Revista Crítica de Ciências Sociais

117 | 2018 Número semitemático

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/rccs/8052 DOI: 10.4000/rccs.8052 ISSN: 2182-7435

Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa Data de publição: 1 dezembro 2018 ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica Revista Crítica de Ciências Sociais, 117 | 2018, « Número semitemático » [Online], posto online no dia 03 dezembro 2018, consultado o 29 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/rccs/8052 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.8052

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SUMÁRIO

Artigos

Mudanças e andanças em nome do combate à criminalidade e da defesa da sociedade Maria Manuela Magalhães e Ana Paula Guimarães

“Temporalidades emaranhadas”: desafios metodológicos da dinâmica dos protestos em rede de 2013 no Brasil Regina Helena Alves da Silva e Paula Ziviani

A violência no namoro em casais do mesmo sexo: discursos de homens gays Rita Elísio, Sofia Neves e Rita Paulos

Crítica da razão populista Gonçalo Marcelo

Dossier "Participação pública nos sistemas de saúde"

Participação pública nos sistemas de saúde. Uma introdução Mauro Serapioni

Avanços e desafios da participação institucionalizada no sistema de saúde do Brasil José Patrício Bispo Júnior

El modelo de participación ciudadana en salud en Puertollano (España): más allá de la voluntad política y del empoderamiento ciudadano Marta Aguilar Gil e José María Bleda García

Citizen Engagement and the Challenge of Democratizing Health: An Italian Case Study Silvia Cervia

Participação pública na saúde: das ideias à ação em Portugal Sofia Crisóstomo e Margarida Santos

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Artigos

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Mudanças e andanças em nome do combate à criminalidade e da defesa da sociedade* Changes and Wanderings in the Fight against Criminality and in Defense of Society Changements et errances au nom de la lutte contre la criminalité et de la défense de la société

Maria Manuela Magalhães e Ana Paula Guimarães

NOTA DO EDITOR

Revisto por Sofia Silva Artigo recebido a 24.03.2017 Aprovado para publicação a 22.02.2018

Introdução

1 A incumbência do Estado de administrar de forma eficaz a justiça penal prende-se, do ponto de vista material, com a questão das garantias constitucionais do arguido. Neste domínio, existem pretensões de celeridade, de eficácia e de infalibilidade que acabam por ser concretizadas à custa do sacrifício de garantias de defesa do arguido. O modelo processual penal português vinha sendo conhecido por ser um bom exemplo de valorização da pessoa enquanto tal e de um processo penal cujos canais condutores assentam na ideia e na materialização de uma República “baseada na dignidade da pessoa humana”, conforme decorre dos artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o que constitui o fundamento último e o limite da intervenção estatal. Todavia, a legislação, em algumas das suas alterações, revela uma mudança de paradigma, segundo o qual o arguido sai mais fragilizado perante a envergadura dos

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meios e das instâncias formais de controlo, resultado da necessidade de o Estado dar uma resposta pronta às preocupações comunitárias de segurança e tranquilidade, na linha do designado populismo penal.1 Esta via assume-se como o modo adequado para dar forma às pretensões justicialistas e punitivistas que, de resto, se alastram, em maior ou menor escala, em outros ordenamentos jurídicos e que vão colhendo cada vez mais adeptos. Apreciamos aqui dois aspectos do processo penal português que foram atingidos por esta tendência, revelando uma tensão dialéctica na sociedade e dentro do sistema processual penal quando observada à luz dos direitos fundamentais.

1. Sobre a questão das declarações do arguido

2 Uma das consequências imediatas da adopção de posturas securitárias e punitivistas – bem sabemos que em nome do alegado bem comum, da paz social e do bem-estar societário – é o inevitável abreviamento da distância entre o indivíduo enquanto sujeito do processo e o indivíduo enquanto objecto do processo. Tal atitude tende a transformar o arguido em mero objecto do processo, em relação ao qual o Estado pode tudo – ou quase tudo – para descobrir a verdade e para punir.

3 É verdade que o Estado tem a missão de assegurar os direitos e garantias fundamentais dos seus cidadãos, designada constitucionalmente, no artigo 9.º, alínea b, como uma das suas tarefas essenciais. Também não é menos verdade que a prova por declarações do arguido há muito que vem sendo um instrumento de defesa deste. É o que resulta das normas constantes dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.º 1, da CRP e de alguns preceitos do Código de Processo Penal (CPP), entre os quais se contam os artigos 61.º, n.º 1; 140.º, n.º 3; 343.º, n.º 1; 344.º e 347.º, n.º 1. Com efeito, o meio de defesa “declarações do arguido” – prerrogativa que resulta do direito a ser ouvido no processo sobre os factos que lhe são imputados – destina-se a ser utilizado quando o arguido o pretenda, caso assim queira e na exacta medida em que o deseje.2 Vejamos a sua razão de ser: o princípio da jurisdicionalidade reserva para os tribunais a exclusividade da aplicação das sanções criminais em decorrência de um processo penal de estrutura basicamente acusatória, garantia assegurada constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 5; havendo diferenciação entre a entidade que investiga e aquela que julga, a incorporação do princípio da investigação da verdade material – embora limitado pela definição do objecto processual – prescreve ao julgador o dever de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º 1 do CPP). Por outro lado, para decidir, o tribunal não pode atender a outras provas que não sejam as que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento; de acordo com o artigo 355.º “não valem em julgamento, nomeadamente para efeito de formação de convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.

