ALGUMAS NOTAS SOBRE A ECONOMIA DO CARNAVAL DA BAHIA

Paulo Miguez* * Professor, UFBA

RESUMO

Even though there are many important differences that make each Brazilian carnival unique, it's nowadays possible to identify an important common trait among them. It is the emergency of an organization of economy practices that ended up making of the carnival in Rio, Pernambuco and Bahia huge markets. The aim is to map the complex economy that involves various businesses and a large number of public and private agents in Bahia in the last 25 years.

102 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil, um país de muitos carnavais O carnaval carioca, por exemplo, expressão o "país do caracteriza-se, especialmente, pela sua carnaval" se serve à condição de espetáculo. Já o carnaval 1. RISÉRIO, Antônio. Carnaval: As cores da medida para dar conta de pernambucano tem sua marca mais mudança. Afro-Ásia, A Salvador, Centro de uma das dimensões simbólico-culturais sonante associada às idéias de tradição e Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal que melhor expressam a vida brasileira, participação popular. O carnaval baiano, da Bahia, n.16, set. mais esconde que revela o panorama da por sua vez, é reconhecidamente uma 1995. p.90. festa carnavalesca propriamente no festa também de grande participação Brasil. Isto porque, como afirma acerta- popular, embora muito mais afeita a damente o poeta e ensaísta baiano Antonio hibridações e ao trânsito entre tradições Risério, "O Brasil não é o 'país do e inovações do que, por exemplo, a folia carnaval', como se lê no título do romance carnavalesca pernambucana. de Jorge Amado, e sim um país de 'muitos Mas, atenção! Se é imprecisa a carnavais', como se ouve na canção de expressão "carnaval brasileiro", também "1. É que, para além das imprecisas são as expressões carnaval cores e sons de um imaginário que carioca, carnaval pernambucano, carnaval conquistou o mundo e dos traços comuns baiano. Sim, pois, ainda aqui, quando que levam muitos estudiosos, nacionais e aproximamos nossas lentes de um destes estrangeiros, a classificá-lo como um que, podemos concordar, são os mais "símbolo nacional", o carnaval brasileiro famosos carnavais brasileiros, a impre- apresenta dimensões específicas e cisão continua presente e é certa a particulares, substancialmente diferentes possibilidade de não conseguirmos entre si, qualquer que seja a cidade capturar, num só lance, a diversidade da brasileira onde a tradição dos festejos festa e suas sensíveis e importantes carnavalescos tenha alguma importância. diferenças. Tomemos, por exemplo, o Assim, abandonando a imprecisa carnaval do Rio de Janeiro. Certamente idéia de um "carnaval brasileiro", podemos que sua expressão mais conhecida é o e devemos falar do carnaval carioca, do desfile das Escolas de Samba. Todavia, o carnaval pernambucano ou do carnaval carnaval carioca não se restringe ao desfile baiano, isto para ficarmos apenas nas três das Escolas de Samba. Cidade afora, mais vigorosas e conhecidas formas que distante da lógica que informa o espetáculo assumem os festejos carnavalescos no midiático-turístico dos desfiles no Sambó- Brasil. dromo, circulam, numa quantidade que

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 103 vem aumentando significativamente nos garantir à festa, muito especialmente aos 2. PRESTES FILHO, Luiz Carlos (Coord.). últimos dez últimos anos, inúmeros blocos, carnavais carioca, pernambucano e Cadeia produtiva da bandas e milhares de foliões anônimos que baiano, a condição de um grande negócio economia do carnaval (RJ). In: SEMINÁRIO bem lembram o carnaval mais partici- que é, hoje, responsável pela movi- INTERNACIONAL EM ECONOMIA DA pativo e muito próprio do que acontecia mentação de uma portentosa e complexa CULTURA, 1, 2007, Recife. Textos ... na cidade até os anos 1960. economia. Recife (Pernambuco, Contudo, em que pesem especi- "Chegou a hora da Escola de Brasil): Fundação Joa- quim Nabuco, 2007. ficidades e particularidades, é possível Samba S.A", anota o estudioso Prestes Disponível em: . ponto de vista das suas trajetórias mais de R$ 700 milhões e exigiu a Acesso em: 30 set. 2007. históricas, quanto no que diz respeito às mobilização de um número aproximado de

