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AS POSSIBILIDADES DA SEXUALIDADE FEMININA EM

Bárbara Camirim Almeida Lopes1

Resumo: A primeira sequência do piloto de Orange is the New Black (OITNB), lançada em 2013 pela , traz a protagonista , em voz off, declarando que sempre amou tomar banho. Na tela, vemos a montagem de diversos banhos ao longo de sua vida. Em uma dessas imagens ela está acompanhada de uma mulher e em outra, de um homem. Desde o momento inicial, a série já indica que sua protagonista não segue o padrão de sexualidade heteronormativa. No decorrer da narrativa, que acompanha o cotidiano da Penitenciária Litchfield, a relação das personagens com a própria sexualidade é um tema frequentemente abordado. Além da questão das orientações sexuais (a série apresenta personagens lésbicas, bissexuais e heterossexuais), OITNB traz ainda a discussão sobre a fluidez entre estas categorias no contexto da privação de liberdade. O debate sobre a relação entre sexualidade e poder (tanto o exercido pelas mulheres quanto o exercido sobre elas) também está presente. Este trabalho se propõe a analisar, portanto, como a sexualidade feminina é tratada na obra: sua pluralidade, sua potencialidade e suas limitações. Para isto, recorreremos à literatura ligada à análise de narrativas audiovisuais, mas também à referente aos estudos de gênero e sexualidade. Acreditamos que a série é um frutífero objeto de estudos pela quantidade e diversidade de personagens femininas e pela atenção que a sexualidade recebe na obra.

Palavras-chave: Ficção Seriada. Sexualidade Feminina. Análise Televisiva. Orange is the New Black. Estudos de Gênero.

A série Orange is the New Black (OITNB), criada pela roteirista e produtora-executiva , estreou em 2013 na plataforma de streaming Netflix, tornando-se um grande sucesso de público.2 Livremente inspirada no livro de mesmo nome, escrito por , a série já tem cinco temporadas disponíveis e mais duas contratadas.

A história se passa na penitenciária ficcional Litchfield e acompanha o dia a dia das presidiárias do local. O ponto de partida da narrativa é a chegada da protagonista Piper Chapman à prisão. Sua adaptação ao ambiente é um dos temas principais da primeira temporada de OITNB, mas com o passar dos episódios, outras personagens também vão ganhando destaque e arcos narrativos próprios. O recurso do flashback, utilizado em quase todos os episódios, nos ajuda a conhecer melhor as personagens e suas vidas antes do encarceramento.

A obra despertou interesse acadêmico, já tendo sido analisada por diferentes pontos de vista, como o da representação de mulheres idosas (Silverman; Ryalls, 2016), o da possibilidade de agência feminina (Fernández-Morales; Menéndez-Menéndez, 2016) e o da questão racial (Enck; Morrissey, 2015; Belcher, 2016). Millete (2015) abordou questões de etnia, gênero e sexualidade na

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrante do Laboratório de Análise de Teleficção (A-Tevê). Bolsista Fapesb. Salvador, Bahia, Brasil. 2 http://variety.com/2016/tv/ratings/tv-ratings-orange-is-the-new-black-premiere-nielsen-1201805991/ último acesso: 05/07/2017

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série. Para a autora, “[a] representação da sexualidade e gêneros fluidos são indiscutivelmente dois dos aspectos que mais chamam a atenção em Orange is the New Black”3 (Millete, 2015, p. 18, tradução nossa). Ela analisa as personagens , Piper Chapman e Sophia Burset para entender como essas questões são trabalhadas pela série. Symes (2016) também examina a protagonista para entender como a série convoca o público feminino heterossexual a se engajar com a sexualidade lésbica. No presente artigo, pretende-se ampliar a discussão sobre a forma como a sexualidade feminina é tratada na série.

Devido ao grande número de personagens e arcos narrativos, selecionamos aqueles que suscitam as discussões mais interessantes a respeito da sexualidade na série. Primeiramente, investiga-se a relação entre a detenta Dayanara Diaz e o guarda John Bennett, que convoca discussões acerca do desequilíbrio de poder em um romance entre uma presidiária e um carcereiro. Em seguida, analisa-se comparativamente as personagens Piper Chapman, Lorna Morello e Brook Soso, para entender as diferentes manifestações da bissexualidade neste mundo ficcional. Por fim, examinamos os flashbacks dos episódios You also have a pizza (02x06) e Finger in the Dyke (03x04) para entender as relações familiares de duas personagens lésbicas: Big Boo e .

