UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA

GUILLAUME APOLLINAIRE: REFLEXÃO ARTÍSTICA E ELABORAÇÃO POÉTICA

Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Professora Drª. Sandra Margarida Nitrini.

São Paulo 2018 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Fogagnoli, Conrado Augusto Barbosa Fg : Reflexão Artística e Elaboração Poética / Conrado Augusto Barbosa Fogagnoli ; orientador Sandra Margarida Nitrini Nitrini. - São Paulo, 2018. 252 f.

Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada.

1. Guillaume Apollinaire. 2. Arte Moderna. 3. Pintura Francesa. 4. Poesia Francesa. 5. Pintura e Poesia. I. Nitrini, Sandra Margarida Nitrini, orient. II. Título.

Para Tina minha paciente companheira das batalhas diárias Ao Juan e ao Leon por me ensinarem diariamente esta lição de poesia: estranhar, sempre, o óbvio.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Sandra Margarida Nitirini, por aceitar o desafio de acompanhar este projeto de trabalho, no início, apenas tateado. À Tina, que me acompanhou ao longo de toda minha trajetória acadêmica, que pacientemente me escutou, me aconselhou, me apoiou incondicionalmente, e que nos momentos mais difíceis sempre esteve a meu lado. Aos nossos pequenos e lindos filhos Juan e Leon, pela alegria e pela vitalidade que sempre me contagiaram. A Luiz e Marianne Aguirre, pelo apoio mental e material de todas as horas. Aos professores, amigos e interlocutores: Mayra Laudanna, pelos diálogos sobre a pintura e pelas viagens através da quatrième . Margareth dos Santos, pelas discussões, sugestões e indicações de caminhos possíveis. Murilo Marcondes de Moura, pelo estímulo, pelas conversas sobre Apollinaire e sobre a poesia. Typhaine Samoyault, minha supervisora de estágio na Université Sorbonne Nouvelle, pour les échanges à propos de ma recherche, par l'ouverture des chemins nouveaux. Aos demais interlocutores e amigos: M. Victor Martin-Schmets, pour les indications à propos de la correspondance d'Apollinaire. À mon ami Gilles De Obaldia, poète-peintre, amant de la poésie, de la peinture et du chant, pour les longs entretiens sur les et sur la vie. À René De Obaldia, Le Centenaire, l'ami de Salmon, de Cocteau, le témoin de toute une époque. À Mme. Marie-Dominique Ehlinger, la plus aimable bibliotécaire de Fontainebleau, pour faciliter mes recherches. Ao Phil Sedlak e à Serge Tornay, pour les indications à propos des Arts d'Afrique. Ao pessoal do departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, especialmente ao Luiz Mattos. Au personnel de l'Université Sorbonne Nouvelle, tout particulièrement à M. Sylvain Angonin et à M. Gilles Saunier. A todos vocês, e aos esquecidos, eu agradeço. Agradeço também à CAPES, pela concessão da bolsa que me serviu de apoio ao desenvolvimento desse trabalho. RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo tratar de uma parte pouco conhecida da obra de Guillaume Apollinaire: a sua crítica de artes. A partir da análise dos textos que o autor publicou neste domínio, evidencia-se a elaboração de uma série de conceitos que lhe possibilitam pensar a pintura e se posicionar no debate artístico francês dos anos iniciais do século XX. Considerando tais conceitos, mostra-se como estes podem ser relacionados com a reflexão do autor sobre a poesia de sua época e, em particular, com a sua própria. O encontro de suas ideias sobre a pintura e sobre a poesia traduz-se em um projeto estético em sentido amplo que, por isso mesmo, produz efeitos em sua obra poética. Com a finalidade de evidenciá-los, analiso alguns poemas para mostrar como a reflexão artística de Apollinaire importa para a compreensão da obra poética.

Palavras-chave: Guillaume Apollinaire, Arte moderna, Pintura francesa, Poesia francesa, Pintura e poesia

ABSTRACT

The present work aims to deal with the little known part of Guillaume Apollinaire’s work: his critique of arts. From the analysis of the texts that the author published in this field, it is evident the elaboration of a series of concepts that allow him to think about paintings and position himself in the French artistic debate of the early year of the Twentieth Century. Considering theses artistic concepts, it is shown how they can also be related to the author’s views of poetry of his time and, in particular, with his own. From this communication of artistic ideas, it is exposed how it translates into na aesthetic project in the broad sense and that, for this very reason, produces effects in his poetic work. With the purpose of showing this, poems are analysed to express Apollinaire’s artistic views matters for the understanding of his poetic work.

Keywords: Guillaume Apollinaire, Modern , French painting, Frech poetry, Painting and poetry

RÉSUMÉ

Dans la présente thèse je m’occupe d’une partie peu connue de l’œuvre de Guillaume Apollinaire: sa critique d’art. À partir de l’analyse des textes que l’auteur a publié dans ce domaine, j’expose comment se sont forgés des concepts qu’il utilize pour penser la peinture de ses contemporains et sa façon de s’insérer dans les débats parisiens sur l’art du début du XXème siècle. Em considérant ces concepts-là, j’essaie de montrer comment ils peuvent être liés à la réflexion de l’auteur à propôs de la poésie de son temps et, em particulier, sur la sienne. La recontre de ses idées sur la peiture et de ses idées sur la poésie se traduit par um projet estétique au sens large qui, pour cette raison même, produit des effets dans son travail poétique. Dans le but de montrer comment il possible d’identifier ses idées sur l’art dans son travail poétique, je procéde à une analyse de quelques poèmes choisi de ses deux plus grands recueils: Alcools et Calligrammes.

Mots-clés: Guillaume Apollinaire, Art moderne, Peinture française, Poésie française, Peinture et poésie

SUMÁRIO

Apresentação ...... 3 Capítulo 1 - Guillaume Apollinaire: Ideias e Conceitos sobre a Pintura ...... 6 Capítulo 2 - Guillaume Apollinaire: Do Cubismo ao Orfismo. Do Orfismo ao Simultaneísmo ...... 98 Capítulo 3 - Guillaume Apollinaire: Da Pintura à Poesia ...... 154 Anexos: Poemas de Guillaume Apollinaire ...... 224 Bibliografia ...... 234

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Apresentação

Do primeiro artigo publicado sobre as artes por Guillaume Apollinaire, "Le Pergamon à ", no jornal L'Européen de 11 de outubro de 1902, até um dos últimos textos redigidos pelo autor, em 1918, um prefácio para esta que hoje poderíamos afirmar ser uma exposição histórica, a que reunia em um mesmo espaço, e talvez pela primeira vez, a pintura de e a de , dois dos pintores mais admirados pelo autor, quase vinte anos de vida artística parisiense transcorreu. Durante este tempo, que viu surgir e desaparecer movimentos, escolas, agrupamentos, "phalanges" artísticas, artistas, Apollinaire não foi apenas testemunha dos debates, das batallhas, que tiveram como palco, tanto no campo da pintura quanto no campo da poesia e da cultura de um modo geral, ele foi um dos protagonistas, entre os mais ativos, a se pronunciar sobre as artes produzidas em seu tempo, incluindo a sua.

Colaborou com revistas dedicadas às letras e às artes, La Phalange, La Plume, La Revue Blanche, Montjoie!, Lacerba, La Voce, , Volné Sméry; fundou e dirigiu outras, Le Festin d'Ésope, La Revue Immoraliste, Les Lettres Modernes, Les Soirées de Paris, Les Arts à Paris; escreveu para pequenos e grandes jornais como o Guide du Rentier: moniteur des petits capitalistes, ou o L'Intransigeant, sempre movido pela evidente preocupação de divulgar as artes e de difundir ideias artísticas, novas ou antigas.

Escreveu sobre a pintura de Matisse e de Picasso, a de Braque, a de Derain, a de Vlaminck; sobre as pinturas de Signac, Seurat e Cross, sobre Delacroix e Ingres. Ao mesmo tempo que destacava a pintura nova, servia-se da passagem escrita por Plinio, o Velho, na sua Histoire Naturelle, que exemplifica a excelência dos artistas Apeles e

3 Protógenes, para destacar que a pintura não precisa de assunto para ser arte. Publicou textos sobre o Salon des Indépendants, onde expunham os artistas da "avant-garde", e sobre o Salon de la Société Nationale de Beaux-Arts, onde era exposta o que ele chamava, sempre com ironia, de "peinture démocratique". Também não descuidou dos pequenos Salões: de pintores de montanha, de pintores de animais, de caricaturistas, de humoristas, de vitralistas e até mesmo da arte dos jardins.

Em sua crítica de arte, lemos ainda, textos sobre as artes asiáticas, africanas, egípcias, cambodjianas, artes que, como se sabe, foram de importância para os artistas que propuseram novos modos de construção no início do século XX. Foi amigo, e amigo próximo, de muitos dos artistas que olharam essa “arte primitiva”, com os quais discutiu sobre elas e sobre outras tantas ideias, sempre procurando novas possibilidades para as artes.

Sempre presente na vida artística do início do século XX, seria de se estranhar se Apollinaire deixasse de lado o colecionismo artístico e a política das artes na França, por isso, ainda que por raras vezes, o poeta escreveu sobre esses assuntos.

A intensidade com que viveu as artes não deixou de produzir seus efeitos na obra literária do autor, obra pela qual o nome de Apollinaire é mais conhecido. Apesar disso, poucos foram aqueles que se dedicaram a estudar com mais profundidade a relação do autor com a pintura e os reflexos desta relação em sua literatura — e, sobretudo, em sua poesia.

A proposta deste trabalho surgiu então não só da constatação desta lacuna nos estudos da obra de Guillaume Apollinaire, mas também do desejo de trazer parte de sua crítica de arte, tão pouco conhecida, especialmente do leitor brasileiro, para posteriormente mostrar como suas ideias sobre a pintura são importantes para sua reflexão e elaboração poética. As ideias que Apollinaire defende para as artes plásticas também são de importância para a sua prosa, no entanto, devido ao tempo, ou aos tempos atuais que encurtam pesquisas, esta última não é contemplada neste trabalho.

4 a extensão de sua crítica, os artigos que são destacados neste trabalho visam dialogar ou ao menos evidenciar as ideias contida em seu livro Méditations esthétiques, publicado em 1913.

Tentou-se, após idas e vindas aos textos de Apollinaire sobre as artes, circunscreverem-se algumas ideias e conceitos que poderíamos chamar de "ideias- chave", de "conceitos-base", ou, como Philippe Renaud propõe, de "idées-forces", da reflexão sobre as artes plásticas do autor, que se não são a base de sua reflexão sobre a poesia, são de qualquer modo importantes para essa arte da escrita, pois as mesmas ideias e conceitos circulam em sua reflexão sobre as letras.

O que se procurou fazer no primeiro capítulo foi uma espécie de genealogia dos conceitos artísticos de Apollinaire, identificando-os, isolando-os, iluminando-os por meio de análises, por meio das quais foi possível, esperamos, mostrar a articulação destas ideias na reflexão artística do autor.

No segundo capítulo procurou-se, com apoio na exposição feita no primeiro capítulo, desmontar-se que embora Apollinaire seja identificado por muitos como o defensor do cubismo —, teóricos que se servem da divisão sumária que se encontra em seu livro de 1913 para discorrerem sobre o cubismo, como se este fosse um grupo —, o poeta, justamente por não se prender à ideia de agrupamentos, escolas ou movimentos, empreende a defesa de uma arte nova, que apresente composições e figurações diversas das artes anteriores.

Com base na exposição feita no primeiro capítulo e na proposição exposta no segundo foi elaborado o terceiro e último capítulo, no qual finalmente se analisa alguns poemas de Apollinaire à luz de suas reflexões em torno da pintura e da poesia.

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CAPÍTULO 1 - GUILLAUME APOLLINAIRE: IDEIAS E CONCEITOS SOBRE A PINTURA

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"... ce n'est qu'en examinant l'ensemble de ses critiques d'art qu'on pourra se former un jugement indépendant sur les idées esthétiques d'Apollinaire, sa compétence et son rôle dans le développement de l'art moderne". L.-C. Breunig1

“Les idées et les formes artistiques dont nous sommes nourris aujourd’hui trouvent là [dans la critique d'art d'Apollinaire], pour une grand part, leur origine; et leur exubérante floraison, parfois déroutante, ne saurait être comprise sans une connaissance assez exacte de leur valeur originelle, ni cette valeur être conçue autrement qu’en se référant aux conditions dans lesquelles elle s’est affirmée. L’œuvre critique d’Apollinaire, connue dans sa totalité, est peut-être le document le plus riche que nous puissions consulter pour nous éclairer à ce sujet”. Marc Le Bot2

Neste primeiro capítulo me ocupo da exposição e da análise de alguns conceitos que são recorrentes na crítica de arte assinada por Guillaume Apollinaire nos anos iniciais do século XX na França, muitos dos quais são retomados em seu livro Méditations esthétiques. Les peintres cubistes. Tais conceitos podem ser encontrados espalhados pelos numerosos artigos que Apollinaire publicou sobre as artes plásticas ao longo dos anos de 1903-1918, período que exerceu a função de crítico de arte em importantes publicações parisienses. Desde suas colaborações iniciais para periódicos que fariam fortuna na história da imprensa artística francesa, como a revista simbolista La Revue Blanche, que contava em seu quadro de colaboradores como os de Alfred Jarry, André Gide, Émile Verhaeren, Félix Fénéon, Gustave Kahn, Marcel Proust, Paul Claudel, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé, ou para a revista dirigida por Alfred Valette e sua esposa Rachilde, Le Mercure de France, que posteriormente se tornaria também uma importante editora de literatura moderna francesa, até suas contribuições para os jornais de grande circulação na capital francesa, como o L'Intransigeant ou o Paris- Journal, nos quais fora contratado especificamente para exercer a função de crítico de

1 BREUNIG, L.-C. "Préface", in: APOLLINAIRE, Guillaume. Chroniques d'Art. Paris: Gallimard, 1960. 2 LE BOT, Marc. “Apollinaire Critique d’Art”, in: Europe, février 1, 1962; 40, 394. P. 255.

7 arte, Apollinaire dividiu seu tempo de escritor com o de observador das artes e da vida artística parisiense, sempre expondo sua visão e sua posição com relação às artes passadas e presentes. Mencione-se ainda as demais publicações com as quais colaborou ao longo de quase vinte anos dedicados, em parte, a escrever sobre a arte, como a exemplo de publicações hoje desaparecidas, La Grande France, L'Européen, Le Petit Bleu ou Paris-Midi ou ainda com revistas que se destacaram pela divulgação da "nouvelle peinture" da época, como as francesas Montjoie! e Les Soirées de Paris — da qual ele foi diretor —, a alemã Der Sturm, a tcheca Volné Smery, ou as italianas Lacerba e La Voce, estas últimas comandadas pelos pintores do grupo futurista. Muitos dos conceitos que servem a Apollinaire para pensar e para tentar compor uma imagem sobre a pintura que ele defende naquele início do século XX na França se rarefizeram, devido ao tempo e ao número de periódicos em que foram publicados. Para se ter uma ideia do desafio de reunir tais artigos, considere-se: a compilação feita por Michel Décaudin e Pierre Caizegures para a Bibliothèque de la Pléiade, em 1991, soma 1500 páginas. Vinte anos de publicações, sendo que em alguns desses anos Apollinaire escrevia quase que diariamente sobre as artes, e artes entendidas aqui de um modo abrangente: pintura, escultura, gravura, salões oficiais anuais, salões de corporações ou de associações de artistas, museus, instituições artísticas, premiações artísticas, publicações sobre as artes, galerias, mercado artístico etc. Apesar da extensão e da variedade dos assuntos relacionados às artes que ocupa a atenção do também poeta Apollinaire, conhecendo um pouco as preferências e as escolhas do autor, é possível indicar textos nos quais seus conceitos podem ser observados, como nos que escrevia sobre alguns artistas. Por exemplo, sabemos que os pintores que ele costuma defender em seus artigos expõem sobretudo no Salon de la Société des Artistes Indépendants ou no Salon d'Automne, os salões parisienses onde, digamos, se expunha a pintura mais progressista da época. Era para algum destes dois salões que deveríamos ir se quiséssemos ver expostas as obras de Paul Cézanne, de , de , de , de Albert Manguin, de Henri Matisse, de Raoul Dufy, de André Derain, de , de , de , enfim, da maior parte destes pintores que são defendidos por Apollinaire em seus artigos, exceto Picasso, pois o artista, admiradíssimo por Apollinaire, não costumava expor nos Salões. Podemos também recorrer aos textos que ele publicou sobre as exposições que eram organizadas pelas galerias parisienses, principalmente as de Ambroise Vollard, de Gaston e de seu irmão Josse Bernheim, de Daniel Henry

8 Kahnweiler, de , para encontrar expostos alguns dos conceitos que ele se vale para falar da pintura destes artistas. Uma terceira alternativa é a de recorrer aos artigos que o autor publicava nas revistas dedicadas à divulgação da pintura dessa geração, como a Montjoie! e, principalmente, a Soirées de Paris, nas quais Apollinaire expõe com frequência suas ideias sobre a pintura da época. Ainda que se tenha como foco principal o livro Méditations esthétiques. Les peintres cubistes3, também serão contemplados alguns dos artigos mencionados para melhor evidenciar seus conceitos. O único livro que Apollinaire publicou sobre as artes plásticas, as Méditations esthétiques, foi publicado em 1913, no mesmo ano, e um mês após a publicação de um dos principais livros do autor, Álcoois, coletânea de seus trabalhos poéticos desde 1898. Este, como se sabe, entrou para a história literária francesa como um dos marcos da poesia moderna do século XX. Já Méditations foi um livro relegado, esquecido e muitas vezes maltratado pelos críticos, que não raro o julgaram como um livro sem importância, resultado de uma "critique de poète"4, evidentemente, no sentido pejorativo do termo. No entanto, considere-se, a publicação, certamente devido o conhecimento do autor da arte de escrever, quando não evidencia conceitos, os indicia, de tal forma que, se acompanharmos outros de seus textos, podemos entender como o autor pensou a arte de seu tempo. O livro não trata especificamente da pintura cubista, como será explicitado adiante. Não, pois Méditations esthétiques muitas vezes reelabora artigos, por vezes recorta trechos já

3 Publicado em 1913 por Eugène Figuière, Méditations esthétiques. Les peintres cubistes é, como se sabe, o único livro que Apollinaire publicou sobre a pintura. Há indicações que, já em 1910, o autor planejava a publicação de obras sobre a pintura. Michel Décaudin e Pierre Caizergues reportam que neste ano, Alain Fournier publica no Paris-Journal um pequeno artigo no qual divulga obras a serem lançadas por Apollinaire: “Guillaume Apollinaire. Corrige les éprevues d’un Théâtre italien et attend les premières épreuves de L’Hérésiarque et Cie. Annonce, sous presse, des poèmes, Cortège d’Orphée; met au point d’autres poésies: Eau de Vie - futuro Alcools -; termine un livre sur Cézanne et, en colaboration un essai sur Les Tendances nouvelles dans l’art contemporain”. In: APOLLINAIRE, Guillaume. Œuvres en prose complète, T. II. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1991, p. 1503. 4 Deve-se ao crítico e amigo de Apollinaire, Maurice Raynal, a circulação da pejorativa designação de "critique de poète" aplicada a sua crítica de arte. Raynal escreve uma resenha pouco tempo depois do lançamento de Méditations esthétiques. Les peintres cubistes, onde se lê: En général, les vrais poètes ne comprennent rien, mais ressentent tout. Aussi Guillaume Apollinaire, sorte de sensualiste mystique, ne comprend pas la peinture, mais la perçoit, l'éprouve. Il ne se donne pas le mal de juger. La sensibilité de poète, frappée devant certaines toiles, l'induit à paraphraser et à développer le spectacle qu'il a devant les yeux. Et c'est en cela qu'il fait oeuvre de poète. Il ne copie pas servilement les émois et les pensées du peintre; II les regarde de tous ses sens, et les transforme suivant eux, il les crée à l'image particulière de sa sensibilité propre. A ce sujet, l'espèce de «Prose» pour Picasso me semble admirable. Il agit devant un tableau comme devant un spectacle de la nature et traduit les émotions qu'il lui suggère.Et c'est ici le défaut de l'écrivain d'art poète". A partir deste texto, que é publicado na revista Montjoie! em fevereiro de 1914, o crítico de L'Effort Moderne, Gaston Thiesson, redige um artigo em que critica o "eclectisme" da crítica de arte de Apollinaire, e no qual termina escrevendo: "Votre éclectisme est le résultat de votre curieuse incompréhension de la peinture!". Cf. APOLLINAIRE, G. Œuvres complètes en prose, T. II. Paris: Gallimard, 1991, pp. 1618-1619.

9 publicados, de forma tal a reapresentar conceitos que Apollinaire elaborou entre os anos de 1905 e 1912. Nesses oito anos, até a publicação de Méditations esthétiques, Apollinaire pôde elaborar sua visão sobre a pintura produzida em sua época — diga-se, cheia de inovações no campo da linguagem plástica — e definir que tipo de pintura e de pintores ele iria defender publicamente. Logo em 1905, ele publica dois artigos, um na Revue Immoraliste e outro na revista La Plume, ambos tratando da pintura de Pablo Picasso que, na época, era um desconhecido no meio artístico parisiense. Nesse mesmo ano de 1905 ocorre o terceiro Salon d'Automne, onde é revelada a pintura que ficará conhecida como fauve, aquela que Henri Matisse, André Derain, Maurice de Vlaminck, Raoul Dufy, Henri Manguin, Albert Marquet, Louis Valtat e outros, produzem orientados pela proposição de aplicação das cores puras sobre a tela. Aliás, destaque-se, nesse ano uma "intense activité néo-impressionniste"5 é vista no Salon des Artistes Indépendants — como escreve Jean Leymarie —, obras que importam para os artistas que pesquisam a cor pura e que também expõem na mostra: Henri-Edmond Cross, Paul Signac e, do mesmo Matisse que, justamente por prosseguir essa busca da pureza na arte, expõe Luxe, Calme et Volupté, tela pintada durante uma temporada que passa em Saint-Tropez em 1904. Em 1907, Apollinaire publica seu primeiro artigo sobre um salão de artes parisiense, no caso o Salon d'Automne, destacando a retrospectiva consagrada à pintura de Cézanne e reservando, no mesmo texto, um lugar de destaque para comentar a referida cor pura, como a da pintura de Matisse, "le fauve des fauves", como escreve, de a de Othon Friesz, a de Maurice de Vlaminck e a de Georges Braque. No ano seguinte, 1908, ano em que estreia escrevendo sobre o Salon des Artistes Indépendants — o salão mais importante, segundo ele — Apollinaire se volta novamente para a pintura desses artistas destacando as obras de André Derain, de Braque, de Friesz, de Vlaminck, de Camoin, de Rouault, e a de outros artistas empenhados na pintura de cores puras, "telles qu'elles sortent du tube", como se dizia, muitos dos quais integrarão a exposição do Cercle d'Art Moderne du Havre, para o qual Apollinaire é convidado para redigir o texto de apresentação do catálogo neste mesmo ano.

5 Cf. LEYMARIE, Jean. Le Fauvisme. Paris-Génève: Albert Skira Éditions d'Art, 1959, p. 60.

10 Quando em 1910 Apollinaire assume a vaga de crítico de arte deixada por seu amigo André Salmon no jornal L'Intransigeant, um periódico que circula em tiragem superior a 400.000 exemplares — o que não é pouco para uma Paris de pouco mais de 2 milhões de habitantes, compreendida suas zonas periféricas —, ele já tem definida a pintura que irá defender neste e em numerosas outras publicações com as quais colabora, defendendo-a publicamente até o ano do lançamento de suas Méditations esthétiques. Les peintres cubistes, em março de 1913. Malgrado o autor ter publicado um volume em cujo título também indique os chamados “pintores cubistas” do período, Apollinaire rechaça a ideia de escola6 ou de agrupamento, seja ela aplicada ao domínio da pintura, seja ela aplicada ao domínio da literatura. E, se encontramos no título a indicação de uma ideia de “grupo”, possivelmante isso se deve mais às exigências do editor Eugène Figuière7 do que às do autor, exceto se Apollinaire tenha sucumbido à ideia de ter mais um livro publicado ou a de ter a sua burra avantajada, afinal, esse livro é publicado na coleção “Tous les Arts” que era por ele dirigida. Para Apollinaire, e seus textos mostram isso, interessa mais destacar o que singulariza a produção de cada artista, o seu “temperamento” artístico, para empregar um termo corrente na crítica de arte da época e em seus próprios textos, ou de formular os conceitos que lhe são transmitidos por outros pintores que, em obras e em textos, servem de referência para esta nova geração, do que encerrá-los em um grupo, pois, como também sabemos, as proposições visuais que são partilhadas entre muitos destes artistas são interpretadas de modos distintos: as telas que pintam bem mostram. Um dado fundamental, de certa forma já indicado, é que Méditations esthétiques. Les peintres cubistes não foi projetado para ser um manual sobre a pintura cubista, mas certamente, um livro para atender o mercado. Considerando-se que entre os textos do livro apenas um trata da pintura cubista, supõe-se que "Les Peintres Cubiste" seja título de apelo comercial, afinal, o termo "cubisme", que começa a ser empregado pelos

6 Isso fica claro por meio da leitura de seus artigos; a título de exemplo mencione-se o texto que ele redige para o catálogo da exposição do Cercle d’Art Les Indépendants do Musée Moderne de Bruxelles, L’Intransigeant, juin 1911, Chroniques d’Art p. 358 e p. 430. 7 Como explicam Michel Décaudin e Pierre Caizergues nas notas sobre o texto publicadas na edição da Pléiade, 1991, p. 1504: “Le volume qui sortira en mars 1913 portera celui de Les Peintres cubistes. Méditations esthétiques, l’éditeur ayant, pour des raisons d’opportunité commerciale, adopté comme titre principal le sous-titre Les Peintres cubistes introduit en dernier lieu par l’auteur". Em uma carta enviada a Madeleine Pagès no dia 30 de junho de 1915, Apollinaire escreve a sua correspondente: “...mais la seconde partie du titre qui aurait dû être um sous-titre a été imprimée en beaucoup plus gros caracteres que la première et est devenue ainsi le titre...”. In: Tendre comme le souvenir, pp. 67-68. Paris: Gallimard, 18ª éd, 1952.

11 jornalistas e críticos de arte que se ocupavam da vida artística parisiense desde 1910, era, em 1912, extremamente divulgado. Corrobara para esta hipótese o que escreve Apollinaire para Madeleine Pagès, embora quase três anos depois: "J'ai écrit là-dessus un petit livre intitulé Méditations esthétiques, les peintres cubistes, mais la seconde partie du titre qui aurait dû être un sous titre a été imprimée en beaucoup plus gros8 caractères que la première et est devenue ainsi le titre.” 9 Apesar da explicação do autor, e sem eximi-lo, o tal referido título em bold, ao se tornar título, coloca em segundo plano as meditações de Apollinaire. Note-se, em 1911, no Salon des Artistes Indépendants, os pintores cujas obras são expostas na sala 41 são designados nos jornais e em outras publicações de "cubistes"; em 1912, dois destes artistas, e publicam, juntos, pela mesma editora de Eugène Figuière, e pela mesma coleção confiada a Apollinaire, Tous les Arts10, um volume intitulado Du Cubisme11. Ainda neste mesmo ano, uma exposição é montada reunindo considerável número de artistas que haviam participado da sala 41 do referido Salon des Indépendants. Na exposição La Section d'Or, também de 1912, mostra organizada por Apollinaire e outros, embora nela estejam contempladas diferentes pesquisas artísticas, posteriormente, entrará para a historiografia como sendo sobre o cubismo. Essa mostra foi organizada com obras de artistas como Jean Metzinger, Albert Gleizes, Pablo Picasso, Georges Braque, mas também com pinturas de , de Fernand Léger, de . Para essa exposição foi impresso o Bulletin de La Section d'Or12, folheto criado especialmente para divulgá-la, no qual os textos, quando lidos, evidenciam que essa não é uma mostra cubista. Mesmo não sendo o livro de Apollinaire sobre o cubismo, o mesmo artifício se verifica relativamente aos expositores da Section d'Or, pois estes, que serão convocados

8 Os destaques nos textos em bold são grifos meus. 9 Carta de Apollinaire para Madeleine Pagès de 30 de julho de 1915 In: APOLLINAIRE, Guillaume. Tendre Comme Le Souvenir, pp. 67-68. 10 Conforme se lê em artigo publicado em La Revue des Beaux-Arts, nº 275, de 8 de junho 1913: "Les deux premiers volumes de la collection "Tous les Arts", ne manqueront pas de susciter des polémiques, ce qui est une première preuve d'intérêt. Cette collection est dirigée par Guillaume Apollinaire, qui lui-même y donna une série de méditations sur Les Peintres cubistes, cependant que le Cubisme y trouvait ses défenseurs autorisés dans les deux peintres les plus en vue de cette théorie nouvelle: MM. Gleizes et Metzinger". 11 GLEIZES, Albert. METZINGER, Jean. Du Cubisme. Collection "Vers une Conscience Plastique". Éditions Présence, 1980. 12 Bulletin de la Section d'Or. Numéro Spécial Consacré à la Exposition de La Section d'Or, 9 octobre 1912. Collaborateurs: Guillaume Apollinaire, Roger Allard, Gabriele Buffet, René Blum, Adolphe Bassler, Marc Brésil, Max Goth, Olivier Hourcade, , Pierre Muller, Jacques Nayral, , Maurice Raynal, P. N. Roinard, , André Salmon, Paul Villes, André Warnod, Francis Yard.

12 por membros da comissão de organização do , mostra inaugurada em fevereiro de 1913 em Nova York, serão apresentados ao público e possíveis compradores norte-americanos como “cubistas de Paris”. Assim sendo, não seria de se estranhar que Apollinaire tenha dado o seu “de acordo” a Eugène Figuière para evidenciar os Peintres cubistes, e publicar, no mês seguinte ao da abertura do Armory de Nova York, um livro sobre “cubismo”, afinal, ele tem consciência de que a arte depende de um mercado e também sabe que para constituí-lo é necessário, por assim dizer, indispensável, a publicidade: “Et vous savez que la publicité est beaucoup aujourd’hui”13, escreve Apollinaire em carta ao amigo , em janeiro de 1912, pouco tempo antes dele e de um grupo de pintores organizarem a primeira exposição de pintura e escultura futurista em Paris. Portanto, o termo “cubistes”, que figura no título do livro é, principalmente, estratégia, pois os "cubes" circulam em Paris ao menos desde 1908. As anedotas variam, mas raramente se contrariam a propósito da origem do termo “cubisme” e, entre as inúmeras versões que podem ser encontradas, citamos aqui uma, entre outras14, do próprio Apollinaire que escreve em resposta ao crítico Roger Allard em 1918, quando o termo é já objeto de disputa:

Quant au mot cubiste ou cubisme il est, ma foi, bien possible que vous l’ayez écrit le premier mais vous ne l’avez pas inventé. Il vient de Matisse et fut prononcé à propos d’un tableau de Braque. On l’employait dans la conversation dès 1908. Mais Salmon et moi évitâmes soigneusement de l’écrire, car il nous paraissait vilain et péjoratif. Si vous l’avez écrit le premier je ne vous en félicite pas car il n’est pas moins laid aujourd’hui et ne va pas sans faire de tort à des peintres estimables. Je croyais du reste et j’incline encore à croire que le premier journaliste qui l’ait mis en circulation était Vauxcelles qui voulait tuer sous le ridicule la nouvelle école. Au reste avez-vous fait des recherches dans les articles de Vauxcelles et dans les écrits de Salmon, et en auriez-vous pu conclure que vous avez écrit le mot cubisme le

13 É o que Apollinaire escreve a Ardengo Soffici em carta datada de 26 de janeiro de 1912, na qual revela que nesta época ainda não conhecia a pintura feita pelos futuristas italianos, que seria exposta apenas em março deste mesmo ano de 1912. Destaco o trecho em que estas informações aparecem: “Et soyez assuré que vos futuristes feront leur chemin en Italie. À vrai dire je ne connais pas encore leur peinture mais je me doute de ce qu’elle doit être. Si ce gens avaient un succès de presse ici je ne serais point étonné. La publicité aurait ainsi porté ses fruits. Et vous savez que la publicité est beaucoup aujourd’hui. À bientôt. J’attends votre lettre. Guillaume Apollinaire". In: APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance Générale. Tome I, p. 475. MARTIN-SCHMETS, Victor [org.]. Paris: Honoré-Champion, 2015. 14 O próprio Apollinaire lembra que o termo “cubes” foi usado por Matisse para referir a pintura de Braque, enviada para o Salon d’Automne de 1908, no texto que escreve sobre os "Commencents du Cubisme". In: Chroniques d'Art, p. 343.

13 premier cela ne vous conférerait aucun droit à prétendre que le cubisme serait né de vos écrits pas plus que les géographes de Saint-Dié qui les premiers écrivirent le nom d’Amérique ne pouvaient ni prétendre l’avoir découverte ni prétendre avoir inventé le nom qui la désigne encore aujourd’hui15.

Méditations esthétiques embora considere o cubismo e destaque, em sua segunda parte, pintores que serão nominados de cubistas, o livro trata das artes dos pintores e traz conceitos de Apollinaire sobre as artes novas do período. É o próprio Apollinaire que o diz, em carta a Ardengo Soffici: “L’erreur gît surtout en ce que vous pensez mon livre pour un ouvrage de vulgarisation du cubisme. Ce n’est pas cela. Méditations esthétiques et rien d’autre”16. Apollinaire, como habitual, tenta entender a pintura que era feita por seus companheiros pintores, justamente o que consta de seu livro que, aliás, é composto principalmente a partir da reelaboração de artigos de jornais, revistas e de catálogos impressos anteriormente. Relativamente ao termo cubismo, destaque-se, o autor o emprega pela primeira vez, segundo L.C.-Breunig, somente em 1910. Méditations esthétiques. Les Peintres cubistes é um livro organizado em duas partes. A primeira delas, as Méditations esthétiques propriamente ditas, é organizada a partir de textos que Apollinaire publicou entre os anos de 1908 e 1912. A segunda é composta a partir de textos que o autor publicou sobre os artistas Pablo Picasso, Georges Braque, Jean Metzinger, Albert Gleizes, — única pintora que figura no livro —, , Fernand Léger, Francis Picabia, Marcel Duchamp e, em anexo, sobre o irmão deste último, o também pintor e escultor Duchamp-Villon. Dividida em sete secções, às quais Apollinaire acrescenta um intermezzo "cubista", que lhe serve de passagem para a segunda parte do livro, a secção I é montada a partir de um texto de 1908, "Sur la Peinture". Esta seção é, na verdade, composta pelo mesmo texto que ele publica como prefácio do catálogo da IIIe Exposition du Cercle de l’Art Moderne du Havre, “Les Trois Vertus Plastiques”, de 1908. Sabe-se que este Cercle d’Art Moderne é criado em 1906 por Charles Braque, pai do pintor Georges Braque, e

15 Lettre à Roger Allard, 29 juillet 1918. In: MARTIN-SCHMETS, Victor. Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Tome 3/* 1916-1918. Paris : Honoré-Champion, 2015, p. 604. 16 Guillaume Apollinaire, lettre a Ardengo Soffici, 4 juillet 1913. In: Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Paris: Honoré-Champion, 2015. Tome 1, p. 532.

14 por Georges Jean-Aubry17 quem, por intermédio de outro pintor, Othon Friesz, encomenda o texto a Apollinaire. Consta que o Cercle d'Art Moderne é criado em 1906 na cidade normanda de Le Havre com a finalidade “d’organiser chaque année à l’Hôtel de ville des expositions d’avant-garde réunissant les Nabis et les Fauves”18, ou seja, nada nele indica o “cubismo” vindouro que figura no título do livro de Apollinaire. Ainda, de acordo com o que expõem Breunig e Chevalier19, na introdução que escrevem para a edição Hermann de Méditations esthétiques. Les peintres cubistes, de 1965, a exposição para a qual o texto foi redigido originalmente era de tendência “fauve” e compreendia envios de quadros de “Bonnard, Braque, Denis, Derain, Dufy, Friesz, Girieud, Manguin, Marquet, Matisse, Metzinger, Puy, Redon, Roussel, Rouault, Sérusier, Signac, Vallotton, Van Dongen, Vlaminck et Vuillard.”20. Desta lista, provavelmente incompleta, apenas Braque e Metzinger figuram no rol dos pintores comentados por Apollinaire no livro, o que parece pouco para se defender a ideia de que a publicação de 1913 é sobre o cubismo, como será Méditations considerado anos mais tarde por historiadores, que exarcebam afirmando que a publicação é de divulgação ou de defesa dos pintores cubistas. Mas o que é importante destacar é que neste texto ele já apresenta a ideia de uma “pintura pura”, ideia esta que lhe servirá para propor uma leitura da obra desses artistas “novos” e que se opõe à ideia de uma pintura pautada pelo princípio de imitação do real. Para compor a secção II de Méditations esthétiques, Apollinaire reaproveita um artigo publicado por ele na revista Les Soirées de Paris, de fevereiro de 1912, no qual expõe suas opiniões acerca do "assunto", ou "tema", e dos gêneros na pintura moderna. As secções III, IV e V são o resultado do desdobramento de um único artigo que ele publica na mesma revista Soirées de Paris, "La peinture nouvelle. Notes d'Art", em abril de 1912, no qual explora novas visões sobre a importância da geometria para a pintura e, a partir dela, de novas dimensões possíveis de serem exploradas na pintura dos jovens artistas da época. Trata-se aí da ideia de construir um novo espaço plástico, baseado, sobretudo, na ideia de uma "quatrième dimension" da pintura. A secção VI é uma

17 Como evidenciam cartas remetidas ao autor, é Georges Jean-Aubry, co-fundador do Cercle d’Art Moderne du Havre que, por intermédio do pintor Othon Friesz encomenda o texto para figurar como prefácio do catálogo a Apollinaire. Cf. Correspondance avec les artistes. Paris: Gallimard, 2009, p.240. 18 Cf. GRAMMONT, C. & ROUSSEAU, P. L’ABCdaire du Fauvisme. Paris: Flammarion/Paris Musées, 1999, pp. 76-77. 19 BREUNIG, L.C. & CHEVALIER, J.-C. Guillaume Apollinaire. Les Peintres Cubistes. Paris: Hermann, 1965, p.97. 20 Ibid, idem.

15 reelaboração feita pelo autor de outro artigo, homônimo ao anterior e igualmente publicado na Soirées, em maio de 1912, no qual ele se manifesta a propósito de uma polêmica sobre a “mistificação” ou “erro” dos pintores-artistas mais atuais da época. A secção VII é escrita a partir de ideias que se encontram em vários artigos que Apollinaire havia publicado na época: textos da Soirées de Paris, de uma conferência pronunciada em Berlim no início de 1913, de artigo que publica no periódico L'Intermédiaire des chercheurs et des curieux, na qual, enfim, expõe algumas ideias sobre “cubismos”. Sob o título genérico "Sur la Peinture", Apollinaire abre a primeira parte de Méditations esthétiques, dividida em sete seções, como dito, na qual expõe ideias e conceitos que lhe servirão de base para propor, na segunda parte, uma leitura do caminho da pintura dos artistas que são ali tratados. Sem dúvida, quase todos os artistas contemplados se divulgarão ou serão consagrados sob o epíteto “cubista”, mas a designação dessa segunda parte, como se lê, nada indica senão que eles são "Les peintres nouveaux". Como foi dito, para compor a primeira secção do livro, o autor reelabora o texto que havia redigido para apresentar uma exposição "fauve", do Cercle d'Art Moderne du Havre em 1908. No texto de origem, Les Trois Vertus Plastiques, Apollinaire expõe três ideias que lhe servem para compor uma imagem da pintura exposta na ocasião: "pureté", "unité" e "vérité". Segundo ele: "Les vertus plastiques: la pureté, l'unité et la vérité maintiennent sous leurs pieds la nature terrassé". Exposta assim, de maneira direta e simples, a proposição que está contida na sentença de abertura do livro parece não ter tanta importância, mas ela é fundamental para se entender a passagem da pintura que, no domínio das artes francesas, é produzida desde mais ou menos meados do século XIX, quando ela começa a se afastar de um modo de representação amparado no princípio de uma imitação da natureza21, para propor novas práticas artísticas, as quais passam a enfatizar a importância da execução na arte de pintar. O que pareceria

21 Mesmo sabendo que não deveria reduzir o princípio da Mímesis a esta ideia de "imitação da natureza" esclareço desde já que não me ocuparei deste conceito em nenhuma parte deste trabalho pela simples razão de que, para isso, teria de escrever outra tese sobre este assunto. Devo deixar claro também que empregarei a ideia de "imitação da natureza" tal como ela é empregada nos escritos de Apollinaire assim como pelos demais críticos e artistas de que falarei ao longo deste trabalho. Enfim, ao leitor interessado pela Mímesis, me limito a indicar, e para ficar apenas com um autor nacional, os estudos de Luiz Costa Lima que ao longo de mais de trinta anos se ocupou da investigação sobre o conceito, de suas origens, de suas distintas interpretações, de suas apropriações, estudos que resultaram, principalmente, em três grandes obras sobre o tema: Mímesis e Modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980; Vida e Mímesis. São Paulo: Ed. 34, 1995; Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

16 óbvio neste início de século XX no qual Apollinaire escreve, na verdade, não o era, pois sabemos que em sua época este tipo de pintura fundada no princípio da imitação encontrava ainda excelente recepção de público e de crítica, como indica o prestígio dos dois principais salões de artes da Paris do início do século XX: o Salon de la Société Nationale de Beaux Arts e o Salon de la Société des Artistes Français, nos quais ainda circulava, e a julgar pelos escritos de Apollinaire, muito, a pintura pautada na ideia de imitação do real e a qual ele por vezes designava, com ironia, de "peinture démocratique"22. Deste modo, a simples sentença com a qual inicia o texto considerando que a natureza é "terrassée" por três ideias, a de pureza, de unidade e a de verdade, supõe-se que as três virtudes plásticas devem ser entendidas como um posicionamento do autor, que julga "tout à fait hostile à l'art mercenaire de l'imitation"23, e que por isso mesmo afirma serem as três ideias como sendo superiores à de uma representação que imita o real, ou o natural, como também afirmam. Esta proposição que se volta contra a ideia de uma arte de imitação já é desenhada nos escritos de Apollinaire sobre as artes desde 1903, a exemplo de um de seus primeiros artigos sobre arte, no qual ele promove uma espécie de elogio à falsificação, Des Faux24. Publicado na Revue Blanche25, em 1º de abril de 1903, quando Apollinaire

22 Sob esta designação de "peinture démocratique" Apollinaire comenta a pintura que é exposta nestes dois Salões. Em 1910, comentando ambos em um mesmo texto, Apollinaire escreve sobre a Nationale: "Et l'on est étonné tout d'abord du nombre prodigieux des œuvres exposées; œuvres de toutes sortes comprenant le grand tableau historique et la fleur artificielle, la fontaine monumentale et la miniature sur ivoire. On est plus étonné encore que cet ensemble, où ne manquent pas des œuvres puériles et inutiles...", mais à frente, no mesmo texto, sobre os Artistes Français, afirma que "la peinture démocratique ne se voit qu'aux Artistes Français". A opinião de Apollinaire é a de que se trata de salões onde os artistas que neles expõem se preocupam em produzir uma pintura ainda muito presa a ideia de uma imitação do real. Uma passagem deste mesmo texto de 1910, pode dar uma ideia do objeto da ironia de Apollinaire quando refere a pintura que aí é exposta: "Il est très agréable, pour un homme de Lettres, de se promener au Salon des artistes français. L'Histoire y est enseignée sous la forme la plus attrayante qui soit: celle des images; les anecdotes gaies ou tristes qui ont inspiré les peintres peuvent aussi bien séduire l'imagination du romancier et du dramaturge; l'archéologue et l'historien, peuvent constater avec quelle fidélité les artistes ont reproduit des sites célèbres ou reconstitué l'accoutrement des héros", ou seja, são salões onde se deve ir para se informar sobre assuntos ligados a história, não sobre a pintura propriamente dita. Ironizando ainda estes dois salões, escreve: "Je connais un homme dont la réputation est d'être un causeur délicieux. Chaque année, il fait deux ou trois visites aux "Artistes Français". Il y puise de quoi alimenter sa conversation jusqu'au prochain printemps et notez que cet homme d'esprit se garde d'aborder les questions d'actualité. Les autres salons n'offrent pas cet avantage". In: APOLLINAIRE, Guillaume. "Au Grand Palais, le Vernissage du Salon", 1 mai 1910, in: Œuvres en prose complètes, T. II. Paris: Gallimard, 1991, p. 189. 23 Esta asserção nós a encontramos na entrevista que Apollinaire concede a Pérez-Jorba, publicada no jornal espanhol La Publicidad. CF: O.C.P. II, p. 991-992. Tal afirmação não deve ser, no entanto, entendida em sentido estrito, mas requer um esclarecimento de princípios: ao passo que se diz hostil a essa “art mercenaire de l’imitation”, o autor esclarece que não é contra à natureza, desde que esta seja feita com base na “imagination”, “pas du tout par la photographie”. 24 APOLLINAIRE, G. "Des Faux", in: Chroniques d'Art p. 29.

17 contava apenas 23 anos, o crítico defende a relevância do “falso” em detrimento do “verdadeiro” ao comentar no artigo a discussão em torno da tiara de Saïtaphernès, peça adquirida pelo Museu do Louvre em 1896 que, nesse início do século XX, é retirada de exposição sob suspeita de falsificação26. Defende o autor que é irrelevante a discussão sobre a veracidade ou a falsidade da tiara pois, do mesmo modo como a Madone du bourgmestre Meyer de Bâle, atribuída a Hans Holbein, que ele vê no museu de Dresden no correr de sua estada na Alemanha27 entre 1901-1902, ou a L’Adoration des rois mages, atribuída à Jan Brueghel, vista num museu de Viena ao longo do mesmo período, não são, como escreve, obras originais, a tiara exposta no Louvre, mesmo sendo falsa, tem o seu valor, pois, como os dois quadros referidos, ela deveria ser considerada do ponto de vista de sua execução, e não do de sua veracidade. Para ilustrar sua argumentação, Apollinaire lembra o trabalho de um falsário de Honnef que, com muito engenho, era capaz de produzir a contrafação perfeita de qualquer objeto original: “Ce faussaire n’était parfaitement heureux que les jours où il avait maquillé quelque fausseté. Il l’admirait ensuite en souriant et disant: “J’ai fabriqué un dieu, un faux dieu, un vrai joli faux dieux.”28. O artigo Des Faux ilustra bem o pensamento de Apollinaire, uma vez que nele fica evidente que, neste momento, oposições tais como as de verdadeiro/falso, real/irreal, pouco importam a ele. O que importa, o que deve ser relevado, é a própria “ideia”, o engenho do artista, como arte. Trata-se do próprio fazer artístico, da execução, no caso, fundada no princípio de imitação, pois, imitar o real é também falso,

25 La Revue Blanche, revista de orientação simbolista com a qual Apollinaire colaborou já em seus últimos anos de circulação, foi uma revista importante criada pelos irmãos Alexandre e Thadée de Natanson em 1889 em Liège, na Bélgica. Mudando-se para Paris em 1891, os irmãos Natanson transferem a sede da revista para a capital francesa onde começam a rivalisar com a importante Mercure de France, com a qual também Apollinaire colaborará ao longo destes anos iniciais do XX. Félix Fénéon dirige a Revue Blanche de 1896 até 1903, ano em que Apollinaire publica dois de seus artigos na revista. Conforme Maurice Raynal - La Peinture Moderne. Paris-Génève: Albert Skira Éditions d'Art, p. 31 — as "soirées" promovidas pela Revue Blanche eram ponto de encontro de pintores como Maurice Denis, Bernard Vuillard, Pierre Bonnard, Paul Sérusier, Félix Vallotton. Entre os literatos, o quadro de seus colaboradores contava com nomes como os de Alfred Jarry, Gustave Kahn, Paul Verlaine, Paul Claudel, Stéphane Mallarmé e outros, como o próprio Apollinaire. 26 Cf. nota de Breunig para a edição das Chroniques d’art, 1960, p. 560: "Cette célèbre tiare, acquise par le Louvre en 1896 et datée du IIIe siècle avant Jésus-Christ, fut retirée des salles d'exposition le 23 mars 1903, une enquête ayant établi que c'était l'œuvre d'un faussaire. Apollinaire ne sait pas encore que le "maître russe inconnu", un nomé Rouchomowski d'Odessa, débarquera à Paris le 5 avril et que son identité sera dévoilée". 27 Entre agosto de 1901 e agosto de 1902 Apollinaire excursiona na Alemanha contratado como preceptor da filha da viscondessa Mme. De Milhau. É durante este período de passagem pela Alemanha que ele publica seus primeiros textos em que as artes plásticas são consideradas. Neste período publica os artigos "Le Pergamon À Berlin", "L'exposition de Dusseldorf", "Le musée germanique de Nuremberg", todos em 1902, e "Des Faux", em 1903. 28 APOLLINAIRE, Guillaume. "Des Faux", op. cit.

18 o que esquece o espectador quando, ao observar um quadro, não se dá conta de que está diante de uma superfície plana na qual o artista cria a ilusão de uma tridimensionalidade, que, se real, não é a realidade do quadro, mas o efeito de realidade que, por engenho do artista, é produzido. A ideia sugerida neste texto é reelaborada pelo autor e elevada à posição de uma proposição em outro, no qual Apollinaire dá relevo à ideia de falsidade como um meio de criação artística. Em um artigo publicado na revista La Phalange em janeiro de 1908, portanto bem próximo em data do texto redigido para a exposição do Havre, Apollinaire escreve sobre a poesia de seu amigo Jean Royère destacando que:

La poésie de Jean Royère est aussi fausse que doit être une nouvelle création au regard de l'ancienne. Quelle fausseté enchanteresse. Rien que nous ressemble et tout à notre image! Jean Royère a rempli ainsi la première condition de l'art le plus pur et le moins estérile29.

Na passagem em destaque encontramos ideias que ele desenvolve no texto que abre as Méditations. Temos aí a exposição de um posicionamento contra a ideia de uma arte de imitação, aquela que é produzida a partir da observação da “natureza”, que é destacada na primeira sentença do artigo sobre Royère e é indicada em dois momentos: quando escreve que a poesia de Royère é tão falsa quanto "doit être une nouvelle création au regard de l'ancienne" e "rien que nous ressemble et tout à notre image!". A primeira contém a mesma ideia expressa na sentença com a qual inicia suas Méditations esthétiques: a falsidade, a falsificação, o falso, como meio de oposição ao princípio de imitação do real e que deve ser considerado a "nouvelle création"; a segunda propõe que em arte nada deva se parecer com o real: é desta operação que se produz a arte "le plus pur". Esta ideia de pureza exposta no artigo sobre Royère e no texto sobre os pintores do Havre parece vir um pouco a reboque da que era proposta já no século XIX por autores como Stéphane Mallarmé, ou por pintores, alguns dos quais Apollinaire escreve como a exemplo de Paul Signac ou de Maurice Denis. No que se refere à pintura, a pureza poderá ser entendida como uma pureza de modos ou de meios de execução que, nesta arte, produz novas composições a partir da "falsificação", por assim dizer, de uma distorção, de uma contrafação: "les artistes peintres vertueux — escreve Apollinaire —

29 APOLLINAIRE, Guillaume. "Jean Royère", in: Œuvres complètes en prose, T. II, p. 1006.

19 de cette époque occidentale considèrent leur pureté en dépit des forces naturelles", ou seja, deve-se recorrer a esse artifício para não cair na mera imitação do natural. Para Apollinaire, a pureza é "l'oubli après l'étude", isto é, o artista até pode partir de um estudo do natural mas este estudo deve ser esquecido no momento em que o pintor executa sua composição. Resultado de uma imagem que talvez se forme na memória ou no próprio ato de pintar, pois a pintura é a busca de algo além do observável, uma operação puramente mental, que considera a ideia de pureza, além de outras duas, a de unidade e a de verdade, ideias que colocam a natureza sob seus pés, dominando-a. Na prática, um exemplo é o Portrait de , que Picasso pinta em 1906 após dezenas e dezenas de sessões de pose da modelo, que lhe servem mais para o estudo. O retrato mesmo será pintado de memória-estudo, o que faz com que o artista produza uma imagem afastada do real, do observado, por assim dizer, do próprio rosto da escritora, embora ela esteja indiciada na pintura. Outro exemplo, suponho, pode ser a que Henri Matisse expõe no Salon d'Automne, na "cage aux fauves", em 1905 e que provoca escandalo por não se parecer com uma mulher "real". Este entendimento da pureza da pintura denota, se não demonstra, uma compreensão de que mesmo a pintura mais "realista" é o resultado de um artifício, no sentido de engenho, imaginação esta que o falsário de Honnef se serve para fabricas um deus, um falso deus, " un vrai joli faux dieux". Para Apollinaire, a pintura "se purifie, en Occident, avec cette logique idéale que les peintres anciens on trasmise aux nouveaux comme s'ils leur donnaient la vie". A pintura se purifica enquanto ideia e enquanto modo de execução, formas de conhecimento que são transmitidas de tempos em tempos, através de textos e de quadros, mas nunca como repetição, como imitação, pois não se pode esquecer que, como escreve Apollinaire em suas Méditations esthétiques, não se pode "transporter partout avec soi le cadavre de son père". Estando a pureza relacionada à ideia da pintura e da sua execução, o segundo conceito, a "vérité" ingressa na primeira parte do texto não como a veracidade de uma representação que se ampara no princípio de uma imitação do real, mas como verdade "hors de toutes les natures"; afastada de "todas as naturezas"; sendo assim, a verdade é entendida como artifício produtor, e não reprodutor. Enquanto artifício, a "vérité" pode ser entendida como a verdade material da pintura, sua matéria e seu modo de execução: "en ce cas, la déplorable vérité, plus lointaine, moins distincte, moins réelle chaque jour réduirait la peinture à l'état d'écriture plastique".

20 O terceiro conceito introduzido na mesma secção de Méditations, "unité", faz lembrar da velha concepção que se fez da pintura na Itália, e que certamente chegou até as academias de pintura da França, a qual entendia a pintura como o resultado da articulação entre as partes — circunscrição, composição e distribuição de luzes, segundo Leon Battista Alberti. Não é possível afirmar que Apollinaire conhecesse as preceptivas de Alberti, mas sim que conhecia uma das possíveis fontes do doutrinador italiano: a Histoire Naturelle de Plinio, em cujo livro XXXVI ele expõe os princípios de base para o pensamento sobre a pintura que são úteis para Alberti. Além disso, é preciso lembrar que em 1911 Apollinaire resenha e recomenda o estudo dos Quatre Dialogues sur la Peinture, na tradução de Léo Rouanet, do português Francisco de Holanda, que por sua vez era formado por esta mesma cultura artística que vinha de Alberti. Apesar da distinção entre os termos e entre os tempos, algumas ideias presentes no texto de Apollinaire apresentam analogia com os preceitos antigos. Apollinaire se vale da imagem da chama — "La flamme est le symbole de la peinture et les trois vertus plastiques flambent en rayonnant"— como símbolo da pintura ela mesma e propõe a "pureté" como um de seus atributos: "La flamme a la pureté qui ne souffre rien d'étranger et transforme cruellement en elle-même ce qu'elle atteint". Sob essa mesma luz, ele escreve ainda que "tous les corps sont égaux devant la lumière et leurs modifications résultent de ce pouvoir lumineux qui construit à son gré". A ideia de "vérité", pode ser entendida como a materialidade da própria pintura. Já a "unité" como o resultado da articulação entre as três virtudes plásticas, estas, partes da pintura: "La toile doit présenter cette unité essentielle qui seule provoque l'extase". A visão do quadro deverá ser, segundo Apollinaire, "entière, complète", sem o que, "les rapports qu'auront les divers points de la toile avec différents génies, avec différents objets, avec différents lumières ne montreront qu'une multiplicité de disparates sans harmonie". Como escreve Apollinaire: "La pureté et l'unité ne comptent pas sans la vérité", ou seja, elas devem estar articuladas para que a visão do quadro seja "entière, complète". Mas, se a analogia da concepção da pintura entendida como o resultado de uma articulação entre partes é possível, quando consideramos os textos dos dois autores, uma analogia relativa ao modo como se efetua esta articulção é impossível, pois, se em Alberti, assim como em grande parte da tradição da pintura francesa, como nos ensina Batteux30, dos

30 BATTEUX, C. As Belas Artes Reduzidas a um mesmo Princípio. São Paulo: Humanitas, 2009. Quando propõe que as artes podem ser reduzidas a um mesmo princípio, Batteux afirma que o que há em comum entre elas é a imitação dos objetos visíveis. No caso da pintura, encontramos um bom exemplo quando

21 séculos XVII, XVIII e parte do XIX, a imitação da natureza é princípio que deve ser seguido pelo pintor, em Apollinaire não:

"Avant tout, les artistes sont des hommes qui veulent devenir inhumains. Ils cherchent péniblement les traces de leur inhumanité, traces que l'on ne rencontre nulle part dans la nature. Elles sont la vérité et en dehors d'elles nous ne connaissons aucune réalité".

Dos conceitos que são expostos na primeira secção de Méditations, três deles reaparecem na segunda secção, que é escrita a partir de outro texto que Apollinaire publica quatro anos depois do que ele havia redigido para a exposição do Havre de 1908 e que é reutilizado na abertura do referido livro. Trata-se do artigo intitulado Du Sujet dans la peinture moderne, que ele publica na revista Les Soirées de Paris em fevereiro de 1912. Em Du sujet Apollinaire enfatiza sua posição contrária à ideia de uma arte fundada no princípio da imitação, defendendo que a "verdade" da pintura está na matéria que lhe é própria, que lhe dá forma, e no modo como esta é trabalhada pelo pintor. Segundo ele, se os pintores ainda observam a natureza, eles não a imitam mais e "évitent avec soin la représentation de scènes naturelles observées". Esta ideia de não mais representar a natureza vista seria, segundo Apollinaire, a verdade da pintura que se volta para ela mesma, preocupando-se o pintor com o que é próprio dela, a execução: "La vraisemblance n'a plus aucune importance, car tout est sacrifié par l'artiste aux vérités, aux nécessités d'une nature supérieure..."; esta natureza superior da pintura, que não é a da representação do real, se configura pela proposição de que "le sujet ne compte plus ou s'il compte c'est à peine", tal como ele escreve.

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A discussão que Apollinaire propõe no texto Du Sujet, que pode ser lido em seu livro, ilustra o debate sobre a pintura que se configurou naqueles anos e por meio de sua leitura é possível localizar e expor a genealogia dos conceitos que nele operam. Esta proposição da desimportância do assunto na pintura, por exemplo, é conhecida, sobretudo entre pintores. Albert Gleizes e Jean Metzinger, artistas que Apollinaire

Batteux responde à seguinte pergunta: "O que é a pintura? Uma imitação dos objetos visíveis. Ela nada tem de real, nada tem de verdadeiro. Tudo nela é aparência, e sua perfeição só depende de sua verossimilhança com a realidade", p. 28.

22 defende em seus artigos e que são tratados em seu livro, são claros quando afirmam, na obra que publicam juntos em 1912 na coleção dirigida por Apollinaire, que “catégoriquement le cubisme remet en question les droits de l'objet; il portera au paroxysme le discrédit dans lequel est tombé le sujet au cours du XIX siècle peignant n'importe quoi”31. Juan Gris, outro pintor contemplado por Apollinaire em seu livro, diz que “on peut donc dire qu’un sujet peint par moi n’est qu’une modification des rapports picturaux préexistants”32. Henri Matisse se lembra, ao redigir em 1908 suas Notes d’un Peintre, que “une œuvre doit porter en elle-même sa signification entière et l'imposer au spectateur avant même qu'il en connaisse le sujet”33. Como indicam Gleizes e Metzinger, os autores de Du Cubisme, o tema cai em descrédito já na pintura que é feita no século XIX, e é possível encontrar indícios deste movimento desde Delacroix que, apesar de aceitar e realizar encomendas do Estado, escreve em seu diário, em de dezembro de 1853, que “le sujet, le pittoresque même disparaissent devant les mérites de l’exécution”34, mais uma ideia que nos permite supor que a execução passa a ocupar o lugar do assunto e a assumir posição importante na pintura realizada por estes artistas. Possivelmente, a pintura de Delacroix não era a regra, já que em seu tempo a pintura que angariava prestígio nos Salões oficiais e nos demais círculos artísticos parisienses era aquela ensinada nas academias de belas artes, onde se considerava que o assunto da pintura importava, pois era ele que determinava o gênero. Não se tratava apenas de disciplina “acadêmica”, pois os próprios críticos de arte da época, os chamados salloniers, como Théophile Gautier, “s’attachaient principalement au sujet et décrivaient les tableaux plutôt qu’ils les jugeaient"35, como afirmam.

31 GLEIZES, A. METZINGER, J. Du Cubisme. Collection "Vers une Conscience Plastique". Éditions Présence, 1980. A data de publicação do livro dos pintores é de outubro de 1912, sete meses após a publicação do artigo de Apollinaire. Du Cubisme é publicado pelo mesmo editor de Méditations esthétiques, Eugène Figuière, em uma coleção dirigida por Apollinaire, intitulada “Tous les Arts”, em uma reedição da obra publicada em 1912. Logo na introdução deste livro Gleizes e Metzinger reconhecem a dívida para com o autor que defende suas artes: “Nous ne servions qu'un seul intérêt: celui de notre art. Les poètes de notre génération qui approuvaient notre attitude et aimaient nos tableaux avaient le même état d'esprit que nous. Ils soutinrent notre effort et, soit dans des articles, soit dans des livres, ils ont laissé des témoignages auxquels les jeunes commentateurs actuels devraient attacher la plus déférente attention. SURTOUT QUAND S'AGIT D'UN APOLLINAIRE, LE PLUS PUR POÈTE DE NOTRE GÉNÉRATION qui, non seulement écrivit les "MÉDITATIONS ESTHÈTIQUES", sur les peintres nouveaux, mais aussi de nombreux articles sur les premières expositions cubistes dans "L'Intransigeant" et les jeunes revues littéraires et artistiques de l'époque”. In: Du Cubisme, "Avant- propos", op. cit. 32 GRIS, Juan. Écrits. La Nerthe, 2014, p. 9. 33 MATISSE, H. “Notes d’un Peintre”, in: Écrits et proppos sur l’art. Paris: Hermann, 2005, p. 49-50. 34 DELACROIX, E. Journal. Nota de 24 décembre 1853. Paris: Plon, 1893, pp 296-302. 35 REWALD, John. Histoire de l’Impressionnisme. Tome 1. Paris: Albin Michel, 1955, p. 30.

23 Um caso exemplar deste “discrédit du sujet” a que se referem Gleizes e Metzinger é o da pintura de Édouard Manet. Seu Déjeuner sur l’herbe é obra recusada pelo Salon de 1863. A propósito da tela, John Rewald se pergunta se o quadro teria provocado o mesmo espanto da crítica se ele não tivesse sido pintado em “larges contrastes et franches oppositions de tons et avec une tendance à la simplification”, ou seja, tratando- se do “sujet”, a cena campestre de um almoço sobre a relva seria admissível, por isso, aos olhos do público e do júri, segundo Rewald, é “sans doute la facture” o que se reprova na tela do artista:

C’est l’abandon de l’éxécution léchée, l’indication sommaire des details du fond, la façon dont les formes étaient obtenues sans l’aide de lignes, mais en opposant les tons ou en indiquant des contours à coup de brosse décidés, c’est tout cela qui provoque une désapprovation à peu près générale36.

Eis a razão pela qual a tela de Manet entra para a história da pintura francesa e se converte em obra símbolo do famoso Salon des Réfusés de 1863. Para o pintor o essencial não era o “sujet” a ser pintado, antes a maneira de executá-lo, o que ocorrerá também com o Nu em sua Olympia. Portanto, não parece um exagero de Apollinaire quando escreve que Manet está nas origens da revolução plástica que se inicia no século XIX e que segue no século XX, pois é o "assunto", a questão que se coloca, a saber, em “Du Sujet dans la Peinture Moderne”: “les peintres nouveaux procurent déjà à leurs admirateurs des sensations artistiques uniquement dues à l'harmonie des lumières et des ombres et indépendants du sujet dépeint dans le tableau”. Trata-se da “peinture- pure”, ideia que Apollinaire não cansa de reformular e divulgar nestes anos que antecedem a Primeira Guerra, baseada no princípio de que a execução é mais importante do que o assunto. Assim a proposição que se lê no início do texto pode ser entendida como uma declaração de princípios sobre a pintura de toda uma época e, mais especificamente, sobre aquela que Apollinaire considera como sendo a mais representativa desses anos iniciais do século XX. Logo no início, Apollinaire escreve que “Beaucoup de peintres nouveaux ne peignent que des tableaux où il n’y a pas de sujet véritable.”. Diminuindo a importância do assunto, do tema, em favor da execução, Apollinaire opõe-se à pintura ensinada na academia, à pintura oficial aceita nos salões do início do século XX,

36 Idem, p. 122.

24 àquelas que seguem gêneros. O assunto é, portanto, externo à execução da obra na visão do autor, visto que o mesmo é mera notação: “le sujet ne compte plus ou s’il compte c’est à peine”; também não importam à obra “les dénominations que l’on trouve dans les catalogues jouent alors le rôle des noms qui désignent les hommes sans les caractériser”. As designações nada explicam, pois são externas à execução, ao que é visto pelo espectador do quadro, por sua vez constituído de pura matéria operada pelo pintor. Ora, não são as Banhistas de Cézanne, ou as de Matisse, ou as de Derain, enquanto figuras ou tema o que importa segundo Apollinaire, mas sim as linhas, as cores, as luzes, as pinceladas, as formas unidas por meio de composição e, evidentemente, o modo como cada pintor organiza a articulação destes elementos na tela. São eles que deverão ser considerados pelo espectador, e não o título ou o assunto da obra pintada. Esta proposição, que esboça uma ideia de pureza na pintura, enseja uma segunda que dela deriva: sendo o assunto da pintura de pouca ou de nenhuma importância, deduz-se que também pouco importa seu gênero, como o retrato, a paisagem, a natureza morta que, justamente por serem gêneros, seguem modos de se compor o quadro, direções precisas, ensinadas nas academias de belas artes. A ideia de pintura pura é fundamental para o autor que se opõe às classificações, às escolas, ou aos movimentos artísticos: “on condescend encore parfois à se servir de mots vaguement explicatifs comme portrait, paysage, nature-morte”.

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A defesa da arte pura em detrimento das classificações pode ser observada em Méditations esthétiques, malgrado seu “sub” ou “título” elevado, Les peintres cubistes, que sugere a leitores pouco atentos que o mesmo trata apenas de cubismo. Ora, como o próprio Apollinaire escreve: “beaucoup de jeunes artistes-peintres n’emploient que le vocable général de peinture”. Empregado assim, genericamente, o termo pintura se abre no texto de Apollinaire para aplicações que se desviam dos limites estabelecidos pela noção de assunto, tema, ou gênero e, é claro, pela própria ideia de uma pintura de imitação, que ele ataca já na primeira secção do livro, e que a ela retorna na segunda, ao escrever que: “Ces peintres, s’ils observent encore la nature, ne l’imitent plus et ils évitent avec soin la représentation de scènes naturelles observées...”. Não tendo a imitação importância,

25 tampouco teria importância a verossimilhança, entendida como aparência do real: “La vraisemblance n’a plus aucune importance”, e, consequentemente, o assunto. Deste modo, o que deve ser considerado é a execução, que será enfatizada por Apolinnaire em seus escritos. A partir do exposto acima, poderia-se entender apenas que Apollinaire estivesse sugerindo uma ruptura com a pintura produzida no passado, como teses explicativas propõem, a saber, uma leitura dessas manifestações artísticas do início do século XX francês cercada de noções classificatórias tais como as de “tradição da ruptura”37, de “tradição moderna”38, ou de uma “religião do futuro”39, por meio das quais se procurou definir uma ideia de vanguarda artística para a qual Apollinaire teria sido, inclusive, um precursor. No entanto, em Apollinaire não se trata de rupturas, e sim da procura de “um outro” na pintura, por assim dizer, de um outro que não desdenha o passado. Este pertence ao seu tempo e, do que é possível entender a partir dos escritos do poeta, o passado traz exemplos que importa para se chegar à nova arte. Quando ele ressalta a importância da execução na pintura, do métier do pintor, ele o faz considerando também os artistas do passado — “L’art moderne repousse, généralement, la plupart des moyens de plaire mis en œuvre par les grandes artistes des temps passés” —, pois, na sua interpretação, é ela, a execução, a produtora do efeito que é a finalidade última da pintura: “le plaisir des yeux”. Neste sentido, não é de se estranhar que o autor se valha de um exemplo, talvez o mais remoto deles, para destacar a importância da execução na pintura, recontando em seu texto a conhecida passagem

37 Bem no ínicio de Os Filhos do Barro. Do Romantismo à Vanguarda [RJ: Nova Fronteira, 1984], Octavio Paz explica que o tema de seu livro é "a tradição moderna da poesia". A expressão não só significa que há uma poesia moderna, como que o moderno é uma tradição. Uma tradição feita de interrupções, em que cada ruptura é um começo", e mais à frente, no mesmo parágrafo, que "a ruptura é a destruição do vínculo que nos une ao passado, negação da continuidade entre uma geração e outra...". Esta ideia de que, na poesia moderna, cada ruptura é um começo, que é preciso destruir o passado para construir o presente, não dialoga com o entendimento que Apollinaire tem sobre as artes. Para ele, há, se não uma continuidade, uma comunicação, um diálogo permanente entre a pintura que ele defende nos anos iniciais do século XX e a que era feita pelos artistas franceses, e outros, no século XIX, e até antes. Duas sentenças que resumem bem sua posição sob esta óptica - mas existem outras -: "Le présent doit être le fruit de la connaissance du passé et la vision de l'avenir", ou, "De la connaissance du passé naît la raison, de la vision de l'avenir surgit l'audace et la prévoyance", in: Œuvres complètes prose, T. II, p. 986. 38 Cf. Compagnon: "A tradição moderna, segundo essa nova ortodoxia, surgida no final do século XIX, é a história da purificação da arte, de sua redução ao essencial. É nesse sentido que veremos muitas vezes descrever a passagem de uma geração a outra e de um artista a outro como uma superação rumo à verdade, uma tensão da arte em direção a seu limite ou, ainda, uma redução da ilusão, uma re-apropriação da origem". COMPAGNON, Antoine. Os Cinco Paradoxos da Modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 39. 39 Idem.

26 de Apeles e Protógenes legada a nós por Plinio, o velho, em sua História Natural40. Ao conta-la, Apollinaire41 destaca a importância da execução, no caso das pinceladas sutis que os artistas fazem na tela, sem nada representar, mas que, por serem tão perfeitas acabam provocando por “longtemps l'admiration des connaisseurs qui le regardaient avec autant de plaisir que si, au lieu d'y représenter des traits presque invisibles, on y avait figuré des dieux et des déesses” 42. Mas se ele se serve do exemplo de Plinio para ilustrar seu argumento é para destacar ainda mais a importância da execução, daí a insignificância do assunto. Mas, se queremos nos aproximar das fontes mais imediatas de Apollinaire, devemos procurá-las em autores mais próximos de sua época, sobretudo os pintores, e os pintores que escreveram sobre o métier de pintar. Dois vestígios são deixados pelo autor neste mesmo texto. O primeiro deles está na ideia, já destacada, de que a finalidade da pintura é a de produzir “le plaisir des yeux”. O segundo, nós o encontramos nas formulações e reformulações que ele apresenta, na segunda secção de Méditations esthétiques, sobre a ideia de “peinture-pure”: “On s’achemine ainsi vers un art entièrement nouveau, qui sera à la peinture, telle qu’on l’avait envisagée jusqu’ici, ce que la musique est à la littérature. Ce sera de la peinture pure, de même que la musique est de la littérature pure”. A comparação requer uma explicação, a qual vem logo em seguida, quando Apollinaire escreve que “L’amateur de musique éprouve, en entendant un concert, une joie d’un ordre différent de la joie qu’il éprouve en écoutant les bruits naturels...” . Volta-se aqui à ideia de uma arte que se opõe à ideia de uma arte de imitação, tal como é defendida em outras passagens por Apollinaire. A razão desta comparação entre pintura e música possivelmente seja esclarecida por John Golding, que nos explica que “une des idées du XIX siècle avait été que la musique était l'art noble par excellence en raison de son caractère non-imitative, et les rapprochements avec la musique se firent de plus en plus nombreux à travers toute la période cubiste”43. Certamente, Golding conhece discussões de época e textos de artistas nos quais se evidencia a ideia da arte

40 PLINE, l'Ancien. Histoire Naturelle. Tome II, Livre XXXV, 19.Trad. Émile Littré. 41 Na versão de Apollinaire: "On connait l'anecdote d'Apelle et de Protogène qui est dans Pline. [...]. Apelle aborde, un jour, dans l'Île de Rhodes pour voir les ouvrages de Protogène, qui y demeurait. Celui- ci était absent de son atelier quand Apelle s'y rendit. Une vieille était là qui gardait un grand tableau tout prêt à être peint. Apelle au lieu de laisser son nom, trace sur le tableau un trait si délié qu'on ne pouvait rien voir de mieux venu. De retour, Protogène apercevant le linéament, reconnut la main d'Apelle, et traça sur le trait un trait d'une autre couleur et plus subtil encore, et, de cette façon, il semblait qu'il y eût trois traits. Apelle revint encore le lendemain sans rencontrer celui qu'il cherchait et la subtilité du trait qu'il traça ce jour-là désespéra Protogène", in: Méditations esthétiques. Les Peintres cubistes, p. 50. 42 Idem. 43 GOLDING, John. Op. cit. p. 41

27 não se pautar na imitação e a música como sendo exemplo disso, como se lê no texto de Robert Delaunay, pintor próximo de Apollinaire:

...c'était la naissance d'un art qui na plus rien à faire avec l'interprétation ni la description des formes de la nature. Au lieu, comme la musique, d'être un art auditif, c'est un art visuel dont les formes, les rythmes, les développements partent de la peinture même, comme la musique n'a pas de sonorité de la nature mais des rapports musicaux. La peinture devient la peinture. À l’époque, on l’apellé de la peinture-pure, vers 1912.44

A data indicada por Delaunay coincide perfeitamente com a do ano da publicação do texto de Apollinaire na Soirées de Paris, e o que poderíamos deduzir disso é que o próprio Delaunay tenha se apoiado no escrito do autor de Du sujet dans la peinture moderne. Mas a ideia de uma pintura pura não vem de Apollinaire, pois ela pode ser localizada em textos de outros pintores que o antecedem. E como é o interesse do autor destacar a execução na arte da pintura, nada mais adequado do que tentar encontrar suas fontes conceituais nos textos de pintores que escreveram sobre esta arte. Sobretudo naqueles publicados por artistas que ele defende em suas crônicas artísticas, por vezes destacando a ideia de pureza, como a exemplo de Maurice Denis.