3. CARNAVAL no suas configurações contemporâneas. trabalhadores não inferior a 500 mil Recife. Guia do Recife De um ponto de vista histórico, por pessoas2. e Pernambuco. Dis- ponível em: . colonizador português. Comuns aos se a existência de um mercado da festa Acesso em: 30 set. 2007. carnavais brasileiros são, também, os também no carnaval de Pernambuco, este, conflitos e disputas que marcaram, no final intensamente atrelado aos interesses da do Século XIX, a substituição forçada do economia do turismo. Dados publicados Entrudo pelo carnaval europeizado que, sobre o carnaval de 2005, por exemplo, com seus bailes e préstitos, melhor indicam que "a máquina do carnaval representaria, na visão das elites, a pernambucano, movida no compasso do imagem de um país que, abolida a frevo, maracatu, caboclinhos e outros escravidão e proclamada a República, ritmos locais, movimentou R$ 204 mi- procurava um lugar entre as "nações lhões", garantiu uma taxa de ocupação da civilizadas". rede hoteleira de 100% e gerou algo como Já numa perspectiva mais contem- "42 mil postos [de trabalho] diretos e 120 porânea, o traço comum aos festejos mil indiretos"3. carnavalescos no Brasil, entretanto, fica Não é diferente, o caso do carnaval por conta da emergência, em larga escala, baiano. Nesta festa, da qual nos ocupa- de práticas mercantis que acabaram por remos mais detalhadamente a partir de

104 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro agora, um grande mercado estabeleceu- anos. se, a partir da metade dos anos 1980, A rigor, não é estranha ao carnaval como eixo impulsionador e organizador de a convivência com práticas mercantis. Já uma robusta e multifacetada economia da antes do carnaval propriamente dito, cultura. durante o Entrudo, escravos e negros libertos fabricavam e comercializavam os A constituição da economia do "limões" de cera que serviam de munição carnaval baiano aos "combates" travados nas ruas pelos Na tessitura da cultura baiana foliões. Nos carnavais da primeira metade contemporânea, um aspecto salta à vista: do Século XX, ainda que organizados e a existência de um mercado de bens e realizados sob o predomínio de um espírito servi-ços simbólicos, alimentado por eminentemente lúdico, podemos observar articulações que, ancoradas na rica alguns eventos carnavalescos, tais como: experiência simbólica dos seus habitantes; os "gritos de carnaval", concursos particularmente do seu segmento popu- musicais, de fantasias e de mascarados, lacional negro mestiço, entre si esta- patrocinados por grandes casas comer- belecem a festa - que, registremos, ciais, emissoras de rádio e jornais que se inscreve-se como elemento central do utilizavam da popularidade da festa para corpus da cultura baiana ainda que, como promoverem a divulgação e expansão dos é óbvio, não esgote a totalidade da sua seus negócios. produção -, a indústria fonográfica, a No entanto, são os anos mais economia do lazer e do turismo e mais recentes que vão agregar à festa carna- um conjunto variado de atividades lúdico- valesca baiana, em definitivo, dinâmicas econômicas. Aqui, não há lugar para típicas do mundo dos negócios, dando dúvidas. É o carnaval, com sua rica lugar à configuração do que pode ser ecologia organizacional onde pontuam chamado de "carnaval-negócio", marca Blocos de vários tipos, Afoxés, Trios registrada que particulariza a configuração Elétricos, além, é claro, dos foliões-pipoca, contemporânea do carnaval da Bahia. o elemento que constrói e dá suporte ao Com efeito, é à volta do carnaval exuberante mercado de bens e serviços que Salvador, realinhando tradição e simbólico-culturais que vem carac- contemporaneidade, vai assistir, a partir terizando a cidade nos últimos vinte e cinco dos anos 80 do século passado, à aproxi-

