Caminhando Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo v. 18, n. 1 – p.1-249, jan./jun. 2013 ISSN Impresso: 1519-7018 ISSN Eletrônico: 2176-3828

Caminhando v. 18, n. 1 – p.1-249, jan./jun. 2013 ISSN Impresso: 1519-7018 ISSN Eletrônico: 2176-3828

Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo

EDITEO São Bernardo do Campo, 2013 Caminhando Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Universidade Metodista de São Paulo v. 18, n. 1 – p.1-249, jan./jun. 2013

Catalogação preparada pela bibliotecária Aparecida Cornelli Tavares (CRB 8-3781) – Biblioteca Dr. Jalmar Bowden

Caminhando: Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista, v. 18, n. 1, 1º semestre de 2013. São Bernardo do Campo, SP: Editeo / Umesp, 1982.

Semestral Publicação da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – Universidade Metodista de São Paulo

ISSN 1519-7018 1. Teologia – Miscelânea 2. Teologia – Periódicos CDD 230.02

Faculdade de Teologia da Igreja Metodista – FaTeo Diretor: Paulo Roberto Garcia Conselho Diretor Claudia Maria da Silva Nascimento Edson Cortásio Sardinha Lia Euniace Hack da Rosa Paulo Dias Nogueira (presidente) Paulo Tarso de Oliveira Lockmann (bispo assistente) Rute Kato Wesley Gonçalves dos Santos Comissão Editorial Blanches de Paula Helmut Renders (Presidente) José Carlos de Souza Magali do Nascimento Cunha Tércio Machado Siqueira

Conselho Consultivo Internacional Dr. Joerg Rieger (Perkings School of Theology, Southern Methodist University, Dallas, TX, EUA) Dr. Luís Wesley de Souza (Chandler School of Theology Emory University, Atlanta, EUA) Dr. Michael Nausner (Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen, RFA) Dr. Nestor Miguez (ISEDET, Buenos Aires, ARG) Dr. Ted Jennings (Chicago School of Theology, EUA) Dr. Tércio Bretanha Junker (Christian Theological Seminary, Indianapolis, EUA)

Editor Helmut Renders Revisão Hideíde Britto Torres Tradução Glenn Ivan Ynguil Fernandez Assistente editorial Fagner Pereira dos Santos Editoração eletrônica Maria Zélia Firmino de Sá Capa Cristiano Freitas

Editeo Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Rua do Sacramento, 230 – Rudge Ramos – 09640-000 São Bernardo do Campo, SP – Telefone: (11) 4366-5958 Editor da revista: [email protected] Assistente editorial: [email protected] Revista on-line: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA Sumário

Editorial Helmut Renders 1

Dossiê / DOSSIER / DOSIER

Apresentação do Dossiê 7 Presentation of the Dossier 9 Presentación del Dosier 11 Helmut Renders Dina da Silva Branchini

A propósito dos 125 anos da lei áurea: inserção negra no segmento evangélico 13 Concerning the 125 years of the “Golden Legislation” [Brazilian abolition from slavery]: the presence of Afro-Brazilians in Protestant and Pentecostal churches El propósito de los 125 años de la “Ley de Oro” [de la abolición de la esclavitud]: la inserción negra en el segmento evangélico Diná da Silva Branchini

125 anos de resistência: o processo de branqueamento na infância da criança negra, pós-lei 10.639/2003 25 125 years of resistance: the process of whitening in the childhood of black children after the law 10.639/2003 125 años de resistencia: el proceso de blanqueamiento de los niños negros en su infancia, después de la ley 10.639/2003 Telma Cezar da Silva Martins Neusa Cezar da Silva

Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... Pistas para uma educação antirracista... 43 Black sheep, crooked little men and black hearts... Clues to an antiracist education… Ovejas negras, pequeños hombres torcidos y corazones negros... Las pistas para una educación antirracista… Andreia Fernandes de Oliveira

Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação 61 Memory and identity: resistance to racism and discrimination Memoria e identidad: la resistencia al racismo y la discriminación Luis Vergílio Batista da Rosa

O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática de justiça e de paz 73 The extermination of the black youth and the omission of the churches in the practice of justice and peace El exterminio de la juventud negra y la omisión de las iglesias en la práctica de justica y paz Lídia Maria de Lima Metodismo e afro-brasileiros: uma análise crítica do contexto motivacional da imigração e da missão dos metodistas estadunidenses no Brasil em meados do século 19 81 Methodism and African-Brazilians: a critical analysis of the motivational context of immigration and the mission of the American Methodists in Brazil in the mid-nineteenth century Metodismo y afro-brasileños: un análisis crítico del contexto motivacional de la inmigración y la misión de los metodistas de América en Brasil a mediados del siglo XIX José Roberto Alves Loiola

Quilombo Ivaporunduva: a dialética do processo histórico de aquilombolamento 97 The Quilombo Ivaporunduva: The dialectic of the historical process of its creation El Quilombo Ivaporunduva: La dialéctica del proceso histórico de su creación Márcia Cristina Américo

O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista: de experiências pessoais, via a criação de uma rede de contestadores/as até uma ação política orquestrada 107 The involvement of John Wesley (1703-1791) in the abolitionist cause: from personal experiences, via the creation of a network of protesters up to a orchestrated political action La participación de John Wesley (1703-1791) en la lucha abolicionista: de experiencias personales, a través de la creación de una red de manifestantes hasta la acción política orquestada Helmut Renders

Artigos / Articles / Artículos Os povos da terra: abordagem historiográfica de grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo no segundo milênio a.C.: uma apresentação comparativa 125 The peoples of the earth: historiographical approach of social grandeur of the ancient Near-East in the second millennium BC: a comparative study Los pueblos de la tierra: enfoque historiográfico de la grandeza social del antiguo Cercano Oriente en el segundo milenio antes de Cristo: una presentación comparativa João Batista Ribeiro Santos

Comunicação, ecumenismo e cidadania: uma agência latino-americana e suas práticas comunicacionais 137 Communication, Ecumenism and citizenship: a -American Agency and its communicational praxis Comunicación, ecumenismo e ciudadanía: una agencia latino americana e sus prácticas comunicaciones Hideíde Brito Torres

Documentos e Declarações / Document and Declarations Documentos y Declaraciones Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley: introdução e tradução para o português brasileiro 153 John Wesley’s “Thoughts upon slavery” (1774): introduction and translation to the Brazilian Portuguese Los “Pensamientos sobre la esclavitud” (1774) de John Wesley: introducción e traducción para el portugués brasileño Filipe Maia Helmut Renders “Vá em frente, em nome de Deus”: seis cartas abolicionistas dos anos 1787 e 1791, escritas por John Wesley, traduzidas e interpretadas 183 “Go on, in the name of God”: six letters from 1787 and 1791 written by John Wesley to abolitionists, interpreted and translated to Brazilian Portuguese “Adelante en el nombre de Dios”: seis cartas de los años 1787 e 1791 escritos por el John Wesley a abolicionistas, interpretadas y traducidas para el portugués brasileño Helmut Renders

Linha do tempo: John Wesley e o movimento abolicionista 199 Time line: John Wesley and the abolitionist movement Leña del tiempo: John Wesley e el movimiento abolicionista Helmut Renders

Resenhas / Books Reviews / Reseñas Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo [Resenha] 207 Abolition: a history of slavery and antislavery [Book Review] La abolición: la historia de la esclavitud y la historia contra la esclavitud [Reseña del libro] Douglas Nassif Cardoso

Abolição da escravatura sem cidadania [Resenha] 213 Abolition of slavery without citizenship [Book review] Abolición de la esclavitud sin ciudadanía [Reseña del libro] Douglas Nassif Cardoso

“Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados”: Resenha do livro “Ética” (2011) de Wilfried Härle 217 “Orientations towards a well-founded personal ethical judgment”: Book reviw of Wilfried Härle’s Ethics from 2011 “Orientaciones para discernimientos éticos propios y bien fundamentadas”: Reseña del libro “Ética” (2011) de Wilfried Härle Helmut Renders

“A luta de mulheres contra a escravidão: um novo olhar”: um estudo exemplar de Clare Migley [Resenha] 225 “Anti-slavery and woman: a new picture”: an exemplary study of Clare Migley [Book review] “La lucha de las mujeres contra la esclavitud: una nueva mirada”: el trabajo ejemplar de Clare Migley [Reseña del libro] Helmut Renders

Registros / records / registros

Relação de autores e autoras 231 Notes on the contributors Relación de autores y autoras

Normas para colaboração 235 Guides for contributors 237 Normas para colaboradores y colaboradoras 239 Diretórios e indexações 241 Directories and indexation Directorios y indización

Relação de permutas 243 Journals exchange Intercambio de revistas

Bibliotecas parceiras 249

Partner libraries Bibliotecas afiliadas

Editorial

Com alegria entregamos aos leitores e às leitoras o primeiro número da revista Caminhando do ano de 2013. Provavelmente seja o número mais “integrado” quanto à relação entre as seções Dossiê, Documen- tos, Declarações e Resenhas. Também “exploramos” as fronteiras entre movimentos sociais e academia, em prol de um tema significativo para a sociedade brasileira, a sua plurietnicidade como desafio e promessa. Agradecemos a todos colaboradores e colaboradoras, tanto temá- ticos/as como técnicos/as e uso a oportunidade de me despedir dos nossos leitores e das nossas leitoras depois de 10 anos de editoração dessa revista. Neste tempo, acompanhei a sua transformação em uma revista eletrônica, além da versão impressa, a sua aceitação pelo públi- co e valorização pelo Qualis das revistas, a introdução de seções e sua internacionalização por meio de textos em inglês e do fornecimento de títulos, resumos e palavras chaves em três línguas. Foi um grande prazer privilégio de acompanhar esta caminhada junto a nossa excelente equipe técnica,

Helmut Renders

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 1, jan./jun. 2013 1 Editorial

With satisfaction and joy we deliver to our readers the first num- ber Caminhando journal of 2013. Probably it is the most “integra- ted” number, regarding the relationship between the sections Dos- sier, Statements and Documents, and Book Reviews. Beyond this, it is «exploring» the boundaries between social movements and academia, establishing a dialog about a meaningful theme for the Brazilian society, its plurietnicity as challenge and promise. I thank all employees and collaborators, both thematic and technic and use the opportunity to say goodbye to our readers after 10 ye- ars as publisher of this jornal. during this period, I accompanied its transformation into an electronic magazine, in addition to the prin- ted version, its public acceptance and appreciation by Qualis, the introduction of sections, its internationalization through texts in En- glish and offering titles, abstracts and key words in three languages. It was a great pleasure and privilege to accompany this work wich depends a lot on its excellent staff for editoration,

Helmut Renders

2 Helmut RENDERS: Editorial Editorial

Con alegría entregamos a los lectores y a las lectoras el primer nú- mero de la revista Caminhando del año 2013. Probablemente es el número más “integrado” en lo que se refiere a la relación entre las secciones Dossier, Documentos, Declaraciones y Reseñas. También “exploramos” las fronteras entre movimientos sociales y academia, en beneficio de un tema significativo para la sociedad brasileña, su plurietnicidad como desafío y promesa. Agradecemos a todos los colaboradores y colaboradoras, tanto temá- ticos/as como técnicos/as y aprovecho la oportunidad para despedirme de ustedes, lectores y lectoras después de 10 años de editoración de esta revista. Durante ese tiempo, acompañé su transformación en una revista electrónica, más allá de su versión impresa, su aceptación por el público y valorización por el Sistema Qualis de las revistas, la introducción de secciones y su internacionalización por medio de textos en inglés y del suministro de títulos, resúmenes y palabras clave en tres idiomas. Ha sido un gran placer y un privilegio acompañar y caminar juntos con nuestro excelente equipo técnico,

Helmut Renders

3 DOSSIÊ

DOSSIER

DOSIER

Apresentação do Dossiê

Datas comemorativas são ambíguas porque nos lembram, muitas vezes, de promessas não cumpridas e esperanças não correspondidas. No caso de 125 anos da abolição no Brasil não é diferente. Por causa disso, a Revista Caminhando 2013 inicia com um dossiê que discute a questão: 125 anos da abolição? Seguimos a sugestão de Sante Umberto Barbieri que disse em seu livro Ação social da Igreja (1936, p. 22) em relação a esta e outras datas:

Há [...] certas comemorações e certas datas como o dia da libertação dos escravos [...]. Essas comemorações e datas devem ser comemoradas con- dignamente, com programas instrutivos e conducentes a sentimentos nobres de civismo e solidariedade social. Não devem ser somente cele- brações pró-forma, mas ocasiões propícias para relembrar ideais esque- cidos, ou abusos dominantes e para elevar o espírito de são patriotismo e humanitarismo.

Nesta tarefa educativa, pesquisadores/as afrodescendentes externos/ as e da Faculdade de Teologia unem seus esforços. Somos muito agra- decidos pela colaboração no acompanhamento desse dossiê pela mestra Diná da Silva Branchini que, na função de coordenadora do Ministério de Ações Afirmativas afrodescendentes da 3ª Região Eclesiástica da Igreja Metodista até setembro de 2012, aceitou esta parceria, perma- necendo até a conclusão desta edição da revista. Colaborações entre a academia e representantes de movimentos sociais ajudam a academia de se não perder no academicismo e, assim esperamos, o movimento a aprofundar em tantos aspectos relacionados às suas lutas. A própria colaboradora Diná da Silva Branchini abre o Dossiê com seu texto A propósito dos 125 anos da Lei Áurea: inserção negra no seguimento evangélico, abordando aspectos históricos e sociais presentes nos processos de inserção de pessoas negras no segmento evangélico. Seguem dois textos que discutem o papel da educação na luta contra o racismo: 125 anos de resistência: o processo de branqueamento na infância da criança negra, pós-lei 10.639/2003 de Telma Cezar e Silva Martins e Neusa Cezar da Silva e Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... Pistas para uma

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 7-8, jan./jun. 2013 7 educação antirracista de Andreia Fernandes de Oliveira. Luis Vergílio Batista da Rosa dá continuidade ao tema com seu texto Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação. Em Metodismo e afro-brasileiros: uma análise crítica do contexto motivacional da imigração dos metodistas estadunidenses para a região de Piracicaba em meados do século 19, José Roberto Alves Loiola introduz o tema da chegada de missionários de escravagistas. Lídia Maria de Lima em O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática de justiça e de paz. O dossiê termina com dois textos históricos e teológi- cos. Em Quilombo Ivaporunduva: A dialética do processo histórico de aquilombolamento aproxima-nos Márcia Cristina Américo às razões do aquilombolamento e em O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista investiga o autor a longa caminhada até a luta contra a escravidão. Na seção das temáticas livres João Batista Ribeiro Santos contri- bui em Os povos da terra. Abordagem historiográfica de grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo no segundo milênio a.C.: uma apre- sentação comparativa mais uma faceta da vida no oriente na época de Israel e Judá. Last not least, apresenta Hideíde Brito Torres em Comunicação, ecumenismo e cidadania: a comunicação latino-americana a partir da ALC como um jornalismo engajado e exemplar. Na seção Documentos e declarações compartilhamos ainda seis cartas de John Wesley, escritas entre 1787 e 1791, como documentos do seu envolvimento na causa abolicionista. Inédita é também a apresentação de uma nova tradução dos Pensamentos sobre a Escravidão de John Wesley, com uma breve introdução, algumas informações editorais quanto às fontes usadas e a fundamentação bíblica do argumento abolicionista. Já A linha de tempo quer facilitar a percepção do pro- cesso abolicionista na Inglaterra em si. Assim, esperamos interessar mais pessoas para investigar as fontes primárias. Esta vez, tres das quatro Resenhas contemplam o tema do dos- siê. Isso foi possível por um gesto generoso da Editora da UNESP e pela disponibilidade do nosso colega e historiador Douglas Nassif. Agradecemos os/as autores/as, os/as pareceristas e a equipe técni- ca da editoração por procurarem sempre a excelência em suas tarefas. Sem eles/as, esta revista não existiria. O mesmo vale também para os/ as nossos/as leitores/as.

Helmut Renders Dina da Silva Branchini

8 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva Presentation

Commemorative dates are ambiguous because we remember, many times, the promises not fulfilled and the hopes not answered. This is not different in the case of 125 years of abolition in Brazil. Because of this the beginning of the journal Caminhando 2013 consists of a dossier that discusses the question: 125 years of abolition? We follow the suggestion of Sante Umberto Barbieri (1936, p. 22) that speaks in relation to this and other dates:

There are certain commemorations and certain dates such as the day of the liberation of slaves […]. These commemorations and dates should be com- memorated as merited, with instructive and conducive programs in light of the value of citizenship and social solidarity. They should not be only celebration pro-forma, but be propitious occasions to remember forgotten ideas, or do- minant abuses and to elevate the spirit of patriotism and humanitarianism.

In this educational task researchers with African roots outside of the School of Theology offer their force. We are very grateful for the collabo- ration in the production of this dossier by Dina of Silva Branschini, Masters Degree, of Affirmative Afro Action of the Third Ecclesiastical Region of the Methodist Church. Collaborations between the academy and repre- sentatives of social movements help the academy to not lose itself in the academic world. What we hope for is that the movement deepens, in many aspects, with relation to its struggles. The collaboration of Dina da Silva Branshini opens the Dossier with her text The purpose of 125 years of the Freedom Law: black insertion in the evangelical segment, which deals with historical and social aspects present in the processes of insertion of black persons in the evangelical segment. Following are two texts that discusses the role of education in the struggle against racism: 125 year of resistan- ce: the process of the whitening in the childhood of the black child, after the law 10.693/03, by Telma Cezar and Silva Martins, and Neusa Cezar da Silva in Black Sheep, curved little men and black hearts…. Guidelines for an education against racist…Following this is the text of Andreia Fer- nandes de Oliveira: Directions for an antiracist education. Luis Vergilio Batista da Rosa gives continuity to the theme with his text Memory and identity: resistance to racism and discrimination. In Methodism and African

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 9-10, jan./jun. 2013 9 Americans: a critical analysis of the motivational context of the immigration of the Methodist students for the region of Piracicaba in the midst of the 19th century. José Roberto Alves Loiola introduces the theme of the arrival of missionaries of slavery. Following is the text of Lídia Maria de Lima, in The extermination of black youth and the omission of Churches in the practice of justice and peace. The dossier ends with two historical and theological texts. In Quilombo Ivaporunduva: The dialectic of the historical process of the formation of Quilombos brings us closer, by way of Máricia Cristina América, to the reasons for the formation of Quilombos, and in The involvement of John Wesley (1703-1791) in the abolitionist cause, the author investigates the long journey of the fight against slavery. In the section of free themes, João Batista Ribeiro Santo offers The people of the earth. A histiografic approach to the grandiosity social of the ancient Near East in the second millennium a.C.: a comparative presentation, a discussion of the life in the west in that period of Israel and Juda. Last but not least, Hideíde Brito Torrem presents, in Communications, ecumenism and identity as a citizen: the Latin-American communication based on ALC as engaged and exemplary journalism. In the section Documents and declarations, we compile six letters of John Wesley, written between 1787 and 1791, as documents of his invol- vement in the abolitionist cause. Another new front is the presentation of a new translation of the Thoughts about Slavery, of John Wesley, with a short introduction, some editorial information regarding the sources used and the biblical foundation of the abolitionist argument. The text Time Line seeks to facilitate the perception of the abolitionist process in England, in itself. As such, we hope to interest more persons to investigate primary sources. This time, we contemplate two of the three Editions regarding the theme of the dossier. This is due to the generous gesture of the Editor of UNESP and for the availability of our colleague and historian Douglas Nassif. We thank the authors, the evaluators, and the technical team of the Editor for always seeking and offering the excellence of their tasks. Wi- thout them, this Journal would not exist. The same is true of our readers.

For the editorial team Helmut Renders

10 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva Presentación del Dossier

Fechas conmemorativas son ambiguas porque nos recuerdan, muchas veces, promesas no cumplidas y esperanzas no correspondidas. En el caso de los 125 años de la abolición en el Brasil no es diferente. A causa de ello, la Revista Caminhando 2013 inicia con un dossier que discute la cuestión: ¿125 años de la abolición? Seguimos la sugerencia de Sante Umberto Barbieri que dijo en su libro Acción social de la Iglesia (1936, p. 22) en relación a esta y a otras fechas:

Hay [...] ciertas conmemoraciones y ciertas fechas como el día de la li- beración de los esclavos [...]. Esas conmemoraciones y fechas deben ser conmemoradas dignamente, con programas instructivos y conducentes a sentimientos nobles de civismo y solidaridad social. No deben ser solamen- te celebraciones pro-forma, sino ocasiones propicias para recordar ideales olvidados, o abusos dominantes y para elevar el espíritu de sano patriotismo y humanitarismo.

En esta tarea educativa, investigadores/as afrodescendientes exter- nos/as y de la Facultad de Teología unen sus esfuerzos. Estamos muy agradecidos por su colaboración en el acompañamiento de este dossier a la maestra Diná da Silva Branchini que, en la función de coordinadora del Ministerio de Acciones Afirmativas afrodescendientes de la 3ª Región Eclesiástica de la Iglesia Metodista hasta setiembre de 2012, aceptó esta asociación, permaneciendo hasta la conclusión de esta edición de la revista. Colaboraciones entre la academia y representantes de movi- mientos sociales ayudan a la academia a no perderse en el academicismo y – así esperamos – al movimiento a profundizarse en tantos aspectos relacionados a sus luchas. La propia colaboradora Diná da Silva Branchini abre el Dossier con su texto A propósito de los 125 años da Ley Áurea: la inserción negra en el segmento evangélico, abordando aspectos históricos y sociales pre- sentes en los procesos de inserción de personas negras en el segmento evangélico. Siguen dos textos que discuten el papel da la educación en la lucha contra el racismo: 125 años de resistencia: el proceso de blanqueamiento de los niños negros en su infancia, después de la ley 10.639/2003 de Telma Cezar e Silva Martins e Neusa Cezar da Silva; y

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 11-12, jan./jun. 2013 11 Ovejas negras, hombrecitos torcidos y corazones negros... Pistas para una educación antirracista de Andreia Fernandes de Oliveira. Luis Vergílio Batista da Rosa da continuidad al tema con su texto Memoria e identidad: resistencia al racismo y a la discriminación. En Metodismo y afrobrasileños: un análisis crítico del contexto motivacional de la inmigración y misión de los metodistas estadounidenses en el Brasil a mediados del siglo 19, José Roberto Alves Loiola introduce el tema de la llegada de misioneros de esclavistas. Lídia Maria de Lima en El exterminio de la juventud negra y la omisión de las iglesias en la práctica de la justicia y la paz. El dossier termina con dos textos históricos y teológicos. En Quilombo Ivaporunduva: La dialética del proceso histórico de su creación, Márcia Cristina Américo nos aproxima de las razones del aquilombolamiento y en La participación de John Wesley (1703-1791) en la causa abolicionista el autor investiga el largo camino hasta la lucha contra la esclavitud. En la sección de las temáticas libres, João Batista Ribeiro Santos contribuye en Los pueblos de la tierra: enfoque historiográfico de las gran- dezas sociales del antiguo Oriente Próximo en el segundo milenio a.C.: un estudio comparativo, una faceta más de la vida en el oriente durante la época de Israel y Judá. Por último, pero no menos importante, el artí- culo de Hideíde Brito Torres, Comunicación, ecumenismo y ciudadanía, presenta la comunicación latinoamericana a partir de la ALC, como un periodismo comprometido y ejemplar. En la sección Documentos y Declaraciones compartimos seis cartas de John Wesley, escritas entre 1787 y 1791, como documentos de su participación en la causa abolicionista. Inédita es también la presentación de una nueva traducción de los Pensamientos sobre la Esclavitud de John Wesley, con una breve introducción, algunas informaciones editoriales con respecto a las fuentes utilizadas y a la fundamentación bíblica del argumento abolicionista. Por otro lado, La línea de tiempo desea facilitar la percepción del proceso abolicionista en Inglaterra. Así, esperamos que más personas se interesen por la investigación de las fuentes primarias. Esta vez, tres de las cuatro reseñas contemplan el tema del dossier. Esto fue posible gracias al gesto generoso de la Editora de la UNESP y a la disponibilidad de nuestro colega e historiador Douglas Nassif. Agradecemos a los/as autores/as, a los/as pareceristas y al equipo técnico de editoración por buscar siempre la excelencia en sus tareas. Sin ellos/as, esta revista no existiría. Lo mismo vale también para nuestros/ as lectores/as.

Helmut Renders Dina da Silva Branchini

12 Helmut HENDERS: Editorial A propósito dos 125 anos da lei áurea: inserção negra no segmento evangélico Concerning the 125 years of the “Golden Legislation” [Brazilian abolition from slavery]: the presence of Afro-Brazilians in Protestant and Pentecostal churches El propósito de los 125 años de la “Ley de Oro” [de la abolición de la esclavitud]: la inserción negra en el segmento evangélico

Diná da Silva Branchini

RESUMO Este artigo aborda aspectos históricos e sociais presentes nos processos de inserção de pessoas negras no segmento evangélico. O texto é desenvolvido seguindo uma linha histórica desde a chegada do protestantismo ao Brasil até a atualidade. Este artigo tem a pretensão de compreender fenômenos sociais e religiosos presentes nas ações de resistência e de formação de identidades negras evangélicas. Palavras-chave: Protestantismo; religião; negros/as; racismo; pentecostalismo.

ABSTRACT This article approaches historical and social aspects present in the processes social insertion of the black people Brazilian in the evangelical segment. The text is developed following a storyline, from the arrival of Historical Protestantism, until the present moment. This article has the pretention of understanding social and religious phenomenon presents in the actions of resistance and formation of black identities evangelical social Key Words: Protestantism; religion; black people; racism; pentecostalism.

RESUMEN Este artículo enfoca aspectos históricos y sociales presentes en los procesos de inserción de personas negras en el segmento evangélico. El texto sigue una línea histórica desde la llegada al Brasil del protestantismo hasta la actualidad. Este artículo pretende comprender fenómenos sociales y religiosos presentes en las acciones de resistencia y de formación de identidades negras evangélicas. Palabras clave: protestantismo; religión; negros/as; racismo; pentecostalismo.

Introdução As comemorações dos 125 anos de abolição remetem não só ao ato legal, mas também ao tempo do advento da Lei Áurea, enquanto tempo de esperança de liberdade, por parte dos/as negros/as escravizados/ as, e de uma vida digna, em igualdade de direitos civis e sociais com a

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 13 população branca. A esperança e a busca de experiência de processos libertários têm sido uma constante em várias áreas da vida das pessoas negras. A religião representa uma dessas dimensões de libertação e inserção negra; e as igrejas evangélicas constituem o segmento de maioria negra. Neste texto, são consideradas igrejas evangélicas as igrejas históricas ligadas ao pro- testantismo - metodista, batista, presbiteriana e outras - implantadas desde a segunda metade do século 19, seguidas das igrejas pentecostais, que surgiram no século 20, e das neopentecostais, a partir da segunda metade do século 20. As questões que transitam neste texto estão relacionadas aos aspectos socioculturais da população negra após a promulgação da Lei Áurea e, particularmente, aos impactos das igrejas evangélicas na vida de seus/suas seguidores/as negros/as. Para o entendimento destas questões, não pode deixar de ser evidenciado o fenômeno do racismo, o qual, apesar de ser produto de ideologias racistas formuladas na sociedade europeia moderna (séculos 18 e 19), foi disseminado entre a elite intelectual, política e empresarial brasileira na transição dos séculos 19 e 20. Assim, tanto a Lei Áurea quanto o segmento evangélico também serão analisados sob o aspecto do fenômeno do racismo, enquanto promotor das desigualdades socio- culturais que afetam negativamente o segmento negro. O interesse pelas questões levantadas neste texto está relacionado ao fato de que, após 125 anos da Abolição e de inserção negra no meio evangélico, permanece a desigualdade sociocultural, e o segmento negro, tanto o social como o evangélico, continua enfrentando preconceitos so- cioculturais que impedem a libertação das pessoas negras para desfrutar de cidadania plena em igualdade com o segmento branco. Falar sobre racismo ainda é tabu na maioria das igrejas evangélicas, provocando reações e discussões de base emocional. É comum o silenciamento das pessoas negras, quando vítimas de racismo, dentro ou fora do contexto das igrejas, devido aos sentimentos de vergonha e constrangimentos, bem como a sujeição às relações so- ciorraciais estabelecidas. Nos dias atuais, ainda são frequentes discursos e teologias intolerantes em relação à cultura e às religiões de matrizes africanas, bem como de satanização do continente africano, as quais são aceitas como dogmas por muitos cristãos evangélicos. O texto aborda as relações existentes entre o segmento evangélico e as pessoas negras adeptas a ele, por meio de um diálogo entre a visão de Bastide (1985) sobre o negro protestante e o pensamento de Foucault (1979) e Bourdieu (2001) sobre relações de dominação; e de Hall (2003) e Rivera (2001) sobre a construção de identidades contemporâneas. A Lei Áurea é marco na vida da população negra e, em pleno pro-

14 Diná da Silva Branchini: A propósito dos 125 anos da lei áurea cesso de abolição, o protestantismo chega ao Brasil. A inserção negra no segmento evangélico, de hoje, tem suas raízes no protestantismo histórico. A questão é como se dá esta inter-relação entre o negro evangélico e a sua identidade negra? A autora desenvolveu, no mestrado, o tema: “Religião e Identidade: um estudo sobre negros metodistas da região metropolitana de São Pau- lo”, o qual manteve como foco de estudo e atuação durante o período em que esteve à frente do Ministério Regional – 3ª RE - de Ações Afirmativas Afrodescendentes e da Pastoral Nacional de Combate ao Racismo, ambos da Igreja Metodista no Brasil.

Negros evangélicos: assimilação ou recriação de identidades? A dimensão religiosa, em seu aspecto histórico e atual, é uma força marcante e contraditória no desenvolvimento individual e coletivo das pessoas negras, ora como força libertadora ora como força opressora. A questão principal é compreender a dinâmica inter-relacional entre as identidades religiosa e etnicorracial das pessoas negras evangélicas. Religião é uma instituição humana presente nos diferentes grupos e mediadora na relação com o sagrado, o transcendente. Por sua dimensão social, a religião está interconectada com outras áreas da sociedade e “envolve relações de poder, de classe, de gênero, de raça/etnia” (SOUZA, 2006, p. 8). É um poder legitimador das normas e crenças dos grupos aos quais representa ao mesmo tempo em que é legitimado e sacralizado pela própria crença dos fiéis (BOURDIEU, 2001, p. 52-53). Este poder institucionalizado habilita os agentes religiosos, legitima- dos pela sociedade, a desfrutarem do prestígio e do poder de falar em nome de seu deus. Desta forma, estão “autorizados” a impor, aprovar ou reprovar condutas morais, com poderes divinos de vida e de morte. Dentro do campo religioso, as tradições africanas e indígenas, re- presentantes de grupos subalternizados, sofreram, historicamente, per- seguições pelo segmento cristão, detentor do poder religioso por mais de quatro séculos, apesar de ser representativa a presença de pessoas negras dentro das igrejas cristãs, católicas e evangélicas. Segundo Setiloane, pesquisador sul africano, metodista, o fato de os africanos terem como princípios: integralidade, valor da comunidade, respeito à pessoa e força vital facilitou a aceitação, por eles, da fé cristã. “Foi essa consciência de Deus e esse temperamento religioso que torna- ram possível a evangelização da África e que forneceram base para ela” (SETILOANE, 1992, p. 47). Porém, a evangelização fundamentada na visão racista contribuiu para desqualificação da espiritualidade dos povos africanos e consequen- te subalternidade política, econômica e sociocultural aos colonizadores

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 15 europeus. No Brasil, apesar das adversidades da escravização, as crenças afri- canas sobreviveram; reinterpretadas na convivência cotidiana, encontraram formas de passagem de um a outro universo religioso e se encarnaram no corpo social e se reproduziram de acordo com as tradições ancestrais entre diferentes grupos (BASTIDE, 1985, p. 85). As religiões afro-brasileiras, como Candomblé, Umbanda, Tambor de Minas, e outras, são configurações mais recentes, resultantes de cons- tantes recriações. Bastide (1985, p.117/120) e Munanga (2006, p. 140) consideram que estas religiões desempenharam o papel de resistência contra a dominação sociocultural europeia e de centro agregador e guar- dião das memórias culturais da África. Contudo, elas sempre existem na marginalidade, sofrendo preconceitos e sendo identificadas como feitiçaria, macumba e charlatanismo. Até meados do século 20, seus cultos eram registrados como ocorrências policiais (ORO; BEM, 2008, p. 307-311). Mesmo após a Constituição de 1988, que declarou a liberdade religiosa, esses grupos sofrem perseguições, por parte de outros grupos religiosos, principalmente evangélicos, ocorrendo destruição de símbolos religiosos, de templos e ameaça física a seus seguidores. Assim, religião cristã apresenta um significado dúbio para a população negra brasileira: discurso do amor cristão e apoio às forças de opressão. O catolicismo, religião oficial da monarquia portuguesa, em nome de um deus cristão, abençoou os suplícios sofridos pelas pessoas escravizadas. Por meio de teologias de justificação da escravização e de conforto para os escravizadores, pregavam o castigo e a tortura como um bem prestado para a alma da pessoa escravizada, e o batismo compulsório um meio de salvação da alma – não do corpo. O povo negro, por sua vez, encontrou brechas ou “formas de pas- sagens” no catolicismo para praticar suas crenças, rituais e festas, como as Irmandades de pretos, que tinham a função de ajuda mútua e de apoio financeiro para alforria de escravizados/as, e as congadas, com a representação da coroação dos reis de Congo, entre tantas outras (MU- NANGA, 2001, p. 147). Durante o processo abolicionista, a Igreja oficial não adotou, de início, uma posição radical pela abolição, mas se manteve numa posição mode- rada e de tendência emancipacionista gradual. Somente a partir de 1887, quando era inevitável a extinção do regime, houve manifestações abertas de prelados católicos, condenando a escravidão, como incompatível com o cristianismo, e defendendo a abolição (PEREIRA, 2011, p. 14,19). Sobre a inserção negra no segmento evangélico, é destacado, inicial- mente, o segmento protestante, que chegou ao Brasil com os imigrantes europeus, beneficiados pela abertura dos portos e pela abertura religiosa,

16 Diná da Silva Branchini: A propósito dos 125 anos da lei áurea a partir do início do século 19; e na segunda metade do século, chegaram os missionários norte-americanos. Porém, todos os grupos protestantes, inclusive os holandeses, no século 16, e os franceses, no século 17, não se manifestaram contra o sistema escravagista; ao contrário, também se beneficiaram do trabalho escravo. Os protestantes tinham a visão de que o povo negro apresenta- va costumes degenerados e contrários às virtudes cristãs. Portanto, a evangelização desse grupo visava inculcar a submissão e obediência. A evangelização era para a “integração, conversão e educação do negro dentro da cultura protestante” [...] que o “ensino religioso incuta [...] os deveres morais, a honestidade e o amor ao trabalho [...] que lhes mostre o caminho do dever [...]” (BARBOSA, 2002, p. 155). O protestantismo impôs sua cultura aos adeptos utilizando-se de técnicas disciplinares para submissão à supremacia branca e à ordem por ela estabelecida. “O ensino religioso”, por meio de sermões e estudos bíblicos, por um lado inculcou a naturalização da inferioridade cultural/ religiosa das pessoas negras e, por outro, sacralizou os rituais cúlticos e costumes protestantes como padrão cristão. A disciplina, na perspectiva de Foucault, é a técnica mais eficaz para “circular os efeitos de poder de forma contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada”. Sem criar resistências, “o poder permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 2006, p. 8). Nesta perspectiva, o “ensino religioso” contribuiu para o processo de branqueamento cultural, envolvendo crenças e costumes das pessoas negras do segmento religioso protestante. Somando-se a isto, há o controle social do grupo religioso no sentido de não ocorrer algum desvio do padrão; ou seja, a reinterpretação cultural africana dentro do contexto protestante (BASTIDE, 1985, p. 512). Esse controle é exercido pelas comunidades locais por meio de falas, olhares, brincadeiras e “conselhos para abando- nar estas coisas”, elementos da cultura e estética “afro”, como penteados com o cabelo ao natural/crespo, as tranças nagôs, rastafari e dreadlocks, o uso de roupas e adereços com cores e motivos africanos, associando- -os à estética negativa, à feiura, à sujeira ou às religiões afro-brasileiras. Bastide pesquisou, na primeira metade do século 20, o grupo negro protestante e concluiu que a inserção de pessoas negras nesse segmento estava relacionada ao preferir ser assimilado “por uma elite de brancos”... em que há um mínimo de superstição e um máximo de puritanismo e não ao “se exprimir enquanto homem de cor”. E que pelo fato de não haver discriminações nas seitas protestantes era reduzida ou inexistente a rein- terpretação da cultura africana, prevalecendo a assimilação (BASTIDE, 1985, p. 508, 512). Dois pontos a destacar:

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 17 1. “Ser assimilado por uma elite de brancos”... ou “se exprimir en- quanto homem de cor”? Os estudos de Bastide se referem ao contexto da época, quando eram bem demarcadas as fronteiras entre pessoas brancas e negras. Neste caso, ser aceito/a por uma comunidade branca proporcionava a sen- sação de respeito e dignidade. Por outro lado, demonstrava a relação de dominação/sujeição, na qual as pessoas negras, mesmo que inconscien- temente, assumiam o silenciamento a respeito do racismo e sujeitavam-se a rejeitar qualquer coisa que se assemelhasse aos costumes africanos. Assim, o protestantismo foi um caminho utilizado pelas pessoas negras para a libertação social; porém um caminho que significava o rompimento com a identificação com o grupo sociocultural negro, ou seja, ser assimilado pelo grupo branco. No início do século 20, com surgimento do pentecostalismo, que atualmente é o segundo maior segmento religioso1, grande parte de pessoas pertencentes às classes mais empobrecidas da periferia dos centros urbanos foi atingida. Esta pode ser uma das razões da grande adesão de pessoas negras ao pentecostalismo; mas outra razão a ser considerada é a identificação das pessoas negras com a proposta de ser igreja pentecostal, como: informalidade dos cultos; música mais ritmada; liberdade de expressão corporal; o transe espiritual por meio do batismo do Espírito Santo, acompanhado do “dom de línguas” (glossolalia); o fortalecimento da autoestima e empoderamento dos/as fiéis perante as dificuldades da vida e a rede de apoio social formada pela comunidade religiosa. Segundo estudos liderados por Rivera (2010, pp. 62-70), as igrejas pentecostais representam, na periferia, espaços de acolhimento, assistência e esperança para os moradores. Assim, o sentimento de pertencimento a um grupo cristão de maio- ria negra forma uma identidade coletiva negra cristã, que se difere da identidade coletiva negra na sociedade. Porém ser pessoa negra, em nossa sociedade, significa ser marcado pela cor da pele; apenas uma característica morfológica. No entanto a identidade negra é construída por meio de vínculos culturais e históricos. As histórias – escravização, racismo, formas de resistências – e as produções culturais unem pessoas africanas e afrodescendentes espalhadas pelo mundo. A abolição de 1888 não contemplou a liberdade cultural, particu- larmente, a religiosa. Somente neste século, próximo aos 125 anos de vigência da Leia Áurea, o Brasil está possibilitando este conhecimento, por meio das Leis 10.639 de 2003 e 11.645 de 2008 que instituem: [...] o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro 1 O segmento pentecostal apresenta o maior número de adeptos, com um percentual de 12,76%, após a Igreja Católica (68,43%) (NERI, 2011, p. 25-26).

18 Diná da Silva Branchini: A propósito dos 125 anos da lei áurea e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contri- buições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (LEI Nº 11.645-2008).

No meio evangélico, prevalece a ideia de que a conversão ao cris- tianismo implica assumir nova identidade, novos referenciais de vida e, consequentemente, rompimento com os vínculos culturais africanos e afro-brasileiros, incluindo os atributos corporais e estéticos. As identidades étnicorracial e religiosa estão em oposição. O cenário é de crise das instituições religiosas, marcado pela plu- ralidade religiosa e trânsito religioso. O poder religioso está diluído e exerce menor influência na vida das pessoas. Esta conjuntura possibilita a liberdade das pessoas em relação à reinterpretação e à recriação de suas identidades religiosas a partir de vários referenciais. O mal-estar das instituições pela fluidez e instabilidade de seus adeptos não significa um mal-estar do sujeito religioso moderno. Pelo contrário, a liberdade de escolha religiosa lhe é bem mais cômoda (RI- VERA, 2001, p. 210). Na sociedade contemporânea, as pessoas passam por vários per- tencimentos, e desempenham diferentes papéis, construindo durante sua existência, múltiplas identidades, complexas e fluidas. A “lógica do acopla- mento” na “constituição das identidades” amplia o leque de potencialidades e de motivos da luta das políticas socioculturais (HALL, 2003, p. 326). Nessa perspectiva, há pessoas negras e cristãs, negras e candom- blecistas, negras e muçulmanas, negras e ateias. Assumir-se negro/a é uma postura existencial, autoidentificação, baseada tanto nas caracterís- ticas físicas, enquanto referência cultural, quanto nos vínculos históricos e sociais com o segmento negro. É uma opção sociopolítica de enfren- tamento ao racismo.

2. “Pelo fato de não haver discriminações nas seitas protestantes” Contrariando a percepção de Bastide, apesar da representatividade do segmento negro evangélico, quer no protestantismo, quer no pentecos- talismo, verifica-se a existência do racismo, em particular no pensamento religioso e nas relações sociais. Este tema ainda é silenciado por meio do mito da irmandade cristã, expresso em frases como: “somos todos filhos de Deus”, “Deus não faz acepção de pessoas”. “Deus não se importa com a cor da pele” ou “para Deus o importante é o espírito”. Estas são fórmulas utilizadas para justificar o não enfrentamento ao racismo, preconceitos e discriminação. Pensamentos desse tipo, repetidos por pessoas negras, podem sig- nificar tanto a sujeição à ordem relacional vigente, quanto à vergonha ou

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 19 constrangimento de assumir ser vítima de alguma atitude racista. Assim, a negação da experiência de racismo é reforçada pela atitude de “isto não me afeta”. O racismo é expresso em discursos religiosos fundamentalistas e racistas em relação ao continente Africano e cultura afro-brasileira, e relacionados à maldição sobre os africanos, herdeiros de Cam, proferida por Noé. Também está presente em letras de hinos e em histórias infantis que associam o negro ou o preto, como cor do pecado, da impureza e do mal, como: “Alvo ainda mais que a neve, sim neste sangue lavado, Ó meu Jesus ficarei.” (Hinário Evangélico, Hino 36); ou a letra do cântico infantil: “O meu coração era preto2 (ou sujo), mas Cristo aqui já entrou e com seu precioso sangue tão alvo assim o tornou”. Nas relações sociais, há manifestações de racismo perceptíveis tanto na espontaneidade de frases, como “eu nunca esperava que minha filha fosse casar com um negão”; “Quando você parou de alisar o cabelo? An- tes você era tão bonita!”; “Por que esta irmãzinha (negra) não se coloca em seu devido lugar?”3 como no isolamento, hostilidades e escolhas de amizades, entre outras. Esta tese de Roger Bastide sobre a ausência de discriminação nas igrejas protestantes é rebatida pela militância negra protestante que desde a década de 1960 denuncia o racismo existente nestas igrejas. Desde a década de 1970, vem surgindo grupos de militância negra dentro do contexto evangélico e, atualmente, o movimento negro evangélico é di- versificado e atuante dentro e fora do contexto religioso. Dentre os grupos negros evangélicos, vale destacar: Pastoral de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, criada em 1985; Comissão Ecumênica Nacional de Combate ao Racismo - CENACORA, em 1986; Centro Ecumênico de Cultura Negra – CECUNE, em Porto Alegre, em 1987 (LIRA, 2006, p. 11-13); Coral Resistência Negra de SP, em 1988, (METODISTA, 2011, pp. 20-22). AGAR (Sociedade Teológica de Mulheres Negras), em 1995; Pastoral da Negritude do Conselho Latino americano de Igrejas - CLAI, em 2009; Fóruns Permanentes de Mulheres Negras do Rio de Janeiro e de São Paulo, criados pela CENACORA, o grupo de São Paulo cessou atividades em 2006; Sociedade Cultural Missões Qui- lombo; Ação e Reflexão Martin Luther King; Aliança de Negras e Negros Evangélicos do Brasil – ANNEB; Grupo de Negr@s Identidade, ligado à academia, hoje denominado Grupo Identid@de das Faculdades EST-RS.

Apesar da atuação e resistência da militância negra evangélica, as igrejas em geral permanecem indiferentes ou mascaram interesse em 2 Quando se usa a versão “era sujo”, geralmente se utiliza um cartão com o desenho de um coração preto. 3 Depoimentos colhidos por ocasião da pesquisa de mestrado

20 Diná da Silva Branchini: A propósito dos 125 anos da lei áurea atender às denúncias e reivindicações. Talvez esta seja uma das razões do surgimento de grupos negros independentes das igrejas tradicionais ou novas igrejas negras, como: Igreja de Deus em Cristo em São Paulo, de origem norte-americana, com forte apelo musical estilo black music; Igreja COPATZION, na Bahia, que se atribui ser “a única igreja no Brasil que reconhece e propaga o Cristianismo de Matriz Africana como um dos seus principais alicerces doutrinários” (PASSOS, 2008); as redes virtuais negras, como Afrokut- -brasilidade (SILVA, 2009, p. 15, 16), com mais de seis mil membros, e multiplicidade de temas sobre negritude. O Movimento negro evangélico é constituído de grupos independen- tes. Alguns adeptos, porém, seguem a doutrina ou ensinamentos com base nas suas igrejas de origem, ligadas aos segmentos protestante, pentecos- tal ou neopentecostal; outros são compostos por pessoas procedentes de diferentes igrejas e, até mesmo, por pessoas de outra religião ou ateias. O que caracteriza esses grupos são as ações de resistência e de- núncia sobre racismo, preconceitos e discriminações. Realizam encon- tros e oficinas de conscientização e capacitações voltadas para temas e questões da população negra e reinterpretação da Bíblia, a partir de referenciais históricos, culturais e geográficos africanos. Combatem a intolerância religiosa, os preconceitos em relação às religiões de matri- zes africanas; fazem reivindicações e resgate histórico de protagonistas negros/as cristãos/ãs.

Considerações finais Este texto provocou algumas considerações a respeito do processo de libertação do povo negro. Dentro do segmento evangélico, tanto o protestantismo como o pentecostalismo são espaços de acolhimento e de ascensão social de pessoas negras por meio do pertencimento religioso. Existem, porém, a dominação cultural de origem ocidental e a imposição de ruptura com as tradições culturais africanas e afro-brasileiras. Esta do- minação tem como um dos fatores a existência do racismo que influencia a visão evangélica a respeito da África, seus habitantes e costumes, per- cebidos como inferiores e amaldiçoados. As pessoas negras convertidas têm, então, que se desligar de sua tradição. Tanto no passado como no presente, as pessoas negras apresentam diferentes posicionamentos a respeito a sua autonomia: há pessoas ne- gras que estão sujeitas a esta relação de dominação cultural, enquanto que outras desenvolvem postura de sujeitos autônomos, resgatando seu pertencimento ao grupo sociocultural negro sem deixar de assumir sua identidade cristã. Assim, há um desenvolvimento da consciência coletiva de negritude no meio evangélico, de forma que as duas identidades se

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 21 complementam: ser negro/a e ser cristão/ã. O crescimento e a respeitabilidade da militância negra dentro do contexto evangélico demonstram que a liberdade é um alvo em processo de conquista e ocorre da mesma forma que em contextos não religiosos na sociedade

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22 Diná da Silva Branchini: A propósito dos 125 anos da lei áurea LIRA, L. C. da S. P. de. O Centro Ecumênico de Cultura Negra (CECUNE) e suas ações educativas. 2006, 108 p. (Mestrado em Teologia), Escola Superior em Teo- logia, São Leopoldo - RS, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2012. NERI, M. C. (Coord). Novo Mapa das Religiões. Fundação Getulio Vargas, 2011. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2012. ORO, A P.; BEM, D. F. de. “A discriminação contra as religiões afro-brasileiras: ontem e hoje”. In: Ciênc. let., n. 44, p. 301-318, 2008. Porto Alegre. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2012. PASSOS, U. “Culto de Inauguração da Copatzion”. In: Blog Bayah. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2012. PEREIRA, C. M. Abolição e Catolicismo: A participação da Igreja Católica na Extinção da Escravidão no Brasil. (Mestrado), 2011, 140p. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2012.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2013 23 125 anos de resistência: o processo de branqueamento na infância da criança negra, pós-lei 10.639/2003 125 years of resistance: the process of whitening in the childhood of black children after the law 10.639/2003 125 años de resistencia: el proceso de blanqueamiento de los niños negros en su infancia, después de la ley 10.639/2003

Telma Cezar da Silva Martins Neusa Cezar da Silva

Resumo Este artigo apresenta a necessidade de aprofundamento das discussões sobre a temática da educação étnico-racial, propondo uma reflexão sobre o conceito de branqueamento e a necessidade de consciência crítica, por parte das/os educa- doras/es, sobre impactos negativos desse processo na formação da identidade da criança negra. Considerando as contribuições da história social da infância e da família e o processo de socialização da criança negra, busca apontar se a educação étnico-racial tem se sustentado nos espaços da educação infantil. Palavras-chave: Criança; criança negra; educação étnico-racial; infância.

Abstract This article presents the necessity of deepenning the discussion of ethnic racial education in spaces of children education. The text offers a reflection on the concept of whitenning and the critical conscience’s importance of the theachers about the negative impact of this process to the identity’s formation of black children. The text points the social history’s contribuitions from the childhood, the family and the socialization’s process of children. Keywords: Children; black children; ethnic racial education; childhood.

Resumen Este artículo presenta la necesidad de profundizarse en las discusiones sobre la temática de la educación étnico-racial, proponiendo una reflexión sobre el concepto de blanqueamiento y la necesidad de una consciencia crítica, por parte de las/os educadoras/es, sobre los impactos negativos de ese proceso en la formación de la identidad de los niños negros. Considerando las contribuciones de la historia social de la infancia y de la familia y el proceso de socialización de los niños negros, busca señalar si la educación étnico-racial se sustenta en los espacios de la educación infantil. Palabras clave: niños; niños negros; educación étnico-racial; infancia.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 25 Introdução Os processos educacionais têm contribuído com o sistema de manutenção e de reprodução da desigualdade histórica da população negra brasileira, principalmente, no que diz respeito à invisibilidade da criança negra. A partir da Lei n. 10.639/2003, que estabelece a inclusão, nas Dire- trizes e Bases da Educação Nacional, do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira, o desafio tem sido avaliar se a implementação desta temática tem minimizado as ações discriminatórias e de racismo no ambiente educacional. Ao participar de vários processos de formação docente, percebe- -se que a temática da educação étnico-racial, pelo viés do processo de branqueamento e da manutenção do racismo no ambiente educacional, ainda tem sido pouco discutida, embora haja grande preocupação com a implementação da Lei n. 10.639/2003 sobre ensino da História da África e da cultura Afro-Brasileira nos currículos da Educação Infantil. Na intenção de contribuir com a reflexão dos/as professores/as em processo de formação contínua, pergunta-se: o/a educador/a da Educação Infantil tem consciência crítica sobre o impacto negativo que o processo de branqueamento tem na formação da identidade da criança negra? A Lei n. 10.639/2003, que estabelece o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, contribuiu para a erradicação do processo de branqueamento? A proposta de educação étnico-racial tem diminuído as ações discriminatórias e de racismo no ambiente escolar? Embora o pressuposto que essa lei contribuiu para a inserção da temática educação étnico-racial no currículo da Educação Infantil, ressalta- -se que ações discriminatórias e de racismo permeadas pelo processo de branqueamento ainda têm forte presença no ambiente escolar, o que contribui negativamente com o processo de formação da identidade e autoestima da criança negra. Os processos de formação docente sobre a temática da educação étnico-racial têm valorizado a implementação do ensino da História da África e da cultura, todavia o processo de branqueamento sofrido pela população brasileira resulta numa discussão que não dá visibilidade ao racismo e às ações discriminatórias de educadores e educadoras. Por isso, é de suma importância a consciência crítica sobre o im- pacto negativo que o processo de branqueamento tem na formação da identidade da criança negra. Daí, a intenção deste artigo em refletir se a Lei n. 10.639/2003 contribuiu (ou não) para a erradicação do processo de branqueamento e do racismo nas escolas de Educação Infantil, pois aprofundar esta discussão pode valorizar a proposta da educação étnico- -racial e ressaltar a contribuição que esta temática tem na formação da identidade e autoestima da criança negra.

26 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência O corpo teórico sobre os processos de branqueamento na infância de uma criança negra é fundamentado por duas autoras negras: Maria Aparecida Silva Bento e Eliane Cavalleiro. Bento (2002, p. 25) tem se debruçado nesta temática e afirma que nos últimos catorze anos “o que tem lhe chamado a atenção nas pesquisas, na implementação de progra- mas institucionais de combate às desigualdades, é o silêncio, a omissão ou a distorção que há em torno do lugar que o branco ocupou e ocupa, de fato, nas relações raciais brasileiras”. Cavalleiro (2003, p. 9) ressalta que a “[...] discussão das relações étnico-raciais em território brasileiro é uma questão antiga, complexa [...], porém necessária para a promoção de uma educação igualitária...”. As políticas públicas1 que promulgam a proposta de uma educação igualitária visam à promoção da igualdade de oportunidades e de trata- mentos em matéria de ensino; sendo assim, as diretrizes educacionais devem “valorizar a diversidade racial, dentre outras que caracterizam a sociedade brasileira e dispensar tratamento igualitário aos diversos marcos culturais formadores da nacionalidade, contribuindo assim para a erradicação do racismo e de qualquer forma de discriminação ilícita – isso no que se refere à educação básica” (SILVA JUNIOR, 2011, p. 79). Em relação às pesquisas sobre infância, criança e relações raciais, Rosemberg (2011, p. 36) afirma:

Ao silêncio dos movimentos sociais sobre educação da criança pequena, se associa um intenso desconhecimento de nós pesquisadores/as sobre as relações raciais que se constroem no âmbito da creche e da pré-escola e da pequena infância. Não raro preenchemos este desconhecimento por aproximações com o que ocorre nos outros níveis ou etapas da escola, com crianças maiores.

Os conceitos de criança e de infância que se defende e o como se compreende a vivência da infância das crianças negras, no ambiente socioeducacional, apoiam-se nas contribuições da pesquisa de Cavalleiro (2003), publicada no livro Do silêncio do lar ao silêncio da escola, em que perpassa pelas formas como o racismo, o preconceito e a discriminação se estabelecem na Educação Infantil. Ainda, neste artigo, estão alguns dados referentes à pesquisa de campo realizada com as alunas do curso de especialização (Lato Sensu) em Educação Infantil de uma universidade particular do município de São Bernardo do Campo, SP, com o objetivo de ressaltar a importância da inclusão desta temática nos cursos de formação docente, visto que

1 Estatuto da Igualdade Racial, Lei n. 12.288/2010. Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino, promulgada pelo Decreto n. 63.223/1968.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 27 a maioria dos/as educadores/as conclui o curso de licenciatura sem ter discutido com profundidade esta temática. Este artigo aponta a leitura de que, após uma década da implementa- ção da Lei n. 10.639/2003, há indícios da necessidade de aprofundamento das discussões e ampliação de pesquisas sobre a temática da educação étnico-racial na Educação Infantil, bem como a erradicação de processos discriminatórios e de racismo com a criança negra.

Conceito de criança e de infância Uma das questões que se apresenta neste artigo é se o/a educador/a tem consciência crítica do impacto negativo que o processo de bran- queamento tem na formação da identidade da criança negra. Assim, é importante estabelecer o que se entende por criança, por infância e, na sequência, como se dá o processo de branqueamento. Por ser um tema ainda novo, tem sido um grande desafio compre- ender as diferentes concepções de criança e de infância no decorrer da história (COHN, 2009, p. 11). Sabe-se que a concepção de criança, enquanto uma etapa do desenvolvimento humano, tem relação com pe- culiaridades e características físicas e biológicas determinadas para uma faixa etária que, atualmente, é compreendida entre 0 e 12 anos, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1989). No entanto, esta é apenas uma das concepções. Considerando a necessidade de respeitar os elementos constituti- vos do ser criança, como o seu processo de desenvolvimento, além das características físicas e biológicas específicas da idade, a concepção que se defende, aqui, é a de criança enquanto um ser inacabado2, com capacidades de reproduzir e produzir cultura, criativo, inteligente e com direito de expressar seus conhecimentos, suas hipóteses e sentimentos sobre o mundo e sua cultura. Este texto reflete, também, a concepção de infância, enquanto diferentes experiências advindas do contexto sociocultural no qual as crianças estão inseridas. Ao recorrer a estudos e pesquisas sobre o que se entende por infância, observa-se que o registro da história da criança é algo novo no campo da ciência. Somente no século 17 é que foram registrados alguns olhares do mundo adulto, para o mundo da criança, por meio da iconografia.3 E, apenas, no final do século 19, é que se tem a criança sob o olhar dos/as pesquisadores/as, com o objetivo de compre- ender esta importante fase do desenvolvimento humano, estabelecendo, assim, uma concepção de infância.

2 Na concepção freiriana a condição de inacabamento está na possibilidade que o ser humano tem de ser mais, “o homem se sabe inacabado; por isso, se educa (FREIRE, 1979, p. 27) 3 Iconografia é uma imagem reproduzida pela pintura, escultura ou outras artes plásticas.

28 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência Philippe Ariès (1981), em História Social da Criança e da família, traz grandes contribuições no campo da pesquisa sobre a criança. Seu estu- do mostra que a infância é uma construção social e histórica do mundo Ocidental, o que significa que o conceito de infância foi sendo elaborado ao longo do tempo e que ainda merece estudos e pesquisas. Se a ciência desconhecia a infância, antes do século 19, porque não havia lugar definido para as crianças na sociedade, a concepção que se tinha destes pequenos era pautada pela irracionalidade e incapacidade que estes seres tinham para se movimentar com sobriedade e coerência no mundo adulto (BRANCHER; NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2009, p. 5). Destaca-se que esta concepção de criança, ainda, é muito disseminada nas diversas esferas da sociedade contemporânea, ou seja, ainda é pre- sente em muitas comunidades ocidentais, como família, escola, igreja. Se as crianças são vistas como irracionais e sem condições de apresentarem atitudes socialmente valorizadas, consequentemente, faz-se necessário submeter o corpo desta criança, evitando seus movimentos e exercendo o controle sobre elas. Controle do espaço, da fala, do corpo. Mas, ao retomar a concepção de infância como construção social e histórica, percebe-se que são as diferenças de oportunidades sociais, econômicas, culturais, religiosas e outras, que geram diferentes possibili- dades de a criança viver a sua infância. E, neste sentido, compreende-se, então, que não existe uma única infância, e sim, infâncias. A afirmação de que toda criança tem uma história parece comum, pois ao se perguntar a uma pessoa qual a sua história, com certeza, ela terá como buscar algum registro da sua infância, por meio de imagens, fotos, narrativas de amigos e familiares. No entanto, é importante ressal- tar que o registro da história das crianças nem sempre foi tão simples e sistematizado como hoje, quando se tem a oportunidade de presenciar os fatos e acontecimento no momento em que estão ocorrendo. A título de exemplo, atualmente, os bebês já deixam a maternidade, ou até mesmo da sala de parto, com a possibilidade de terem suas imagens e histórias registradas nas redes sociais. Contudo, o fato de ser criança, não lhe garante a oportunidade de vivenciar sua infância da mesma maneira que outras, pois, a algumas delas é negado gozar os direitos da infância, tais como: de ter identidade, proteção familiar, educação, alimentação saudável, moradia, brincadeira e lazer e outros. Ressalta-se que, no entanto, não se trata só de ter con- dição econômica favorável, mas, principalmente, de se ter a concepção de criança, como sujeito de direitos. Direcionando o olhar para as crianças na idade da Educação Infantil, período importantíssimo para a construção da identidade e da autoesti- ma, observa-se as possibilidades (ou não) que estas crianças têm de

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 29 experienciarem a infância, a partir das diversidades culturais e étnicas representadas no ambiente escolar, ou em outros ambientes. Destaca-se que experienciar, aqui, carrega o sentido de ter experi- ência, conceito advindo do autor espanhol Jorge Larrosa4, que afirma que “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. Por isso, é de suma importância a conscientização dos adultos – educadores/ as, pais/mães e ou responsáveis - sobre o que tem acontecido e, de fato, tem tocado às crianças, e, em especial, às crianças negras, das quais, neste artigo, serão trazidas algumas experiências.

A socialização da criança negra Em outras culturas pode-se encontrar formas diferenciadas de se conceber a criança. É o caso da cultura africana, em que a socialização da criança parte da noção de que o indivíduo não tem valor por si só. Assim, conforme Ezémbé (apud ABRAMOWICZ, OLIVEIRA, 2011, p. 57), ser criança, jovem, adulto ou velho é mais ocupar uma posição social e institucional, que manifestar um estado dado de maturação. Desta forma, segundo Abramowicz e Oliveira (2011, p. 56), o indi- víduo não tem existência própria, ele vive em função da sociedade, a criança interessa enquanto ela pode interessar à sociedade. Neste sentido, no processo de socialização da criança africana, o adulto acaba por ter um papel totalmente diferente em relação a outras organizações sociais (como as ocidentais, por exemplo). A criança vista como sujeito coletivo, subentende maior responsabilidade de todos da comunidade para com ela, e que, neste espaço social, ela se desenvolve, também, enquanto sujeito indivíduo. Na cosmovisão africana, a criança é vista como um ser que tem um significado muito especial. Ela pertence não apenas à família nuclear, mas é cuidada, amada e valorizada por todos da comunidade. Em visita a uma comunidade moçambicana, pôde-se constatar a visibilidade que a criança tem, diante de uma criança, pessoas de diferentes idades e classe social olham, sorriem, cumprimentam ou fazem um gesto de carinho ou de cuidado com ela. O processo de socialização e aprendizado da criança ocorre naturalmente na convivência com os adultos. Desde bebê, junto ao corpo da mãe e junto ao grupo, ela já vai aprendendo e apreendendo a vida da comunidade. Ressalta-se a forma como as crianças africanas são socialmente recebidas, enquanto uma possibilidade de olhar para as diferentes ex- periências que estas crianças estão tendo, como são introduzidas na comunidade e como a identidade, autoestima e sentimento de pertença delas vão se constituindo. 4 LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 21, jan./abr. 2002.

30 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência Diferentemente, as sociedades que sofreram/sofrem grande influên- cia do eurocentrismo tendem a desconsiderar as demais representações socioculturais. O Brasil, por exemplo, sendo um País de raiz africana e conhecido, atualmente, como País que acolhe a diversidade étnico- -racial, tem reproduzido, fortemente, a hegemonia da classe dominante, prevalecendo, assim, os conceitos eurocêntricos e desconsiderando e/ou desvalorizando as pessoas negras e/ou afrodescendentes. Este processo de discriminação e racismo ocorre no ambiente escolar desde o berçário, quando, por exemplo, aos bebês negros é negado o direito ao colo. Conforme Cavalleiro (2003, p. 19),

Numa sociedade como a nossa, na qual predomina uma visão negativa- mente preconceituosa, historicamente construída, a respeito do negro e, em contrapartida, identificação positiva do branco, a identidade estruturada durante o processo de socialização terá por base a precariedade de mode- los satisfatórios e a abundância de estereótipos negativos sobre os negros.