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Maurice Denis redigiu ao longo de sua trajetória artística uma centena de textos que foram reunidos e publicados posteriormente em livro. Nestes textos, que inicialmente foram impressos em jornais, revistas e catálogos de exposições, Denis expõe sua visão sobre o métier, a exemplo, o que ele publica como prefácio do catálogo da “IXe Expositions de Peintres Impressionnistes et Symbolistes”45:

Ils [os chamados pintores impressionistas] ont eu grand mérite à mépriser ce sot préjugé, enseigné partout, et si pernicieux aux artistes d'hier: qu’il suffit au peintre de copier ce qu’il voit, bêtement, comme il le voit; qu'un tableau est une fenêtre ouverte sur la nature, et qu'enfin, l'art, c'est l'exactitude du rendu.

44 DELAUNAY, Robert. Du Cubisme à l'Art Abstrait, op. cit. p. 97. Segundo Francastel, é Apollinaire quem transmite a ideia de “peinture-pure” a Delaunay. 45 Galerie Le Barc de Boutteville, 1895.

28 Pour eux, au contraire, un tableau avant d’être une représentation de quoi que ce soit, c’est une surface plane recouverte de couleurs en un certain ordre assemblées, et pour le plaisir des yeux.46

Neste texto de 1895, o artista ironiza o que parecia ser entendido como um lugar comum no pensamento sobre a pintura: o de que o quadro é uma janela aberta para a natureza. Em seguida, o Denis expõe, se não as bases, ao menos o básico de uma reflexão sobre a pintura que fará fortuna nos escritos publicados por outros artistas e críticos que se esforçam para construir uma imagem do pensamento sobre a pintura destes anos finais do século XIX e dos iniciais do século XX. Não parece necessário destacar que nestas linhas escritas por Maurice Denis é possível reconhecer uma parte das ideias que encontramos nos escritos de Apollinaire. A última parte da citação, que termina exatamente com as mesmas palavras que emprega Apollinaire em seu texto, é uma formulação das mais fecundas para se pensar a pintura pela óptica dos próprios pintores, e por isso mesmo ela é repetida em outros textos do mesmo Denis, como em seu artigo sobre a arte de Paul Gauguin47, de 1903, ou naquele que ele publica sobre a pintura de Paul Sérusier48, em 1908. Inclusive, Denis atribui a este último a sugestão a partir da qual elabora sua formulação49, a qual o acompanhará ao longo de quase toda a sua trajetória de artista, se considerarmos que ainda em 1934 — o artista morre em 1943 —, em um texto sobre a pintura simbolista, ele retorna a ela novamente, quando escreve:

Et c'est au retour de cette saison historique que Sérusier apporte aux "petits ateliers" de l'Académie Julian, du faubourg Saint-Denis, [...], une planchette de bois recouverte de COULEURS PURES EN UN CERTAIN ORDRE ASSEMBLÉES, qu'il a peinte sous

46 DENIS, Maurice. Du Symbolisme au Classicisme. Théories. Paris: Hermann, 1964, p. 48. 47 Idem p. 52. 48 Idem, p. 54-57. 49 No artigo, “L’Influence de Paul Gauguin”, Denis explica: "C'est à la rentrée de 1888 que le nom de Gauguin nous fut révélé par Sérusier, retour Pont-Aven qui nos exhiba, [...], un couvercle de boîte à cigares sur quoi on distinguait un paysage informe à force d'être synthétiquement formulé, en violet, vermillon, vert véronese et autres COULEURS PURES, TELLES QU'ELLES SORTENT DU TUBE, presque sans mélange de blanc. "Comment voyez-vous cet arbre, avait dit Gauguin devant un coin du Bois d'Amour: il est bien vert? Mettez donc du vert, le plus beau vert de votre palette; - et cette ombre, plutôt bleue? Ne craignez pas de la peindre aussi bleue que possible". Ainsi nous fut présenté, pour la première fois, sous une forme paradoxale, inoubliable, le fertile concept de la "SURFACE PLANE RECOUVERTE DE COULEURS EN UN CERTAIN ORDRE ASSEMBLÉES" [destaque meu].

29 la direction de Gauguin, et qui fut pour nous le témoin, ou le talisman, de la nouvelle doctrine.50

Esta formulação que encontramos repetidamente nos textos de Maurice Denis é precedida em quase uma década do texto de 1895 pela publicação de outro texto em que uma ideia de pureza, de pintura-pura, pode ser já localizada. Trata-se do texto de um crítico importante para a formação de Apollinaire e que foi um atento observador da pintura produzida pelos chamados impressionistas e neoimpressionistas: Félix Fénéon, homem ligado ao simbolismo literário e pictórico que é defendido nas páginas de La Revue Blanche51 da qual foi redator chefe. Sob o título “Les Impressionnistes en 1886”, Fénéon discorre sobre a “VIIIe Exposition des Impressionnistes” destacando a pintura de Edgar Degas, Federico Zandomeneghi, Jean-Louis Forain, Paul Gauguin, Armand Guillaumin, Berthe Morisot e outros. Mas não é ao comentar a pintura exposta por estes artistas que Fénéon destaca a ideia de pureza — malgrado nela também a reconheça — mas sim ao comentar a pintura de um jovem pintor de vinte e poucos anos, cujas obras ladeiam as destes, mais maduros, expostas na mesma mostra. É esta a ocasião em que Georges Seurat submete ao juízo dos pintores mais experientes e da crítica, como a de Fénéon, seu Un Dimanche à l’Île de La Grande Jatte, obra celebrada, entre outros, por seu companheiro de paleta Paul Signac52, como uma espécie de manifesto da pintura neoimpressionista que verá seu dia surgir a partir desta mesma exposição. Comentando La Grande Jatte, Fénéon escreve:

50 Idem, p. 61 51 É nesta mesma publicação que Apollinaire vê ser impresso um de seus primeiros textos sobre as artes, Des Faux, e é ao redator chefe da revista que ele dedica um dos principais poemas de seu livro Alcools, intitulado L’Ermite, e publicado pela primeira vez no número de dezembro de 1902 da mesma revista, Cf: CAMPA, Laurence. Guillaume Apollinaire. Biographie. Paris: Gallimard, 2013, p. 134 52 A obra é destacada logo nas primeiras linhas em que Signac discorre sobre o “Apport des neoimpressionnistes”, neste que é o primeiro ensaio analítico sobre a pintura de seu grupo. De acordo com ele: “C’est en 1886, à la dernière des expositions du groupe impressionniste que, pour la première fois, apparaissent des œuvres peintes uniquement avec des teintes pures, séparées, équilibrées, et se mélangeant optiquement, selon une méthode raisonnée. Georges Seurat, qui fut l’instaurateur de ce progrès, montrait là le premier tableau divise, toile décisive qui témoignait d’ailleurs des plus rares qualités de peintre, Un dimanche à la Grande-Jatte, et groupé autour de lui, Camille Pissarro, son fils Lucien Pissarro et Paul Signac exposaient aussi des toiles peintes selon une technique à peu près semblable”. In: SIGNAC, P. D’Eugène Delacroix au Néo-impressionnisme. Paris: Hermann, 1964, p. 89. Para esclarecimentos sobre esta exposição, consultar a nota ao texto de Signac, localizada na página 90 da mesma publicação.

30 Ces couleurs, isolées sur la toile, se recomposent sur la retine: on a donc non un mélange de couleurs-matières (pigments), mais un mélange de couleurs lumières. Faut- il rappeler que, pour de mêmes couleurs, le mélange des pigments et le mélange des lumières ne fournissent pas nécessairement les mêmes résultats? On sait aussi que la luminosité du mélange optique est toujours très supérieure à celle du mélange matériel, ainsi que l’exposent les nombreuses équations de luminiosités par M. Rood.53

Georges Seurat Un Dimanche à l'Île de la Grande Jatte 1884-1886

Ressaltam na passagem de Fénéon os contornos de uma teoria sobre a arte de pintar baseada na ideia da aplicação das cores puras sobre a tela, que merece um ou dois parágrafos para que se possa evidenciar que, ao menos em parte, a ideia de uma pintura pura, não ainda como aquela que será formulada pouco mais de duas décadas depois por Apollinaire, pode encontrar aí o seu esboço. Ao falar destas cores “isolées sur la toile” que “se recomposent sur la retine”, Fénéon insere seu discurso no centro da discussão feita pelos pintores que nestes anos irão se reunir em torno de Georges Seurat, como Camille e seu filho Lucien Pissarro, Henri-Edmond Cross, Charles Angrand, Albert Dubois-Pillet e o próprio Paul Signac — e sobretudo ele54 —, todos eles interessados nas pesquisas que então se fazia sobre a aplicação de cores nas artes e na indústria.

53 FÉNÉON, F. “Les Impressionnistes en 1886”, in: Au-delà de l’Impressionnisme. Paris: Hermann, 1966, p. 65. 54 É de Françoise Cachin afirmação segundo a qual teria sido Signac o responsável por instruir Fénéon a propósito do interesse dos pintores pelas investigações sobre a aplicação de cores nas artes e na indústria conduzida por alguns teóricos da época: “Plus prosélyte et plus expansif, Signac lui [FÉNÉON]

31 Além de Ogden Nicholas Rood, referido no texto de Fénéon, cuja Théorie scientifique des couleurs, ses applications à l’art et à l’industrie, publicada em 1881, interessa aos pintores, são importantes também para a reflexão iniciada por estes artistas as pesquisas que Charles Blanc expõe em sua Grammaire des arts du dessin, de 1870, as discussões propostas por John Ruskin em The elements of drawing, de 1879 e ainda o tratado escrito por Michel-Eugène Chevreul, De la loi du contraste simultané de couleurs et de l'assortiment des objets colorés, publicado em 1839, livros citados ou comentados por Paul Signac em seu livro D'Eugène Delacroix au Néo- Impressionnisme, publicado em 1899, com o total empenho e apoio do mesmo Félix Fénéon, ambos conhecidos de Apollinaire. Neste livro, no qual Signac revê a pintura que, no século XIX, precede o surgimento do neoimpressionismo, o artista tenta sistematizar ideias e práticas que na pintura francesa de seu tempo representaram passos importantes no sentido de uma certa "purificação" dos meios de execução com base nas pesquisas de teóricos que, a exemplo de Michel-Eugène Chevreul, começaram a dedicar estudos sobre as possibilidades de aplicação das cores nos mais diferentes materiais e suportes. O tratado de Chevreul, cujo título completo enche quase um parágrafo55, dá uma ideia da pretensão destes cientistas da cor que buscavam resolver problemas relativos à sua aplicação. Estas pesquisas despertaram o interesse dos pintores, sobretudo o grupo de pintores do entorno de Fénéon, como Seurat e Signac. Tratando de outro teórico importante, o mesmo que é citado por Fénéon, Signac escreve: “On verra que Rood, lui aussi, recommande le dégradé, le mélange optique et la touche divisée et s’étonne que tant de gens en ignorent les vertus”, e citando uma passagem da Théorie scientifique des couleurs do mesmo Rood, Signac destaca:

Mais il existe un autre genre de dégradation qui a un charme tout particulier, et qui est très précieux dans les arts et dans la nature. Nous voulons parler de l’effet qui se produit lorsqu’on juxtapose des couleurs différentes en lignes continues ou pointillées et qu’ensuite on les regarde d’assez loin pour que leur fusion soit opérée pour l’œil du commente Chevreul, Charles Blanc et les autres théoriciens de la couleur et de la ligne que tous ces jeunes gens étudiaient avec le plus grand sérieux”. Cf. Cachin, na introdução de Au-delà de l’Impressionnisme. Paris: Hermann, 1966, p. 17. 55 CHEVREUL, Michel-Eugène. De la loi du contraste simultané et de l'assortiment des objets colorés considéré d'après cette loi dans ses rapports avec la peinture, les tapisseries des Gobelins, les tapisseries de Beuvais pour meubles, les tapis, la mosaïques, les vitraux colorés, l'impression des étoffes, l'imprimeria, l'enluminure, la décoration des édifices, l'habillement et l'horticulture. Paris: Imprimerie Nationale - Libraire Gauthier-Villars et Fils, 1839.

32 spectateur. Dans ce cas, les teintes se mélangent sur la rétine et produisent des couleurs nouvelles56.

Formulações semelhantes a esta Signac encontrará também em outros autores, como em Ruskin, que nos seus The elements of drawing recomenda:

“Placer les teintes modifiantes par petites touches” [...] “Reproduisez des teintes composées par l’entrelacement des touches des couleurs pures dont ces teintes sont constituées, et usez de ce procédé quand vous désirez obtenir des effets éclatants et d’une grande douceur”57.

A ideia do “entrelacement des touches de couleurs pures”, apenas uma entre outras sugestões de pintura pura, é enfatizada em outra passagem citada por Signac: “Rompre une couleur en menus points par juxtaposition ou superposition”. Mais a segunda do que a primeira, é a ideia de justaposição a de maior importância para os pintores deste grupo e é ela mesma que Ruskin, segundo Signac, destaca ao expor sobre o procedimento que deve ser empregado pelo pintor:

“Le procédé est, par le fait, l’application du principe des couleurs séparées jusqu’au raffinement le plus extrême; c’est employer les atomes de couleurs en juxtaposition, plutôt que les étendre en larges espaces.”.

Na prática, a ideia é a da não-mistura das cores, do emprego das cores puras, pintura pura, a que é exposta no texto de Ruskin, e é ele mesmo quem recomenda ainda que “si vous désirez que la couleur dont vous couvrez ressorte brillamment, observez qu’il vaut mieux en poser un point bien affirmé, en laissant un petit blanc à côté ou autour de lui dans l’interstice, que de couvrir entièrement ce dernier d’une teinte plus pâle de la même couleur”58. As recomendações que Signac encontra em Ruskin assim como as sugestões de Rood, Blanc e as ideias que Chevreul expõe em seu tratado são importantes para a reflexão que estes pintores designados neoimpressionistas desenvolverão com vistas à sua aplicação na execução de sua arte. Reunidas, estas ideias sobre a pintura reaparecem

56 SIGNAC, P. D’Eugène Delacroix au Néo-impressionnisme. op. cit. 57 Ruskin citado por Signac. op. cit. p. 119. 58 Idem p. 120

33 nas formulações que Signac coloca em circulação no livro que escreve sobre a pintura neoimpressionista — o qual é resenhado por Apollinaire na ocasião da reedição da obra em 1911 —, no qual o pintor tenta sistematizar uma reflexão sobre a aplicação das cores puras, distribuídas na tela por pinceladas justapostas, com a finalidade de produzir o efeito de luzes por meio do contraste que se dará entre as cores aplicadas sobre a tela. Por isso não se estranha quando, ao abrirmos o capítulo que Signac dedica à contribuição da pintura neoimpressionista, lemos uma formulação que reverbera as mesmas ideias que encontramos nos estudos destes teóricos da cor, como é visível na passagem em que ele expõe os princípios que movem a pintura dos artistas de seu grupo:

Les néo-impressionnistes, comme les impressionnistes, n'ont sur leur palette que de couleurs pures. Mais ils répudient absolument tout mélange sur la palette, sauf, bien entendu, le mélange de couleurs contigües sur le cercle chromatique. Celles-ci, dégradées entre elles et éclaircies avec du blanc, tendront à restituer la variété des teintes du spectre solaire et tous leurs tons. Un orangé se mélange avec un jaune et un rouge, un violet se dégradant vers le rouge et vers le bleu, un vert passant du bleu au jaune, sont, avec le blanc, les seuls éléments dont ils disposent. Mais, par le mélange optique de ces quelques couleurs pures, en variant leur proportion, ils obtiennent une quantité infinie de teintes, depuis les plus intenses jusqu'aux plus grises59.

Se decompormos o parágrafo é possível identificar as matrizes das proposições aí expostas por Signac. Mas a tarefa é dispensável, pois é ele mesmo quem se encarrega de indicar as fontes que lhe servem de base para elaborar um pensamento teórico que explique a técnica neoimpressionista, baseada na ideia de aplicação das cores puras. De Rood, Signac extrai a ideia de dégradé das cores, da mistura óptica, da pincelada dividida: “On verra que Rood, lui aussi, recommande le dégradé, le mélange optique et la touche divisée et s'étonne que tant de gens en ignorent les vertus.”60. De Blanc, ele cita textualmente a passagem da Grammaire, na qual escreve o teórico que "La loi des complémentaires une fois connue, avec quelle sûreté va procéder le peintre, soit qu'il veuille pousser à l'éclat des couleurs, soit qu'il veuille tempérer son harmonie”61. E quanto a Chevreul, Signac fala de sua importância não apenas para os pintores de seu

59 Op. cit. p. 91. 60 Op. cit. P. 123 61 BLANC, Charles. Grammaire des arts du dessin pp. 607 et 613.

34 grupo e geração, mas também de uma possível aproximação entre este importante teórico e o pintor Eugène Delacroix, o grande colorista francês do século XIX que ele e seu grupo tinham eleito como modelo:

Lors d'une visite que nous fîmes à CHEVREUL, aux Gobelins, en 1884, et qui fut notre initiation à la science de la couleur, l'illustre savant nous raconta que, vers 1850, Delacroix, qu'il ne connaissait pas, lui avait, par lettre, manifesté le désir de causer avec lui de la théorie scientifique des couleurs et de l'interroger sur quelques points qui tourmentaient encore.62

Ao relacionar Chevreul e Delacroix, Signac destaca o conhecimento que este pintor pode ter tido das teorias do químico: “Delacroix connaissait donc une grande partie des avantages qu'assure au coloriste l'emploi du mélange optique et du contraste” e os benefícios que podem ter lhe trazido as ideias de Chevreul, notadamente as da mélange optique e do contraste. Aqui é preciso dizer que a referência de Signac não é apenas teórica mas, como pintor que é, sua referência é, principalmente, a visual, pois, é nas próprias obras de Delacroix que o artista reconhece este modo de operar com a cor que particulariza sua pintura, sobretudo quando ela é comparada com a pintura de seu contemporâneo e rival, Jean Dominique Ingres63. Isto, Signac destaca ao considerar a tela Scène du Massacre de Scio, de 1824, pintura elaborada ainda na juventude de Delacroix e que segundo ele, nela o pintor bane “des ocres et des terres inutiles” para os substituir por cores “intenses et pures”. Signac acentua sua consideração quando compara esta tela a Dante et Virgile sublinhado-lhes o contraste. Mas se Signac distingue, já no Massacre, o uso das cores que singulariza a pintura de Delacroix, aquelas cores “pensées par eles-mêmes”, como considerava Baudelaire64, não será neste

62 SIGNAC, Paul. Op. cit. p. 76. 63 Uma simples comparação entre as obras produzidas em um mesmo período por Eugène Delacroix e Jean-Dominique Ingres é a melhor explicação sobre o que diferencia a pintura de um e outro artista, o primeiro representando uma concepção de pintura apoiada sobretudo no uso da cor, o segundo, no desenho. O confronto entre as obras dos artistas ilustra, no século XIX, a antiga "querelle du dessin et de la couleur" que se configurou no século XVII francês e a qual colocava de um lado os "rubénistes", partidários e defensores da cor como parte mais importante da pintura, e de outro, os "poussinistes", que defendiam que era o desenho a parte principal desta arte. Uma exposição cuidadosa desta "querelle" é feita por Jacqueline Lichtenstein em seu livro, A Cor Eloquente, capítulo 3. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Cor Eloquente. São Paulo: Siciliano, 1994. 64 Cf. Baudelaire: "Il semble que cette couleur, qu'on me pardonne ces subterfuges de langage pour exprimer des idées fort délicates, pense par elle-même, indépendamment des objets qu'elle habille""Exposition Universelle 1855. III - Eugène Delacroix". In: BAUDELAIRE, C. Œuvres complètes II, p. 595. É o mesmo Baudelaire quem escreve em L'Œuvre et la Vie d’Eugène Delacroix sobre o interesse “teórico” que o pintor tinha pela cor: “C’est à cette préoccupation incessante qu’il faut attribuer

35 quadro mas sim a partir dele que Delacroix marcará o uso das cores puras distribuídas em sua paleta:

Il éprouve encore [após realizar o Massacre] le besoin de nouvelles ressources, et, pour sa décoration du Salon de la Paix, il enrichit sa palette [...] de la sonorité d’un cadmium, de l’acuité d’un jaune de zinc et de l’énergie d’un vermillon, les plus intenses couleurs dont dispose un peintre. En rehaussant de ces couleurs puissantes : le jaune, l’orangé, le rouge, le pourpre, le bleu, le vert et le jaune-vert, la monotonie des nombreuses mais ternes couleurs en usage avant son intervention, il aura créé la palette romantique, à la fois sourde et tumultueuse65.

Eugène Delacroix Scènes du Massacre de Scio ou Scène des massacres de Scio; familles grecques attendant la mort ou l'esclavage 1824

ses recherches perpétuelles relatives à la couleur, à la qualité des couleurs, sa curiosité des choses de la chimie et ses conversations avec les fabricants de couleurs. Par là il se rapproche de Léonard de Vinci, qui, lui aussi, fut envahi par les mêmes obsessions". Idem, p. 747. 65 Cf. SIGNAC, Paul. op. cit., p. 62.

36

Eugène Delacroix Dante et Virgile aux enfers, dit aussi La Barque de Dante 1822

Esta paleta repleta de “couleurs pures” será, “à l’exclusion de toute autre”, a mesma, segundo Signac, que os pintores impressionistas e neoimpressionistas utilizarão na execução de sua obras66. Mas a obra de Delacroix não lhe sugere apenas o emprego das cores puras, ela também indica a maneira como se deve aplicá-las sobre a tela:

Il fut frappé de leur coloration et de leur luminosité [...]. Il étudia leur facture et vit qu’au lieu d’être peints à teintes plates, ils étaient composés d’une quantité de petites touchés juxtaposées, se reconstituant, à une certaine distance [...]. Ce fut pour Delacroix une révélation: en quelques jours, il repeignit complètement sa toile, martelant la couleur, qu’il avait étalée à plat jusqu’alors, de touches non fondues67.

Conforme Paul Signac, é a observação da pintura de John Constable que sugere a Delacroix a maneira de aplicar as cores que responde às interrogações que são colocadas a ele por sua pintura no período em que executa o seu Massacre de Scio68. E talvez seja esta a razão pela qual, ainda em 1824, Delacroix anote em seu diário: “Ai vu

66 Cf. SIGNAC, Paul. Op. cit., p. 62. 67 Cf. SIGNAC, Paul. Op. cit. p. 63. Consta no Journal d’Eugène Delacroix, edição de 1893, a seguinte nota explicativa: “Le tableau était déjà achevé et déposé au Louvre, où se faisaient alors les Expositions annuelles de peinture, quand Delacroix vit des paysages de Constable qui le frappèrent ; en quelques jours il reprit son tableau et le transforma complètement". A mesma nota informa que o quadro é comprado pelo Estado Francês pela somma de 6.000 francos, uma fortuna, como se pode imaginar, para a época. Journal d'Eugène Delacroix I, p. 37. 68 É Delacroix mesmo quem reconhece a importância das obras de Constable para sua reflexão pictural em diversas passagens de seu Journal, algumas delas citadas por Paul Signac.

37 les Constable. Ce Constable me fait grand bien”69, e que anos mais tarde, quando retoma a mesma tela para retocá-la, pela terceira vez em 184770 — o quadro será exposto novamente na Exposition Universelle de 1855 e é nesta ocasião que Baudelaire observa que na obra de Delacroix as cores são “pensées par elles-mêmes” —, volte a escrever:

Constable dit que la supériorité des verts de ses prairies tient à ce qu'il était composé d'une multitude de verts différents. Ce qui donne le défaut d'intensité et de vie à la verdure du commun des paysagistes, c'est qu'ils la font ordinairement d'une teinte uniforme. Ce qu'il dit ici du vert des prairies peut s'appliquer à tous les tons [Journal I, p. 234.]71.

Certamente as considerações em torno da obra do pintor inglês não implicam necessariamente na elaboração de um método, malgrado ele esteja sugerido nas citadas passagens que Signac destaca em seu ensaio ao escrever sobre a contribuição de Delacroix ao neoimpressionismo72. É possível que Delacroix considere sim a lição de Constable desde o Massacre, mas esta se manifestará apenas a partir da versão reelaborada da tela, a de 1847. Seja como for, Françoise Cachin explica que mesmo que as referências a Delacroix sejam convincentes, “la filiation qu’il [Signac] établit entre Delacroix et les impressionnistes, puis entre ces derniers et Seurat, n’est pas tellement évidente” 73. Ainda segundo ela, é possível que Signac se ampare na interpretação que faz Baudelaire do uso da cor pura na pintura de Delacroix, considerando que o poeta é nomeado e citado em seu texto. Aliás, pelos anos de 1880, L’Art Romantique e

69 Cf. SIGNAC, Paul. Op. cit. p. 64. 70 Na edição de 1893 do Journal d’Eugène Delacroix, encontra-se a seguinte nota explicativa: “On dit qu’en 1847 Delacroix retoucha à nouveau son tableau, prétendant que les tons avaient poussé au jaune". Op. cit. 71 Cf. SIGNAC, Paul. Op. cit. p. 64. 72 Se nos determos nas anotações do próprio pintor, o mais provável é que, mesmo que ele reconheça a importância da proposição plástica de Constable, que consistia em aplicar as cores puras por meio de "touches juxtaposées", ele não a aplica ainda em 1824 na execução do Massacre, obra que é exibida no Salão deste ano. É isso o que mostram suas anotações: em 11 de abril do mesmo ano ele escreve em seu diário que via nesta tela, no Massacre, “un défaut”, mas este defeito não estava relacionado ao uso de “couleurs pures” ou da “touché juxtaposée”, tampouco da “mélange optique” ou do “contraste” de cores. Ao contrário, ele escreve que, especialmente “dans la femme attachée au cheval”, localizada no canto direito da tela, “cela manque de vigueur et d’empâtement”. A sugestão para resolver este “empâtement”, que em pintura é termo que se poderia opor a ideia da “touché juxtaposée” — uma “touché épaissée” —, ele a encontra em Vélasquez: “Vu le Velasquez et obtenu de le copier; j’en suis tout possédé. Voilà ce que j’ai cherché si longtemps, cet empâté ferme et pourtant fondu”, ou seja, o contrário do que afirma Paul Signac. 73 Cf. CACHIN, Françoise. "Introduction". In: SIGNAC, P. D'Eugène Delacroix au Néo- Impressionnisme, op. cit. p. 13.

38 Curiosités esthétiques, duas obras que o autor de Vie et Œuvre d’Eugène Delacroix consagra às artes, são reeditadas. Inclusive, a passagem que Signac cita do Journal de Delacroix é a mesma citada por Baudelaire. Neste sentido, no capítulo que Signac dedica a Delacroix, mais convincente que seus comentários sobre as Scènes du Massacre de Scio, são os que ele faz sobre a tela Femmes d’Alger, de 1834, a qual considera um exemplo da aplicação destes diversos princípios que orientam a aplicação das cores puras na pintura. Nesta mesma passagem, por exemplo, ele refere as tintas acinzentadas que são obtidas pela "mélange optique d'éléments purs". A importância que Signac atribui aos escritos destes teóricos da cor e na aplicação que Delacroix faz da cor em sua pintura, ele vê também na pintura dos chamados impressionistas com os quais expõe em 1886. Segundo ele, estes “champions de la couleur” não admitirão na composição de suas paletas mais do que o emprego de cores puras, que serão aplicadas sobre a tela segundo o mesmo princípio da “mélange optique”. No entanto, uma diferença importante que considera Signac sobre o emprego deste princípio deve ser destacada. Segundo escreve, os pintores impressionistas “répudient toute méthode précise et scientifique”, e por esta razão se afastam do procedimento empregado por Delacroix, atento às regras de aplicação das cores puras pelo princípio da mistura óptica — especialmente nas obras produzidas na maturidade do pintor, a partir de Femmes d’Alger. Nas palavras de Signac:

“tandis que Delacroix avait en main une palette compliquée, composée de couleurs pures et de couleurs terreuses, les impressionnistes se serviront d'une palette simplifiée composée de sept ou huit couleurs, les plus éclatantes, les plus proches de celles du spectre solaire”74.

Ainda segundo o pintor-autor, os artistas ligados ao grupo, “sauf Renoir, qui procède plutôt de Delacroix”, estarão mais próximos do trabalho de um Corot ou de um Courbet, pintores que lhes servirão de modelo.

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74 Cf. SIGNAC, Paul. Op. cit., p. 81.

39 Apollinaire conhece esse movimento de ideias sobre a pintura que circula na França no final do século XIX e início do XX e isso fica evidente em seus textos, pois é possível reconhcer neles ideias que dialogam com as que Denis, Fénéon e Signac anos antes divulgam em seus textos e artigos. Além disso, a correspondência e o diário de Apollinaire mostram que poucos anos após ter se instalado em Paris, frequenta círculos artísticos da cidade onde conhece e estabelece relação com muitos pintores e críticos de arte da época. Mas não é apenas através dos textos e da relação com artistas e críticos que Apollinaire obtém estas informações, as quais lhe servirão de base para elaboração de sua própria leitura da pintura da época, pois é sobretudo vendo as exposições de pintura organizadas nos salões e galerias parisienses que ele pode aprimorar seu olhar e escrever sobre a pintura destes artistas. No que concerne a Signac, pintor sobre quem escreve desde 1908 e com quem se corresponde desde 1909, o poeta e crítico sempre o refere destacando a sua técnica. No texto de 1908, por exemplo, o primeiro que ele publica sobre o Salon des Artistes Indépendants75, do qual Paul Signac, além de membro fundador é presidente de 1908 até o ano de sua morte, ele o refere como “le maître d’un art trôp spécial”. Como se sabe, neste ano de 1908 a técnica de pintar empregando pincelada que justapõe as cores na tela já havia se espalhado entre pintores como Matisse e Braque, por exemplo, que a haviam experimentado entre os anos de 1904-1906.

75 A predileção de Apollinaire pelo Salon des Artistes Indépendants, e ao lado deste, pelo Salon d'Automne, é por si só indicativo de sua posição com relação a pintura produzida no período. Como se sabe, neste início de século XX tínhamos em atividade em Paris, principalmente, estes quatro grandes Salões de arte: o Salon de la Société des Artistes Français o Salon de la Société Nationale de Beaux-Arts, o Salon de la Société des Artistes Indépendants e o Salon d’Automne. Os dois primeiros eram os Salões conhecidos como "oficiais”, onde se expunha principalmente esta "peinture démocratique" de que fala Apollinaire no texto dedicado a estes salões em 1910. Já os dois últimos, eram salões constituídos por agremiações ou associações de artistas e gente ligada ao mundo das artes, como críticos e colecionadores, que os haviam criado com a finalidade de se oporem aos dois Salões "oficiais". O Salon des Indépendants é criado em 1884 e tem como membros fundadores artistas como Odilon Redon, Geogres Seurat, Paul Signac e Henri-Edmond Cross, entre outros. No estatuto de sua fundação é exposto o princípio, que é reproduzido nos catálogos das exposições que organizam, que justifica sua criação: "La Société des Artistes Indépendants basée sur la supression de jurys d'admission, a pour but de permettre aux artistes de présenter librement leurs œuvres au jugement du public". É aí, neste salão, que expõem os artistas que Apollinaire defende em suas crônicas artísticas, como Matisse, Derain, Vlaminck, Friesz, Gleizes, Metzinger, Delaunay, Modigliani etc. A preferência manifesta do autor também pelo Salon d'Automne não se afasta, em suas razões, daquele tem pelos Indépendants, pois o Automne, criado em 1903, é animado pela mesma motivação que leva os artistas a criarem o primeiro em 1884. Uma introdução ao assunto pode ser encontrada no artigo de Jean-Paul Bouillon, "Sociétés d'artistes et institutions officielles dans la seconde moitié du XIXe siècle, in Romantisme, 1986, nº 54, pp. 89-113. Pierre Angrand reconta a história do Salon des Artistes Indépendants em Naissance des Artistes Indépendants 1884, Paris: Nouvelles Éditions Debresse, 1965. Além deste, sobre os Indépendants: MONNERET, J. [org.], Catalogue Raisonné du Salon des Indépendants 1884-2000. Paris: E. Koeler, 2000.

40 A bem dizer, esta maneira de pintar com cores puras por meio da pincelada justaposta, ou dividida — passados mais de vinte anos de sua primeira aparição com a Grande Jatte de Seurat em 1886 —, já havia sido experimentada e também abandonada por muitos artistas76. Em 1905 a obra de Seurat é já objeto de uma mostra retrospectiva no Salon d'Automne, mas é neste mesmo salão e ano que se revela outro modo de se entender este emprego das cores puras, que é exibido nas telas expostas por Matisse, Derain, Vlaminck, e outros artistas que se valem do emprego da cor pura, mas de modo distinto da aplicação que era feita pelos pintores do grupo de Seurat. Por isso, se a proposição neoimpressionista vai sendo abandonada, a ideia de uma cor pura assim como a de pintura pura, não. Tanto é assim que, anos depois, ao comentar obras enviadas por outros pintores que expunham no Salon des Indépendants de 1908, Apollinaire emprega repetidamente o qualificativo "pure" e suas tantas outras variações. Comentando uma obra de André Derain, Apollinaire se refere ao quadro como "une des inspirations les plus pures" e, ao voltar-se para as telas La Toilette, Le Portrait e Le Paysage de Cyprès do mesmo artista, afirma que são "les exemplaires de cette noble discipline qui purifie la réalité". Tratando da pintura enviada pela pintora Marie Laurencin, afirma que a "pureté est son domaine" e que ela "évolue librement" neste domínio da pureza da pintura. Ainda neste ano de 1908, a ideia de pureza reaparece no texto que ele publica como prefácio da primeira exposição individual de Georges Braque, realizada na galeria de Daniel Henry Kahnweiler. Neste texto, como nos futuros, lê-se que a ideia de pureza está associada à ideia de uma pintura que se opõe ao princípio de imitação do real. Segundo ele, Braque "ne doit plus rien à ce qui l'entoure. Son esprit a provoqué le crépuscule de la réalité et voici qui s'élabore plastiquement (...) une renaissance universelle", e, mais à frente, continua: "plus pur que les autres hommes, il ne se préoccupe point de ce qui est étranger à son art". A partir da leitura do conjunto dos textos que ele publica neste ano de 1908 sobre a pintura fica claro que esta ideia de pureza, de pintura pura, já integra seu repertório de conceitos. A propósito, considerando esta mesma passagem que é escrita para o

76 Apollinaire mesmo parece se dar conta disso quando escreve, em um texto inédito na época, provavelmente redigido em 1913, que após a morte de Cross, em maio de 1910 "le divisionnisme n'a plus de représentant qualifié et aux qui en appliquant encore les théories luttent de la banalité minutieuse dans le dessin, le coloris et la composition". Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. "Je Crois que l'Avenir", in: O. C. P. T. II, p. 507. Nesta mesma direção, o crítico de arte escreve sobre os Indépendants de 1908 afirmando que "Pour trouver un beau tableau [...] il est nécessaire de déblayer longuement les productions éxasperants des néo-impressionniste [...]", in: APOLLINAIRE, Guillaume. Méditations esthétiques. Les peintres cubistes. Éd. Hermann, op. cit. p. 145.

41 catálogo da exposição de Georges Braque, Philippe Renaud afirma que "dans ces lignes comme dans beaucoup d'autres, on sent le désir de purifier l'art de tout présupposé 77 intellectuel ou religieux — de toute vérité qui ne soit pas par essence artistique" . Sendo assim, esta ideia de uma pintura pura que é anunciada na primeira secção de Méditations esthétiques, e que é retomada na segunda secção para ser pensada a partir da proposição de uma pintura afastada de preocupações como as de assunto ou tema em favor da execução, da pintura ela mesma, revém na terceira secção do livro. A terceira secção, assim como a quarta e a quinta, é composta a partir do desdobramento de um único artigo que Apollinaire publicou na revista Les Soirées de Paris, no número de março de 1912, sob o título La Peinture Nouvelle. Notes d'Art. Nos parágrafos finais da secção dois Apollinaire conclui sua exposição afirmando que: "Les jeunes artistes-peintres [...] ont pour but secret de faire de la peinture pure" que ele entende como “un art plastique entièrement nouveau. Il n’en est qu’à son commencement et n’est pas encore aussi abstrait qu’il voudrait l’être”, e completa: “la plupart des nouveaux peintres font de la mathématique sans le ou la savoir...”. As duas ideias que se encontram aí enunciadas são importantíssimas para a compreensão do conceito de pintura pura que o autor defende: a de uma abstração que, se já indicada pela pintura, ainda não chegou a seus limites; e a de que os pintores novos fazem matemática sem ela e sem a conhecer. Entre os pintores que Apollinaire divulga em seus escritos, a ideia de uma pintura abstrata encontra sua expressão na pintura de Robert Delaunay — e anos depois nos escritos deste —, a quem se atribui o papel de iniciador da abstração na pintura francesa, especialmente a partir dos Disques, série de obras pensadas e executadas entre os anos de 1912-1913. A ideia circula e, sempre tendo a França em consideração, esta ideia de abstração irá se prolongar em textos como os que Amédée Ozenfant e Charles-Édouard Jeanneret , que divulgam em sua revista L’Esprit Nouveau — título que evoca a célébre conferência de Apollinaire L'Esprit Nouveau et les Poètes, de 1917 — e especialmente em Après le cubisme, ensaio escrito por estes dois artistas no qual, além das ideias de “pureza”, encontram-se as que tratam da não importância do "sujet", a de “quatrième dimension”, a de uma pintura “não representativa” do real, todas tratadas por Apollinaire quase uma década antes.

77 RENAUD, Philippe. Lecture d'Apollinaire. Lausanne: Édition L'Age de d'Homme, 1969, p. 78.

42 De acordo com Pierre Francastel, que redige a introdução aos textos de Delaunay que foram publicados apenas nos anos 1950, os documentos deixados pelo pintor permitem pensar as origens da arte abstrata na França e, em parte, a partir da relação e do diálogo que ele manteve com Apollinaire: “Apollinaire identifie la tentative de Delaunay non plus au cubisme, mais au futurisme d'une part et à l'art abstrait selon la formule expressionniste et symboliste”78. Marcel Brion, mais enfático, afirma em seu estudo de 1956 que: “les recherches et les poursuites de Delaunay, c’est sa reencontre avec Apollinaire qui l’aidera à fixer, d’une manière plus consciente et plus explicite, ses ambitions esthétiques”, e ainda, que “Guillaume Apollinaire, en effet, excellait à formuler, théoriquement, ce que les grands peintres réalisaient et à leur expliquer ainsi à eux mêmes les sens et la portée de leurs œuvres”79. Já na opinião de Roger Lefèvre80 a ideia de “peinture pure” que Apollinaire defende desde 1908 é uma antecipação do conceito de abstração na pintura, uma vez que, segundo ele, a pintura pura será a mesma que passará a ser designada mais tarde pelos termos de “peinture abstraite” ou “peinture non-figurative”. Apollinaire não chega a definir, ao menos em Méditations esthétiques, a ideia de uma pintura abstrata, por isso parece razoável admitir a proposição de Lefèvre como adequada, uma vez que o próprio Delaunay, que é quem esboça uma definição de abstração em seus escritos, o sugere justamente na passagem em que comenta a sua pintura Les Fênetres, talvez a obra que melhor represente as pesquisas feitas pelo artista nestes anos de 1912-1913 sobre a lei dos contrastes simultâneos entre as cores, baseadas nas teorias de Michel-Eugène Chevreul, que o conduzirá à pintura pura, posteriormente "abstrata", que será por ele trabalhada a partir de 1913.

78 DELAUNAY, Robert. Du Cubisme à l’Art Abstrait. Documents inédits publiés par Pierre Francastel et suivis d'un catalogue de l'œuvre de R. Delaunay par GUY HABASQUE. Paris: S.E.V.P.E.N. Bibliotèque Générale de l"école Pratique des Hautes-Études, 1957, p. 31. 79 BRION, Marcel. Art Abstraite. Paris: Éditions Albin Michel, 1956, p. 131. 80 LEFÈVRE, Roger. “Le Vocabulaire de la critique d’art chez Apollinaire”. In: Que Vlo-Ve? Série 1 N 21-22 juillet-octobre 1979 Actes du colloque de Stavelot 1975.

43

Robert Delaunay Les Fenêtres 1912

Sabemos que a produção desta tela, Les Fenêtres, é acompanhada de perto por Apollinaire, que no intervalo de fins de 1912 e início de 1913 mora com Delaunay e sua esposa, Sonia, na rue Des Grands Augustins em Paris81, local onde trabalham. O quadro é pintado para ser exibido em uma exposição em Berlim, na galeria de — pseudônimo de Georg Lewin —, a Der Sturm, com quem Apollinaire discute os detalhes da exibição e para a qual escreve o prefácio do catálogo, um poema, igualmente intitulado Les Fenêtres. O verso inicial do poema evoca o procedimento do contraste simultâneo entre as cores que o pintor emprega na composição da tela: "Du rouge au vert tout le jaune se meurt". Em uma nota datada de 1912, Delaunay explica que o título Les Fênetres é apenas “évocateur”, “surréaliste”. O que lhe interessa nesta composição, como escreve, são os “contrastes de couleur simultanées” — lição aprendida de Chevreul — que ele entende

81 Segundo Lionel Richard: “Durant l'automne 1912, après s'être séparé de Marie Laurencin, Apollinaire habite même jusqu'au 15 décembre dans l'atelier de Delaunay, au 3 rue des Grands Augustins. Il discute beaucoup avec lui et écrit, à partir de l'un de ses tableaux, le poème Les Fenêtres, premier de ses "poèmes-conversations" qu'il publie en janvier 1913 dans la revue de [Henri-Martin] Barzun, Poème & Drame. Ensuite, ayant emménagé dans un appartement qu'il a loué au 202 Boulevard Saint-Germain, il y reçoit ses amis mercredi et les Delaunay sont évidemment parmi eux”. RICHARD, LIONEL. Direction Berlin. Herwarth Walden et la revue Der Sturm. Avec des lettres de Guillaume Apollinaire, Alexandre Archipenko, , Robert Delaunay, Albert Gleizes, Fernand Léger, Filippo Tommaso Marinetti, Ludwig Rubiner, Gino Severini. 1910-1922. Bruxelles: Didier Devillez Éditeur, 2008, p. 92.

44 como relações de “couleurs mobiles” afirmando que aí, na pintura, a cor é “fonction de la forme” e que esta forma não é descritiva, pois que “elle porte en elle-même ses lois”, ou seja, uma forma que evoca a si mesma e não um “sujet”, portanto, uma pintura pura. A explicação do pintor é possivelmente amparada nas discussões que ele tinha com Apollinaire pois, como ele mesmo escreve: “Pas de copie de la nature — surnaturalisme de G. A, si vous voulez — plutôt première peinture abstraite”. "G. A." é, como se sabe, Guillaume Apollinaire, e a ideia, como sugere o escrito do pintor, possivelmente pode ter vindo dele, como defende Marcel Brion. Apollinaire enuncia estas duas ideias no trecho final da segunda secção de Méditations: a de uma pintura abstrata — ainda que não a defina — e a ideia de que os novos pintores fazem matemática sem o saber. Ao longo da leitura de seu texto, estas ideias podem ser consideradas como correlatas, mas é possível separá-las. Se assim fazemos, temos indícios para pensar que o “abstrait” da pintura pode estar relacionado com a prática de Delaunay, e a “mathématique” com a dos cubistas82, de quem Delaunay tenta se afastar nestes anos para afirmar a sua ideia de um “métier simultanée”, baseado no conceito de contraste simultâneo entre as cores que ele aplica em sua pintura. É o próprio pintor que escreve, em 1934, numa nota intitulada “Cubisme et Peinture Pure”, que “La peinture asbtraite vivante n’est pas constituée d’éléments géométriques parce que la nouveauté n’est pas dans la distribution des figures géométriques”, mas na “mobilité des éléments constitutifs rythmiquement des éléments colorés”83 da obra pintada. É deste modo que Delaunay tenta se afastar do “cubismo” da época e, do que foi possível considerar, Apollinaire avança a ideia de seu anfitrião. No texto de Apollinaire a geometria é bem mais do que isso, aparecendo como um conceito que lhe servirá para aprofundar a ideia de uma “peinture pure”, abstrata ou não abstrata, que é composta de elementos específicos que definem sua linguagem enquanto tal, enquanto pintura, assim como as notas e acordes definem a música, assim como a

82 Esta proposição encontra apoio na crítica sobre a obra de Apollinaire. L. C. Breunig, em um artigo publicado em 1962, não sugere outra coisa quando escreve que: “La Tour Eiffel [tela de Delaunay] et d’autres objets disparaissent devant des formes de plus en plus abstraites. Il faut souligner à ce propos que le cubisme n’a jamais été un art abstrait. Les toiles les plus “difficiles”, les plus hermétiques de Picasso et de Braque à cette époque représentent toujours un objet emprunté au monde extérieur, au monde réel, tandis que Delaunay, lui, cherchait, en se passant d’images, à créer une peinture dont la vitalité provînt entièrement du contraste de couleurs complémentaires”. Cf. BREUNIG, L.-C. “Apollinaire et le Cubisme”, in: La Revue des Lettres Modernes, nº. 69-70, 1962, p. 14. 83 Cf. DELAUNAY, Robert. Du Cubisme à l'art abstrait. Op. cit. p. 95.

45 grámatica, ou desvio dela, a literatura. E não é por acaso que ele avance no texto anterior que os pintores “font bien de la mathématique sans le ou la savoir”. Disse que o livro é composto a partir da reelaboração de textos de diferentes épocas, mas ressalte-se, “Du sujet dans la peinture moderne” e “Peinture Nouvelle”, textos que também trazem ideias que estão em seu livro, são publicados com intervalo de menos de um mês, fevereiro e março de 1912, na mesma revista Les Soirées de Paris. Em La Peinture Nouvelle, Apollinaire escreve:

On a vivement reproché aux artistes-peintres nouveaux des préoccupations géométriques. Cependant les figures géométriques sont l’essentiel du dessin. La géométrie, science qui a pour objet l’étendue, sa mesure et ses rapports, a été de tout temps la règle même de la peinture84.

Já na primeira linha há uma provável referência à reprovação do público e da crítica85 acerca da pintura feita por artistas como Braque e Picasso, Gleizes e Metzinger, Gris e Léger, e outros, que de 1912-1913 em diante passam a ser designados como cubistas. Aliás, a história sobre a origem da designação “cubiste” é conhecida, e sabe-se que é o crítico de arte do periódico Gil Blas, Louis Vauxcelles, quem teve o papel preponderante em sua divulgação, inicialmente pejorativa. É graças a ele, aliás, que o termo “cubisme” começa a circular, no início aplicado à pintura feita por Braque e por Picasso e depois por outros. A anedota sobre o surgimento do "cubisme" é atribuída a Matisse, artista que na condição de membro do júri do Salon d’Automne de 1908 teria se referido a uma das seis telas enviadas por Georges Braque como um quadro composto “de petits cubes”86.

84 Méditations esthétiques, op. cit. 85 Exemplos desta má recepção podem ser encontrados no anexo do volume de Méditations esthétiques. Les peintres cubistes, organizado por Breunig e Chevalier. Op. Cit. Outros exemplos podem ser encontrados em cartas e artigos reproduzidos no volume Guillaume Apollinaire. Correspondance générale. No tomo 1, p. 439, artigo de Henri Guilbeaux sobre o texto que Apollinaire publica no L’Intransigeant de 11 de novembro de 1911. Outro exemplo é o da “enquete” promovida pelo crítico Olivier Hourcade sobre o cubismo, destacada no mesmo tomo, p. 456. 86 A versão é recontada em nota aos escritos de Matisse - Écrits et propos sur l’art -: “Louis Vauxcelles, dans sa préface au catalogue de l’exposition Les Fauves, l’Atelier de Gustave Moreau [Paris, novembre 1934], attribue à Matisse la paternité du mot “cubisme”; Matisse aurait en effet dit à Vauxcelles, lors d’une visite au Salon d’Automne de 1908: Braque vient d’envoyer ici un tableau fait de petits cubes. Et, ajoute Vauxcelles, “afin de mieux se faire comprendre (car j’étais abasourdi), il prend un bout de papier et dessine en trois secondes deux lignes ascendentes et convergentes entre lesquelles se trouvaient les petits cubes précipités, figurant une Estaque de Georges Braque, lequel d’ailleurs la retira du Grand Palais la veille du vernissage”. Uma outra versão é dada por Matisse em 1952, e por ser esta mais esclarecedora, a transcrevo: “Braque était revenu du Midi avec un paysage représentant un village au bord de la mer, vu

46 As obras de Braque são recusadas pela maioria dos membros da comissão do júri do Salão e, em face da recusa, Braque resolve tirar todas as obras que enviara para serem expostas no Salon d'Automne daquele ano e com elas acorda fazer uma exposição individual na galeria do jovem marchand alemão que havia aberto as portas um ano antes em Paris, Daniel-Henry Kahnweiler, doravante marchand dos “peintres cubistes”. A exposição é aberta no dia 9 de novembro — permanece até o 28 do mesmo mês — e sobre ela é novamente Vauxcelles a escrever que Braque “méprise la forme, réduit tout, sites et figures et maison, à des schémas géométriques à des cubes”87. O prefácio do catálogo dessa exposição é redigido por Apollinaire que, a convite de Kahnweiler88, escreve sobre as obras de Braque “recusadas” no Salon d’Automne. Neste prefácio, texto que Apollinaire reutiliza para compor as passagens que ele dedica a Georges Braque no livro Méditations esthétiques, o autor não refere cubos nem insinua geometrismos, mas destaca a ideia de “pureza”, de “verdade” e de “unidade”, as mesmas que ele havia empregado no prefácio que redigiu para o catálogo da exposição do Havre — Les Trois Vertus Plastiques — no início do mesmo ano de 1908. No referido prefácio do catálogo de Braque, Apollinaire critica a recepção negativa das obras de artistas que, como Braque, se esforçavam “pour renouveler les arts plastiques”, e alerta que “nul n’oserait plus tourner en ridicule ces tentatives admirables"89. Mas se no texto Apollinaire nada indica da preocupação “geométrica” do autor de Maisons à l’Estaque — a obra na qual Matisse vê se erguerem os “petis cubes” —, é nele que o autor insinua a ideia que se esforça para defender sobre uma “pintura pura” fundada no pressuposto da especificidade de sua linguagem: [Braque] “a provoqué volontairement le crépuscule de la réalité et voici que s’élabore plastiquement [...] une

d’en haut. Il y avait ainsi un vaste fond de mer et de ciel dans lequel il avait continue les toits du village leur donnant les couleurs du ciel et de l’eau. Je vis le tableau dans l’ateliers de Picasso qui en discutait avec ses amis. De retour à Paris, Braque fit un portrait d’une femme sur une chaise longue où le dessin et les valeurs étaient décomposés. Le Cubisme descend de Cézanne qui disait que tout est cylindre ou cube. C’était une époque où nous ne nous sentions pas emprisonnés dans des uniformes, et ce que l’on pouvait découvrir d’audace et de nouveauté dans le tableau d’un ami appartenait à tous”. In: MATISSE, Henri. Écrits et propos sur l’art. Paris: Hermann, 2005, p. 119-120. 87 VAUXCELLES, Louis. “Exposition Braque”, Gil Blas, 14 de novembro de 1912. Fonte: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k7521008s/f2.item.r=Vauxcelles. 88 É o que sabemos pela carta que Apollinaire envia a Braque no dia 19 de outubro de 1908: “Mon cher ami, monsieur Kahnweiler m’a reparlé de la préface du catalogue de votre exposition. Je suis toujours prêt à l’écrire si vous êtes dans cette disposition d’esprit. Ainsi donc écrivez-moi votre avis à ce sujet ou venez me voir. Je serais très heureux de dire le bien que je pense d’un artiste dont j’aime le talent et le caractere. Ma main amie. Guillaume Apollinaire”. Guillaume Apollinaire. Correspondance avec les artistes 1903-1918. Paris: Gallimard, 2009, p. 233. 89 APOLLINAIRE, Guillaume. "Georges Braque". Préface au Catalogue de l’Exposition Braque”, 9-28 novembre Galerie Kahnweiler, 1908. In:Chroniques d’Art p. 74-77.

47 renaissance universelle”, ou ainda, “Plus pur que les autres hommes, il ne se préoccupe point de ce qui étant étranger à son art...”90.

Georges Braque Maisons à L'Estaque 1908

A geometria que não é explicitada neste texto sobre o Braque de 1908, aparece no texto de 1912 como a especificidade mesma da linguagem pictórica: “La géométrie [...] a été de tout temps la règle même de la peinture”, ou mais ainda, “les figures géométriques sont l’essenciel du dessin”. Há duas informações importantes presentes nestas duas proposições que merecem atenção. A primeira delas é a de que a geometria é utilizada para representar os volumes dos objetos. A proposição indica que o autor conhece a importância e o lugar de destaque que ela, a geometria, ocupou na arte de pintar e sobretudo no pensamento sobre a pintura. Lembremos que o próprio Alberti, já no século XV, era acusado de “geômetra” em razão de suas proposições sobre a arte de pintar. Equívoco que entendemos quando lemos no seu Da Pintura: “Acho muito bom que o pintor seja, o quanto possível, instruído nas artes ilberais, mas antes de tudo desejo que saiba geometria”91. Esse desejo não era expressão de um pathos, mas sim o

90 Ibid, idem. 91 ALBERTI, Leon Battista. Da Pintura. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 127.

48 de evidenciar aos pintores que o conhecimento dela era indispensável: “quem não conhecer geometria não entenderá nem estas regras nem regra alguma de pintura”92. Em Apollinaire, cinco séculos depois, a importância da geometria é referida, mas não com o mesmo propósito doutrinário do preceptor italiano: “Les nouveaux peintres, pas plus que leurs anciens ne se sont proposé d’être des géomètres”. E ainda que ele considere, numa belíssima formulação, que “la géométrie est aux arts plastiques ce que la grammaire est à l’art de l’écrivain”, não é com a intenção de fazer desta a “règle même de la peinture”, como no tempo de Alberti, o que não quer dizer que ele não reconheça a importância da geometria base das artes plásticas, e não enquanto cálculo, para os pintores de sua época, mesmo porque, a geometria que Apollinaire refere explicita apenas que para se representar no plano — objeto bidimensional que tem apenas comprimento e largura, mas não espessura — um objeto tridimensional, é necessário a altura, a largura e o comprimento. Além disso, a geometria que o poeta está pensando evoca a ideia de uma quarta dimensão, genérica também, que na época era discutida, mesmo porque procurava-se há anos uma geometria não-euclidiana. Mais ainda, quando Apollinaire fala da importância da geometria para o desenho, possivelmente esteja em seu campo de considerações a obra e os escritos de Cézanne.

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Sabemos da importância da informação que a pintura de Cézanne tem para esses jovens pintores cuja pintura começa a circular nestes anos inciais de 1900. Sabemos também que em 1904, 1905, 1906 e 1907 são organizadas exposições retrospectivas da obra de Cézanne promovidas pelo Salon d'Automne e, também em 1907, pela galeria Bernheim-Jeune de Paris. Ainda em 1907 são publicadas, pelo Mercure de France, as cartas que Cézanne havia trocado com seu amigo e correspondente Émile Bernard e, entre elas, aquela famosíssima, pois sempre citada, a que Cézanne escreve ao amigo destacando como ele pensa, por assim dizer, geometricamente, a construção de suas obras:

Permita-me lhe repetir aqui o que eu lhe dizia: abordar a natureza através do cilindro, da esfera, do cone, colocando o conjunto em perspectiva, de modo que cada lado de um objeto, de um plano se dirija para um ponto central. As linhas paralelas ao horizonte dão a

92 Idem.

49 extensão [...]. As linhas perpendiculares a esse horizonte dão a profundidade. Ora, para nós, seres humanos, a natureza é mais em profundidade do que em superfície, donde a necessidade de introduzir nas nossas vibrações de luz, representadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade suficiente de azulado, para fazer sentir o ar93.

Apollinaire acompanha as exposições organizadas sobre a obra de Cézanne e escreve sobre elas a partir de 1907. Em 1910, uma nova retrospectiva das pinturas e aquarelas do "maître aixois" é organizada pela galeria Bernheim-Jeune, e sobre esta escreve o autor: “Les tableaux qui forment cette exposition permettent au visiteur de se faire une idée d’ensemble de l’œuvre du maître aixois. A vrai dire, presque tout cela était connu. Mais tout cela méritait d’être revu à nouveau, étudié, médité”94. Tendo em vista o conjunto da obra exposta, Apollinaire recomenda sobre ela o estudo e a meditação, pois reconhece no conjunto de pinturas e aquarelas expostas a importância para distintas gerações de pintores franceses, de impressionistas, neoimpressionistas a cubistas. Mais ainda, do conjunto exposto — 68 obras entre telas e aquarelas95 — Apollinaire destaca os “admirables et nombreuses études d’après Mme. Cézanne”, os “Joueurs de Cartes” e as “”, notando que esta última contrariava o “argument péremptoire” dos críticos que consideravam que Cézanne “n’a pas su peindre le nu”. A importância da obra de Cézanne é na atualidade indiscutível, mas ela o foi sobretudo para a geração de pintores que o sucederá no início do século XX: Matisse, Derain, Vlaminck, Braque, Picasso e outros. No entanto, na época em que Apollinaire escrevia seu texto, a obra de Cézanne não era unanimidade, nem de público, nem de crítica. Apollinaire mesmo o constata quando escreve em 1914, quatro anos após essa exposição na Bernheim, um artigo no qual criticava um colega de ofício, Gustave Babin, que publicara um artigo antipático relativo aos Cézannes da coleção de Isaac Camondo: “On pensait que le génie de Cézanne était enfin, aujourd’hui, indiscuté. L’article de L’Illustration [de autoria de Gustave Babin] prouve le contraire”. Não sendo unanimidade em 1914, pode-se supor que a pintura de Cézanne tampouco o fosse em 1910, e menos ainda em 1904, 1905, 1906 e 1907, quando galerias e salões de Paris passam a divulgá-la com maior empenho. Ainda assim, Apollinaire defende este que ele

93 CÉZANNE, P. Correspondência. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 244-245. 94 APOLLINAIRE, Guillaume. O. C. P. T. II, p. 126. 95 Cf. LEYMARIE, J. Cézanne. Paris/Genève: Éditions d’Art Albert Skira, 1954, p. 129.

50 situa entre os “plus grands noms de la peinture française”96 e sobre quem inclusive projetará um estudo97, que ao fim ficará apenas na prancheta. É preciso sublinhar ainda que as obras destacadas por Apollinaire não são quaisquer obras, mas pinturas significativas do conjunto do trabalho do artista, sobretudo o retrato de Mme. Cézanne e a paisagem Baigneuses, que serão tomadas como objeto de estudos de Matisse e Derain, por exemplo. Sabe-se da importância que o retrato tem no conjunto da obra Cézanne, pois é na prática deste gênero, ao lado do da paisagem, que o pintor começa a se afastar do impressionismo em busca de soluções próprias que irão resultar na caracterização de sua maneira. Isto é o que nos explica Liliane Brion-Guerry, quando escreve que com a prática destes dois gêneros que “l’esthétique de Cézanne, même à cette époque [1870- 1880] ne peut être considérée comme une esthétique seulement “impressionniste”98. Dois exemplos deste afastamento são os retratos de Madame Cézanne dans un fauteuil rouge, circa de 1877, quando o artista abandona a “superposition des couchés colorées” para substitui-la pela “juxtaposition de touches”, técnica importante para a geração de pintores como Seurat e Signac.

Paul Cézanne Paul Cézanne Portrait de Madame Cézanne dans un fauteuil Portrait de Madame Cézanne au fauteuil jaune rouge 1888-1890 circa de 1877

96 Cf. APOLLINAIRE, G. "La Peinture Moderne", Der Sturm 1913, in: Chroniques d'Art, op. cit. p. 359. Em um outro texto ele escreverá : Il y a deux grandes courants dont l’un est issu du cubisme de Picasso et l’autre du cubisme d’André Derain. L’un et l’autre viennent de Cézanne. C’est ce qu’on peut dire de plus clair et de plus simple, je crois, sur l’art moderne", in: "Le Salon des Indépendants. Coup d'œil sur les œuvres exposées", L'Intransigeant, 2 mars 1914. Œ. C. P., T. II, p. 646. 97 Cf. APOLLINAIRE, Guillaume. Œ. C. P. T. II, op. cit. p. 1503. 98 BRION-GUERRY, Liliane. Cézanne et l’expression de l’espace. Paris: Flammarion, 1950, p. 63.

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Outro exemplo é o do Portrait de Madame Cézanne au fauteuil jaune, de 1888- 1890, no qual ele produz, segundo Brion-Guerry99, o desequilíbrio entre fundo e figura para chegar a uma nova estabilidade na composição do quadro. Apollinaire reconhecia a importância dos retratos de Cézanne, tanto que, além de destacá-los em seu texto de 1910, já escreve sobre um deles no primeiro artigo que publica sobre o Salon d’Automne, em 1907. Em um texto que é mais irônico do que crítico, Apollinaire escreve sobre a retrospectiva do "maître d'Aix" imaginando uma viagem subterrânea feita pelo organizador do Salão, o arquiteto belga Frantz Jourdain, que se desloca do local onde se monta a exposição para a galeria Bernheim, que detinha um número expressivo de obras de Cézanne. Lá, recebido pelo diretor artístico, Félix Fénéon, Jourdain se apressa para escolher as obras de Cézanne que comporão a sala do Salon d'Automne que abrigará uma exposição retrospectiva do artista. Jourdain, que Apollinaire indica ser um grande conservador no que concerne a suas escolhas artísticas, teria afirmado a seu secretário:

“- Vous comprenez, je suis pour la liberté de l’art de la couleur. Ainsi ce portrait de Mme. Cézanne, je le trouve étonnante", afirmação que é seguida da interrogação: “Réellement, cette dame était une belle personne. Mais cette bouche, cette bouche... croyez-vous qu’elle soit réelle? Je suis en train de me le demander et je ne puis le croire... Que diable peut-on faire avec une bouche pareille?”.

Assim, por meio da ironia, Apollinaire coloca em cena o que possivelmente era a recepção da pintura de Cézanne em sua época — e da pintura de um modo geral —, recepção esta apoiada na crença de que a arte deveria se amparar na representação do real ou, para lembrar a citação de Maurice Denis, que “il suffit au peintre de copier ce qu’il voit, bêtement, comme il le voit”. Destaque-se Joueurs de Cartes, outra tela considerada por Apollinaire em seu artigo, obra que também está exposta no mesmo Salon d’Automne de 1907. Trata-se da

99 Idem, pp. 76-77.

52 versão de 1892-1896, da coleção Pellerin100 — existem pelo menos cinco diferentes —, na qual se vê duas figuras masculinas, face a face, jogando cartas.

Paul Cézanne Joueurs de Cartes 1892-1896

Segundo explicação de Maurice Gieure101, a construção espacial e a disposição das figuras são conduzidas por uma “répartition symétrique” da tela. A disposição das figuras, dos jogadores, divide o quadro em duas partes e, numa versão anterior, em que Cézanne figura cinco jogadores sobre a tela, esta posição é determinada pelo jogador que ocupa o centro da tela. A geometrização das formas que é vista na versão que mostra dois jogadores, é exibida pelos contornos dos chapéus, pela forma da garrafa ao fundo e a da mesa e, mais ainda, pelo modo como Cézanne constrói os rostos dos

100 Como está indicado no catálogo da exposição do Salon d’Automne 1907, a obra pertence à coleção de Pellerin. A indicação da obra pode ser confirmada no catálgo eletrônico de indexação das obras de Paul Cézanne, onde consta que é esta a versão que é exposta no Salão. In: http://www.cezannecatalogue.com/catalogue/entry.php?id=688. 101 GIEURE, Maurice. La Peinture Moderne. Paris: PUF, 1958 p. 64. Nas palavras de Gieure: "Dans les “compositions à personnages, spécialement les prestigieux Joueurs de Cartes, la construction spaciale et de disposition des éléments figuratifs obéit à un souci profond de répartition symétrique. Dans les “joueurs” à deux personnages la bouteille de vin centrale divise en deux le tableau: la droite et la gauche. Dans la version à cinq personnages ce rôle est dévolu au joueur central. L’espace y est court, comme dans les “natures mortes”, touffeur ambiante. L’on voit déjà quels éléments, disons architectoniques, vont servir de base de départ, les plans de dispositions particulièrement. Ajoutons la période dite Gardanne où le bourg, construit sur une colline, se dresse par cubes superposés de maisons et monte vers le ciel, pareil à une de primitif, sans profondeur, comme si la troisième dimension étaut rabattue sur les deux autres".

53 jogadores, as dobras de suas vestes, a posição das mãos que, paralelas umas às outras, formam um cubo no centro da tela. Na versão anterior, com cinco jogadores, menos sugestiva no que concerne à geometrização das figuras, o pintor expõe esta construção por planos, que será também muito importante para os artistas defendidos por Apollinaire. Georges Braque, por exemplo, vale-se tanto da geometrização das formas quanto da construção por planos quando pinta suas paisagens de L’Estaque, no verão de 1907, das quais L’Estaque. Vue depuis l’hôtel Mistral expressa, segundo Leymarie, a “volonté de l’organisation géométrique”102 que marca a passagem do pintor para uma nova orientação de construção plástica em sua obra.

Paul Cézanne Joueurs de Cartes c. 1890

102 LEYMARIE, J. Braque. Paris/Génève: Albert Skira Éditions d’Art, 1954, p. 25.

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Georges Braque L'Estaque. Vue Depuis L'Hôtel Mistral 1907

Quanto às Baigneuses, é conhecido o fato de que Cézanne se ocupou deste motivo em momentos diferentes de sua trajetória. Note-se, no entanto, que não se tratava de uma obsessão pelo “tema” — "le sujet n'est pas le souci de Cézanne", nos lembra Pascal Bonafoux103 —, mas sim de uma procura constante, de um estudo. É o próprio pintor que explica a seu filho Paul em 1906: “o mesmo tema visto sob um ângulo diferente oferece um objeto de estudo do mais vivo interesse”104. É esta possibilidade de refazer as Baigneuses105 o que interessa a Cézanne, que as faz e refaz desde a época das pinturas de Auvers — onde trabalha com Camille Pissarro no princípio do decênio de 1870 — até o final de sua vida, quando executa suas Grandes Baigneuses, obra que lhe ocupa por sete anos, entre 1898 e 1905. É o ato de fazer a pintura, em uma palavra, a execução, o que lhe interessa106, por isso sempre volta às suas banhistas, montanhas,

103 BONAFOUX, Pascal. Cézanne, portrait. Paris: Éditions Hazan, 1995, p. 49. 104 Carta de Paul Cézanne a seu filho. In: Correspondência: Paul Cézanne. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 265. 105 O catálogo raisonné organizado por Walter Feilchenfeldt, Jayne Warman e David Nash reúne 44 versões deste mesmo tema. Cf.: The Paintings of Paul Cézanne. An catalogue raisonné under the direction of Walter Feilchenfeldt, Jayne Warman and David Nash. In: http://www.cezannecatalogue.com/catalogue/index.php. 106 Em artigo de 1909, Henri Ghéon escreve: "[...] rendre la peinture pure ses droits, Cézanne [...] apporta un souci de plus, souci qui devint passion chez lui: la passion de l'objet à peindre considéré non plus seulement comme prétexte, mais en soi, la possion de l'objet à peindre". Cf. GHÉON, Henri. Nouvelle

55 retratos. Nestes últimos, como explica Brion-Guerry sobre os de Mme. Cézanne, a figuração do corpo humano faculta a Cézanne “l’occasion de recherches d’ordre purement plastiques et pictural et non plus la tentation d’un thème à allusions littéraires. Le motif tend à remplacer le sujet”, o que nos faz lembrar das palavras de Apollinaire em Du sujet dans la peinture moderne: “le sujet n’importe plus ou s’il importe c’est à peine”, a mesma que é reempregada em Méditations esthétiques.

Paul Cézanne Baigneurs et Baigneuses C. 1870

Paul Cézanne Cinq Baigneuses sous les Arbres C. 1875

Revue Française, mai 1909, in: APOLLINAIRE, Guillaume. Méditations esthétiques. Les Peintres cubistes, op. cit. p. 151.

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Paul Cézanne Les Grandes Baigneuses 1906

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No mesmo ano em que escreve sobre a exposição de Cézanne, Apollinaire escreve também sobre outra mostra, a de Édouard Manet, organizada na mesma galeria Bernheim sob a direção do mesmo Félix Fénéon. Apollinaire aprecia o conjunto de obras expostas, sobretudo os pastéis produzidos por este pintor que, segundo ele, prenunciam obras de Toulouse Lautrec, e também a pintura Bar aux Folies Bergères, que julga importante para Seurat — “coloris et composition, paraît pret à être pastéurisé par Seurat, le microbiologiste de la peinture”. Mas é ao apreciar o conjunto das obras expostas que Apollinaire julga que o autor do Déjeuner sur l’herbe está “à l’origine de ces formidables mouvements qui ont revolutionné les plastiques à la fin du XIX” 107. Sabe-se da importância que a obra de Manet representava para os pintores que o sucederiam no século XIX, como Cézanne, o qual, mesmo se opondo à maneira de Manet, revisita sua obra ao compor suas versões do Déjeuner sur l’herbe e da Olympia. Com base nesta última, Cézanne compõe Une moderne Olympia, leitura por meio da

107 Guillaume Apollinaire, “Exposition Manet”, L’Intransigeant, 16 juin 1910.

57 qual o pintor recria um Nu108 de Manet que já era, ele mesmo, uma tentativa de reinventar o gênero Nu. Ao revisitar Olympia, tela que tem a mesma fortuna que a do Déjeuner sur l’herbe, segundo André Albert109, a obra recusada de 1863, já em um momento em que seu amigo Émile Zola o considerava em posse de seus meios de expressão e cuja obra, na sua visão, “est achevé et qui a déjà donné ce qu’on attend de son talent”110, Cézanne dá provas não apenas de seu acentuado interesse pela execução, mas também pelos gêneros pictóricos, o Nu, no caso, ainda que com o objetivo de reinventá-lo. Obras de Cézanne representam a busca daquilo que é o específico da linguagem plástica, de uma pintura pura, talvez por isso Apollinaire recomende que: “l’enseignement serait plus complet si cette rétrospective Manet était suivie d’une exposition de Cézanne...”.