Para efetuar esta investigação, torna-se produtiva a compreensão acerca da personagem ficcional. De acordo com Eder, Jannidis e Schneider (2010):

Em contraste com os objetos, os personagens possuem estados mentais, como percepções, pensamentos, sentimentos e objetivos. Consequentemente, os personagens têm uma aparência externa e um estado interno da psique que não é visível do lado de fora. (...) A relação entre um personagem e seu ambiente pode pressupor corpo e mente, mas outras qualidades particulares emergem da interação social, por exemplo, papéis sociais. Nas três áreas da estrutura geral dos personagens - corporeidade, psique e socialidade - as características que são atribuídas aos personagens podem ser estáveis (estáticas) ou variáveis (dinâmicas). (EDER; JANNIDIS; SCHNEIDER, 2010, p.13, tradução nossa)4

3 No original: “The portrayal of fluid sexuality and genders is arguably two the most attention-grabbing aspects of Orange Is the New Black.” 4 No original: “In contrast to objects, characters have mental states, such as perceptions, thoughts, feelings, and aims. Accordingly, characters have both an outer appearance and an inner state of the psyche that is not visible from the outside. (…) The relationship between a character and its environment may presuppose body and mind, but further particular qualities emerge from social interaction, e.g., social roles. In all three areas of the general structure of characters – corporeality, psyche, and sociality – the features that characters are ascribed can be either stable (static) or changeable (dynamic).”

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Admitindo esta definição como base, analisaremos características ligadas a corporalidade, a psique e a sociabilidade das personagens selecionadas, na medida em que sejam necessárias para entender como a narrativa de OITNB convoca as questões ligadas a sexualidade. Ao discorrer sobre o que seria a identidade do sujeito “mulheres”, Butler (2003), diz que:

O próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes. É significativa a quantidade de material ensaístico que não só questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato último à representação, ou mesmo à libertação, como indica que é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. (BUTLER, 2003, p. 18) Com este artigo, busca-se entender que construções de sujeitos mulheres, com olhar interessado principalmente na questão da sexualidade, são oferecidas pela obra. É importante ressaltar que, concordando com o proposto por Butler, não se pretende dizer que estas são as únicas possibilidades existentes e nem avaliar se são boas ou más representações. Entendemos que existe uma pluralidade de formas de entender o sujeito mulher e a sexualidade feminina e buscamos investigar como algumas destas estão expressas em OITNB.

Romance e desequilíbrio de poder na prisão

Um dos arcos narrativos de maior relevância nas primeiras temporadas de OITNB é o que envolve o romance entre a detenta Dayanara Diaz, apelidada de Daya, e o guarda John Bennett. Daya é mostrada como uma jovem hispânica, sonhadora e romântica, que gosta de desenhar e que tem uma relação conturbada com a mãe, a também detenta Aleida Diaz. Sua primeira interação com Bennett acontece no segundo episódio da série, quando ela lhe pede um chiclete e ele explica que não é permitido. No final do episódio, ela encontra um chiclete escondido embaixo de sua roupa de cama. Nas interações seguintes, eles parecem se dar bem e encontros que eram espontâneos passam a ser combinados.

Antes de terem a primeira relação sexual, Bennett questiona se a relação entre eles não é inapropriada, mas ambos declaram seus sentimentos um pelo outro. O romance se complica quando Daya descobre que está grávida. Sua primeira reação é querer abortar, mas depois assume que quer ter o filho sem envolver Bennett em problemas, já que, legalmente, a relação sexual entre os dois é considerada estupro. A primeira reação de Bennett também é sugerir o aborto, com medo das consequências de ter se envolvido com uma detenta, o que deixa Daya chateada. Estabelecida a decisão de manter a gravidez, Daya e outras detentas armam para o guarda George Mendez,

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corrupto e autoritário, ser responsabilizado: Daya o seduz e ele é pego em flagrante pela administração do presídio.

Na segunda temporada, acompanhamos a gestação de Daya. As detentas que sabem sobre a verdadeira paternidade do bebê passam a chantagear Bennett, exigindo itens contrabandeados. Quando ele finalmente reage, usa sua prerrogativa de guarda para distribuir advertências e mandar uma das detentas para a solitária. Daya, incomodada com a atitude, provoca-o para ser punida também. A relação de poder estabelecida entre os dois fica explicita na fala dela, após ele se recusar a puni-la: “Mas poderia se quisesse, certo? Porque você tem escolha. Você tem o poder. Eu sou uma detenta. Eu não tenho nada.”. Os desentendimentos entre eles continuam pelo fato de Daya se sentir culpada por ter armado para o guarda Mendez e incomodada por Bennett não assumir publicamente o relacionamento, com medo das consequências. Quando ele finalmente o faz, o administrador do presídio esconde o assunto, para não criar mais problemas burocráticos para si mesmo.