Assim, as crianças, ainda bem pequenas, já experimentam as dife- rentes movimentações em relação à forma com que os adultos reagem em relação ao seu corpo (por exemplo: textura do cabelo, cor da pele). Quando o ambiente não é acolhedor e respeitoso em relação às suas características físicas e culturais, o impacto negativo sobre o desenvol- vimento da criança negra aumenta. Pode-se identificar, por meio de alguns estudos5 sobre identidade ra- cial na Educação Infantil, que as crianças negras, muito cedo, apresentam uma identidade negativa em relação ao seu grupo étnico; por outro lado, conforme aponta Cavalleiro (2003, p. 10), as crianças brancas revelam sentimento de superioridade, assumindo, em diversas situações, atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo crianças negras, atribuindo caráter negativo à cor da pele. O tema das relações étnico-raciais (racismo, discriminação, pre- conceito), normalmente, causa mal-estar, principalmente, no ambiente escolar – Educação Infantil. E, isso, devido ao processo de negação, que vem se arrastando há mais de 120 anos (período pós-abolição da escravatura) e que se estabelece como tendência social, fazendo com que educadores/as continuem, muitas vezes, reproduzindo atitudes preconceituosas e discriminatórias.

O processo de branqueamento Partindo do pressuposto que o processo de branqueamento é susten- tado por tudo aquilo que alimenta a projeção do branco sobre o negro e os

5 Cavalleiro (2003); Dias (2007); Trinidad (2011).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 31 pactos narcísicos entre os brancos, em detrimento das características da pessoa negra, este artigo ressalta a importância da discussão e reflexão de como este processo é reproduzido nos espaços da Educação Infantil. O processo de branqueamento, em nosso país, tem sido uma práti- ca reprodutora e mantenedora do racismo institucionalizado e, por isso, é necessário que as ações pedagógicas sejam repensadas a partir da conscientização das/os educadoras/res que trabalham com crianças. Bento (2002, p. 25) alerta que, no Brasil, o branqueamento é, fre- quentemente, considerado um problema do negro que, descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais. No entanto, é evidente que os estereótipos negativos em relação à pessoa negra, reforçados pelo imaginário social, são reproduzidos pelas práticas discriminatórias e de racismo no cotidiano escolar.

[...] no convívio com estereótipos negativos, as crianças aprendem a inter- nalizar sentidos positivos ou negativos sobre si mesmas, e a professora é uma das principais pessoas que vai lhes possibilitar “informações” sobre como e o quê elas são, a partir do fornecimento dos principais dados sobre seu desenvolvimento, suas capacidades e habilidades (SILVA, 2002, p. 138)

Às crianças negras, têm sido negadas “informações” que venham contribuir com o desenvolvimento de suas capacidades e habilidades, valorizando sua cultura, etnia e forma de ser. Neste sentido, vale ressaltar que é necessário (re) significar as representações sociais que educadoras/es levam para as suas práticas educacionais e metodológicas, em relação à população negra. Segundo Moscovici (apud DUARTE, 2011, p. 141), as representações sociais são entendidas como verdadeiras teorias do senso comum, um saber ingê- nuo, que designa uma forma de pensamento social e são utilizadas para explicar fatos, classificar objetos e pessoas. Uma dessas teorias, que se sustenta no senso comum e acaba por designar uma forma de pensamento social, é a do processo de branque- amento. Conforme Bento (2002, p. 25):

Na verdade, quando se estuda o branqueamento constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro. Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a auto-estima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política

32 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência e social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais.

O cotidiano escolar tem sido um dos espaços da reprodução deste imaginário negativo em relação à pessoa negra. As crianças, deste o berçário, recebem uma carga elevada de imagens e informações que ressaltam e valorizam a cultura eurocêntrica e acabam por contribuir para a construção de baixa autoestima, em relação as suas características de descendência africana ou afro-brasileira. Além disso, pesquisas têm demonstrado que o atendimento às crianças negras, nos espaços do berçário e da creche, não é igual ao atendimento e aos cuidados dedicados à criança branca. Como já se disse, muitas vezes, à criança negra tem sido negada a maternagem, ou seja, alguns cuidados que devem ser dispensados ao bebê, com o objetivo de atender suas necessidades. Pode-se constatar essa diferenciação, nas pesquisas apresentadas por Martins e Miranda (2009), no livro Maternagem – Quando o bebê pede colo, da Coleção Percepções da diferença entre negros e brancos na escola. As autoras apontam como a discussão do tema das relações étnico-raciais causa, ainda hoje, certo mal-estar, e que há uma tendência à negação, por parte das/os educadoras/ores, que tais fatos ocorram no cotidiano escolar. Segundo as autoras:

Quando pensamos especificamente no corpo do bebê e da criança negra e na relação que será travada com esse corpo, sabemos que ela poderá estar mediada pelas representações sociais [...]. Assim, o/a educador/a muitas vezes, apresenta resistência em manipular um corpo negro, pois associa a esse corpo aqueles elementos inscritos num imaginário coletivo, ou seja, um corpo feio, um corpo com um cheiro ruim, um cabelo “duro” (MARTINS; MIRANDA, 2009, p. 22).

Da mesma forma que o cotidiano escolar tem sido espaço da re- petição do senso comum e da ideologia do branqueamento, é, também, importante espaço de conscientização, transformação e combate à ideo- logia discriminatória e racista. Caminhando na contramão do processo de branqueamento, educa- dores/as podem valorizar as características da criança negra e ter ações de afeto para com ela, da mesma forma que têm, quando valorizam e dedicam afeto às crianças brancas. Cabe ao espaço escolar criar ações afirmativas que venham reparar a distância entre brancos e negros, quan-

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 33 do se trata da valorização da sua etnia, da cor da sua pele, do jeito do seu cabelo, das condições econômicas e socioculturais específicas a cada um. Uma das principais pesquisadoras sobre esta temática, Eliane Ca- valleiro (2003), afirma que, entre as crianças de 4 a 6 anos, é possível identificar que as crianças negras já apresentam identidade negativa em relação ao seu grupo étnico. Segundo a autora, em contrapartida, crianças brancas revelam sentimento de superioridade, assumindo, em diversas situações, atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo as crianças negras, atribuindo caráter negativo a cor da sua pele (p. 10). Conforme Kabengele Munanga (2005, p. 16),

Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendên- cias étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco.

Neste sentido, refletir sobre o processo de branqueamento na infância de uma criança negra tem por desafio, a explícita intenção de reverter este quadro histórico, no qual a pessoa negra tem construído imagem negativa a seu respeito e a respeito de sua etnia. Enquanto educadores e educadoras que respeitam a diversidade étnico-cultural existente na sociedade brasileira, não se pode permitir que esta imagem negativa, construída num processo de dominação, continue destruindo a construção de autoimagem positiva das crianças negras.

Políticas públicas e práticas pedagógicas: por uma educação antirracista Para reverter este quadro de uma sociedade que reproduz processos de exclusão da pessoa negra, principalmente, no campo educacional, faz-se necessário iniciarmos com uma pergunta: a sociedade brasileira quer mesmo modificar esse quadro? Parece que a resposta é simples e que muitos responderiam sim. Até porque, a partir de todas as discussões que se tem feito, enquanto sociedade brasileira, ninguém responderia não de imediato. A questão não está no querer fazer diferente, mas, sim, no como fazer diferente e, de fato, nos tornarmos uma sociedade justa nas suas relações étnico-raciais. As políticas públicas com recorte racial são necessárias para a mo- dificação desse quadro. Mas, para que sejam efetivadas estas políticas,

34 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência faz-se necessário que, primeiramente, o Brasil reconheça a existência desse grave quadro de reprodução do racismo. Desta forma, algumas leis e diretrizes educacionais foram criadas para garantir uma educação antirracista e que o conteúdo que permeia os currículos escolares seja revisto a partir de práticas pedagógicas que valorizem a cultura africana e afro-brasileira. Segundo Silva Junior (2011, p. 69):

Vale lembrar que a diversidade étnico-racial que caracteriza a sociedade implica na afluência para creches e pré-escolas de uma variada grama de modelos estético-corpóreos e culturais, elementos constitutivos da identidade de bebês e crianças pequenas que sob nenhuma hipótese podem ser igno- rados, subestimados ou negligenciados pela política educacional.

Assim, a alteração na Lei n. 9.394/1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, com a promulgação da Lei n. 10.639/2003, que vem garantir a inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. A partir da Lei n. 10.639/2003, inclui-se, então, nos currículos esco- lares, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e a importância do negro na formação da sociedade nacional, resgatando, assim, a contribuição do povo negro nas áreas social, eco- nômica e políticas pertinentes à História do Brasil. Em 2006, a resolução CNE/CP/2006, estabelece que as Instituições de Ensino Superior (IES) revisem suas matrizes curriculares e que seja incluída em seus currículos uma pedagogia antirracista e antidiscrimina- tória, capacitando, assim, profissionais da educação para a construção de novas relações étnico-raciais. Para isso, devem incluir o estudo da História e Cultura Afro-brasileira e Africana na grade curricular de seus cursos de licenciatura. Ainda no ano de 2006, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade estabelece as diretrizes para a educação étnico-racial, por meio do docu- mento Orientações e Ações para a Educação das Relações étnico-raciais (Brasília. SEC/SECAD, 2006) Em 2009, o MEC apresenta um Plano de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais, para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. As políticas públicas vêm contribuir para que ações afirmativas e de combate ao racismo façam parte do contexto escolar. No entanto, após quase dez anos da implementação da Lei n. 10.639, observa-se a

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 35 necessidade de reforçar e ampliar a temática da educação étnico-racial, minimizando, assim, as ações de racismo, intolerância e de discriminação étnico-racial ainda tão presentes no ambiente escolar. Cabe ressaltar que as políticas de inclusão da História da África e Afro-brasileira são importantes no combate ao processo de branqueamento ao qual as crianças negras estão expostas. Tem-se presenciado escolas realizando projetos de estudos e pesquisas sobre a cultura africana, no entanto, paralelamente a isso, não conseguem visualizar o preconceito, a discriminação e o racismo permeando as relações interpessoais das crianças com elas mesmas e /ou dos adultos (profissionais da educação) com as crianças negras. O que tem acontecido é um silenciamento dos profissionais da educação, mediante as ações racistas e discriminatórias em relação à criança negra. Isso se dá, muitas vezes, ou pelo fato de não saberem o que e como fazer diante destas ações ou porque não enxergam as atitudes negativas exercidas no ambiente educacional, que minimizam a autoestima da criança negra. O silêncio tem sido uma estratégia para minimizar os conflitos que se apresentam na sala de aula. Assim, os problemas vão se acumulando e o mito da democracia racial6 se mantendo. Conforme Cavalleiro (2003, p. 58), os problemas se acumulam: ausência de informação, aliada a um pretenso conhecimento, resulta no silêncio diante das diferenças étnicas. Desta forma, não há política pública que dê conta de reverter este quadro socioeducacional preconceituoso e racista. É preciso que educa- dores/as enfrentem esta temática, não se silenciando diante das atitudes discriminatórias, intolerantes e desumanas. Daí, a importância das práticas pedagógicas que valorizam a educação étnico-racial.

Paralelo entre o que ocorre com a Educação Infantil secular e a Educação Infantil na Igreja Metodista no processo de socialização da criança negra Participando de vários processos de formação docente constata- -se que a temática da educação étnico-racial, pelo viés do processo de branqueamento e a manutenção do racismo no ambiente educacional, ainda tem sido pouco discutida, embora haja grande preocupação com a implementação do ensino da História da África e da cultura Afro-Brasileira nos currículos da Educação Infantil. Neste sentido, os questionamentos levantados, na intenção de encon- trar caminhos que minimizem os processos de manutenção e reprodução do racismo no ambiente educacional, foram apresentados a um grupo de

6 Ideia de que as relações estabelecidas entre brancos e negros no Brasil se construíram, historicamente, de forma harmônica.

36 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência alunas do curso de especialização (Lato Sensu) em Educação Infantil, de uma universidade particular do município de São Bernardo do Campo, SP. A partir de alguns dados desta pesquisa, elaborada por meio da observação participante e da aplicação de um questionário com pergun- tas abertas sobre a temática, aponta-se alguns pontos que ainda estão fortemente presentes no cotidiano do fazer pedagógico das educadoras. Das oito perguntas realizadas no questionário, com a intenção de responder se o/a educador/a da Educação Infantil tem consciência crítica sobre o impacto negativo que o processo de branqueamento tem na forma- ção da identidade da criança negra, é possível reconhecer, nas respostas das alunas/professoras, o distanciamento entre teoria e prática, pois elas demonstram ter conhecimento sobre o conceito de branqueamento:

Quando uma criança não é respeitada, enquanto suas características físi- cas e culturais, tentando que mude seus costumes e, por exemplo, cabelo, vestimentas, etc., perdendo sua identidade. Entendo que a criança negra, por muitas razões (em especial por influên- cia da mídia) seja levada a achar que o bonito é ter pele branca, cabelos lisos, nariz fininho e traços europeus. A pressão é tão forte que ela acaba achando que se tiver essas características, aí sim, é que será aceita pelos colegas, pela sociedade.

No entanto, quando questionadas sobre a consciência crítica do impacto negativo do processo de branqueamento na vida das crianças, 50% das alunas responderam que os/as educadores/as, em geral, não têm consciência desse impacto. Alguns dos motivos são descritos a seguir:

Por falta de conhecimento o educador, muitas vezes, não sabe lidar com tal situação. Não, na realidade o corpo docente da Educação Infantil ainda não se deu conta que até mesmo durante a escolha de acervo, planejamento, escolha de materiais, brinquedos reforçam, cada vez mais, a questão do branquea- mento na identidade infantil.

O outro questionamento realizado está ligado às políticas públicas e à implementação da Lei n. 10.639/2003, que estabelece o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira. A questão está direcionada à contribuição que esta lei está dando para a erradicação do processo de branqueamento nas escolas de Educação Infantil, a saber se a proposta da Educação étnico-racial tem diminuído as ações discriminatórias e de racismo no ambiente escolar.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 37 As respostas das alunas vão em direção a afirmar que sim (60% respondem sim), pois a implementação da lei trouxe abertura para a dis- cussão e reflexão da temática educação étnico-racial no ambiente escolar, apontam que, após a aplicação de um projeto com o nome Africanidades, houve mudança de comportamento (aceitação do seu cabelo) de uma criança negra.

Acho que ela (a lei) iniciou e deu abertura para possibilitar mais conheci- mento sobre essas temáticas. Este ano na minha escola duas professoras trabalharam Africanidades e, em uma reunião coletiva, uma delas relatou que um aluno negro sempre raspava o cabelo e após o trabalho com o tema ele falou para a sua mãe que não queria mais raspar, fiquei emocionada ao perceber a aceitação deste aluno...

No entanto, as demais respostas caminham em direção de que há um desconhecimento, por parte das professoras, sobre as reais mudanças nas práticas pedagógicas e no cotidiano escolar das instituições em que elas trabalham, seja pelo fato de estarem há pouco tempo na instituição ou por desconhecimento da lei.

Através da minha experiência de trabalho, não percebi essas mudanças (2 anos de experiência docente). Apesar de não estar totalmente informada sobre o assunto, é fato que durante meu tempo de trabalho na educação infantil não vi mudanças práticas (4 anos de experiência na docência, sendo que há 1 ano está na educação infantil). Preciso aprofundar meus conhecimentos referentes à lei, mas acredito que ainda muitos docentes a desconhecem, por conta disso, não percebi essas mudanças (15 anos de experiência docente).

É oportuno ressaltar que as respostas das alunas apresentam o desconhecimento da temática da educação étnico-racial e da emergen- te necessidade de ações de combate ao racismo. Algumas chegam a justificar que não presenciaram cenas de racismo dentro da escola e que, durante o tempo de experiência na docência, não ocorreu nenhum preconceito racial. Com isso, reforça-se a afirmação de Cavalleiro (2003), de que os problemas se acumulam na ausência de informação, resultando no si- lêncio diante das diferenças étnicas. O silêncio tem sido uma estratégia para minimizar os conflitos que se apresentam na sala de aula. Assim, os problemas vão se acumulando e o mito da democracia racial7 se mantém fortemente presente nas relações interpessoais.

7 Ideia de que as relações estabelecidas entre brancos e negros no Brasil se construíram, historicamente, de forma harmônica.

38 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência Percebe-se que, no âmbito da igreja, ocorre o mesmo, no que diz respeito ao processo de socialização da criança negra na educação infantil secular. Os missionários que implantaram a Igreja Metodista, no Brasil, vindos do sul dos Estados Unidos, trouxeram consigo a visão de um cristianismo racista, em que a escravidão era considerada uma insti- tuição cristã, embora John Wesley tivesse mentalidade antiescravagista. A ênfase do trabalho missionário, no caso das pessoas negras, estava na “conversão e salvação dos escravos e não na sua emancipação e igualdade em relação aos brancos” (BARBOSA, 2002, p. 85). Assim, por meio da educação e da evangelização inculcavam “deve- res de obediência aos seus senhores, submissão, fidelidade e obediência” (p. 87). Embora a educação tenha sido sempre foco da Igreja Metodista, há de se refletir, no caso da criança, qual a concepção de criança que ela prioriza; pois crianças negras eram vistas por imigrantes europeus e norte-americanos como “animaizinhos de estimação” (p. 31). Mas, atualmente, qual a concepção de criança e de infância que ainda vigora na educação infantil nas Igrejas Metodistas? Em encontros com pessoas que trabalham com crianças, ainda percebe-se que a criança é vista pelos adultos, muitas vezes, como alguém que pode ficar a parte ou que não tem condição de ocupar o mesmo espaço e direitos. A elas cabe o espaço “de fora”, mais distante, para que seus ruídos não interfiram no andamento das atividades ou espaços limitados de par- ticipação nos espaços cúlticos. Às crianças, falta espaço físico, mobiliário adequado, sanitário adequado e recursos humanos para o trabalho com elas, como educadores/as, instrumentistas, musicistas e, também, recursos financeiros. Isto leva a analisar que a concepção de criança como ser de direitos, ainda, é um desafio. Neste contexto, as crianças negras estão em situação ainda mais desfavorecida; continuam invisibilizadas e sofrendo as mesmas ações discriminatórias advindas do processo de branqueamento, conforme já discutido, e com o agravante de que persiste na igreja a concepção que, se para Deus todos somos iguais, não há racismo, todos/as são iguais. Porém, falta a consciência crítica de que, na prática, as atitudes não são iguais, os cuidados e a atenção para com crianças brancas e negras não são iguais e as experiências das crianças negras, muitas vezes, não são positivas. A convivência parece pacífica e amorosa, e, de fato, é; porém, as formas de tratamento não são. Persistem as brincadeiras relacionadas à cor, as piadinhas sobre cabelo, endemonização de adereços e de elementos da cultura africana e o estranhamento quando uma pessoa negra assume uma posição de poder. Somando-se que os referenciais valorizados pelos adultos continuam sendo para reforçar o processo de branqueamento; como exemplo, um depoimento, sobre uma professora

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 39 que, ao contar uma história num acampamento de crianças, fala - “olha a bonequinha que ela ganhou, toda bonitinha, loirinha...” É, também, frequente uma criança chegar-se ao professor/professora dizendo que o/a coleguinha a chamou de “seu macaco!”,ou “ninguém quer dar a mão pra mim”, ou “ninguém quer seu meu par” e o/a educador/a diz “não liga, não!”, “volta pro lugar!”, “depois converso com ele/a” e não discute o assunto com a classe. Ao não se trazer o debate para o grupo, o que se está mantendo é a invisibilidade da situação, favorecendo, assim, a manutenção do pro- cesso de branqueamento, em que a criança branca se sente superior e à criança negra, cabe a aceitação dos fatos. Embora a Lei n. 10.639 não seja obrigatória na educação oferecida na Escola Dominical, é de grande importância que sejam trabalhados os referencias étnico-raciais na formação das crianças. É de grande valia que as pessoas que trabalham com crianças estejam atentas ao que acontece a elas, às brincadeiras, aos apelidos, aos papéis teatrais que são “permi- tidos” às crianças negras, pois, em geral, não são reis/rainhas, mas são chamadas a fazer papel de escravo/a, de diabo, de ladrão, de dependente químico, entre outros, considerados negativos ou não valorizados. Reforçamos que neutralizar o problema, por meio do silenciamento ou colocando-o no campo da invisibilidade tem sido uma prática que somente tem fortalecido o impacto do processo de branqueamento na infância da criança negra e contribuído negativamente com a construção da identidade e autoestima das nossas crianças.

Considerações finais Ressalta-se a importância de encontrar caminhos para, de fato, se desenvolver saberes necessários para uma prática pedagógica que valorize a educação étnico-racial. Estes saberes só serão construídos, quando educadoras/res compreenderem que as políticas públicas com recorte étnico-racial estão a serviço de atender uma sociedade que não se vê racista e preconceituosa. Para isso, é necessário que a educação, por meio da conscientização crítica de seus parceiros/as, faça diferente e não reproduza o processo de branqueamento, mas produza uma cultura de valorização das diferentes etnias. Possibilitar que a formação docente tenha estas questões em seus currículos é de fundamental importância neste processo de combate ao racismo. Este é um dos caminhos que podem minimizar o processo de branqueamento tão fortemente presente no cotidiano escolar. Assim, criar espaços, nos diferentes ambientes educacionais, incluin- do o ambiente religioso, para alimentar a discussão das temáticas: racis- mo, discriminação, preconceito e intolerância para com a pessoa negra,

40 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência somente, contribui com a queda do mito da democracia racial, o qual o Brasil está, há muito tempo, reproduzindo; e este mito é o que contribui, consequentemente, para as pessoas demonstrarem desconhecimento, medo ou insensibilidade para com a temática. Segundo Paulo Freire (1979), a educação é um dos segmentos que pode contribuir com a transformação da sociedade. Neste sentido, um dos caminhos é conscientizar, criticamente, as/os educadoras/res sobre a im- portância desta temática e sobre ações afirmativas,8 enquanto necessárias para que haja enfrentamento e mudança do quadro atual de violência com a população negra. A violência da discriminação racial, na maioria das vezes, é pautada por sutilezas como, por exemplo: o desrespeito com as pessoas, a maneira como se dirige (ou não) o olhar a alguém, ou como se refere à sua cor da pele, à estrutura do seu cabelo ou à sua cultura. A educação tem esse papel transformador e libertador de ajudar a sociedade olhar de forma diferente as crianças e valorizá-las, possibilitan- do, de fato, um sentimento de respeito à identidade das crianças negras.

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8 Ação afirmativa tem sido expressão de frequente uso nas discussões acerca da criação e desenvolvimento de mecanismos de combate a desequilíbrios e de intervenção em situa- ções objetivas de desvantagem motivada pelos mais diferentes aspectos. A terminologia nos remete imediatamente à projeção direta de uma ação específica de reconstituição de uma situação que antes se apresentava negativa e prejudicial que, agora, ante a referida ação, assume seu aspecto de positividade (MARTINS; VICENTE, 2011, p. 66).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 25-42, jan./jun. 2013 41 BRASIL. SEC/SECAD. Orientações e Ações para a Educação das Relações étnico-raciais. Brasília, 2006 CAVALLEIRO, E. Do silêncio do lar ao silêncio escolar. 2. ed. São Paulo: Con- texto, 2003. COHN, C. Antropologia da Criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. DIAS, L. R. No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao racismo. (Tese de doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, 2007. DUARTE, C. de P. T. A abordagem da temática racial na educação infantil: o que nos revela a prática pedagógica de uma professora. In: BENTO, M. A. S. (Org.) Educação Infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: CEERT, 2011. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GOMES, N. L. Corpo, cabelo como símbolos da identidade negra. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 21, jan./abr. 2002. MARTINS, T. C. da; VICENTE, J. Experiências do protagonismo da juventude negra na Faculdade Zumbi dos Palmares. In: Revista Educação & Linguagem, vol. 14, n. 23/24, p. 57-74, jan-dez/2011. ISSN Eletrônico: 2176-1043 MIRANDA, M. A.; MARTINS, M. de S. Maternagem - Quando o bebê pede colo. Coleção percepções da diferença negros e brancos na escola. São Paulo: Terceira Margem, vol. 2, 2009. MUNANGA, K. (Org.). Superando o Racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. ROSEMBERG, F. A criança pequena e o direito à creche no contexto dos debates sobre infância e relações raciais. In: BENTO, M. A. S. (Org.) Educação Infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: CEERT, 2011. SILVA JUNIOR, H. Anotações conceituais e jurídicas sobre Educação Infantil, diversidade e igualdade racial. In: BENTO, M. A. S. (Org.) Educação Infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: CEERT, 2011. SILVA, V. L. N. da. Os estereótipos racistas nas falas de educadoras infantis – suas implicações no cotidiano educacional da criança negra (Dissertação de mestrado) Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense – Faculdade de Educação, 2002. TRINIDAD, C. T. Identificação étnico-racial na voz de crianças em espaços de educação infantil (Tese de doutorado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.

42 Telma Cezar da Silva Martins, Neusa Cezar da Silva: 125 anos de resistência Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... Pistas para uma educação antirracista... Black sheep, crooked little men and black hearts... Clues to an antiracist education… Ovejas negras, pequeños hombres torcidos y corazones negros... Las pistas para una educación antirracista…

Andreia Fernandes de Oliveira

Resumo Este artigo pretende, a partir das pesquisas sobre educação antirracista e educação das relações étnico-raciais, contribuir para a vivência educacional no espaço da Escola Dominical. Assim, intenta-se promover a reflexão sobre o racismo implícito em expressões cotidianas na educação cristã e compartilhar algumas ideias pedagógicas que poderão contribuir para relações educacionais mais justas e solidárias. Palavras-chave: Educação antirracista; preconceito; diversidade; educação cristã; Escola Dominical.

Abstract This article seeks to offer, based on a research on antiracist education and edu- cation of ethno-racial relations, contributions to educational experiences in the setting of the Sunday School. Beside this, tries to promote reflection on implicit racism in our daily life expressions of Christian education and to share some pe- dagogical ideas that could contribute to more fair and caring relations in education Keywords: Antiracist education; preconceive; diversity; Sunday school.

Resumen Este artículo pretende, a partir de las investigaciones sobre educación antirracista y educación en las relaciones étnico-raciales, contribuir para la vivencia educa- cional en el espacio de la Escuela Dominical. Así, intenta promover la reflexión sobre el racismo implícito en expresiones cotidianas en la educación cristiana y compartir algunos ideales pedagógicos que podrán contribuir para relaciones educacionales más justas y solidarias. Palabras clave: educación antirracista; prejuicio; diversidad; educación cristiana; escuela dominical.

Introdução O universo da educação cristã assim como o da educação secular é rico, complexo e diversificado, e a pesquisa educacional que há muito se faz e se perfaz, no cenário acadêmico, tem muito a contribuir com a prática pedagógica na educação cristã.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 43 Nesse sentido, este artigo se propõe a convergir algumas contri- buições das pesquisas sobre educação e relações étnico-raciais para o movimento de educação cristã que se dá no espaço da Escola Dominical. A Escola Dominical é uma marca na história protestante. Ela repre- senta um espaço específico de educação cristã, em que salas de aula e a Bíblia cristã são, respectivamente, o palco e o cenário para as relações pedagógicas entre educandas/os e educadoras/es. Nessas relações, as diferentes concepções pedagógicas, herdadas das experiências das escolas seculares, se encontram e propiciam o processo de ensino e aprendizagem nas salas de aulas das igrejas locais. A educação, na perspectiva antirracista, pode contribuir para o pro- cesso educacional que se dá na Escola Dominical, uma vez que existem práticas discriminatórias neste espaço educacional cristão. Músicas, histórias e imagens carregam, em seus discursos, ideolo- gias que contribuem ou não com o processo de educação evangélica, na perspectiva da construção de uma visão de mundo comprometida com a justiça, paz e dignidade para todas as pessoas. Preconceitos, discriminações, fortalecimento de uma cultura hege- mônica colonial e ocidental contam com uma ferramenta importante para se consolidar, para se naturalizar: a educação. No entanto, é esta mesma ferramenta que pode ser utilizada na perspectiva de repensar as represen- tações sociais negativas, questionar a naturalização da visão hegemônica eurocêntrica e a reprodução de práticas excludentes, racistas e sexistas. Fala-se, aqui, especificamente, da educação na perspectiva antirracista. Mas, há racismo no Brasil?

Há racismo no Brasil? Há um provérbio africano que diz “ninguém experimenta a profundi- dade de um rio com os dois pés”. O rio do racismo é profundo, caudaloso e, nesse rio, histórias, pessoas racistas e vítimas de racismo se afogam. O racismo brasileiro tem uma das suas nascentes no processo per- verso de sequestro de negras e negros de vários países do continente africano e, consequente, escravização dos mesmos. Suas águas, até hoje, inundam o nosso País. Você é convidado para conhecer estas águas. A palavra racismo deriva de raça, a palavra raça deriva do italiano razza que, por sua vez, vem do latim ratio, que significa sorte, categoria, espécie. Entretanto, mais que uma simples palavra, raça é um conceito. Segundo Munanga, o conceito de raça1 foi primeiramente usado na zo-

1 Em 1684, o francês François Bernier emprega o termo “raça” no sentido moderno da palavra, para classificar a diversidade humana em grupos fisicamente contrastados, denominados raças. O problema não foi classificar, mas foi a hierarquização determinan- do as raças em superiores e inferiores. Nos séculos 16-17, o conceito de raça passou efetivamente a atuar nas relações entre classes sociais da França da época; a nobreza local – que se identificava com os francos de origem germânica (dotados de sangue puro) – em oposição aos gauleses – população local identificada como a plebe. Nasce o conceito de “raças puras” (MUNANGA, 2004, p. 20).

44 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... ologia e na botânica, para classificar as espécies de animais e vegetais (MUNANGA, 2000, p. 17). É no século 18, quando acontece o rompimento com o paradigma cristão para a explicação do diferente, que o conceito raça se desloca das ciências naturais, para a explicação da existência de outros grupos que não o europeu. O processo de classificação da humanidade utilizou, primeiramente, como categoria a cor da pele, o que deu origem à classificação em ra- ças branca, negra e amarela. Com os avanços dos estudos científicos, agregou os traços morfológicos e, mais tardiamente, elementos químicos presentes no sangue. O cruzamento dessas diversas categorias acabou por produzir uma infinidade de catalogação de raças. É no século 20, com as consequências danosas da ideologia nazis- ta e com o avanço da pesquisa genética, que se iniciam as pesquisas comparativas de patrimônio genético. Aqui se confirma a não existência de diferenças genéticas entre as raças. Assim, na metade do século 20, conclui-se que, cientificamente, não existem raças diferentes. Entretanto, a hierarquização proposta entre as raças já havia criado raízes e promo- via desigualdades, ao valorizar indivíduos de raça branca em detrimento aos demais. Obviamente, quem estava no gerenciamento de tais classificações não pertencia às raças inferiorizadas. Diante da afirmativa da não existência de raças, mas sim uma só raça humana, por que utilizar, ainda, esta terminologia como um conceito? Quem se aprofundar na historicidade do conceito raça perceberá o quão mutável ele é. Assim, atualmente, longe de estar atrelado a aspectos biológicos, genéticos e morfológicos, como o era no passado, o conceito de raça conecta-se à realidade social:

As raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estuda- das por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica (GUIMARÃES, 2003, p. 96).

Falar em raça, hoje, é falar de um grupo social e não apenas de características biológicas, mas especialmente de traços identitários. Ao pensarmos em raça como uma construção social, outros verbetes socio- lógicos a ela se articulam. Entre estes, destacam-se: preconceito, racismo e discriminação. O racismo é a pior forma de discriminação, porque a pessoa não pode mudar as características raciais que a natureza lhe deu, afirma Antônio Olympio de Sant’Ana, no livro Superando o Racismo na Escola (2005, p. 41). O racismo é uma ideologia, portanto, surge no século 17,

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 45 no contexto da civilização ocidental, como instrumento de dominação para naturalização da hierarquia entre as diferenças e distinções biológicas. Dentre as formas de expressão e desdobramento do racismo, en- contramos o preconceito e a discriminação.

Segundo o dicionário de ciências sociais preconceito é “uma atitude nega- tiva, desfavorável para com um grupo ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças estereotipadas” (SILVA, 1987, p. 962). Os preconceitos estão profundamente arraigados no senso comum e nele se cristalizam, assim como nas práticas políticas. São realidades historicamente construídas e dinâmicas; são reinventados e reinstalados no imaginário social continuamente. Os preconceitos atuam como filtro de nossa percepção, for- temente impregnados de emoções, colorindo nosso olhar, modulando o ouvir, modelando o tocar, fazendo com que tenhamos uma percepção simplificada e enviesada da realidade (CANDAU, 2003, p.17).

Os preconceitos, fundamentados em diversos estereótipos2, quer de raça, gênero, religião, classe social ou etnia, segregam e acomodam pes- soas em posições hierárquicas e, assim, desiguais. O preconceito produz a discriminação racial entendida como a “ação, atitude, ou manifestação contra uma pessoa ou grupo de pessoas em razão de sua raça ou ‘cor’” (SECAD, 2006, p. 215). A dialógica relação entre racismo, preconceito racial e discriminação racial, aliados a outras categorias sociais, como classe e gênero, perfa- zem o contexto social brasileiro, colaborando para o fortalecimento das desigualdades sociais. O Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010, elaborado pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)3, aponta, no que diz respeito à saúde, que mulheres e homens pretos/as e pardos/as, isto é negros/as, vão menos ao consultório médico do que a população branca, a saber, 45,3% dos homens pretos e pardos para 38,6% dos homens brancos e 26,2% de mulheres pretas e pardas para 21,5 de mulheres brancas. Para cada 100 pessoas pretas

2 “O estereótipo, assim como conceito, é um reflexo/refração específica da realidade - ou seja, reflete com desvios, como um lápis que, colocado em um copo de água, “entorta” -, mas o estereótipo comporta uma carga adicional do fator subjetivo, que se manifesta sob a forma de elementos emocionais, valorativos e volitivos, que vão influenciar o comportamento humano. Ele se manifesta, portanto, em bases emocionais, trazendo em si, como já dissemos, juízos de valor preconcebidos, preconceitos, e atuam na nossa vontade. Nossa cultura está plena de exemplos, entre os quais podemos lembrar os indígenas e os afro-descendentes. (BACCEGA,1998, p.10). 3 Relatório na íntegra disponível em: . Acesso em: 3 out. 2012.

46 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... e pardas que procuram atendimentos em sistemas públicos de saúde, 28,9% não conseguem atendimento, ainda que explicitem a sua neces- sidade; ao se tratar da população branca, esse número cai para 14,2%. Ainda no âmbito da saúde, vale destacar que o percentual de mulheres pretas e pardas com mais de 40 anos que não realizaram o exame de mamografia é de 40,9%, enquanto o percentual de mulheres brancas fica em torno de 26,4%. No cenário da educação, o relatório enfatiza a queda de 9,8 pontos na taxa geral de analfabetismo. No entanto, ao analisar esse dado, a partir da categoria raça, destaca-se que a redução maior da taxa de analfabe- tismo encontra-se na população negra, 14,9%, enquanto na população branca o índice é de 6,9%. O que isso significa? O maior número de analfabetos pertence à população negra. No ano de 2008, metade das pessoas que frequentavam a escola localizavam-se em classes não compatíveis com a sua idade, ou seja, estavam “atrasadas”; sendo que a desvantagem da população negra em relação à população branca era 13,6 pontos. A população negra, embora consiga entrar na escola, tem muitas dificuldades em permanecer nela. Neste sentido, é necessário destacar a posição dos meninos negros, haja vista que eles são os sujeitos principais do fracasso escolar e consequente evasão, como afirma Carvalho:

Há algumas décadas, as estatísticas nacionais vêm indicando uma nítida diferença de desempenho escolar entre meninos e meninas [...]. Essa dife- rença entre homens e mulheres se complexifica, entretanto, ao considerar- -se ao mesmo tempo a variável “cor” ou “raça”, apontando que os maiores problemas se referem ao grupo de alunos negros do sexo masculino. Apenas a título de exemplo, podemos observar, nos dados relativos à defasagem entre série cursada e idade, que pessoas negras de sexo masculino têm maiores dificuldades em sua trajetória escolar, seguidos de mulheres negras, homens brancos e, em melhor situação, mulheres brancas (CARVALHO, 2004, p. 249-250).

Há racismo no Brasil. Há preconceito e discriminação racial, explícitas e implícitas, frutos de um processo histórico e ideológico, embalado pelo mito da democracia racial4 e disfarçado na mestiçagem5. A cordialidade 4 Mito da democracia racial: “o mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade” (MUNANGA, 2008, p. 77). 5 Mestiçagem: “Pensada como uma categoria que serviria de base na construção da

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 47 do povo brasileiro, tão apregoada e celebrada, se dissolve diante das estatísticas sociológicas que demonstram menos oportunidades e garantia de direitos à população negra, e presença garantida desta população nos mapas sobre violência6 e exclusão. Assim, nas franjas da tão reverberada democracia racial, existe uma população de mulheres e homens, negros/ as e indígenas, que vivenciam o contrário desse discurso mascarado e homogeneizado do Brasil.

E na Igreja, existe racismo? Em que medida o lócus eclesiástico se torna espaço de perpetuação e propagação das exclusões e silenciamentos sobre tais temáticas? Será a Igreja, como instituição social, espaço para relações de poder racistas, sexistas e discriminatórias? Há que ter coragem para mergulhar e explorar esse riacho. A história da Igreja mostra-a numa relação conturbada com estas temáticas:

No que se refere à postura evangelizadora-eclesial, tivemos momentos de profunda opressão, quando a Igreja (Católica) identificou-se com os coloni- zadores. Em outros momentos, a Igreja voltou-se para a realidade dos ex- cluídos - período curto - identificando-se e solidarizando-se com o oprimido, assumindo que esse tinha o rosto marcadamente negro, indígena, cigano e feminino, e representava o rosto de Deus (SANTOS, 2007).

Essa ambiguidade no trato com a questão não está restrita à história da Igreja Católica. No cenário metodista, a história destaca o posiciona- mento antiescravagista de John Wesley, fundador do movimento:

Além do interesse pelo trabalho de catequese, esforçando-se no sentido de admitir escravos negros no seio do movimento metodista, João Wesley tam- bém se opôs firmemente ao tráfico de escravos africanos, formando a Society for the Supression of the Slave Trade. Ele concordava inteiramente com a posição adotada em 1772 por Lord Mansfield, de que o escravo torna-se livre assim que colocar os pés no território inglês (BARBOSA, 2002, p. 82).

identidade nacional, a mestiçagem não conseguiu resolver os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de desigualdade raciais resultantes dessa hie- rarquização. Na verdade, os mestiços entraram nessa relação diferencial constituindo uma categoria intermediária, hierarquizada entre branco e negro/índio. Porém, eles não constituem uma categoria estanque pelo fato de o preconceito racial brasileiro ser de cor e não de origem (one-drop), como nos Estados Unidos e na antiga África do Sul” (MUNANGA, 2008, p. 77). 6 Ao analisarmos o mapa da violência de 2011(os Jovens no Brasil) percebe-se que de 2002 a 2008 houve um decréscimo de 22,3% de homicídios em meio a população bran- ca e um acréscimo de 20,2% entre a população negra (pretos e pardos) (WAISELFISZ, 2011, p. 18).

48 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... No entanto, tal postura wesleyana não garantiu que as igrejas me- todistas que surgiriam posteriormente assumissem essa prerrogativa. A evangelização protestante, ocorrida no Brasil, especialmente em seu início, de um modo geral, procurou traçar seu curso optando por águas tranquilas, evitando chocar-se com os sérios problemas sociais da época, entre os quais, obviamente, a escravização. Naquele momento, era mais importante se estabelecer do que questionar, profeticamente, o sistema e seu status quo de dominação que muito tinha a ver com o sistema escravagista:

A teologia do protestantismo missionário no Brasil foi satisfatoriamente adequada a um prudente distanciamento da Igreja em relação aos graves problemas enfrentados pela sociedade, entre eles, a escravidão negra. A pre- ocupação voltou-se para a integração, a conversão, e a educação do negro para dentro da cultura protestante, e não para a sua simples emancipação. Em suma, o interesse esteve dirigido à regeneração moral, afirmando que a degeneração de costume era contrária às virtudes cristãs [...].

O protestantismo advogou para si o direito de ser portador e representante de um novo tempo, um tempo de progresso. Nesse período, meados da década de 1880, quando o abolicionismo já estava tomando o formato de um grande movimento popular e urbano, a questão básica prioritária para o protestantismo continuava sendo abrir espaço para a sua aceitação e, con- sequentemente, a sua efetiva implantação. Participar da corrente em torno da abolição foi, acima de tudo, uma preocupação essencialmente religiosa, e a abertura dada às discussões e à defesa do abolicionismo revela, em grande parte, funções e interesses específicos (BARBOSA, 2002, p. 189).

Apesar de a história apontar que as relações da Igreja com essa temática sempre estiveram permeadas pela priorização dos interesses eclesiásticos, o que fez com que, em muitos momentos, a Igreja fosse espaço de perpetuação do imaginário racista e escravagista, surgiram diversos movimentos eclesiásticos que assumiram e, até hoje, assumem uma bandeira contrária a essa. Esta publicação é uma prova disso. Com essa breve retrospectiva histórica, o intento foi destacar que nenhuma manifestação social e relacional está desconectada de um contexto histórico que vai amalgamando, em nossas relações sociais, posturas, muitas vezes, perversas e responsáveis pela continuidade das desigualdades de toda ordem. Entretanto, é nesse mesmo cenário histórico e social que há a possibilidade de reinvenção. Reinvenção essa que tem na educação um instrumento promissor. Sim, esse é o momento de se navegar por um dos principais espaços

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 49 educacionais das igrejas: a Escola Dominical. Instituição histórica e imiscuída na própria origem das igrejas protes- tantes históricas, a Escola Dominical é um privilegiado espaço de formação cristã, mas não só. A partir dos referenciais teóricos aqui apresentados, no que diz respeito a racismo, discriminação, preconceitos, ao menos duas perguntas surgem: podem as práticas pedagógicas que acontecem na Escola Dominical contribuir com o imaginário racista e discriminatório presentes na sociedade? Como a educação antirracista pode colaborar com a educação que acontece na Escola Dominical, tão determinante na formação de muitas/os cristãs e cristãos? Nos caracteres restantes, o desafio perpassa não por responder a essas perguntas, mas refletir sobre as mesmas, a fim de que isso colabore com o repensar de práticas e processos pedagógicos que acontecem no cenário eclesiástico. Tendo em vista a vastidão do tema e dos sujeitos desta educação cristã, a reflexão aqui realizada se voltará para a edu- cação das crianças. Pouco se fala sobre racismo e Escola Dominical. A literatura não é vasta sobre o tema, mas, do que se pode encontrar, far-se-á destaque a um trecho de um artigo:

As crianças negras e mestiças continuam a crescer sem fazer uma reflexão da sua identidade, a partir de uma educação preconceituosa, forjada por valores dominantes e treinada, à exaustão, para repetir a prática corrente na sociedade, cumprindo assim o seu papel de manter as estruturas vi- gentes. [...] As igrejas de tradição protestante evangélica, tanto históricas como pentecostais, contribuíram para que a situação de discriminação e marginalização dos negros no Brasil fossem por tanto tempo perpetuados e temos uma dívida a pagar. Uma das maneiras de pagarmos essa dívida é propormos uma educação de afirmação às raízes étnicas e culturais afro- -descentes, com o intuito de fazer valer o respeito cultural tão fundamental para a construção de uma sociedade igualitária, livre e democrática. Somente desta forma poderemos propor uma inculturação preocupada com o resgate da dignidade do negro brasileiro, criado à imagem e semelhança de Deus (ALCÂNTARA; OLIVEIRA-SILVA, 2008, p. 53-54).

Quando se pensa em crianças na Escola Dominical, qual criança vem à mente? Quando as poucas histórias bíblicas que relatam a presença das crianças são contadas, como se imagina essas crianças? Qual a cor das mesmas? Mais perguntas surgem. De um modo geral, optar por generalizações implica, em muitos mo- mentos, na valorização das semelhanças, em detrimento das diferenças. Isso não é de todo ruim, no entanto, o problema surge quando se impri-

50 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... me uma hierarquia, ou seja, uma escala de valores a essas diferenças. Volta e meia, é possível se deparar com crianças angustiadas por não quererem ser negras, pois ser negro é feio. Muitas meninas, desde cedo, fazem de tudo para alisar o cabelo que alguém disse ser ruim; afinal de contas, quem quer ter cabelo ruim? Por outro lado, meninas brancas não desejam e nem concebem a possibilidade de se verem como meninas negras, nem tampouco enxergam bonecas negras como referenciais po- sitivos de imagem. Por quê? O fato de não se falar sobre as diferenças, tão peculiares da huma- nidade, não significa que elas não existam e nem permeiem o imaginário e o coração das crianças, valorizando algumas e martirizando outras. Nos espaços seculares de educação, vive-se um momento histórico. Hoje, mais do que nunca, após 10 anos da Lei 10.639/20037, as relações étnico- -raciais têm se tornado pauta nas escolas. Com muito gosto, ou muito a contragosto, esse tema perpassa as políticas públicas, os espaços de formação de gestores/as e professores/as e algumas salas de aula. Há quem possa ler isso e achar que é uma visão otimista demais; pode ser, mas é inegável que a luta dos movimentos sociais, especialmente do movimento negro, já surte efeito; talvez não o esperado, mas positivas transformações acontecem a todo o momento. No espaço educacional eclesiástico, não se tem uma lei federal que garanta a obrigatoriedade de pensar e refletir sobre essa questão. O que se tem é muito mais que isso, não perpassa por obrigatoriedade, mas por sentido de existência, de ser comunidade, de ser igreja. Assim como a escola, por muito tempo, contribuiu e, ainda, contribui com esse imaginário racista que se revela em ações reais de discrimi- nação, a Escola Dominical também o fez e, por vezes, o faz. Como o espaço escolar se reinventa a partir da possibilidade de pensar as rela- ções étnico-raciais vivenciadas em sala de aula, a Escola Dominical, com outros espaços eclesiásticos, pode fazê-lo também. Pensar sobre isso é extremamente necessário e urgente, para a possibilidade de transformação ou melhoria da nossa prática. Além das relações interpessoais, algumas músicas, imagens e his- tórias que fazem parte da Escola Dominical e dos demais espaços de educação cristã, carregam, em si, conteúdos questionáveis e passíveis de análise.

Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... Duas músicas muito antigas e, até hoje, usadas na educação cristã das crianças, serão aqui alvo de reflexão; são as músicas conhecidas como “meu coração era preto” (em algumas versões, sujo) e o “homenzi-

7 Lei que estabelece a inclusão no currículo escolar do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 51 nho torto”. Além disso, entra em questão aqui o “Livro sem palavras”, uma estratégia evangelística para crianças, diga-se de passagem, contrária à percepção doutrinária metodista sobre a criança e o Reino de Deus8. A seguir, as letras das músicas:

MEU CORAÇÃO ERA PRETO Meu coração era preto (em algumas versões, SUJO) Mas Cristo aqui entrou, Com seu preciso sangue, Tão branco (em algumas versões, alvo) assim tornou E diz em sua Palavra, Que em ruas de ouro andarei, Oh! Dia feliz quando eu cri E a vida eterna eu ganhei.

HOMENZINHO TORTO Havia um homenzinho torto Morava numa casa torta Andava num caminho torto Sua vida era torta Um dia o homenzinho torto A Bíblia encontrou E tudo que era torto Jesus endireitou!

Essas músicas são exemplos clássicos de um processo educativo que reproduz, na primeira canção, um imaginário racista de que tudo que diz respeito ao mal e ao pecado é da cor preta e, na segunda canção, um imaginário nada preocupado com a valorização das pessoas portadoras de deficiência física. Ser “torto” não significa estar em pecado, ser preto não significa estar em pecado. Uma análise mais cuidadosa no cancioneiro popular evangélico, seguramente, encontrará outras canções. Obviamente, que muitas das pessoas que cantam tais músicas, de forma alguma estão comprometidas em, conscientemente, reforçar esse imaginário, mas não dá para negar, que a despeito disso, as imagens são reforçadas. A grande arma da perpetuação dos estereótipos e precon- ceitos é justamente a naturalização dos mesmos, a ponto de que sejam reproduzidos sem quaisquer questionamentos. O “Livro sem palavras” é uma estratégia evangelística para levar a salvação às crianças, como definem as pessoas que o utilizam. A princípio, esse livro continha apenas três páginas, cada uma com uma cor: preto, 8 Para saber mais sobre o assunto, leia a Carta Pastoral da Criança, produzida pelo Colégio Episcopal da Igreja Metodista.

52 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... vermelho e branco. Mais tarde, mais duas cores foram, a ele, acrescen- tadas: o dourado e o verde. Atualmente, a sua ordem é: dourada, preta, vermelha, branca e verde. Cada cor corresponde a uma mensagem, a saber: dourado: Deus deseja que moremos com ele no céu; preto: o pecado é a fonte da nossa separação de Deus; vermelho: Cristo morreu por nossos pecados, deu o seu sangue por nós; branco: é preciso reconhecer esse sacrifício para se tornar uma nova pessoa, alva, sem pecados; verde: depois que aceitamos Jesus como Senhor de nossas vidas, nos purificamos e precisamos seguir crescendo espiritualmente. O “Livro sem palavras” foi apresentado, primeiramente, por um pregador batista chamado Charles Haddon Spurgeon que, em 1866, fez um sermão, a partir dele; depois, esta mensagem foi adaptada para as crianças. Veja trechos do sermão referentes às páginas preta e branca9:

I. Primeiro, CONTEMPLEMOS A FOLHA NEGRA. Há algo sobre isso no texto, pois a pessoa que usou essa oração disse: “Lava-me”- então, estava negro, e necessitava de limpeza – e a negrura era de um tipo peculiar, que necessitava de um milagre para ser limpa, de forma que se alguém que tinha estado negro se voltasse branco, o fosse de tal maneira que ficasse - Mais branco que a neve. [...] Irmãos, antes que passem dessa página negra, permita-me exortá-los que a estudem diligen- temente, e que tratem de compreender a negridão de seus corações e a depravação de suas vidas.

III. Isso me leva a PÁGINA BRANCA DO LIVRO SEM PALAVRAS, que está tão repleta de instrução como as folhas preta e vermelha: [...] Oh, negro pecador, se você crê em Jesus, não só será limpo em Seu sangue precioso até converter-se em algo toleravelmente limpo, mas sim ficará branco, sim, você será: - mais branco que a neve [...]

No entanto, o pecador, negro por causa do pecado, ao ser lava- do sob o poder limpador do sangue de Jesus, se volta - mais bran- c o q u e a n e v e [ . . . ] . P o r é m , n ã o e x i s t e t e m o r d e q u e a b r a n c u r a que Deus dá a um pecador algum dia desapareça dele - o vestido da justiça de Cristo que é colocado sobre ele, é permanentemente branco [...].

Por que atrelar a sujeira, o pecado à cor preta? Por que atrelar a salvação, o perdão à cor branca? Será que tais situações têm cor? Por que essas cores e não outras? Há uma resposta: há muito tempo, nossa linguagem é influenciada pela ideologia do branqueamento10.

9 O sermão, na íntegra, encontra-se disponível em: 10 “No Brasil, o branqueamento é frequentemente considerado como um problema do negro que, descontente e desconfortável com a sua condição de negro, procura identificar-se

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 53 Essas expressões racistas não são privilégios apenas do “Livro sem palavras”. Outras expressões da linguagem cotidiana refletem tal ideário, como “denegrir”, “mercado negro”, “lista negra”, “a coisa está preta”, “ovelha negra”, esta última, no cenário eclesiástico, ilustrada, in- clusive, em folhetos evangelísticos, refere-se à ovelha que se desgarrou do rebanho, à pessoa pecadora, que faz coisas erradas. Pesquisas sobre a representação da população negra no livro didá- tico apontam que esta população é pouco representada nas imagens e, quando o são, muitas vezes aparecem em posições de subalternidade ou apenas atreladas ao tema da escravização. A presença da população negra nos livros didáticos vem crescendo; mas imagens positivas, ainda que existam, precisam ser mais representadas. A professora Ana Célia da Silva, pesquisadora na temática aponta que:

A representação humanizada nos livros didáticos é muito importante para a criança negra na construção de sua autoestima e identidade étnico-racial, uma vez que ela se identifica com a representação e não com o real, pas- sando a ver-se através dela [...] Ao reconhecer-se e ser visibilizada, a criança desenvolve o amor ao seu semelhante étnico. Também as crianças de outras raças/etnias, começam a ver a criança negra sem os estigmas inferiorizantes, passando a reconhecer suas diferenças sem hierarquias, respeitando-a e interagindo com ela no convívio escolar e fora dele (SILVA, 2011, p. 138).

Por acreditar nisso e entender que referenciais positivos da popula- ção negra e indígena devem ser apresentados não só às crianças, mas à população em geral, a produção das revistas de Escola Dominical da Igreja Metodista, no que diz respeito às ilustrações e imagens, busca uma representação étnico-racial o mais equitativa possível, no entanto, isso não é um processo fácil. Não são muitas as imagens, especialmente livres de direitos autorais, que não tragam uma representação pejorativa, deprecia- tiva da população negra e indígena, especialmente, da população negra. Uma aluna do curso de pedagogia relatou uma experiência insti- gante, ocorrida, no seu período de estágio, em uma escola secular que atendia crianças da educação infantil: era hora do recreio, as meninas, com idade em torno de 4 e 5 anos, decidiram brincar de princesas. Uma menina negra decidiu ser a princesa, mais que isso, desejava ser a dona do castelo. Automaticamente, a celeuma se criou no grupo e outras me- como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais. Na descrição desse processo o branco pouco aparece, exceto como modelo universal da humanidade, alvo da inveja e do desejo de outros grupos raciais não-brancos e, portanto, encarados como não tão humanos. Na verdade, quando se estuda o branqueamento, constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro (CARONE.; BENTO (Org.), 2009, p. 25-26).

54 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... ninas não negras reagiram negativamente ao fato. Ela não poderia ser dona do castelo, muito menos uma princesa; afinal, não existe princesa negra, sentenciou uma das meninas. A discussão foi tamanha que levaram a temática até a professora que, prontamente, se dispôs a resolvê-la e, para isso, deu a seguinte recomendação: por não existir princesas negras, a menina negra não poderia ser a dona do castelo, mas, nem por isso, ela sairia da brincadeira, ela poderia ser considerada como uma visitante especial do castelo11. Essa e outras histórias permeiam as escolas, e muitas crianças que sofrem racismo, na escola, podem e devem encontrar, na Escola Domi- nical, um espaço de valorização da sua autoimagem. Mais do que isso, a Escola Dominical pode e deve ser um espaço de empoderamento de todas as pessoas, ou seja, crianças, professoras e professores, no que diz respeito a assumir uma postura profética de denúncia do racismo existente e de anúncio de uma lógica relacional que não exclui ou subjuga pessoas por conta da cor da pele, do sexo ou de alguma deficiência.

Sobre educação antirracista... Falar em educação antirracista é falar da luta de movimentos sociais, em especial, do movimento negro, para a promoção da educação como um direito social. É falar do compromisso com práticas consistentes e conscientes da necessidade de formação de educadoras e educadores, para identificar o racismo, reconhecer as desigualdades derivadas dele e combater a discriminação racial oriunda do preconceito. Conhecer a educação antirracista, descobrir as práticas pedagógicas para promoção da igualdade racial na educação e questionar as práticas existentes são ações pertinentes que precisam ser implementadas de forma mais sistemática na Escola Dominical. Cavalleiro afirma que:

A despreocupação com a questão da convivência multiétnica, que na família, que na escola, pode colaborar para a formação de indivíduos preconceituosos e discriminadores. A ausência de questionamento pode levar inúmeras crianças e adolescentes a cristalizarem aprendizagens baseadas, muitas vezes, no comportamento acrítico dos adultos a sua volta (CAVALLEIRO, 2003, p. 20).

Essa despreocupação com o tema, também, se vê nas salas de Es- cola Dominical, nos sermões de domingo, nos grupos de discipulado, nas reuniões de grupos de jovens e de sociedades de mulheres. Será o tema da diversidade desnecessário e não pertinente ao arraial eclesiástico? E as pessoas feridas por anos de ações discriminatórias dentro e fora da igreja, essas pertinentes a esse espaço?

11 Este relato aconteceu em uma aula, no curso de Pedagogia da Faculdade Zumbi do Palmares, em outubro de 2011.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 55 A educação, a partir de uma perspectiva Freirena que caminha no oposto de uma educação bancária, tem o compromisso de ser uma educa- ção libertadora; isto implica problematizar, dialogar, falar de assuntos não ditos, contradizer e questionar o que está posto como opressor. Pensar uma educação antirracista é, antes de qualquer coisa, propor uma edu- cação que valorize as diferenças, não as hierarquize e discuta a tensão existente entre essas diferenças. Muitas vezes, acredita-se que tal ação se resume a algumas fra- ses de efeito como “todas as crianças são iguais”, “Deus criou todas as pessoas diferentes”, “aqui na sala não tem diferença de cor”, “trato todas as crianças do mesmo jeito”. Isso não dá conta da questão, antes mascara a mesma (SILVA JUNIOR; BENTO, 2011). Diante de qualquer situação racista que aconteça em sala de aula, especialmente em salas da Escola Dominical, é preciso haver a intervenção direta da professora ou professor, que além de buscar resolver o conflito, precisa lê-lo como uma oportunidade de discussão e educação da temática. Ao professor e professora, cabe a tarefa de intervir de maneira ade- quada, mas, junto a isso, aos gestores e gestoras da Escola Dominical, a possibilidade de oferecer espaços de formação e discussão sobre estes e outros temas que há muito são silenciados nas igrejas locais. Uma educação cristã deve ser, por si própria, sinônimo de educação antirracista, antissexista, ou seja, uma educação libertadora; mas muitas vezes não o é. A própria história nos mostra isso. No entanto, refletir sobre a prática, dialogar com outros referencias e sujeitos pode ser a possibilidade viável para transformar tal quadro. De acordo com Paulo Freire, ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação (FREIRE, 2004, p. 35). É nesse sentido que a Escola Dominical precisa caminhar para o investimento na formação de professoras e professores e na construção de um espaço que propicie às crianças outras formas de aprender e apreender o mundo e os en- sinamentos bíblicos.

Considerações finais Há discriminação racial, há preconceito racial. Sim, há racismo no Brasil e, por ser a igreja parte da sociedade brasileira, isso inclui as salas de escolas dominicais. No entanto, preconceito não é uma atitude inata, senão um comportamento aprendido a partir das relações sociais que as pessoas estabelecem em sua trajetória de vida. Por ser assim, é passível de reflexão e mudança. Nesse sentido, ainda há muito por caminhar. Faz-se extremamente necessário que mais pesquisadoras e pesquisadores se debrucem sobre a intersecção da educação antirracista e da educação cristã, proposta na

56 Andreia Fernandes de Oliveira: Ovelhas negras, homenzinhos tortos e corações pretos... Escola Dominical. Repensar práticas pedagógicas e materiais a serem utilizados faz parte desse exercício intelectual. Pesquisas sobre o rendimento escolar percebem o quanto as de- sigualdades de gênero e as discriminações raciais são relevantes no percurso escolar satisfatório ou não das crianças. A Escola Dominical pode e deve ser um espaço prazeroso e inclusivo para todas as pessoas e, especialmente, para as crianças, ao contribuir na formação de sua autoestima de forma positiva e não discriminatória. Além de vocação, isso requer exercício intelectual, pensar sobre, como diz Freire, adquirir a prática de refletir sobre a prática. Contra isso, tem-se o fato de que nem todas as pessoas que tra- balham na Escola Dominical têm formação específica em educação; no entanto, a favor, tem-se o compromisso cristão que inspira ao engajamento na construção de um ideário social justo e igualitário, que não suprima ou hierarquize as diferenças em favor da unanimidade ou da padronização. “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam apren- der, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”, afirma Nelson Mandela. Ensinar a amar, essa é uma preocupação relevante e necessária que está no cerne da educação cristã e da Escola Dominical, seu lócus por excelência. Nesse sentido, pensar a Escola Dominical como um espaço alter- nativo de valorização das diferenças, de denúncia de todo tipo de discri- minação, segue como um importante desafio educacional. Destaca-se a palavra desafio, no sentido de que, por estar tão imiscuída em nós, por vezes, em nossa pele, é muito difícil encarar tal temática. Pesquisadoras e pesquisadores são categóricos em apontar a dificul- dade do povo brasileiro em assumir que o Brasil é racista, e que algumas de nossas práticas também o são. Falar de tal temática é deparar-se com a negação da mesma e, mais do que isso, nas palavras de Elisa Larkin Nascimento, com a acusação de um “racismo às avessas”:

No Brasil, a discussão do racismo leva de forma quase inexorável à alega- ção do perigo iminente de constituir-se um racismo às avessas. Esse tabu costuma travar a discussão antes que ela consiga realmente começar. É o contraponto de um fenômeno que caracteriza de forma singular o racismo brasileiro: o recalque do silêncio. Contudo, verifica-se que tal noção re- presenta não apenas um equívoco como um dos pilares que sustentaram a dominação, pois o silêncio configura uma das formas mais eficazes de operação do próprio racismo no Brasil (NASCIMENTO, 2003, p. 23).

A Escola Dominical, ora se coloca como um instrumento, ora como um espaço para repensar e refazer sobre essa questão. No entanto, este

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 57 exercício precisa acontecer para além dela; é necessário que tal discus- são perpasse todos os cenários e espaços da Igreja, para que a mesma reafirme, cotidianamente, o desejo de conhecer novas possibilidades de construção do Reino de Deus que, em sua gênese, se faz comprometido com a luta pela eliminação de toda e qualquer forma de discriminação.

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Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 43-59, jan./jun. 2013 59 Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação Memory and identity: resistance to racism and discrimination Memoria e identidad: la resistencia al racismo y la discriminación

Luis Vergílio Batista da Rosa

Resumo O presente artigo pretende instigar a reflexão em relação a uma participação cristã cidadã que se estabeleça pelo enfrentamento de situações humanas de aniquilamento e des- construção de práticas históricas presentes em nossa sociedade, engendrados ao longo do período da escravidão de povos africanos. Também, estabelecer uma conexão entre o veio libertário do metodismo histórico e a experiência de fé que articula ações de descons- trução dos efeitos da discriminação contra os negros e negras. Palavras-chave: Escravidão; abolição; metodismo do Brasil; práticas libertadoras.

Abstract The present text intends to investigate thought in relation to the participation of Christian citizens that established themselves in the confrontation of human situation of annihilation of deconstruction of historical practices present in our society, engaged in the long period of slavery of African people. Also, it seeks to establish the existence of a relationship between the connection of liberty of historical Methodism and the experience of faith that articulates action of deconstruction against blacks. Key-words: Slavery, abolition, Methodism in Brazil, practices of freedom.

RESUMEN El presente artículo pretende instigar la reflexión con relación a una participación cristiana ciudadana que se establezca por el enfrentamiento de situaciones humanas de aniquila- miento y desconstrucción de prácticas históricas presentes en nuestra sociedad, engen- dradas a lo largo del período de la esclavitud de los pueblos africanos. También, establecer una conexión entre el ramo libertario del metodismo histórico y la experiencia de fe que articula acciones de desconstrucción de los efectos de la discriminación contra los negros y negras. Palabras clave: esclavitud; abolición; metodismo en el Brasil; prácticas libertadoras.