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Quando Apollinaire recomenda em seu texto de 1910111, Exposition Cézanne, que se deve meditar sobre a obra desse artista e estudá-la, ele deve ter considerado também o que a publicação das cartas do artista em 1907 revelou aos jovens pintores, como Braque112, e para ele mesmo, pois em seu texto de 1912 escreve que as figuras

108 Segundo Lilianne Brion-Guerry, nesta versão de Cézanne ele logra produzir a ilusão de profundidade da tela por meio do trabalho com o claro-escuro, uma inovação cézanniana: "Le plus bel exemple est Une Moderne Olympia [...]. Personnages et objets sont volontairement laissés dans une ombre épaisse qui fera mieux ressortir le corps nu de la femme étendue sur le divan. Celle-ci surgit alors des ténèbres comme une hallucination, comme une féerie de théâtre. L’homme en noir au premier plan semble absorbé par l’obscurité, repris par la nuit qui enfanta son rêve. Son corps informe se confond avec le grand vase de fleurs, irréel lui aussi. La négresse disparaît dans le rideaux tumultueux. Impression étrange, c’est Olympia, en réalité au deuxième plan, qui semble la plus proche du spectateur". Cf: BRION-GUERRY, Lilianne, op. cit. p. 23. 109 Como indica André Albert: “... la fameuse Olympia est critiquée déjà avant d’avoir quitée l’atelier. Refusée d’abord, puis repêchée, cette toile subit les mêmes outrages que Le Déjeuner sur l’herbe”. Cf. ALBERT, André. Édouard Manet 1832-1883. Paris: Les Éditions Braun & Cie, 1940. 110 ZOLA, Émile, “Édouard Manet” (1867), in: Mes Haines. Causéries Littéraires et Artistiques. Paris: Ressources, 1979, p. 327. 111 APOLLINAIRE, Guillaume. "Exposition Cézanne", Œ. C. P. T. II, P. 126. 112 É o que sugere por exemplo Jean Leymarie em seu estudo sobre Braque: “... dans ses deux livraisons d’octobre [1907], c’est-à-dire au moment même du Salon, le Mercure de France publie, présentée par son destinataire, la Correspondance de Cézanne à Emile Bernard. L’une de ces lettres finales, mystérieuses et denses comme des fragments présocratique, celle du 15 avril 1904, contient la formule fameuse qui, détachée de son contexte, allait se généraliser en axiome: “Traiter la nature par le cylindre, la sphère, le cône”. Cézanne est la source commune où puisent différemment bien des courants ultérieurs”. Cf. Leymarie, Braque. Pairs-Génève: Albert Skira Éditions d'Art, 1956, p. 27-28. Mais enfática é a afirmação de Alyse Gaultier que escreve: “Braque, quant à lui, suivant la lettre de Cézanne à Émile Bernard parue dans le Mercure de France (1907), “traiter la nature par le cylindre, la sphère, le cône”, géométrise les volumes et impose une nouvelle vision de l’objet conceptualisée (Maisons à l’Estaque, 1908)”. In: GAULTIER, Alyse. L’ABCdaire du Cubisme. Paris:Flammarion, 2002, p. 7-8.

58 geométricas são “l’essentiel du dessin”. Esta suposição apoia-se não apenas no fato de que os jovens pintores amigos de Apollinaire conheciam estas lições de Cézanne — e ele mesmo, como seus textos o demostram —, mas também porque a ideia reaparece em outros textos que ele publica e nos quais trata de cubismo. A exemplo, mencione-se o do prefácio do catálogo que ele redige para a exposição do Cercle d’Art Les Indépendants, mostra realizada no Museu de Arte Moderna de Bruxelas em junho-julho de 1911113, onde se lê que “si les peintres que l’on a appelé les Fauves ont comme principal mérite de revenir aux principes en ce qui concerne la couleur et la composition, les Cubistes ont voulu revenir aux principes pour ce qui concerne le dessin”114. Assim, parece ser este o sentido que pode ser atribuído à geometria do texto de Apollinaire: como o equivalente a uma gramática da pintura, na qual encontraríamos a possibilidade para a nova arte que, partindo de seu “alfabeto”, os elementos que lhe são próprios, teriam o necessários para a elaboração de uma nova linguagem pictural.

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A ideia de uma gramática para pintura não é estranha aos artistas nesta época, e mesmo da anterior, pois, como visto, a Grammaire des Arts du Dessin de Charles Blanc é obra de referência para os pintores do grupo de Signac, que a refere já em seu ensaio de 1899. Não é possível esquecer que logo em 1913, um ano após a publicação do texto La Peinture Nouvelle de Apollinaire, na Soirées de Paris, e contemporaneamente ao da publicação das Méditations esthétiques, Vassily Kandisnky publica justamente uma Grammaire de la Création, livro no qual o artista procura estabelecer não só um [novo] léxico para a pintura — “l’établissemment d’un vocabulaire ordonné de tous les mots épars”115 — mas também as regras para a construção pictural: “Tel les mots dans la

113 As correspondências do autor mostram que ele participa da organização desta exposição. Exemplos disso encontramos nas cartas que troca com André Blandin em 1911, como esta, na qual escreve: “Cher Monsieur et Ami. Oui, si vous le voulez, vous pouvez absolument compter sur moi pour une exposition d’artistes d’avant-garde. Voici ceux que je suis assuré d’avoir: André Derain, Raoul Dufy, Marie Laurencin, Maurice de Vlaminck, Herbin, Girieud, Lhote, Braque, Van Dongen, Friesz, Camoin. Je tenterai aussi et il n’est pas impossible que je réussisse d’avoir Picasso et Matisse. Je pourrai aussi dans les écoles un peu moins avancées avoir: Dunoyer de Segonzac, Alcide Le Beau, Ottmann, Granzow, Doucet, Gleizes, etc.”. Guillaume Apollinaire, lettre à André Blandin. Correspondance Générale, op. cit. Tome 1, p. 358. 114 Guillaume Apollinaire, “Préface. Catalogue du 8e Salon annuel du Cercle d’Art Les Indépendants au Musée d’Art Moderne de Bruxelles”, 10 juin au 31 juillet 1911. Chroniques d’Art p. 358. 115 KANDINSKY, V. Sur la Peinture. In: Communication et langages, nº 8, 1970, pp. 73-82.

59 langue, les éléments plastiques seront reconnus et définis. Ainsi que dans la grammaire, des lois de composition seront établies. En peinture, le traité de composition répond à la grammaire”116. Sabemos que Apollinaire dialogava com Kandinsky, e na época da publicação de seu artigo na Soirées, em março de 1912, ele recebe uma carta enviada pelo pintor na qual este comunica o envio de seu ensaio, Du spirituel dans l’art et dans la peinture en particulier, na edição alemã, de Munique 1912. Além da comunicação deste envio, o artista avança que enviará um segundo livro, um exemplar do Almanach . Mas, mais importante que a comunicação dos envios é o manifesto interesse de Kandinsky em saber a opinião de Apollinaire sobre o que ele escreve em seus livros: “Je serais très flatté d’entendre votre opinion sur ces livres”117. A opinião de Apollinaire sobre as ideias que Kandinsky expõe sobre a pintura nestas duas publicações é desconhecida, mas sabe-se de sua opinião sobre a pintura do artista que expõe, neste mesmo ano de 1913, obras no Salon des Artistes Indépendants. Já aqui, neste que é o primeiro texto em que Apollinaire faz referência à pintura de Kandinsky, ele relaciona sua obra à pintura francesa, como fará, inclusive, em todos os demais artigos publicados sobre este artista: “Kandinsky expose les Improvisations qui ne sont pas sans intérêt, car elles représentent à peu près seules l’influence de Matisse. Mais Kandinsky pousse à l’extrême la théorie de Matisse sur l’obéissance à l’instinct et il n’obéit plus qu’au hasard”118. A consideração de Apollinaire sobre a obra enviada por Kandisnky poderia ser interpretada como uma tentativa do autor de dar destaque aos pintores franceses que ele defende, como Matisse, mesmo que os princípios da pintura do autor de Improvisations, de suas ideias sobre a pintura, sejam expostos no livro Du Spirituel que Kandinsky envia a Apollinaire naquele ano. No entanto, se Kandinsky expõe princípios para a pintura em seu livro, segundo Pierre Vaisse119 ele ainda não os emprega para elaborar

116 Idem. 117 Guillaume Apollinaire. Correspondance avec les Artistes. Op. cit. p. 600. 118 Guillaume Apollinaire, “Les Salon des Indépendants”, L’Intransigeant, 25 mars 1912. In: Œ.C.P. II, p. 430. 119 Esta é a posição defendida por Pierre Vaisse: “Mais un regard moins avide de merveilleux jeté sur ses dessins préparatoires apprend que les premières peinture qu’on disait abstraites, loin de rompre avec les precedentes, se situent sur la voie d’un processos régulier de stylisation progressive et que les thèmes et les motifs favoris de l’artiste s’y retrouvent facilement. C’est seulement plus tard, après la guerre et son retour en Allemagne, qu’il aurait conçu ses compositions, non à partir d’éléments figuratifs, mais de cette symbolique générale des formes et des couleurs dont il avait exposé les principes dès 1911, dans son livre Du Spirituel dans l’art. Pierre Vaisse, “Kandinsky à Paris”, in: Commentaire, 1985/4 nº 32, p. 1197-1201.

60 essa pintura abstrata pela qual ficaria conhecido, já que esta virá apenas, enquanto realização plástica, nas obras que o artista compõe no pós-guerra. Divisando, portanto, da afirmação de Vaisse, a aproximação proposta por Apollinaire de sua pintura à de Matisse não parece absurda, uma vez que o próprio Matisse é mencionado e é uma referência para o pintor das Improvisations, que escreve no ensaio Sobre a questão da forma, de 1912, que os quadros de Matisse mostram como “a composição ‘rítmica’ [ele pensa em La Danse] possui outra vida interior e portanto outra ressonância que a composição na qual as partes do quadro se justapõem de uma maneira “arrítmica” [como em La Musique, 1907]”. E essa “vida interior”, essa “obéissance à l’instinct” de Matisse, segundo Apollinaire, reaparece no artigo que Kandinsky publica no final de 1913 na revista Der Sturm, no qual as ideias de Matisse ressoam novamente: “toute œuvre naît d’une émotion, qui se traduit en sentiment chez l’artiste. C’est ce sentiment qui le pousse à créer”120. Que se compare o trecho destacado de Kandinsky com o que Matisse escreve em suas Notes d’un Peintre, de 1908, para se ter um exemplo de que a ideia de que uma obra de arte nasce da emoção que se traduz em sentimento no artista e que é este sentimento o que o move no momento da criação, é repetida à exaustão pelo pintor francês: “La composition est l'art d'arranger de manière décorative les divers éléments dont le peintre dispose pour exprimer ses sentiments”121; “Je ne fais guère de distinction entre le sentiment que j'ai de la vie et la façon dont je le traduis”122; “Le choix de mes couleurs ne repose sur aucune théorie scientifique: il est basé sur l'observation, sur le sentiment, sur l'expérience de ma sensibilité”123 . Do que é possível entender a partir da comparação desta ideia que Apollinaire expõe em seu texto, a de que a geometria seria o equivalente a uma gramática da pintura — “la géométrie est aux arts plastiques ce que la grammaire est à l’art de l’écrivain” —, e a ideia de uma gramática da criação a partir dos escritos de Kandinsky, é que a grámatica que o pintor propõe fica limitada ao texto, servindo a gramática apenas como

120 Vassily Kandinsky, “La Peinture en tant qu’Art Pur”, Der Sturm, nº 178-179, septembre 1913. Reproduzido em: KANDINSKY, V. Sur la Peinture. In: Communication et langages, nº 8, 1970, pp. 73- 82. Note-se que a ideia de arte pura sugerida no título do artigo é absolutamente distinta da que Apollinaire tenta formular. Em Kandinsky, a ideia de uma arte pura está ligada à “spiritualisation de l’esthétique”. Segundo ele, “La peinture en tant qu’art pur doit servir à la communication d’esprit à esprit - un art pur est un art où l’élément spirituel s’isole de l’élément corporel et se développe de manière indépendante”. Em Apollinaire, como já vimos e como ainda veremos, a ideia de uma arte pura é materialíssima, e diz respeito à matéria mesma da qual a pintura se serve para ser o que é: pintura. 121 MATISSE, Henri. Écrits et Propos sur l'Art. Op. cit. p. 42. 122 Ibid, idem. 123 Idem, p. 49. Cito estes três trechos mas é possível encontrar outros ao longo de seus escritos que mostram esta concepção "emotiva" do pintor em relação a pintura.

61 termo que dá título a seu ensaio pois, se a procuramos a “gramática” da criação, nos damos conta de que em seu lugar o que encontramos é a “spiritualisation” de ideias sobre a pintura, com forte acento místico, que contrariam toda a busca da pintura pura proposta por Apollinaire, para a qual também vale a ideia da quarta dimensão como possibilidade de se buscar algo além do real.

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Enquanto para Kandinsky, a gramática se rende à "espiritualização", como a ideia de uma "vida interior" aplicável à pintura, para Apollinaire, não. Quando o autor de Álcoois escreve que “les figures géométriques sont l'essentiel du dessin”, propondo que a geometria é para as artes plásticas o que a gramática é para os escritores, Apolinnaire indica que tanto uma como a outra são os elementos que possibilitam essas artes e, sem mistificações, evidencia que a conhecida geometria postulada na Alexandria, que serve aos artistas de outrora, não mais basta: “aujourd’hui les savants ne s’en tiennent plus aux trois de la géométrie euclidienne. Les peintres ont été amenés [...] à se préoccuper de nouvelles mesures possibles”124. Segundo Apollinaire, estas "novas medidas possíveis", que vão além das três dimensões da geometria euclidiana, eram discutidas nos ateliers, informalmente, e foi a partir destas discussões que se passou a empregar o que “dans le langage des ateliers modernes on désignait toute ensemble et brièvement par le terme de quatrième dimension”. Esta versão de Apollinaire sobre as discussões em torno da “quatrième dimension” na pintura está de acordo com outras, como a de Maurice Raynal, seu companheiro de redação na revista Soirées de Paris, que em um texto publicado quarenta anos depois do de Apollinaire, em 1952, contextualiza o momento e o sentido em que o termo, ou uma ideia de “quatrième dimension”, é integrado ao vocabulário dos artistas:

Les mathématiques, à leur tour, proposeront un nouveau sujet d'engouement. Le besoin d'un ordre nouveau que manifeste la jeune école suggère sans doute le retour à la géométrie, connaissance des rythmes perdus. Mais on se passionne surtout pour les mathématiques les moins classiques, les géométries non euclidiennes, par exemple. On parlera même d'une nouvelle QUATRIÈME DIMENSION que l'on envisagera

124 APOLLINAIRE. G. Méditations esthétiques [...], op. cit. p. 51.

62 assurément moins pour des raisons techniques à quoi l'on n'entend pas grand chose, que comme une source d'exemples de lyrisme, d'invention ou d'audace non conformiste125.

Talvez, o intervalo de quatro décadas que separa os textos de Apollinaire e de Raynal contribui para que o segundo possa ver com clareza algo que o primeiro deveria apenas entrever. No entanto, ainda que nos anos de 1912 o conceito de “quatrième dimension” não fosse claro, a partir dos escritos de Apollinaire entende-se que a quarta dimensão, para os artistas, aproxima-se mais da ideia de possibilidades, esta entendica como modos de se explorar novas construções no plano, ainda que no plano só seja possível representar volumes a partir das conhecidas dimensões, altura, largura, comprimento, mesmo sem se conhecer as regras matemáticas, quer dizer, sem cálculos. No livro lemos:

“Telle qu’elle s’offre à l’esprit, du point de vue plastique, la quatrième dimension serait engendrée par les trois mesures connues...”,

e nas páginas da revista Soirées de Paris, seção Méditations esthétiques, lê-se:

“Sans entrer dans des explications mathématiques d'un autre domaine et en m'en tenant à la représentation plastique, telle qu'elle s'offre à mon esprit, je dirais que dans ces arts plastiques, la quatrième dimension est engendrée par les trois mesures connues”.

Breunig e Chevalier contam que esse termo causava preocupação a Apollinaire; é possível, pois era uma dessas expressões “à la mode”, como explicam os mesmos autores, antes da eclosão da guerra em 1914: a “quatrième dimension” foi objeto de um concurso promovido pela revista americana Scientific American em 1909, foi empregado numa passagem do romance que Proust126 publica em 1913 e foi o assunto do livro de Gaston Pawlowsky, Voyage au pays de la quatrième dimension, publicado em 1912, mesmo ano em que Apollinaire publica o artigo “La Peinture Nouvelle” na Soirées, onde emprega o termo pela primeira vez.

125 RAYNAL, Maurice. "Montmartre au Temps du Bateau-Lavoir", in: Médecine de France, nº XXXV, 1952, pp. 17-30. 126 A passagem de Du Côté de chez Swann citada pelos autores é a seguinte: “... Tout cela faisait d’elle pour moi quelque chose d’entièrement différent du reste de la ville: un édifice occupant, si l’on peut dire, un espace à quatre dimensions - la quatrième étant celle du temps”. Méditations p. 105.

63 Apollinaire pode não ter tomado conhecimento do concurso que a revista norte- americana promoveu em 1909 e talvez não tenha lido o romance de Proust, mas conhecia Pawlowsky e, segundo Claude Debon, o “connaissait bien”127. Uma carta de Apollinaire indica que ele tinha contato com Gaston Pawlowsky que, além de autor da Voyage, também era o diretor do periódico Comœdia, desde 1909 e seu amigo André Rouveyre128 afirma que se aproximou de Apollinaire por intermédio de Pawlowsky, quando encarregou aos dois de escreverem um artigo que seria publicado em seu periódico Comœdia. Breunig e Chevalier anotam na edição de 1965 das Méditations, que Apollinaire teria se interessado pela ideia, proposta na época por pintores e críticos, de integrar ao espaço da pintura a noção de "tempo". Metzinger teria escrito que “le tableau possédait l’espace, voilà qu’il règne aussi dans la durée”, Gleizes que ao “espace il joindra la durée” e Roger Allard, se referido à pintura como “un art qui offre les éléments essentiels d’un synthèse dans la durée”129. É verdade que quando Apollinaire escreve sobre a pintura futurista em 1912, logo após a abertura da primeira exposição de obras dos pintores do grupo italiano em Paris — ocasião na qual ele possivelmente vê pela primeira vez um conjunto de obras destes artistas130 —, ele destaca que “ils veulent peindre les formes en mouvement, ce qui est parfaitement legitime”131 e afirma que a “originalité de l’école futuriste de peinture, c’est qu’elle veut reproduire le mouvement”132, mas também é verdade que para ele os pintores futuristas tinham mais “idées philosophiques et littéraires que d’idées plastiques”133. A indicação da ideia de "tempo" sugerida na escrita de Apollinaire quando refere o desejo de movimento na pintura dos futuristas italianos não é a que se encontra em seus textos que trata do assunto, como também não é, evidentemente, a que está na passagem em que ele considera a “quatrième dimension” em suas Méditations esthétiques: “elle figure l’immensité de l’espace s’éternisant dans toutes directions à un moment déterminé.

127 DEBON, Claude. “L’Écriture Cubiste” d’Apollinaire”, in: Europe, juin 1, 1982 ; 60, 638 ; p. 118. 128 “Noues étions réunies et envoyés à Deauville par G. de Pawlowski, et pour l’amusement des lecteurs de Comœdia”. Cf. ROUVEYRE, A. Apollinaire. Paris: Gallimard, 1945, p. 9. 129 Citados por Breunig e Chevalier in: Méditations, op. cit. p. 103. 130 A carta de Apollinaire a Ardengo Soffici datada de 26 de janeiro de 1912 evidencia que até este momento Apollinaire não conhecia a pintura dos futuristas italianos: “À vrai dire je ne connais pas encore leur peinture mais je me doute de ce qu’elle doit être”. Correspondance Générale, op. cit. p. 475. 131 APOLLINAIRE, Guillaume. “Les Peintres Futuristes Italiens”, Chroniques d’Art, op. cit. p. 271. 132 APOLLINAIRE, Guillaume. “Chroniques d’Art. Les Futuristes”, op. cit. p. 275. 133 Ibid. idem.

64 Elle est l’espace même, la dimension de l’infini; c’est elle qui doue de plasticité les objets. Elle leur donne les proportions qu’ils méritent dans l’œuvre...”134. Como se lê, nada na passagem indica o tempo bergsoniano135 sugerido pelos dois estudiosos citados, visto que Apollinaire considera um “moment déterminé”, estanque, no qual o espaço se apresenta “em todas as direções”. E é justamente por isso que Apollinaire afirma que a gramática das artes plásticas tem as três dimensões como partida. Sem estas, como dar volume aos objetos? Os mesmos autores Breunig e Chevalier escrevem que Apollinaire emprega o termo de maneira “plus poétique que scientifique”136, e tal afirmação pode servir de ponto de partida para se propor que a “quatrième dimension” de Apollinaire se aproxima muito mais da ficção de Pawlowsky do que de teorias filosóficas. Curiosamente, os mesmos autores que indicam a existência do livro de Pawlowsky nada dizem sobre o que o autor trata nesta Voyage au pays de la quatrième dimension. Também curioso é o fato de que Claude Debon, que se espanta com o silencio de Breunig e Chevalier a respeito da obra Voyage, também nada escreve sobre ela e apenas aponta uma possível ligação entre a obra de Pawlowsky e o pensamento de Bergson137. Um quarto autor, Willard Bohn, estudioso norteamericano, também indica a circulação da obra de Pawlowsky na época em que a discussão sobre a “quatrième dimension” estava “à la mode”, sugerindo-a como uma das possíveis fontes de Apollinaire:

134 APOLLINAIRE, G. Méditations esthétiques..., op. cit. p. 52. 135 Segundo Maurice Raynal, o crítico René Huygue propõe que a ideia de “quatrième dimension” está ligada ao pensamento de Henri Bergson, mais especificamente, ao seu conceito de durée: “Aussi bien que René Huygue rapporte qu’a sujet de cette quatrième dimensison des cubistes n’hésitèrent pas à consulter Bergson”. O próprio Raynal nega essa especulação de Huyge: “puis-je garantir qu’il ne s’agissait ni de Picasso, ni de Braque, ni de Juan Gris, ni de Fernand Léger, ni de Delaunay, ni d’André Lhote. D’ailleurs, pour revenir à la géométrie, certaines toiles cubistes, comme tant d’autres réputées classiques, ont réalisé les proportions harmonieuses de parfaits Section d’Or...”. Cf: RAYNAL, M. op. cit. Relativamente a Apollinaire, menos ainda, pois o escritor se referiria a Bergson como um filósofo que “ne se distingue ni par le bon goût littéraire ni par le discerniment artistique.” Esta passagem encontra-se na entrevista que concede a Perez-Jorba: “Les artistes qui veulent suivre les philosophes condamnent leur art à l’impuissance. Le philosophe Bergson - voici un exemple - ne se distingue ni par le bon goût littéraire ni par le discerniment artistique; pour Bergson, il n’y a aucun poète au-dessus de... Suly Prudhomme”, in: “Interview par Pérez-Jorba”, La Publicidad, Œ.C.P. II, p. 993. 136 Idem p. 18. 137 É Claude Debon quem afirma: “On s’étonne un peu de ne pas trouver parmi elles celle d’un livre paru lui aussi en 1912, écrit par un homme qu’Apollinaire connaissait bien, Gaston de Pawlowsky, directeur de Comœdia: Voyage au pays de la quatrième dimension. Livre étrange, qui commence comme du Bergson, en opposant la quantité, domaine de la science et de l’espace, à la qualité, domaine de l’art du temps...”. DEBON, op. cit.

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La quatrième dimension avait également acquis une existence indépendante, grâce surtout à la presse, et suscitait beaucoup d’intérêt du public à cette époque. Selon une tradition populaire qui s’établissait bientôt, le terme décrivait une sphère d’existence surnaturelle, une sorte de réalité hors de la réalité. [...] elle concevait la quatrième dimension simplement comme une construction imaginaire. En outre, elle fournissait aux écrivains populaires une méthode interessante à exploiter. Le meilleur exemple de ce genre de travail était la Voyage au pays de la quatrième dimension de Gaston de Pawloswsky.138

Apesar de destacar a popularidade da obra de Pawlowsky e de sua possível importância para os ficcionistas da época, Bohn prefere sustentar a hipótese de que, para formular sua ideia de “quatrième dimension”, Apollinaire tenha se apoiado, principalmente, em um artigo do pintor Max Weber, intitulado “The fourth dimension from a plastic point of wiew”, publicado em 1910139. Segundo ele, o fato de Voyage ter sido publicado em folhetim no periódico que Pawlowsky dirigia, Comœdia, na mesma época em que Apollinaire preparava as suas Méditations esthétiques, poderia ter levado este último a não se servir das ideias ou sugestões que o autor de Voyage expunha no livro. Como nos dá a entender Bohn, por prudência, Apollinaire teria evitado o texto de Pawlowsky e se apoiado neste artigo do pintor Weber, dele tirando “la plupart de ses observations théoriques”140. Para defender sua hipótese, Bohn destaca que, do mesmo modo como no texto de Apollinaire a “quatrième dimension” é associada ao espaço — “elle est l’espace même” —, e não ao tempo, como propunham outros críticos e artistas na época, assim também ela era apresentada no artigo de Weber: “Pour Apollinaire comme pour Weber, la quatrième dimension était un phénomène purement spatial”141. Bohn não destaca as passagens nas quais encontra outras coincidências entre as ideias dos dois autores, mas afirma que Apollinaire, mesmo não empregando o termo “quatrième dimension” na mesma acepção que o emprega Weber, o utiliza se servindo

138 BOHN, Williard. “Apollinaire et la quatrième dimension”, in: Que Vlo-Ve? Série 3 nº 19, juillet- septembre 1995 pp. 68-76. 139 Max Weber "In The Fourth Dimension from a Plastic Point of View". Camera Work, 31, (July 1910): “"In plastic art, I believe, there is a fourth dimension which may be described as the consciousness of a great and overwhelming sense of space-magnitude in all directions at one time, and is brought into existence through the three known measurements". 140 Idem. 141 Idem.

66 de “périphrases et des synonymes” quando escreve sobre a pintura de Albert Gleizes e de Francis Picabia na segunda parte de seu livro. Esta coincidência de ideias ele vê quando Apollinaire escreve que a pintura do primeiro “éveille l’imagination, provoque l’imagination et considérée du point de vue plastique elle est l’immensité des choses”, o que segundo ele é um empréstimo da passagem em que Weber propõe “la discussion de la proportion”. Ainda com Gleizes, quando Apollinaire monumentaliza sua pintura associando-a a uma “force de même sorte que celles qui ont réalisé les Pyramides et les cathédrales”, Bohn afirma que ele se vale da passagem de Weber onde este cita a “Acropole et certains ‘structures palatines’ comme exemples de rêves réalisés par des moyens plastiques”142. Quanto a Picabia, Bohn defende que quando Apollinaire se refere a sua pintura afirmando que sua “dimension idéale c’est la couleur”, esta “dimension idéale” seria uma sugestão que o autor das Méditations teria encontrado no artigo de Weber, na passagem em que este “propose une analogie entre la quatrième dimension et les notions de couleur et de profondeur musicales”. Assim, sem fornecer mais exemplos que possibilitariam propor uma ligação entre o pensamento de um e de outro, ele termina por concluir que o que evidenciaria ainda que o texto de Weber é matriz para o de Apollinaire seria o fato de que “où les deux théories coïncidaient [...] c’est dans l’importance qu’elles accordaient à l’imagination”, ou ainda, que coincidiriam no ponto em que Weber considera a “quatrième dimension comme une projection des trois autres dimensions dans un espace qui n’était pas moins réel pour être invisible”143. Parto desse ponto para lembrar que a quarta dimensão do jovem pintor Weber, que escreveu seu artigo para a revista de Alfred Stieglitz's, pode parecer próxima à de Apollinaire, todavia, para Weber, ela é percebida no entorno das coisas e a partir da observação da natureza, enquanto para Apollinaire, essa “natureza” que vale para a produção artística em Weber, não é necessitante. Weber é textual: “The ideal is thus embodied in, and revealed through the real”. Basta esta constatação para se perceber o equívoco de Bohn em seu artigo de 1978; mais ainda, elevar a ideia de “espaço” “engendrée par les trois mesures connues” para armar seu raciocínio que demonstra a coincidência entre os dois autores é, no mínimo, ingênua, pois essa asserção é comum a vários escritos sobre a quarta dimensão na época, inclusive os de ficções, como em Voyage de Pawlowsky.

142 Idem. 143 Idem, p. 11

67 A "quatrième dimension" enquanto possibilidade está ligada à imaginação e sabemos da importância que esta tem para o trabalho de elaboração textual de Apollinaire, o que já foi apontado por mais de um estudioso de sua obra144. Mas, o que parece ser necessário lembrar é que a essa quarta dimensão, segundo o próprio Apollinaire, é expressão utópica, embora ela deva ser considerada por ter algum sentido histórico. E, do que é possível entender, a expressão começa a circular na época em que “un grand nombre de jeunes artistes regardant les sculptures égyptiennes, nègres et océanniennes, méditant les ouvrages de science, attendant un art sublimeque”145.

Apollinaire, Picasso e Les Demoiselles d'Avignon

A jornalista e crítica de arte francesa Jeanine Warnod conta-nos uma zombaria feita às Donzelas de Picasso, graça que ela possivelmente escutou de seu pai, André Warnod, artista e também crítico de arte, na qual a futura Les Demoiselles d’Avignon foi mostrada por Picasso em 1907 para amigos e um deles diz que o artista quis pintar a quarta dimensão:

Chacun manifeste sa surprise et son inquietude selon son caractère. Apollinaire, que rien n’étonne, n’hésite pas à dire: “C’est une révolution!”. Il amène Fénéon, qui s’intéresse aux recherches des jeunes. Celui-ci déclare à Picasso: “C’est intéressant mon garçon,

144 Os exemplos são muitos e por isso me limito a citar alguns. Michel Décaudin, em Apollinaire (Paris: Le Livre de Poche, 2002): “Paris est pour lui un émerveillement: il croit y découvrir un monde littéraire et artistique dont seuls les livres et la presse lui avaient donné auparavant une image. « Je ne connaissais personne à Paris et chaque passant m’intriguait, car je me demandais s’il n’était pas un de ces hommes dont la renommée enseigne le nom à leurs semblables » (Pr2 1044). Ainsi croit-il rencontrer Barrès, Régnier, Gourmont... dans ce processus d’interférences entre l’imagination et la réalité qui est une constante chez lui”, p. 12; “Flânerie dans le temps et l’espace, alliance vécu et de l’imaginaire, nostalgie du passé et vivacité de la mémoire, humour et mélancolie, il semble qu’Apollinaire se soit résumé dans son dernier livre qui est à la fois un portrait intérieur et une manière de testament”, p. 29-30. Pierre Caizergues, Apollinaire Journaliste (Paris: Lettres Modernes/ Minard, 19081): “... une seconde série [de textes] où la fiction soutient presque à elle seule l’instrument polemique, où le réel et imaginaire s’associent en une véritable tabarinade propre à déclencher un immense éclat de rire libérateur”, p. 82; “Ce n’est pas qu’il accorde à cette forme d’art la primauté sur toute autre réalisation du domaine esthétique - on serait même porté à dire tout au contraire qu’il entend privilégier les productions où l’imagination la plus ardente et magistralement et fermement canalysée par le travail de l’artiste”, p. 100. Laurence Campa, em Apollinaire Critique Littéraire (Paris: Honoré Champion, 2002): “La poésie doit d’abord être conforme à la vie, en être son miroir, mais elle ne doit pas l’imiter ou plutôt elle doit l’imiter par l’imagination”, p. 83; “La vraisemblance n’est plus une règle quand on cherche l’expression du vrai et de la vie par l’imagination” p. 83; “Apollinaire doit beaucoup personnellement à Golberg, surtout en tant que critique d’art. [Golberg] prône en effet la communion de la création et de la vie, les vertus de l’imagination”, p. 145; “Ce sont les grands portraits [ d’Apollinaire] qui laissent le plus de liberté à l’imagination”, p. 225. 145 Cf. APOLLINAIRE, G. Méditations, p. 52.

68 vous dévriez vous consacrer à la caricature. Léo Stein éclate de rire en disant: “Vous avez voulu peindre la quatrième dimension”. Matisse voit là une mystification, Kahnweiler amené par Uhde, bouleversé, achète les études et les équisses préparatoires, Picasso ne voulant pas lui vendre le tableau146.

A caçoada do colecionador Léo Stein nos dá a ideia do quão vulgarizado o termo deveria estar na época em que Apollinaire o emprega em seu livro. Mas o que se deve dar destaque na passagem não é à fala do colecionador, mas sim à reação de Apollinaire diante da nova tela de Picasso: “C’est une révolution!”. É pouco o que se pode concluir da exclamação do autor, mesmo porque contada a partir de memória, por isso mesmo é preciso considerá-la a luz de uma nota que Apollinaire redige em seu diário no dia mesmo em que Picasso convida os amigos para verem a tela147:

Le soir dîné chez Picasso. Vu sa nouvelle peinture: couleurs égales, roses de chairs, de fleurs, etc. têtes de femmes pareilles et simples, têtes d’hommes aussi. Admirable langage que nulle littérature ne peut indiquer, car nos mots sont faits d’avance148.

Sabemos pela indicação de Warnod e também pela que é feita por Peter Read em seu estudo sobre Picasso e Apollinaire149, que a pintura diante da qual Apollinaire não encontra palavras para descrever é as Les Demoiselles d’Avignon, tela que, segundo John Golding, "marque incontestablement un clivage dans la carrière de Picasso" e que será, conforme o mesmo autor, o "point de départ logique de l'histoire du cubisme"150. Malgrado circulem teses sobre o silêncio de Apollinaire151 a propósito desta obra de Picasso, vemos que, a partir da anotação de seu diário, ele reconhece a importância da realização do artista. Aliás, considerando-se as pesquisas de Golding, Apollinaire é

146 WARNOD, Jeanine, Le Bateau Lavoir. Paris: Éditions Mayer, 1986, p. 108. 147 Como se sabe, Picasso convida amigos para irem ao seu atelier para verem o que ele estava pintando. Warnod indica a data do envio do convite como sendo 27 de avril 1907, a mesma que é indicada por Golding. Cf. Jeanine Warnod, op. cit. p. 103. Golding, op. cit. p. 79. Apollinaire, por sua vez, anota em seu diário, talvez escrito com pouca frequência, a data de 17 de fevereiro de 1907. Journal Intime. 148 APOLLINAIRE, Journal Intime. Limoges: Éditions du Limon, 1991, p. 142. 149 READ, Peter. Apollinaire et Picasso. Les métamorphoses de la mémoire. Paris: Jean-Michel Place, 1995, pp. 90-92. 150 Cf. GOLDING, John. op. cit. p. 67. Na visão do crítico e amigo de Apollinaire Maurice Raynal, Demoiselles d'Avignon é "l'œuvre capitale constituant le point de départ le plus précis de la révolution cubiste", in: RAYNAL, Maurice. Picasso. Paris/Génève: Albert Skira Éditions d'Art, 1957, p. 53. 151 Quem reporta as tais teses sobre o silêncio de Apollinaire em relação as Demoiselles de Picasso é Peter Read. Em seu aprofundado estudo sobre as relações entre Picasso e Apollinaire, o crítico inglês desmonta as teses de Pierre Daix, Hélène Seckel, Roland Penrose, Daniel Henry Kahnweiler, nas quais defendem que Apollinaire teria se omitido de proferir seu juízo sobre Demoiselles. Cf. READ, op. cit. pp. 86-94.

69 quem, ao lado de André Salmon e Max Jacob, sugere o primeiro título dado ao quadro, Le Bordel Philosophique, que se converterá em Les Demoiselles d'Avignon somente após o fim da Primeira Guerra152. Mas, o que é importante ressaltar é que a encenada exclamação de Apollinaire ao lado de suas anotações e o conhecimento dele da obra de Picasso significam que o crítico vê uma revolução pictural em curso. Claro está que estamos admitindo, aqui, que a Demoiselles que hoje conhecemos tem resoluções próximas, no que se refere à técnica de construção das figuras, à mostrada por Picasso em seu ateliê em 1907. Sendo assim, entendem-se as razões que levam Apollinaire a considerar a obra como uma revolução, sobretudo se a comparamos com as pinturas que o artista produz nos anos de 1905 e 1906, nas quais vemos proposições absolutamente distintas das que ele apresenta com Demoiselles d'Avignon. Não se pode esquecer que Apollinaire acompanha o trabalho de Picasso desde o início de sua amizade com o pintor espanhol, em 1904, ano em que ele abandona Barcelona para se instalar definitivamente em Paris, ocupando um dos estudios de uma estranha moradia situada na rue de Ravignan, no Montmartre, que Apollinaire frequenta com assiduidade, e que ficará conhecida como o "Bateau-Lavoir"153.

152 Cf. Golding: "Le Bordel Philosophique, suggéré en plaisant par Salmon, Max Jacob et Apollinaire". Op. cit. p.72. 153 Existe uma extensa bibliografia a propósito da amizade entre os dois artistas e sobre o primeiro atelier/moradia de Picasso em Paris, o chamado "Bateau Lavoir", endereço também de Max Jacob, de André Salmon e de outros pintores como o holandês e o italiano Amedeo Modigliani. Me limito aqui a indicar as que me parecem ser as mais significativas: CARCO, Francis. De Montmartre au Quartier Latin. Paris: Éditions Albin Michel, 1927. DORGELES, Roland. Bouquet de Bohème. FRANCK, Dan. Les Années Montmartre - Picasso, Apollinaire, Braque et Les Autres… Paris: Éditions Mengès, 2006. OLIVIER, Fernande. Picasso et ses Amis. Paris: Éditions Stock, 1933. RAYNAL, Maurice. "Montmartre au Temps du Bateau-Lavoir", in: Médecine de France, nº XXXV, 1952, pp. 17-30. SALMON, André. "Montmarte à l'époque Bleue". In: Souvenirs Sans Fin. Première Époque 1903-1908. Paris: Gallimard, 5ª éd., 1955. pp. 164-190. E a principal, em minha opinião: WARNOD, Jeanine. Le Bateau-Lavoir. Paris: Éditions Mayer, 1986.

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Pablo Picasso Pablo Picasso Famille de Saltimbanques Deux Femmes Nues 1905 1906

Pablo Picasso Les Demoiselles d'Avignon 1907

Apollinaire não só acompanha o trabalho de Picasso em visitas regulares a seu ateliê, mas também escreve sobre o trabalho do artista em duas ocasiões, uma delas, logo após o artista ter se instalado em Paris. Estes dois textos, que serão reaproveitados na composição Peintres Nouveaux, segunda parte de Méditations esthétiques, indiciam as obras produzidas e exibidas por Picasso no ano de 1905 e, apesar de que Apollinaire

71 nada escreva sobre as obras que o artista produz em 1906, a correspondência existente entre os dois artistas indica que ele continuava acompanhando o trabalho do pintor. Não se deve deixar de destacar que, quando Picasso começa a expor seus trabalhos após fixar residência em Paris, poucos são os críticos que dão atenção à sua pintura. Breunig e Chevalier escrevem que, além de Fagus e Charles Morice — crítico que Apollinaire admira154 —, que publicam resenhas sobre a exposição de Picasso na galeria Sérusier em 1905, os artigos de Apollinaire são "les premiers à révéler l'art de Picasso au public parisien"155. Sendo assim, quando Apollinaire vê a tela em que Picasso trabalha no início de 1907, ele é capaz de entender a mudança de direção que Demoiselles opera no trabalho do artista. E seria possível até mesmo propor que Apollinaire faz parte desta "clivage dans la carrière de Picasso", de que fala Golding, especialmente se consideramos o que em Demoiselles contribui para produzir esta mudança na maneira do artista: Cézanne, El Greco, Ingres, estatuetas “primitives” e máscaras africanas.

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Segundo Golding, Picasso inicia seus estudos para a tela no inverno de 1906 e, de acordo com ele, uma de suas referências visuais são as Baigneuses pintadas por Cézanne. Especialmente as Trois Baigneuses, tela datada de 1879-1882, que Matisse adquire do galerista Ambroise Vollard em 1899 e que, como sugere o mesmo Golding156, é vista por Picasso no ateliê deste artista. Sabemos que a admiração por Cézanne é crescente nestes anos de 1904, 1905, 1906 e 1907. O Salon d'Automne de 1904 reserva uma sala especial ao artista, na qual são expostas mais de trinta telas. Entre naturezas mortas, paisagens e a importante La Montagne de Sainte-Victoire, de 1898, são exibidas três Baigneuses do artista.

154 Apollinaire o refere em carta enviada a Picasso datada de 12 de junho de 1906: "Je ne fréquente plus que Charles Morice. C'est un brave homme. Il t'en veut beaucoup prétendant que doué de dons admirables tu les gâches par un grand dédain de l'étude. Je l'ai connu par un ancien camarade de collège...". In: Picasso/Apollinaire - correspondance. Paris: Gallimard, 1992, p. 46. 155 Méditations, op. cit. p. 111. 156 GOLDING, J. Op. cit. p. 73.

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Paul Cézanne Les Trois Baigneues 1879-1882 Em 1905, outras dez telas de Cézanne são exibidas no mesmo salão, entre as quais uma vista de L'Estaque — importante referência, sobretudo para Braque — e, novamente, Les Baigneurs. Em 1906, dez obras do mesmo artista figuram no mesmo salão, com destaque para a sua Maison dans les arbres. Neste mesmo 1906, Matisse envia ao mesmo Salon d'Automne sua tela La joie de vivre, na qual o obssessivo motivo cézanniano das banhistas é considerado. Derain, que nestes anos trabalha em diálogo com Matisse executa Baigneuses, também em 1906. Braque, por seu lado, não se vê atirado pelas cézannianas banhistas, e ruma em direção a L'Estaque, de onde retorna com paisagens cézannianas que serão terminadas no estudio em Paris — as mesmas onde dois anos mais tarde serão vistos os "petits cubes". Portanto, nada de muito novo em Picasso valer-se de referências cézannianas na pintura que executa em 1907 pois, como visto, a obra de Cézanne desponta, ao menos entre estes artistas, como uma referência importante nestes anos.

Henri Matisse André Derain La Joie de Vivre Baigneuses 1906 1906-1907

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Por isso, além das referências vindas da pintura de Cézanne, é preciso considerar as demais que operam no olhar do artista de Demoiselles. El Greco, por exemplo, cujas reproduções de obras, no dizer de Golding, "constelam"157 as paredes do ateliê de Picasso em Montmartre, pesando sobre a composição de Demoiselles. Além de Greco, outra referência importante para Picasso na época é a pintura de Ingres158, sobretudo o seu Le Bain Turc, que é exposto no mesmo Salon d'Automne de 1905, o mesmo que revela a pintura dos chamados "fauves" — Camoin, Derain, Friesz, Marquet, Matisse, Vlaminck e outros. Não menos, ou talvez mais do que estas referências visuais, pesam ainda sobre a composição de Demoiselles as pedras esculpidas, as esculturas ibéricas que ele vê expostas no Musée du Louvre159, as quais — ao menos duas delas — vão dividir com as reproduções do Greco o espaço de seu ateliê, que será ocupado ainda por máscaras e estatuetas trazidas das numerosas colônias francesas espalhadas pelo continente africano, e que ele pode ver, em companhia de Apollinaire, no Musée du Trocadéro160, e que poderão ser compradas nas boutiques dos "brocanteurs" parisienses, para onde rumam Matisse, Derain, Vlaminck, Apollinaire e, é claro, Pablo Picasso.

157 Cf. GOLDING, J.: "les murs de Picasso étaient constellés de reproductions de toiles du Greco"; op. cit. p. 74. 158 A informação é transmitida por Pierre Cabanne: "ele observou igualmente o Banho Turco de Ingres, e seus numerosos estudos preparatórios, quando da retrospectiva deste pintor, no Salão de Outono de 1905 (o dos fauves)", in: O Cubismo. Lisboa: Coleção Cultura Geral, sd. p. 20. 159 Cf. GOLDING, J., op. cit. p. 75. Pierre Cabanne afirma que Picasso vê as tais esculturas ibéricas no final do inverno de 1905-1906. Cf. CABANNE, P. op. cit. p. 16. 160 A informação é de Maureen Murphy: "Katia Samaltanos affirme que le poète [Apollinaire] aurait sans doute accompagné le peintre [Picasso] au musée du Trocadéro, participant ainsi de sa découverte des arts lointains". Cf. MURPHY, Maureen. "Apollinaire et l'Oiseau du Bénin (Picasso): le primitivisme en question", in: Catalogue de l'Exposition Apollinaire: le regard du poète. Paris: Gallimard. Musée d'Orsay et Musée de l'Orangerie, 6 avril-18 juillet, 2016, p. 88. Se consideramos a citação de Murphy ao lado de uma carta de Apollinaire enviada a Picasso, é mesmo possível supor que o artista tenha sido levado às artes africanas por Apollinaire, já que desde o início deste ano de 1906, Apollinaire já falava ao pintor sobre o assunto, ao referir esta bengala com uma "tête de nègre" esculpida: "J'ai acheté une belle canne avec une tête de nègre", escreve Apollinaire a Picasso em carta de 29 maio de 1906. In: Picasso/Apollinaire. Correspondance. É dition de Pierre Caizergues et Hélène Seckel. Paris: Gallimard. Collection Art et Artistes, 1992, p. 41.

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Tête masculine, III siècle av. J.-C. Tête féminine, IV siècle av. J.-C. Musée du Louvre Musée du Louvre

É conhecida a história das estatuetas ibéricas — segundo documentação da época, phéniciennes161, e não ibéricas como refere Golding — que vão parar nas mãos de Picasso, e do papel, se não fundamental, ao menos acidental, que Apollinaire teve no episódio162. Em 1904 Apollinaire assume a função de redator-chefe de um jornaleco intitulado Guide du Rentier: moniteur des petits capitalistes, periódico criado após o fechamento do banco onde era empregado e no qual se ocupava da coluna de política estrangeira. É aí, na redação do Guide du Rentier, que Apollinaire conhece um jovem belga chamado Géry Piéret, de quem se aproxima e quem, anos depois, empregará como secretário provisório. André Billy relata a história:

Le baron d'Ormensan, héros des six derniers contes, répondait au nom de Géry Piéret. Apollinaire l'avait connu au Guide du Rentier et comme ce jeune belge était un peu fou, un peu mythomane, et se flattait d'aventures incroyables, il l'avait pris en amitié, allant jusqu'à l'utiliser comme secrétaire. Apollinaire n'ignorait pourtant pas que Piéret avait volé au musée du Louvre deux statuettes hispano-romaines qu'il avait revendues à X...

161 Cf. DÉCAUDIN & JACQUET, "Il y a soixante-quinze ans La Santé", Que Vlo-Ve?série 2, nº 19 juillet-septembre 1986 pp. 3-26. Neste texto os autores reproduzem alguns artigos que foram publicados na época, a maior parte deles referindo as estatuetas como de origem "phénicienne". 162 As circunstâncias do roubo das estatuetas do Louvre é documentada no citado artigo de Michel Décaudin e Christine Jacquet. Nele, os autores reproduzem um dos muitos artigos que circularam na época em que o episódio ocorreu e que levou à incarceração de Apollinaire na prisão de La Santé. Do artigo do jornal Le Temps, de 10 de setembro de 1911, reproduzo aqui a seguinte passagem, que traz a explicação apresentada por Apollinaire diante do juiz: "Tout ce que je puis vous dire, c'est qu'en effet je connais le voleur des statuettes: c'est un jeune homme d'origine belge. Je l'ai employé comme secrétaire pendant quelques semaines... Mais lorsque j'ai su que c'était un voleur, je l'ai congédié, et c'est moi-même qui me suis entremis pour restituer au Louvre, par l'intermédiaire de Paris-Journal, l'objet de ses larcins... En quoi ai-je commis là quelque faute?". In: DÉCAUDIN & JACQUET, "Il y a soixante-quinze ans La Santé", Que Vlo-Ve?série 2, nº 19 juillet-septembre 1986 pp. 3-26.

75 X... eût mieux fait de suivre les conseils d'Apollinaire et de les restituer au Louvre par l'intermédiaire du Matin sous prétexte de prouver qu'il était facile de voler dans nos musées nationaux. L'autorité de Louis Lumet, ami de Guillaume et inspecteur de Beaux- Arts, eût facilité l'opération, mais X... disait les avoir abîmées pour y découvrir certains secrets de l'art antique et barbare163.

"X...X...", o comprador das estatuetas roubadas do Louvre por Géry é ninguém menos do que Pablo Picasso, que as adquire do aventureiro belga sem conhecer, segundo dizem, a procedência das peças. Estas duas cabeças — reincorporadas ao acervo do museu em 1911, quatro anos após o roubo, e recentemente expostas no Musée de l'Orangerie de Paris164 — são importantes para Picasso no momento em que ele trabalha em suas Demoiselles. Trata-se de duas peças, uma Tête masculine e uma Tête féminine, que pertenciam à seção de antiguidades fenícias do museu. Na primeira versão que Picasso elabora de suas Demoiselles, além das figuras femininas que permancem na tela definitiva, o artista, como escrevem, baseado na Tête d'homme, desenha também duas figuras masculinas, que são posteriormente eliminadas do quadro. A Tête de femme lhe servirá assim de modelo para a composição das duas figuras que ocupam o centro da tela. De acordo com Golding, as estatuetas possuem a mesma "fixité du regard", a mesma "asymétrie et les mêmes machoires épaisses" que as duas figuras centrais de Demoiselles. Argumentando em favor da importância destas estatuetas para a composição de Demoiselles, Golding afirma que foi somente após a aquisição, em março de 1907, que Picasso pôde aprofundar o estudo das "têtes ibériques" para, como diz Billy, "le découvrir les secrets". Seguindo as datas, é possível admitir tal hipótese: Golding e Jeanine Warnod indicam como data do convite feito por Picasso aos amigos o dia 27 de abril de 1907. Golding afirma ainda que é em março de 1907 que Picasso compra as estatuetas de Géry, data coincidente com a indicada por Apollinaire no interrogatório ao qual é submetido em setembro de 1911, pouco antes de ser encarcerado na prisão de La Santé, acusado de cumplicidade no roubo das peças e, ainda, de ser suspeito do então recente roubo da Joconde, caso comentadíssimo no ano de 1911165. No extrato do depoimento

163 APOLLINAIRE, A. Préface d'André Billy. Œuvres poétiques. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1965, p. XXV. 164 A duas "Têtes Ibériques" foram expostas na mostra Apollinaire: le regard du poète, realizada no Musée de l'Orangerie entre os meses de abril e julho de 2016. 165 Cf.: DÉCAUDIN & JAQCUET, op. cit. O caso da prisão de Apollinaire também é comentadíssimo pelos estudiosos de sua obra. Para citar apenas os principais que o referem: ADÉMA, Pierre-Marcel,

76 de Apollinaire reproduzido pelo periódico Gil Blas em 13 de setembro de 1911, lemos que:

En mars 1907, je l'avais recueilli chez moi. Ses conversations et le récit de ses avatars m'intéressaient comme documentation littéraire. C'est sur ces entrefaites qu'il déroba au Louvre les deux têtes phéniciennes représentant des têtes humaines: l'homme à la grande oreille et la femme aux bandeaux166

Como se vê, as datas indicadas pelos autores coincidem com a que é dada por Apollinaire em seu depoimento perante o juiz de instrução do caso. Sendo assim, é mesmo possível acreditar que as modificações que Picasso faz na tela podem ter sido sugeridas pelo estudo das estatuetas que ele tinha como modelo em seu ateliê. Aliás, a sugestão das esculturas ibéricas já se faz ver até mesmo antes de Demoiselles, quando Picasso conclui a execução do Portrait de Gertrude Stein, que após dezenas e dezenas de sessões de pose da modelo, tendo visto as tais estatuetas no Louvre, Picasso aproveita a informação visual destas peças para reformular o desenho original.

Pablo Picasso Portrait de Gertrude Stein 1906

Apollinaire le mal-aimé. André Billy trata do "affaire" no citado prefácio das Œuvres poétiques de Apollinaire e em seu livro L'Époque contemporaine, p. 139. André Parinaud reporta o caso em sua biografia, Apollinaire 1880-1918. Biographie et Relecture p. 286. Laurence Campa, Guillaume Apollinaire. Biographie. op. cit.. André Rouveyre, Apollinaire. Paris: Gallimard, 1945. A recente publicação da Correspondance Générale de Apollinaire apresenta, em seu tomo I, nas páginas 404 a 433, a mais farta documentação sobre o caso. 166 Gil Blas, 13 septembre 1911, citado por: STALLANO, Jacqueline, Une relation encombrante: Géry Pieret, in: "Amis Européen d'Apollinaire", sous la direction de Michel Décaudin - Presses de la Sorbonne Nouvelle - Actes du Seizième Colloque de Stavelot 1er au 3 septembre 1993.

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Sendo a estatuária ibérica, vista e possuída por Picasso, de importância para a composição de Demoiselles, não menos importante são as esculturas e as máscaras africanas que podem ser vistas em Paris no Musée du Trocadéro, nos "brocanteurs" e nos ateliers dos artistas deste início de século XX, que demonstram um interesse crescente pela imaginária167 africana que começa a proliferar nos museus da Europa ocidental168. Em Demoiselles a sugestão das máscaras africanas são evidenciadas pelos rostos das duas figuras que ocupam o canto direito da composição, onde, segundo Michel Leiris, "la forme est créée par la couleur apposée en traits parallèles et non par le clair-obscur"169. Robert Goldwater defende que é "clair qu'à un moment quelconque durant le printemps de 1907, au plus tard, Picasso prit conscience de la sculpture nègre"170. Segundo este autor, Les Demoiselles d'Avignon exibe duas personagens, as duas que figuram no canto direito da tela, que "témoignent toute sa familiarité avec au moins deux styles: les masques de la Côté d'Ivoire et les figures gardiennes de reliques couvertes de cuivre des Bakota du Gabon". É conhecida a anedota em que Picasso171 nega seu conhecimento da estatuária e das máscaras africanas na época em que trabalha nas Demoiselles, mas é difícil sustentar que este quadro não insinue as artes africanas como sendo uma de suas referências visuais. Além disso, como destaca André Parinaud, uma das razões que ligam o pintor a Apollinaire é justamente o interesse partilhado pela estatuária africana: "Cet amour de l'art nègre est évidemment une des valeurs qui l'a rapproché de Pablo Picasso, qu'il a d'ailleurs précédé dans son découverte"172.

167 Proponho o uso deste termo como um equivalente possível ao do imagerie, que é empregado na língua francesa, entre outras acepções, para designar a produção e a circulação de imagens populares desde o século XIX. 168 São várias as obras que indicam esta circulação de estatuetas, máscaras e outros objetos artísticos trazidos de colônias africanas para os museus europeus. Entre as lidas ou consultadas, cito: GOLDWATER, R. Le Primitivisme dans l'Art Moderne. Paris: PUF, 1988. LAUDE, Jean. La Peinture Française (1905-1914) et "l'Art Nègre". Contribution à l'étude des sources du fauvisme et du cubisme. Paris: Éditions Klincksieck, 1968. LEIRIS, Michel & DELANGE, Jacqueline. Afrique Noire. La Création Plastique. Paris: Gallimard, 1967. 169 LEIRIS, Michel & DELANGE, Jacqueline. Afrique Noire. La Création Plastique. Paris: Gallimard, 1967, p.8. 170 GOLDWATER, R. Le Primitivisme dans l'Art Moderne. Paris: PUF, 1988, p. 140. 171 Trata-se de uma enquête sobre a "art nègre" que é reproduzida pela revista Action, nº 3, avril 1920. São convidados a pronunciar suas "Opinions sur l'Art Nègre": Guillaume Apollinaire, Jean Cocteau, Paul Dermée, Juan Gris, Paul Guillaume, , André Salmon, Maurice de Vlaminck e Picasso, que se pronuncia: "L'Art nègre? Connais pas". 172 PARINAUD, A. Apollinaire 1880-1918. Biographie et Relecture. Paris: J. C. Lattès, 1994, p. 301.

78 Apollinaire e a "Art Nègre"

Apollinaire acompanha esse despertar do interesse pela então chamada "art nègre", que ele mesmo coleciona, além de escrever sobre ela. Como visto, na citada passagem do diário em que Apollinaire considera as Demoiselles de Picasso, a insuficiência da linguagem é algo que o autor reconhece já ao ver a tela pela primeira vez. Quando ele encerra sua exposição acerca da quarta dimensão em suas Méditations esthétiques, ele o faz relacionando esta às artes ditas "primitivas":

Ajoutons que cette imagination: la quatrième dimension, n'a été que la manifestation des aspirations, des inquiétudes d'un grand nombre de jeunes artistes regardant les sculptures égyptiennes, nègres et océanniennes, méditant les ouvrages de science, attendant un art sublime, et, qu'on n'attache plus aujourd'hui à cette expression utopique, qu'il fallait noter et expliquer, qu'un intérêt en quelque sorte historique173.

Abandonando a partir daqui o termo "quatrième dimension", mas sem abrir mão da dimensão imaginária que ele pode sugerir aos pintores, Apollinaire indica que a ideia de "quatrième dimension" seria uma espécie de sugestão visual que os artistas da época teriam encontrado nestas artes ditas "primitivas", "nègres" ou "océanniennes", que ocuparam um lugar destacado na reflexão artística desta geração de 1905-1910. É conhecido o interesse que Apollinaire tem pelas artes produzidas pelos povos não- europeus, sobretudo as vindas de colonias francesas na África — Guiné, Congo e Costa do Marfim sobretudo — trazidas por "marins ou explorateurs" ou as da Oceania, que são divulgadas no meio artístico parisiense principalmente através da obra esculpida, gravada e pintada de Paul Gauguin. É possível que a proximidade do autor com a chamada "art nègre" tenha se dado por meio do contato que ele estabelece, muito cedo, com os pintores Maurice de Vlaminck e André Derain, os quais Apollinaire conhece entre 1903-1904 — lembrando que ele se instala em Paris em 1900 e se ausenta por um ano entre 1901-1902, quando mora na Alemanha — em uma de suas visitas à Mme. Angelica de Kostrowtsky, sua mãe, que mora em uma "villa" no Vésinet, não distante de Chatou, onde os dois pintores costumavam trabalhar na época. Na versão de Vlaminck: "Je connus Guillaume Apollinaire aux environs de 1903. La mère de Guillaume demeurait à Chatou en face de

173 APOLLINAIRE, G. Méditations, p. 52.

79 chez mon père. La maison appartenait à la catégorie des villas somptueuses: murs et grille, pelouses et grands arbres..."174. De acordo com André Billy, por esta época, Vlaminck e Derain acabavam de descobrir a "art nègre", e foi por meio deles que, segundo o mesmo autor, "la peinture moderne et l'art nègre"175 entraram na vida de Apollinaire. É possível, pois o mesmo Vlaminck relembra em seu livro de memórias, Tournant Dangereux, que adquiriu duas estatuetas encontradas por acaso entre "deux bouteilles de picon et de vermouth", na prateleira de um bistrô, segundo Robert Goldwater176, por volta de 1905. Em todo caso, por estes anos Apollinaire já conhecia Vlaminck e Derain e a correspondência que ele manteve com os dois artistas evidencia que os três já eram muito próximos. Ele mesmo, ao retraçar em artigo os "Commencements du cubisme"177, relembra o episódio que liga Vlaminck às artes africanas:

Toujours à l'affût de curiosités esthétiques, de Vlaminck avait acheté chez les brocanteurs, durant ses randonnées à travers les villages de bords de la Seine, des sculptures, des masques, fétiches taillés dans le bois par des artistes nègres de l'Afrique française et rapportés par des marins ou des explorateurs. Sans doute trouvait- il dans ces œuvres grotesques et grossièrement mystiques des analogies avec les peintures, les gravures et les sculptures que Gauguin avait éxecutées en s'inspirant soit des calvaires bretons, soit des sculptures sauvage de l'Océanie où il s'était retiré pour fuir de la civilisation européenne178.

Na lembrança de Vlaminck179, muitos destes passeios pelas pequenas cidades às margens do Seine, que Apollinaire cita no trecho destacado, foram feitos em companhia de Guillaume Apollinaire; por isso, cabe supor que nestas caminhadas ou em outros encontros as artes africanas era um assunto discutido, ao menos partilhado, como no

174 VLAMINCK, Maurice de. "Guillaume Apollinaire vu par Maurice de Vlaminck", in: Comœdia, hebdomadaire des spectacles, des lettres et des arts, nouvelle série, n° 20, samedi 1er novembre 1941. Portrait de Guillaume Apollinaire par Maurice de Vlaminck, 1903. 175 Cf. André BILLY: "aux environs du Vésinet, à Chatou, il [Apollinaire] entra en relation d'amitié avec Derain et Vlaminck, premiers adeptes du "fauvisme", et qui venait de découvrir l'art nègre. C'est ainsi que la peinture moderne et l'art nègre entrèrent dans sa vie". In: Préface, op. cit. XVII. 176 GOLDWATER, R. Le Primitivisme dans l'Art Moderne. Paris: PUF, 1988, p. 93. 177 APOLLINAIRE, Guillaume, "Art et Curiosité. Les Commencements du Cubisme", Les Temps, 14 octobre 1912. In: Chroniques d'art, p. 340-344. 178 Idem. 179 Segundo o pintor: "Guillaume aimait la marche, les promenades sans but au cours desquelles les moindres sujets lui étaient autant de motifs à lâcher la bride à son imagination, à son lyrisme, et, durant des après-midi, nous errions à l’aventure, sur les bords de la Seine, de Chatou à Bougival, entrant dans les guinguettes, au bal des canotiers ou à La Grenouillière". VLAMINCK, op. cit.

80 caso referido por André Parinaud, que aproxima Apollinaire e Picasso180. Vlaminck não fornece muitos detalhes sobre o que nessas artes ditas "nègres" teria contribuído para sua pintura, e, entre outros, segundo o historiador Jean Laude, a "art nègre" teria servido a pintores como Vlaminck e Derain como uma "source" visual, e "source exotique", que lhes forneceria a sugestão de um modo de figuração muito distinto do que se via nas pinturas que eram exibidas nas exposições e salões neste começo de século em Paris. Para o autor: "Il est peu d'œuvres de Vlaminck où se manifeste, dans l'ordre formel, l'émotion bouleversante que le peintre dit avoir reçu lorsqu'il découvrit l'art nègre et qu'en de nombreux écrits ou témoignages, il tient à rappeler"181. É compreensível que para Vlaminck as artes africanas pudessem representar um valor distinto a ser incorporado a seu léxico visual. Sabe-se, por suas memórias, que ele gostava de expor publicamente sua indiferença pela "arte dos museus"182, que ele preferia encontrar na imaginária popular, divulgada em revistas e jornais ilustrados ao longo do século XIX183 e início do XX — como Le Charivari, La Plume ou L'Ymagier — pela arte dos cartazes — a de Toulouse-Lautrec, a de Steilen, a de Daumier — uma referência distinta para a elaboração de sua pintura. Sendo assim, não se estranha o acréscimo a este emaranhado de referências visuais a referência aportada pelas artes ditas africanas, mesmo que como "source exotique". No que concerne a Derain, Laude afirma que as artes africanas foram objeto de observação do artista por um período "assez courte" e que elas lhe teriam servido mais como uma fonte de "nouveauté", mais "par son caractère d'étrangeté provocante" que pela "nature des problèmes qui, plus tard, selon eux, y étaient posés et résolus"184. Assim, não estaria ele muito distante da relação que seu amigo Vlaminck teria tido com

180 Cf. PARINAUD, A. op. cit. p. 77. 181 LAUDE, Jean. La Peinture Française (1905-1914) et "l'Art Nègre". Contribution à l'étude des sources du fauvisme et du cubisme. Paris: Éditions Klincksieck, 1968, pp. 14-15. 182 Em diversas passagens de Tournant Dangereux, Maurice de Vlaminck expõe seu ponto de vista em relação aos museus. Por exemplo: "Quand j'écris ou dis: Je ne vais jamais au musée, je mens. Je mens exactement pour les mêmes raisons qui me font dire: Je ne vais jamais au bordel!"; " Je suis allé dans les musées comme je suis allé au bordel, mais je ne suis jamais "monté", (P. 187); Alors je continue à dire: Je ne connais pas les musées. Vais-je faire des conférences pour expliquer que les musées sont faits pour montrer aux générations qui viennent ce dont ils doivent se garder afin de ne pas recommencer la même chose? (P.188); La fréquentation des musées abâtardit la personnalité comme la fréquentation des curés fait perdre la foi. La science tue l'instinct. On n'apprend pas à être aussi bêtement génial qu', même à . (P. 218). Cf. VLAMINCK, Tournant Dangereux, op. cit. 183 Considere-se por exemplo os trabalhos de Champfleury acerca da circulação das "imageries" populares [Histoire de l'Imagerie populaire, 1869, ou Musée Secret. Histoire de la Caricature 1867-1888], a difusão da caricatura nas publicações ilustradas, jornais e revistas; a circulação das "images d'Épinal", referidas por J.K. Huysmans em seu L'Art Moderne [1902, p. 3] ou a divulgação destas imagens que é feita por Remy de Gourmont e Alfred Jarry na revista L'Ymagier, dirigida por ambos entre os anos de 1894 e 1896. 184 LAUDE, op. cit. pp. 21-22.

81 as artes africanas. Mas Derain mesmo atribui importância às artes africanas, como mostra a carta que ele envia de Londres ao amigo Vlaminck na qual afirma ter encontrado na estatuária africana um "étonnement terriblement expressive"185 que modifica sua visão sobre a pintura. Segundo Goldwater, Derain "fut frappé en particulier par le masque qu'il acheta et accrocha dans son atelier de la rue de Tourlaque"186, e é aí mesmo, no ateliê da rue Tourlaque que, segundo o mesmo autor, Matisse e Picasso viram pela primeira vez e "furent impressionnés par l'art africain". Esta versão de Goldwater coincide com a que é dada por Michel Leiris, que assegura que foi no ateliê de Derain que "les masques tomba sous les yeux de Matisse et de Picasso, qui en furent bouleversés"187. Na visão de Apollinaire, as artes africanas teriam influenciado mais a pintura de Derain do que a de Vlaminck, que teria encontrado nelas apenas "analogies avec les peintures, les gravures et les sculptures" de Paul Gauguin. No mesmo texto sobre os "Commencements du cubisme", Apollinaire escreve, a propósito de Derain, que as artes africanas "causèrent une profonde impression" sobre o artista. Diferentemente de Vlaminck, Derain teria visto nessa arte não analogias com a arte de Gauguin, mas uma outra possibilidade de "reproduire la figure humaine en n'utilisant aucun élément emprunté à la vision directe". Estas diferenças de interpretação, de recepção das artes africanas não opõem, na visão de Apollinaire, um e outro artista, pois são entendidas como complementares na medida em que abrem caminho para pesquisas de outros pintores, como os citados Matisse e Picasso, que após verem as máscaras de Derain "furent bouleversés", para nos servirmos de uma expressão de Leiris. As artes africanas comecem a circular e a se popularizar no meio artístico parisiense a partir dos anos de 1905-1910, e logo Apollinaire percebe sua importância para a renovação do campo plástico no qual se insere a pintura dos artistas que ele defende. De fato, a crítica de arte do poeta evidencia a percepção que ele tem sobre a importância que as artes africanas representam tanto na visão dos artistas quanto na concepção da pintura que eles produzem na época. Indícios dela podem ser encontrados em dois textos que ele publica já em 1907 a propósito da pintura de Matisse. No primeiro deles, escrito a partir de uma entrevista concedida a ele pelo pintor, Apollinaire destaca o interesse de Matisse pelas mais "différentes pensées" sobre as artes plásticas e,

185 Cf. DERAIN, André. Lettres à Vlaminck. Paris: Flammarion, 1955, p. 197. 186 GOLDWATER, R. Op. cit. p. 94. 187 LEIRIS, Michel & DELANGE, Jacqueline. Afrique Noire. La Création Plastique. Paris: Gallimard, 1967, p.8.

82 sublinhando o caráter material de seu modo de conceber a pintura, e ainda o de sua preocupação em conhecer novas técnicas, escreve que Matisse se interessa "par conséquent par toutes les écritures plastiques: les Égyptiens hiératiques, les Grecs affinés, les Cambodgiens voluptueux, les productions des anciens péruviens, les statuetttes nègres africains...", e conclui que: "c'est en confrontant sans cesse son art avec les autres conceptions artistiques [...] que Henri Matisse [...] a pris cette grandeur, cette fierté assurée qui le distingue"188. São as diversas informações, o trabalho de comparação entre as diferentes formas de se conceber as artes, esse conhecimento de "toutes les écritures plastiques", aliado a uma técnica que ele domina como poucos, que lhe possibilita produzir uma obra que se singulariza no contexto da produção artística francesa do início do século XX. Por assim dizer, o que leva Matisse a se tornar um Matisse. No segundo artigo que Apollinaire escreve sobre este mesmo pintor, também publicado no ano de 1907, ele afirma que Matisse "aime à s'entourer d'œuvres d'art anciennnes et modernes, d'étoffes précieuses, et de ces sculptures où les nègres de Guinée, du Sénégal et du Gabon, ont figuré avec une rare pureté unique leurs passions les plus paniques"189, indicando, deste modo, como é importante para o pintor estar próximo destas referências visuais que lhe possibilitam pensar a sua arte, a arte que deseja produzir, distante dos ensinamentos de seu velho mestre Moreau ou das imagens exibidas nas longas salas do museu do Louvre nas quais abundam lições que ele já conhece. Como na passagem do texto em que Apollinaire trata de Derain e de sua relação com as artes africanas, destacando que nelas o artista vê a possibilidade de "reproduire la figure humaine en n'utilisant aucun élément emprunté à la vision directe", há nesses dois trechos sobre a pintura de Matisse uma forte evidência que liga as artes africanas às ideias que Apollinaire vinha elaborando desde os textos iniciais que ele publica sobre as artes, como no artigo de 1903, Des Faux, no qual destaca a arte de contrafação do "faussaire de Honnef"190 e que o coloca no caminho de uma reflexão sobre a pintura que o conduzirá a assumir de vez esta convicção de que a arte não deve ser guiada pelo princípio de imitação do real, que fixa um modo de olhar, de pensar e de se fazer pintura, que o Louvre, por exemplo, exibe à exaustão. Vimos que quando Apollinaire

188 APOLLINAIRE, G. "Henri Matisse", Œuvres complètes en prose T. II, p. 100-103. 189 APOLLINAIRE, G. "Médaillon. Un Fauve", Œuvres complètes en prose T. II, p. 103. 190 Ver pp. 19-21 deste capítulo.

83 abandona o conceito de "quatrième dimension" ele sugere que os artistas teriam encontrado nas artes africanas o mesmo poder de sugestão plástica, visual, a mesma possibilidade de recurso à imaginação que a ideia de "quatrième dimension" representava na época. Quando o autor afirma que as estatuetas e máscaras africanas "causèrent une profonde impression" sobre Derain, quando ele escreve que Matisse se cerca de esculturas da Guiné, do Senegal e do Gabão, esculturas nas quais encontra uma "pureté unique", ele está no mesmo campo de conceitos que vinha expondo nos textos que compõem todo o início desta primeira parte de suas Méditations esthétiques. A importância da arte africana é vista por Apollinaire como uma possibilidade de destravar, ou ao menos incentivar, a imaginação dos artistas, na busca de novos modos, distantes dos das pinturas que se prendem à ideia de uma arte fixa no princípio da representação dos objetos tirados da observação direta. É possível afirmar que o escritor propõe aos artistas não se aterem à ideia de reproduzir a natureza, como a que é empregada no ensino das academias com suas perspectivas, mas que inventem, valendo- se de outros modos figuração. Apollinaire não formula suas concepções sobre a importância das artes africanas para a pintura da época baseado apenas na relação e no diálogo que tem com os artistas. Aos poucos, é possível encontrar vestígios, pistas que ele deixa em seus textos, que nos autorizam a pensar que ele pode ter tido acesso também a referências textuais. Quando lemos seus escritos sobre as artes africanas aproximando-as das egípcias ou gregas, ou também da arte khmer dos cambodjianos; quando o vemos propor que os artistas poderiam encontrar nas artes africanas novas possibilidades de figuração, como quando escreve sobre Derain, afirmando que este pintor veria nas artes africanas esta capacidade de "reproduire la figure humaine en n'utilisant aucun élément emprunté à la vision directe" ou que Matisse visse nestes objetos uma "pureté unique", ele nos dá três indicações que nos permitem pensar que ele pode ter tido conhecimento de uma referência teórica importante publicada em 1901, o estudo de Maurice Delafosse. Esse etnólogo e africanista francês, colaborador do Musée du Trocadéro de Paris, coloca em circulação seu estudo "Sur les traces probables de civilisation égyptienne et d'hommes de race blanche à la Côte d'Ivoire"191, no início do século XX. A consulta desta obra nos premite supor que parte das ideias de que Apollinaire se vale para ressaltar a importância das artes africanas para uma nova concepção da pintura, encontra aí sua

191 DELAFOSSE, Maurice. Sur des traces probables de civilisation Égyptienne et d'hommes de race blanche à la Côte d'Ivoire. Paris: Masson et Cie Éditeurs, 1901.