4 Todavia, a Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, que introduziu algumas alterações ao CPP, ampliou o espaço de permissão da leitura das declarações do arguido na fase de julgamento, de modo a aceitá-las mesmo que nesta fase o arguido decida remeter-se ao silêncio. Passamos a explicar. O sistema processual penal veda, por princípio, em fase de julgamento, o recurso a provas obtidas em fases processuais anteriores. Havia, contudo, justificadas excepções previstas no artigo 357.º do CPP: a leitura das declarações do arguido, prestadas em fases precedentes, só tinha lugar por sua expressa solicitação, independentemente da entidade perante a qual tivessem sido prestadas, ou,

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se tivessem sido feitas perante um juiz, quando houvesse contradições ou discrepâncias entre o que por ele fosse afirmado em sede de julgamento e o que tivesse sido dito anteriormente. Nestes termos, na fase de julgamento, as declarações confessórias ou outras que o arguido tivesse prestado não poderiam ser lidas caso este usasse o seu direito ao silêncio. Por conseguinte, essas declarações não constituíam elemento de prova na fase processual do julgamento. Esta era a interpretação dada ao disposto no artigo 357.º, n.º 1, alínea b, a contrario,3 do CPP. De resto, só assim poderia ser pois que as discrepâncias ou contradições nas declarações do arguido só se verificariam se este resolvesse apresentar o seu depoimento invocando as suas razões de facto ou de Direito, de modo divergente ou contrário ao que tivesse alegado em fase processual anterior.

5 Esta norma, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, foi alterada e encaminha-nos para uma outra alteração legislativa efectuada também no artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP, relativo ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Agora, em sede do mesmo, o juiz, entre outros esclarecimentos, deverá informar o arguido “de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova”. Por sua vez, a alínea b do n.º 1 do artigo 357.º dispõe que “a reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º”.

6 Da conjugação dos dois preceitos resulta que a leitura permitida de declarações do arguido nos termos previstos passa a ser mais um elemento de prova a ter em conta no julgamento. Para tanto, basta que as declarações tenham sido prestadas perante uma autoridade judiciária – juiz, juiz de instrução ou Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência (conforme o artigo 1.º, alínea b, do CPP) – com assistência de defensor e precedidas do aviso ao arguido de que estas podem vir a ser utilizadas contra si no processo. Trata-se de uma aproximação ao “tudo o que disser pode ser usado contra si” do Direito norte- americano por efeito das conhecidas Miranda Warnings ou Miranda Rules,4 que vieram ampliar o privilege against self-incrimination a outras fases processuais, não se limitando ao julgamento, onde a prerrogativa já era perfilhada. As declarações do arguido, em consequência da alteração legislativa, podem vir a ser utilizadas em audiência de discussão e julgamento, ainda que o arguido venha a fazer uso do seu inalienável direito ao silêncio ou mesmo que seja julgado na ausência.

7 A mudança operada não veio trazer vantagens ao arguido, pelo contrário, estreitou o plano da sua defesa no que concerne ao meio de prova por declarações. Tal representa um recuo nos direitos do arguido que facilita e agiliza a descoberta da verdade em troca da diminuição de garantias processuais no âmbito do direito à defesa – o que, na prática, tem vindo a resultar, em especial nos processos mais complexos, no uso mais frequente e cauteloso do direito ao silêncio por parte do arguido.

8 São as garantias jurídico-constitucionais inerentes ao estatuto do arguido – princípio da presunção da inocência e direito a um processo justo e equitativo, respectivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4, da CRP – que concretizam, materializam e realizam a tipologia das relações entre o Estado, detentor do ius puniendi, e o indivíduo.

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Deste modo, e segundo parte relevante da doutrina, é o privilégio de não auto- incriminação ou nemo tenetur se ipsum accusare portador de um fundamento processualista (Dias et al., 2009: 41-42) cujo principal corolário se traduz na proibição da procura da verdade à custa das declarações do arguido. Independentemente de se partilhar a concepção minimalista ou maximalista do direito à não auto-incriminação, existe um espaço comum em ambas no que concerne à prova declaratória: o direito do arguido à não prestação de declarações incriminatórias ou à não resposta a perguntas feitas, seja por que autoridade for, sobre os factos imputados. Por isso, o arguido não presta juramento em caso algum e o seu silêncio não o pode prejudicar, nem o fará incorrer na prática do de desobediência previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b, do Código Penal.

9 Não deixamos de ressalvar que, ainda assim, o legislador empregou algum cuidado ao colocar uma reserva de não confissão dos factos, no n.º 2 do artigo 357.º do CPP: as declarações anteriormente prestadas pelo arguido, reproduzidas ou lidas em audiência, não equivalerão a confissão dos factos nos termos e para os efeitos previstos no artigo 344.º do CPP (norma que explana os casos e as condições de admissibilidade da confissão dos factos pelo arguido).5

10 Por outro lado, a alteração legislativa em causa não é facilmente compreensível em face do direito do arguido a não responder às perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar. O artigo 343.º do CPP prevê que o “presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que, no entanto, a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo”.

