Priscila Gomes Correa. Chico Buarque E Caetano Veloso: Interfaces De Um Cotidiano Urbano, Primeiras Canções.* (FFLCH-USP – Pós-Graduanda)
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Priscila Gomes Correa. Chico Buarque e Caetano Veloso: interfaces de um cotidiano urbano, primeiras canções.* (FFLCH-USP – pós-graduanda). A abordagem de temas e questões da vida cotidiana urbana tem sido muito comum na canção popular brasileira, como retrato das contradições e problemas da vida urbana ou de suas vivências e imaginários, formando uma extensa e complexa rede de recados e interlocução. Observa-se que a canção popular urbana foi se configurando com base nos gestos e meneios da fala cotidiana,1 mas com o rádio e o disco ela começou a compor o dia-a-dia das residências e estabelecimentos comerciais de maneira amplificada. Da fala cotidiana, entrava então para o cotidiano urbano, desprendida e para além de seus antigos espaços de audição, mas sem deixar de articular a diversidade de recados que o compositor popular vinha comunicando, pois, como caracterizou José Miguel Wisnik, a música popular seria uma rede de recados que não abarca somente o conceitual, pois capta também e, sobretudo, um conjunto de forças, uma “pulsação que inclui um jogo de cintura, uma cultura de resistência que sucumbiria se vivesse só de significados, e que, por isso mesmo, trabalha simultaneamente sobre os ritmos do corpo, da música e da linguagem”.2 Trata-se de uma indicação de como a canção foi se tornando uma forma de comunicação capaz de revelar e compor a vida cotidiana, um modo de dizer especial e compartilhado, por isso sempre envolvendo os mais diversos contra-discursos e re-significações, assim captando as transformações urbanas. Essas diversas interlocuções acompanharam sua evolução ao longo do século, passando pela consolidação do samba como gênero mais representativo, pela bossa nova, o tropicalismo e seus desdobramentos. Caetano Veloso e Chico Buarque são dois importantes artistas brasileiros que a partir da década de 1960 começaram a atuar nessa rede de recados ao tomar a canção como expressão privilegiada para expor impressões críticas sobre a cultura e o cotidiano urbanos no Brasil. De maneira que ao confrontarmos o alvorecer dessas duas trajetórias artísticas, identifica-se que, em seus primeiros trabalhos, ambos os artistas partiram de temas do dia-a-dia, enfatizando aspectos semelhantes da sociedade, mas sob óticas diferenciadas. * Trabalho realizado com o apoio da FAPESP 1 Primeiro, referimo-nos aqui a um determinado segmento da canção popular - urbana, comercial e de privilegiada inserção nos meios de comunicação, artísticos e intelectuais - constituindo uma espécie de tradição desde os primeiros sambistas, passando por artistas mais consagrados como Noel Rosa e Ataulfo Alves até chegar em João Gilberto, em Caetano, Chico e Vandré, em Ivan Lins, Cazuza, Lenine, etc. Segundo, Luiz Tatit identificou já na obra de Domingos Caldas Barbosa, de fins do século XVIII, a configuração de um tripé sobre o qual, no século XX, iria se erigir a canção popular brasileira, constituído por um aparato rítmico oriundo dos batuques, por melodias que deixavam entrever a fala cotidiana, e por inflexões românticas. Cf. Tatit, L. O século da canção. Cotia, Ateliê Editorial, 2004, p.27 2 Wisnik, J. M. O Minuto e o milênio ou por favor, professor, uma década de cada vez. In. Sem receita. São Paulo, Publifolha, 2004. p.170 Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. 1 Em suas primeiras canções encontramos manifestações paralelas, complementares e até convergentes sobre um cenário de profundas transformações na sociedade brasileira, pois, pelo menos desde meados da década de cinqüenta, o processo de industrialização do país se intensificou em paralelo ao crescente desenvolvimento do mercado e dos meios de comunicação de massa, motivando grandes levas de migração interna e crescimento urbano desordenado. Às transformações políticas e sociais somou-se uma onda de grande efervescência cultural, em especial a partir dos movimentos ideológicos e de contracultura que caracterizaram o 1968 pelo mundo. Destarte, os artistas foram levados gradativamente a responder às pressões de seu tempo e, na perspectiva deste trabalho, as canções constituem o indício, o vestígio e expressão de modos de pensar, de perspectivas e sensibilidades que revelam e compõem, fazendo emergir diferentes e múltiplas faces de uma realidade, permitindo a abordagem das diversas inter- relações entre as representações presentes nas primeiras composições de Chico e de Caetano, mais especificamente nos dois primeiros álbuns de suas carreiras lançados entre os anos de 1966 e 1967, álbuns representativos, visto que já configurando temas recorrentes no conjunto de suas obras. *** Filhos da mesma geração,3 sendo ambos influenciados pela renovação da Bossa Nova, Caetano e Chico buscaram criar estilos próprios a partir de releituras do samba, visto como