Introdução A colonização das Américas nos séculos 15 e 16 teve como epicentro o expansionismo europeu. Esta forma de ver o mundo a partir da Europa, especialmente os povos espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses, contribuiu para expansão econômica e territorial destes países. No final da Idade Média e ao longo da Idade Moderna o mundo divide- -se entre povos civilizados e povos a serem civilizados. Isto determinou

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 61 que o “encontro” da Europa, com outras civilizações “descobertas” fosse caracterizado pela violência, subjugação e extermínio, fruto de uma visão de superioridade étnico-cultural-religiosa. Foi neste contexto que se esta- beleceu a escravidão dos povos africanos, proporcionando a sua diáspora pelo mundo por meio do tráfico de homens e mulheres negras. Deste modo, os lugares a serem descobertos e conquistados, e, consequen- temente, o processo de colonização, invariavelmente, foi acompanhado pela cristianização imposta aos povos nativos. No século 18, em plena Modernidade, a crescente urbanização, industrialização e ideais humanísticos, tais como liberdade, igualdade e fraternidade, protagonizados pela Revolução Francesa, desenvolve-se o movimento metodista, manifestando suas raízes libertárias expressas em cartas e documentos escritos pelo Rev. John Wesley, na Inglaterra, mani- festando rejeição à prática da escravidão africana, ao tráfico de pessoas, à exploração de trabalhadores das minas de carvão e à exploração do trabalho infantil, entre outras preocupações. À luz destes valores, John Wesley, em sua visão missionária, nu- triu a diáspora do metodismo com este gérmen libertário voltado para a reconstrução de uma identidade humana1 livre e igualitária, ainda que negligenciado, muitas vezes, pela Igreja. Ele, em seu tempo, propugnou por uma identidade cristã cidadã, contrária à escravidão, que considerava uma “desonra para a religião e para a humanidade... uma terrível abomi- nação” (WESLEY, 1995 [vol. 7], p. 235)2. No Brasil, o posicionamento histórico em relação à escravidão sempre gerou tensões, na medida em que assumir este veio libertário wesleyano implicaria em produzir práticas educacionais de desconstrução do olhar escravagista da sociedade brasileira que, de um modo em geral, sempre busca obliterar esta história.

1. Conhecer a verdade: condição necessária à liberdade A perpetuação das condições socioeconômicas vivenciada pelos (as) escravos (as) foi construída ao longo de 388 anos de história do escra- vismo, em que os fatores de discriminação étnica produzidos refletem-se ainda hoje e se constituem num desafio à sociedade brasileira e à Igreja Metodista do Brasil, considerando que esta foi estabelecida por missões da Igreja Metodista Episcopal do Sul, dos Estados Unidos da América, que foi notadamente escravocrata.

1 John Wesley faz uma ampla reflexão na qual trata da natureza da escravidão, cujos efeitos determinam um olhar de identificação da pessoa escravizada sob este prisma. Assim, o resgate da identidade humana, reificado pela escravidão, encontra sua plena liberdade no Deus Criador (WESLEY, 1995 [vol. 7], p. 99-128). 2 Carta de John Wesley a Samuel Hoare, em 18 de abril de 1787. Obras de Wesley, Tomo XIV, p. 235. GONZÁLEZ, J. (Editor Geral).

62 Luis Vergílio Batista da Rosa: Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação Ao falar-se de discriminação étnica e discriminação racial, há ne- cessidade de aproximar-se os conceitos de raça e etnia, ainda que de forma sucinta. O conceito Raça tem sido utilizado, historicamente, para descrever e distinguir a população humana com base e traços de diferen- ciação bio-fenóticas. Esta diferenciação subdividia os seres humanos em grupos biológicos distintos. Atualmente, considera-se o gênero humano tem uma procedência ancestral comum: o homo sapiens. Assim, este conceito biológico de raça é, em parte, substituído pelo conceito de Etnia, onde, mais do que diferenças bio-fenóticas, as diferenças humanas são resultantes de forças político-sociais, geográficas e culturais, atuando de forma contínua no desenvolvimento da história da humanidade. Por isso o conceito de Etnia, está relacionado às referências culturais e aos valores de determinado grupo. Isto implica na formação da identidade do grupo, cotejado pelos seus distintos costumes, linguagem ancestralidade, lugar de origem, valores sociais e traços somáticos. Comumente, utilizam-se ambos os termos para identificar o mesmo fenômeno: práticas discrimi- natórias identificadas como racismo. Uma visão cristã, sustentada por ações pedagógicas de descons- trução ideológica do racismo se fazem necessárias em nosso meio social e eclesial, no sentido de resgatarem-se fundamentos do metodismo his- tórico e da própria história da escravidão, que permita uma releitura de uma realidade tão latente, e, para a permanente construção de relações pautadas pela justiça e equidade, próprias do Evangelho de Cristo. Para a fé cristã, baseada na tradição do Novo testamento, conforme o evangelho de João 8.32, o conhecimento da verdade produz liberdade. Este postulado de fé está ancorado na encarnação de Jesus como o Logos de Deus. Ele é a Palavra que se faz vida, e vida em abundância. Portanto, neste contexto, a palavra é construtora da realidade que ne- cessita de transformação. Neste caso, a encarnação do Logos de Deus é força propulsora da verdade e da liberdade. A despeito desta tradição, a sociedade brasileira, predominantemente católica, e, de um modo em geral e as igrejas evangélicas, em particular, sempre tiveram muitas dificuldades em tratar da escravidão africana e da ideologia do racismo anti-negro, responsável pela legitimação do regime escravocrata e pela perpetuação de atitudes preconceituosas em relação a esta etnia. De um modo em geral, a escravidão na América Latina Continental revela que os meios de produção, a base econômica e a organização social deste continente deveram-se ao trabalho africano, fundamental- mente (FRANKLIN; MOSS, 1989, p. 60-79). Neste sentido, Silva (1985, p. 29) nos lembra de que a visão de “coisa negativa” em relação ao povo negro é algo muito antigo, ainda que o instituto da escravidão humana

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 63 tenha sido tão antigo quanto à própria humanidade (SILVA, 1985, p. 21). Uma análise do posicionamento histórico de John Wesley em relação à escravidão dos povos africanos vai demonstrar sua atitude contrária à mesma, do ponto de vista de seus conceitos bíblico-teológicos bem como de suas ações pró-abolicionistas (WESLEY, 1774)3. Em sua diáspora o metodismo chega ao Brasil, durante a primeira missão da Igreja Metodista Episcopal dos Estados Unidos de 1835 a 1841. Na carta do missionário Fountain E. Pitts, recomenda-se o estabelecimen- to de uma missão metodista no Brasil, com a vinda de um missionário para residir no Rio de Janeiro. Não há alusão ao universo das pessoas escravizadas (REILY, 1984). A naturalização da escravidão das pessoas africanas mostra a realidade de uma sociedade, cuja organização sócio- -politico-econômica estabelecida ao longo de quase quatrocentos anos do instituto deste regime, fundamentou-se no trinômio: latifúndio, monocultura e mão de obra escrava. Assim, enquanto ser branco é o padrão social aceitável, referência para as coisas boas, sublimes, inteligentes e divinas, de boa conduta, o ser preto (negro) representa o oposto destas qualidades. Em nosso país o racismo e preconceito aos afro-descendentes se- guem uma linha de cor da pele, sendo impossível separar-se cor preta ou negra da etnia negra. Com isto, o uso destas representações presentes nos discursos, reproduzidos nos textos, nas falas e nas artes, em que a poesia de cânticos e hinos traduz, de forma inequívoca o racismo à brasileira4, continuam eivadas de expressões marcadas por esta história de esconstituição da identidade afrodescendentes. Um exemplo clássico encontra-se no Hinário Evangélico5, onde lemos: “Eis formado já os negros batalhões do grande usurpador” [...], demonizando a cor preta ou negra. Contrasta com o hino 36, que diz “Alvo ainda mais que a neve, Ó meu Jesus ficarei.”, divinizando a brancura como padrão de referência. A atribuição de valor semântico às cores decorre de convenções ar- bitrárias, cujo poder ideológico nelas contido determinam valoração social. Logo, a perpetuação de uma linguagem que desconhece esta história de discriminação pela linguagem, reafirma os valores que justificaram, ideologicamente, a escravidão de homens e mulheres negras.

2. O pecado da reificação do ser humano Nos 125 anos da chamada Lei Áurea, a tarefa de enfrentamento da realidade do racismo coloca-se como um desafio à ação missionária do

3 Cf. a tradução dessa obra para o português brasileiro por Felipe Maia, com introdução e comentários de Helmut Renders (2013). 4 Racismo à brasileira significa a negação e o silencia em relação a esta realidade latente. 5 Hinário Evangélico, Ed. Imprensa Metodista, 1977.

64 Luis Vergílio Batista da Rosa: Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação metodismo brasileiro, implicando ações de denúncia e de anúncio da boa nova do Evangelho de Cristo. Pouco se conhece da história da África, dos diferentes povos e etnias que aqui aportaram sequestradas deste continente, durante a vigência da escravidão e do tráfico negreiro. A construção da imagem do homem negro e da mulher negra faz-se a partir da sua condição escrava, ou seja, da visão do ser humano como peça e objeto a ser explorado, tanto em sua força de trabalho, no seu corpo, bem como na reificação de sua identidade cultural:

O escravo como “coisa” Produtiva, tem que se ocupar das atividades que lhe são votadas; entregar a totalidade (ao menos formalmente) dos frutos de seu trabalho; viver com o que seu senhor julgue bom lhe entregar. O ritmo e duração da sua jornada de trabalho é, também, arbítrio do seu dono. O escravismo exigia efetivamente que o escravo se transformasse em máquina, que alienasse ao máximo sua humanidade. O limite último deste processo era a perda da única capacidade humana valorada pelo senhor: a capacida- de de trabalhar. A sociedade escravista criava as melhores condições para que o homem escravizado se transformasse, objetiva e subjetivamente, em escravo. Ele era apartado de toda a vida ideológica que lhe sugerisse ou compelisse a um outro destino. A escravidão era apresentada como uma realidade imutável, alicerçada nas leis do mundo real e espiritual... No en- tanto o escravo sempre resistiu (MAESTRI, 1984, p. 112-113).

Deste modo, estabeleceram-se conceitos sobre a incapacidade e infe- rioridade do homem negro e da mulher negra. Percebe-se que o processo de embranquecimento da população por meio das imigrações revelou uma face discriminatória da campanha abolicionista. Se por um lado a tardia abolição brasileira atendeu às pressões econômicas internacionais e inter- nas, por outro lado a Lei de 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão, não regulamentou as relações de trabalho, nem inclui políticas públicas compensatórias, tornando as condições dos homens negros e mulheres negras inalteradas em relação a sua condição escrava. O desempregado tornou-se caso de polícia, perpetuou-se a exclusão social, instituíram-se os mitos da vadiagem (preguiça) e malandragem6. Pode-se afirmar que a escravidão no continente Latino-americano, no uso da mão de obra escrava, foi uma prática amplamente utilizada, com todos os ingredientes relacionados ao racismo e à discriminação7.

6 A Lei n. 3270 de 8 de setembro de 1885 determinava em seu Art. 3º, §17 – Qualquer liberto sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que lhe for marcado pela polícia (Cadernos brasileiros, maio-junho de 1968). 7 Neste sentido ver a obra de Franklin e Moss (1980).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 65 Importante salientar que os registros históricos das insurreições escravas, ao longo de todo o período da escravidão, pouco conhecidas, revelam o grau de organização dos povos africanos trazidos ao Brasil. De acordo com Rosa (2001, p. 63):

[...] as revoltas organizadas dos escravos revelam que eles não só eram capazes de refletir sobre a realidade em que se encontravam, bem como de- monstram uma ação política revolucionária de transformação. Neste sentido, os quilombos concentram esse ideal político de organização social. Os quilom- bolas contrapõem a imagem do negro escravo à imagem do negro quilombola.

Em relação ao olhar das igrejas, Reily aponta para o panorama dos Estados Unidos, origem das missões destinadas ao trabalho de evange- lização no Brasil. Enquanto que no Norte dos Estados Unidos houve o que considera uma ligação entre avivalismo, reforma social e movimentos pelo fim da escravidão, o Sul foi favorável a escravidão.

No Norte, observa-se estreita ligação entre avivalismo e reforma social. Caso típico é o de que, Oberlin, , sob a influência de Asa Mahan (1800-1889) e, posteriormente, de Finney, tornou-se centro de irradiação do movimento abolicionista e do avivamento do próprio Finney, bem como do movimento de santidade. Já no Sul dos Estados Unidos houve movimentos contrários, conforme continua esta situação, a igreja respondeu principalmente de três maneiras: 1) Desenvolveu a teoria, baseada na filosofia de Aristóteles (contra a de John Locke) e também na Bíblia (na qual não se encontra nenhuma clara proibição da escravidão), de que a escravidão é boa e não má. 2) Iniciou-se agressiva missão entre os escravos nas fazendas sulistas, missão de evangelização e catequese oral, sem qualquer perspectiva de emancipá- -los. O maior expoente dessas missões foi William Capers (1790-1885), posteriormente bispo da Igreja Metodista Episcopal, Sul. 3) A terceira parte da resposta foi o desenvolvimento da Doutrina da Igreja Espiritual, que teve J.H. Thornwell seu maior expoente... Thronwell afirmou que “as Escrituras não apenas deixam de condenar a escravidão, mas claramente sancionam tanto quanto qualquer outra condição social do homem. Quem condenasse a escravidão como pecado, como faziam os abolicionistas, atacava a Bíblia (REILY, 1984, p. 22-23).

A questão da escravidão foi causa para a divisão da Igreja Metodista e de outras denominações na América. Convém lembrar que, maiorita- riamente, os missionários enviados para o Brasil foram originários da ala sulista dessas igrejas.

66 Luis Vergílio Batista da Rosa: Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação 3. Iniciativas na busca de práticas libertadoras Após 125 anos da extinção oficial da escravidão no Brasil, se faz necessário refletir sobre o valor social da igualdade como condição primor- dial para a promoção de uma educação inclusiva que enfrente as marcas históricas de um longo processo de discriminação étnica e segregação social. “Em contraste com as experiências passadas de segregação a inclusão reforça a prática da ideia de que estas diferenças são aceitas e respeitadas” (STAINBACK; STAINBACK ,1999, p. 27). Também, considerando as profundas mudanças ocorridas nestas últi- mas décadas quando uma acelerada evolução de uma sociedade industrial para uma sociedade tecnológica de informação, e, em consequência, as práticas do olhar obliterado do racismo e da escravidão, com suas práticas discriminatórias, não podem ser repetidas. “Os espaços de inclusão, nas escolas e igrejas, têm o desafio de promover um conserto social amplo, de cooperação, reconhecendo que processos de segregação e indiferença perpetuam as desigualdades” (STAINBACK; STAINBACK, 1999). Elas representam um microcosmos da sociedade; s refletindo aspectos, valo- res, prioridades e práticas culturais tanto positivas quanto negativas que existem fora de suas paredes e muros. Cabe às instituições educacionais e religiosas assumir a responsabilidade de transformação das condições sociais negativas. Por isso, há legitimidade para um sistema de políticas afirmativas, por meio de cotas, que resgate situações históricas de de- fasagem econômica, de acesso aos bens sociais coletivos, negados por um longo processo de subtração de direitos. O advento da República fortaleceu o mito da democracia racial, ou seja, que em nosso País sempre houve certa cumplicidade entre a casa grande e a senzala. Ou seja, a sociedade absorveu e integrou plenamente e harmoniosamente as pessoas libertas. Para MOURA, Clóvis. Socio- logia do Negro Brasileiro, Ed. Ática, 1988, São Paulo, p. 18., o Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, foi um marco ideológico desta visão, á medida em que coloca a escravidão brasileira constituída por senhores bondosos e escravos submissos, empaticamente harmônicos, descaracterizando as agudas contradições da escravidão e da estrutura social de dominação entre sujeitos exploradores e explorados... Tam- bém o ideário republicano de uma sociedade de todos para todos, não considerou, objetivamente, a negação de elementos básicos da identidade dos afrodescendentes, tais como a negação da sua história, da cultura, do modo de ser africano reinterpretado na diáspora, o valor estético e sua capacidade intelectual. Sabe-se que a introjeção do racismo, por parte da pessoa discriminada, se constitui numa triste realidade, pois a incorporação de sentimentos de inferioridade e negação das práticas do racismo influencia, desde a infância, a formação da identidade negra brasileira positiva, em termos de autoimagem e autoestima.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 67 Buscamos, nos anos 1886, 1887 e 1888, encontrar notícias ou artigos do Jornal Oficial da Igreja Metodista, alguma pista que pudesse identificar o veio libertário wesleyano, em relação ao instituto da es- cravidão africana. Procuramos no Jornal Methodista Catholico, 1886, n. I, no ano de sua fundação em 1º de janeiro de 1886, uma nota que pudesse revelar a preocupação da Igreja com a abolição da escravatura. Encontramos, de forma indireta, em uma temática tratando da admissão de mulheres nos Correios, uma alusão à escravidão: “A sociedade em geral, como todas as sociedades ulceradas pelo cancro da escravidão, padece de vícios profundos, que hão alterado sensivelmente o caráter nacional e hão produzido, sobretudo na esfera econômica, grandes perturbações”. No ano de 1887, o Jornal passa a ser designado como Expositor Cristão e não traz nenhuma nota diretamente relacionada ao assunto. No ano de 1888, ano da Libertação da Escravatura, a edição n. 5, de 15 de maio, traz um reflexão sobre o amor ao trabalho. Na edição de 15 de junho de 1888, há uma referência “aos pretos nos Estados Unidos, infor- mando que nos Estados sulistas da , Carolina do Sul e , os pretos possuíam propriedades e que isto deveria animar os ‘homens de cor’ no Brasil”. Ainda na edição de 1º de outubro de 1888, o Expositor Cristão trata do orçamento do governo para a imigração e de determinada quantia de 10.500 contos para serem distribuídos entre as províncias. Por fim, na edição de 15 de outubro de 1888, há referência a uma proposta levantada e aprovada no Clube Republicano Acadêmico, solicitando a abolição do juramento do grau referente a crenças religiosas e opiniões políticas. Um argumento do discurso diz que a Abolição da escravatura não surgiu no parlamento, mas da vontade popular. Também ressalta que a maior das liberdades é a liberdade de consciência. Assim, a Abolição e a Proclamação da República não produziram esforços no sentido de integrar a população afrodescendente, oriunda da escravatura colonial, para uma sociedade de mercado, de trabalho livre, de um processo de urbanização crescente, de propriedade privada, de liberdades individuais. Esta omissão permitiu que a população negra fosse destinada à pobreza extrema, à vulnerabilidade social, às condições de trabalho subalterno, quase servil. Igualmente, a pouca visibilidade da presença de negros e negras em funções consideradas relevantes na sociedade contribuem para a ausência de elementos de valorização da capacidade intelectual dos (as) afrodescendentes.. Logo, há a naturalização da presença negra em esportes e artes, no serviço braçal, no ramo do entretenimento, mas não é natural ver-se

68 Luis Vergílio Batista da Rosa: Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação pessoas negras em áreas de demanda intelectual, de prestígio social e de administração de poder econômico e influência. A transformação desta realidade só será possível mediante o incre- mento de políticas afirmativas, quer para o mercado de trabalho, quer para a formação educacional, quer para a capacitação profissional. Neste contexto, pode-se identificar alguns indícios, embora pontuais, empregados na luta contra o racismo, como expressão de verdadeira li- berdade, à luz do veio libertário de Wesley. Atitudes que visam explicitar e desconstruir aquilo que se pode chamar de racismo à brasileira8 no contexto do metodismo brasileiro. Dois destaques podem ser notados em Atas de Documentos do 16º Concílio Geral da Igreja Metodista, 1997, quando os delegados Carmelindo Rodrigues da Silva, Western Clay Pei- xoto, Wagner dos Santos, Luiz Vergílio Batista da Rosa e Antônio Carlos Ferrarezi solicitaram constar em ata a seguinte declaração:

A Coordenação do Ministério de Combate ao Racismo da Igreja Metodista solicita aos queridos irmãos e irmãs conciliares que sejam zelosos com a utilização da linguagem, pois alguns termos utilizados em Plenário contêm conotações racistas inaceitáveis dentro do espírito cristão (ATAS & DOCU- MENTOS, 1997, p. 47).

Neste mesmo Concílio, em sua 2ª etapa realizada em Piracicaba, nos dias 11 a 19 de julho, o Ministério de Combate ao Racismo propôs o estí- mulo e ampliação da concessão de bolsas de estudos a membros da raça negra nas Instituições Metodistas de Ensino, estabelecendo-se cotas aos grupos discriminados de negros e mulheres. Esta proposta, que recebeu parecer favorável da Comissão de Legislação para aprovação, foi enca- minhada pelo conciliar Ely Eser Barreto César, no sentido de que todas as matérias com parecer favorável das respectivas Câmaras, não votadas em Plenário, fossem consideradas aprovadas, devendo ser remetidas ao Colégio Episcopal. (ATAS & DOCUMENTOS, 1997, p. 141; 456-457). Este olhar metodista na luta contra o racismo e a discriminação, tem na figura do Rev. Antônio Olímpio Sant´Ana, um dos principais proponentes, uma referência histórica para os (as) metodistas comprometidos (as) com este ideário. É preciso reconhecer que a luta da Comissão Geral e das Comissões Regionais de Combate ao Racismo sempre contaram com o efetivo apoio dos homens e mulheres metodistas, não negros, que atuam em nossas instituições educacionais.

Considerações finais: Imago Dei O metodismo afirma que a sua ação missionária e evangelizadora não pode ser desvinculada da sua vocação docente, educacional. Con- 8 Expressão utilizada por militâncias negras para definir a forma sutil, engenhosa e mas- carada do racismo brasileiro.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 69 tudo, esta afirmação exige comprometimentos mais significativos com a causa da imensa população negra, pois a decisão de estabelecer práticas e políticas educacionais afirmativas, na Igreja Metodista, antecedem as próprias iniciativas do poder público. Em termos das ações das comunidades locais, a Carta Pastoral do Colégio Episcopal de 2011, sobre o Racismo, indica pistas muito concre- tas para uma maior inserção nesta luta pelo resgate da dignidade negra e da construção de uma sociedade cuja democracia seja visibilizada em termos de acesso e participação nos bens produzidos coletivamente e nas relações de convívio igualitário. Uma breve abordagem desta natureza deixa muitas questões em aberto para a continuidade desta reflexão. A liberdade é algo ínsito ao ser humano. Privá-lo é tirar-lhe sua condição humana, sua identidade. A soteriologia no metodismo wesleyano propugna pela reconstrução, no ser humano, a imagem de Deus. O pecado desfaz a presença divina no ser humano. O racismo é um pecado contra a humanidade na medida em que desconstitui a pessoa como alvo da ação salvífica de Deus. A cura do pecado humano é fruto da graça, graça preveniente (GONZALEZ, 1996, p. 90) como se referia John Wesley. Para Runyon (2002, p. 42), a Graça também é terapêutica, unindo umbilicalmente tanto a libertação do fardo do pecado quanto à restituição da saúde físico-emocional de muitas pessoas alcançadas por ela. A despeito de reações contrárias, o Estado brasileiro tem procurado estabelecer algumas políticas de ações afirmativas e leis, visando diminuir a defasagem escolar, o distanciamento econômico, e estabelecer melhorias nos indicadores sociais em relação à evasão escolar, ao desemprego ou subemprego, as questões relacionadas à moradia, saneamento básico, que ainda apontam a exclusão dos afrodescendentes, notadamente da mulher negra. Conhecer a história recente do País é tarefa educativa, teológica e pedagógica das comunidades cristãs, notadamente o meto- dismo, herdeiro de uma herança libertária. Construir pontes de superação do racismo latente em nossa socie- dade, passados 125 anos da chamada Abolição da Escravatura, ainda se constitui em desafios à tarefa de homens e mulheres comprometidas com a vida, à luz de sua fé cristocêntrica e cidadã.

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70 Luis Vergílio Batista da Rosa: Memória e identidade: resistência ao racismo e a discriminação FREITAS, D. Insurreições Escravas. Porto Alegre: Movimento, 1976. GONZALEZ, J. Obras de Wesley. Franklin, , USA: Providence House, 1995. MAIA, F.; RENDERS, H. “Os “Pensamentos sobre a escravidão” (1774) de John Wesley: introdução e tradução para o português brasileiro”. In: Caminhando, vol. 18, n. 1 (Jan./Jun. 2013). MOURA, C. Rebeliões da senzala. 4. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. ______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. REILY, D. A. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984. ______. Metodismo Brasileiro e Wesleyano. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1981. ROSA, L. V. B. Exclusão étnica: uma face do fracasso escolar: a exclusão de adolescentes negros, na perspectiva de pressupostos teóricos de inclusão. Porto Alegre. (Dissertação de Mestrado). Programa de pós-graduação em Educação, UFRGS, 2001. RUNYON, T. A nova criação: A teologia de João Wesley hoje. São Bernardo do Campo: Editeo, 2002. SILVA, M. J. Racismo à brasileira: raízes históricas. Goiânia: O Popular, 1985. STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Inclusão: um guia para educadores. Porto Ale- gre: Artes Médicas, 1999. WESLEY, J. Thoughts upon slavery. 1. ed. London: Printed by R. Hawes, 1774.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 61-71, jan./jun. 2013 71 O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática de justiça e de paz The extermination of the black youth and the omission of the churches in the practice of justice and peace El exterminio de la juventud negra y la omisión de las iglesias en la práctica de justica y paz.

Lídia Maria de Lima

Resumo As últimas pesquisas relacionadas à violência no Brasil indicam que a juventude negra tem sido alvo da violência no País. Grande parte desta violência tem sido cometida pelas autoridades policiais, que reproduzem um discurso antigo e es- cravagista que ainda impera em nosso país. As igrejas, que deveriam denunciar estes fatos, anunciando assim a justiça e paz, têm se calado diante do fato, promovendo um alienado discurso de que somos todos iguais. Palavras-chave: Violência; racismo; discriminação; justiça.

Abstract The latest violence surveys in Brazil indicate that the black youth has been the target of violence in the country. Much of this violence is committed by the police, which reproduces the old slavery speech which still prevails in the contry. The Churches, who should be reporting these facts, thus heralding peace and justice, have been silent on the fact, promoting an alienated speech that we are all equal. Keywords: Violence; racism; discrimination; justice.

Resumen Las últimas investigaciones relacionadas a la violencia en el Brasil indican que la juventud negra ha sido blanco de la violencia en el país. Gran parte de esta violencia ha sido cometida por las autoridades policiales, que reproducen un discurso antiguo y esclavista y que aún impera en nuestro país. Las iglesias, que deberían denunciar estos hechos, anunciando así la justicia y la paz, se callan delante de lo que ocurre, promoviendo un alienado discurso según el cual somos todos iguales. Palabras clave: violencia; racismo; discriminación; justicia.

Introdução “Um dia a justiça e paz se abraçaram” – esta versão do Salmo 85.11 nos apresenta uma utopia fundamental para o povo: a justiça e a paz, como elementos presentes na salvação. De maneira simples, o salmista descreve

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 73-80, jan./jun. 2013 73 em forma de oração a situação do povo, que depois do exílio, experimen- tando a liberdade, tenta reorganizar a vida comunitária de maneira integral. Hoje, a oração do salmista parece ainda retratar a situação da po- pulação negra do Brasil, pois, embora estejamos vivendo há 150 anos após a abolição da escravatura, ainda há muitos conflitos, preconceitos e discriminações que dificultam a organização e a liberdade plena da nossa negritude. A violência contra a juventude negra pode ser vista como o maior exemplo de que a justiça e paz estão distantes de ser algo concreto e real em nosso país. Há quem defenda a ideia de que no Brasil não há racismo ou precon- ceito, entretanto, é necessário ouvir os relatos das pessoas negras, que aprendem desde cedo que elas “não estão autorizadas a caminhar pelas ruas sem documento”, pois, diante dos olhos de muitas autoridades poli- ciais, elas serão – sempre – suspeitas. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, o racismo em nosso país acontece de maneira sutil e velada:

Lembro que meu filho mais velho, [...] quando comprou o primeiro carro dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas, senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso. Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas. [...] entendi que a democracia racial é um mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, su- til. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira (Revista Fórum, 2009).

Infelizmente, as igrejas da atualidade também contribuem com a pro- liferação deste racismo velado e muitas vezes preferem se calar diante do fato. Torna-se comum ouvir afirmações do tipo: “Racismo e violência não são assuntos para se discutir na igreja!” Fazem uso de uma espirituali- dade que deseja “tocar o céu”, ou o transcendente, mas não é capaz de se sentir tocado pelos problemas sociais. E assim vamos gradativamente ignorando o fato de que a violência em nosso país tem cor, e é isto que apontam as últimas pesquisas (SEPPIR, 2011). A juventude negra que tem sido exterminada nas periferias das grandes metrópoles. Ato ignorado ou

74 Lídia Maria de Lima: O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática... silenciado nos espaços eclesiológicos, tal como aconteceu durante todo o período de escravidão no Brasil. Falar sobre estes fatos parece não refletir a teologia triunfalista, vitoriosa e que nos torna “iguais perante Deus”, assim como se ouve em muitos discursos cristãos.

O extermínio da juventude negra e os resquícios da escravidão Em 2012, Julio Jacob Waiselfisz, em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, publicou o resultado de sua pesquisa sobre violência no País. Analisando diversas publicações sobre violência e cruzando dados com as publicações da Organização Mundial da Saúde, Waiselfiz afirma que o País sempre esteve nas primeiras ocupações nas estatísticas que se referem aos países mais violentos do mundo e a juventude era o principal alvo dos homicídios. O que se observa é que na última década a juventude negra tem sido alvo desta violência. Segundo o autor considerando o país como um todo, o número de homicídios brancos caiu de 18.867 em 2002 para 14.047 em 2010, o que representa uma queda de 25,5% nesses oito anos. Já os homicídios negros tiveram um forte incremento: passam de 26.952 para 34.983: aumento de 29,8% (WAISELFISZ, 2012, p.14). Estes dados reforçam a ideia de que a violência no País, de fato, tem cor. Outras pesquisas desenvolvidas neste mesmo período também reforçam tal fato e as mesmas indicam, inclusive, que os agentes que deveriam ser responsáveis pela proteção desta juventude, ou seja, os policiais, costumam ser os autores dos homicídios.

A violência fardada (e autorizada) No texto Quem vigia os vigias: um estudo sobre controle externo da polícia no Brasil, (2003 317 p.) publicado em 2003, Lemgruber, Musumeci Cano afirmam que a Polícia Militar ainda hoje traz em si uma herança do período da ditadura militar, tempo em que a organização se fazia valer pela “máxima” de que todo aquele que se apresenta como “inimigo” de- veria ser exterminado. Neste período o inimigo era caracterizado pelos guerrilheiros/comunistas, hoje, sem estas figuras, os negros, pardos e favelados, passam a ser os “opositores da ordem pública”, logo, são alvos das investidas policiais. Não podemos ignorar o fato de que esta prática de violência policial contra negros, identificada como “uma forma de manter a ordem”, é muito anterior ao período da ditadura. Suas bases são escravocratas e mesmo após o período da abolição, as autoridades policiais seguiam agindo de maneira violenta contra a população pobre de nosso país (vale lembrar que esta era composta majoritariamente por pessoas negras e indígenas). As práticas religiosas e culturais da negritude eram vistas como atos de bruxaria e desordem, basta pensarmos na discriminação sofrida pelas

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 73-80, jan./jun. 2013 75 religiões afro-brasileiras (que ainda é presente) e nas rodas de capoeira e samba que eram identificadas como “vadiagem”. “A violência era exercida de várias formas, pois ao mesmo tempo em que a polícia deteve poder legal para punir escravos, também lançava mão de prisões arbitrárias e espancamentos para exercer a intimidação e a punição dos pobres em geral” (CARVALHO, D., 2012, p. 293). Até mesmo os órgãos públicos já reconheceram que a polícia continua agindo de maneira preconceituosa e discriminatória. Em 2012 durante uma entrevista, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da República, afirmou que a polícia brasileira apresenta uma abordagem diferente para negros e brancos, e que era necessário uma política de reeducação para tal classe: a forma de a polícia abordar o homem branco e negro é dife- renciada. É preciso que haja uma reeducação da Polícia Militar e Polícia Civil para mudar o padrão de abordagem, que já chega suspeitando que o negro é bandido1. Nesta mesma entrevista também houve a participação da ministra Luiza Barros, da Secretaria de Promoção de Igualdade Racial, que reafirmou ainda a necessidade de não criminalizar as expressões cul- turais da juventude negra, tais como o funk, o hip-hop e rap. Mas, o que se percebe é que estas orientações não foram ouvidas pelas polícias es- taduais, pois em janeiro de 2013 um jornal de grande circulação do Estado de São Paulo publicou um comunicado da Polícia Militar de Campinas, que focava a abordagem de “indivíduos em atitude suspeita” – principalmente “indivíduos de cor parda e negra”. Veja na página seguinte o documento que foi publicado no jornal. Depois que o documento tornou-se público, o Comando da Polícia Mili- tar emitiu uma nota, na qual tentava “esclarecer”2 o caso. Mas esta tentativa somente reforçou o preconceito que já estava explícito na ordem, a nota afirma que a ordem era agir com rigor sempre que se deparassem com jo- vens pardos e negros, aparentando ter entre 18 a 25 anos e que estivem em grupo, pois estas eram as características dos bandidos que estavam agindo na região, segundo a população. Ou seja, a associação de “negro = bandido” ainda predomina no imaginário popular e é reforçado pelas ações policiais. É claro que as polícias civil e militar, não são as únicas responsáveis pelas mortes que aqui descrevemos, mas não há dúvidas de que o pre- conceito e a discriminação estão sempre presentes nos cenários destes crimes. Uma análise nos gráficos publicados pelo Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) nos ajuda a compreender melhor estes fatos e compro- 1 Ministro Gilberto Carvalho, em entrevista ao programa “Bom dia Ministro”, da estatal NBR – parte desta entrevista pode ser conferida em: . Acesso em: fev. 2013. 2 Aqui, o termo esclarecer é empregado em sentido literal: tornar claro o obscuro ou o duvidoso. Seria cômico, se não fosse uma ironia infeliz e com consequências que ferem os direitos humanos.

76 Lídia Maria de Lima: O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática... Fonte: . Acesso em: 12 abril 2013.

Gráfico 1 – Distribuição dos Gráfico 2 – Distribuição dos homicídios por cor/raça, Brasil 2000 homicídios por cor/raça, Brasil 2009

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 73-80, jan./jun. 2013 77 Tabela 1 – Taxa de mortalidade por homicídio, segundo cor/raça, Brasil, 2001-2009

Tabela 3 – Dados populacionais absolutos, segundo cor/raça, Brasil, 2001-2009

var que este alto índice de homicídio seja apenas uma infeliz consciência:

Os gráficos indicam o crescente no que se refere ao aumento no número de 13% nos homicídios de pessoas negras; tudo indica que se, de fato, se trata de um extermínio da juventude negra, e os órgãos pú- blicos, com diversas frentes de movimento civil, têm se organizado para reagir diante do fato; hoje já há programas do Governo Federal e mani- festações públicas para combater esta realidade. Mas, com exceção das igrejas em que há pastorais da negritude ou algum grupo que discuta a temática, e dos espaços ecumênicos, não houve, por parte dos espaços eclesiásticos, nem da bancada evangélica e/ou das igrejas midiáticas, nenhuma citação sobre tal fato.

A justiça e a paz: propostas para a eternidade Amparados nos textos bíblicos que afirmam que Deus não faz acep- ção de pessoas (Dt 10.17; At 10.34). Muitos discursos religiosos seguem ignorando as necessidades de dignidade, de justiça, as questões de violência e o império do preconceito e da discriminação existentes na sociedade. É muito comum ouvir nas pregações religiosas e até mesmo nas postagens das redes sociais, frases que afirmam o fato de que Deus não se importa com a cor da pele das pessoas, e que “por dentro” somos todos iguais. Até mesmo os cânticos entoados nas comunidades religiosas reafirmam estas ideias: Mesmo diferentes, pra Deus somos iguais [...] Não importa a raça, língua, cor ou nação Nós somos soldados com a mesma missão Pregar o evangelho a toda criatura Nos seis continentes

78 Lídia Maria de Lima: O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática... Pra brilhar a luz de Deus. (Somos todos Iguais – Cristina Mel) A canção citada anteriormente reforça as diferenças físicas e ressalta o fato da igualdade perante Deus; mas, uma observação mais atenta, nos faz perceber que há um certo desprezo a nacionalidade, a cor e a linguagem para enfatizar a ideia de que no “exército de Deus” todos têm a mesma missão: evangelizar e pregar a Palavra, o Evangelho. As palavras soldado e missão também se destacam neste texto: a primeira reforça a ideologia bélica ainda muito presente nos discursos religiosos. Os soldados aqui convocados têm a missão de combater um mal imaginário, ou que se concentra apenas no mundo espiritual, e diante destas batalhas espirituais, muitas vezes, as religiões de matrizes africa- nas também são vistas como a personificação do inimigo. “Os soldados” aqui descritos preocupam-se com a salvação da alma e com a pregação do Evangelho, mas não há citação com a prática do mesmo, que é a vivência plena da vida abundante, da justiça, da digni- dade, da identidade e da valorização da diversidade etnicorracial, como uma manifestação divina e criativa. Preocupar-se com questões raciais? Preocupar-se com a justiça e com a paz, de forma holística? Estes não são itens necessários na teologia atual, a preocupação central é “tocar o céu”, “encontrar-se com Deus”, tornar-se “santo”, “ganhar mais ‘almas’ para o exército de Jesus”, e alimentar a ideologia de que: “no céu, seremos todos iguais e viveremos a justiça e a paz eternal” afinal de contas, “por dentro somos todos iguais”. Mas, enquanto os nossos olhos ainda não enxergam esta essência e sim a “saliência” da pele negra, o extermínio segue, no mesmo crescente em que se vê a ignorância da igreja.

Considerações finais Um dia a paz e a justiça se abraçaram... A proposta do salmista de unir a justiça e a paz nos faz pensar na proximidade destes dois substanti- vos. Não há como falar de Reino dos céus – se não rememorarmos o fato de que ele é inclusivo e que nele não há espaço para o preconceito, para a alienação, para a omissão e, muito menos, para a violência. Quando a igreja se cala diante dos problemas sociais torna-se conivente com os mesmos e mostra-se tão pecaminosa quanto quem os pratica. A justiça, tal como a paz, que em toda a narrativa bíblica do Antigo Testamento, estavam atreladas ao projeto de Deus em favor do povo humilde, que necessitava de espaço para morar, trabalhar e criar a sua descendência não pode ser ignorada. São temas atuais e necessários para o cotidiano da população brasileira, que não consegue avançar sem esbarrar no seu passado escravocrata e sem abandonar suas práticas violentas e discriminatórias.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 73-80, jan./jun. 2013 79 Após 125 anos de libertação torna-se urgente que voltemos os nossos olhos para o passado para que a história não se repita e para que a sociedade possa se libertar de sentimentos mesquinhos tal como o racismo e o preconceito. Torna-se necessário e urgente que façamos uma releitura da história, pedindo a Deus que nos perdoe pela ignorância e omissão que ainda nos cercam e que refletem na violência e exclusão da juventude negra. Cabe às igrejas, tanto quanto a sociedade civil, recu- perar este discurso libertador, prático e comprometido com os problemas sociais de nosso tempo. Quem sabe assim possamos ver o abraço da justiça e da paz, como um símbolo real da libertação.

Referências bibliográficas BÍBLIA. Bíblia Sagrada: edição pastoral. Ivo Storniolo; Tradução Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1997. CARVALHO, D. A questão racial e o direito à vida: os desafios para uma so- ciedade democrática. 293p. In: 5º Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil. 2001-2010 / Núcleo de Estudos de Violência (NEV-USP). São Paulo, 2012. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2013. CARVALHO, Ministro Gilberto. Entrevista In: Programa “Bom dia Ministro”, da estatal NBR. Parcialmente disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2013. COLÉGIO EPISCOPAL DA IGREJA METODISTA. Racismo: Abrindo os olhos para ver e o coração para acolher. Carta pastoral do Colégio Episcopal da Igreja Metodista. PIRACICABA: 2011. 26 p. (Biblioteca vida e missão, documentos). FARIA, G.; RAMOS, C. S. Nosso Racismo é um crime perfeito – Entrevista com Kabemguele Munanga. Revista Fórum, São Paulo, v.77, agosto/2009. Versão on-line. Disponível em: . Acesso em: fev. 2013.. LEMGRUBER, J.; MUSUMECI, L.; CANO, I. Quem vigia os vigias: um estudo sobre controle externo da polícia no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003. SEPPIR: SECRETARIA DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DE IGUALDADE RA- CIAL. Perspectivas Negras – Construindo políticas públicas na intersecção entre Juventude e Promoção da Igualdade Racial. Brasília, 2011. WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro/Brasília: CEBELA, FLACSO/SEPPIR/PR, 2012.

Referências de páginas eletrônicas Jornal Diário de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2013. Portal da Saúde – SUS: Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2013.

80 Lídia Maria de Lima: O extermínio da juventude negra e a omissão das igrejas na prática... Metodismo e afro-brasileiros: uma análise crítica do contexto motivacional da imigração e da missão dos metodistas estadunidenses no Brasil em meados do século 19 Methodism and African-Brazilians: a critical analy- sis of the motivational context of immigration and the mission of the American Methodists in Brazil in the mid-nineteenth century Metodismo y afro-brasileños: un análisis crítico del contexto motivacional de la inmigración y la misión de los metodistas de América en Brasil a mediados del siglo XIX.

José Roberto Alves Loiola

Resumo Fundamentado nas ideias de Santos (2006), González (2007), Mendonça (2008), Mesquida (1994) e outros, o artigo aborda o construto histórico do metodismo brasileiro a partir de sua herança euro-americana. De maneira preliminar, de- monstra o perfil da cosmovisão dos metodistas estadunidenses e os principais fatores que motivaram o seu êxodo para o Brasil por ocasião da chegada do Rev. Junius E. Newman em 1867. A partir do método historiográfico, o artigo tende a uma leitura da história do metodismo brasileiro em perspectiva pós-colonial. Palavras-chave: Metodismo; imigração; missão; afro-brasileiros (as).

Abstract Basing on the ideas of Santos (2006), González (2007), Mendoza (2008), Mes- quida (1994) and others, the article seeks to address the historical construct of Brazilian Methodism from its Euro-American heritage. In a preliminary attempts to demonstrate the profile of the worldview of the American Methodists and the main factors that prompted their exodus to Brazil on the occasion of the arrival of rev. Junius E. Newman in 1867. From the historiographical method, the article tends to a reading of the history of Methodism in Brazilian post-colonial perspective. Keywords: Methodism; immigration; mission; afro-Brazilians.

Resumen Fundamentado en los ideales de Santos (2006), González (2007), Mendonça (2008), Mesquida (1994) y otros, el artículo enfoca el constructo histórico del metodismo brasileño a partir de su herencia euroamericana. De manera preli- minar, demuestra el perfil de la cosmovisión de los metodistas estadounidenses

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 81 y los principales factores que motivaron su éxodo para el Brasil con ocasión de la llegada del Rev. Junius E. Newman en 1867. A partir del método historiográ- fico, el artículo tiende a una lectura de la historia del metodismo brasileño en perspectiva poscolonial. Palabras clave: metodismo; inmigración; misión; afrobrasileños (as).

Introdução Ao propor uma abordagem teórica sobre o metodismo brasileiro du- rante o século 19, o artigo enseja uma profunda reflexão sobre o tipo de relacionamento que o protestantismo brasileiro desenvolveu com o movi- mento abolicionista em 1888. Além de oportunizar alguns esclarecimentos para entendermos as possíveis causas das dificuldades que atualmente o movimento negro enfrenta para a implementação de ações e projetos na vida e missão da Igreja Metodista brasileira. Com foco no movimento metodista, o artigo está estruturado em três partes. A primeira analisa o surgimento do metodismo americano, evocando algumas ideias de Santos (2006) e de outros autores para uma leitura crítica de sua cosmovisão, a saber, europeia. Estando cientes de que é a partir de 1835 que os primeiros metodistas chegam ao Brasil pelo Rio de Janeiro, julgamos metodologicamente mais adequado enfatizar os metodistas que chegam a partir de 1867 com Junius E. Newman na região de Santa Bárbara do Oeste e Piracicaba, em São Paulo. Na segunda parte, serão analisadas as reais motivações da imigra- ção dos metodistas que chegam por São Paulo, em especial na região de Piracicaba. E finalmente, será considerado o fato dos metodistas chegarem ao Brasil no período do Império, ocasião em que a instituição da escravi- dão era legal. Entre outras questões, pergunta-se pelo envolvimento da missão metodista com o movimento abolicionista. O artigo reflete sobre questões muito pertinentes para a reflexão de todos os brasileiros e brasileiras, mas especialmente, dos (das) cristãos (ãs) protestantes, negros e negras membros das Igrejas batistas, presbi- terianas, metodistas, congregacionais e evangélicas em geral, além dos cristãos, negros e negras de fé católica. Sem dúvida alguma, a história dos afrodescendentes1 no Brasil, ainda está por ser contada.

1 Apesar de no século 19, se utilizar o termo “pretos (as)” para designar as populações negras, neste trabalho será usado o termo afro-brasileiro. Além do termo afro-brasileiro há outras designações como: “afrodescendentes”, “negro/negra”, construídos ao longo do processo histórico, ora, como fins de dominação ora, como reafirmação da identidade. Tais categorizações sociais muitas vezes não correspondem à forma como as pessoas às quais lhes são atribuídas se compreendem. Afinal, o ser humano vai além das cate- gorizações sociais ou culturais.

82 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros Os metodistas estadunidenses e sua herança europeia É importante ressaltar que o metodismo americano deve ser pensado no contexto dos desdobramentos históricos do colonialismo euro-americano, tendo seu epicentro na Inglaterra. Santos (2006, p. 40-41) adverte contra uma leitura essencialista da Europa. Para o autor, a Europa não é um ‘ente monolítico’ e não se reduz a Inglaterra, ou seja, não é necessaria- mente uma geografia e sim uma epistemologia. Todavia, do ponto de vista metodológico-histórico partimos da Inglaterra, por ser de direito e de fato, o arcabouço histórico-epistemológico dos imigrantes metodistas americanos. Ao explicar o mito “Europa”, Bauman (2004, p. 4, 5, 8) afirma que a cultura europeia sempre se impôs como “uma busca pelo infinito, uma verdadeira ‘aventura’”. Os Estados Unidos seriam então o resultado dessa aventura. Um sonho consolidado em 1776 com sua independência da Inglaterra. A perspectiva teórica de Santos (2006, p. 29) critica a “aventura euro- peia”, a partir de sua presunção em formular uma grande e única narrativa sobre a história dos povos colonizados. A propósito, a noção cristã ociden- tal tem se confundido com a própria cultura europeia na medida em que o desenvolvimento da modernidade se traduziu em progresso e renúncia a projetos coletivos, tão bem ilustrados nas relações entre colonos europeus e populações indígenas, na história da colonização das Américas. Isso remete a uma conclusão ainda que provisória, de que o cris- tianismo tanto em seu viés católico quanto protestante, têm embarcado desde o século 16, na mesma “caravela” dos aventureiros europeus. O movimento metodista deve ser pensando a partir do contexto geral do cristianismo e não isoladamente. Gestado a partir do projeto pastoral de John Wesley no interior do anglicanismo no século 18, o metodismo se constituiu em mais um fenômeno religioso importante dentre as várias vertentes protestantes da reforma de Lutero. De acordo com Cairns (1995, p. 76,133-231), o cristianismo, desde a sua constantinização no quarto século, tem sido fortemente influenciado pelos condicionamentos sociais, políticos, econômicos e culturais dos contextos históricos circundantes. A antiga Igreja Católica que se conso- lida com Gregório I como Igreja Católica Medieval, mesmo com o cisma de 1054, manteve ainda mais viva sua opção monarquista até o fim do sacro império romano. O século 16 coincidiu com a transição da Idade Média para a Mo- derna, ocasião em que novamente, o cristianismo se reconfigura e as- sume a agenda cultural vigente. Inevitavelmente, a Reforma Protestante se tornou emblemática para entendermos os primórdios do modernismo que irá lançar as bases para o individualismo, a liberdade e a ampliação da “cultura europeia para todas as terras”, em nome de uma “missão”.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 83 Análise weberiana da doutrina protestante Weber (2004, p. 30-31) afirma que a “Reforma significou não tanto a eliminação da dominação eclesiástica sobre a vida de modo geral, quanto a substituição de sua forma vigente por outra”. O autor exemplifica denunciando que a dominação do calvinismo em Genebra e Escócia, na maior parte dos países baixos, além da Nova Inglaterra e da própria Inglaterra no período do século 16, foi o mais insuportável controle eclesiástico do indivíduo. Weber demonstra como a “consciência-doutrinária” protestante opera associada à ideologia capitalista. A doutrina instaura uma prática social que procura refletir a visão de mundo retratada nela mesma. Nesse sentido, a formulação de uma dada doutrina agrega inte- resses tanto da religião em si, quanto do seu contexto socioeconômico. Citaremos dois exemplos: a doutrina do “Destino Manifesto” surgida em 1845 conforme González (1987, p. 31) que preconizava a ideia de eleição divina do povo americano para dominar o mundo e o da “Doutrina da Igreja Espiritual” que conforme Mendonça (2008, p. 89-90), ao defender o princípio do “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, entendia que as Escrituras não condenavam a escravidão, pelo contrário, a sancionavam como qualquer condição social do homem. Tal doutrina tende a explicar o processo de conversão espiritual do indivíduo, sem levar em conta as condições sociais e econômicas em que o mesmo esteja inserido. Essa visão é resultado basicamente de uma leitura da Bíblia, conhecida a partir do século 20, como método fundamentalista. Esse método unilateral de interpretação bíblica, segundo Wegner (1998, p. 15), “apresenta pouca sensibilidade para a condição humana de seus autores e para com o que isto implica”. É com essa cosmovisão que o protestantismo estadunidense legi- timaria a escravização de negros e negras, na América.

Formação do protestantismo americano Desde a Reforma Protestante na Alemanha em 1517, intensas perseguições religiosas e políticas foram encetadas, em particular, às várias formas de protestantismos emergentes: luteranos, anglicanos, radicais e reformados. E, em função dessas perseguições os protes- tantes europeus migraram para destinos como: África do Sul e para as Carolinas do sul e do norte nos Estados Unidos. Conforme Mendonça (2008, p. 75-76), o primeiro sermão protestante foi proferido na costa ocidental da Califórnia, em 1579. Segundo o autor, a Igreja Anglicana estabeleceu definitivamente os primeiros protestantes na região de Ja- mestown, Virgínia, e em 1607, em :

84 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros [...] mas os protestantes que iriam marcar o espírito do protestantismo ame- ricano seriam os puritanos e os sucessivos desdobramentos do puritanismo. Perseguidos por questões político-religiosas, os puritanos da Inglaterra emigraram em grande número para terras da América. Em 1620, os Pilgrim Fathers atravessaram o oceano no Mayflower e fundaram a colônia de . A emigração puritana foi muito intensa entre 1628 a 1640[...] (MENDONÇA, 2008, p. 76).

Metodismo americano

Mendonça indica que o protestantismo americano se inicia com os grupos anglicanos e reformados. Foi nesse contexto que os primeiros missionários metodistas chegaram à América, a partir de 1768. Em 4 de julho de 1776, o metodismo já estava amalgamado na estrutura cultural e econômica dos EUA. Em face do exposto, parece que o metodismo inglês esteve associado aos mesmos objetivos da colonização europeia na América,

[...] John Wesley era partidário decidido da coroa, e exortou os metodistas norte-americanos a obedecerem aos editos reais. Depois da declaração de independência, todos os pregadores metodistas ingleses, exceto Asbury, regressaram à Grã-Bretanha. Por estas razões, os metodistas tornaram-se impopulares entre os patriotas norte-americanos. Todavia, graças à tenacida- de de Asbury, o metodismo recuperou a sua própria forma e independência e recrutou novos pregadores [...] (GONZÁLEZ, 2007, p. 21).

González (2007, p. 19-23) indica que no fim do século 18 e por todo o século 19, novas ondas migratórias motivadas pelas mudanças radicais na Europa, associadas às guerras napoleônicas, convulsões sociais e as consequências da Revolução Industrial aumentaram em muito a população tanto das igrejas norte-americanas, quanto dos Es- tados Unidos. Além da imigração involuntária de escravos procedentes da África, que cresceu significativamente. Desde a colonização inglesa, um dos padrões discriminatórios muito presente na história dos Estados Unidos foi a visão “essencialista”2, o que provocou a ênfase na pureza racial, dicotomizando as relações entre brancos e negros; indígenas e hispânicos, americanos e asiáticos. González (2007, p. 20, 37-42) chama a atenção para o impacto da cultura colonialista na religiosidade estadunidense:

2 Cf. Santos (2006, p. 40) pode-se assim definir o “essencialismo”: tornar o particular em universal. Exemplo: converter a Europa numa entidade monolítica face ao mundo não ocidental. Ou ainda, a transformação de uma etnia (por exemplo, europeia), ou um grupo social em um padrão superior em relação a outras etnias ou grupos sociais.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 85 [...] Boa parte da ideologia que serviu de base para o movimento separatista, e para o estabelecimento da democracia capitalista norte-americana, con- sistia de uma religiosidade “ilustrada” e anti-dogmática, como a que vimos surgir na Europa [...] A providência era, sobretudo um princípio de progresso. A nova nação era prova palpável do progresso humano [...] (GONZÁLEZ, 2007, p. 20).

O autor aponta que, desde 1784, as relações polarizadas entre ame- ricanos nortistas (industrial-liberal) e sulistas (agrário e escravocrata) se acentuavam. González indica que

[...] Tanto os metodistas como os batistas, a fim de atrair os brancos do sul, amoldaram-se progressivamente ao fato da escravidão, até o ponto em que em 1843, havia cerca de mil e quinhentos escravos nas mãos de mil e duzentos ministros e pregadores metodistas [...] Outras denominações adotaram posturas igualmente ambíguas [...] (GONZÁLEZ, 2007, p. 37).

Ainda para González, a partir de 1845, o termo “Destino Manifesto” irá consolidar a síntese ideológica americana da noção de progresso e liberdade com a da superioridade do protestantismo sobre o catolicismo, reforçada pela atitude racista com base na suposição de que a raça branca era superior.

[...] Desde a chegada dos “peregrinos” do Mayflower, existia a idéia de que as colônias britânicas da América do Norte haviam sido fundadas com o auxílio divino, para cumprir uma missão providencial. Para muitos dos imigrantes posteriores, a América do Norte era uma terra prometida de abundância e liberdade [...] (GONZÁLEZ, 2007, p. 31) .

O tema da escravidão dos negros é um fio que perpassa toda a história dos protestantes e, em especial, dos metodistas americanos. Os batistas, presbiterianos e metodistas sempre estiveram divididos em torno da questão. Em 1844, segundo registro de Reily (1984, p. 86), os aboli- cionistas metodistas norte-americanos conseguiram que a Conferência Geral condenasse o Bispo da Geórgia, James Osgood Andrew, que era dono de escravos. Este bispo havia designado o Rev. Fontain Pitts em 1835 como missionário ao Brasil. A decisão da Conferência provocou a saída dos metodistas sulistas do resto da Igreja, oportunizando o surgi- mento da Igreja Metodista Episcopal do Sul em 1846.

[...] Em 1846, foi assim criada a Igreja Metodista Episcopal do Sul (IMES), que aceitou Andrew como bispo e ainda elegeu bispo William Capers um outro ministro sulista dono de escravos[...] (REILY, 1984, p. 86).

86 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros Barbosa entende que além de Wesley se opor ao tráfico de escravos africanos, ele demonstrou tacitamente seu interesse pelo trabalho cate- quético para admissão destes no movimento metodista.

[...] As convicções de Wesley foram fundamentais à formação da mentalida- de antiescravagista do metodismo norteamericano. Os primeiros Concílios metodistas nos Estados Unidos continuaram refletindo esse compromisso. No Concílio de Baltimore, realizado em 1780 com a presença de 17 pastores metodistas, foi redigida a seguinte declaração: “A escravidão é contrária às leis de Deus, do homem, da natureza e danosa à sociedade”. Nesse mesmo Concílio foi aprovada uma norma proibindo os membros da Igreja Metodista de possuir escravos. Caso os tivessem, eles deveriam ser alforriados, e não vendidos [...] (BARBOSA, 2002, p. 82-83).

Barbosa entende que a Igreja Metodista americana originária tinha posições bem contrárias ao regime da escravização negra. Lembra-nos que, nos tempos dos grandes avivamentos, muitos negros se tornaram pastores, pregadores e pregadoras metodistas.

[...] Em 1786, primeiro ano de uma estatística distinguindo a raça dos mem- bros, entre um total de 18.791 metodistas havia 1.890 negros, portanto, mais de 10%. Em 1790, esse número aumenta para 11.682 e, em 1797, já havia 12.215, significando um quarto da totalidade dos seus membros [...] (BARBOSA, 2002, p. 84).

Barbosa (2002, p. 84-87) conclui que nos EUA as ideias de John Wesley começam a ser contestadas e ainda no início do século 19, o Bispo Francis Asbury, em consenso com Thomas Coke e outros líderes, passa a defender a ênfase da conversão espiritual do escravo e não a sua emancipação socioeconômica. E é no sul que esta perspectiva irá consolidar uma fundamentação bíblica da escravidão. Assim, no protestan- tismo tem início essa ênfase como uma estratégia para driblar os senhores de escravos. Depois, tal estratégia se transforma em controle social do escravo, relegando sua emancipação para a divina providência, a partir da doutrina da “Igreja Espiritual”. Esse, portanto, é o tipo de metodismo que “arrumaria as malas para o Brasil”.

Metodismo brasileiro: algumas portas de entrada O metodismo chega ao Brasil a partir de vários pontos geográficos: Rio de Janeiro, em 1835 com o Rev. Fontain E. Pitts; Belém do Pará, Manaus, Amazonas: com o Bispo William Taylor (1880) e Rev. Justus H. Nelson (1888-1895) e em Santa Bárbara do Oeste, com Junius Eastham

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 87 Newman, em 1867. Na verdade, o primeiro missionário oficialmente en- viado pela Igreja Metodista Americana foi o Rev. John J. Ransom, que chega entre 1875 e 1877 e depois, o Rev. James W. Koger, todos na região de Piracicaba, SP. Conforme Souza (2005, p. 5), a Igreja Episcopal do Norte dos Esta- dos Unidos (antiescravagista) desenvolveu atividades missionárias tanto no norte-nordeste, quanto no sul do Brasil. Contudo, tudo parece indicar que foi a Igreja Episcopal do Sul estadunidense (escravagista) que mais influenciou na formação do metodismo brasileiro.

Fatores históricos que motivaram a vinda dos metodistas estaduni- denses para o Brasil Depois de um breve histórico sobre a formação do metodismo americano, cabe-nos de maneira ainda que preliminar, perguntar pelos principais fatores que favoreceram a chegada dos primeiros metodistas no Brasil em meados do século 19.

Fatores socioeconômicos Conforme Jones (1967, p. 32-43), no cenário político americano, abolicionistas e escravistas caminhavam cada vez mais para uma seces- são dos Estados. Nesse sentido, as divergências políticas e econômicas vividas entre o norte e o sul já haviam demarcado no protestantismo americano duas características internas: uma escravagista e outra aboli- cionista, conforme lembra González (2007)

[...] Nessas circunstâncias, as igrejas do sul preferiram permanecer separa- das de suas supostas irmãs do Norte, e se tornaram porta-vozes da causa perdida. Entre os brancos do Sul havia grande temor dos negros libertos, e houve numerosos púlpitos dos quais se fomentou esse temor e até se chegou a conclamar os brancos a tomar medidas contra os negros. Quando esses temores deram origem à Ku Klux Klan e seus atropelos, não faltaram pregadores que manifestassem o seu regozijo. De fato, até ocasião bem avançada no século XX, boa parte dos membros do Klan eram também membros de igrejas [...] (GONZÁLEZ, 2007. p. 41).

Guerra civil Conforme registros do Museu dos Confederados em Santa Bárbara do Oeste em São Paulo, os Estados Confederados do Sul investiram todos os recursos financeiros que possuíam, na guerra contra os norte- -americanos e foram derrotados. Sobrando-lhes recessão econômica e milhares de baixas. Em torno da questão étnico-racial, durante 4 anos, yankees e con- federados guerrearam entre si na Guerra de Secessão (1861-1865).

88 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros Quase a totalidade de indivíduos em idade adulta produtiva do velho sul, perecera na guerra. Profundamente abatidos moral e materialmente a maioria prefere abandonar essa realidade em busca de novos horizontes. Segundo Léonard (1952, p. 74) apesar de que “nem o escravagismo do sul, nem a ávida cobiça do Norte dos Estados Unidos eram atitudes louváveis: entretanto, foram atitudes que concorreram para a obra mis- sionária protestante no Brasil”. Barbosa (2002, p. 35) pontua que após a Guerra de Secessão, restavam duas opções para os estadunidenses: submeter-se ao norte ou imigrar.

Fatores políticos Em termos políticos, o conservadorismo dos imigrantes estaduniden- ses encontraria entre os liberais tupiniquins brasileiros, uma aliança em torno do ideal do “progresso”. Harter (1985, p. 39) sugere que, do ponto de vista político, os sulis- tas americanos teriam se identificado com o estilo de vida pomposo de D. Pedro II. Pelo menos, ao que parece, o imperador se mostrou assaz cordial com os imigrantes estadunidenses, mesmo porque, o Brasil se beneficiaria com mão de obra qualificada. Dawsey3 ao avaliar as causas do êxodo confederado entende que:

[...] Quando os exilados confederados deixaram os Estados Unidos, em mea- dos da década de 1860, eles estavam reagindo a uma combinação de fatores e condições de “atração e expulsão”, alguns reais, outros imaginários [...] e essas condições muitas vezes envolviam teias complexas de relacionamen- tos pessoais e institucionais que se estendiam pelas fronteiras nacionais. O desapontamento em relação ao resultado da Guerra Civil foi a razão principal para o movimento. A maioria dos imigrantes consistia de pessoas que faziam parte do tecido social e militar do Velho Sul, pessoas essas que, com gran- de lealdade para os ideais da Confederação, não suportaram a idéia de se sujeitar ao domínio dos odiados yankees. Alguns desses sentimentos foram mantidos no Brasil, conforme demonstrado pela proeminência continuada da bandeira de batalha dos confederados na capela americana do Campo, próximo de Santa Bárbara do Oeste [...] assim como pelas inscrições enfá- ticas nos túmulos do cemitério ao lado dele: “Uma vez rebelde, duas vezes rebelde, para sempre rebelde” [...] (DAWSEY, 2005, p. 49).

Essas informações podem ajudar não apenas à construção do perfil dos imigrantes, mas também fundamentar a inferência de sua conivên- cia na instituição da escravização dos negros e negras afro-americanos.