11 Portanto, até à modificação legislativa, se o arguido optasse pelo silêncio, o valor probatório deste era irrelevante, logo não podia ser levado em conta para efeito da formulação da convicção do julgador. Do silêncio do arguido não se poderia extrair nenhum resultado processual, nada a não ser o seu silêncio, nem mais, nem menos. O direito ao silêncio e o privilégio denãoauto-incriminação6sãoverdadeiras ampliaçõesdo direito de defesa do arguido e evidentes limites ao apuramento da verdade.7 Em sede de matéria jurídico-criminal, “na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual” (Andrade, 2006: 121-122), o que impõe limites ao poder legislativo num Estado de Direito democrático: a estrita observância das normas constitucionais e dos princípios fundantes do processo penal.8 Assim, mesmo que o arguido decida usar o direito ao silêncio, as suas declarações prestadas em fases anteriores podem ser lidas em audiência de julgamento, bem como se o arguido for julgado na ausência.

12 O legislador justificou a sua nova opção na exposição de motivos: “a quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça”.9 Ora, a razão em que assentou esta escolha prendeu-se com o que o legislador entendeu ser a necessidade de dar resposta pública e pronta às dúvidas, aos anseios e às inquietações da população que não entende os problemas da justiça criminal, a morosi- dade da máquina judiciária e os abundantes resultados de arquivamento ou de absolvições. As preocupações relativas à impunidade dos factos criminosos e à intolerância dos cidadãos relativamente a este estado de coisas, já tinham sido referenciadas no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945, que

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reformulou alguns princípios básicos do processo penal contidos no Código de Processo Penal de 1929: […] será certamente causa de inquietação a circunstância de cerca de um terço dos praticados no País não serem objecto de julgamento, em grande parte, por insuficiência da instrução processual. Há sectores importantes da actividade delituosa em que a impunidade é a regra. Algo sem dúvida funciona mal. Uma sociedade não pode, sem perigo, consentir longamente na violação assídua das regras fundamentais em que assenta a sua existência e ordenado funcionamento, como os cidadãos não podem permanecer continuadamente à mercê da pertinaz agressão à sua esfera jurídica.10

13 Verificamos, pois, que o legislador assumiu como ponto de partida a necessidade de dar satisfação pública às reclamações da comunidade, viu como indispensável dissipar o desassossego respeitante ao modus procedendi no seio da realização da justiça penal imprimindo mais vigor, mais dureza e mais firmeza ao processo penal. Mas, como contraponto, retorce o ponto de chegada do processo penal: a referência do Homem portador de direitos inalienáveis que fazem dele um sujeito processual. Assistimos a um movimento de sobreposição do interesse colectivo em detrimento do homem enquanto indivíduo.

14 A modificação legislativa em apreço teve como intencionalidade normativa a mera eficácia. A eficácia na descoberta da verdade, no julgamento e no sancionamento, em jeito de reconduzir o sujeito processual arguido à expressão redutora de objecto processual. Trata-se de uma cedência não compatível com a inteligibilidade dos princípios processuais-penais oriundos dos direitos fundamentais e com assento constitucional. Com efeito, a mudança legislativa operada teve o desígnio de aproveitar o mais possível as declarações do arguido, prestadas antes do julgamento, perante uma autoridade judiciária e na presença de um defensor, com a advertência de que virão a ser utilizadas posteriormente. Sucede que, ao arguido, quando formalmente investido deste estatuto, é conferido um concreto conteúdo material de defesa cuja formulação compreende o direito de “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar” (artigo 61.º, n.º 1, alínea d, do CPP), ao que acresce um vasto conjunto de direitos que formam uma unidade de sentido na definição do seu status processualis.

15 Assumindo as declarações do arguido um meio da sua defesa, o condicionalismo factual, temporal e até espacial em que este decide prestá-las vai-se modificando, à medida que o processo se desenvolve, dado o processo criminal ter uma dinâmica evolutiva em busca dos indícios suficientes que sustentarão, no final, a acusação. Ora, o que o arguido possa resolver dizer sobre os factos que lhe são imputados num dado momento processual, por exemplo, quando confrontado com uma certa quantidade e/ou um determinado tipo de provas carreadas pelo Ministério Público, poderá não ser o mesmo que queira ou possa dizer em sede de audiência de julgamento, num momento em que o objecto do processo está definido, em face da dinâmica natural e da progressão do próprio processo penal. Como se sabe, o procedimento criminal vai-se desenvolvendo e solidificando desde o momento da aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público. Não é, nem pode ser, um procedimento estático.