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 105 mação entre a festa e a lógica de indústria cussão, enveredaram pelo meio do 4. GÓES, Fred de. O país do carnaval elé- cultural. Este fato, absoluta novidade, "corso", o desfile carnavalesco das famílias trico. Salvador: Corru- pio, 1982. p.19. resulta da conjunção de três cortes aristocráticas da cidade, arrastando, ao importantes experimentados pela festa som eletrificado de frevos pernam- 5. Até o surgimento do Trio Elétrico, por- carnavalesca nos últimos cinqüenta anos, bucanos, "200 metros de povo que pulava tanto, durante a pri- meira metade do sé- embora distintos culturalmente e distantes e se divertia como nunca ocorrera antes culo XX, o carnaval baiano dividia-se entre entre si no tempo. na Bahia", conforme as palavras do dois. Um, o carnaval O primeiro deles é a criação/ próprio Osmar4. "oficial", organizado e patrocinado pela aris- invenção do Trio Elétrico, no carnaval de O Trio Elétrico promove, com seu tocrática elite local, que consistia, basi- 1950, por dois baianos, Dodô e Osmar, fato caráter inovador/renovador, uma profunda camente, nos suntuo- que marcou de forma original e única, a e definitiva transformação do carnaval da sos desfiles dos prés- titos, do corso e das partir de então, a história do carnaval Bahia. Redefine e torna comum a todos, pranchas pelas ave- nidas centrais da cidade baiano. Na 4ª feira anterior ao carnaval sem divisões de qualquer natureza, o e, também, nos bailes privados realizados de 1950, o Clube Carnavalesco Misto espaço da rua como lugar privilegiado da em clubes fechados. O Vassourinhas do Recife, famosa orquestra festa - é que numa festa historicamente outro, um carnaval popular, de extração de frevos do carnaval pernambucano, de segmentada do ponto de vista sócio-racial negromestiça, com seus afoxés, batucadas, passagem para o Rio de Janeiro, faz escala , o Trio Elétrico surge inaugurando um cordões e blocos, pra- Salvador e uma apresentação pública. espaço absolutamente igualitário, fazendo ticamente impedido de ocupar as avenidas Aproveitando o sucesso desta apre- valer, por onde passa, uma espécie de nobres do centro da cidade e que transitava sentação, Osmar Macedo, rádio-técnico, "democracia do lúdico". tão somente pelos bairros populares e e Adolfo Nascimento (Dodô), dono de De invenção transforma-se rapi- ruas próximas ao cen- uma oficina mecânica, ambos instru- damente em inovação, no mais puro tro. É esse carnaval popular que, a partir mentistas nas horas vagas, improvisaram sentido schumpeteriano, e faz nascer, de 1950, com o surgi- mento do Trio Elé- o primeiro desfile do que viria a ser o Trio vinculada a ela, uma nova lógica de trico invade as zonas centrais da cidade e, Elétrico. Utilizando um velho Ford organização da festa, que, paulatinamente, assim, promove a "Bigode", ano 1929, a famosa "fobica", conduz a uma nova configuração dos deshierarquização do espaço social da festa. Osmar no cavaquinho e Dodô no violão - atores que fazem o Carnaval da Bahia. a Dupla Elétrica que no ano seguinte se Com certeza são muitas, e de grande transformaria em Trio Elétrico, com a alcance, as inovações introduzidas no incorporação de mais um músico -; carnaval da Bahia pelo aparecimento do apoiados por um grupo de amigos en- Trio Elétrico, inovações que redefiniram carregados dos instrumentos de per- a festa nos seus aspectos artístico-