O segundo episódio da terceira temporada é decisivo para este arco narrativo. Neste episódio, a mãe de Mendez se oferece para adotar a criança, acreditando se tratar de seu neto. Bennett nem considera a ideia, mas Daya cogita, acreditando que seu futuro bebê poderia ter uma vida mais privilegiada do que a dela. No mesmo episódio, Bennett pede Daya em casamento e, posteriormente, visita a casa onde seus irmãos vivem para contar a novidade. Ele fica assustado com a situação precária e com a forma autoritária como Cesar, amigo da família e guardião das crianças, conduz a dinâmica do lugar. No fim do episódio, vemo-lo deixar o berço que ganhou de Cesar na beira da estrada e partir com o seu carro, em sua última aparição na série.

Toda a construção deste arco narrativo convoca o espectador a torcer pelo casal. A inocência dos primeiros encontros, as declarações de amor e a música recorrente utilizada na trilha sonora indicam se tratar de um arco narrativo de romance. Porém, no contexto maior da série, não se pode ignorar a relação de poder existente entre as duas personagens. Isto fica claro no desenrolar da trama. Segundo Millete, “[o]s sentimentos e emoções expressados entre Daya e Bennett são tão puros e genuínos que quase se esquece da natureza desastrosa da situação ilícita deles” (Millete, 2015, p. 68, tradução nossa)5. Em nenhum momento a narrativa dá a entender que a relação sexual entre eles não foi consensual, pelo contrário, Daya é a personagem que tem a iniciativa nestas cenas. Porém, é dito mais de uma vez que a lei não permite que um guarda alegue consentimento no

5 No original: “The feelings and emotions expressed between Daya and Bennett are so pure and genuine that one almost forgets the disastrous nature of their illicit situation.”

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caso de uma relação com uma detenta. Além disso, nos momentos de conflito entre o casal, Bennett recorre a sua prerrogativa de guarda. Mesmo que em alguns momentos Bennett pareça ser a parte menos poderosa da relação, como quando ela decide manter a gravidez, a resolução final do romance evidencia que ele é quem tem o poder real, uma vez que ele é livre para ir embora, ela não.

Manifestações da Bissexualidade

Embora as personagens Piper Chapman, Lorna Morello e Brook Soso não necessariamente se refiram a si mesmas como bissexuais, as três são mostradas tendo interesse romântico ou sexual por homens e por mulheres em diferentes pontos da narrativa. Porém, a forma que elas entendem a própria sexualidade difere, tornando-as um interessante objeto de estudo para entender as maneiras pelas quais a bissexualidade está manifestada em Orange is the New Black.

Piper Chapman é apresentada como uma mulher de 32 anos, branca, com um alto nível educacional e de classe média alta, o que mesmo no ambiente da prisão lhe confere alguns privilégios. Logo na primeira sequência do episódio piloto, o espectador fica sabendo que ela já se relacionou ao menos com um homem e com uma mulher, através de uma sequência de flashbacks. No decorrer da série, outros flashbacks são mostrados, o que nos permite reconstituir parte do seu passado e o motivo que a levou a prisão.

Recém-formada na faculdade, Piper, que até então não tinha se relacionado com mulheres, conheceu e acabou por tornar-se sua namorada. Alex era parte de um cartel internacional de tráfico de drogas e Piper aceitou se envolver nas atividades criminosas em uma ocasião. Este relacionamento terminou e, posteriormente, Piper conheceu Larry Bloom, que é seu noivo no início da narrativa. Eventualmente, Piper é condenada pelo envolvimento que teve com o tráfico, sendo este o ponto de partida da série. Uma vez na prisão, Piper reencontra Alex e antigos sentimentos voltam à tona. O triângulo amoroso que se forma entre Piper, Alex e Larry é um dos principais arcos narrativos da primeira temporada da série. Nas temporadas seguintes, o noivado de Piper e Larry se desfaz, Piper se envolve brevemente com outra detenta, porém o romance entre a protagonista e Alex continua um dos principais focos de OITNB, culminando em um pedido de casamento, na temporada mais recente.