84 possível fonte. Neste estudo, Delafosse escreve logo nas primeiras páginas que "on ne peut s'empêcher d'être frappé des traits de ressemblance qui existent entre la sculpture égyptienne et la scultpure baoulé..."192 e explica pouco mais adiante que "l'analogie entre une masque représentant le dieu Gou que j'ai trouvé dans le haut Baoulé, et certaines sculptures égyptiennes est encore plus frappante", segundo ele, "non seulement par le fini du détail", mas "par la pureté et la régularité des lignes". Nesta passagem há duas afirmações que indiciam o conhecimento de Apollinaire da obra de Delaffosse: a aproximação da estatuária egípcia das africanas, e a ideia da pureza e regularidade das linhas. Mas não só. Delafosse escreve: "Ce n'est plus seulement la copie naturaliste d'un modèle [...] ni la représentation d'un type [...]; c'est plus: c'est l'expression d'une idée, la force tranquille et régulière de Gou, l'organisateur du monde", e ele continua, "ce masque semble exprimer l'idéalisation de la figure humaine", "le sculpteur au reste n'a pas cherché dans ce morceau à faire du réalisme: d'abord il est certain que le dessin général de la figure est un produit de son imagination...". Nessa passagem na qual o etnólogo aglutina várias proposições há várias que são próximas aos escritos sobre as artes publicados por Apollinaire, e não só sobre as artes africanas: 1- não a cópia naturalista de um modelo nem a representação de um tipo; 2 - a expressão de uma ideia, que oporíamos aqui à expressão ou representação do visto - e nesta direção não podemos deixar de lembrar da formulação que Apollinaire apresenta sobre a pintura nova que, segundo ele, se baseia numa "réalité de conception" e não na "réalité de la vision"; 3 - a idealização da figura humana, portanto, a produção da imagem a partir da imaginação. Estas ideias que nos levam a pensar em novos modos possíveis de figuração, que em Delafosse é sugerida pelas artes africanas, é repisada por Apollinaire ao longo dos anos em que ele defende a importância destas artes para os pintores franceses. Segundo Apollinaire as artes africanas são importantes, como se destacou, para Picasso; Vlaminck, Derain, Matisse, mas também para Alexandre Archipenko. Em 1914, Apollinaire escreve para o catálogo da exposição do artista nascido em Kiev na galeria Der Sturm de Berlim. Logo no início do texto lê-se que o artista que veio do então império Russo, hoje Ucrânia, "recherche, avant tout, la pureté des formes", e que ele busca "trouver les formes plus abstraites, les plus symboliques". O

192 Idem p. 10.

85 autor chama a atenção para o fato de que a novidade da arte de Archipenko não vem da das artes produzidas na Europa, estas que são exibidas no Louvre e ensinadas nas academias e ateliers de artistas consagrados, mas sim das artes que Apollinaire chama de "arts exotiques", como as orientais, no Musée Guimet ou as da África e da Oceania, no Musée du Trocadéro de Paris.

"Il fut nourri de sculpture grecque. Mais c'est la sculpture égyptienne, plus pure et plus mystique qui lui révéla la plastique et le style et qui eut sur lui la plus forte influence" [...] "les idoles délicates mais tout de même repoussantes des nègres africains, les fétiches de l'arbre et de la maison, la multitude de dieux enfin qui reflétaient symboliquement les phénomènes de la nature attiraient son imagination". 193

E adiante, no texto, o crítico escreve que Archipenko "ne se contentait pas de voir dans la sculpture un art de reproduction...", ponto central, como tenho destacado, da estética de Apollinaire. Relativamente à proximidade das ideias do poeta com as de Delafosse, que de fato existe, pode ser apenas incidental, pois Apollinaire parece tê-las elaborado principalmente a partir de suas visitas ao Trocadéro, de suas conversas com artistas e, claro, de suas procuras nos bricabraques de Paris. Apollinaire conhecia de perto a imaginária africana, é o que se constata no referido texto sobre Archipenko:

Il vécut au pied des autels de pierre, des statues de dieux et des sculptures de fétiches qui leur sont dédiées en offrandes: les dieux de la guerre et du semen avec des organes génitaux énormes, un visage féminin délicat offert par un amoureux malheureux au dieu de l'amour, une antique aux yeux creusés, surprise dans une pose sensuelle, les seins pointus et lourds, et de nombreuses autres divinités194.

As esculturas de fetiche, como o deus da guerra e as demais estátuas referidas, Apollinaire pode tê-las visto no Musée du Trocadéro, instituição que já em 1882 monta,

193 APOLLINAIRE, Guillaume. "Alexandre Archipenko", in: Œuvres en prose complètes, T. II, op. cit. p. 656-660. 194 APOLLINAIRE, Guillaume. "Alexandre Archipenko", op. cit. Maureen Murphy afirma que os deuses "du semen avec des organes génitaux énormes" e as figuras femininas de "seins pointus" à que alude Apollinaire referem-se, os primeiros, a "une autre représentation du dieu Gou", conservada no musée Dapper, e as segundas, evocam "certaines sculptures du Congo". Cf. MURPHY, Maureen. op. cit., p. 89.

86 a partir de um projeto de Eugène Violet Le Duc, uma secção de escultura comparada195, na qual, entre outras, podiam ser vistas esculturas da África e da Oceania. Este museu, de importância para o autor, recebe ao menos por duas vezes sua atenção em artigos. Ao escrever "Sur les Musées", em 1909, o autor comenta o descaso com o qual os museus parisenses são tratados pela administração pública e inclui o Trocadéro quando escreve que "Le Musée du Trocadéro ne devient pas insuffisant, ses collections n'augmentent pas, elles diminuent. Ce musée devient trop vaste. Les visiteurs y sont rares, les gardiens encore plus et les jours où on peut le visiter sont moins nombreux..."196. Apesar de dar destaque para a importância da arte “primitiva” para os artistas, pois eles "a longtemps déjà qu'un grand nombre d'artistes ne cachent plus leur admiration pour les sculpteurs inconnus du Congo", Apollinaire escreve esse artigo tratando principalmente do seu aspecto "étnographique". Em 1912, no Paris-Journal, quando escreve "Exotisme et Etnographie", ao contrário, o autor refere esse museu destacanto o caráter artístico das obras que ali são expostas: "Le musée ethnographique du Trocadéro méritait d'être développé et non pas seulement au point de vue ethnographique, mais surtout au point de vue de l'art"197. A preocupação em destacar a "arte" das "arts nègres", que são vistas na época mais pelo viés da curiosidade etnológica pelo público em geral, é evidenciada na passagem em que, numa superlativa afirmação, ele escreve: "il n'y a pas de raison pour qu'on ne fonde pas un grand musée d'art exotique qui serait à cet art ce que le Louvre est à l'art européen". Ao expor a estatuária africana como arte, Apollinaire não esconde suas preferências relativamente às obras expostas no Trocadéro, aliás, preferência, no singular, que ele mostra quando trata do deus da guerra, talvez o mesmo que ele refira no texto sobre Archipenko, sobre o qual escreve que é, "sans aucun doute, l'objet d'art le plus imprévu et un des plus gracieux qu'il y ait à Paris". De acordo com a descrição de Apollinaire, trata-se de uma grande estátua em ferro, na qual ele vê justamente um

195 A propósito, o texto impresso no Catalogue Général du Musée de Sculpture Comparée du Palais du Trocadéro, publicado em 1910, nos faz saber que: "Aujourd'hui, les collections ont pour objet de présenter aux artistes et aux historiens de l'art, les meilleurs types de chaque période et de chaque école provinciale, comparées entre eux ainsi que les œuvres étrangères dont ils procèdent ou qui en procèdent", in: Catalogue Général du Musée de Sculpture Comparée du Palais du Trocadéro, par ENLART, Camille & ROUSSEL, Jules. Paris: Libraire Alphonse Picard et Fils, MCMX, pp. VI-VII. 196 APOLLINAIRE, Guillaume. "Sur les Musées", in: Œuvres complètes en prose, T. II, p. 123. 197 APOLLINAIRE, Guillaume. "Exotisme et Ethnographie", in: Œuvres complètes en prose, T. II, p. 475.

87 exemplo do que já destacava quando atribuía à estatuária africana este papel de ser uma referência possível para os artistas pensarem em novos modos de figuração:

La figure humaine a certainement inspiré cette œuvre singulière. Et toutefois, aucun des éléments qui la composent, invention cocasse et profonde — ainsi qu'un page de Rabelais —, ne ressemble à un détail de corps humain. L'artiste nègre était évidemment un créateur198.

Apollinaire não se refere aqui a qualquer estátua. De acordo com Maureen Murphy, a estátua à qual ele faz referência neste texto é Gou199, "non seulement identifiable" como o é também o seu autor, Akati Ekplékendo. Segundo a autora, se não é Apollinaire o primeiro a escrever sobre as qualidades artísticas desta estátua que pertencia ao Trocadéro desde o final do século XIX, ao menos desde 1894, quando a peça é incorporada à coleção do museu, é ele quem a inscreve "dans une perspective inédite l'intégrant à ses réflexions esthétiques"200.

198 Idem, p. 474. 199 A estátua do deus da guerra, Gou, ou Gu, de 1,65 cm de altura, uma "pièce emblématique" do museu, segundo Serge Tornay e Joseph Adande, que após o fechamento do Trocadéro foi transferida para o Musée de l'Homme e, em março de 2000, para o Louvre, e que se encontra hoje exposta no Musée du Quai de Branly de Paris. ADANDE, Joseph et TORNAY, Serge. "Gu: un dieu en armes". Musée National d'Histoire Naturelle de Paris, 2008. 200 MURPHY, Maureen. "Apollinaire et l'Oiseau du Bénin (Picasso): le primitivisme en question", op. cit. p. 88. É esta mesma autora quem nos explica, em outro texto, que a estátua do deus Gou referida no texto de Apollinaire só passará a ser vista como "œuvre d'art" a partir de sua exposição em 1930 na galeria do teatro Pigalle, quando será exibida na L'Exposition d'Art Africain et Océanien organizada nesta galeria. Murphy mostra que ainda nestes anos de 1930 as obras produzidas na África e na Oceania encontravam dificuldades em serem entendidas como "arte". Um exemplo disso ela nos dá ao citar um artigo publicado na revista de Christian Zervos, Les Cahiers d'Art, sobre a mostra da galeria do teatro Pigalle, no qual lemos: "L'exposition [...] a irrité la pudeur de tous les gardiens de la morale. Nos lecteurs savent, par les nombreuses productions que nous avons publiées à différents reprises, que les artistes africains et océaniens [..,] ne ridiculisent jamais leurs sculptures en couvrant le sexe de la fameuse feuille de vigne [...]. Nos bons moralistes n'ont pas voulu tenir compte de ces considérations. Pour eux, certaines parmi les sculptures africaines et océaniennes n'étaient qu'obscènes". Murphy acrescenta ainda que até mesmo o proprietário da galeria, o barão de Rothschild, teria ameaçado de retirar sete esculturas expostas sob este mesmo pretexto e que só foi dissuadido após os organizadores da mostra, entre os quais Tristan Tzara, recorrerem a um especialista para atestar que as obras que ali estavam tinham um "caractère purement artistique". In: MURPHY, Maureen. "Du champ de bataille au musée: les tribulations d'une sculpture fon", dans Thierry Dufrêne et Anne-Christine Taylor, Cannibalismes disciplinaires, quand l'histoire de l'art et l'anthropologie se rencontrent. Paris, musée du quai Branly, 2010, p. 347-359.

88

Statue de Gou au Musée du Trocadéro 1895 Fonte: Catalogue de l'Expostion Apollinaire. Le Regard du Poète Paris, 2016

Nos anos que seguem os das publicações dos artigos em que trata do Musée du Trocadéro, Apollinaire continua publicando outros textos nos quais mantém ativa essa sua posição de defesa acerca da importância das artes africanas como uma nova forma de referência visual para as artes europeias, o que mostra não só a relevância que Apollinaire atribuía a estas artes mas também a importância de seu próprio papel como divulgador, como difusor destas novas informações visuais. Um destes artigos é publicado na coluna que Apollinaire assina no Mercure de France: La Vie Anecdotique. Como nos demais, neste artigo o autor destaca o interesse crescente que as artes africanas despertavam entre o público parisiense, mesmo que de um ponto de vista etnológico, "éxotique", mas sobretudo entre os artistas e os "amateurs d'art", que começavam a ver estas obras de um "point de vue purement artistique". Apollinaire indica a inexistência na época de um aparato crítico capaz de possibilitar a compreensão da significação destes objetos artísticos, mas nos dá a entender que a apreciação dos mesmos não exigiria esta base:

Celui qui entreprendrait de telles recherches esthétiques ne pourrait s’appuyer sur aucun écrit, aucune inscription ancienne, et sauf quelques précisions et surtout quelques

89 hypothèses anthropologiques sur la destination religieuse des idoles en question rien ne vient éclairer le mystère de leur anonymat amère et il faudra longtemps encore se contenter de n’éprouver vis-à-vis des idoles nègres que des sensations esthétiques et d’évocation poétique201.

E é, no caso de Apollinaire, exatamente isso de que se trata: de experimentar estas "sensations esthétiques", de aproveitar, sobretudo no caso dos artistas, esta "évocation poétique" produzida pelo ato de olhar as máscaras e as esculturas africanas que podem lhes sugerir novos modos de figuração. Mais ainda, ele destaca esse novo como sendo um novo modelo estético: "Le but de cette nouvelle curiosité a été avant tout l'agrément et ensuite le désir légitime de grouper ne nouveaux modèles esthétiques". Apollinaire exemplifica seu argumento lembrando-se de seu amigo, o pintor e coleciondaor de "fétiches" africanos, Vlaminck, que segundo ele: "a-t-il eu le mérite d'être le premier à recueillir une série d'exemplaires typiques de la culture fétichiste, en se souciant, non pas des caractères ethniques des statues nègres, mais de leur beauté qui retient [...] l'attention de nombreux artistes".

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Apollinaire incentiva e acompanha o crescente interesse que os artistas têm pelas artes vindas das colônias francesas na África, mas também incentiva e vê a importância que essa arte desperta em colecionadores e marchands. Paul Guillaume é, possivelmente, o exemplo mais próximo de Apollinaire, mesmo porque, quando o inexperiente jovem começa a procurar o seu lugar de negócio das artes em Paris, é Apollinaire que lhe servirá de guia, orientando, por vezes, Paul na direção das então chamadas artes negras. Apollinaire conhece Paul Guillaume em 1911, quando este jovem vendedor de pneus e interessado pelas esculturas africanas contava apenas 20 anos202. Ao considerar a correspondência iniciada entre os dois no começo de 1913 é possível afirmar que é a

201 APOLLINAIRE, Guillaume. "Mélanophilie ou Mélanomanie", in: Anecdotiques, pp. 234-237. 202 "Le jeune homme qui a placé la sculpture en vitrine est un employé du garage [aussi fabricant et détaillant de pneus]. Passionné d'arts exotiques d'art nègre" en particulier il a vingt ans et s'appelle Paul Guillaume. Débrouillard, astucieux, il se procure et revend des objets qu'il chine chez les marchands de curiosités ou fait venir avec les expéditions de caoutchouc en provenance des colonies". In: APOLLINAIRE, Guillaume. Guillaume Apollinaire - Paul Guillaume. Correspondance 1913-1918. Édition de Peter Read. Introduction de Laurence Campa et Peter Read. Pairs: Gallimard/ Musée de l'Orangerie, 2016, p. 8.

90 partir daí que os Guillaumes se aproximam para discutir pintura moderna francesa e artes africanas, assuntos que interessam a ambos. Em 1914, os dois continuam em diálogo e Paul confidencia a Apollinaire o seu projeto de ingressar no mercado parisiense de artes: "Je crois vous avoir parlé de mon projet de créer un magasin de tableaux modernes - projet d'ailleurs encouragé par vous"203, esclarece Guillaume, o mais jovem. Paul parece ter pressa, pois seguidamente ao anúncio de seu projeto ele comunica a Apollinaire na mesma carta que "voici tout près de la réalisation. Je vais ouvrir dans quelques jours ma petite galerie Rue de Miromesnil, tout près de la Place Beauveau". Paul Guillaume abre sua pequena galeria no início desse ano de 1914. Já em março deste ano, ele escreve ao autor comunicando ter recebido as quatro litografias que ele lhe enviara para serem vendidas: três de Toulouse Lautrec e uma de Edgar Degas. Ao longo deste ano, Apollinaire recomenda pintores que possivelmente poderiam ser representados pela galeria de Paul, como os russos Natalia Gontcharova e Mikhail Larionov, o norte-americano Morgan Russel, todos eles instalados em Paris, e ainda Giorgio De Chirico e Henri Rousseau, o Douanier Rousseau. No final de 1914, Apollinaire, engajado no exército francês, parte para Nîmes para receber treinamento militar e daí seguir para o front em abril de 1915. Mas, mesmo estando na guerra, o poeta-soldado não deixa de lado a batalha iniciada no campo das artes e, igualmente empenhado, mantém sua colaboração com Paul Guillaume, como indica a carta em que escreve ao galerista recomendando: "Tâchez de maintenir la galerie en bon état, cher ami, j'en aurai besoin après la guerre. Me volià passé tout à fait au rang d'homme cible dans le portrait de Chirico"204. Sabe-se, pela correspondência, que é Apollinaire quem indica De Chirico ao jovem galerista Paul Guillaume, e que o retrato "au rang d'homme cible" é nenhum outro que o Portrait prémonitoire de Guillaume Apollinaire, pintado por De Chirico em 1914.

203 Idem, p. 25. 204 Idem.

91

Giorgio De Chirico Portrait prémonitoire de Guillaume Apollinaire 1914

Nesta mesma carta enviada do front, Apollinaire faz outras recomendações de pintores a serem adquiridos e revendidos por Paul Guillaume: "Achetez des tableaux bon marché, Rousseau, Picasso, Laurencin, Bonnard, Cézanne, etc etc"205. Mas, antes mesmo da sugestão desses artistas, Apollinaire apresenta a Paul Guillaume, no início de 1914, um artista mexicano chamado Marius De Zayas que também era colaborador do galerista novayorkino Alfred Stieglietz, todos eles interessados pelas artes africanas. Consta a informação de que De Zayas, ao voltar para Nova York no final de 1914, leva com ele "une malle remplie de quinze sculptures du Gabon et de Côté d'Ivoire"206 que são fornecidas por Paul Guillaume para que fossem revendidas na galeria de Stieglitz, a 291, de Nova York. Em março de 1916 Apollinaire é ferido no campo de batalha e segue para Paris para ser tratado. Poucos meses depois de seu retorno à capital francesa, retoma sua atividade de crítico de arte e seu diálogo e colaboração com Paul Guillaume, a quem auxilia na organização de exposições de artes africanas e francesas na galeria da rue de Miromesnil. Em setembro de 1916, Paul escreve a Apollinaire dizendo: "Je voudrais faire chez moi ces jours prochains l'exposition d'une pièce (seulement) de sculpture

205 Idem. 206 De acordo com Peter Read e Laurence Campa, estas obras são utilizadas na montagem da exposição "African Savage Art", "première exposition exclusivement consacrée à des objets africains exposés en tant qu'œuvres d'art", na mesma galeria de Stieglitz, de 3 de novembro ao 8 de dezembro de 1914. Idem p. 45.

92 nègre [...]. Vous plairait-il d'écrire une cinquantaine de lignes sur l'art nègre - que je ferais imprimer en fait de catalogue pour cette occasion?"207. Após organizar uma exposição de Derain, também com o auxílio de Apollinaire, Paul organiza outra exposição de obras africanas com a colaboração do poeta:

"J'expose rue de Huyghens dimanche 25 bonnes pièces nègres. Voudriez-vous m'écrire 15/20 lignes tout de suite sur les nègres, que j'irai chercher vers 3h/3h 1/4. C'est à l'Expo où il y a Picasso et Matisse - je joindrai votre petite étude au catalogue [...]"208.

Apollinaire escreve as linhas reclamadas para o catálogo desta exposição que, além de juntar Matisse e Picasso — sabe-se da "rivalidade" na época entre os dois pintores —, reunia também Kisling, Modigliani, Ortiz de Zarate e mais 25 peças, máscaras e esculturas "nègres", as quais são apresentadas pelo autor em cinco parágrafos nos quais estão sintetizadas suas principais ideias acerca destas artes:

C'est la première fois que l'on expose à Paris, non pour les caractères ethniques ou archéologiques, mais pour leur caractère artistique, des sculptures nègres, fétiches d'Afrique ou d'Océanie. Les arts de ces parties du monde ont joué, ces dernières années, un rôle important dans le développement de l'esthétique en France. La foule les connaît peu, le Musée du Trocadéro étant exclusivement ethnographique et ne mettant nulle part en valeur la beauté des œuvres qu'il expose. Elle n'est pas douteuse et possède des qualités si neuve qu'il serait dommage de ne pas en faire bénéficier le public averti. Au demeurant ces fétiches d'une rareté insigne ne sont pas moins précieux que les œuvres de sculpture de l'Antiquité209.

Assim, sempre destacando o aspecto artístico desta nova informação visual aportada pelas artes africanas Apollinaire segue publicando, após esta exposição de 1916, textos nos quais dá relevo às esculturas negras. Em 1917, ele organiza, novamente com Paul Guillaume, um álbum sobre as artes africanas, que traz escrito seu e de Paul, no qual estão reproduzidas 24 obras de artes africanas, máscaras e estátuas. Em 1918,

207 Idem. p. 76. 208 Idem. p. 97. 209 Idem. p. 99.

93 Apollinaire volta a destacar estas artes em dois artigos, "À propos de l'Art Nègre"210 e "Sculptures d'Afrique et d'Océanie"211, que são impressos na revista Les Arts à Paris, publicação que é lançada pela “Galerie Paul Guillaume”, com o apoio do poeta. Ainda neste mesmo ano de 1918, Apollinaire planeja com Paul a organização de outra exposição, desta vez exclusivamente dedicada à exibição de obras de arte vindas do continente africano. No entanto, não chega a realiza-la: no dia 9 de novembro, o polonês Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary de Wąż-Kostrowicki, nascido em Roma e naturalizado francês, morre em decorrência da gripe espanhola.

Folha de rosto do album Les Arts à Paris Sculptures Nègres nº 2 - 15 juillet 1917 1918

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A exposição planejada pelos amigos será organizada no 45 do boulevard Malesherbes, endereço da Galerie Devambez, de 10 a 31 de maio de 1919, e intitulada "Première Exposition d'Art Nègre et d'Art Océanien" de Paris. A mostra é composta por nada menos que 147 peças provenientes de diversas coleções, como as do próprio galerista, a de André Level, a de Georges Menier e a de Leonce Rosenberg, e é apresentada ao público por dois textos impressos no catálogo, um deles de autoria de Apollinaire, que é precedido do seguinte comentário de Paul Guillaume: "Le texte ci- dessous a paru en avertissement dans le "Premier Album de Sculptures Nègres" de 1917. On aimera savoir comment, de son observatoire de poète, Apollinaire envisageait

210 APOLLINAIRE, Guillaume. "À propos de l'Art Nègre", in: Les Arts À Paris, nº 1, 15 mars de 1918. 211 APOLLINAIRE, Guillaume. "Sculptures d'Afrique et d'Océanie", in: Les Arts à Paris, nº 2 15 juillet 1918.

94 le problème si séduisant de l'Art Nègre"212. Um apelo do marchant que sabe como divulgar a mostra e que acrescenta, possivelmente também para valorizar o que expôe:"Depuis quelques années des artistes, des amateurs d'art, des musées ont cru pouvoir s'intéresser aux idoles de l'Afrique et de l'Océanie, au point de vue purement artistique..."213.

GALERIE DEVAMBEZ

4j, Boulevard ~Malesherbes

PREMIÈRE NÈGREEXPOSITION D ART

ET D'ART OCÉANIEN

Organisée par M. PAUL GUILLAUME

du Mai 1 o au 31 1919 ( Dimanches exceptés )

CATALOGUE

Prix fr. : 2

Première Exposition d'Art Nègre et d'Art Océanien 10 au 31 mai -1919

Esta batalha encampada por Apollinaire, seguida por Paul, no sentido de difundir e divulgar as artes não europeias, entre artistas e público, como "arte" parece ter tido resultados. Artigos mostram que a partir desta primeira exposição exclusivamente dedicada à arte negra em Paris, a estatuária e as máscaras africanas caem no gosto do público. Roger Allard, o mesmo que em 1918 se queria visto como inventor do "cubisme"214, escreve em 1919 um artigo no qual mostra o avanço das artes africanas no meio artístico parisiense, justamente comentando a referida exposição:

L'exposition de sculptures nègres (organisée par M. Paul Guillaume à la Galerie Devambez) est le couronnement d'une campagne fort habilement organisée pour faire passer les ouvrages des peuplades sauvages de l'Afrique et de l'Océnie, du domaine de l'ethnographie dans celui de la curiosité d'abord, puis dans celui de l'art. C'est ainsi qu'une statuette vendue naguère dix francs dans une boutique de la rue de

212 Cf.: Catalogue de la Première Exposition d'Art Nègre et d'Art Océanien. Organisée par M. Paul Guillaume. Galerie Devambez, Paris, du 10 au 31 mai 1919. 213 Idem, pp. 5-8. 214 Cf. p. 16 deste capítulo.

95 Rennes où fréquentait Matisse, Picasso, Luc-Albert Moreau et d'autres peintres amateurs de fétiches et de masques nègres, vaut aujourd'hui quinze mille francs215

Em 1920, a revista Action organiza uma enquete, Opinions sur l'Art Nègre216, que é aberta com um texto de Apollinaire, e para a qual são convidados a participar Jean Cocteau, Paul Dermée, Juan Gris, Paul Guillaume, Jacques Lipchitz, Pablo Picasso, André Salmon, Maurice Vlaminck e outros. Em 1922, as artes negras já estão "à la mode" , ao menos é o que nos dá a entender um pequeno artigo publicado na revista Athena, onde lemos:

"La mode est au nègre; il n'existe plus de doute là-dessus. En littérature, nous avons le roman nègre; en peinture, nous avons l'art nègre; les statuettes nègres abondent chez le marchand de bibelots. Et chez le couturier, c'est la mode nègre."217.

A partir do segundo decênio do século XX, uma profusão de textos sobre as artes negras circula, nem sempre considerando a importância que as esculturas e máscaras africanas tiveram para os artistas da época, no entanto, sempre encontramos aqueles que, como Apollinaire, entenderam o papel que estas artes tiveram na modificação da visão dos pintores. Neste sentido, Jeanine Warnod lembra que os artistas "ne s'en servent pas [das artes africanas] comme d'un motif décoratif, ne le reproduisent pas en tant que figuration, description, imitation, donc, n'en donnent pas une représentation directe"218. Nesta passagem de seu livro de 1975 ressoam as ideias que Apollinaire defendia quando escrevia no princípio do século sobre as artes africanas, do mesmo modo como elas também ressoam no artigo que é publicado pelo galerista Daniel-Henry Kahnweiler em 1948, no qual lemos:

[...] les peintres cubistes découvrirent, dans certaines masques de la Côte d'Ivoire, des signes qui, renonçant à tout imitation, chargeaient la perception du spectateur d'imaginer le visage dont ces masques n'imitaient pas les "vraies formes". Ce fut la découverte

215 ALLARD, Roger. "Mélanisme", in: Le Nouveau Spectateur, 1919, pp. 22-28. 216 Opinions sur l'Art Nègre. Avec: Guillaume Apollinaire, Jean Cocteau, Paul Dermé, Juan Gris, Paul Guillaume, Victor Goloubew, Jean Pellerin, Jacques Lipchitz, Picasso, André Salmon, Maurice de Vlaminck. In: Acrion - Cahiers de Philosophie et d'Art, nº 3, avril 1920, pp. 22-26. 217 "La Mode", in Athena: revue mensuelle d'art et de littérature. 01.1922. 218 WARNOD, Jeanine, op. cit. p. 113.

96 décisive, j'en suis sûr, qui permit à la peinture, la création de signes inventés, libéra la sculpture du bloc, l'amena à la transparence219.

Além das teorias, como a da quarta dimensão, entre outras, que certamente são discutidas nos ateliers, nas galerias, nas ruas, também as artes egípcias, negras e oceânicas são temas desses encontros, como o foi para Apollinaire, que a partir da observação delas, de leituras e de conferências220, defendeu essas artes "exóticas", entendendo-as como fonte para que os artistas encontrassem novos modos de figurar, quer relativamente à composição quer relativamente à figuração. Apollinaire em muito contribuiu para que a então também chamada "arte primitiva" fosse considerada "arte", distinta, portanto, do artesanato, e foi ao menos de muita ajuda para que os artistas que com ele conviviam passassem a observá-las como estímulo a novos modos de construção de suas obras, distantes da tradição europeia da arte seguidora de manuais. Sem dúvida, para a maior parte dos artistas aqui mencionados, as artes "negras" possibilitou uma nova visão da arte.

Destaque-se: "une constante dans la ligne critique d'Apollinaire, en large de sa défense de l'art moderne, reste sa conviction des sources exotiques et ethnographiques de la création contemporaine", segundo André Parinaud221, e "Picasso et Apollinaire ont-ils simultanément contribué à une nouvelle perception et mise en valeur d'œuvres qui, en France, étaient toujours cantonnées dans les musées d'ethnographie et les boutiques de brocanteurs", segundo Peter Read222. A partir desse panorama sobre os artistas e sobre as diversas ideias defendidas por Apollinaire em seus escritos, a maior parte levada para seu livro Méditations esthétiques, ainda que resumidamente, parece-me impossível continuar sustentando que essa publicação trata apenas dos “peintres cubistes”.

219 KAHNWEILER, Daniel-Henry. "L'Art Nègre et le Cubisme", in: Présence Africaine nº 3, 1948, pp. 367-377. 220 Do que foi possível levantar, Apollinaire a partir de 1901 frequenta conferências do Musée Guimet de Paris, onde desde os anos iniciais do século XX se organizava exposições de obras de artes não-europeias. 221 PARINAUD, André, op. cit. p. 300. 222 READ, Peter. op. cit. p. 59.

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CAPÍTULO 2 - DO CUBISMO AO ORPFISMO. DO ORFISMO AO SIMULTANEÍSMO.

98

Ao estabelecer como fio condutor Méditations esthétiques, o único livro que Apollinaire publicou sobre as artes, evidenciei que este não é um livro sobre o cubismo, visto que se trata de uma publicação com propostas várias, entre as quais há a que contempla o cubismo genéricamente. A preocupação de Apollinaire não é restrita. Contrário à ideia de estabelecer princípios que definam um movimento ou uma escola, o que ele faz é tentar montar, a partir de um conjunto de ideias, por vezes conceitos, uma visão sobre a pintura nesse início de século XX. Por isso não contemplei no capítulo anterior a VII seção do livro de Apollinaire, parte em que ele trata da pintura "cubista". Sendo seu pensamento sobre arte distante de classificações, visto que entende as inquietações dos artistas jovens como sendo a procura de uma plasticidade do universo, diversa, portanto, dos objetivos das artes anteriores, a divisão que ele propõe sobre o cubismo, o "écartèlement", aproxima-se mais do modo de construção do texto do que de uma direção para se definir ou até mesmo se ver o cubismo. Sendo assim, a composição e consequente projeção da imagem de um Apollinaire "teórico" do cubismo resulta do trabalho de construção crítico-historiográfica, que já começa na época mesma em que Apollinaire publica seu livro, e que foi sendo consolidada até nossos dias. Não é raro, por exemplo, encontrarmos as divisões propostas por Apollinaire em Méditations esthétiques, as de "cubisme scientifique", "cubisme physique", "cubisme orphique" e, por fim, "cubisme instinctif", em obras que posteriormente se ocuparão dos pintores e da pintura chamada cubista223. No entanto, é preciso considerar que, no ano tido como o da consagração do chamado cubismo, 1912, Apollinaire pouco escreve sobre essa nova maneira de se conceber o espaço plástico, uma vez que neste momento ele está mais comprometido com a pintura de Robert Delaunay, que se distingue da dos artistas que a crítica agrupava sob esse título, cubismo, e, muitas vezes, de modo pejorativo. Em 1912, Apollinaire preocupa-se sobretudo em observar Delaunay e, certamente, em realizar pesquisas para formular suas ideias de um "orphisme" e de uma "simultanéité" pictórica, ideias essas de importância capital para a sua reflexão acerca de seu trabalho poético. Todavia, apesar das cartas que Apollinaire escreve a seus amigos afirmando não ser este livro sobre o Cubismo, deve-se considerar como o poeta construiu esse texto,

223 Penso nas obras de Maurice Raynal sobre Picasso, ou nas de Pierre Cabanne, John Golding e Jean Paulhan sobre o cubismo, todas referidas na bibliografia ao final do trabalho.

99 suas partes, suas articulações. Sem dúvida, considerando-se apenas o livro, pode-se entende-lo como uma exposição sobre a arte cubista, pois parece montado como se fosse demonstrações até se chegar a ela. Mais ainda, a nota final da publicação reforça a ideia de o livro tratar do cubismo e de sua, digamos "evolução". Não. Apollinaire nos oferece sua visão sobre a pintura do início do século XX.

O "intermezzo" cubista de Méditations esthétiques.

A VII seção de Méditations esthétiques é aquela em que Apollinaire traça algumas considerações sobre o cubismo. Como o próprio Apollinaire afirma em correspondência com seu amigo Ardengo Soffici em julho de 1913: “L’erreur gît surtout en ce que vous pensez mon livre pour un ouvrage de vulgarisation du cubisme. Ce n’est pas cela. Méditations esthétiques et rien d’autre”224. Sabemos que a primeira seção do livro provém de um texto que Apollinaire escreve para a IIIª exposição do Cercle d'Art Moderne do Havre, 1908, e que nele o autor expõe ideias gerais sobre a pintura. Por esta razão Breunig e Chevalier propõem que o texto pode ser entendido como um "manifeste de l'esthétique moderne"225, Meditações Estéticas, e não um livro em defesa do cubismo. Além das "trois vertus plastiques": pureza, unidade e verdade, nele também encontramos outras ideias, como a de uma arte que se caraterize pela busca permanente, contrária, portanto, à arte ensinada nas academias, onde os artistas se limitam a seguir o que prescrevem os manuais. Esta ideia é exibida logo no início do texto, onde o autor sugere que a criação não deve ter "commencement et ne cessera point", sugerindo assim que a arte não deve ser normativa, como aquela que é produzida pelos artistas que "adorent encore les plantes, les pierres, l'onde ou les hommes", ou seja, que adoram representar o observado. Para criticar esta concepção artística pautada pela ideia de representação baseada na observação da natureza, Apollinaire se vale do exemplo, irônico, de que os "jardiniers ont moins de respect pour la nature que n'en ont les artistes", supostamente por que os primeiros dominam e modificam a natureza enquanto que os segundos, os artistas doutrinados pelo ensino acadêmico, limitam-se a reproduzi-la. Na visão de Apollinaire,

224 Guillaume Apollinaire, Lettre a Ardengo Soffici, 4 juillet 1913. In: Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Paris: Honoré-Champion, 2015. Tome 1, p. 532. 225 APOLLINAIRE, G. Méditations esthétiques. Les peintres cubistes. op. cit. p. 97.

100 o artista é aquele que deseja "devenir inhumain", o artista é aquele que busca os traços da "inhumanité" que não se encontra "nulle part dans la nature". A segunda seção de Méditations é organizada a partir do artigo Du sujet dans la peinture moderne, que Apollinaire publica na revista Les Soirées de Paris em fevereiro de 1912. Como visto, a discussão proposta pelo autor neste texto recai, principalmente, sobre a preocupação dos artistas com o "assunto" na pintura, o que, por sua vez, determina o gênero, parâmetro que deve ser respeitado pelo pintor na execução da obra. Para Apollinaire, os pintores novos pintam quadros onde não há "de sujet véritable" pois "le sujet ne compte plus ou s'il compte c'est à peine". Trata-se aqui de elevar a ideia de uma pintura pura, afastada, portanto, da arte produzida segundo as direções estabelecidas pelos manuais. A observação da natureza não importa, e mesmo aqueles que a observam evitam com cuidado a "représentation de scènes naturelles". Segundo Apollinaire é necessário buscar uma "natureza superior", a qual o artista "supõe sem a descobrir" e, para chegar até ela é preciso abandonar os parâmetros até então válidos para "ver", "avaliar" a arte e assim poder apreciar a arte nova. Procura-se, nesta nova arte, novas luzes, direções possíveis, e para explicar esta procura, Apollinaire se serve do exemplo de Apeles, história de Plínio que demonstra bastar pinceladas, por assim dizer, artísticas, para ser arte. A arte não necessita de objeto, de um "sujet", pois os elementos que devem ser trabalhados são os da própria pintura: tela, linhas, tinta, modo de pincelar. As seções III, IV e V são elaboradas a partir de um único artigo, La peinture nouvelle, notes d'art, que foi impresso na mesma Soirées, em abril de 1912. Igualmente ao que ocorre nos textos empregados na elaboração das seções anteriores, Apollinaire segue traçando linhas gerais sobre a pintura, procurando enfatizar a preocupação dos artistas com o que é próprio do métier de pintar. Na seção III, o autor destaca a importância da geometria para os pintores novos afirmando que as figuras geométricas são o "essentiel du dessin" e, sendo essencial, ele afirma que ela é tão importante para o pintor como a gramática é importante para o escritor. Ainda que eleve a preocupação dos artistas com a geometria, Apollinaire não pretende com isso defender que estes devam se limitar às suas leis pois, como ele mesmo escreve, os artistas se preocupam com a busca de "novas medidas possíveis". Na seção IV Apollinaire propõe que os artistas devem buscar as proporções do "idéal", que não devem se limitar mais à humanidade, e produzir obras mais "cerebrais" que "sensuais". Concluindo o que expõe nas seções III e IV, Apollinaire defende na seção V que os poetas e os artistas têm por

101 "função social" renovar constantemente a arte, do contrário, os homens se entediariam com a monotonia da natureza. Por isso ele afirma que a ordem da natureza nada mais do que um efeito que, rapidamente, desaparecerá. A VI seção é escrita a partir de uma adaptação do texto por ele publicado na Soirées de Paris, maio de 1912. Neste, o autor contradiz a ideia, possivelmente divulgada por outros críticos da época, de que a arte produzida pelos artistas novos era uma "mystification", um "erreur collective". Para Apollinaire não, não é possível admitir tal ideia, pois, segundo ele, conceber um caso dessa espécie seria o mesmo que aceitar a ideia de que em uma nação "tous les enfants naîtraient privés de tête". Como defende o autor, não existem casos de erros ou de mistificações coletivas mas, em cada época, diferentes modos de se conceber e de se fazer arte. É, portanto, apenas na VII seção de Méditations esthétiques que Apollinaire tratará de cubismos. Mesmo que a articulação destas seções todas induza o leitor — sobretudo aquele que não conhece os demais textos publicados por Apollinaire, aquele que não sabe que no mesmo ano de preparação do livro o poeta está empenhado em exaltar e defender a pintura não-cubista de Robert Delaunay — a entender que o livro trata do cubismo, isso não prova que o mesmo trate apenas dessa arte. O que nos chama a atenção nesta VII seção é que Apollinaire propõe divisões do cubismo, daí termos registrado "cubismos", nas quais os conceitos não se especificam. Há generalizações, como a que indica que o artista pode olhar a natureza ou a que trata do artista que vai além dela. Estas e outras ideias que ele apenas indica nesta parte são, na verdade, as proposições que ele defende para a arte pura ao longo de seus escritos. Portanto, ainda que o livro possa sugerir que Apollinaire o montou de forma a ser um percurso da arte até se chegar ao cubismo, considerando-se seus escritos, inclusive os deste livro, o que ele de fato expõe na publicação são suas meditações estéticas.

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O termo "cubiste", "cubisme", passa a circular na imprensa francesa, e sobretudo na imprensa parisiense, nos anos de 1910 e 1911, e as telas que evidenciam uma composição geometrizante são pintadas anteriormente, como no caso das de Georges Braque e as de Pablo Picasso, 1907-1908. Neste último ano, como dito, Apollinaire escreve o prefácio do catálogo da exposição que é considerada a primeira exposição individual de obras de Braque na qual, entre as 27 obras, estavam as que Matisse via os

102 "petits cubes", incluindo aquelas que Braque havia submetido ao júri do Salon d'Automne do mesmo ano e que foram recusadas. No texto de Apollinaire, redigido a pedido do galerista Daniel-Henry Kahnweiler com o consentimento de Braque não há qualquer ocorrência da palavra "cube", "cubiste", "cubisme", ou qualquer derivação em forma de cubo que nomeie Georges Braque de cubista. Coerente ao conjunto de ideias e conceitos que vinha montando nestes anos em que se dedica a ver e a pensar pintura, nesse texto Apollinaire critica o impressionismo destacando a pintura baseada no princípio de aplicação de cores pela "non mélange de couleurs" para que ocorra a "mélange optique", eleva a importância da pintura de Cézanne, assim como a de Picasso, a de Matisse, a de Derain e a de Vlaminck, e exalta a "pureté" da pintura de Braque e a "unité" que ele obtém nelas: "chaque œuvre devient un univers avec ses lois particulières". Também considera a ideia de uma pintura sintética, a saber, aquela que abandona o descritivo da pintura que se prende ao assunto, que tem por princípio a imitação, ou como ele mesmo escreve, uma pintura que "ne doit plus rien à ce qui l'entoure"226, defendendo com isso uma pintura pura. Como já avancei no primeiro capítulo, o que fez de Méditations esthétiques um livro que a recepção considerou se tratar de uma obra sobre o cubismo foram mais as circunstâncias, e sobretudo as comerciais, que animaram Eugène Figuière a sugerir a Apollinaire que os Peintres cubistes figurasse em destaque no título do livro — lembrando que no miolo esse título não aparece, ao contrário, a parte que elenca artista é nomeada de Peintres nouveaux, simplesmente. Como mostrei ao referir a carta enviada por Apollinaire a Roger Allard em 1918 ou a outra que ele envia a Ardengo Soffici em 1913, o autor se sentia pouco a vontade com o emprego do termo, talvez por supor que fixaria uma visão sobre a pintura de artistas que não era a sua, pois, mesmo quando os artistas partilhavam de informações e de referências visuais semelhantes, Apollinaire enxergava como cada um dos artistas as interpretava ou o modo como delas eles se serviam, o que os levava a soluções pictóricas distintas. Possivelmente, para se entender o que Apollinaire defende relativamente à individualidade de cada artista, distante, portanto, da ideia de "escola" ou "grupo", é de importância observar o modo como cada um destes artistas entendia a lição de Cézanne. Basta considerar o que de Cézanne vemos Joie de Vivre de Matisse, nas Baigneuses de

226 APOLLINAIRE, Guillaume. Préface au Catalogue de l'Exposition Georges Braque. Du 9 au 28 novembre 1908. Galeria Kahnweiler, 28 Rue Vignon, Paris.

103 Derain, no Viaduc à l'Estaque de Braque ou nas Demoiselles d'Avignon de Picasso, todas pintadas na mesma época, entre 1906 e 1907. Embora reconheçamos em suas pinturas a marca da pintura cézanneanna, não parece possível sustentar que se trate de uma e mesma marca e, ainda que todas indiciem a geometrização do espaço, o modo como cada artista compõe suas obras e aplica suas cores são distintas entre si227. Aliás, a diferença entre obras que partem de uma fonte comum, ideia ou mesmo imagem, é de se notar. Observe-se, por exemplo, as de Matisse, de Derain, de Braque, de Metzinger, alusões àquele princípio do uso das cores puras que eles apreendem principalmente da pintura neoimpressionista de Seurat e Signac. E isto se repete com as demais informações visuais disponíveis na época, como a das artes não-europeias, africanas ou oceanianas, que lhes servem como sugestão de novos modos de figuração. De fato, classificações reduzem, quando não impedem, a capacidade de se ver e de se pensar. Provavelmente, lembrando da carta de Apollinaire a Allard, é que Marie-Jeanne Durry afirma que o autor "n'a jamais eu de sympathie pour le mot"228 "cubisme". Jean- Claude Chevalier escreve, por sua vez, que os pintores "qu'on groupait sous l'appelation commune de cubistes formaient au fond une troupe disparate" pois mesmo que "en accord sur les grands principes, ils différaient profondément de formation et de tempérament"229. Já L.-C. Breunig atribui aos historiadores das artes o papel de terem sido eles os responsáveis por fixar o nome de Apollinaire ao cubismo e aos pintores cubistas e, sem negar o inegável, a proximidade que Apollinaire tinha com os artistas que assim serão designados pela crítica contribuiu. Mas, Breunig observa que em 1910, já com o termo circulando em publicações periódicas parisienses, Apollinaire escreve sobre a pintura de Metzinger, Delaunay, Le Fauconnier, Duchamp, Gleizes, "sans jamais employer le mot de cubisme", e que ele comenta as obras "en tant qu'individus parmi d'autres artistes disparates"230. Mas, se Breunig atribui, e isso na década de 1960, aos historiadores da arte o papel de fixarem e difundirem a imagem de um Apollinaire defensor e difusor da pintura cubista, quando percorremos os artigos divulgados na época da publicação de Méditations, é impossível não se verificar que já naqueles anos começa a ser construída

227 Ver as obras reproduzidas capítulo 1. 228 DURRY, Marie-Jeanne. "Apollinaire et le Cubisme", in: Guillaume Apollinaire. Alcools. Paris: Société d'Édition d'enseignement Supérieur, 1956. T. II, pp. 175-219. 229 CHEVALIER, Jean-Claude. "Apollinaire et le Cubisme", in: Catalogue de l'Exposition. Lille: Palais de Beaux-Arts, 3 avril - 4 mai 1965, p. 230 BREUNIG, J.-C. "Apollinaire et le Cubisme", in: La Revue de Lettres Modernes, nºs 69-70, printemps 1962, p. 9.

104 a referida imagem. Em um destes artigos, que é publicado pelo amigo de Apollinaire, André Billy, lemos:

Posons en principe [...] qu'il est permis de ne pas trouver belles les œuvres des peintres cubistes, mais recconnaissons à ceux-ci le droit de peindre comme bon leur semble et d'exposer leurs toiles. Ce faisant, ils ne causent préjudice à personne. Nous ne sommes pas forcés d'aller au Salon des Indépendants; si le cubisme nous afflige, restons chez nous ou allons au Louvre. Le cubistes n'y sont pas encore. Nous espérons bien que, s'ils entrent un jour, une place d'honneur sera réservée, dans leur salle, à un portrait de M. Guillaume Apollinaire231.

Nessa mesma linha de André Billy, são muitos os artigos publicados na época nos quais o nome de Apollinaire passa a ser estreitamente relacionado ao rótulo "cubisme" ou "cubiste". Em um artigo publicado no Courrier Littéraire lemos, por exemplo, que o "cubisme et les cubistes méritaient-ils vraiment l'étude minutieuse que leur consacre aujourd'hui leur plus spirituel défenseur, M. Guillaume Apollinaire"232; na coluna "La Boîte aux Lettres", do L'Intransigeant, noticia-se a publicação do livro de Apollinaire seguida do comentário: "c'est très instructif. L'ingénieux critique d'art nous apprend à distinguer le cubisme scientifique du cubisme physique et le cubisme instinctif du cubisme orphique"233. André Michel refere-se a Apollinaire em sua coluna, a Chronique des Arts et de la Curisioté, como "l'exégète et l'apôtre"234 do cubismo; na "Chronique des livres", da Revue bleue, de 19 de julho de 1913, Apollinaire é referido como o "théoricien"235 do cubismo e, Louis Perceau, anos mais tarde, chega a nomeá-lo de "le Saint-Esprit du Cubisme"236. Ora, o que a recepção do livro de Apollinaire mostra é que a crítica da época, muito fixada nas classificações ou categorizações de toda ordem, é pega pelos termos, não pelo modo como os mesmos são expostos ou tratados no livro. Bem a propósito, Olivier Hourcade, um poeta e crítico de arte hoje praticamente desconhecido, mas que era próximo de Apollinaire e que, como ele, se posicionava na linha de frente na defesa

231 BILLY, André. "Le livre dont on parle: Les Peintres cubistes", in: L'Action, 20 avril 1913. 232 Sem indicação de autor, "Le courrier littéraire: Gens et choses de Lettres", in: Le Temps, 20 avril 1913. 233 Les Treize, "La Boîte aux Lettres", in: L'Intransigeant 22 avril 1913. 234 MICHEL, André. "La Chronique des arts et de la curiosité", supplément à La Gazette des Beaux-Arts, nº 23, 6 juin 1914. 235 "Chronique des Livres", in: Revue Bleue, 19 juillet 1913. 236 PERCEAU, Louis. "Les Livres: Guillaume Apollinaire - Les Peintres Cubistes", in: La Guerre sociale, septième année, nº 19, du 7 au 13 mai 1919.

105 dos jovens pintores, ironizava, em um artigo da época, esta obsessão classificatória dos críticos:

Des critiques éminents veulent considérer les novateurs comme des fantaisistes. Ils me font songer à ces botanistes d’occasion qui n’admettent pour belles que les plantes cataloguées et primées à la dernière exposition du Petit Palais. La plupart de ces critiques n’ont jamais vu les tableaux dont ils rient et ne veulent pas aller les voir237.

Esta última frase de Hourcade é fundamental, pois ela evidencia o que deveria ser esta crítica de arte da época: uma crítica apressada, fundada em textos e em opiniões mais do que nas próprias obras dos artistas sobre as quais tratava. O trabalho de Apollinaire como "écrivain d'art", como ele mesmo preferia se autodesignar, certamente era exemplar considerando-se sua proximidade e interlocução com os artistas. Como se sabe, Apollinaire frequentava seus ateliers e acompanhava de perto o trabalho de alguns deles — como nos exemplos dados no primeiro capítulo sobre as conversas que teve com Matisse antes escrever sobre ele, de suas visitas regulares ao Bateau Lavoir onde pode ver, entre os primeiros, as Demoiselles d'Avignon de Picasso, ou da temporada que passou morando com os Delaunay, com Robert e Sonia, quando pode acompanhar a execução de Les Fenêtres, de Robert, para a qual escreveu um poema que, segundo o próprio autor, era um de seus poemas mais importantes238.

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A proximidade de Apollinaire às obras e, por assim dizer, sua vontade de sempre divulgar imagens de obras para que as mesmas fossem vistas e não somente comentadas, pode ser testemunhada por seu empenho em divulgá-las. Quando ele assume, por exemplo, a direção da revista Les Soirées de Paris, a partir do número 18, de novembro 1913, e onde goza de mais liberdade e espaço para escrever sobre a pintura, reproduz obras, na ocasião, cinco naturezas mortas de Picasso. No número

237 HOURCADE, Olivier. "La Tendance de la Peinture Contemporaine", in: La Revue de France et des Pays Français, 1er année, nº 1, février 1912. 238 Em carta enivada a Madeleine Pagès que Apollinaire escreve: "J'aime beaucoup, beaucoup, Les Fenêtres qui a paru à part en tête d'un catalogue du peintre Delaunay. Ils ressortissaient à une esthétique toute nouve dont je n'ai plus depuis retrouvé les ressorts, mais dont j'ai avec étonnement retrouvé l'exposé dans une de nos divines lettres", in: APOLLINAIRE, Guillaume. Tendre comme le souvenir. Paris: Gallimard, 1952, p. 71.

106 seguinte dessa revista que até então não reproduzia obras, é impressa a tela Jeune Fille au Piano, de Marie Laurencin, o Portrait, de Henri Matisse, a , desenho preparatório que Jean Metzinger realiza para a tela exibida no Salon d'Automne de 1913, a tela Les Bateaux de Pêche, de Albert Gleizes, e a Composition, do pintor norte- americano Patrick-Henry Bruce; no número 20, verifica-se sete reproduções de obras do pintor Henri Rousseau, entre elas a famosa La Muse Inspirant le Poète (Portrait de Guillaume Apollinaire), obras que acompanham os textos que homenageiam o pintor neste número consagrado exclusivamente à sua obra. No número 21, cinco obras de Derain que evidenciam seu afastamento da pintura dita fauve, na qual predominava a utilização das cores puras sobre a tela, como Portrait du chevalier X, Samedi, Figure, ou mesmo a Copie d'après le Ghirlandaio, obra na qual predomina o desenho de Derain e não mais a sua cor. Escolha que importa destacar, visto que Apollinaire, que conhece e acompanha o desdobramento do trabalho desse artista, opta por não reproduzir obras que encerram Derain dentro do "fauvisme". Nos números seguintes, verifica-se a mesma direção, a reprodução de obras de artistas defendidos por Apollinaire. No número 22, seis reproduções de telas de Francis Picabia, incluindo duas em cores, Udnie (jeune fille américaine) e Edtaonisl (ecclésiastique); no número 23 oito reproduções de obras de Braque; no número 24, sete reproduções de pinturas de Matisse; número 25, quatro reproduções de esculturas de Alexandre Archipenko e, nos números 26-27, os dois últimos números das Soirées de Paris, treze reproduções de obras de Vlaminck, Léger e Marius de Zayas. Essa preocupação em mostrar obras para que o leitor as pudesse entender do que ele tratava pode ser observada antes mesmo de sua direção da Soirées de Paris: em Méditations esthétiques estão reproduzidas 38 pranchas de obras: de Picasso, Usine, 1909, espagnole, 1912, L'Homme à la clarinete, 1912, Le Violon, 1912; de Braque, Le Violon, 1910, La Table, 1911, Le Viaduc de l'Estaque, 1912, L'Homme à la Mandoline, 1912; de Metzinger, Nu, 1910, Le Goûter, 1911, La Femme au Cheval, 1912, , s.d.; de Gleizes, La Femme aux phlox, 1910, Nature morte, 1911, , 1911, L'Homme au balcon, 1912; de Marie Laurencin, Réunion à la campagne, 1909, Les Jeunes Filles, 1911, La Toilette, 1912; de Gris, La Guitare, 1912, Portrait, 1912, Les Cigares, 1912, L'Homme au Café, 1912; de Léger, Nus dans un paysage, 1911, Études pour trois portraits, 1911, Femme en bleau, 1912, Les Fumées, 1912; de Picabia, Paysage, 1908, Paysage à Cassis, 1909, Paysage, 1911, Tarentella, 1912; de Duchamp, Joueurs d'éches, 1911, Nu descendant un escalier, 1912, Jeune

107 homme, 1912, Le Roi et la Reine entourés de nus vites, 1912; e de Duchamp-Villon, Baudelaire, Détail d'une vasque décorative, Croquis pour le "Soleil" e Projet d'hôtel - estas últimas sem data. Pode parecer banal, dispensável até considerar essas listagens, no entanto, em uma época que a reprodução era extremamente cara, preparar novos clichês acabavam por indicar as obras de preferência do editor ou do autor do impresso. Ou, ao menos, indicar que aquelas obras eram as mais importantes do artista, o que de fato não procede, mas assim aconteceu. Este parece ser o caso das imagens impressas no livro de Apollinaire que, evidentemente, não passam desapercebidas da crítica, visto que as referendavam mesmo sem esmiuçar as ideias do poeta. Por exemplo, em um artigo publicado no Gil Blas em 11 de maio de 1913, destaca-se o volume "copieusement illustré consacré aux peintres cubistes"239. Na Gazette de France de 16 maio de 1913, podemos ler que a obra de Apollinaire comporta "une quarantaine de reproductions qui prévaudront toujours contre la plus subtile dialectique" e ainda que, o que é mais importante, as imagens comprovam "qu'il faut diviser sommairement les œuvres cubistes"240. André Michel, no artigo já citado, escreve que "œuvres typiques"241 do cubismo são reproduzidas no volume e, no também já referido artigo de Louis Perceau, aquele no qual ele se refere a Apollinaire como "le Saint-Esprit du Cubisme", o articulista, sem entender as proposições expostas no livro, escreve , lamentando: "Quant aux reproductions de toiles qui ornent le volume, elles ont un intérêt indéniable. On y peut suivre la marche vertigineuse des maîtres de l'école cubiste [...]. Mais quel dommage ces reproductions ne concernent que le seul cubisme!". Evidentemente, aqueles que escrevem sobre as Méditations esthétiques de Apollinaire na época da publicação do livro não compreendem as proposições que nele são expostas e, por isso, veem nas obras reproduzidas exemplos de uma pintura "cubista". No entanto, quando observamos estas obras, colocando-as lado-a-lado, entendemos que, ainda que algumas proposições plásticas sejam aproximáveis, não é possível agrupá-las sob uma única designação, cubiste, por exemplo, pois, como destaca continuamente Apollinaire, grosso modo, deve-se entender, senão apenas enxergar, nas obras a diversidade de maneiras que as caracterizam.

239 Les Autres, "Les Peintres Cubistes", in: Gil Blas 11 mai 1913. 240 GRAVILLE, "Les Cubistes", in: "Les Livres", Gazette de France, 282e année, vendredi 16 mai 1913. 241 MICHEL, André, op. cit.

108

Pablo Picasso L'Usine 1909

Georges Braque Le Viaduc à l'Estaque 1908

Albert Gleizes La Femme aux Phlox 1910

Jean Metzinger La Femme au Cheval 1912

109

Juan Gris Fernand Léger L'Homme au Café La Femme en Bleu 1912 1912

Marie Laurencin Francis Picabia Réunion à la campagne Paysage à Cassis ou 1911-12 Apollinaire et ses amis 1909

Marcel Duchamp Jacques Duchamp-Villon Joueurs d'Échec Baudelaire 1910 1911

110 Como sugerido, é possível, sim, propor aproximações entre algumas obras, sobretudo entre aquelas cujos artistas/autores trabalham em diálogo, como Picasso e Braque, ou Gleizes e Metzinger. Mas, considerando-se as reproduções, como é possível estabelecer proximidades da obra de Marie Laurencin à de Juan Gris ou às dos artistas citados sob a denomiação cubismo científico? o que fazer? Seria mesmo possível, a partir destas obras, dizer que seus autores seguem as mesmas orientações, que fazem parte de uma mesma "escola", a cubista? Bastam apenas as obras reproduzidas no livro de Apollinaire para se afirmar que não é possível sustentar uma proposição como esta. É o próprio Apollinaire que destaca a impossibilidade, basta lembrar o que escrevia em 1911 que "le cubisme n'est pas un système et les différences qui caractérisent non seulement le talent, mais la manière même de ces artistes en sont un preuve manifeste"242. É verdade que Apollinaire afirma no início desta secção VII que a "nouvelle école de peinture porte le nom de cubisme", mas, como dito, cubismo, em seu livro, é recurso, de resto, cubismos é, para o autor, uma das possibilidades de arte pura. Deste modo, o que nos parece fundamental é ver e ler.

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A partir dos textos que ele escreve sobre os Salões que considero a seguir, penso que a defesa de Apollinaire das tendências da arte francesa evidencia-se. Apollinaire considera o Salon des Indépendants de 1910 aquele onde, pela primeira vez, são expostas obras que anunciam o que será denominado cubismo, no entanto, ele nada escreve ser esta uma exposição de pintura cubista, pois sua atenção se volta para a diversidade que constitui a pintura da época e não para um movimento ou escola em particular, como lemos nesta passagem:

Aujourd'hui, dans les arts plastiques, la France règne incontestablement. Le Salon des Indépendants est chaque année très propre à nous renseigner sur les tendances des jeunes artistes français [...]. Malgré un encombrement inévitable d'œuvres médiocres ou ridicules, malgré les fumisteries en très petit nombre, les Indépendants prédisent chaque année l'avenir de la plastique, ainsi qu'un baromètre annonce le temps qu'il va faire243.

242 APOLLINAIRE, Guillaume. Œ.C.P. T. II, op. cit., p. 358. 243 APOLLINAIRE, Guillaume. Œuvres complètes en prose, T. II. Op. cit. p. 140-141.

111 Estas novas tendências da pintura francesa exibidas nesse salão do Indépendants , segundo Apollinaire, são, no "sens général", uma "déroute de l'impressionisme", o que ele observa sobretudo nas salas 18 e 21, onde são expostas "les œuvres vraiment significatives du Salon". Na primeira destas salas são exibidas as obras de Matisse, Friesz, Manguin, Vlaminck, Marquet, Raoul Dufy, Marie Laurencin, Metzinger, Delaunay, Rouault, Van Dongen, Modigliani e Rousseau, e na segunda, a 21, são expostas obras de pintores ligados ao neomipressionismo como Signac, Cross e Lucie Cousturier. Da primeira, ele irá destacar a pintura de Henri Matisse, escrevendo que é ele "un des rares artistes qui se soient complètement dégagés de l'impressionnisme"; de Friesz, ele observa sua tela Adam et Ève referindo seu "effort considérable en vue de la composition"; de Laurencin, ressalta que a "pureté d'un tel art est l'honneur d'une époque"; de Metzinger, que expõe um Portrait de M. Guillaume Apollinaire, nada comenta além de uma "femme nué solidement construit"; refere que Delaunay "a moins d'inquiétude" e, sem referir ou comentar qualquer uma de suas obras, destaca que suas telas "ont l'air malheureusement de commémorer un tremblement de terre" — uma imagem compreensível quando nos damos conta de que entre as telas expostas por Delaunay neste Salão estão Tour e Ville — obras que estão na origem da série Tour Eiffel e La Ville de Paris244.

La Tour 1910

244 É importante lembrar que uma nova versão desta tela de Delaunay será apresentada também no Salon des Indépendants de 1912 e que nesta ocasião Apollinaire atribuirá um valor importantíssmo ao quadro: Décidément, le tableau de Delaunay est le plus important de ce Salon. La Ville de Paris est plus qu'une manifestation artistique. Ce tableau marque l'avènement d'une conception d'art perdue depuis les grands peintres italiens". In: Œ.C.P. T. II, op. cit. p. 428.

112

Robert Delaunay La Ville de Paris 1910-12

Ainda que Apollinaire indique a influência de Derain e a de Picasso em Delaunay, ele não avança suas considerações. Obviamente não devemos desconsiderar o fato de que, como Apollinaire escreve, "six mille toiles sont exposées", o que certamente dificulta a ênfase no trabalho de uns ou de outros artistas. De todo modo, é possível estranhar que ele destaque este Salão como sendo o primeiro onde se revela a pintura dos chamados cubistas, já que ele mesmo conclui seu artigo considerando que: "L'ensemble du Salon des artistes Indépendants nous révèle que les tendances de la jeunesse artistique sont à la composition" e que "pour composer les artistes emploient un grand nombre de moyens. On a jamais vu d'art aussi systématique ni de systèmes aussi différents". Lendo-se artigos de outros críticos publicados nesse mesmo ano de 1910 a propósito dos Indépendants, e de outros Salões, observa-se que pouco ou nada é dito sobre pintura "cubiste". Charles Morice,escreve no Paris-Journal no mesmo dia em que Apollinaire escreve no L'Intransigeant constatando esta "déroute de l'impressionnisme", não refere qualquer “cubo”; por sua vez, André Salmon ao comentar as pinturas da sala

113 18245 as entende como sendo de "fauves", e indica as "aspirations louables" de Delaunay e sublinha a influência de Matisse e Picasso246. Além deste Salão, Apollinaire indica na VII seção de seu livro que obras cubistas também foram mostradas em três outros: o Salon des Indépendants e o Salon d'Automne de Paris, e o Salon annuel du cercle d'art "Les Indépendants" du Musée Moderne de Bruxelles, todos eles organizados em 1911. No livro, lê-se que é no Salon des Indépendants que ocorre a "première exposition d'ensemble du Cubisme". Algumas das obras expostas na sala 41 são relacionadas por ele, entre as quais destaca em seu livro de 1913: L'Homme nu, de Metzinger, La Femme au Phlox, de Gleizes, Les Jeunes Filles, de Marie Laurencin, Nus dans un paysage, de Léger. Quando lemos os artigos que Apollinaire publica a respeito deste Salão vemos que, como no caso do anterior, ele nada destaca da pintura "cubista" que supostamente ali é exposta. Ao tratar da sala 41, por exemplo, Apollinaire afirma que nela "ne reste de traces d'Impressionnisme" e que a mesma abriga "tout l'effort et toute nouveauté du Salon". Quando comenta as obras que figuram nesta sala ele destaca, acima de todas, a Tour Eiffel de Delaunay, artista que não está contemplado em se livro, embora citado. O autor afirma neste artigo sobre o Salão que, entre os "mieux doués de ces artistes, on doit saluer Robert Delaunay", artista que se desenvolve igualmente "dans le dessin et dans le coloris" e cuja obra, Tour Eiffel, "a de la puissance dramatique". Apollinaire comenta, ainda que rapidamente, outras pinturas, no caso de artistas que são referidos em Méditations esthétiques: Marie Laurencin, Le Fauconnier, Gleizes, Léger, e ainda que ele destaque a "peinture cylindrique" deste último, é somente ao comentar o envio de Metzinger que o autor refere que ele é "le seul adepte du cubisme proprement dit". Um cubismo que, no entanto, não se especifica, uma vez que sua consideração sobre a obra do pintor dá ao leitor uma visão que poderia ser aplicada a qualquer outro artista que ali expunha: a arte de Metzinger, segundo ele "a pour but de nous montrer la vérité plastique sous toutes ses faces et sans renoncer au bénéfice

245 "nous voici dans la cage des Fauves"; "Ces fauves ont le goût de la sagesse absolue". 246 Alguns meses mais tarde essa influência de Picasso indicada por Apollinaire e Salmon tenta ser esclarecida por Jean Metzinger, que expõe suas obras nos Indépendants deste ano de 1910. É o autor do Portrait de M. Guillaume Apollinaire quem escreve e esclarece que: "Il est inutile de peindre là où il est possible de décrire. Fort d'avoir ainsi pensé, Pablo Picasso nous donne d'entrevoir la face même de la peinture. Réprouvant toute intention ornamentale, anecdotique, symbolique, il réalise une pureté picturale, parmi les plus belles du passé, qui ressortissent à la peinture aussi expréssement que les siennes. Picasso ne nie pas l'objet, il l'illumine avec son intelligence et son sentiment. [...] Cézanne nous montra les formes vives de la réalité de la lumière, Picasso nous apporte un compte rendu matériel de la vie réelle dans l'esprit, il fonde une perspective libre, mobile, telle que le sagace mathématicien Maurice Princet en déduit toute une géométrie". Idem, p. 155.

114 de la perspective". Mesmo que nos esforcemos por entender que este mostrar "sous toutes ses faces" possa ser uma referência ao cubismo, não podemos ignorar que ele se refere à "vérité plastique" que, se considerada a partir do modo como ela é exposta em Les Trois Vertus Plastiques, de 1908, lembramos que essa ideia implica em outra, a de pintura pura, a que Apollinaire começa a enunciar a partir deste texto. Já nos artigos publicados por Apollinaire sobre o Salon d'Automne deste mesmo ano de 1911, ele admite o cubismo no meio de comentários sobre a pintura de outros artistas como as do belga Henri Groux, às quais ele dá mais atenção do que às dos demais artistas; destaca a retrospectiva dedicada à obra de Camille Pissarro e considera a dos "deniers fauves". Ao tratar da sala 8, comenta, então, a pintura cubista: "ceux qui prennent le cubisme par une fumisterie se trompent complètement". Segundo Apollinaire, o cubismo não deveria ser reduzido — como se fará posteriormente a crítica da época e outras —, a uma "art de tout peindre sous forme de cubes" mas, ao contrário, deveria ser entendido como uma arte que se volta para os "principes pour ce qui concerne le dessin". Nesta passagem Apollinaire monta uma equivalência entre os fauves e os cubistes, afirmando que os primeiros fizeram para as tintas o que os segundos procuram fazer para o desenho. O autor assevera que o cubismo não é um sistema, mas já forma uma escola, no sentido de que vários artistas questionam princípios técnicos, segundo o autor, estéticos, no caso para se chegar à renovação do desenho. Apesar dos elogios e da indicação dessa renovação, que não é explicitada, quando ele trata das telas desses artistas expostas, Apollinaire, de fato, não trata do desenho e destaca a cor: de Metzinger ele afirma que "sa palette est d'une richesse raffinée", de Gleizes, após afirmar que ele é um artista que expõe seu talento pela "invention" e pela"observation", ao considerar o Portrait de Jacques Nayral, ele trata das cores da tela assim como quando comenta La Chasse, do mesmo pintor, quando afirma que esta obra "est bien composée et de belles couleurs". A cor, sem dúvida, importa para Apollinaire, como mostram seus escritos sobre Delaunay e quando destaca em seus textos artistas que se dedicam à pesquisa da cor, nos séculos XIX e XX na França, tendo por "modelo" Delacroix, artista cujas obras são reclamadas por ele mesmo neste Salon d'Automne: "on aurait pu nous montrer un ensemble de peintures et de lithographies de Delacroix". Mas, quanto à ideia de enfatizar o desenho a referência é, como não poderia deixar de ser, Ingres: "ils [os cubistas] font voir simplement que si la leçon d'Ingres n'a

115 pas été perdue pour ces artistes, le public et avec lui beaucoup d'écrivains d'art ne l'ont pas du tout comprise"247. Esta ideia de se pensar acerca do desenho, da qual Apollinaire já indica ter consciência quando refere Derain como um artista que, entre os primeiros, entende a lição de Cézanne, é complementada pela atenção que ele dá neste artigo a Ingres. E isso não ocorre por acaso. Em abril do mesmo ano de 1911 — o Salon d'Automne acontece em setembro e outubro — Apollinaire escreve uma resenha sobre exposição organizada por Henry Lapauze onde são exibidas pinturas e desenhos de Ingres: "M. Henry Lapauze, à qui la gloire de M. Ingres tient à cœur, a pu, grâce au concours bienveillant de leurs possesseurs, réunir les tableaux célèbres et quatre cent cinquante dessins du maître montalbanais"248, ou seja, não poucos. Esta atenção que Apollinaire dedica à obra de Ingres mostra que ele mesmo não se fixa em visões fechadas, em classificações, e isso fica evidente quando ele escreve que Ingres "peignait à la fois l'idéal et le réel"249. Relativamente à exposição do Salon Annuel du Cercle d'Art Les Indépendants realizada também em 1911 no Musée Moderne de Bruxelles Apollinaire não só escreve para o catálogo da mostra como também auxilia André Blandin a organiza-la. Ainda que se leia no primeiro parágrafo do catálogo que "les peintres nouveaux qui ont manifesté ensemble cette année au Salon des artistes indépendants de Paris leur idéal artistique acceptent le nom de cubistes", quando da preparação para o referido salão, Apollinaire escreve a Blandin que ele pode contar "absolument" com ele para "une exposition d'artistes d'avant-garde". Aliás, Apollinaire envia uma lista de nomes de artistas para figurarem na mostra, os mais variados, note-se: André Derain, Raoul Dufy, Marie Laurencin, Maurice de Vlaminck, Herbin, Girieud, Lhote, Braque, Van Dongen, Friesz, Camoin, e indica que tentará conseguir obras de Picasso e Matisse. Apollinaire indica ainda outros nomes, "moins avancées" em pintura, como os de Dunoyer de Segonzac, Alcide Le Beau, Ottmann, Granzow, Doucet, como também, note-se, Gleizes, e o do escultor Despiau, "le meilleur statuaire français", como escreve. Sem dúvida a exposição de Blandin na Bélgica daria uma mostra das artes de "avant-garde" parisiense da época, mas não uma exposição "cubista".

247 APOLLINAIRE, G. Œ.P.C. T. II, op. cit. p. 368 ss. 248 Idem, p. 327. 249 Além desta exposição de Ingres, é preciso lembrar também que, em favor desta preocupação com a revalorização do desenho, Apollinaire escreve uma longa resenha em julho do mesmo ano sobre a obra Le Dessin par les Grands Maîtres, de Louis Lumet e Ivanhoe Rambosson, que, de acordo com ele, "apportera aux artistes des documents inappréciables". Idem pp. 363-365.