106 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro musical, gestual, territorial, organizativo e platéia, até então hegemônica na festa, e, 6. A utilização de ma- tecnológico. assim, definiu o caráter participativo como deira maciça na fabri- cação dos instrumen- Do ponto de vista tecnológico, por traço distintivo, desde então, do carnaval tos, em substituição ao violão elétrico tradi- exemplo, Dodô e Osmar, com seus "paus baiano. cional, permitiu supe- 6 rar o fenômeno da elétricos" , construídos alguns anos antes Revelando-se um excelente veículo microfonia, principal da aparição do Trio Elétrico, devem ser de propaganda e, portanto, alvo privile- problema técnico da inovação. considerados precursores da guitarra giado de patrocínios, o Trio Elétrico vai 7. Cf. RISÉRIO, elétrica, que já havia sido inventada nos riscar os primeiros contornos empresariais Antônio. Carnaval Estados Unidos, mas que ainda era do carnaval, abrindo espaço para a ijexá; notas sobre afoxés e blocos do desconhecida no Brasil. No plano artísti- difusão de uma lógica mercantil, que novo carnaval afrobaiano. Salvador: co-musical, a eletrificação do frevo marcou daí por diante a organização e a Corrupio, 1981. 156p. Este autor utiliza o pernambucano acabou criando um novo realização da festa. Desde então, a termo "africanização" gênero musical, abrindo uma linha participação no carnaval passou a para caracterizar a forte presença de evolutiva que levaria a um hibridismo demandar, de forma cada vez mais organizações e clubes negros nos carnavais da musical sem precedentes na música acentuada, uma escala de investimento Bahia, na virada do popular brasileira, com a incorporação de que não pode mais ser suportada pelo Século XIX para o XX, retirando-lhe o sentido estilos variados como o rock, o reggae, o esquema de contribuições espontâneas ou pejorativo comumente empregue pela ijexá, etc. e que resultaria, nos anos 1980, patrocínios eventuais, que garantiam a sua imprensa da época, e contrapondo-o ao no estilo que ficou conhecido como axé realização. espírito de music. O segundo dos cortes atrás referi- "europeização" que, oficialmente, marcava Quanto ao carnaval propriamente dos vai estar localizado nos meados da a festa. Identificando fenômeno semelhante dito, o Trio Elétrico, além de transformar década de 70 do século passado, vinte e na metade dos anos 1970, com a radicalmente o espaço da festa, criou cinco anos após o surgimento do Trio emergência dos blocos novas formas de participação nos festejos. Elétrico. Trata-se do processo batizado de afro e o ressurgimento dos afoxés, Risério vai Primeiro, os foliões passaram a "pular "reafricanização" do carnaval7. Carac- caracterizar tal momento como o da carnaval" - o que quer dizer dançar com terizou-se pelo ressurgimento dos Afoxés "reafricanização" do movimentos simples e livres - ao som das e, particularmente, pela emergência dos carnaval baiano. músicas executadas pelo Trio Elétrico. Blocos Afro - estes, uma nova forma de Segundo, sendo o Trio Elétrico uma participação organizada da juventude espécie de "palco móvel", que se desloca negro mestiça no carnaval, que experi- pelas ruas da cidade, sua presença mentavam, na altura, o impacto das praticamente eliminou a dualidade palco- profundas transformações do mundo da

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 107 cultura e da informação, então, em curso estético-político de matriz afro baiana, as e das conseqüências da reconfiguração bases para o boom da indústria cultural e produtiva da economia do Estado. a conseqüente constituição de uma Assim como o surgimento do Trio economia cultural, que vai caracterizar a Elétrico, em 1950, veio revolucionar e cena baiana, a partir da metade dos anos particularizar o carnaval da Bahia, o 1980. processo de "reafricanização", espe- Os anos 1980 vão dar lugar ao cialmente com a entrada em cena dos terceiro e último dos cortes referidos. Blocos Afro, transforma radicalmente a Trata-se do aparecimento dos Blocos de trama carnavalesca baiana. Trio. Com suas cordas, privatizam o trio Os marcos fundamentais deste elétrico e reintroduzem uma hierarquia processo foram o "renascimento" do social na ocupação do espaço público da Afoxé Filhos de Gandhi, um dos símbolos festa. Dessa forma, realizam um movi- do carnaval baiano - organização carna- mento inverso ao registrado em 1950, valesca fundada, em 1949, por traba- quando essa mesma hierarquia foi lhadores da estiva do Porto de Salvador, desarticulada pela aparição do Trio um ano antes, portanto, do aparecimento Elétrico. Do ponto de vista estético, com do Trio Elétrico, e que, no início do dos base no repertório criado pelo processo anos 1970, praticamente desaparecera - de "reafricanização" do carnaval, estas e o surgimento do Ilê Ayiê, o primeiro dos organizações constituem o palco privi- muitos Blocos Afro surgidos no período. legiado para o nascimento da chamada É importante ressaltar a transcen- "axé music", nome pelo qual ficou dência do foco e dos objetivos destas conhecido o gênero musical que, partir do novas organizações, que extrapolam os carnaval da Bahia, conquistou espaços na limites de uma mera participação no mídia televisiva e posições expressivas no carnaval. Com efeito, explicitando mercado fonográfico brasileiro. Ao marcadamente um caráter étnico, os organizarem-se empresarialmente, privi- Blocos Afro hegemonizam, do ponto de legiando a dimensão de mercado, os vista estético, musical e gestual, os Blocos de Trio vão ocasionar um impor- festejos, produzem níveis de inserção, na tante salto de escala; contribuindo não sociedade, imbricando cultura, política e apenas para a transformação do carnaval mercado; assentam, com seu repertório baiano em um produto com um ciclo de

