizar em Sandry’s Book, Outro exemplo reside na tolerância relativamente a orientações sexuais diferentes da maioria, assunto que nos é apresentado quase

14 Tamora-pierce.net Bibliography, “The Circle Opens”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-circle-opens/ 15 Tradução minha para “Winding Circle”. 16 Tamora-pierce.net Bibliography, “The Circle Reforged”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/series/the-circle-reforged/ 17 Movimento contra o assédio sexual e a agressão sexual, que começou em Outubro de 2017 e que se tornou viral nas redes sociais através do hashtag #MeToo. 18 Tradução minha para “Traders”.

13 como um não-assunto, já que é aceite com naturalidade pelas personagens, quando estas descobrem, por exemplo, a orientação sexual de Daja, em Will of the Empress.19

Esta seria, já por si, uma rica componente didáctica, alicerçada no respeito pelo outro, pela diferença, pelos Direitos Humanos e Animais, mas Pierce vai além disso. Para além dos conhecimentos que transmite associados às temáticas já referidas, e tendo em conta que várias das suas personagens têm dons que se manifestam através dos mais variados tipos de trabalho, existem, na obra, explicações sobre fibras (lã, linho, seda), fiação, metalurgia e mineração, botânica, meteorologia e marés, carpintaria, medicina, manufactura de vidro, mineralogia, para mencionar apenas algumas. Estas explicações são transmitidas de forma natural e orgânica, inseridas nos diálogos das personagens, sem parecerem palestras de sala de aula, o que as tornam apelativas e interessantes para o leitor, tenha a idade que tiver. Além disso, considerando que vivemos num mundo modernizado, em que muitos dos ofícios tradicionais vão caindo no esquecimento, a pouco e pouco, é importante recuperá-los, ainda que seja em universos fantásticos onde não existem formas modernas de fabricar bens. Pierce é capaz de fazer com que o leitor se interesse pelos ofícios e trabalhos das personagens, ao ponto de este (e falo por experiência própria) querer experimentá-los e aprendê-los. Ao mesmo tempo, utiliza factos reais nas suas histórias, práticas que existem em certos países e certas culturas, transformando- os em elementos dos seus universos, como é o caso das árvores shakkan, árvores em miniatura demasiado semelhantes aos Bonsai para não terem sido neles inspiradas. Para o leitor, reconhecer num universo ficcional algo que existe no universo real, ainda que possa ter outro nome, pode constituir mais um motivo de prazer na leitura, tornando a história mais próxima e mais real.

Não menos importante é o uso que a autora faz de vocabulário arcaico nos romances que se passam no passado, nomeadamente, na trilogia Beka Cooper. Substituições como “gixie” em vez de “girl”, “mot” e “cove”20 em vez de mulher e homem, respectivamente, dão a conhecer palavras em desuso e fazem da obra de Pierce um rico manancial de conhecimentos.21

Falamos, portanto, de uma autora pioneira na publicação de romances juvenis de fantasia, tendo como protagonistas raparigas adolescentes ou quase adolescentes, que publica livros desde 1984, que já inspirou escritores como Christopher Paolini (autor d’O Ciclo da Herança), e cuja obra foi traduzida para mais de dez línguas22 (incluindo o português do Brasil, em 2015,

19 Tamora Pierce, The Will of the Empress (EUA: Scholastic Press, 2005) 20 “Meaning of cove in English”, Cambridge Dictionary, https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/cove 21 Tamora Pierce, Terrier (EUA: Random House Children’s Books, 2006) 22 Amazon, “Books : Foreign Language Books : Tamora Pierce”, Amazon, https://www.amazon.com/Foreign-Language-Books-Tamora- Pierce/s?rh=n%3A3118571%2Cp_lbr_one_browse-bin%3ATamora+Pierce

14 com a tradução do primeiro livro de Song of the Lioness, A Canção de Alanna).23 Tamora Pierce tem milhares de exemplares vendidos e já ganhou vários prémios literários, incluindo o West Australian Young Readers’ Book Award – Older Readers Award (2009): WAYRBA, com Terrier, de Beka Cooper; o Edward E. Smith Memorial “Skylark” Award (2005): New England

Science Fiction Association; e o Margaret A. Edwards Award (2013): YALSA.24

Por que motivo, então, não existem traduções da obra de Tamora Pierce para português europeu? Como é possível que uma autora tão importante tenha sido ignorada pelas editoras portuguesas? É essa falha que pretendo colmatar com este projecto, pois considero que será um importante contributo para a literatura traduzida e, principalmente, para o repertório disponível para os leitores de fantasia.

23 Tamora Pierce, A Canção de Alanna (Brasil: Única Editora, 2015) 24 Tamora-pierce.net About, “Honors and Awards”, Tamora-pierce.net, http://www.tamora-pierce.net/about/honors-and-awards/

15 2. Tradução de Literatura Infanto-Juvenil

Nesta secção, introduziremos alguns aspectos gerais relativamente à tradução literária, mais concretamente à tradução de literatura fantástica e infanto-juvenil. Embora, obviamente, nem toda a literatura infanto-juvenil – daqui em diante designada por LIJ – seja fantástica, e nem toda a literatura fantástica seja direccionada a um público infanto-juvenil, dado que a obra seleccionada para este trabalho de projecto é, efectivamente, uma obra de LIJ que se insere na literatura fantástica, é importante destacar aspectos relevantes de ambas as categorias, pois foram, naturalmente, tidos em conta ao longo da tradução. Assim, depois do ponto 2.1., em que se apresenta uma reflexão sobre tradução literária infanto-juvenil e a metodologia usada para trabalhar a obra em estudo, debruçar-nos-emos, no ponto 2.2., sobre a problematização dos conceitos de literatura infanto-juvenil e literatura fantástica, pois é fundamental um tradutor ter em mente o escopo (propósito e função) da obra que traduz. Neste caso, o escopo exige que a obra seja analisada articulando estudos literários e estudos de tradução, como veremos a seguir. No ponto 2.3., reflectiremos sobre aspectos tradutórios, nomeadamente, na forma como os factores contexto de chegada e público-alvo interagem com as normas e estratégias de tradução e na relevância dessa interacção para um tradutor, neste caso, de literatura fantástica infanto- juvenil. Nos subpontos de 2.4., procederemos a uma breve análise descritiva de aspectos que levantaram desafios ao longo da minha tradução e que são especialmente relevantes em literatura fantástica infanto-juvenil, como a abordagem à tradução de topónimos e antropónimos e a forma de lidar com expressões de calão e gíria específicas dos universos das obras. Estas questões são particularmente importantes em literatura fantástica (embora não exclusivas desta), pois prendem-se com a tradução da criatividade, tema tratado no ponto 2.4. Decidi avançar com esta análise enquanto me dedicava ao estudo da obra, pois constatei que seria uma forma coerente de articular teoria e prática no meu trabalho, recorrendo a traduções já consagradas para tomar consciência das tendências no que diz respeito às normas de tradução vigentes neste contexto de chegada específico. Além disso, faria sentido que os aspectos que se me tinham apresentado como desafios podiam igualmente ter surgido a outros tradutores, pelo que as suas estratégias para os superar poderiam ser-me úteis também a mim. Para isto, recorria um corpus de quatro obras inseridas nesse género textual para, à luz da perspectiva dos estudos descritivos de tradução, tirar conclusões que auxiliarão na justificação de opções tomadas ao longo da tradução de Sandry’s Book, relativamente às questões supra-referidas. Essas opções e justificações serão apresentadas a partir do ponto 3.2., do capítulo 3 do relatório.

16 2.1. Metodologia de Tradução

Traduzir não é apenas passar um texto de uma língua para outra. Traduzir é, antes de mais, uma mediação cultural. "A culturalidade de um texto define-o como um objecto único, como um testamento literário ao contexto social, geográfico e ideológico do seu autor."25 Isto significa que, além dos factores linguísticos, existem outros aspectos que devem ser tidos em conta, entre os quais se destacam a função da obra, o seu receptor e as normas vigentes no contexto de chegada. Antes de começar a tradução, o tradutor tem, portanto, algumas questões a ponderar.

A tradução como área de estudo evoluiu bastante durante o séc. XX e tem vindo a tornar- se cada vez mais relevante, especialmente ao longo das últimas décadas. Por um lado, cada vez se fazem mais traduções e para mais línguas e, por outro, as abordagens à tradução em contexto académico são cada vez mais diversificadas.26 Por exemplo, no que diz respeito ao conceito de tradução, Schleiermacher propunha, no final do séc. XIX, que o tradutor devia preservar o carácter estrangeiro do original, mantendo as características da língua de partida na língua de chegada, de modo a permitir ao leitor desfrutar de uma experiência autêntica da obra.27 Já M. L. Larson, numa perspectiva mais recente, sugere algo diferente: “translation communicates, as much as possible, the same meaning that was understood by the speakers of the source language, using the normal language form of the receptor language, while maintaining the dynamics of the original source language text”.28 Estas duas posições mostram-nos como podem divergir as abordagens sobre o conceito de tradução e como as perspectivas diferem de acordo com o contexto histórico e ideológico. Enquanto que a primeira propõe a preservação do estranho, a segunda, embora preservando as características do texto de partida, sugere que se procurem equivalências (de expressões idiomáticas, por exemplo), de modo a tornar o texto mais natural para o leitor, isto é, mais próximo daquilo a que este está habituado a reconhecer como natural na sua língua nativa.

Estes são apenas dois exemplos de posições quanto àquilo que deve ser uma tradução, o primeiro sugerindo uma abordagem orientada para o contexto de partida (source-oriented) e o segundo direccionando-se mais para o contexto de chegada (target-oriented). Gideon Toury,

25 Pedro Martins, Em Busca do Equilíbrio: Interculturalidade na Tradução, “The Night of the Quicken Trees”, Tese de Mestrado da Univ. de Lisboa (2009), 5. 26 Inês Margarida Bernardo, Os Desafios da Tradução de Literatura Juvenil: o Caso de The Ant Colony, Tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2015), 12. 27 Friedrich Schleiermacher, “Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens” (1813), trad. portuguesa “Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir”, Porto Editora (2003), citado em Inês Margarida Bernardo, Os Desafios da Tradução de Literatura Juvenil: o Caso de The Ant Colony, Tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2015), 12. 28 Zohre Owji, “Translation Strategies: A Review and Comparison of Theories”, TranslationJournal.net, disponível em https://translationjournal.net/Featured-Article/translation-strategies-a-review-and-comparison-of-theories.html, acedido a 10-9-2019.

17 que pertence à Escola de Tel Aviv, corrente que contribuiu para o desenvolvimento dos Estudos Descritivos de Tradução, propõe um diferente entendimento dos Estudos de Tradução, que consiste em, de forma descritiva, tentar perceber as normas que regem o processo de tradução.

Toury […] puts forward a methodology for descriptive translation studies (DTS) as a non-prescriptive means of understanding the 'norms' at work in the translation process

and of discovering the general 'laws' of translation.30

Isto quer dizer que, em vez de sugerir regras que um tradutor deve seguir face a uma tradução, Toury propõe que se tentem entender as normas que regem o processo de tradução e, assim, através do estudo de conjuntos de textos, quer de pares original-tradução, quer de várias traduções do mesmo texto, se consigam descobrir as leis gerais de tradução. A metodologia que propõe baseia-se em três princípios:

1 Situate the text within the target culture system, looking at its significance or acceptability.

2 Compare the ST and the TT for shifts, identifying relationships between 'coupled pairs' of ST and TT segments, and attempting generalizations about the underlying concept of translation.

3 Draw implications for decision-making in future translating.31

As teorias funcionais vão, de certa forma, ao encontro da proposta de Toury, na medida em que dão à função do texto um papel importante aquando da análise a que o tradutor submete a obra que se propõe traduzir. Christiane Nord faz a distinção entre dois tipos de textos e processos tradutórios: documental e instrumental.32

30 Jeremy Munday, Introducing Translation Studies, Routledge (2001), Cap. 7. 31 Idem, ibidem. 32 Idem, ibidem, cap. 5.

18 Documentary translation 'serves as a document of a source culture communication between the author and the ST recipient' (Nord 1991: 72). Such is the case, for example, in literary translation, where the TT allows the TT receiver access to the ideas of the ST

but where the reader is well aware that it is a translation.33

O modelo de Nord pretende, então, proporcionar um modo de análise que possa ser aplicado a todos os tipos de texto e a qualquer situação tradutória, baseado no conceito funcional, tendo em vista a identificação das características do texto de partida, de modo a seleccionar as estratégias de tradução mais adequadas, de acordo com o propósito do texto. O modelo de Nord também se alicerça em três princípios:

- Estabelecer o objectivo que se pretende atingir ao traduzir o texto – neste caso, trata-se de um texto literário cujo objectivo será proporcionar entretenimento ao leitor, assim como favorecer o seu desenvolvimento;

- Analisar o texto, identificando as suas principais características ao nível do tema, do conteúdo, da composição (tanto ao nível macrotextual como microtextual) e do léxico (terminologia, variação linguística…);

- Estabelecer a hierarquia funcional dos problemas de tradução, que implica, primeiramente, saber se se trata de um texto documental ou instrumental, o que permite aferir quais os elementos que terão de ser adaptados no texto de chegada e, em última

instância, se a tradução será orientada para o contexto de partida ou de chegada.34

Embora a metodologia de Toury seja descritiva e o modelo de Nord seja prescritivo, considero que, em certa medida, ambos se complementam. Assim, a par de uma análise descritiva de textos análogos ao que traduzi (cujo objectivo já foi explicado acima), tive sempre em mente a função da tradução, o que quer dizer que as teorias funcionais tiveram algum peso no meu estudo da obra.

Assim, em 3.1., far-se-á a caracterização da obra e da sua aceitabilidade e pertinência na cultura de chegada, ao encontro do ponto 1 da metodologia proposta por Toury e do primeiro e segundo

33 Idem, ibidem. 34 Idem, ibidem, cap. 5.

19 factores descritos no modelo de Nord. Caracterizaremos, também, de forma mais detalhada, o público-alvo. Nos pontos 2.4.1., 2.4.2 e 2.4.3., faz-se a análise de segmentos correspondentes em pares de textos semelhantes, com o objectivo de retirar conclusões que auxiliem na justificação de opções tradutórias minhas e, de um modo mais abrangente, perceber quais as tendências que se verificam nessas traduções (Toury, ponto 2). As implicações que essa análise comparativa teve na minha própria tradução são apresentadas a partir do ponto 3.2., no capítulo 3.

Segundo a terminologia proposta por Toury, uma tradução orientada para o contexto de partida – portanto, que adere às normas da cultura de partida – será uma tradução em adequação, enquanto que uma tradução orientada para o contexto de chegada – ou seja, que adere às normas da cultura de chegada - é uma tradução em aceitabilidade.35 Estas perspectivas, que incluem trazer o Estrangeiro à Cultura de Chegada e levar a Cultura de Chegada ao Estrangeiro (com todas as suas implicações), provam como a interculturalidade assume uma grande importância no acto de traduzir e nas opções a serem tomadas.36 Isto torna-se especialmente importante se tivermos em conta o mundo globalizado em que vivemos e a relação que com esse mundo tem o público-alvo de Sandry’s Book, um público-alvo que, ainda que jovem (adolescentes ou pré- adolescentes) tem, à partida, uma relação próxima com as novas tecnologias e utiliza assiduamente a Internet, pelo que conceitos estrangeiros farão parte do seu vocabulário e, portanto, não causarão estranheza. Isto significa que, ao longo da tradução desta obra, a introdução de palavras estrangeiras (como antropónimos em inglês) não constituiu uma preocupação excepcional. Durante a tradução tentei, então, manter um equilíbrio entre adequação e aceitabilidade, equilíbrio esse que se traduz especificamente na forma como abordei topónimos e antropónimos, traduzindo alguns dos primeiros e alguns dos segundos, e outros não. Esta questão é apresentada no ponto 3.2.1.4.

Ao nível das estratégias de tradução, isto é, os procedimentos que um tradutor adopta para ultrapassar dificuldades tradutórias, também existem várias propostas de tipologias, a par do que se verifica no que diz respeito às várias propostas de metodologias gerais de tradução. No âmbito deste trabalho, segui dois modelos de estratégias. O primeiro foi proposto por Jean-Paul Vinay e Jean Darbelnet, autores de um estudo comparativo a respeito da prática de tradução entre inglês e francês. O segundo modelo foi proposto por Andrew Chesterman, que, de certa

35 Alexandra Assis Rosa, “Descriptive Translation Studies - DTS (revised version).”, Handbook of Translation Studies, Ed. Yves Gambier and Luc van Doorslaer (2010-2016), 94-104. 36 Pedro Martins, Interculturalidade na Tradução: The Night of The Quicken Trees, Tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa, 2009.

20 forma, completa o primeiro, por abranger também factores sócio-culturais e pragmáticos na sua categorização de estratégias. Utilizei estes modelos na descrição das estratégias a que recorri de cada vez que surgiram dificuldades na tradução de Sandry’s Book.

Como veremos mais adiante, o público-alvo será um factor importante no que diz respeito à selecção das estratégias utilizadas. No caso da LIJ, saber a faixa etária a que a obra se destina revela-se fundamental, já que a literatura para crianças em fase de aquisição de conhecimentos de leitura será, naturalmente, diferente de uma obra para crianças que já lêem com desenvoltura, tanto ao nível da complexidade formal do texto como ao nível do vocabulário utilizado. Os temas abordados também serão diferentes, ou abordados de formas diferentes consoante o estádio de desenvolvimento do leitor e, por conseguinte, a sua capacidade de entender assuntos mais ou menos complexos. Sandry’s Book é uma obra destinada a um público-alvo na faixa- etária entre os 10 e os 15 anos.37 Compreendendo seis anos, podemos dizer que se trata de uma faixa etária que engloba vários estádios de desenvolvimento e que diferentes leitores, de acordo com a idade, criarão com a obra diferentes relações, consoante a sua maturidade. Significa isto que, do ponto de vista da tradutora, foi necessário ponderar cuidadosamente as estratégias utilizadas, mais uma vez privilegiando um equilíbrio entre adequação e aceitabilidade, já que aproximar-me mais da primeira poderia levantar dificuldades de compreensão e tornar o texto mais inacessível a um leitor mais jovem, ao passo que privilegiar uma abordagem com fortes características de aceitabilidade apagaria as marcas culturais do contexto de partida e privaria o leitor da oportunidade de contactar com este, especificamente através dos antropónimos em língua inglesa e de termos que surgem no texto e que, no contexto português, não são comuns, podendo ter sido substituídos por outros, mas que optei por manter, pois o leitor de Sandry’s Book saberá, à partida, que o que vai ler é uma tradução.

O tradutor tem, assim, entre mãos uma árdua tarefa, que vai muito além da mera transposição de um texto de uma língua para outra, deparando-se com uma grande pluralidade de pontos de vista e preocupações sobre a actividade polifacetada de traduzir. No caso da literatura fantástica infanto-juvenil, em particular, talvez a resposta à questão básica sobre optar por uma tradução orientada para o contexto de partida ou para o contexto de chegada resida, precisamente, numa ponderação e caracterização do público-alvo e numa tentativa de encontrar um equilíbrio entre ambas as abordagens. Foi exactamente isso que tentei conseguir, manter a tradução equilibrada. Por um lado, privilegiei, sempre que possível, que o meu texto se

37 “Sandry’s Book”, Scholastic.com, disponível em https://www.scholastic.com/teachers/books/circle-of-magic-1-sandry-s-book-by-tamora- pierce/, acedido a 10-9-2019.

21 aproximasse do texto de partida, na forma como o seu sentido é transmitido e mantendo algumas marcas do contexto de partida. Por outro lado, considerei importante tentar não criar “soluços” na leitura, de modo a propiciar ao receptor uma experiência de leitura fluida e natural. Esta tentativa de encontrar o equilíbrio reflecte-se nas estratégias que utilizei, como veremos no capítulo 3.

Conjugando os conhecimentos adquiridos ao longo deste mestrado e as leituras realizadas em prol deste projecto, que articulam os estudos de tradução com os estudos literários, assim como o contexto sócio-cultural em que vivemos actualmente, marcado por uma tendência fortemente globalizante, creio que esta abordagem é a mais adequada à tradução de literatura para jovens leitores, como veremos de forma mais detalhada na secção 2.2.

Antes, porém, de nos debruçarmos sobre as exigências da tradução de literatura fantástica infanto-juvenil, é importante considerar as questões associadas à definição destes dois conceitos.

2.2. Problematização dos Conceitos

Tal como acontece com o conceito de “tradução”, também os conceitos de “literatura infanto-juvenil” e “literatura fantástica” são de complexa definição. Nesta secção, procura-se sintetizar a história destas literaturas e as várias propostas de definição que foram surgindo ao longo dela.

Segundo Riitta Oittinen, não existe um consenso sobre o que é literatura para crianças.38 Será literatura escrita especialmente para crianças, ou por crianças, ou ainda literatura lida por crianças, qualquer que seja? Mendlesohn e Levy vão ao encontro desta ideia, na obra Children’s Fantasy Literature: An Introduction:

Historians of children’s literature begin their narratives in a variety of time periods, and with a specific range of texts, but these choices are not value-neutral. Each choice, for

38 Riitta Oittinen, Translating For Children, New York & London: Garland, (2000), 4.

22 period or genre, tells the reader something about the historian’s or critic’s understanding

of what childhood is, or of what children’s literature is.39

Também é importante ter em consideração que o conceito de criança, os limites de idade que a definem, podem variar de cultura para cultura, o que se torna especialmente importante quando falamos de tradução de literatura infantil – ou literatura infanto-juvenil –, uma vez que o leitor de uma tradução terá um background cultural diferente do do leitor do texto de partida.