3 Cyrus B. Dawsey e James M. Dawsey são descendentes de confederados e organizadores do livro: Americans: Imigrantes do velho sul no Brasil, 2005.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 89 Afinal, um dos motivos principais da Guerra de Secessão (1865), teria sido a decisão contumaz destes, em manter a escravatura no sul dos Estados Unidos. Citando Goldman, Mesquida (1994, p. 34-35) indica algumas possí- veis causas do êxodo dos estadunidenses:

[...] Para Frank Goldman, a história da emigração dos cidadãos do Sul norte- -americano teve a ver com quatro fatores fundamentais; a) o desenvolvimento dos Estados Unidos, b) a expansão para o oeste, c) a escravatura, d) o destino manifesto [...] (MESQUIDA, 1994, p. 34).

Destaca-se, portanto, o fato desses imigrantes terem vivido a tensão em torno da abolição da escravatura em sua terra e virem para o Brasil num período em que a escravidão ainda era legal. A propósito, o mesmo autor cita um trecho da carta do Rev. Richard Hennington, de 18 de maio de 1867: “O que mais chama atenção são os escravos negros, justo como em nosso país antes da guerra. Tudo que existe por aí pode também ser encontrado aqui”. Hennington ainda teria dito que, em suas terras, poderia se obter escravos a 800 dólares. Dawsey (2005, p. 115) admite essa possibilidade, mas ao mesmo tempo não a confirma de todo.

[...] A continuação da escravidão também oferecia estímulos para, pelo me- nos, alguns dos migrantes empreendedores, apesar de a história subseqüente da população migrante revelar [...] que poucos compraram escravos e, os que assim fizeram, aparentemente não ficaram com eles por muito tempo. Esse aspecto da experiência confederada no Brasil tem representado um certo dilema para os historiadores: teria sido a escravidão um fator importante de atração, favorecendo a decisão de emigrar? [...] (DAWSEY, 2005, p. 115).

Judith Mac Knigth Jones (1967, p. 66)4 indica que houve compra de escravos com a chegada do confederado metodista, Coronel William H. Norris no Brasil de 1865.

Fatores religiosos Quanto aos reais motivos da imigração, há que se pesquisar um pouco mais. Por exemplo, Harter (1985, p. 38, 76) admite que os confe- derados estivessem seduzidos pela possibilidade de comprar escravos. Mas, não só. “Estavam envoltos na lembrança da guerra e ressentidos com a proximidade dos ianques. Seu plano era se isolarem e estabelecerem

4 Autora de Soldado descansa: uma epopéia norte-americana sob os céus do Brasil. São Paulo: Jarde, 1967.

90 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros comunidades que preservassem os costumes sulistas – uma confederação mental”. Ou seja, assumem um padrão de colonização. Para Santos (2006, p. 84), esse tipo de lógica é tipicamente europeu, tende a privilegiar o centro em detrimento da periferia. O que leva o autor a concluir, que nesse tipo de relação, não se leva em conta as “diferentes circunstâncias e as aspirações dos povos, classes, sexos, regiões, etnias, nativos. Pode-se afirmar que em seu turno, o processo da imigração de metodistas estadunidenses no contexto brasileiro, não escapa à crítica ao colonialismo de Santos (2006, p.85), uma vez que, parece não se importar com os interesses das populações afro-brasileiras.

Metodistas estadunidenses e o projeto abolicionista Já percebemos que o metodismo que chega ao Brasil não vem dire- tamente da Inglaterra. É um construto histórico e cultural do sul estaduni- dense. Resta-nos saber agora, como os metodistas ex-escravocratas se relacionaram com o ideal abolicionista no Brasil, uma vez que escolheram essas terras como seu lar.

Omissão por palavras e obras Conforme registra González (2007, p. 37-41), no Grande Sul, os con- federados lutaram desde 1818 contra a emancipação dos afro-americanos. Lutariam em 1888 em favor dos afro-brasileiros? Segundo Salvador (1982, p. 247), “A missão metodista não podia ignorar o movimento (abolicionista); como de fato não ignorou [...] Todavia, por motivos que ignoramos, o Expositor Cristão guarda absoluto silêncio sobre o antiescravismo [...]”. O metodismo estadunidense cruzou a fronteira trazendo em seu imaginário a “Doutrina da Igreja Espiritual”. E nessa perspectiva não irá enxergar as populações negras como alvo missionário. De acordo com Andrade (1995)

[...] pode-se afirmar que, durante o período que a antecedeu, ou mesmo depois da libertação “libertação dos escravos”, a Igreja Metodista jamais chegou a defender oficialmente uma posição em relação à escravidão no Brasil [...] nem mesmo John Cowper Grambery, o primeiro bispo metodista a visitar o Brasil, fez qualquer referência à situação dos negros africanos no Brasil. Sendo convidado a conhecer a missão metodista, teve a oportunidade de viajar por várias cidades, a começar pela capital do país, Rio de Janeiro. Conheceu também São Paulo, e diversas províncias no interior paulista, como Santa Bárbara e Piracicaba (região de Campinas que era povoada por colonos americanos e ainda conheceu a cidade mineira de Juiz de Fora, onde pensou fundar uma escola. É difícil acreditar que, nas viagens e contatos

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 91 que realizou, o bispo não tenha percebido a realidade na qual se encontrava a maioria da população negra deste país [...] (ANDRADE, 1995, p. 150).

Conforme Nascimento, a população afro-brasileira foi fundamental para a organização econômica do País.

[...] Sem o escravo a estrutura econômica do país jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundações da nova sociedade com a flexão e a quebra de sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho significava a própria espinha dorsal daquela colônia [...] (NASCIMENTO, 1978, p. 49).

Por sua vez, a política cordial das elites liberais não possibilitava nenhum senso de urgência para a emancipação. Ainda que conforme Andrade (1995, p. 117), os metodistas estadunidenses, não pudessem ig- norar situações como: o conflito com o Paraguay (1865-1869); movimentos abolicionistas que diuturnamente insurgia-se contra a elite escravocrata; a promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871; a Lei do Sexagenário em 1885; e por fim, a assinatura da Lei da abolição dos escravos em 1888. Não há registros de que a missão metodista tenha de forma siste- mática e efetiva se envolvido no movimento abolicionista. A verdade é que o protestantismo em geral passa de largo sobre a questão abolicionista. Daí se vê, conforme diz Barbosa (2002, p. 146); que a teologia da Velha Escola do sul estadunidense falou mais forte entre os protestantes no hemisfério sul, em especial os metodistas. Segundo o autor,

[...] Desde o início de sua implementação no Brasil, o protestantismo com- preendeu que as discussões a respeito da escravidão poderiam se tornar gradativamente perigosas, além de, principalmente, dificultar enormemente o trabalho prioritário de instalação [...] (BARBOSA, 2002, p. 149).

Conforme lembra Salvador (1982, p. 149), os protestantes de um lado, estimavam o imperador e por outro lado, estavam ligados às ideias republicanas. Daí se vê que estes não estiveram imunes à cultura do favor, que amalgamava ideias liberais e ideias escravocratas, compondo a ambiguidade da intelectualidade brasileira de então. E é desse ambiente cultural e político que os gestores e líderes metodistas se beneficiam.

O silêncio histórico do Expositor Cristão Sobre a indiferença dos imigrantes metodistas em relação ao aboli- cionismo brasileiro, comenta Salvador (1982, p. 246-247): “Todavia, por motivos que ignoramos, o Expositor Cristão guarda absoluto silêncio sobre

92 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros o antiescravismo. Seria porque a lembrança da luta fratricida nos Estados Unidos amargurava o espírito do redator?”. Ao falar do lançamento do jornal Methodista Católico (atual Expositor Cristão) em 1886, sob a direção do Rev. Ransom, o autor esclarece que o tema da escravidão era totalmente invisível em suas edições. De caráter moralista, o periódico dava mais ênfases às questões religiosas como polêmicas doutrinárias contra a Igreja Católica, eventos sociais, lições da Escola Dominical e outros informes do mundo evangélico. Barbosa (2002, p. 145), comentando sobre um artigo publicado no jornal Methodista Católico como também foi chamado o jornal Expositor Cristão, diz: “O texto, redigido pelo anônimo C.G.S.S., compara o trabalho aos domingos com a escravidão dos negros e sustenta que trabalhar no Dia do Senhor, é muito mais iníquo”.

127º aniversário do Expositor Cristão A propósito, em sua edição de janeiro de 2013, o Expositor Cristão comemorou 127 anos de fundação. Em que pese o tom festivo da edição com o qual também nos identificamos, ao olharmos alguns aspectos do seu conteúdo a partir da ênfase desse capítulo, podemos fazer as se- guintes inferências:

A política do Jornal mudou? Ao lermos reafirmação da filosofia missioná- ria do fundador do jornal, Rev. Ransom: “[...] Desejamos fazer uma folha que sirva de leitura agradável a todos, e que sirva para instruir os fracos e principiantes no caminho da salvação [...] (EDITORIAL DO EXPOSITOR CRISTÃO, janeiro/2013, p. 2).”

Parece que não mudou muito. Vejamos por exemplo, que a citação no editorial, atribuída a Ransom, reflete a teologia da “Doutrina da Igreja Espiritual” do século 19. Que por sua vez, é ratificada pela normativa escrita pelo redator do “Expositor Cristão”, Rev. José Sucasas Júnior, na década de 1960. “[...] Evitar críticas a não ser as essencialmente construtivas. Evitar política bem como movimentos extremistas que em nada edificam a vida espiritual da igreja [...]” (NOTA DA REDAÇÃO DO EXPOSITOR CRISTÃO, janeiro/2013, p. 12). Qual é a teologia por traz dessas narrativas em tom jurídico? Será que na citação do Rev. Ransom, o termo “fracos” pode ser interpretado como: as classes mais “obliteradas, quebradas e excluídas da sociedade”? O que o Rev. Sucasas quis dizer com “críticas essencialmente construti- vas”? Será que o movimento abolicionista era tido pelo então reverendo, como um “movimento extremista que em nada edificava a vida espiritual da igreja”? E o movimento metodista brasileiro, “evitou” a política?

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 2013 93 Curiosamente, na mesma edição em questão, temos mais uma cita- ção, desta vez, atribuída a Odilon Massolar Chaves, que parece responder às questões supracitadas:

[...] A Igreja saudou a chegada da república, defendeu o socialismo, criticou a revolta dos tenentes em 1922, apoiou o Estado Novo de Vargas e saudou o Governo de 1964. Isso revela que a Igreja não teve neutralidade em relação à política [...] (MASSOLAR CHAVES. In: Expositor Cristão, janeiro/2013, p. 9).

E por fim, ao completar 127 anos de fundação, o Expositor Cristão divulgou um calendário histórico das notícias que mereceram a primeira página ao longo da sua história, confirmando a denúncia de José Salvador, ao indicar que o jornal se omitiu de noticiar a promulgação da abolição da escravatura no Brasil. Quando os metodistas chegaram ao Brasil, o movimento abolicionista já estava em andamento. Salvador (1982, p. 246-247) recorda que da Lei Eusébio de Queiroz em 1850 à Lei Áurea em 13 de maio de 1888, houve intensos movimentos no País. A falta de visibilidade das questões relativas aos afro-brasileiros no Expositor Cristão no século 19 demonstra o distanciamento ou a indife- rença por parte da liderança metodista da época. Não é exagero afirmar que os protestantes foram reticentes e na maioria das vezes omissos no envolvimento nas questões abolicionistas. Nesse sentido, concordamos com Barbosa (2002, p. 154-155) que a ética protestante foi ao mesmo tempo conservadora e paternalista, longe de propor algo libertário e revolucionário. Estavam os confederados me- todistas mais interessados em implantar suas doutrinas e o fizeram de forma polêmica e dogmática, faltando-lhes a sensibilidade de captar os rostos silenciados pela escravatura.

Considerações finais O surgimento do protestantismo nos Estados Unidos da América, além de cumprir a agenda histórica dos fluxos migratórios da Europa, acossados pelas perseguições religiosas, associadas aos desdobramentos das guerras napoleônicas e convulsões sociais, foi também uma aventura que conjugou religião e colonização. Inicialmente, majoritariamente anglicano e reformado, o protestan- tismo americano, aos poucos foi assumindo uma cultura religiosa, cada vez mais distanciada de suas origens inglesas. É possível inferir que a “Doutrina do Destino Manifesto” tão peculiar aos “pilgrim fathers” como eram chamados os puritanos ingleses, foi efetivamente colocada à efeito. Isto posto, parece que Weber tinha razão, quando relacionou a doutrina religiosa à realidade socioeconômica, pressupondo uma certa

94 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros dialética entre o imaginário religioso e a estrutura sócio-político-econômica de uma dada sociedade. A propósito, a estrutura escravagista legitimada pelos protestantes, em especial, no sul estadunidense, esteve sempre associada à “Doutrina da Igreja Espiritual”. Uma vez que os metodistas estadunidenses migram para o Brasil fugindo dos efeitos nefastos da Guerra de Secessão americana, é razoá- vel concluir que interesses como a própria sobrevivência dessas famílias, determinou mais que o anseio por “espalhar a santidade bíblica por toda a terra”, conforme mote Wesleyano. As pesquisas demonstraram que em meados do século 19, em plena época de legalização da escravatura no Brasil, a missão metodista teve muita dificuldade de traduzir em solo brasileiro, as ideias de John Wesley, sobre a abolição da escravatura.

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96 José Roberto Alves Loiola: Metodismo e afro-brasileiros Quilombo Ivaporunduva: a dialética do processo histórico de aquilombolamento The Quilombo Ivaporunduva: The dialectic of the historical process of its creation El Quilombo Ivaporunduva: La dialéctica del proceso histórico de su creación

Márcia Cristina Américo

Resumo Nesse estudo, busco discutir o processo de aquilombamento da população do Quilombo de Ivaporunduva, localizado no Vale do Ribeira, SP, como processo histórico e dialético a partir dos entraves enfrentados com o poder público e privado desta população para garantir a sobrevivência no território. O aporte teórico está ancorado na metodologia afrodescendente de pesquisa que tem sua base filosófica e cosmovisão africana. Essa metodologia propõe um diálo- go com os pensamentos de filósofos e historiadores africanos, agregando as contribuições de intelectuais e pesquisadores que integraram em sua produção científica o movimento histórico de lutas contra o racismo antinegro na África e em sua diáspora forçada. Palavras-chave: Quilombo; território; africanidades.

Abstract The present text intends to investigate thought in relation to the participation of Christian citizens that established themselves in the confrontation of human situation of annihilation of deconstruction of historical practices present in our society, engaged in the long period of slavery of African people. Also, it seeks to establish the existence of a relationship between the connection of liberty of historical Methodism and the experience of faith that articulates action of de- construction against blacks. Key-words: Slavery; abolition; Methodism in Brazil; practices of freedom.

RESUMEN En este estudio busco discutir el proceso de aquilombamiento de la población del Quilombo de Ivaporunduva, localizado en el valle del río Ribeira, estado de São Paulo, como proceso histórico y dialéctico a partir de los escollos enfrentados por esta población, con el poder público y privado, para garantizar la sobrevivencia en el territorio. El aporte teórico se apoya en la metodología afrodescendiente de investigación que tiene su base filosófica y cosmovisión africana. Esa metodología propone un diálogo con los pensamientos de filósofos e historiadores africanos, agregando las contribuciones de intelectuales e investigadores que integraron en su producción científica el movimiento histórico de luchas contra el racismo antinegro tanto en África como en su diáspora forzada. Palabras clave: quilombo; territorio; africanidades.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 97-106, jan./jun. 2013 97 Trazendo o leitor para perto de nós O processo histórico da formação da população Quilombo Ivapo- runduva, localizada na região do Vale do Ribeira, município de Eldorado, no Estado de São Paulo, nos aspectos atrelados à organização social e territorial, esteve em movimento e em transformação. Em um primeiro momento, a população negra de Ivaporunduva teve sua história pautada pelo/no escravismo criminoso; em um segundo momento, pela resistên- cia e luta para manter a sobrevivência no território, quando as terras de preto são uma realidade agrária brasileira: são áreas que passam pelo reconhecimento, titulação e regularização no âmbito jurídico-político por meio de lutas sociais. Sendo o processo de aquilombamento histórico e dialético, aproprio-me da metodologia afrodescendência de pesquisa. As famílias do Quilombo Ivaporunduva vivenciam os entraves políticos ligados aos seus direitos fundamentados na Constituição Federal, nos artigos 215, 216 e 681, que lhes garantem a posse das terras. Em 2010, Ivapo- runduva torna-se pioneira no Brasil, porque de fato tem o registro coletivo das terras em cartório; porém, desde então, as famílias têm enfrentado uma luta política para a não expropriação de suas terras em função da construção de barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape. Nosso esforço nesse artigo será discutir o processo de aquilombamento como histórico e dialético a partir dos entraves enfrentados com o poder público e privado dessa população para garantir a sobrevivência no território – atualmente contra o projeto da construção das barragens. Entre outras motivações de caráter vivencial e de pertencimento ao grupo dos afrodescendentes, a minha opção pela pesquisa de campo associa-se à opção – pela investigação de cunho etnográfico – que pos- sibilitou trazer as vozes e memórias dos quilombolas aqui apresentadas, que foram comigo compartilhadas em diferentes situações na convivência com eles: ora em momentos de conversas/entrevistas entre mim e eles; ora em palestras proferidas por eles a grupos de turistas em visita ao quilombo. Trata-se do movimento de colher relatos de fontes genuínas. Os descendentes de africanos no Brasil, a partir do cultivo das memórias de seu povo, ao revisitarem a história do passado, vão reconstruindo uma

1 Artigo 68: “Aos Remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocu- pando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. Garante também os direitos culturais, definindo como responsa- bilidade do Estado a proteção das “manifestações das culturas populares, indígenas e afrodescendentes”. O artigo 215 prevê que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. O Artigo 216 estabelece: “Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. Esses artigos representam avanço na História do País, no que se refere aos aspectos de reconhecimento dos direitos culturais (art. 215 e 216) e direitos fundiários (art. 68) (MALCHER, 2006, p. 17).

98 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva identidade. Evidenciam a história da formação dessa população negra, remetendo-se ao movimento negro brasileiro, possibilitando entender o papel desses quilombolas e a relações que eles têm estabelecido com a discussão mais ampla desse movimento social. Esse processo meto- dológico de subjetividade e objetividade não trata tais conceitos como abstratos e definitivos, “que consideram o homem como pura consciência, só como subjetividade (este o risco idealista); nem também reduzido à simples condição de coisa, só objetividade (esta armadilha materialista- -mecanicista). Trata-se de considerar a superação dialética desse dualismo pela práxis.” (CIAMPA, 1984, 73). O caminho por mim percorrido neste artigo, compreendido no cultivo das memórias dos descendentes de afri- canos ligadas aos seus antepassados, vão reconstruindo uma identidade, identidade metamorfose como Ciampa explica:

Ora, essa expressão do outro “outro” que também sou eu consiste na “alteri- zação” da minha identidade, na supressão de minha identidade pressuposta e no desenvolvimento de uma posta como metamorfose constante em que toda humanidade contida em mim pudesse se concretizar pela negação (não re- presentar no terceiro sentido) do que nega (representar no segundo sentido), de forma que eu possa – como possibilidade e tendência - representar-me (no primeiro sentido) sempre como diferente de mim mesmo - a fim de estar sendo mais plenamente. Ou seja, só posso comparecer no mundo frente a outrem efetivamente como representante do meu ser real quando ocorrer a negação da negação, entendida como deixar de presentificar uma apresenta- ção de mim mesma que foi cristalizada em momentos anteriores – deixar de repor uma identidade pressuposta – ser movimento, ser processo, ou, para utilizar uma palavra mais sugestiva se bem que polêmica, ser metamorfose (CIAMPA, 1984, p.70).

A forma de reconstruir e resignificar a história da Comunidade Tradi- cional Quilombo de Ivaporunduva a partir das memórias dos quilombolas sobre seu passado e ancestralidades, seu trabalho, seus confrontos e resistências para permanecerem no território, sua organização familiar, seus modos de pensar, suas críticas em relação ao sistema econômico, político e social no qual foram e continuam inseridos implica em não disso- ciar todo esse contexto das africanidades, conforme Petronilha conceitua:

Ao dizer Africanidades brasileiras, estamos nos referindo às raízes da cul- tura brasileira que têm origem africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e, de outro lado, às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia a dia (PETRONILHA, 2001, p.155).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 97-106, jan./jun. 2013 99 Do autor Cunha (2006), depreendo a relevância desta discussão, quando aponta que a afrodescendência está atrelada com os conceitos de ancestralidade e identidade das filosofias africanas, que surgem das histórias das comunidades descritas pelas gerações descendentes; essas histórias estão relacionadas ao solo local e diz respeito aos conhecimentos que foram acumulados pelas culturas locais.

Introduzindo o leitor ao Quilombo Ivaporunduva Ocupando uma área de 2.800 hectares, o Quilombo Ivaporunduva se localiza na região do Médio Ribeira, município de Eldorado, Estado de São Paulo. No Vale do Ribeira, entre o sul do Estado de São Paulo e norte do Estado do Paraná, há atualmente 57 comunidades quilombolas identificadas, sendo esta a área de maior concentração de comunidades quilombolas do Estado de São Paulo. O Vale do Ribeira é uma região com imenso valor cultural e ambien- tal, devido a seus recursos naturais, habitado por pequenos agricultores familiares e comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas. É uma região, cujo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o mais baixo do Brasil por razões históricas, abriga comunidades tradicionais que são vítimas de um persistente ciclo vicioso de marginalização, pobreza e baixíssimos níveis de acesso aos direitos constitucionais à terra, educação, saúde, moradia, trabalho e a tantos outros aspectos que constituem o homem emancipado2. A formação dessas comunidades teve origem com a exploração de minérios no século 17, com cujo declínio, no século 18, os fazendeiros brancos abandonaram suas terras, das quais os quilombolas se apropria- ram, mantendo seus laços históricos e de parentesco com as comunidades vizinhas da região. A comunidade Quilombo Ivaporunduva é a primeira e mais antiga comunidade quilombola do Vale do Ribeira, da qual outros quilombos foram originados3 (ISA, 2008, p.93). Ivaporunduva é uma comunidade negra agroflorestal, composta por 110 famílias e aproximadamente 322 pessoas, das quais 110 são crianças

2 Vale do Ribeira é citado duas vezes na lista dos 60 Territórios da Cidadania – regiões críticas de pobreza, eleitas pelo Governo Federal como prioritárias para programas e investimentos de desenvolvimento socioeconômico. O que falta, de fato, são iniciativas capazes de interromper esse ciclo vicioso e iniciar um ciclo de ações de desenvolvimento social, cultural, político e econômico para a população dessas comunidades. São frágeis e lentos os benefícios efetivos à comunidade quilombola, trazidos pelos programas gover- namentais, tais como o dos “Territórios da Cidadania” e o das “Meso-Regiões Nacionais”, do Ministério da Integração Nacional, “Luz para Todos”, entre outros, os quais visam promover ações para a redução da pobreza e das desigualdades regionais. 3 Nos municípios de Eldorado e Iporanga estão identificadas 16 comunidades quilombolas. Em Eldorado, estão: André Lopes, Nhunguara, São Pedro, Ivaporunduva, Sapatu, Pedro Cubas de cima, Pedro Cubas, Poça, Galvão e Abobral margem esquerda. Em Iporanga estão: Maria Rosa, Pilões, PraiaGrande, Bombas e Piririca, Castelhano e Porto Velho.

100 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva com menos de 12 anos4. Na atualidade, as terras de quilombos são uma complexa realidade agrária brasileira, com mais de 3.000 comunidades identificadas pela Fundação Cultural Palmares. Para a plena regulari- zação dos territórios, as comunidades quilombolas precisam superar as etapas dos processos de autoidentificação, reconhecimento oficial e titulação em cartório. Na comunidade Quilombo Ivaporunduva, a agricultura de subsistência foi mantida ao longo dos séculos pelas famílias, por exemplo: o cultivo rotativo das roças (de arroz, feijão, mandioca, batata doce, milho, do cul- tivo de vegetais), assim como a pesca, a caça, a coleta do palmito para a alimentação, o uso de plantas medicinais, a utilização da madeira e do cipó para a construção de moradias pela técnica do “pau-a-pique”, práticas que têm garantindo o sustento e a proteção da comunidade até os dias atuais. As atividades as quais movimentam atualmente a economia da co- munidade Quilombo Ivaporunduva são: a produção e comercialização de banana orgânica e convencional e o ecoetnoturismo, sendo que essas atividades envolvem direta ou indiretamente as famílias da comunidade. O artesanato elaborado a partir da fibra de bananeira, o palmito pupu- nha, como alternativa ao palmito nativo juçara, assim como a pequena agroindústria de processamento de banana, são empreendimentos que estão em fase de desenvolvimento.

Ressemantizando os conceitos de quilombo e territorialidade O termo quilombo foi modificado e ressemantizado ao longo dos séculos pela literatura e pesquisadores especializados, grupos, indiví- duos e organizações e, atualmente, esse termo tem outra definição. As comunidades quilombolas contemporâneas também são ressignificadas e conhecidas como terras de preto, terras de santo, santíssimo, mocambos. As comunidades negras rurais são habitadas pelos descendentes de afri- canos escravizados, mantêm laços de parentesco, vivem da agricultura de subsistência, estão em terras que foram doadas, compradas ou se- cularmente ocupadas por seus antepassados, conservam suas tradições culturais e suas histórias e código de ética que são transmitidos oralmente de geração a geração (ISA apud MOURA, 2008). A população do Quilombo Ivaporunduva precisou se organizar de forma individual e coletiva (com outras comunidades quilombolas, indí- genas, ribeirinhas e caiçara, organizações não governamentais, partidos políticos, universidades, ambientalistas etc.) para garantir a posse e o registro da terra; simultaneamente se iniciou o trabalho da comunidade nas ações e movimentos políticos contra a construção das barragens - a

4 Os dados foram levantados em maio de 2012 pela diretoria da Associação Quilombo Ivaporunduva.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 97-106, jan./jun. 2013 101 problemática da barragem não termina com o registro da terra. Os desafios que a comunidade vem enfrentando junto às conquistas realizadas pelos quilombolas estão ligados ao profundo sentido de identidade, resistência e pertencimento ao território. Para o geógrafo brasileiro Milton Santos (2007), o território não pode ser visto unicamente como uma superposição do construído pelo “homem” sobre o “natural”. O território é o chão mais a população que nele habita. Aí os homens constroem o sentimento de pertencimento. “O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi.” (SANTOS, 2007, p. 96). O autor se refere ainda ao “território usado”, utilizado por uma população e, como tal, é um campo de batalha, uma arena de luta entre interesses; mas, diz ele, também é o lócus de possibilidades de solidariedade. Veja como o líder quilombola Benedito Alves - Ditão - entende o território:

Então, você falo na questão da terra, né, é... eu não sei assim os negro que moram na zona urbana, né, que tá na cidade, como tem essa consciência da terra, né, mais a terra, sabe?, pros negro dos quilombo, com raiz ali, que ficaram ali, aquela questão de seu pai, da sua mãe, dos seus avôs, eles vê a terra, sabe?, como uma mãe, se apega à terra como uma mãe, respeita a terra como respeita uma mãe, por que que eles pensa assim? Porque o seu antepassado fala assim: “Meu filho, meu neto, olha! A terra, desde o começo do mundo, tudo que nóis temos vem dela, tudo... calçado, roupa, certo?, alimentação, isto aqui, vem da terra, o ar que a gente respi- ra”, então... e no fim da nossa vida ela recolhe nosso corpo, ela acomoda lá dentro, tendo sorte de não morrê numa área que o bicho comê, mesmo que morre dentro do mato, a terra vai absorvê o seu corpo, então a terra pode ser amada como mãe, né?, e quem que não respeitá a mãe?, né?, quem que na questão de comercialização, quem que vai vendê a sua própria mãe? Então o quilombola, ele pensa desse jeito, sabe?... que na terra de quilombo não pode tê loteamento, não pode pensá em comércio, porque nóis temo que garanti o futuro das gerações vindoura no território, que são nossos filho, nossos neto, daí por diante, né? Benedito Alves – Liderança Quilombola5.

Gusmão (1992) explica que, para as comunidades negras contempo- râneas, a terra não é uma realidade física, uma “coisa”, ela é entendida como um “ente vivo” da vida coletiva. A terra representa, no interior do universo negro, um patrimônio comum das comunidades “de fatores étni- cos, da lógica endogâmica, casamento preferencial, regras de sucessão e outras disposições”, as condições nas quais a posse da terra foi con- quistada – na coletividade – sendo ela indivisível pela própria história. 5 Trecho de conversa realizada no Quilombo Ivaporunduva, 24 de junho de 2011.

102 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva “A terra torna-se território” e sobre ele a comunidade negra vai construir sua territorialidade (GUSMÃO, 1995, p. 119).

As contradições O processo da formação histórica da comunidade Quilombo Iva- porunduva esteve fundamentado pelas/nas ações socioeconômicas e políticas em movimento e em transformação. Em um primeiro momento como pessoas escravizadas, num segundo momento pela resistência e luta para manter a sobrevivência no território. As décadas de 1960/1970 se configuraram como um período de politização dos membros e lideranças quilombolas por meio da interação com o movimento da esquerda socialista, com membros da Igreja Cató- lica (os que tinham forte vínculo com o movimento político da esquerda) e com outros movimentos sociais. O envolvimento dos membros da comunidade com os movimentos sociais (que garantiu a politização das crianças e adolescentes) foi fundamental para tornar os jovens adultos deste momento mais politizados. A partir dos anos 1980, os dois líderes de Ivaporunduva (Benedito Alves e José Rodrigues) passaram a compor o Movimento Negro, em São Paulo, em busca de direitos sociais.

Eu lembro que nós comecemos nos anos 80 a civilizar aqui, até época 86 a 88 pra tentar fazer que o território dos quilombos descendentes de escravos tivesse direito à constituição. Aqui tinha um grupo que sempre a gente viajava pra São Paulo em 86, que a gente se reunia no Ipiranga, discutindo leis que beneficiasse o povo negro brasileiro, né? Nós era aquele negro que entendia pouco disso, mas a gente tava sempre ajudando, tentando, entende? E hoje entedemo a importância disso. Que foi através daquelas coisas, que hoje nós temos a constituição, temos algum direito, tivemos que brigar por ele, pelas leis. Mas tendo uma brecha nós vamos brigar. José Rodrigues – Liderança Quilombola6.

O Quilombo de Ivaporunduva, após um longo processo e por meio de ação judicial, conseguiu que a terra fosse registrada em cartório como propriedade coletiva. Em 1º de julho de 2010, a Associação Quilombo de Ivaporunduva registra a terra coletiva em cartório. Zé Rodrigues expressa o percurso da comunidade para a efetivação desse processo:

[...] As leis, tem as leis, e você tem às vezes que brigar pra que ela seja cumprida. Eu lembro que aqui, essa comunidade, nós somos titulado, con- templado com o título de direito, direito nosso, 16 anos atrás nós entramos na justiça e hoje o juiz deu a sentença que os cartórios têm que registrar. E ganhamo através de uma ação pública, ganhamo o direito de registro da

6 Trecho de conversa realizada em 9 de julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 97-106, jan./jun. 2013 103 nossa terra. Então hoje nós fomo no cartório junto com o pessoal do INCRA, né? É, registramos o título. E uma coisa que o Estado é réu, o Estado foi réu. Porque nós tivemos que brigar contra o Estado, entendeu? Pra que o Estado nos liberasse o registro da titulação, entendeu? Então quer dizer que não tem mérito nenhum de governo, se você for ver, de Estado nenhum. É mérito da nossa luta com a justiça. A justiça foi feita. Nós tivemos o registro registrado. É claro que depois do registro registrado, tem que trabalhar as ações, aí é dever do estado de trabalhar desenvolvimento, melhorar essa coisa das ações que já vem sendo feita, mas tem que melhorar mais. A luta pelo registro do título foi nossa com a justiça. Nós podemos bater no chão e dizer: essa terra é minha, essa terra é nossa, do nosso povo, e aqui po- demos sobreviver nossas gerações. Pelo que vejo no Brasil, nós somos um dos pioneiros do registro de terra coletiva, o juiz não tinha modelo pra se basear. Foi criado pelas leis, foi criado um modelo, eles tiveram dificuldade. Aqui no Brasil, pela lei da terra, o dono é um, é aquele ou aquele; quer di- zer, quando se fala em coisa coletiva, fica difícil, porque não é moda, nunca ninguém fez... Espero que isso seja muito modelo pro resto do Brasil, que outras comunidades do Brasil, eles usem isso pra se legalizar legalmente na terra, pra ter seu direito ao registro de sua propriedade. JOSÉ RODRIGUES – Liderança quilombola7.

Hoje, a luta em questão é contra as barragens que ameaçam suas vidas e de seu grupo social. No caso de liberação jurídica para o projeto da construção de barragens nas proximidades do rio Ribeira de Iguape em curso, haverá o alagamento e desaparecimento das comunidades quilombolas, ribeirinhas, caiçaras e indígenas e de camponeses que vivem nas proximidades do rio Ribeira. A luta e resistência quilombola contra os investimentos dos órgãos privados e públicos em projetos de implementação de hidrelétrica e de construção das quatro barragens se dão na articulação política que con- siste no legado dos líderes quilombolas e dos moradores de quilombos à população mais jovem. É perceptível a articulação política que faz parte do cotidiano da comunidade quilombola. Ditão nos conduz a conhecer:

Primeiro começô por nóis aqui na região de Eldorado depois foi pegando corpo, alguns professores de universidade, que vieram pra luta, conhecê a luta, algumas ONGs, assim, ambientais [...] essas ONGs vieram pra inchá e defendê a questão ambiental e nosso interesse é pela questão do meio ambiente com gente, não sem gente, então juntamo tudo isso aí, ganhou o Paraná também [...] aí algumas universidade do Paraná também, alguns professores também entrou na luta, aí alguns sindicato do Paraná também entrou na luta, de SP também, não que eles entraram, eles apóiam, enten-

7 Trecho de conversa realizada em 18 de julho de 2010, no Quilombo de Ivaporunduva.

104 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva deu? Então quando a gente precisa deles lá pra um movimento qualquer: som, carro, essas coisa, tão junto pra ajudá [...] quando a gente solicita, eles estão pronto pra ajudá. E a gente tem segurado, né?, porque a parti do momento que o grupo da SESP de SP falô: “Olha, nóis não vamo fazê mais as barragem, porque o estado não tem interesse, aí privatizô e tudo mais, passô pra outro, terceirizô o setor energético, aí que que aconteceu? O grupo Votorantim falô: “Não, mais eu vô fazê, então a de lá de cima, de Tijuco Alto, eu vou fazê porque eu tenho dinheiro e eu preciso da energia porque eu to concorrendo, né?, ao alumínio com mais cinco país, e eu sem- pre tenho ganhado e agora estou com risco de perdê porque tem país que tá com mais alumínio do que o meu, eles querem uma quantidade e preciso de muita energia”. E pegô o Ribeira aqui pra fazê, e aí começamo uma briga com ele, faz tempo já, só com Antonio Erminio de Moraes, já tamo com mais de 20 ano de luta, não deixamo faze até agora, mas agora tamo vendo que tá feio. Tá feio porque tá dentro do plano da Dilma, do PAC, aí, né? [...]. Benedito Alves - Liderança Quilombola8.

Para Gusmão, a sociedade precisa admitir que essa população é constituída, em especial, de “ sujeitos sociais organizados, possuidores de um bem fundamental como a terra, e que hoje lutam para preservar as bases essenciais de sua existência”, o que exige de todos nós um olhar atento, que reconheça “a não-uniformidade do meio rural e da sua própria questão negra brasileira” (GUSMÃO, 1992, p. 121). A necessi- dade de organização e inserção nos movimentos mais globais das lutas sociais, no campo, permitiu à comunidade negra quilombola o apoio de entidades e partidos, o que foi necessário para que ela pudesse utilizar os instrumentos de embates frente ao Estado, “que historicamente [lhe] tem sido adverso” (GUSMÃO, 1992, p. 121).

Considerações finais Os confrontos com os poderes público e privado – travados pelas famílias do Quilombo de Ivapodunduva para continuar a viver no território, supõem constantes embates com o poder público e poder privado, por direito à posse da terra e contra os grandes empreendimentos de barra- gens para a construção de hidrelétricas. A comunidade Quilombo Ivaporunduva, por meio do trabalho e das ações dos movimentos sociais, tem buscado a efetivação de fato das políticas públicas e os seus direitos pautados na Constituição Federal de 1988, nos artigos 68, 215 e 216 – no sentido de subsistir dentro de seu território. Nesse movimento de confrontos e resistências contra o Estado e seus empreendimentos capitalistas, para gerar energia e obter riqueza

8 Trecho de conversa realizada no Quilombo de Ivaporunduva, em 24 de junho de 2011.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 97-106, jan./jun. 2013 105 e lucro, as reivindicações dos quilombolas por saúde, escola, terra, trans- porte, moradia e pelo direito de ir e vir acontecem por meio da participação no Movimento Nacional Quilombola e de movimentos sociais rurais, ribei- rinhos, indígenas, caiçaras, MST, MOAB, MAB, entidades ambientalistas, entre outras organizações, com as quais eles estabelecem relações. Tais organizações os apoiam em iniciativas e propostas de geração de renda e de desenvolvimento político, social e econômico. Nesse caso, pudemos apreender que a forma de organização dos quilombolas para manter a sobrevivência no território, ao longo da história e dos conflitos, diz respeito às relações sociais construídas. A história das famílias negras do Quilombo de Ivaporunduva aponta que elas se organizaram para produzir a vida material e imaterial, conservando suas crenças, unindo tradição com o novo e que foram criando e transformando, refletindo no que atualmente são. A contradição está posta. Os modos de ser quilombola e as lutas por eles travadas para manter a sobrevivência dentro do território nega a imposição dos grandes empresários e também do Estado que tem apoiado os investimentos capitalistas em detrimento desse povo.

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106 Márcia Cristina Américo: Quilombo Ivaporunduva O envolvimento de John Wesley (1703- 1791) na causa abolicionista: de experiências pessoais, via a criação de uma rede de contestadores/as até uma ação política orquestrada The involvement of John Wesley (1703-1791) in the abolitionist cause: from personal experiences, via the creation of a network of protesters up to a orchestrated political action La participación de John Wesley (1703-1791) en la lucha abolicionista: de experiencias personales, a través de la creación de una red de manifestantes hasta la acción política orquestada

Helmut Renders

Resumo Este artigo apresenta o envolvimento de John Wesley, sacerdote anglicano e spiritus rector do movimento metodista no século 18, na luta abolicionista, desde as suas influências familiares e suas experiências com a instituição da escravidão até a criação de uma rede de contestadores que resultou em uma ação política orquestrada, já sob a liderança de uma nova geração. Wesley nunca foi favorável à instituição da escravidão, mas somente em idade mais avançada entrou na causa abolicionista de forma direta. Porém, uma vez que se posicionou, ajudou na mudança da opinião pública sobre o assunto e preparar a mudança da legislação inglesa. Palavras-chave: John Wesley; Antoine Bénézet; Granville Sharp; abolição inglesa; escravidão.

Abstract This article discusses the involvement of John Wesley, an Anglican priest and spiritus rector of the Methodist movement in the 18th century, in the struggle of the abolitionists, from the early family influences, over his first personal experiences with the institution of slavery, up to the creation of a network of protesters that resulted, finally, in a coordinated political action, already under the leadership of a new generation. Wesley is presented as a person who was never in favor of the institution of slavery, but became only in a more advanced age directly involved in the abolitionist cause. However, once stood, he contributed for the change of the public opinion on the subject and prepared by this the modification of the English legislation. Keywords: John Wesley; Antony Benezet; Granville Sharp; abolition in England; slavery.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 107 Resumen Este artículo presenta la participación de John Wesley, sacerdote anglicano y spiritus rector do movimiento metodista en el siglo 18, en la lucha abolicionis- ta, desde sus influencias familiares y sus experiencias con la institución de la esclavitud hasta la creación de una red de contestadores que resultó en una acción política orquestada, en ese entonces ya bajo el liderazgo de una nueva generación. Wesley nunca fue favorable a la institución de la esclavitud, pero, solamente en edad más avanzada entró de forma directa en la lucha abolicionis- ta. Sin embargo, cuando en fin se posicionó, ayudó a la mudanza de la opinión pública sobre el asunto y a preparar la mudanza de la legislación. Palabras clave: John Wesley; Antoine Bénézet; Granville Sharp; abolición inglesa; esclavitud.

Introdução Em 1887, a escravidão foi abolida oficialmente no Brasil. Oitenta anos antes, o parlamento inglês havia proibido o transporte de escravos e escravas em suas embarcações. Apesar das primeiras vozes abolicionistas aparecerem já nos séculos 16 e 171, este era o primeiro passo durador2 e John Wesley era um dos seus colaboradores. Sua histórica participação é lembrada por autores brasileiros como Reily (1953, p. 15-18), Schilling (S.A., p. 1-13; S.A., p. 1-20), Rosa (2003) e Silva (2008, p. 87-96) e acessível em traduções de Camargo, Heitzenrater e Runyon. O texto de Reily junta dados essências, menciona até uma fonte normalmente des- conhecida no Brasil, o Arminian Magazine (REILY, 1953, p. 18), mas a parte sobre a luta abolicionista depende unicamente de fontes secundárias (EDWARDS, 1939; McCONNELL, 1942). O texto de Rosa (2003, p. 175) tem outro foco, mas cita Wesley uma vez, trazendo a sua denúncia que a escravidão seja “a mais vil das tiranias que a humanidade tem visto”3. Schilling acrescenta dados novos, como a importância dos abolicionistas franceses, mas não faz a ponte com Wesley. Destaca-se o estudo de Silva por ser detalhado e original, focando no direito à cultura afro como parte dos “direitos humanos em Wesley”. De fato há poucas outras obras recentes abrindo novas frentes de discussão. As obras de Madron (1964, p. 24-34) e Davis (1966, p. 382-90), escritos no espírito dos movimentos para os direitos civis dos EUA, ainda continuam sendo textos básicos sobre este tema. Anos depois Phipps (1981, p. 23-31), Carey (2003, p. 269-284)4, Strong (2007, p. 1-12) e Painter (2008, p. 29-46) retomaram

1 Devem ser lembrados especialmente o puritano Richard Baxter (1615-1691) e o fundador dos quacres, George Fox (1624-1691). Bénézet (1766, p. 37 e 38; 1772, p. 83-84) lembra dos dois. George Keith (1639[?] 1716) outro quacre, porém expulso em 1694, é autor de outro panfleto contra a escravidão (KEITH, 1693; apud TORPY, 2008, p. 6). 2 A Revolução Francesa aboliu a escravidão, mas Napoleão a reintroduziu 15 anos depois. 3 A citação sem referência é provavelmente da carta de Wesley (1791) para Wilberforce. 4 Carey (2003, p. 269) valoriza ainda muito Davis e menciona que todos os biógrafos re- centes gastam umas páginas ao assunto citando Green (1987, p. 156), Hattersley (2002, p. 390-391) e Pollock (2000, p. 240-243).

108 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista o tema do envolvimento de John Wesley na causa abolicionista inglesa, focando ou no conteúdo ou na forma da argumentação usada por ele nos seus Pensamentos sobre a escravidão de 1774. Neste artigo, sugerimos a reconstrução de uma rede de relacionamentos do movimento, para en- tender melhor o possível fluxo de ideias e conceitos que aparecem nas obras de John Wesley.5 Para isso, serão feitos alguns cortes cronológicos entre 1703-1773 (Herança familiar e experiências pessoais), 1774-1786 (A articulação de uma rede de contestadores) e 1787 e 1791 (Da organização dos fundamentos de uma ação política orquestrada até a sua realização).6

Herança familiar e experiências pessoais Recentemente Torpy (2008, p. 5-15) mostrou que Samuel Wesley, em 1692, com conhecimento dos textos de Richard Baxter, já havia escrito contra o roubo, o tráfico e a posse de escravos. Mostramos, ao longo do texto, que John Wesley (1703-1791) tinha conhecimento de tal fato. John Wesley conhecia a escravidão de perto somente durante a sua viagem missionária entre 1735 e 1737 para a Geórgia. Na época, nesta colônia ela era ilegal, apesar de alguns fazendeiros procurarem escravos nas colônias vizinhas, em especial de Carolina. Wesley expressa a sua felicidade de “ver diversos negros na Igreja de Charlestown, Carolina do Sul (In August 1736), convide Wilberforce de cuidar deles (TELFORD, 1960, p. 205-206) e instrua um escravo religiosamente no retorno. Segun- do Telford (1900, p. 52), Charles Wesley notou em especial a falsidade como marca de caráter dos donos de escravos. Os próximos 20 anos não escutamos nada do assunto nas obras dos irmãos Wesley.7 Em 1756, porém, nas Notas explicativas sobre o Novo Testamento, o tema do tráfico de escravos reaparece. Fica claro que este comércio, na época considerado perfeitamente “legal” diante das leis inglesas, para Wesley não passava de um empreendimento criminoso, pior do que uma das pragas da época, os assaltos nas carruagens dos viajantes ou das casas nas cidades:

1Tm 1.10: roubadores de homens - Os piores de todos os ladrões, em com- paração com quais os assaltantes nas rodovias ou os ladrões que invadem as casas devem ser considerados inocentes! O que, então, são a maioria

5 Por questões do espaço, dialogamos em um artigo paralelo mais com Phipps, Carey, Strong, Silva e Painter e apresentamos uma proposta nova de interpretação dos Pensa- mentos sobre a escravidão de John Wesley. 6 Com isso vamos variar um pouco a distinção entre 1703-1770 e 1770-1791 proposta por Marquardt (1977, p. 83-85). 7 Segundo Strong (2007, p. 1), “a escravidão foi proibida para todos os metodistas nas Regras Gerais das sociedades [metodistas, o autor]” a partir de 1743, porém, a leitura da sétima edição de 1755, única em nossas mãos, não confirma esta afirmação (WESLEY, 1755, p. 5-6).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 109 dos comerciantes de negros, os procuradores de servos para América, e todos os outros que listam soldados por mentiras, truques, ou tentações? (WESLEY, 1755, p. 553).

A descrição de traficantes como “piores de todos os ladrões” está na tradição de Richard Baxter (1665) que se refere a eles como “um dos piores tipos de ladrões do mundo”.8 A ideia de propor uma comparação com outros tipos de criminosos ele encontrou, porém, numa publicação do seu pai, Samuel Wesley, (1692 [vol. 1], p. 529) que as compara com assassinos de pais e mães” (apud TORPY, 2008, p. 12). Considerando que pobres não têm nem carruagens, nem casas, encontramos aqui uma boa dose de crítica social, porque podemos imaginar como as mesmas pessoas que provavelmente se queixaram sobre estes tipos de crime, estavam usufruindo, eventualmente, do lucro de negócios amorais. Dois anos depois Wesley anotou em seu diário “da abertura” de “dois servos africanos de Mr. Gilbert e um mulato” para o evangelho (17 jan. 1758). O contato levou ao batismo dos dois africanos no dia 29 de novembro do mesmo ano (apud TYRMAN, 1872 [vol. 2], p. 297). Tyrman (p. 299) traz um pouco mais adiante a informação que Natan Gilbert (1722-1774) era um escravagista que “pregava para seus escravos” na ilha Antigua e ter sido “ansioso para a conversão dos pobres negros”. Os servos batizados eram, então provavelmente, escravos da casa, entretanto, não encon- tramos nenhum comentário de Wesley a respeito. O próprio Tyrman não aprofunda o assunto e finaliza em seguida somente com uma descrição da morte de Gilbert segundo o modelo metodista da morte santa.9 Con- cluímos que, em 1758, Wesley acompanhou religiosamente dois servos de um escravagista, durante a sua passagem pela Inglaterra, mantidos, provavelmente, em condição de escravo, sem compartilhar algo além do fato em si. A última vez que Wesley comentou nesta fase a instituição da escravidão foi no seu comentário do Antigo Testamento a respeito da passagem de Êxodo 22.1. Neste caso, Wesley faz10 referência a práxis

8 Dez anos depois citou Bénézet (1766, p. 37-38) o texto na íntegra: “Saindo como piratas e pegar pobres negros, [...] torná-los escravos e vendê-los, é um dos piores tipos de roubo no mundo, e estas pessoas deveriam ser consideradas inimigas comuns da huma- nidade, e quem comprá-los e tratá-los como animais, [...], devem ser mais corretamente chamados demônios do que cristãos. É pecado hediondo de comprá-los, a não ser pela caridade para entregá-los a liberdade.” Cf. também Bénézet (1772, p. 83-84) em que a passagem é repetida. 9 Ao redor de 1765, Natan Gilbert, em contato com Antoine Bénézet e Baker (1984, p. 77), sugere que Gilbert também introduziu os textos e pensamentos de Bénézet a Wesley, talvez por meio do seu irmão Francis Gilbert (1725-1779), um pregador metodista. 10 Baker, (1989, p. 116) menciona o texto como um dos poucos comentários originais de Wesley nas suas Notas explicativas sobre o Antigo Testamento (1765, p. 273).

110 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista inglesa do banimento de condenados para as colônias como exemplo de um tipo de mão de obra em condições desumanas:

Assim, acontece também em alguns casos entre nós: criminosos são trans- portados para as plantações, onde apenas, os ingleses sabem o que é a escravidão. Mas que seja observada, a sentença não é escravidão, mas banimento: nem pode ser vendido inglês qualquer... (WESLEY, 1765, p. 273).

De fato mostra o comentário, em primeiro lugar, que o assunto da escravidão em si continuava ocupando o pensamento de Wesley, sem se referir, neste caso, a escravidão de estrangeiros.

A articulação de uma rede de contestadores Depois das vozes de Baxter e Fox no século 17, eram as primeiras articulações sistemáticas contra a instituição da escravidão no século 18 de fato francesas.11 O início fez Charles-Louis Secondatt (ou de Montes- quieu), em sua obra O espírito das leis (1748). Mais tarde, Wesley tomou conhecimento dessa obra por intermediação de Bénézet: “O famoso Barão Montesquieu compartilha a sua opinião, em seu Espírito das Leis página 348, que nada mais assimila um homem a um animal do que viver entre homens livres, sendo ele mesmo um escravo´” (BÉNÉZET, 1766, p. 31). Em 1772, Bénézet (1772, p. 72-73) citou o autor novamente, e sua con- vicção que a escravidão seja

[...] nem útil para o senhor nem para o escravo; para o escravo por que ele não pode fazer nada através de princípios (ou virtudes), para o senhor por que ele contrai junto ao escravo todo tipo de hábitos mais, e fica insensível [...] de coração endurecido, cheio de paixões vulpiosas e cruéis (BÉNÉZET, 1772, p. 172-173).12 Outra expressão abolicionista francesa eram os enciclopedistas. Escreveu Louis de Jaucourt (1704-1780) no seu verbete “Tráfico de negros”: “Esta compra de negros para reduzi-los a escravidão, é um negócio que viola a religião, a moral, as leis naturais, e todos os direitos da natureza humana” (JAUCOURT apud RÉ, 2009, p. 186)13. Enquanto o quacre Woolman tem o privilégio de ter escritas uma das primeiras obras

11 Assim também Schilling. 12 Para pesquisadores/as latino-americanos/as deve ser interessante que Bénézet (1772, p. 47-51) cita no seu último texto também Las Casas e descreve-o como uma pessoa exemplar e aliada, mas não menciona a questão da interpretação da lei natural. 13 Buck-Morss (2011, 158) menciona ainda os verbetes “Esclavage” [Escravidão] e “Liberté naturelle” [Liberdade natural] do mesmo autor. Especialmente o argumento partindo da ideia de uma natureza humana igualitária ou em comum seria também em Wesley um argumento chave.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 111 na América inglesa em 1753, tornou-se seu irmão da fé Antoine Bénézet (1713-1784) pelas suas obras de 1762, 1766 e 1772 a voz abolicionis- ta americana mais conhecida, lida nos dois lados do atlântico.14 A sua origem - ele era um huguenote francês – explica sua familiaridade com autores como Secondatt. Na Inglaterra dezoitocentista, era Granville Sharp (1735-1813) o ho- mem da primeira hora, depois ter tomado conhecimento em 1765 do caso de Jonathan Strong, um escravo fugitivo. Sharp investigou as respectivas lacunas da lei inglesa e publicou em 1769 a obra Uma representação da injustiça e tendência perigosa de tolerar escravidão, o primeiro tratado inglês atacando a escravidão, fundamentando-se no direito natural como base da igualdade humana. Um ano depois foi lançada também a primeira autobiografia de um africano, Albert Ukawsaw Gronniosaw (1770),15 lida imediatamente por Bénézet (JACKSON, 2009, p. 188). Nesta época, encontra-se a primeira articulação do tema em uma publicação de John Wesley, dirigida não ao povo metodista, como no caso das suas Notas do Novo Testamento, mas à nação inglesa. Trata-se de uma breve passagem nos seus Pensamentos livres sobre a situação atual dos assuntos públicos de 1770 ou 1771:

Rogo a Deus – exclamava – que já não exista isto! Que jamais roubemos e vendamos a nossos irmãos como bestas! Que já não os assassinemos por milhares e dezenas de milhares! Oh! que se tire de nós outros para sempre esta abominação pior que a maometana, pior que pagã! Desde que a In- glaterra é uma nação, nunca houve algo que possa reprová-la tanto como o ter participação neste tráfico detestável... A destruição total e final deste horrível comércio encherá de júbilo a todo aquele que ame a humanidade. 1771 [WESLEY apud CAMARGO, apud SILVA 2008, 143-144]

Em 1772, ano da terceira publicação de Bénézet (1772), Sharp defendeu16 James Somerset, um escravo fugitivo de . O caso foi julgado pelo Conde deMansfield (1705-1793) em 22 de junho de 1772

14 John Woolman (1720-1772), também quacre, era um colaborador importante. 15 Era a primeira de um total de somente cinco autobiografias de africanos publicados em inglês no século 18. Outras famosas são de Sancho (1782) e Olaudah Equiano (1789), o último lido por Wesley antes de escrever a sua última carta para Wilberforce. Outra é de um pregador com descendência africana, “escrita por ele mesmo, durante a sua estadia na Escola de Kingswood”, publicada no Methodist Magazine, na sua edição de março até junho (KING, 1798). A página North American slave narratives conta ainda com 13 biografias de afrodescendentes condenados de atas de tribunais americanos no formato de “dying speeches”. 16 De fato, era uma equipe de cinco advogados, entre eles o depois conhecido Francis Hargrave (1741–1821). Ele escreveu um livro sobre o caso (1774), publicado em Londres e Boston e citado por Wesley nos seus Pensamentos..., 1774, p. 3.

112 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista quem declarou a escravidão no território da Inglaterra ilegítima. Já antes Sharp tinha estabelecido um contanto com Bénézet e eles trocaram entre eles as suas obras. No ano do julgamento de Somerset entra John Wesley com ainda mais força em cena.17 Em fevereiro de 1772, o que coincide com o início do julgamento em 7 de fevereiro de 1772,18 Wesley lê uma obra de Bé- nézet mesmo que existe uma incerteza qual.19 Em 12 e 13 junho 1772, mês do julgamento, Wesley troca cartas com Sharp e Bénézet (cf. CAREY, 2003, p. 274) e em agosto Wesley comenta em seu diário em agosto:

No retorno li uma obra bem diferente, publicado por um quacre honesto, que tratava do execrável resumo de todas as vilanias, comumente chamado o tráfico de escravos. Não tinha lido de nada igual no mundo pagão, seja da antiguidade ou modernidade; e ela excede infinitivamente qualquer instância de barbaria que escravos cristãos já sofreram em países muçulmanos.

Dois anos depois Wesley publicou seus próprios Pensamentos sobre a Escravidão (1774)20 com forte dependência na parte central da obra de Bénézet de 1772 e, pontualmente, das suas obras de 1762 e 1766 e de Sharp (1769).21 O interessante é que Wesley consultou Sharp que enca- minhou para ele a literatura adicional (BAKER, 1984, p. 82). Bénézet, por sua vez, lançou ainda em 1774, a obra de Wesley – com algumas notas oriundas das suas obras – em Filadélfia e informou-o por intermédio de William Dillwyn, posteriormente outro cofundador da sociedade abolicio- nista em 1787 (TYERMAN (1872 [vol. 3], p. 183 e 508).22

17 Anota-se que o caso era tecnicamente parecido aos dois servos batizados por ele em 1758: tratou-se de um servo de casa. 18 Talvez ajudou também seu irmão Charles. Ele cuidou de Mansfield em 1726 em Christ Church. “Mais tarde, quando tinha se tornado o juiz chefe da Inglaterra e Conde de Mansfield, ele renovou a sua amizade com Charles Wesley” (TELFORD, 1900, p. 26). Tornou-se também conselheiro jurídico dos irmãos Wesley quanto à relação entre so- ciedades metodistas e a Igreja da Inglaterra (TELFORD, 1900, p. 273), apesar de que Tyerman (1872 [vol. 3], p. 230) lembra que o resultado não teria sido sempre satisfatório. 19 Tyerman (1872 [vol. 3], p. 114-115) sugere que Wesley teria lido o livro de 1762 de Bé- nézet, Phipps (1981, p. 25) as obras de 1766 ou 1772. 20 Segundo Carey (2003, p. 177), os Pensamentos... era o texto abolicionista mais lido na Inglaterra antes da obra de Ramsay (1784). 21 Baker (1992, p. 362) refere-se a “uma obra caracteristicamente derivativa de uma obra famosa de Antony Benezet”; Reily (1953, p. 16) se refere a mais do que um texto: “Parece que João Wesley tirou algumas ideias dos escritos de Antônio Bénézet”, mas, “algumas ideias”, comentário encontrado em Edwards (1938, p. 64), esconde a dimensão da de- pendência. Torpy (2008, p. 5) vê somente um resumo de Bénézet (1771). Já a abertura (parte 1) e a finalização (parte 5) são unicamente de John Wesley. 22 Segundo o relato da Universidade Brown (BROWN UNIVERSITY, s.a, p. 18), “também circulou amplamente em periódicos americanos como a Providence Gazette”.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 113 Wesley fez então parte da primeira rede inglesa de articu- lação da causa abolicionista, construindo os fundamentos e iniciando a luta.23 Segundo Carey (2003, p. 274), Bénézet mencionou ainda antes do fim do processo de So- merset outra iniciativa envolven- do Wesley e Sharp:

Em 14 de Maio de 1772, Bénézet escreveu a Granville Sharp [...]: “Meu amigo John Wesley promete consultar você sobre a conveniên- cia de alguma publicação semanal sobre a origem, a natureza e os efeitos terríveis do comércio de es- cravos”. Não há nenhuma evidência de que esta coluna de jornal plani- ficada se materializou, mas a partir da evidência desse comentário, pa- rece provável que Wesley e Bénézet terem-se comunicados a partir de Figura 1: John Wesley. Pensamentos sobre a uma data relativamente cedo. escravidão. Filadélfia: 1744. [capa]

De fato, Wesley e Sharp não realizaram a proposta em 1772. Mas, a partir de 1778, Wesley publicaria seu próprio jornal, o Arminian Magazine, onde desde março de 1783, 29 matérias iriam tratar, justamente, “[d]a ori- gem, [d]a natureza e [d]os efeitos terríveis do comércio de escravos”, além de discutir aspectos jurídicos, apresentar iniciativas políticas e descrever atitudes mais nobres entre turcos e muçulmanos.24 A ampla e contínua

23 Um comentário em relação às fontes: enquanto a literatura mais recente como Baker (1970) não menciona mais a relação entre os irmãos Wesley, Clarkson, Sharp, Bénézet e Mansfield - somente Wilberforce (BAKER, 1970, p. 474) – são os biógrafos da era vitoriana como, por exemplo, Tyerman (1872 [vol. 3], p. 114-115, 507) que fazem ainda esta menção sendo eles depois de 1833, ano da abolição, considerados heróis do império britânico. 24 Uma lista comentada com os títulos de todos os artigos e poemas, todas as cartas e outras contribuições publicadas entre 1778 e 1797 neste jornal, foi elaborada por Stephen Gunter (2009). O texto é acessível na internet na página da Universidade Duke, EUA.

114 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista presença de textos abolicionistas no Arminian Magazine é importante por levar a discussão para a população geral da Inglaterra.25 Outro articulador importante que surgiu na época era James Ram- say (1733-1789). Formado como cirurgião e ordenado como sacerdote anglicano em 1762, tinha trabalhado entre escravos na Caribe entre 1762 e 1777. A partir da sua experiência, publicou, em 1784, a obra Um ensaio sobre o tratamento e a conversão de escravos africanos nas colônias bri- tânicas do açúcar. Ao grupo se juntou logo uma nova geração, contando com Thomas Clarkson (1760-1846) e William Wilberforce (1759-1833). Ainda como estudante em Cambridge abraçou Clarkson o desafio de re- fletir sobre a escravidão. Ele leu tudo sobre o assunto, inclusive, os textos de Bénézet, e provavelmente, de Sharp e de Wesley, e seu texto jurídico premiado pela universidade foi publicado como Um ensaio sobre a escra- vidão e o comércio da espécie humana, em particular, os africanos (1786). Wilberforce, amigo e colega de estudo de William Pitt (1759-1806), o futuro primeiro ministro da Grã-Bretanha (1783-1801 e 1804-1806), iniciou em 1782 sua carreira política. Seu contato com o sacerdote anglicano John Henry Newton (1725-1807), anterior capitão de navios que transportaram escravos, o levou a partir de 1785 a uma profunda reorientação da sua vida e motivou, por sua vez, Newton a abraçar a causa abolicionista em público (NEWTON, 1788). Sob influência de Pitt e Newton, Wilberforce não abandonou a carreira política, leu a obra de Ramsay em 1785 e recebeu, em 1786, a obra de Clarkson das mãos do autor.