116 A tentativa de organização conjunta desta exposição parece ter fracassado, ao menos é o que se pode inferir a partir da leitura de uma carta/resposta que Apollinaire remete a Blandin em maio do mesmo ano de 1911, na qual lemos: "vous vous êtes décidé si proche de votre exposition que je crains d'avoir été moins éfficace en faveur de votre salon que je n'aurais fait si plus de temps m'avait été donné" — e Victor Martin- Schmets nos informa que "de ces peintres qu'Apollinaire est assuré d'avoir, pas un n'enverra de toiles à Bruxelles"250. Este mesmo autor nos mostra, por meio de uma relação de pintores cujas obras são expostas nesse Salão251 que, dos nomes indicados por Apollinaire, apenas o de Gleizes, um dos "moins avancés", figura na exposição. No prefácio que Apollinaire redige para figurar no catálogo, ainda que ele faça referência ao "cubisme" e aos "cubistes", ele não a faz com a intenção, ao que tudo indica, de classificar as obras destes artistas; ao contrário, como ele escreve: "le cubisme n'est pas un système et les différences qui caractérisent non seulement le talent, mais la manière même de ces artistes en sont une preuve manifeste"252. As ideias de talento individual e de ausência de um sistema, ainda que os artistas habitualmente circulem pelo mesmo campo de conceitos, são de importância para se entender o que propõe Apollinaire pois, para ele, a arte provém das pesquisas de cada um. A este propósito, não podemos desprezar um texto que é publicado na revista belga L'Art Moderne, de 11 de junho de 1911, o qual, embora não assinado, dialoga com a visão de Apollinaire:

Les Indépendants, au moment d'ouvrir les portes de leur VIIIe Salon annuel à un public et à une critique peut-être non avertis et qui pourraient se méprendre, croient nécessaire de préciser les raisons qui leur font grouper périodiquement des œuvres de tendances si différentes et qui semblent parfois se heuter. En adoptant ce nom, Les Indépendants, il n'est pas entré dans l'intention des fondateurs de présenter au public n'importe qui et n'importe quoi. L'indépendance qu'ils recherchent est celle qui leur permet de réunir chaque année, et ce d'une façon indépendante de toute esthétique déterminée, les œuvres de ceux dont l'effort marque au moins les prémices d'une personnalité curieuse, intéressante ou rare, ou encore l'indication d'une

250 MARTIN-SCHMETS, Victor. "Apollinaire et les "peintres nouveaux" en Belgique", in"Que Vlo-Ve?, série 2 nº 2 avril-juin 1982, pp. 23-32. 251 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance Générale. Tome I. MARTIN-SCHMETS, Victor [org.]. Paris: Honoré-Champion, 2015, p. 389. 252 APOLLINAIRE, Guillaume. Catalogue du 8e Salon Annuel du Cercle d'Art Les Indépendants au Musée Moderne de Bruxelles, du 10 juin au 3 juillet, 1911, in: Œ.C.P. T. II, p. 358.

117 orientation nouvelle, au milieu des incertitudes du moment, quel que soit le camp d'où ils viennent. Il paraît plus intéressant de montrer un ensemble d'efforts divers mais sincères vers des conceptions personnelles que d'étaler aux yeux du public une collection d'œuvres plus ou moins conformes à des données acceptées et connues, mais, par le fait le plus souvant usées, surannées, désuètes. Ce qu'ils montrent n'est donc pas toujours une affirmation de leurs tendances propres, ni une complaisance, ni le signe d'une admiration: ils restent spectateurs eux-mêmes devant certaines de ces œuvres. C'est, à vrai dire, une prise de contact de nos artistes avec cette vie d'art intense, exacerbée, qui a pour centre Paris avec ses luttes, ses enthousiasmes, ses erreurs peut-être, mais où l'on se sent plus hardi, plus vibrant, plus libre253.

Transcrevo-o integralmente aqui, tal qual ele é reproduzido por Victor Martin- Schmets, pois este texto nos dá muitas informações esclarecedoras, e isto sob várias perspectivas. Em primeiro lugar, o texto nos transmite uma ideia do que poderia ser a recepção de pintura, recepção de público e de crítica, da época. Veja-se, a exemplo, o didatismo com o qual o autor tenta fazer com que público e críticos entendam as razões da montagem de uma exposição como esta, do Salon des Indépendants de Bruxelas. Em segundo lugar, ele assevera que não é proposição da mostra se fixar em uma "esthétique déterminée", e que, mesmo buscando uma "orientation nouvelle", é também na busca da "personnalité" dos artistas que os organizadores da mostra se empenham. Victor Martin-Schmets afirma que esse texto não é assinado, mas, do ponto de vista dos argumentos que nele circulam, e sobretudo pelo encômio final dedicado à arte que é produzida em Paris, poderíamos supô-lo como sendo de Apollinaire. Mas isto é o que menos importa aqui. O mais importante é que ele nos dá um bom exemplo de que não se trata, nessa mostra, de um esforço de cercar a pintura através de limites que toda classificação impõe de um ou de outro modo.

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"À La Section d'Or, C'est ce soir que les cubistes inaugurent leur exposition"254. Esta exposição da Section d'Or é mostra inaugurada no dia 9 de outubro de 1912, na galeria La Boétie de Paris, para a qual Apollinaire contribui. Se essa mostra não é, em

253 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance Générale. Tome I. op. cit. p. 389. 254 APOLLINAIRE, Guillaume. "À La Section d'Or. C'est ce soir que les cubistes inaugurent leur exposition", in: Œ.C.P. T. II, op. cit. p. 486.

118 sua organização, diretamente ligada ao cubismo, o é, ao menos, em sua divulgação. Apesar disso, o texto que Apollinaire publica no dia seguinte ao de sua abertura mostra que se trata de exposição de pintura de "avant-garde", em sentido geral, e não especificamente de pintura cubista. O texto publicado no jornal L'Intransigeant, um diálogo certamente imaginado pelo autor, monta uma conversa entre três espectadoras que expõe suas visões acerca da mostra. Uma destas afirma que "ces tableaux éveillent en moi de sentiments esthétiques comme fait la musique" e, diante de tal afirmação, observa uma segunda: "d'après toi il s'agirait d'une sorte de musique plastique". Lembremos que Apollinaire, por vezes, quando escrevia sobre sua ideia da nova pintura, que se encaminhava para a arte pura, propunha: "On s'achemine ainsi vers un art entièrement nouveau, qui sera à la peinture [...] ce que la musique est à la littérature. Ce sera de la peinture pure"255. Essa comparação também está expressa em Meditações. Mais à frente, no texto dialógico, ele trata da pintura de "avant-garde" de um modo mais geral, pois, novamente, pela voz das interlocutoras, a particularidade do trabalho de cada um dos artistas se evidencia: "Chacun de ces peintres a sa tendance. Les uns sont réalistes et les autres mystiques. Mais ils se préoccupent tous du rythme de leurs tableaux...". O "rythme" é comum a todos, não a maneira. Para esta exposição da Section d'Or é redigido uma espécie de boletim informativo, como aquele do Musée d'Art Moderne de Bruxelas, que serve de apresentação da exposição e que é organizado por Apollinaire e outros escritores, tais como Olivier Hourcade, Roger Allard, Pierre Reverdy, Max Jacob, André Salmon, Maurice Raynal. Este último escreve destacando a impossibilidade de se agrupar todos os artistas que são ali reunidos sob uma "étiquette spéciale" e afirma também que o termo "cubiste" "perd de jour en jour de sa signification si tant est qu'il en eu jamais de bien définie"256. O crítico Raynal está com Apollinaire Segundo Apollinaire, o pintor, representando a "réalité-conçue" ou a "réalité- créée" pode produzir o efeito de três dimensões sobre a tela, podendo "en quelque sorte cubiquer", como ele escreve, ou seja, do que é possível entender, “cubiquer” para produzir efeitos de volume e sombra. Neste texto, embora trate da pintura “cubiste”, por assim dizer, da que está acontecendo na época, ele permanece no campo de conceitos que vinha elaborando desde seus primeiros escritos sobre as artes para tentar entender a

255 APOLLINAIRE, Guillaume. "Du sujet dans la peinture moderne", op. cit. 256 RAYNAL, Maurice. "L'Exposition de la Section d'Or", in: La Section d'Or. Numéro Spécial consacré à l'Exposition de la "Section d'Or", première année nº 1, 9 octobre 1912.

119 pintura dos artistas novos, e isso pode ser constatado mesmo quando ele propõe, em seguida, quatro "tendances" para o cubismo. Ora, é essa idéia de divisão que já nega a própria unidade, que já indicia que Apollinaire está sempre pensando as novas proposições dos artistas, acompanhando-as, tanto assim que, por vezes, o que está em uma de suas colocações também na outra se encontrará. É a busca da arte pura que une os artistas, cada qual com suas pesquisas. Muitos tomaram como definitiva as divisões de Apollinaire, e isso, ainda hoje; todavia, foi na própria época da referida exposição que as palavras de Apollinaire causaram espécie, como escreve Breunig, que prossegue em suas notas da edição de 1965, citando a carta de Apollinaire, enviada ao diretor do Mercure de France, em resposta a uma crítica de Gino Severini dirigida ao "écartèlement" proposto pelo autor: "il n'a pas compris entièrement le sens de ma classification qui, au demeurant, n'avait point la prétention d'être définitive"257. Apollinaire enumera quatro "tendances" distintas que se manifestam na pintura "cubista", dentre as quais duas delas, puras. A menos pura é intitulada de "cubismo físico" pois não chega à realidade, por assim dizer, essencial, uma vez que os artistas dessa divisão fazem pintura sobretudo a partir da observação do real. Por isso; assevera Apollinaire; as imagens das obras acabam por serem confundidas com o assunto, aqui, o observado. Outra não tão pura seria o "cubismo instintivo", pois, como duas outras de suas divisões, não parte da observação da realidade, mas sim, e nisto encontra-se a não- pureza, parte daquilo que é sugerido, a saber: o artista não chega a entender seu objeto, a própria arte, pois falta-lhe, como escreve Apollinaire, "la lucidité" e a "croyance artistique". Talvez possa-se dizer que por essa divisão não requerer grandes esforços artísticos, o escritor escreve que a mesma espalha-se por toda Europa:

"Il manque aux artistes instinctifs la lucidité et une croyance artistique; le cubisme instinctif comprend un très grand nombre d'artistes. Issu de l'impressionnisme français ce mouvement s'étend maintenant sur toute l'Europe".

No "cubismo científico", uma das "tendências" da arte pura, o artista está distante do objeto visível, pois os conjuntos pintados são novos uma vez que resultam da "realidade de conhecimento". Sendo assim, o artista elimina os acidentes, que são

257 APOLLINAIRE, G. Carta publicada no Mercure de France do 8 de février 1916, reproduzida em: Méditations esthétiques. Le peintres cubistes. Op. cit. p. 108.

120 visuais, e o anedótico, aspectos, do que se entende, que são próprios da arte que tem o objeto como referente. Também pode-se dizer, não só pelo que o autor escreve mas também pelos artistas que ele elenca, que o cubismo científico é o mais geométrico de todos. Por fim, o "cubismo órfico", que é, segundo Apollinaire, outras das grandes tendências da pintura moderna, pois é arte totalmente criada pelo artista, longe, portanto, da realidade visual. Essa arte, sempre segundo o autor, tem de apresentar ao mesmo tempo — simultaneidade — uma estética pura e agradável, ser construída de modo a capturar os sentidos e ter uma significação sublime, a saber, que seja capaz de apresentar-se como "sujet". Apollinaire escreve que essa arte é inventada por Delaunay.

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Não parece possível afirmar que Apollinaire tenha clareza da démarche de Delaunay no ano de 1910, pois o seu entendimento das telas do pintor fica apenas insinuado no comentário feito na ocasião dos Indépendants daquele ano. Em todo caso, em 1911, Delaunay volta a expor no mesmo Salão dos Indépendants para onde envia, entre outras obras, a Tour Eiffel, pertencente à "série d'œuvres la plus célèbre"258, segundo Gilles de La Tourette em seu estudo de 1950. Ao referir Delaunay em seu artigo sobre os Indépendants de 1911, Apollinaire escreve que "Parmi les mieux doués de ces artistes, on doit saluer Robert Delaunay" e mais à frente, destaca que o pintor "se développe dans le dessin et dans le coloris". Em outras palavras, se em 1910 ele insinua algum entendimento acerca do trabalho do pintor, considerando possivelmente a tela que inaugura a série, Tours, em 1911, ele atribui um lugar de destaque a Delaunay, assegurando que seu "métier est déjà très sûr". Tendo reservado um lugar de importância para a pintura de Delaunay em sua crítica, não seria de se estranhar que no ano seguinte, quando Delaunay envia La Ville de Paris ao Salon des Indépendants, Apollinaire escreva que se trata do envio "le plus important de ce Salon", pois o quadro resume, na sua visão, "tout l'effort de la peinture moderne". Em um segundo artigo publicado sobre o mesmo Salão, Apollinaire volta a destacar La Ville de Paris para resumir, desta vez, sua impressão sobre a tela: "La Ville de Paris est un tableau en quoi se concentre tout l'effort de la peinture [...] il ne s'agit plus de recherches,

258 TOURETTE, F. Gilles de la. Robert Delaunay. Paris: Charles Massin et Cie. Libraire Centrale des Beaux-Arts, 1950.

121 d'archaïsme ou de cubisme". Delaunay não é destacado no livro que transmutará Apollinaire no "apôtre", no "éxègete", no "Saint-Esprit" da pintura cubista.

O ORPHISME DE APOLLINAIRE

Sendo La Ville de Paris [ver p. 114] uma obra de viragem na trajetória do artista, e sendo, na visão de Apollinaire, o resumo de "toute la peinture moderne" da época, não parece gratuito que seja a partir do trabalho de Delaunay, e particularmente dessa tela, que o autor proponha o "écartèlement du cubisme" que ele expõe ainda em 1912 em sua conferência no âmbito da exposição de La Section d'Or. Apollinaire mesmo já adianta, quando comenta La Ville de Paris no início desse ano de 1912, que não se trata mais "des recherches, d'archaïsme ou de cubisme", como se destacou. Breunig nos lembra, com toques literários, que o "Orphisme apporte des perspectives nouvelles: il remplace la quatrième dimension par la section d'or, il suppirme l'objet pour ne lier au tableau que par rapport abstrait"259 o qual, segundo Marcel Brion, está estreitamente ligado à pintura de Delaunay. Maurice Raynal, autor de um dos textos publicados no bulletin da Section d'Or escreve que o "orphisme, dans son abolition de toute représentation posera les prémices de l'art abstrait"260. Michel Decaudin nos explica que Apollinaire passará a empregar o termo "Orphisme" para designar a "peinture nouvelle" que é feita por todos aqueles artistas que "tendent à faire de la peinture pure". Por outro lado, André Parinaud afirma que o termo "orphique" proposto por Apollinaire, a partir da pintura de Delaunay, para dividir o cubismo, tem como uma de suas origens sua própria obra literária pois sabe-se que desde 1908 Apollinaire trabalha nos poemas que comporão o seu primeiro volume de poesias publicado em livro, em 1911, Le Bestiaire ou le Cortège d'Orphée, "qui traite de poésie pure, sorte de "langage lumineux"261. Ao que tudo indica, é a luz que chama a atenção de Apollinaire incialmente na pintura de Delaunay. Em 1908 Apollinaire propõe, quando trata das "trois vertus plastiques", primeiras indicações de uma ideia de pintura pura dada em seus escritos, que "La flamme est le symbole de la peinture", "La flamme a la pureté qui ne souffre rien d'étranger". Aliás, é com uma frase sobre a luz que Apollinaire termina a primeira parte de suas Méditations esthétiques: "J'aime l'art d'aujourd'hui parce que

259 Cf. BREUNIG, in: Méditations esthétiques. Les peintres cubistes. op. cit. p. 104. 260 RAYNAL, Maurice. Peintres du XX Siècle, Génève: Éditions d'Art Albert Skira, 1948, p. 6. 261 PARINAUD, André. op. cit. p. 210.

122 j'aime avant tout la lumière et parce que tous les hommes aiment avant tout la lumière, ils ont inventé le feu", a mesma, que é reproduzida no catálogo da exposição de Delaunay em Berlim no início de 1913, e para a qual Apollinaire escreve o poema Les Fenêtres.

Dédicace d'Apollinaire sur le catalogue de l'Exposition Delaunay Fonte: Album Apollinaire262

Philippe Renauld faz observações importantes sobre este "orphisme" de Apollinaire, como por exemplo quando nos lembra que o medievalista Curtius escrevia na sua Littérature Européenne et le Moyen Âge Latin que Orfeu era identificado pela Gnose com o Cristo e que esta identificação pode ser localizada nos Autos Sacramentales de Calderón de La Barca onde Deus "est le musicien qui joue de l'instrument du monde". Renaud nos faz saber ainda desta tradição segundo a qual

262 Album Apollinaire. Iconographie réunie et commentée par Pierre-Marcel Adéma et Michel Décaudin. Paris: Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade, 1971, p. 169.

123 "Orphée fut initié à l'alchimie par les métallurges de l'Île de Vulcain qui furent, plus tard, adorés à l'instar des dieux et se nommaient "fils du Feux""263. É ele também quem refere esta "religion orphique" na qual à “luz” é reservada, sempre segundo o autor, como na poesia de Apollinaire, um lugar de destaque. Mas uma questão permanece: porque Apollinaire pensaria um "orphisme" a partir de Delaunay? Uma hipótese possível é a de considerar que na visão de Apollinaire é Delaunay o pintor que consegue resolver em sua pintura a polarização entre cor e desenho, por meio de uma síntese alcançada com a composição, que implica também o jogo das luzes formado pelas cores, de La Ville de Paris. Pela correspondência de Apollinaire sabemos que ele e Delaunay se tornam mais próximos por volta do início do ano de 1911 — apesar de se conhecerem desde 1907 — época em que o pintor trabalha em um retrato, inacabado, do autor. La Ville de Paris é obra que resulta de um longo período de pesquisa que remonta aos primeiros trabalhos pintados pelo artista, sendo a obra exposta em 1912, a "conclusion" de todo esse período de investigações, como escreve La Tourette. Segundo Golding, nesta época Delaunay "était très conscient de son évolution vers un art différent" e, ainda de acordo com ele, o pintor comunica suas "découvertes et ses impressions à Apollinaire dont il était devenu un ami intime"264. Mas são os escritos de Delaunay que nos dão direções mais precisas sobre o que o artista pensava acerca da pintura que realizava nestes anos. Delaunay data de 1912 o início de suas pesquisas sobre a cor pura aplicada em sua pintura. Sobre Ville de Paris ele anota que nesta tela lhe interessava criar relações "rythmiques entre les éléments de la composition - paysage, femmes et Tour" mas que a "brisure des lignes" impedia este movimento que era atingido em apenas algumas passagens nas quais ele teria se aproximado de algo como o que realizaria na "époque abstraite des Fenêtres", sua "première peinture abstraite en couleurs". Delaunay não vai muito além disto ao comentar La Ville de Paris nas anotações que foram compiladas e publicadas por Pierre Francastel em 1957, mas La Tourette transcreve em seu estudo de 1950 uma passagem de notas do pintor fornecidas a ele por , que é fundamental para se entender, da perspectiva do próprio Delaunay, qual o significado desta obra que ele pinta em 1912:

263 RENAUD, Philippe. Lecture d'Apollinaire. Lausanne: Édition L'Âge d'Homme, 1969, pp. 175-176. 264 GOLDING, J. op. cit. p. 41.

124 Après avoir brisé la ligne, ligne qui vient de très loin, on ne pouvait plus la recoller, la rajuster, c'est qu'il y avait justement à faire autre chose, à trouver un autre chose, à trouver un autre état d'esprit. C'était bien historiquement un changement de compréhension, donc de technique, de mode de voir... La Ville de Paris, les contorsions ne me satisfaisaient pas. Dans l'intuition je voyais, j'entre-voyais bien autre chose qui ne soit plus déchiré, déchiqueté, dramatique. Ces choses firent scandale au Salon des Indépendants de 1912 et dans tous les pays... A ce moment, j'eus l'idée d'une peinture qui ne tiendrait techniquement que de la couleur - des contrastes de couleurs, mais se développant dans le temps et se percevant simultanément, d'un seul coup. J'employais le mot scientifique de Chevreul: "Les Contrastes Simultanés". Je jouais avec les couleurs comme on pourrait s'exprimer en musique par la fugue, des phrases colorées, fuguées... Certains formats de toile étaient très larges par rapport à la hauteur. Je les appelais les Fenêtres, la série de Fenêtres. On ne peut nier l'évidence de ces phrases colorées vivifiant le surface de la toile de sortes de mesures cadencées se succédant, se dépassant en des mouvements de masses colorées. La couleur agissant cette fois presque en fonction même d'elle-même par contrastes. Je vais plus tard vous défininr en quoi consistent ces fonctions, ces lois des couleurs265.

Nesta passagem encontramos quase tudo de que necessitamos para entender a "démarche" de Delaunay ao pintar La Ville de Paris e compreender porque Apollinaire considerou a tela como obra que resumia "tout l'effort de la peinture moderne", valendo- se dela inclusive para propor e colocar em circulação a sua ideia de um "orphisme" distante do cubismo. Tecnicamente, é ao executar essa tela que o pintor entrevê uma outra maneira de pintar que "ne tiendrait techniquement que de la couleur - des contrastes de couleurs [...] se percevant simultanément, d'un seul coup". Como indica Delaunay, ele constrói esta nova direção para sua pintura, por assim dizer, construída por "frases coloridas", expressão paralela à da música, “frase musical”. A partir da série Fenêtres sua pintura será pautada pelo emprego do contraste simultâneo entre as cores, técnica que obsessionará o artista até o fim de sua vida. Delaunay tem consciência do desafio a enfrentar pois, como ele mesmo ressalta, "le cubisme était en pleine force", e, neste sentido, optar pelo caminho da cor, especialmente neste momento em que os pintores "avaient banni les couleurs de leur palette" não parecia ser a direção mais cômoda a seguir. Pois então, não encontrando interlocução entre os pintores de seu entorno, é com Apollinaire que ele discute as novas direções de sua pintura e é

265 LA TOURETTE, G. op. cit., p. 31.

125 Apollinaire mesmo quem dará apoio aos novos rumos traçados por ele: "Apollinaire qui faisait son livre sur le Cubisme, escreve Delaunay, [...] un beau jour invente au sujet de mon art le mot orphique - le tour était joué". Evidenciando cumplicidade entre os dois artistas, é ainda Delaunay quem nos sugere que o "écartèlement" proposto por Apollinaire tem origem mesmo em sua pintura, pois ao comentá-la ele escreve que: "Le Cubisme écartelé est le rassemblement de tous les éléments qui combattaient en peinture. Le mot écartelé veut bien dire que le cubisme est traversé par des forces écartelantes, différentes", sendo a sua própria pintura uma destas forças e, como lembra Francastel: "on sait qu'Apollinaire avait baptisé ainsi l'art de Delaunay pour le distinguer du cubisme ortodoxe des années 1912-1914..."266. Delaunay nada expõe na mostra da Section d'Or, o que pode ser entendido como uma manifestação de seu distanciamento da pintura dos chamados cubistas. Esta mudança de direção que é colocada em curso em sua pintura é anunciada formalmente por Apollinaire que, em dia próximo ao de sua conferência sobre o Écartelement du Cubisme na referida exposição, escreve a propósito de Delaunay enfatizando que o artista "de son côté, inventait, dans le silence, un art de la couleur pure", uma pintura que, segundo ele, se dirige "vers à un art entièrement nouveau qui sera à la peinture [...] ce que la musique est à la poésie. Ce sera de la peinture pure". A correspondência mantida entre os dois artistas, atesta a proximidade deles. Delaunay escreve que desde 1911 ele e Sonia eram "très liés avec Apollinaire"267 e que desta mesma época ele se recorda das "discussions et des lettres écrites au sujet de la peinture nouvelle" onde ele mostrava a Apollinaire as "précisions qui s'établissaient dès cette époque de ma peinture" na qual já se especificava as "bases d'une peinture possible". Várias cartas atestam essa cumplicidade, como a que Delaunay envia a Gertrude Stein junto da qual também remete o catálogo da exposição por ele realizada em Berlim, janeiro de 1913, onde se lê trecho em que o pintor refere o "orphisme" e o "cubisme", ressaltando a importância de Apollinaire: "[dans les] origines de nos efforts [...] vous avez vu dans mon atelier les premiers éléments de l'art abstrait en couleur (j'ajoute construction circulaire), période dite Orphique par Apollinaire dite Simultané (lois des contrastes) par moi"268 . Nos mesmos escritos em que menciona sua relação e discussões com Apollinaire a respeito de sua pintura, Delaunay especifica este

266 DELAUNAY, Robert. Du Cubisme à l'art abstrait. op. cit. p. 167. 267 Idem, p. 172. 268 APOLLINAIRE, Guillaume. "À Gertrude Stein", in: Correspondance Générale. Tome 3/** Lettres non datées - Envois - Bibliographie - Index., op. cit. p. 746.

126 "orphisme" com o qual o autor designava sua pintura: "Il baptisa du nom d'Orphisme toutes ces manifestations colorées qui étaient au sein du cubisme la première espérance de transformation après cette époque monotone, noire, grise, beige, verte, vers la première délivrance d'une plastique académique"269. Por volta de outubro-novembro de 1912, começa-se a esboçar a primeira exposição de obras de Delaunay na Alemanha. Em um estudo sobre as relações entre as vanguardas artísticas francesas e alemãs do início do século XX, Lionel Richard refere uma carta, "probablement d'octobre de 1912", em que Delaunay agradece o convite de Herwarth Walden, diretor da revista e da galeria Der Sturm de Berlim, de organizar uma exposição de suas pinturas na Alemanha: "Je suis content de ce que M. Marc [] m'écrit, que c'est avec grand plaisir que vous organiseriez une exposition successivement de mes œuvres dans plusieurs villes en Allemagne"270. Nesta mesma carta, o artista expõe a sua preocupação "d'augmenter l'intérêt de l'exposition" recorrendo à colaboração de um "littérateur qui s'occupe beaucoup de peinture moderne" — Apollinaire, no caso — para proferir conferências sobre a pintura francesa que, segundo Delaunay, produziriam "un grand effet". Ainda, a fim de informar o galerista berlinense sobre a movimentação artística parisiense, Delaunay se prontifica a lhe enviar "deux articles" sobre a pintura francesa, sem mencionar o autor. A confirmação da autoria desses escritos nos é indicada pela sequência de cartas trocadas entre Delaunay e Walden nas semanas seguintes, uma vez que, por meio delas, ficamos sabendo que Delaunay menciona, um artigo sobre a "Peinture Pure", artigo "inédit", como destaca o pintor, para ser publicado na revista Der Sturm. Walden responde afirmativamente a propósito da publicação do texto que é, como se sabe, "Réalité. Peinture Pure", redigido por Apollinaire e publicado na revista Les Soirées de Paris de dezembro de 1912, antes de ir parar nas páginas de Der Sturm no mesmo mês e ano. As reflexões artísticas expostas neste artigo colocam Apollinaire e Delaunay lado- a-lado e é possível supor que o texto resulte do diálogo entre os dois artistas. Ao menos, é isso o que entendemos quando lemos a anotação de Delaunay citada por Renaud em seu estudo sobre Apollinaire:

269 DELAUNAY, Robert. Du Cubisme à l'Art Abstrait, op. cit. p. 169. 270 RICHARD, LIONEL. Direction Berlin. Herwarth Walden et la revue Der Sturm. Avec des lettres de Guillaume Apollinaire, Alexandre Archipenko, Blaise Cendrars, Robert Delaunay, Albert Gleizes, Fernand Léger, Filippo Tommaso Marinetti, Ludwig Rubiner, Gino Severini. 1910-1922. Bruxelles: Didier Devillez Éditeur, 2008, p. 63.

127 c'est depuis ces dates [1912] que s'élaborent chez moi les moyens plastiques pour arriver à ce que dans mon esprit j'entrevoyais de réellement vivant en art pictural. Il y a, j'ai conservé, des écrits de l'époque. J'en ai d'Apollinaire manuscrits qui témoignent des préoccupations du moment d'opposer une nouvelle réalité active, vivante par le métier même [...]. Ces écrits parlent déjà l'esprit, car leur titre en dit long: Peinture Pure. Réalité271.

O que a passagem nos sugere é que os manuscritos citados por Delaunay são uma versão do texto "Réalité. Peinture Pure". Apollinaire publica duas versões distintas desse mesmo texto. Na versão na Soirées de Paris272 o autor destaca, logo na primeira linha do texto, as "recherches de peinture pure" feitas por Delaunay para, em seguida, expor as "déclarations esthétiques" que ele atribui ao pintor, entre elas, as que se referem à "simultanéité" da pintura de Delaunay, que, pela primeira vez, é indicada neste artigo de Apollinaire: "La simultanéité des couleurs, par le contraste simultané et toutes les mesures (impaires) issues des couleurs selon leur expression dans leur mouvement représentatif, voilà la seule réalité pour construire en peinture"273. Na segunda versão, a da Der Sturm274, após evidenciar a sua preocupação em estabelecer as "différences" que ele via entre a nova pintura e a "ancienne peinture d'imitation", Apollinaire afirma que nesta época via frequentemente "un jeune peintre dont on a beaucoup parlé ces dernières années, en France comme à l'étranger", Robert Delaunay, "l'un des artistes les plus doués et les plus audacieux de sa génération"275. Após indicar seu diálogo com o artista, e destacar a "conception des volumes colorés" de Delaunay, Apollinaire exibe, como na versão da Soirées, as declarações estéticas, ainda que reformuladas no que se refere à redação, que ele atribui ao pintor. A sequência em que as ideias aparecem nesta versão da Der Sturm é a mesma, porém, existem algumas modificações no texto graças às quais a ideia de uma "simultanéité" plástica se especifica e, além disso, distancia a pintura de Delaunay da dos demais artistas franceses deste início do século XX:

271 RENAUD, Philippe, op. cit. p. 225. 272 APOLLINAIRE, Guillaume. "Réalité. Peinture Pure", in: Les Soirées de Paris, nº 11, décembre 1912. Texto reproduzido em APOLLINAIRE, G. Œ.C.P. T. II, p. 494. 273 Idem, p. 495. 274 APOLLINAIRE, Guillaume. "Réalité. Peinture Pure", in:"Réalité. Peinture Pure", in: Der Sturm, vol. 3, nº 138-139, dezembro 1912. Reproduzido em Chroniques d'Art, op. cit. p. 344. 275 RENAUD, Philippe, op. cit. p. 225.

128 Le contraste simultané assure le dynamisme des couleurs et leur construction dans le tableau; il est le moyen le plus fort d'expression de la réalité. [...]. La simultanéité des couleurs par des contrastes simultané et par toutes les mesures (impaires) issues des couleurs selon leur expression dans leur mouvement représentatif, voilà la seule réalité pour construire en peinture. Il ne s'agit ni de l'effet (néo-impressionnisme dans l'impressionnisme), ni de l'objet (cubisme dans l'impressionnisme), ni de l'image (physique du cubisme dans l'impressionnisme). Nous arrivons à un art de peinture purement expressive, à l'exclusion de tout style passé (archaïque, géométrique), à un art qui devient plastique...276

Se na versão da Soirées Apollinaire e Delaunay esboçam uma ideia de "simultanéité" baseada na proposição do contraste simultâneo entre as cores como meio de construção, aqui, nesta versão de Der Sturm, embora tratem do contraste das cores, os artistas vão além, pois evidenciam que esse novo modo de se entender a cor nega o os modos como os artistas as trabalhavam anteriormente. A "simultanéité" não se ocupa nem do "efeito", impressionista ou neoimpressionista, nem do objeto, real ou essencial do cubismo, nem da imagem. A "simultanéité" é, portanto, algo novo, distante do efeito, do objeto observado e da imagem produzida, pois é uma arte puramente plástica. As proposições elaboradas por Apollinaire e Delaunay no final de 1912 para a redação de "Réalité. Peinture Pure" servem não apenas para elevar a pintura do segundo, mas também como uma espécie de preâmbulo da exposição que o pintor realizará em Berlim em janeiro de 1913. Como foi indicado, o próprio artista recomenda ao diretor da galeria Der Sturm, Herwarth Walden, a organização de uma conferência a ser proferida por um "littérateur", Apollinaire, "qui s'occupe beaucoup de peinture moderne". Enquanto Delaunay trabalha nas obras que serão expostas na galeria Der Sturm, Apollinaire esboça, em dois textos277, as linhas gerais de sua conferência sobre a "Peinture Moderne" francesa. No texto da conferência, que é publicado na revista Der Sturm no mês seguinte ao da abertura exposição de Delaunay, Apollinaire expõe, todavia, uma visão geral sobre a pintura produzida na França nesses anos iniciais do século XX e destaca o trabalho de alguns artistas, entre os quais, evidentemente, Delaunay. Ao tratar da pintura deste, Apollinaire não recorre ao termo "simultané", ou "simultanéité", empregados no texto

276APOLLINAIRE, Guillaume. Chroniques d'Art, op. cit. p. 344-349. 277 APOLLINAIRE, G. "Paris est Aujourd'hui" e "Je crois que l'Avenir", in: Œ.C.P. T. II, pp. 506-509.

129 "Réalité. Peinture Pure", mas ao "orphisme", que ele havia anteriormente proposto para caracterizar a pintura do artista:

"Delaunay croyait que si vraiment une couleur simple conditionne sa couleur complémentaire, elle ne la détermine pas en brisant la lumière, mais en suscitant à la fois toutes les couleurs du prisme. Cette tendance, on peut l'appeler l'orphisme"278.

Vimos que Apollinaire atribui a invenção da pintura "orphique" a Delaunay e, no texto dessa conferência sobre a pintura moderna, o autor emprega o "orphisme" para caracterizar a arte de outros pintores, como Kandinsky, Marc, Meidner, Macke, Jawlensky, Münter, , e também aos "futuristes italiens"279. Michel Décaudin nos dá uma explicação plausível para o emprego do termo relativamente à obra destes outros artistas:

À l'egard du Cubisme même, alors que son succès risque d'engendrer un nouvel académisme, il prend des distances se plaît à souligner les voies diverses ouvertes par les peintres cubistes plutôt qu'à tenter de définir une doctrine cohérente bientôt d'ailleurs suggère le mot orphisme pour désigner la peinture nouvelle. Terme assez général à son sens pour récouvrir les recherches de tous ceux qui tendent à faire de la peinture pure280.

ORPHISME E SIMULTANÉITÉ

A observação de Décaudin é importante, mas ela afasta um entendimento possível do orfismo que está mais especificamente ligado à pintura de Robert Delaunay, que é aquele indicado pelo próprio artista que entende o "orphique" de Apollinaire como equivalente ao seu "simultané". Sabemos que Apollinaire escreve o prefácio para o catálogo da exposição que Delaunay realiza em Berlim. O texto, um poema intitulado Les Fenêtres, como as pinturas de Delaunay, é, de acordo com J.C. Clark, "un effort conscient de la part d'Apollinaire pour traduire en termes poétiques l'esthétique de

278 APOLLINAIRE, G. "La Peinture Moderne", op. cit. p. 501. 279 Idem. p. 505. 280 DÉCAUDIN, Michel. Commente d'Alcools de Guillaume Apollinaire. Paris: Éditions Gallimard, 1993, p. 21.

130 l'Orphisme pictural de Robert Delaunay"281. Nesta mesma direção, outros estudiosos da obra de Apollinaire consideram Les Fenêtres próximo da pintura de Delaunay. Philippe Renaud indica, por exemplo, que o "orphisme" por meio do qual Apollinaire caracteriza a pintura de seu amigo vai aos poucos "établir un lien formel entre nouvelle peinture et nouvelle poésie". André Parinaud afirma que o poema publicado no catálogo da exposição de Berlim é, em poesia, aquilo que o "simultanéisme est à la peinture après les tableaux créés par Robert Delaunay"282. Visão semelhante é a de Anna Boschetti, que defende que, em sua gênese, o poema Les Fenêtres de Apollinaire está associado "aux premières tentatives de peinture non figurative de Delaunay"283; e é a mesma autora que também afirma que "dans ce poème Apollinaire s'est efforcé de réaliser le même progrès vers un art pur qu'il voyait dans les recherches de Delaunay". Gilles de La Tourette, por sua vez, sustenta que o poema é "rempli de l'influence de Delaunay"284 e Jeanine Warnod propõe que o mesmo é inspirado nos "procédés simulanéistes"285 do artista. O próprio Delaunay, para quem o poema "marque une des périodes les meilleures du poète", afirma que ele foi escrito em seu atelier286, na época em que os dois discutiam as direções de sua nova pintura. A leitura do poema, que será analisado no capítulo seguinte, nos permite entender que nele Apollinaire não apenas evoca a ideia de pureza287 que ele atribui à pintura do artista, mas também indica a proposição que serve a Delaunay para a formulação do que o pintor designará de "métier simultané", a saber: a lei dos contrastes simultâneos entre

281 CLARK, J.G. "Delaunay, Apollinaire et Les Fenêtres", in: La Revue des Lettres Modernes, nº 183- 188, Guillaume Apollinaire, 7, 1968, pp. 100-111. 282 PARINAUD, André. Apollinaire, 1880-1918 - Biographie et relecture. Paris: J.-C. Lattès, 1994. p. 309. 283 BOSCHETTI, Anna. La poésie partout. Apollinaire, homme-époque (1898-1918). Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 159. 284 TOURETTE, F. Gilles de la. Robert Delaunay. Paris: Charles Massin et Cie. Libraire Centrale des Beaux-Arts, 1950, p. 44. 285 WARNOD, Jeanine. Le Bateau-Lavoir. Paris: Éditions Mayer, 1986, p. 135. 286 DELAUNAY, Robert. op. cit. p. 172. Existem outras versões sobre a história da composição do poema Les Fenêtres de Apollinaire. André Billy, por exemplo, menciona uma delas: "Je voudrais citer un autre exemple de saméthode de travail. Lui, Dupuy et moi sommes assis chez Crucifix, rue Danou, devant trois verres de vermouth. Soudain Guillaume éclate de rire: il a complètement oublié d'écrire pour le catalogue de Robert Delaunay la préface qu'il s'est engagé à mettre à la poste, dernier délai, aujourd'hui même. Vite, garçon, du papier, un porte-plume et de l'encre! A trois, nous en viendrons vite à bout", in: BILLY, André. Apollinaire Vivant. Paris: Éditions de la Sirène, 1923, pp. 54-55. Esta versão de Billy é, segundo Michel Décaudin, contestada pelo próprio Delaunay. Em seu artigo "Controverse sur Les Fenêtres", Décaudin reproduz trecho de carta de Delaunay na qual lemos: "Chez moi c'était déjà l'époque constructive des "Fenêtres", "Équipe de Cardiff", "Soleil", etc. Chez Guillaume, c'étaient vies Fenêtres, poème dont j'ai le Manuscrit dédicacé fait dans mon atelier où il couchait, une paire de chaussures jaunes devant la fenêtre", in: DÉCAUDIN, Michel. "Controverse sur Les Fenêtres", Que Vlo-Ve? Série 3 nº 3 juillet-septembre 1991. 287 O próprio Delaunay afirma que "les Fenêtres marquent ce qu'Apollinaire appelait la peinture pure". In: DELAUNAY, R. op. cit. p. 171.

131 as cores, de Michel-Eugène Chevreul. O primeiro verso de Les Fenêtres já aponta para a teoria de Chevreul: "Du rouge au vert tout le jaune se meurt", escreve Apollinaire, expondo logo de saída esta ideia de contraste simultâneo entre as cores que o próprio Delaunay defende como sendo uma proposição importante para sua pintura. Sobre essa série de telas pintadas para figurarem na exposição de Berlim, Delaunay escreve que nelas já se encontravam os "premiers balbutiements vers l'architecture nouvelle du tableau" que, em sua visão, se traduzia pela "nécessité de la couleur formelle"288 por meio da qual ele se opunha à chamada pintura cubista, moderada no uso das cores. Para Delaunay, suas Fenêtres resultam "des rapports de couleurs mobiles" e, nelas, "la couleur est fonction de la forme". As notas deixadas pelo pintor mostram que ao longo do ano de 1913 ele está empenhado em construir o seu "métier simultané", e que a ideia deste projeto havia se manifestado na época de elaboração de Fenêtres: "Le simultanisme fut découverte en 1912 dans les Fenêtres pour lesquelles Apollinaire fit le poème célèbre"289. Delaunay prossegue suas explicações afirmando que o título Fenêtres é apenas "évocateur", pois sua pintura resulta de uma "technique complètement nouvelle", baseada na lei dos contrastes entre as cores que ele encontra nos escritos de Chevreul: "c'est le génial Chevreul qui fit remarquer par ses études théoriques les lois des couleurs simultanés"290. Passagens do tratado de Chevreul sobre a lei do contraste simultâneo de cores possibilitam um entendimento, ou antes, iluminam, as proposições que circulam nos textos do autor e do artista:

C'est dans ce sens qu'on dit: que le rouge est complémentaire du vert, et vice versa. Que l'orange est complémentaire du bleu, et vice versa. Que le jaune tirant sur le vert est complémentaire du violet et vice versa. Que l'indigo est complémentaire du jaune orangé et vice versa291.

288 É importante observar que se Delaunay indica nessa nota o seu interesse pela "couleur formelle", o seu interesse pelo uso da cor é esboçado desde as primeiras telas pintadas pelo artista. François Gilles de La Tourette observa, em um dos poucos estudos localizados sobre a obra do artista, que Delaunay manifesta interesse pela cor já quando executa Paysage de Bretagne, tela "conçue dans son esprit par une dominante de couleur bleue sur laquelle Robert reprend par d'autres bleues". In: LA TOURETTE, F. G. op. cit. 289 DELAUNAY, Robert. op. cit. p. 108. O pintor acrescenta a informação de que, malgrado o "simultanisme" tivesse sido descoberto por ele no momento em que executava a série de obras Fenêtres, ele já estava em "formation ou transition dans La Ville de Paris 1911", tela que Apollinaire destacaria no texto sobre o Salon des Indépendants como aquela que resumia "tout l'effort de la peinture moderne. 290 DELAUNAY, R. op. cit. p. 113. 291 CHEVREUL, Michel-Eugène. De la loi du contraste simultané de couleurs et de l'assortiment des objets colorés considéré d'après cette loi dans ses rapports avec la peinture, les tapisseries des Gobelins, les tapisseries de Beauvais pour meubles, les tapis, la mosaïque, les vitraux colorés, l'impression des

132

Quando Apollinaire inicia o seu poema Les Fenêtres escrevendo os versos, "Du rouge au vert tout le jaune se meurt", ele enuncia, em poesia, o que Chevreul expõe em sua teoria e o que Delaunay expõe sobre a sua pintura. Logo na primeira parte do tratado, o teórico afirma que o "contraste simultané" se manifesta todas as vezes que "nous regardons en même temps deux objets différemment colorés", e explica que a diferença existente entre estas cores pode ser de tal forma acentuada pelo contraste que "si l'un des objets est plus foncé que l'autre, celui-ci nous paraît plus clair et l'autre plus foncé qu'ils ne le sont", o que é possível, segundo o teórico, graças a uma modificação de natureza óptica. Chevreul exemplifica: "si une feuille de papier bleu est placé à côté d'une feuille de papier jaune, ces deux feuilles loin de nous paraître tirer sur le vert, comme on pourrait le présumer, d'après ce qu'on sait de la production du vert par mélange du bleu et du jaune, semblent prendre du rouge", ou como no verso de Apollinaire, "Du rouge au vert tout le jaune se meurt". Chevreul prossegue, e afirma que neste caso o azul se parecerá violeta e o amarelo "orangé", tonalidades predominantes na tela Fenêtres, de Delaunay, de 1912-13. [ver p. 44] Em outra passagem de seu tratado, Chevreul explica que "deux lumières diversement colorées, prises dans une certaine proportion, ont de reproduire de la lumière blanche, qu'on exprime par les mots de lumières colorées complémentaires". São várias as páginas de seu tratado que descrevem as muitas combinações possíveis entre as cores, a luz colorida dos corpos que resultam da juxtaposição, dos contrastes que ocorrem entre as cores entre si, das misturas ópticas que as cores provocam entre elas e o fundo, quando branco e inclusive quando o preto, sobre o qual ele escreve que esses fundos refletem “une petite quantité de lumière blanche”, luz esta que “parvenant à la rétine en même temps que la lumière colorée des corps qui y sont juxtaposés”292. Esta compreensão da luz na acepção de Chevreul também pode ser localizada em textos de Apollinaire. Quando, por exemplo, o autor escreve sobre o Salon des Indépendants de 1913, ele destaca a "simultanéité" da pintura de Delaunay e, em seguida, considera a Équipe de Cardiff do artista:

étoffes, l'imprimerie, l'enluminure, la décoration des édifices, l'habillement et l'horticulture. Par M. E. Chevreul. Membre de l'Institu de France, de la Société royale de Londres, de la Société des sciences de Copenhague, de l'Académie royale de sciences de Berlin, de la Société royale et centrale d'agriculture du département de la Seine, etc. Paris: Pitois-Levrault et Cie, 1839, p. 5. 292 CHEVREUL, p. 31. Claro está que Chevreul pensa em pigmentos, não do espectro solar.

133 L'Équipe de Cardiff, troisième représentation, de Delaunay. La Toile la plus moderne du Salon. Rien de successif dans cette peinture où ne vibre plus seulement le contraste des complémentaires découvert par Seurat, mais où chaque ton appelle et laisse s'illuminer toutes les autres couleurs du prisme. C'est la simultanéité. Peinture suggestive et non pas seulement objective qui agit sur nous à la façon de la nature et de la poésie! La lumière est ici dans toute sa vérité.293

Robert Delaunay L'Équipe de Cardiff 1912-13

Como se vê, quando Apollinaire destaca a "simultanéité" da tela de Delaunay ele não se limita a entendê-la apenas do ponto de vista do uso das cores, do contraste simultâneo entre as cores, mas também das luzes: "La lumière est ici dans toute sa vérité", "chaque ton apelle et laisse s'illuminer pour toutes les autres couleurs du prisme". Delaunay, por sua vez, comentará a sua Équipe de Cardiff afirmando ser esta tela a que melhor representava seu trabalho com a cor — "la plus significative dans le expression de la couleur" —, aquela onde ele tenta criar toda uma "architecture en couleur".

293 CHEVREUL, p. 5.

134 Embora o artista considere a tela a "plus significative" na expressão da cor, não podemos deixar de observar que sua consideração é baseada em uma comparação com La Ville de Paris. Obviamente, comparada a esta, L'Équipe de Cardiff se destaca no que se refere ao uso das cores, sobretudo naquelas zonas onde o contraste entre as cores é mais evidente, como na do cartaz, "Astra", que ocupa o centro da composição, e que é exibido em destacado contraste entre cores amarelas, vermelhas, verdes e azuis, e que, na compreensão do artista, representa uma "mesure de couleur qui compte en couleur"294. Há, no entanto, outras zonas da composição em que o trabalho com as luzes, importante para Delaunay295, é também enfatizado, contribuindo inclusive para destacar o contraste das cores na tela, como a exemplo das duas áreas iluminadas entre as quais figura o cartaz. Em seu tratado, Chevreul menciona um contraste de "lumières" e um contraste de "couleurs", que são enfatizados por ele quando o teórico propõe um "double phénomène du contraste simultané", a saber, o "contraste de ton" e o "contraste de couleur" propriamente dito. Em suas anotações Delaunay, como Apollinaire, destaca a importância da pintura de Georges Seurat, ao considerar este pintor o "premier théoricien de la lumière". Sabemos por Signac que é com Seurat que ocorre as primeiras tentativas de aplicação das teorias de Chevreul no domínio da pintura, mas na visão de Delaunay a pintura de Seurat limita-se a mostrar esta compreensão no domínio das luzes, o contraste de luzes ou de tom, portanto. Apollinaire parece perceber esta duplicidade da proposição de Chevreul, pois quando escreve sobre Équipe de Cardiff ele justamente destaca o "double phénomène du contraste simultané" que vê na tela do artista, o que, já aparecia nas Fenêtres: nela reconhecemos zonas de cores juxtapostas, como as em azul, verde, vermelho e amarelo, assim como zonas em que estes contrastes são produzidos através das luzes. A compreensão das proposições de Chevreul sobre o contraste simultâneo não se mostra apenas através da realização das obras que o pintor executa nesta passsagem de

294 Segundo Delaunay: "L'Équipe de Cardiff, 1913, est plus significatif dans l'expression de la couleur, moins brisé. L'affiche jaune en plein tableau contraste par les bleus, les verts, l'orange; c'est une mesure de couleur qui compte. Dans La Ville de Paris on ne rencontre pas un contraste aussi souligné, aussi voulu que dans l'Équipe de Cardiff [...]". In: DELAUNAY, Robert. op. cit., p. 97. 295 Como precisa Delaunay no curso desta mesma anotação: "Dans Saint-Séverin, on voit un vouloir de construire, mais la forme est traditionnelle. Les brisures apparaissent timidement. La lumière brisant les lignes dans les voûtes et vers le terrain. La couleur est encore clair-obscur, malgré le parti pris de ne pas copier objectivement la nature, ce qui fait encore perspectif. Comme chez Cézanne, les contrastes sont binaires et non simultanés. Les réactions de couleurs conduisent à la ligne. La modulation est encore l'expression classique dans le sens du métier expressif. Cette toile marque bien le désir expressif d'une forme nouvelle mais n'y aboutit pas". In: DELAUNAY, Robert. op. cit., p. 87.

135 1912 para 1913. Gilles de La Tourette afirma que por esta mesma época Delaunay "était un studieux de Chevreul"296 e Pierre Francastel chega a afirmar uma "dépendance trop étroite" das reflexões do artista a partir da pintura de Seurat e das teorias de Chevreul. Malgrado o crítico alerte que nos enganaríamos ao acreditar que a pintura de Delaunay resulte de uma reflexão estritamente "théorique", Francastel observa que a pintura do artista resulta de um acumulado de informações teóricas e técnicas que o artista adquire em seu período de formação, de 1906 a 1910, como ele situa. Seja como for, é importante voltar ao que Delaunay pensa acerca de seu "métier simultané" para mostrar que sua concepção de "simultanéité" é absolutamente distinta da que é proposta pelos futuristas italianos, principalmente Umberto Boccioni, artistas que reivindicaram no ano de 1913 a ideia da "simultanéité" como sendo específica de sua arte. Como escrevia Delaunay, o "simultanisme" havia sido descoberto por ele no momento em que executava sua séria Fenêtres. Apesar de fixar esta série como sendo o marco inicial desta nova técnica, o artista afirma que a ideia já estava em formação, "ou transition", desde La Ville de Paris. O pintor sublinha que esta ideia de um "métier simultané" não deve ser confundida com uma "vision simultanée" da pintura a qual, segundo ele, "a toujours existé dans l'art", mas que deve ser entendida como uma "art de contrastes simultanés des formes de la couleur", que ele reivindica como sendo característica de sua pintura. Delaunay opõe o seu trabalho com a cor ao da cor tal como usada na pintura impressionista, afirmando que: "déjà dans l'impressionnisme il y a des symphonies de construction par la couleur"297, mas ressalta que na pintura que é designada por este rótulo as cores "ne sont pas encore formelles" como em sua pintura. Sua concepção é a de que apenas este "métier simultané" seria capaz de criar uma "construction formelle totale, esthétique, de tous les métiers". Esta "couleur-forme", como ele chamará mais tarde, é cara ao artista, pois não lhe serve apenas para distanciar a sua arte da arte dos impressionistas mas também para afastá-lo da pintura dos chamados "cubistas" e, posteriormente, da dos futuristas. A reflexão de Delaunay sobre sua arte é resumida em uma passagem de outra versão do artigo de Apollinaire, "Réalité. Peinture Pure", que é reproduzida por Gilles de La Tourette. A passagem é importante, pois mostra a compreensão que o poeta tem da trajetória artística do pintor e do seu "métier simultané", ainda em elaboração na época:

296 LA TOURETTE, G. Robert Delaunay, op. cit. p. 43. 297 Idem, p. 110.

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L'époque constructive de Robert Delaunay commence après la Ville de Paris. Les brisures des formes par la lumière créent de plans colorées. Ces plans colorées sont la structure du tableau et la nature n'est plus un sujet de descriptions, mais un prétexte, une évocation poétique d'expression par des plans colorés qui s'ordonnent par des contrastes simultanés. Leur orchestration colorée crée des architectures qui se déroulent comme des phrases en couleurs et aboutissent à une nouvelle forme d'expression en peinture, à la Peinture Pure. L'effort impressionniste a réussi finalement à peindre de vrais simulacres de la lumière. C'est alors qu'arrive Seurat qui découvre la loi du contraste de couleurs complémentaires, et si lui-même n'a pas encore su se défaire de l'idée du tableau, quoique ce contraste ne pourrait exister qu'en lui-même et par lui-même, son apport fut très important car il avait permis de découvrir de nouvelles voies à la génération suivante des chercheurs298.

A SIMULTANEITÀ FUTURISTA

Como foi visto, o "métier simultané" de Delaunay que começa a ser delineado, divulgado e defendido a partir de 1912, segue ao longo de todo ano de 1913 e avança. Com a circulação do termo "simultané", bem como a de suas variantes — "simulanéité", "simultanisme", "simultaneïsme" —, o mesmo passa a ser objeto de disputa entre os artistas ligados ao futurismo italiano e Delaunay. Essa disputa tem início já no mês seguinte ao da publicação da resenha de Apollinaire sobre o Salon des Indépendants de 1913 quando ele destaca a Équipe de Cardiff de Delaunay. Em abril de 1913, um mês depois da abertura do Salão, o pintor e escultor Umberto Boccioni publica artigo na revista italiana Lacerba299, no qual acusa os pintores franceses de plagiarem ideias e proposições pictóricas que os artistas italianos reclamam como sendo suas. Segundo Philippe Renaud, Boccioni escreve que o "orphisme" "n'est qu'un plagiat des principes fondamentaux de la peinture futuriste", e que esta nova tendência "démontre simplement quel profit nos collègues français ont su tirer de notre première exposition futuriste à Paris"300 — a que é realizada em fevereiro de 1912.

298 Apollinaire citado por La Tourette, op. cit. p. 39. 299 BOCCIONI, Umberto. "I futuristi plagiati in Francia", Lacerba, nº 7, abril 1913. 300 CF: RENAUD, Philippe, op. cit. p. 231.

137 Sobre o contexto de publicação deste artigo, Gino Severini escreve em seu livro de memórias, La Vie d'un Peintre301, que Boccioni teria ficado profundamente irritado com as referências ao "orphisme" e a "simultanéité" feitas por Apollinaire e Delaunay nestes anos de 1912-1913, sem fazer qualquer menção aos futuristas italianos que se acreditavam os inventores do conceito, ou mais especificamente, do termo. É verdade que no texto redigido por Boccioni para apresentar a exposição de 1912 em Paris, ele já mencionava a "simultaneità", embora empregasse o termo em uma acepção absolutamente distinta da que Apollinaire e Delaunay empregavam. Apollinaire mesmo, em uma resenha publicada sobre esta exposição futurista, chamava a atenção para o termo "simultanéité", pois era justamente escrevendo-o que Apollinaire iniciava seu artigo: "La simultanéité des états d'âmes dans l'œuvre d'art: voilà le but enivrant de notre art"302. Na visão de Apollinaire, a declaração acima, que figurava no texto do catálogo da exposição dos pintores italianos, evidenciava a "originalité et le défaut", simultaneamente, de sua pintura, pois, segundo Apollinaire, a ideia de "peindre les formes en mouvement" era original mas, ao contrário, a ideia de uma pintura presa ao "sujet" — os "états d'âme", como Apollinaire sublinha em seu texto —, em um momento em que os pintores da avant-garde francesa já o declaravam como uma preocupação menor da pintura deste século, era o defeito da arte deles: "tandis que nos peintres d'avant-garde ne peignent plus aucun sujet dans leurs tableaux [...] les futuristes italiens prétendent ne point renoncer au bénéfice du sujet". Severini nos mostra que Boccioni se apressa em publicar o seu artigo em Lacerba antes mesmo de saber que "simultanéité" era esta, a de Apollinaire e Delaunay:

Il faut que tu t'informes à tout prix sur la tendance (éphémère selon moi) de l'Orphisme. C'est un déguisement de l'influence futuriste qu'ils ne veulent pas reconnaître. Chauvinisme!... j'ai déjà répondu dans un autre article assez salé dans le numéro de Lacerba qui paraîtra demain. Il servira à tenir en respect tous ces imbéciles italiens et étrangers avant qu'ils ne s'emparent de ce mot très nouveau [...] Cherche de reproductions de toutes sortes, des journaux, des revues et des photographies. [...] Tâte le terrain chez Picasso, Kahnweiler, à la Closerie de Lilas, Sagot, Canudo, Apollinaire. Ce qu'ils pensent de cet Orphisme, ce qu'ils en disent, si on remarque que c'est notre influence303...

301 SEVERINI, Gino. La Vie d'un Peintre. Paris: Éditions Hazan, 2011. 302 APOLLINAIRE, Guillaume. "Les Peintres Futuristes Italiens", in: Œ.C.P. T. II, p. 406. 303 SEVERINI, Gino. La Vie d'un Peintre. Paris: Éditions Hazan, 2011, p. 138-139.

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Pela leitura da carta reproduzida por Severini fica evidente que Boccioni sequer fazia ideia do que este "orphisme" ou a "simultanéité" divulgados por Apollinaire e Delaunay sigficavam, e por isso não é capaz de entender que se tratava de outra concepção de pintura e arte. O que ocorre é que enquanto Boccioni se prende ao termo, Apollinaire tenta pensar a partir das obras e teorias, e tanto é assim que quando ele escreve sobre a exposição de esculturas deste artista, realizada meses depois da publicação do "article assez salé" do futurista, em junho de 1913, ele volta a destacar a sua "simultanéité", desta vez na escultura: "La vérité des matières, la simultanéité sculpturale, la violence du mouvement, voilà les nouveautés qu'apporte la sculpture de Boccioni"304. Mas se aqui Apollinaire emprega o termo "simultanéité", quando fala das obras propriamente ditas, ele as rebaixa, pois as julga interpretadas, "modelées d'après nature", enquanto que em Paris "des jeunes sculpteurs ont tendu vers le renouvellement des formes"305. Sabemos que é Boccioni quem redige os prefácios da exposição de pintura futurista de 1912 e da de escultura de 1913, e que Apollinaire critica o que neles se expõe. Quando escreve, por exemplo, sobre a primeira exposição de pintura futurista realizada em Paris em 1912, ele afirma que:

L'originalité de l'école futuriste de peinture c'est qu'elle veut reproduire le mouvement. C'est là une recherche parfaitement légitime mais il y a belle lorette que les peintres français ont résolu ce problème dans la mesure où il peut être résolu. En réalité, les peintres futuristes ont eu jusqu'ici plus d'idées philosophiques et littéraires que d'idées plastiques306.

Sabemos por Severini que Boccioni sofria da mesma afetação que seu companheiro Marinetti — Apollinaire mesmo escrevia que Marinetti "veut jouer de notre temps en Italie le rôle de restaurateur des artes que Saint-François d'Assise y joua autrefois"307 — e chegava a declarar no prefácio desta exposição que era ela a mais importante manifestação da arte italiana desde Michelangelo, ou que eram eles, os

304 APOLLINAIRE, Guillaume. "Première Exposition de Sculpture Futuriste du Peintre et Sculpteur Futuriste Boccioni", in: Œ.C.P. T. II, p. 599. 305 Apollinaire cita como exemplo os trabalhos de Auguste Agéro, de Picasso, de Archipenko e até mesmo de Hogart, que segundo ele "a fait don à Boccioni de sa spirale, cette "ligne de beauté" dont il fut tant parlé au XVIIIe siècle". 306 APOLLINAIRE, Guillaume. "Chroniques d'Art. Les Futuristes", in: Œ.C.P. T. II, p. 409. 307 Idem, p. 407.

139 futuristas italianos, os únicos artistas preocupados em renovar a pintura e a escultura na Itália, ou, ainda, que haviam eles superado toda a fase da pintura francesa produzida desde o século XIX até "nostri amici Fauves e Cubisti"308. Boccioni declarava no prefácio do catálogo que os artistas futuristas se opunham absolutamente aos artistas franceses pois, segundo ele: "Ils s'acharnent à peindre l'immobile, le glacé et tous les états statiques de la nature", e acrescentava que "ils adorent le traditionnalisme de Poussin, d'Ingres, de Corot, vieillissant et pétrifiant leur art avec un acharnement passéiste qui demeure absolument incompréhensible à nos yeux"309. Tais declarações são criticadas em coro por artistas e críticos franceses na época. Olivier Hourcade escreve, comentando a exposição de pintura futurista, que "on jurerait qu'un sage disciple des cubistes et un encore plus sage disciple de Signac les ont peintes en collaboration e que os futristas desejavam "brûler les musées pour détruire les preuves"310. Até mesmo Severini, que integrava o grupo italiano, reconhecia: "on doit confesser qu'il faut une bonne dose d'inconscience pour faire de telles déclarations"311. Apollinaire resumia as declarações de Boccioni escrevendo: "C'est imbécile... On n'ose même pas porter un jugement sur tant de sottise..."312. Esse apego exagerado de Boccioni ao representar os artistas de seu grupo é explicada pelo mesmo Severini, que escrevia:

En définitive, le fond de la question tenait à ceci: tandis que Boccioni circulait à travers l'Europe, de capitale en capitale, en faisant le commis voyageur du Futurisme, [...], et tandis qu'à Milan on s'occupait trop à fabriquer des manifestes [...], à Paris on travaillait et chacun avançait ses propres conclusions313.

Apollinaire nada escreve sobre essa investida de Boccioni contra os pintores franceses, e contra ele mesmo, até porque, como reconhece Severini, "l'article de Boccioni passa inaperçu" no meio artístico parisiense. No entanto, por meio de uma carta enviada por Apollinaire a Ardengo Soffici, ficamos sabendo que o autor tinha conhecimento do artigo publicado por Boccioni em Lacerba, mas se omite

308 BOCCIONI, Umberto. Pittura Scultura Futuriste (Dinamismo Plastico). Milano: Edizioni Futuriste di Poesia", 1914, pp. 373-391. 309 Citado por COQUIOT, Gustave. Cubistes. Futuristes. Passéistes: Essai sur la Jeune Peinture et la Jeune Sculpture. Paris: Libraire Ollendorff, 1914, p. 65. 310 Citado por GOLDING, J. Le Cubisme, p. 56. 311 SEVERINI, Gino, op. cit. p. 103. 312 APOLLINAIRE, Guillaume. "Chroniques d'Art. Les Futuristes", in: Œ.C.P. T. II, p. 410. 313 Idem, pp. 140-141.

140 absolutamente em responder pelas razões que ele mesmo expõe na carta ao amigo futurista:

Je ne demanderais pas mieux que donner vers ou prose à Lacerba. Mais est-ce possible? Boccioni vient de m'y traiter de plagiaire et tous les jeunes peintres français avec moi. Ce sont des procédés intolérables dans tous les cas mais particulièrement quand il s'agit de peinture moderne. J'aurais volontiers répondu si la polémique avait été placée sur un terrain de courtoisie. Mais à la mauvaise foi, aucune réponse. Il y a le même rapport de l'orphisme au futurisme que de Raphaël aux images d'Épinal. Il y avait belle lurette que Delaunay avait semé les toiles des débris de ses tours que Boccioni vagissait encore314.

Apollinaire volta a discutir a posição dos futuristas ao menos em duas outras cartas enviadas a Soffici. Em uma delas, o autor recomenda ao amigo artista e a seu grupo: "ne soyez pas injuste envers les Français car ils ont inventé presque tout le modernisme intellectuel de même qu'ils se trouvent au premier rang en ce qui concerne les inventions artistiques de notre âge"315. Em outra carta, o autor queixa-se da atitude de Boccioni que, segundo ele, "veut poser l'art futuriste italien en rival de l'art français"316. Se é um exagero ou não do autor, a maneira como situa a arte produzida na França em relação a que era produzida na Itália no mesmo período, é uma questão que suscita pesquisa, reflexão, debate. Mas o que é possível afirmar com alguma segurança é que a pintura produzida na França, apesar das posições de superioridade defendidas por Boccioni, interessa aos jovens pintores italianos da época. Se não interessasse, qual seria a razão, a justificativa do grupo de artistas para se empenhar na organização de uma exposição de pintura futurista na capital francesa? Publicidade ou comércio não parecem ser a explicação mais razoável, ao menos a mais convincente, já que Boccioni mesmo evidenciava sua admiração pela pintura produzida na França pelo motivo do "louable mépris du mercantillisme artistique" que a pintura destes artistas representava a seus olhos. Ainda, em carta a Apollinaire, Soffici revela, em 1912, seu interesse pela ainda pouco conhecida — por ele — pintura de Renoir, sim, de Renoir, artista sobre o qual publica artigo no número de Lacerba do 15 de fevereiro de 1912.

314 APOLLINAIRE, Guillaume. "À Ardengo Soffici", Paris, mercredi 9 avril 1913, in: MARTIN- SCHMETS, Victor [org.]. Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Tome 1. EN guise d'introduction 1891-1914. Paris: Honoré Champion, 2015, p. 527. 315"À Ardengo Soffici", 23 juillet 1913. Idem, p. 541. 316 "À Ardengo Soffici", 10 octobre 1913. Idem, p. 560.

141 Severini menciona em seu livro o desconhecimento de Boccioni da história da pintura francesa — segundo ele, Boccioni "connaît mal la peinture française"317 — ainda que em seus escritos, sobretudo os que são publicados no capítulo em que ele se dedica em seu livro Dynamisme Plastique. Peinture et Sculpture Futuriste, a comparar a pintura francesa e a italiana, são evidenciadas proposições bastante semelhantes às que encontramos já em circulação neste princípio de século XX na França. O mesmo Severini revela também a importância que a pintura francesa teve em sua formação artística:

Pour ma part, je prennais toujours le Néo-impressionnisme pour point de départ et Seurat pour maître; pour moi, l'idée de classicisme était représentée brillamment, en dehors de Cézanne, par Seurat, et je continuais à travailler dans ce sens, en voulant traiter la ligne et la couleur selon l'esprit scientifique avec lequel les néo-impressionnistes avaient traité la couleur. Dans le très beau livre de Paul Signac, D'Eugène Delacroix au Néo- Impressionnisme, qui m'avait donné par Dufy quand nous étions voisins d'atelier, les lois de la couleur sont bien résumées par un peintre [...]318.

Apesar da reconhecida importância que a pintura francesa tem para a arte dos futuristas italianos, como indicado por Severini, Apollinaire nada comenta, publicamente, sobre o artigo publicado por Boccioni em Lacerba. Porém, o autor parece se lembrar dele quando volta a falar dos futuristas no texto que publica sobre o Salon de La Société Nationale de Beaux-Arts, divulgado dias depois da publicação do texto de Boccioni em Lacerba. Neste texto, Apollinaire associa a pintura dos futuristas italianos à pintura de outro compatriota, Giovanni Boldini, um pouco mais velho: "Les portraits de M. Boldini319 sont toujours aussi étourdissants. Peut-être l'étonnerait-on fort si l'on ajoutait que sa manière ne va pas sans analogies avec celle des peintres futuristes"320. A ironia é clara, em primeiro lugar porque sabemos que tanto Apollinaire quanto os "jeunes peintres français" desprezam, de um modo geral, a pintura que é exibida neste Salão, bem como no da Société des Artistes Français, os chamados salões "oficiais". Em segundo, por valer-se da mesma ligação patriótica da qual lança mão

317 SEVERINI, Gino. La Vie d'un Peintre. Op. cit. p. 159. 318 SEVERINI, Gino. Op. cit. p. 233. 319 Por meio de artigo publicado na coluna La Vie Artistique, de Thiébault-Sisson, no Le Temps do 13 avril 1913, sabemos que os retratos expostos por Boldini evidenciam "avec régularité sa carrière de peintre des nervosités contemporaines, et suggère plutôt qu'il n'indique les mouvements. Ils les suggère avec esprit, et d'une façon toujours personnelle". 320 APOLLINAIRE, Guillaume. Œ.C.P. T. II, p. 563.

142 Boccioni em seu artigo: Boccioni relaciona ele, Apollinaire, e Picasso às artes italianas; Apollinaire relaciona os pintores futuristas à maneira de Boldini, pintor que, aos olhos da avant-garde da época, dos futuristas inclusive, era mais do que "ultrapassado".

Giovanni Boldini Madame Michelham 1913

Apollinaire volta a se referir da "simultané", agora distante dos futuristas, nas resenhas que publica sobre o Salon d'Automne de 1913. Segundo o autor, a "influence de la peinture moderne", extensivamente compreendida por ele como sendo aquela do "cubisme, orphisme, contrastes simultanés", pintura pura, é perceptível em quase todas as salas deste Salão. Apesar de destacar o "contraste simultané" bem no ínicio do artigo, e apontar sua influência nesta mostra, Apollinaire julga que a Femme [Portrait de Mme. Matisse] de Matisse e os Bateaux de Péche de Gleizes, obras que ele refere reiteradas vezes nos demais artigos que publica sobre este Salão, já seriam suficientes para "honorer un salon", e apenas ao comentar as obras de e de Bruce, é que ele irá mencionar o conceito, indicando ao mesmo tempo sua origem, na cor pura: "Dans La Conquête de l'Air [...] il y a un grand effort vers la couleur pure, nous voici presque dans les contrastes simultanés dont il n'y a ici qu'un autre exemple, Compositions, de Bruce"321. Ao comentar a sala 6 do mesmo Salão, aquela que, segundo ele, é necessário "examiner avec le plus de soin si l'on veut être au courant de la peinture actuelle", Apollinaire menciona novamente o "simultané" da obra de La

321 APOLLINAIRE, Guillaume. "M. Bérard inaugure le Salon d'Automne. Un coup d'œil d'ensemble sur l'exposition du Grand Palais", in: Œ.C.P. T. II, pp. 605-607.

143 Fresnaye, sem nenhum outro destaque, além do de apontar nela a influência da pintura de Delaunay. Neste mesmo texto, Apollinaire volta a tratar da pintura dos futuristas, afirmando que os "philosophes", "en vue de combattre l'art moderne", munidos de todo um "arsenal de sophismes", confundem "toute la nouvelle peinture avec la peinture futuriste". Na opinião do autor, não havia na França "peintres futuristes au sens des manifestes publiés à Milan", e ele se defende, inclusive, do "manifeste-synthèse" L'Antitradition Futuriste, que ele mesmo publica neste ano de 1913, argumentando que este "n'était pas spécialement futuriste", pois nele eram exaltadas "différentes tentatives nouvelles"322. Aliás, este mesmo ponto de vista Apollinaire continuará sustentando quando, quatro anos mais tarde, em 1917, escreve em uma carta enviada ao amigo Léonide Massine esclarecendo que a designação "futurisme" havia sido pensada inicialmente por Marinetti para designar "toutes les recherches et synthèses" artísticas deste início de século na França323. Nesta carta, Apolinnaire novamente reconhece a importância da pesquisa dos artistas futuristas relativas à tentativa de figurar o movimento na pintura, mas ao mesmo tempo sublinha que eles estavam longe de serem os primeiros a se dedicarem a este gênero de pesquisa no domínio das artes. Apollinaire continua, escrevendo e reconhecendo que o futurismo "n'est pas sans importance", e que seus manifestos, ao menos os redigidos em francês, não deixaram de exercer influência sobre a "terminologie qu'on emploie aujourd'hui parmi les peintres les plus nouveaux". Mas do ponto de vista artístico foi, na sua visão, a pintura francesa que, do "impressionnisme au cubisme" teria exercido maior influência no domínio da produção artística do período. De acordo com o autor, os artistas "ont toujours philosophé", mas ele ressalta que os pintores "ne sont point des philosophes", pois a sua atenção deveria se voltar para a pintura mesma, ou como ele explica:

Les formes et la matière, voilà les objets et les sujets des meilleurs d'entre les peintres d'aujourd'hui, sans qu'ils s'embarrassent du mouvement, du devenir et autres fluidités qui conviennent seulement à la musique. Si quelques-uns d'entre eux ont été amenés à inventer, à créer, sans paraître imiter la nature, ils ont inauguré un nouvel art qui est peut être à l'ancienne peinture d'imitation ce que la musique est à la littérature, mais cette peinture n'a aucune autre ressemblance avec la musique, car dans

322 Idem, p. 619. 323 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance Générale, op. cit. Tome 3, 1916-1918, p. 346.

144 la peinture tout se présente à la fois, l'œil peut errer sur le tableau, revenir sur une telle couleur, regarder d'abord de bas en haut, ou faire le contraire; dans la littérature, dans la musique, tout se succède et l'on ne peut revenir sur tel mot, sur tel son au hasard324.