Em todo o caso, literatura infanto-juvenil, como o nome indica, compreende a literatura escrita para, ou lida por e para crianças e jovens, desde os livros destinados a crianças que ainda não adquiriram conhecimentos de leitura aos adolescentes quase adultos. Como vemos, trata- se de uma faixa etária bastante alargada, com características específicas para cada uma das categorias etárias que possa englobar, mas também com algumas que lhe são transversais.

No mundo ocidental, a literatura infantil – i.e., os livros especialmente escritos para e dedicados às crianças – nasce no século XVII. Isto não significa que as crianças não lessem, ou que outros não lessem para elas, antes disso. Com efeito, já existiam fábulas antes do séc. XVII (as Fábulas de Esopo foram traduzidas por William Caxton em 1484), e, na Idade Média, os romances de cavalaria eram provavelmente lidos ou escutados também por crianças. Embora as fábulas não fossem exclusivamente destinadas a crianças, segundo Mendlesohn e Levy, este tipo de texto contém dois elementos normalmente associados à literatura para crianças: a moral da história e a antropomorfização das personagens animais. “The latter allows the poor to laugh at their superiors and the child at adults without threatening the social order while gaining a moral perspective on irrational behaviour”.40

Desde os finais do séc. XVI até meados do séc. XVIII, muitos dos textos literários destinados a adultos eram lidos por e para crianças bastante jovens.41 Estes textos incluíam obras de vários géneros, entre as quais romances de cavalaria, baladas, lendas, fábulas e contos de fadas, como, por exemplo, a já referida tradução d’As Fábulas de Esopo, The History of Tom

Thumb (1621) ou Jack and the Giants (1708).42

39 Michael Levy e Farah Mendlesohn, Children’s Fantasy Literature: An Introduction, Cambridge: University Printing House (2016), cap. 1. 40 Michael Levy e Farah Mendlesohn, Children’s Fantasy Literature: An Introduction, Cambridge: University Printing House (2016), cap. 1. 41 Idem, ibidem. 42 Idem, ibidem.

23 Antes do Séc. XVII, os livros dedicados a crianças eram, na sua maioria, livros de leitura para lições ou livros piedosos, com o objectivo de transmitir valores morais e religiosos.43 Desde a Grécia e a Roma antigas que os filhos de cidadãos cultos tinham contacto com obras como a Ilíada e a Eneida, embora o seu objectivo fosse decorar excertos, memorizando-os e recitando-os, para que, como futuros cidadãos educados, fossem capazes de recorrer a uma cultura comum de cidadania. Esta tradição manteve-se até meados do séc. XX, nas public schools britânicas, e é retratada na obra Tom Brown’s School Days (1857) de Thomas Hughes.44

In this model of children’s fiction, fiction is a thing for children, but not of them. It is a rout out of childhood and into the adult world which does not treasure the child or childhood as something precious, and in which children’s reading is continuous with that of adults. It is primarily moralistic, and therefore, as with Greek and Roman

education, primarily civic.45

Na primeira metade do séc. XVIII, em Inglaterra, começaram a ser publicados alguns livros, especificamente destinados a crianças, que já não eram de âmbito religioso. Um exemplo é A Little Book For Little Children, de cerca de 1712, que incluía adivinhas e um bestiário ilustrado. Aquele que é considerado como o “pai” da literatura infantil, pelo menos nas Ilhas Britânicas, é John Newbery, autor de A Little Pretty Pocket-Book Intended for the Instruction and Amusement of Little Master Tommy and Pretty Miss Polly (c.1744).46 Tratava-se, de facto, de um pequeno livro impresso em papel colorido e o autor publicitou-o como sendo vendido com uma bola para os meninos e uma almofada de alfinetes para as meninas. Estes objectos destinavam-se a registar as más e as boas acções dos seus donos, que podiam espetar alfinetes no lado preto ou no vermelho da bola ou almofada, para cada má ou boa acção, respectivamente. Este livro veiculava as ideias educativas de John Locke e Rousseau, que privilegiavam o ensino pela diversão e por actividades lúdicas. Mas o motivo principal pelo qual Newbery ficou conhecido como o grande promotor da literatura infantil foi, precisamente, o de ter provado que esta podia ser um sucesso comercial.47

Se foi devido a uma burguesia em rápida expansão, ou devido à nova concepção da criança, que, a partir do início do séc. XVIII, deixa de ser vista como um adulto em miniatura,

43 M. O. Grenby, “The origins of children’s literature”, The British Library (2014), disponível em https://www.bl.uk/romantics-and- victorians/articles/the-origins-of-childrens-literature. 44 Idem, ibidem. 45 Idem, ibidem. 46 Idem, ibidem. 47 Idem, ibidem. 24 que acompanha a vida social dos pais, passando a ser vista como distinta dos adultos, com necessidades específicas para lhe propiciar um desenvolvimento adequado, a verdade é que a literatura infantil se desenvolveu a par do surgimento de novas teorias relacionadas com a educação das crianças. No início do séc. XIX o negócio da publicação de literatura infantil florescia e era já possível viver-se da escrita para as crianças.48

A literatura juvenil também se desenvolveu a par da forma como eram encaradas a infância e a vida adulta, ou a passagem para elas. Sarah Trimmer, autora de The Guardian of Education, uma publicação periódica em que, entre outros textos, havia recensões de literatura infantil, dividiu a literatura infanto-juvenil em literatura infantil – para crianças até aos 14 anos – e literatura para jovens – dos 14 aos 21 anos de idade. Obras como os livros para raparigas de L. T. Meade, entre os quais A World of Girls: The Story of a School (1886) ou The Palace Beautiful: A Story for Girls (1887), ou Little Women (1868-69), de Louise May Alcott, narram as vidas de adolescentes. O reinado da rainha Vitória trouxe alterações no que diz respeito às esferas masculina e feminina. A mulher devia, agora, ser “the angel in the house”49, dedicando- se ao lar, à família e aos afazeres domésticos. Assim, obras como as supra-referidas tinham, como um dos objectivos, agir como exemplo para as jovens raparigas, transmitindo os valores morais e sociais da época.50 Nos anos 90 do séc. XIX começa a notar-se outra tendência. “This was the period nicknamed ‘the naughty Nineties’ and in it, stories of well-behaved young women being rewarded for their virtue with kind and respectful husbands were fading from view. Instead, they were being replaced by fantasy, proto-science fiction, and the return of

Gothic horror.”51

Parece, portanto, que a LIJ e a literatura fantástica andam há muito de mãos dadas. A filosofia de John Locke, que considerava que a educação das crianças podia ser-lhes transmitida de forma lúdica, reflectia-se na publicação de obras contendo histórias destinadas a entreter um público jovem. “A candidate for the role of first popularizer of fairy tales directed at children, at least in English, is Robert Samber, whose 1729 English-language version of Perrault’s work, Histories, or Tales of Past Times told by Mother Goose, helped transform public opinion on this issue.”52 Em The Governess, or The Little Female Academy, o primeiro romance escrito especificamente para crianças, de Sarah Fielding, deparamo-nos com uma história

48 Idem, ibidem. 49 Título de um poema narrativo escrito por Coventry Padmore, publicado pela primeira vez em 1854, que o autor dedica à esposa, por a considerar perfeita. 50 “A Brief History of Young Adult Fiction”, Oxford Royal Academy, 2016 51 Idem, ibidem. 52 Michael Levy e Farah Mendlesohn, Children’s Fantasy Literature: An Introduction, Cambridge: University Printing House (2016), cap. 1.

25 protagonizada por dois gigantes, um mau (Barbarico) e um bom (Benefico). Neste romance, a professora Teachum autoriza a aluna Jenny a ler a história às restantes alunas, como prémio por bom comportamento. A professora, depois, explica a moral que deve ser apreendida. “In Sarah Fielding’s work we encounter what would become a 19th century trend, the remaking of fairy tales in the interests of children’s literature.”53

Mas o que é, então, a literatura fantástica?

No que à fantasia diz respeito, têm sido muitas as definições adiantadas, nem sempre consensuais.

Durante a primeira metade do século XX, a associação da palavra “fantasia” a um tipo de literatura praticamente não existia, como argumenta Jeff Shear:54

The word fantasy does not appear in the English language used as a word for “a genre of literary compositions,” according to the Oxford English Dictionary, until 1949. And its

first usage as such appeared in a title: The Magazine of Fantasy and Science Fiction.55

No ano seguinte, The Lion, the Witch and the Wardrobe, de C. S. Lewis, foi publicado. The Lord of the Rings foi publicado em 1954, precedido por The Hobbit, publicado em 1937. ““I suspect the term fantasy rose after World War II in part due to an increased optimism and need for release from the horrors of that time”.56

Querá isto dizer que, antes de 1949, não tenha havido textos que poderiam ser classificados como literatura fantástica? Sempre existiram textos com elementos fantásticos, desde Gilgamesh à Odisseia, a Beowulf e às lendas arturianas.57 Na obra The Encyclopedia of Fantasy, John Clute e John Grant propõem o termo “taproot texts” para designar textos como os supra-referidos, i.e., textos que, embora ainda não sejam considerados fantasia propriamente dita, têm elementos fantásticos mas não são esses elementos que definem o género do texto.

53 Idem, ibidem. 54 Jeff Shear, “A Brief History of the Fantasy Genre”, JaneFriedman.com (2018), https://www.janefriedman.com/a-brief-history-of-the- fantasy-genre/, acedido a 7-9-2019. 55 Idem, ibidem. 56 Idem, ibidem. 57 M. Allen, “A Brief History of Fantasy”, OJS Library (2006), disponível em https://ojs.library.dal.ca, acedido a 8-9-2019.

26 Before that there were writings which included the Fantastic – and such works can be described as taproot texts. To exemplify: The presence of Ariel and of Prospero's staff in William Shakespeare's The Tempest (performed circa 1611; 1623) do not make that play a fantasy, according to this criterion; The Tempest, however defined generically, may contain elements of the fantastic, but these elements did not govern its audience's sense

of its generic : it was, first and foremost, a play.58

Embora obras com elementos fantásticos tenham existido desde sempre, é no século XVIII, com o início e no contexto do Romantismo, que nasce o debate que marca o início da fantasia moderna: o debate entre “imagination” e “fancy”. Coleridge diz o seguinte sobre os dois conceitos:

The IMAGINATION then, I consider either as primary, or secondary. The primary IMAGINATION I hold to be the living Power and prime Agent of all human Perception, and as a repetition in the finite mind of the eternal act of creation in the infinite I AM. The secondary Imagination I consider as an echo of the former, co-existing with the conscious will, yet still as identical with the primary in the kind of its agency, and differing only in degree, and in the mode of operation. It dissolves, diffuses, dissipates, in order to recreate; or where this process is rendered impossible, yet still at all events it struggles to idealise and unify. It is essentially vital, even as all objects (as objects) are essentially fixed and dead.

FANCY, on the contrary, has no other counters to play with, but fixities and definites. The Fancy is indeed no other than a mode of Memory emancipated from the order of time and space; while it is blended with, and modified by that empirical phenomenon of the will, which we express by the word CHOICE. But equally with the ordinary memory

the Fancy must receive all its materials ready made from the law of association.59

Para Coleridge, a imaginação era a faculdade transformativa que permitiria ao ser humano repetir, na mente finita, o acto eterno da criação. Era, portanto, a faculdade responsável pelo génio artístico e poético.

58 John Clute e John Grant, Encyclopedia of Fantasy, Science Fiction Encyclopedia, disponível em http://sf- encyclopedia.uk/fe.php?nm=taproot_texts, acedido a 8-9-2019 59 Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria, Project Gutenberg (2004), disponível em http://www.gutenberg.org/files/6081/6081-h/6081-h.htm, acedido a 2-10-2019.

27 O debate estende-se pelos sécs. XVIII e XIX, associado ao advento do Romantismo: a imaginação passa a ser encarada como uma lâmpada que ilumina o mundo que vemos, mas também mundos nunca antes vistos. O poeta é, então, um visionário e a obra de arte é um produto da imaginação.

O Romantismo vem opor-se aos valores racionalistas do Iluminismo, aos modelos classicistas do séc. XVII e à industrialização, fazendo a apologia do sonho, do misticismo (floresce a publicação de e o gosto por romances góticos) e dos passados míticos e distantes. Isto traduz- se num grande interesse pela Idade Média, que é reinventada, retomada para fins estéticos. O Romantismo defende o regresso à Natureza e a fuga ao mundo industrializado, a recuperação da cultura popular e o regresso às raízes nacionais dos vários povos e culturas (defesa do nacionalismo). É neste sentido que começam as recolhas de contos populares e contos de fadas. O trabalho pioneiro de Charles Perrault, autor de Contes de ma Mère l’Oye (Contos da Mãe Ganso), 1697, durante o reinado de Luís XIV, foi crucial, na medida em que trouxe os contos de fadas para a corte, sugerindo ao rei que mandasse colocar várias estátuas alusivas a fábulas espalhadas pelos jardins de Versalhes. Os Contos da Mãe Ganso, que incluem “A Bela Adormecida” “A Cinderela” e “O Gato das Botas”, foram escritos para entretenimento de aristocratas. As histórias já existiam, mas, ao publicá-las, Perrault deu-lhes notoriedade e legitimidade literária.

É neste clima dominado por uma oposição aos valores iluministas e por um interesse no místico, no mito, na Idade Média e nos contos de fadas que nasce a fantasia moderna. O nascimento do romance (no sentido de “novel”) como o conhecemos hoje, o interesse pelo romance gótico, a que se assiste entre o final do séc. XVIII e ao longo do séc. XIX, e as recolhas de contos da tradição oral, a par da defesa da imaginação como fonte da criação poética e artística, foram factores que muito contribuíram para o seu desenvolvimento. Na primeira metade do séc. XIX, os irmãos Grimm viajaram por aldeias remotas da actual Alemanha e recolheram contos da tradição oral, conhecidos como “Kunstmärchen”, que transcreveram e publicaram entre 1912 e 1915, com o título de Kinder und Hausmärchen, traduzido livremente como Contos para Crianças e para a Família. Entre estes contos destacam-se “Rapunzel”, “Hansel e Gretel”, “A Gata Borralheira” e “O Capuchinho Vermelho”, todos contendo elementos fantásticos, como fadas, bruxas e animais que falam.

Posteriormente, Lewis Carrol publicou Alice’s Adventures in Wonderland (1865) e Hans Christian Andersen publicou contos de fadas entre 1830 e 1865. Ambos os autores situam as obras na sua época: “Andersen and Carroll brought the present time and place into their stories

28 yet filled them with magic. This creation of enchantment distinguished fantasy literature from the classical fairy tale”.60

O surgimento da fantasia foi ainda profundamente marcado pelos trabalhos pioneiros de George MacDonald e Wiliam Morris. Com The Wood Beyond the World (1894) e The Well at the World's End (1896). Morris apresenta ao leitor os seus romances em prosa, que pretendiam imitar o romance medieval, criando mundos totalmente imaginados. MacDonald, por sua vez, escreve Phantastes (1858) e The Princess and the Goblin (1872), duas obras que viriam a exercer uma influência notável em vários autores, como W. H. Auden ou James Matthew Barrie, e, em particular, naqueles que são considerados os criadores da fantasia moderna, tal como hoje a conhecemos: C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien. Mas o que caracteriza, afinal, a literatura fantástica? Vários são os autores que sobre este tipo de literatura se debruçam, mas a verdade é que todas as obras que foram lançadas sobre o tema oferecem posições e definições diferentes. Uma obra pioneira a trabalhar a noção de fantasia foi The Fantastic: A Structural Approach to a Literary Genre (1975), de Tzvetan Todorov.

Todorov define o fantástico subdividindo-o em uncanny (estranho) e marvelous (maravilhoso): pode dar origem ao estranho se a causa do acontecimento for natural ou ao maravilhoso se a causa do acontecimento for sobrenatural. No entanto, Todorov baseia-se sobretudo na análise estrutural de textos góticos, pelo que a obra se encontra hoje datada.

The uncanny is experienced upon encountering something that is at once both strange and familiar. The marvelous, by contrast, is the more traditional view of fantasy. Todorov argues that the uncanny is characterized by a character’s response – often fear – towards something seemingly inexplicable, or impossible. He argues that the marvelous does not require a response from a character, only that the fantastic event occurs.62

O fantástico, então, e de acordo com Todorov, define-se pela experiência de hesitação face ao sobrenatural, o momento entre a crença e a descrença.63 Pelas palavras do próprio autor:

The fantastic occupies the duration of this uncertainty. Once we choose one answer or the other, we leave the fantastic for a neighboring genre, the uncanny or the marvelous. The

60 M. Allen, “A Brief History of Fantasy”, OJS Library (2006), disponível em https://ojs.library.dal.ca, acedido a 8-9-2019. 62 Idem, ibidem. 63 Idem, ibidem.

29 fantastic is that hesitation experienced by a person who knows only the laws of nature,

confronting an apparently supernatural event.64

Esta definição coloca inúmeros problemas. Um deles é, como já vimos, o facto de a definição caracterizar apenas um tipo muito específico de textos, sobretudo o romance gótico, pelo que não engloba toda a literatura fantástica. Outro problema que podemos referir prende- se com as obras que o autor cita, que não vão cronologicamente além de Edgar Allan Poe, não abrangendo trabalhos do século XX.65

Depois de Todorov, surgiram várias outras obras em que os autores tentam definir e caracterizar a literatura fantástica. Rosemary Jackson publicou Fantasy: The Literature of Subversion em 1981; T. E. Apter publicou Fantasy Literature: An Approach to Reality em 1982; Kathryn Hume publica Fantasy and Mimesis em 1985, em 1997, John Clute e John Grant publicaram The Encyclopedia of Fantasy. Fantasy: The Liberation of Imagination, de Richard Mathews, foi lançado em 2002 e, em 2005, Lucie Armitt lança Fantasy Fiction: An Introduction. Cada uma destas obras apresenta uma definição do que é a literatura fantástica. Infelizmente, por uma questão de economia, não nos poderemos debruçar sobre cada uma delas. Notamos, apenas, que a premissa em que todas convergem é esta: limitar a fantasia a uma categoria fixa e rígida é uma noção limitadora.66 Talvez seja esse o motivo de incluírem nas suas obras, caracterizando-as como fantasia, textos que não ocorreriam ao comum dos leitores deste género textual. Jackson dá o exemplo de Jane Eyre (Charlotte Brontë), Apter aponta The Scarlet Letter (Nathaniel Hawthorne) e Lolita (Vladimir Nabokov), Clute e Grant incluem

Hamlet (William Shakespeare) entre os seus exemplos.67

Existe, contudo, um autor que sugere uma definição bastante abrangente e que, em geral, é aceite pelos críticos. Falamos de Brian Attebery e da sua obra Strategies of Fantasy. Nesta obra, o autor define a fantasia como um “fuzzy set”. Isto quer dizer que as obras são caracterizadas da seguinte forma: “they are defined not by boundaries but by a center. A book

64 Tzvetan Todorov, The Fantastic: A Structural Approach, 1973, citado em “A Brief Overview of Tzvetan Todorov’s Theory of the Fantastic”, Owlcation.com (2016), disponível em https://owlcation.com/humanities/An-Overview-of-Tzvetan- Todorovs-Theory-of-the-Fantastic, acedido a 8-9- 2019.64 65 Idem, ibidem. 66 Andrew Raiment, “The Problem of Defining Fantasy Literature”, Academia.edu (2014), disponível em https://www.academia.edu/8819580/The_Problem_of_Defining_Fantasy_Literature. 66 67 Andrew Raiment, “The Problem of Defining Fantasy Literature”, Academia.edu (2014), disponível em https://www.academia.edu/8819580/The_Problem_of_Defining_Fantasy_Literature.

30 on the fringes may be considered as belonging or not, depending on one's interests. . . .

Furthermore, there may be no single quality that links an entire set".68

Para Attebery, a obra que está no centro do “fuzzy set” é The Lord of the Rings de Tolkien: “Tolkien’s form of fantasy (…) is our mental template (…). One way to characterize the genre of fantasy is the set of texts that in some way or other resemble The Lord of the Rings”.69

Na linha de Tolkien, que propõe que uma obra de fantasia deve abarcar recuperação, escape e consolação, Clute defende um modelo estrutural para as obras fantásticas:

A fantasy text may be described as a story of an earned passage from bondage – via a central recognition of what has been revealed and of what is about to happen, and which may involve a profound metamorphosis of protagonist or world or both – into eucatastrophe, where may occur, just governance fertilizes the barren land and

there is a healing.70

Esta obra é particularmente pertinente no âmbito deste trabalho, pois aborda, entre os textos mencionados, obras de literatura fantástica infanto-juvenil, como Fire and Hemlock, de Diana Wynne Jones.71 A proposta de Attebery sugere, então, uma categorização a partir de elementos que não têm, necessariamente, de ser partilhados por todas as obras de fantasia. Explicando o conceito de “fuzzy set” de Attebery, Katherine Fowkes diz o seguinte, a respeito de filmes de fantasia:

A core of fantasy themes and ideas exists at some metaphorical center, and movies may share many or few of these commonalities such as magic, physical transformations, or the ability to fly. A host of iconography helps to distinguish fantasy from other genres, particularly science fiction and horror, so that when we encounter wizards, crystal balls, flying brooms, fairies, magic talismans, or talking animals, we tend to assume fantasy

68 Gillian Adams, “A Fuzzy Genre: Two Views of Fantasy”, Muse.jhu.edu, disponível em https://muse.jhu.edu/article/246440/summary, acedido a 8-9- 2019. 69 Bian Attebery, Strategies of Fantasy, 70 John Clute e John Grant, “Fantasy”, Encyclopedia of Fantasy (1997), disponível em http://sf- encyclopedia.uk/fe.php?nm=fantasy (2012), acedido a 1-10-2019. 71 Idem, ibidem.