16 Desde a abertura do inquérito, este órgão vai carreando para o processo elementos de prova que, caso os indícios recolhidos se revelem suficientes, darão lugar a um despacho de acusação no qual se define e delimita o objecto do processo. Naturalmente, o arguido irá defender-se da acusação proferida tal como ela está elaborada, caso

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queira, pois que sobre ele não recai nenhum ónus de impugnação ou de prova.11 Ora, os elementos de prova conducentes ao apuramento da verdade sobre a prática do crime, de quem o cometeu e a sua responsabilidade não se encontram todos reunidos logo no início, vão-se coligindo continuamente, à medida que o procedimento progride e avança. Pode suceder que, no momento em que o arguido presta as suas declarações, ainda não estejam reunidos todos os meios de prova a recolher pelo Ministério Público. Basta, para tanto, que até aí tenham sido recolhidos elementos probatórios indicativos da suspeita fundada da prática de crime (artigo 58.º, n.º 1, alínea a, do CPP). Donde resulta que, decidindo o arguido prestar declarações, mesmo sendo advertido de que o conteúdo destas poderá ser usado contra si ulteriormente, fá-lo-á nos exactos termos adaptados aos ditos elementos de prova até então adquiridos e de que teve conhecimento no momento em que presta as declarações. Quando, mais tarde, na fase de audiência de discussão e julgamento, as suas declarações vierem a ser lidas, poderão vir a apresentar-se como desajustadas temporalmente, não se olvidando que faz parte da estratégia processual a escolha entre exercer – ou não – o direito ao silêncio. Não esqueçamos que existe um hiato de tempo, maior ou menor consoante a complexidade do processo, entre o momento do inquérito e o do julgamento. E são as declarações anteriormente prestadas pelo arguido que vão ser levadas em conta para efeito de formação da convicção do julgador.

17 Na fase do julgamento, com grande probabilidade, existem mais alguns elementos de prova que integram o processo, os quais por sua vez, poderiam ter determinado, com alguma margem de segurança, outro tipo de declarações, com diferente teor, com diverso sentido, ou porventura, até a sua omissão. A vinculação ao que tenha dito anteriormente pode prejudicar a sua estratégia de contraditar, ou pelo menos, condicioná-la em determinado sentido, o que acaba por diminuir ou limitar o carácter de meio de defesa das declarações, metamorfoseando-as em simples meio de prova.12

18 O valor do silêncio do arguido sai daqui diminuído, o que constitui motivo de apreensão, dada a sua específica característica inerente a um processo penal respeitador dos direitos fundamentais: é um meio de defesa do arguido. Permitindo o CPP, como permite, na fase do julgamento, a leitura ou reprodução das declarações do arguido tomadas em fase processual anterior, mesmo que agora este não se disponha a prestar declarações ou seja julgado na ausência, sujeitando-as ao princípio da livre apreciação da prova, está a encarar as declarações com uma outra faceta – a de meio de prova – a postergar o garantido direito ao silêncio. De tal forma que, na fase de audiência de discussão e julgamento, pode suceder que o arguido, que decida usar o seu direito ao silêncio, se veja confrangido na posição de mero observador e simples ouvidor da leitura das suas declarações anteriores. O arguido, de facto, é desapossado de uma parte do seu direito ao silêncio quando o Tribunal usa as declarações prestadas anteriormente, não podendo impedir a sua leitura, não obstante essas declarações poderem apresentar-se, no momento concreto, incompatíveis com a sua estratégia de defesa.

19 O contra-argumento que acentua a lealdade do Estado para com o arguido, que antes do julgamento renuncia ao direito ao silêncio, informando-o das consequências, não nos parece bastante (artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP). A advertência em causa, sendo nota de uma franqueza erguida nas relações Estado/arguido – a lealdade emergente do cumprimento dos deveres de informação por parte do Estado, de que nos fala Paulo Dá Mesquita (2014: 152) – não deixa de não levar em consideração a (quase) inevitável

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variabilidade do conteúdo das declarações, conforme o momento processual em que são prestadas: as declarações de hoje, num certo contexto, com um determinado acervo de provas, poderão não ser as de amanhã, aquando da ou após a definição do objecto do processo. Chamamos aqui à colação a “fundamental unidade do estatuto jurídico do arguido” de que nos dá conta Jorge de Figueiredo Dias (2004: 443),13 alinhada com as garantias jusconstitucionais de defesa no processo penal, proclamadas no artigo 32.º, n.º 1, e com a garantia do princípio da proporcionalidade, plasmado no artigo 18.º, n.º 2.

20 A presença obrigatória de defensor impõe que a defesa proporcionada ao arguido, além de técnica, seja efectiva do ponto de vista material. Neste aspecto, podem vislumbrar-se algumas dificuldades práticas, em especial, no que concerne às defesas oficiosas, uma vez que o acompanhamento no primeiro interrogatório implica que o defensor esteja, desde logo, munido de um profundo conhecimento dos factos imputados ao arguido e que também tenha tido oportunidade de delinear uma estratégia de defesa consentânea com o uso ou o não uso futuro das declarações prestadas pelo arguido nesse momento. Esta dificuldade, bem como o fundado receio de o arguido ficar vinculado ao que disser, dá lugar ao uso do direito ao silêncio não por opção primária da defesa, em virtude da natureza e das razões subjacentes à sua estratégia, mas por razões de índole prática. A solução que conduz à adopção do direito ao silêncio como forma de obviar às consequências futuras da utilização das declarações então prestadas, como se se tratasse de um “remédio para males futuros”, desvirtua o conteúdo do direito ao silêncio como forma passiva de defesa processual primária e estratégia deliberadamente eleita pelo arguido e pelo seu defensor. Entendemos o silêncio adoptado pelo arguido exclusivamente com a finalidade de evitar o uso futuro do conteúdo das suas declarações como uma forma de silêncio forçado ou forçoso por via indirecta.