108 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro realização, que ultrapassa os limites da Blocos Afro), elementos que, em conjunto, festa e da cidade - são os Blocos de Trio articulam a produção e amplificação do os responsáveis pela "exportação" do carnaval baiano, seus produtos e mer- modelo carnavalesco baiano para dezenas cados. de cidades brasileiras, que realizam seus É, pois, apoiada na conjunção carnavais fora do período tradicional da desses elementos que a festa afro- festa -; mas também para o estímulo de elétrico-carnavalesca adentra os anos outras organizações carnavalescas, 1990, requalificada como um megaevento particularmente os Blocos Afro, a e transformada em produto e mercado. arriscarem-se em aventuras organi- Com uma capacidade impressionante de zacionais semelhantes, particularmente, gerar, transformar e realizar seus múltiplos no que diz respeito ao jogo do mercado. produtos (música, artistas, organizações A esses três importantes marcos da e o próprio Trio Elétrico) e de articular- festa, cuja conjunção determina o desenho se, de forma multifacetada, com a indústria atual da festa, devem ser agregados alguns cultural (rádio, televisão, indústria outros importantes elementos poten- fonográfica), com a indústria do turismo cializadores da transformação do carnaval e do lazer e com a economia de serviços em grande negócio. Inscrevem-se, aqui, da cidade; o carnaval passa a exibir uma variadas ações empresariais privadas na estrutura e uma lógica organizacional área da indústria cultural (gravadoras, crescentemente complexa; uma economia editoras, emissoras de rádio FM, espaços e uma indústria plenamente desenvolvidas para grandes shows etc.); significativos e consolidadas; e imensas e diversificadas avanços tecnológicos (do Trio Elétrico, dos possibilidades de negócios significa- estúdios de gravação etc.); ações político- tivamente representativas enquanto fonte administrativas de grande relevância de emprego e renda para a cidade. (como, por exemplo, uma agressividade mercadológica na política de fomento ao Os negócios da festa turismo e o necessário provimento de O carnaval baiano transformou-se, infra-estrutura e serviços públicos de na linguagem do show business, num qualidade, que viabilizam a realização da megaevento. Uma rápida olhada sobre festa carna-valesca na cidade); e ações alguns dos números da festa apresentados político-culturais (como as realizadas pelos no Quadro I confirma esta condição.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 109 Quadro I Indicadores Gerais do Carnaval Baiano 2006-2007 Item Discriminação Duração dos festejos 6 (seis) dias Público estimado 800 mil pessoas / dia (moradores) 8. EMTURSA. Relatório - Indicadores. 100 mil pessoas / dia (turistas nacionais e Salvador: Emtursa S.A.; Prefeitura Municipal de estrangeiros) Salvador, 2006. 28p. e INFOCULTURA. Espaço urbano ocupado pela festa 25 km de avenidas, ruas e praças e 30 mil Carnaval 2007: uma m2 de espaços alternativos para shows e festa de meio bilhão de Reais. Salvador: outros eventos Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, n.1, Número de organizações carnavalescas 227 set. 2007. 26p. Ocupações temporárias (setor privado) 97 mil Ocupações temporárias (setor público) 34 mil Pernoites na rede hoteleira 115 mil Taxa média de ocupação hoteleira 72,9% Fluxo de passageiros (transporte rodoviário) 156 mil Fluxo de passageiros (aéreo) 446 mil Fluxo de passageiros (ferry boat) 238 mil Profissionais de imprensa credenciados 2.531

Fontes: Emtursa; Infocultura8.