31 unless otherwise informed. But a movie doesn’t necessarily need to feature any or all of these to be considered fantasy.

O mesmo pode aplicar-se a romances. Se tomarmos como exemplos as obras que analisaremos no ponto 2.3., com o objectivo de fazer um apanhado das estratégias de tradução utilizadas relativamente a dificuldades que surgiram na tradução de Sandry’s Book, veremos que em todas elas encontramos alguns destes elementos, mas que nem todos os elementos surgem em todas as obras. Temos vassouras voadoras, bolas de cristal e talismãs mágicos em Harry Potter, animais falantes em As Crónicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda- Roupa, n’O Hobbit encontramos o feiticeiro Gandalf, para nomear apenas alguns exemplos. E claro está, a obra que traduzi também inclui alguns, sendo a magia o principal.

De certo modo complementando o sistema de Attebery, surge a classificação de Farah Mendlesohn, na obra Rhetorics of Fantasy:

This book is not about defining fantasy. The debate over definition is now long-standing and a consensus has emerged, accepting as a viable “fuzzy set” a range of critical definitions of fantasy. It is now rare to find scholars who choose among Kathryn Hume, W. R. Irwin, Rosemary Jackson, or Tztevan Todorov: it is much more likely they will pick and choose amomng these and other “definers” of the field according to the area of

fantasy fiction, or the ideological filter in which they are interested.72

Mendlesohn explora o género fantástico partindo de estratégias retóricas comuns e, neste sentido, propõe quatro categorias de fantasia, fazendo, contudo, a seguinte ressalva:

This book is not intended to create rules.

Its categories are not intended to fix anything in stone.

This book is merely a portal into fantasy, a tour around the skeletons and exoskeletons of

genre.73

72 Farah Mendlesohn, Retorics of Fantasy, Wesleyan University Press (2013), XIII. 73 Farah Mendlesohn, Retorics of Fantasy, Wesleyan University Press (2013), citado em Sally Goodger, “EHR 3600: Brian Attebery's "Fuzzy Set"”, Everybody Hates Rand Blog (2019), disponível em https://www.everybodyhatesrand.com/blog/2019/2/6/ehr-3600-brian-atteberys- fuzzy-set, acedido a 8-9-2019.

32 Esta categorização baseia-se na forma como os autores constroem as obras e no modo como os protagonistas e os leitores reagem aos mundos de fantasia nelas apresentados.

I believe that the fantastic is an area of literature that is heavily dependent on the dialectic between author and reader for the construction of a sense of wonder, that it is a fiction of consensual construction of belief. (...) A fantasy succeeds when the literary techniques

employed are most appropriate to the reader expectations of that category of fantasy.74

As categorias propostas por Mendlesohn são “portal-quest”, “immersive”, “intrusion” e “estranged/liminal”.

These categories are determined by the means by which the fantastic enters the narrated world. In the intrusive fantasy the fantastic enters the fictional world, in the estranged fantasy the magic hovers in the corner of our eye, portal fantasies invite us through into

the fantastic, while the immersive fantasy allows us no escape.75

No caso de obras de fantasia categorizadas como “portal quest”, podemos incluir O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, uma vez que esta categoria se caracteriza pelo facto de o protagonista, que vive no mundo real, por algum motivo ir parar a um mundo de fantasia. O Ciclo da Herança é uma obra de fantasia imersiva, pois o protagonista já se encontra no mundo fantástico e o conflito acontece dentro deste e segundo as regras que lhe são inerentes. O mesmo se pode dizer de Sandry’s Book. Os primeiros capítulos de Harry Potter e a Pedra Filosofal podem ser considerados fantasia intrusiva, pois o fantástico provoca caos e perturba a ordem normal da realidade. A categoria de “estranged/liminal fantasy” é, talvez, a mais difícil de explicar. Em histórias nesta categoria, o que causa estranheza ou motivo de alarme não são as origens mágicas (fantásticas) dos acontecimentos, mas sim os acontecimentos propriamente ditos: "The tone of the estranged fantasy could be described as blasé. Overwhelmingly the best

74 Farah Mendlesohn, Retorics of Fantasy, Wesleyan University Press (2013), XIII. 75 Farah Mendlesohn, “Toward a Taxonomy of Fantasy”, disponível em https://www.academia.edu/6730658/Taxonomies_of_Fantasy_final_version, acedido a 12-9-2019.

33 examples are Aiken’s Armitage family, who remain remarkably calm when unicorns appear on their lawn. "But Today is Tuesday." The tone of Aiken’s work is matter of fact, casual."76

Como pudemos constatar, o conceito de fantasia é alvo de vasto debate. Uma das conclusões que se podem retirar desse debate é a de que, dada a complexidade do termo e a incapacidade de uniformizar categorias e encaixá-las à força em modelos pré-definidos, os autores recentes preferem afastar-se de definições e procuram antes outras formas de abordar o fantástico. No caso de Mendlesohn, bem como de Attebery, o que é interessante é que partem da construção do género com base na linguagem utilizada nas obras, e, sobretudo, da dialéctica entre autor e leitor.

Pouco a pouco, esta literatura vem ganhando importância no mundo académico, embora mais lentamente do que acontece entre os seus ávidos leitores. A fantasia está, finalmente, a caminho de se tornar uma área de estudo tão válida como qualquer outra – e nisso, pelo menos, todos estão de acordo.

Embora tanto o conceito de LIJ como o de literatura fantástica suscitem debate quanto a variadíssimos aspectos, o facto é que a leitura desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e crescimento do leitor a vários níveis – pessoal, emocional, académico, ético e moral, entre outros. Isto é ainda mais relevante no que diz respeito a leitores mais jovens, com as mentes e mentalidades ainda em formação. Posto isto, e apesar do debate que possa existir em torno destes dois géneros, uma coisa é certa: quanto maior for o repertório de obras disponíveis, mais terá o jovem leitor por onde escolher, pois, tal como existe literatura para todos os gostos no mundo dos adultos, é importante que também assim seja no mundo das crianças e jovens. Nesta medida, a tradução tem um papel fundamental. E, sendo que os contextos de partida e de chegada são realmente importantes da perspectiva do tradutor, entender o modo como as obras que traduz são encaradas, quer pelos leitores, quer pelos académicos, mostra a importância de uma articulação entre o campo dos estudos de tradução com a área dos estudos literários. Foi o que tentei fazer ao incluir no relatório esta secção.

A obra que seleccionei para o trabalho de projecto ilustrado neste relatório contém, sem dúvida, fortes elementos fantásticos, sendo a magia e a forma de lidar com dons mágicos o cerne do enredo, pelo que estou convicta de que pode ser classificada como literatura fantástica. Estruturalmente, segue a linha de Tolkien ilustrada acima, à recuperação segue-se o escape e,

76 Idem, ibidem.

34 finalmente, a consolação. Vejamos como, baseando-nos na citação de Clute que referenciámos acima:

“a story of an earned passage from bondage – via a central recognition of what has been revealed and of what is about to happen” – Todos os protagonistas estavam, de algum modo, como que presos. Briar estava, literalmente, na prisão, Sandry, trancada numa sala, Daja encontrava-se à deriva numa jangada e Tris fora enviada, contra vontade, para uma escola onde não conseguia adaptar-se. A revelação prende-se com o facto de que todos têm o dom da magia. O que vai acontecer é o problema que, juntos, têm de resolver.

“[…] and which may involve a profound metamorphosis of protagonist or world or both – into eucatastrophe, where marriages may occur, just governance fertilizes the barren land and there is a healing.” - Essa resolução do problema em conjunto quebra as barreiras entre todos, fazendo com que comecem a construir uma amizade sólida, libertando-se gradualmente dos seus traumas e encontrando um lugar onde pertencem, um novo lar, onde poderão crescer e desenvolver os seus dons em segurança e aceitação.

Segundo as categorias propostas por Mendlesohn, será uma obra de fantasia imersiva, já que a narrativa decorre num mundo alternativo, criado pela autora, que não contacta nunca com o mundo real em que vivemos.

As personagens que a protagonizam encontram-se no limiar entre a infância e a adolescência, pelo que também acredito que é a este público que a obra se destina. Assim, para efeitos deste trabalho, consideremo-la como uma obra de literatura fantástica infanto-juvenil, pois a narrativa situa-se num universo que não existe na realidade, onde a magia é a explicação para vários fenómenos, entre os quais alguns climatéricos, e a solução para vários problemas do quotidiano. Segundo a editora, Scholastic Press, o conteúdo destina-se a um público alvo que estude do 6º ao 8º anos, portanto, na faixa etária entre os dez e os quinze anos, dando a margem para diferenças de idade no início da escolaridade.77 Mas, mais do que isso, encaremo- la como uma obra enriquecedora, com uma forte componente didáctica associada aos dons mágicos de cada personagem, ensinando noções de fiação, meteorologia, jardinagem e metalurgia. É uma obra que poderá contribuir para o desenvolvimento pessoal, social e académico do leitor, na medida em que aborda temas importantes, como a amizade, o respeito pelo outro, e cujas personagens são multidimensionais e cativantes.

77 “Sandry’s Book”, Scholastic Press, disponível em https://www.scholastic.com/teachers/books/circle-of- magic-1-sandry-s-book-by-tamora-pierce/, acedido a 2-19-2019.

35

36

2.3. Cultura de Chegada, Normas de Tradução e Público Alvo

Depois desta digressão pelos estudos literários, regressemos aos estudos de tradução e debrucemo-nos sobre tópicos indispensáveis à caracterização do texto e seus contextos, mais concretamente, a relação que existe entre o público-alvo e as normas de tradução vigentes no contexto de chegada e a sua relevância perante uma tradução.

Entende-se por “cultura de chegada” a cultura que acolhe um texto traduzido. Segundo Gail Robinson, a cultura engloba dois níveis, o externo (no qual se incluem a língua, os comportamentos e hábitos, assim como as suas representações, i.e., arte, folclore, artefactos) e o interno (ideias). É neste nível interno, associado às ideias, que se incluem as crenças e os valores partilhados por um grupo de indivíduos.78 A cultura, então, funciona como um sistema partilhado de interpretação da realidade e de organização da experiência. Isto é, indivíduos que partilham e pertencem à mesma cultura tendem a percecionar e organizar os seus contactos com a realidade de forma semelhante. Não quer isto dizer que todos os indivíduos de um grupo específico compreendam da mesma forma esses contactos, mas sim que apresentam padrões de comportamento mais ou menos semelhantes que permitem identificar um grupo no qual se enquadram.79

Ao encontro desta definição de cultura como um sistema vem a Teoria dos Polissistemas, associada aos estudos descritivos de tradução, já abordados no ponto 2., e desenvolvida pelo israelita Itamar Even-Zohar, nos anos 70. Segundo esta teoria, “cada cultura é um sistema composto por diversos subsistemas, que, por sua vez, está em ligação com outros sistemas e subsistemas. Ao interagirem e relacionarem-se entre si, estes sistemas provocam um movimento constante entre a periferia e o centro”.80 O autor considera que o texto traduzido “interage com os sistemas da língua de chegada, tais como as normas sociais, as convenções literárias e o contexto histórico”.81 Gideon Toury, que também foi mencionado no ponto 2., foi influenciado pela Teoria dos Polissistemas e vê o texto traduzido como um produto da cultura de chegada, afastando-se dos modelos prescritivos.82 Esta posição do texto traduzido no sistema social e literário da cultura de chegada é que influenciará as estratégias seleccionadas pelo

78 Gail Robinson, Crosscultural Understanding, Hertfordshire: Prentice Hall International (1988). Citado em Pedro Costa, “Tradução, Cultura e Globalização”, Faculdade de Letras da Univ. do Porto (2013). 79 Pedro Costa, “Tradução, Cultura e Globalização”, Faculdade de Letras da Univ. do Porto (2013), 7. 80 Ana Teresa Bento da Gama Prata, Tradução de Literatura Infantil e Juvenil: Análise de duas traduções portuguesas de Charlie and the Chocolate Factory, de Roald Dahl, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Univ. de Coimbra (2010), 10. 81 Idem, ibidem. 82 Idem, ibidem.

37 tradutor e a perspectiva sob a qual abordará a tradução. Voltamos, então, às noções de adequação e aceitabilidade propostas por Toury e explicadas no ponto 2. Deverá o tradutor optar por uma tradução em adequação, privilegiando o contexto de partida e as normas nele vigentes, ou de aceitabilidade, dando mais importância ao contexto de chegada e às suas normas? Ou será que não deve privilegiar nenhuma das abordagens, procurando, sim, alcançar um equilíbrio entre ambas, oscilando entre adequação e aceitabilidade conforme os os obstáculos que forem surgindo? Esta foi a perspectiva sob a qual traduzi Sandry’s Book, tentando atingir esse equilíbrio.

Esta reflexão sobre a abordagem que se vai seguir é importante no contexto da tradução de LIJ, pois cabe ao tradutor decidir se vai transmitir à criança/ao jovem elementos que lhe são estranhos ou desconhecidos, ou criar adaptações para lhe tornar o texto mais familiar. Embora a idade do leitor e, por conseguinte, o seu estádio de desenvolvimento e a sua capacidade de aceitar o estranho ou estrangeiro seja um factor a considerar, é também relevante ter em mente a época e o contexto em que vivemos actualmente. Os avanços tecnológicos e o advento das redes sociais transformam o mundo num lugar cada vez mais globalizado, o que dilui as fronteiras entre culturas. As crianças e os jovens têm, portanto, cada vez mais acesso a produtos com características estrangeiras – exemplos disso são os desenhos animados em língua estrangeira (embora legendados) e os videojogos, os quais, muitas vezes, se fazem acompanhar de termos noutras línguas que acabam por ser usados como empréstimos nas línguas de chegada.83

Cabe, portanto, ao tradutor estar ciente das normas vigentes na cultura de chegada, mais especificamente da forma como as marcas culturais estrangeiras são vistas e aceites, funcionando como um mediador cultural, uma ponte entre culturas, conhecedor não só do que é aceite de um modo geral, mas também ao nível do público alvo a que se destina uma tradução. Como já referi no ponto 2., o público-alvo de Sandry’s Book compreende uma faixa etária entre os 10 e os 15 anos, pelo que engloba vários níveis de desenvolvimento. Neste aspecto, a solução que propus, na tradução, foi um compromisso entre algumas adaptações e alguns empréstimos, como veremos no capítulo III do relatório.

No que diz respeito à utilização de estratégias de “adequação” ou “aceitabilidade”, as normas variam de cultura para cultura e também de época para época. Prova disso é a forma como são tratados os conteúdos audiovisuais importados, que podem ser veiculados através de

83 Raquel Sofia Lopes Espada, Tradução e Acessibilidade: Relatório de Estágio Curricular na Electrosertec, Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa (2018), 113.

38 dobragem ou legendagem. Em países como Espanha, Alemanha e Itália verifica-se a prevalência da dobragem em vez da legendagem, vestígio das medidas proteccionistas tomadas com a finalidade de promover os regimes fascistas, reforçando a ideia de unidade nacional, transmitida através da promoção da língua nativa em detrimento de outras.84 Em Portugal, a legendagem é a opção mais usual, devido aos elevados custos da dobragem.85 Ainda assim, esta última é utilizada, frequentemente, em filmes ou desenhos animados (destinados a crianças e jovens), como é o caso dos filmes da Walt Disney, até mesmo os mais recentes. Como vemos, é obviamente importante que um tradutor tenha noção das normas de tradução de cada cultura de chegada, em especial daquelas aplicáveis a cada tipo de conteúdos e respectivos destinatários – embora a legendagem seja a forma mais utilizada em Portugal para veicular a tradução de filmes, aqueles destinados a crianças e jovens são uma excepção, havendo quase sempre uma versão dobrada, para além da versão legendada, o que poderá estar relacionado com a aquisição, ou não, da leitura.

No contexto da LIJ, surgem vários exemplos ilustrativos do papel do tradutor como mediador cultural, assim como da evolução que a tradução deste tipo de literatura tem sofrido nos últimos tempos. Como vimos no parágrafo anterior, o contexto político influencia, muitas vezes, as normas de tradução das culturas de chegada. Se isto é verdade, também o é o facto de a globalização ter tido repercussões nessas normas, o que se traduz na utilização de estratégias de tradução diferentes daquelas usadas em décadas anteriores à actual.

A colecção infantil Anita é conhecida pela maioria dos portugueses. Criada em 1954 por Marcel Marlier e Gilbert Delahaye, os livros começaram a circular em Portugal a partir de 1966, publicados pela Verbo. A personagem principal, cujo nome original é Martine, tem o nome modificado em várias línguas – em Espanha é Martita; Debbie, nos EUA; Cristina, em Itália; e Anita, em Portugal, entre outros. Com mais de trinta títulos, a colecção foi reeditada em 2015 em Portugal, com uma diferença: Anita é, agora – ou talvez se deva dizer que sempre foi –, Martine. Em resposta ao Jornal Público, Joana Faneco, a responsável pelo marketing e pela comunicação da editora Zero a Oito, explica:

Esta mudança é uma estratégia global da editora Casterman, que pretende tornar a marca ‘Martine’ universal. Cada vez mais as crianças de todo o mundo estão unidas pelas

84 Catarina Duarte Silva de Andrade Xavier, Esbatendo o tabu: estratégias de tradução para legendagem em Portugal, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa (2009), 19. 85 Idem, ibidem.

39

mesmas histórias, pelos mesmos temas, pelos mesmos heróis de animação. Todas elas sabem quem é o Mickey, o Noddy e o Harry Potter. Esta razão, aliada ao conceito de ‘aldeia global’ em que vivemos actualmente, faz com que a decisão de voltar às origens

ganhe todo o sentido.86

Embora os responsáveis por esta nova edição pudessem não ter tido em conta a possibilidade de esta mudança afastar os adultos – e, portanto, potenciais compradores –, que guardam na memória uma ideia nostálgica da personagem associada ao nome Anita (vale a pena referir o movimento iniciado por Ricardo Araújo Pereira, intitulado “Não Mexam na Anita, Seus Badalhocos!”), o facto é que o principal motivo de Anita agora se chamar Martine se prende com o conceito de “aldeia global”. Na sua resposta ao Público, Joana Faneco faz referência a outras personagens do imaginário infantil e juvenil cujos nomes não foram nunca alterados: o rato Mickey, Noddy e Harry Potter, todas elas transversais a nacionalidades e culturas. Simon Casterman, descendente do fundador da editora-mãe da Martine, justifica assim a decisão:

Achámos que era altura de fazer algumas alterações na vida de uma das mais queridas figuras femininas da literatura para crianças. Muitos editores e tradutores com quem falámos concordaram que estava na altura de fazer uma nova tradução. (…) Duas gerações de leitores partilharam com grande entusiasmo as aventuras de Anita: agora é

altura de passar essas histórias à próxima geração.87

A nova geração a quem se pretende contar as aventuras de Martine é, ao contrário das anteriores, uma geração globalizada, familiarizada com línguas estrangeiras no ensino primário ou até antes, acostumada a usar a Internet através de computadores e tablets, perfeitamente capaz de assimilar e aceitar uma personagem com um nome estrangeiro, o que constitui uma marca da interculturalidade que vivemos actualmente. Esta interculturalidade deve, então, ser tida em conta por um tradutor. Seguramente, tive-a em conta ao traduzir Sandry’s Book, relativamente aos nomes das personagens.

86 Rita Pimenta, “A Anita Sempre se Chamou Martine”, Público (2015), disponível em https://www.publico.pt/2015/05/14/culturaipsilon/noticia/a-anita-sempre-se-chamou-martine-1695685 87 Idem, ibidem.

40 Curiosamente, existe um outro caso de reedição de uma colecção cujos protagonistas não viram os nomes alterados. Em Setembro de 2011, a Oficina do Livro publicou uma nova tradução da colecção Os Cinco, de Enid Blyton. Estes livros, que começaram a ser publicados em Portugal nos anos 60, contam as aventuras de um grupo de quatro crianças e um cão. Júlio, David, Ana, Zé e Tim – em inglês, Julian, Dick, Anne, George e Timmy – marcaram a infância de milhares de jovens portugueses.88

O que é interessante na publicação de novas traduções destas colecções é que, no caso da primeira, o nome da personagem principal foi alterado, ao passo que, no caso d’Os Cinco, os nomes continuam traduzidos. Saliente-se que Anita – ou Martine – é uma colecção de livros ilustrados, destinada, à partida, a uma faixa etária inferior àquela à qual se destinam os livros d’Os Cinco e, consequentemente, que se poderia pensar que os seus leitores, com menor conhecimento do mundo, estariam menos aptos a aceitar marcas estrangeirantes no texto.89 Esta questão – i.e., a tradução de nomes próprios, quer antropónimos, quer topónimos – é, aliás, bastante controversa, havendo autores que consideram que devem ser traduzidos, outros que acreditam que não devem e outros, ainda, que sugerem a tradução de alguns e não de outros. Na tradução de Sandry’s Book, regi-me por esta última abordagem. Esta questão será devidamente abordada adiante, no ponto sobre topónimos e no ponto sobre antropónimos, assim como nos pontos relativos ao mesmo assunto no capítulo III do relatório.