21 Por outro lado, o requisito de tais declarações deverem ser prestadas perante autoridade judiciária, sendo irrefutavelmente relevante, não invalida a barreira, atrás já referida, que acaba por ser colocada à liberdade da vontade do arguido na escolha ou não do silêncio como sua arma de defesa. Vejamos: quando um arguido detido acaba de ser confrontado com factos que lhe são imputados, as suas declarações reflectem, muitas vezes, estados de alma, sentimentos de raiva, angústia e impulsos dirigidos ao próprio sistema judicial ou ao queixoso, caso existam. O arguido está colocado num quadro de circunstâncias únicas e irrepetíveis, que enformam as suas declarações, podendo dizer mais do que aquilo que pretendia, podendo omitir ou introduzir elementos de que depois se venha a arrepender. Inevitavelmente, a tramitação processual ao longo do tempo, a par da alteração do estado de espírito inicial do arguido, vão trazer-lhe a percepção de novas circunstâncias de facto e de Direito e vão permitir-lhe uma “outra” leitura do processo. Daí que a “importação” das suas declarações para a audiência de julgamento possa constituir meio de prova desligado do todo circunstancial que o arguido é. Invocamos uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa14 segundo a qual entre as várias concretizações do processo equitativo resulta, desde logo pela própria designação (aqui na sua expressão em língua inglesa: fair hearing), que a resolução do pleito só possa ser levada a cabo por alguém que tenha acesso ao que foi exposto pelas partes; o que, no caso da fixação da matéria de facto, significa alguém que tem acesso directo a todas as provas (ou seja, tal como elas foram produzidas perante o tribunal, sem qualquer mediação pessoal ou tecnológica).

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22 Pensamos que este Acórdão, embora tenha sido proferido em matéria cível, tem aqui, no que respeita ao entendimento de processo equitativo, inteira aplicabilidade. Com efeito, sobre as declarações prestadas pelo arguido antes do julgamento, ainda que perante autoridade judiciária, o julgador não chega a ter o conhecimento directo das circunstâncias em que estas foram prestadas, não presenciou, não viveu a paixão, a “verdade”, a intensidade, a energia das palavras do arguido, nem a sua linguagem comportamental. Mesmo que utilizados meios de registo audiovisual, há sempre pormenores da realidade do momento que se perdem. Por isso, consideramos a conclusão do citado Acórdão pertinente nesta sede.

23 Um outro aspecto a considerar tem especial atinência com a possibilidade da reprodução e leitura das declarações prestadas antes do julgamento, mesmo que o arguido seja julgado na ausência (artigo 141.º, n.º 4, alínea b, do CPP).

24 Da articulação de vários preceitos do CPP, relativos às regras gerais sobre notificações (artigo 113.º), em particular da definição dos termos da notificação para a morada indicada pelo arguido no termo de identidade e residência (artigo 196.º, n.º 2 e 3, alínea c), combinadas com a norma relativa à notificação do despacho que designa dia para a audiência de discussão e julgamento (artigo 313.º, n.º 3) e com a norma sobre o julgamento na ausência do arguido (artigo 333.º, em especial, os n.os 2 e 3) conclui-se que, caso o arguido tenha alterado a morada indicada aquando da prestação do seu termo de identidade e residência, nos termos do n.º 2 do artigo 196.º do CPP, ou se tenha ausentado, e não tendo comunicado nos autos esta mudança, fica legitimada a realização da audiência na sua ausência, ficando assegurada a sua representação por defensor (artigo 334.º, n.º 4), tenha ou não tido de facto conhecimento da data do julgamento. É consequência da violação da obrigação de comunicação de alteração de morada: presunção inilidível de notificação efectuada por via postal simples para a morada conhecida nos autos e por si fornecida. Todavia, a notificação por via postal simples não é sinónimo de que o arguido tenha sido real e devidamente informado da data do julgamento. Por outro lado, não deixou o legislador de, no n.º 10 do artigo 113.º, considerar a audiência de julgamento um acto de fulcral importância, exigindo que a notificação da designação de dia para julgamento seja efectuada não só ao defensor ou advogado, como também ao próprio arguido, justamente para dar efectividade às garantias de defesa deste em sede de julgamento.

25 Deste cenário resulta que, caso a audiência de julgamento seja realizada sem a presença do arguido, nos termos acima apresentados, e este tenha anteriormente prestado declarações, o arguido perderá a oportunidade de esclarecer o seu conteúdo, sentido e alcance, de as clarificar, ou de expor a sua versão mais completa dos factos. Na verdade, o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, com excepção dos que forem reservados pessoalmente a este. E a prova por declarações é um destes casos, que só pelo arguido pode ser prestada. Deste modo, a utilização das declarações anteriormente prestadas consubstancia um meio de prova, mas já não um verdadeiro meio de defesa nesta fase processual que o arguido sempre poderia aproveitar, no âmbito do direito à sua defesa plena.