Nesta passagem do artigo, Apollinaire evidencia sua visão acerca da pintura da época e nela não só encontramos uma parte representativa de suas concepções artísticas mas também a indicação de uma arte baseada na ideia de simultaneidade — "dans la peinture tout se présente à la fois" — que será igualmente importante para sua reflexão sobre a poesia. Como visto, neste mesmo artigo Apollinaire afirma que os manifestos dos italianos exerceram influência sobre a "terminologie" empregada pelos novos artistas da época, ainda que não determine a quais termos ele se refere. Mas, quando o autor escreve sobre as obras enviadas por Delaunay ao Salon d'Automne de Berlim, ele destaca que a maior parte delas leva o "simultané"325 no título e escreve que o artista "fait sien le terme simultané qu'il a emprunté au vocabulaire des futuristes"326. É preciso notar, no entanto, que, quando o autor chama atenção para o fato de que Delaunay empresta o termo dos futuristas, é apenas isso mesmo o que devemos entender, um empréstimo terminológico, pois o que as obras relacionadas por Apollinaire no texto evidenciam é a técnica do artista, sua maneira, sua concepção pictórica. Apollinaire publica seu artigo sobre o Salon d'Automne alemão em novembro e, no mês seguinte, Boccioni publica, na revista Der Sturm, o texto "Simultanéité Futuriste". Malgrado neste artigo o pintor italiano aproveite a afirmação de Apollinaire sobre o empréstimo que é feito por Robert Delaunay do termo "simultanéité", para elevar a ele mesmo e aos artistas de seu grupo, as primeiras linhas do texto de Boccioni são suficientes, senão conclusivas, para entendermos que estamos diante de duas concepções artísticas absolutamente distintas, embora designadas com a mesma palavra, "simultanéité”. Distante das ideias de Apollinaire e Delaunay, Boccioni explica a "simultanéité" como sendo um dos elementos "essentiels de la nouvelle sensibilité futuriste"327, no caso, da expressão do "machinisme moderne"; e, para caracteriza-la,

324 APOLLINAIRE, Guillaume. "Salon d'Automne", op. cit. p. 620. 325 Entre as obras destacadas por Apollinaire, figuram as seguintes: Contraste simultané mouvement de couleur profondeur, Contraste simultané mouvement de couleur profondeur prisme lune 2, Soleil Tour Aéroplane simultané, Soleil Lune simultané 1, Seine Tour Roue Ballon Arc-en-Ciel simultané. 326 APOLLINAIRE, Guillaume. "Chronique Mensuelle", op. cit. p. 622. 327 BOCCIONI, Umberto. "Simultanéité Futuriste", in: Der Sturm, nº 190/191, dezembro 1913, p. 151.

145 relaciona-a à "télégraphie", à "rapidité simultanée de comunications", ao "nouveau sens du tourisme", ao "nouveau sens des sports", à "électricité e até mesmo à "vie nocturne". A reflexão do calabrês evoca uma “sensibilité” que se volta para fora da arte, nada tratando do métier que lhe é próprio. Deste modo, o que faz o artista italiano é apenas convalidar a asserção de Apollinaire, a que afirma terem os artistas do grupo de Boccioni mais "idées philosophiques et littéraires" do que propriamente "idées plastiques". Contrariamente a ele, Delaunay e Apollinaire entendem a "simultanéité" como concepção de base puramente pictural, apoiada, principalmente, nas teorias do contraste de cores simultâneas de Chevreul — embora Delaunay fale também em Rood —, na lição das luzes da pintura dos chamados impressionistas, nas tentativas de aplicação das proposições teóricas de Chevreul que são feitas por Georges Seurat, por Paul Signac, por Henri-Edmond Cross etc. Não distante da visão de Apollinaire sobre a "simultanéité" dos futuristas, Pär Bergman328, autor de um aprofundado estudo sobre a "simultaneità" dos artistas italianos, afirma que o termo "simultanéité" é empregado por estes artistas em um "sens des plus vagues" querendo com ele dar a visão de um "climat futuriste en général". O mesmo Bergman propõe que a "simultanéité", segundo os futuristas, deve ser considerada "directement dans ses rapports avec le culte que les futuristes nourrissent pour la vitesse" e defende também que "en premier lieu la simultanéité", a dos artistas do grupo milanês, "est une loi spécifique imposée à l'homme moderne", o que fica evidente a partir da leitura do artigo de Boccioni. Ainda que Boccioni, no mesmo artigo, evoque passagem do Premier Manifeste de la Peinture Futuriste, que é de abril de 1911, na qual uma imagem de "simultanéité" é sugerida — "Les treizes personnes que vous avez autour de vous dans un autobus en marche sont, tour à tour et à la fois, une, dix, quatre, trois: elle sont immobiles et se déplacent; elles vont, viennent..."329 — ele nada escreve sobre o procedimento, sobre a técnica dos artistas futuristas baseada no princípio da "simultanéité" que pudesse ser comparada com a de Delaunay. O que permanece, portanto, em seu artigo, é mesmo a ideia de "vitesse". O mesmo ocorre quando Boccioni expõe sua visão sobre a "simultanéité sculpturale", que é análoga à "simultanée picturale", pois igualmente imprecisa do

328 BERGMAN, Pär. "Modernolatria" et "Simultaneità". Recherches sur deux tendances dans l'avant- garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondiale. Uppsala, 1962, p. 156. 329 BOCCIONI, Umberto. "Simultanéité Futuriste", op. cit..

146 ponto de vista conceitual. Apollinaire, quando escrevia sobre a primeira exposição de esculturas de Boccioni em Paris, em junho de 1913, considerava que nelas o "problème du dynamisme en sculpture se trouve mis en question de façon nette", o que se confirma com a leitura do texto redigido por Boccioni para o catálogo desta mesma exposição comentada pelo poeta: "Les sculpteurs traditionnels font tourner la statue devant le spectateur ou le spectateur autour de la statue. [...] Ma construction architecturale spiralique créée au contraire devant le spectateur une continuité de formes..."330. Apollinaire reconhecia o valor do trabalho do escultor italiano quando escrevia que nele o problema do dinamismo escultórico havia sido colocado em questão de maneira clara. No entanto, ele afirmava também que as pesquisas formais do artista continuavam "toujours interprétées, [...], modélées d'après nature". Malgrado as evidentes diferenças de concepção, malgrado a especificidade do entendimento que os distintos artistas tinham desta proposição da "simultanéité", Boccioni insiste "sur la priorité" das pesquisas "simultanées" de seu grupo, quando escreve: "Nous voyons avec plaisir se propager partout l'influence de nos puissantes DÉCOUVERTES [o destaque é de Boccioni] surtout en France et dans l'œuvre de M. Delaunay qui, obsédé par la simultanéité, s'y spécialise comme s'il s'agissait d'une découverte à lui" e, se aproveitando do que havia escrito Apollinaire, continua "nous sommes heureux en outre de constater que notre grand ami et allié Guillaume Apollinaire nous rend entièrement justice à ce sujet". Evidentemente a armação do artista italiano é percebida, e é o próprio Delaunay quem responde a este artigo. Em uma "Lettre ouverte au Sturm", publicada na mesma revista em que Boccioni publicara seu artigo, Delaunay indica o artifício do artista italiano:

Mon cher Walden! Quant à écrire comme vous me le proposez en réponse aux théories subversives dans le Sturm 2me cahier de décembre je trouve cela en dehors mon art. J'ai un parfait mépris pour ces sortes de querelles sur les mots et cet article [o de Boccioni] est trop puériellement arrangé331.

Delaunay demonstra em que consiste este "article puérillement arrangé", ao comparar os trechos destacados pelo artista com outros do mesmo artigo publicado por

330 Idem. 331 DELAUNAY, Robert. "Lettre ouvert au Sturm", in: Der Sturm, nº 194/195, janeiro 1913, p. 167.

147 Apollinaire. O pintor observa que o termo "simultané", empregado por Apollinaire relativamente à sua pintura, é um termo "très ancien en Français", cuja origem sabemos estar em Chevreul, um termo "de métier", de "contrastes simultané", ou de "forme", que por isso se distinguia do "sens plus vague" — para nos servirmos dos termos de Bergman —, como era empregado pelos futuristas. Delaunay confronta a afirmação de Boccioni que, no referido artigo, sustentava que Apollinaire havia constatado a sua "priorité de la simultanéité sculpturale" quando escrevia sobre a sua primeira exposição de obras escultóricas em Paris. O pintor francês demonstra que neste mesmo texto Apollinaire afirmava que não havia na França "de peintre futuriste au sens des manifestes publiés à Milan" e que os futuristas não haviam encontrado em Paris nenhum artista que seguisse esta "peinture du mouvement rapide" que, segundo ele, "est demeurée stationnaire où elle est née". É verdade que no mesmo texto em que refere Boccioni e sua arte Apollinaire reconhece que a "variété des matières", a "simultanéité sculpturale" e a "violence du mouvement" eram as "nouveautés" da escultura do italiano. Mas é igualmente verdadeiro que é o "problème du dynamisme en sculpture", que Apollinaire vê colocado pela escultura do artista. Delaunay destaca também o trecho no qual Apollinaire escrevia que o futurismo tinha sua importância, mas que esta importância se limitava à "terminologie", apenas. Após mostrar as contradições de Boccioni, confrontando a passagem de seu artigo com as do artigo original de Apollinaire, Delaunay indica o panfleto "Contrastes Simultanés. Quelques Dates"332, que a pedido de Apollinaire é organizado por Blaise Cendrars em dezembro de 1913 e no qual não figura qualquer referência à arte dos italianos. O próprio Severini, companheiro de Boccioni e futurista das primeiras horas, reconhece em suas memórias as "habitudes démagogiques et publicitaires" do grupo chefiado por Marinetti, afirmando ainda que os jovens artistas italianos "à un moment où le niveau de l'art italien était au plus bas, aient cherché par tous les moyens à se mettre rapidement au courant de l'activité artistique européenne telle qu'elle se manifestait à Paris"333. O mesmo artista exalta também o empenho dos jovens pintores italianos em organizar uma exposição em Paris onde sua pintura seria certamente comparada com a dos "meilleurs artistes de l'époque", algo que Apollinaire mesmo se

332 CENDRARS, Blaise. "Contrastes Simultanés. Quelques Dates", in: Simultanéisme/Simultaneità. Quaderni del Novecento Francese, nº 10. Bulzoni Roma / Nizet Paris, 1987. Michel Décaudin afirma que este panfleto, que deveria ter sido publicado no número de dezembro das Soirées de Paris serviu a duas conferências sobre os "Contrastes Simultanés", pronunciadas em São Petersburgo e Nova York. 333 SEVERINI, Gino. La Vie d'un Peintre. Op. cit. p. 101.

148 encarrega de fazer quando escreve sobre esta exposição de 1912. Como já indicado, quando o autor escrevia sobre esta mostra, ele destacava que os futuristas se declaravam "absolument opposés à l'art des écoles françaises extrêmes", mas que não eram dela mais do que "imitateurs". Na visão do autor, a influência de Picasso na pintura que Boccioni apresentava era "indéniable", as telas de Carrà eram uma espécie de Rouault "plus vulgaire", e as de Severini "trop influencés par la technique néo-impressionniste", ainda que considerasse a sua Danse du pan-pan à Monico a obra mais importante "qu'ait peinte un pinceau futuriste", talvez porque nela divisasse a técnica da "mélange optique des couleurs". Na lembrança de Severini o erro dos futuristas italianos foi o de se apresentarem na capital francesa como concorrentes e antagonistas da pintura francesa: "au lieu de chercher à s'insérer d'une façon ou d'une autre dans le mouvement pictural français, déjà de plus en plus européen"334. Severini também reconhece que, quando Apollinaire escrevia sobre essa exposição de 1912 afirmando que estes artistas possuíam "plus d'idées philosophiques et littéraires que d'idées plastiques", era uma "remarque maligne, mais juste" e admitia, ao comentar a pintura de Delaunay, que suas ideias "sur les contrastes complémentaires des lignes, des formes et des couleurs, eurent toujours beaucoup d'analogie" com sua concepção artística. Ao mesmo tempo que evidencia a importância da pintura francesa para ele e para os artistas de seu grupo, Severini afirma o desconhecimento de Boccioni sobre a pintura que se produzia nestes anos de 1910- 1914 em Paris. Segundo ele, Boccioni "connaît mal la peinture française"335, como já destacado, e mesmo em seu livro, publicado nos primeiros meses de 1914, livro no qual tenta, mais uma vez, exaltar os artistas italianos como sendo os propositores da "simultanéité" em arte, Severini escreve que a obra tinha "valeur plus polémique que critique" pois o escrito do escultor demonstrava "'une culture historique insuffisante"336. O que é possível entender deste embate entre a "simultanéité" dos artistas italianos e a de Delaunay, é que se trata nada mais do que distintas concepções artísticas designadas por um mesmo termo. O debate, no entanto, distancia-se das obras produzidas, pois trata mais da palavra "simultanéité", por meio da qual tanto uns quanto o outro designam seus trabalhos artísticos. Michel Décaudin é certeiro, quando escreve que a "malédiction de Babel semble en effet peser sur ce terme de Simultanéité (et ses

334 Idem, p. 102. 335 Idem, p. 159. 336 Ibid, idem.

149 variantes, simultanéisme, simultanisme, simultané) que chacun entend à sa manière sans écouter le voisin"337; e ele mesmo se pergunta se antes de tudo, não seria uma "saine démarche [...] commencer par cerner les notions et repérer leurs emplois divers?". Como visto, os escritos do pintor bem como os artigos do autor mostram que para Delaunay esta ideia de um "métier simultané" é elaborada a partir de bases distintas das dos artistas italianos. No plano teórico, sua referência fundamental é o tratado de Michel-Eugène Chevreul sobre o contraste simultâneo entre as cores. No plano material, no da execução da pintura mesma, é sobretudo na obra de Seurat e dos artistas que também pesquisam a cor, como Signac, Cross, que Delaunay parece encontrar suas fontes, ainda que compreenda as limitações da arte destes pintores. No que concerne a Boccioni, é difícil "cerner la notion", como propõe Décaudin, pois a preocupação do artista em elevar-se como o propositor do termo é tamanha que compromete até mesmo a compreensão do que ele entende de sua "simultanéité". O que podemos afirmar após a leitura de seus escritos, incluindo entre eles os textos que ele reúne na publicação de 1914, Dynamisme Plastique. Peinture et Sculpture Futuriste, de mais de 500 páginas, é que a ideia central da obra é a defesa de uma arte baseada na proposição da figuração do movimento, tanto na pintura como na escultura, o que Apollinaire já ressaltava nos textos sobre as exposições futuristas de Paris, realizadas em 1912 e 1913, e não na pesquisa da cor. A ideia de movimento é explicitada desde o título escolhido para sua obra, Dynamisme plastique, e se espelha pelos títulos de capítulos, como Mouvement Asbolut et Mouvement Relatif, Dynamisme ou Complémentarisme Dynamique. No capítulo Mouvement Absolu et Mouvement Relatif Boccioni expõe formulações que servem de base para evidenciar suas preocupações artísticas, como a exemplo da "loi dynamique axée dans l'objet", por meio da qual tenta explicar a sua concepção de "mouvement absolu", um movimento que o objeto tem em si mesmo ou a "loi dynamique axée sur le mouvement de l'objet" caracterizadora de sua concepção de "mouvement relatif". Segundo Boccioni, trata-se de conceber os objetos em movimento e não somente o "mouvement qu'ils ont en eux". Para o artista, o que importa é encontrar uma forma que seja a expressão de um "nouvel absolu", a "vitesse"338, segundo ele.

337 DÉCAUDIN, Michel. "Petites clartés pour une sombre querelle", in: Simultanéisme/Simultaneità. Quaderni del Novecento Francese, nº 10. Bulzoni Roma / Nizet Paris, 1987, pp. 17-27. 338 BOCCIONI, Umberto. Dynamisme Plastique. Peinture et Sculpture Futuriste. Lausanne: L'Âge de l'Homme, 1975, p. 70.

150 É aí, na ideia de velocidade, que Boccioni baseia uma de suas proposições de "simultanéité", uma vez que para ele "s'agit d'étudier les aspects nouveaux qu'a aujourd'hui dans la vitesse et dans la simultanéité qui en découle", ou seja, a ideia de "simultanéité" é derivada da de "vitesse", e não de um princípio que oriente a composição artística. A mesma ideia de movimento volta a ser destacada no capítulo Dynamisme, conceito que ele entende como a "action simultané du mouvement caractéristique particulier à l'objet" e das transformações sofridas pelo mesmo objeto em "ses déplacements en relation avec le milieu mobile ou immobile"339. No capítulo intitulado Simultanéité, notamos que a proposição do autor se prende ao movimento e em nada se aproxima daquela pintura baseada nos contrastes simultâneos entre as cores de Delaunay. Em uma de suas definições de "simultanéité", Boccioni afirma que o termo é empregado para "définir la nouvelle condition de vie dans laquelle se serait manifesté le nouveau drame plastique"340, ou então, em outra formulação, que a "simultanéité est pour nous l'exhaltation lyrique, la manifestation plastique d'un nouvel absolu: la vitesse"341. Em outra passagem, escreve que "la simultanéité est la condition dans laquelle apparaissent les différents éléments constituant le dynamisme"342. As indicações sobre a preocupação com o movimento na pintura são evidenciadas ao longo de todo o livro e, uma mostra delas, pode ser encontrada até mesmo nos títulos das pinturas que são reproduzidas na obra: de Boccioni, Ceux qui s'en vont, pintura de 1911, Expansion spiralique de muscles en mouvement, escultura de 1913, Synthèse du dynamisme humain, escultura de 1912; De Carrà Forces Centrifugues, pintura de 1911; de Russolo, Résumé plastique des mouvements d'une femme, pintura 1911, Volumes dynamiques, 1912, Dynamisme (automobile), 1913; de Balla, Lignes d'allure successions dynamiques, Vitesse abstraite, Pénétration dynamiques d'auto, todas pinturas de 1913; de Severini, Dynamisme d'une danseuse, Hyérogliphe dynamique, ambas de 1912, Train dans une paysage, 1913; de Soffici, Danse des péderastes (dynamisme plastique), pintura 1913. A propósito dos títulos, Bergman lembra que muitas obras que estão catalogadas no "Archivi del Futurismo" levam em seu título o

339 Idem, p. 73. 340 Idem, p. 87. 341 Ibid, idem. 342 Idem, p. 88.

151 termo "velocità", o que, segundo ele, "témoignent que ces œuvres sont avant tout à regarder comme des études de dinamismo"343. Não se trata aqui de analisar em profundidade as proposições teóricas ou plásticas dos futuristas italianos — Pär Bergman faz isso — mas apenas indicar que o que se destaca nelas é frequentemente a proposição do movimento, o que é suficiente para demonstrar que estamos distantes dos argumentos de Apollinaire e Delunay que não fazem qualquer menção ao movimento na pintura. Outra ideia que distingue a "simultanéité" dos futuristas da "simultanéité" de Apollinaire e Delaunay é a de que para os artistas italianos ela pode ser pensada na chave da "quatrième dimension", esta entendida como “a soma do potencial desdobramento das três dimensões conhecidas”, escreve Boccioni. Contrária, portanto, à ideia de Apollinaire. Ainda sobre a quarta dimensão, o artista a considera baseada no tempo, no movimento, pois na sua visão ela é uma "forme dynamique". Como explica Bergman, o "spatialement sur la toile le peintre futuriste s'efforce de donner la durée d'un mouvement en reproduisant les diverses phases du mouvement donné". Em outros termos, trata-se de uma sucessão, de uma repetição de imagens ou de partes de imagens que sugerem a ideia de movimento na pintura. Sendo assim, estamos distantes da "simultanéité" tal como é concebida por Delaunay pois, na pintura deste artista, o contraste simultâneo entre as cores condiciona a visão do espectador, ou seja, é preciso olhar simultaneante a tela pois é esta visão simultânea de uma cor contrastando com as demais o que dá sentido à composição.

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Entende-se que estas disussões se colocam em um momento em que a pintura é amplamente debatida na França e um exemplo da profusão destes debates são as inúmeras enquetes promovidas pelos jornais e periódicos sobre as artes da época. No ano de 1912, por exemplo, quando tem início essa procura de Apollinaire e Delaunay pela formulação da ideia de "simultanéité" na pintura, Louis Vauxcelles promove uma "Enquête sur le métier de Peindre"344 e, como esta, muitas outras são promovidas.

343 BERGMAN, Pär. op. cit. p. 160. 344 VAUXCELLES, Louis. "Enquête sur le métier de Peindre", in: "Les Arts", Gil Blas, 06.08.1912 - 04.09.1912. Vauxcelles, crítico que faz circular nos meios impressos parisienses os termos "fauve" e "cubiste", promove a referida enquete entre os dias 6 de agosto e 4 de setembro; que convida diversos artistas a respoderem as questões sobre o "métier". A finalidade da enquete, ele a enuncia logo no número

152 Evidencia-se, portanto, que este debate sobre a “simultanéité pictural” insere-se neste contexto, de discussão, de reflexão e de procura por novas, ou simplesmente distintas, direções para as artes da época, do mesmo modo como ocorrerrá no domínio da literatura.

de abertura da mesma: “La présente enquête n'a point pour but de demander aux peintres ce qu'ils pensent de Jean-Jacques Rousseau, s'ils sont "pour" la Proportionnelle ou s'ils préfèrent le concubinage à la vie conjugale. Nous avons pensé que - même en été - il est licite de traiter des questions sérieuses344. Estas "questions sérieuses", ele as esclarece mais à frente escrevendo: “Nous nous sommes adressés, en vue de résoudre le problème de la technique picturale, aux principaux artistes français et étrangers, à quelques théoriciens, et même à des conservateurs de musées. Nul parti pris. Les fauves comme les académiques ont voix au chapitre. La réponse de M. Detaille voisine avec celle de Othon Friesz, et celle de M. Baschet coudoi, si j'ose dire, celle de Signac”. O que as opiniões dos artistas nos mostra, resultado dessa pesquisa, que são inúmeras as referências e muito diversas as técnicas que interessam aos artistas que praticam a pintura na época. Não podemos nos esquecer que neste início de século Paris contava já com considerável número de museus, com galerias já históricas, como as de Georges Petit ou de Durand-Ruel, com exposições frequentes, com Salões anuais os mais variados, e a quem se interessasse por pintura, não deveria necessariamente procurar a École Nationale de Beaux-Arts para obter uma formação, pois não eram poucas as academias e ateliers independentes que ofereciam o ensino do desenho, da pintura, da gravura, da escultura etc. Destaquem-se os que respondem a enquete, artistas entre os quais muitos figuram ainda hoje como exemplos para se entender a pintura do início do século XX: René Prinet (06.08.1912), Félix Vallotton, Maurice Denis (07.08.1912), Édouard Detaille (08.08.1912), Paul Signac, Maxime Maufra (09.08.1912), Armand Point (10.08.1912), Leon Bakst (11.08.1912), Georges Rouault (12.08.1912), Charles Guérin, Henry Caro (13.08.1912), Marcel Baschet (14.08.1912), A. Devant, Alfred Smith (15.08.1912), Robert Mortier, Gaston La Touche (16.08.1912), Émile Meyer (17.08.1912), Henri Duhem (18.08.1912), Friant, Dechenaud, Simon Bussy, Frieseke (19.08.1912), Jules Adler (20.08.1912), Othon Friesz, A Willette, Hélène Dufau, Angele Delasalle (22.08.1912), Francis Jourdain, Henri Morisset, Léon-Dhurmer (23.08.1912), Feelix Borchardt (24.08.1912), M. Jeanes (25.08.1912), Pierre Girieud (26.08.1912), Guillomet (30.08.1912), André Lhote (04.09.1912).

153

CAPÍTULO 3 - GUILLAUME APOLLINAIRE: DA PINTURA À POESIA

154

"Les peintres leur ont ouvert la voie et montré le chemin; les arts plastiques jouent maintenant le rôle que la musique à l'époque symboliste". (Michel Décaudin345)

"On ne peut pleinement apprécier la poésie d'Apollinaire si l'on ignore sa longue intimité avec des peintres et la peinture". (Robert Shattuck346)

"Souvent [...] ses inventions poétiques sont liées chronologiquement aux expériences des peintres et présentent plusieurs ressemblances sur le plan des implicationss esthétiques". (Anna Boschetti347)

A SIMULTANÉITÉ E OUTROS DEBATES SOBRE A POESIA

No capítulo precedente indiquei que o debate sobre a simultanéité que se trava no domínio da pintura francesa entre os anos de 1912 e 1914, envolvendo, principalmente, Apollinaire, Delaunay e os artistas ligados ao futurismo italiano, passa deste domínio ao da literatura, sobretudo a partir de maio de 1913, data em que Henri-Martin Barzun publica seu ensaio Voix, rythmes et chants simultanées, expriment l'Ère du Drame348, no qual este autor desenvolve as teses lançadas, pouco mais de um ano antes, em seu livro L'Ère du Drame. Essai de synthèse poétique moderne349. Estas duas obras do autor se inscrevem dentro de um contexto de larga discussão sobre a literatura, repleta de publicações, entre as quais sobre a simultanéité na poesia francesa dos anos de 1913- 1914, embora a simultanéité poétique não seja uma proposição isolada no domínio das letras francesas da época.

345 DÉCAUDIN, Michel. La Crise des Valeurs Symbolistes. Vingt Ans de Poésie Française, 1895-1914. Toulouse: Éditions Privat, 1960, p. 476. 346 SHATTUCK, Robert. Les Primitifs de l'Avant-Garde. Paris: Flammarion, 1974, p. 277. 347 BOSCHETTI, Anna. La Poésie Partout. Apollinaire Homme-Époque. p. 301. 348 BARZUN, Henri-Martin. Voix, rythmes et chantes simultanés, expriment l'Ère du Drame. Revue: Poème et Drame, Vol IV, mai 1913. 349 BARZUN, Henri-Martin. L'Ère du Drame. Essai de synthèse poétique moderne. Paris: Eugène Figuière, 1912.

155 As discussões sobre a poesia na época são abundantes350, tanto assim que elas saem dos círculos estritamente literários e ganham espaço até mesmo nos Salões de pintura. E não se trata aí de quaisquer Salões, pois tais debates se instalam justamente no Salon d'Automne e nos Indépendants, os Salões que representavam a oposição contra os ditos Salões oficiais da época. Em 1907, por exemplo, o Salon d'Automne, o mesmo em que se realiza a grande exposição retrospectiva das obras de Paul Cézanne, responsável por movimentar o debate sobre a pintura na época, organiza uma espécie de "Salon des Poètes" no qual são pronunciadas três conferências que seguem o mesmo movimento de revisão e de proposição de novas direções para a poesia. Seguindo o exemplo do Salon d'Automne, os organizadores do Salon des Indépendants resolvem articular uma "soirée poétique" na mostra de 1908, da qual participam Paul-Napoléon Roinard, Victor-Émile Michelet e Apollinaire, que fecha a noite expondo ideias sobre "La Phalange Nouvelle".

350 Por este mesmo período outros ensaios de "synthèse poétique" são publicados com propósito semelhante ao de Barzun. Em 1912 mesmo, ano de publicação de L'Ère du Drame, Florian-Parmentier publica uma Anthologie Critique que é seguida pela publicação de La Littérature et l'Époque, mais tarde convertida em uma Histoire Contemporaine des Lettres Françaises de 1885 à 1914, na qual, ao longo de suas mais de 600 páginas, Florian-Parmentier enumera e comenta não menos do que 30 diferentes "écoles littéraires" surgidas na França neste período de quase 30 anos. Como Parmentier, Alexandre Mercereau também publica neste ano de 1912 a sua Littérature et les Idées Nouvelles, obra na qual se surpreende o mesmo empenho de recensear as "écoles" literárias francesas indicando direções possíveis para os poetas da época. Em 1913, um grupo de poetas, entre eles Apollinaire e Barzun, se reúnem em torno da organização do volume Anthologie des Poètes Nouveaux, cujo objetivo de revisão da poesia coincidia com o das demais publicações. A publicação destas obras nestes anos de 1912-1914 apresenta indícios para supor que se trata de um período em que, como no domínio da pintura, os escritores procuram direções possíveis para a elaboração de uma nova maneira de se pensar e de se fazer poesia. Suposição que encontra sua base no fato de que desde a passagem do século XIX para o XX é possível localizar informações que explicitam uma preocupação acentuada com a discussão sobre o rumos da poesia francesa, discussão que pode ter sido alimentada não só pelo que Michel Décaudin chamou, no domínio das letras, de uma "Crise des Valeurs Symbolistes", mas também pela modificação operada na percepção e na compreensão das artes que as reviravoltas no campo da pintura e as exposições Universais de 1889 e 1900 - "bilan d'un siècle"- ajudaram a movimentar. Em 1900 mesmo, Paul Léautaud e Adolphe Van Bever publicam uma antologia intitulada Poètes d'Aujourd'hui, 1880-1900, um "bilan", ou mais precisamente, um "guide de la poésie récente". No ano seguinte, 1901, em razão da inauguração do Collège d'Esthétique Moderne, frequentado por Apollinaire e seus companheiros, Eugène Montfort pronuncia uma série de conferências sobre "La Beauté Moderne". Em 1902, o jornal Le Rappel comenta uma "Enquête sur la Poésie Contemporaine" promovida por Fernand Halley, M. Poinsot e G. Normandy, da qual destaca a tentativa de se estabelecer uma "direction", uma "orientation" nova para a poesia produzida na época. No mesmo ano, o periódico Le Penseur refere uma "Enquête sur la Littérature", conduzida por Henri Marsac, cujas questões principais eram sublinhadas: "Notre temps est-il propice à une nouvelle floraison littéraire? Quelle devrait être la littérature du XXe siècle?". A profusão de discussões e de novas "écoles" literárias surgidas no período é resumida no título da publicação de Anatole Baju, L'Anarchie Littéraire. Les differents écoles. Os debates prosseguem, e em 1905 F. T. Marinetti propõe uma "Enquête internationale sur le Vers Libre". Em 1906 o poeta Robert De Souza publica Où nous en sommes350, obra cujo título nos sugere de antemão a ideia de uma interrogação sobre o momento da poesia francesa daquele período. Em 1907 L'Aurore destaca uma "Enquête sur la Poésie" cujo propósito era o de indicar a "direction et les embarras de la poésie française" contemporânea. ***Todas as obras indicadas nesta nota estão referidas na bibliografia.

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Société des Artistes Indépendants L'Après-Midi des Poètes -affiche- Fonte: Album Apollinaire351

Importa destacar a fala do poeta, não porque que nela encontramos o mesmo esforço de "synthèse poétique" dos outros autores da época mas, principalmente, porque ela mostra que as ideias de Apollinaire sobre a pintura dialogam com suas ideias sobre a poesia, como a ideia de "escolas", à qual ele se opõe: "qu'on me permette de ne plus ranger les poètes par écoles. J'ai dit d'où ils viennent et je crois qu'ils ne seront pas fâchés si je reconnais que leurs personnalités sont trop différentes pour que les manifestes qu'ils se sont plu à écrire, ou simplement contresigner, les contraignent à conserver toute la vie des étiquettes parfois gênantes"352. É evidente na passagem a cautela de Apollinaire de "ne plus ranger les poètes par écoles" pois, como na pintura, o seu empenho está mais na tentativa de entender e destacar o trabalho individual de cada autor. Esta mesma posição é enfatizada no "appendice" que ele acrescenta ao mesmo texto, no qual esclarece que "touchant les écoles poétiques et les vocables grâce

351 Album Apollinaire. Op. cit. p. 120. 352 Idem, p. 889.

157 auxquels elles se distinguent, ma prudence avait été manifeste"353. Ao analisar a crítica literária de Apollinaire Laurence Campa não deixou de observar que ele "refuse les écoles par goût personnel" mas sobretudo por uma "méfiance à l'égard des systèmes, des dogmes, des règles"354. Posição, aliás, que ele defendia desde bem antes desta conferência, quando em 1902 ele escrevia a propósito de um "manifeste de l'école humaniste" de Fernand Gregh perguntando: "Qu'a-t-on besoin d'écoles? Le plus grand poète des temps présents, Francis Jammes, est-il d'une école?" e seguia, aconselhando: "Faites de vers, ne faites pas l'école"355. A mesma posição será reafirmada quando, anos mais tarde, ele responderá em uma entrevista a propósito destes "epithètes en isme" que, segundo ele, eram empregados para definir a ideia de "école": "Peu importe ces epithètes [...]. Le temps en décidera. Nous porterons dans l'histoire des lettres l'appellation que l'usage aura consacré"356 A mesma autora sugere, na esteira do que já propunha Philippe Renaud357, que em seus textos sobre a literatura, Apollinaire "défend les mêmes principes esthétiques que la critique d'art"358; e é preciso deixar clara esta sugestão pois isso nos permitirá, mais adiante, compreender o quanto a concepção do autor de uma "simultanéité poétique" está ancorada em sua compreensão de uma "simultanéité plastique", principalmente a da pintura de Robert Delaunay. Seguindo essa direção, na mesma conferência dos Indépendants de 1908 Apollinaire defende a ideia, que contrariava muitos dos autores empenhados na tentativa de fixar suas "écoles" e grupos, de que a criação poética contemporânea se inscrevia em uma "tradition"359 da poesia francesa: "aucun parmi les jeunes poètes que j'aime, aucun, dis-je, ne se tient en dehors de la tradition poétique française", defendia Apollinaire. Como está clara a posição do autor a respeito das "écoles" literárias, a questão fundamental presente nesta passagem de sua conferência é, pois, a de tentar entender em

353 Idem, p. 899. 354 CAMPA, Laurence. Apollinaire Critique Littéraire. Paris: Honoré-Champion, 2002, pp. 81-82. 355 APOLLINAIRE, Guillaume. "Au Sujet de l'Humanisme", in: Œuvres en prose complète, T. II, p. 957. 356 Idem. "Interviews M. Guillaume Apollinaire et la Nouvelle École Littéraire", in: Œuvres en prose complète, T. II, p. 988. 357 Em sua Lecture d'Apollinaire, Renaud propõe que a crítica de arte de Apollinaire "présentent les mêmes intentions, les mêmes idées-forces et parfois jusqu'aux mêmes phrases (ou presque) que ses critiques littéraires", in: RENAUD, Philippe. Op. cit. pp. 75-76. 358 CAMPA, Laurence. Op. cit. p. 232. 359 Não é outra coisa o que defendem Décaudin e Caizergues quando observam, no comentário que fazem à conferência "La Phalange Nouvelle", que a defesa de Apollinaire é "souvent mal comprise [...] à l'égard des mouvements d'avant-garde" e que tem sua origem na "certitude que l'art, tel que la nature, ne fait pas de sauts". In: Œ.P.C. T. II, 1652. Apollinaire mesmo enfatizaria este ponto de vista quando, em resposta a uma entrevista em 1918, afirmaria, ainda que com ressalvas, que sua estética se fundava "sur l'étude de saine tradition",in: Œuvres en prose complète, T. II, p. 993.

158 que consiste esta ideia de uma "tradition", e uma indicação para isso figura no próprio texto. Nele, Apollinaire propõe que a característica de uma "tradition" é a "continuité". Porém, esta "continuité" não deve ser entendida como a repetição das experiências artísticas do passado, tal como faziam os pintores da Société des Artistes Français ou da Nationale, mas sim como uma tentativa de, a partir delas, avançar na produção de um outro tipo de poesia capaz de sintetizar a lição dos mestres e a experiência individual que orientava a prática de cada autor: "nous voulons continuer conservant notre personnalité, et que, par un noble sentiment d'émulation, nous voulons surpasser"360. Para entender melhor a proposição do autor é preciso reforçar o argumento, a fim de conter o impulso de considerá-lo meramente contraditório e, para isso, é preciso pensá- lo à luz desta sua recusa da ideia de "écoles". Como já destacado, quando Apollinaire se recusa a acomodar a produção dos poetas da época em "écoles", ele justifica sua posição afirmando ter indicado "d'où ils viennent" e reconhecido que por suas "personnalités [...] trop différentes", não seria possível, mesmo àqueles que se ocuparam da redação de manifestos - ou dos que simplesmente os assinaram - de os delimitar por meio de "étiquettes parfois gênantes". Pois bem, quando o autor fala então de uma "tradition", ou mais precisamente de uma "continuité" desta tradição, não é no sentido de "écoles" literárias que ele as pensa, e seu texto mesmo evidencia isso. Ao relacionar os poetas que representavam, na sua visão, esta "tradition" da poesia francesa - como Vielé- Griffin, Gustave Kahn, René Ghil, Claudel, Moréas, Verhaeren, enfim, os autores que segundo ele haviam libertado a poesia ainda "captive de la prosodie" - Apollinaire sugere que entre a produção de um poeta e outro não há uma "solution de continuité", ou seja, para cada uma destas "pesonnalités trop différentes" que ele refere no texto corresponderia uma poética particular, individual, síntese da compreensão da arte passada e da experiência poética de cada autor. Mas logo em seguida, ele afirma que a "tradition est ininterrompue", possivelmente entendendo que, embora não houvesse uma "continuité" entre a poesia de um e outro autor, todas elas se inscreveriam nesta tradição ininterrupta. Disse que Apollinaire defende que toda "création" se inscreve em uma "tradition" e indiquei que esta ideia de "tradition" não deve ser confundida com a de "école", ideia à qual ele expressamente se opõe. Esta aparente confusão fica mais clara quando entendemos que o autor situa a ideia de "école" à parte da de "tradition", o que, em sua

360 APOLLINAIRE, Guillaume. "La Phalande Nouvelle", in: Œ.C.P. T. II, p. 887.

159 formulação, é indicado na passagem seguinte: "Au contraire, de quelle tradition peuvent se réclamer les jeunes gens qui, sans souci de création, tendent en vain de ressusciter les systèmes poétiques morts?". Note-se bem aí a referência ao termo "systèmes", relacionado à poética, pois, como foi dito por Laurence Campa, é pela "méfiance [...] des systèmes" que Apollinaire rejeita, entre outras razões referidas pela mesma autora, a ideia de "école". A "école", pensada como um sistema fechado de ideias e proposições, muitas vezes repetições, apenas, não pode ser, na visão do autor, entendida como "tradition: "La tradition n'a pas eu lieu pour ceux qui se réclament du Parnasse". O "Parnasse", entendido como uma "école", se afasta desta ideia de "tradition" que encontramos em Apollinaire pois, para o autor, estas classificações, propostas a posteriori, nada das obras que, em sua concepção, devem ser entendidas como produções individuais: "Verlaine et Mallarmé ont transmis la tradition, qui un moment était devenue le Parnasse"361. Quando Laurence Campa afirma que Apollinaire defende em sua crítica literária "les mêmes principes esthétiques que la critique d'art"362 é preciso estar claro que ela se refere ao domínio das ideias e dos conceitos artísticos do autor. Assim, ao compor seus poemas, Apollinaire não transpõe técnicas de uma arte para outra. Não é a técnica da pintura de Delaunay, da de Picasso, da de De Chirico ou de Chagall, o que apoia a elaboração de sua poesia mas os conceitos que amparam a pintura destes artistas. Quando, por exemplo, Frédéric Lefèvre inclui a poesia de Apollinaire, em sua antologia La Jeune Poésie Française, sob a designação de "littérature cubiste", o autor esclarece que Apollinaire havia lhe recomendado de não o qualificar "d'une épithète impropre"363 e, em uma entrevista publicada na mesma época, o poeta afirmava que, do ponto de vista da técnica não existia "relation entre le cubisme et la nouvelle orientation littéraire"364.

361 Ibid, idem. É curioso notar aí que Apollinaire refira dois poetas que, como ele, também estiveram ligados com a pintura de sua época e que, como ele, propuseram reflexões aproximando as duas artes. Em artigo sobre Verlaine e a pintura Bruce PRATT, destaca a proximidade de Verlaine a pintores como Monet, Manet, Courbet (Cf: PRATT, Bruce. "Verlaine et l'Impressionnisme", in: Revue d'Histoire Littéraire de la France, 9ème année, nº 6, nov.-déc., 1990, pp. 899-923); Bertrand Marchal, em artigo sobre a crítica de arte de Mallarmé refere passagem na qual o autor propõe que a pintura de Manet "trouve son parallèle en littérature" (Cf: MARCHAL, Bertrand. "Mallarmé, critique d'art?", in: Revue d'Histoire Littéraire de la France, vol. 111, 2011, pp. 333-340). 362 CAMPA, Laurence. Op. cit. p. 232. 363 LEFÈVRE, Frédéric. La Jeune Poésie Française. Hommes et Tendances. Paris: Éditions Georges Crès et Cie., 1918, pp. 193-194. 364 Nesta entrevista a Pérez-Jorba, Apollinaire continua a explixar que "les peintres cubistes se servent d'éléments accessoires, d'éléments extérieurs pour construire leurs œuvres. Leurs œuvres sont essentiellement destinées aux regards des spectateurs devant lesquels elles exhibent, pour ainsi dire, le

160 Sendo portanto no domínio dos conceitos que as aproximações entre a poesia de Apollinaire e a pintura são possíveis, é importante ressaltar que muitas proposições que o autor elabora sobre a pintura coincidem com proposições formuladas para tratar da literatura. Por exemplo, a ideia de uma pintura "pura" que Apollinaire elabora desde seus escritos de 1908 reaparece no no texto da conferência sobre a "Phalange Nouvelle". Ao comentar a poesia de John-Antoine Nau, Apollinaire destaca a "pureté" das "ondes poétiques" deste autor; tratando da poesia de Guy Lavaud, ele se refere a ela como uma "art pur" e, quando se ocupa dos poemas de André Salmon, o autor insinua a mesma ideia ao falar da "proprieté du langage" deste poeta. Do mesmo modo, na conferência "Les poèmes de l'année", de 1909, Apollinaire dirá que a poesia dos "jeunes poètes" "apportent à la langue des beautés toutes neuves" por meio de um trabalho de renovação "très pur des images"365 e, não podemos esquecer que quando Delaunay comentava o poema Les Fenêtres de Apollinaire ele afirmava pensar que "Les Fenêtres marquent ce qu'Apollinaire appelait la Peinture-Pure comme il a cherché une Poésie Pure"366. Assim como a ideia de pintura pura encontra equivalente na reflexão do autor sobre a poesia a ideia de que a arte não deve se pautar pelo princípio da "imitação" da natureza também. Quando Apollinaire fala sobre a poesia de Robert Maze na conferência sobre a Phalange Nouvelle, o autor afirma que por meio da "imagination" o poeta "déforme exquisement la réalité". Anos antes, ao responder uma enquete sobre a poesia, Apollinaire se posicionava em favor de uma arte de "fantaisie", "aussi éloigné que possible de la nature", e concluía: "avec laquelle il ne doit avoir rien de commun"367. Já em 1918, o autor seguia mantendo a mesma convicção, quando afirmava que era absolutamente "hostile à l'art mercenaire de l'imitation", pois acreditava que a criação era "par essence et par force le contraire de l'imitation"368. Ainda, do mesmo modo como observava que os pintores não se limitavam mais às três dimensões da geometria euclideana, que os pintores da época pretendiam explorar "nouvelles mesures possibles", designadas na época pela ideia de uma "quatrième dimension", ele escreve que os poetas, preocupados em "innover en matière de

secret de leurs volumes et le jeu de leurs dimensions. Ce sont bien plutôt des œuvres d'analyse, analyse simple chez les unes, complexe, chez les autres. Les nôtres, au contraire, s'acheminent directement vers l'esprit, auprès duquel elles remplissent plutôt une fonction de synthèse". In: APOLLINAIRE, Guillaume. "Interviews par Pérze-Jorba", in: Œuvres en prose, T. II,, p. 993. 365 APOLLINAIRE, Guillaume. "Les Poèmes de l'Année", in: Œuvres en prose, T. II,, p. 903 366 DELAUNAY, Robert. Op. cit. p. 171. 367 APOLLINAIRE, Guillaume. "Réponse à une Enquête", in: Œuvres complètes en prose, T. II, p. 958. 368 Idem. "Interview par Perez-Jorba", Œuvres en prose complètes, T. II, p. 982.

161 versification", não se restringiam mais às delimitadas "lois d'une prosodie", "ancienne ou nouvelle"369 - e daí talvez a razão da eliminação da pontuação em seus poemas, já que em sua visão de poeta, e de esteta, a pontuação permitia apenas aos "mauvais écrivains de jusitifer leur style"370. Estes exemplos parecem suficientes para mostrar o quanto as ideias que Apollinaire defende no domínio da pintura correspondem-se com as que ele defende no domínio da poesia e, esta correspondência não deixou de produzir seus efeitos em sua própria obra poética. mais especificamente. Vimos que Apollinaire começa a formular o conceito de simultanéité com base na pintura e nos diálogos que ele tem com Robert Delaunay e que deriva daí a sua oposição à ideia de simultanéité dos artistas ligados ao grupo futurista italiano. Como já foi indicado, a correspondência entre as ideias artísticas do pintor e do autor serve a muitos críticos371 para proporem, sem análises, aproximações entre a pintura de Delaunay e a poesia de Apollinaire. É preciso sublinhar, no entanto, que estas aproximações não significam que Apollinaire transponha a técnica de Delaunay na elaboração de seus poemas pois, como disse, é com base no conceito que o autor monta uma possibilidade de simultanéité para a sua poesia. Quando a discussão sobre a simultanéité passa do domínio da pintura para o domínio da poesia, ocorre algo semelhante ao que se dava no debate entre Apollinaire e os futuristas italianos. Como foi dito, em 1912 Barzun publica L'Ère du Drame, obra na qual o autor esboça algumas linhas que o levarão à formulação de uma ideia de "simultanéité" poética distante, e distinta, da de Apollinaire. Ainda que esboçada, a ideia de simultanéité não é tratada por Barzun pois, o mais importante em seu estudo são as ideias de uma poesia "collective", "polyphonique", que ele defende do início ao fim deste ensaio. Condenando a exaltação do "individuel" da poesia simbolista, Barzun propõe a elevação de uma poesia "collective" por meio da qual se operaria uma "dramatisation poétique" que, na sua visão, seria o "chant du nouveau siècle"372. A passagem do canto individual ao canto coletivo, que Barzun propõe como uma nova

369 APOLLINAIRE, Guillaume. Œuvres en prose, T. II,, p. 898. 370 Idem, p. 989 371 Como a exemplo de Anna Boschetti [BOSCHETTI, Anna. La Poésie Partout. Apollinaire, homme- époque (1898-1918). Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 159.], André Parinaud [PARINAUD, André. Apollinaire, 1880-1918. Biographie et Relecture. Paris: J.-C. Lattès, 1994, p. 309.] ou Gilles de La Tourette [TOURETTE, F. Gilles de la. Robert Delaunay. Paris: Charles Massin et Cie. Libraire Centrale des Beaux-Arts, 1950, p. 44.], ou 372 BARZUN, H. op. cit. p. 27.

162 direção para a poesia da época, implica na ideia de uma síntese das quatro "ordens essentiels" que constituem o que ele chama de "cycle psychologique": "De l'homme aux hommes; Des hommes à l'humanité, de l'Humanité à l'Univers; De l'Univers à l'individu"373. Por meio da síntese destas quatro ordens seria possível, segundo Barzun, realizar a passagem do "chant individuel", legado da poesia simbolista, ao "chant polyphonique", coletivo, capaz de criar um "lyrisme multiple, supérieur [ao lirismo anterior], qui utilise pareillement tous les modes expressifs connus"374. Michel Décaudin propõe que o "collectif" da poesia de Barzun pode ser entendido como uma concepção poética que não se afasta do "Unanimisme"375 de Jules Romains, poeta que, inclusive, frequentava a mesma Abbaye de Créteil376 da qual Barzun tinha sido um dos fundadores e onde também foi impresso La Vie Unanime, do mesmo Romains, em 1908. Segundo Décaudin, Romains "pensait aussi que le collectif devait s'exprimer d'une façon simultanée, polyphonique", e o mesmo autor esclarece que o poeta da Abbaye "avait essayé de faire réciter son poème l'Église à quatre voix entremêlées"377. É preciso acrescentar à observação de Décaudin que a elevação da ideia de "collectif" na poesia da época já circulava desde o início do século XX, como mostra um artigo publicado sobre a conferência pronunciada por Eugène Montfort no Collège d'Esthétique Moderne em 1901: "Ce que nous voulions d'abord, c'était grouper un certain nombre d'artistes, leur faire partager un idéal collectif, en vue d'un effort

373 É preciso notar que a proposição de Barzun é antes de tudo psicológica - para não dizer cósmica - e não artística. Para o autor da Era do Drama a "perception psychologique intégrale de l'humanité" será o último estágio da intuição individual, pois tudo se integrará ou será integrado a uma ordem superior, "universel". A este movimento de passagem do particular ao universal é que Barzun dá o nome de "cycle psichologique", ciclo por meio do qual se efetua esta passagem do "homme aux hommes", dos "hommes à l'humanité", da "humanité à l'Univers"e, recomeçando, do "Univers à l'individu". Barzun afirma que a síntese destas ordens existe, e que ela não modifica "profondément" a expressão do "chant indiviuel", pelo contrátio, atribui a ela maior intensidade, fazendo com que o caráter monódico "unilatéral", atinja a aplitude do canto "polyphonique". BARZUN, H-M. Idem, p. 34ss. 374 Idem, pp. 35-36. 375 DÉCAUDIN, Michel, La Crise ds Valeurs Symbolistes. Vingt Ans de Poésie Française 1895-1914. Toulouse: Éditions Privat, 1960, p. 478. 376 É preciso ao menos indicar aqui que esta ideia de "collectif" que encontramos em Barzun e, antes dele, em Romains, se encontra na base da prórpia fundação da Abbaye de Créteil, um "phalanstère d'art" que, como lembrado por Barzun, reunia "poètes, peintres, musiciens, sculpteurs, graveurs venus de tous les horizons pour affirmer leur art". L'Ère du Drame. Essai de Synthèse Poétique, p, 135. Sobre a história deste "phalanstère d'art", ver SÉNÉCHAL, Christian, L'Abbaye de Créteil. Paris: Libaire André Delpeuch, 1930. Jules Romains também evoca o período da Abbaye em seus Souvenirs et Confidences d'un Écrivain. Paris: Fayard, 1953, pp. 22-23 377 Esta recitação, como destaca Décaudin, foi prevista para ser executada no quadro da conferência sobre a Phalange Nouvelle que Apollinaire pronunciou no Salon des Indépendants de 1908 e, como veremos mais adiante, esta é uma informação importante pois ela servirá de argumento ao autor para se defender das acusções que Barzun lhe dirigirá meses depois.

163 commun, et les préparer au besoin à l'édification d'une œuvre d'ensemble"378. Picard e Muller, em mais uma destas obras de "synthèse" literária que publicam em 1913, desenham o quadro no qual esta ideia de exaltação da coletividade, circulante desde o princípio do século, se insere:

Les grandes métropoles où s'épanouit presque mostrueusement notre civilisation de fer et d'or, commencent à l'imposer une sensibilitée nouvelle, des attitudes et des habitudes différentes de celles de jadis, à une humanité que déborde la rapidité de l'évolution matérielle: les travaux, les plaisirs tendent à prendre un caractère collectif; une atmosphère commune imprègne toujours davantage les sentiments et les espoirs. [...] la solidarité intellectuelle [...] engendre dans une ville, dans une région, dans le pays tout entier parfois, une âme collective qui déteint sur les mentalités particulières379.

Como sugere esta passagem de Picard e Muller, a sobreposição do ideal coletivo ao individual é comum na reflexão sobre as letras da época, portanto, o que parece se destacar na proposição de Barzun é mesmo o meio pelo qual se opera a passagem do individual ao coletivo: as "voix". Para Barzun o poema deve se mais "ouvido" do que "lido"380 e, por isso, é nas "voix", propostas por ele como "présences poétiques simultanées", que devemos situar a origem da ideia de "simultanéité" que Barzun defende a partir de maio de 1913, quando ele publica, em sua revista Poème et Drame, o ensaio: Voix, Rythmes et Chants Simultanés expriment l'Ère du Drame. Se em Ère du Drame Barzun caracterizava o seu "Dramatisme" como passagem do "individuel" da poesia simbolista para o "collectif", o lirismo múltiplo, "supérieur", como ele escreve, da nova poesia, aqui, em Voix, ele propõe o abandono definitivo de toda a herança simbolista, inclusive a do "vers-libre", para se alcançar uma "expression nouvelle": "Notre génération doit abandonner avant toute chose l'instrument crée par ces derniers [os poetas simbolistas] à l'usage exclusif de leur art et de leur temps"381.

378 "Collège d'Esthétique Moderne, ouvert à Paris le 28 janvier 1901 par MM. Saint-Georges de Bouhélier et Maurice Le Blond", in: Revue Universelle, Paris, 1901. 379 PICARD, Gaston & MULLER, Jean. Les Tendances Présentes de la Littérature Française. Paris: E. Bsset et Cie Éditeurs, 1913, p. XXIII. 380 Ao sustentar a primazia das "voix" simultâneas, Barzun propõe o absoluto aniquilamento da escritura - o poema deve ser "entendu, plutôt que lu" - e, até mesmo, do próprio livro: "Le poète réduira l'écrit", escreve ele, "le livre à leur rang secondaire de témoignage, de document, de preuve pour les voix humaines qui voudront incarner ces voix psychologiques", e ele segue defendendo que "cette conception vocale s'avère donc nettement antagonique de la conception écrite". Cf. BARZUN, Voix, Rythmes et Chants Simultanées, op. cit. p. 21. 381 Idem, p. 6.

164 Notemos que já temos aí duas diferenças essenciais entre as concepções artísticas de Apollinaire e de Barzun pois, se para o primeiro é importante a "personnalité", o talento individual de cada autor no domínio da criação poética, para Barzun é, ao contrário, o "collectif"; se Apollinaire entende a simultanéité a partir de teorias e da pintura de Delaunay, Barzun o entende como "vozes", canto, "presenças poéticas simultâneas". Sendo as "Voix" o meio pelo qual se expressa a concepção de simultanéité de Barzun, o "rythme" encontra em seu ensaio um lugar de destaque. Mas, para Barzun, o ritmo dos versos de seus antecessores, o ritmo do verso livre, mesmo tendo sido uma etapa necessária, perpetuava, simplesmente por sua denominação, "un combat épuisant pour les poètes novateurs" pois, segundo ele, "en qualifiant vers ce qui est liberté rythmique, on justifie l'attaque inclassable des versificateurs professionnels, lesquels défendent sous ce vocable le privilège d'une orthodoxie métrique réfractaire à toute émancipation"382. Por isso, ao verso regular ou ao verso livre, Barzun propõe o emprego da ideia de um "rythme poétique", concepção de "absolue liberté", destinada aos "créateurs", aos "seuls vrais poètes". Esta ideia, a de um "rythme poétique", não desagradava Apollinaire, mesmo porque o poeta não via com ortodoxia o verso, e usava todos: "vers libre ou classique [...] me paraissent des formes également excellentes. Je pense pas qu'aucune d'elles soit sacrifiée au bénéfice des autres"383. As diferenças entre as concepções de simultanéité de Barzun e de Apollinaire ficam ainda mais claras quando consideradas à luz dos artigos que Apollinaire publica no correr do ano de 1914, sobretudo a partir de "Simultanisme-Librettisme", cujo título bastaria para demonstrar que estamos diante de duas concepções artísticas distintas. Ao empregar, já no título de seu artigo, os termos "Simultanisme" e "Librettisme", Apollinaire não apenas sintetiza a démarche de Barzun, mas também diferencia claramente a sua concepção da concepção do autor de Voix. Tal como é grafado, "Simultanisme" se diferencia dos termos "Simultané" ou "Simultanéité" que Apollinaire emprega tendo como base as proposições e a pintura de Delaunay. Lembremos que quando Apollinaire escrevia sobre o "1er Salon d'Automne" de Berlim, em 1913, destacando as obras do artista — quase todas tendo como parte do título os termos

382 Idem, p. 42. 383 APOLLINAIRE, Guillaume. "Réponse à une Enquête", in: Œ.C.P. T. II, p. 958.

165 "simultané" ou "simultanéité"384 — ele concluía o comentário sobre as pinturas afirmando que Delaunay "mérite qu'on l'appelle désormais ainsi qu'il signe: Le Simultané"385. Deste modo, a distância marcada pela grafia distinta dos termos é, acima de tudo, conceitual, pois fica, ou deveria ficar subentendido pelo leitor, que "simultanisme" designa conceito e prática distintos dos designados pelos termos "simultané" ou "simultanéité", com os quais ele se refere à pintura de Delaunay e à sua poesia. Unindo o primeiro ao segundo termo, Apollinaire não dá forma apenas ao termo composto, "Simultanisme-Librettisme", mas estabelece, fixa mesmo a diferença fundamental entre as duas concepções: a dele, ligada à pintura do amigo, a do outro, ligada à música e, mais precisamente, à arte da ópera e a do teatro, pois, como sustenta Apollinaire: "Barzun a remarqué lui-même que son méthode concernait le théâtre, l'opéra et ne représentait rien de simultané à l'impression, et il agi à ordinaire, en suivant le vent"386. Quando Apollinaire escreve que Barzun segue o "vent" da época, ele não está apenas empregando um clichê de linguagem; mais do que isso, ele indica deste modo que Barzun se apoia na proposição de outros autores que já haviam experimentado a prática da recitação polifônica do poema, como Jules Romains:

Pour ce qui concerne la récitation du poème "L'Église", que M. Barzun ne s'y trompe point, la déclamation que Jules Romains avait tenté de faire réaliser en 1909 ne constituait nullement "l'expression par quatre, six ou huit voix, d'une seule phrase poétique". Les voix des quatre récitants se mêlaient, s'éllevaient, parfois seules, parfois ensemble, et disant chacune des strophes différentes, s'enlançaient en une véritable polyphonie387.

Além de destacar que o "simultanisme" de Barzun está baseado na recitação, Apollinaire mostra, uma vez mais, o quanto a sua concepção da simultanéité está baseada na pintura, e não apenas na pintura de Delaunay, pois ele também afirma, no mesmo artigo, que a ideia de simultanéité preocupava "depuis longtemps les artistes".

384 Entre as telas referidas por Apollinaire no seu artigo sobre o "1er Salon d'Automne de Berlin", figuram: Contraste simultané mouvement de couleur profondeur; Contraste simultané mouvement de couleur profondeur prisme lune 2; Soleil Tour Aéroplane simultané; Soleil Lune simultané 1; Soleil Lune simultané 2; Seine Tour Roue Ballon Arc-en-Ciel simultanés; 4e Représentation Simultanée: Paris New York Berlin Moscou; La Tour Simultané; Tour Simultané à Tout; 3e Représentation simultanée: L'Équipe de Cardiff e, ainda, "Première présentation des prismes, Sculpture Simultanée, dont il expose: Cheval prisme Soleil Lune; Parisienne prisme électrique; Oiseau prisme du matin. Cf. Œ.C.P. T. II, p. 622. 385 APOLLINAIRE, Guillaume. "Chronique Mensuelle". In: Œ.C.P. T. II, p. 622. 386 Idem, "Simultanisme-Librettisme", pp. 974-979. 387 Idem, p. 976.

166 Apollinaire propõe que uma ideia de simultanéité circulava desde 1907 pois, na pintura realizada por Picasso e Braque neste ano eles se esforçavam, segundo ele, para "représenter des figures et des objets sous plusieurs faces à la fois". Marie-Jeanne Durry propõe que este tipo de representação deve-se ao procedimento aplicado pelos dois artistas, que é o de excluir da composição a "perspective et le point de fuite"388, responsáveis por dirigir o olhar do espectador do quadro. Assim, quando Picasso e Braque excluem a perspectiva de suas composições, temos a impressão de ver representados na tela as "figures et objets sous plusieurs faces à la fois". De acordo com o que sugere a autora, é com base neste procedimento de Picasso e de Braque que se apresenta a Apollinaire a ideia de excluir, de seus poemas, a pontuação. Para Durry este procedimento permite ao poeta mostrar "la multiplicité des points de vue", de figurar, "comme les cubistes dans le tableau", tudo o que vem de "tous les points de l'horizon" cabendo ao leitor a tarefa de "achever la synthèse"389. Mas se Apollinaire vê esboçar-se na pintura de Picasso e de Braque uma proposição de "simultanéité" pictórica, é a pintura de Delaunay que, segundo ele, dará forma a esta proposição: "ce fut Delaunay qui s'en déclara le champion" da "simultanéité" pictural, "qui fit la base de son esthétique. Il opposa le simultané au successif" e "y vit le nouvel élément de tous les arts modernes". Esta ideia de que na pintura de Delaunay o "simultané" se opõe ao "successif" é igualmente importante. Um dos modos pelos quais Apollinaire entende a simultanéité é a possibilidade de produzir um efeito que provoque no espectador a impressão de apreensão simultânea do objeto artístico. Este efeito de "simultanéité" pode ser produzido tanto pela exclusão da perspectiva, como na pintura de Picasso e de Braque, quanto pelo contraste de cores simultâneas da pintura de Delaunay. Quando Apollinaire escrevia sobre a Équipe de Cardiff de Delaunay ele afirmava: "Rien de successif dans cette peinture. [...].C'est la simultanéité"390. Inversamente, quando ele criticava a pretensão dos futuristas de terem inaugurado a "simultanéité" na pintura, ele se valia do argumento de que a proposição

388 DURRY, Marie-Jeanne. Guillaume Apollinaire. Alcools. Paris: Société d'Édition d'Enseignement Supérieur, 1962, T. II, p. 205. 389 Ibid. idem. Há quem veja no procedimento empregado por Apollinaire similaridades com a ideia de "mots en liberté" de Marinetti, mas é a mesma autora quem estabelece claramente a distinção, ao escrever: "... supprimer la ponctuation n'attente pas à la syntaxe, parce qu'Apollinaire n'adopte pas la technique des "mots en liberté" de Marinetti, et que l'œil intérieur de même que la voix constituent à lire le poème selon son sens, la suppression des points et des virgules, très souvent, au lieu d'accentuer le caractère discontinu, procure la sensation d'un glissement ininterrompu tandis que les délicieuses ambiguités qu'elle favorise dont un "fondu" à la composition décomposée". 390 Cf. Cap. 2, p. 183.

167 de figurar o movimento na pintura se opunha à ideia de uma "simultanéité", uma vez que estes artistas empregavam como meio a figuração de imagens sucessivas sobre a tela. Ao contrário da pintura de Picasso, de Braque e de Delaunay, a repetição de imagens era o que produzia, na visão de Apollinaire, a impressão de movimento que, na pintura dos italianos, era por eles designada "simultanéité". Relativamente à proposição de Barzun, acontece algo semelhante, pois entende Apollinaire que uma simultaneidade proposta por Barzun não se aplicava à escrita poética mas apenas à voz, à vocalização do poema: "si M. Barzun veut une poésie effectivement simultané, il faut qu'il fasse appel à plusieurs récitants ou qu'il se serve du phonographe, mais tant qu'il se servira d'accolades et des lignes typographiques habituelles, sa poésie restera successive"391. Este mesmo ponto de vista defendido por Apollinaire era o Delaunay. Quando pintor comenta "Voix, chant et rythme simultanée" [sic], de Barzun, ele afirma que o livro "n'était pas simultané du tout"392 pois, segundo ele, Barzun "enregistrait et exploitait un mot qu'il n'avait pas compris et dont il développait seulement le côté étymologique". Para Delaunay as "voix simultanées" de Barzun nada trazia de novo às artes do tempo, já que se tratava de uma concepção muito próxima da arte da ópera. Segundo o artista, se Barzun desejasse realmente uma poesia "simultanée" ele não poderia limitar-se às vozes, mas deveria seguir o exemplo dos contrastes simultâneos entre as cores, de sua pintura, e compor o poema por meio do contraste entre palavras ou entre imagens poéticas, tal como procedia Apollinaire. O texto Apollinaire deixa claro que a "simultanéité" é, em Delaunay, "un terme de métier", ou seja, é empregado para designar a técnica do artista baseada, como se sabe, no conceito de contrastes simultâneos. No capítulo precedente mostrei como Apollinaire acompanha de perto o trabalho que Delaunay realiza nos anos de 1912-1913 e indiquei como a composição do poema Les Fenêtres pode ser relacionada a esta série de pinturas igualmente intituladas Les Fenêtres, que Delaunay prepara no final de 1912 para sua exposição em Berlim, em janeiro de 1913. Devo acrescentar a isso que, no mesmo artigo "Simultanisme- Librettisme", Apollinaire indica poemas nos quais ele havia tentado "habituer l'esprit à concevoir un poème simultanément" e, entre estes, ele destaca Les Fenêtres. Neste artigo, ainda que destaque Les Fenêtres como um de seus "simultanés" Apollinaire não apresenta qualquer explicação sobre o poema. No entanto, é possível encontrar algumas

391 APOLLINAIRE, Guillaume. "Simultanisme-Librettisme", in: op. cit. p. 974. 392 DELAUNAY, Robert. Op. cit. p. 112.

168 indicações que dão direções para entender a importância que Les Fenêtres tem para o autor e de que modo ele pode ser relacionado à simultanéité da pintura. Entre as numerosas cartas que Apollinaire envia a Madeleine Pagès existe uma na qual o poeta evidencia a importância do poema, e esclarece que o mesmo havia sido composto para o catálogo da exposição de Delaunay. Apollinaire explica a Madeleine que Les Fenêtres resultava de uma "esthétique toute neuve"393 — a mesma que ele e Delaunay discutiam no final de 1912, antes da exposição realizada em 1913 — e, em outra carta, relaciona o poema à "peinture prismatique de Delaunay". Noëmi Blumenkranz-Onimus propõe que a ideia de simultanéité pode ser estendida para toda a reflexão artística do autor pois há, no pensamento estético de Apollinaire uma simultanéité "d'idées" que consiste em proceder a uma espécie de síntese entre contraditórios, meio pelo qual o autor une "ordre et aventure", "Apollon et Dionysos", "classicisme et modernisme", "science et art", "idéalisme et réalisme", "Cubisme et Orphisme", enfim, uma pesquisa permanente que não exclui possibilidades e que espelha, na visão da autora, a própria "modernité de l'art"394. A ideia desta "synthèse", que segundo Noemi está na base da "esthétique" de Apollinaire, pode ser encontrada na visão que o autor tem da pintura de Delaunay, pois o autor enxerga nela o resultado de uma pesquisa plástica que se resolve por meio de sínteses: da luz dos impressionistas, da aplicação da cor feita pelos neoimpressionistas, ou, para lembrar de seu comentário sobre La Ville de Paris, obra na qual ele via "tout l'effort de la peinture moderne", a síntese entre o desenho e a cor.

DAS FENÊTRES DE DELAUNAY À LES FENÊTRES DE APOLLINAIRE

Como mostrei no capítulo anterior, o "métier simultané" de Delaunay é elaborado em diálogo com Apollinaire que o ajuda, como propõe Marcel Brion, a fixar suas "ambitions esthétiques"395. Disse também que a origem da simultanéité do artista deriva, em parte, do tratado de Michel-Eugène Chevreul sobre a lei do "contraste simultané des couleurs" e que o mesmo pode ter sido igualmente importante para Apollinaire quando

393 APOLLINAIRE, Guillaume. Tendre comme le souvenir. op. cit. p. 70. 394 BLUMENKRANZ-ONIMUS, Noemi. "Vers une Esthétique de la Raison Ardente", in: Europe. Revue Mensuelle, nov.-déc., 1966, p. 174. 395 BRION, Marcel. Art Abstrait. Paris: Éditions Albin Michel, p. 131.

169 da elaboração do poema Les Fenêtres. O verso inicial do poema, Du rouge au vert/ Tout le jaune se meurt, é geralmente interpretado como uma referência às cores empregadas por Delaunay na execução de sua pintura Les Fenêtres. Certamente elas estão lá, mas isso não basta para explicar a relação entre o poema e a pintura, aliás, pinturas. O que é preciso destacar e entender é que o poeta não está fixo diante do quadro tentando reproduzir suas cores no poema, uma vez que isso contradiria sua própria concepção e sua posição com relação às artes. O que interessa a Apollinaire são as proposições, as ideias que a teoria de Chevreul e a pintura de Delaunay lhe inspiram. Com base na proposição teórica e na proposição artística é que, ao autor, torna-se possível elaborar um modo de composição poética "tout neuf". Quando o poeta escreve o verso inicial do poema ele evoca, para não dizer que indica, a sua "fonte", que é o tratado do químico dos Gobellins. Não pretendo dizer com isso que Apollinaire tenha passado noites lendo a Loi des contrastes simultanés de couleurs. Não, não se trata disso. Conhecemos, ou podemos ao menos imaginar, algo deste "método" de leitura "à bâtons rompus" de Apollinaire, aquele que ele confessa ser o seu em carta a Breton396, e isso nos permite pensar que ele possa ter, sim, folheado, ou, de algum modo, se instruído a propósito das ideias de Chevreul. E o verso inicial de Fenêtres mostra justamente isso. Se, como Apollinaire, folheamos o tratado de Chevreul, não temos dificuldades em encontrar esta proposição fundamental do teórico: "C'est dans ce sens qu'on dit: que le rouge est complémentaire du vert [...]. Que le jaune tirant sur le vert est complémentaire du violet [...]". A pergunta a se fazer é o que fazer com uma proposição teórica, científica como esta? A resposta de Apollinaire é: um poema, Les Fenêtres. Mas o poeta, assim como não se prende apenas às cores da tela do artista, também não se fixa ao discurso do cientista. Tendo compreendido a proposição fundamental, tanto a artística quanto a científica, este entendimento lhe possibilita a elaboração de um "método" que ele "aplica" em escritura poética, com inúmeras variações. Logo, não se trata de um jogo combinatório e sim de um jogo de combinações possíveis. Por isso, da teoria de Chevreul, é possível a Apollinaire deslocar o termo "violet", que completa a proposição indicada no verso inicial — Du rouge au vert tout le jaune se meurt — para o meio do poema. Ele não está a seguir a teoria, assim como não está a reproduzir as cores das telas, ele está a compor o poema com base nelas. Portanto, tendo

396 APOLLINAIRE, Guillaume. "Lettre à André Breton", 14 février 1916, in: Correspondance Générale, T. 3*/ 1916-1918, p. 86.

170 a ideia como referência, é possível, ao poeta, iniciar esse jogo de combinações que será a engrenagem de Les Fenêtres. Jogando o "violet" na sequência "Beauté pâleur insondable violets", Apollinaire instaura uma nova modalidade de contraste valendo-se da mesma ideia, porém, desta vez operando com a justaposição dos termos para produzir o efeito dos tais contrastes simultâneos. Com exceção de Anna Boschetti, que dizia reconhecer em Les Fenêtres um "noyau de thèmes reliant et structurant tout le poème", outros críticos intuíram o procedimento do poeta ao compor Les Fenêtres sem, no entanto, descrevê-lo. Como Philippe Renaud, que propôs em seu estudo sobre Apollinaire que o poema Les Fenêtres "ne propose pas une vision", mas "relate un processus", ou ainda, que "le poème donne des informations relatives à des processus". Arriscaria ir um pouco mais adiante que Renaud e afirmaria que o poema Les Fenêtres É um "processus", que é este jogo de combinações possíveis. Uma máquina que pode ser montada e desmontada. Ele é uma ideia, ideia que está presente na pintura de Delaunay pois, para produzir contrastes, não é necessário seguir estritamente uma regra; o que explica a crítica de Delaunay e Apollinaire à pintura dos neoimpressionistas uma vez que estes, fixados nas regras da aplicação de cores, não avançaram o que a proposição de Chevreul continha de sugestão. Os contrastes entre cores podem ser produzidos por combinações das mais variadas formas. Assim sendo Les Fenêtres, pode ser considerado uma poética, mas uma poética entendida como possibilidades e não como regras que devem ser seguidas. Vejamos. Do verso inicial, a proposição propriamente dita — ou seria mais correto dizer: parte dela —, o poeta desloca o quarto termo, o violet, para o meio do poema, criando com este movimento uma nova possibilidade de combinação, uma nova possibilidade de contraste, que é a do contraste entre termos compostos no interior de um mesmo verso. Ao justapor "Beauté pâleur insodables violets", justaposição pura de termos sem qualquer ligação sintática, o autor opera como se estas palavras fossem objetos, ou imagens, passíveis, então, de serem compostas como figuras que um pintor distribui na composição do quadro. Mas isso não impede uma leitura que tenha como objetivo a construção de um sentido397. No entanto, se isso desejamos, é preciso voltar para a teoria e lembrar que a

397 Não distante da pintura, uma segunda proposição de leitura é possível: mantendo o sentido das palavras seria possível propor que o poeta emprega o termo "pâleur" para desqualificar a "beauté", a beleza entendida como aquela da pintura que ele combatia quando propunha, nas suas Méditations esthétiques, que a pintura nova desejava figurar o "beau dégagé de la délectation que l'homme cause à l'homme", ou seja, da beleza produzida segundo o critério da representação realista.

171 proposição na qual se baseia a ideia de "simultanéité" não é apenas a do contraste entre cores, mas a do contraste entre cores "complémentaires". Neste sentido, podemos reconsiderar o mesmo verso e propor que, embora não se encontre nele uma relação sintática possível, há uma relação de complementaridade semântica que dele pode ser destacada. Assim, a sequência "Beauté pâleur insondables violets" poderia ser entendida como uma relação de atributos possíveis da pintura de Delaunay. "Beauté" é um atributo aplicável a qualquer arte, entretanto ele ganha um contorno mais preciso quando lembramos que Delaunay relacionava a "beauté" com a sua própria busca de uma "peinture pure": "Dans le domaine de la peinture", escrevia ele, "recherchons la pureté de moyens, l'expression de la beauté la plus pure", ou, como variava Apollinaire, quando escrevia que Delaunay "recherche la pureté de moyens, l'expression de la beauté la plus pure"398. À mesma "beauté", Delaunay relaciona uma outra grande preocupação de sua pintura, que é a luz: "Le fonctionnement de la lumière nécessaire à toute expression vitale de la beauté "399. Nas Fenêtres de Delaunay, encontramos o contraste do "rouge au vert" onde, como no verso de Apollinaire, "tout le jaune se meurt", imagem que pode ser traduzida pelo "pâleur". O "violet", cor complementar do "jaune", se destaca em algumas zonas da tela do artista, quando pintado em contraste com o amarelo, ou com cores tirantes a esta, mas, quando em contraste com outras cores que não são as suas complementares, torna-se "insondable". Ainda, podemos pensar este insondável violeta como cor, e presente na tela, pois, se articulamos o "violet" ao "pâleur", temos o "violet pâle" que, em francês, designa a cor lilás, que figura na pintura.