O público-alvo de uma tradução é, assim, o principal responsável pelas escolhas de um tradutor de literatura infanto-juvenil. Não é, porém, o único. É certo que a faixa etária do leitor tem influência nas estratégias utilizadas pelo tradutor. No entanto, é importante considerar que, na verdade, existem intermediários no processo da criação, publicação e aquisição de livros para e por crianças ou jovens. Efectivamente, os produtores da LIJ são os adultos e os consumidores são crianças e jovens. Quem decide quais os livros publicados e traduzidos também são os adultos, são os adultos que os traduzem, são, frequentemente, os adultos que os compram e, até, que os lêem em voz alta para as crianças. “A literatura tem como alvo a criança, mas o intermediário é sempre o adulto”.90 O facto de existirem intermediários torna a LIJ ambivalente, isto é, os livros devem agradar e ser aceites tanto por crianças e jovens como por adultos. O mesmo se passa com as traduções. As estratégias utilizadas pelo tradutor devem, por um lado, focar-se no leitor e na forma como este irá entender o texto e, por outro, no adulto que

88 “"Os Cinco", de Enid Blyton, regressam com cara nova”, Diário de Notícias (2011), disponível em https://www.dn.pt/artes/livros/interior/os-cinco-de-enid-blyton-regressam-com-cara-nova-1976378.html 89 Elvira Cámara Aguilera, “The Translation of Proper Names in Children’s Literature”, E-F@BULATIONS / E-F@BULAÇÕES (2008), disponível em https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4666.pdf 90 Ana Teresa Bento da Gama Prata, Tradução de Literatura Infantil e Juvenil: Análise de duas traduções portuguesas de Charlie and the Chocolate Factory, de Roald Dahl, Faculdade de Letras da Univ. de Coimbra (2010), 13.

41 o vai publicar, comprar e/ou ler. Isto poderá envolver algum malabarismo, conjugando os desejos e expectativas de leitura do público-alvo com as exigências dos intermediários. Na prática, este malabarismo traduz-se, por vezes, em estratégias de purificação, adaptação ou mesmo omissão, quando o contexto político, social, até religioso a isso obrigam. Purificação consiste na “sanitização” dos textos, despindo-os de elementos que podem não ser aceites pela cultura de chegada, tais como linguagem insultuosa/obscena, violência, ideologias, entre outros. Em alguns casos, como em países onde existem regimes totalitários, a purificação pode ser feita por exigência e sob vigilância dos governos, funcionando como um tipo de censura.91

Estratégias de adaptação cultural são aquelas que implicam mudanças com a finalidade de “ajustar um texto ao quadro de referências do leitor”.92 Alguns exemplos são, precisamente, e como já foi referido anteriormente, a tradução de topónimos e antropónimos, assim como a conversão de unidades de medida ou, ainda, o uso de equivalências (como provérbios). Se não existirem certas adaptações, o texto traduzido poderá ser de compreensão mais difícil para o leitor. Esta questão surgiu e destacou-se ao longo da tradução de Sandry’s Book, tanto ao nível dos topónimos, como dos provérbios e/ou expressões idiomáticas e, também, das unidades de medida. Ao mesmo tempo, adaptações excessivas apagarão as marcas de interculturalidade. Cabe ao tradutor tentar alcançar o equilíbrio e esse equilíbrio, isto é, a medida certa de adaptações, está associada à imagem que o próprio tradutor tem do que significa ser criança ou jovem. A preocupação com o excesso de adaptações ao longo da tradução levou-me a tomar a decisão de recorrer a empréstimos em vários casos, nomeadamente, mantendo a maioria dos antropónimos (ainda que pudesse tê-los traduzido), mantendo as expressões de gíria ou os provérbios criados pela autora e, também, as palavras novas que esta inventou. Isto não significa que não tenha recorrido a adaptações, quer usando estratégias de decalque, quer de utilização de equivalências (provérbios). Creio, desta forma, conseguir um compromisso entre adaptações e empréstimos, entre aproximações ao contexto de chegada e ao contexto de partida. Resumidamente, um compromisso entre aceitabilidade e adequação.

Em suma, ao traduzir LIJ, o tradutor deve ter em consideração não só as normas vigentes na cultura de chegada como, também, aquelas associadas à tradução desta literatura, de modo

91 Cecilia Alvstad, “Children’s Literature and Translation”, Handbook of Translation Studies Volume 1 (2010), disponível em https://benjamins.com/online/hts/articles/chi1. 92 “Tradução de Literatura Infantil”, Traduzir Literatura (2015), disponível em http://traduzirliteratura.blogspot.com/2015/04/traducao-de- literatura-infantil-por.html.

42 a tornar os textos mais facilmente aceites pelos destinatários e pelos adultos, intermediários no processo de publicação, tradução, aquisição e, muitas vezes, leitura das obras.

43 2.4. Especificidades na Tradução

Neste ponto abordaremos algumas características da literatura fantástica infanto-juvenil que devem ser especialmente tidas em conta no processo de tradução. Não afirmamos que essas características sejam exclusivas da literatura fantástica infanto-juvenil. Com efeito, muito do que se dirá neste ponto poderia aplicar-se a qualquer tradução literária. Também não pretendemos sugerir que sejam as únicas características relevantes na tradução deste tipo de literatura. Afirmamos, apenas, que os factores que iremos destacar foram linhas norteadoras da tradução de Sandry’s Book.

Segundo Tolkien, “it is at any rate essential to a genuine fairy-story […] that it should be presented as “true””.93 O mesmo se poderá dizer de uma história fantástica, já que, para este autor, as noções de “fairy-story” e de fantasia se sobrepõem. Para uma apreciação plena de uma obra de literatura fantástica, o leitor tem de conseguir mergulhar no seu mundo, vendo-o, ainda que apenas enquanto tem o livro nas mãos, como real. Para isso, é necessário que consiga activar a “willing suspension of disbelief”, ou “suspensão voluntária da descrença”.94 A expressão foi cunhada por Samuel Taylor Coleridge, em 1817, no capítulo XIV da sua Biographia literaria, onde explica em que medida ele e William Wordsworth contribuiriam para a obra Lyrical Ballads. Wordsworth teria uma contribuição ligada ao enaltecimento do quotidiano, enquanto que os esforços de Coleridge se dirigiam noutro sentido:

Directed to persons and characters supernatural, or at least romantic; yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment,

which constitutes poetic faith.95

Por outras palavras, o autor considera que, para o leitor desfrutar plenamente da obra que contenha elementos ou personagens sobrenaturais (ressalte-se que falamos de uma época já dominada pelo pensamento racional do Iluminismo e em que, com o Romantismo, se via ressurgir o interesse pelo místico, pelo mágico e pelo sobrenatural), este deveria,

93 J. R. R. Tolkien, “On Fairy Stories”, disponível em http://www.pathguy.com/ofs.html. 94 Tradução minha. 95 Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria (1817), Project Gutenberg (2004), disponível em http://www.gutenberg.org/files/6081/6081-h/6081-h.htm#link2HCH0014.

44 necessariamente, dispor-se a suspender a descrença naquilo que sabia ser apenas imaginário. Ao mesmo tempo, é função e dever do autor de obras com tais elementos impregná-las de verosimilhança, de maneira a torná-las suficientemente credíveis e coerentes a ponto de sugar o leitor para os seus universos. Neste sentido, Tolkien propõe um conceito diferente do cunhado por Coleridge, a ideia de “secondary belief”. Para Tolkien, a criação de uma “fairy-story”, com tudo o que isso implica, era como que uma extensão da criação divina. O autor seria, portanto, um subcriador de universos, ou “secondary worlds” segundo a terminologia de Tolkien.96

Few attempt such difficult tasks. But when they are attempted and in any degree accomplished then we have a rare achievement of Art: indeed narrative art, storymaking

in its primary and most potent mode.97

A ideia de “secondary belief” opõe-se, em certa medida, à de “willing suspension of disbelief”, pois Tolkien considera que, para se desfrutar de uma obra de fantasia, em vez de suspender a descrença, o que o leitor deve fazer é activar a crença secundária, isto é, acreditar no mundo secundário que lhe é apresentado, nas convenções desse mundo e, em suma, em tudo o que nele acontece e tomar isso como verdadeiro enquanto lê.

Como não é difícil de entender, este é um factor especialmente importante quando falamos de obras de literatura fantástica. E talvez aqui os leitores de LIJ (leia-se crianças e jovens) estejam em vantagem, uma vez que não estão tão condicionados como os adultos para reagir com cepticismo, ainda pertencentes ao mundo das brincadeiras e do “faz-de-conta”. “Children are capable, of course, of literary belief, when the story-maker's art is good enough to produce it”.98 Consequentemente, é obrigação do tradutor fazer brilhar essa arte sem corromper a verosimilhança da história. Mas como?

A resposta a esta pergunta reside na resposta a outra pergunta: como se escreve uma boa e, portanto, credível obra de literatura fantástica? O que distingue as melhores? Ora, para além de um excelente domínio da escrita – o que, aliás, é ingrediente indispensável a qualquer obra literária –, há algo mais que é imprescindível: “the story-maker proves a successful “sub- creator.” He makes a Secondary World which your mind can enter. Inside it, what he relates is “true”: it accords with the laws of that world. You therefore believe it, while you are, as it were,

96 J. R. R. Tolkien, “On Fairy Stories”, disponível em http://www.pathguy.com/ofs.html. 97 J. R. R. Tolkien, “On Fairy Stories”, disponível em http://www.pathguy.com/ofs.html. 98 J. R. R. Tolkien, “On Fairy Stories”, disponível em http://www.pathguy.com/ofs.html.

45 inside”.99 Um autor de literatura fantástica precisa, então, de ser imensamente criativo, não só no que toca à criação de mundos alternativos ou de elementos fantásticos, mas também na medida em que esses mundos ou elementos têm de ser credíveis. O tradutor, por seu turno, deve tomar consciência do efeito estético que o texto de partida produz e tentar reproduzi-lo no texto de chegada, de modo a escolher as estratégias que irá utilizar na tradução. Deve, portanto, traduzir essa criatividade, transformando o texto de chegada em algo semelhante àquilo que o autor pretende transmitir com o texto de partida. Como argumenta Rebecca Handley no seu estudo sobre a tradução da criatividade em Harry Potter:

Um texto criativo pressupõe que a ação do autor sobre o texto se torna visível aos olhos do leitor. Assim, o autor “traduziu” na língua em que escreve o seu próprio pensamento e a sua forma de descrever o mundo e as suas categorias, criando uma espécie de outra

língua.100

Deste modo, a ligação entre um texto literário e a criatividade encontra-se no “enraizamento do sentido do texto e nos desvios linguísticos que foram introduzidos”.101 Se tivermos em conta que “cada língua resulta de formas de pensar os objetos, o espaço e o tempo, de forma diferenciada”,102 e que o autor introduz elementos criativos através da manipulação da língua, o que colocará o leitor em contacto com o desconhecido na forma de novas criações linguísticas associadas a novos sentidos, compreenderemos que o tradutor terá em mãos um enorme desafio ao traduzir esses desvios linguísticos de modo a transmitir o mesmo sentido e que, inevitavelmente, haverá perdas, embora também possa haver ganhos. O processo de tradução resulta, então, numa “aproximação” e não numa “exactidão”.103 Significa, também, que as tentativas de tradução de elementos linguísticos associados à criatividade podem intensificar a estranheza no texto de chegada. Se, por um lado, a estranheza no texto de chegada pode perturbar a fluidez da leitura e, no caso da literatura fantástica, interferir com a suspensão da descrença (ou da crença secundária, traduzindo livremente a expressão cunhada por Tolkien), por outro lado, uma obra de literatura fantástica já introduz, no texto original, elementos estranhos ao leitor, pelo que creio não ser descabido afirmar que o tradutor tem,

99 Idem, ibidem. 100 Rebecca Handley, Tradução da Criatividade nas Obras de Harry Potter, Tese de Mestrado, Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa (2018), 10. 101 Idem, ibidem 102 Idem, ibidem.

103 Idem, ibidem.

46 nestes casos, alguma margem de liberdade. Apesar dessa margem, deve, naturalmente, ser coerente nas estratégias que utiliza para traduzir a criatividade, pesando, também, as normas da cultura de chegada, a faixa etária a que a tradução se destina e, em geral, a aceitação, ou não, do estranho por parte da cultura de chegada e dos leitores.

Um exemplo das diferentes abordagens na tradução de literatura fantástica infanto-juvenil são as traduções de Harry Potter. As estratégias de tradução diferem de língua para língua e até dentro da mesma língua, como é o caso da tradução para português europeu e português do Brasil, ou das adaptações que sofreu a edição americana destas obras. A tradutora de Harry Potter para português europeu, Isabel Fraga, optou por manter a maioria dos nomes como aparecem no original104, usando a estratégia do Empréstimo, ao passo que Lia Wyler, a tradutora para português do Brasil, optou por criar, ela própria, equivalentes na língua de chegada. No caso das versões inglesas, um exemplo que salta à vista é a diferença no título do primeiro livro, sendo que, em inglês britânico, é Harry Potter and the Philosopher’s Stone, enquanto que, em inglês americano, é Harry Potter and the Sorcerer’s Stone. Isto demonstra a importância do contexto de chegada. Se o contexto de chegada pesa ao ponto de se alterar um título, mesmo quando se trata de um texto destinado a um público-alvo que fala a mesma língua dos leitores do texto original, mais peso terá no que respeita a traduções, portanto, a públicos- alvo cujas culturas se distanciem mais daquela dos leitores do texto de partida.

As abordagens são bastante diversificadas, podendo prevalecer o empréstimo, ou a tradução (que pode implicar uma recriação) total ou quase total dos neologismos criados pelo autor, ou, ainda, um equilíbrio entre ambas estas posições, traduzindo-se alguns e outros não. Por exemplo, em Harry Potter vemos que, na tradução portuguesa, a palavra “muggle” é usada como empréstimo. Já na tradução brasileira, a tradutora criou uma palavra para substituir esse termo: “trouxa”. O que é importante relevar é que, qualquer que seja a posição tomada pelo tradutor, esta deve ser coerente.

Na grande maioria dos casos, a criatividade nas obras de literatura fantástica traduz-se na presença de neologismos, que podem ser de origem morfológica – i.e., criação de novas palavras a partir de palavras já existentes, quer por aglutinação, quer por justaposição, quer por derivação, entre outras –, ou relacionados com aspectos temáticos – ou seja, criação de palavras inteiramente novas, para denominar conceitos novos da imaginação do autor, como é o caso das línguas criadas por Tolkien ou Christopher Paolini, em O Senhor dos Anéis e O Ciclo da

104 Idem, ibidem.

47 Herança, respectivamente, ou de nomes de países e cidades, rios, etc.. Optando por traduzi-las, o tradutor pode recorrer às mesmas estratégias de criação, originando novas palavras também na língua de chegada. Um exemplo disso é o instrumento da saga Harry Potter que tem como função avisar o utilizador da aproximação de alguém indesejado: “sneakoscope”, amálgama da palavra “sneak” (aproximar-se sub-repticiamente) com “telescope” (“telescópio”, que foi traduzida para português europeu como “avisoscópio”)105. Também Middle , o continente onde se desenrolam as aventuras escritas por Tolkien, foi traduzido para Terra Média. Já Alagaësia, o continente criado por Paolini para o Ciclo da Herança, não foi traduzido, pelo menos, para português. Estes exemplos ilustram as posições que se podem tomar perante a tradução de criatividade em obras de literatura fantástica, assim como os seus resultados.

Como vimos, a activação da crença secundária e a tradução da criatividade são dois factores que estão intimamente ligados. Nessa ordem de pensamento, surgiram três aspectos na tradução de literatura fantástica infanto-juvenil que se revelaram bastante preponderantes ao longo da tradução de Sandry’s Book. Para uma melhor compreensão das minhas opções, que apresentarei no terceiro capítulo deste relatório, impôs-se abordar estes aspectos de um modo geral, ilustrando com exemplos os problemas que poderiam levantar, e levantaram, ao longo da tradução. Assim, são eles:

- A questão da toponímia e dos nomes de instituições;

- A questão dos antropónimos;

- A variação diastrática, nomeadamente, as expressões de calão e gíria específicas do universo das obras.

No que diz respeito aos exemplos ilustrativos, recorrerei às seguintes obras:

- Saga Harry Potter, de J. K. Rowling;

- O Hobbit, de J. R. R. Tolkien;

- As Crónicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis;

- O Ciclo da Herança, de Christopher Paolini.

Embora pudesse ter recorrido a outras obras de literatura fantástica, seleccionei estas por três motivos. O primeiro está relacionado com o facto de se tratar de obras que conheço bem. O segundo prende-se com a faixa etária a que as obras se destinam, que é semelhante àquela a

105 Idem, ibidem.

48 que se destina Sandry’s Book. O terceiro diz respeito à data das traduções. À excepção d’O Hobbit, todas são traduções já realizadas no séc. XXI, pelo que se depreende que as abordagens sejam adequadas ao contexto de chegada actual em Portugal. A tradução d’O Hobbit foi também utilizada pois verifiquei que, nas reedições mais recentes, se mantém inalterada.

Analisemos, então, cada uma destas questões separadamente.

2.4.1.A Questão da Toponímia e dos Nomes de Instituições

Toponímia é o ramo da onomástica que estuda os nomes próprios de lugares. Trata-se de uma área da linguística intrinsecamente relacionada com a geografia, história, arqueologia e religião, uma vez que os topónimos, frequentemente, têm origem em fenómenos ou formações geográficas, episódios históricos ou mesmo mitológico-religiosos. Na sua classificação morfológica, podem ser formados de três maneiras:

a) Topónimos simples, i.e., formados apenas com um elemento. Exemplos: Lisboa, Londres, Roménia. b) Topónimos complexos, i.e., formados com dois ou mais elementos distintos. Exemplos: Costa do Marfim, Serra Nevada, Linda-a-Velha. c) Topónimos compostos, i.e., formados através da combinação de vários elementos. Exemplos: Portalegre, Budapeste, Guadiana.

Nos mundos das obras de literatura fantástica abundam, obviamente, topónimos dos mais diversos tipos, desde os nomes de continentes, países, cidades, lagos, rios e montanhas, mares e oceanos, castelos, cabos e baías, desfiladeiros, florestas, entre outros. Estes topónimos podem ser criados de duas formas. Uma delas é através do uso da língua do autor, com palavras já existentes que passam a designar algo diferente (por exemplo, Middle-earth106, Hogsmead107, este último formado através das palavras “hog” (javali) e “meade” (palavra que pode significar “meadow” (prado) ou “mead” (hidromel)108). A segunda forma de criação de topónimos é

106 Continente onde se desenrolam as aventuras narradas em O Hobbit e O Senhor dos Anéis, entre outros. 107 Aldeia perto da Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwards, universo da saga Harry Potter. 108 “Last name: Meade”, Database, https://www.surnamedb.com/Surname/Meade

49 através de palavras inventadas e criadas pelo próprio autor, não existindo na língua em que escreve (por exemplo, Narnia, Alagaësia, Gondor).

Como abordar, então, a tradução destes nomes?

Vejamos alguns exemplos:

I) Em Eragon, tradução de Ândrea Alves Silva109, os topónimos foram praticamente todos inventados por Paolini e utilizados na forma original na tradução. Alguns exemplos são Alagaësia (o continente onde se desenrola a narrativa), Urû’baen (a capital), Ellesméra (a capital do reino dos elfos).

II) Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, tradução de Ana Falcão Bastos,110 também encontramos alguns casos semelhantes ao exemplo acima, como Cair Paravel (castelo onde reinam os reis de Nárnia), Beruna (cidade situada no local onde se juntam dois rios de Nárnia).

III) Na saga Harry Potter, tradução de Isabel Fraga, um exemplo como os anteriores é Hogsmeade111 (a única vila habitada exclusivamente por feiticeiros, situada nas proximidades de Hogwarts).

IV) Voltando a O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, podemos ainda encontrar exemplos de topónimos que foram traduzidos, como a “Mesa de Pedra” (“Stone Table”, onde Aslam é sacrificado pela Feiticeira Branca) ou o “Grande Rio” (“Great River”).

V) E regressando a Eragon, logo no primeiro capítulo, deparamo-nos com “The Spine”, uma cordilheira cujo nome foi traduzido para “A Espinha”.

VI) Mais uma vez em Nárnia, repare-se na acentuação do primeiro «a», na tradução portuguesa, o que não se verifica no original.

Depois de analisar os exemplos acima, podemos concluir que são três as estratégias utilizadas no que à tradução de topónimos diz respeito. Nos exemplos I), II) e III) verificamos o uso de uma estratégia de “Empréstimo”, que consiste na utilização de termos do texto de partida no texto de chegada tal e qual como surgem.112

109 Christopher Paolini, Eragon, Vila Nova de Gaia: Edições Gailivro (2005). 110 C. S. Lewis, As Crónicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Lisboa: Editorial Presença (2005). 111 J. K. Rowling, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Editorial Presença (2002). 112 Vinay e Darbelnet, Comparative Stylistics of French and English, Amsterdam: John Benjamins Publishing Company (1995).