Da organização dos fundamentos de uma ação política orquestrada até a sua realização Neste instante, a Grã-Bretanha já tinha perdido a guerra com seus colonos nas Américas e um número significativo de africanos, na guerra aliados da monarquia , na esperança da sua liberdade, encontrava-se em Londres. Para eles, Jonas Hanway (1712-1786) fundou o Comitê para o resgate de pobres africanos. O próximo grande passo na luta era, porém, em 22 de maio de 1787, a fundação da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos, composta, inicialmente, por 12 membros, 8 quacres e 3 anglicanos, entre eles Clarkson e Sharp.26

25 O Arminian Magazine é considerado um dos primeiros jornais com ampla aceitação no ambiente popular da Inglaterra (cf. ROGAL, 1984, p. 232). 26 Membros quacres: John Barton (1755-1789); George Harrison (1747-1827); Samuel Hoare Jr. (1751-1825); Joseph Hooper (1732-1789); John Lloyd (1750-1811); Joseph Woods (1738-1812); James Phillips (1745-1799) and Richard Phillips (1756-1836). Membros anglicanos: Thomas Clarkson (1760-1846) e Granville Sharp (1752-1806) e Philipp Sansom. Thomas Funnell não aparece nas primeiras atas, mas parece ter sido também membro dessa sociedade. Segundo Baker (1884, p. 85), o suporte de Sharp e Wesley era fundamental para a sua futura aceitação.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 115 Logo depois, Clarkson escreveu uma carta para John Wesley.27 Tudo indica que o comitê procurou Wesley e que ele imediatamente ofereceu o apoio. Com quatro deles, Hoare, Clarkson, Sharp e Funnell, John Wesley iria corresponder-se ainda em 178728. Todas as cartas representam seu pleno suporte pelo grupo. No dia 24 de fevereiro de 1789, Wesley e Wilberforce se encontram uma única vez, o que leva o metodista ao comentário: “Que benção que senhor P.[itt - o primeiro ministro; o autor] tem um amigo como este.” Três me- ses depois, no dia 12 de maio de 1789, Wilberforce pronuncia- -se pela primeira vez no parla- mento contra o tráfico de escra- vos. Charles Wesley conhecia Wilberforce pessoalmente desde 1786. As circunstâncias são sig- nificativas: o encontro aconteceu na casa de Hannah More (1745- 1833; poeta29), na presença de Figura 2: Emblema da Sociedade a favor da abolição de tráfico com es- Edmund Burke (1729-1797; poe­ cravos, movimento abolicionista, 1787 ta) e Joshuah Reynolds (1723- 1792; pintor) (Cf. TELFORD, 1900, p. 266, 280). A poetisa Hannah More era uma abolicionista convicta, amiga de Wilberforce e autora de um poema sobre a escravidão (MORE, 1788a), publicado por John Wesley ainda no mesmo ano no Arminian Magazine, dividido em duas partes (MORE, 1788b; 1788c). 27 A carta se perdeu, mas foi mencionada na carta de John Wesley para Samuel Hoare (TELFORD, 1960, [vol.8], p. 275 ). 28 18/08/1787: carta para Samuel Hoare (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 275); 08/1787: carta para Thomas Clarkson (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 6-7); 11/10/1787: carta para Granville Sharp (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 17); 24/11/1787: carta para Thomas Funnell (TEL- FORD, 1960, [vol. 8], p. 23). Existe mais uma segunda carta para Granville Sharp, escrita no dia 14 de novembro de 1787 (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 277), mas ela parece não se referir ao tema. Nas atas da Sociedade são mencionadas três cartas de Wesley em 1787 (28 ago, 30 out. e 22 nov.). Tyerman (1872 [vol. 3], p. 508-509) menciona também três cartas, inclusive a carta para Funnell. 29 Hannah era também amiga de Sarah, filha de Charles Wesley. Sua simpatia com os metodistas transparece em sua história curta Shepherd of Salisbury Plain (1790) que descreve a sabedoria e benevolência do pregador metodista David Saunders. Infelizmente, a memória metodista dela se reduz – se ainda tiver – meramente à sua contribuição no movimento da Escola Dominical. Ela não deve ser confundida com a metodista Hannah Ball (1734–1792) que de fato iniciou este novo tipo de ministério.

116 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista Em 1788, Wesley pregou na sociedade metodista contra a escravidão em Bristol. Ele comenta em uma carta o suposto resultado:

Mais ou menos depois da metade do discurso, enquanto todos ainda mostra- ram apesar da hora avançada muita atenção, surgiu de repente um barulho veemente e disparou como um raio através de toda a congregação. Ninguém podia dizer donde vier e o terror e a confusão foram inexprimíveis. Parecia uma cidade tomada pela tempestade. As pessoas caíram uma sobre a outra com extrema violência, os bancos foram quebrados em pedaços e noventa por cento da congregação pareciam ser paralisadas pelo pânico (TELFORD, 1960, p. 359-360).

Carey (2001, p. 278) supõe que Wesley teria aqui de fato descrito “uma conspiração criada pelos traficantes de escravos, ansiosos para interromper uma peça de retórica abolicionista levado ao fundo de seu território.” Isso nos parece bem provável e coincide com a visão de John Wesley que os escravagistas iriam até o limite em defesa do seu negó- cio.30 Houve mais duas cartas, uma de 1790, escrita para Henry Moore, e a última, endereçada para Wilberforce, do dia 24 de fevereiro de 1791, motivada pela leitura (WESLEY, 23 fev. 1791) do relato de Olaudah Equia- no (1745-1797), A interessante história da vida de Olaudah Equiano, ou Gustavo Vassa, o africano (1789)31. No mesmo ano, o quacre William Fox (1791) publicou um panfleto em Londres32 contra a compra de açúcar produzido por escravos e James Wright (1739 - 1811), um negociante quacre de Haverhill, iniciou um boicote de venda de açúcar produzido por escravos. Outros, como o metodista Samuel Bradburn (1792), conti- nuariam a luta, mas, isso já vai além da corte cronológico proposto aqui.

Considerações finais Tentamos mostrar que o envolvimento de John Wesley passou por três fases relativamente distintas e acompanhadas por publicações diferentes: • Primeiro, uma fase em que descrevemos um momento em que ele trabalhou a sua herança familiar e suas próprias experiências, que no fim da década 50, do século 18 tinha duas expressões distintas e ainda não plenamente “reconciliadas entre si”: a rejei- ção clara – como transparece em seu comentário para 1 Timóteo 1.10 (1756) e Êxodo 1.11 ou 21.1 (1765) – e ações paralelas que ainda, aparentemente, não enfrentaram com toda consequência

30 Confira as seis cartas em sua íntegra na seção Declarações e documentos dessa revista. 31 Lady Huntingdon, idealizadora e financiadora do metodismo calvinista, financiou esta primeira edição. 32 Em 1792 houve também uma publicação na Filadélfia.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 107-122, jan./jun. 2013 117 este mal – como se evidencia pelo batismo de dois escravos na Inglaterra sem sua libertação (1758). • Segundo, uma fase na qual se teceu uma rede de contestadores e contestadoras da escravidão, composta por pessoas dos dois lados do Atlântico. Nela destacaram-se, essencialmente, Bénézet, Sharp e Wesley que se correspondiam entre si desde 1772. Sua autoafirmação mútua e elaboração “coletiva” – por troca das suas obras e promoção da sobras dos outros – do discurso abolicionis- ta cumula, quanto Wesley, em seu tratado Pensamentos sobre a escravidão, publicado em 1774 no qual cita justamente as obras de Bénézet e de Sharp. • Uma fase final que nos designamos como orquestração da ação política, que continua envolvendo especialmente Sharp, ainda Wesley – Bénézet já tinha falecido em 1784 – e uma nova gera- ção como Wilberforce, Clarkson, Ramsay e Newton. Com seus 83 anos Wesley não se torna mais sócio ativo da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos, fundada em 1787, ou seja, ele com certeza não “orquestrou” esta ação pública política. Mas seu consenso com este passo fica evidente pela divulgação de um novo meio, o Arminian Magazine (desde 1778). Nele, a partir de 1783 até 1790, se apresenta regularmente um total de 39 textos de cunho abolicionista, descrevendo a realidade do tráfico de escravos e compartilhando exemplos positivos e negativos de pessoas, tanto de senhores de escravos como de escravas ou escravos. Além disso, continuava importante a sua correspondência como meio da mobilização e meio de suporte, aqui, especificamente, para o grupo dos militantes do movimento e fundadores da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos. A mobilização via correspondência se dirigia a seus amigos em seu papel como formadores de opinião e a mobiliza- ção popular passava pelo Arminian Magazine.

Wesley assumiu diversos papéis em relação ao movimento aboli- cionista: o do aprendiz, do colaborador, do pensador, do apologista e do articulador. Pela forma de rede de relacionamentos que a causa abolicionista na Inglaterra mostrou perseverança e inteligência para poder avançar de forma definitiva e irreversível como discurso em busca de ganhar a opinião pública. Esta rede foi composta por duas gerações diferentes e grupos distintos, especialmente, em termos religiosos. Wesley foi uma das pessoas que construiu pontos com e entre os diferentes parceiros. Anota- -se nas suas articulações um tom de valorização e preocupação sincera

118 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista frente aos abolicionistas (comentários sobre Bénézet e Wilberforce no diário, carta para Sharp, Clarkson, Hoare) e uma articulação decidida e desafiadora frente aos escravagistas e as instituições que eles protegem: em verdadeiro espírito ecumênico, isto é, em prol da humanidade.

Referências bibliográficas

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122 Helmut Renders: O envolvimento de John Wesley (1703-1791) na causa abolicionista ARTIGOS

Articles

Artículos

Os povos da terra: abordagem historiográfica de grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo no segundo milênio a.C.: uma apresentação comparativa The peoples of the earth: historiographical approach of social grandeur of the ancient Near-East in the second millennium BC: a comparative study Los pueblos de la tierra: enfoque historiográfico de la grandeza social del antiguo Cercano Oriente en el segundo milenio antes de Cristo: una presentación comparativa

João Batista Ribeiro Santos

Resumo Neste artigo, serão pesquisadas grandezas sociais antigo-orientais com atenção específica às conexões que possibilitam as evidências identitárias, mas também as correspondências da multietnicidade que resultou do processo de relações simbióticas em que estiveram envolvidas, seja em migração e eventuais conflitos, seja em assentamentos e atividades. A nossa hipótese é que desde o princípio emergem multietnicidades; daí o objetivo, portanto, de apresentarmos esses povos fundadores. Palavras-chave: Identidade; processo civilizatório; povos antigo-orientais.

Abstract In this text we research social grandiosity of the ancient-east with specific atten- tion to the connection that make possible identity evidences, but also the multi- -ethnic correspondences that resulted from the process of symbiotic relations in which they were involved, be it from migration and eventual conflicts, or in consent and activities. Our hypothesis is that from the beginning multi-ethnicities emerged; the objective, thus, is to present these founding people. Key-words: Identity; process of civilization; near eastern people.

RESUMEN En este artículo serán investigadas grandezas sociales antiguo orientales con atención específica a las conexiones que posibilitan no sólo las evidencias identitárias, sino también las correspondencias de la multietnicidad que resultó del proceso de relaciones simbióticas en que estuvieron involucradas, sea en migración y eventuales conflictos, o en asentamientos y actividades. Nuestra hi-

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 125 pótesis es que desde el principio emergen multietnicidades; surge de ahí nuestro objetivo, que es el de presentar a esos pueblos fundadores. Palabras clave: identidad; proceso civilizatorio; pueblos antiguo orientales.

Introdução Quem é esse povo? De onde procede? Onde e como se estabeleceu e vive? Estas questões apresentam-se naturalmente quando pesquisamos os povos ancestrais ou um evento mesmo de longa duração. Mas as respostas são sempre buscadas em documentos nos quais a grandeza social ou étnica recebe registro material. Destarte, ainda não dispomos de dados comprobatórios da origem de inúmeros povos eurasianos; ademais, as identidades naturais e as historicamente produzidas para escalonar capacidades humanas tornaram-se indefensáveis. Charles Gates (2011, p. 118-202) demonstrou que várias grandezas só a partir do período ne- oassírio, situado na Idade do Ferro II (c. 900-600), serão identificáveis, e evidências de escavações têm indicado cidades diferentes dominadas em diferentes épocas por povos nomeados apenas pelo grupo predominante, o que vale também para os assentamentos nos altiplanos e nas estepes. Com efeito, os documentos textuais e fontes materiais possibilitam a iden- tificação, mas não dissipam completamente, no âmbito das civilizações antigas, as incertezas. Portanto, não é aceitável afirmar uma origem pura e simplesmente a partir da cor da pele ou do lugar geográfico, submetida a exame subje- tivo e influência político-ideológica; mesmo o tema “identidade”, em suas definições, não pode restringir-se à etnicidade. Nesta pesquisa histórica apresentaremos grandezas sociais do antigo Oriente-Próximo em seu meio ambiente, caracterizadas pelas interações sociopolíticas, pois a existência é associada às relações. Sob o método comparativo, a identificação será problematizada programaticamente em face da história e teologia das tra- dições do antigo Israel, como a dizer que “as entidades, inclusive sociais, existem a partir das relações, não as precedem” (REDE, 2012, p. 146).

Hyksos Os hyksos dominaram o Egito nas XV-XVI dinastias (1730-1530; a partir de 1650 existiu uma dinastia em Tebas), cujos reis foram Salitis, Yakub-Har, Khyan, Apopi I e Apopi II (GRIMAL, 2012, p. 480), que ao final já convivem sem choques com os egípcios. Na XVIII dinastia, em cerca de 1542-1526, governaram dois reis hyksos, Aazehre e Apofis III (GRIMAL, 2012, p. 211). Há muito tempo tem-se relacionado a tomada do poder dos hyksos em parte do Egito à época de José, antepassado ancestral israelita que, segundo o relato bíblico no livro do Gênesis, foi proeminente na administração egípcia. A subida do novo rei ao poder no Egito que não conhecia José, corresponderia ao reino dos hyksos

126 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra (designados pelos egípcios como os “asiáticos”) ou “um rei estrangeiro”, sobre uma parte do delta do Nilo durante a XV dinastia, rivalizando com as XVI e XVII dinastias dos reinos Médio e Alto (DEVER, 2005, p. 17). Eles chegaram à terra de Kana‘an no século 18. Analisando a documentação arqueológica, Mario Liverani (2009, p. 400) chega à conclusão que os hyksos chegaram ao Egito por meio de uma infiltração – que não chega a ser em massa nem por meios milita- res – com algum conflito. A historiografia tem comumente afirmado que os hyksos chegaram ao delta do Nilo em uma migração do norte ao sul. Instalaram-se no delta do Nilo, aproveitando da fragilidade do poder central da XIII dinastia. Por fim, uma dinastia de origem asiática, em uma coalizão com os “grandes hyksos” da XV dinastia, unifica o norte do Egito, sem conseguir controlar do Delta à faixa siro-palestina. Há inclusive um faraó asiático, denominado Khayan, que dominou “a Núbia e a Anatólia, Creta e a Mesopotâmia” (LIVERANI, 2009, p. 402). Conforme Grimal (2012), a dominação dos hyksos dá-se progressivamente no norte do Egito, partindo de Avaris em direção a Mênfis. A primeira dinastia hyksos foi fundada por Salitis, correspondente à XV de Manethon. Quanto à religião, Grimal (2012, p. 197) afirma que os hyksos “atuam de forma semelhante à po- lítica, instaurando uma religião oficial ‘à egípcia’, em torno de Seth de Avaris, o adversário de Osíris, de quem se limitam a acentuar os carac- teres ‘semitisantes’. É só depois que este será assimilado a Baal-Rechef [Ba‘al-reshef] ou ao deus hitita Teshub”. Eles mantêm ainda atividades cúlticas a ‘Anat e a ‘Ashtoret, deusas canaanitas e fenícias, em meio aos cultos às divindades egípcias. Segundo Gottwald (1986, p. 221-222), o desenvolvimento das cidades-Estado canaanitas sob estruturas feudais1 começa na época dos hyksos e se estende até o final da Idade do Bronze; são eles que introduzem os carros de guerra – carros e cavalos – nos combates, o que levou à invenção dos “declives” e provocaram mudanças sociopolíticas no Levante, como a concentração da população nas cidades fortificadas, o aumento da taxação aos campesinos e o consequente aumento de submetidos à corveia, centralização político-estatal e o aparecimento dos estratos militares e burocratas.

1 As designações territoriais: Gaza é província de Kena‘an, que corresponde à Palestina, Kumidi é província de Ube, que corresponde à Beqa‘ e à zona de Damasco, e Sumur é província de Amurru, que corresponde à costa do Líbano. Quanto ao sistema feudal: sistema desenvolvido entre susserano e vassalo por meio de concessão de terra em troca de serviço; o feudalismo no contexto canaanita distingue-se pela rede de dependências regionais, acelerado pelo desenvolvimento de tecnologias para a guerra e a subordinação dos campesinos aos citadinos. Varga (1978, p. 51, 63) lembra-nos que Friedrich Engels negava a existência de um modo de produção feudal na Ásia antiga e para Karl Marx o feudalismo predominava nas zonas desérticas, onde a mão de obra era abundante e a terra de regadio era de alto custo.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 127 Os hyksos não eram “reis-pastores” ou nômades pastores, mas “soberanos de terras estrangeiras”2 ou “príncipes estrangeiros”; um “povo etnicamente compósito, uma vez que entre os nomes pessoais aparecem elementos semitas, hurritas e indo-europeus”, que migrou para terras medi- terrâneas (Crescente Fértil; faixa siro-palestina) e mesopotâmias (além do rio Tigre). Como lembrou Liverani, os nomes dos “príncipes estrangeiros” são substancialmente semitas (amorritas) “com aquele tanto de elemento hurrita que caracteriza toda a onomástica siro-palestina da época” (LIVERA- NI, 2009, p. 400). Portanto, hyksos é “uma identificação política para aque- les migrantes que conseguiram penetrar no Egito e estabelecer dinastias faraônicas durante um período de marcado declínio político que se seguiu ao Médio Império” (GOTTWALD, 1986, p. 400-401). Estabeleceram-se no Egito, portanto, adotaram a língua egípcia e tiveram como capital Avaris, situada no Tell ed-Daba‘, destruída no Novo Reino, na XVIII dinastia. A destruição de Avaris teria acontecido em cerca de 1530 (DEVER, 2005, p. 23) – considerando o período existencial daquela grandeza socioétnica aproximadamente entre os anos 1730-1530 –, sítio mais tarde totalmente descaracterizado pelas construções empreendidas pelo faraó Ramsés II.

Kena‘anîm/Canaanitas Os canaanitas resistem fortemente à chegada dos escravos libertos do Egito que podem ser designados de “Israel”; algumas narrações re- escritas pelos deuteronomistas justificam esse fato teologicamente, seja como reprimenda moral contra Israel por infidelidade a Yhwh (Jz 2.1-5, 21-22), seja para os canaanitas inserirem Israel nas artes da guerra (Jz 3.1-2) ou para proteção aos israelitas e preocupação ecológica (Dt 7.22; Êx 23.29). Como não houve uma conquista pantribal israelita, e, sim, malogros em expulsar os povos da terra, a tradição salienta a presença atopetada daqueles, que chegara ao Mediterrâneo ocidental, segundo Dever (2005, p. 242), em cerca de 1500.

No passado, a descontinuidade da Idade do Bronze Recente à Idade do Ferro tinha sido explicada com base em uma mudança hipotética ou deslocamento de população: os israelitas deslocados os canaanitas, em parte, os fenícios deslocados os canaanitas em outros lugares; os aramitas deslocados ainda mais, e assim por diante para baixo da linha. Todas essas ideias são agora insustentáveis. Se os fenícios são apenas a continuação da cultura canaanita, com mudanças consideráveis ​​de curso, os israelitas também representam como uma continuação com uma mudança de um tipo mais radical (sobretudo no sistema religioso e social). Como revelado pelas escavações, certamente é verdade que existem apenas diferenças mínimas entre os dois na cultura material, e essas diferenças são mais facilmente explicadas em função de

2 Assim significa “‘hiksos’ de Maneton” (GOTTWALD, 1986, p. 400).

128 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra diferenças na estrutura social, econômica e religiosa dos antigos israelitas (MENDENHALL, 1976, p. 10).

É realmente impossível investigar os canaanitas sem contatar os israelitas, vice-versa, pois na passagem do Bronze Recente para o Ferro I as técnicas de fabricação e a diversidade das formas de cerâmica indicam concomitantemente uma continuidade cultural entre os povos do mar e a aproximação entre “les Israélites primitifs” e os “Cananéens” (DEVER, 2005, p. 135). Não sem as implicações do processo civilizatório, canaa- nita é termo empregado geralmente “para designar a população indígena da terra de Kanaan da Idade do Bronze ao Ferro I. Este nome genérico qualifica os povos semitas ocidentais, instalados nas regiões próximas ao Líbano meridional e o litoral, Israel, a Cisjordânia e a Jordânia” (DEVER, 2005, p. 241-242). De forma restritiva e ideologicamente posicionada, a Bíblia hebraica emprega o termo como qualificativo étnico. Killebrew (2005, p. 94) descreve que Kena‘an e canaanita não indicam “entidade étnica” e que, à luz da evidência arqueológica sobre esses termos constantes em textos do segundo milênio a.C., Kena‘an refere-se ao sul do Levante (a costa fenícia, as terras montanhosas centrais e a Tranjordânia ammonita e moabita) e canaanita é referência à grandeza multiétnica dessa região. Pois bem, não se pode prescindir da intencional ideologia praticada pelos antigos-israelitas, tendo Kana‘an como o inimigo arquetípico, não como uma nação da Palestina; na criação historiográfica pós-exílica, os canaanitas são os vilões, simbolizam a população não-israelita (LEMCHE, 1998, p. 128-129), prevalente na região desde o segundo milênio a.C. A partir do século 12 as identidades começam a se cristalizar.

‘abiru O significado razoável para ‘abiru é “flibusteiro”, originário do oriente do Mediterrâneo antigo. O termo foi cunhado no Egito para definir quem se dedica ao comércio (‘pr.w = “poeira”), multiétnico desde que situados em sua devida dimensão sociopolítica, pois até campesinos livres e reis po- diam receber a mesma denotação de um deles. O mais antigo testemunho do nome consta da lista de prisioneiros do faraó Amenhotep II (PRATO, 2010, p. 55). Para Mendenhall (1976, p. 138-139), o termo é certamente oriundo de dialeto semita ocidental atestado em textos semitas da Meso- potâmia; como palavra suméria, é neologismo do acadiano shaggashu, que teve sua origem em um período pré-histórico no noroeste semita. Os ‘abiru são os inimigos do Egito e, portanto, de todos os reis aliados do faraó no antigo Oriente-Próximo. Documentos de Tell el- -‘Amarna (LIVERANI, 1998), como uma correspondência de Abdi-Kheba de Jerusalém ao faraó, mostram que muitos escravos insurgiam-se contra o senhorio dos “pequenos reis” nas cidades-Estado do Mediter-

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 129 râneo tornando-se ‘abiru; eles eram denominados como “foras da lei”, insubmissos ao controle e às normas exigidas pelo sistema de relações políticas do protetorado egípcio – com base no pagamento de tributos sem reciprocidade –, lutavam pela manutenção de sistemas fundamen- tados nas antigas relações seminômades. Aos ‘abiru da terra de Kana‘an não se deve impingir uma classifica- ção, nem mesmo tendo em vista os documentos de Tell el-‘Amarna. Eles são reconhecidos como taverneiros, cortadores de pedra, carregadores, servidores do templo, mercenários em brigadas de infataria. É nesse contexto sociopolítico egiptualizado, de guerras por expansão para o con- trole territorial e autonomia de uma identidade cultural, sempre à mercê da liberdade concedida restritivamente e da obrigatoriedade de envio de tributos cada vez mais escorchantes, que os ‘abiru aparecem em corveia, como serviçais disponíveis ou mercenários3 contratados pela habilidade e experiência como paramilitares a serviço de uma ou outra cidade-Estado ou, ainda, com maior frequência conforme as correspondências enviadas pelos reis canaanitas ao faraó encontradas em Tell el-‘Amarna, como um grupo de invasores, com armas de infantaria e equipados com cavalos e carros, a serem vencidos. Afora as categorizações, os modelos socioeconômicos do antigo Oriente-Próximo à época não nos permitem fazer uma clara diferencia- ção entre as cidades e as aldeias quanto à forma tribal de organização. Por pesquisas semelhantes, Gottwald (1986, p. 409) considera que os ‘abiru não são apenas “foragidos” ou “refugiados”, mas “proscritos”, aliás, revolucionários proscritos, que compreendem todas as situações vitais e não lhes nega nem a capacidade administrativa nem a capacidade de perceber a ordem política vigente quando dela dependia a sua sobrevi- vência. Gottwald alude ao fato de que os textos de Alalakh da Síria do norte, do século 15, comprovam os ‘abiru assentados em quarenta e três colônias mantidas pelo Estado, com profissionais como sacerdotes e uma espécie de ex-dinasta (hazannu). Não apenas em Alalakh, mas também em Ugarit, conforme constatação de Thiel (1993, p. 45), os ‘abiru acolhiam escravos fugitivos e eram encontrados entre os servidores do rei, sendo contemplados com cotas de azeite.

Mas os habiru em sua maior parte são pessoas de baixo nível social, marginalizados mais por motivos econômicos que políticos, e que encon- tram refúgio ou em estados confins (textos de Nuzi, do século XV) ou nos ambientes marginais, onde muitas vezes se solidarizam com os nômades (Suteus) ou para servir como tropas mercenárias ou para se entregar ao

3 Dever (2005, p. 201) afirma que eles são “mercenaires sans solde” [mercenários sem salário].

130 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra banditismo (cf. LA 210 e 271). Essas atividades “de interface” com o setor palatino pressupõem que uma simbiose entre habiru e nômades é praticada também (e mais ainda) no âmbito da vida normal (LIVERANI, 2008, p. 54-55).

Assim os ‘abiru são descritos nos documentos amarnianos. Por eles tem-se o contexto das sublevações e espoliações de lados colidentes que não raro prenunciavam o caos, propiciando a união entre os campesinos à beira da corveia e os fugitivos. Os protestos de campesinos, por exem- plo, de Biblos no século 14 a.C. (LIVERANI, 1998), ilustram os problemas de sobrevivência que desencadeavam levantes antipalatinos liderados por grupos armados de ‘abiru em ações contra os reis locais, os quais, temendo perdas no enfrentamento, pedem socorro ao faraó. O fato de serem antropologicamente qualificados de “bandidos sociais” não significa que todos os ‘abiru fossem apátridas. Muitas grandezas sociais sob essa qualificação controlaram cidades por longos períodos no Bronze Recente aproveitando, provavelmente, das intrigas envolvendo os reis das cidades- -Estado (LIVERANI, 1998; DEVER, 2005, p. 189), como a descrita ao faraó em correspondência de Zatatna, de ‘Akkô na Palestina setentrional.

Pelishtîm As origens dos pelishtîm ainda não são totalmente conhecidas. Men- denhall (1976, p. 142) sugere que o nome provém de uma divindade, meter plastene, da Anatólia ocidental. Ao longo de um século pesquisa- dores têm investigado quatro hipóteses para as origens e cronologia dos filistitas. Não é-nos possível aqui citar as hipóteses, mas remetemos o leitor a Killebrew (2005, p. 230-231) que é quem melhor as descreve. Killebrew entende que as origens dos filistitas estão em Chipre e seus entornos, enquanto Assaf Yasur-Landau (2010, p. 328-329), consideran- do as dificuldades em estabelecer a origem da migração ocorrida com a participação de um grande número de povos da Anatólia e do Chipre e a complexa pintura dos objetos de cerâmica que podem ter origem na Filístia (Peleshet, a costa mediterrânea, abaixo de Yafô’/Jaffa, onde o Egito mantinha uma das suas maiores guarnições no Mediterrâneo), no Chipre e na Cilícia, afirma que ao se dirigirem ao Mediterrâneo os filistitas partem do Chipre e da Cilícia. Testemunhos materiais têm comprovado que em ‘Ashdôd e ‘Eqrôn/Tel Miqne os assentamentos urbanos são caracterizados pelo “estilo-egeu” de cultura, distinção não evidente nos outros sítios da terra de Kana‘an. No Mediterrâneo, segundo Killebrew (2005, p. 207), os filistitas estabeleceram-se entre o sul da costa e a vizinha Shefelah, onde se encontram as mais densas áreas assentadas. Quanto à cronologia, igual- mente não há um consenso, a não ser o que tem-se designado como cronologias (KILLEBREW, 2005, p. 232): “alta” ou teoria das “duas-ondas”,

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 131 com os filistitas imiscuído com os povos do mar assentados no sul da terra de Kana‘an antes de Ramsés III, sendo expulsos no oitavo ano da- quele faraó; a cronologia “média” situa o aparecimento dos filistitas em Peleshet no oitavo ano de Ramsés III, em cerca de 1175, época em que eles constroem os seus centros urbanos; a cronologia “baixa”, ainda em fase de discussões não resolvidas, com base nos objetos de cerâmica micênicos IIIC:1b, aparecidos somente após o reinado de Ramsés III; a descoberta dos utensílios bicromáticos de cerca de 1140, tem situado o aparecimento dos filistitas após o reinado de Ramsés III. A data inicial do assentamento dos filistitas definidamente como grandeza socioétnica pode ser debatida em duas cronologias (YASUR-LANDAU, 2010, p. 315-316): a primeira, que tem como um dos maiores defensores Amihai Mazar, situa- -os no oitavo ano de Ramsés III, em cerca de 1175; a segunda datação alternativa, que tem como maior defensor Israel Finkelstein, divulga que os assentamentos só começaram após o colapso do Bronze Recente, em Bêt She’an, Lakîsh e Megiddô, nos últimos dias de Ramsés III e na época do reinado de Ramsés IV. Yasur-Landau atribui a divergência ao conflito envolvendo a datação da primeira fase do assentamento egeu em Peleshet, mormente ao diz respeito ao ainda não devidamente comprova- do começo do assentamento e suas consequências. Aqui, Yasur-Landau (2010, p. 320) posiciona-se assumindo que o começo dos assentamentos na terra de Kana‘an ocorreu em 1175 e a chegada dos últimos grupos em Peleshet, em cerca de 1100. Dialogando com abordagem de Dever (2005, p. 78), é possível afirmar que a cultura material dos filistitas – “os planos de urbanização, o estilo dos edifícios, os tipos de túmulos, os utensílios de cerâmica, a metalurgia, os objetos cúlticos e as preferências alimentares”, inclusive a formação identitária dos antigos israelitas estabelecidos ao longo do rio Jordão, acrescentamos – nos permite identificá-los como responsáveis pela fase de destruição das rotas comerciais e de cidades cujos governantes eram aliados do faraó, mas também, posteriormente, pelas novas construções na costa mediterrânea. Os filistitas estabeleceram-se finalmente no litoral central e meridional.

Sha’su Os sha’su (“saqueadores”) são localizados inicialmente no delta do Nilo, depois na região siro-palestina. A estela de Memphis e Karnak do faraó Amenhotep II, filho de Thutmosis III, anais de duas campanhas militares no Levante, especificamente na Síria-Palestina, empreendidas nos anos 7 e 9 do seu reinado (1421-1419), menciona ao lado dos 3.600 chefes ‘abiru e 36.000 sírios, dentre outros capturados 15.200 sha’su vivos; ao traduzir e comentar excertos desses anais, James K. Hoffmeier

132 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra (apud HALLO; YOUNGER, 2000, p. 19-22) afirma que sha’su é “um termo genérico usado pelos egípcios para os habitantes do deserto, beduíno”. “Beduíno”, espécie de pastor nômade das estepes, não nos parece ser o termo mais adequado para essa parcela significativa dos esta- mentos não integrados ao sistema das cidades-Estado. Em pesquisa historiográfica, Prato (2010, p. 58) os enquadra acertadamente como uma das grandezas que criam problemas para o faraó egípcio e quanto à geografia afirma que “segundo as fontes, eles estão localizados no nordeste do Sinai, em Seir, na Transjordânia, e, finalmente, em algumas partes do território situado a norte da Palestina, como, por exemplo, a Beqa setentrional e Qadesh no sul do Orontes”; só que Prato depreende da localização geográfica que os sha’su correspondem aos sutu, nômades dos documentos amarnianos e dos textos acadianos. Talvez Prato, que fornece apenas dados sobre três grandezas mediterrâneas, desconheça que no Bronze Recente os nômades sha’su e os sedentários edomitas tenham ocupado a terra de Mô’ab e que, durante a transição do Bronze Recente para o Ferro I, os nômades sutu tenham se infiltrado na mesma região (KILLEBREW, 2005, p. 190-191, n. 53). Ao contrário de Prato, Gottwald (1986, p. 483) refere-se aos sutu como “um povo militarizado” identificado como beduíno sírio. A estela do faraó Merenptah (HALLO; YOUNGER, 2000; RAINEY, 2001; KITCHEN, 2003; LURSON, 2003) não cita os sha’su – a maioria dos pesquisadores da estela afirma que “Israel” é representativo dos sha’su –, mas diversos textos de Tell el-‘Amarna (LIVERANI, 1998) os citam como nômades sírios (su-tú-u/su-u-tù) em tropas armadas ao lado de ‘abiru e capturados, acusados de assassinarem vários sherdanu4. O texto do Boletim – “A batalha de Qadesh” –, que começa felicitando o faraó Ramsés II por sua “segunda campanha vitoriosa” na Síria e desejando “vida, prosperidade e saúde, na tenda de sua majestade, no cume sul de Qadesh”, narra a rendição de dois sha’su e o seu interrogatório enviado ao faraó após a queda do reino de Khattî, os sha’su são identificados como chefes tribais hititas que desejam ser servos do faraó (Kitchen, apud HALLO; YOUNGER, 2000, p. 38-39). No documento egípcio Papiro Anas- tasi I (HALLO; YOUNGER, 2002, p. 9-14) há uma referência do perigo de transitar em rotas onde se encontram os sha’su: eles ficam “escondidos sob os arbustos. Alguns deles medem 4 ou 5 côvados (entre 2,7 m. e 3,5 m.), nariz de pé, com os rostos selvagens. Seus pensamentos não são bonitos, eles não escutam a persuasão em tocaia”.

4 Os sherdanu são da Anatólia ocidental; como grandeza socioétnica, Shardana é reco- nhecida como um dos povos do mar.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 133 ‘amaleqîm A importância dos amaleqitas (‘amaleqîm) fundamenta-se no fato de eles terem sido uma grandeza nômade. São nômades do Negev (LIVE- RANI, 2008, p. 71, 125), região ao sul do Mediterrâneo entre a costa e o mar Morto, mais precisamente no Higiaz setentrional, região da ‘Arabah cuja cidade de referência é Be’er-sheba‘. Eles controlavam as trilhas leste- -oeste das caravanas de camelos, entre Edom e Gaza, longo trecho de grandes conflitos. Em narrações anacrônicas dos assentamentos israelitas no Mediterrâneo, diz-se que na Transjordânia os refa’îm e ’emorîm são eliminados5 e no Negev destrói-se os “Gigantes”, mas não os pelishtîm e ‘amaleqîm;6 afora o problema de historicidade, reconhece-se que os an- tigos seminômades permaneceram na terra e Êxodo 17.8-16 os descreve como inimigos de Israel. Testemunhos materiais têm comprovado que o vale de Be’er-sheba‘ foi ocupado no século XIII a.C., sendo Tel Masos o principal sítio (KILLE- BREW, 2005, p. 170). Killebrew afirma que no Ferro I nesse mesmo sítio ocorreu uma simbiose étnica entre amaleqitas e israelitas. Mas entende- mos que os mapas dos assentamentos e a localização das grandezas mencionadas no Hino da vitória de Merenptah, Cairo e Karnak (MAZAR, 2003) permitem-nos retroagir a simbiose étnica para a Idade do Bronze Recente, ironicamente acentuando abordagem de Killebrew (2005, p. 184) em que alude à complexidade da multietnicidade dos israelitas no Bronze Recente, envolvendo dentre tantas grandezas sociais e socioétnicas os amaleqitas. Tudo isso é corroborado pelos relatórios de pesquisas arque- ológicas sobre os nômades trasumantes como estamentos antigo-orientais anteriores e coetâneos aos israelitas – “como possíveis elementos nôma- des pastoris no meio de Israel” (GOTTWALD, 1986, p. 241).

Considerações finais No caso de praticarmos o conceito de identificação (e mais restriti- vamente “etnia”) caracterizado pela particularidade dos mitos, memórias, valores e símbolos na composição das experiências culturais, seja por concepções substancialistas, seja por concepções subjetivistas, aportare- mos em impasses (CARDOSO, 2005); tendia-se a restringir as interações e conexões materiais na construção da herança imaterial da vida semi- nomádica e citadina. Por isso, na identificação dos grupos populacionais foram incorporados recentemente o gênero, a época, religião e os estados social, econômico e cultural, posto não ser resultado de patriarcado, vi- zinhança ou comunidade, nem tampouco processo de um povo unívoco (KNAPP; DOMMELEN, 2010).

5 Cf. Números 21.21-35; Deuteronômio 3.1-17. 6 Josué 11.21-23.

134 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra Neste caso, é preciso atentar aos contextos relacionais das práticas cotidianas e à transformação gradual do povo e da sociedade – onde nem mesmo a economia é um fator determinante –, pois a identidade não é estática mas em fluxo (LUCY, 2005, p. 100-101; BABIĆ, 2005, p. 75; CARDOSO, 2005, p. 92). No caso das grandezas sociais fundadoras, os processos de longa distância, prolongadas migrações, práticas simbi- óticas e hibridização são cruciais (KNAPP; DOMMELEN, 2010, p. 1), e para a Antiguidade clássica em diante acrescentaríamos as colonizações e contingentes populacionais transpostos. Em adição, procurou-se apresentar as grandezas sociais fundadoras das etnias que serão cristalizadas na ampla geografia das civilizações na Idade do Ferro II. Nosso objetivo foi historicizar as interações e transições que antecederam as linhagens de parentesco com amplas ramificações continentais, por si só capazes de promover a cautela nos casos de de- finição identitária.

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Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 125-136, jan./jun. 2013 135 KILLEBREW, Ann E. Biblical peoples and ethnicity: an archaeological study of egyptians, canaanites, philistines, and early Israel 1300-1100 BCE. Atlanta, GA: Society of Biblical Literature Archaeology and Biblical Studies, 2005. KITCHEN, Kenneth Anderson. Ramesside inscriptions. Vol. IV. Historical and bio- graphical: Merenptah and the late nineteeth dinasty. Oxford: Wiley-Blackwell, 2003. KNAPP, A. Bernard; DOMMELEN, Peter van. Material connections: mobility, mate- riality and Mediterranean identities. In: DOMMELEN, Peter van; KNAPP, A. Bernard (eds.). Material connections in the ancient Mediterranean: mobility, materiality and identity. London; New York: Routledge, 2010. p. 1-18. LEMCHE, Niels Peter. The israelites in history and tradition. Louisville, KY: West- minster John Knox Press, 1998. LIVERANI, Mario (cura). Le lettere di el-Amarna. Vol. 1. Le lettere dei “Piccoli Re”. Brescia: Paideia Editrice, 1998. LIVERANI, Mario (cura). Le lettere di el-Amarna. Vol. 2. Le lettere dei “Grandi Re”. Brescia: Paideia Editrice, 1999. LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Pau- lus; Loyola, 2008. LIVERANI, Mario. Antico Oriente: storia, società, economia. 8. ed. Roma; Bari: Editori Laterza, 2009. LUCY, Sam. Ethnic and cultural identities. In: DÍAZ-ANDREU, Margarita et al. The archaeology of identity: approaches to gender, age, status, ethnicity and religion. London; New York: Routledge, 2005. p. 86-109. LURSON, Benoît. Israël sous Merenptah ou le sort de l’ennemi dans l’Égypte ancienne. Théolarge 3, p. 45-62, 2003. MAZAR, Amihai. Arqueologia na terra da Bíblia: 10000-586 a.C. São Paulo: Pau- linas, 2003. MENDENHALL, George E. The tenth generation: the origins of the biblical tradition. Baltimore; London: The Johns Hopkins University Press, 1976. PRATO, Gian Luigi. Identità e memoria nell’Israel antico: storiografia e confronto culturale negli scritti biblici e giudaici. Brescia: Paideia Editrici, 2010. RAINEY, Anson F. Israel in Merenptah’s inscription and reliefs. Israel Exploration Journal, v. 51, n. 1, p. 57-75, 2001. REDE, Marcelo. História e cultura material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIN- FAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 133-150. THIEL, Winfried. A sociedade de Israel na época pré-estatal. São Leopoldo; São Paulo: Sinodal; Paulinas, 1993. VARGA, Eugênio. O modo de produção asiático. In: GEBRAN, Philomena (coord. e trad.). Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 47-71. YASUR-LANDAU, Assaf. The philistines and Aegean migration at the end of the Late Bronze Age. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

136 João Batista Ribeiro Santos: Os povos da terra Comunicação, ecumenismo e cidadania: uma agência latino-ameri- cana e suas práticas comunicacionais Communication, Ecumenism and citizenship: a Latin- American Agency and its communicational praxis Comunicación, ecumenismo e ciudadanía: una agencia latino americana e sus prácticas comunicaciones

Hideíde Brito Torres

Resumo Este artigo tem por objetivo examinar a trajetória da ALC, uma agência de comu- nicação ligada a organismos ecumênicos na América Latina e Caribe, analisando os postulados constantes em sua missão (disponíveis em documentos da agência e em seu website) e suas práticas comunicativas. Considera-se o processo pro- dutivo das informações por meio da presença de jornalistas, líderes religiosos e comunitários e grande base voluntária como um diferencial significativo em uma atuação que pretende abarcar a diversidade social, cultural e religiosa da América Latina e Caribe. Esse processo assim constituído torna-se uma possibilidade de riqueza, conteúdos e relevância para a pesquisa acadêmica. Enseja-se ressaltar o espaço de comunicação dialógica, educadora e de resistência que a agência pode ocupar, a partir de uma vertente religiosa e ecumênica. Destaca-se a im- portância dos processos comunicacionais participativos na construção prática e vivencial dos conceitos de cidadania, ecumenismo e desenvolvimento humano. Palavras-chave: Agência de comunicação; comunicação comunitária; ecume- nismo; acesso à informação; práticas comunicativas.

Abstract This article aims to examine the trajectory of ALC, a communications agency linked to ecumenical organizations in Latin America and the Caribbean, analyzing the assumptions contained in its mission (available in agency documents and on their website) and its communicative practices. We consider the production pro- cess of information through the presence of journalists, religious and community leaders and large voluntary basis as a significant differentiator in a performance that aims to encompass the social, cultural and religious diversity of Latin America and the Caribbean. This process thus formed becomes a possibility of wealth, content and relevance to academic research. Gives rise to emphasize the space of dialogic, educative and resistance communication that the agency may take, from a religious and ecumenical aspects. We highlight the importance of partici- patory communication processes in building practical and experiential concepts of citizenship, ecumenism and human development. Keywords: Communication agency; community communication; ecumenism; access to information; communicative practices.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 137 RESUMEN Este artículo tiene por objetivo examinar la trayectoria de la ALC, una agencia de comunicación ligada a organismos ecuménicos de América Latina y el Caribe, analizando los postulados constantes en su misión (disponibles en documentos de la agencia y en su página de internet) y sus prácticas comunicativas. Se considera al proceso productivo de las informaciones por medio de la presencia de periodistas, líderes religiosos y comunitarios y amplia base de voluntarios, una marca distintiva importante en una actuación que pretende abarcar la diver- sidad social, cultural y religiosa de América Latina y el Caribe. Ese proceso así constituido se convierte en una posibilidad de riqueza, contenidos y relevancia para la investigación académica. Se intenta resaltar el espacio de comunicación dialógica, educadora y de resistencia que la agencia puede ocupar, a partir de una vertiente religiosa y ecuménica. Se destaca la importancia de los procesos comunicacionales participativos en la construcción práctica y vivencial de los conceptos de ciudadanía, ecumenismo y desenvolvimiento humano. Palabras clave: Agencia de comunicación; comunicación comunitaria; ecume- nismo; acceso a la información; prácticas comunicativas.

Introdução Segundo nos informa o seu website (www.alcnoticias.net), a “Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC) foi constituída em Quito, Equador, em maio de 1994. Ela iniciou as atividades jornalísticas em março de 19951”. É formada por um consórcio entre algumas organi- zações que a sustentam: Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI); Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina e do Caribe (CIEMAL); Aliança de Igrejas Presbiterianas e Reformadas da América Latina (AIPRAL); Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC - Região América Latina); Centro Regional Ecumênico de Assessoria e Serviços (CREAS) e o Fórum Luterano de Comunicadores (FLC). Atualmente, seu diretor executivo reside na cidade de Buenos Ai- res2 e a Igreja Evangélica do Rio da Prata a acolhe juridicamente, para estar ajustada às leis do país. Há um processo, ainda em andamento, para que a ALC seja transferida para Quito, no Equador, junto ao CLAI, visando à facilitação de seus trabalhos. Embora sejam apenas questões de organização interna quanto a aspectos jurídicos e contábeis para seu adequado funcionamento, algumas dessas mudanças afetaram no pas- sado e ainda afetam a prática da agência, dada a dificuldade de trânsito ainda própria de alguns países no que tange à liberdade de imprensa e de expressão, bem como as duras realidades econômicas, sociais e políticas da América Latina. Este artigo tem por objetivo examinar a trajetória da ALC, analisando os postulados constantes em sua missão (disponíveis em documentos da agência e em seu website) e suas práticas comunicativas. Enseja-se res-

1 Um documento recentemente descoberto nos arquivos da ALC joga a data de início para 1992, numa reunião que ocorreu em Porto Alegre. O documento ainda precisa ser incorporado ao site. 2 Até o momento de redação deste artigo, era assim, mas está-se em fase de escolha de um novo diretor ou diretora.

138 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania saltar o espaço de comunicação dialógica, educadora e de resistência que a agência pode ocupar, a partir de uma vertente religiosa e ecumênica. Destacamos a importância dos processos comunicacionais participativos na construção prática e vivencial dos conceitos de cidadania, ecumenismo e desenvolvimento humano.

ALC: uma estrutura participativa Em termos administrativos, a agência é regida por uma assembleia geral, da qual participam dois representantes de cada entidade associa- da que estiver na qualidade de sócio ativo. Nessa assembleia, além das decisões pertinentes, é eleita uma Junta Diretiva, por um mandato de um biênio, composta por um representante de cada sócio ativo, isto é, cum- prindo os deveres instituídos no estatuto da agência, os quais incluem o investimento financeiro para sua manutenção e desenvolvimento. A junta diretiva atua no interregno das assembleias e é composta por uma presidência, vice-presidência, tesouraria, secretaria e vogais, em número de dois. A estrutura da ALC conta ainda com um diretor executivo, três editores (português, espanhol e inglês) e dois correspondentes de áreas (Norte do Brasil e Mesoamérica/Caribe). Os editores são responsá- veis pela recepção, seleção e edição de notícias, as quais são publicadas nos três idiomas citados. Há uma gama de colaboradores em toda a América Latina, que re- portam as informações a esses diretores, diariamente. O portal de notícias é atualizado diariamente para notícias e quinzenalmente para colunistas e entrevistas (atualmente, encontra-se desativado e em fase de transição devido a problemas de servidores, mas as atualizações são feitas na página da agência no Facebook). As pessoas podem inscrever-se para receber as notícias diárias ou boletins resumidos semanais. Em assem- bleia realizada em março de 2012, na cidade de Buenos Aires, Argentina, o diretor da ALC forneceu os dados contabilizados do ano de 2011, quanto à divulgação de notícias no portal. Os resultados assim apareceram (ALC, 2012, informe interno, documento em espanhol): Cantidad de producción editorial, sumando los objetivos específicos 1 y 2: Productos Español Portugués Inglés Noticias publicadas 701 676 384 Columnas publicadas 78 29 46 Entrevistas publicadas 17 7 34 Noticias de Iglesias e instituciones publicadas 119 15 71 De la sociedad al púlpito, agenda y otros 27 6 29 Total de productos publicados 942 733 566 Noticias y columnas del Plan Operativo, metas de 1.1. 1300 1000 700 más 1.2. Total de productos publicados en 2010 (como referencia) 1275 907 578

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 139 A Assembleia Geral e a Junta Diretiva buscam constituir diretrizes quanto à qualidade, relevância e profundidade das informações, sempre numa perspectiva ecumênica. Além disso, pela quantidade de informa- ções, algumas não disponíveis em outros meios, por não se tratar da grande imprensa, pode se tornar uma boa fonte para pesquisadores. O site sofreu uma mudança de hospedagem em 2002, o que acarretou uma perda substancial de informações. Ainda assim, o volume é relevante, como mostra a tabela a seguir:

Base de datos: Cantidad de productos acumulados desde 2002 (la producción an- terior a 2002 se perdió al migrarse la base de datos del sitio anterior al sitio web renovado en marzo de 2008)

Tipo de producto Español Portugués Inglés Total por tipo Noticias 7.753 7.432 2.285 17.470 Columnas 808 240 176 1.224 Entrevistas 111 55 88 254 De iglesias e instituciones 830 53 311 1.194 De la sociedad al púlpito y otros 228 100 73 401 Total por idioma 9.730 7.880 2.933 20.543

Conforme o informe da ALC, em 31 de dezembro de 2011, eram 2.217 assinantes do correio eletrônico em espanhol, 944 em português e 424 em inglês, totalizando 3.585 pessoas a receberem boletins diários ou semanais. Em termos de visitas ao portal, elas saltaram de cerca de 25 mil em janeiro para 38.245 em dezembro, dando uma dimen- são do crescimento tanto do conhecimento quanto da divulgação dos conteúdos da ALC. Infelizmente, não é possível monitorar o quanto de conteúdo oriundo da ALC está hoje disponibilizado em outros sites, seja pela falta de uma ferramenta adequada a momento, seja porque nem todos os locais reportam adequadamente a origem da informação que disponibilizam. Além da junta diretiva, do diretor e dos editores, a agência conta com colaboradores e colunistas voluntários, que atuam regularmente, num total de quinze pessoas de 12 países: Brasil, Chile, Cuba (2), El Salvador, Estados Unidos (2), Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Peru (2), República Dominicana e Suíça. Os correspondentes voluntários com colaborações esporádicas totalizam 30 pessoas, de 14 países: Ar- gentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Porto Rico, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

140 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania A missão da ALC, conforme seus documentos e a prática comunicativa Em sua missão, que aparece de modo destacado em seu website e outros documentos, a ALC se propõe a “oferecer informações e análises aos meios de comunicação religiosos e seculares sobre a realidade so- cioeclesial, de desenvolvimento e direitos humanos na América Latina e outras regiões do mundo”. Nesse sentido, muitos de seus conteúdos não se dirigem diretamente a um leitor final, mas aos canais de formação de opinião, no intento de dar-lhes subsídios para construir uma comunicação mais sólida, fundamentada e com olhares diferenciados sobre uma série de fenômenos sociais, econômicos, culturais e religiosos que as matérias pretendem abarcar. São informações para serem reproduzidas e replica- das de modo a ampliar seu alcance, buscando angulações distintas do que se pode encontrar na chamada grande imprensa acerca de diversos tópicos ligados a realidades locais de países nem sempre bem cobertos por esses grandes canais de comunicação. Ao definir comunicação comunitária, Paiva afirma que “o que per- mite conceituar um veículo como comunitário não é sua capacidade de prestação de serviço, mas sim sua proposta social, seu objetivo claro de mobilização vinculado ao exercício da cidadania” (PAIVA, 2003, p. 140). A agência tenta desempenhar este papel a partir de uma proposta que se pretende, de fato, mobilizadora. Ao disponibilizar não apenas notícias no portal, mas também entrevistas, reflexões e opiniões, a agência intenta fomentar o conhecimento, prover e discutir análises sobre diversos temas, intercambiar ideias e pontos de vista que permitam a mobilização, além de dar visibilidade aos sujeitos muitas vezes ocultados pelas chamadas mass media, dando-lhes voz. No contexto latino-americano e religioso, particularmente cristão, a ALC dá certa consistência, com seu trabalho, ao conceito de comunidade, em sua particularidade religiosa, mas não apenas nela, uma vez que sua atividade

[...] interliga, atualiza e organiza a comunidade, e realiza os fins a que se propõe... é elaborada por membros de uma comunidade que procuram através dela obter mais força política, melhor poder de barganha, mais im- pacto social, não para alguns interesses particularizados [...] mas para toda a comunidade que esteja operando o veículo (MARCONDES FILHO apud PAIVA, 2003, p. 136).

De igual modo, o tipo de comunicação desenvolvido pela ALC pre- tende “ser um espaço de diálogo sobre temas socioeclesiais e para o intercâmbio de experiências” (Missão da ALC, conforme seu website). A agência procura desenvolver essa sua missão fornecendo informações,

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 141 provendo entrevistas e diálogos e, eventualmente, realizando e apoiando encontros de capacitação de comunicadores em toda a América Latina, de modo autônomo ou apoiada por outras agências, pelas entidades que a sustentam ou em parcerias que lhe permitam desenvolver sua voca- ção comunicacional. A partir das entidades que lhe dão suporte, acessa uma diversidade cultural, econômica e religiosa de um grande número de igrejas locais, pastores e líderes comunitários. Tal diversidade apare- ce refletida tanto no teor quanto nos assuntos abordados nas notícias, resenhas e colunas. A agência se esforça por apoiar, por meio da divulgação e de ações de repercussão, os esforços de desenvolvimento humano, cultural e so- cial em toda a América Latina, por meio de seus voluntários, trazendo, por exemplo, visibilidade às iniciativas locais, permitindo, inclusive, que tal visibilidade proporcione condições para a obtenção de recursos que, apenas localmente, não seriam possíveis de serem abarcados. Forma- -se, assim, uma rede comunicacional que interliga a diversidade latino- -americana e caribenha, na qual é possível uma comunicação dialógica, ainda que limitada por diversos aspectos técnicos, econômicos e da própria contingência de cada país, como veremos adiante. Ademais, mesclam-se, entre os colaboradores, aquelas pessoas cuja formação é jornalística, profissional e aqueles outros comunicadores, tais como líderes comunitários, pastores, pastoras, bispos e episcopisas, inte- grantes de associações e outros. É desta mescla de saberes que emerge o conteúdo encontrado no site e repercutido em diversas agências, boletins de igrejas locais, programas de rádio e de televisão, inclusive. Eventualmente, o diretor reporta à Junta Diretiva informações de rincões distantes na América Latina que recriam os conteúdos e os redi- mensionam à sua esfera local, gerando uma nova riqueza. Exemplo disso é o site www.comunicadoressemfronteiras.com.br, que produziu em 2010- 2011 os conteúdos da ALC sob o formato mp3, para distribuição em 12 rádios brasileiras e ofereceu à agência que, com sua permissão, poderia ampliar essa distribuição a outras rádios. Essa dimensão inter e multicomunicacional permite que, no espaço do site, sejam apresentados temas polêmicos na sociedade, sob o ponto de vista das diferentes igrejas e associações de cunho ecumênico, como aborto, drogas, violência contra a mulher, direitos das minorias sociais, questões políticas, entre outros. Como parte de sua tarefa comunicacional, a ALC se propõe também a “proporcionar informações às lideranças eclesiásticas e aos ministérios cristãos para o melhor cumprimento do seu trabalho pastoral, fortalecer sua influência e impacto na sociedade”. Ao repercutir as notícias, divulgar iniciativas locais e promover o diálogo e o intercâmbio, a ALC intenciona

142 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania ser não uma agência de notícias, meramente informativa, mas de comuni- cação, ligando os pontos entre os líderes da América Latina e permitindo que eles possam dialogar diretamente entre si, funcionando como ponte. Nesta tarefa dialógica, as informações visam gerar nesses líderes as condições de ação e reflexão que possibilitem alavancar seus ministérios e dar-lhes relevância, a partir da vivência religiosa, numa sociedade de múltiplas realidades, discussões e demandas. Nesse ambiente, apenas informar não basta, pois isso não gera, necessariamente, mobilização. Por isso, ao colocar a possibilidade de, num mesmo portal, pessoas que falam inglês, português e espanhol passem de uma realidade de babel a uma de pentecostes, para citar o texto bíblico. Apesar das línguas diferentes, elas entendem-se, comunicam-se, mudando a si mesmas e ao mundo ao seu redor, adquirindo e transmitindo conhecimento por meio do diálogo. De alguma forma, também é interessante observar um fenômeno comunicacional que merece análise em momento oportuno: é perceber que, nos meios religiosos, existe uma discussão subjacente, de oposição ao ecumenismo, por uma parcela tanto dos cristãos evangélicos quanto católicos. Contudo, ainda assim, diversas matérias e discussões presen- tes no website da ALC repercutem e são divulgados também em sites de pessoas e igrejas não alinhadas com essa perspectiva, fazendo per- ceber que as questões que inquietam na atualidade vão além das linhas teológicas quando se trata de comunicar dialogicamente. Barreiras caem mediante o diálogo responsável, a informação consistente e o processo de construção dialogal, tanto da percepção da realidade quanto do dis- curso acerca dela ou da mobilização frente a ela. Este é um ponto a ser analisado em eventuais pesquisas futuras ou estudos de recepção dos conteúdos da ALC, por exemplo.

Os espaços comunicativos na ALC a partir do website Sendo a internet o principal ambiente no qual os conteúdos da ALC podem ser acessados por todas as pessoas, é interessante observar alguns recursos adicionais que o site dispõe em busca de uma comuni- cação dialogal. A ALC se pretende como “um espaço de informação e comunicação das igrejas, dos ministérios especializados, das agências de cooperação e o público em geral” (de acordo com o website). Ali são oferecidas in- formações, opiniões e também documentação vasta sobre “a presença e a incidência das igrejas na América Latina, no Caribe e de outras re- giões do mundo”. Todo o material é distribuído gratuitamente e se busca o retorno do usuário ao portal, por meio do envio de boletins por e-mail e também resumos, que são apenas algumas linhas sobre as principais notícias. Quando a pessoa se interessa, pode ir ao portal em busca de

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 143 mais conteúdos que lhe sejam diretamente importantes. Embora algumas notícias sejam traduzidas nos três idiomas, algumas aparecem unicamente na língua original em que foi escrita. Quando a pessoa se inscreve para receber o correio eletrônico, ela marca, num conjunto de fatores, os assuntos que mais lhe interessam, o idioma desejado, bem como sua localização no mundo e sua pertença religiosa. Esse conjunto de dados sobre o usuário permite à ALC sele- cionar os tópicos que serão mais atrativos para esse leitor específico. A pessoa também define se receberá as notícias na íntegra, diariamente, ou se receberá apenas resumos semanais. Visando proporcionar ainda mais espaços para o diálogo, o site estrutura-se provendo também a oportunidade de acessar outros canais a partir de si, como no menu “Visite também”. Os eventos que aconte- cem na América Latina e Caribe podem ser identificados assim que a pessoa acessa a página, à esquerda, no item “Agenda”. Geralmente, são divulgados os acontecimentos do mundo ecumênico e das organizações mantenedoras da ALC. Há um espaço chamado “A palavra do leitor”, no qual comentários mais extensos sobre os assuntos em pauta podem ser registrados, bem como apontamentos quanto às matérias, entrevistas e reflexões. Desta forma, estabelece-se o diálogo diretamente com o leitor/assinante de ALC. Mesmo para os assinantes, todo o processo não gera custo, sendo pessoa física ou algum organismo ou entidade. Em todo o processo produtivo da informação, a ALC esforça-se para trazer ação e reflexão em equilíbrio. Sabendo-se que o material disponível no website consiste de palavras e discursos, é mister considerar a neces- sidade de fazer da palavra algo mais. Assim, cabe ressaltar o processo de produção das notícias. Nos últimos biênios, estabeleceu-se um número médio de notícias, colunas e entrevistas, de modo a manter a atualidade do site sem satura- ção. Não basta gerar uma grande quantidade de informação, mesmo con- siderando a vastidão da América Latina e Caribe, se esta informação não tiver qualidade, relevância, atualidade e profundidade. Desta forma, mesmo trabalhando com uma grande quantidade de voluntários, o processo não é amador. Os voluntários têm consciência de que nem toda informação enviada aos editores será publicada. É preciso também, que as fontes sejam identi- ficadas e as informações checadas antes que a notícia vá ao ar, exceto em casos em que expressamente se necessite preservar esta fonte. Ainda há bolsões de censura e opressão na América Latina e é preciso salvaguardar os voluntários e os provedores de informações, em alguns casos. Considera-se o mesmo critério também nas informações recebidas via boletins informativos, jornais e outros canais pertencentes às organizações

144 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania ecumênicas, sócias ou não da ALC, bem como dos organismos oficiais e civis quanto ao critério de noticiabilidade em relação à América Latina e Caribe. Neste caso, a ALC compromete-se a priorizar “a qualidade da informação mesmo sob o risco de perder a imediação da notícia. A agên- cia entende por qualidade de informação sua pertinência, profundidade, contextualização, precisão e adequação de linguagem” (website). Por esta razão, é de primordial importância a figura do editor em cada idioma, o qual, bem conectado aos propósitos e visão da agência, possui um olhar que ajuda a identificar o diferencial e dar relevância ao que vai informar e mobilizar o leitor. Ele possui o caráter de “comunicador social... de agente social, aquele que é capaz de promover e potencializar a articulação comunitária, seja via instituições (desde prefeituras, órgãos municipais e organismos não governamentais) ou por meio da evocação de uma comunidade determinada” (PAIVA, 2003, p. 143). O editor pode tanto acolher a contribuição do voluntário quanto solicitar determinada matéria face a uma informação recebida. Pode articular esses conheci- mentos com outras pessoas daquela localidade, de modo a repercutir a matéria depois, quando os leitores entram em contato em busca de novas informações, ou corrigindo eventuais erros ou para tirar dúvidas. Assim, a participação acontece, de acordo com Paiva, pela “na- tureza de sua atividade (ajudar a promover o diagnóstico comunitário, a planificação da atuação do grupo, a elaboração das estratégias de comunicação a serem adotadas, a realização dos veículos e, por fim, a assistência periódica)” (PAIVA, 2003, p. 143). Dessa forma, assegura-se o alinhamento dos conteúdos do website ao perfil do seu público e à proposta da comunicação dialógica. Da mesma forma, as reuniões de planejamento dos editores com o diretor, bem como as temáticas debatidas nas assembleias e os en- caminhamentos feitos pela junta diretiva visam manter sempre em foco “a visão política de sua profissão, dos movimentos sociais e do uso dos meios de comunicação, e não de um técnico, preocupado apenas em re- produzir as ondas geradas pela ordem da globalização” (PAIVA, 2003, p. 145). Existe uma clara preocupação em preservar identidades e discursos locais, mantendo aberto o foco do diálogo e a aprendizagem mútua, num tom de desenvolvimento social e respeito.

Limites e dificuldades da ALC em seu fazer comunicativo Apesar de uma existência de quase duas décadas, da quantidade significativa de seu acervo de notícias, da extensão de sua presença por conta de voluntários em 14 países distintos, da produção estável de ma- teriais, notícias e entrevistas, a ALC, como uma pessoa jurídica, sofre as intempéries que amealham uma série de iniciativas similares, relacionadas

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 145 com os setores sociais e religiosos de comunicação em nosso país e em toda a América Latina. É preciso destacar alguns dos limites encontrados e suas relações com o fazer comunicacional.

1. Condições socioeconômicas e políticas Subsidiar e manter a estrutura necessária para o funcionamento do site e de toda a agência ter de lidar com os meandros de câmbio, as exigências governamentais, as interferências e a falta de acesso aos recursos como ocorre com os colaboradores em países como Cuba, Haiti ou El Salvador é uma iniciativa de resistência. Remessas de pequenas ajudas aos voluntários, que dedicam horas de seu tempo a esta atividade, ou manter os editores em tempo parcial para que o website seja alimen- tado demandam soluções criativas para o diretor e para a Junta Diretiva. A fragilidade financeira ainda ameaça diversas iniciativas da ALC, ainda mais pela amplitude de seu projeto, em abarcar as distintas realidades da América Latina, onde o dinheiro vale mais ou menos dependendo do país onde o colaborador está. São poucos os investimentos e parcerias, em parte pelo regionalismo que ainda domina muitos dos rincões religiosos, que preferem ter seus próprios departamentos de comunicação a investir num canal com maior abrangência, mas sobre o qual, ao mesmo tempo, exercerão pouco controle direto. É que, por sua natureza dialogal, não é difícil que no- tícias e reflexões divulgadas pela ALC contrariem seus próprios sócios em alguns momentos, em prol da visão da agência e de seus objetivos.