398 Cf. Capítulo 2, p. 182 399 Cf. Capítulo 2, p. 172.

172

Les Fenêtres Robert Delaunay 1912

Esse contraste entre palavras presente em um mesmo verso se repete em outros, como na sequência "Bigorneaux Lotte multiples Soleils et l'Oursin du couchant". Mas aqui é preciso observar que o contraste é relativo pois, ainda que a justaposição sem relação sintática entre os termos o sugira, a relação é de complementaridade semântica, já que os termos "Bigorneaux", "Lotte" e "Oursin", se inscrevem dentro de um mesmo campo de semântico400. Certamente seria possível contra-argumentar afirmando que o par "multiples Soleils", inserido neste verso, não pertence ao mesmo reino das águas como os demais, e a ideia é essa mesma, visto que é com ele, com sua presença, que o contraste é produzido no verso. De outro modo, pensando em aproximações com a pintura do artista, poderíamos dizer que os múltiplos sóis servem de evocação, ofuscante, da luz, o "problème de la peinture moderne", na visão de Delaunay. Aliás, a luz é um componente igualmente importante na composição do poema, e Apollinaire conhecia de perto esta preocupação do artista. Quando ele comentava, por exemplo, La Ville de Paris, ele destacava que as "brisures des formes" das telas de Delaunay eram produzidas "par la lumière", a mesma "lumière" que valorizava os "plans colorées" pintados pelo artista. E não podemos esquecer que, quando Apollinaire comentava seu poema com Madeleine, ele o relacionava com a "peinture prismatique" de Delaunay. Sendo assim, quando lemos Les Fenêtres não nos surpreendemos de nele encontrar outros versos nos quais a luz é sugerida, insinuada, indicada ou acentuada, como na passagem em que o poeta apresenta esta imagem justamente para dar destaque à luz:

400 Bigourneaux: "petit coquillage comestible" Lotte: "poisson d'eau douce" Oursin: "animal marin".

173

Tu soulèveras le rideau Et maintenant voilà que s'ouvre la fenêtre Araignées quand les mains tissaient la lumière

Da sombra à luz: a cortina fechada é suspensa, a janela se abre e a entrada da luz invade o poema, como teias, "peinture prismatique", tecidas pelas mãos do pintor. A luz se refrata, se reflete, e se espalha em outros espaços do poema. Pela janela, ela atravessa, iluminando "Une vieille paire de chaussures jaunes devant la fenêtre" e, a partir daí, se insinua de variadas maneiras: no "étincelant diamant"; no "feux", que é acentuado pelo contraste com o "nocturne"; no "train blanc de neige"; nos termos homófonos, ou quase, que sugerem o amarelo, como em "jeune fille; jeunes Turinaises; jeune homme"'; nos "multiples Soleils", alcançando o fim do poema para se terminar, luminosamente:

La fenêtre s'ouvre comme une orange Le beau fruit de la lumière401

Como em um jogo de variadas possibilidades, de combinações, de contrastes, segue sendo possível vê-lo de outros ângulos. Contrastes sonoros: "Arbres creux qui abritent les Câpresses", dissonância produzida pela reiteração das vibrantes, meio pelo qual se acentua a impressão de contraste no interior do mesmo verso. Ou então pela combinação contrastante montada pelo poeta, quando justapõe a este último verso, dissonante, um outro, perfeitamente assonante: "Les chabins chantent des airs à mourir". Contraste de cores, contraste de termos, contrastes sonoros, e também contraste de imagens, como nas que se chocam, logo no início do poema:

Quand chantent les aras dans les forêts natales Abatis de pihis Il y a un poème à faire sur l'oiseau qui n'a qu'une aille

401 Notemos que aí, nestes versos finais, não é apenas a luz a ser novamente destacada mas, uma vez mais, a proposição mesma dos contrastes simultâneos entre as cores é que parece ser lembrada, pois como Chevreul explicava: "Les couleurs de deux objets sont elles-mêmes modifiées dans leur nature optique. Par exemple, si une feuille de papier bleu est placé à côté d'une feuille de papier jaune, ces deux feuilles loin de nous paraître tirer sur le vert, comme on pourrait le présumer, d'après ce qu'on sait de la production du vert par mélange du bleu et du jaune, semblent prendre du rouge de sorte que le bleu paraît violet et le jaune orangé". CHEVREUL. Michel-Eugène. "Prospectus", op. cit.

174 Nous l'enverrons en message téléphonique

Do natural das aves que contrasta com o artificial do poema, passagem franqueada pelas imaginárias pihis402, chega-se à técnica "Nous l'enverrons en message téléphonique". De combinações em combinações, de um contraste a outro, é que é possível mover-se no poema, até entender que ele é puro artifício, invenção pura do autor:

Tours Les Tours ce sont les rues Puits Puits ce sont les places

As torres — que a um conhecedor da pintura de Delaunay poderia sugerir referência às séries pintadas pelo artista —, o concreto, o real, não são necessariamente torres, pois não sendo reais elas podem ser também ruas, assim como os poços podem deixar de ser poços para serem praças. No poema, o leitor é jogado em plena quatrième dimension, é lançado no reino das possibilidades possíveis. E isso é o que possibilita, ao leitor disposto a atravessar, como luz, as janelas do poema e entrar no jogo, estar em "Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York et les Antilles", "à la fois", simultaneamente, como o "faux messie", do conto de Hérésiarque et Cie403.

402 Seria possível estabelecer uma espécie "ornitologia poética" aplicável aos poemas de Apollinaire. Aí, nesta sequência mesmo, não parece gratuita a evocação das "aras", cujas cores podem fazer lembrar as do quadro de Delaunay. As "pihis", que reaparecerão em Zone, são aves imaginárias que o autor pôde localizar em narrativas tradicionais chinesas. As "pi-i", que o autor verte livremente a "pihis", possuíam uma única asa e por isso eram forçadas a voar em par com outra, o que explica o verso seguinte do "oiseau qui n'a qu'une aile". Um ave "fantástica", imaginária, cuja inserção no poema altera substancialmente o sentido da sequência, pois com ela passamos de uma natureza "natural", real, para uma natureza imaginária, fantástica. 403 No útltimo conto que integra este volume, L'Amphion faux messie ou histoire et aventures du Baron d'Ormesan, é narrada a história de Aldavid, este "Messie dont l'ubiquité paraissait incontestable". O narrador nos fala de informações "datées de Francfort, de Mayence, de , de Strasbourg, de Hambourg et de Berlin", que "annonçaient simultanément la présence d'Aldavid"; diz, de suas predições, que eram feitas "toujours dans la langue du peuple parmi lequel il se trouvait" e também que este "don des langues [...] n'était pas moins surprenant que son don d'ubiquité", que esta sua capacidade de estar simultaneamente em tempos e em lugares distintos. Ao avançar um pouco na leitura do conto descobrimos que o tal "Messie" Aldavid, cujo aparecimento, em um mesmo tempo, é registrado em diversos países é, ninguém menos, do que um antigo companheiro do narrador, o Baron d'Ormesan, que após anos se dedicando "à des recherches" que se estendiam da "télégraphie" ao "phonographe", chegava agora à sua mais recente descoberta, o "toucher à distance", aparelho sobre o qual o baron explica que: "Après de nombreuses expériences, je parviens à construire deux appareils dont je gardai l'un, tandis que je plaçais l'autre contre un arbre situé au bord d'une allée du parc Montsouris. Mon expérience réussit pleinement, et, actionnant l'appareil transmetteur [...] je pouvais, sans quitter le

175 "Du rouge au vert tout le jaune se meurt". Pode ser entendido como proposição aplicável, ou não, pois tudo depende do modo como as cores são agenciadas no quadro, ou distribuídas no poema, depende do modo como artificialmente se as ilumina, depende da luz que atravessa a janela, depende das demais cores de seu entorno, depende, enfim, do modo como o espectador ou leitor as veem. São possibilidades o que as telas de Delaunay e o poema de Apollinaire criam, possibilidades. E a criação é o que move os dois artistas, é o que os leva à procura permanente. Lembremos uma vez mais que quando Apollinaire defendia a ideia de uma "peinture pure", ele a ilustrava de diversas maneiras: por vezes, propondo aos pintores que se ocupavam de "peinture pure" o "sujet ne compte plus", por outras afirmando que os mesmos desejavam "revenir aux principes" da pintura e, em seu poema, não estamos nada distantes destas ideias. Assim como na pintura dos artistas que Apollinaire defende, seu poema não apresenta um "sujet", ele se apresenta, ele é o próprio "sujet". Ele nada descreve, visto que a sintaxe empregada para sua composição é a própria negação da descrição. Ele não imita nada, ele é o dano à ideia de imitação. As imagens que dele saltam são imagens sem qualquer semelhança com objetos do mundo, com o próprio mundo. Sem semelhança, portanto, com o "real", elas são um salto sobre a ideia de semelhar: as "Tours" ou os "Puits" podem ser ruas ou praças porque elas não são "a coisa", elas são ideias, imagens possíveis. O poema poderia ser considerado, no melhor dos casos, tal como lhe aparecia a poesia de Robert Maze, uma deformação da "réalité". Mas não, Les Fenêtres não é isso, pois a deformação da realidade a pressupõe, a deformação da

lieu où je me trouvais en réalité, apparaître, me trouver en même temps au parc Montsouris; et sinon m'y promener du moins voir, parler, toucher et être touché dans les deux endroits À LA FOIS". A passagem não indica apenas que uma ideia de "simultanéité" já se esboçava no imaginário do autor quando da produção de sua prosa - ele mesmo, no artigo "Simultanisme-Librettisme", referiria que em passagem de L'Enchanteur pourrissant se indiciava a mesma ideia -, antes de ser levada à poesia, mas também nos convida a lembrar que, em Zone, há uma sequência de versos que pode ter sido elaborada a partir da mesma obra da qual o trecho citado acima é extraído. Neste sentido, podemos entender que os versos que seguem "Tu es dans le jardin d'une auberge eux environs de Prague", como a sequência: "Tu te sens tout heureux une rose est sur la table/ Et tu observes au lieu d'écrire ton conte en prose/ La cétoine qui dort dans le cœur de la rose", e também os versos da estrofe seguinte, principalmente, "Épouvanté tu te vois dessiné dans les agates de Saint-Vit"; "Les aiguilles de l'horloge du quartier juif vont à rebours"; "en montant au Hradchin et le soir en écoutant/ Dans les tavernes chanter des chansons tchèques", são compostos, senão a partir dos contos de Hérésiarque, ao menos a partir das imagens mentais e das notas que o autor preserva403 de sua travessia por Praga, cidade pela qual passa quando de seu retorno da estada na Alemanha entre 1901-1902, às quais servem de fundo aos contos presentes no aludido volume. A propósito, lembremos que Renaud observa que esta mesma sequência de versos onde, na sua visão, "Apollinaire dit s'être reconnu dans les agates de Saint-Vit", é composta com base no primeiro conto de Hérésiarque, Le Passant de Prague, "où se trouve la même anecdote". in: APOLLINAIRE, Guillaume. L'Hérésiarque et Cie. in: Œuvres en prose T. I Paris: Gallimard, 1977, pp. 195-223.

176 realidade reclama pelo referente, pelo objeto que irá ser deformado, e a poesia e a pintura de Apollinaire e de Delaunay não, são artes puras, são ideias, são possíveis. Apollinaire mesmo o dizia quando comentava o seu trabalho com a sintaxe poética. Dizia não, ele exclamava: "Je reviens aux principes!". O mesmo para Delaunay que, quando escrevia sobre suas Fenêtres, afirmava que o título era apenas "évocateur", uma vez que sua preocupação era completamente outra, era com a técnica, "complètement nouvelle", ou seja, era com a maneira de fazer que ele se preocupava. Sua busca para entender os "contrastes de couleur simultanées" era apenas para propô-los de outros modos, afastados das simples aplicações de Seurat e de Signac, para poder criar com estes, a partir destes novos modos, e produzir em sua pintura "rapports de couleurs mobiles". Por isso propunha que as cores em sua pintura eram uma "fonction de la forme", não era o "colorido", não era "coloriage", não era aplicação neoimpressionista, as cores eram empregadas com a função de produzir, de fazer ver, de inventar a forma, uma forma. A exclamação de Apollinaire é plural, e no plural é que ela deve ser entendida. Ele considera princípios, muitos princípios, por isso valoriza tanto a arte de Ingres quanto a arte de Picasso, tanto um chromo colorido, uma imagem de Épinal, quanto Cézanne, tanto uma escultura de Rodin, quanto uma escultura de um anônimo de uma tribo qualquer da África do Norte. Por pensar em princípios, não se incomoda com a ideia de uma ortodoxia do verso que tirava o sono de Barzun. Usa todos404 os tipos de versos pois julga que todos são excelentes, ao poeta que souber usá-los. Afirma que a pontuação serve apenas aos medíocres para justificar seus estilos pois sabe que não é ela o que determina os ritmos do poema. Busca outras maneiras de criá-los, as encontra, as emprega na escrita de suas poesias. Mistura, compõe livros com poemas em diversas faturas, escritos em momentos distintos de sua vida. Dizendo assim, no plural, ele provoca os que estão à sua volta: "... dans l'art de notre époque le retour aux principes a été posé comme une condition sine qua non"405, escreve a Camille Mallarmé; A Breton, que "... la vérité est, je crois, qu'en tout, pour atteindre loin il faut d'abord retourner aux principes"406. Este retorno "aux principes" é busca, é o que impulsiona a criação, é o voltar-se ao específico da linguagem poética, ao verso, ao

404 APOLLINAIRE, Guillaume. "Lettre à Jeanne-Yves Blanc", in: Correspondance Générale. Tome 2/** 1915. Paris: Honoré Champion, 2015, p. 789. A Jeanne-Yves Blanc, escreve: "Je n'ai point de système poétique", e completa "ou plutôt j'en ai beaucoup". 405 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance Générale, T. 3/* 1916-1918, p. 113 406 APOLLINAIRE, Guillaume. "Lettre à André Breton", dimanche, 12 mai 1916, in: Idem, p. 119

177 metro, à rima, é entendê-los para saber deles tirar o melhor proveito. Mais do que isso, é a poiesis, é o poien gregos, é fazer, criar, por isso valoriza a pesquisa dos pintores e destaca que o que lhes importa é a execução. É contra a mimesis pois tem claro que ela está na outra ponta, distante da poiesis, onde ele se situa: "poésie et création ne sont qu'une même chose"407.

ZONE

A "esthétique toute neuve" elaborada em Les Fenêtres pode ser reconhecida também em Zone, poema por vezes visto como uma "art poétique"408 do autor. Talvez seja esta uma das razões pelas quais críticos, quando a ele se referem, o consideram um "microcosme d'Alcools"409, uma "profession de foi esthétique"410 do autor, um "poème- manifeste"411 no qual o "esprit moderne se montre en gestation"412, ou um "poème- préface"413, que serve como uma "ouverture esthétique"414 dos Alcools que Apollinaire publica em 1913 ao lado de suas Méditations esthétiques. Estas caracterizações todas relativamente a Zone não devem ser vistas como simples exaltação do poema e do poeta. Elas procedem, pois percebemos que Zone resulta de muita reflexão e de um longo período de elaboração. Michel Décaudin mostrou no Dossier d'Alcools415, de 1965, que o poema começa a ser escrito em 1909,

407 APOLLINAIRE, Guillaume. "L'Esprit Nouveau et les Poètes", in: Œ.C.P. T. II, p. 950. 408 Propondo classificações - que certamente teriam deixado o autor contrariado - para os poemas contidos em Alcools, Claude Morhange-Bégué e Pierre Lartigue incluem "Zone" dentro do grupo de poemas assim designado: "Arts Poétiques". Em que pese a contrariedade de Apollinaire com relação a toda sorte de classificações, a proposição dos autores parece justa, pois neste poema encontramos muitas das ideias de Apollinaire sobre as artes da pena e do pincel, que importam para a composição de seus textos. Aliás, lembremos aqui que Parinaud já observava, antes destes dois autores, que "Zone est une des œuvres essentielles de la nouvelle poétique d'Apollinaire mais aussi de l'histoire poétique qui opère sa mutation". Cf.: MORHANGE-BÉGUÉ, Claude. LARTIGUE, Pierre. Alcools. Paris: Hatier, 1991, p. 28 ss. PARINAUD, André, op. cit. p. 307. 409 RENAUD, Philippe. Op. cit. p. 96. 410 Cf.: DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier d'Alcools. Paris/Genève: Libraire Minard/Libraire Droz, 1965, p. 30. 411 READ, Peter. Apollinaire e Picasso: les métamorphoses de la mémoire 1905-1973. Paris: Jean-Michel Place, 1995, p. 61. 412 BRETON, André. Le Surréalisme et la Peinture. Paris: N. R. F., 1965, p. 333. 413 Cf.: ADÉMA, Pierre-Marcel, Guillaume Apollinaire le Mal-Aimé. Paris: Libraire Plon, 1952, p. 155. 414 Cf.: DÉCAUDIN, Michel. Commente Alcools de Guillaume Apollinaire, op. cit. p. 33. 415 De acordo com Décaudin: "En 1909, s'élabore le projet d'un autre recueil, L'Année républicaine, vraisemblablement conçu au cours de la brève période de rapprochement entre Apollinaire d'une part, Jules Romains et les poètes de l'Abbaye de l'autre. Un cahier manuscrit qui porte ce titre contient un premier état de Vendémiaire, une ébauche de Cortège intitulée Brumaire, et, d'une rédaction postérieure, un brouillon non titré de Zone", Cf.: DÉCAUDIN, op. cit. p. 33.

178 ano que é indicado como sendo o da composição do longo poema, L'Année Republicaine. Este poema será trabalhado pelo poeta ao longo de quatro anos até chegar em uma forma que será a de Zone, publicado no final de 1912 na Soirées de Paris. A comparação dessas duas versões do poema, ou poderíamos dizer, desses dois poemas, evidencia o procedimento de reelaboração pelo qual passou Zone até chegar à sua forma definitiva: longos trechos cortados, sistemas de metros e rimas desmontados, redistribuição de versos e tantas outras modificações feitas pelo poeta que poderíamos entender o manuscrito de 1909 como uma espécie de prancheta de estudos do autor. Tal como Cézanne e suas Banhistas, tal como os pintores e artistas, Apollinaire retrabalha o texto para chegar no seu quadro final: Zone. Ou melhor museu, pois o que encontramos exposto no poema resulta da reflexão artística, amplamente entendida, do autor. Esta versão de Zone que vai para as páginas da Soirées é contemporânea de Les Fenêtres, o que indica que uma parte do poema foi retrabalhada na mesma época em que Apollinaire e Delaunay encetavam "longues discussions esthétiques sur la peinture simultanée" das quais, Les Fenêtres, foi um dos resultados. Les Fenêtres, além de figurar no "Album-catalogue" da exposição berlinense das obras de Delaunay, em janeiro de 1913, é publicado também, no mesmo mês, na revista Poème et Drame, dirigida pelo já conhecido Barzun. A publicação de Zone antecede em apenas um mês a de Fenêtres: o poema, antes de ser impresso em Alcools, em março de 1913, foi, como disse, estampado no número 11 da revista Les Soirées de Paris, o de dezembro de 1912, exatamente no mesmo número em que o autor publica seu texto sobre a pintura de Delaunay, "Réalité. Peinture Pure"416. E, assim como Les Fenêtres é o "poème-préface" que é impresso no catálogo da exposição, Zone será o "poème-préface" de Alcools. É a partir dele que o poeta apresenta a primeira grande exposição em conjunto de seus poemas elaborados entre os anos de 1898-1913.

O departamento de manuscritos da Bibliothèque Nationale de France mantém em seu acervo um manuscrito autógrafo composto de 46 folhas nas quais, na primeira delas, figura: "L'Année républicaine", e nas quais encontramos o que seja possivelmente os primeiros estados de três poemas de Apollinaire, "Vendémiaire", "Brumaire", que é um primeiro estado do futuro "Cortège", e "Zone", todos os três posteriormente incluídos nos Alcools de 1913. Não é possível afirmar que se trate do mesmo manuscrito, ainda que tudo indique que sim, exceto pelo fato de que Décaudin refere um "brouillon non titré de Zone", enquanto que o manuscrito da BNF possui o título "Zone", na folha 28 do mesmo. 416 Apenas para enfatizar a importância do diálogo entre os dois artistas, indico que Michel Décaudin mostra, em uma das provas de Alcools, a presença de uma página de abertura do livro, posteriormente eliminada, na qual figura em destaque a frase final da passagem sobre o "orphisme" em Méditations esthétiques: "J'aime l'art d'aujourd'hui parce que j'aime avant tout la lumière et parce que tous les hommes aiment la lumière, ils ont inventé le feu". A página, na qual figura inclusive dedicatória a Robert Delaunay, é uma indicação importante para entender a frequência do motivo luminoso, do "feu", das "flammes", da "lumière", presentes ao longo de todo Alcools.

179 A datação 1898-1913, figurando abaixo do título, Alcools, não está lá apenas para indicar o período de elaboração ou a sequência dos poemas nele contidos. As datas, 1898-1913, são, na verdade, um "trompe l'œil", pois, se ao olho do leitor fica sugerida a ideia de uma exposição cronológica dos poemas, de modo a exibir a "evolução" poética do autor, esta ideia logo se dissipa, e isso já nas primeiras páginas do livro. Ao abri-lo, o leitor de depara com Zone para, logo depois, encontrar poemas como Pont Mirabeau e a La Chanson du Mal-Aimé. A fatura dos poemas contrasta, uma vez que a forma do primeiro em nada se aproxima, exceto pela ausência de pontuação, dos outros dois. Zone, o primeiro poema do livro, não possui um "sujet", Pont Mirabeau e a La Chanson, sim. A livre associação de imagens, um dos aspectos da modernidade de Zone, não se encontra nos dois poemas que o seguem. Assim, tal ideia de "evolução" da poética do autor fica logo impedida, mesmo porque uma das convicções artísticas do autor é a de que, no domínio da criação, passado, presente e futuro devem co-existir, ou ainda "embrasser d'un coup d'œil: le passé, les présent et l'avenir"417. Esta concepção artística é indicada desde os versos iniciais:

A la fin tu es las de ce monde ancien

ou

Tu en as assez de vivre dans l'antiquité grecque et romaine

Lidos assim, soltos, estes dois versos de Zone poderiam servir de exemplo para se sustentar uma ideia de ruptura com a tradição, mas a esta altura já sabemos que em Apollinaire, não. Se o leitor os interpreta como saturação do passado, como saturação das artes do passado, os versos seguintes logo mostram o contrário, na medida em que também apontam, se não reforçam, a articulação dos tempos prefigurada pelas datas e pela distribuição dos poemas no livro:

Ici même les automobiles ont l'air d'être anciennes

417 APOLLINAIRE, Guillaume. Méditations Esthétiques. Les Peintres Cubistes, op. cit. Esta mesma visão sobre a criação artística permanece nas considerações do autor que volta a afirmá-la em uma entrevista para a revista SIC, de Pierre Reverdy, em 1916: "Le présent doit être le fruit de la connaissance du passé et la vision de l'avenir", ou então, "De la connaissance du passé nait la raison, de la vision de l'avenir surgit l'audace et la prévoyance". In: "SIC: Interview avec Guillaume Apollinaire", in: Œ. C. P. T. II, p. 985 ss.

180 La religion seule est restée toute neuve la religion Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation

Esta sequência de versos pode ser entendida na mesma chave dos contrastes, de modo a evidenciar que, em Zone, uma das ideias de composição colocadas em circulação em Les Fenêtres pode ter servido ao poeta no processo de reelaboração do poema que abre Alcools. Com isso, a proposição lançada na leitura feita de Les Fenêtres pode ser reafirmada aqui, visto que esta ideia de contraste é largamente explorada por Apollinaire. Um exemplo são as justaposições de termos ou de enunciados pertencentes a campos semânticos distintos com as quais o poeta cria os versos em que a visualidade produzida sobressalta, de modo semelhante àquela que produziam os artistas defendidos por ele pois, como estas imagens, as que figuram no poema afastam-se do "real" da representação realista para encostar no irreal, no surnaturel da inebriante Zone:

Bergère ô tour Eiffel le troupeau de ponts bêle ce matin [...] Des troupeaux d'autobus mugissants près de toi roulent [...] C'est le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs [...] Icare Énoch Alie Apollonius de Thyane/ Flottent autour du premier aéroplane [...] Et tous aigle phénix et pihis de la Chine/ Fraternisent avec la volante machine

Este tipo de combinação inusitada de enunciados, de termos, ou de versos inteiros pertencentes a campos semânticos distintos é elevada em Zone, como já o era em Les Fenêtres, a um princípio compositivo, e são muitos os exemplos que podemos localizar ao longo do poema. Pelo mesmo procedimento é possível, ao poeta, produzir imagens hiperbólicas, aproximáveis, por vezes, às que são produzidas na pintura de Delaunay — como em La Ville de Paris, por exemplo —:

Entourée de flammes ferventes Notre-Dame m'a regardé à Chartres Le sang de votre Sacré-Cœur m'a inondé à Montmartre

181 Eliminando de sua composição a ideia de espaço, ao poeta se apresenta a possibilidade de aproximação destas três enormes catedrais, acentuando, assim, a monumentalidade da imagem, tal qual na pintura do artista, em que as três figuras femininas que ocupam o centro da composição se elevam à altura da torre figurada no lado esquerdo da tela, ao mesmo tempo em que ultrapassam as dimensões espaciais da ville de Paris. Como na pintura, a monumentalidade da imagem é enfatizada pelo contraste de cores: na tela de Delaunay, a opacidade das cores das figuras femininas faz com que elas se destaquem do fundo verde-azulado; no poema de Apollinaire a brancura da Sacre Cœur em contraste com o vermelho do sangue que dela entorna produz um efeito ainda mais intenso. É preciso observar também que, ao desnaturalizar o natural do espaço geográfico, este que estabelece a distância entre as catedrais, o poeta implode a ideia de referente, aproximando-se uma vez mais da pintura pura, da pintura que não necessita de referente para ser pintura. Desreferencializando, assim, os referentes, estes deixam de ser um lugar reconhecível no mundo e passam a ser, portanto, pura imagem e, enquanto puramente imagens, são passíveis de operações de outras ordens, que se distanciam da simples designação das coisas do mundo como fazemos com linguagem ordinária; daí ser arte, poesia, e poesia pura. Como meras imagens, elas podem ser arranjadas em um quadro, num cartaz, ou agenciadas, como no poema de Apollinaire, como partes a compor um verso. Quando Apollinaire emprega este procedimento na composição de outras passagens de Zone, a justaposição possibilita ao poeta alcançar uma espécie de síntese de tempo e de espaço, semelhante àquela dos versos finais de Fenêtres, por meio da qual dá relevo à proposição de uma "simultanéité": "Maintenant tu marches dans Paris"; "Maintenant tu es au bord de la Méditerranée"; "Tu es dans le jardin d'une auberge aux environs de Prague"; "Te voici à Marseille"; "Te voici à Coblence"; "Te voici à Rome"; Te voici à Amsterdam". Nota-se que a ideia da sequência está próxima da de Fenêtres, ainda que do ponto de vista sintático a construção no poema anterior seja muito mais "audacieuse", como talvez dissesse Apollinaire, já que se trata de uma composição por meio de uma justaposição pura: "Paris Hyères Maintenon New-York et les Antilles".

As imagens que, em Zone, são compostas ou acentuadas pelo emprego deste procedimento retiveram a atenção dos críticos e leitores do poeta, como Michel

182 Décaudin, que caracterizava o poema como uma "succession tumultueuse d'images"418. Na época da publicação de Alcools, Henri Ghéon já observava que nos poemas de Apollinaire "des images disparates se succèdent", e Jean Pellerin, que se tratava de uma "poésie nouvelle, d'une richesse d'images inconnue"419. Mas é Georges Duhamel quem, na época, melhor percebe o procedimento do autor, mesmo que para criticá-lo:

Deux idées, si distantes soient-elles dans le monde, sont toujours, pour le poète, liées par un fil secret et ténu. Il appartient au plus grand art de tendre ce fil jusqu'à sa limite d'élasticité; il appartient à l'ambition et à la maladresse de casser ce fil en voulant trop le tendre. Autrement dit, plus une image s'adresse à des objets naturellement distants dans le temps et l'espace, plus elle est surprenante et suggestive. Un effort superflu, et le "rapport", tendu à l'extrême se brise. Rien n'apparaît alors plus inopportun qu'une image manquée. Si M. Apollinaire commet de nombreuses erreurs dans ce sens, cela tient sans doute à ce qu'il n'obéit pas assez: au lieu de se laisser conduire par les analogies, il se laisse séduire par les mots; il tente après coup d'établir des analogies arbitraires420.

Ainda que na época Apollinaire421 tenha considerado injusto o juízo de Duhamel sobre sua poesia, o artigo, do qual este trecho é uma parte, explica muito do procedimento do autor de Zone e adianta muito do que, anos mais tarde, Pierre

418 DÉCAUDIN, Michel. Apollinaire Devant l'Art Nègre. In: Présence Africaine, nº 2, 1948, p. 317. 419 PELLERIN, Jean, "Le Livre du Jour", Gil Blas, 10 avril 1913. In: "Le Dossier de Presse d'Alcools", Que Vlo-Ve? Série 2 nº 18 avril-juin 1986, p. 2. 420 DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier d'Alcools, o. cit. p. 49. 421 Idem, p. 46. Décaudin refere que Apollinaire "songea à demander réparation à Duhamel" mas não diz que a tal reparação havia sido cogitada até mesmo por um "duel", como mostra a carta que ele envia ao amigo Ferdinand Fleuret na ocasião: "Je suis en ce moment trop pauvre pour payer les frais d'un DUEL aussi ne puis-je qu'opposer aux imbéciles fussent-ils de féroces pharmaciens comme Duhamel que ma sérénité [...]. Un livre attaqué avec injustice subit un sort plus heureux que celui dont on ne parle point ou que l'on loue modérément". In:APOLLINAIRE, G. Correspondance Générale T. 1, op. cit. p. 534.

183 Reverdy422 tirará toda uma teoria das imagens poéticas que, como se supõe, se apoia nestas ideias, e na poesia de Apollinaire, sobretudo423.

Como disse, quando os críticos se referem a Zone como uma arte poética, uma profissão de fé estética, um poema-prefácio, um microcosmo de Alcools, um poema- manifesto no qual se mostra o espírito moderno em gestação, não se trata de louvação ou de puro encômio. Quando os críticos assim se referem ao poema, é porque reconhecem que nele há muito da reflexão estética do artista e do poeta. Por isso o propus um museu, e agora acrescento, um museu de ideias artísticas.

COLLAGE

É possível localizar em Zone outros procedimentos e referências a ideias artísticas que guarnecem o imaginário estético do autor. Como a ideia de collage424, por exemplo, que incita pesquisas plásticas de Picasso e Braque ao longo de 1912. Décaudin se referia ao processo de composição de Apollinaire como um "travail de marquetterie" no qual o autor se valia de "matériaux d'origines diverses"425 e, por isso, o considerava um "maître

422 Uma evidência disso está na passagem do texto que Reverdy publica na Nord-Sud em 1918: "L'Image est une création pure de l'esprit", escreve este poeta, que continua: "Elle ne peut naître d'une comparaison mais du rapprochement de deux réalités plus ou moins éloignées. Plus les rapports des deux réalités rapprochées seront lointains et justes, plus l'image sera forte - plus elle aura de puissance émotive et de réalité poétique"422. Apollinaire mesmo, na sua conferência sobre o "Esprit Nouveau", reconhecerá a importância da "surprise", do contraste, ou da "image-choc" de que fala Décaudin [Dossier d'Alcools p. 59], como elemento fundador da imagem poética. Neste sentido, é preciso destacar que nesta conferência o autor considerará que "le nouveau existe [...] dans la surprise", que "L'esprit nouveau est également dans la surprise. C'est ce qu'il y a en lui de plus vivant, de plus neuf", ou que a "surprise est le grand ressort nouveau. C'est par la surprise, par la place importante qu'il fait à la surprise que l'esprit nouveau se distingue de tous les mouvements artistiques et littéraires qui l'ont précédé". [REVERDY, Pierre. "L'Image", in: Nord-Sud. Revue Littéraire, nº 13, mars 1918]. 423 André Breton cita Reverdy entre os poetas que "ont gravité autour d'Apollinaire" e não parece fora de propósito que Apollinaire seja um dos colaboradores convidados para participar de Nord-Sud, revista que Reverdy inaugura e dirige a partir de 1917. As cartas de Apollinaire evidenciam a proximidade, senão a reverência, de Reverdy para com o autor. Cf.: BRETON, A. Entretiens 1913-1952, op. cit. p. 46. Nord- Sud Revue Littéraire. Apollinaire colabora nos números de 1 a 9. APOLLINAIRE, G. Correspondance Générale, T. 3, pp. 310; 377; 467 e 520. 424 Ainda que raramente explicada, a utilização da colagem na obra de Apollinaire é sugerida por muitos críticos. Adéma nos observa que, após a decisão do autor de reunir seus poemas em um volume, ele "composait sa maquette avec des pages de revues, des fragments de manuscrits, les modifiants à nouveau"[ADÉMA, Pierre-Marcel. Apollinaire le Mal-Aimé, op. cit. p. 156]. Parinaud afirma que "l'utilisation des journaux dans les vers de Guillaume Apollinaire, dans Zone [...] est évidente"[PARINAUD, André. Op. cit. p. 331]. O mesmo autor lembra também o que já observava André Billy quando escrevia da poesia de Apollinaire que "leur liberté ne peut être moins grande que celle d'un journal quotidien qui traite, dans une seule feuille, les matières les plus diverses, parcourt les pays les plus éloginés". 425 DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier d'Alcools, op. cit. p. 61.

184 dans la technique du couper-coller"426. Ao comentar a estrutura de Alcools, o mesmo crítico afirmava que a "l'ordonnance même d'Alcools" ilustra o procedimento de Apollinaire na composição de vários poemas do livro, poemas compostos "par démantèlement de textes antérieurs", como Zone, "remembrements assimilables à des véritables collages"427. Considerando as duas versões de Zone, Décaudin afirma que a colagem "structure la fabrication du poème"428, opinião que é seguida por outros críticos, como Didier Alexandre429, Anna Boschetti430, Jean Burgos431, Lentegre432, André Parinaud433, que talvez não entendam que o procedimento de colagem consiste na sobreposição de elementos exteriores aos da pintura propriamente dita que os artistas colam sobre a tela. Mas Apollinaire sim. Apollinaire não apenas entende, como também escreve sobre ele em mais de um artigo. Quando comenta as pesquisas plásticas de Picasso e Braque em 1912, o autor destaca a introdução de "lettres d'enseignes et d'autres inscriptions" em suas telas, sublinhando que o primeiro renuncia ao emprego de cores ordinárias em sua obra para "composer des tableaux en relief, en carton, ou des tableaux en papiers collés"434. Ainda sobre a arte de Picasso, em um outro artigo publicado nesta mesma época, Apollinaire escreve:

[...] parfois, n'a pas dédaigné de confier à la clarté des objets authentiques, une chanson de deux sous, un timbre poste véritable, un morceau de journal quotidien, un morceau de

426 Idem, p. 27. 427 DÉCAUDIN, Michel. Commente Alcools. Op. cit. p. 96.A afirmação do crítico fica mais clara quando sabemos que muitos dos poemas contidos em Alcools são compostos de textos ou de partes de outros textos, por vezes pertencentes a outros gêneros, como no caso do trecho reaproveitado de Hérésiarque, ou de La Maison des morts, um poema que é elaborado a partir de um texto em prosa que o autor havia publicado, anos antes, em 1907, sob o título de L'Obituaire. 428 DÉCAUDIN, Michel. Commente Alcools, op. cit. p. 53. 429 ALEXANDRE, Didier. Alcools. Introduction. Paris: Les Classiques de Poche, 2014, p. 21. 430 Anna refere as "collages d'énoncés anonymes, fragmentaires et décousus, les "poèmes-conversation" intègrent et dépassent un ensemble de possibilités très diverses", in: BOSCHETTI, Anna. La Poésie Partout. Apollinaire Homme-Époque, op. cit. p. 158. 431 Segundo Burgos: "Si les ruptures syntaxiques, les cassures typographiques, les compositions en collage et juxtapositions de toute sorte s’affichent davantage dans Calligrammes, c’est bien cependant, dans toute la production poétique d’Apollinaire qu’on peut les retrouver". BURGOS, Jean. "Sur les sentiers de la création", in: Apollinaire en somme. Paris: Honoré-Champion, 1998, p. 205.op. cit. p. 206. 432 LENTEGRE, Marie-Louise. Apollinaire et le Nouveau Lyrisme. Paris: Jean-Michel Place, 1996, p. 191. 433 PARINAUD, André. Apollinaire, 1880-1918. Biographie et Relecture. Paris: J.-C. Lattès, 1994, p. 360. 434 APOLLINAIRE, Guillaume. "La Peinture Moderne", in: Œ.C.P. T. II, p. 503.

185 toile cirée sur laquelle est imprimée la cannelure d'un siège. L'art du peintre n'ajouterait aucun élément pittoresque à la vérité de ces objets.

avançando que:

c'est avec insistance que des chiffres, des lettres moulées apparaissent comme des éléments pittoresques, nouveaux dans l'art et depuis longtemps déjà imprégnés d'humanité435.

Apollinaire conclui este mesmo artigo afirmando que "n'est pas possible de deviner les possibilités, ni toutes les tendances d'un art aussi profond et aussi minutieux" e sabemos que esse texto é reaproveitado em Méditations esthétiques436, o que não quer dizer que o autor esteja fazendo uma colagem pois, como em Zone, trata-se de uma reelaboração do texto para produzir um outro, por vezes bem distante do primeiro, como exemplifica o próprio caso de Zone e do Année Républicaine. Seguindo a opinião dos críticos, o leitor acaba sendo induzido a acreditar que é com base na colagem dos artistas que Apollinaire elabora esse "método" de escritura que aplica na composição de seus textos, mas há outras informações que, quando consideradas, contradizem de saída esta possibilidade. Em primeiro lugar, porque tal procedimento antes de ser estético é prático, pois não devemos deixar de lembrar que o poeta e prosador Apollinaire é também jornalista, e como tal, deve responder às exigências diárias dos jornais e revistas com os quais colabora - e não são poucos. Esta condição justifica, por si só, o reaproveitamento de outros textos na elaboração de seus artigos, um procedimento que é evidenciado pelo trabalho de Pierre Caizergues437, Apollinaire Journaliste, no qual ele mostra como o autor reaproveita textos anteriores, não raro já publicados em algum outro meio impresso, na elaboração de novos artigos; um expediente que, como demonstra Caizergues, se avizinha ao da collage438, mas que

435 APOLLINAIRE, Guillaume. "Pablo Picasso", in: Chroniques d'Art. Paris: Gallimard, 1960, p. 367- 370. 436 437 CAIZERGUES, Pierre. Apollinaire Journaliste, les débuts et la formation du journaliste 1900-1906. Paris: Lettres Modernes/Minard, 1981. 438 A este exemplo, Caizergues refere os cadernos de "coupures de presse" mantidos por Apollinaire a título de, como ele escreve, "aidé-mémoire" para a redação de seus textos. Entre os possíveis usos destas referências colhidas pelo autor, ele cita o exemplo do poema Cortège, no qual, na passagem que vai de "O Corneille Agrippa l'odeur d'un petit chien m'eût suffi", até "Qui t'inspirait l'erreur touchant toutes les femmes", se encontra trecho possivelmente extraído do periódico Le Fantaisiste, de 1873, no qual se faz alusão a um livro de Corneille Agrippa sobre as mulheres. Um segundo exemplo é o de uma referência extraída da revista inglesa The Pearl, de 1879, na qual está impressa uma certa canção sobre "Roger" que

186 não é a colagem, prática, de todo modo, importante para a formação do escritor. Décaudin também observa que "bien plus qu'une commodité de journaliste" este procedimento é, "dans sa prose comme dans sa poésie", uma "dynamique de composition fondamentale"439. Seja como for, sendo uma prática necessária à sua sobrevivência como jornalista, ou "pigiste"440, não é estranho que em Apollinaire, como sugere Marjorie Perloff, esta prática, ou a ideia deste procedimento, anteceda o seu emprego pelos pintores. Perloff afirma, citando depoimento de Gino Severini, que este artista teria dito acerca das collages que "Apollinaire [...] lhe sugeriu a ideia depois de ter falado dela a Picasso"441, e que foi após esta conversa que Picasso teria pintado uma "natureza morta", aquela mesma Nature morte à la chaise cannée", em que aplicou um pequeno pedaço de papel parafinado", a tal "toile cirée", à qual Apollinaire faz referência em seu artigo. É Perloff ainda quem refere que o mesmo Severini teria visto na época um trabalho de Braque semelhante ao de Picasso e que em uma viagem à Itália no final de 1912, teria comentado com Boccioni e Carrà sobre a nova "técnica", a partir da qual os futuristas italianos começariam a trabalhar no princípio do ano de 1913. O depoimento citado por Marjorie Perloff é esclarecido pelo próprio pintor, que escreve em suas memórias:

L’époque de mon exposition à Londres approchait ; elle était fixée en principe en avril et je travaillais très intensément. Mon amitié avec Apollinaire était devenue intime. À la fin de l’année 1912, il venait souvent chez moi quand je travaillais. Ce fut à ce moment là [...] qu’il me parla de certains peintres primitifs italiens qui avaient mis dans leurs tableaux des éléments vraiment réels, en observant que leur présence et le contraste qu’ils provoquaient, augmentaient la vie de ces œuvres et leur dynamisme. Il me donna comme exemples un Saint Pierre exposé à la pinacothèque de Brera, à Milan, qui tient à la main de véritables clés, et d’autres saints porteurs d’autres objets, sans parler d’auréoles faites de vraies pierres précieuses et de vraies perles.

lhe sugere um nome "priapique" para o herói de seus Exploits d'un Jeune Don Juan, sendo útil saber que, "Roger" é, no caso, um "nom populaire pour désigner le pénis chez les anglo-saxons". CAIZERGUES, Pierre. Op. cit. p. 24. 439 DÉCAUDIN, Michel. Apollinaire, op. cit. p. 27. 440 "Pigiste" é o termo com o qual se designava o colaborador de jornais que era remunerado pelo número de linhas do artigo publicado, uma ocupação famélica, à qual se dedicavam muitos escritores da época de Apollinaire, como ele mesmo. 441 PERLOFF, Marjorie. O Momento Futurista. São Paulo: Edusp, 1993, p. 98.

187 C’est ainsi que me vint l’idée de faire un portrait de Paul Fort avec les couvertures de la revue Vers et Prose et d’autres de ses livres de poésie, et de construire une danseuse avec des formes en relief sur lesquelles je collerais de vraies paillettes de danseuse442.

Não se trata aqui de determinar quem foi o propositor desta técnica ou de quem antecedeu quem em sua aplicação, trata-se apenas de esclarecer que a colagem dos pintores se distingue da prática de reaproveimento e reelaboração de textos a que procede Apollinaire.

LES AFFICHES

Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux

Quando recuamos, afastando-nos um pouco dos procedimentos, distanciando-nos dos recursos empregados pelo poeta para fazer com que o poema funcione, e contemplamos, desinteressadamente o texto, capturamos, nele, motivos, temas, e referências que também nos levam à pintura e à poesia. Referências como as dos catálogos, cartazes, prospectos, interessam o poeta e os pintores da época. O poema Zone é publicado no número de dezembro, 1912, da Soirées de Paris. Dois meses antes, André Billy publica nela um texto intitulado "Comment je suis devenu poète", no qual encontramos indicações importantes para entendermos a presença dessas referências no poema. Dedicado a "Guillaume Apollinaire", lemos, em passagem que Billy atribui ao poeta:

... j'essaie depuis quelque temps des thèmes nouveaux et fort différents de ceux sur lesquels vous m'avez vu jusqu'à présent entrelacer des rimes: je crois avoir trouvé dans les prospectus une source d'inspiration" [...] "Il me reste les catalogues, les affiches, les réclames des toutes sortes. Croyez-moi, la poésie de notre époque y est incluse. Je l'en ferai jaillir443.

442 SEVERINI, Gino. La Vie d'un Peintre. Paris: Éditions Hazan, 2011, p. 134. 443BILLY, André. "Comment je suis devenu poète", in: Les Soirées de Paris, nº 9, octobre 1912, pp. 276- 280.

188 O prospecto como fonte de inspiração, a poesia contida nos catálogos, nos reclames de todo tipo, nos cartazes. Tirar daí, a poesia de toda uma época. Reconhecer no ordinário, na vileza do cotidiano a poesia, é uma lição de poesia, é um ensinamento do poeta que faz seu amigo Billy "devenir poète". Reconhecer que essas novas informações servem à arte, prospectar nestas novas possibilidades para fazer "jaillir" a novidade, tudo isso faz parte da pesquisa permanente de Apollinaire e de outros artistas. Jeanine Warnod lembra que Picasso, "dont l'œil infaillible est toujours à l'affut de la nouveauté", "ne peut pas rester insensible aux affiches qui fleurissent sur les murs"444. Raoul Dufy pinta os seus Affiches à Trouville. Delaunay posiciona um affiche, "Astra", quase no centro de sua tela, que é pintada a partir de um motivo esportivo, Équipe de Cardiff. Apollinaire tentava chamar a atenção para estas novas "sources d'inspirations". Em 1910, em um artigo, ele comenta uma conferência, "fort applaudie", sobre os "Affiches d'Art", e destaca os mestres na "art" dos cartazes: Chéret, Toulouse-Lautrec, Steilen, Willette, e Grasset, artistas cujo talento, segundo ele, "mit de la joie dans les rues de villes modernes"445. Em 1913, insiste nesta mesma ideia do "affiche" como arte. Ao escrever sobre a exposição que então se realizava na galeria Drouet, Apollinaire, diante do curioso conjunto de cartazes originais, observa que "on a exposé des affiches originales dont quelques-unes sont des œuvres intéressantes et dont l'ensemble est très curieux", afirmando que os que ali se encontravam não eram necessariamente "destinées à la rue", pois o seu valor artístico garantia a possibilidade de serem vistos ali, na galeria, como obras de arte. Assim como persegue as sugestões que derivam destes tipos de imagens, de imagens populares, do cotidiano, Apollinaire entende o interesse que por elas têem os artistas de sua época, pois sabe que a poesia está ali. Quando em 1913 escrevia sobre Dufy e Othon Friesz, o poeta destacava que estes dois artistas trabalhavam em suas pintures "à la façon décorative de l'imagerie populaire"446, ao mesmo tempo que afirmava que "les meilleurs choses de Van Dongen ont la valeur esthétique des belles affiches de la rue". Mas, é preciso observar também que, além de reconhecer o valor e as possibilidades que estes meios significavam para a renovação das artes, Apollinaire

444 WARNOD, Jeanine. Le Bateau-Lavoir. Paris: Éditions Mayer, 1986, p. 39. 445 APOLLINAIRE, Guillaume. "1ère Exposition de La Parisienne. Cent tableaux d'Alexandre Altmann. L'Affiche d'Art", in: Œ. C. P. T. II, p. 163. 446 Cf.: DÉCAUDIN e CAIZERGUES, Œ. C. P. TII, pp. 507-509.

189 enxerga-os como exemplos, e como exemplos de procedimento artístico, como o da "simultanéité". Quando considera a Prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France, o poema-quadro composto por Blaise Cendrars e Sonia Delaunay em 1913, Apollinaire escreve que estes dois artistas "ont fait une première tentative de simultanéité écrite où des contrastes de couleurs habituaient l'œil à lire d'un seul regard l'ensemble d'un poème [...] comme on voit d'un seul coup les éléments plastiques et imprimés d'une affiche"447. Assim, se como o autor olhamos para estes cartazes não como um objeto, mas como uma ideia, uma possibilidade de criação artística, podemos entender que a sua presença no poema não é apenas uma indicação a elementos exteriores ao texto, ao "real" da rua por exemplo, pois, em sua composição, os affiches produzem um efeito de oposição a este real que é reforçado pela ideia montada na oposição "affiche-poésie" "journal-prose". Nos versos seguintes a estes, o valor artístico que pode ser tirado das coisas do cotidiano é novamente sugerido pelo poeta: "Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d'aventures policières/ Portraits des grands hommes et mille titres divers". Valorizar as pequenezas do cotidiano não é apenas meio desenfreado de busca por novidades, é uma posição, é a expressão do reconhecimento de que em arte, para a arte, tudo pode servir, tudo pode ser matéria de poesia e de pintura. O pintor também Maurice Denis via assim:

Aux audaces des impressionnistes et des divisionnistes, les nouveaux venus ajoutaient la gaucherie d'exécution et la simplification presque caricaturale de la forme [...]. L'affiche et les petits journaux illustré ont popularisé ces énormes fantaisies de dessin, ces exagérations du caractère alors inédites et fort inconnues de l'antique Grévin, de Willette ou même de Chéret [os mesmos destacados por Apolllinaire no artigo sobre a conferência "Affiches d'Art"] dont les inventions élégantes commençaient alors de fleurir sur les murs de Paris. Les synthèses de décorateurs japonais ne suffisaient pas à alimenter notre besoin de simplification. Idoles primitives ou extrême-orientales, calvaires bretons, images d'Épinal, figures de tapisseries et de vitraux, tout cela se mélangeait à des souvenirs de Daumier, au style gauchement poussinesque des Baigneuses de Cézanne, aux lourdes paysanneries de Pissarro448.

Como foi dito, quando considera a pintura de Dufy e a de Friesz, Apollinaire afirma que estes artistas "ont traité la peinture à la façon décorative de l'imagerie

447 APOLLINAIRE, Guillaume, "Simultanisme-Librettisme", in: op. cit. 448 DENIS, Maurice. Du Symbolisme au Classicisme. Théories. Paris: Hermann, 1964, pp. 113-114.

190 populaire". E este mesmo interesse pelo popular, pelo ordinário, é largamente difundido entre os artistas e nas artes da época. Maurice De Vlaminck e André Derain, em suas cartas, demonstravam interesse por essa "imagerie" popular, sobretudo pelas conhecidas "images d'Épinal"449, e Leymarie afirma que o primeiro "collectionne les images d'Épinal, copie les chromos des paquets chicorée, s'extasie devant un voisin bourrelier qui colore sur du verre les portraits de gens du pays avec des teintes crues"450. Sabendo disso, Apollinaire pode escrever destacando o interesse de Vlaminck "fêtes foraines"451, ou considerar que a pintura de Delaunay "a maintenant un grand caractère populaire" e afirma que sua observação é um dos "éloges que l'on puisse faire à un peintre d'aujourd'hui"452. E o inverso acontece, uma vez que este mesmo interesse pelas hoje ditas expressões populares, este interesse que Apollinaire reconhece existir nas artes e nos artistas de sua época, é também o seu, como nos faz saber o seu amigo e pintor Vlaminck:

Il était attiré, trouble par l'étrange. Cultivé, d'une érudition qu'il augmentait selon qu'il en avait besoin, il était superstitieux, rendait visite aux sonnambules, croyait à l'avenir dévoilé par les cartes, évitait les échelles. Dans le même esprit paradoxal où il lisait les romans populaires, Nick Carter ou Le Vautour de la Sierra, devant un chromo, il disait: - C'est peut-être mieux que Cézanne? La seconde fois, il affirmait: - C'est mieux que Cézanne! Et il jouait ainsi avec le doute, le désordre, le bons sens, l'absurde453.

Laurence Campa afirma que "les formes populaires se révèlent des auxiliaires précieux"454 para a concepção poética e artística de Apollinaire, o que é destacado por outros estudiosos da obra do autor, como Michel Décaudin, que observa a importância

449 As chamadas "images d'Épinal" parecem ter tido uma importância maior para a pintura de André Derain mas sabemos que sua circulação nos meios artísticos parisienses data desde bem antes dele. Alfred Jarry e Remy de Gourmont, dois autores muito próximos de Apollinaire, já as reproduziam nas páginas da revista L'Ymagier, publicação inaugurada em 1894 e dedicada à difusão da "imagerie populaire" e, antes deles, Champfleury já havia publicado, em 1869, uma "Histoire de l'Imagerie Populaire" da qual Apollinaire possuía um exemplar em sua biblioteca e que não deve ter deixado de produzir seus efeitos no domínio da pintura francesa. 450 LEYMARIE, Jean. Le Fauvisme. Paris/Genève: Éditions d'Art Albert Skira, 1959, p. 45. 451 APOLLINAIRE, Guillaume. "Le Salon des Indépendants", in: Œ. C. P. T. II, p. 107. 452 APOLLINAIRE, Guillaume. Œ.C.P. T. II, p. 537. 453 VLAMINCK, Maurice De. Tournant Dangereuse. Paris: Libraire Stock, 1929, pp. 180-181. 454 CAMPA, Laurence. Apollinaire Critique Littéraire. op. cit. p. 84.

191 do "folklore populaire, le prosaïsme"455 para a elaboração poética de Apollinaire, ou Didier Alexandre que, talvez a segui-lo, destaca a importância das "légendes et traditions populaires" as quais, segundo ele, "fournissaient au poète son matériau"456.

Como todos estes autores, o poeta René-Guy Cadou também enxerga a importância destas referências populares na obra de Apollinaire, e para destacá-las, ele propõe uma comparação com Rimbaud, afirmando que Apollinaire, assim como o poeta da Saison en Enfer, "aurait pu écrire":

J'aimais les peintures idiotes, dessus de porte, décors, toiles de saltimbanques, enseignes, enluminures populaires, la littérature démodée, latin d'église, livres érotiques sans ortographe, roman de nos aieles, contes de fées, petits livres de l'enfance, opéra vieux, refrains niais, rythmes naïfs.457

Esta comparação proposta por René-Guy Cadou em 1945, a mesma, inclusive, que será repetida por Décaudin em 1948458 e por Peter Read em 1995459, não só reforça a ideia da importância da cultura dita popular na formação do ideário estético do autor, ela reforça a ideia de que esta paisagem de referências é muito diversa ainda que, em sua comparação, o poeta Cadou se limite a este imaginário popular. Para se ter uma ideia da diversidade de referências que compõem o imaginário artístico de Apollinaire basta folhear o volume que reúne sua crítica de arte e sua crítica literária, revelador da amplitude de seus interesses. O mesmo ocorre quando folheamos o catálogo de sua antiga biblioteca, onde encontramos volumes como o das Mémoires de Benvenuto Cellini, dos textos escolhidos de Léonard Vinci na edição de Péladan, dos Procès Verbaux de l'Académie royale de Peinture et de Sculpture 1648-1793, reunidos por A. de Montaiglon, da Vie d'Apollonius thyanéen en VIII livres, do Philostrato, de uma Iconographie de l'Église de Vézelay de Pierre Meunier, junto de obras como as Dix Chansons populaires de France du XVII au XVIII siècle de Marya Delvard, da Histoire de l'Imagerie Populaire de Champfleury, ou dos referidos exemplares de Buffalo Bill,

455 DÉCAUDIN, Michel. "Apollinaire devant l'art nègre", op. cit. 456 ALEXANDRE, Didier, op. cit. p. 54. 457 CADOU, René-Guy. Testament d'Apollinaire. Paris: René Debresse Éditeur, 1945, p. 136. 458 DÉCAUDIN, Michel. "Apollinaire devant l'art nègre", op. cit. 459 READ, Peter. Picasso et Apollinaire. Les métamorphoses de la mémoire, op. cit. p. 60.

192 Nick Carter e Fantômas; e o mesmo se repete quando se trata das obras de arte que Apollinaire tinha em sua coleção, como nos lembra Billy: "Là, dans son cabinet de travail ouvert sur un jardin, toutes les années qu'il avait vécues depuis 1903 s'évoquèrent à mes regards sous la forme de tableaux cubistes, de toiles du Douanier Rousseau, de fétiches océaniens et africains, de livres anciens et autres curiosités innombrables"460. Escrevendo sobre o último apartamento em que viveu Apollinaire, no 202 do boulevard Saint-Germain, Décaudin pinta o quadro:

A droite de la porte, on traversait une petite pièce, sorte de vestibule, jusqu'à une autre plus grande, à la fois salon et chambre à coucher: au fond, un grand lit-divan couvert de coussins, sous le grand tableau de Marie Laurencin, Réunion à la campagne, dans la cheminée une salamandre verte, une table entre les deux fenêtres qui dominent les toitures de zinc, une commode massive, et partout des tableaux, un Derain, un Dufy, un Braque, un Picasso... Si l'on revenait au vestibule, dont les murs révéllaient des merveilles, notamment une eau-forte de Cézanne, on trouvait au fond un passage qui s'ouvrait sur une enfilade de petites pièces, ou plutôt sur un long couloir avec, de place en place, des élargissements. C'était d'abord une petite cuisine, baptisée de salle à manger, tout en longueur, puis on entrait dans le saint des saints: une table sous une fenêtre, une grande armoire pleine de livres anciens et précieux, et des rayonnages chargés de livres et de revues, Fantômas et Nick Carter, classiques, ouvrages d'érudtion, traités de cuisine ou catalogues d'expositions. Une dernière pièce enfin, perpendiculaire aux précédentes, prolongeait la bibliothèque. Des livres sur les quatre murs, en majorité de littérature contemporaine, pour la plupart dédicacés au poète, au milieu d'une accumulation d'objets hétéroclites, bibelots sans valeurs, boules de verre, marionnettes, objets et fétiches461.

460 BILLY, André. Apollinaire Vivant. Paris: Éditions de La Sirène, 1923, p. 27. 461 Cf.: DÉCAUDIN, Michel. In: Apollinaire Chez Lui. Publications Paris Tete d'Affiche, 1991, pp. 48- 53.

193

René-Jacques L'appartemment d'Apollinaire 202, boulevard de Saint-Germain Fonte: Apollinaire: Le Regard du Poète Catalogue de l'Exposition Paris 2016

A descrição de Décaudin, um convite a lembrar o "Des Esseintes" do romance de Huysmans, evidencia muito do que é composto este imaginário de Apollinaire, especialmente porque, como sugere seu amigo André Royère, "l'image de son logis [...] était bien celle de lui-même"462. Destaquemos que tudo isso entra na composição de seu imaginário artístico, o mesmo que lhe dá estofo para a composição de seus textos, sejam estes suas crônicas e artigos publicados em jornais e revistas, sejam eles em prosa ou em verso, e do que Zone é um exemplo bem acabado: nele encontramos, entre memórias e imagens guardadas pelo autor, os "prospectus", "catalogues", "affiches", "journaux", "aventures policiers", "Portraits des grands hommes et mille titres divers", "inscriptions des enseignes et de murailles", "Icare Enoch Elie Apollonius de Thyane", enfim, Zone é, ele mesmo, aquele "sombre musée" evocado no verso 77 do poema, no qual, como não poderia deixar de ser, os "fétiches", aos quais alude acima Décaudin, encontram um lugar de destaque, lá nos versos finais, onde lemos: "Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied/ Dormir parmi les fétiches d'Océanie et de Guinée". É relevante destacar que aí, tal como ocorre com as demais referências às artes visuais que encontramos em Zone, os "fétiches d'Océanie et de Guinée" não são meras curiosidades "exotiques" ou "etnographiques" a adornarem o poema. Localizados onde

462 ROYÈRE, André. Apollinaire. Paris: Gallimard, 1945, p. 55.

194 estão, nos versos finais de Zone, eles nos impelem a considerar a importância que estas artes tinham na reflexão artística de Apollinaire. Lembremos apenas que, quando ele escrevia sobre a importância da estatuária e das máscaras africanas para a arte de André Derain, ele afirmava que com elas este artista aprendera a "reproduire la figure humaine en n'utilisant aucun élément emprunté à la vision directe"463, ou que quando comentava a estátua do "dieu Gou" do Musée du Trocadéro, afirmava que "aucun des éléments qui la composent [...] ne ressamble à un détail du corps humains"464. E aí, em Zone, é em sentido semelhante que devemos entender a sua presença, pois estes "fétiches" são, como lemos no verso seguinte, "des Christ d'une autre forme". Igualmente relevante é lembrar também que, considerando ainda a estatuária africana, Apollinaire escrevia que "il faudra longtemps encore se contenter de n'éprouver vis-à-vis des idoles nègres que des sensations esthétiques et d'évocation poétiques"465, e talvez seja em razão desta convicção mesma que encontremos os "fétiches" novamente figurados em um outro poema do autor, Les Soupirs du Servant de Dakar, cuja presença é passível de ser especificada em sua relação com a arte defendida por ele na época. Como lemos no poema:

Je me souviens du si délicat si inquiétant Fétiche dans l'arbre Et du double fétiche de la fécondité

Talvez seja bom lembrar aqui que este mesmo "fétiche dans l'arbre" e este mesmo "double fétiche de la fécondité" são duas obras às quais o autor atribui importância para a formação visual do pintor e escultor Alexandre Archipenko. Quando Apollinaire redige o texto para o catálogo da exposição de Archipenko em 1914, ele enfatiza que "les idoles délicates [...] des nègres africains, les fétiches de l'arbre et de la maison"466, provocam a imaginação do artista. No mesmo texto, Apollinaire escreve que Archipenko "vécut au pied ses autels de pierre, des statues de dieux et des sculptures de fétiches qui leur sont déclinées en offrandes: les dieux de la guerre et du semen avec des génitaux énormes", uma descrição possível deste conhecido "double fétiche de la fécondité" que é aludido no poema.

463 Cf. Capítulo 1, p. 84. 464 Idem, p. 91. 465 Idem, p. 92. 466 Idem, p. 88.

195

Estas referências todas são importantes para a composição de Zone mas, o que mais importa considerar é que é exatamente a sua diversidade, a diversidade de procedimentos que o autor emprega na elaboração de seu poema, o que faz de Zone uma "art poétique" do autor. Zone deve ser lido como uma reflexão sobre a arte de fazer poesia. Mais do que isso, Zone deve ser lido como uma grande reflexão sobre as artes, no plural.

PICASSO SALTIMBANQUES

Tendo considerado suficientemente a relação do autor com a chamada "art nègre" e da "Océanie", no primeiro capítulo deste trabalho, parece mais importante, aqui, reconsiderar a comparação proposta por Cadou, para dela destacar uma outra referência importante que provoca a imaginação de artistas e autores deste início do século XX e que encontra um lugar destacável entre os poemas de Alcools que é a dos saltimbancos, destas "toiles de saltimbanques" que Cadou destaca quando compara Apollinaire a Rimbaud. Jean Starobinski mostrou, em um ensaio de 1970, como desde o chamado romantismo francês "le bouffon, le saltimbanque et le clown, ont été les images hyperboliques et volontariement déformantes que les artistes se sont plu à donner d'eux- mêmes et de la condition même de l'art"467. No mesmo ensaio o autor defende que a tematização deste universo do circo pelos pintores do final do século XIX e do início do século XX "correspond au déclin des sources traditionnels d'inspiration"468 e, ainda, que uma "acclimatation culturelle ainsi [...] effectuée préfigurait ce qui se passera au XX siècle pour "l'art nègre"469. Em outra passagem de seu ensaio, para indicar a presença do motivo na pintura do século XX, Starobinski afirma que em um artigo de 1905

467 STAROBINSKI, Jean. Le Portrait de l'Artiste en Saltimbanque. Paris: Gallimard, 2004, p. 8. 468 Idem, p. 11. 469 Idem, p. 19.

196 Apollinaire "esquisse une transcription poétique des saltimbanques que Picasso venait d'exposer"470. Sabemos que Apollinaire publica dois artigos sobre Picasso em 1905 e sabemos também que em ambos ele destaca este motivo dos "saltimbanques", dos "arlequins", presentes na figuração de algumas obras desenhadas, gravadas e pintadas por Picasso nesta época, algumas delas, inclusive, enviadas de presente ao amigo, autor destes artigos. Mas o que estes textos evidenciam vai além desta "transcription poétique" que Starobinski atribui a Apollinaire. No primeiro destes artigos ele escreve, entre outras coisas, que em Roma, "au moment du Carnaval, il y a des masques (Arlequins, Colombine, ou cuoca francese) qui le matin, après une orgie terminée parfois par un meurtre [talvez a lembrar do "Barril de Amontilado" de Poe] vont à Saint-Pierre baiser l'orteil usé de la statue du prince des apôtres. Voilà des êtres qui enchanteraient Picasso"471. No segundo artigo publicado sobre a pintura do mesmo artista, Apollinaire escreve que "les arlequins vivent sous les oripeaux quand la peinture recueille, réchauffe ou blanchit ses couleurs pour dire la force et la durée des passions", que "les lignes limitées par le maillot se courbent, se coupent ou s'élancent" e ainda, um pouco mais adiante, que "la couleur a des matités de fresques", que "les lignes sont fermes". Não sabemos exatamente a que passagem do, ou dos textos de Apollinaire sobre Picasso, Starobinski se referia quando o qualificava de uma "transcription poétique" das telas e desenhos nos quais Picasso trabalhou movido pela sugestão do mesmo motivo, os "Saltimbanques", mas o que os textos de Apollinaire indicam é mais importante do que isso para compreender sua concepção artística e como ele vê a pintura de Picasso. No primeiro artigo é clara a elisão da linha que delimita o mundo em categorias, aqui, no caso, do que é profano e do que é sagrado, o que serve para mostrar que aquela "synthèse de contradictoires" já opera em sua reflexão sobre a pintura desde aí, neste, que é um dos primeiros textos que ele escreve sobre esta arte. Mais do que isso, ela mostra que este mesmo princípio opera também na pintura do amigo pintor, e mais precisamente, em sua concepção pictural. No início do primeiro artigo, "Picasso: Peintre et Dessinateur", vemos, já no título, a ideia sendo sugerida, esta da síntese de pintura, cor e desenho, que muitos artistas e críticos da época insistiam em separar. Mas, ao contrário destes, Apollinaire vê em Picasso tanto as qualidades do "peintre" quanto as do "dessinateur", destacando de

470 Idem, p. 95. 471 APOLLINAIRE, Guillaume. "Picasso, Peintre et Dessinateur", in: Chroniques d'Art, p. 35.

197 sua pintura tanto a "couleur" quanto a "ligne", algo que será lembrado por ele, anos mais tarde, quando considerará a pintura de Delaunay, La Ville de Paris, como a mais importante obra exposta no Salon des Indépendants de 1912 justamente por ver nela a síntese do trabalho cor/desenho operante na mesma obra. Quando lemos os três primeiros parágrafos do artigo, vemos que a proposição está lá, claramente exposta:

On a dit de Picasso que ses œuvres témoignaient d'un désenchantement précoce. Je pense tout le contraire. Tout l'enchante et son talent incontestable me paraît au service d'une fantaisie qui mêle justement le délicieux et l'horrible, l'abject et le délicat472.

Peter Read entende estas oposições montadas pelo autor como uma "juxtaposition paradoxale"473 que segundo ele caracteriza todo o artigo de Apollinaire. No entanto, o mais importante nesta passagem é a afirmação de que a arte de Picasso está "au service d'une fantaisie". Para entendermos melhor, lembremos que "fantaisie" é um termo, senão um conceito mesmo, frequentemente empregado pelo autor para indicar a sua oposição relativamente àquela ideia de uma arte entendida como imitação da natureza, o que é exemplificado pela resposta dada por Apollinaire a uma "enquête" da Revue Littéraire de Paris et de Champagne no ano seguinte ao da publicação destes dois artigos sobre Picasso. Nela, Apollinaire afirma: "Je suis pour un art de fantaisie, de sentiment et de pensée, aussi éloigné que possible de la nature avec laquelle il ne doit avoir rien de commun". Como propunha Laurence Campa, lendo os textos de Apollinaire devemos entender que "la fantaisie reprend tout son sens etymologique d'"imagination" et se rattache à le fabula" e que, assim sendo, "la fantaisie est aussi une capacité de création libre et une originalité amusante"474, uma ideia que o autor mesmo formulará no seu "préface" ao "drame surréaliste" Mamelles de Tirésias, quando escreve: "J'ai mieux aimé donner libre cours à ma fantaisie qui est une façon d'interpréter la nature". Uma interpretação da "nature" que conhecemos bem e que no

472 Idem. 473 Read vê na passagem esta "juxtaposition paradoxale", que ele exemplifica: "Le poète rappelle "des êtres qui enchanteraient Picasso", c'est-à-dire les masques traditionnels du Carnaval à Rome où l'orgie nocturne, parfois meurtrière, se termine par une visite à la basilique Saint-Pierre". Com todo o respeito e admiração pelo autor, "juxtaposition paradoxale" me parece um paradoxo, pois a justaposição dos termos é ela mesma o próprio paradoxo. Prefiro pensar no artíficio baseado na sugestão de Noëmi Blumenkranz quando ela fala daquele dispositivo de "synthèse des contradictoires" na obra de Apollinaire, sobretudo porque é um procedimento que que está em seus textos e na pintura de seus amigos. 474 CAMPA, Laurence. Apollinaire Critique Littéraire. Op. cit. pp. 83-84.

198 prefácio de Mamelles é exemplificada como a um princípio pela famosa passagem na qual considera que "Quand l'homme a voulu imiter la marche, il a créé la roue qui ne ressamble pas à une jambe"475. Da concepção à execução, no que se refere propriamente à pintura de seu amigo Picasso, o principal, o que se deve destacar, se encontra nas passagens aludidas do segundo artigo. Como disse, Apollinaire escreve que os "arlequins" da obra de Picasso "vivent sous les oripeaux", e ele segue: "quand la peinture recueille, réchauffe ou blanchit ses couleurs pour dire la force et la durée des passions". Seria possível reescrever a passagem e, de um modo literal, reconhecer que nela o "sujet", os "arlequins", importa pouco; são "ouripeaux", "trapos", algo menos importante do que a execução da pintura propriamente dita, e que por meio dela, da arte da pintura, e aqui mais especificamente do trabalho com a cor, o artista pode dizer toda a "force et la durée des passions". Embora Peter Read afirme que Pierre Daix "identifie cinq reproductions qui illustrent l'article d'Apollinaire"476, não é possível precisar a que telas Apollinaire se referia quando escrevia estes textos; mas suponhamos que seja aquela destacada Famille de Saltimbanques, presente nesta mostra de 1905, intitulada, Saltimbanques, que é objeto de uma análise do mesmo Read477.

475 APOLLINAIRE, Guillaume. "Préface", Mamelles de Tirésias. Paris: Gallimard, 1972 p. 94. 476 Segundo Read, "Daix identifie les cinq reproductions qui illustrent l'article d'Apollinaire dans La Plume. Ce sont, La Femme à la corneille ( XI. 10); Les Deux amies (XI. 8); L'Arlequin assis (à fond rouge) (XII. 10); Acrobate et jeune arlequin (XII. 9); Deux Saltimbanques avec chien (XII. 17)". Na visão de Read esta escolha de ilustrações "privilégie huit des œuvres de l'exposition présentées sous le titre générique de Saltimbanques" e que estas ilustrações reproduzidas no artigo "servent également à rattacher le texte, d'un style plutôt diaphane, à certaines des œuvres qui l'ont inspiré". In: READ, Peter. Op. cit. p. 84. 477 READ, Peter. Op. cit. p. 44 ss.