50 A estratégia que se verifica nos exemplos IV) e V) é diferente da dos exemplos anteriores. Trata-se de uma estratégia que consiste na tradução exacta das expressões (topónimos), ou seja, o “decalque”.113

Por fim, no exemplo VI), observa-se uma adaptação, isto é, uma transformação da língua de partida para a língua de chegada, mais concretamente, a acentuação do primeiro «a», passando de “Narnia” a “Nárnia”, de modo a clarificar a forma como a palavra deve ser pronunciada.

Quando falamos dos nomes de instituições – ou até dos nomes de estabelecimentos, como pubs, estalagens, casas, entre outros –, as opções implicam estratégias semelhantes, embora a sua utilização seja diferente de língua para língua – ou até na mesma língua. Observemos alguns exemplos, ordenados por estratégias:

Empréstimo

VII) Na tradução portuguesa da saga Harry Potter, no que diz respeito aos nomes de instituições e estabelecimentos (entre outros), a tomada de posição da tradutora oscila entre o empréstimo e o decalque. Alguns exemplos de empréstimo são “Hogwarts”, que se mantém, assim como os nomes das quatro equipas da escola: “Gryffindor”, “Hufflepuff”, “Ravenclaw” e “Slytherin”. No caso das equipas, perde-se a conotação que os nomes transmitem, caso o leitor não seja fluente em inglês. “Slytherin” é uma homofonia com o verbo “to slither”, que significa rastejar como uma cobra, símbolo desta equipa. “Ravenclaw” significa “garra de corvo”. “Hufflepuff” remete para os sons que alguém faz quando ofega e “Gryffindor” poderá estar associado ao grifo, um animal que simboliza nobreza e coragem.

Decalque

VIII) Já os nomes de instituições como “The Ministry of Magic”, “The Death Eaters” ou “Dumbledore’s Army”114 foram todos traduzidos, “Ministério da Magia”, “Devoradores da Morte” e “Exército de Dumbledore”. Estabelecimentos como “The Three Broomsticks”, “The Hogshead” ou “The Leaky Cauldron” também foram traduzidos: “As Três Vassouras”, “O Cabeça de Javali” e “O Caldeirão Escoante”, respectivamente.

113 Idem, ibidem. 114 J. K. Rowling, Harry Potter e a Ordem da Fénix, Editorial Presença (2003).

51 Adaptação

IX) Na tradução brasileira de Harry Potter, vemos uma abordagem diferente relativamente a alguns nomes que Isabel Fraga usou “emprestados”, tendo a tradutora tentado transmitir a conotação através da criação de nomes equivalentes em português. “Gryffindor” é “Grifinória”, “Ravenclaw” é “Corvinal”, “Hufflepuff” “Lufa-Lufa” e “Slytherin” “Sonserina”. “Quidditch”, o jogo dos feiticeiros cujo nome Isabel Fraga manteve, foi traduzido para “Quadribol”, pelo facto de ser jogado com quatro bolas.

X) O mesmo se verifica na tradução francesa, na qual “Hogwarts” também foi traduzido, passando a ser “Poudlard”. As equipas são “Gryffondor”, “Poufsouffle”, “Serdaigle” e “Serpentard”.

Como podemos constatar, depois de analisar os exemplos apresentados, as traduções em que existem mais adaptações são aquelas em cujos países predomina a dobragem em detrimento da legendagem, ou seja, em que existe uma tendência mais domesticante. No caso português, embora existam alguns decalques, existem muitos empréstimos também, o que pode, por um lado, significar perdas, uma vez que a conotação poderá não ser tão clara para o leitor, mas significa também que o leitor tem, à partida, maior abertura para aceitar termos estrangeiros.

52 2.4.2.A Questão dos Antropónimos

Muito se tem discorrido sobre este assunto, resumindo-se o debate a uma ideia simples relativamente aos nomes próprios, ou antropónimos: traduzir ou não traduzir, eis a questão. Por um lado, existe a ideia de que os nomes são “ilhas de repouso”, isto é, fragmentos que passam sem alterações do texto de partida para o texto de chegada.115 Nesta ordem de ideias, Riitta Oittinen advoga a anti-localização, considerando o uso de empréstimos por parte do tradutor como uma mais-valia. “The translator emphasizes the fact that the story is really situated in a foreign country, in a foreign culture, letting the child readers learn new things about new cultures, educating the children about international themes”.116 Segundo a autora, a necessidade de traduzir elementos estrangeiros – como antropónimos – está ligada ao receio do adulto de que a criança, ou o jovem, não tenha conhecimentos suficientes de línguas estrangeiras ou culturas que não a sua e que, portanto, não seja capaz de assimilar esses mesmos elementos. Ora, actualmente, esta posição, ou este receio, não se justifica, uma vez que

As crianças e os jovens vivem hoje numa era tecnológica, de grande mobilidade e de fácil acesso a culturas diferentes, nomeadamente através da televisão, do cinema e da internet, e, por essa razão, têm algum conhecimento sobre outras culturas e a forma como vivem e pensam as pessoas que as habitam e, portanto, aspetos como os nomes próprios das personagens, a toponímia, a gastronomia e as tradições culturais na literatura infanto-

juvenil não apresentam, muitas vezes, estranheza ao leitor.117

Por outro lado, e como aponta Lincoln Fernandes, “names can function to convey semantic, social semiotic and sound symbolic meaning(s) directly from the writer to the reader in relation to, for instance, a character, place, or object being referred to in the narrative”.118 Efectivamente, muitas vezes surgem exemplos de substantivos comuns que são usados como nomes próprios para designar determinada personagem. Temos, em Harry Potter, “The Fat Lady” (“A Dama Gorda”, Pt-Pt, ou “A Mulher Gorda”, Pt-Br), o retrato que guarda a entrada para a sala comum dos Gryffindor. Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa existem personagens como o Sr. E a Sra. Castor, ou o Raposo, animais cuja designação comum se torna o seu nome.

115 Lincoln Fernandes, “Translation of Names in Children’s Fantasy Literature: Bringing the Young Reader into Play”, New Voices in Translation Studies 2 (2006), 44-57. 116 Riitta Oittinen, “Translating for Children”, Children's Literature and Culture 11. 117 Cristina Vicente Mondim, Os Desafios de Tradução na Literatura Infanto-Juvenil: Are You There, God? It’s Me, Margaret, de Judy Blume, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa (2013). 118 Lincoln Fernandes, “Translation of Names in Children’s Fantasy Literature: Bringing the Young Reader into Play”, New Voices in Translation Studies 2 (2006), disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/summary?doi=10.1.1.134.7754, acedido a 2-7-2019.

53 Em Eragon surge um exemplo que mostra que, embora certos nomes possam, de facto, transmitir algum significado sobre características do que designam, nem sempre o tradutor opta pela sua tradução. Falamos do cavalo comprado por Brom durante a fuga com Eragon, Snowfire. O nome significa algo como “fogo de neve”, mas foi mantido como surge no texto de partida. O mesmo acontece com Fluffy, o cão de três cabeças que guarda o alçapão sob o qual se encontra a Pedra Filosofal, no primeiro livro da saga Harry Potter. Fluffy significa algo fofo e poderia, na verdade, ter sido traduzido para “Fofinho”, por exemplo, mas a tradutora optou por mantê-lo como surge no texto original. Vale a pena referir ainda os Salteadores, o grupo de amigos estudantes de Hogwarts que compreendia Remus Lupin, Peter Pettigrew, Sirius Black e James Potter, cujas alcunhas são Moony, Wormtail, Padfoot e Prongs, respectivamente, e que transmitem significado. Moony está associado ao facto de Remus Lupin ser um lobisomem (“moon” = “lua”), Wormtail significa “cauda de verme”, Padfoot refere-se às patas de um cão (pads são as almofadas das patas dos mamíferos terrestres carnívoros), animal no qual Sirius Black se transforma, e Prongs está associado às ramificações das hastes de veado, animal associado a James Potter, pai de Harry Potter. Estas explicações foram facultadas na tradução portuguesa através de notas de rodapé.

Para além destas duas abordagens, parece relevante mencionar ainda alguns exemplos da tradução francesa da saga Harry Potter, tendo o tradutor, Jean-François Ménard, tomado algumas opções bastante criativas. Para começar, “Snape is literally "Rogue"”.119 Para traduzir a palavra “Snape”, do Antigo Inglês, “reprimenda” ou “ralhete”, o tradutor recorreu a uma palavra de uso raro, “rogue”, que significa “arrogante” ou “desagradável”.120 A coruja de Ron Weasley, Pigwidgeon, em francês chama-se “Coquecigrue”, nome de uma criatura mitológica resultante do cruzamento entre um galo e uma grua.121

Para terminar, no que aos exemplos diz respeito, resta referir que, na tradução brasileira, para alguns, foram usadas equivalências. James Potter é, então, Tiago Potter, a tia Marge (Marjorie Dursley, irmã de Vernon Dursley), é a tia Guida e Vernon Dursley é Válter Dursley. Estes são apenas alguns exemplos de uma estratégia que foi utilizada também em traduções para outras línguas.122

119 Pierre Michonneau, “19 Surprising Facts About The French Translation Of Harry Potter”, BuzzFeed (2017), https://www.buzzfeed.com/bullo/i-want-to-be-in-poufsouffle 120 Idem, ibidem. 121 Idem, ibidem. 122 “List of characters in translations of Harry Potter”, Wikipédia, https://harrypotter.fandom.com/wiki/List_of_characters_in_translations_of_Harry_Potter

54 Assim, e após análise dos exemplos acima, sugerimos quatro estratégias possíveis para lidar com nomes próprios – de pessoas, animais ou até objectos – em traduções de obras de literatura fantástica infanto-juvenil:

- Empréstimo – o nome é usado no texto de chegada tal e qual como surge no texto de partida, podendo, ou não, ser acompanhado de uma clarificação, ou articulada dentro da estrutura do próprio texto, ou por meio de notas de rodapé. Exs.: “Prongs”, “Fluffy”, “James Potter”, na tradução portuguesa;

- Tradução Literal – o nome é traduzido, mas respeitando as regras morfo-sintácticas da língua de chegada. Exs.: “Dama Gorda” (troca-se a ordem do adjectivo e do nome que, no original, é “Fat Lady”, portanto, adj + nome), “Sr. Castor” (no original d’As Crónicas de Nárnia é “Mr. Beaver”);

- Adaptação – o nome é substituído por uma nova criação compreensível pela cultura de chegada Exs.: “Coquecigrue” em vez de “Pigwidgeon”, “Rogue” em vez de “Snape”;

- Equivalência – o nome é substituído pelo equivalente na língua de chegada, ou por uma aproximação. Exs.: “tia Guida”, “Tiago Potter”.

Para decidir qual a estratégia mais adequada, o tradutor poderá ter em consideração tanto as normas vigentes na cultura de chegada, como a faixa etária a que a obra se destina. Esta não foi, de todo, uma análise exaustiva, mas acredito que, com os exemplos que facultei, tenha sido possível mostrar, de um modo geral, a forma como este obstáculo pode ser ultrapassado, tal como algumas estratégias que podem resolver eventuais dificuldades. Como tradutora de Sandry’s Book, e tendo em conta que se trata de uma obra com características semelhantes às analisadas, tanto no que diz respeito ao facto de ser um romance de literatura fantástica, como no que toca ao público-alvo, esta análise funcionou, também, como justificação de várias das minhas opções tradutórias, na medida em que recorro a estratégias semelhantes às aqui apresentadas. As minhas escolhas foram, aliás, pensadas tendo em conta as estratégias utilizadas e as opções tomadas nestas traduções, pois creio que, afinal, quem já tem trabalho publicado representa um excelente exemplo para futuros tradutores.

55 2.4.3.Expressões de Calão e Gíria Características dos Universos das Obras

Quando um autor cria um mundo para uma obra de literatura fantástica, cria, frequentemente, expressões referentes a fenómenos, cargos, acontecimentos ou tipos de seres existentes nesses mundos, para além dos insultos e das expressões encomiásticas. Como vimos no caso dos topónimos, esses termos podem ser formados ou através da criação de novas palavras a partir de palavras já existentes, quer por derivação, quer por aglutinação e composição, quer pela imposição de um novo sentido a uma palavra ou expressão já existente, quer pela invenção de uma palavra completamente nova. Tratando-se de expressões inventadas pelo autor, constituem um desafio na hora de as traduzir – ou, em certos casos, de não as traduzir.

Vejamos, então, alguns exemplos de expressões pertencentes aos universos de Harry Potter, Eragon, Nárnia e d’O Hobbit.

XI) “Squib” – no universo criado por J. K. Rowling, dá-se este nome a feiticeiros que nascem sem a capacidade de praticar magia. Um exemplo é Argus Filch, o Encarregado de Hogwarts, dono da gata Mrs. Norris.

XII) “Muggle” – também do universo potteriano, este termo designa os membros da comunidade não-mágica. Um exemplo é Dudley, o primo de Harry Potter.

XIII) “Mudblood”123 – termo insultuoso para designar feiticeiros filhos de pais pertencentes à comunidade não-mágica, como, por exemplo, Hermione Granger, cujos pais são “muggles”.

XIV) “Parselmouth” – no universo de Harry Potter, diz-se de alguém que possui a habilidade de falar a língua das serpentes. Um exemplo é Lord Voldemort.

XV) “Son of Adam”/”Daughter of Eve” – em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, os humanos são frequentemente designados por “Filhos de Adão” (homens” ou “Filhas de Eva” (mulheres). Trata-se, provavelmente, de uma alusão ao cristianismo, existindo várias reminiscências judaico-cristãs na obra de C. S. Lewis.

123 J. K. Rowling, Harry Potter e a Câmara dos Segredos, trad. Isabel Fraga, Lisboa: Editorial Presença (2002).

56 XVI) “Hobbit” – do universo de Tolkien, este termo designa criaturas de baixa estatura, com pés cabeludos e de solas coriáceas, adeptas da boa mesa e da agricultura. Os “hobbits” vivem num lugar chamado “Shire”.

XVII) “Shur’tugal” – em O Ciclo da Herança, este é um termo na “Língua Antiga” que significa “Dragon Rider” (“Cavaleiro do Dragão”). Um exemplo é Eragon.

Tal como para os topónimos e para os antropónimos, podemos também agrupar estes exemplos de acordo com as estratégias utilizadas na sua tradução.

Empréstimo

Na tradução de Harry Potter de Isabel Fraga, a palavra “muggle” mantém-se. Também na tradução portuguesa de Eragon se mantém a expressão “shur’tugal”, assim como todas as outras expressões provenientes da “Língua Antiga”. A palavra “hobbit” mantém-se em todas as traduções.

Tradução Literal

“Daughter of Eve”/”Son of Adam” traduziu-se, em português europeu, como “Filha de Eva”/”Filho de Adão”.

Adaptação

Tanto “squib” como “parselmouth” sofreram adaptações em ambas as traduções para português. Isabel Fraga recriou a palavra “squib”, utilizando “cepa-torta”, i.e., uma cepa que não é boa para dar frutos. Quanto a “parselmouth”, a expressão escolhida foi “serpentês”, tanto para a língua das serpentes como para o seu falante. A tradutora brasileira traduziu “squib” como “aborto” e “parselmouth” como “ofidioglota”, criando uma palavra por aglutinação das palavras “fídi” (do grego, “serpente”) e “glota”, sufixo relativo a línguas usado em palavras como “poliglota” (alguém que fala várias línguas). Também na tradução brasileira, “muggle” foi adaptado para “trouxa” (pessoa estúpida).

57 Posto isto, verificamos que, no que diz respeito a expressões de gíria ou calão e, de modo geral, a expressões ou nomes criados pelos autores de obras de literatura fantástica, as abordagens mais utilizadas são o recurso ao empréstimo, à tradução literal ou à adaptação. Também verificamos que, tanto na tradução brasileira, como na francesa (aquelas que tivemos em consideração na elaboração deste relatório), o número de adaptações é bastante maior do que aquelas existentes na tradução para português europeu, na qual predominam os empréstimos. Isto poderá estar relacionado com as normas de tradução vigentes em cada uma das culturas de chegada, o que prova que estas são, de facto, tidas em conta pelo tradutor.

58 3. - Comentário à Tradução

Neste capítulo ilustraremos o processo da tradução desta obra, expondo alguns desafios e questões interessantes do ponto de vista de um tradutor. Não é, de forma alguma, uma análise exaustiva de toda e cada dificuldade tradutória. É, sim, uma tentativa de ilustrar o meu raciocínio perante certas questões já abordadas, de forma geral, no capítulo anterior, assim como outras que surgiram nesta obra em particular.

Como referido em 2.1., esta obra foi trabalhada à luz da perspectiva dos estudos descritivos de tradução, mais especificamente segundo a metodologia proposta por Gideon Toury. Nesse sentido, foi realizada a análise descrita em 2.4.1., 2.4.2. e 2.4.3., que permitiu tomar consciência das estratégias usadas em traduções publicadas, relativamente a desafios que surgiram ao longo do meu trabalho, nomeadamente, sobre como lidar com topónimos, antropónimos e expressões de calão e gíria específicas dos universos das obras.

As teorias funcionais, mais especificamente o modelo proposto por Christiane Nord, também tiveram algum peso no estudo desta obra e em decisões que à sua tradução dizem respeito. Como também foi mencionado em 2.1., a função de uma obra tem um papel determinante nas estratégias que serão utilizadas na sua tradução e, em última instância, na classificação desta última como sendo orientada para o contexto de partida ou para o contexto de chegada – usando a terminologia de Toury, se é uma tradução em aceitabilidade ou em adequação. Neste caso, falamos de uma obra de literatura fantástica infanto-juvenil, o que significa que o seu receptor, um público-alvo que inclui crianças e jovens, compreende vários estádios de desenvolvimento. Posto isto, a conclusão a que cheguei, tendo em mente essas etapas do desenvolvimento, foi a de que não poderia optar por uma abordagem totalmente voltada para o contexto de partida, sob risco de alienar os leitores mais jovens, nem por uma totalmente orientada para o contexto de chegada, para que o mesmo não acontecesse com os leitores mais velhos que, sabendo tratar-se de uma tradução, poderiam considerar um texto demasiado adaptado pouco desafiante. Assim, a solução mais adequada pareceu-me a de tentar alcançar um compromisso, consistindo num equilíbrio entre ambas as abordagens, oferecendo ao leitor mais jovem a oportunidade de contactar com o contexto de partida e, aos mais velhos, um texto suficientemente desafiante, que não cause a sensação de que o tradutor não confia nas suas capacidades de assimilação e compreensão de elementos estrangeirantes.Não nos alongaremos com exemplos, pois estas questões serão oportunamente discutidas mais adiante.

59 Houve, além dos supra-referidos, outros desafios, éntre os quais as possibilidades perante o surgimento de provérbios ou expressões idiomáticas, e as formas de tratamento, que diferem entre o inglês e o português. Quanto a estas questões, mantive a coerência com a decisão de tentar manter um equilíbrio entre adequação e aceitabilidade.

Outro aspecto interessante e desafiante ao longo desta tradução foi a componente didáctica da obra, que, como veremos, implica explicações sobre artes e ofícios, botânica e meteorologia, o que, por sua vez, exige não só um estudo sobre estas áreas, como, e principalmente, a tradução de uma panóplia de termos técnicos e científicos. Também aqui mantive o critério macro-textual que estabeleci, o do equilíbrio, como veremos.

3.1. A Obra e o Receptor

Identificação da Obra: Título – Circle of Magic: Sandry’s Book Autora – Tamora Pierce Primeira Edição – Scholastic Press, 1997 ISBN – 0-590-55356-9 Versão em Audiobook – Full Cast Audio, 2002, narrado por Tamora Pierce

Este é o primeiro livro de um conjunto de quatro, todos com o título principal de Circle of Magic. Cada um dos livros é dedicado a uma das quatro personagens principais e retrata, sem nunca descurar as outras três, o seu crescimento e a sua aprendizagem. O enredo desenrola-se num universo ficcional de ambiente que lembra o final da Idade Média ou início do Renascimento, num clima multicultural, sendo-nos apresentadas personagens de diferentes etnias e com diferentes características físicas.

Esta é a história de quatro crianças, entre os 11 e os 12 anos de idade: Lady Sandrilene fa Toren, uma rapariga nobre; Trisana Chandler, pertencente a uma família de mercadores; Daja Kisubo, que vem de uma família de Vendedores (“Traders”); e Briar, um rapaz órfão que vive nas ruas, com o seu bando de pequenos ladrões. Todos provenientes de diferentes condições

60 sociais, mas com algo em comum, o facto de terem passado por uma situação muito difícil: tragédia e perda de família no caso de Sandry e Daja; rejeição por parte dos familiares, no caso de Tris; e, finalmente, vida nas ruas e prisão, no caso de Briar.

Quando estas quatro crianças são, por assim dizer, resgatadas, são levadas para um templo dedicado à veneração da terra e de deuses associados aos elementos, “Winding Circle Temple”. Todas as crianças passam por dificuldades de adaptação, o que leva a que sejam mandadas para um chalé onde vivem duas dedicadas (nome dado àqueles que fizeram votos no templo) que serão como mães adoptivas e mentoras. Cada uma das crianças tem um dom, o de Sandry é o de utilizar a magia no trabalho com fios e tecidos, o de Tris é o de a utilizar com a meteorologia, o de Daja, com a metalurgia e o de Briar, com as plantas. Ao longo da narrativa, estas quatro crianças vão, então, aprendendo a usar e desenvolver os seus dons, ultrapassando obstáculos internos e externos, acabando por se aproximarem umas das outras, até criarem uma amizade.