Assim como Piper, Lorna Morello é uma mulher branca de cerca de trinta anos, porém é mostrada como de classe média baixa. Até o quinto episódio da primeira temporada, Lorna mantém

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relações sexuais com a personagem , mas eventualmente as interrompe, argumentando que precisa ser fiel ao seu noivo Christopher. No quarto episódio da segunda temporada, descobrimos, através de flashbacks, que a relação amorosa entre Lorna e Christopher é uma invenção da imaginação dela, que começou a persegui-lo após um encontro fracassado e foi presa após colocar uma bomba no carro da namorada dele.

No desenrolar da história, Nicky segue sendo a relação afetiva mais próxima de Lorna, mesmo que elas não mantenham as relações sexuais. Na terceira temporada, após Nicky ter sido transferida para a prisão de segurança máxima, Lorna começa a se corresponder por carta com alguns homens e, por fim, casa-se com um deles, Vince Muccio. Na quarta temporada, após a volta de Nicky, Lorna aparenta ainda ter sentimentos e desejo por ela, mas mantém-se fiel ao marido até a quinta temporada. Após ter relações sexuais com Nicky novamente, Lorna se justifica dizendo que são os hormônios da gravidez. Como Lorna é construída como uma personagem que nem sempre sabe discernir sua imaginação e os fatos reais, o espectador é levado a duvidar da gestação, mas ao final da temporada se revela que ela de fato está grávida.

A personagem Brook Soso aparece na história a partir da segunda temporada da série. Ela é apresentada como bem jovem, de classe média alta e de descendência asiática. Sua descendência é um dos motivos pelo qual ela tem dificuldade de se adaptar a prisão. Como os grupos de amizade em OITNB são altamente influenciados pelo componente racial, Brook não é “adotada” por ninguém.

A dificuldade de adaptação e a solidão são mostradas de maneira crescente, culminando em uma tentativa de suicídio no final da terceira temporada. Ela é salva pela detenta Poussey Washington, com quem se envolve romanticamente na quarta temporada. Antes de Poussey, Brook havia se relacionado sexualmente com duas mulheres, sendo uma antes de ser presa e outra a detenta Nicky Nichols, com quem nunca chegou a ter um envolvimento romântico. O romance com Poussey faz Brook questionar a própria sexualidade: em um momento diz que se atrai por pessoas e não por gêneros, mas em outro diz não saber se fora do contexto da prisão essa relação seria suficiente. Porém, independentemente dos questionamentos ela declara seu amor por Poussey e as duas fazem planos para o futuro. O romance é interrompido com o assassinato de Poussey no final da quarta temporada e, durante a temporada mais recente, o público acompanha o processo de luto de Brook.

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O olhar para as trajetórias destas três personagens nos permite perceber as formas diferentes que o desejo sexual se manifestou em cada uma. Para Piper, a prisão não foi um catalisador que fez com que ela percebesse o desejo por outras mulheres. A relação dela com Alex já era bem estabelecida e a prisão facilitou apenas o reencontro entre elas. Em um de seus flashbacks, ela diz “Gosto de gostosonas. E gosto de gostosões. Gosto de gente gostosa. O que eu posso fazer? Sou superficial.”. Esta fala demonstra que ela já tinha consciência da própria fluidez sexual independentemente da privação de liberdade. Além disso, Piper se relaciona brevemente com a personagem Stella Carlin na terceira temporada, o que desencoraja a interpretação do desejo homossexual de Piper estar ligado apenas a uma “grande história de amor”, a um caso isolado.

Já para Lorna, a prisão parece ter sido fundamental para que ela se relacionasse com uma mulher. Pelos seus flashbacks, percebe-se apenas o desejo heterossexual, não só pela obsessão com Christopher como pela própria decoração do quarto, com fotos de galãs colados na parede. A própria conexão com Nicky é construída como romântica, sexual e recíproca, mas a personagem Lorna parece ter um nível de negação em relação a esses sentimentos. Além disso, Lorna em nenhum momento parece desejar outras mulheres, o que nos permite inferir que, até esse momento da narrativa, seu desejo por mulheres está ligado a uma pessoa e a uma situação específicas.