Como os números acima bem sugerem, o carnaval passou a exigir do governo da cidade uma mudança radical no seu posicionamento institucional, técnico e operativo de forma a permitir o enfrentamento e a solução de questões centrais - planejamento, organização, gerenciamento, montagem de infra-estruturas e equipamentos, fornecimento de serviços e treinamento de pessoal - indispensáveis à realização da festa.

110 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro E não poderia ser diferente face Assim, trata-se, afinal, para a ao tamanho físico da festa que ocupa máquina administrativa da Prefeitura, uma área considerável do ponto de vista de enfrentar o desafio de planejar e da malha urbana da cidade. A rigor, o gerir uma cidade transfigurada, em sua carnaval acontece nos três circuitos por lógica cotidiana, pela festa; desafio que onde desfilam as mais de duas centenas se estende, também, a vários setores do de entidades carnavalescas e a multidão Governo Estadual, em especial, a de foliões que as acompanham: o aqueles que respondem pela segurança circuito "Osmar"- também conhecido pública e saúde e às empresas privadas, como circuito da "Avenida", é o mais que operam concessões de serviços tradicional, remontando aos primeiros públicos urbanos (energia elétrica, carnavais da cidade; o circuito "Ba- telefonia, saneamento etc.). Nessa tatinha" - que ocupa um pequeno trecho medida, compreende-se que o poder da cidade entre a Praça Castro Alves, público tenha assumido, a partir das famosa nos carnavais dos anos 1970, a últimas duas décadas, a condição de zona do chamado Centro Histórico e o ator dos mais importantes do carnaval, circuito "Dodô" - incorporado aos particularmente como provedor e ge- festejos a partir do expressivo cres- renciador de infra-estruturas e serviços. cimento experimentado pela festa no Por outro lado, tratado como um início dos anos 1990, margeia a orla da negócio estratégico pela multiplicidade cidade entre a Barra e a Ondina. de atores e arranjos institucionais, tanto Mas não se restringe exclusi- públicos como privados, que se de- vamente aos 11,5 km dos três circuitos senvolvem à sua volta, o carnaval a área ocupada pelo carnaval. As ruas baiano adquiriu, nesta sua nova con- e avenidas no seu entorno recebem figuração, significação de grandes multi-dões de foliões e uma infinidade proporções para a vida social e eco- de barracas, onde são comercializados nômica da cidade. Com efeito, a festa todo tipo de alimentos e bebidas, em amplifica as oportunidades de negócio muitos bairros da cidade, distantes do de agentes produtivos os mais diversos centro nervoso da festa, são armados e produz resultados de grande mag- palcos para a apresentação de bandas nitude, conforme os números apre- e cantores. sentados no Quadro II.

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 111 Quadro II 9. Ibid, p.25-26. Indicadores Econômicos do Carnaval Baiano 2007 Item Reais Movimento financeiro direto 302,1 milhões Cenário I – conservador (multiplicador = 1,4) 423,0 milhões Cenário II – moderado (multiplicador = 1,5) 453,2 milhões Cenário III – otimista (multiplicador = 1,6) 483,4 milhões Receita Pública 5,8 milhões Impostos 1,6 milhão Taxas 1,3 milhão Cotas de patrocínio 2,9 milhão Receita Privada 171,1 milhões Organizações carnavalescas (blocos, afoxés, etc.) 69,3 milhões Hotéis 59,9 milhões Camarotes 17,0 milhões Transporte Rodoviário 5,3 milhões Ferry Boat 1,7 milhão Infra-estrutura (montagem, energia, limpeza, etc.) 14,6 milhões Comunicação / Publicidade 3,5 milhão Despesas Públicas 49,1 milhões Prefeitura Municipal de Salvador 20,6 milhões Governo do Estado da Bahia 27,7 milhões Ministério da Cultura 0,9 milhão Despesa Privada (estimativa) 125,0 milhões Patrocínio às entidades privadas (estimativa) 30,0 milhões Despesas dos Foliões 223,0 milhões