Estamos, então, perante uma narrativa que nos apresenta um herói colectivo (as quatro crianças), com narrador heterodiegético, cuja focalização vai alternando entre os pontos de vista dos quatro protagonistas. O livro divide-se em treze capítulos e tem uma extensão de cerca de 250 páginas, que traduzi na íntegra.

Como referi, este romance é o primeiro de quatro, sendo que os três seguintes acompanham o crescimento e desenvolvimento das personagens. Assim, também, o leitor de Sandry’s Book poderá acompanhar os protagonistas, crescendo com eles. Segundo o site KidsBookSeries,124 a saga Circle of Magic é indicada para a faixa etária compreendida entre os 10 e os 15 anos de idade. No contexto português, isto significa que Sandry's Book será uma obra recomendada para leitura desde o quinto ao nono ano de escolaridade, ou seja, para leitores desde a entrada na adolescência até estarem plenamente dentro dela. Assim, podemos afirmar que esta obra é, precisamente, uma obra infanto-juvenil, pois engloba idades que ainda podem ser classificadas como fazendo parte da infância, tal como idades já de adolescência – como se diria em inglês, "teen ages", a partir dos treze anos. Assim, esta obra será, à partida, uma obra de compreensão e interpretação não muito complexa, embora não demasiado simples, capaz de interessar a leitores mais exigentes, tanto no que diz respeito à linguagem utilizada, como no que toca aos temas abordados. Vivemos um momento especialmente rico no que à literatura fantástica diz respeito. O interesse por este tipo de obras reflecte-se na enorme diversidade de autores que as escrevem e nas várias adaptações para outros meios, como o cinema ou as séries televisivas, das quais Game of é um exemplo flagrante (embora, talvez, destinado a

124 KidsBookSeries, “Circle of Magic Book List”, disponível em https://www.kidsbookseries.com/circle-of-magic/, consultado a 25-7-2019.

61 uma audiência não tão jovem). Atrevo-me, mesmo, a afirmar que nunca a literatura fantástica teve um momento tão próspero, tanto em termos de criação literária, como de procura por parte dos leitores. Visto isto, creio que a tradução de Sandry’s Book tem toda a pertinência no contexto português. Embora a obra tenha sido publicada há duas décadas, os temas que aborda são sempre, e cada vez mais, actuais e relevantes na formação de seres humanos conscientes e humanistas.

Pessoalmente, considero Sandry's Book uma obra bastante interessante, e digo-o do ponto de vista de uma leitora adulta. Embora a linguagem seja muito acessível, os temas retratados – nomeadamente, a igualdade social, a luta contra a discriminação, a protecção de e respeito para com animais e a necessidade de enfrentar medos e traumas do passado – são passíveis de suscitar pertinentes reflexões num leitor jovem, contribuindo, assim, para a formação de futuros adultos defensores dos Direitos Humanos e de todos os seres vivos, fomentando o respeito pelo próximo e pelo próprio. Por tudo isto, creio não ser descabido sugerir que esta seria uma interessante contribuição para a lista de livros recomendados pelo Ministério da Educação para esta faixa etária.

62 3.2. Dificuldades Tradutórias

A partir deste ponto, apresentarei aspectos que suscitaram particular interesse e obstáculos especialmente difíceis de ultrapassar, ao longo da tradução, assim como as estratégias utilizadas. Dividi estes aspectos de acordo com as categorias a que pertencem, dentro do possível, o que não significa que não sejam interdependentes ou passíveis de serem categorizados de acordo com parâmetros diferentes. As categorias são as seguintes:

Semântica; Pragmática; Terminologia técnica.

Cada uma das categorias supra-referidas está subdividida segundo a origem do problema ou aspecto relevante. Os excertos onde o problema se localiza serão apresentados entre aspas (“”), com o número da página respectiva do texto original, começando em 1).

3.2.1. Questões semânticas

3.2.1.1. Ambiguidades com o Género de Palavras

Na língua inglesa, frequentemente, os substantivos não variam consoante o género. Isto não significa que não haja casos em que essa variação ocorre, como, por exemplo, com o substantivo “priest”, cuja variação feminina é “priestess”, ou “master” e “mistress”.

Na tradução desta obra surgiram algumas instâncias em que este obstáculo se me deparou. Dois exemplos são o caso do substantivo “weaver”, que tanto pode ser “tecelão” como “tecedeira”, e “Novice”, que pode traduzir-se tanto por “noviça” como por “noviço.” A solução para esta questão poderia residir nos pronomes pessoais, que depressa esclareceriam a ambiguidade. Houve, contudo, casos em que a presença destes não se verificou. Vejamos alguns pequenos trechos:

63 1) “After she had come out of the storeroom, Niko had found her a bedchamber in the Hataran king’s palace, above the room where the royal weavers did their work. Lying in bed, staring at the ceiling, at first she had refused to take an interest in anything. Why did she have to? Her entire world was dead” (PP. 97-98). 2) “The great looms in the buildings across the road were silent for once, the weavers having gone to their own midday meal. He would hear if anyone came around” (P. 66). 3) ““I’m sorry, Master Niko.” The novice was gasping for breath. “They want you at the Hub, now.” “I’m teaching—”

“Honored Moonstream said it can’t wait.”

(. . . )

Niko hesitated, then followed the novice out of the cottage” (P. 216).

Em 1) e 2), vi-me obrigada a tomar uma decisão relativamente à opção tradutória mais adequada. Para isso, tive em consideração o meu conhecimento a respeito do contexto em que as personagens se enquadram: trata-se de um universo que se assemelha, como já foi referido, ao mundo real nos finais da Idade Média ou início do Renascimento. As tarefas encontram-se divididas não só de acordo com a posição social das personagens (veja-se o exemplo de Sandry, que era repreendida por se interessar por artes e ofícios relacionados com tecelagem e fiação, por este interesse não ser próprio de uma senhora nobre), como com o género (mais uma vez, no caso de Sandry, quando se fala desses ofícios, estes são sempre desempenhados por mulheres ou crianças). Porém, estas normas parecem não se aplicar dentro da comunidade do templo para onde as crianças vão. É permitido a Sandry aprender a fiar, Daja pode finalmente praticar o ofício de ferreira, o que, entre o povo dos Vendedores, não é permitido. Posto isto, as minhas opções foram as seguintes:

Para 1), traduzi “royal weavers” como “tecedeiras reais”, pois falamos de personagens não pertencentes à comunidade do templo e que trabalham no palácio do rei, isto é, estarão, provavelmente, abrangidas pelas normas da cultura de maioria.

Já em 2) a opção foi “tecelões”, pois, como se pode constatar ao longo da obra, e como referi anteriormente, na comunidade do templo as normas são diferentes, sendo o factor

64 distintivo o facto de o artesão ter, ou não, o dom da magia. Além disso, utilizar o substantivo no masculino não significa que se trate apenas de personagens masculinas, podendo tratar-se de personagens de ambos os sexos, ao contrário do que acontece com a utilização do feminino.

No caso de 3), a resposta residia no audiobook. Sendo uma produção narrada pela própria autora, faz sentido que as interpretações tenham sido aprovadas por esta. No audiobook, a dramatização de “the novice” é feita por uma voz feminina. Assim, a minha opção foi, naturalmente, “a noviça”. Neste exemplo, o recurso à versão em audiobook foi uma ajuda valiosa.

65 3.2.1.2. Expressões de Calão e Gíria

Uma língua varia de várias formas, quer no tempo, quer no espaço, quer no contexto social. As diversas formas como é usada revelam “a existência de variação nos diversos módulos da gramática da língua, permitindo”, entre outros, “a caracterização de sociolectos […] e registos individuais”. Esta caracterização deve-se a factores tanto internos como externos

à língua.126

Para avaliar a riqueza de uma tradução, é preciso examiná-la em todas as suas camadas. É importante, sem dúvida, ser fiel ao texto, o que, só por si, é uma questão bastante complexa – o que é ser fiel ao texto, traduzir exactamente o que este diz, ou passar a mensagem que ele quer passar? Para além disso, é necessário um conhecimento profundo da língua de chegada. Mas a riqueza de uma língua e, consequentemente, de uma tradução, vai muito para além de conhecimentos de ortografia e gramática. O que enriquece uma língua e que a torna particular são as expressões que lhe são características, singulares, até cómicas, a sua gíria e os seus insultos. A obra de Tamora Pierce encontra-se repleta de expressões de gíria e dos mais criativos insultos e traduzi-los foi um desafio e um prazer, assim como um teste à minha criatividade. Trata-se de uma área tão vasta que é difícil categorizá-la: existem os insultos, as expressões populares/coloquiais para se referir algo específico, as agramaticalidades que, de tanto se usarem, acabam por se normalizar num contexto coloquial, entre tantas outras vertentes. Ao longo da tradução, as situações que se me depararam foram bastante diversificadas e, visto que, muitas vezes, os desvios linguísticos ou o uso de expressões de calão ou gíria funcionam como mais uma forma de caracterização de personagens, esta foi uma área à qual dediquei especial atenção.

Apresento, em seguida, alguns exemplos de desafios com as respectivas traduções.

4) ““Here’s my room,” Briar announced flatly, going to an open door on Sandry’s right. “I came here first, and I’m keeping it. You kids stay out!” He disappeared inside.

“‘Kids’?” Sandry asked, puzzled. “Why is he talking about goats?”” (PP. 57-58).

126 Inês Duarte, Maria Helena Mira Mateus, Isabel Hub Faria, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa: Caminho (2003), 34ç

66 5) ““Don’t be greedy,” said Briar, getting to his feet. He passed the dog to Sandry. “Some of these poor sniffers’ ouches are mine, your worship, sir.”” (P. 182). 6) ““Donkey dung!” Sandry blushed. “I’m sorry; I didn’t mean to—”” (P. 96). 7) ““Cat dirt, cat dirt, cat dirt,” she muttered, smacking her forehead” (P. 97). 8) ““What’s them vines with needles on them? Big, sharp ones, that rip chunks out when you grab ’em?”” (P. 14).

O exemplo em 4) foi, sem dúvida, o exemplo de tradução mais exigente. Embora a palavra “kid” tenha um equivalente em português, “miúdo”, e o uso de ambas seja idêntico, o duplo significado já é diferente. Em inglês, “kid” pode também significar “cabrito”, e é este, aliás, o sentido da palavra que causa confusão a Sandry. Para traduzir esta expressão, precisei de encontrar um duplo sentido semelhante em português. A palavra “miúdos” é utilizada, também, para referir órgãos de animais (“miúdos de frango”). Assim, optei por uma estratégia de adaptação, traduzindo este excerto da seguinte forma:

(Tradução) – Este é o meu quarto – anunciou Briar, categoricamente, dirigindo-se a uma porta aberta à direita de Sandry. – Cheguei primeiro, por isso vou ficar com ele. Vocês, miúdas, fiquem longe.

E desapareceu no interior.

– «Miúdas»? – repetiu Sandry, confusa. – Porque está ele a falar de órgãos de frango no feminino?”

Creio, deste modo, ter conseguido manter o trocadilho que a autora faz com a expressão de uma forma inteligível para o leitor português.

Em 5), para “greedy” optei pelo adjectivo “garganeira” que, segundo o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa,127 no sentido figurado, é alguém ganancioso, com ambição de ganhar. Tendo em conta que é Briar quem o diz, pareceu-me um adjectivo perfeitamente

127 Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, “Garganeiro”, Infopédia, https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/garganeiro

67 adequado aos seus modos relaxados, para além de ser um adjectivo equivalente. A estratégia foi, portanto, a utilização de uma equivalência.

Em 6) e 7), deparamo-nos com duas expressões ou interjeições que poderiam ser equivalentes a expressões portuguesas como “caramba” ou “bolas”. Porém, dada a sua originalidade, optei por uma tradução literal. No caso de c), “donkey dung”, “bosta de burro”, para além de ser literal, mantém a aliteração do texto de partida. A tradução para “cat dirt” (d)) foi “cocó de gato”.

Em 8) encontramos um uso agramatical da linguagem (“What’s them vines”). Para manter esta característica, associada ao facto de Briar não ter escolaridade e ao seu passado de vida nas ruas, embora as agramaticalidades sejam outras, a minha opção foi:

– Como é que chamam-se aquelas trepadeiras com picos? Picos grandes e afiados, que arrancam bocados à gente, quando a gente as agarramos?

Assim, a falta de escolaridade transparece na colocação errada do clítico em “como é que chamam-se” (correcto: “como é que se chamam”). O uso da expressão “a gente” funciona como compensação para a perda da característica informal da linguagem que, no texto de partida, transparece na abreviação de “them” para “’em” e remete para um sociolecto onde predominam os coloquialismos. Creio que, deste modo, evitei o apagamento da sobreposição de línguas, uma das doze tendências deformantes descritas por Antoine Berman em “Translation and the Trials of the Foreign”.128

3.2.1.3. Vocábulos Sem Equivalência

Há uma questão recorrente que suscita debate entre tradutores, que é a existência, ou não, de palavras sem tradução. No que diz respeito à língua portuguesa, o exemplo que sempre se dá é o da palavra “saudade”.

128 Antoine Berman, “Translation and the Trials of the Foreign”, Lawrence Venuti (ed.), The Translation Studies Reader, London: Routledge (2000), 284-297

68 Na tradução desta obra deparei-me, por duas vezes, com esta questão e, embora tenha traduzido as duas palavras, constatei que, efectivamente, não existem, em português, traduções directas, pelo que optei por recorrer a outra estratégia.

a) “Leggings”

Em princípio, toda a gente sabe o que são umas leggings. É uma palavra que já entrou para o vocabulário português na forma de neologismo por empréstimo. Trata-se de uma peça de vestuário, uma mistura entre calças muito justas e collants, usada para desporto ou para uso quotidiano, quer com a função de calças, quer com a função de collants, existindo até a versão em ganga, as chamadas jeggings (jeans em leggings). Ora, se, como vimos, esta palavra já é utilizada sem estranheza em português, porque não usá-la, tal como é, na tradução?

Tendo em conta o ambiente do universo de Emelan, em que o vestuário remete para tempos idos, como já referi anteriormente, considerei que não seria adequado usar uma palavra que, automaticamente, iria remeter para o vestuário contemporâneo. Embora o termo não cause estranheza no quotidiano actual, considerei que iria perturbar a activação da crença secundária (ver 2.4.) necessária ao mergulhar numa obra de fantasia e, por conseguinte, interromper o fluir da leitura. Procurei, então, uma alternativa. Poderia optar por “calças”, mas, assim, perder-se- ia a ideia de que é uma peça de vestuário justa à pele. Pareceu-me, portanto, que a solução natural seria, precisamente, “calças justas”, usando uma estratégia de hiperonímia, adjectivando o hiperónimo.

b) “to scry”

Segundo o Cambridge English Dictionary, o verbo “to scry” significa “to see what will happen in the future, especially by looking into an object such as a mirror or glass ball”.129 Existem algumas palavras em português para designar actividades relacionadas com previsões do futuro, como “adivinhar”, “prever”, “predizer”, entre outras. Todavia, nenhuma delas

129 “To Scry”, Cambridge English Dictionary, https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/scry

69 abrange a ideia de ver o futuro numa superfície reflectiva. Vejamos o trecho onde este verbo surge:

9) ““He’s been far-seeing in his crystal, scrying for the future. It drains him,” Lark explained” (P. 222).

Temos, portanto, dois verbos que sugerem previsões do futuro através de artes divinatórias: “to far-see” e “to scry”. Para que a tradução fizesse sentido, pareceu-me mais adequado retirar um dos verbos e passar a ideia através da forma verbal composta que usei, recorrendo a uma estratégia de paráfrase, “tem andado a tentar prever o futuro no seu cristal”. “Prever” sugere adivinhar algo incerto, remetendo para a ideia das artes divinatórias, e o cristal passa a ideia de uma superfície límpida, onde podem surgir reflexos do porvir.

3.2.1.4. Vocábulos Próprios do Mundo da Obra

Entramos agora numa categoria por cuja tradução tive especial respeito. Trata-se do mundo construído pela autora, com as suas palavras específicas que, embora possam surgir como fazendo parte de campos lexicais do mundo real, tem significados particulares ao universo criado por Tamora Pierce.

Dividi esta categoria em quatro subcategorias, de acordo com o campo lexical.

a) Toponímia

Existem dois tipos de topónimos em Circle of Magic, uns em inglês, como “Summersea” ou “The Endless Ocean”, e os outros, inventados pela autora, como “Hatar” ou “Namorn”.

Antes de me debruçar sobre a minha abordagem a esta questão, gostaria de salientar algo que acontece com estes topónimos quando surgem durante a leitura. Os topónimos em língua inglesa transmitem significado, existente no repertório de conhecimentos do leitor. O mesmo não acontece com os topónimos inventados por Pierce. Estes causam estranheza, uma sensação de desconhecimento, porventura de curiosidade semelhante àquela que temos por culturas distantes e desconhecidas. Portanto, existem topónimos que evocam imagens na mente do

70 leitor, como, por exemplo, “Summersea”, pois são palavras que ele reconhece (“Summer”, “Verão”, e “sea”, “mar”). Existem, ao mesmo tempo, topónimos que causam estranheza, pois o leitor não reconhece aquelas palavras como parte do seu vocabulário.

Gostaria, ainda, de ressaltar outro factor curioso. Os lugares cujos nomes são reconhecíveis na língua inglesa são aqueles onde as personagens vão passar a viver, onde, finalmente, depois de todas as provações por que passaram, são aceites. Os outros nomes, por seu turno, aludem a lugares que, ou são muito distantes, ou estão associados a momentos difíceis por que alguma das personagens passou. A intenção da autora parece, então, clara: os nomes em inglês estão associados a segurança, esperança, conforto, proximidade, familiaridade e sentimento de pertença, ao passo que os outros estão associados ao desconhecido ou à dor, à tristeza, à distância e à solidão.

Visto isto, a solução pareceu-me relativamente simples. Se não traduzisse os topónimos traduzíveis, isto é, aqueles que, ainda que em inglês, poderiam ter traduções com significado semelhante, causaria ao leitor dois níveis de estranheza: um provocado pelas palavras que não reconheceria, nem mesmo na língua inglesa, e outro causado pelo aparecimento de palavras noutra língua, ainda que o leitor a reconhecesse. Assim, traduzir os topónimos em inglês pareceu-me a opção mais adequada. Vejamos alguns exemplos:

Texto de Partida Texto de Chegada “Summersea” “Mar-de-Verão” “Endless Ocean” “Oceano Infinito” “Winding Circle” “Círculo Sinuoso” “Lightsbridge” “Ponte das Luzes” “Pebbled Sea” “Mar dos Seixos” Tabela 1 – Exemplos de traduções de topónimos

Para além dos motivos já apresentados como justificação das minhas opções neste aspecto, ressalto que, em obras como a saga Harry Potter (J.K. Rowling), O Hobbit (J.R.R. Tolkien), ou, ainda, As Crónicas de Nárnia (C. S. Lewis), podemos encontrar exemplos de traduções nas quais foi utilizada uma estratégia semelhante. Em Harry Potter, a Escola de Magia e Feitiçaria manteve-se com o nome “Hogwarts”, ao passo que, no que toca ao pub através do qual se faz o acesso à Diagonal, o nome foi traduzido de “Leaky Cauldron” para “Caldeirão Escoante”. Em O Hobbit, “Middle Earth” é “Terra Média”, mas “Gondor” e

71 “Rohan” continuam com os nomes originais. Em As Crónicas de Nárnia, “Nárnia” manteve- se, apenas com uma pequena adaptação ortográfica, assim como Beruna, ao passo que “The Great River” foi traduzido para “Grande Rio”. Estes são apenas alguns dos inúmeros exemplos existentes, que apresento como mais uma forma de justificar a estratégia que utilizei, nomeadamente traduzir os nomes com tradução possível, em vez de os deixar na língua original.

b) Antropónimos

Existem, ao longo da obra, vários nomes próprios passíveis de serem traduzidos, como “Lark” (“cotovia”), “Rosethorn” (Espinho-de-Rosa”), “Crane” (“Grou”) ou “Moonstream” (“Riacho-de-Lua”). Apesar de existir a possibilidade de tradução destes nomes, que estão associados a um significado específico, não os traduzi. Uma vez que se trata de nomes próprios, associados a personagens específicas, não me pareceu correcto nem adequado, por vários motivos, que passo a explicar.

Em primeiro lugar, não é prática comum traduzirem-se os nomes próprios quando existem equivalentes na língua de chegada (Caroline seria Carolina, Dawn seria Aurora, Charles seria Carlos, entre outros). Num mundo globalizado, o leitor, ainda que jovem, é perfeitamente capaz de assimilar marcas culturais estrangeiras. Isto difere do que acontece com os topónimos, numa obra de literatura fantástica, pois a tradução destes causa mais familiaridade, como se o leitor pudesse viajar até às terras sobre as quais lê. No caso de antropónimos, estes estão associados a uma pessoa única, ainda que no nome possam existir pistas sobre ela.