Brook parece estar no meio termo entre os dois casos. Embora ela já tenha tido relações sexuais com uma mulher antes do encarceramento, seus flashbacks tendem a mostrá-la como heterossexual. Diferentemente de Lorna, ao se envolver com mulheres na prisão – tanto Nicky, quanto Poussey – Brook não tenta encontrar uma explicação que negue seu desejo. A personagem se identifica como alguém que não gosta de rótulos. Romanticamente, Poussey parece ser a primeira mulher com quem ela se envolveu e, embora Brook questione se o relacionamento seria suficiente fora da prisão, as personagens fazem planos para o futuro, o que dá a entender que ela estaria disposta a descobrir.

Podemos dizer, por esta análise, que a série apresenta três formas diferentes de lidar com a fluidez sexual. A personagem Piper já tinha consciência de sua atração, tanto sexual quanto romântica, por homens e por mulheres desde antes do encarceramento, a personagem Brook entendeu melhor a própria sexualidade na prisão e a personagem Lorna, embora tenha desejos e envolvimento emocional com outra mulher, parece negar estes sentimentos.

Identidade Lésbica e Relação Familiar

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OITNB traz um conjunto de personagens identificadas como lésbicas: Alex Vause, Nicky Nichols, Carrie “Big Boo”, Poussey Washington, Suzanne “Crazy Eyes” Warren, Maureen Kukudio, Stella Carlin e Tricia Miller. Estas personagens formam um grupo heterogêneo, composto de diferentes raças, idades, classes sociais e aparências físicas6 e tem o potencial de suscitar discussões sobre diferentes aspectos relacionados a sexualidade lésbica. Os episódios You also have a pizza e Finger in the dyke trazem flashbacks das personagens Poussey Washington e Carrie “Big Boo” Black, respectivamente, retratando alguns momentos de suas vidas, anteriores ao encarceramento. Em ambos, a obra convoca a reflexão sobre a relação familiar destas personagens. Tanto Poussey quanto Big Boo estão presentes desde a primeira temporada da série. Poussey é introduzida como parte do grupo de detentas negras e ganha mais destaque na segunda temporada, participando de um dos arcos narrativos principais e tendo sua sexualidade evidenciada. Já Big Boo aparece desde o princípio como a personagem butch7 da prisão, com referências sendo feitas a suas relações amorosas desde a primeira temporada.

No episódio You also have a pizza, os flashbacks acompanham a época em que Poussey viveu na Alemanha. No primeiro flashback, ela é mostrada em uma base do exército, junto com outros filhos de militares. Poussey e uma jovem alemã se beijam, sendo provocadas por um dos meninos presentes. Eles conversam sobre as constantes mudanças de país e Poussey diz que o pai prometeu que dessa vez eles ficariam bastante tempo na Alemanha. No flashback seguinte, o pai da alemã flagra as duas meninas tendo relações sexuais. No terceiro, o pai de Poussey conta, contrariado, que está sendo transferido de volta para os Estados Unidos, pedindo desculpas a filha por não ter cumprido sua promessa. Em mais um flashback, vemos a menina alemã tentando pensar alguma forma delas continuarem juntas e se declarando, enquanto Poussey tenta disfarçar seu sofrimento por estar indo embora. No último flashback, Poussey confronta o pai da namorada, acusando-o de ser o responsável pela transferência de sua família de volta aos Estados Unidos. A câmera revela que Poussey traz uma arma na parte de trás de sua roupa e quando ela vai sacá-la, seu próprio pai chega, a tempo de impedir que as outras pessoas vejam que a filha estava armada. Ele se desculpa com o homem, que parece ser de uma patente mais alta. Este outro homem afirma que existem programas que podem mudar as “predileções confusas” de Poussey, mas seu pai afirma que a não há nada de errado com a filha.

6 Embora chame atenção que nenhuma lésbica pertence ao grupo das latinas, nem ao das idosas. 7 Termo que se refere a lésbicas de aparência associada ao que é tido como masculino.

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No episódio Finger in the Dyke, acompanhamos Big Boo em diferentes momentos da vida, através de flashbacks. No primeiro, a personagem, ainda adolescente, discute com a mãe a respeito de suas roupas. A mãe quer que ela use um vestido para ir à escola, porém ela se recusa. O pai, aparentemente mais compreensivo, pede que ela faça isso pelo menos um dia, para deixar a avó feliz, liberando-a para usar as roupas que quiser no restante do ano. No seguinte, Big Boo já é adulta e paquera uma mulher em uma boate. As duas caminham juntas pela rua quando um menino grita ofensas homofóbicas na direção delas, o que faz com que Big Boo se torne agressiva com ele. A mulher, assustada, diz que ela não pode culpar o menino quando ela é o “estereótipo do bofinho”. No terceiro flashback, Big Boo é mostrada na cama com a namorada que, após o sexo, tenta convence-la a ir visitar a mãe doente. No último, Big Boo vai finalmente ao hospital. Porém, seu pai, depois de um breve momento de afetividade, recomenda fortemente que ela troque suas roupas – tidas como masculinas – para não assustar a mãe, que está com a saúde frágil. Eles acabam discutindo e Big Boo desiste de visitar a mãe.