2. Diálogo entre iguais e diferentes: possibilidades e limites Ao abordar o tema da ação cultural revolucionária, Paulo Freire fala de um processo de libertação, pelo qual seria possível restaurar a hu- manidade tanto de opressores quanto de oprimidos, da luta “pela eman- cipação do trabalho, pela superação da alienação, pela afirmação dos homens (sic) enquanto pessoas” (FREIRE apud LIMA, 2004, p. 65, grifo nosso). Percebe-se nitidamente que existe, no teor das matérias da ALC e em seus postulados, essa busca pelo ser humano por trás da história, a prerrogativa de dar-lhe a palavra e suplantar os discursos hegemoni- camente impostos, mesmo que com os limites com que a agência o faz. Uma prova disso pode ser encontrada na cobertura do terremoto do Haiti, quando o colaborador local trouxe, em suas matérias para o website, uma série de informações e posturas que mobilizaram igrejas e lideranças na América Latina para uma ajuda mais focada do que aquela encontrada nos grandes meios de comunicação, bem como se tornou um canal de denúncias acerca da exploração da tragédia por certos segmentos sociais internos e externos.

146 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania Neste esforço, não deve haver pretensão de sabedoria, mas de diálogo, definido por Freire como “o encontro amoroso dos homens (sic) que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam, isto é, transformam, e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE, 1971). Aplicando essa definição de Freire ao trabalho da ALC, pode-se afirmar que o diálogo, a pronúncia do mundo e a humanização daí de- correntes se fazem presentes a partir das temáticas preponderantes nas matérias: a vida e a transformação da realidade de miséria, perseguição política e ideológica de seus leitores, por buscar dialogar com aqueles formadores de opinião em cada instância social e que podem potencializar esse diálogo junto a suas comunidades e por buscar que seu público seja interlocutor nas matérias. De igual modo, o olhar local sobre os fenômenos é sempre um diferencial neste diálogo, o que de melhor possibilita tal transformação, pois o lugar de fala de quem o pronuncia é um olhar de dentro, o que faz com que o interlocutor também se sensibilize e possa assumir este olhar. Esse mundo mediado é, também, o mundo social, cultural e econômico desses interlocutores e sua humanização decorre do fato de que a pala- vra pronunciada permite desvelar sentidos, sonhos, opressões, desejos experenciados diariamente pelos indivíduos e povos distintos da América Latina, que necessitam conhecer-se além dos estereótipos e das represen- tações sociais hegemônicas normalmente trabalhadas na grande mídia. Paulo Freire define a comunicação como “coparticipação dos sujeitos no ato de pensar o objeto” (FREIRE, 1971, p. 67). Talvez aqui resida ainda o grande limite da atuação da ALC, em dois aspectos básicos. O primeiro é a limitação de presença, ainda marcadamente só na internet, um veículo importante, mas ao qual nem todos ainda têm acesso. Mesmo a liberdade de informação esbarra nos limites de cada país, seja no aspecto legal, seja no âmbito econômico. E ainda, mesmo sendo voltado aos líderes e formadores de opinião, trata-se de um meio excludente em diversos aspectos, pois o site não lida com fotos ou vídeos em grande quantidade, sendo necessário um letramento das pessoas e um conhecimento da tec- nologia para que possam ter acesso a essa informação. Isso se torna um dilema considerável no contexto latino-americano, ainda marcadamente pobre. Assim, a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar esbarra, de pronto, nas dificuldades de acesso, de tecnologia e de alfabetização. O segundo aspecto é que a postura da ALC, embora abrangente, também faz-se sentir, como no movimento ecumênico como um todo, nos limites com as relações com outros grupos não alinhados com seu dis- curso, como os neopentecostais. Freire afirma a comunicação como “um diálogo na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 147 (FREIRE, 1971, p. 67-69). Por isso, a ação comunicativa dialogal torna-se educadora, não apenas por ensinar fazeres, mas também saberes partilha- dos a partir de olhares locais sobre fenômenos que podem manifestar-se de modo global ou aí ter repercussões que a todos interessem. Porém, não se pode falar de encontro apenas entre os similares, mas também do encontro que se precisa fazer possível entre os diferentes. Esta pode ser uma boa contribuição que a ALC esforça-se por pres- tar, mas que, igualmente esbarra em algumas questões prévias no âmbito do ecumenismo. A agência prioriza ainda sua fala aos grupos alinhados com seu modo de pensar e com as organizações que a sustentam. Se há contrariedades, como afirmado anteriormente, trata-se de uma exceção e não de regra. De fato, algumas das matérias do site parecem caminhar na direção mais crítica a esses grupos (tidos como mais conservadores ou neopen- tecostais). Não está nos objetivos deste artigo a análise do discurso dos conteúdos da ALC, mas focar nos seus documentos oficiais sobre sua missão. Porém, a ressalva é importante por marcar uma dificuldade que pode ser essencial e pontuar uma contradição intrínseca que pode ser observada na comunicação ecumênica de forma geral.

Considerações finais Mesmo face a seus limites, ainda se pode dizer que a ação comunicativa propugnada pela ALC frente aos desafios da América Latina e Caribe, é, em grande medida uma ação cultural revolucionária e um ato de amor. Neste sentido, Freire alerta: “A distorção imposta à palavra amor pelo mundo capitalista não pode impedir a revolução de ter um caráter essencialmente amoroso, nem impedir que os revolucionários afirmem seu amor à vida” (FREIRE apud LIMA, 2004, p. 66). Essa comunicação é revolucionária porque parte de outras bases, que não a mídia hegemônica dos grandes meios, portanto, possui um caráter subversivo na medida em que afirma que outro olhar ou outros olhares são possíveis. Também por permitir entrever a diversidade cultu- ral da América Latina, por meio da língua, dos conteúdos, dos temas e da abordagem específica de cada colaborador, desde seu lugar de fala. E essa comunicação dialógica, participativa e voluntária possui uma dimensão educadora que pode propugnar pela liberdade. É fato que a liberdade é uma necessidade premente da América Latina e Caribe, qui- çá do mundo inteiro, em vertentes que vão da política à economia, da cultura ao corpo concreto. Há muitos aprisionamentos mentais, sociais, econômicos, religiosos e físicos. Este estudo exploratório sobre a ação da ALC no contexto da comunicação e do ecumenismo permite ver uma tentativa de criar pontes entre pessoas, organismos e comunidades.

148 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania Entretanto, como vimos, residem limites. Talvez um dos últimos a se mencionar seja que, apesar de propor-se como agência de comunicação, sua atuação ainda se limita mais ao noticiar, ao dar a conhecer, que nem sempre resulta na ação libertadora. Esta era uma das grandes críticas de Paulo Freire em seus comentários sobre o jornalismo, especificamente e que pode ser aplicada à ALC (MEDITSCH; FARACO, 2003, p. 8). O acesso à informação é parte constante do conjunto dos direitos humanos em muitos países e seu objetivo é uma formação para a cida- dania, mas ainda é difícil alcançar repercussão no âmbito global com o mesmo impacto dos grandes meios. A via alternativa segue como prática de viabilidade e também de resistência, mas esbarra nos seus limites a todo momento, inibindo avanços. Prova disso é que persistem as fragili- dades de subsistência financeira da ALC ao longo dos anos. Ressalta-se que o esforço pela atuação voluntária, refletida num desempenho profissional, endossa a dimensão dialógica da comunicação, proporcionando todas as condições a que alcance seu objetivo. De fato, o que falta é dar visibilidade não apenas aos que atuam na agência ou a seu público-alvo, mas à própria agência em si, a fim de garantir que ela alcance os objetivos e metas contidos em visão e missão. Há que se aprofundar, no contexto religioso e ecumênico, a percep- ção da necessidade de pontes comunicacionais, pois o discurso religioso da unidade e da cooperação por vezes esbarra nas estruturas discrepan- tes das instituições em si mesmas, como microinstâncias do poder. Essa percepção e a mobilização frente a ela são de grande importância, ainda mais se considerarmos que a comunicação possui uma interface com a educação, conforme Lima destaca: “Freire equipara educação com comu- nicação, uma vez que não apenas utiliza ambos os termos indistintamente, mas também os iguala em sua epistemologia” (LIMA, 2011, p. 33). Para quem fala desde o contexto teológico que é o pano de fundo da comuni- cação da ALC, em sua vertente cidadã e ecumênica, tal equiparação se releva ainda de mais importância, uma vez que o próprio exercício da fé cristã deve, por excelência, ser educativo, comunicativo e libertador, nos mais amplos sentidos possíveis.

Referências bibliográficas ALC. Informe narrativo y financiero 2011. Documento não publicado. 2012. 9p. ALC. Quem somos. Disponível em: . Acesso em: 3 ago. 2012. FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. ______. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. ______. Extensão ou comunicação? Tradução Rosisca Darcy de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 137-150, jan./jun. 2013 149 LIMA, V. Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire. Prefácio de Ana Ma- ria Freire. 2. ed. rev. Brasília: Editora da UnB, Fundação Perseu Abramo, 2011. ______. Mídia: teoria e política. 2. ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. MEDITSCH, E.; FARACO, M. B. O pensamento de Paulo Freire sobre jornalismo e mídia. In: Intercom, São Paulo, v. XXVI, n. 1, p. 25-46, 2003. PAIVA, R. O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo. 2. ed. São Paulo: Mauad, 2003.

150 Hideíde Brito Torres: Comunicação, ecumenismo e cidadania Documentos e Declarações Document and Declarations Documentos y Declaraciones

Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley: introdução e tradução para o português brasileiro

John Wesley’s “Thoughts upon slavery” (1774): introduction and translation to the Brazilian Portuguese

Los “Pensamientos sobre la esclavitud” (1774) de John Wesley: introducción e traducción para el portugués brasileño

Filipe Maia Helmut Renders

Resumo Este artigo apresenta uma tradução dos Pensamentos sobre a escravidão, obra escrita em 1774 por John Wesley, sacerdote anglicano e spiritus rector do movi- mento metodista. Depois de uma breve introdução ao estado atual da pesquisa a respeito do texto, são apresentados detalhes da tradução como a indicação de passagens que dependem de obras de outros autores e o uso implícito e explícito de uma argumentação bíblica como fundamentação da lei natural. Palavras-chave: John Wesley; Pensamentos sobre a escravidão; abolição in- glesa; direito natural; justiça; misericórdia.

Abstract This paper presents a translation of the Thoughts upon slavery, a work written in 1774 by John Wesley, an Anglican priest and spiritus rector of the Methodist movement. After a brief introduction to the current state of research regarding the text, details of the translation are presented, as for example, the indication of passages that rely on works of other authors and the implicit and explicit use of a biblical argument as a justification of natural law. Keywords: John Wesley; Thoughts upon slavery; abolition in England; natural law; justice; mercy.

Resumen Este artículo presenta una traducción de los Pensamientos sobre la esclavitud, obra escrita en 1774 por John Wesley, sacerdote anglicano y spiritus rector del movimiento metodista. Después de una breve introducción al estado actual de la investigación con relación al texto, se presentan detalles de la traducción como la indicación de pasajes que dependen de obras de otros autores y el uso implícito y explícito de una argumentación bíblica como fundamentación de la ley natural. Palabras clave: John Wesley; Pensamientos sobre la esclavitud; abolición in- glesa; derecho natural; justicia; misericordia.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 153 Introdução

Helmut Renders

Ao lado de um primeiro comentário nas suas Notas explicativas do Novo Testamento de 1757 e cartas para os abolicionistas chave da época, como Samuel Hoare (1747-1827), Thomas Clarkson (1760-1846), Granville Sharp (1735-1813) e John Wilberforce (1759-1833), escritas entre os anos 1787 e 1791 (cf. RENDERS, 2013a), representam os Pensamentos sobre a escravidão de John Wesley seu pronunciamento público mais importante a respeito da escravidão em territórios da Grã-Bretanha (RENDERS, 2013b). Sua relevância é notada na pesquisa brasileira (REILY, 1953, p. 15-1; CAMARGO, 1986, p. 54-55; RUNYON, 2002, p. 220-222). Básicas são ainda as interpretações de Madron (1964, p. 24-34), Davis (1966, p. 382-90) e Marquardt (1977, p. 83-87). Recentemente, contribuíram Phi- pps (1981, p. 23-31), Baker (1984, 75-86), Smith (1986), Hynson (1994, p. 46-57), Brendlinger (2001,164-173), Painter (2001, p. 29-46), Carey (2003, p. 269-284), Strong (2007, p. 1-12) e Silva (2008, p. 87-96) para a discussão. Baker, Hynson1 e Brendlinger discutem as fontes do texto, Marquardt, Phipps, Painter e Strong a fundamentação ou o conteúdo do discurso, Carey, o seu estilo literário, e Silva sua contribuição em defesa ao direito à cultura. Tratamos desses e outros assuntos em um artigo próprio (RENDERS, 2013c). Apesar da existência de, no mínimo, uma tradução para o português a partir da década de 1990 (ANDRADE 1991, 1995), a obra Pensamen- tos... parece nunca ter sido apresentada a um público maior. Em reconhe- cimento da relevância do texto apresentamos no ano das celebrações de 125 anos da abolição no Brasil uma nova tradução feita especialmente para este dossiê. Incluímos na tradução quatro informações: • Dados sobre as pessoas mencionadas no tratado. • Passagens ou diretamente citadas ou visivelmente inspiradas por obras de outros autores, no caso, de Antoine Bénézet e Granville Sharp. • Citações bíblicas, não indicadas por Wesley em itálico, marcando seus inícios e fins por uma estrela (“*”). • Aquelas passagens no texto dos Pensamentos... que se referem ao critério da justiça e da misericórdia, consideradas por nós, conceitos-chave para Wesley para sustentar, biblicamente, seu argumento focado na superioridade da lei natural em relação às leis escravagistas em vigor.

1 Além da discussão da questão das fontes, apresenta o autor os Pensamentos... como aplicação de uma ética teleológica e não deontológica.

154 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley Oferecemos um esquema de organização do tratado (Anexo 1) fundamentado em nossas recentes pesquisas para visualizar melhor os aspectos originais desse texto de autoria de John Wesley que, segundo a nossa percepção, até agora não foram suficientemente registrados: a implícita e explícita fundamentação bíblica do discurso fundamentado na lei natural, por meio das oito referencias à justiça e misericórdia e das citações bíblicas diretas a partir do quinto capítulo. Uma última observação: sendo uma tradução do texto procuramos ser fiéis, em primeiro lugar, ao original. Assim, mantemos expressões como, por exemplo, “negro”, sem querer com isso sinalizar da nossa parte qualquer tipo de aprovação de uma linguagem discriminatória. O mesmo vale para as letras do hino de Charles Wesley, com qual o trata- do é concluído, sendo elas usadas também por outros autores da época em defesa da escravidão. Supomos que não se trata de uma releitura a favor da escravidão, mas, o acento na inferioridade dos povos africanos parece-nos muito forte. Considerando o logotipo da própria Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos de 1787 que mostra um escravo africano ajoelhado, levantando as suas mãos em correntes dizendo, “Não sou seu irmão e um ser humano?”, percebe-se o desafio de ler também toda história abolicionista a partir da experiência dos povos africanos. Porém, a tarefa da tradução não é encobrir significados ou adaptar textos aos gostos de gerações posteriores ou elevá-los à altura dos discursos de outras épocas. Assim evitamos uma historiografia saudosista e hagiográ- fica e ganhamos uma ideia mais clara do potencial e limite de um texto, das suas contribuições e fragilidades ou contradições na época da sua criação e daquilo que ou prevaleceu ao longo dos séculos ou foi superado. Quanto ao conteúdo e, em distinção, por exemplo, das cartas aboli- cionistas de 1787 a 1791, os Pensamentos... terminam com um apelo aos agentes e aproveitadores imediatos da escravidão: caçadores, vendedores, compradores de escravos e escravas e os financiadores (!) da escravidão e do tráfico de escravos. Ou seja, é um texto que não somente se satisfaz em mudar a lei e aguardar em silêncio esta mudança, para depois com o vigor da lei exigir a implantação de medidas a serem tomadas. O autor tem pressa, pelo bem das pessoas escravizadas, e propõe algo que já pode ser feito. Para isso tem que envolver e apelar àqueles que estão no poder de interromper ou terminar – pontualmente – a escravidão. Que não se trata de mera ingenuidade mostram as suas cartas aos abolicionistas que apresentam os defensores da escravidão como “injustos” e “sem misericórdia” detalhando as suas estratégias violentas e sem nenhuma consideração dos abolicionistas, para que os últimos sejam preparados. Wesley sabia com quem ele estava lidando e quem ele acabou de acordar e irritar. Mesmo assim insiste em lembrar seus adversários que negando

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 155 aos escravos e às escravas o direito pleno que pertence a cada ser hu- mano, eles mesmos se transformaram em pessoas inumanas longe de qualquer ideal próprio. Entregamos esta tradução, em primeiro lugar, às mãos do povo chamado metodista, para possibilitar mais um reencontro com a sua rica tradição; em segundo lugar, à toda comunidade de afrodescendentes no Brasil, cuja luta em busca da justiça ainda não terminou e, finalmente, ao mundo acadêmico para aprofundar-se e discutir crítica e criteriosamente o papel das igrejas na esfera pública.

Tradução

Filipe Maia

Pensamentos sobre a escravidão John Wesley London: Printed by R. Hawes, (N. 34.) in Lamb-Street, Near Spital-Square, 1774

I. 1. Eu uso o termo escravidão para significar escravidão doméstica ou aquela relação entre um servo e seu mestre. Recentemente, um hábil escritor observou com precisão: “As diversas formas com as quais a es- cravidão aparece nos impossibilita de transmitir uma noção justa a seu respeito por meio de uma definição. Existem, todavia, algumas proprieda- des que tem acompanhado a escravidão em quase todos os lugares, de tal forma que podemos distingui-la facilmente daquela forma mais branda de serviço doméstico que vivemos em nosso país”.2

2. Escravidão implica uma obrigação de serviço perpétuo, uma obri- gação que apenas o consentimento do mestre pode dissolver. Em alguns países, tampouco pode o próprio mestre dissolver a escravidão de seus servos sem o consentimento dos juízes designados pela lei. Escravidão geralmente dá ao mestre um poder arbitrário para qualquer tipo de pu- nição, contanto que esta não afete a vida ou membros dos escravos. Às vezes, até mesmo tais membros são expostos à vontade do mestre ou

2 Veja o apelo do Sr. Hargrave pelo negro Sommersett. [Esta nota é do texto original]. O livro sobre o julgamento do caso de Sommersett, um escravo fugitivo, saiu no mesmo ano da decisão, em 1772. Francis Hargrave (1741–1821) era, ao lado de Granville Sharp (1735-1813), um dos seus advogados, William Murray (1705-1793), primeiro conde de Mansfield, o juiz [e amigo pessoal de Charles Wesley]. À mesma corte pertencia William Blackstone (1723-1780) cuja obra Wesley cita mais adiante (BLACKSTONE, 1765-1769), a partir de 1774.

156 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley protegidos apenas por uma multa ou punição leve, marcadamente insigni- ficante para conter um mestre de temperamento colérico. Escravidão cria a incapacidade de adquirir qualquer coisa que não beneficie o mestre. Ela permite que o mestre aliene o escravo, da mesma maneira que ele o faz com suas vacas e cavalos. Enfim, a escravidão é passada de pai para filho, até a última geração.

3. O princípio disto pode ser encontrado no mais remoto dos tem- pos dos quais temos registro na história. A escravidão se iniciou no mais bárbaro estado da sociedade e, no decorrer dos tempos, se espalhou por todas as nações. Ela foi predominante especialmente entre os judeus, gregos, romanos e os alemães antigos e foi transmitida por estes aos diversos reinos e estados que surgiram das ruínas do Império Romano. Com a prevalência do cristianismo, a escravidão gradualmente entrou em declínio em quase todas as partes da Europa. Esta grande mudança começou na Espanha por volta do fim do século 8º e foi se generalizando na maioria dos demais reinos da Europa antes da metade do século 14.

4. A escravidão estava praticamente extinta até o princípio do século 15 quando o descobrimento da América e das costas oeste e leste da África deu ocasião para seu ressurgimento. Isto aconteceu com os por- tugueses que, com o intuito de fornecer homens para que os espanhóis cultivassem seus novos territórios na América, buscaram negros na África, a quem eles venderam como escravos aos espanhóis na América. Isto começou no ano de 1508 quando eles importaram os primeiros negros para Hispaniola. Em 1540, Carlos V3, então rei da Espanha, esteve de- terminado a dar um fim à escravidão de negros ordenando que todos os escravos africanos em domínios espanhóis fossem libertados. Esta ordem foi devidamente cumprida por Lagasea4, a quem ele enviou com poderes de libertar todos os negros com a condição que eles continuassem a trabalhar para seus mestres. Mas logo que Lagasea voltou à Espanha, a escravidão ressurgiu e passou a crescer como antes. Em seguida outras nações que adquiriram territórios na América seguiram o exemplo dos espanhóis e então a escravidão ganhou raízes profundas na maioria de nossas colônias na América.

3 Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico era Carlos I de Espanha (1500-1558). 4 Deve-se tratar de Pedro de la Gasca (1485–1567), sacerdote dominicano, formado na Universidade de Salamanca e amigo de Bartolomé de las Casas (1484-1566), diplomata do Rei Carlos V na negociação entre o papa e o rei Henrique VIII. Foi enviado ao Peru como administrador colonial espanhol entre 1547 e 1570 para reestabelecer a ordem e negociar a paz com Gonzalo Pizarro. Depois do seu retorno para a Espanha tornou-se bispo de Siguenza and Palencia.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 157 II. Tal é a natureza da escravidão: tal foi o princípio da escravidão dos negros na América. Mas alguém pode se perguntar: que tipo de região é esta de onde os negros são levados? Que tipo de pessoas são estas e qual o seu temperamento e comportamento em sua própria terra? E de qual forma elas são capturadas, transportadas e tratadas na América?

1. Primeiramente, que tipo de terra é esta de onde os escravos são levados? Seria uma terra tão horrível, sombria e árida, de tal forma que seria de fato uma gentileza tirá-los deste lugar? Eu creio que muitos pen- sam desta maneira, mas isso é um erro enorme, ao menos se queremos dar crédito àqueles que por muitos anos ali viveram e não teriam motivo algum para representar mal este local.

2. Esta parte da África de onde os negros são levados, normalmente conhecida como Guiné, estende-se pela costa por cerca de três a quatro mil milhas. Do Rio Senegal (dezessete graus ao norte da linha) até o cabo de Serra Leoa, são setecentas milhas. Daí a costa corre em direção ao leste por cerca de mil e quinhentas milhas, incluindo a Costa dos Grãos, a Costa do Marfim, a Costa Dourada, e a Costa dos Escravos, onde está o grande reino do Benim. Daí, a costa corre rumo ao sul por cerca de mil e duzentas milhas chegando aos reinos do Congo e de Angola.

3. Com respeito à primeira região, a costa do Senegal, o Sr. Brue5, que ali viveu por dezesseis anos, após descrever a produtividade da terra próxima ao mar, diz: “Quanto mais distante do mar, mais produtiva6 e mais desenvolvida são essas terras, com abundância de grãos, milho e vários frutos. Há aqui muitas campinas que alimentam grandes manadas de gado grandes e pequenos. E as vilas, que são muitas, mostram que esta terra é bem povoada”.7 Novamente, ele diz: “Eu fiquei surpreso em ver a terra tão bem cultivada; escassos são os pontos não cultivados: a planície é dividida por pequenos canais e estava completamente semeada com arroz. Nas terras altas foram plantados milho e ervilhas de diferentes espécies. A carne deles é excelente. Também as aves são muitas e baratas, tal como todas as demais coisas necessárias para a vida”.8

5 André Brué (1654-1738), diretor geral do comércio francês. Ele fez sua primeira viagem para o Senegal em 1667. 6 Até aqui corresponde Bénézet (1762, p. 14). Antoine Bénézet (1713-1784), Hugenot fran- cês. Fugiu para Londres e depois foi para Filadélfia, colônia inglesa. Pertencia ao grupo dos quacres, é era uma das pessoas chave na luta a favor da abolição da escravidão. Formou junto a Granville Sharp e John Wesley uma rede de contestadores da escravidão. 7 Bénézet (1772, p. 7). 8 Bénézet (1772, p. 8).

158 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley 4. Com relação à Costa dos Grãos e à Costa do Marfim, aprendemos com testemunhas oculares que o solo é em geral fértil, produzindo uma abundância de arroz e raízes. Ervilhas e algodão crescem sem serem cultivados. Peixes existem em grandes números; rebanhos e manadas são numerosos e as árvores estão sempre carregadas de frutos.9

5. Com respeito à Costa Dourada e à Costa dos Escravos, todos que as viram concordam que estas são altamente produtivas e agradáveis produzindo grandes quantidades de arroz e outros grãos, muitos frutos e raízes, vinho da palmeira, azeite, peixes em abundância, além de muito gado doméstico e selvagem10. A mesma impressão nos é passada11 com relação ao solo e os produtos do Benim, Congo e Angola. Pelo que se vê, muito além de ser uma terra horrível, sombria e árida, a Guiné é em geral uma das terras mais produtivas, bem como uma das mais agradáveis das terras que conhecemos no mundo. Diz-se tratar de uma terra insalubre. E de fato assim o é para estranhos, mas para seus habitantes nativos, trata-se de uma terra perfeitamente saudável.12

6. Assim é a terra de onde os negros são levados. Nossa próxima pergunta é: que tipo de pessoas são eles, que tipo de temperamento e comportamento eles têm, não em nossas plantações, mas em sua terra natal? Aqui também a forma mais segura é formular nossa opinião a partir de testemunhas oculares e auriculares. Os que viveram no Senegal ob- servam que ali habitam os Jaloss, Fulis e os Mandingos. O rei dos Jaloss tem sob si vários ministros que o auxiliam no exercício da justiça. O juiz sai por todos seus domínios para ouvir as reclamações e julgar contro- vérsias. E o vice-rei vai com ele para inspecionar o comportamento dos Alkadi, o governador de cada vila. Os Fulis são um povo numeroso. O solo deste país é descrito como sendo muito rico, com grandes lavouras e o povo é trabalhador e tem bons agricultores. Com respeito a alguns negros Fulis habitando no Rio Gâmbia, William Moor13, gerente inglês, nos dá um relatório muito favorável. Ele diz que eles são governados por um grupo que governa com muita moderação. Poucos entre eles bebem qualquer coisa mais forte do que água, sendo eles muçulmanos muito rigorosos. O trabalho do governo é fácil, pois o povo é de disposição boa,

9 Bénézet (1772, p. 18). 10 Bénézet (1772, p. 23). 11 Até aqui em outras palavras Bénézet (1772, p. 45). 12 Esta frase e a frase anterior em palavras similares, veja Bénézet (1772, p. 4-5). 13 Provavelmente Francis - e não William - Moore (c. 1708-1756), contratado em 1730 pela Royal African Company como escritor nos postos avançados da Companhia no rio Gâm- bia.William Moor (falecido em 1765) era da Hudson Bay Campany e explorou América do Norte.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 159 calma e tão bem instruído no que é certo que um homem que faz mal contra outro é a abominação de todos os demais. Eles não desejam mais terra do que o que eles já utilizam, a qual cultivam com grande cuidado e indústria. Se qualquer um entre eles é descoberto como escravo entre os brancos, todos se juntam para libertá-lo. Eles não apenas apoiam todos os idosos, cegos, ou aleijados que vivem entre eles, mas também com frequência forneceram o necessário para os Mandingos quando estes foram afligidos pela fome14.

7. Os Mandingos, diz o Sr. Brue, são rígidos muçulmanos que não bebem vinho nem destilados. Eles são criativos e trabalhadores e mantém seu solo bem cultivado e criam bons rebanhos de gado. Toda cidade tem um governador e este indica o trabalho do povo. Os homens trabalham o solo para o milho e as mulheres e meninas trabalham o solo para o arroz. Ele depois divide o milho e o arroz entre todos, além de decidir as disputas caso estas surjam. Todos os muçulmanos negros participam das orações públicas três vezes ao dia. Existe um sacerdote em cada vila que regularmente congrega todas as pessoas. Alguns autores dizem que é surpreendente de se ver a atenção e reverência que eles demonstram durante o culto. Estas três nações praticam diversas formas de comércio, existem ferreiros, pastores, oleiros e costureiros. Eles são muito criativos em todas suas ocupações. Seus ferreiros não apenas fazem todos os instrumentos de ferro que eles utilizam, mas também trabalham muitas coisas em ouro e prata com destreza. Mulheres e crianças são principal- mente as que costuram tecidos finos de algodão, os quais elas tingem de azul e preto15.

8. Foi dessas partes de Guiné que o Sr. Adanson16, correspondente da academia real de ciências em Paris entre 1749 e 1753, dá a seguinte descrição tanto da terra quanto do povo: “Para qualquer canto que eu virava meus olhos, eu mirava uma imagem perfeita da pura natureza: uma solidão agradável contornada em cada canto por uma paisagem encanta- dora; a condição rural dos sítios, em meio às árvores, o sossego e a calma dos negros reclinando sob a sombra da folhagem, com sua simplicidade de vestir e agir. Tudo isso reanimou em minha mente a ideia de nossos primeiros pais e eu me via contemplando o mundo em seu estado primi- tivo. De modo geral, eles são de muito boa natureza, sempre sociáveis e atenciosos. Eu estive muito satisfeito com minha primeira acolhida e isso me convenceu completamente que deve haver uma considerável revisão feita às descrições sobre o caráter selvagem dos africanos”. Ele comple- 14 Veja Bénézet (1772, p. 8-10). 15 Veja Bénézet (1772, p. 11). 16 Michel Andanson (1727-1806). Naturalista francês de ascendência escocesa.

160 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley ta: “É impressionante que um povo analfabeto seja capaz de pensar tão pertinentemente sobre os corpos celestes. Não há dúvida de que, com os instrumentos próprios, eles se tornariam grandes astrônomos”.17

9. Os habitantes da Costa dos Grãos e da Costa do Marfim são des- critos por aqueles que os conheceram como sensíveis, educados e como os comerciantes18 mais justos nas costas de Guiné. Eles raramente bebem em excesso: caso alguém entre eles beba, esta pessoa é severamente punida com ordens do rei. Raramente eles são atribulados com guerras: caso uma divergência apareça entre duas nações, eles comumente en- cerram a disputa amigavelmente.19 Os habitantes da Costa Dourada e da Costa dos Escravos também vivem em grande união e amizade quando não estão inflamados uns com os outros, sendo também geralmente de bom temperamento, civilizados, dóceis e prontos para ajudar quando necessário. Os habitantes do reino de Whidah em especial são muito civilizados, corteses e atenciosos com estrangeiros. Eles também são os mais nobres [gentleman-like] entre to- dos os negros, abundando em bons modos uns para com os outros. Os inferiores tratam seus superiores com grande respeito, bem como esposas seus maridos e crianças seus pais. E eles são altamente criativos: todos estão sempre empregados, os homens na agricultura, as mulheres com tecelagem e costura de algodão20.

10. A Costa Dourada e a Costa dos Escravos estão divididas em muitos distritos, alguns governados por reis, outros por homens seletos que tomam conta de sua própria cidade ou vila e são responsáveis por prevenir ou apaziguar tumultos. Furtos e roubos são puníveis por uma multa proporcional aos bens roubados. Todos os habitantes dessa cos- ta, embora pagãos, acreditam que existe um DEUS, o autor deles e de todas as coisas. Eles também demonstram ter uma ideia confusa sobre o estado futuro. Consequentemente, toda cidade e vila têm um espaço público de culto. É memorável que não exista pedintes entre eles, tal é o cuidado de seus chefes em todas as cidades e vilas para garantir alguma tarefa fácil, mesmo para os idosos e fracos. Alguns são empregados para assoprar os foles dos ferreiros, outros para amassar o vinho da palmeira, outros na trituração de tintas. Se alguém é fraco até mesmo para isso, esta pessoa pode ser um vendedor no mercado21.

17 Não conseguimos identificar o parágrafo II.8 nas obras de Bénézet. 18 Motivo em Bénézet (1762, p. 15), literal em Bénézet (1772, p. 11). 19 Bénézet (1772, p. 18). 20 Bénézet (1772, p. 25, 27 e 28). 21 Bénézet (1772, p. 35).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 161 11. As descrições que temos dos nativos do reino de Benim é que eles são um povo razoável e de boa natureza, sinceros e inofensivos e que eles não praticam injustiça entre eles ou com estrangeiros. Eles são civilizados e corteses: se você dá um presente a um deles, esta pessoa se esforça para retribuir em dobro. Caso alguém lhes venda algo a crédito, até que o navio chegue no ano seguinte, eles honestamente pagam a dívida inteira. Roubo é punido entre eles, ainda que não com o mesmo rigor que assassinato. Se um homem ou uma mulher de qualquer tipo são pegos em adultério, eles certamente são punidos com morte e seus corpos jogados em uma fossa onde são deixados para as feras. Eles são extremamente justos e honestos em seus negócios e também são muito caridosos. O rei e seus grandes senhores tomam conta de que todos que podem trabalhar tenham um emprego22. E aqueles que realmente não podem trabalhar, eles os mantém por temor a Deus, de modo que aqui também não existe nenhum pedinte. Os habitantes do Congo e de Angola são geralmente pessoas caladas. Eles guardam um bom raciocínio e se comportam amigavelmente com estrangeiros, tendo um temperamento manso e uma conduta afável. Portanto, de forma geral, os negros que habitam a costa da África, do Rio Senegal às fronteiras ao sul de Angola, estão tão longe de serem os bárbaros estúpidos, insensíveis, brutos e preguiçosos, os selvagens ferozes, cruéis e traiçoeiros, como eles vêm sendo descritos. Ao contrário, eles são descritos por aqueles que não têm sequer um motivo para elogiá-los como extremamente sensíveis, consi- derando as poucas vantagens que eles têm para aumentar seu conheci- mento. Eles também são descritos como muito criativos, talvez os mais criativos entre os que vivem em tamanho calor; como justos e honestos em seus negócios, exceto onde o homem branco os ensinou a agir de outra maneira. Sem dúvida eles são muito mais mansos e amigáveis com todos os tipos de estrangeiros do que qualquer um de nossos antepas- sados. Nossos antepassados! Onde haveremos nós de encontrar neste dia, entre os brancos da Europa, uma nação que geralmente pratica a justiça, misericórdia23 e verdade24 como encontradas entre estes pobres negros africanos? Suponha que as descrições apresentadas são verda- deiras (as quais eu não tenho nenhuma razão ou intenção de duvidar) e logo sairemos todos da Inglaterra e da França para buscar honestidade genuína em Benim, no Congo e em Angola.

22 Bénézet (1772, p. 35, 36 e 39). 23 Primeira citação da dupla “justiça” e “misericórdia”. Para mostrarmos a importância trans- versalidade desses dois conceitos em todo texto bíblico citamos aqui somente Oséias 10.12 e 12.6; Zacarias 7.9; Miquéias 6.8; Daniel 4.27; Isaías 16.5; Salmo 45.4, 85.10, 89.14, 101.1, 103.17, 119.149, 145.7; Efésios 5.9; Tito 3.5 e Mateus 5.6-7 e 23.23. 24 Salmo 45.4, 85.10 e Efésios 5.9 acrescem ainda aos dois conceitos a “verdade”.

162 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley III. Vimos até agora que tipo de terra é esta de onde os negros são leva- dos e que tipo de pessoas eles são em suas terras (mesmo tendo homens brancos como juízes). Em terceiro lugar, portanto, devemos nos perguntar de que forma eles são capturados, transportados e tratados na América.

1. Primeiro, de que maneira são capturados? Parte deles, por fraude. Capitães de navios de tempos em tempos convidam negros para vir a bordo da nau e então os levam embora. Mas muitos mais são capturados à força. Cristãos, ao aportar em suas terras, capturam o máximo possível: homens, mulheres e crianças e logo os transportam para a América. Foi por volta de 1551 que os ingleses começaram seu comércio com Guiné. No começo por ouro e marfim, mas logo depois, por escravos. Em 1566, Sr. John Hawkins25 navegou com dois navios até Cabo Verde de onde ele mandou oitenta homens ao litoral para capturar negros. Os nativos, todavia, fugiram e os homens os seguiram para então “queimar suas cidades e capturar seus habitantes”. Eles, porém, encontraram tamanha resistência que muitos de seus homens foram mortos e puderam levar apenas dez negros. Logo eles foram ainda mais longe até terem capturado mais gente e então rumaram às Índias Ocidentais, e lá os venderam26.

2. Demorou um tempo até que os europeus encontrassem uma forma mais abreviada de buscar escravos africanos, isto é, encontrando formas de subjugá-los de tal forma que eles entrassem em guerra entre si para então vender seus prisioneiros de guerra. Até então, raramente eles tinham qualquer tipo de guerra, pois eram em geral tranquilos e pacíficos. Mas os homens brancos lhes ensinaram sobre bebida e avareza e logo eles começaram a contratar gente para vender escravos uns aos outros. De fato, por estes meios até mesmo reis são induzidos a vender seus próprios súditos. Assim, o Sr. Moore27 (gerente da companhia africana em 1730) nos conta: “Quando o rei Barsalli deseja bens ou conhaque, ele chama o governador inglês no Forte James, e este imediatamente encomenda um navio. Quando o carregamento chega, o rei saqueia suas próprias cidades vendendo o povo em troca dos bens que ele deseja. Outras vezes ele simplesmente vai a suas cidades com a única intenção de vender seus súditos”.28 O Sr. Brue diz: “Escrevi ao rei” (não o mesmo) “dizendo que

25 John Hawkins (1532-1595). Sob seu comando a Armada espanhola foi derrotada. Não o primeiro inglês que capturou escravos, mas, o inventor do negócio triangular entre África (escravos), as Américas (açúcar) e Inglaterra (tecidos, armas). 26 Mencionado em Bénézet (1772, p. 56-57). 27 Veja a nota de rodapé n. 12. 28 Apesar de que o texto existe também em (1772, p. 106-107) o use de “Moore” e “Barsalli” em vez de “Moor” e “Barsailay” nos faz optar pela obra Bénézet (1762, p. 24) como base dessa passagem e adiante.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 163 se ele tivesse uma boa quantia de escravos, eu iria ter com ele. Ele apa- nhou trezentos de seu próprio povo e mandou nota dizendo que estava pronto para entregá-los em troca de bens”.29 Ele completa: “Alguns dos nativos estão sempre prontos” (quando bem pagos) “para surpreender e capturar seus próprios conterrâneos. Eles vêm à noite sem qualquer ruído e se encontram qualquer sítio isolado, eles o cercam e levam toda sua população”.30 Barbot31 (outro gerente francês) diz: “Muitos dos escravos vendidos pelos negros são prisioneiros de guerra, ou capturados nas incursões que eles fazem em territórios inimigos. Outros são roubados. Muitas crianças de ambos sexos são roubadas quando encontradas por seus vizinhos pelas estradas ou nas florestas e campos de milho no pe- ríodo do ano que seus pais as mantém lá por todo o dia para espantar os corvos”.32 Que seus próprios pais os vendem é completamente falso.

3. Para esclarecer a forma com que os negros são capturados em termos ainda mais claros é suficiente ler um trecho de duas viagens à Gui- né. A primeira é tomada verbatim dos manuscritos do diário do Cirurgião. “Sestro, 29 Dez., 1724. Nenhum negócio até agora, embora muitos negociantes tenham vindo a bordo. Eles nos informam que o povo se foi para guerra terra adentro e irão trazer bons números de prisioneiros em dois ou três dias, na esperança que fiquemos aqui. “Dia 30. Ainda nenhum negócio, mas nossos negociantes vieram a bordo hoje e nos informaram que o povo tinha queimado quatro cidades, de modo que amanhã esperamos ter escravos. “Dia 31. Bom tempo: mas nenhum negócio ainda. Toda noite vemos cidades sendo queimadas. Mas, assim ouvimos, muitos dos Sestros foram mortos pelos negros do interior, de modo que tememos que esta guerra será um fracasso. “2 de janeiro. Ontem à noite vimos um grande incêndio irromper às onze horas e pela manhã vimos a cidade dos Sestros inteiramente quei- mada”. (Ela continha centenas de casas.) “Então descobrimos que seus inimigos são mais fortes que eles e que, portanto, nosso negócio está arruinado aqui. Assim, por volta das sete horas, levantamos âncora para continuar navegando costa abaixo”.33

4. O segundo trecho tomado do diário de um Cirurgião, que foi de Nova York neste mesmo empreendimento, é o seguinte: “O Comandante

29 Bénézet (1762, p. 24-25; 1772, p. 108). 30 Bénézet (1762, p. 25; 1772, p. 112). 31 Jean Barbot (1655-1712). Viajou para África em duas viagens em 1678 e 1681. Sendo um Hugenot francês fugiu para Inglaterra em 1687. 32 Bénézet (1762, p. 25; 1772, p. 113). 33 Bénézet (1762, p. 69-70; 1772, p. 118-119).

164 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley da nau enviou notícia ao rei que desejávamos um carregamento de es- cravos. O rei prometeu fornecê-los e arquitetou planos para surpreender alguma cidade e fazer de seu povo prisioneiro. Algum tempo depois, o rei enviou notícia dizendo que ele ainda não havia obtido o sucesso almeja- do. Após tentar invadir duas cidades, nas duas ocasiões ele foi expulso. Mas ele ainda esperava encontrar o número de escravos. Neste desígnio ele persistiu até que encontrou seus inimigos no campo. Uma batalha foi travada e esta durou três dias. A empreitada foi tão sangrenta que quatro mil e quinhentos homens foram mortos no local”.34 Esta é a forma com que os negros são capturados! Assim os cristãos pregam o evangelho aos pagãos!

5. Assim eles são capturados. Mas em que números e de qual manei- ra são eles transportados para a América? Sr. Anderson em sua história de negócios e comércio observa: “A Inglaterra abastece suas colônias americanas com escravos negros num montante total de cerca de cem mil todos os anos”. Isto é, tantos são levados a bordo de nossos navios, mas ao menos dez mil deles morrem na travessia. Cerca de um quarto também morrem em diferentes ilhas no que é chamado de aclimatação [seasoning]. Assim, em média, na travessia e na aclimatação, trinta mil morrem, ou, melhor dito: são assassinados. Oh terra, oh Mar, não cubrais vós o sangue deste povo!

6. Quando eles são trazidos para o litoral para serem vendidos, nos- sos cirurgiões minuciosamente os examinam, e o fazem com eles com- pletamente nus, mulheres e homens, sem qualquer distinção. Os que são aprovados são colocados de um lado. Neste ínterim, um metal fumegante, com o brasão ou o nome da Companhia, permanece ao fogo, o qual é usado depois para marcá-los no peito. Antes que os coloquem nos navios, seus mestres tiram tudo o que eles carregam às costas de forma com que entrem a bordo inteiramente nus, tanto mulheres quanto homens. É comum que centenas deles sejam colocadas a bordo de uma só nau onde eles são jogados juntos em uma saleta, até que esteja lotada. É fácil imaginar a condição que eles logo enfrentam, entre calor, sede e fedor de todas as naturezas. Logo, não é uma surpresa que tantos entre eles morram na travessia, mas é sim surpreendente que qualquer um sobreviva.

7. Quando as naus chegam a seus portos de destino, os negros são novamente expostos nus aos olhos de todos que se amontoam e ao exame de seus compradores. Em seguida eles são separados para as plantações de seus mestres para nunca mais se verem novamente. Aqui

34 Bénézet (1772, p. 119-120).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 165 você pode ver mães se jogando sobre suas filhas encharcando seus peitos nus com lágrimas, e filhas se agarrando a seus pais até que o chicote obrigue sua separação. O que poderia ser mais miserável do que esta condição? Banidos de sua terra, de seus amigos e relações para sempre, de todo o conforto da vida, eles são reduzidos a um estado em nenhuma maneira preferível ao estado de feras. Em geral, sua comida é nada mais do que poucas raízes, não das melhores, normalmente inhame ou batatas e recebem dois trapos que mal podem os proteger do calor do dia ou do frio da noite. Seu sono é muito curto, seu trabalho contínuo e frequen- temente além de suas forças. Assim, a morte liberta muitos deles antes que vivam metade de seus dias. O tempo que eles trabalham nas Índias Ocidentais é da aurora até o meio-dia, e das duas horas até o escurecer. Neste tempo eles são vigiados por dois supervisores que, caso os julguem lentos, ou pense que eles não estão realizando o trabalho devidamente, os açoita sem qualquer misericórdia de tal modo que se pode ver as marcas e cicatrizes muito tempo depois entre seus ombros e cintura. E antes que eles sejam enviados à suas senzalas, há sempre alguma coisa a ser feita, como coletar feno para os cavalos ou ajuntar lenha para os aquecedores. Assim, é geralmente passada da meia-noite quando eles podem voltar à suas casas. Caso sua comida ainda não esteja preparada, há ainda mais trabalho a ser feito antes de saciar sua fome. Nenhuma desculpa é aceita. Se eles não estão nos campos imediatamente, eles devem esperar pelo açoite. Haverá o Criador desejado que a mais nobre das criaturas do mundo visível vivesse vidas assim? “São porventura estas tuas obras, Pai do Bem?”

8. Com relação às punições dirigidas a eles, diz o Sr. Hans Sloan: “eles frequentemente os castram, ou cortam fora metade de um pé. De- pois de os açoitarem até que fiquem em carne viva, alguns ainda põem pimenta e sal em seus corpos. Alguns derramam cera derretida em suas peles. Outros cortam suas orelhas e os forçam a assá-las para depois comer. “Por rebelião” (isto é, exigindo sua Liberdade natural, a qual eles têm direito assim como o ar que respiram) “eles os amarram junto ao chão com varas em cada membro e ateiam fogo em diversos membros, aos pés e mãos, eles os queimam gradualmente até a cabeça”.35

9. Mas acaso as leis feitas nas Plantações não hão de prevenir ou corrigir tal crueldade e opressão? Tomaremos aqui apenas algumas destas leis para análise e que as pessoas as julguem.

35 Sharp (1769, p. 64). Wesley somente muda a sequência. Tanto as citações de Antoine Bénézet como de Granville Sharp, Wesley marca no texto com aspas, mas, sem identificar a fonte. Porém, ou mantém a citação da fonte original ou primária, ou, acresça a fonte primária (por exemplo, “Blackstone”).

166 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley Para fixar as amarras da escravidão, a lei da Virgínia ordena que “nenhum, escravo36 haverá de ser liberto sob qualquer condição, exceto por algum tipo de serviço meritório, que deverá ser julgado e permitido pelo governo e pelo conselho. A lei também diz que onde quer que um escravo seja liberto por seu proprietário conforme o que é aqui ordenado, os diáconos da paróquia de onde este negro reside estão, num período de um mês, autorizados e obrigados a acolher e vender o dito negro através de leilão público”. Acaso estes legisladores não tomam o devido cuidado para prevenir crueldade e opressão?

10. A lei da Jamaica ordena: “Todo escravo que vier a fugir e não se apresentar a seu mestre num período de doze meses haverá de ser condenado como rebelde”.37 E, por outra lei, cinquenta libras são ofereci- das a quem matar ou trazer um escravo rebelde de volta. Logo, suas leis tratam estes pobres homens sem qualquer cerimônia e consideração, tal como estes fossem meras bestas-feras! O sangue inocente derramado em consequência destas leis detestáveis há de clamar por vingança contra os sanguinários cúmplices e atores desta deliberada perversidade.

11. A lei de Barbados, todavia, excede até mesmo isso. “Se qualquer negro que estiver sob punição por seu mestre ou sob sua ordem por ter fugido, ou qualquer outro crime ou delito, haverá de sofrer com sua pró- pria vida ou algum membro, nenhuma pessoa sendo capaz de oferecer multa em seu lugar. Se qualquer homem devasso, ou apenas estando ele sedento por sangue ou alguma intenção cruel, vier a intencionalmente matar um negro de sua propriedade” (agora veja quão severa é a punição!) “ele haverá de pagar ao tesouro público quinze li- bras esterlinas! E ele não terá mais direito a nenhuma outra punição ou confisco pelo mesmo”!38 Muito próxima a esta é a lei da Virgínia: “Após proclamação feita por escravos fugitivos, é legal que qualquer pessoa mate e destrua este escravo, por quaisquer formas e meios que ele julgar adequado. Até aqui, vimos algumas das formas e meios que têm sido39 julga- dos como adequados em situações assim. E muitos outros poderiam ser mencionados. Um nobre senhor, quando eu estava no exterior, julgou adequado queimar vivo seu escravo! Mas se o mais natural dos atos de

36 Sharp (1769, p. 46). 37 Sharp (1769, p. 63). 38 Sharp (1769, p. 66-67). 39 Sharp (1769, p. 67).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 167 “fugir” de tal intolerável tirania mereça implacável rigor tal como este, que punição hão de esperar estes legisladores por seus enormes crimes?

IV. 1. Estes são os fatos de forma simples e sem exageros. Tal é a forma em que nossos escravos africanos são capturados, tal é a forma em que eles são transportados de sua terra natal e tal é a forma com que eles são tratados em nossas plantações. Eu gostaria agora de perguntar: acaso podem tais coisas ser defendidas, mesmo tendo como base um princípio pagão de honestidade? Poderão tais coisas ser reconciliadas (deixando a Bíblia fora da questão) com qualquer ideia de justiça e misericórdia?

2. O grande clamor é este: “estas coisas são autorizadas pela lei”. Mas poderá a lei, a lei humana, mudar a natureza das coisas? Poderá ela transformar trevas em luz, maldade em bondade? De forma alguma. Não obstante a força de dez mil leis, o que é certo é certo e o que é errado é errado. Há de haver uma diferença essencial entre justiça e injustiça, crueldade e misericórdia. Logo, eu pergunto novamente: quem haverá de reconciliar o tratamento dado aos negros com alguma noção de mi- sericórdia e justiça? Onde está a justiça quando se pratica o mais atroz dos males con- tra aqueles que nada fizerem de errado contra nós? De privar de todo conforto da vida aqueles que nunca nos injuriaram seja em palavra, seja em ações? De arrancá-los de suas terras natais e os privar de liberdade? Para cada angolano é concedido os mesmos direitos naturais de um in- glês, mas sobre qual direito o inglês se dá um valor superior? Oh, onde está a justiça quando se tira a vida de pessoas inocentes e inofensivas? Milhares são assassinados em suas próprias terras pelas mãos de seus próprios conterrâneos. Muitos milhares, ano após ano, a bordo de navios são jogados como estrume ao mar! E centenas de milhares postos nesta atroz escravidão a qual eles são injustamente reduzidos!

3. Deixando de lado, por ora, todas as demais considerações, eu gostaria de atacar a raiz desta infâmia. Eu não poderia colocar a questão com tamanha clareza como o fez, na força retórica de sua profissão, o juiz Blackstone. Suas palavras40 são as seguintes:

“As três origens do direto à escravidão formuladas por Justiniano são todas construídas sobre falsos fundamentos. 1. Escravidão é dita como resultado dos espólios da guerra. O vencedor há de ter direito sob a vida de seu pri- sioneiro e, caso este lhe poupe a vida, terá direito de fazer o que bem en-

40 Blackstone (1765 [vol. 1], p. 411-413).

168 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley tender com este prisioneiro. Isto é incorreto, todavia, se tomado geralmente, ou seja, que de acordo com as leis das nações, um homem tem o direito de matar seu inimigo. Ele apenas tem este direito em casos particulares, em casos de necessidade absoluta, como legítima defesa. E claro está que esta necessidade absoluta não subsiste uma vez que ele não matou seu inimigo, mas o fez seu prisioneiro. Guerra em si mesma é apenas justificável sob o princípio de legítima defesa. Assim sendo, ela não nos dá o direito sobre a vida de prisioneiros além de cuidar com que eles nos causem dano durante seu confinamento. Muito menos poderá a guerra justificar o direito à tortura, ou morte, ou mesmo a escravização de um inimigo depois do término da guerra. Uma vez que o direito de transformar nossos prisioneiros em es- cravos depende num suposto direito à homicídio, tal fundamento negado, a consequência tomada desta premissa também é negada.”41 “Diz-se, em segundo lugar, que a escravidão pode ter início caso uma pessoa venda a si mesma para outra pessoa. E isto é correto, uma pessoa pode vender-se a si mesma para trabalhar para outra, mas ela não pode se vender como escrava, tal como definido anteriormente. Toda venda exige que um equivalente seja dado ao vendedor em troca daquilo que ele transferiu a seu comprador. Mas qual equivalente pode ser dado por uma vida ou liberda- de? No instante em que alguém se torna escravo, a despeito do preço que aparentemente ele receba, sua propriedade recai sobre seu mestre e logo o vendedor não recebe nada. Assim, o comprador não oferece nada e o vende- dor não recebe nada. Ora, qual validade pode haver em uma transação que destrói o próprio princípio sobre o qual todas transações são fundadas?” 42 “Dizem-nos, em terceiro lugar, que pessoas podem nascer escravos por serem filhos de escravos. Mas, uma vez que este princípio é fundado sobre os dois direitos mencionados acima, ele também deve ser negado. Se tam- pouco cativeiro ou contrato podem pelas simples leis da natureza e razão reduzir um pai ao estado de escravidão, muito menos poderão eles reduzir à escravidão sua descendência.”43

Evidentemente, conclui-se que toda forma de escravidão é irrecon- ciliável com a justiça e a misericórdia.

41 Blackstone apud Sharp (1769, p. 141-142). 42 Blackstone apud Sharp (1769, p. 143). Wesley elimina a linguagem jurídica da fonte: “But secondly it is said, that Slavery may begin `Jure civilis´ when one man sells himself to another.” 43 Blackstone apud Sharp (1769, p, 143-144). Wesley elimina a linguagem jurídica da fonte: “Lastly, we are told, that besides these two ways by which Slaves `fiunt´ or are acquired, they may also be hereditary : `servi nascuntur´ the children of acquired Slaves jure natura, by a negative kind of birth-right, Slaves also. But this being built on the two former…”

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 169 4. Que possuir escravos é inconsistente com a misericórdia é tão evidente que mal merece prova. De fato, conforme se diz: “Como estes negros são prisioneiros de guerra, nossos capitães e gerentes os compram simplesmente para salvá-los da morte. Acaso isso não é misericórdia?” Eu respondo: 1. Acaso o Sr. John Hawkins, e muitos outros, capturaram homens, mulheres e crianças, todos estes vivendo em paz em seus próprios campos e casas, apenas para salvar suas vidas? 2. Foi para salvá-los da morte que eles estraçalharam os cérebros daqueles que eles não puderam levar? 3. Quem ocasionou e fomentou tais guerras de onde estas pobres criaturas foram tomadas como prisioneiras? Quem os instigou com dinheiro, bebidas e todas as formas possíveis para que se levantassem uns contra os outros? Acaso não foram os próprios brancos? Eles sabem em suas consciências que sim, considerando que exista entre eles qualquer consciência. 4. Mas, para sintetizar a questão: poderão eles dizer diante de DEUS que fizeram alguma viagem ou tomaram um negro sequer sob este motivo? Não, eles não podem. Eles bem sabem que sua única motivação foi ganhar dinheiro, e não salvar vidas.

5. Mas caso esta forma de buscar e tratar os negros não seja con- sistente com a misericórdia e a justiça, há ainda um apelo à escravidão que é suficiente para todos os homens de negócios. Cinquenta anos atrás, alguém encontrou um importante político no salão do Parlamento e lhe disse: “Há tempos o senhor fala sobre justiça e igualdade. De que se trata seu projeto de lei? Igualdade ou justiça?” Ele respondeu com poucas e simples palavras: “Não há justiça: apenas necessidade”. Aqui também o senhor dos escravos firma seus pés. Aqui ele deposita a força de sua causa: “Se não é de todo correto, ao menos é necessário que assim seja: há uma necessidade absoluta. É necessário que busquemos escravos e, em seguida, é necessário usá-los com rigor considerando sua estupidez, teimosia e perversidade”.44 A isso eu respondo: tu erras desde o princípio: eu nego que mal- dade é sempre necessária. É impossível que seja sempre necessário para qualquer criatura racional violar as leis da justiça, misericórdia e verdade. Nenhuma circunstância é capaz de fazer uma pessoa explodir todos os vínculos humanos. Não pode ser jamais necessário que um ser racional mergulhe abaixo do nível das feras. Uma pessoa não pode sob qualquer necessidade reduzir-se a um lobo. O absurdo desta premissa é tão evidente que é difícil ver como ninguém possa vê-la.

6. 45 Isto de forma generalizada, mas, para ser mais preciso, eu per- gunto: 1. Que necessidade? E, em segundo lugar, com qual propósito?

44 O tema da necessidade econômica da escravidão aprece também em Bénézet (1762, p. 32-34). 45 Este parágrafo rejeita um argumento a favor da escravidão usado por George Whitefield.

170 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley Pode-se responder: “Todo o método até aqui usado pelos compradores dos negros é necessário para fornecer às nossas colônias anualmente cem mil escravos”. Sim, eu concedo: isso é necessário para este propósito. Mas em que sentido é este propósito necessário? Como se provará ser necessário que cem mil ou que apenas um destes escravos seja captu- rado? “Ora, é necessário para que eu ganhe cem mil libras”. Talvez: mas como isso é necessário? É bem possível que tu te tornes uma pessoa melhor e mais feliz se tivesses menos de um quarto deste dinheiro. Eu nego que ganhar cem mil é necessário, seja por tua felicidade presente ou eterna. “Mas o senhor há de concordar que estes escravos são neces- sários para o cultivo de nossas ilhas, uma vez que brancos não podem trabalhar em climas quentes”. Eu respondo: 1. Seria melhor que estas ilhas ficassem para sempre não cultivadas; deveras é mais desejável que elas todas afundassem no profundo do mar, do que ser cultivada com tamanho preço, com tamanha violação da justiça, misericórdia e ver- dade. Mas, em segundo lugar, a premissa sobre a qual tu constróis teu argumento é falsa, pois homens brancos, mesmo ingleses, são capazes de trabalhar em climas quentes desde que sejam moderados tanto em carne quanto em bebida e que se acostumem a estes gradualmente. Eu falo por experiência. A julgar pelo termômetro, o calor do verão na Ge- órgia é geralmente o mesmo do de Barbados. Ainda assim, eu e minha família (oito no total) empregamos todo nosso tempo livre lá cortando árvores e limpando o solo, num trabalho tão árduo quanto o dos negros. Uma família alemã com 40 pessoas igualmente realizava toda forma de trabalho. E isto estava muito distante de ameaçar nossa saúde e todos continuamos a trabalhar perfeitamente bem, ao passo que os ociosos ao nosso redor eram varridos tal como uma peste. Não é, portanto, verdade que homens brancos não podem trabalhar, mesmo em climas quentes, tão bem quanto um negro. Se assim fosse, seria melhor que ninguém trabalhasse lá, que o trabalho não fosse feito, para que assim as mul- tidões de homens inocentes não fossem assassinadas, e muitas outras multidões arrastadas à escravidão.

7. “Mas precisamos de escravos para o comércio e riqueza, e para a glória de nossa nação”. Aqui existem muitos erros. Pois, 1. riqueza não é necessário para a glória de uma nação, mas sim sabedoria, virtude, justiça, misericórdia, generosidade, um espírito público, amor ao nosso país. Estes sim são necessários para a real glória da nação; abundância de riquezas, não. Qualquer pessoa de bom entendimento irá concordar que a glória da Inglaterra esteve tão elevada no tempo da Rainha Eli- zabeth quanto hoje em dia, muito embora nossas riquezas e comércio fossem tão menores e nossas virtudes tão maiores naquele tempo. Mas,

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 171 em segundo lugar, não é totalmente claro que teríamos menos dinhei- ro ou comércio (muito menos aquele comércio detestável de roubo de pessoas), caso não houvesse um negro sequer em nossas ilhas ou em toda a América inglesa. É demonstrável que brancos, se devidamente acostumados podem trabalhar tão bem quanto eles: e que eles de fato trabalhariam caso os negros ali não estivessem e o devido incentivo fosse dado a eles. Entretanto, em terceiro lugar, eu retorno ao mesmo ponto: melhor nenhum negócio do que negócio feito por meio de maldade. É muito melhor não ter nenhuma riqueza do que adquirir riqueza à custa da virtude. Melhor seria pobreza honesta que todas as riquezas trazidas pelas lágrimas, suor e sangue de nossas criaturas irmãs.

8. “Seja como for, é necessário tratar os escravos com rigor, quando os temos.” O quê? Açoitá-los a cada pequena transgressão até que es- tejam eles sangrando? E aproveitar para esfregar pimenta e sal em sua carne viva? E derramar cera quente em sua pele? Cortar metade de seu pé com um machado? Pendurá-los em forcas até que morram aos poucos, no calor, com fome e sede? Arremessá-los ao chão para então os queimar aos poucos, dos pés à cabeça? Queimá-los vivos? Quando um turco ou pagão qualquer achou necessário usar uma criatura irmã desta forma? Eu repito, a que fim este costume é necessário? “Oras, para preveni- -los de fugir e para mantê-los trabalhando a fim de que não percam seu tempo. Tão miseravelmente estúpida é a raça dos homens, sim, tão tei- mosa e perversa”. Caso sejam eles estúpidos como tu o dizes, a que se deve tal estupidez? Não há dúvidas que ela bate à porta de seus mestres desumanos. Quem lhes negou os meios, oportunidades de desenvolver seu entendimento? Logo os deixam sem alternativas, seja por esperança ou medo, de tentar alcançar entendimento. Em nenhuma medida eram eles marcados por estupidez enquanto viviam em sua própria terra. Os habitantes da África, onde eles têm iguais motivos e meios de desenvolvimento não são inferiores aos habitantes da Europa. Em alguns casos, eles são muito superiores. Faça uma pesquisa imparcial em seus próprios países, entre os nativos do Benim e do Laplão e compare (deixando todo preconceito de lado) os samoeids e os angolanos. De qual lado fica a vantagem em se tratando de entendimento? Certamente, o africano não é inferior ao europeu. Sua estupidez em nossas plantações não é natural, ao contrário, ela é o efeito natural de sua condição. Logo, a estupidez deles é sua culpa e tu haverás de responder por ela, diante de DEUS e das pessoas.

9. “Mas a estupidez deles não é o único motivo para tratarmos eles com rigor. Afinal é difícil dizer qual é o maior, se sua teimosia ou sua perversidade”. É possível que assim seja, mas acaso estes fatores, assim

172 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley como o outro, não batem à sua porta? Acaso não são teimosia, malícia, furtos e muitos outros vícios os frutos naturais e necessários da escravi- dão? Não seria esta uma observação comum a toda época e nação? Quais meios tu tens usado para abolir esta teimosia? Tentaste usar temperança e gentileza? Conheço alguém que teve prudência e paciência para fazer a experiência: Sr. Hugh Bryan46, então vivendo nas fronteiras da Carolina do Sul, e qual foi o resultado? Ora, que todos os seus negros (e ele não tinha poucos) o amavam e o reverenciavam como um pai e alegremente o obedeciam com amor. De fato, eles temiam muito mais um de seus olhares do que o chicote de qualquer supervisor. O que tu tens feito, quais métodos tens usado para resgatá-los de sua perversidade? Ensinastes a eles que existe um DEUS, um Ser sábio, poderoso e misericordioso, Criador e Sustentador dos céus e da terra? Que ele designou um dia em que julgará o mundo, e julgará todos nossos pensamentos, palavras e ações? E que naquele dia ele irá compensar todos os filhos dos homens de acordo com suas obras de forma que “os justos herdarão o reino pre- parado para eles desde a fundação do mundo e que os perversos serão jogas no fogo eterno preparado pelo diabo e seus anjos”. Se tu não tens feito isso, se não tomas os esforços ou pensamentos necessários sobre esse assunto, poderá meditar sobre a perversidade deles? Que surpre- sa seria que eles se levantassem para cortar tua garganta? Se eles o fizessem, a quem o senhor poderia agradecer, se não a ti mesmo? Tu primeiro agiste como o vilão ao torná-los escravos (seja se os roubaste ou compraste). Tu os mantiveste em estupidez e perversidade ao cortar todas as oportunidades de desenvolvê-los em conhecimento e virtude. Agora tu descreves o desejo deles em crescer em sabedoria e bondade como motivo para explorá-los ainda mais como bestas-feras!