Em segundo lugar, se traduzisse os nomes, teria de os traduzir a todos, incluindo o de uma das personagens principais, Briar Moss (“Silva Musgo”), o que me pareceu soar bastante estranho e dissonante com todos os outros nomes dos restantes livros que compõem a saga: Livro de Sandry, Livro de Tris, Livro de Daja. Livro de Silva destoaria dos restantes.

Em terceiro lugar, existem casos, nas traduções para português europeu de obras de literatura fantástica nas quais me baseei para realizar este relatório, em que, embora o nome da personagem tenha um significado traduzível, isto é, possa ser composto em português de forma a dar a mesma ideia que em inglês, isso não foi feito. Tomemos, como exemplo, o autor do Manual de Defesa Contra as Artes Negras, em Harry Potter e a Ordem da Fénix, Mr. Slinkhard. Trata-se de um manual em que o autor faz uma abordagem meramente diplomática,

72 desaconselhando o uso de magia defensiva. Slinkhard é uma palavra composta por aglutinação – “slink”, do inglês, rastejar sorrateiramente para longe de algo, afastar-se sem dar nas vistas, e “hard”, do inglês, e neste caso, com perseverança, com força. Trata-se, portanto, e claramente, de alguém que quer fugir ao confronto a todo o custo, um cobarde, por assim dizer. O nome da professora da disciplina de Herbologia, Professora Sprout (“sprout” significa “rebento”), também se manteve. Assim, pelos motivos acima referidos, e também por uma questão de coerência, optei por deixar os nomes na língua original, apresentando, em notas de rodapé, uma possível tradução de cada nome na primeira ocorrência deste.

Houve, contudo, uma excepção, os nomes dos animais. Embora possa argumentar-se que, se não traduzi os nomes dos dedicados por uma questão de coerência, devia ter usado a mesma estratégia com os nomes dos animais, importa fazer notar que uma das linhas orientadoras de toda a obra de Tamora Pierce assenta no respeito e na compaixão pelos animais. Assim, considerei que a tradução de Little Bear, o nome do cão resgatado pelas crianças, seria importante, pois funciona como uma forma de criar empatia no leitor. Além disso, a certa altura, Lark diz:

10) “Go play—and take the Bear with you. He’s annoying me.”” (P. 224).

Esta colocação do artigo definido antes do nome próprio, algo pouco comum em inglês, foi também uma razão para a tradução de Little Bear para Ursinho – ou, neste caso em particular, desta citação, Urso. Trata-se de um nome que não só sofre variações ao longo do texto (Little Bear ou Bear), como, também, de um nome que funciona quase como uma segunda identidade, pois foi a postura das patas traseiras do cão que levou Sandry a baptizá-lo assim. Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, verificamos que o mesmo acontece com algumas personagens, por exemplo, “Sr. Castor” ou “Raposo”. Apesar de existirem equivalências em português para os nomes Peter, Edmund, Susan e Lucy, estes não foram traduzidos.

Para manter a coerência com esta estratégia, optei por traduzir outro nome, para além do nome do cão: Ladylove, o nome da égua do duque de Emelan. Para a tradução, recorri à formação da palavra por aglutinação, obtendo, assim, Donamor.

c) Títulos e Epítetos

Entenda-se por título qualquer palavra que categorize uma personagem. Tanto pode ser um título nobiliárquico, como é o caso de “duque Vedris”, ou um título referente a uma tribo, classe social ou grupo étnico.

73 O caso particular que suscitou um pequeno obstáculo foi a distinção entre “Merchants” e “Traders”, e a rivalidade que lhes é inerente. No caso de “Merchants”, a tradução pela qual optei foi “Mercadores”. Já no caso de “Traders” (“trader” é alguém que pratica comércio, ou seja, “comerciante”), não traduzi de forma tão literal. Em primeiro lugar, “comerciante” é uma palavra muito longa, ao contrário de “trader”. Em segundo lugar, a certa altura, na obra, surge a seguinte expressão: “Traders trade”. Traduzir para “Os comerciantes comerciam” soaria estranho e perturbaria a fluidez da leitura. Assim, a tradução pela qual optei foi “Vendedores”. Tal como “merchants”, “Traders” é uma palavra com duas sílabas. Ora, usando “Mercadores” e “Vendedores”, consegui que também ambas as palavras tivessem o mesmo número de sílabas, de modo a soarem bastante semelhantes, até pela forma como terminam. Ao mesmo tempo, esta tradução resolveu o problema da expressão “Traders trade”, que ficou traduzida como “Os Vendedores vendem”.

No que diz respeito aos epítetos, estes foram traduzidos, a par do que acontece noutras obras de literatura fantástica, como é o caso de “Mad-Eye Moody”, em Harry Potter, que foi traduzido como “Moody Olho-Louco”, ou “Peter Wolfsbane”, em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, que foi traduzido como “Peter Terror dos Lobos”. Assim, “Niklaren Goldeye” foi traduzido como “Niklaren Olho d’Ouro”. Utilizei a abreviação de “de”, com apóstrofe, não só por, no original, “”goldeye” ser apenas uma palavra, mas também por acreditar que daria ao epíteto um aspecto mais arcaico.

d) Outros

Nesta secção apresentarei mais alguns conceitos do universo do Círculo Mágico que não se integravam em nenhuma das categorias anteriores, assim como respectivas traduções.

Texto de Partida Texto de Chegada “Mage” “Mago(a)” “Dedicate” “Dedicado(a)” “Dedicate Iniciate” “Dedicado(a) Iniciado(a)” “Money bag” “Sacola-de-dinheiro” “Provost” “Preboste” (*)

74 Tabela 2 – Exemplos de traduções de nomes diversos

(*) Um termo que suscitou dificuldade foi “provost”. Trata-se de um cargo que implica a chefia da guarda da cidade. Embora a palavra exista em português, o cargo é mais conhecido em França, onde existe desde a Idade Média, a par do que acontece, por exemplo, com o cargo de xerife nos países anglófonos.

Houve três instâncias em que esta palavra surgiu e em todas utilizei estratégias diferentes. A primeira instância surge quando Sandry, durante a visita à feira da cidade, se põe a observar os edifícios em redor. Vejamos o trecho:

11) “Finding a spot where people wouldn’t bump her, Sandry eyed the buildings around the square nearby: Summersea Guildhall, Provost’s Hall, Traders’ Hall. The Guildhall in particular was very fine, with statues of craftsmen tucked in niches around the first story” (P. 171).

A segunda ocorrência de “provost” surge quando o duque aparece na praça do mercado, acompanhado de Niko:

12) “Two men rode out of a lane between stalls, followed by soldiers in the brown leather jerkins, blue shirts, and breeches of the Provost’s Guard” (P. 180).

Por fim, a última ocorrência surge no momento em que, depois do dia agitado na cidade, todos regressam a casa:

13) “The squad of soldiers from the Provost Guard, whose authority ended at the city wall, was replaced by a squad of the Duke’s Guard.”

Na primeira instância, traduzi “Provost’s Hall” como “Casa da Guarda”. Na segunda instância, “Provost’s guard” foi traduzido como “Guarda da cidade”. Na terceira, a tradução foi acompanhada de uma explicitação:

“Os soldados do Preboste, que comandava a Guarda da Cidade e cuja autoridade acabava nas muralhas desta, foram substituídos por um esquadrão de soldados da guarda pessoal do duque.”

Tomei esta decisão devido ao facto supra-referido de o cargo de “preboste” não ser muito conhecido nem usado na cultura portuguesa. Quando surgiu uma explicação sobre o Preboste, aproveitei a oportunidade para acrescentar uma breve explicitação sobre a sua função:

75 comandar a guarda da cidade. Assim, creio que consegui evitar causar estranheza ao leitor com uma palavra pouco comum – embora, naturalmente, a leitura de um livro seja uma excelente oportunidade para conhecer novos conceitos – e introduzi-a quando podia explicar de que se tratava sem perturbar a leitura.

76 3.2.2. Questões de Pragmática

Segundo o Professor Doutor José Pinto de Lima, “Pragmática remete para a ideia de acção”.130 Assim, podemos dizer que a Pragmática está associada à acção humana. Foi só a partir dos anos 70 do séc. XX que a Pragmática começou a ser usada no âmbito do estudo das acções humanas relacionadas com a linguagem humana.131 A pragmática é, neste contexto, entendida como pragmática linguística, podendo ser vista como a disciplina que estuda a linguagem humana sob o ponto de vista da comunicação.

Ora, enquanto que a Fonologia se ocupa do estudo dos sons das palavras, a Morfologia, da forma, e a Sintaxe, da estrutura das frases, a Pragmática Linguística ocupa-se “do modo como as palavras são usadas pelos falantes da língua para atingir os seus fins comunicativos”.132 Nesta secção, discutir-se-ão dois aspectos da tradução que estão directamente ligados à comunicação, às implicitações e à delicadeza entre falantes, nomeadamente, os provérbios e as formas de tratamento.

3.2.2.1. Expressões Idiomáticas e Provérbios

Os provérbios, também conhecidos como ditados populares, são, por excelência, um desafio para o tradutor, não sendo o seu significado restrito a um contexto meramente semântico. Para entender um ditado popular, é necessário, frequentemente, recorrer a conhecimentos extralinguísticos, empíricos e culturais do interlocutor. Ao mesmo tempo, é também importante ter em conta que um ditado popular numa língua pode não fazer sentido se for traduzido à letra. Primeiramente, os contextos culturais podem ser diferentes. Em segundo lugar, falamos de expressões consagradas na língua, pelo que, na tradução, é importante tomar algum cuidado com traduções literais, tendo em conta, naturalmente, o público-alvo.

Uma vez que Sandry’s Book é uma obra infanto-juvenil – o que não significa, obviamente, que um leitor adulto não possa retirar dela algum proveito –, optei por procurar equivalências para todos os provérbios e expressões idiomáticas que encontrei, à excepção de uma. Considerei que, assim, criaria um maior nível de familiaridade entre o leitor e a obra, facilitando ao primeiro a viagem até ao universo da segunda. Ao mesmo tempo, não deixei de ter em conta a

130 José Pinto de Lima, Pragmática Linguística, Lisboa: Caminho (2007), 13 131 Idem, ibidem. 132 Idem, ibidem.

77 ideia de que, tendo esta obra uma dimensão didáctica, esta seria uma excelente oportunidade de relevar expressões que estejam, eventualmente, a cair em desuso.

Vejamos alguns exemplos:

14) “You’re getting ahead of yourself”

Esta expressão significa que uma pessoa está a precipitar-se, a saltar etapas necessárias à conclusão de algo ou a tomar decisões sem ter a certeza de estas se poderem concretizar. Ora, “Estás a andar à frente de ti próprio” não existe em português. Assim, usei uma expressão que considerei bastante adequada ao universo de Emelan: “Estás a pôr a carroça à frente dos bois”. “A carroça” alude ao meio de locomoção usado pelas personagens na ida à feira e o significado da expressão é o mesmo. Além disso, existe também em inglês: “You’re puting the cart before the horse”, mudando apenas o animal de tracção.133

15) “Don’t hold your breath”

Esta expressão significa que mais vale que a pessoa a quem a dizemos não fique à espera, pois aquilo por que espera pode demorar bastante a concretizar-se. “Não prendas a respiração” não é usado em português, mas existe uma expressão com o mesmo sentido, e foi essa que usei: “Espera sentada”.

16) “In for a copper, in for a gold”

Nas minhas pesquisas, não encontrei esta expressão como sendo um ditado popular inglês, pelo que terá sido criada pela autora. Assim sendo, procurar uma equivalência em português (que havia, “perdida por cem, perdida por mil” seria um exemplo) não me pareceu a estratégia mais correcta, por uma questão de fidelidade. Desta forma, tentei criar um provérbio semelhante. Falamos de um trecho em que Sandry vai ao quarto de Tris e esta reage de forma desagradável. Sandry decidira oferecer-lhe um presente e decide fazê-lo ainda assim, como se pensasse “já que aqui estou…” Apesar da reacção adversa de Tris, Sandry insiste, pois já não tem nada a perder. A tradução que criei, tentando manter a rede de significado, ligada ao campo

133 “Put the Cart Before the Horse”, Merriam Webster, httt://www.merriam. 133webster.com/dictionary/put%20the%20cart%20before%20the%20horse

78 lexical do dinheiro (“copper” e “gold” sendo relativos a moedas de cobre e moedas de ouro”, foi, assim, “quem ganha um tostão tem ouro na mão”. Penso que esta expressão, que mantém a aliteração presente em “in for a… in for a…”, que, na versão portuguesa, é “tostão… mão”, preserva a ideia de que, se for bem aplicado, um “copper” (“tostão”) pode render uma quantia maior.

17) "The Thief-Lord wasn’t what you’d call a bear for housekeeping.”

Neste excerto, Briar justifica o facto de não saber fazer limpezas em casa. Em primeiro lugar, não tinha casa antes de ingressar no Templo do Círculo Sinuoso e, em segundo, essa não era uma prioridade do Senhor dos Ladrões, o seu líder. “Fada-do-lar” é aquilo que se chama a alguém com gosto por esse tipo de actividades, por vezes até em tom sarcástico. Em inglês, as únicas referências que descobri a respeito da expressão “to be a bear for…” foram “to be a bear for punishment”, que significa ser capaz de suportar castigos pesados, e, relacionadas com limpezas, duas empresas com os nomes “Cookie Bear Housekeeping” e “Black Bear Housekeeping”. Não estou certa se a autora usou esta expressão para a associar a estas empresas ou se, meramente, pretendia demonstrar que o Senhor dos Ladrões não era, de todo, adepto de limpar. Ainda assim, e uma vez que existia, em Portugal, uma revista feminina intitulada, precisamente, Fada do Lar, que publicava esquemas de lavores, decidi traduzir esta frase como “O Senhor dos Ladrões não era propriamente uma fada-do-lar”.

18) “From the look of things”

“Pelo aspecto das coisas”, “pelo vosso ar”, seriam traduções possíveis, a segunda melhor do que a primeira, a meu ver. Contudo, pareceu-me interessante, aliás, bastante consonante com o universo de Emelan, por nos apresentar uma mundividência em que o transporte se faz por meio de carruagens puxadas por animais, voltar a usar uma expressão alusiva a veículos de tracção animal. Assim, a minha opção foi “pelo andar da carruagem”, que significa, precisamente, “da forma como as coisas estão/vão”.

Neste aspecto, portanto, recorri a estratégias de equivalência e adaptação134, o que pressupôs e resultou em transformações da língua de partida para a língua de chegada, não só

134 Zohre Owji, “Translation Strategies: A Review and Comparison of Theories”, translationjournal.net, disponível em https://translationjournal.net/Featured-Article/translation-strategies-a-review-and-comparison-of-theories.html.

79 ao nível formal, como também do conteúdo. Considerei estas as estratégias mais adequadas, pois embora haja casos em que os provérbios devam ser traduzidos literalmente – por exemplo, de modo a fazer transparecer um background cultural –, não me pareceu que fosse este o caso, não só por a obra se destinar a um público alvo bastante jovem, mas também, e principalmente, por não considerar que poderia apagar marcas culturais relevantes para a compreensão da narrativa, ao optar pela minha tradução, já que se trata de um universo ficcional. A única excepção foi, como já referi, o provérbio criado pela autora, que procurei recriar em português.

3.2.2.2. Formas de Tratamento

“A interacção verbal é uma forma de interacção social.”135 Neste sentido, o processo de interacção verbal é regulado pelo tipo de relação social entre os interlocutores, com base na semelhança, ou não, entre estes.136 O reconhecimento dessas relações sociais traduzem-se, frequentemente, nas formas de tratamento utilizadas pelos interlocutores para se dirigirem uns aos outros.

Uma questão bastante desafiante foi, precisamente, a das formas de tratamento. Em inglês, não existe distinção entre o tratamento na segunda pessoa do singular ou na terceira, ao passo que, em português, esta distinção se verifica, consoante a proximidade com o interlocutor ou o nível de formalidade do contexto da relação. Usamos o tratamento na segunda pessoa do singular com pessoas com quem temos mais proximidade, por exemplo, amigos, enquanto que o tratamento na terceira pessoa do singular fica reservado para professores, desconhecidos, pessoas mais velhas, entre outras possibilidades.

Apesar de estas normas existirem, não são estanques e podem diferir de contexto para contexto. Por exemplo, há quem use o tratamento na terceira pessoa com os pais, ou mesmo os pais com os próprios filhos. Com os professores acontece o mesmo, especialmente durante o ensino primário. Verifico, reflectindo sobre a minha experiência pessoal e as interacções que observo ao longo do meu quotidiano, que os alunos do ensino primário tratam os professores, tanto por “tu”, como por “você”, usando a forma coloquial de distinguir estas duas formas de tratamento. Nunca usei a terceira pessoa do singular para me dirigir às minhas professoras primárias, excepto quando mudei de escola e isto me foi exigido. Da mesma forma, conheço pessoas dentro da minha faixa etária (entre 25 e 30 anos de idade) que não ousariam tratar os

135 Inês Duarte, Maria Helena Mira Mateus e Isabel Hub Faria, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa: Caminho (2003), 59. 136 Idem, ibidem.

80 pais por “tu”. Estas distinções, talvez mais do que mera questão de educação, diferem consoante o contexto social do falante. A escola onde me foi exigido que usasse a terceira pessoa do singular, ao dirigir-me à minha professora primária, era um colégio frequentado, maioritariamente, por alunos provenientes de famílias mais abastadas que, na maioria, e também segundo o que fui observando, usavam esse tratamento com os pais e estes, muitas vezes, com os filhos.

Estas reflexões que agora teço são importantes no que diz respeito a esta questão, por um motivo bastante simples: que forma de tratamento usariam as crianças para se dirigirem aos seus mentores?

Para apoiar as minhas decisões, e para além de me socorrer da minha experiência pessoal, recorri às obras de fantasia traduzidas que já referi, procurando nelas relações entre personagens que se assemelhassem àquelas narradas em Sandry’s Book. Alguns exemplos foram, nomeadamente, a relação entre Aslam, o leão d’As Crónicas de Nárnia, e as quatro crianças, Peter, Susan, Edmund e Lucy; a relação entre Eragon, o protagonista d’O Ciclo da Herança e outras personagens, como o seu mentor Brom, a rainha dos elfos Islanzadí e o seu mestre elfo, Oromis; e a relação entre Bilbo Baggins, d’O Hobbit, e Gandalf. Escolhi estas relações, precisamente, por se tratar de interacções entre personagens mais jovens e outras mais velhas que, de alguma forma, estão em posição de superioridade hierárquica (rainha Islanzadí) ou que, por possuírem maior conhecimento e sabedoria, seriam dignas de grande respeito.

O que constatei foi o seguinte:

- Aslam e os quatro irmãos pevensie tratam-se mutuamente na segunda pessoa do singular (“– Mas tu, Aslam, vais lá estar, não vais?” Peter para Aslam, P. 104, ou “– Por favor, podemos ir contigo, para onde quer que vás?” Susan para Aslam, p. 106).137

- Eragon trata Brom (o seu primeiro mentor), assim como a rainha Islanzadí, na terceira pessoa do singular. Já com Oromis, o seu segundo mentor, um elfo muito idoso, o tratamento é na segunda pessoa do singular logo desde o primeiro encontro (“– Que te faz dizer isso, Oromis- elda?” Eragon para Oromis).138

- No caso da relação entre Bilbo e Gandalf, o segundo trata o primeiro na segunda pessoa do singular, já Bilbo trata Gandalf na terceira pessoa.

137 C. S. Lewis, As Crónicas de Nárnia: O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, Lisboa: Editorial Presença (2005), 104-106. 138 Christopher Paolini, Eldest, Vila Nova de Gaia: Edições Gailivro (2005), 322.

81 Em suma, nas relações que pude observar entre personagens de obras de literatura fantástica infanto-juvenil que conheço bem e às quais recorri na elaboração da tradução de Sandry’s Book, como exemplos a seguir, verifiquei que surgiam ambas as formas de tratamento em interacções semelhantes, pelo que acabei por perceber que, no caso de Sandry’s Book, ambas as formas de tratamento funcionariam.

Assim, para decidir qual o tratamento usado por cada uma das crianças ao dirigir-se a figuras de autoridade – mentores, como Niko, Lark e Rosethorn, Frostpine, ou outras personagens em cargos de poder ou que, de alguma forma, implicassem a possibilidade de um tratamento mais formal, como o duque Vedris ou Moonstream –, tive em conta vários factores.

- A posição social da criança;

- A sua educação e o seu background,

- O respeito que teriam pela figura a que se dirigissem;

- A confiança e intimidade que sentiriam com essa figura.

No caso de Sandry, a decisão foi fácil. Tratando-se de uma nobre, educada nas formas protocolares de tratamento, saberia, quase instintivamente, como se dirigir a qualquer pessoa num contexto formal. Por outro lado, não demonstra grande apreço ou respeito por convenções sociais, por isso, poderia, facilmente, deixar de lado as formalidades ao sentir-se mais à vontade.

Tris também tem uma noção aprofundada do que é, ou não, aceitável, como é visível na sua relutância em tornar-se amiga de Sandry por ambas serem provenientes de classes sociais diferentes. Ao mesmo tempo, trata-se de uma criança que passou por situações traumáticas nos relacionamentos com adultos e, principalmente, com os seus familiares, pelo que, naturalmente, teria algumas barreiras no que toca a ganhar confiança com estranhos e, assim, manteria distância deles, recorrendo, para isso, também à forma como a eles se dirige.