No primeiro caso, pode-se inferir que a personagem Poussey conta com o apoio do pai, que embora não esteja disposto a ir contra as hierarquias militares, protege a filha e se nega a considerá- la doente ou anormal. É possível notar que há uma relação de afeto entre pai e filha, que não parece ser abalada pela orientação sexual de Poussey.

No segundo caso, identifica-se uma relação mais adversa entre Big Boo e seus pais. É possível inferir que houve um afastamento entre eles na vida adulta da personagem e que a mãe, mesmo no final da vida, não aceitou a orientação e a identidade8 da filha. A relação com o pai parece ser um pouco mais afetuosa, porém ele também não respeita nem tenta entender a identidade da filha. Pode-se inferir que esta relação conflituosa com os pais permeou toda a vida de Big Boo, como fica expresso em sua fala no último flashback: “Eu tenho tido de lutar por isto minha vida inteira, pai. A vida inteira. Estranhos, namoradas, porra, até contra meus pais, todos me pedindo para ser algo que eu não sou. Tem ideia de como é isso? A puta da sua existência ser negada: ‘Opa, seria melhor se você fosse invisível’? Pois é. Eu me recuso a ser invisível, papai. Nem por você, nem pela mamãe, nem por ninguém. Então, desculpe.”.

As duas histórias trazem, em comum, personagens que não estão dispostas a abrir mão de seus desejos e de suas identidades. Porém, o que as difere são os aliados que as personagens

8 Separo orientação sexual de identidade, pois no caso desta personagem os conflitos com a família vem também da forma como ela se apresenta, suas roupas, cabelos, etc.

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encontram. Enquanto Poussey recebe apoio e compreensão do pai, Big Boo é mostrada como tendo tido uma experiência mais ligada à rejeição.

Considerações Finais

A série OITNB apresenta uma grande quantidade de personagens e arcos narrativos. A estrutura deste artigo reflete esta multiplicidade: analisamos alguns dos aspectos ligados a sexualidade feminina na obra, desejando somar a outros trabalhos que visam entender as questões colocadas pela série. Escolhemos examinar a relação de poder em uma relação heterossexual que tem a particularidade de envolver uma detenta e um guarda, a relação com a própria identidade em três personagens bissexuais e a relação familiar de duas personagens lésbicas. Certamente há outras formas de olhar para os aspectos da sexualidade feminina em OITNB.

A quantidade de personagens e as trajetórias diversificadas ajudam a construir um mundo ficcional em acordo com a ideia de que o sujeito mulher não é estável ou permanente. Cada uma das personagens analisadas passa por uma experiência diferente na sua relação com a sexualidade e sugere assim uma nova possibilidade do “ser mulher”.

Referências

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The possibilities of female sexuality in the series Orange is the New Black

Abstract: The first sequence of the pilot of Orange is the New Black (OITNB), released by Netflix in 2013, introduces protagonist Piper Chapman, in voice over, declaring that she always loved showers. On the screen, we can see the compilation of various showers in the course of her life. In one of those images, we see her accompanied by a woman and in another, by a man. Since the first moment, the series already indicates that its protagonist does not fit the pattern of heteronormative sexuality. Throughout the narrative, that follows the routine of Litchfield Penitentiary, the relationship of the characters with their own sexuality is frequently addressed. In addition to the issue of sexual orientation (there are , bissexuals and heterossexuals characters in the series), OITNB also discuss the fluidity of those categories in a context of deprivation of freedom. The debate concerning the relationship between sexuality and power (the one practiced by the women as well as the one practiced over them) is also approached. Therefore, this article aims to analyze how the series deals with female sexuality: its plurality, its potentiality and its limitations. In order to do that, we will use both the literature concerning the analysis of audiovisual narratives and the one concerning gender and sexuality studies. We believe that the series is a fruitful object for the quantity and diversity of female characters and for the attention that it gives to sexuality.

Keywords: Serial Fiction, Female Sexuality, Television Analysis, Orange is the New Black, Gender Studies.

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