V. 1. Resta-nos agora apenas fazer uma breve aplicação das observa- ções precedentes. Mas a quem devem ser dirigidas estas aplicações? Isto nos leva a uma nova questão. Deveríamos nos dirigir ao grande público? Que efeito isto poderia ter? Isto pode inflamar o mundo todo contra os culpados, mas não deverá remover a culpa dos mesmos. Deveríamos apelar à nação inglesa em geral? Isto é um passo muito grande e prova- velmente não reparará a chaga que aqui descrevemos. Ainda mais inútil seria buscar apoio no parlamento. Tantas coisas que aparecem de maior importância estão diante deles que é difícil pensar que nos ouvirão. Assim

46 Hugh Bryan (?-1753). Aproximou-se pela influência de George Whitefield ao movimento de avivamento, mas, voltou ser escravagista no fim da sua vida. Um dos seus escravos libertos, Andrew Bryan (1737-1812) fundou a primeira comunidade batista afro, a Primeira Igreja Batista Africana das Américas, na cidade de Savannah, Estado da Geórgia.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 173 eu direciono umas poucas palavras àqueles que estão imediatamente envolvidos, sejam eles capitães, mercadores ou plantadores.

2.47 Primeiro, aos capitães empregados por este negócio: a maioria dos senhores conhece Guiné, ao menos partes dela entre o Rio Senegal e o Reino de Angola. Talvez agora, por conta de seus meios, parte destas terras tornou-se uma região sombria e inóspita com seus habitantes todos mortos ou levados sem que ninguém ficasse para cuidar da terra. Mas os senhores sabem bem quão populosa, quão frutífera e quão agradável era essa terra poucos anos atrás. Os senhores sabem que o povo não era estúpido e que eram providos de razão, considerando os poucos meios de desenvolvimento que eles tinham. Não os encontraram como selvagens, brutos, cruéis, traiçoeiros ou rudes com os estrangeiros. Ao contrário, em sua maioria, eles eram um povo sensível e criativo. Eles eram educados e amigáveis, corteses e atenciosos, além de serem muito justos em seus negócios. Tais são as pessoas a quem os senhores contratam para destruir esta terra encantadora, em parte por divisões, em parte por força, em parte por prisioneiros naquelas guerras às quais os senhores fomenta- ram de propósito. Os senhores os viram assim destroçados, crianças de seus pais, pais de suas crianças, maridos de suas esposas, esposas de seus amados maridos, irmãos e irmãs uns dos outros. Os senhores os arrastaram de sua terra natal, talvez em correntes, logo eles que nunca os fizeram qualquer mal. Os senhores os forçaram para dentro de seus navios como uma manada de porcos, eles mesmos, cujas almas são imor- tais tais quais as suas. Alguns entre eles mergulharam ao fundo do mar e lá ficaram sob a água até que não pudessem mais sofrer em suas mãos. Os senhores os empacotaram todos juntos, o mais próximo possível, sem qualquer cuidado com decência ou conforto. Quando muitos se intoxicaram com o ar podre ou se afundavam em muitos outros males, os senhores entregaram seus restos ao profundo até que o mar fizesse-nos esquecer de seus mortos. Os senhores conduziram os sobreviventes na mais vil das escravidões, esta que dura até o término da vida. Tal escravidão não é encontrada entre os turcos e argelinos, nem entre os pagãos da América.

3. Posso falar abertamente contigo? Assim eu devo. O amor me cons- trange a fazê-lo, amor a ti, bem como às pessoas com quem tu te preocupas. Haverá um DEUS? Tu sabes que sim. Será ele um DEUS justo? Se sim, deve haver um espaço de retribuição, um estado em que o DEUS justo recompensará cada pessoa de acordo com suas obras. Qual recom- pensa será dada a ti? Oh, pense enquanto há tempo! Antes que sejas

47 Os parágrafos V.2 até V.6 Bénézet integrou no tratado Notes on the slave trade de 1781, referindo-se a um “autor sensível”, sem mencionar John Wesley literalmente.

174 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley jogado à eternidade! Pense agora, Ele haverá de julgar sem misericórdia aos que não mostraram misericórdia.48 Acaso és um ser humano? Se sim, haverá de ter um coração hu- mano. Mas será que o tem de fato? Do que é feito teu coração? Acaso não há um princípio de compaixão aí? Não sentes a dor do outro? Não tens simpatia? Nenhum senso da angústia humana? Nenhuma piedade pelos miseráveis? Quando tu viste os olhos cheios de lágrimas, os peitos ardendo, os lados ensanguentados e os membros torturados de suas criaturas-irmãs, acaso eras tu uma pedra, ou uma fera? Olhaste a eles com os olhos de um animal? Quando amarrotaste estas criaturas tão sofridas nos navios, ou quando jogaste seus pobres e deformados restos ao mar, não tiveste pena alguma? Acaso uma lágrima que seja não caiu de teus olhos, um suspiro a deixar teu peito? Não sentes piedade algu- ma neste momento? Se não sentes, siga adiante, *até que a medida de tuas depravações esteja completa*49. Então o grande *DEUS haverá de tratar contigo*50, assim como tu os trataste, e *pedir de ti todo o sangue que jaz em tuas mãos*51. *E naquele dia, DEUS será mais tolerante com Sodoma e Gomorra*52 do que contigo! Porém, se sentes piedade em teu coração, ainda que pouca, saiba que isso é um chamado do DEUS de amor. *Hoje, caso escutes esta voz, não endureças o teu coração*53. Hoje mesmo decida com *o auxílio de DEUS*54 escapar desta vida. Não penses no dinheiro! *Poderá uma pessoa pagar sua vida com todos seus bens?* 55 *O que quer que tu venhas a perder, não venhas a perder tua alma*56: nada pode compensar esta perda. Imediatamente abandone este comércio terrível. *Em todos os momentos, seja um homem honesto!*57

4. Isto também diz respeito a todo comerciante envolvido no comércio de escravos. És tu que cativa o vilão africano a vender seus conterrâneos e, como consequência, a roubar, furtar, assassinar um sem número de homens, mulheres e crianças. Tu permites que o vilão inglês pague o africano para fazer isto, a quem o senhor paga por seu trabalho execrá- vel. É o teu dinheiro a fonte de toda motivação para tudo isto; quer seja o inglês quer seja o africano que venha a fazer estas coisas, tudo isto

48 Tiago 2.13. Daqui até a alegação a 2 Timóteo 2.24, enfatiza-se a justiça humana tendo em vista a justiça final de Deus. 49 Gênesis 15.16; Mateus 23.32. 50 Hebreus 12.7. 51 Ezequiel 3.18; Atos 18.6. 52 Marcos 6.11a. 53 Salmo 95. 7-8; Hebreus 3.[7], 15. 54 Salmo 23.1, Hebreus 13.6. 55 Jó 2.4. 56 Mateus 10.39 e 16.25. 57 Esta expressão tornou-se um século depois uma conhecida afirmação de Abraham Lincoln.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 175 é de fato tua obra. Acaso tua consciência está em paz com isso? Acaso ela não te acusa? Terá o ouro completamente cegado teus olhos e em- brutecido teu coração? Não podes ver, não podes sentir nenhum mal? É assim que desejas que seja feito a ti mesmo? Faça tua própria defesa. “Mestre”, disse um escravo em Liverpool ao comerciante e seu proprie- tário, “e se alguns de meus conterrâneos viessem até aqui e tomassem minha companheira, e o mestre Tommy, o mestre Billy e os carregassem para nossa terra os tornando escravos, como o senhor se sentiria?” Sua resposta foi a resposta de um verdadeiro homem: “Jamais comprarei um escravo conforme viver”. Oh, que seja esta a tua decisão! Não tenhas mais parte neste negócio detestável. A uma só vez, deixe-o para aqueles miseráveis insensíveis “que riem da natureza humana e da compaixão”!58 Seja tu um homem! Não um lobo, devorador da espécie humana! Seja misericordioso, a fim de que alcances misericórdia.

5. Isto também diz respeito a todos os nobres senhores que possuem propriedades em nossas plantações americanas. Sim, todos os senhores de escravos de qualquer escalão: assistir aos compradores de pessoas é comparável a roubar pessoas59. De fato, tu dizes: “Eu pago meus bens honestamente e não me preocupa saber como eles vieram a mim”. Oh sim, mas de fato tu estás: Tu estás preocupado em saber se estes bens foram comprados honestamente. Caso contrário, tu és cúmplice de roubo e tampouco és mais honesto que um ladrão. Pois tu sabes muito bem: eles não são honestamente trazidos. Tu sabes que eles são capturados com meios não menos inocentes do que furtos, *invasão domiciliar ou roubo nas estradas*60. Tu sabes que eles são capturados por uma série deliberada de atos perversos, de fraudes, roubos e assassinatos, espe- cialmente estes, por diversos meios, pelo sangue inocente derramado ao chão tal como água – coisas nunca antes praticadas por muçulmanos ou pagãos. É o teu dinheiro que paga o comerciante e, por meio dele o capitão e os assassinos africanos. Tu, portanto, és culpado, o maior culpado, por todas estas fraudes, roubos e assassinatos. Tu és a fonte que põe todo o restante em movimento: eles não ousariam dar um passo sem teu auxílio. Assim, o sangue destes miseráveis que morrem antes

58 Em carta para Benjamin Franklin, do dia 27 de abril 1772, com conteúdo abolicionista, Bénézet usou a mesma expressão: “I will grant thou must expect to meet with disagreeable opposition, from too many, who sell their country and their God for gold, who laugh at human Nature and compassion, and defy all religion but that of getting money; but the testimony of a good Conscience; the favour of the great father of the family, for having, tho’ under difficulties, endeavoured to relieve his Children from such horrible oppression” (grifo nosso). 59 1 Timóteo 1.10. 60 Junto à nota anterior. A comparação aparece nas Notas do Novo Testamento (1755), no comentário de 1 Timóteo 1.10.

176 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley de seu tempo, seja em sua terra ou em qualquer outro lugar, está sobre tua cabeça. O sangue de teu irmão (pois, caso tu não creias nisso, assim ele é visto por aquele que o fez) clama contra ti desde esta terra,61 do navio e das águas do mar. Oh, a qualquer custo, dê um fim a este clamor antes que seja muito tarde. A um só tempo, a qualquer custo, mesmo metade de seus bens, liberte-se desta culpa! Tuas mãos, tua cama, teus móveis, tua casa, tuas propriedades estão agora manchadas de sangue. Já basta! Não acumules mais culpa. Não derrames mais sangue inocente. Não contrates mais ninguém para derramar sangue: não pague a ele para fazer isso! Sejas tu um cristão ou não, não caias de sua humanidade: não sejas *mais selvagem do que um leão ou um urso*62!

6. Talvez o senhor me diga, “Eu não compro negros, eu apenas uso aqueles que herdei de meu pai”. Até aqui tudo bem, mas será suficiente satisfazer tua própria consciência? Tinha teu pai, tens tu, acaso qualquer pessoa tem o direito de usar outro como escravo? Assim não pode ser, mesmo se deixamos a revelação de lado. Não pode ser que, quer seja por guerra ou contrato, uma pessoa possa ser dona de outra tal como alguém é dono de ovelhas e gado. Ainda menos possível é que qualquer criança possa nascer escrava. *Liberdade é um direito de toda criatura humana, assim que ela respira o ar vital. Nenhuma lei humana pode nos tirar este direito que tomamos da própria lei da natureza*.63 Se, portanto, tu tens qualquer interesse na justiça (sem dizer nada sobre misericórdia ou da lei revelada de DEUS), dê a todos o que lhes é devido. Dê liberdade a quem deves liberdade, isto é, a todas as pes- soas humanas, a todo aquele que toma parte na natureza humana. Não permita que ninguém te sirva a não com seu próprio trabalho, por sua própria escolha voluntária. Lance fora os chicotes, todas correntes, toda compulsão! *Seja gentil*.64 Assegure que tu fazes para todos aquilo que queres que façam a ti mesmo.

7. Oh DEUS de amor, *tu que és amoroso para com todas as pessoas e cuja misericórdia está sobre todas tuas obras*65; tu que és o *pai dos espíritos em toda carne*66 e que *é rico em misericórdia com tudo*67;

61 Gênesis 4.10. 62 Livre alusão a Amós 5.19. 63 Alguns autores relacionam esta frase com A. Bénézet. Ele cita de fato esta frase somente em um tratado de 1781, ou seja, neste caso é ele quem segue Wesley e não vice-versa. 64 2 Timóteo 2.24. 65 Salmo 145.9. Um texto chave para Wesley na defesa da doutrina da salvação universal [contra a dupla predestinação]. Daqui até a última citação bíblica enfatiza-se a miseri- córdia de Deus. 66 Cf. Hebreus 12.9. 67 Salmo 86.5b.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 177 *tu que criaste de um único sangue todas as nações da terra*68: *tem compaixão desta gente desamparada, que são pisados como estrume sobre a terra!*69 *Levanta e ajude a estes*70 que não tem ajuda, *cujo sangue é derramado sobre a terra como torrentes de água!*71 Acaso não *são estas também obras de tuas mãos, compradas pelo sangue de teu Filho?*72 Mova-os para que *clamem a ti na terra de seu cativeiro*73 e permita que seu *clamor chegue diante de ti*74; *permita que este clamor entre em seus ouvidos*75! *Faça com que mesmo os que os conduzem ao cativeiro tenham piedade deles*76 e *convertam suas senzalas como os rios do sul*77. *Oh, quebre todas suas correntes*78, especialmente as correntes de seus pecados. Tu, Salvador de todos, *liberte-os, a fim de que sejam livres79!

A descendência servil de Ham Toma com o preço de teu sangue! Que todos pagãos saibam teu nome: Dos ídolos ao Deus vivo Os americanos escuros converte E brilha em cada pagão coração!80

68 Atos 17.26. 69 Cf. Ezequiel 16.5. 70 Salmo 35.2b ou 44.26a. 71 Cf. 1 Samuel 14.14 ou Salmo 22.14. 72 Salmo 138.8. 73 2 Crônicas 6.37. 74 Salmo 119.169a. 75 2 Samuel 22.2c. 76 2 Crônicas 30.9. 77 Salmo 126.4 78 Naum 1.13. 79 João 8.36. 80 Estrofe 3 do Hino “For the heathens“, Letra de Charles Wesley.

178 Filipe Maia; Helmut Renders: Os “Pensamentos sobre a Escravidão” (1774) de John Wesley Anexo DA I N J UST IÇA PARA AUST I C A J DA FAL T A DA M I SE RI C ÓRDIA À SU A VIVÊ NC IA

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 179 Referencias bibliográficas

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Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 153-181, jan./jun. 2013 181 “Vá em frente, em nome de Deus”: seis cartas abolicionistas dos anos 1787 e 1791, escritas por John Wesley, traduzidas e interpretadas* “Go on, in the name of God”: six letters from 1787 and 1791 written by John Wesley to abolitionists, interpreted and translated to Brazilian Portuguese “Adelante en el nombre de Dios”: seis cartas de los años 1787 e 1791 escritos por el John Wesley a abolicionistas, interpretadas y traducidas para el portugués brasileño

Helmut Renders

Resumo Depois de uma introdução, são apresentadas em inglês e português seis cartas de autoria de John Wesley, sacerdote anglicano e spiritus rector do movimento metodista, dirigidas para Samuel Hoare (18 de agosto de 1787), Thomas Clarkson (de Londres, em agosto 1787), Granville Sharp (Londres, 11 de outubro de 1787), Thomas Funnell (24 de novembro de 1787), Henry Moore, (de Bristol, 14 de março de 1790) e John Wilberforce (de Balam, 24 de fevereiro de 1791). As cinco pessoas pertenciam aos círculos da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escra- vos, fundada no dia 22 de maio de 1787. Hoare, um quacre, Sharp e Clarkson, ambos anglicanos, eram membros fundadores, Funnell, membro associado logo em seguida e Wilberforce o líder da comissão parlamentar que tratou do assunto. Palavras-chave: John Wesley; Samuel Hoare; Thomas Clarkson; Thomas Funnell; Granville Sharp; Henry Moore; John Wilberforce.

Abstract After an introduction, are presented in English and Portuguese six letters writ- ten by John Wesley, an Anglican priest and spiritus rector of the Methodist movement, addressed to Samuel Hoare (18 August 1787), Thomas Clarkson (London, in August 1787), Granville Sharp (London, 11 October 1787), Thomas Funnell (24 November 1787), Henry Moore (Bristol, 14 March 1790) and John Wilberforce (Balam, February 24, 1791). The five people belonged to the circles of the Society for the abolition of slave trade, founded on May 22, 1787. Hoare, a Quaker, Sharp and Clarkson, both Anglicans, were founding members, Funnell, associate member soon after and Wilberforce and the leader of the parliamentary committee that dealt with the subject. Keywords: John Wesley; Samuel Hoare; Thomas Clarkson; Thomas Funnell; Granville Sharp; Henry Moore; John Wilberforce.

* O artigo foi primeiro publicado na revista Numen [UFJF], vol. 16, n. 1 (2013).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 183 Resumen Después de una introducción, se presentan, en inglés y portugués, seis cartas de autoría de John Wesley, sacerdote anglicano y spiritus rector del movimiento metodista, dirigidas a Samuel Hoare (18 de agosto de 1787), Thomas Clarkson (de Londres, en agosto de 1787), Granville Sharp (Londres, 11 de octubre de 1787), Thomas Funnell (24 de noviembre de 1787), Henry Moore, (de Bristol, 14 de marzo de 1790) y John Wilberforce (de Balam, 24 de febrero de 1791). Las cinco personas pertenecían a los círculos de la Sociedad a favor de la abolición del tráfico con esclavos, fundada el 22 de mayo de 1787. Hoare, um quacre, Sharp y Clarkson, ambos anglicanos, eran miembros fundadores, Funnell, que se asoció enseguida y Wilberforce, el líder de la comisión parlamentaria que trató del asunto. Palabras clave: John Wesley; Samuel Hoare; Thomas Clarkson; Thomas Funnell; Granville Sharp; Henry Moore; John Wilberforce.

Introdução As seis cartas apresentadas a seguir representam preciosos documen- tos da atitude de John Wesley (1703-1991), sacerdote anglicano e spiritus rector do movimento metodista, em relação a abolicionistas ingleses da primeira hora: Samuel Hoare (1747-1827), Thomas Clarkson (1760-1846), Granville Sharp (1735-1813), Thomas Funnell, Henry Moore e John Wilber- force (1759-1833).1 As primeiras três pessoas fizeram parte do grupo dos 12 que fundaram, em 22 de maio de 1787, a Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos. Funnell se juntou ao grupo logo em seguida, Moore era um simpatizante ativo e Wilberforce liderou a articulação parlamentar. A importância das cartas para Sharp, Clarkson, Hoare e Funnell mostra também seu registro nas atas da sociedade (FAIR MINUTE BOOK, 1787- 1788): elas não eram escritos “pessoais” expressando até ideias radicais, porém, sobre o sigilo da privacidade.2 Bem diferente, eram cartas “públicas” para pessoas que acabaram de expor os seus compromissos abolicionistas correndo riscos de tornarem-se alvos prediletos de um setor econômico significativo da Inglaterra. As cartas são, então, cartas para as lideranças do movimento quanto a sua função pública.3 Em seguida, gostaríamos de apresentar e comentar os temas men- cionados nestas cartas: o projeto em si, a estratégia escolhida, os alertas em relação às reações que devem ser esperadas da parte dos escrava- gistas e dos traficantes dos escravos, a forma como Wesley motiva os abolicionistas e o que ele promete como suporte. Seguem as traduções em edição bilíngue. 1 18/08/1787: Carta para Samuel Hoare (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 275 ); 08/1787: Carta para Thomas Clarkson (TELFORD, 1960, [vol.8], p. 6-7); 11/10/1787: Carta para Granville Sharp (TELFORD, 1960, [vol.8], p. 17); 24/11/1787: carta para Thomas Funnell (TELFORD, 1960, [vol. 8], p. 23). 2 Nestas atas menciona-se também a proposta de imprimir uma nova edição dos Pensa- mentos sobre a escravidão (WESLEY, 1774). 3 Confira também o plural “senhores” (gentlemen) na primeira carta para S. Hoare: ela foi escrita para Hoare e os membros da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos.

184 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” As cartas em seu contexto As cartas pertencem a fase da orquestração política da causa aboli- cionista que iniciou com a primeira petição ao parlamento inglês em 1887 escritos pelos quacres de Londres, mas apresentado no parlamento por Sir Cecil Wray e que ganhou seu corpo institucional definido pela funda- ção da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos em 1887. Porém, a causa abolicionista não era um tema tardio em Wesley. Podemos distinguir uma primeira fase, porém já com pronunciamentos claros contra a instituição da escravidão e/ou tráfico de escravos em seu diário, suas Notas sobre o Novo Testamento de 1755, bem em sintonia com pronunciamentos do seu pai (1662-1735) Samuel Wesley. Em uma segunda fase, com início em 1772, observa-se uma intensa comunicação e troca de documentos, tratados etc. entre Granville Sharp (1735-1813), Antoine Bénézet (1713-1784) e John Wesley (1703-1791). Nesta fase teceu-se uma rede de contestadores da escravidão que procurou mudar a opinião pública sobre o assunto, informando sobre a instituição da escravidão, desconstruindo os argumentos usados em seu favor e oferecendo argumentos e razões para a abolição da escravidão. Por parte de Wesley, a expressão maior são seus Pensamentos sobre a escravidão, publicados em 1774.

O projeto: abolição da escravidão ou abolição do tráfico de escravos, gradual ou imediata? Como já o nome da sociedade indica, era seu projeto inicial colocar um fim no tráfico de escravos por navegações inglesas. Já isso repre- sentava um golpe significativo, respondia a Inglaterra ao longo do tempo para 36% de todo o transporte de escravos. Tanto na correspondência para Clarkson4 como na carta para Wil- berforce5 fica evidente que Wesley acompanhou a decisão estratégica de focar no tráfico sem perder de vista o tema maior. Não temos um posicionamento de Wesley a respeito de um terceiro assunto relacionado, o da finalização gradual ou imediata da escravidão. Podemos, porém, supor que quem escreve as seguintes palavras, favo- receu um fim imediato:

[...] melhor nenhum comércio, do que um comércio adquirido por vilania. É muito melhor ter nenhuma riqueza, do que ganhar riqueza a custo da virtude.

4 “enquanto que iria destruir o comércio de escravos, também atacar a raiz da chocante ‘abominação da escravidão’”. 5 “Vá em frente, em nome de Deus e na força do seu poder, até mesmo a escravidão americana (o mais vil que já vi o sol) deve desaparecer antes que ele”.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 185 Melhor é a pobreza honesta, do que todas as riquezas trazidas pelas lá- grimas, pelo suor, pelo sangue de nossos semelhantes (WESLEY, 1774, p. 45 [§IV.7]).

Nesta questão, Wesley se posicionou como Clarkson para quem a proposta da sociedade era uma decisão cogitando a realidade política, não uma posição ideal.6 Este assunto ficou na agenda por muito tempo, como o texto Abolição imediata, não gradual (1836), de Elizabeth Heyrick (1769-1831), uma abolicionista americana de Filadélfia. O texto, escrito três anos depois do fim da escravidão em todo território inglês, mostra a luta para o fim da escravidão nos EUA.

A aliança ampla: não-conformistas, anglicanos da low e high church e latidunaristas Mesmo não conhecendo o dia exato quando Wesley escreveu a sua carta para Clarkson, colocamos a carta para o quacre Samuel Hoare no início da coletânea das seis cartas porque ao grupo não-conformista dos quacres pertence a honra de ter iniciado a luta. As obras do quacre Antoi- ne Bénézet7 (1762; 1766; 1772) eram fundamentais para o envolvimento direto de John Wesley na luta, especialmente, em relação à sua publica- ção Pensamentos sobre a escravidão (1774) e para o envolvimento na causa abolicionista de Granville Sharp (1735-1813). Os quacres também lançaram as primeiras resoluções no parlamento inglês (1783), mas, como ocuparam na sociedade inglesa somente um lugar às margens, incapaz de representar uma influência política decisiva, não conseguiram ampliar a pressão pública.8 A acolhida da sua causa por John Wesley, um anglicano urbano com, depois de 1770, bons relacionamentos com os mais diver- sos setores da sociedade inglesa, aproximou o grupo às forças decisivas para mudar a legislação em vigor e contribuiu para uma aceitação mais

6 Isso parece transparecer também em sua carta para Hoare: “Há uma semana, foi favo- recido por uma carta do Sr. Clarkson, informando-me de seu projeto verdadeiramente cristão, de obter, se possível, uma lei do Parlamento para a abolição da escravatura em nossas plantações” (grifo nosso). 7 O único quem falta nesta lista de correspondências abolicionistas é Antoine Bénézet (1713-1784). Cartas de Wesley para ele são mencionadas por ele, porém, não sobrevi- veram. Uma carta dele para John Wesley foi publicado por Wesley no Arminian Magazine no ano da criação da sociedade abolicionista (BÉNÉZET, 1787, p. 44-51). 8 Com sua ênfase na condução imediata dos seus membros pelo Espírito Santo os quacres fazem parte da vertente mística do cristianismo, um grupo que Wesley em geral não favoreceu pela sua rejeição dos sacramentos e do clero. O interessante no caso desse grupo de quacres era que a experiência mística os levou para uma militância social pouco vista, senão em movimentos religiosos como o próprio metodismo primitivo.

186 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” ampla da causa abolicionista.9 Sharp e Clarkson instituíram a aliança entre engajados da Igreja da Inglaterra, da sociedade civil e os não con- formistas como os quacres em termos técnicos, mediante a constituição da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos. John Wesley tem o mérito de construir pontes importantes entre os grupos diferentes na fase inicial (1762-1774) da luta e sustentar a difusão e sedimentação do discurso abolicionista na sociedade inglesa, especialmente, a partir da publicação de artigos no Arminian Magazine entre os anos 1783 a 1791.

O alerta: os interesses dos lobistas da escravidão e as suas reações esperadas O motivo principal da escravidão, a avareza e ganância em busca de lucro, era já um tema recorrente nos textos de Bénézet (1762, p.16 e 32- 34; 1666, p. 3; 1771, p. 3, 43, 48, 60, 97 e 104). A reação a ser esperada, não. Wesley refere-se a diversas estratégias dos lobistas escravagistas: • contratar pessoas que constroem e apresentam discursos em sua defesa (“escritores mercenários”); • procurar amigos dos abolicionistas, para destruir sua rede de apoio pessoal e questionar sua integridade pessoal (sem justiça e misericórdia).

Esta descrição aparece duas vezes, tanto na carta para Hoare como para Clarkson. “Sem justiça e misericórdia” são opostos ao ideal central defendido nos próprios Pensamentos sobre a escravidão oito vezes, das quais citamos a primeira ocorrência “II.11 Nossos antepassados​​! Onde vamos encontrar no dia de hoje, entre os nativos de cara pálida da Euro- pa, uma nação que em geral pratica a justiça, a misericórdia e a verdade [...]? (WESLEY, 1774, p. 14, p. 33, 34, 36, 38 e 39-40). Na carta para Granville Sharp, Wesley é ainda mais abrangente: Eles

[...] não são perturbados por qualquer tipo de honra, consciência, ou huma- nidade, e vão continuar sem parar, per fasque nefasque10, através de todos

9 Brendlinger (2001, p. 164-173) investigou também a relação entre Bénézet e Whitefield, pregador eminente metodista e defensor da instituição da escravidão, por razões bíblicas (!), econômicas – isso surpreende menos – e humanitárias (!). Muito interessante são as reflexões de Bénézet sobre o posicionamento de Whitefield. Ele alega que a contínua convivência com a instituição da escravidão nas colônias inglesas (menos a Geórgia, onde Whitefield lutou pela sua introdução) teria o dessensibilizado e que os problemas econômicos com o orfanato em Geórgia teriam o “obrigado” a ter escravos nesta insti- tuição. Aparentemente, o mesmo ambiente não causou o mesmo efeito sobre os irmãos Wesley. A razão deve ser procurada em sua ênfase teológica na graça universal que se dirige a toda humanidade, sem distinção. Como Maddox (2011, p. 29) corretamente aponta, aparece o respectivo texto bíblico chave usado por Wesley, Salmo 145.9, no fim dos seus Pensamentos sobre a escravidão. 10 Latim para “Seja certo ou errado”.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 187 os meios possíveis, para servir seu Deus maior, os seus interesses” e “não pouparão dinheiro para levar a sua causa até o fim, e isto vale milhares de argumentos para a grande maioria dos homens.

Na carta para Funnell há um alerta geral “... haverá uma oposição vigorosa, por ambos, tanto pelos comerciantes de escravos como pelos donos dos escravos, e eles são homens poderosos...”11 e na carta para Wilberforce refere-se Wesley a desgastante “oposição de homens e demô- nios”. Aqui não se articula uma pessoa religiosa, cheia de boas intenções, entretanto, “protegido” por uma ingenuidade que ela incapacita exercer uma presença pública. Aqui, alerta uma pessoa com experiência da vida e da perseguição por motivos religiosos para não subestimar: • a necessidade de perseverança por enfrentar adversários deci- didos de ir até o fim, • a necessidade da produção continua de argumentos que des- constroem o discurso escravagista e proporcionam argumentos abolicionistas, • a necessidade de cuidar dos seus relacionamentos pessoais para não se desgastar humanamente. De fato, como Wesley afirma na sua carta para Wilberforce, isso é um empreendimento para um “Athanasius contra mundum”12. A compa- ração de Wilberforce com o maior teólogo cristão do quarto século e sua imensa luta contra o Arianismo que incluiu diversos exílios, nos leva ao próximo aspecto, a forma de poder enfrentar tudo isso.

A motivação: a iniciativa está em sintonia com a lei natural e tenha o suporte divino “A menos que o poder divino levantou o senhor para ser para nós um Athanasius contra mundum, não vejo como o senhor pode ser bem- -sucedido”, isso é a abertura completa da carta para Wilberforce. Logo continua: “Mas se Deus é pelo senhor, quem pode ser contra o senhor?” Na carta para Funnell lemos: “Mas o nosso conforto é que aquele que ha- bita nas alturas é mais poderoso”. Para Granville Sharp afirma: “Em todas estas dificuldades que conforto é poder considerar (fora de moda, pois é) que há um Deus! Sim, e que ele (apesar de que os homens pouco pensam nele!) ainda tem todo o poder no céu e na terra! Para ele, eu recomendo você e sua gloriosa causa”. Clarkson leu, “Confio-vos a Ele, que é capaz de levar-vos através de toda a oposição e apoiar-vos em todos os desa- lentos” e Hoare: “sabemos que todas as coisas são possíveis com Deus”.

11 Também na carta para Hoare: os escravagistas são “numerosos, ricos e, consequente- mente, um grupo muito poderoso”. 12 Citação completa: “Athanasius contra mundus, et mundum contra Athanasium” (Atanásio contra o mundo e o mundo contra Atanásio).

188 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” Na aplicação dos termos religiosos parece-nos Wesley revelar sua percepção de proximidade com cada pessoa. Para Hoare serve uma citação de um versículo bíblico – a gente convive no mesmo mundo reli- gioso, sabe como ele funciona e se entende sem explicações adicionais. Wilberforce é lembrado da sua experiência de juventude, uma referência a sua conversão com 25 anos na presença de John Newton. Sharp e Clark- son são “convidados” para confiar em Deus, no caso de Sharp com duas menções de que isso seja visto, por muitos, como algo bastante fora de moda. Entretanto, o mais importante é que Wesley apresenta para todos uma espiritualidade da presença, vontade e soberania de Deus capaz de sustentar a necessária perseverança, renovar as forças para superar contratempos e decepções e conferir sabedoria para o discernimento necessário de cada dia e ocasião. Além disso, oferece ainda uma motivação mais ampla que passa pela descrição da causa abolicionista como algo certo diante do direito natural e da experiência humana em sentido mais amplo. Escravidão é “um escândalo da religião, da Inglaterra e da natureza humana” (carta para Wilberforce), “um escândalo, não só para a cristandade, mas, para a humanidade” (Carta para Moore) e “pessoas com humanidade” se alegram do “espírito” (nobre) da causa abolicionista (carta para Clarkson). Espe- cialmente a formulação na carta para Wilberforce o aproxima ao conteúdo do verbete “Tráfico de negros” escrito por Louis de Jaucourt (1775) para a Enciclopédia francesa, onde se lê que a escravidão é “uma violação da religião, das leis naturais e de toda natureza humana”. Mesmo que o amor para com a humanidade seja um tema recorrente na obra de Wesley e que o amor para com o inimigo, segundo ele, unicamente representaria a perfeição cristã, é a proximidade do discurso entre Wesley e a escola francesa racionalista algo, de fato, surpreendente.13

O suporte: reedição do tratado Pensamentos sobre a escravidão e cartas pessoais Nas duas primeiras cartas, ambas de 1787, Wesley promete uma reedição dos seus Pensamentos sobre a escravidão. Além disso, colocou sua rede de amigos ao serviço da Sociedade a favor da abolição de tráfico com escravos, disposto a enviar o texto para eles a fim de mobilizá-los.

13 Em 1791, muitos abolicionistas mostraram ainda simpatias para a revolução francesa que tinha abolido a escravidão em território francês como, por exemplo, Haiti. Na guerra contra a França, a partir de 1793, tropas inglesas invadiram o Haiti, mas, foram derrotadas. A Inglaterra perdeu 12.000 soldados, um desastre significativo em termos quantitativos (na guerra da revolução americana morreram 25.000 soldados) e ideológicos (os ingleses foram vencidos por um exército de escravos recentemente libertos). Wesley, o Tory, que nem a revolução americana aprovava, também não viu na revolução francesa o futuro da humanidade. Isso faz a coincidência entre ele e Jaucourt tão interessante.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 189 Um ano depois, pregou em Bristol sobre o tema, ou seja, no olho do furacão e, segundo seu relato sobre evento em uma carta, houve uma violenta reação ainda durante o culto. Wesley, assim a impressão, não se escondeu atrás dos mais jovens que eram 30 até 50 anos (!) mais novos do que ele. Pela última vez, mostrou a sua cara - de um “nativo de cara pálida da Europa” - em busca de “uma nação que em geral pratica a justiça, a misericórdia e a verdade” (cf. WESLEY, 1774, p. 16 [II.11]).

190 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” Tradução das cartas14

To Samuel Hoare, Isle of Guernsey, August 18, Para Samuel Hoare, Ilha de 1787 Guernsey, 18 de agosto de 1787. Gentlemen, - A week ago Senhores, - Há uma semana, I was favoured with a letter from fui favorecido com uma carta do Mr. Clarkson, informing me of his Sr. Clarkson informando-me de seu truly Christian design, to procure, projeto verdadeiramente cristão de if possible, an Act of Parliament obter, se possível, uma lei do Par- for the abolition of slavery in our lamento para a abolição da escravi- Plantations. I have long wished for dão em nossas plantações. Desde the rolling away of this approach muito tempo - especialmente depois from us, a reproach not only from ter lido tratados de Sr. Benezet e religion, but to humanity itself. Es- que o Sr. Sharp tem escrito sobre pecially when I read Mr. Benezet´s o assunto - eu mesmo desejava tracts, and what Mr. Sharp has writ- ver deslanchar o avanço contra ten upon the subject. algo que é reprovado não só por My friends in America are of parte da religião, mas pela própria the same mind. They have already humanidade. emancipated several hundred of the Meus amigos na América são poor negroes, and are setting more da mesma opinião. Eles já eman- and more at liberty every day, as ciparam várias centenas desses fast as they can do it with any toler- pobres negros e estão libertando able convenience. This (is?) mak- mais e mais todos os dias, da ma- ing a little stand (stance?) against neira mais rápida possível dentro this shocking abomination; but Mr. da conveniência tolerável. Isso já Clarkson´s design strikes at the representa certo posicionamento root of it. And If it can be put in contra essa abominação chocante, execution will be a lasting honour mas a proposta de Sr. Clarkson to the British nation. It is with great ataca a raiz do problema. Se tal satisfaction that I learn so many of projeto puder ser executado, será you are determined to support him. uma honra duradoura para a nação But without doubt, you [may] britânica. É com grande satisfação expect with rough and violent op- que eu aprendo que muitos de vo- position. For the salve-holders are cês estão determinados a apoiá-lo. Sem dúvida nenhuma, você 14 Agradecemos pela cuidadosa revisão da deve se preparar para encontrar nossa tradução por Filipe Maia, metodista brasileiro, ex-aluno da Faculdade de Teo- uma áspera e violenta oposição. logia da Umesp; mestrado pela Southern Afinal, os escravistas são numero- Methodist University, Dallas, Taxas, EUA sos, ricos e, consequentemente, um e atualmente doutorando na Universidade grupo muito poderoso. de Harvard, EUA.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 191 a numerous, a wealthy, and conse- No momento em que você co- quently, a very powerful body. locar os negócios deles em perigo, And when You bring their craft acaso você não toca naquilo que into danger, do you not touch the lhes é o mais querido? Será que apple of their eye? Will they not eles não vão concentrar todas as then raise all their forces against suas forças contra você e reunir os you and summon their friends from seus amigos de todos os cantos? every side? And will they not em- Será que eles não vão contratar ploy hireling writers in abundance, escritores em grande número e que who will treat you without either esses tratarão você sem justiça e justice or mercy? sem misericórdia?

[Samuel Hoare, 2nd part] [Samuel Hoare, 2ª parte] But, I trust, Gentlemen, you Mas, assim eu confio, senho- will not be affrighted at this: no, res, você não vai se assustar nem not when some of your Friends turn quando alguns dos seus amigos se against you: perhaps some who tornarem contra você: talvez até have made the warmest profes- mesmo alguns que fizeram as mais sions of goodwill, and the stron- calorosas profissões de boa vonta- gest promises of assisting you. I de, e as mais fortes promessas de trust you will not (be?) distrusted ajudá-lo. Eu confio que você não thereby; but rather more resolute perderá a sua confiança, pelo contrá- and determined. rio, que isso tornará você aos pou- I allow, with men this is im- cos ainda mais firme e determinado. possible; but we know all things Eu admito: para homens isso are possible to God! What little I será impossível, mas sabemos que can do to promote this excellent todas as coisas são possíveis para work I shall do with pleasure. I will Deus. O pouco que eu posso fazer print a large edition of the tract I para promover esse excelente traba- wrote some years since, Thoughts lho eu o farei com prazer. Vou man- upon slavery, and send it (which dar imprimir uma ampla edição do I have the opportunity of doing tratado que eu escrevi alguns anos once a month) to all my friends atrás, os Pensamentos sobre a Es- in Great Britain and Ireland; add- cravidão, e mandá-lo [...] para todos ing a few words in favour of your os meus amigos na Grã-Bretanha design, which I believe will have e Irlanda, acrescentando algumas some weight with them. I commend palavras em favor de seu projeto, you to Him who is able to carry you o que eu acredito que vai ter algum through all opposition and support peso. Confio-o a Ele, que é capaz you in all discouragements, I am, de guiá-lo através de toda a oposi- Gentlemen, ção e apoiá-lo em todo desânimo. Your heartly well-wisher. Eu sou, senhores, alguém que lhe deseja o melhor de todo coração.

192 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” To Thomas Clarkson15 Para Thomas Clarkson LONDON, August 1787. LONDRES, agosto 1787. Mr. Wesley informed the Com- Sr. Wesley informou o Comitê 16 mittee of the great satisfaction da grande satisfação que ele tam- which he also had experienced bém tinha experimentado quando when he heard of their formation. ouviu de sua formação. Ele com- He conceived that their design, while it would destroy the slave preendeu que a sua criação, ao trade, would also strike at the root destruir o comércio de escravos, of the shocking “abomination of também atacaria a raiz da chocan- slavery”. He desired to forewarn te “abominação da escravidão”. them that they must expect difficul- Ele desejou preveni-los de que ties and great opposition from those eles devem esperar dificuldades who were interested in the system, e grande oposição daqueles que that they were a powerful body, and estavam interessados ​​no sistema, that they would raise all their forces que é um corpo poderoso, e que when they perceived their craft to eles iriam levantar todas as suas be in danger. They would employ forças quando percebessem que hireling writers, who would have seu ofício estava em perigo. Eles neither justice nor mercy. But the Committee were not to be dismayed empregariam escritores mercená- by such treatment, nor even if some rios que não teriam nem justiça of those who professed goodwill nem misericórdia. Mas a Comissão toward them should turn against não poderia estar assustada por tal them. As to himself, he would do tratamento, nem mesmo se alguns all he could to promote the ob- dos que professavam a boa vonta- ject of their institution. He would de deles se voltassem contra eles. reprint a new large edition of his De sua parte, ele iria fazer tudo o Thoughts upon Slavery, and circu- que pudesse para promover o obje- late it among his friends in England to de sua instituição. Ele iria reim- and Ireland, to whom he would add primir uma nova edição de seus a few words in favor of their design. Pensamentos sobre a escravidão And then he concluded in these e difundi-las entre seus amigos na words: “I commend you to Him who Inglaterra e na Irlanda, a quem ele is able to carry you through all op- gostaria de acrescentar algumas position and support you under all palavras em favor de seu proje- discouragements”. to. E concluiu com estas palavras: 15 Thomas Clarkson (1760-1846) conta na sua História da abolição do tráfico de escravos, vol. “Confio-o a Ele, que é capaz de 1, p. 447-448, que a reunião do that the sitting of the Abolition Committee on August 27, 1787, levá-lo através de toda a oposição ‘was distinguished by the receipt of letters from e apoiá-lo em todo desânimo.” two celebrated persons. The second was from Mr. John Wesley, whose useful labors as a minister of the gospel are so well known to our countrymen.’ See letter of October 11 to Granville Sharp; 16 O comitê registrou nas suas atas de 1787 três cartas de John Wesley (de 28 de agosto, 30 de outubro e 22 de novembro (BARTON, 2012).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 193 To Granville Sharp LONDON, Para Granville Sharp LONDRES, 11 October 11,1787. de Outubro, 1787. SIR, - Ever since I heard of it Senhor, - Desde que eu ouvi first I felt a perfect detestation of pela primeira vez do horrível comér- the horrid Slave Trade, but more cio de escravos eu acabei o odian- particularly since I had the pleasure do profundamente, mas, com mais clareza ainda desde que eu tive o of reading what you have published prazer de ler o que você publicou upon the subject. Therefore I can- sobre o assunto.17 Por isso não pos- not but do everything in my power so deixar de fazer tudo em meu po- to forward the glorious design of der para compartilhar com outros a your Society. gloriosa criação de sua associação. And it must be a comfortable E deve ser algo confortável thing to every man of humanity to para cada pessoa da humanidade observe the spirit with which you observar o espírito com o qual você have hitherto gone on. Indeed, you tem progredido até então. Na verda- cannot go on without more than de, você não poderá avançar sem common resolution, considering mais do que uma promessa geral the opposition you have to encoun- [de apoio], considerando a oposição ter, all the opposition which can be que você terá que enfrentar, todo tipo de oposição possível por ho- made by men who are “not encum- mens que “não são incumbidos de bered with either honor, conscience, qualquer honra, consciência, ou hu- or humanity”, and will rush on per manidade”, e que farão pressão por fasque nefasque, through every todos os meios a em seu alcance, possible means, to secure their fasque nefasque18, para salvaguar- great goddess, Interest. dar seu grande Deus, o lucro. Unless they are infatuated in Enquanto eles são obcecados this point also, they will spare no neste ponto, eles não pouparão money to carry their cause; and this dinheiro para levar adiante a sua has the weight of a thousand argu- causa, e isso pesa para a grande ments with the generality of men. maioria das pessoas mais do que milhares de argumentos.

17 Pode referir-se a diversas publicações de Sharp (1769; 1773, 1776a; 1776b; 1776c; 1776d; 1777). 18 Latim para “Seja certo ou errado”.

194 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” [2nd part] [Parte 2] And you may be assured these E você pode ter certeza que men will lay hold on and improve esses homens vão perseverar em every possible objection against aprimorar cada objeção possível you. I have been afraid lest they contra você. Eu tenho medo que should raise an objection from your eles possam colocar obstáculos à manner of procuring information. To sua maneira de obter informações. hire or to pay informers has a bad Contratar ou pagar informantes soa sound and might raise great, yea mal e pode causar um significati- “insurmountable” prejudice against vo, se não até um “insuperável”, you. Is it not worth your consider- preconceito contra você. Não vale- ation whether it would not be advis- ria à pena considerar se não seria able to drop this mode entirely, and aconselhável abandonar este mé- to be content with such information todo inteiramente, e procurar e se as you can procure by more honor- contentar com informações obtidas able means? por meios mais honrosos? After all, I doubt the matter will Afinal de contas, eu duvido turn upon this, “the Slave Trade for que o assunto vá girar em torno da the interest of the nation”. And here, questão, “o tráfico de escravos é the multitude of sailors that perish importante para o lucro da nação”. therein will come to be considered. Em vez disso, a multidão de mari- Inall these difficulties what a nheiros que perecem nele deve ser comfort it is to consider (unfashion- considerada. Em todas estas dificul- able as it is) that there is a God! dades, que conforto é considerar Yea, and that (as little as men think (ainda que fora de moda) que há of it!) He has still all power both in um Deus! Sim, e que (mesmo que heaven and on earth! To Him I com- os homens pensem pouco nisso!) mend you and your glorious Cause; Ele ainda tem todo o poder no céu and am, sir, e na terra! Para ele, eu recomendo Your affectionate servant. você e sua gloriosa Causa, e sou, John Wesley senhor, Seu servo afetuoso. John Wesley

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 195 To Thomas Funnell Para Thomas Funnell November 24, 1787. 24 de novembro de 1787. MY DEAR BROTHER,--Wha- Meu querido irmão, - Qualquer tever assistance I can give those assistência que eu possa dar aos generous men who join to oppo- homens generosos que se unem se that execrable trade I certainly para se opor a este execrável co- shall give. I have printed a large mércio eu certamente darei. Eu edition of the Thoughts on Slavery, publiquei uma edição Pensamentos and dispersed them to every part sobre a escravidão e divulguei-os of England. But there will be vehe- em todo o canto da Inglaterra. Mas ment opposition made, both by sla- haverá oposição veemente, tan- ve-merchants and slave-holders; to por comerciantes de escravos and they are mighty men. But our quanto por donos de escravos e comfort is, He that dwelleth on high eles são homens poderosos. Mas is mightier. o nosso conforto é que aquele que habita nas alturas é mais poderoso. - I am - Eu sou Your affectionate brother. Seu irmão afetuoso.

To Henry Moore, Bristol, March 14th, Para Henry Moore, Bristol, 14 de 1790 março de 1790 Dear Henry, - I have received Caro Henry, - Recebi a enco- the parcel by the coach. I quite menda pela carruagem. Eu estou approve of your sending the note bastante a favor do envio da nota to all our assistance, and hope it a todos em nossa assistência, e es- will have a good effect. I would do pero que ela tenha um bom efeito. anything that is in my power toward Eu faria qualquer coisa que está the extirpation of the trade which is em meu poder para a extirpação do a scandal not only to Christianity, comércio [“de escravos”, o autor], but humanity. […] que é um escândalo, não só para a Cristandade, mas para a huma- Your affectionate friend and nidade. [...] brother. Seu amigo afetuoso e irmão.

196 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” To Wilberforce Para Wilberforce Balam, February 24, 1791 Balam, 24 de fevereiro de 1791 Dear Sir:19 Estimado Senhor: Unless the divine power has A menos que o poder divino raised you us to be as Athanasius levantou o senhor para ser para contra mundum, I see not how you nós um Athanasius contra mundum, can go through your glorious en- não vejo como o senhor pode ser terprise in opposing that execrable bem-sucedido em seu glorioso em- villainy which is the scandal of re- preendimento se opondo à vilania ligion, of England, and of human execrável que é o escândalo da nature. Unless God has raised you religião, da Inglaterra e da nature- up for this very thing, you will be za humana. A não ser que Deus o worn out by the opposition of men levantou para esta tarefa, o senhor and devils. But if God be for you, será desgastado pela oposição de who can be against you? Are all of homens e demônios. Mas se Deus them together stronger than God? é pelo senhor, quem pode ser con- O be not weary of well doing! Go tra o senhor? São todos eles juntos on, in the name of God and in the mais forte do que Deus? Não canse power of his might, till even Ameri- de fazer o bem! Vá em frente, em can slavery (the vilest that ever saw nome de Deus e na força do seu the sun) shall vanish away before it. poder, até que mesmo a escravi- Reading this morning a tract dão americana (a mais vil já vista wrote by a poor African20, I was par- debaixo do sol) desapareça ante ticularly struck by that circumstance Seu poder. that a man who has a black skin, Lendo esta manhã um tratado being wronged or outraged by a white escrito por um pobre africano, eu man, can have no redress; it being a fiquei particularmente impressio- “law” in our colonies that the oath of nado com a circunstância em que a black against a white goes for no- um homem que tem a pele negra, thing. What villainy is this? em sendo prejudicado ou ofendido That he who has guided you por um homem branco, não pode from youth up may continue to responder; uma vez que é “lei” em strengthen you in this and all thin- nossas colônias que o juramento gs, is the prayer of, dear sir, de um negro contra um branco não Your affectionate servant, vale nada. Que vilania é essa? John Wesley Que aquele que o guiou des- de a juventude possa continuar a fortalecê-lo nisto e em todas as coisas, é a oração de, caro senhor, Seu servo afetuoso, 19 Carta para John Wilberforce. John Wesley 20 Wesley refere-se aqui ao relato de Equia- no (1789).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 183-198, jan./jun. 2013 197 Referências bibliográficas BÈNÈZET, A. “Carta para John Wesley” [carta 412]. In: The Arminian Magazine, p. 44-51 (jan. 1787). BRENDLINGER, I. A. “Wesley, Whitefield, a Philadelphia Quaker, and Slavery.” In: Wesleyan Theological Journal, vol. 36, n. 2, p. 164-173 (jan./jun. 2001). CLARKSON, T. An essay on the slavery and commerce of the human species, particularly the African, translated from a Latin Dissertation, which was honoured with the first prize in the University of Cambridge, for the year 1785. 1786. EQUIANO, O. The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or Gus- tavus Vassa, the African. Written by Himself. (2 vols.) London: The Author, 1789. “FAIR MINUTE BOOK OF THE LONDON COMMITTEE FOR THE ABOLITION OF THE SLAVE TRADE 1787-1788”. In: Barton History. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2012. HEYRICK, E. C. Immediate, not gradual abolition: or an inquiry into the shortest, safest, and most effectual means of getting rid of West Indian slavery. Philadelphia: Philadelphia Ladies’ Anti-Slavery Society, 1836. Disponível em: . Acesso em: 23 dez. 2012. JAUCOURT, L. “Traite des nêgres ”. In: Encyclopédie ou Dictionaire raisonné dês sciences, dês artes et dês métiers. Denis Diderot e Jean d´Alembert (Eds.). Amsterdam, M. M. Rey, 1765. SHARP, G. An essay on slavery, proving from Scripture its inconsistency, 1773. ______. The law of liberty recomended to slave holders, 1776. [1776a] ______. The law of passive obedience, or Christian submission to personal inju- ries, 1776. [1776b] ______. The law of retribution [...] against tyrants, slave-holders, and oppressors, 1776 [1776c]. ______. The just limitation of slavery in the laws of God: compared with the un- bounded claims of the African traders and British American slaveholders. London: Printed for B. White, and E. and C. Dilly, 1776. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2012. [1776d] ______. A representation of the injustice and dangerous tendency of tolerating sla- very. London: Printed for Benjamin White ... and Robert Horsfield,1769. ______. A tract on the law of nature: and principles of action in man. Printed for B. White at Horace´s Head and E. and C. Dilly in Poultry, 1777. SCHILLING, V. “Iluminismo, metodismo e abolicismo”. In: Cadernos de História: Memorial do RS, vol. 30, p. 1-20. TELFORD, J. (Ed.). The Letters of Rev. John Wesley, A.M., sometime fellow of Lincoln. College, Oxford. 2. ed. London: The Epworth Press, 1960 [1. ed.: 1931] WESLEY, J. Thoughts upon slavery. London: Printed by R. Hawes, 1774 [1. ed.] [A quarta edição está disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2013.

198 Helmut RENDERS: “Vá em frente, em nome de Deus” Linha do tempo: John Wesley e o movimento abolicionista* Time line: John Wesley and the abolitionist movement Leña del tiempo: John Wesley e el movimiento abolicionista

Helmut Renders

Ano O movimento abolicionista O movimento metodista e a escravidão 1655 Richard Baxter (1655)1 [Puri- tano]. George Fox, fundador do grupo 1671 dos quacres (também “Socieda- de dos amigos”), pronuncia-se contra a posse de escravos entre os associados do grupo. 1673 R. Baxter (1673) 1688 Menonitas alemães de Ger- mantown, Pensilvania, publicam um panfleto contra a posse de escravos. 1693 George Keith (1693) [quacre] SW2 escreve no Athenian Oracle (1692), um jornal publicado em Londres, contra o tráfico, a compra e a posse de escravos. 1700 Samuel Sewall (1700) [Purita- no].

1713 J. Hepburn; T. Lowry (1713) Na obra (1713, p. 37-44) cita-se SW na seção “Excerpt from the Athenian Oracle”.

1735 Morte de S. Wesley, pai de JW3 e CW4. JW. Diário.

* Para saber mais sobre o papel das pessoas mencionadas, acesso o artigo: “A luta de John Wesley, spiritus rector do movimento metodista, contra a escravidão: envolvimentos e contribuições”, nesta mesma revista. 1 Explicação: Nome + ano entre colchetes = publicação. 2 SW = Samuel Wesley (1662-1735) 3 JW = John Wesley (1703-1791). 4 CW = Charles Wesley (1707-1788).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 199-204, jan./jun. 2013 199 1736 Ago. JW. Diário. Expressa a sua alegria de ver negros no culto em Charlestown, Carolina do Sul. 1737 JW. Carta para Whitefield, convite para evan- gelizar, entre outros africanos e indígenas. 1738 23-05 CW. Experiência religiosa [Certeza da fé]5 24-05 JW. Experiência religiosa de “Aldersgate”. [Certeza da fé]

1748 Secondatt (1748) [humanista francês]. 1749 08-04 CW casa Sarah Gwynne 1750 1751 Introdução da escravidão na G. Whitefield. Carta em defe- colônia de Geórgia. sa da escravidão, alegando razões econômicas, filantrópi- cas e bíblicas. 18-02 JW casa Sra. Vazeille 1752 1753 J. Woolman (1753) [quacre, América] 1754 1755 1756 JW. Notas do NT (1756) [cf. 1 Tm 1.10]. 1757 1758 17-01 JW. Diário. Relato da ca- tequese de dois escravos, servos de Sr. Gilbert. 29-11 JW. Diário. Relato do batismo dos dois. 1759 1760 1761 J. Fox (1761) [quacre, Crise “entusiasta” nas socie- Inglaterra] dades metodistas de Lon- dres, sob liderança de Bell e 1762 A. Bénézet (1762) [quacre Maxfield; americano] JW. Pensamentos sobre a J. Woolman (1762) [quacre perfeição cristã (1763) [em inglês] reação à crise entusiasta]. JW. (ed.). Compêndio da 1763 filosofia natural; introdução de JW (1763). 1764

5 Textos inteiros em itálico: dados da vida pessoal de JW e CW, sem ligação direta com o tema da luta contra a escravidão; dados do movimento metodista, com eventual relevância.

200 Helmut Renders: Linha do tempo: John Wesley e o movimento abolicionista 1765 G. Sharp [Anglicano inglês] JW. Notas do AT (1765). (cf. conhece Jonathan Strong, um vol.1, p. 271). escravo pedindo ajuda. 1766 A. Bénézet (1766) 21-08 Aproximação entre Whitefield, os irmãos Wesley e Condessa de Huntingdon. 1767 1768 1769 G. Sharp (1769); Benezet e Sharp se conhecem; 01-01 John Newton lança o hino Amazing Grace. 1770 J. Gronniosaw (1770) [escravo Morte de G. Whitefield americano]. JW. Um sermão sobre o Sr. George Whitefield (1770). JW. Pensamentos sobre o estado de assuntos públicos (1770). 6 1771 A. Bénézet lê J. Gronniosaw 23-01 JW. A esposa sra. (1770) Vazeille deixa-o. 1772 A. Bénézet (1772); 06-02 G. Sharp defende James Som- 12-02 JW lê uma obra de 22-06 erset. Bénézet. Lord Mansfield [anglicano in- Jun. JW corresponde com Sharp glês] declara a escravidão in- e Bénézet (cf. CAREY, 2003, constitucional na Inglaterra. p. 274). JW. Pensamentos sobre a liberdade (1772). JW. Pensamentos sobre a origem do poder (1772). 1773 Sharp (1773) JW. Pensamentos sobre a atual escassez de alimentos (1773). 1774 JW. Pensamentos sobre a Abril Gentleman Magazine, 1774, p. escravidão (1774 1. ed a 3. 137 valoriza os Pensamentos... ed. edição em Londres; 1ª de John Wesley edição na Filadélfia. 1775 JW. Pensamentos sobre a 14-04 Jaucourt (1775) [enciclopedista escravidão (1775, 4. ed.) francês] A Sociedade para a libertação 15-04 de negros ilegitimamente manti- dos em escravidão [fundada por Bénézet]. Início da Guerra da Indepen- dência dos Estados Unidos da América. 1776 G. Sharp (1776a; 1776b; 1776c; JW. Some observations on 1776d) liberty (1776) [A. Smith (1776)7]

6 A partir de 1770 há um conjunto de cinco tratados que refletem sobre temas da presença pública da igreja. 7 Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações de Smith, publi- cada entre 1776 e 1784, obviamente não foca na causa da abolição, mas considera a escravidão um impedimento de prosperidade.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 199-204, jan./jun. 2013 201 1777 G. Sharp (1777) JW. John WESLEY. Pensa- mentos sobre a soberania de Deus 1777, §6: O ser huma- no é capaz de “compreensão, vontade e liberdade”. 1778 Jan. JW. Arminian Magazine [em seguida: AM]. 1. ed. 1779 1780 Wilberforce eleito membro de O concílio dos metodistas na parlamento [anglicano inglês]. América opta pela expulsão de donos de escravos e esta- belece prazos. 1781 JW. Uma história da igreja, 4 volumes (1781). 1782 William Pitt Jr. [anglicano inglês] JW. (ed.). Richard Baxter. eleito membro do parlamento Um chamado para os não- inglês e líder dos Tories. -convertidos (1782).

1783 22-05 A Sociedade dos Amigos (qua- Fev. JW. AM, p. 98-99: Como pes- cres) de Londres assinam a soas livres são escravizados. primeira petição ao parlamento Mar. JW. AM, p. 151-153: [Continua- inglês, apresentado por Sir Ce- ção]; “Little Ephraim e Ancona” cil Wray [anglicano inglês]. testemunham na corte. Abril JW. AM, p. 211-212: [Conti- nuação]; os dois ganham a causa, recebem uma visita de Charles Wesley, são cate- quizados, batizados e voltam para a sua terra. 1784 J. Ramsay (1784) [anglicano Jan. JW. AM, p. 44-45: O nego- inglês] ciante William Murray é de- Conversão de O. Equiao, [en- fendido por um chefe africano volvimento de J. Newton?] como ser humano bom e não 03-05 Wilberforce lê o livro de J. Ram- escravagista; say e visita-o. Abril JW. AM, p. 159-160: um muçul- Morte de A. Bénézet. mano trata bem um espanhol. Jul. JW. AM, p. 386-387: um indígena trata bem um colono americano, apesar de ter sido maltratado por ele. Dez. JW. AM, p. 662-663: um oto- mano mostra misericórdia e desiste da execução da pena da morte. 1785 Wilberforce converte-se sob a Ago. JW. AM, p. 411-412: um influência de J. Newton; Pitt e negociante inglês compra a Newton convencem Wilberforce liberdade de um turco num de manter a carreira política. navio espanhol e rejeita a Fim da Guerra da Indepen- recompensa oferecida. dência dos Estados Unidos da Set. JW. AM, p. 467-469: o nego- América. ciante inglês é capturado por piratas turcos, mas, reconheci- do em Constantinopla e liberto. Nov. JW. AM, p. 588-591: um inglês é salvo por uma indí- gena, mas vendeu-a depois grávida como escrava. Dez. JW. AM, p. 637-640: AM: Vincent Arnaud libera Topal Osman que trata bem os cristãos no seu reino. Dez. JW. AM, p. 646-649: AM: Carta de agradecimento de um príncipe africano, liberto da escravidão.

202 Helmut Renders: Linha do tempo: John Wesley e o movimento abolicionista 1786 T. Clarkson (1786) [anglicano Jun. JW. AM, p. 321-323: Marraton inglês] and Yaratilda, relato da crença Clarkson passa seu livro para indígena que todas as coisas Wilberforce. têm sua alma; Jonas Hanway [Anglicana inglê- Jul. JW. AM, p. 372-373: Marraton sa] cria o Comitê para o resgate espera Yaratilda no céu; de pobres africanos. CW. Encontro com Wilberforce na casa de Hannah More, na presença de Edmund Burke e Joshuah Reynolds. 1787 22-05 A Sociedade a favor da aboli- Jan. JW. AM, p. 44-48: carta de ção de tráfico com escravos é aprovação de Bénézet dos fundada; criação do seu selo Pensamentos sobre a escra- com o lema “Não vidão de Wesley. sou um ser humano e um ir- Mar. JW. AM, p. 157-159: relato: mão?” Capitão Cook encontra nativos. Abril JW. AM, p. 210-214: Capitão Cook [continuação]; Maio JW. AM, p. 264-266: Capitão Cook [finalização]; Ago. JW. AM, p. 437-439: AM: um escravo chegando na Inglaterra ganha liberdade ou mantém seu estado?8 Q. Ottobah Cugoano (1787) Lady Huntingdon financia a [escravo americano]. obra de Cugoano 18-08 JW. Carta para Samuel Hoare. Ago. JW. Carta para Thomas Clarkson. Set. JW. AM, p. 489-490: conti- nuação Out. JW. AM, p. 545: finalização 11-10 JW. Carta para Granville Sharp. 24-11 JW. Carta para Thomas Funnell. JW. A short history of the people called Methodists, Halifax (1787). 1788 19-02 Societe des Amis des Noirs fundada por Brissot e Claviere. Abril JW. AM, p. 209-209: a decla- Ato de Dolben: o parlamento ração da sociedade abolicio- inglês questiona as condições nista de Manchester. do transporte de escravos em Maio JW. AM, p. 263-264: a navios ingleses. sociedade abolicionista de J. Henry Newton (1788) [angli- Manchester pede ajuda de cano inglês]. Wesley. Hannah More (1788) [poema Jun. JW. AM, p. 379-381: formas sobre escravidão] [anglicana e características do tráfico de inglesa]. escravos. Ago. JW. AM, p. 436-440: formas... [continuidade]. Set. JW prega em Bristol contra escravidão. Out. JW. AM, p. 558-560: Han- nah More (1788) 1ª parte publicada. Nov. JW. AM, p. 612-616: Han- nah More (1788) 2ª parte publicada.