26 Nesta matéria é de considerar a Directiva (UE) 2016/343, do Parlamento Europeu e do Conselho.15 O artigo 8.º, n.º 2, vem impor exigências à realização do julgamento na ausência do arguido, a saber: “a) o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou b) o suspeito ou

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o arguido tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado”.

27 A não ser que exista prova de que o arguido tenha tido conhecimento efectivo da data do julgamento, a realização deste na sua ausência, com base na notificação através de via postal simples na morada indicada no termo de identidade e residência, não preenche os requisitos do artigo 8.º, n.º 2, da Directiva. A violação das condições enumeradas no artigo 8.º confere ao arguido direito a um novo julgamento ou a outras vias de recurso que admitam a reapreciação do mérito da causa, compreendendo a possibilidade de apresentação de novas provas com vista à obtenção de uma decisão diferente da inicial (n.º 4 do artigo 8.º e artigo 9.º).16 A partir de 1 de Abril de 2018 – data limite da transposição da mencionada Directiva17 – a realização de audiência de discussão e julgamento na ausência do arguido só será admissível quando este tenha renunciado de forma voluntária, séria, consciente, inequívoca e informada ao seu direito a estar presente. É a consagração do direito a estar presente em audiência de julgamento como um dos inalienáveis direitos do arguido, com a face de um direito de defesa, que opera ao nível declaratório.

28 Não contestamos o papel do Ministério Público que, em representação do Estado, tem, entre outras atribuições, a direcção do inquérito, a dedução da acusação e o dever de sustentar em julgamento (artigo 53.º, n.º 2, alíneas b e c, do CPP). O que aqui tentámos demonstrar foi que a consecução do referenciado propósito, bem como a tarefa da descoberta da verdade, tem limites, não nos parecendo proporcional com a amplitude material do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

2. Sobre o julgamento em processo sumário

29 O artigo 381.º do CPP admitia o julgamento em processo sumário, da competência de tribunal singular, dos detidos em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de máximo não superior a cinco anos (mesmo em caso de concurso de infracções), desde que a detenção tivesse sido efectuada por autoridade judiciária ou entidade policial, ou caso a detenção tivesse sido efectivada por outra pessoa, contanto que o detido fosse entregue no prazo máximo de duas horas às autoridades ou entidades referenciadas, tendo havido redacção do correspondente auto sumário da entrega. O julgamento nesta forma de processo podia ainda ter lugar relativamente aos detidos em flagrante delito por crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (mesmo em caso de concurso de infracções), quando o Ministério Público entendesse, na acusação, que em concreto não deveria ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.

30 Movido por necessidade de imprimir rapidez aos julgamentos, o legislador veio indicar – na exposição de motivos – a necessidade de alterar este normativo com a oportunidade de gerar uma justiça célere que contribui para o sentimento de justiça e o apaziguamento social. […] Contudo, não existem razões válidas para que o processo não possa seguir a forma sumária relativamente a quase todos os arguidos detidos em flagrante delito, já que a medida da pena aplicável não é, só por si, excludente desta forma de processo.18

31 E assim se materializou esta pretensão. A Lei n.º 20/2013, de 1 de Fevereiro, veio justamente consagrar a possibilidade de julgar em processo sumário todos os detidos

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em flagrante delito, independentemente da moldura penal do crime imputado, desde que à detenção tenham procedido as entidades indicadas na predecessora redacção do artigo 381.º. Com poucas ressalvas: a) criminalidade altamente organizada; b) crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal; c) crimes contra a segurança do Estado; d) crimes previstos na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.

32 Sendo o processo sumário um processo mais breve que o processo comum – quer no que respeita aos prazos, quer no que concerne à defesa e utilização dos meios de prova, quer no que se refere às formalidades e aos ritualismos processuais – apresenta uma expressiva redução das garantias do arguido. Assim é, nomeadamente, quanto às suas garantias de defesa. Basta atentar na própria estrutura não colegial do tribunal competente,19 no facto de a audiência de julgamento ter de se iniciar no prazo máximo de 48 horas após a detenção, embora haja a possibilidade de adiamento até ao limite máximo de 20 dias após a detenção, se o arguido requerer prazo para preparação da defesa ou se o Ministério Público considerar necessária a realização de diligências imprescindíveis à descoberta da verdade. Um outro óbice à plenitude das suas garantias de defesa consiste na limitação do direito ao recurso; com efeito, só é admissível recurso da sentença ou despacho que ponha termo ao processo e, por mais grave que seja a pena aplicada em concreto, não caberá recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição determina que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido” que compreende necessariamente o direito a colocar em crise a decisão judicial.20

33 De resto, não se vê como dois arguidos, a quem sejam imputados factos idênticos, de significativa gravidade, puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, cuja prova pode ser da maior complexidade, possam gozar de diferentes níveis de garantias, um por ser julgado em tribunal colectivo e o outro em tribunal singular, apenas por virtude da detenção em flagrante delito.