Daja pertence a um grupo algo segregado pela cultura de maioria, pelo que também poderia apresentar algumas reservas em confiar em estranhos. Ainda assim, não é tão rígida como Tris no que diz respeito a convenções e normas sociais, tornando-se depressa amiga de Sandry, uma nobre. Além disso, rejeitada pela sua comunidade, perdida e sozinha, opta por começar do zero e decidir por si mesma quais os valores que deve, ou não, seguir, segundo o que para ela faz sentido.

82 Briar, um rapaz das ruas, sem educação formal e sem qualquer respeito pela autoridade, não faria grandes cerimónias, a não ser que fosse extremamente necessário e, nesses casos, sem usar as expressões protocolares correctas, como acontece ao dirigir-se ao duque, na praça do mercado: “Your worship, sir.” Por esse motivo, Briar usaria, a meu ver, o tratamento na segunda pessoa do singular com toda a gente, a não ser nas situações que referi.

Para além destas considerações a respeito das origens das personagens e da consequente relação com as formas de tratamento, considerei que esta seria uma boa oportunidade de mostrar a empatia e a confiança que as crianças vão ganhando com os seus mentores. No caso de Sandry, Tris e Daja, todas utilizam, de início, a terceira pessoa do singular. Porém, à medida que as relações com os mentores vão evoluindo, este tratamento começou a deixar de parecer adequado. Mas como fazer a transição do “você” para o “tu” sem causar estranheza ao leitor?

Ora, se a mudança na forma de tratamento serve, precisamente, para fazer transparecer uma maior intimidade, resolvi procurar um momento em que, com cada uma das crianças, algum dos seus mentores consegue quebrar as barreiras da desconfiança e aproximar-se. Existe, aliás, um momento assim para cada uma das crianças.

No caso de Sandry, a transição acontece quando Lark, a sua mentora e uma das suas guardiãs, quebrando todas as normas a que Sandry estava acostumada, se oferece para a ensinar a fiar. Ao perceber um dos motivos de angústia de Sandry e sugerir, por assim dizer, abrir-lhe uma porta para poder entrar num mundo que, por ser nobre, lhe estava interdito, Lark consegue chegar-lhe ao coração e Sandry, então, começa a demonstrar mais confiança e à vontade. A partir daqui, começar a usar o tratamento na segunda pessoa do singular com os restantes adultos torna-se natural.

No caso de Tris, este momento sucede quando, durante uma aula de meditação, Niko descobre o que a aterroriza: a possibilidade de fazer mal a alguém com a sua magia desgovernada. Embora tanto Tris, como Niko, sejam bastante acutilantes em termos de personalidade, isso funciona como uma espécie de ponte entre ambos e ambos se dão bem, pelo que esse momento, embora pareça algo duro, funciona como uma alicerce para uma relação de confiança.

No caso de Daja, a transição dá-se com a sua guardiã Lark, quando esta se oferece para lhe costurar uma fita e uma braçadeira vermelhas, para que possa demonstrar o luto pela família ao mesmo tempo que deixa de parte as roupas escarlates de luto para usar roupas que possa sujar no trabalho de ferreira. Tocada, Daja agradece e, em seguida, Lark conta-lhe onde viu

83 algo semelhante, assim como algumas peripécias do seu passado, o que quebra o gelo e funciona como comic relief. Depois disso, tal como no caso de Sandry e das restantes crianças, usar o tratamento menos formal acontece naturalmente.

Em jeito de conclusão, relativamente a este aspecto, resta-me dizer que poderia ter usado sempre o tratamento na terceira pessoa do singular, no que toca à forma como as crianças se dirigem aos adultos, mas não quis fazê-lo. Acredito que não é dessa forma que se mede o respeito, aliás, por vezes, esse tratamento pode funcionar como uma imposição de distância que, neste caso, não seria o objectivo dos mentores das crianças. Além disso, nos livros que se seguem a este, vai-se criando uma relação de cada vez mais confiança e amizade e esse tratamento formal soaria incongruente.

3.2.3. Terminologia

Como já foi referido, esta obra tem uma forte componente didáctica. As quatro crianças que compõem o herói colectivo têm o dom da magia, mas este manifesta-se de forma algo particular. Com cada uma, a magia está ligada a algo diferente, mas sempre associada ao quotidiano. No caso de Sandry, o dom está ligado a fibras, aos ofícios da fiação e da tecelagem e, mais tarde, noutros livros, da costura e dos bordados. No caso de Briar, a magia manifesta- se na relação que este tem com as plantas. A habilidade de Daja é com metais, portanto, o ofício de ferreira. Por fim, Tris tem o dom ligado à meteorologia, sendo capaz de influenciar o tempo atmosférico e as marés, os ventos, entre outros.

Visto isto, poderá compreender-se que a tradução desta obra exigiu de mim uma pesquisa bastante diversificada, no que diz respeito a vocabulário técnico. Naturalmente, isto criou os seus obstáculos específicos.

Dividi esta secção de acordo com o ofício e/ou área específicos.

3.2.3.1. Fiação

Os métodos de fiação artesanal são tão diversificados quantas as culturas que os utilizam, ou mais ainda. Em Portugal, a fiação com fuso difere de zona para zona. Existem lugares onde se utiliza uma roca para segurar a lã, enquanto que, noutros lugares, esta é sustida pela mão que

84 não está a rodar o fuso. O fuso é uma vara de madeira, que se segura com a mão dominante e que se vai girando de modo a torcer as fibras. Normalmente, a parte de baixo é mais pesada do que a parte de cima, de modo a facilitar o balanço e o girar do fuso.

O primeiro problema que surgiu foi o seguinte. Em Portugal, o método de fiação com fuso suspenso (“drop spindle”) não é utilizado. Este método consiste no recurso a um fuso com um volante (ou, usando o termo tradicional, “cossoiro”), para além da haste, que permite ao fuso girar continuamente sem ter de ser agarrado na mão. As duas mãos ficam, assim, libertas para orientar o fio e as fibras soltas, enquanto o fuso vai descendo, preso ao fio, sendo apenas preciso girá-lo de vez em quando.

Sendo esta uma parte fundamental da história, uma vez que define a forma como esta termina, pois Sandry “fia” as magias dos quatro numa só, para conseguir fortalecer todos, considerei que não devia descurá-la. Por isso, decidi participar num workshop de fiação manual, oferecido pela loja Retrosaria e facilitado por Rosa Pomar, autora do livro Malhas Portuguesas, que tem feito um excelente e pormenorizado trabalho na recolha de técnicas de fiação em Portugal. Nesse workshop, que teve lugar dia 5 de Outubro de 2018, aprendi a fiar. O conteúdo prendia-se com a fiação à portuguesa mas, quando expliquei o motivo pelo qual ali estava, Rosa Pomar ofereceu-se para me ensinar a fiar com um fuso suspenso, exactamente igual ao que Sandry usa na sua aprendizagem. Deste modo, pude familiarizar-me com a técnica e tomar contacto com os problemas que Sandry encontrou ao longo do seu percurso na fiação: o controlo da lã, o controlo do girar do fuso, o desfiar do fio quando o fuso muda de direcção.

Um dos obstáculos que surgiram prendeu-se com o nome dado à lã preparada. Na fiação portuguesa, depois de se cardar a lã com as cardas manuais, dá-se-lhe o nome de “pasta de lã”. A pasta fica na mão não dominante enquanto a outra gira o fuso e segura o ponto em que este e a lã não fiada (“pasta”) se encontram. Na obra de Tamora Pierce, a lã cardada é depois enrolada em pequenos rolos, chamados “rolags”. Para traduzir a palavra “rolag”, optei pelo termo português, “pasta”, em detrimento de algo como “pequenos rolinhos de lã cardada”, para dar a conhecer esta realidade ao leitor e para introduzir um termo tipicamente português relacionado com este ofício. Vejamos um pequeno trecho:

Texto de Partida

85 19) “Next to the uncombed wool was a straw basket with a cloth lining. It was filled with the long rolls of combed wool called rolags.”

Texto de Chegada

“Junto à lã não penteada havia um cesto de palha com forro de tecido, cheio com os compridos molhos de lã penteada a que se chamava pasta.

Em primeiro lugar, não existe termo exactamente equivalente a “rolag” em português. Em segundo lugar, como já referi, embora não seja exactamente equivalente, uma vez que, na fiação à portuguesa, a lã preparada não se enrola em rolos, ficando, sim, em compridos molhos, não pude deixar passar a oportunidade para usar um termo muito provavelmente desconhecido para os leitores infanto-juvenis. Com o advento da indústria e da produção em larga escala, as artes e os ofícios tradicionais estão a ficar esquecidos e devem, a meu ver, ser preservados de todas as formas possíveis. Considerei que esta seria uma delas.

Assim, também, optei por usar a palavra “cossoiro”139 em vez de volante, sem esquecer esta última:

“Lark separou o disco de madeira do pau.

– Isto é o volante, ou cossoiro – disse e, depois, erguendo o pau na outra mão, continuou: – E esta é a haste. Encaixamos o cossoiro na ponta mais afiada da haste, assim.

E enfiou a ponta mais afiada da haste pelo buraco no centro do cossoiro.”

As palavras tradicionais trazem consigo um cunho de nostalgia, têm, digamos, a sua própria magia. Poderia ter usado termos técnicos mais actuais, talvez, e mais técnicos, como “volante” em vez de “cossoiro” para designar o disco que serve de peso ao fuso de fiação suspensa, mas decidi tentar transmitir uma ideia de histórias passadas de geração em geração, em consonância com o ambiente mágico do Círculo Sinuoso e, de forma mais abrangente, de todo o universo de Emelan.

139 Maria de Fátima Matos da Silva e Paula Cristina Pereira de Oliveira, “Estudo Tipológico dos Cossoiros do Museu da Sociedade Martins Sarmento”, Revista de Guimarães, http://www.csarmento.uminho.pt/docs/ndat/rg/RGVE1999_034.pdf.

86 3.2.3.2. Ofício de Ferreiro

O maior obstáculo que surgiu relacionado com este ofício foi a tradução do nome de uma ferramenta chamada “top fuller”. Segundo a Wikipédia, “a fuller is a tool used to form metal when hot. The fuller has a rounded, either cylindrical or parabolic, nose, and may either have a handle (an "upper fuller") or a shank (a "lower fuller")”. Embora esta definição me permitisse compreender perfeitamente aquilo de que se tratava, faltava a tradução do seu nome, que não consegui encontrar, por muito que pesquisasse. Revelou-se, assim, necessário recorrer à minha rede de contactos, neste caso, pessoas ligadas à área da conservação e restauro, que foram incansáveis a esclarecer as minhas dúvidas. Foi, também, necessário realizar várias excursões a estabelecimentos como Leroy Merlin e Aki, onde me foi possível ter contacto com uma enorme variedade de ferramentas, o que foi útil para ultrapassar outros obstáculos além deste.

Depois de conversar com várias pessoas, tanto da área da conservação e restauro, como das superfícies comerciais a que me dirigi, chegou-se à conclusão de que a tradução mais próxima para “top fuller” seria “martelo de bola”, e foi essa que utilizei.

De resto, as obras de fantasia que já referi inúmeras vezes também foram cruciais, pois em todas – ou quase todas – há um ferreiro acompanhado de todos os seus acessórios e apetrechos cujos nomes pude consultar.

3.2.3.3. Jardinagem

Estando o dom de Briar associado à magia com plantas, o campo da jardinagem foi outro ramo sobre o qual tive de me debruçar. Desde o seu nome, à sua pequena árvore de estimação, ao interesse que demonstra por todas as coisas que crescem na terra e ao trabalho com Rosethorn na área da botânica, o vocabulário ligado ao trabalho da terra e com plantas abunda em Sandry’s Book.

Algo que, creio, logo salta à vista é a semelhança da arte dos “shakkan” com a arte dos bonsai, o cultivo e a manipulação de árvores de modo a diminuir-lhes o tamanho, fazendo-as assemelhar-se a árvores no seu meio natural, mas em ponto pequeno, estabelecendo um

87 equilíbrio entre a árvore e o pequeno vaso onde esta é cultivada. Sendo eu própria adepta desta arte e possuindo alguns bonsai, estava familiarizada com os termos associados. Contudo, para ter a certeza de que não induziria o leitor em erro, achei importante validar as minhas informações. Para isso, recorri aos conhecimentos dos proprietários do Museu do Bonsai, em Sintra, assim como ao Hospital do Bonsai, um departamento do Horto do Campo Grande. Embora não possa citar, de forma exacta, as informações que me foram transmitidas, preferi optar por consultar pessoas que trabalham com estas árvores diariamente, valendo-me da sua experiência prática, em vez de recorrer a livros ou sites sobre o assunto.

Os livros e os sites, esses, reservei para validar informações relativamente a botânica, nomeadamente, aos nomes e usos de plantas, quer na área da medicina, quer na área esotérica, que também é referida na obra, mais concretamente, no trecho em que se fala sobre o funcho.

Um termo que suscitou algumas dificuldades foi “trowel”. Trata-se de um objecto que tanto pode ser utilizado na construção, como em estucagem, como em jardinagem, sendo o nome diferente consoante a utilização. Pode traduzir-se “trowel” como “colher de pedreiro”, como “talocha”, como “trolha” (talvez seja essa a origem da palavra de gíria para designar trabalhadores da construção civil), ou como “espátula”. Uma vez que nenhuma das traduções me parecia adequada, decidi usar a possibilidade de “colher de pedreiro”, substituindo “pedreiro” por “jardineiro”. Deste modo, evitei a hipótese de “pequena pá”, que tinha começado por utilizar, mantendo-me mais próxima do significado do termo no texto de partida.

88 4. Conclusão

Em Portugal, e apesar de já ser publicada há mais de duas décadas noutros países, Tamora Pierce é uma autora quase desconhecida. Num mundo cada vez mais globalizado, em que as redes sociais servem frequentemente para denunciar atitudes e regimes opressores, ideias discriminatórias e outras atrocidades, como os maus tratos a animais ou a destruição da natureza, mobilizando milhões de pessoas na luta pelas mais diversas causas (veja-se o caso de Greta Thunberg), é estranho como uma autora que aborda tais temáticas em toda a sua obra não tenha, praticamente, visibilidade no nosso país. A minha escolha foi, portanto, uma tentativa de colmatar essa lacuna.

Ao iniciar este trabalho, estava longe de imaginar o quão enriquecedora seria esta experiência. Para justificar a grande maioria das minhas opções, recorri a outras obras de literatura fantástica infanto-juvenil traduzidas, obras que conheço bem e que li durante a minha infância e adolescência. Procurei, portanto, realizar uma breve análise descritiva de algumas questões que, ao longo da tradução, levantaram obstáculos, recorrendo às obras analisadas no intuito de tomar consciência do modo como outros tradutores solucionaram esses mesmos obstáculos. Antes, porém, dessa análise, e para introduzir essas obras, assim como a própria obra que traduzi, foi necessário abordar os conceitos de literatura infanto-juvenil e literatura fantástica, articulando os estudos literários com os estudos de tradução. Considerei que este passo seria fundamental para uma posterior tomada de consciência sobre os contextos de partida e de chegada, assim como a respeito do público-alvo da minha tradução. Ao enveredar pelo ramo dos estudos literários, mais concretamente na tentativa de definir os dois conceitos, procurava certezas, definições consagradas. Em vez disso, deparei-me com uma vasta pluralidade de pontos de vista e propostas de definição e categorização, o que enriqueceu a minha própria reflexão sobre o meu papel enquanto tradutora, tornando esta secção maior do que eu previra. Ainda assim, considero que se tratou de uma mais-valia, tanto para o enriquecimento da minha formação, como para satisfazer a possível curiosidade dos futuros leitores deste relatório.

A análise de obras análogas à que traduzi teve um papel importantíssimo na forma como revi a tradução, que realizei, em parte, antes da redacção do relatório. Constatei, depois de comparar as estratégias usadas, por exemplo, por Isabel Fraga, a tradutora de Harry Potter, que havia duas instâncias em que a minha estratégia não fora adequada, tendo-me levado a mudar

89 as opções tradutórias. Refiro-me a um provérbio e a uma expressão de gíria criados por Tamora Pierce, que, primeiramente, eu tinha adaptado, recorrendo a equivalências. Depois da análise, percebi que usar equivalências não seria a opção correcta, tendo, em vez disso, criado expressões semelhantes para o efeito, usando as mesmas redes de significado que a autora utilizou.

Para além da análise de obras semelhantes, o principal factor que regeu as estratégias que seleccionei foi o público-alvo. Nos primeiros pontos deste relatório, afirmei que um dos meus objectivos era conseguir alcançar um equilíbrio entre os pólos de adequação e de aceitabilidade. Para isso, as dificuldades tradutórias foram pesadas, fiz adaptações, tal como o vi feito nas traduções analisadas, mas também usei palavras como empréstimos, nomeadamente, os das personagens que poderiam ser traduzidos (à excepção dos nomes dos animais). É verdade que podia tê-los traduzido, aliás, essa opção foi tomada, por exemplo, pela tradutora de Harry Potter para português do Brasil. No entanto, tendo em conta que acredito que os possíveis leitores da tradução serão capazes de lidar com nomes estrangeiros, não estranhando a sua presença e sendo, possivelmente, capazes de os compreender (mesmo sem recorrer às notas de rodapé que incluí com traduções), decidi mantê-los, de modo a guardar algumas marcas do contexto de partida, para que o leitor se lembre de que está a ler um texto escrito por uma autora estrangeira.

Traduzir Sandry’s Book foi uma experiência que me conduziu por mares nunca dantes navegados. Para além de toda a formação teórica que tive oportunidade de adquirir neste mestrado, permitiu-me aprender e experimentar novas actividades e técnicas, o que me leva a concluir que, por muita formação teórica que um tradutor tenha, por vezes é a prática que dá resposta a dificuldades tradutórias – não me refiro à prática de tradução, mas sim de actividades que surgem na obra. Prova disso foi a facilidade com que, depois de participar num workshop de fiação manual, pude compreender de forma mais concreta as dificuldades com que uma das personagens principais da obra se depara ao aprender a fiar. A minha prática pessoal e o meu gosto pela jardinagem, em particular pelo cultivo de bonsai, foi também muito útil no sentido de criar empatia pela personagem cujo dom mágico está ligado às plantas, assim como de entender a sua afeição por uma pequena árvore doente. Com isto, pude concluir que a tradução não é um processo mecânico, mas sim dinâmico e dialógico. Na verdade, para além de recriar um texto noutra língua, o tradutor tem de ser capaz de transmitir o sentido desse mesmo texto, o que implica não só a componente escrita, isto é, aquilo que, objectivamente, se pode entender através das palavras, mas também qualquer coisa de metafórico, intangível, associado à dimensão sócio-afectiva, traduzida em emoções, memórias e experiências que um texto é capaz

90 de despertar no leitor. E isso, por mais formação académica que um tradutor tenha, só é capaz de transmitir recorrendo às suas próprias memórias, emoções e experiências. Só assim é possível ser verdadeiramente fiel ao autor.

Referi que um dos meus objectivos perante a tradução era alcançar um equilíbrio entre as perspectivas de adequação e de aceitabilidade, o que penso ter conseguido. Assim também, com este relatório, tentei criar um equilíbrio, desta feita entre a teoria e a prática, entre o saber académico e a experiência, entre o estudo teórico da tradução e a base nos exemplos de traduções já existentes. Em suma, e de um modo geral, entre o ponto de vista de uma tradutora, portanto, uma técnica formada na área da tradução, e o de uma leitora apaixonada pela literatura fantástica. Tenho a esperança de que este projecto possa, no futuro, ser útil a outros estudantes de tradução ou tradutores, oferecendo não só uma proposta de tradução, mas também uma hipótese de encarar futuras traduções que, pelo menos neste caso, acredito ter funcionado. Não pretendo dispensar a humildade, mas estou convicta de que uma abordagem assente no eixo teoria-prática, assim como na articulação entre as várias áreas de estudo – neste caso, os estudos de tradução e os estudos literários – é uma forma bastante sólida de trabalhar como tradutor de literatura, representando perfeitamente a actividade multifacetada que é a tradução.

Desde que ingressei no Mestrado em Tradução da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que tinha como objectivo optar pela modalidade de trabalho de projecto, com a ideia de traduzir Sandry's Book. Verdade seja dita, a minha intenção não era apenas concluir um projecto universitário. A minha ambição prende-se, também, com a apresentação desta obra traduzida a editoras, tendo em vista a sua possível publicação em Portugal e, quiçá, das restantes. Este foi, aliás, um factor que tive em consideração ao longo da tradução. Por outras palavras, preocupei-me em que, caso os livros seguintes fossem traduzidos, a tradução do primeiro não criasse incoerências. Espero, assim, contribuir para o aumento do repertório de obras de literatura fantástica traduzidas para português. Espero, ainda – e aqui talvez a ambição já seja demasiada –, com este trabalho, dar mais visibilidade ao estudo da literatura fantástica, mais ao nível das narrativas propriamente ditas, do que da sua sistematização. Afinal, não são estas narrativas uma excelente forma de espelhar e retratar problemas e crises da sociedade actual, mostrando também as suas repercussões, funcionando como uma advertência? Afinal, o que há de errado em deixar entrar um pouco de magia nas nossas vidas, ainda que apenas através de um livro?

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95 Fim

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