199 Pablo Picasso Famille de Saltimbanques 1905

Quando o autor então escreve que ali a cor "réchauffe ou blanchit", temos aí indicadas as modulações de cor empregadas na composição do quadro de Picasso: das figuras pintadas em cores que se destacam do fundo, "blanchit", da tela, dando a elas, deste modo, relevo. Pode-se entender da mesma passagem que, por meio deste procedimento é que é possível ao artista conferir a "force" e a "durée des passions"478 pois, fica indicado na passagem que o autor entendia que a cor servia para qualificar, para atribuir pathos à cena pintada, "force et durée" às paixões, e que as linhas tinham por finalidade quantificar, delimitar, como as "lignes limitées" do "maillot" do arlequin, linhas que se "courbent", que se "coupent" ou que "s'élancent" sobre a tela, definindo seus contornos, o delineando a orla479 para lembrar o velho Alberti, do que posteriormente será efetivamente pintado, ao que posteriormente será atribuído uma qualidade. Apollinaire imprimiu dois poemas em Alcools onde figura também os "saltimbanques", Crépuscule e Saltimbanques. Adéma e Décaudin afirmam que estes poemas saíram de um "même projet où les souvenirs d'Allemagne se mêlent à des thèmes picturaux chers aux amis du poète"480, talvez lembrando, como Pierre Caizergues481 e como Peter Read482, que ambos foram oferecidos de presente a Picasso. Com base no que se pode ler nestes dois poemas Read propõe uma leitura aproximando os "Arlequins" do pintor aos do poeta, afirmando que, tanto a Famille de Saltimbanques

478 Não é possível saber se Apollinaire tenha lido os tratados dos antigos italianos sobre a pintura que eventualmente pudessem figurar entre os livros de suas estantes no apartamento do 202 boulevard de Saint-Germain, nem tampouco se ele tenha tido paciência para folhear, que fosse, os "procès verbaux" da Académie Royale de Peinture et Sculpture da França nos quais eram registrados, entre outras coisas, as "Conférences" sobre a pintura e a escultura, artes muitas vezes concebidas ainda, sob a direção das preceptivas italianas, e nas quais se delineia a famosa "Querelle du Dessin et de La Couleur", principalmente a partir das conferências pronunciadas em 1671, por Jean-Baptiste de Champaigne e por Gabriel Blanchard. 479 Alberti ensina que "como a pintura se dedica a representar as coisas vistas, procuremos notar como são vistas as coisas. Em primeiro lugar, ao ver uma coisa, dizemos que ela ocupa um lugar. Neste ponto, o pintor, descrevendo um espaço, dirá que percorrer uma orla com linha é uma circunscrição. Logo em seguida, olhando esse espaço, fica sabendo que muitas superfícies desse corpo visto convém entre si, e então o artista, marcando-as em seus lugares, dirá que está fazendo uma composição. Por último, discernimos mais distintamente as cores e as qualidades das superfícies [...]". In: ALBERTI, Leon. Da Pintura. Livro II. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 101. 480 APOLLINAIRE, Guillaume. Œeuvres poétiques, op. cit. p. 1055. 481 Picasso/ Apollinaire. Correspondance. Édition de Pierre Caizergues et Hélàne Seckel. Introduction de Pierre Caizergues. Paris: Gallimard/ Réunion des Musées Nationaux, 1992, p. 7. 482 READ, Peter. Picasso et Apollinaire. Op. cit., p. 43.

200 de Picasso quanto os "Saltimbanques" de Apollinaire se "trouvent "dans la plaine", "premiers mot du poème", como destacado pelo autor, "un espace dont la nudité souligne leur statut d'étrangers ambulants, sans foyer, tenus à l'écart de la cité". Cabe notar por fim que ao motivo dos Saltimbanques, meio pelo qual os críticos propõem aproximações entre a pintura de Picasso e a poesia de Apollinaire, acrescenta- se um outro, o dos "oiseaux", ambos reunidos, não em um poema, mas em uma aquarela pintada por Apollinaire mesmo, em 1916. Nesta vemos figurado um "arlequin" acompanhado da legenda: "les oiseaux chantent avec les doigts". Quando de sua descoberta, em 1985, Williard Bohn assinalou que, como na poesia, a aquarela de Apollinaire "nous surprend par sa fusion d'éléments disparates et par sa puissance évocatrice"483. Um ano depois deste artigo de Bohn, Peter Read voltaria a esta mesma aquarela para fazer suas próprias considerações acerca da "signification" e da importância desta "peinture et de son titre surprenant"484.

Guillaume Apollinaire

Les oiseaux chantent avec les doigts

Aquarelle

1916 Após descrever a aquarela, Read comenta que a frase nela inscrita - "Les oiseaux chantent avec les doigts" - "nous rappelle qu'Apollinaire avait l'habitude d'associer Picasso aux oiseaux", e ele está correto. Quando Apollinaire escreve sobre Picasso em um dos artigos publicados em 1905, "Les Jeunes: Picasso Peintre", o autor destaca o

483 BOHN, Williard. "Un Oiseau Chante", in: Que Vlo-Ve? série 2 nº 23 juillet-septembre, 1987, pp. 24- 25. 484 READ, Peter. "L'Oiseau qui Chantait à l'Oreille de Cocteau ou les Métamorphoses d'une Petite Phrase", in: Que Vlo-Ve? série 2, nº 25 janvier-mars, 1988, pp. 22-28.

201 olhar do pintor: "a des yeux où se reflètent des humanités semblables à des fantômes divins"485, ou ao destacar que "ces yeux sont attentifs" e que "Picasso a regardé des images humaines qui flottaient dans l'azur de nos mémoires". Ao voltar a este artista e à sua pintura, em artigo de 1912, Apollinaire relacionará Picasso à águia, lembrando que "Picasso est de ceux-là dont Michel-Ange disait qu'ils méritent le nom d'aigles, parce qu'ils surpassent tous les autres"486, lembrando que esta mesma ave voltará a ser destacada em Les Collines487, mas em um sentido que situa o homem, o criador, acima da natureza: "Moins haut que l'homme vont les aigles/ C'est lui qui fait la joie des mers/ Comme il dissipe dans les airs/ L'ombre et les spleens vertigineux/ Par où l'esprit rejoint le songe". Destaque-se também que, tanto no Poète Assassiné, quanto em La Femme assise, a composição de uma das personagens que protagoniza estas duas narrativas baseia-se em seu amigo pintor Pablo Picasso. Numa alusão mais direta, em La Femme assise, a ação é protagonizada pelo pintor "Pablo Canouris", o "peintre aux mains bleues" - possível referência às pinturas azuladas nas quais se aplica o artista antes de atacar o tema dos "saltimbanques" - que tem os "yeux d'oiseau" e que segundo Peter Read, o "surnom" Canouris, "evoque le canari, oiseau chanteur"488. No Poète Assassiné, a indicação é um pouco menos direta mas não menos evidente: "L'Oiseau du Bénin". A alusão que é feita aí ao "Oiseau du Bénin", um tanto opaca à primeira vista, fica mais clara quando lembramos que Apollinaire e Picasso se interessavam igualmente pelas artes d'"Afrique", e ela torna-se transparente quando sabemos que "Oiseau du Bénin" era uma peça, uma escultura em metal, que figurava entre as demais peças que compunham a coleção de "art nègre" de Apollinaire.

485 APOLLINAIRE, G. "Les Jeunes: Picasso Peintre", in: La Plume, 15 mai 1905. Reproduzido em Chroniques d'Art, 1902-19018. Paris: Gallimard, 1960, p. 35. 486 APOLLINAIRE, G. "De Michel-Ange à Picasso", Œ. C. P. T. II. p. 268. 487 488 READ, Peter. "L'Oiseau qui chantait à l'oreille de Cocteau ou les metamorphoses d'une petite phrase", in: Que Vlo-Ve?, série 2, nº 25, janvier-mars 1988, pp. 22-28.

202

Oiseau tenant un poisson dans son bec convoité par deux serpents Royaume du Danhomé République du Bénin Fin du siècle XIX

Talvez lembrando disso, Jean Cocteau também se referiria a Picasso como "Oiseau du Bénin". Read nos informa que em retrato de Picasso desenhado por Cocteau em março de 1917 e enviado por este a Apollinaire, o autor/artista escrevia: "L'oiseau du Bénin à Rome à mon cher ami Guillaume Apollinaire"489. O mesmo Read lembra também, na mesma passagem de seu texto, que no Mystère de Jean l'oiseleur, Cocteau associa Picasso a Paolo Ucello e tal associação é ela também feita por meio desta figura, a do "oiseau": "Le cubisme prend sa source chez Paolo di Dono (Uccello) [...]" e continua escrevendo que "Donatello surnomait di Dono "L'oiseau", Apollinaire "L'oiseau du Bénin" Picasso"490. Quando Peter Read escreve sobre a aquarela, ele acrescenta destacando os saltimbanques e os oiseaux ele afirma que a obra "fait un cadeau particulièrement approprié à Picasso", pois é nessa mesma época que o artista retoma o motivo dos "arlequins" em uma série de desenhos de um "style plus simple et figuratif" que ele elabora para o projeto do ballet Parade, projeto que reúne em um só palco Jean Cocteau, autor do texto, Léonide Massine, da coreografia, Erik Satie, da música, Pablo Picasso, que pinta o grande "rideau", e Apollinaire, que escreve o texto de apresentação do ballet.

489 Cf.: READ, Peter. ""L'Oiseau qui chantait à l'oreille de Cocteau ou les metamorphoses d'une petite phrase", op. cit. p. 24. 490 Idem.

203

Pablo Picasso

Rideau pour le ballet Parade

1917 Neste texto, Apollinaire encontra uma vez mais a ocasião de elevar a arte de seu amigo Picasso mas, mais do que isso, de expor que muito de suas convicções artísticas se encontram resumidas neste espetáculo teatral, ao qual ele se refere como um "poème scénique"491. Na visão do autor, a articulação realizada em Parade de dança, música, pintura e texto "est le signe de l'avenèment d'un art plus complet", uma espécie de "sur- réalisme", como ele escreve, no qual Apollinaire vê o "point de départ d'une série de manifestations de cet esprit nouveau" - que é a sua visão da arte nestes dias - e que ele não deixa de lembrar ao apresentar o espetáculo ao público quando comenta o trabalho realizado, principalmente, por Picasso: "Il s'agit avant tout de traduire la réalité. Toutefois, le motif n'est plus reproduit mais seulement représenté et plutôt que représenté, il voudrait être suggéré par une sorte d'analyse-synthèse". Seguindo a leitura de seu texto é possível entender que esta análise-síntese pode ser traduzida como mais uma versão de sua ideia de "simultanéité", pois como ele escreve: "embrassant tous ses éléments visibles et quelque chose de plus [...] une schématisation intégrale qui cherchait à concilier les contradictions en renonçant parfois [...] à rendre l'aspect immédiat de l'objet", ideia reforçada pela imagem final do texto, onde lemos:

Un magnifique Chinois de music-hall donnera l'essor à leur libre fantaisie, et tournant la manivelle d'une auto imaginaire, la Jeune Fille américaine exprimera la magie de leur vie

491 APOLLINAIRE, Guillaume. "Parade", in: Œ. C. P. T. II, p. 865 ss.

204 quotidienne, dont l'accrobate en maillot blanc et bleu célèbre les rites muets avec une agilité exquise et surprenante492.

As convicções artísticas que o autor expõe ao escrever o texto para apresentar Parade ao público, assim como a articulação entre as artes que ele eleva como sendo o "signe d'un art plus complet", são longamente exploradas durante estes anos que vão da publicação de Alcools e Méditations esthétiques, em 1913, até maio de 1917, data de estreia de Parade, e ano da preparação do último volume de poemas que Apollinaire publicou em vida, Calligrammes. Todos sabemos que é precisamente neste livro que encontramos reunidos os poemas visuais de Apollinaire, os calligrammes, inicialmente chamados por ele de "idéogrammes lyriques", alguns dos quais publicados nas Soirées de Paris a partir de 1914. Aparentemente seria estes os poemas que evidenciariam maior proximidade da poesia do autor com a pintura, até porque, um volume contendo estes poemas visuais já havia sido considerado por ele e, inclusive, o título pensado para este, Et moi aussi je suis peintre, já indicava a correlação entre pintura e poesia. No entanto, como observa Claude Debon, são os poemas não "caligramáticos" do livro os que melhor evidenciam a ligação da poesia de Apollinaire com a pintura:

De fait, on est devant "Ondes" face à deux paradoxes: les formes les plus neuves inventés par le poète, les calligrammes, sont inspirées sinon par des "pensées antiques", du moins par des motifs récurrents chez le poète, alors que les bouleversements de la syntaxe poétique et de la sensibilité les plus innovants se coulent dans des formes versifiées sinon traditionnelles du moins seulement libérées493.

Assim como Crépuscule e Saltimbanques dialogam com a pintura de Picasso, assim como Les Fenêtres se relaciona com a arte de Delaunay, outros poemas que figuram em Calligrammes também estão próximos da pintura dos artistas que o poeta defende em seus artigos sobre as artes, como Océan de Terre, poema que Apollinaire dedica ao pintor Giorgio De Chirico ou A Travers l'Europe, incialmente intitulado Rotsoge, que o autor oferece ao pintor .

No primeiro são evocadas as conhecidas "paysages méthaphysiques" da pintura de De Chirico, que Apollinaire defende e ajuda a divulgar desde o ano em que o artista se instala em Paris, em 1911. Pintor de formação bastante distante da dos demais

492 Idem, p. 867. 493 DEBON, Claude. Commente Calligrammes de Guillaume Apollinaire. Paris: Gallimard, 2004, p. 62.

205 artistas defendidos por Apollinaire, Giorgio De Chirico inicia seus estudos artísticos em Atenas, e depois parte para Munique, onde estuda na Escola de Belas Artes, antes de rumar para Florença e, enfim, ganhar Paris. Segundo Peter Read e Laurence Campa, desta época florentina, meados de 1911, data o início do "style caractéristique" das principais pinturas do artista, as que são fundadas em um "réalisme onirique et figé, peuplé de statues patriarcales et de mannequins inquiétants"494, que desde logo chamaram a atenção de Apollinaire, e que são evocadas no poema dedicado ao pintor, Océan de Terre:

J'ai bâti une maison au milieu de l'Océan

Ses fenêtres sont les fleuves qui s'écoulent de mes yeux

Des poulpes grouillent partout où se tiennent les murailles

Entendez battre leur triple cœur et leur bec cogner aux vitres

Maison humide

Maison ardente

Saison rapide

Saison qui chante

Les avions pondent des œufs

Attention on va jeter l'ancre

Attention à l'encre que l'on jette

Il serait bon que vous vinissiez du ciel

Le chèvrefeuille du ciel grimpe

Les poulpes terrestres palpitent

Et puis nous sommes tant et tant à être nos propres fossoyeurs

Pâles poulpes des vagues crayeuses ô poulpes aux becs pâles

Autour de la maison il y a cet océan que tu connais

Et qui ne repose jamais

Apollinaire comenta a pintura de De Chirico desde a instalação do pintor em Paris, quando o artista realiza em seu próprio atelier, no número 115 da rue Notre- Dame-des-Champs, exposição reunindo uma "trentaine de toiles d'ont l'art intérieur ne

494 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance avec les artistes. 1903-1908. Édition établie, présenté et annotée par Laurence Campa e Peter Read. Paris: Gallimard, 2009, p. 783.

206 doit pas nous laisser indifférent", segundo o poeta. Este primeiro texto já evidencia a proximidade, de Apollinaire relativamente à pintura que De Chirico realiza nestes anos. Nele, Apollinaire sublinha a diferença existente entre a arte de De Chirico e a dos demais pintores sobre os quais escreve na época, quando, por exemplo, afirma que a "art de ce jeune peintre est un art intérieur et cérébral qui n'a point de rapport avec celui des peintres qui se sont révélés ces dernières années"495. Apollinaire reconhece na pintura de De Chirico uma informação nova, distinta das que circulavam em Paris nestes anos. Tanto é assim que, talvez considerando a formação do artista, o autor destaca que sua pintura "ne procède ni de Matisse, ni de Picasso", artistas que ele considera como os principais influenciadores da pintura francesa da época, e muito menos dos "impressionnistes". O que chama a atenção do autor na pintura do artista não é a técnica empregada na realização destas "peintures étrangement métaphysiques", como ele escreve, mas a figuração: "gares ornées d'une horloge", "des tours", "des statues", "de grandes places désertes", figuras que ele destaca devido à sua "originalité" que, na visão do poeta, devem ser "signalées". Assim como Apollinaire reconhece a originalidade da figuração de De Chirico, ele destaca também a singularidade dos títulos que nomeiam as obras do artista: "l'Énigme de l'oracle, La Tristesse du Départ, l'Énigme de l'Heure, La Solitude" e "Le Sifflement de la locomotive"496. É preciso observar que, nesta época, o destaque dado por Apollinaire à pintura e aos títulos das obras de De Chirico fica isolado quando considerada a opinião de outros críticos do período. André Salmon, por exemplo, julgava que a "peinture de G. de Chirico vaut mieux que sa littérature car ses titres sont éxecrables".

495 APOLLINAIRE, Guillaume. "G. De Chirico. Pierre Brune", in: Œ. C. P. T. II, p. 603. 496 Vale destacar que, segundo André Breton, "avant de 1917", Giorgio de Chirico "s'est remis souvent du soin de dénomer ses tableaux à Apollinaire, et à fort bien fait", o que nos faz pensar na possibilidade de, ao destacar os títulos das obras de De Chirico Apollinaire esteja a marcar a sua presença, a sua colaboração no trabalho do artista. Cf.: BRETON, André. Le Surréalisme et la Peinture. Paris: N.R.F., 1965, nota 1 p. 18.

207

Giorgio De Chirico L'Énigme de l'heure Giorgio De Chirico 1910 L'Énigme de l'Oracle 1910

Para falar desta pintura "étrangement métaphysique", de títulos misteriosos, Apollinaire emprega terminologia que divide com o artista: "métaphysique", "intérieur", "énigme", "énigmatique", são termos que encontramos recorrentemente nos textos do autor assim como nos títulos das telas pintadas pelo artista entre os anos de 1910-1918. É preciso notar no entanto que, ao vocabulário "chirichiano" Apollinaire é quem introduz os termos "paysage métaphysique" que servirá de ponto de partida para De Chirico e seu amigo Carlo Carrà elaborarem um novo "mouvement" assim chamado: "Pittura Metafisica". Sobre o emprego destes termos, Peter Read e Laurence Campa afirmam que o artista "empruntait l'adjectif "métaphysique"497 de um texto que Apollinaire escreve sobre o Salon d'Automne de 1913, no qual destaca a pintura de De Chirico. Uma outra versão sobre a "peinture métaphysique" é a de Mario Richter, que afirma que as primeiras obras pintadas por De Chirico, entre 1912-1915, "dites métaphysiques", foram criadas para dar "forme à l'émotion qu'avaient suscitée en lui les poèmes d'Apollinaire"498. Para sustentar sua afirmação, Richter cita passagem de De Chirico: "À Paris, entre 1912 et 1915, Guillaume Apollinaire impressionait fortement créant toute une nouvelle émotion artistique que je concrétisais à l'époque dans ma peinture, que j'appelais moi-même peinture métaphysique ou réalisme magique"499. Note-se que não é apenas por meio de termos e títulos que a relação entre os dois artistas se estreita. Quando lemos as cartas enviadas por De Chirico a Apollinaire,

497 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance avec les artistes. 1903-1908. Op. cit. p. 686. 498 RICHTER, Mario. "Portraits Italiens d'Apollinaire sous le signe de l'Orphisme. De Chirico et Soffici", in: Apollinaire et le Portrait, La Revue des Lettres Modernes. Guillaume Apollinaire nº 21. Paris/Caen: Lettres Modernes Minard, 2001, p.8 e p. 19. 499 Idem, p. 19.

208 percebemos que as visões artísticas de um e de outro são muito próximas, tão próximas que, em alguns casos, podem ser confundidas. Isso é o que nos mostra a carta que De Chirico envia a Apollinaire no final de janeiro de 1914 na qual ele comenta uma tela que pintaria para oferecer a Marie Laurencin: "j'ai pensé [...] au titre de Mystère d'un moment parce que les différents choses qui y sont représentées apparaissent dans tout l'imprévu de certains moments, où l'essence intime des objets nous apparaît dans toute sa réalité métaphysique"500. É possível relacionar as ideias de De Chirico às ideias de Apollinaire pois, o "imprévu" do pintor evoca a "surprise" do autor, a "essence intime des objets" pode corresponder à ideia de "purété" de Apollinaire, e a "réalité métaphysique", em oposição a uma "réalité physique", é uma tradução possível do "sur- naturalisme", do "sur-réalisme", enfim, do "surréalisme", de Apollinaire. Outro exemplo, encontramos na passagem em que De Chirico escreve a Apollinaire afirmando que "La ressemblance qu'il y a entre ces imaginations que j'ai et les choses comme elles aparraissent dans la vie peut être comparée à la ressemblence qu'il y a entre la physionomie d'une personne qu'on voit en rêve et la physionomie de la même personne dans sa réalité; c'est et en même temps ce n'est pas la même personne". A passagem não ilustra apenas a "synthèse de contradictoires" que, segundo Noëmi, caracteriza a estética de Apollinaire, mas ela também evoca a ideia de uma "fausseté enchanteresse" que o autor propunha quando escrevia sobre a poesia de seu amigo André Royère, afirmando que nela "rien que nous ressemble et tout à notre image!"501. Nesta mesma direção, um outro exemplo encontramos na carta que De Chirico envia de Ferrara em julho de 1916 na qual escreve a Apollinaire comentando que "L'Éphésien nous enseigne que le temps n'existe pas et sur la grande courbe de l'éternité le passé est égal à l'avenir", visão do tempo correspondente à de Apollinaire, que é reiterada pelo artista quando ele comenta o "dieux aux deux visages", Janus, que "chaque nuit le rêve, à l'heure la plus profonde du repos, nous montre le passé égal au futur, le souvenir se mêlant à la prophétie en un hymem mystérieux"502. Além da correspondência de termos e de ideias, as cartas trocadas entre os dois artistas evidenciam que Apollinaire acompanha de perto o trabalho de De Chirico desde os primeiros anos em Paris, o que já é indicado pelo artigo que Apollinaire publica sobre a exposição de De Chirico, a que é realizada no número 115 da rue Notre-Dame-

500 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance avec les artistes. 1903-1908. Op. cit. p. 789. 501 Cf.: Capítulo 1, p. 20. 502 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance avec les artistes. 1903-1908. Op. cit. p. 789.

209 des-Champs, no mesmo ano em que o artista se instala na capital francesa. Pela leitura das cartas entendemos que Apollinaire é um frequentador deste atelier. Em uma delas, o artista convida o autor a ver "quelques tableaux" em que ele trabalhava. Em outra, afirma que irá mostrar a Apollinaire alguns quadros que lhe causaram "des joies très pures" após terminados. Estes quadros, são alguns dos que figurará na série de obras que Apollinaire qualifica de "paysages métaphysiques", como o Énigme d'une journée.

Giorgio De Chirico L'Énigme d'une Journée 1914

O convívio entre os dois artistas permite ao autor um conhecimento do trabalho do pintor que talvez apenas ele mesmo o tivesse, aliás, é o próprio De Chirico quem revela que, após conhecer Apollinaire, se sentia mais confiante em sua arte - "depuis que je vous connais je me sens plus confiant et l'espoir de la réussite est plus fort en moi" -, pois se dizia persuadido "d'avoir montré un nouveau chemin en art"503.

503 Williard Bohn propõe "qu'Apollinaire connaissait toute l'œuvre de Chirico - sans doute assez depuis longtemps" pois, como observa o crítico, quando Apollinaire escrevia sobre o trabalho do artista ele não se limitava "aux tableaux envoyés aux Salons" mas contemplava "sa production artistique en entier". O que é possível, ao menos é o que se pode supor quando lemos os textos que Apollinaire escreve sobre as obras enviadas ao Salon des Indépendants de 1914. Entre os quadros enviados para este Salão, sabemos que figura o referido L'Énigme d'une journée, e talvez até mesmo o seu quase homônimo, e mais conhecido por nós, L'Énigme d'un jour, pintado neste mesmo ano de 1914. Sobre o primeiro quadro, De Chirico comenta com Apollinaire quando de sua execução, adiantando sua ambição de envia-lo aos Indépendants e, ao mesmo tempo, expondo sua visão sobre a obra: Il y a un surtout [L'Énigme d'une journée] que je pense exposer aux Indépendants et avec lequel je crois avoir atteint un but très éloigné. Si éloigné que lorsque je le regarde maintenant qu'il est fini il me fait l'impression d'avoir être peint par un

210 A leitura das cartas bem como dos textos que Apollinaire publica sobre a pintura de De Chirico evidenciam a partilha de ideias e termos entre os dois artistas. Mas há um que, no entanto, escapa a Apollinaire, o "onirique", embora ele seja sugerido por outros, como "énigme", "énigmatique", "mystérieux", "effroyable", "épouvante". Mas se por um lado não encontramos nos escritos críticos do autor ocorrências deste termo, no poema, sua ideia, as imagens que ele suscita, abundam, pois o poema todo pode ser lido como uma evocação dessa dimensão onírica504 da pintura de Giorgio De Chirico. As imagens projetam-se dos versos do poema como se saídas de um sonho: uma "maison au milieu de l'océan", janelas que são "fleuves qui s'écoulent", "avions pondent des œufs", "pulpes terrestres", enfim, um "Océan de Terre", com o que se evoca a "étrangeté des énigmes plastiques da pintura de De Chirico". Esta dimensão onírica se destaca, no poema e na pintura, tanto que, anos mais tarde, o próprio André Breton se recordará do vocabulário dos dois artistas ao escrever sobre a pintura de De Chirico afirmando que nela o "objet n'est plus retenu qu'en fonction de sa vie symbolique et énigmatique"505; quando faz alusão ao "grand cycle chirichien", ele se refere aos "intérieurs métaphysiques"506 do artista, tal como já destacava Apollinaire nos seus textos de 1913-1914, ou, enfim, quando fala da "surprise", "cette surprise qu'Apollinaire tint pour le grand ressort nouveau"507, que ele atribuía à pintura de De Chirico. O mesmo Breton que escreve sobre a pintura de De Chirico relacionando o artista a Apollinaire é quem também indica a relação existente entre a poesia do autor e a pintura de Marc Chagall. Segundo Breton, os poetas "doivent beaucoup" a Chagall, cuja

autre, dans un autre temps ou dans un autre monde et d'autres impressions encore plus bizarres, profondes que je ne peux pas décrire" BOHN, Williard. "Apollinaire Inédit. L'Énigme de Giorgio De Chirico", in: La Revue des Lettres Modernes. Guillaume Apollinaire 15. Paris: Minard, 1980, pp. 121-132. APOLLINAIRE, Guillaume. Lettre de Giorgio De Chirico à Guillaume Apollinaire, 26 janvier 1914, in: Correspondance avec les artistes. 1903-1908. Op. cit. p. 785. 504 Embora Apollinaire não empregue o termo, ele cita, em um artigo sobre De Chirico, passagem de Soffici na qual este afirma que a "peinture de Chirico n'est pas peinture dans le sens que l'on donne aujourd'hui à ce mot" mas que podemos defini-la como "une écriture de songe", uma definição que poderia ter sido retomada anos mais tarde por André Breton quando este escreveria sobre a pintura do artista. Soffici continua, e expõe a sua visão da pintura do amigo, afirmando que: Au moyen de fuites presques infinies d'arcades et de façades, de grandes lignes droites; de masses immanentes de couleurs simples; des clairs et d'obscurs quasi funéraires, il arrive à exprimer, en fait, ce sens de vastitude, de solitude, d'immobilité, d'extase que produisent parfois quelques spectacles du souvenir dans notre âme quand elle s'endort". APOLLINAIRE, Guillaume. "Nouveaux Peintres", in: Œ. C. P. T. II, p. 824. BRETON, André. Le Surréalisme et la Peinture, op. cit. p. 18. 505 BRETON, André. Le Surréalisme et la Peinture, op. cit, p. 63. 506 Ibid, idem. 507 Idem, p. 221.

211 pintura inspiraria mais de um autor, como Cendrars, que para escrever a sua Prose du Transsibérien teria se inspirado na pintura de Chagall, e Apollinaire, que ao escrever A Travers l'Europe, "le poème le plus libre de ce siècle"508, na visão de Breton, teria se inspirado na obra do mesmo artista. A propósito, é pertinente observar que Breton não está sozinho quando propõe estas relações entre a pintura de Chagall e a poesia pois, a mesma, encontramos em outros críticos, como o italiano Lionello Venturi, que em seu ensaio sobre Chagall, de 1956, escreve:

Des poètes qui aimerent Chagall, Cendrars fit son portrait en vers et Canudo exalta en lui le plus grande coloriste de son temps. Apollinaire, quand il vit la première fois son œuvre, prononça le mot sur-naturel (ce n'est qu'en 1918 qu'il inventa le surréalisme) et dans son poème Rotsoge se rappela les couleurs et les feux des toiles de Chagall.509

"Vitebsk je t'abandonne. Demeurez seuls avec vos harengs"510, teria escrito Chagall, segundo Lionello Venturi, ao deixar sua cidade natal, rumo a Paris, no final do ano de 1910. De acordo com o historiador italiano, é neste momento, o de sua instalação na capital francesa, que Chagall começa a explorar o uso da cor em sua pintura, anteriormente sombria - Bella aux gants noirs, 1908; Nu rouge, 1908; Le mort, 1908; l'Enterrement, 1909 -. O que não quer dizer que antes ele não tenha tido contato com a pintura que, desde o princípio do século, na França, se aplicava no uso das cores. Não, pois como indica o mesmo crítico, já em 1906, em pleno fauvisme francês, a revista Zolote Runo, de São Petersbugo, "ouvrit un débat animé sur les nouveautés artistiques de Paris" que "s'opposaient aux formes traditionnelles de l'art" do país eslavo e, dois anos depois, em 1908, era organizada uma exposição de "peinture contemporaine russe et française" na qual os artistas daquele país puderam ter contato com a pintura de Cézanne, Gauguin, Lautrec, Matisse, Rouault, Braque e Derain, artistas cujas obras eram divulgadas na Rússia graças às aquisições do colecionador Sergeï Chtchoukine511,

508 Idem, p. 63. 509 VENTURI, Lionello. Marc Chagall. Génève/Paris/New-York: Éditions d'Art Albert Skira, 1956, p. 42. 510 Idem, p. 29. 511 Como nos informa Pierre Assouline, Chtchoutkine "a commencé sa collection en achetant à Durand- Ruel Les Lilas au soleil de Monet, le premier tableau impressionniste accroché en Russie. Il y en aura très vite beaucoup d'autres, des Pissarro et des Gauguin, des Cézanne et des Sisley puis des Nabis, des Fauves. Et surtout Matisse parmi les plus importants (La Danse, La Musique) lui assurant à Moscou une notoriété sans égale. Car Chtchoukine montre volontiers sa collection: il favorise des expositions et, un jour par semaine, permet au public de voir ses tableaux dans leur élément, c'est-à-dire chez lui. Le public n'est peut-être pas constitué d'hommes-de-la-rue mais d'amis d'amis, de relations; il n'en reste

212 um ilustrado amador de artes responsável pela difusão da pintura francesa naquele país. Seja como for, é em Paris que Chagall entra em contato intenso com a pintura baseada no uso da cor, mesmo porque, como nos lembra o mesmo Venturi, "Chagall se rappelle ses expériences russes comme étant dénuées de couleur". Uma vez em Paris, Chagall se instala em um pequeno atelier "derrière les abattoirs de Vaugirard, [...] à la Ruche"512 que Apollinaire passará a frequentar "régulièrement"513. Em seu livro de memórias, publicado décadas mais tarde, Chagall mesmo relataria a primeira visita de Apollinaire a seu atelier:

Je n'ose pas montrer mes toiles à Apollinaire. "Je sais, vous êtes l'inspirateur du cubisme". Mais, moi, je voudrais autre chose". [...] Nous traversons le sombre corridor où l'eau goutte sans fin, où des monceaux d'ordures sont entassés. Un palier rond; une dizaine de portes numérotées. J'ouvre la mienne. Apollinaire entre avec prudence comme s'il craignait que tout le bâtiment s'effondre soudain en l'entrainant dans ses ruines. Personnellement, je ne crois pas que la tendance scientifique soit heureuse pour l'art. Impressionnisme et cubisme me sont étrangers. L'art me semble être surtout un état d'âme514.

Instalado em seu atelier, Chagall se põe a pintar e já em 1911 expõe no Salon des Indépendants sem que ainda seja notado por Apollinaire, ainda que o autor destaque no texto sobre este Salão que os "peintres russes sont ceux qui, à l'étranger, semblent avoir le mieux compris les leçons des peintres français"515. Se neste artigo de 1911 Apollinaire não nota ainda a pintura enviada por Chagall, no ano seguinte ele destacará uma das obras do artista, Dédie à ma fiancée, como supõe Breunig, tela executada no mesmo ano de Moi et Le Village. Sobre Dédié à ma fiancée ou, como figura no catálogo, La Lampe et les deux personnes, Apollinaire escreve que "Chagall expose un âne d'or fumant de l'opium. Cette toile avait offusqué la police. Un peu d'or rajouté à

pas moins qu'il y a parmi eux de nombreux jeunes peintres russes qui, grâce à cet homme et à son geste, ont un accès direct et privilégié à la peinture moderne occidentale", in: ASSOULINE, Pierre. L'Homme de l'Art. D.-H. Kahnweiler 1884-1979. Paris: Éditions Balland, 1988, p. 135. 512 CAMPA, Laurence. Guillaume Apollinaire. Biographie. Paris: Gallimard: 2013, p. 461. 513 Ibid, idem. 514 CHAGALL, Marc. Ma Vie. Paris: Stock, 2003, p. 161. 515 APOLLINAIRE, Guillaume. "Le Salon des Indépendants", in: Œ. C. P. T. II, p. 321. Sabemos que neste ano de 1911, neste Salão, o olhar do crítico está voltado para a cor, tanto que em seu texto são destacadas as pinturas dos fauves, dos "vieux fauves", Van Dongen, Girieud, Vlaminck, dos "jeunes fauves", Segonzac, La Fresnaye, Marchand, e dos "fauves du temps de jadis", como Matisse, e de seus antecessores, os néo-impressionnistes Cross, Signac e Luce e, paralelamente a estes, o autor destaca a Tour Eiffel de Delaunay, artista que "se développe dans le dessin et dans le coloris".

213 propos sur une lampe délictueuse a tout arrangé"516. Se Apollinaire nada diz sobre o colorido da tela enviada pelo artista aos Indépendants de 1912, a cor é o que possivelmente lhe chama pois, como se verá, nos artigos que Apollinaire publica nos anos seguintes comentando a pintura de Chagall, será sempre a cor o que ele destacará das obras do artista. Assim, nos Indépendants de 1913, comentando Adam et Ève, ele dirá que a obra "révèle de grandes qualités de coloris", de "sérieuseus qualités de coloris" ou, nos artigos de 1914, que Chagall é "un de meilleurs coloristes du salon", um "coloriste bien doué".

Marc Chagall Moi et le Village 1911

Muitos autores517 que posteriormente se ocupam da pintura que Chagall produz nestes anos destacam suas cores, no entanto, na época, é Apollinaire um dos poucos críticos a reconhecer a importância da arte produzida pelo jovem de Vitebsk. André Salmon, por exemplo, que escreve sobre Chagall em 1914, afirma que o artista "incarne avec une balourdise ailée [...] la fausse allégresse rustique, remède à la mélancolie, [...],

516 APOLLINAIRE, Guillaume. "Vernissage aux Indépendants", in: Œ. C. P. T. II, p. 429. 517 Bernard Dorival, falando da "plastique pure" da pintura de Chagall irá situá-la, antes de tudo, no "problème de la couleur" que ocupa o artista desde o início de sua instalação em Paris ou de sua preocupação com a "recherche de couleur pour la couleur"[in: DORIVAL, Bernard. Les Étapes de la Peinture Française Contemporaine, T. 3 1911-1944, pp. 205-206]; André Breton referirá as "admirables couleurs de prisme" de Chagall, que "emportent et transfigurent le tourment moderne" [BRETON, André. Le Surréalisme et la Peinture, op. cit. p. 64] e André Malraux referirá a questão da cor ao longo de toda a sua "Hommage à Marc Chagall" [MALRAUX, André. "Hommage à Marc Chagall", in: Œuvres Complètes, T. V - Écrits sur l'Art - pp 1197-1201.

214 qui se traduit par des danses burlesques et séduisantes et qui a donné la plus absurde [...] des imageries rustiques"518. No mesmo ano e sobre o mesmo Salão, Arthur Cravan afirmava dégoût pour la peinture d'un Chagall", considerando que o artista expunha "un homme versant du pétrole dans le trou du cul d'une vache, quand la véritbale folie elle- même ne peut me plaire parce qu'elle met uniquement en évidence un cerveau..."519. Ao contrário destes dois críticos, neste ano de 1914, Apollinaire segue o que propõe em seu poema sobre Chagall - "regarde mais regarde donc" -, e olha para a pintura do artista para ver nela não apenas o trabalho de "un des meilleur coloristes" do Salão daquele ano mas, para enxergar em sua pintura algo além do colorido. Apollinaire observa que, além da originalidade do trabalho com a cor, Chagall traz para suas telas outras referências, tais como as da arte popular russa520, que o artista trabalha com "imagination mystique". O ano de 1914 é bom para o pintor, pois apesar da má recepção, por parte de alguns críticos, de sua pintura, ele é destacado por Apollinaire e expõe seis obras no Salon des Indépendants, entre elas, Moi et le Village, obra na qual, segundo Venturi, Chagall "retrouve son unité de style"521. É também este o ano em que Chagall expõe suas pinturas em uma primeira mostra organizada por Herwarth Walden na galeria da Der Sturm, em Berlim e, ao que tudo indica, por intermédio de Apollinaire. Ao menos é isso o que se pode supor quando consideramos o que escreve o pintor a propósito de seu primeiro encontro com o galerista berlinense, no apartamento de Apollinaire:

Voici la mansarde d'Apollinaire, ce Zeus doux. En vers, en chiffres, en syllabes courantes, il traçait pour nous un chemin. Il sortait de sa chambre d'angle, souriait peu à peu de toute sa large face. Son nez s'aiguisait farouchement et ses yeux doux et mystérieux chantaient la volupté. Il portait son ventre, comme un recueil d'œuvres complètes et ses jambes gesticulaient comme des bras. Chez lui, on discutait beaucoup. Dans un coin, un petit bonhomme est assis. Apollinaire s'approche de lui et le réveille:

518 SALMON, André. "Le Salon", in: Montjoie! Organe de l'Impérialisme Artistique Français, deuxième année, nº 3, mars 1914, p. 23. 519 CRAVAN, Arthur. "L'Exposition des Indépendants", in: Maintenant, troisième annnée, nº 4, mars- avril 1914, p. 7 520 No texto mesmo em que julga Chagall um dos melhores coloristas do Salão, ele também destaca que ele "s'inspire de l'art populaire", não só porque via nela uma possível fonte de interesse para a nova pintura que se fazia na França da época, mas talvez também porque neste ano ele destacasse, em outro texto, o interesse mais específico pela "art populaire russe", sobre a qual escrevia que ela "retiendra l'attention car elle est pleine d'images, de jouets charmants" que enxergava como úteis, exemplares à arte francesa que, neste ano de 1914, celebrava Henri Rousseau, pintor admirado por ele e por muitos artistas de seu grupo, alguns deles, como De Chirico ou Chagall, comparados ao Douanier, artista a quem Apollinaire consagra todo um número das Soirées de Paris, de janeiro de 1914. 521 VENTURI, Lionello. Op. cit. p. 33.

215 "Savez-vous ce qu'il faut faire, monsieur Walden? Il faut organiser une exposition d'œuvres de ce jeune homme. Vous ne le connaissez pas?... Monsieur Chagall..."522.

Se é possível afirmar, com base nas memórias do artista, que é por meio de Apollinaire que ele chega ao conhecimento de Walden, não é possível dizer com absoluta convicção que seja ele, Apollinaire, quem esteja por trás da organização da exposição de obras de Chagall na Der Sturm em junho de 1914, malgrado o autor a sinalize, no texto que publica sobre Marc Chagall no Paris-Journal do 2 de junho deste mesmo ano destacando todo o conjunto de obras que seriam expostas em Berlim, como se já as conhecesse de antemão: "Son exposition, que j'ai vue avant qu'elle partit pour l'Allemagne, comprend trente-quatre toiles, des aquarelles et des dessins de différentes époques. Je préfère ses dernières œuvres et surtout son Paris vu par la fenêtre"523. Além deste texto, Apollinaire publica um poema, nas Soirées de Paris de abril e na Der Sutrm de maio do mesmo ano, intitulado Rotsoge, o mesmo que será impresso nos Calligrammes com o título À Travers l'Europe.

Marc Chagall Paris vue par la Fenêtre 1913

Chagall menciona este poema em duas ocasiões. Em uma carta de 25 de março de 1914, o pintor escreve que "avec plaisir je pense à votre [de Apollinaire] visite chez moi "au fond des abattoirs" - atelier rue Ruche - que vos dessins sont à Berlin et que... oui

522 CHAGALL, Marc. Ma Vie. Paris: Stock, 2003, p. 158. 523 APOLLINAIRE, Guillaume. "Marc Chagall", in: op. cit. p. 746.

216 j'attends votre poème portrait (paysage) extraordinaire"524. Anos mais tarde, lembrando desta mesma visita, Chagall escreveria: "Apollinaire s'assied. Il rougit, enfle, sourit et murmure: "Surnaturel!..." Le lendemain, je recevais une lettre, un poème dédié à moi: "Rodztag". Comme une pluie battante, les sens de vos paroles nous frappe"525. Rodztag, segundo Chagall, Rotsoge, como no título dado por Apollinaire, é o poema dedicado ao pintor que é publicado nas Soirées de Paris em abril e, no mês seguinte, na revista berlinense Der Sturm. Como disse, o poema é publicado no periódico alemão poucos dias antes da divulgação da exposição "Marc Chagall. Neue Gemälde und Graphik", no número 6 da Der Sturm, de junho de 1914. O curto intervalo entre a publicação dos dois textos, o poema e o que divulga a exposição do artista, nos permitiria propor que Rotsoge é já uma forma de divulgar a pintura de Chagall, senão ao menos o seu nome, que chegaria a Berlim no mês seguinte pois, neste momento, em maio de 1914, Apollinaire já não é um desconhecido no cenário artístico berlinense, ao menos neste, da "avant-garde", que é o dele e o de Walden: ele é colaborador da revista Der Sturm; ele auxilia na organização da exposição de obras de Delaunay, em janeiro de 1913, para a qual escreve o poema-prefácio Les Fenêtres; nesta mesma ocasião, pronuncia duas conferências, entre elas, "La Peinture Moderne", para a qual acorrem nomes importantes das artes e das letras alemãs da época526; em março deste mesmo ano ele é um dos signatários do manifesto em defesa de Kandinsky, publicado na mesma Der Sturm; ainda em 1913 ele colabora com a organização da exposição de obras do Douanier Rousseau, cedendo a Walden a sua La Muse inspirant le poète; meses antes da exposição de Chagall, em março de 1914, ele auxilia na organização da exposição de obras de Alexandre Archipenko, para a qual também escreve o prefácio do catálogo. Na carta enviada a Apollinaireem março de 1914, o artista refere-se ao poema como um "portrait-paysage", um "portrait", poderíamos dizer, relativo ao artista, uma "paysage", referente à sua obra. Assim, como "portrait-paysage", figurando ao mesmo tempo o pintor e sua pintura, é que porventura o poema possa ser entendido, mesmo

524 APOLLINAIRE, Guillaume. Correspondance avec les artistes. Op. cit. p. 781. 525 CHAGALL, Marc. Ma Vie. Paris: Stock, 2003, p. 161. 526 Segundo Laurence Campa, Apollinaire pronuncia sua conferência no dia 18 de janeiro na própria galeria Der Sturm e entre o público "se trouvaient Alfred Döblin, Paul Zech, Peter Baum, et Albert Ehrestein, collaborateurs du Sturm, le poète Wilhelm Klemm, venu tout spécialement de Leipzig écouter la conférence, Hanns Einz Ewers, qui donna son adresse, et le directeur du Berliner Börsen-Courier, Albert Haas [...]", in: CAMPA, Laurence. Guillaume Apollinaire. Op. cit. pp. 413-414.

217 porque, Rotsoge será, como Les Fenêtres havia sido na exposição de Delaunay, impresso no catálogo desta exposição de Chagall na Der Sturm527. Como visto, quando Apollinaire escrevia sobre a pintura de Chagall, ele o fazia, sobretudo, sublinhando as cores empregadas pelo artista. É verdade que, ao intitular o seu poema Rotsoge528, ou "parole rouge", é para a cor, primeiramente, que o autor chama a atenção do leitor e, de fato, ao longo do poema ela é constantemente lembrada:

Rotsoge Ton visage écarlate [...] [...] Et toi tu me montres un violet épouvantable Ce petit tableau où il y a une voiture m'a rappelé le jour Un jour fait de morceaux mauves jaunes bleus verts et rouges [...] La chienne abois contre les lilas [...] Mais tes cheveux sont le trolley A travers l'Europe vêtue de petits feux multicolores

Nota-se de saída que as cores que figuram no poema não são quaisquer cores mas justamente aquelas cujo uso particulariza a pintura que Chagall executa nestes anos de 1912-1914: "écarlate", "violet"- não qualquer "violet" mas um "violet épouvantable" que não nos deixa de lembrar dos "insondables violets" das Fenêtres de Delaunay -, "mauves", "rouges", "lilas", além dos "jaunes", dos "bleus" e dos "verts", presentes no poema e nas telas do artista datadas deste período. Comentando este mesmo poema, Anna Boschetti propôs que "les images et les citations" que encontramos em Rotsoge, posteriormente intitulado A Travers l'Europe, são "souvent liées aux tableaux de

527 Cf. referência localizada no Centre de Documentation et de Recherche du Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, de Paris, o catálogo da exposição de Chagall, Der Sturm, Berlin, juin-juillet 1914, "contient un poème en français de Guillaume Apollinaire". 528 Em texto que escreveu sobre Apollinaire e Chagall, Étienne-Alain Hubert relata a ocasião de seu encontro com o pintor, durante o qual indagou ao artista a propósito do título dado, na época, ao poema: "Pourquoi le titre Rotsoge", ao que Chagall lhe respondeu: "Vous me posez la même question qu'André Breton la première fois qu'il m'a vu: eh bien, pour moi, c'est parole rouge. Soge, c'est du yiddish". Em seguida Hubert explica que o emprego do adjetivo rot, por Apollinaire, "adjoint la couleur dont le jeune Chagall sait exploiter la violence". Venturi também lembra algo de semelhante, quando escreve que em Rotsoge Apollinaire "se rappela les couleurs éclatantes et les feux des toiles de Chagall". HUBERT, Étienne-Alain. "Apollinaire et Chagall: à travers Rotsoge", in: Apollinaire. Le Regard du Poète, catalogue de l'exposition. op. cit. p. 199.

218 Chagall" e, nesta mesma direção, Philippe Renaud sugeriu que o mesmo poema "parle de ses toiles"529. Seguindo estas duas proposições, é possível relacionar passagens do poema com quadros do artista e, uma primeira aproximação, pode ser feita através das cores. As cores que figuram no poema correspondem às de algumas utilizadas nas telas de Chagall, como as que ele emprega na composição de Dédié à ma fiancée, tela comentada por Apollinaire no texto sobre os Indépendants de 1912; Moi et le Village, cujas cores, segundo Bernard Dorival, devem "quelque chose à Delaunay"530, é obra executada na mesma época e que, portanto, pode ser incluída entre as que o autor afirma pertencerem a um "coloriste bien doué", como Le Marchand de Bestiaux, de 1912, ou a obra preferida de Apollinaire, Paris vu par la fenêtre, obra que, segundo Venturi, "résume toutes les expériences"531 de Chagall em Paris. A estas obras seria possível acrescentar ainda a Hommage à Apollinaire, na qual encontramos também o emprego de cores que figuram no poema, mas não apenas por isso. Ainda que Apollinaire nada escreva sobre este quadro, Venturi destaca se tratar de "une œuvre unique dans la production de Chagall", talvez não apenas porque nela encontre uma figuração estranha à produção do Chagall desta época, mas pelo modo como o artista emprega suas cores: "Du rouge, du blanc-vert, du bleu; le feu, la terre, la mer. Tout cela indiqué et non pas démontré, comme dans un rêve"532.

Marc Chagall Hommage à Apollinaire 1911-12

529 CF.: RENAUD, Philippe. Op. cit. p. 331. 530 DORIVAL, Bernard. Les Peintres du XXe siècle. Paris: Pierre Tisné, 1957, p. 53. 531 VENTURI, Lionello, op. cit. p. 38 532 Ibid, idem.

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Como mencinei acima, as cores empregadas por Chagall devem, segundo Bernard Dorival, "quelque chose à Delaunay", e parece difícil não lembrar do mesmo artista quando Venturi destaca o emprego "Du rouge, du blanc-vert, du bleu" nesta tela de Chagall. Mais especificamente, parece impossível não lembrar do verso inicial de Les Fenêtres: "Du rouge au vert tout le jaune se meurt". Independentemente do que é figurado em Hommage à Apollinaire, objeto de destaque tanto para o primeiro quanto para o segundo crítico, o que parece mais relevante de ser observado na obra é o emprego, pouco comum nas telas que Chagall pinta neste período, das cores aplicadas em contraste, à maneira de Delaunay nas Fenêtres ou, mais precisamente, nas Formes circulaires e os Disques Simultanés, obras pintadas por Delaunay a partir de 1913, as mesmas que, segundo Béatrice Joyeux-Prunel, são o "aboutissement de ses expériences sur la couleur, la lumière et les formes [...]"533. É preciso observar ainda que, pela mesma técnica, se eleva, na Hommage que Chagall rende ao poeta aquela proposição dos "contrastes simultanés" que era defendida por Apollinaire e Delaunay. Por um outro ângulo, Anne Greet vê também uma aproximação possível entre as artes dos três artistas, quando escreve que "Comme dans Les Fenêtres nous trouvons plusieurs attaches aux objets de son atelier [o de Chagall], des bribes de conversations"534, tal como no poema que Apollinaire dedicou às pinturas de Delaunay antes de compor Rotsoge. Laurence Campa também os aproxima, ainda que para distingui-los: "la fenêtre de Chagall ne s'ouvrait pas à la lumière pure, comme celles de Delaunay, mais sur un univers onirique"535. Há, no entanto, um outro modo pelo qual se pode relacionar os três artistas. Lembremos com Chagall que, quando ele rememorava a ocasião daquela primeira visita de Apollinaire a seu atelier, ele afirmava que o autor "rougit, enfle, sourit et murmure: Surnaturel!...", possivelmente ao ver seus quadros - isso em 1913. Nas notas de Delaunay referentes ao ano de 1912, ano da composição de Les Fenêtres, o pintor afirma ser esta tela a sua "première peinture abstraite en couleur" e que nela: "pas de copie de la nature - surnaturalisme de G.[uillaume] A. [pollinaire] si vous voulez"536.

533 JOYEUX-PRUNEL, Béatrice. Les avant-gardes artistiques 1848-1918. Une histoire transnationale. Paris: Gallimard, 2015, p. 465. 534 GREET, Anne. "Rotsoge: A Travers Chagall", in: Que Vlo-Ve? Série 1, nº 22-23, juillet-octobre 1979, Actes du Colloque de Stavelot 1975. 535 CAMPA, Laurence. Guillaume Apollinaire. Biographie, op. cit. p. Ver páginas [384-422-453-461 ou 462] 536 DELAUNAY, Robert. Du cubisme à l'art abstrait, op. cit. p. 97.

220 Em um artigo publicado em maio de 1914, no mês anterior ao da abertura da exposição de Chagall em Berlim, publica-se um texto nas Soirées de Paris sob as iniciais J.C.537 que Pierre-Marcel Adéma538 entende como sendo de Apollinaire. No texto, intitulado "Surnaturalisme", encontramos uma definição possível do termo: "C'est un naturalisme supérieur, plus sensible, plus vivant et plus varié que l'ancien, un surnaturalisme, tout à fait en accord avec les œuvres surnaturalistes des autres arts"539. Sendo o "surnaturalisme" um "naturalisme supérieur", poderíamos entende-lo como a expressão da ideia geral de uma pintura pura, aplicável, por isso, não apenas às obras de Chagall e Delaunay mas às dos demais artistas que Apollinaire defende nestes anos em que se dedica a escrever sobre a pintura. No mesmo texto sobre o "Surnaturalisme" lemos que o autor qualifica seus contos de "philtres de phantase", e Philippe Renaud nos lembra que, "en parlant de "philtres de phantase", Apollinaire "rappelle que [...] la fantaisie est proche parente du rêve". Além do "surnaturel", da "fantaisie", do "rêve", o mesmo Renaud indica como sendo de importância a presença dos "souvenirs", do autor e do pintor, para a organização do poema. Se é possível ou não afirmar, como fazem Read e Campa, que "le poète et le peintre s'inspirèrent mutuellement" - o primeiro compondo Rotsoge, o segundo, Hommage à Apollinaire, Portrait d'Apollinaire e tantas outras telas e desenhos que foram dedicados ao poeta, ou dizer, como Malraux, que Chagall é "le dernier héritier d'Apollinaire"540, o que nos fica sugerido após ao considerar a pintura do artista e os escritos do autor, é que existem outras direções possíveis pelas quais se pode estabelecer uma comunicação entre o imaginário artístico de Apollinaire e Chagall. Como visto, o "surnaturel", a "fantaisie", o "rêve", são termos recorrentes em escritos de Apollinaire, inclusive são empregados para designar ou qualificar a pintura de Marc Chagall. Assim

537 J.C., ou seja, Jean Cérusse, ou "ces russes", são os co-editores e financiadores da publicação, Serge Férat, ou Sergueï Nikolaïevitch Yastrebzov, e Hélène D'Œttingen, que auxiliam Apollinaire a manter em atividade as Soirées de Paris a partir do final de 1913. Sobre a revista Les Soirées de Paris, consultar: BLUMENKRANZ-ONIMUS, Noëmi. "Les Soirées de Paris ou le mythe du moderne". In: Année 1913: les formes esthétiques de l'œuvre d'art à la veille de la première guerre mondiale. Lilianne Brion-Guerry (Org.). Paris: Klincksieck, 1971. Vol. 1. 538 ADÉMA, Pierre-Marcel. Op. cit. p. 243-244. 539 J.C. "Surnaturalisme", in: Soirées de Paris, nº 24, mai 1914. Sem propor alteração do sentido atribuído a seu "surnaturalisme",Apollinaire sugere, em carta enviada a Paul Dermée, em 1917, a substituição deste termo por "surréalisme": "Tout bien examiné, je crois, en effet qu'il vaut mieux adopter surréalisme que surnaturalisme que j'avais d'abord employé. Surréalisme n'existe pas encore dans les dictionnaires, et il sera plus commode à manier que surnaturalisme déjà utilisé par MM. Les Philosophes" [Guillaume Apollinaire a Paul Dermée, mars 1917, in: Correspondance Générale, T. 3 1916-1918, op. cit. p. 305.]. 540 MALRAUX, André. "Hommage à Marc Chagall", in: Œuvres Complètes T. V, p. 1199.

221 como estes dois críticos, outros também se aproximariam da pintura Chagall falando dela a partir deste mesmo léxico "apollinariano". Lionello Venturi diria que na pintura de Chagall "tout [...] est indiqué et non pas démontré, comme dans un rêve" e que "c'est le charme de ces tableaux que de suggérer un mystère...". Bernard Dorival afirmaria que "c'est la fantaisie absolue avec laquelle Chagall utilise objets et personnages qui lui propose sa mémoire pour le faire entrer dans un monde impossible, illogique, irréel - dans son monde"541. O mesmo autor falaria do "irréalisme" da pintura do artista afirmando que na obra Moi et le Village Chagall "annonce toute la peinture surréaliste par la fantaisie"542 e, por fim, Maurice Raynal, veria nas telas do pintor de Vitebsky "une atmosphère de contes, de symboles et d'allégorie où l'imagination la plus exaltante chante la vie dynamique, les rythmes surprenants de la liberté et d'imprévu"543 próxima, portanto, do imaginário de Apollinaire. Tendo no horizonte estas "évocations reveuses", estes "souvenirs nostalgiques", o "surnaturel", a "imagination", a "fantaisie", o "rêve", e lembrando uma vez mais que Chagall mesmo qualifica o poema de Apollinaire como um "portrait-paysage" de sua obra, podemos dizer que o poema é composto a partir deste imaginário partilhado entre poeta e o pintor. Da memória do pintor, o autor lembra, logo no terceiro verso do poema, desta "maison ronde où il nage un hareng saur" ou quando se põe a "pleurer en me souvenant de vos enfances". Da memória de sua pintura, deste "petit tableau où il y a une voiture" que lhe sugere o dia "fait de morceaux mauves jaunes bleus verts et rouges" no qual se mistura sua própria memória, "où je m'en allais à la campagne" e cuja imagem que segue refere-se ao imaginário de ambos: "avec une charmante cheminée tenant sa chienne en laisse". Lembrando ainda o que sugeria Anna Boschetti, quando afirmava que trechos do poema são "souvent liées aux tableaux de Chagall", ou Philippe Renaud, que propunha que o poema "parle de ses toiles" de Chagall, seria possível arriscar outras aproximações entre passagens do poema e quadros do artista. Nos versos 7 e 8, por exemplo, onde lemos: "un homme en l'air un veau qui regarde à travers le ventre de sa mère", é possível imaginar duas telas do artista. O "homme en l'air", como a figura da tela L'anniversaire e, o "veau qui regarde à travers le ventre de sa mère", como a do animal figurado em Le Marchand de Bestiaux. Se consideramos as "évocations

541 DORIVAL, Bernard. Les Peintres du XXème Siècle, op. cit. p. 53. 542 DORIVAL, Bernard. Les Étapes de la Peinture Contemporaine, op. cit. p. 193. 543 RAYNAL, Maurice. Peinture Moderne. Paris/Genève: Albert Skira Éditions d'Art, 1966, p. 127.

222 reveuses" de que fala Greet, ou então aquela dimensão da "imagination", do "rêve", do "irréel", do "illogique", a passagem do poema em que se lê "charmante cheminée tenant sa chienne en laisse", ou a da "cheminée [que] fume loin de moi des cigarettes russes", estão próximas das figurações "surnaturelles" de Chagall, como as de Moi et le Village ou Paris vu par la Fenêtre, amabas evocadas pelas cores que figuram no poema: "violet épouvantable", "mauves", "lilas" ou, em resumo, os "feux multicolores" por meio dos quais seria possível caracterizar uma parte representativa das pinturas que Chagall executa entre os anos de sua instalação em Paris até o de sua exposição na galeria de Walden em junho de 1914.

Marc Chagall Marc Chagall L'Anniversaire Le Marchand de Bestiaux 1915 1912

223

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No final de sua vida, Apollinaire projetava um livro, que segundo ele, seria composto apenas de seus poemas dedicados à pintura. Em época de leitura e de leitores eletrônicos, é curioso lembrar que, em uma entrevista de 1917, Apollinaire e Gaston Picard se divertiam com a ideia do desaparecimento do livro impresso. Quando perguntado sobre esta possível desaparição do livro, Apollinaire respondia que ele encontrava-se em seu declínio, e que, em um ou dois séculos, o livro impresso desapareceria, seria substituído pelo fonógrafo ou pelo filme cinematográfico. Passado o primeiro século, o fonógrafo desapareceu, o filme cinematográfico foi substituído, mas o livro não, e podemos continuar lendo seus poemas impressos. Picard perguntava ainda ao autor se, caso seu vaticínio se confirmasse, quais de suas obras Apollinaire gostaria de ver tipografadas. O poeta responde que algumas: o seu Calligrammes, com dois retratos desenhados por Picasso, seu romance Les Clowns d'Elvire ou les Caprices de Bellone, futuro La femme assise, com ilustrações da pintora Irène Lagut - que lhe servira de base para a composição de uma das personagens deste romance - e Le Marchand d'Oiseaux, "un volume de poèmes sur les peintres".

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224

ANEXO: POEMAS DE APOLLINAIRE

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Les Fenêtres

Du rouge au vert tout le jaune se meurt

Quand chantent les aras dans les forêt natales

Abatis de pihis

Il y a un poème à faire sur l’oiseau qui n’a qu’une aile

Nous l’enverrons en message téléphonique

Traumatisme géant

Il fait couler les yeux

Voilà une jolie jeune fille parmi les jeunes Turinaises

Le pauvre jeune homme se mouchait dans sa cravate blanche

Tu soulèveras le rideau

Et maintenant voilà que s’ouvre la fenêtre

Araignées quand les mains tissaient la lumière

Beauté pâleur insondables violets

Nous tenterons en vain de prendre du repos

On commencera à minuit

Quand on a le temps on a la liberté

Bigorneaux Lottes multiples Soleils et l’Oursin du couchant

Une vieille paire de chaussures jaunes devant la fenêtre

Tours

226 Les tours ce sont les rues

Puits

Puits ce sont les places

Puits

Arbres creux qui abritent les Câpresses vagabondes

Les Chabins chantent des airs à mourir

Aux Chabines marronnes

Et l’oie oua-oua trompette au nord

Où les chasseurs de ratons

Raclent les pelleteries

Étincelant diamant

Vancouver

Où le train blanc de neige et de feux nocturnes fuit l’hiver

O Paris

Du rouge au vert tout le jaune se meurt

Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York et les Antilles

La fenêtre s’ouvre comme une orange

Le beau fruit de la lumière

Guillaume Apollinaire, Ondes, Calligrammes 1918

227 Zone

À la fin tu es las de ce monde ancien

Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin

Tu en as assez de vivre dans l’antiquité grecque et romaine

Ici même les automobiles ont l’air d’être anciennes La religion seule est restée toute neuve la religion Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation

Seul en Europe tu n’es pas antique ô Christianisme L’Européen le plus moderne c’est vous Pape Pie X Et toi que les fenêtres observent la honte te retient D’entrer dans une église et de t’y confesser ce matin Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut

Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d’aventures policières Portraits des grands hommes et mille titres divers

J’ai vu ce matin une jolie rue dont j’ai oublié le nom Neuve et propre du soleil elle était le clairon Les directeurs les ouvriers et les belles sténo-dactylographes Du lundi matin au samedi soir quatre fois par jour y passent Le matin par trois fois la sirène y gémit Une cloche rageuse y aboie vers midi Les inscriptions des enseignes et des murailles Les plaques les avis à la façon des perroquets criaillent J’aime la grâce de cette rue industrielle Située à Paris entre la rue Aumont-Thiéville et l’avenue des Ternes

Voilà la jeune rue et tu n’es encore qu’un petit enfant Ta mère ne t’habille que de bleu et de blanc Tu es très pieux et avec le plus ancien de tes camarades René Dalize Vous n’aimez rien tant que les pompes de l’Église Il est neuf heures le gaz est baissé tout bleu vous sortez du dortoir en cachette

Vous priez toute la nuit dans la chapelle du collège Tandis qu’éternelle et adorable profondeur améthyste Tourne à jamais la flamboyante gloire du Christ C’est le beau lys que tous nous cultivons C’est la torche aux cheveux roux que n’éteint pas le vent C’est le fils pâle et vermeil de la douloureuse mère

228 C’est l’arbre toujours touffu de toutes les prières C’est la double potence de l’honneur et de l’éternité C’est l’étoile à six branches C’est Dieu qui meurt le vendredi et ressuscite le dimanche C’est le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs Il détient le record du monde pour la hauteur

Pupille Christ de l’œil Vingtième pupille des siècle il sait y faire Et changé en oiseau ce siècle comme Jésus monte dans l’air Les diables dans les abîmes lèvent la tête pour le regarder Ils disent qu’il imite Simon Mage en Judée Ils crient s’il sait voler qu’on l’appelle voleur Les anges voltigent autour du joli voltigeur Icare Enoch Elie Apollonius de Thyane Flottent autour du premier aéroplane Ils s’écartent parfois pour laisser passer ceux que transporte la Sainte-Eucharistie Ces prêtre qui montent éternellement élevant l’hostie L’avion se pose enfin sans refermer les ailes Le ciel s’emplit alors de millions d’hirondelles A tire-d’aile viennent les corbeaux les faucons les hiboux D’Afrique arrivent les ibis les flamants les marabouts L’oiseau Roc célébré par les conteurs et les poètes Plane tenant dans les serres le crâne d’Adam la première tête L’aigle fond de l’horizon en poussant un grand cri Et d’Amérique vient le petit colibri De Chine sont venus les pihis longs et souples Qui n’ont qu’une seule aile et qui volent par couple Puis voici la colombe esprit immaculé Qu’escortent l’oiseau-lyre et le paon ocellé Le phénix ce bûcher qui soi-même s’engendre Un instant voile tout de son ardente cendre Les sirènes laissant les périlleux détroits Arrivent en chantant bellement toutes trois Et tous aigle phénix et pihis de la Chine Fraternisent avec la volante machine

Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi la foule

Des troupeaux d’autobus mugissants près de toi roulent L’angoisse de l’amour te serre le gosier Comme si tu ne devais jamais plus être aimé Si tu vivais dans l’ancien temps tu entrerais dans un monastère Vous avez honte quand vous vous surprenez à dire une prière Tu te moques de toi et comme le feu de l’Enfer ton rire pétille Les étincelles de ton rire dorent le fond de ta vie

229 C’est un tableau pendu dans un sombre musée Et quelquefois tu vas le regarder de près

Aujourd’hui tu marches dans Paris les femmes sont ensanglantées C’était et je voudrais ne pas m’en souvenir c’était au déclin de la beauté

Entourée de flammes ferventes Notre-Dame m’a regardé à Chartres Le sang de votre Sacré Cœur m’a inondé à Montmartre Je suis malade d’ouïr les paroles bienheureuses L’amour dont je souffre est une maladie honteuse Et l’image qui te possède te fait survivre dans l’insomnie et dans l’angoisse

C’est toujours près de toi cette image qui passe

Maintenant tu es au bord de la Méditerranée Sous les citronniers qui sont en fleur toute l’année Avec tes amis tu te promènes en barque L’un est Nissard il y a un Mentonasque et deux Turbiasques Nous regardons avec effroi les poulpes des profondeurs Et parmi les algues nagent les poissons images du Sauveur

Tu es dans le jardin d’une auberge aux environs de Prague Tu te sens tout heureux une rose est sur la table Et tu observes au lieux d’écrire ton conte en prose La cétoine qui dort dans le cœur de la rose

Épouvanté tu te vois dessiné dans les agates de Saint-Vit Tu étais triste à mourir le jour où tu t’y vis Tu ressembles au Lazare affolé par le jour Les aiguilles de l’horloge du quartier juif vont à rebours Et tu recules aussi dans ta vie lentement En montant au Hradchin et le soir en écoutant Dans les tavernes chanter des chansons tchèques

Te voici à Marseille au milieu des Pastèques

Te voici à Coblence à l’hôtel du Géant

Te voici à Rome assis sous un néflier du Japon

Te voici à Amsterdam avec une jeune fille que tu trouves belle et qui est laide Elle doit se marier avec un étudiant de Leyde On y loue des chambres en latin Cubicula locanda Je m’en souviens j’y ai passé trois jours et autant à Gouda

230 Tu es à Paris chez le juge d’instruction Comme un criminel on te met en état d’arrestation

Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages Avant de t’apercevoir du mensonge et de l’âge Tu as souffert de l’amour à vingt et à trente ans J’ai vécu comme un fou et j’ai perdu mon temps Tu n’oses plus regarder tes mains et à tous moments je voudrais sangloter Sur toi sur celle que j’aime sur tout ce qui t’a épouvanté

Tu regardes les yeux pleins de larmes ces pauvres émigrants

Ils croient en Dieu ils prient les femmes allaitent des enfants Ils emplissent de leur odeur le hall de la gare Saint-Lazare Ils ont foi dans leur étoile comme les rois-mages Ils espèrent gagner de l’argent dans l’Argentine Et revenir dans leur pays après avoir fait fortune Une famille transporte un édredon rouge comme vous transportez votre cœur Cet édredon et nos rêves sont aussi irréels Quelques-uns de ces émigrants restent ici et se logent Rue des Rosiers ou rue des Écouffes dans des bouges Je les ai vus souvent le soir ils prennent l’air dans la rue Et se déplacent rarement comme les pièces aux échecs Il y a surtout des Juifs leurs femmes portent perruque Elles restent assises exsangues au fond des boutiques

Tu es debout devant le zinc d’un bar crapuleux Tu prends un café à deux sous parmi les malheureux

Tu es la nuit dans un grand restaurant

Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant Toutes même la plus laide a fait souffrir son amant

Elle est la fille d’un sergent de ville de Jersey

Ses mains que je n’avais pas vues sont dures et gercées

J’ai une pitié immense pour les coutures de son ventre

J’humilie maintenant à une pauvre fille au rire horrible ma bouche

Tu es seul le matin va venir Les laitiers font tinter leurs bidons dans les rues

231 La nuit s’éloigne ainsi qu’une belle Métive C’est Ferdine la fausse ou Léa l’attentive

Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie

Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied Dormir parmi tes fétiches d’Océanie et de Guinée Ils sont des Christ d’une autre forme et d’une autre croyance Ce sont les Christ inférieurs des obscures espérances

Adieu Adieu

Soleil cou coupé

Guillaume Apollinaire, Alcools, 1913

232 Crépuscule

À Mademoiselle Marie Laurencin.

Frôlée par les ombres des morts Sur l’herbe où le jour s’exténue L’arlequine s’est mise nue Et dans l’étang mire son corps

Un charlatan crépusculaire Vante les tours que l’on va faire Le ciel sans teinte est constellé D’astres pâles comme du lait

Sur les tréteaux l’arlequin blême Salue d’abord les spectateurs Des sorciers venus de Bohême Quelques fées et les enchanteurs

Ayant décroché une étoile Il la manie à bras tendu Tandis que des pieds un pendu Sonne en mesure les cymbales

L’aveugle berce un bel enfant La biche passe avec ses faons Le nain regarde d’un air triste Grandir l’arlequin trismégiste

Guillaume Apollinaire, Alcools, 1913

233 Les saltimbanques

Dans la plaine les baladins S’éloignent au long des jardins Devant l’huis des auberges grises Par les villages sans églises.

Et les enfants s’en vont devant Les autres suivent en rêvant Chaque arbre fruitier se résigne Quand de très loin ils lui font signe.

Ils ont des poids ronds ou carrés Des tambours, des cerceaux dorés L’ours et le singe, animaux sages Quêtent des sous sur leur passage.

Guillaume Apollinaire, Alcools, 1913

234 À travers l’Europe A M. Ch.

Rotsoge Ton visage écarlate ton biplan transformable en hydroplan Ta maison ronde où il nage un hareng saur Il me faut la clef des paupières Heureusement que nous avons vu M Panado Et nous somme tranquille de ce côté-là Qu’est-ce que tu vois mon vieux M.D… 90 ou 324 un homme en l’air un veau qui regarde à travers le ventre de sa mère

J’ai cherché longtemps sur les routes Tant d’yeux sont clos au bord des routes Le vent fait pleurer les saussaies Ouvre ouvre ouvre ouvre ouvre Regarde mais regarde donc Le vieux se lave les pieds dans la cuvette Una volta ho inteso dire chè vuoi je me mis à pleurer en me souvenant de vos enfances

Et toi tu me montres un violet épouvantable Ce petit tableau où il y a une voiture m’a rappelé le jour Un jour fait de morceaux mauves jaunes bleus verts et rouges Où je m’en allais à la campagne avec une charmante cheminée tenant sa chienne en laisse Il n’y en a plus tu n’as plus ton petit mirliton La cheminée fume loin de moi des cigarettes russes La chienne aboie contre les lilas La veilleuse est consumée Sur la robe on chu des pétales Deux anneaux près des sandales Au soleil se sont allumés Mais tes cheveux sont le trolley À travers l’Europe vêtue de petits feux multicolores

Guillaume Apollinaire, Ondes, Calligrammes 1918

235

BIBLIOGRAFIA

236 BIBLIOGRAFIA DE APOLLINAIRE

APOLLINAIRE, Guillaume. Alcools. Introduction - Didier Alexandre. Paris: Les Classiques de Poche, 2014. APOLLINAIRE, Guillaume. Chroniques d'Art 1902-19018. Textes réunis avec préface et notes par L.C. Breunig. Paris: Gallimard, 1960. ______. Le Flâneur des deux rives suivi de Contemporains pittoresques. Paris: Gallimard, 1975. ______. Journal Intime. Limoges: Éditions du Limon, 1991. ______. Le Guetteur Mélancolique. Pairs: Gallimard, 1952. ______. Méditations esthétiques. Les peintres cubistes. Paris: Hermann, 1965. ______. Œuvres en prose complètes. Paris: Gallimard, Bibliotèque de la Pléiade, 1993. 3 vol. ______. Œuvres poétiques. Paris: Gallimard, Bibliotèque de la Pléiade, 1994. ______. Tendre Comme le Souvenir. Paris: Gallimard, 1952.

CORRESPONDÊNCIA DE APOLLINAIRE:

Correspondance avec les artistes (1903-1918). Édition établie par L. Campa et P. Read. Paris: Gallimard, 2009. MARTIN-SCHMETS, Victor. Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Tome 1. En guise d’introduction 1891-1914. Paris : Honoré-Champion, 2015. MARTIN-SCHMETS, Victor. Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Tome 2/*-** 1915. Paris : Honoré-Champion, 2015. MARTIN-SCHMETS, Victor. Guillaume Apollinaire. Correspondance Générale. Tome 3/*-** 1916-1918. Paris : Honoré-Champion, 2015. Correspondance Guillaume Apollinaire - Paul Guillaume. Pairs: Gallimard/Musée de l'Orangerie, 2016. Correspondance Jean Cocteau – Guillaume Apollinaire, présentée par Pierre Caizergues et Michel Décaudin. Éd. Jean-Michel Place, 1991. Correspondance Jules Romains-Guillaume Apollinaire. Paris: Jean-Michel Place, 1994 Correspondance: Picasso, Apollinaire. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1992.

237 BIBLIOGRAFIA SOBRE APOLLINAIRE:

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