34 As críticas à nova redacção do artigo 381.º do CPP soaram de diversos quadrantes, repetidamente, e sempre acentuando a questão particular da redução significativa das garantias processuais do arguido. Depois de a norma em causa ter sido considerada materialmente inconstitucional por meio do Acórdão n.º 428/2013 e das Decisões Sumárias n.os 587/2013, 589/2013, 590/2013, 614/2013 e 637/2013 no âmbito da fiscalização concreta, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu a apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 381.º, n.º 1, do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro.

35 Nesta sequência, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 174/201421 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em apreço. Escreveram os Senhores Conselheiros: Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32.º,n.º2,da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável.22

36 Todavia, a decisão não foi unânime pois que a Senhora Conselheira Maria João Antunes, em voto de vencido, entendeu: No plano do direito constitucional não decorre um qualquer critério de atribuição de competência ao tribunal singular, ao tribunal coletivo ou ao tribunal de júri,

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decorrendo somente do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição que ojúri intervémno julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade alta mente organizada.23

37 Não obstante no processo sumário estar salvaguardado o respeito pelos princípios gerais fundamentais do processo em matéria probatória – como o da legalidade das provas e o da proibição da valoração de provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento – as suas especificidades, em nome da celeridade e da simplificação processual, levaram-nos a problematizar o juízo de adequação constitucional entre a celeridade da justiça24 e as exigências da defesa, com os prazos encurtados e a simplificação das formalidades característicos do processo sumário. Na base da referida alteração legislativa de 2013 esteve a intencionalidade normativa e argumentativa de promoção do tipo de justiça penal populista de índole securitária.

3. Incoerências e discordâncias

38 O combate ao crime é uma causa que não merece censura, pelo contrário, é definitivamente necessária e indispensável ao livre desenvolvimento ético da pessoa num Estado de Direito democrático e é uma das tarefas fundamentais do Estado elencadas no artigo 9.º, alínea b, da Constituição. Por outro lado, o direito de defesa integra o direito a um processo justo e equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

39 Como referido anteriormente, o modelo de processo penal português vinha sendo conhecido por ser bom exemplo ao nível da concretização da dignidade da pessoa, modeladora do poder punitivo, do limite da intervenção dos competentes órgãos na busca da verdade material e da aplicação do Direito Penal.

40 O princípio da equitatividade (due process) constitucionalmente garantido exige a configuração de “um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. […] O significado básico da exigência de um processo equitativo é do da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva”.25

41 A actual realidade normativa jurídico-processual representa a ilusão de que o Estado faz tudo o que estiver ao seu alcance e no âmbito das suas possibilidades técnico- legislativas para descobrir a verdade, a fim de punir eficazmente os culpados, tendo por base a interpretação de que essa é a vontade da população em geral. Dá a entender à comunidade que é empenhado e diligente. Passa a visão de promoção razoavelmente ajustada do direito de defesa do arguido quando efectivamente o relega para um lugar secundário e julga em processo sumário, com diminuídas garantias, os detidos em flagrante delito – qualquer que seja a gravidade do crime e independentemente da moldura penal prevista em abstracto. O arguido aparece, pelo menos em certa medida, servo do processo, o que representa uma patente incoerência e discordância entre a lei infraconstitucional e a Lei Fundamental.

42 O posicionamento do legislador deixa latente o conflito entre as finalidades da promoção da justiça criminal e o respeito pelos direitos jusconstitucionais do arguido, problema de base de todo o processo penal. É e será a matéria e a substância do

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legislado que confere legitimação ao poder legislativo, dado que legitimidade já a tem a partir do poder representativo que lhe é conferido pelo povo através do processo eleitoral. O valor da segurança, a indispensabilidade da manutenção e preservação da ordem pública e a necessidade de combater a criminalidade não são justificação imediata para a supressão do conteúdo essencial dos direitos fundamentais do arguido, desde logo por desintegrar o modelo processual penal vigente com os princípios constitucionais que o informam, introduzindo incoerências a nível sistémico.

43 Na senda do securitarismo, lembramos algumas medidas da era da administração do Presidente George W. Bush, com o USA Patriot Act de 2001, em reacção aos ataques terroristas de 11 de Setembro, em nome da união e do fortalecimento dos Estados Unidos América e do combate ao terrorismo,26 com manifesta incidência no plano da recolha de prova, visando uma perseguição criminal eficaz. Foram várias as medidas adoptadas para reforçar a segurança interna e para combater o crime: endurecimento dos procedimentos de vigilância, robustecimento da protecção das fronteiras, aprimoramento das regras relativas à imigração, passando pela faculdade de intercepção todo o tipo de comunicações e partilha de informações para fins de investigação criminal, com fragilização do direito à privacidade e à confidencialidade das comunicações, fortalecimento do combate ao branqueamento de capitais, alterações à lei de segredo bancário, agravamento das sanções penais, entre outras.