Fonte: Infocultura 9

112 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro Um primeiro e importante conjunto tricistas etc., muitos dos quais são de atividades diz respeito à festa propria- associados à própria entidade, morando e mente dita. Trata-se da economia articu- exercendo suas atividades informais junto lada pelos blocos e entidades carna- à comunidade de origem do bloco ou valescas que passaram, majoritariamente, afoxé. de simples agremiações lúdicas a empre- Mas são os grandes blocos que, sas altamente lucrativas. Totalizando, hoje, certamente, liderando a exploração do um número superior a duas centenas, os carnaval-negócio, corporificam e põem blocos demandam um sem número de em movimento essa economia do carna- 10. São assim deno- atividades. Os grandes blocos, por val. A sua carteira de negócios dá conta minados os milhares de trabalhadores, regra exemplo, chegam a empregar à volta de de um sem-número de atividades ligadas geral, negros e pobres, encarregados de segu- 2.000 pessoas durante o carnaval, à produção e comercialização de produtos rarem as cordas que recrutadas entre os trabalhadores autô- simbólico-culturais, tipicamente carna- delimitam o espaço dos blocos durante o des- nomos e o exército de subempregados e valescos, tais como: file. desempregados, para prestarem serviço 11. Nome que se dá à vestimenta utilizada como músicos, dançarinos, garçons, • a venda de abadás; pelos integrantes da pessoal de saúde, motoristas, seguranças, • a montagem e exploração de camarotes; maior parte dos blocos. "cordeiros"10, estilistas, eletricistas, • a captação de patrocínios para o desfile, carpinteiros, técnicos de som e iluminação que, em muitos casos, se estende a outros etc. A este numeroso conjunto de presta- eventos vinculados ao bloco, como a dores de serviços devem ser agregados participação em carnavais fora de os serviços contratados pelos blocos a Salvador e a realização de festas e shows terceiras empresas, responsáveis, por durante todo o ano Brasil afora; exemplo, pela montagem de Trios Elétricos • a comercialização de bebidas e alimentos e de veículos de apoio, confecção de durante o desfile e nos eventos que realiza; abadás11, produção de faixas e placas, • a propriedade ou co-propriedade de aplicações de silk-screen, etc. outros blocos; Embora numa escala menor e bem • franquias da marca do bloco operadas menos profissionalizada, os pequenos nas muitas cidades brasileiras que realizam blocos também recorrem a variados carnavais fora de época; e prestadores de serviços, mobilizando • a parceria empresarial com cantores e costureiras, carpinteiros, pintores, ele- bandas que dá lugar a negócios variados

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 113 como a exploração de trios elétricos, a espetáculos, as locadoras de automóveis, participação nos carnavais fora de época as frotas de táxis e de transportes públicos e nas micaretas, a promoção e realização coletivos, as indústrias de bebidas e de shows. Aqui, vale registrar, profun- alimentos etc. damente associado ao crescimento dos Num terceiro conjunto, igualmente blocos está o sucesso artístico e empre- importante, situam-se as atividades típicas sarial alcançado por cantores e bandas da indústria cultural e do lazer, espe- musicais que ocupam, hoje, um lugar cialmente vinculadas ao show business e destacado no espaço mercantilizado do à indústria fonográfica, e que aciona carnaval. De simples cantores de bloco, artistas, músicos, produtores, técnicos das muitos, inclusive, lançados no mercado mais diversas especialidades, bem como pelos próprios blocos, estes cantores e gravadoras, produtoras, editoras e bandas tornaram-se grandes estrelas do emissoras de radiodifusão. show business carnavalesco: criaram suas Outro conjunto de atividades, que produtoras e editoras para cuidarem das representa um elemento importante da carreiras que vendem centenas de economia do carnaval, é o comércio de milhares de discos, implantaram estúdios rua com o seu significativo contingente de de gravação e, principalmente, entraram pessoas ocupadas temporariamente. de forma decidida no mercado do carna- Presença constante na história e no val-negócio, criando seus próprios blocos cotidiano das ruas da velha cidade de ou tornando-se co-proprietários de blocos Salvador, as atividades desse comércio já existentes, montando seus trios elétricos, exibem um colorido especial durante o participando dos carnavais fora de época carnaval. São as famosas e tradicionais e micaretas em muitas cidades brasileiras. baianas de acarajé, os barraqueiros, os Um segundo e expressivo conjunto vendedores ambulantes de toda sorte de de atividades imbricadas com o carnaval- produtos (cervejas, bebidas típicas, água negócio corresponde aos serviços e mineral, gelo, pipoca, picolé, queijinho, produtos ligados, direta e indiretamente, à churrasquinhos, sanduíches, cachorro- economia do turismo: a rede hoteleira, as quente, amendoim, cigarros, cafezinho, transportadoras aéreas, as agências de adereços, colares, apitos etc.), os cata- viagens, as operadoras de turismo, o setor dores de papel e de latas de alumínio, os de restaurantes, bares, boates e casas de guardadores de carro, todos integrando um