um dos ritmos mais populares do país e que naquele momento gozava do novo fôlego trazido pela “batida” de João Gilberto, encarada como uma síntese do samba realizada ao violão.4 Caetano Veloso (1942) nasceu e cresceu no Recôncavo Baiano (Santo Amaro da Purificação), seguiu para o eixo Rio-São Paulo em meados da década de sessenta. Chico Buarque (1944) nasceu no Rio de Janeiro, mas realizou seus estudos em São Paulo. Ambos iniciaram suas carreiras ao participarem dos festivais de música transmitidos pela televisão, e continuaram produzindo até os dias de hoje, tendo quase todas as suas obras registradas em áudio e vídeo. Já no primeiro disco (Domingo-1967) Caetano discutiu sua relação com as canções quando na contracapa começou a traçar um esboço de seu “projeto” como músico: “a minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário quer incorporar essa saudade num projeto de futuro”, destacando que se tratava de um trabalho com canções mais antigas (pois no mesmo ano estava gravando seu segundo disco com um estilo mais definido), mas já com uma acentuada visão da vida urbana, como revela a valsinha 3 Neste caso, pertencer a uma geração é um fenômeno natural e também cultural, sendo resultado de uma reconstrução do historiador que classifica e rotula, como também de uma auto-representação dos atores históricos. Cf. Sirinelli, J-F. A Geração. In: Ferreira, M. M e Amado, J. (orgs.) Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000, p.133. 4 Cf. Garcia, W. Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p.21 Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. 2 Domingo. Nesta a cidade ainda é doce,5 guarda os singelos hábitos comunitários de passear na praça aos domingos. No entanto, a canção já não compõe o projeto de Caetano, assim como o todo do álbum, com canções ainda muito ligadas a bossa nova, inclusive com sambas de estrutura rítmica e narrativa muito semelhante aos trabalhos de Chico Buarque. Fato compreensível quando se observa que, além das influências comuns, para a gravação e veiculação de seus primeiros trabalhos Caetano e Chico atuaram no mesmo círculo de amigos e contatos artísticos, incluindo Francis Hime, Edu Lobo, Roberto Menescal, entre outros. Nos trabalhos seguintes, Caetano já estava plenamente envolvido no movimento tropicalista, com canções ousadas tanto na letra como na música, mas sempre permeadas por um desconcerto em relação à “capital” (Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro), à presença cotidiana do mercado e do consumo e ao acalorado debate intelectual sobre o Brasil. Aliás, ao longo das décadas seguintes podemos acompanhar em seus trabalhos a continuidade desse primeiro momento (de No dia em que eu vim-me embora; Paisagem útil; Superbacana; Tropicália; Alegria, alegria; Eles), um aprofundamento de suas reflexões sobre a canção e a cultura. Entretanto, a base tropicalista de sua obra sempre expôs uma preocupação com o aqui e agora, com a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento,6 daí o recurso constante a elementos do cotidiano. Não cabe aqui expor as características do movimento tropicalista, mas tão somente apontar sua variação estética sintonizada com a modernidade internacional, com os avanços tecnológicos, e, como sugeriu Luiz Tatit, com as dicções esquecidas ou desprezadas da MPB (p. ex. Vicente Celestino).7 Uma vez que Caetano Veloso se tornou um dos expoentes mais prestigiados do movimento, sua obra está não só ligada a tais transformações, como também as expressa e representa. A canção de 1967, Tropicália, gravada no segundo disco de Caetano Veloso, apresenta uma das possíveis sínteses de seu “projeto”, visto que constrói uma alegorização da realidade, valendo-se não mais da narrativa, mas da colagem poética, de ruídos e guitarras. Encontramos em Tropicália, não a descrição de uma cotidianidade particular, mas aquela que envolve toda uma sociedade, elementos que invadiam o dia-a-dia das residências, 5 Caetano, ao comentar a canção, diz “uma valsinha. Aqui, Santo Amaro aparece doce, sem putrificação”. Refere-se a uma canção posterior Acrilírico, na qual aparece o verso “Acrilíco Santo Amargo da Putrificação”, devido aos sinais de degeneração urbana e social da cidade. Cf. Veloso, C. Sobre as Letras. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p.21 e 36. 6 Sobre a atitude tropicalista cf. Hollanda, H. B. de Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde 60/70. São Paulo, Brasiliense, 1980. 7 Cf. Tatit, L. O Cancionista. São Paulo, EDUSP, 1996, p.264 Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. 3 sobretudo pelo filtro da mídia televisiva,8 ao mesmo tempo em que expõe imagens constrangedoras ao discurso desenvolvimentista.9 Um olhar crítico sobre a política e a atitude dos artistas e intelectuais de esquerda ligados ao projeto nacional-popular disseminado, sobretudo, pelos CPCs (Centro Popular de Cultura) da UNE, também está presente em muitas das primeiras canções de Caetano.