8 Veja a decisão de Lord Mansfield de 1772, ou seja, 15 anos antes e o diário de John Wesley de 1758, ou seja, 30 anos antes.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 199-204, jan./jun. 2013 203 1789 O. Equiano (1789) [escravo 24-02 JW. Encontro com Wilber- americano] force; 12-05 Wilberforce pronuncia-se pela Wesley anota: “Que benção primeira vez no parlamento que sr. P[itts] tem um amigo contra o tráfico de escravos. como este.” A Revolução Francesa encontra muito suporte entre os abolicio- nistas, não por último, por liber- tar, inicialmente os escravos.9 1790 14-03 JW. Carta para Henry Moore; Abril JW. AM, p. 156: Dr. Rush descreve um africano com um extraordinário talento matemático. Jun. JW. AM, p. 307-309: relato dos problemas de um escra- vo convertido por metodistas; depois consegue comprar a sua liberdade; Nov. Wesley lê Olaudah Equiano (1789). 1791 William Fox (1791) [quacre in- 24-02 JW. Carta para Wilberforce glês]. Panfleto contra a compra 04-03 Morte de John Wesley. de açúcar e rum produzidos por escravos. 18-04 Wilberforce apresenta no par- lamento uma petição abolicio- nista. James Wright [quacre inglês] recusa a venda de açúcar pro- duzido por escravos.

9 Napoleão iria reintroduzir a escravidão 15 anos depois.

204 Helmut Renders: Linha do tempo: John Wesley e o movimento abolicionista Resenhas Books Reviews Reseñas

Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo [Resenha] Abolition: a history of slavery and antislavery [Book Review] La abolición: la historia de la esclavitud y la historia contra la esclavitud [Reseña del libro]

Douglas Nassif Cardoso

Resumo Resenha do livro DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo. Tradução Antonio Penalve Rocha. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 736p. ISBN: 978-85-393-0184-3

Abstract Review of the book DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo. Tradução Antonio Penalve Rocha. – São Paulo: Editora Unesp, 2011. 736p. [Original title: Drescher Seymour. Abolition: a history of slavery and antislavery] ISBN: 978-85-393-0184-3

Resumen Reseña del libro DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo. Traducción de Antonio Penalve Rocha. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 736 p. ISBN: 978-85-393-0184-3

Introdução Seymour Drescher, professor de História e Sociologia da University of Pittsburgh, nos brinda com uma obra de fôlego, em extensão e conteúdos, sobre a escravidão e o antiescravismo. Neste ano em que completamos 125 anos da abolição no Brasil, este livro nos permite um olhar diferen- ciado sobre estes temas. O autor apresenta a instituição da escravidão do século 15 ao século 20 a partir de algumas questões referentes aos diferentes códigos legais entre metrópoles e colônias, à queda do sistema escravista no auge de seu desempenho, as diferentes estratégias antiescravistas e o ressurgi- mento da escravidão no século 20.

Organização e conteúdo

Parte 1 O livro é organizado em quatro partes: na primeira, denominada a extensão, o autor parte das três características da escravidão, a antigui-

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 207-211, jan./jun. 2013 207 dade, a ubiquidade e a durabilidade, demonstrando diversos argumentos legitimadores das religiões monoteístas e também da base filosófica aristotélica para a manutenção do sistema escravista. É ressaltado como as diferentes religiões monoteístas, judaísmo, cristianismo e islamismo concordavam com códigos legais, principalmente o da conquista de escravos através de guerras santas. Paradoxalmente a escravidão era considerada como uma forma de encaminhar à fé e à libertação espiritual. A seguir Drescher descreve modificações ocorridas no início do pe- ríodo moderno substituindo obrigações civis por sistemas de contrato de trabalho na Europa do noroeste. Novos conceitos, princípio da liberdade e solo livre são desenvolvidos, contrapondo-se com sistema legal escravista presente fora das metrópoles. A posição de dois reformadores clássicos, Martim Lutero e João Cal- vino, o primeiro concordando e o segundo se omitindo sobre a escravidão é contrastada com a de Andreas [Rudolph Bodenstein von] Karlstadt, único dos citados a criticar o comércio de escravos existente. O protestantismo nascente não se opunha à instituição da escravidão. Ao tratar da expansão da escravidão, o autor apresenta com deta- lhes zona fronteiriça islâmico-cristã no Mediterrâneo; o apresamento e passagem via Atlântico de mais de 12 milhões de escravos da África; a escravização de nativos americanos em seus territórios e o rapto e envio de asiáticos à América. A mentalidade escravocrata desenvolvida nas colônias firmava-se nas leis, na inadaptação dos europeus em regiões tropicais do Novo Mundo e no entendimento que povos não europeus poderiam ser escravizados. Durante séculos justificou-se a escravidão africana com a história da maldição de Cam.

Parte 2 Na segunda parte, intitulada a crise, Drescher apresenta, com vasta documentação, diversas revoluções: a norte-americana da década de 1770 à de 1820, as franco-americanas da década de 1780 à de 1820, as latino-americanas de 1810 a 1820 e o movimento abolicionista na Grã- -Bretanha da década de 1770 à de 1820. O autor descreve o conflito provocado pelo alto contingente popu- lacional de escravos nas colônias, os movimentos de resistência dos aprisionados e, em 1771, a ruptura da linha divisória metrópole e ultramar com o julgamento de James Somerset, escravo fugido, capturado e julgado na Inglaterra, que foi desobrigado a retornar ao seu senhor. Ao proferir decisão no julgamento de Somerset, o juiz, o Conde de Mansfield, estabeleceu tríplice jurisprudência: proibição do apoio legal à

208 Douglas Nassif Cardoso: Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo [Resenha] escravidão, proibição da deportação e proibição da obrigação de serviço residual. Formava-se nova base legal em que se inspiraria o movimento abolicionista britânico posterior. Nesta época somente havia movimento abolicionista, de inspiração quacre, na Filadélfia, primeiro Estado no mundo a abolir a escravidão, em 1780. A partir desta data começam a surgir diversas sociedades abo- licionistas em diversos países. Em 1792, a Dinamarca promulga primeiro decreto abolicionista de uma nação europeia. Além da base legal e do apoio de religiosos, o movimento abolicionis- ta britânico desenvolveu-se no campo político. William Wilberforce chegou ao movimento em 1787 e, junto com Charles James Fox, Edmund Burke, William Pitt e Thomas Clarkson promoveram importante participação na abolição da escravidão britânica, em 1807. O texto de Drescher apresenta um trabalho de conscientização e forte participação popular no movimento abolicionista, unindo diversos segmentos da sociedade civil, em especial dos religiosos não conformistas e de trabalhadores, em especial os de Manchester. O uso de petições populares e a participação da mulher são destacados.

Parte 3 Na terceira parte do livro, a contração, trata-se do processo de emancipação que, consolidado na Grã-Bretanha influencia outras nações, a Pax Britannica. Surge novo ciclo abolicionista inglês, de 1823 a 1838, com Thomas Fowell Buxton, político e Elizabeth Heyrick, líder quacre, promotora de boicotes de consumidores e petições. A partir de 1831, as reuniões e campanhas são organizadas tendo como sede as igrejas locais. Numa petição de 1833, de um milhão e tre- zentas mil assinaturas, 70% dos signatários eram membros de igrejas não conformistas. A participação da sociedade civil demonstra que a abolição inglesa foi um ato da nação e não do governo. Os Estados Unidos, cuja política quanto a escravidão ficara sob responsabilidade de cada Estado, desencadeou guerra civil de cinco anos (1860-1865), culminando com a abolição dos escravos. O sistema escravista não estava decadente, as razões da abolição foram de âmbito ideológico. A proclamação da abolição norte-americana acelerou processo de sua vizinha Cuba, que temia ser anexada. Segundo o autor, Cuba era a sexta economia mundial, portanto a abolição cubana, iniciada em 1866 e completada em 1880 foi por razão política e não econômica. A influência britânica não conseguiu em meio século promover a abolição no Brasil. Coube a D. Pedro II desencadear o processo, inspi- rado na abolição americana e na movimentação antiescravista do império

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 207-211, jan./jun. 2013 209 espanhol. A abolição brasileira começou de forma gradual, Lei do Ventre Livre, em 1871, culminando com a Lei Áurea, em 1888. Drescher encerra esta terceira parte apresentando a emancipação do Velho Mundo, da década de 1880 à década de 1920. A persuasão britânica conseguiu celebrar acordos com governos muçulmanos inibindo ou proibindo o tráfico. A África portuguesa aboliu a escravidão em 1878.

Parte 4 Na quarta e última parte do livro, a reversão, o autor discute o ressurgimento da escravidão na Europa na primeira metade do século 20. A experiência do Gulag soviético, a escravidão racial na Alemanha, a utilização do apresamento de estrangeiros para trabalho forçado pelo Japão e tráfico nos países árabes é tratado. Semelhante a escravidão nas ilhas do Caribe no século 17, as co- lônias do arquipélago Gulag transformaram-se em campo de trabalho forçado, com população de 200.000 na década de 1930, chegando a dois milhões na década de 1950. O sistema começou a ruir com a morte de Stálin (1953) sendo eliminado por Michael Gorbachev (1986). Em 1933, ao mesmo tempo das celebrações da comemoração do centenário da emancipação dos escravos nas colônias inglesas judeus eram obrigados a exercer tarefas degradantes na Alemanha. Iniciava-se novo ciclo de escravidão na Europa. Hitler afirmava necessidade da es- cravidão para construção do III Reich. Na Segunda Guerra Mundial o Japão deportou imensas levas de tra- balhadores escravos. Dos sobreviventes deste contingente foram listados 18 milhões. Além disto, o governo japonês forçou de 80.000 a 200.000 mulheres de diversas nacionalidades (coreanas, taiwanesas, chinesas, filipinas, indonésias e malásias) a prestar serviços sexuais. Na África o trabalho forçado e as condições inadequadas de vida perduraram até meados do século 20. Nas décadas de 1960 e 1970 a Arábia Saudita, Iêmen, Aden, Muscat e Oman aboliram a escravidão. Em 1980, a República Islâmica da Mauritânia promulgou a abolição. No último quarto do século 20 o antiescravismo tornou-se padrão em todo o mundo. Os grupos de direitos humanos institucionalizados e as organizações não governamentais (ONGs) buscam abolir outras formas de escravidão referentes à exploração de crianças, jovens e adultos.

Conclusão Consideramos que esta obra nos permite melhor compreender o papel da escravidão no mundo moderno e esclarecer razões da aceita- ção unânime deste sistema até o século 18. O texto desconstrói tese da abolição ser fruto do declínio econômico da escravidão e descreve as origens do movimento antiescravista organizado.

210 Douglas Nassif Cardoso: Abolição: uma história de escravidão e do antiescravismo [Resenha] Drescher resgatou o papel de diversos agentes da sociedade civil assinalando participação ativa de mulheres, manifestos de trabalhadores, igrejas não confessionais que se transformaram em sedes de reunião e propagação do abolicionismo, jornalistas que rompiam com estruturas de poder, dando a estes agentes, vez, voz e visibilidade. A inserção do capítulo sobre o ressurgimento da escravidão e de formas acentuadas de racismo no século 20 alerta para a necessidade de contínua atenção ao risco de retorno de sistemas proscritos e tidos como imorais e indesejáveis, bem como fortalecer proteção dos direitos humanos. Finalizando, a forma organizada como o autor constrói e apresenta seu texto, subdividindo-o em períodos de 50 anos, contrastando diversas sociedades com grandes diferenças geográficas e culturais, o cuidado com as notas de rodapé, a excelente bibliografia, recomenda a leitura.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 207-211, jan./jun. 2013 211 Abolição da escravatura sem cidadania [Resenha] Abolition of slavery without citizenship [Book review] Abolición de la esclavitud sin ciudadanía [Reseña del libro]

Douglas Nassif Cardoso

Resumo COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 9. ed. São Paulo: Unesp, 2010, 144p., ISBN 978-85-393-0071-6.

Abstract COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 9. ed. São Paulo: Unesp, 2010, 144p., ISBN 978-85-393-0071-6. [Translation of the title: The abolition.]

Resumen Reseña del libro COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 9ª ed. São Paulo: Unesp, 2010, 144 p., ISBN 978-85-393-0071-6.

Sobre a autora Emília Viotti da Costa, autora de A Abolição, é professora emérita da Universidade de São Paulo (USP), renomada historiadora e autora de importantes textos: Da Monarquia à República; Da Senzala à Colônia; Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue; O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. Originalmente esta obra, lançada em 1982, fazia parte da coleção História Popular, coordenada por Jaime Pinsky, cujo objetivo era apresen- tar a história do Brasil por meio de textos de pequena extensão e com linguagem adequada ao público geral. Para esta edição foi acrescido capítulo final intitulado O impacto da abolição. Nas primeiras edições havia, no início do livro, breve entrevista com autores e, no final, um questionário intitulado “Você entendeu o texto?”, seguido de uma crono- logia. A coleção tinha como lema “Livros que estudam o passado para compreender o presente e iluminar o futuro”. Somente a cronologia foi mantida na presente edição.

Introdução Viotti inicia seu livro cinco dias antes da aprovação da Lei Áurea, 8 de maio de 1888, apresentando os bastidores da política do império brasileiro, e como o projeto de abolição, polêmico por natureza, foi aprovado com grande urgência na Câmara dos Deputados e no Senado e imediatamente

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 213-216, jan./jun. 2013 213 promulgado pela princesa Isabel. A partir deste quadro a autora propôs algumas questões norteadoras da pesquisa: Por que aprovar a extinção de uma instituição consagrada há mais de três séculos? O que imobilizou os representantes políticos nos plenários; por que o silêncio dos senho- res de escravos? E qual a real participação de negros e escravos neste processo? Para responder estas questões Viotti organizou onze breves capítulos, subdivididos por tópicos.

Organização e conteúdo Nos três primeiros capítulos a autora retoma do período colonial até meados do século 19. Descreve a instituição da escravidão, sem oposição das classes dominantes ou da Igreja. Escravistas apontando sistema de apresamento como parte da ordem divina. Mesmo havendo representantes dos diversos discursos (ilustrado, escravista e radical), até 1850, não havia movimento abolicionista organizado no Brasil. As pressões externas, em especial da Inglaterra, incentivaram a Lei de 1831, que abolia o tráfico de escravos. A inobservância desta lei permitiu que entrassem aproximada- mente 500 mil escravos no Brasil. Em 1850, com a Lei Eusébio de Queiróz e maior repressão, o tráfico começou a cessar. Como resposta à nova lei surge opções à falta de escravos: o aproveitamento de trabalhadores livres nacionais, proposta esbarra na desconfiança dos fazendeiros e a contra- tação de imigrantes. Na falta do tráfico externo inicia-se intenso tráfico interno reaproveitando e concentrando escravos na lavoura de exportação. O tema abolicionismo é desenvolvido do quarto ao nono capítulo. Viotti constrói a formação do abolicionismo em três etapas: na primeira, de 1850 a 1871, inicia-se processo de popularização da situação dos escravos por meio da literatura. Nomes emblemáticos deste período: Gonçalves Dias, José de Alencar, Manoel Joaquim de Macedo e Castro Alves são assinalados. Políticos de destaque, Saraiva, Nabuco de Araújo, Góes de Vasconcelos rompem com a política partidária e formam a Liga Progressista. D. Pedro II, em 1865, solicita projeto de emancipação dos escravos que não prosseguiu devido a Guerra do Paraguai. A partir da década de 1860 multiplicam-se associações abolicionistas e projetos para melhorar a situação dos escravos. A emancipação de escravos comba- tentes na Guerra do Paraguai se transforma em modelo da possibilidade de inclusão dos escravos na sociedade. Os jornais reproduzem debates e abrem espaço para abolicionistas. A segunda etapa foi marcada pela promulgação da Lei do Ventre Li- vre, de 1871. Os abolicionistas apresentando razões morais e econômicas e os escravistas defendendo o direito constitucional à propriedade. A nova lei permitia que crianças libertas ficassem com seus ex-senhores até os oito anos, período renovável, a escolha dos últimos, até os 21 anos. A

214 Douglas Nassif Cardoso: Abolição da escravatura sem cidadania [Resenha] adesão ao abolicionismo é verificada pelo resultado final da votação: 65 x 45. As bancadas não seguiam orientação das lideranças, a questão da permanência da escravidão tornou-se suprapartidária. Viotti localiza nesta época o início da participação das lojas maçônicas. Segunda a autora as grandes transformações sofridas no império - econômicas, demográficas, sociais, tecnológicas e de transportes - auxiliaram à concessão dos seto- res mais reacionários. A sociedade civil foi fundamental para a obtenção da vitória dos abolicionistas. Diversos agentes anônimos são citados no texto: mulheres, jangadeiros, cocheiros, ferroviários, operários, imigrantes, negros e mulatos. A partir da década de 1880 a opinião pública estava mobilizada em prol da causa abolicionista. O tema expunha as contradições do império e representava uma divisão entre a velha ordem, atrasada e reacionária e uma nova ordem, moderna e progressista. O governo responde com a Lei dos Sexagenários, em 1865. É muito tarde, à pressão política da sociedade civil somou-se a ação de sociedades secretas que promoviam rebeliões nas senzalas e fugas de escravos. As revoltas obrigaram muitos fazendeiros a negociar a emancipação com seus escravos. O ano de 1887 foi marcado por posições inéditas: a Igreja finalmente se manifesta a favor da abolição, fazendeiros em São Paulo criam associação para emancipar escravos, o Partido Republicano paulista, reduto escravista faz projeto para promulgação da abolição em 14 de julho de 1889, em homenagem à Revolução Fran- cesa. Em 17 anos, de 1871 a 1888, fora demolido alicerces da escravidão daí a rapidez e aparente unanimidade em torno da Lei Áurea. Nos últimos dois capítulos a autora trata das diferentes visões após a abolição. De forma geral entendia-se como uma vitória de abolicionistas, da Princesa Isabel, do Parlamento, do povo. Do lado dos fazendeiros escravistas, que se sentiam prejudicados por não receberem indenização pela emancipação, as queixas eram contra o imperador, os abolicionistas e o parlamento. Viotti reafirma razões diversas da abolição a partir das múltiplas transformações internas e externas de ordem políticas, eco- nômicas e sociais decorrentes do desenvolvimento do capitalismo e da Revolução Industrial. O conflito das oligarquias e das classes emergentes foi disputado sob o tema da emancipação dos escravos nas décadas de 1870 e 1880. Após a abolição, os libertos foram deixados à própria sorte. Com o advento da República o novo governo excluiu analfabetos do direito ao voto, eliminando a maioria dos libertos. Não houve projeto para preparar ex-escravos para uma participação cidadã.

Conclusão O texto de Viotti é conciso, claro e objetivo. A preocupação com os diversos contextos, político, econômico, social e cultural é constante. A

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 213-216, jan./jun. 2013 215 pesquisa resgata depoimentos, artigos e gravuras de jornais e revistas, aproximando leitores e leitoras do ambiente da época. Interessante notar a preocupação em fugir de uma historiografia oficial ou de premissas corren- tes. Novas questões são levantadas. Agentes anônimos da sociedade civil são destacados como protagonistas da história. Mesmo compreendendo proposta de construção de um texto sintético sentimos falta de um desta- que maior à contribuição da maçonaria à causa abolicionista. Finalizamos destacando percepção da autora quanto ao processo emancipatório ter sido inconcluso (com exceção de algumas poucas vozes, ninguém parecia pensar que era sua responsabilidade contribuir de alguma maneira para facilitar a transição do escravo para o cidadão), o que, para nós justifica ainda hoje, decorridos 125 anos, a presença de políticas sociais e ações afirmativas para a reversão desta situação.

216 Douglas Nassif Cardoso: Abolição da escravatura sem cidadania [Resenha] “Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados”: Resenha do livro “Ética” (2011) de Wilfried Härle “Orientations towards a well-founded personal ethical judgment”: Book reviw of Wilfried Härle’s Ethics from 2011 “Orientaciones para discernimientos éticos propios y bien fundamentadas”: Reseña del libro “Ética” (2011) de Wilfried Härle

Helmut Renders

Resumo Resenha do livro HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, 2011. 467 p. Com três índices remissivos, 52 p. ISBN 978-3-11-017812-8.

Abstract Book review of HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, 2011. 467 p. With three registers; 52 p. ISBN 978-3-11-017812-8.

Resumen Reseña del libro HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, 2011. 467 p. Con tres índices remisivos, 52 p. ISBN 978-3-11-017812-8.

Introdução Será apresentada uma ética teológica lançada em 2011 por Wilfried Härle em alemão. Härle, teólogo luterano, nascido em 1941, filho de um pastor metodista1, cuja carreira ele seguia até mudar a confissão para poder ser professor universitário. É professor emérito da Universidade de Heidelberg, vindo da Universidade de Marburgo (1978-1995), com passagem pelas universidades de Erlangen, Bochum, Kiel e Groningen (Holanda). Junto à sua Dogmática, lançada em 1995 e em terceira edição revisada e ampliada (HÄRLE, 2007), a Ética compõe uma unidade tanto de conteúdo como de estilo.

1 Éticas “metodistas” têm uma surpreendente dizimação na América Latina. Vejo José Miguez-Bonino (1982) e Roy May ( 3. ed., 2008). Ambas são traduções do espanhol de 1976 e 1998.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 217-224, jan./jun. 2013 217 Organização A obra divide-se em três partes maiores: Fundamentação da ética (p. 7-228); Concretizações da ética (p. 229-446) e Panorama da ética social evangélica (p. 447-470) acompanhadas por três índices (referên- cias bíblicas, nomes, assuntos (p. 471-522). Nossa resenha lida com a parte epistemológica que se divide em “1. A respeito da concepção des- sa ética”, “2. Pressupostos sociológicos e antropológicos da ética”, “3. Elementos constitutivos da ética”, “4. Pré-requisitos específicos da ética cristã”, “5. Bases normativas da ética” e “6. Passos do discernimento ético”. A segunda parte que cuida da ética aplicada desenvolve os temas “1. Dignidade humana”, “2. Saúde e doença”, “3. Sexualidade, amor e formas de convivência”, “4. Justiça”, “5. Paz” e “6. A palavra adequada no tempo oportuno”. A terceira parte é composta pelos capítulos “1. Fontes”, “2. Conceitos” e “3. Ênfases de conteúdo”.

Objetivo e estilo No seu prefácio (p.viii) o autor descreve: “O objetivo dessa ética não consiste em apresentar normas vinculativas e obrigatórias, mas orientar para chegar a juízos éticos próprios bem fundamentados”. Trata-se de uma típica ética protestante, com ênfase luterana, cuja “vigência abrange em princípio todos os seres humanos capazes de agir de forma responsável” e cuja “razão de aceitar sua validade não seja outra se não a perspicácia pessoal do ser humano agente na vigência dessa norma” (p. 18). Consequentemente, sejam no seu “discurso sobre as normas éticas [...] nenhum outro meio permitido senão argumentativo” (p. 19).2 De fato é a primeira característica do texto de Härle de responder a este propósito com uma linguagem altamente exata, diferenciada e no mesmo momento, compreensível. O texto é concentrado, mas nunca enigmático e avança com a disciplina lógica rara de um diagrama de fluxo, um esquema que o autor eventualmente também usa de forma gráfica para visualizar passos da formação do juízo ético (p. 218), apresentando e discutindo alternativas avaliando as suas contribuições e limitações.3 Esta valorização da fala leva Härle na segunda parte a reflexões sobre a linguagem como tema da

2 Mais para frente o autor irá ainda distinguir esta elemento chave de convencer por ar- gumentos da persuasão pela arte da retórica (ou seja, pela estética), do adestramento (!) por recompensações ou punições e do direcionamento de pessoas por hipnose e a aplicação de drogas com o objetivo de modificar comportamentos (p. 38). 3 Quanto aos cuidados para com o texto temos duas perguntas: Na introdução (p. 4) refere-se a Grundlinien (Linhas gerais) apesar de que no sumário (p. xiii) encontramos Überblick (panorama). Mas significativo e que no texto o terceiro capítulo inicia com o subtítulo “3.0 Acesso pela análise linguística” (p. 65), o que além de representar uma numeração estranha, não aparece no sumário (p. xi). Apesar de que nos dois casos faltou a última sincronização com a versão final é texto em geral impecável como é de costume com obras acompanhadas pela editora Walter e Gruyter.

218 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha] ética – “6. A palavra adequada no tempo oportuno” (p. 429-446) –, além da “fixação [...] tradicional [...] dual `mentira, verdade ou ser verdadeiro´” (p. 431) na esperança “que surgisse uma cultura da linguagem capaz de irradiar-se profundamente em nossa sociedade, porque `falar bem do outro´ e falar sobre terceiros somente se eles estivessem presentes, faria amigos” (p. 434). E “amigo” é um conceito central para discutir relações públicas. Assim servem os amplos cuidados linguísticos do autor como exemplo para encontrar “A palavra adequada no tempo oportuno” porque “quando as coisas não são bem designadas a linguagem não será coe- rente à verdade sobre as coisas” (Confúcio apud HÄRLE, 2011, p. 433).

Conteúdos e características O autor trata dos “Pressupostos sociológicos e antropológicos da éti- ca” (I.2, p. 29-64) em conjunto, mas inicia com o macrocosmo da “Depen- dência da sociedade do etos e da ética” (I.2.1, p. 30-34), a qual também de certo modo corresponde a terça parte e parte final, a sua discussão da ética social. Segundo o autor a sociedade necessita da ética para “omitir, criticar e superar estruturas sociais opressoras”, “criar sistemas de direito responsável e acompanhar a sua operação” e “conduzir a vida de forma livre, autônoma e responsável nas questões não regulamentadas pela lei” (p. 34). Segue em “Necessidade de orientação e capacidade de formação do ser humano” (I.2.1, p. 35-54) uma discussão sobre os modelos do “egoísmos psicológico”, “egoísmo biológico-evolucionista” e “Interpretações deterministas da função cerebral humana” concluindo (p. 53-54) que nenhum desses modelos traz argumentos suficientes para abandonar o projeto da formação ética do ser humano. Muito instrutivo é em “Necessidade individual e social de orientação ética” (I.2.3, p. 54-64) sua comparação dos modelos de Platão na sua Politeia e nos Nomoi (p. 54-55) , de Schleiermacher (p. 58-61) e, como releitura de Schleiermacher, o modelo de Eilert Herms (p. 61-63), um colega e colaborador de Härle desde o seu tempo de Marburgo. As quatro funções fundamentais da convivência em sociedade se- gundo o modelo de Herms (apud HÄRLE, 2011, p. 61) são: • A função de inibir a agressão e manter a paz (política). • A função de produzir e distribuir bens para manter a vida (economia). • A função de criar e mediar conhecimento (ciência). • Função de orientar em questões éticas (cosmovisões e religiões). Härle entende que o bem comum é promovido da melhor forma quando os quatro setores encarregados pelas funções anteriormente mencionadas colaboram o máximo possível (p. 62), inclusive dentro de si. Härle compreende também o importante papel da família, em continui-

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 217-224, jan./jun. 2013 219 dade a Schleiermacher: “Na família são os aspectos político, científico, econômico e eclesiástico-religioso de uma forma original presentes e conectados entre si” (p. 60).

Figura 1: Quatro funções fundamentais constitutivas para garantir a vida se-gundo Eilert Herms.

Seguem os “Elementos constitutivos da ética” (I.3, p. 51-133)4. “Assunto da reflexão ética” (I.3.1, p. 66-73) são ações ou atividades que requerem escolhas pessoais de um respectivo sujeito. “O conteúdo do ético” (I.3.2, p. 73) como a busca do bom, Härle problematiza discutindo as vertentes da busca da felicidade (prazer, sabedoria ou conhecimento da verdade, virtude como vivência em sintonia com a natureza) e do bem maior (Kant: justiça repartida e comunicativa, Schleiermacher: unidade entre razão e natureza, Bloch: reino da liberdade). Importante seu alerta final: a nossa compreensão ou idealização do bom e do bem maior é tão relacionada com a experiência de vida pessoal e social – de um coletivo maior de um povo como todo – que ele nem sempre se abre para o es- tranho e o desconhecido apresentado a nós pelo outro diferente (p. 81). Na próxima secção – “As formas do ético” (I.3.3, p. 81-92) – é encontrada uma apresentação e avaliação de modelos deontológicos, teleológicos e da virtude. Como hoje é comum, Härle favorece um mix de modelos, uma proposta, aliás que segundo ele parte de Schleiermacher (p. 89).

4 O capitulo começa com “3.0 Acesso pela análise linguística”, o que além de ser uma numeração estranha, não aparece no sumário (p. xi).

220 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha] Há concordância com ele que as opções para um dos modelos parte da compreensão do ser humano: à ética teleológica corresponde a visão de um ser humano que se realiza na construção do seu futuro na esperança do cumprimento do ainda não realizado; a ética deontológica enxerga o ser humano como capaz de compreender deveres como justos e disposto a cumpri-los por convicção, a ética da virtude foca no ser humano como ser que precisa da educação e que pode ser educado indo além dos seus talentos comuns, suas pretensões e seus instintos. Acrescenta-se aqui a importância da cosmovisão, especialmente para o primeiro tipo (moderni- dade), parcialmente para o terceiro (antiguidade e época medieval). Isso é um assunto que o autor ainda discute mais adiante – “Discernimento ético e compreensão da realidade” (I.6.1, p. 209-215) – porém tendo em vista as mais diferentes religiões. Vale aqui o que o autor resume lá: “Uma ética esclarecida não é uma ética livre de cosmovisão, mas uma que procura prestar as contas de forma mais detalhada e clara possível sobre os pré-requisitos ideológicos de si mesmo e do outro” (I.6.1, p. 213). Nesta seção chama a atenção a clara rejeição do modelo da ética da si- tuação como “liquidação da reflexão ética” por aplicar regras tão amplas que devem ser consideradas irrelevantes, mas conclui: “Esta crítica não se dirige contra a necessidade de considerar as circunstâncias concretas de uma ação, mas contra a sua instrumentalização para a desconstru- ção de normas vinculativas” (p. 72).5 Como o autor não contextualiza suficientemente a sua própria crítica – quem se articulou dessa forma, onde e quando? – ela não está neste ponto na altura do seu propósito de uma reflexão ética dos diferentes discursos. A próxima seção dedica-se ao “... sujeito do ético” (I.3.4, p. 92-102), caracterizado pela capacidade de fazer escolhas, partir de uma intencionalidade, ter capacidade para o discernimento e (!) da contínua possibilidade de cometer erros. Nesta base discute se podem ser considerados Deus, anjos, demônios, animais altamente desenvolvidos, formas de inteligência artificial, extraterrestres ou coletivos (uma família, uma imprensa, um povo) sujeitos éticos alter- nativos. O autor conclui que não, mas faz distinções muito apropriadas para cada caso apresentado6. A distinção entre as “Instâncias éticas nor- mativas” (I.3.5, p. 102-129) é organizada segundo modelos heterônomos,

5 Ao “contexto do ético” reserva ainda uma seção mais adiante (I.3.6, p. 129-133). Fica claro que se trata de um elemento constitutivo da ética, mas não de um modelo ético próprio em si. 6 Quanto aos coletivos (p. 98-100) ele afirma que devem ser distinguidos entre a pos- sibilidade de serem responsabilizados jurídica, histórica e politicamente, a afirmação da existência de uma culpa coletiva (o que o autor nega) e capacidade de um coletivo de sentir vergonha para que foi feito em seu nome e em seu meio (o que o autor considera importante).

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 217-224, jan./jun. 2013 221 autônomos e teônomos (a qual ele também acrescenta o direito natural).7 O autor segue Kant: a) instâncias heterônomas não podem fundamentar a ética satisfatoriamente por desconsiderar o elemento necessário da perspicácia pessoal do ser humano (p. 106) – mas sugere não perder de vista a diferença entre sujeito ético e instância normativa (p. 107) e b) não compete à consciência humana decidir se uma ação ou uma regra de ação seja eticamente correta – mas alega que “os conceitos συν-είδησι, con-scientia e Ge-wissen” descreveriam um “co-saber consigo mesmo” (p. 115), ou seja: “A consciência não avalia a qualidade ética em si de ações, mas julga a qualidade ética de atividades segundo o critério de ser de acordo ou não com a as normas éticas” defendidas pela respectiva pessoa. “Senso moral”, intuição” e “razão prática” (Kant) são em seguida também eliminadas como instâncias normativas autônomas, mesmo que a última seja “uma instância crítica para a avaliação de todas as reivin- dicações e demandas éticas” (p. 123). Quanto às “Instâncias normativas teônomas” (p. 123-129), refere-se “ao direito natural” e à “Autorrevelação de Deus”. Novamente, aparece a posição protestante:

Olhando para o que, por exemplo, pela doutrina das igrejas cristãs com refe- rência ao direito natural foi justificada e legitimada, como a política colonial, a escravidão, a subjugação dos índios, a proibição da contracepção artificial, ou a exclusão das mulheres do ministério pastoral, o ceticismo agostiniano- -reformador ganha de plausibilidade (p. 126).

Apesar do autor aqui ignorar que o recurso do direito natural também foi usado no discurso abolicionista, ele tem razão que o direito natural

[...] aponta para a necessidade da avaliação ética crítica de todos os pontos de vista morais e de todas as jurisdições legais e, portanto, para uma instân- cia ética normativa que transcende essas perspectivas e este sistema, que em última instância, aponta a Deus como a origem do direito natural (p. 127).

O direito natural “não pode responder como se criar acesso a esta última instância” (p.127). Essa dependência do direito natural da “Autorre- velação de Deus” (I.3.5.3b) o autor vê justificada por três razões (p. 128): • Em relação ao seu fundamento: somente pela identidade da instância normativa com a base criadora da existência humana a norma ética será nem um direito estranho (ou seja, heteronímico), nem deduzido do simples fato da existência humana (e neste sentido, autônomo), mas uma consignação divina.

7 Tillich relacionava a religião com a heteronomia, a cultura com a autonomia e experiência do kairos com a teonomia. Em Härle, kairos aparece somente em relação ao uso da palavra pelo ser humano (p. 444, 446).

222 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha] • Como a instância se revela de uma forma externa e simbólica, ele pode rever a sua vocação que ele não encontra dentro de si (Härle deve pensar aqui em Jesus, o Cristo). • Somente pelo processo de uma aceitação interna de uma ins- tância externa mediante da perspicácia pessoal a alienação causada pela subordinação a uma instância heteronímica pode ser superada. Apesar disso alerta o autor que esta fundamentação não pode ser comprovada, mas pode ter uma certeza subjetiva. Em “O contexto do ético” (I.3.6) mostra-se que uma distinção radical entre texto e contexto levaria também a um distanciamento indevido entre igreja e sociedade e teologia e ciência. Depois da sua avaliação da impossibilidade que modelos heterônimos, autônomos e teónomos da ética sejam capazes para servir como instâncias normativas últimas, Härle apresenta os “Pré-requisitos específicos da ética cristã” (I.4, p. 134-157) e os “Fundamentos normativos da ética cristã” (I.5, p. 158-206). Em I.4 discute “O evangelho de Jesus Cristo como essência da mensagem cristã” (I.4.1, p. 136-141), “A visão cristã do ser humano” (I.4.2, p. 141-151) e “A compreensão cristã de Deus” (I.4.3, p. 151-157). Em II.5 seguem “Fundamentos bíblicos da ética cristã” (I.5.1, p. 158-191), “O significado dos fundamentos bíblicos segundo a compreensão da reforma” (I.5.2, p. 191-197), “O mandamento do amor...” (I.5.3, p. 197-204) e “No caminho para uma ética modelo (Leitbild)” (I.5.4, p. 204-206). Termina esta primeira parte com o processo do “Discernimento ético” (I.6, p. 207-227) que contempla a já mencionada relação entre “Discerni- mento ético e compreensão da realidade” (I.6.1, p. 209-216), “Causa e objetivo do discernimento ético” (I.6.2, p. 216-217) e “Passos do discer- nimento ético” (I.6.3, p. 218-227).

Praticabilidade Como objetivo do texto é “orientar para chegar a juízos éticos pró- prios bem fundamentados” gostaríamos de discutir o aspecto pragmático do texto. É um texto acadêmico, como o autor recomenda, para uso em sala de aula ou para preparação de exames universitários. Mas como fica a questão do discernimento ético cotidiano?

Críticas O livro é resultado de um longo processo de criação. Nestes casos, o perigo é que o texto contém rupturas ou descontinuidades. A terceira parte não parece muito bem integrada e o tão promissor modelo integra- do de Herms, com sua compreensão complementar dos diversos setores vitais da sociedade em busca da promoção do bem comum não é mais

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 217-224, jan./jun. 2013 223 retomado, tampouco com o papel preparador da família na educação dos seus membros. De fato, a função da apresentação do modelo era em primeiro lugar, mostrar um pressuposto sociológico da ética. Mesmo assim, teria sido interessante e importante aprofundar o papel educacional da família na conscientização e educação contínua para preparar seus membros a serem colaboradores/as dos diferentes setores da sociedade e acompanhá-los de forma crítica e responsável. Não seria isso a relação entre a família e a formação ético-cidadã.

Valorização Härle apresenta uma ética na tradição de Emanuel Kant, Friedrich Schleiermacher e – porém pouco comentada por ele e mais visível na forma e qualidade do seu discurso – de Paul Tillich. Ele valoriza o etos protestante com seu foco na liberdade e responsabilidade do sujeito. Na América Latina, onde o ideal protestante é pouco valorizado, por ser também pouco conhecido.

Referências bibliográficas HÄRLE, W. Dogmatik. 3. ed. revisada e ampliada. Göttingen: Walter de Gruyter, 2007. 746 p. MAY, R. H. Discernimento moral: uma introdução à ética cristã. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal: EST, 2008. 157 p. MIGUEZ BONINO, J. Ama e faze o que quiseres: uma ética para o novo homem. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1982. 195 p.

224 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha] “A luta de mulheres contra a escravidão: um novo olhar”: um estudo exemplar de Clare Migley [Resenha]

“Anti-slavery and woman: a new picture”: an exemplary study of Clare Migley [Book review]

“La lucha de las mujeres contra la esclavitud: una nueva mirada”: el trabajo ejemplar de Clare Migley [Reseña del libro]

Helmut Renders

Resumo Resenha do livro MIDGLEY, Clare. Women against slavery: The British Cam- paigns, 1780–1870. London / New York: Taylor & Francis e-Library / Routledge, 2005 [1ª ed. 1992]. 271 p. com índice remissivo de 20 p. ISBN: 0-203-64531-6

Abstract Book review of MIDGLEY, Clare. Women against slavery: The British Campaigns, 1780–1870. London / New York: Taylor & Francis e-Library / Routledge, 2005 [1ª ed. 1992]. 271 p. with index 20 p. ISBN: 0-203-64531-6

Resumen Reseña del libro MIDGLEY, Clare. Women against slavery: The British Campaigns, 1780–1870. London / New York: Taylor & Francis e-Library / Routledge, 2005 [1ª ed. 1992]. 271 p. Con índice remisivo de 20 p. ISBN: 0-203-64531-6

Introdução O estudo aqui brevemente apresentado não é novo. No Brasil, porém, ele deve ser conhecido somente entre os ou as especialistas. A obra de Clare Midgley, professora de história na Universidade Sheffield Hallam, Inglaterra, representa uma memória minuciosa da participação de mulheres inglesas e estadunidensas na luta contra a escravidão. Ela traz, de fato, um novo olhar, tanto pela quantidade como pela qualidade e organização das suas fontes e lembra mulheres abolicionistas, das suas organizações e suas campanhas, das suas expressões mais radicais ou conservadoras e circunstâncias especificas do seu engajamento: apesar de que elas lutaram sem direitos políticos estabelecidos.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 225-227, jan./jun. 2013 225 Organização A obra se devide em três partes maiores e nove capítulos: 1 A luta de mulheres e contra a escravidão: desafiando olhares es- tabelecidos Ia Parte: Mulheres contra o tráfico de escravos (1783–1815) 2. Participantes da primeira hora Originadoras (p. 9ss), Apoiadoras (p. 14ss), Radicais e reacionárias (p. 25ss), escritoras imaginativas (p. 29ss), boicotadoras (p. 35); IIª Parte: Mulheres contra a escravidão colonial do sistema britânico (1823–1838) 3. “O cimento do todo edifício antiescravista todo” Organizar (p. 43ss), Financiar (p. 51ss), Informar (p. 56ss), Abster-se (p. 60ss), Peticionar (p. 62ss); 4. A luta contra a escravidão e o tecido da vida das mulheres As organizadores da classe média (p. 71ss), Participantes da classe trabalhadora (p. 82), A resistência de africanas (p. 85ss); 5. Perspectivas, princípios e políticas Em defesa do seu próprio sexo (p. 91ss), Abolição imediata e não gradual (p. 101ss); IIIª Parte: Mulheres e a “abolição universal” (1834–1868) 6. Uma irmandade transatlântica Abolição universal (p. 119ss), Cooperação e irmandade (p. 125ss), Li- derança e independência (p. 130ss), Raça, sexo e classe social (p. 138ss); 7. A “questão da mulher” O amanhecer de uma consciência amanhecendo (p. 154ss), Contro- vérsia e debate (p. 157ss), Passos para a igualdade (p. 166ss), A luta contra a escravidão e o feminismo organizado (p. 171ss); 8. A demora de preocupação Guerra e polarização (p. 177ss), Liberdade e apoio (p. 184ss), Re- belião e reação (p. 189ss); 9. A luta de mulheres contra a escravidão: um novo olhar

As três partes maiores seguem uma ordem cronológica, os subcapí- tulos distinguem entre tipos e graus de envolvimento, formas de engaja- mento, perspectivas de classe, de gênero e a moldura da história maior (luta das mulheres, tempos de guerra). Com isso, estabelece a autora um olhar múltiplo sobre o envolvimento de mulheres nas lutas tanto contra o tráfico inglês de escravos como a escravidão em geral.

Conteúdos e características A autora abre a sua obra mostrando como a memória do engaja- mento das mulheres abolicionistas não aparece onde deveria (p. 1-8) e

226 Helmut Renders: “A luta de mulheres contra a escravidão desenvolve a sua tese na base de cartas pessoas, jornais e relatórios ou outro tipo de documentos de sociedades femininas contra a escravidão ou o tráfico de escravos. Seu método é historiográfico e contempla fontes primárias de nada menos do que 39 acervos. Ela apresenta o trabalho das sociedades femininas contra a escravidão ou o tráfico de escravos como “movimento extraparlamentar em nível nacional” (p. 197). O fenômeno das Sociedades Femininas Abolicionistas não é muito desconhecido. Quanto aos estudos wesleyanos, considero particularmente interessante os comentários a respeito de Hannah More (p. 15, 17, 26–29, 30-32, 47, 77, 79, 151, 199), seu suporte para Wilberforce, por mediação de Lady Middleton e seu marido. Apesar de não mencionar a sua ami- zade com os irmãos Wesley e a sua simpatia pelo metodismo, a autora documento o envolvimento daquilo que ela chama metodismo wesleyana (p. 53, 64, 66, 82, 188) na causa das abolicionistas, inclusive, como uma das vertentes mais radicais. Fora das questões específicas trata-se de uma ampla e diferenciada introdução no fenômeno das Sociedades Femininas que, assim nos es- peramos, deve estimular pesquisas análogas quanto ao engajamento de mulheres brasileiras em causas com as da educação, saúde, migração e justiça. Afinal.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 225-227, jan./jun. 2013 227 228 Helmut Renders: “A luta de mulheres contra a escravidão Registros

Records

Registros

Relação de autores e autoras Notes on contributors Relación de autores y autoras

Ms. Andreia Fernandes de Oliveira Pastora metodista na coordenação do Departamento Nacional de Escola Dominical da mesma igreja. Professora do curso de pedagogia da Fa- culdade Zumbi Palmares e mestre em Ciencas da Religião pela Univer- sidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected]

Ms. Dina da Silva Branchini Mestre em ciências da religião, assistente social e musicoterapeuta, atua na área da religião e relações etnicorraciais; foi coordenadora do Ministério de Ações Afirmativas Afrodescendentes da 3RE, da Igreja Metodista, e, colaborou na Pastoral Nacional de Combate ao Racismo da Igreja Metodista. E-mail: [email protected]

Dr. Douglas Nassif Cardoso Pastor congregacional e professor da Faculdade de Teologia da Univer- sidade Metodista de São Paulo (Umesp). E-mail: [email protected]

Ms. Filipe Maia Doutorando em teologia na Universidade Havard, EUA. E-mail: [email protected]

Dr. Helmut Renders Pastor nomeado para a Igreja Metodista em Rudge Ramos, São Bernardo do Campo, SP. Professor, Secretário do Centro de Estudos Wesleyanos e Coordenador da Editora Editeo da Faculdade de Teologia da Universi- dade Metodista de São Paulo (UMESP). Professor do Programa de Pós- -Graduação em Ciências da Religião (UMESP). E-mail: [email protected]

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 229-233, jul./dez. 2012 231 Ms. Hideíde Brito Torres Pastora metodista, escritora, jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]

Dr. João Batista Ribeiro Santos Pastor da Igreja Metodista na Igreja Metodista de Boturussu, SP. Biblista do Instituto Betel de Ensino Superior (IBES) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Científica e Humanística (IPECH-FAETEL). E-mail: [email protected]

Dr. José Roberto Alves Loiola Pastor Metodista no Distrito Federal e Coordenador do Ministério Regional de Combate ao Preconceito Racial da 5ª Região Eclesiástica da igreja Metodista Mestre em Ciências da Religião (UMESP), Especialista em Edu- cação para a Diversidade e Cidadania (UFG) e Professor na Faculdade Evangélica (FE) em Brasília. E-mail: [email protected]

Ms. Lídia Maria de Lima Pastora da Igreja Metodista na Vila Mariana, São Paulo, e Mestra em Ciências da Religião. Professora auxiliar na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). E-mail: [email protected]

Ms. Luis Vergílio Batista da Rosa Bispo da 2ª Região Eclesiástica da Igreja Metodista e Mestre em educa- ção pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). E-mail: [email protected]

Ms. Márcia Cristina Américo Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Ciências Humanas (UNIMEP) – Núcleo de Práticas Educativas e Pro- cessos de Interação. E-mail: [email protected].

Ms. Neusa Cezar da Silva Pedagogia, Letras, Especialização em Psicopedagogia. Integrante do Ministério de Ações Afirmativas Afrodescendentes da 3RE e da Pastoral

232 Relação de autores e autoras Nacional de Combate ao racismo da Igreja Metodista. E-mail: [email protected]

Ms. Telma Cezar da Silva Martins Mestrado em Educação, Especialização em Educação Infantil, Pedagogia. Professora no curso de Pedagogia da Faculdade Zumbi dos Palmares, integrante da equipe nacional do Projeto Sombra e Água Fresca da Igreja Metodista e Redatora da Revista Bem-te-vi da Igreja Metodista. E-mail: [email protected]

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 229-233, jul./dez. 2012 233 Normas para colaboração

A Caminhando é uma revista científica publicada semestralmente pela Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Ela está aberta para pesquisadores/as e docentes/as da área da Teologia e das Ciências da Religião que possuam o grau de doutor ou mestre ou estejam prestes a obtê-lo.

Apresentação de artigos O texto poderá ter entre 25.000 e 40.000 caracteres com espaços (digitadas em espaço duplo, fonte Times New Roman Times 12 ou equi- valente, margem 2,5 cm) incluindo-se notas e bibliografia. Os artigos submetidos à revista Caminhando deverão ser nacionalmente inéditos e não estar, no momento, sendo objeto de apreciação por quaisquer outros meios de publicação impressa. A página de rosto deverá conter o título do artigo, nome do autor, um resumo em português e, se for possível, também em inglês e espanhol (no máximo 250 caracteres com espaços). Como informações sobre o/a autor/a solicitamos a titulação, a ocupação e o e-mail do/a autor/a. Os artigos serão encaminhados para um/a pare- cerista, com base nos quais o editor tomará a sua decisão. A remessa do artigo poderá deve ser feita via Internet no portal da revista Caminhando: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para rodapé e referências bibliográficas As citações devem ser inseridas no corpo do texto, seguindo as formas Autor (ano, página) / (AUTOR, ano, página) como nos exemplos Weber (1991, p. 95) / (WEBER, 1991, p. 95). Se houver, do mesmo autor, mais do que um título citado, deve-se acrescentar uma letra após a data, tal como no exemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). As notas de rodapé estão reservadas para informações complementares. A bibliografia ou referências bibliográficas, quando houverem, devem ser colocadas no final do texto e obedecer à norma NBR 6023 da ABNT, 2002. Seguem alguns exemplos:

Livro: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. Título da obra: subtítulo. Número da edição se não for a primeira, Local de publicação, estado: editora, data.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 235-236, jan./jun. 2013 235 RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artigo: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do artigo”. In: Título do periódico, número da edição, páginas (data). PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletânea: SOBRENOME DO/A AUTOR/A, prenome. “Título do capítulo”. In: iniciais do nome seguidas do sobrenome do organizador. Título da cole- tânea. Número da edição quando não for a primeira. Local de publicação, Estado: editora, data. MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pós- -graduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referências da Internet: Acresce-se, depois da citação do livro ou do artigo: Disponível em: < link >. Acesso em: dia[s]/mês/ano (somente números). RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponível em: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rausuoft >. Acesso em: 20 nov. 2012.

236 Normas para colaboração Guides for contributors

Caminhando is an scientific journal published semesterly by the Fa- culty of Theology of the Methodist University of Sao Paulo. It is open to researchers and professors in the area of Theology and Religious Studies who have a doctor’s or master’s degree or who are about to acquire one. The presentation of articles The text may have between 25,000 and 40.000 characters including spaces (typed in double line spacing, Times New Roman font or equivalent, with a margin or 2.5 cm) notes and bibliography included. The articles submitted to Caminhando must be unpublished nationally and cannot be under appreciation by any means of press publication at the time. The title page must contain the article title, name of the author, an abstract in Portuguese and, if possible, in English and Spanish also (in a maximum of 250 characters including spa- ces). As information about the author we request the author’s academic degree, occupation and e-mail address. The articles will be submitted to an analyzer, and based upon his/her evaluation the editor shall decide. The article may be submitted by internet on the website of the Journal Caminhando: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index. php/CA/user

Criterions for quotations and bibliographical references The quotations must be inserted in the text body following the format Author ( year, page) or (AUTHOR, year, page), e.g. (WEBER, 1991, p. 95). Existing more than one title quoted by the same author, a letter must be added after the date, e.g. (WEBER, 1991b, p. 32). The footnotes are re- served for complementary information. A few examples on the rules above:

Book: AUTHOR’S SURNAME, first name. Title of the book: subtitle. Num- ber of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date. RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyana: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 237-238, jan./jun. 2013 237 Article: AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: Title of the periodical, number of edition, pages (date). PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Collection of articles: AUTHOR’S SURNAME, first name. “Title of the article”. In: name initials followed by organizer’s surname. Title of the collection of texts. Number of edition if it is not the first, place of publication, state: publishing house, date. MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pósgraduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Internet references: After the quoting of the book or article add: Available in:. Access in: day[s]/month/year (only numbers). RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People: Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Available in: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeop00rau- suoft >. Access in: 20 oct. 2012.

238 Guides for contributors Normas de la colaboración

Caminhando es una revista cientifica publicada semestralmente por la Facultad de Teología de la Universidad Metodista de São Paulo. Está abierta para investigadores/as y docentes del área de Teología y Cien- cias de la Religión que posean el grado de doctor o máster, o que estén próximos de obtenerlo.

Presentación de artículos El texto podrá tener entre 20.000 y 40.000 caracteres con espacios (digitados a doble espacio, tipografía Times New Roman 12 o equivalente y márgenes de 2,5 cm) incluyendo notas y bibliografía. Los artículos so- metidos a la revista Caminhando deberán ser nacionalmente inéditos y no estar, siendo objeto de apreciación por ningún otro medio de publicación impreso. La portada deberá contener el título del artículo, nombre del autor, un resumen en portugués y, caso sea posible, también en inglés y español (con un máximo de 250 caracteres con espacios). Solicitamos, como informaciones sobre el/la autor/a, la titulación, la ocupación y el e-mail. Los artículos serán enviados a un/a parecerista, basado en el/la cual el editor tomará su decisión. La remesa del artículo se podrá hacer vía portal de la revista on-line: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/user

Normas para notas al pie y referencias bibliográficas Las citaciones deben figurar en el cuerpo del texto, siguiendo las formas Autor ( año, página) o (AUTOR, año: Página) como en el ejemplo (WEBER, 1991, p. 95). Caso haya más de un título citado del mismo autor, se debe añadir una letra después de la fecha, tal como en el ejemplo: (WEBER, 1991b, p. 32). Se deben reservar las notas al pie para a infor- maciones complementarias. La bibliografía o referencias bibliográficas, caso existan, se deben colocar al fin del texto y seguir la norma NBR 6023 de la ABNT, 2002. A continuación, algunos ejemplos:

Libro: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. Título de la obra: subtítulo. Número de la edición en caso de no ser la primera, Lugar de publicación, estado: editora, año.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 239-240, jan./jun. 2013 239 RIBEIRO, Claudio de Oliveira et all. (orgs.). Teologia e prática na tradição wesleyena: Uma leitura a partir da América Latina e Caribe. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 2005.

Artículo: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del artí- culo”. In: Título del periódico, número de la edición, páginas (año). PAULA, Blanches de. “Luto e existência”. In: Caminhando, vol. 11, n. 17, p. 105-114 (2006).

Coletánea: APELLIDO DEL AUTOR / DE LA AUTORA, nombre. “Título del capí- tulo”. In: iniciales del nombre seguidas del apellido del organizador. Título de la coletánea. Número de la edición en caso de no ser la primera. Lugar de publicación, Estado: editora, año. MENDONÇA, Antonio Gouvêa “Ciência(s) da Religião: Teoria e pósgraduação no Brasil”. F. Teixeira. A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma área acadêmica. São Paulo, SP: Paulinas, 2001.

Referencias de Internet: Añádase, después de la citación del libro o del artículo: Disponible en: < link >. Acezado a: día[s]/mes/año (solamente números). RAUSCHENBUSCH, Walter. For God and the People. Prayers of the Social Awakening. Boston, New York, Chicago: The Pilgrim Press, 1910. Disponible en: < http://www.archive.org/details/forgodandthepeo- p00rausuoft >. Acezado a: 20 nov. 2012.

240 Normas de la colaboración Diretórios e indexações

Directories and indexation

Directorios y indizaciones

Diretórios / Directories / Directorios

1. Diadorim Diretório de Políticas de Acesso Aberto das Revistas Científicas Brasileiras

2. E-revist@s Plataforma Open Access de Revistas Científicas Electrónicas Es- pañolas y Latinoamericanas

3. Jornal finder Georgetown University Library Plataforma de procura de revistas Eletrônicas.

4. HEIDI Catálogo para as Universidades de Heidelberg (Biblioteca da Uni- versidade de Heidelberg)

4. Ibict Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas

5. J-Gate [India] Plataforma de revistas eletrônicas da Índia

6. LivRE! Portal para periódicos de livre acesso na Internet

7. Online Wesleyan / Methodist Journals Duke Center for Studies in the Wesleyan Tradition

9. SHERPA / RoMEO University of Nottingham

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 241-242, jan./jun. 2013 241 Indexações / Indexations / Indizaciones

1. Sumários.org Indexação de Revistas Eletrônicas Brasileiras

3. Portal de periódicos da CAPES

4. DOAJ Content Directory of Open Access Journals

5. Latinindex Sistema regional de Información en Línea para revistas electrónicas para América latina, El Caribe, España y Portugal

242 Diretórios e indexações Relação de Permutas

Journals exchange

Intercambio de revistas

ACTUALIDAD LITÚRGICA Boletín de La Comisón Episcopal para La Pastoral Litúrgica de México – MEX.

ANÁLISE E SÍNTESE Faculdade São Bento da Bahia – BRA.

THE ASBURY THEOLOGICAL JOURNAL Asbury Theological Seminary – EUA.

CADERNOS DA ESTEF Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana, Porto Alegre, RS – BRA.

CADERNOS DE TEOLOGIA PÚBLICA UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo, RS – BRA.

CARTHAGINENSIA Instituto Teológico de Murcia, Murcia – ESP.

CAMINOS: REVISTA CUBANA DE PENSAMIENTO SOCIOTELÓGICO Centro Martin Luther King, Jr, La Habana – CUB.

CIÊNCIA DA RELIGIÃO, HISTÓRIA E SOCIEDADE Instituto Presbiteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

COLETÂNEA Instituto Filosofia e Teologia do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ – BRA.

COMPARTILHAR PASTORAL – REMNE Seminário Metodista Teológico do Nordeste – Região Missionária do Nor- deste da Igreja Metodista – BRA.

243 CONTANDO NOSSA HISTÓRIA Instituto Teológico João Wesley, Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS – BRA.

CUADERNOS DE TEOLOGIA Instituto Universitário ISEDET – ARG.

DAVAR LOGOS Associación Colégio Adventista Del Plata – ARG.

DESAFIOS DA REMA Revista da Região Missionária da Amazônia da Igreja Metodista – BRA.

DIDASKALIA Faculdade de Teologia de Lisboa / Universidade Católica Portuguesa – POR.

ENCONTROS TEOLÓGICOS Instituto Teológico de Santa Catarina, Florianópolis, SC – BRA.

ESPAÇOS Instituto São Paulo de Estudos Superiores, São Paulo, SP – BRA.

ESTUDOS TEOLÓGICOS Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Leopoldo, SP – BRA.

FIDES REFORMATA Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper do Instituto Pres- biteriano Mackenzie, São Paulo, SP – BRA.

FRAGMENTOS DE CULTURA Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO – BRA.

HERMENÊUTICA Seminário Adventista Latino Americano de Teologia, Cachoeira, BA – BRA.

HORIZONTE Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, MG – BRA.

HORIZONTE TEOLÓGICO Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos religiosos do Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte, MG – BRA.

244 Relação de Permutas IGREJA LUTERANA Seminário Concórdia, São Leopoldo, RS – BRA.

INICIAÇÃO CIENTÍFICA CESUMAR Centro Universitário de Maringá-Cesumar, Maringá, PR – BRA.

KAIRÓS: REVISTA ACADÊMICA DA PRAINHA Faculdade Católica da Prainha, Fortaleza, CE – BRA.

LITTERARIUS Faculdade Palotina, Santa Maria, RS – BRA.

LOGOS: REVISTA DE FILOSOFIA Universidad La Salle – MEX.

MAIÊUTICA DIGITAL: REVISTA DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS AFINS Faculdade Batista Brasileira, Salvador, BA – BRA.

MIRADA Centro Ignaciano de Espiritualidad de Guadalajara – MEX.

MISSIONEIRA Instituto Missioneiro de Teologia, Santo Ângelo, RS – BRA.

OIKODOMEIN Comunidad Teológica de México, Coyoacan – MEX.

PASSO A PASSO Tear Fund.

PERSPECTIVA TEOLÓGICA Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – BRA.

PHRONESIS Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

PISTIS & PRÁXIS Pontifícia Universidade Católica de Curitiba, PN – BRA.

PRÁXIS EVANGÉLICA Faculdade Teológica Sul Americana – BRA.

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 243-249, jan./jun. 2013 245 PREGAÇÃO & PREGADORES OPBB - Ordem dos Pastores Batistas do Brasil – BRA.

RAZÃO E FÉ Universidade Católica de Pelotas, RS – BRA.

REDES: REVISTA CAPIXABA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Instituto de Filosofia e Teologia, Vitória, ES – BRA.

REFLEXUS Faculdade Unida de Vitória, ES – BRA.

REFLEXÃO E FÉ Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, Recife, PE – BRA.

REFLEXÃO TEOLÓGICA: ESTUDOS E PESQUISAS EM TEOLOGIA E MISSÕES Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro, São Paulo, SP – BRAS.

REFLEXUS Faculdade Unida de Vitória, Vitória, ES – BRAS.

REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIA Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, Rio de Janeiro, RJ – BRA.

REVISTA DE EDUCAÇÃO DO COGEIME Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA 18 Centro de Cultura Judaica – Casa de cultura de Israel, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA DE CATEQUESE Centro Universitário Salesiano de São Paulo – BRA.

REVISTA DE CULTURA TEOLÓGICA Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, SP – BRA.

REVISTA DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UNICAP Universidade Católica de Pernambuco, Recife, PE – BRA.

246 Relação de Permutas REVISTA DE FILOSOFIA Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

REVISTA IMPULSO Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP – BRA.

REVISTA INCLUSIVIDADE Centro de Estudos Anglicanos, Londrina, PR – BRA.

REVISTA TEOLÓGICA Seminário Presbiteriano do Sul da Igreja Presbiteriana do Brasil, Campi- nas, SP – BRA.

REVISTA REFLEXÃO Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP – BRA.

REVISTA REDES Instituto Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - Faculdade Sa- lesiana de Vitória, ES – BRA.

REVISTA RELIGIÃO & CULTURA Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – BRA.

RHEMA-REVISTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antonio, Juiz de Fora, MG – BRA.

TEAR: LITURGIA EM REVISTA Centro de Recursos Litúrgicos da Escola Superior de Teologia, São Le- opoldo, RS – BRA.

TEO-COMUNICAÇÃO Pontifícia Universidade Católica de Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS – BRA. Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS – BRA.

TEOLOGIA Y VIDA: ANALES DE LA FACULDAD DE TEOLOGÍA Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago – CHL.

THEOLOGIE FÜR DIE PRAXIS Revista do Seminário Teológico da Igreja Metodista Unida na Alemanha, Reutlingen – RFA..

Revista Caminhando v. 18, n. 1, p. 243-249, jan./jun. 2013 247 TQ TEOLOGIA EM QUESTÃO Faculdade Dehoniana, Taubaté, SP – BRA.

REVISTA UNICLAR União das Faculdades Claretianas, São Paulo, SP – BRA.

VIA TEOLÓGICA Faculdade Teológica Batista do Paraná, Curitiba, PR – BRA.

VIDA Y PENSAMIENTO Universidad bíblica Latino Americana, San Jose – CRI.

VISÃO TEOLÓGICA Faculdade de Teologia Batista Ana Wollerman, Dourados, MS – BRA.

VOX SCRIPTURAE: REVISTA TEOLÓGICA BRASILEIRA Faculdade Luterana de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Lute- rana no Brasil, São Leopoldo, RS – BRA.

248 Relação de Permutas Bibliotecas parceiras

Partner libraries

Bibliotecas afiliadas

BIBLIOTECA DO CENTRO METODISTA DE CAPACITAÇÂO [CEMEC] São Paulo, SP.

BIBLIOTECA DA ESCOLA DAS MISSÕES [INFORM] Rio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DA FACULDADE DE TEOLOGIA CÉSAR DACORSO FI- LHO Rio de Janeiro, RJ.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO METODISTA DA AMAZÔNIA [IMA] Porto Velho, RO.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO JOÃO WESLEY Porto Alegre, RS.

BIBLIOTECA DO INSTITUTO TEOLÓGICO METODISTA JOÃO RAMOS Belo Horizonte, MG.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA DE TEOLOGIA [CEMETRE] Maringa, PE.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO METODISTA TEOLÓGICO DO NORDES- TE Recife, PR.

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO REGIONAL SCILLA FRANCO Campinas, SP.

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