114 Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro incrível exército de pequenos vendedores arrecada pouco em termos de tributos seja dispostos ao trabalho que a festa lhes por conta da elevada sonegação, seja, proporciona e que somam algo em torno também, pelo grau de informalidade com de 25 mil pessoas. que muitos dos negócios são realizados, mas é obrigado a arcar com gastos Desafios da Festa consideráveis em áreas vitais para a O carnaval baiano, em que pese o realização da festa como, por exemplo, tamanho e a pujança da sua economia, infraestrutura, serviços públicos e segu- ainda não teve a oportunidade de se rança. Ator fundamental para o sucesso constituir, efetivamente, como um espaço do carnaval, sua presença é indispensável, onde as várias alternativas de sobre- tanto para a regulação do mercado vivência, experimentadas por expressivo carnavalesco, quanto para o exercício de contingente da população de Salvador, uma governança efetiva da festa; sem o possam transformar-se em um projeto de que, a tendência é a ampliação e o desenvolvimento; devidamente sintonizado aprofundamento do quadro de desigual- com o que podemos chamar de vocação dade que vem excluindo os atores e os pós-industrial da cidade de Salvador. setores mais frágeis de uma melhor Com efeito, a repartição da riqueza, repartição dos benefícios econômicos gerada pela grande festa baiana, é gerados pela festa. absolutamente desigual. Os maiores Vale a pena sinalizar, contudo, que, benefícios financeiros concentram-se em se tratando do carnaval, um fenômeno quase que exclusivamente nas mãos das acima de tudo simbólico-cultural, o desafio poucas empresas, que atuam nos segmen- é ainda maior. A questão, aqui, impõe tos dominados pelos grandes capitais soluções que ultrapassam o plano da responsáveis pelos múltiplos negócios dos economia da festa. Nessa medida, ao grandes blocos e pelo parque hoteleiro. poder público, se é importante que avance, Na outra ponta desta economia, micro e no sentido do desenvolvimento de meto- pequenas empresas e um exército de dologias adequadas ao mapeamento trabalhadores informais disputam alguma rigoroso dos fluxos, que dão corpo à renda, num ambiente altamente compe- economia do carnaval, particularmente titivo e com baixíssimas margens de lucro. para que seja capaz de acionar as medidas Por outro lado, o poder público regulatórias indispensáveis à definição de

Revista INTERFACES - Número 11 / 2 0 0 8 - Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de J an eiro 115 limites e regras, balizadora das práticas fundamental que, partindo do reconhe- mercantis, que o carnaval comporta, e se cimento do significado que esta festa tem, é absolutamente indispensável que assuma enquanto patrimônio imaterial da cidade; o papel que lhe cabe na governança da este acione políticas culturais que festa - papel do qual, ao longo dos últimos garantam a prevalência da diversidade de anos, tem aberto mão em favor dos manifestações, do espírito popular e do grandes capitais, que atuam na economia caráter participativo, que fizeram do do carnaval - é ainda mais urgente e carnaval baiano uma grande festa.

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