Conclusão

44 As alterações legislativas processuais penais devem coadunar-se de forma exemplar com o sistema jurídico processual penal e constitucional global vigente na sociedade, de modo a acautelar dissonâncias entre as duas ordens normativas. O legislador deve arrogar-se o comprometimento inalienável do culto da liberdade, procurando uma visão global e completa do Direito. De outro modo, na procura da ordem encontrará a desordem, na procura da paz encontrará a guerra, na procura da confiança encontrará a desconfiança. E desconfiança é um dos sentimentos dominantes da população em relação à administração da justiça em geral e, em particular, da justiça criminal. São estes alguns dos corolários do movimento punitivista e securitário. Estas são algumas das consequências, a par da “coisificação” dos sujeitos, que o Estado de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana têm de impedir, obstaculizando as concretizações de tendência securitária. O encurtamento da amplitude e extensão do direito de defesa do arguido é uma das sequelas que colide com a consistência normativa dos direitos processuais do arguido de índole constitucional27 e que toca inevitavelmente todos os cidadãos. Quando a população clama pelo tipo de justiça “custe o que custar” e quando o Estado dá guarida, na lei e na prática judiciária, a tais pretensões, quem sai lesado somos todos nós. A justiça quer-se com regras bem definidas e deixando espaço para o contraditório e a defesa, em que o sujeito é isso mesmo: sujeito e não mero objecto ao serviço de uma pretensão punitiva.

45 Trata-se de uma matéria extraordinariamente importante, justamente num contexto em que o sentir do indivíduo desagua num horizonte de expressão de sentidos opostos, causador de uma tensão dialéctica na sociedade e dentro do sistema processual penal: de um lado, a reclamação fervente da intervenção eficaz do Estado no sentido da obtenção de justiça, da célere pacificação da comunidade e do rápido restabelecimento da paz jurídica; do outro lado, a exigência da não intromissão excessiva do Estado nos

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direitos fundamentais do cidadão, da não ingerência desproporcionada nas liberdades e garantias constitucionais, cujo respeito integra o âmago do Estado de Direito. Um difícil equilíbrio que não pode ceder às tentações demagógicas da justiça populista.

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NOTAS

*. Por vontade das autoras, este artigo não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990. 1. Na perspectiva aqui analisada, o populismo na vertente top-down. Uma via política e utilitariamente utilizada, a partir da leitura e interpretação do sentir comunitário, colocada pelo Estado ao serviço de pretensões – exacerbadas – de mais segurança, de reforço do poder punitivo e da redução da criminalidade. Sobre o assunto veja-se, entre outros, Leite (2013). Realçamos o ponto de vista de Henrique Abi-Ackel Torres, segundo o qual as medidas contra a delinquência e a desordem são uma forma de o Estado reafirmar a sua soberania, de controlar o território e os seus cidadãos e “a própria vontade do Estado em demonstrar capacidade de governar” (2017: 284). 2. Veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 40/84, de 03/05/1984: “princípio da defesa é, […] não mais que a explicitação concretizada, ao nível do processo judicial sancionatório, de uma componente necessária da ‘dignidade da pessoa humana’ em que, segundo o artigo 1.º da Constituição, se baseia a República” (consultado a 15.12.2016, em http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). 3. Sobre esta questão veja-se Albuquerque (2008: 856). 4. As regras resumem-se ao seguinte: qualquer pessoa, seja na qualidade de suspeito, seja na qualidade de arguido, tem o direito de ser advertida e esclarecida dos direitos que lhe assistem, nomeadamente o de não produzir prova contra si própria e de permanecer em silêncio perante as autoridades, sejam elas judiciárias ou policiais, em qualquer fase processual, relativamente aos factos que lhe são imputados. 5. Possível nos crimes puníveis com pena de prisão não superior a cinco anos; uma confissão integral e sem reservas que o juiz se encarregará de apurar, sob pena de nulidade, se é produzida de livre vontade, determinando as seguintes consequências: renúncia, à produção da prova sendo os factos imputados dados como provados, passagem de imediato às alegações orais e à determinação da sanção aplicável (caso se não verifiquem outras circunstâncias que devam conduzir à sua absolvição) e redução da taxa de justiça em metade. 6. Sobre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, veja-se Dias et al. (2009) e, ainda, Silva (2014). 7. Sobre esta matéria reproduzimos um excerto do Acórdão n.º 95-695-1, de 05/12/1995, do Tribunal Constitucional: “o conteúdo essencial do direito de defesa, no qual se inclui o direito de ser ouvido, assenta em que o arguido deve ser considerado como ‘sujeito’ do processo e não como objecto, do que resulta o direito ao silêncio que lhe assiste – directamente relacionado com o princípio da presunção de inocência – e que só as afirmações por ele produzidas no integral respeito de decisões de sua vontade possam ser utilizadas como meio de prova”. 8. “O princípio nemo tenetur se ipsum accusare é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objecto da actividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente”, assim refere o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 340/2013, publicado no Diário da República, II Série, n.º 218, de 11 de Novembro de 2013. 9. Ponto 3 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, disponível em https:// www.oa.pt/upl/%7B9aaf8b94-84eb-4a92-a439-b56826cf4ba6%7D.pdf (consultado a 28.09.2018). Sobre este assunto pode consultar-se o “Parecer da Ordem dos Advogados sobre o projecto de proposta de lei de alteração do Código de Processo Penal”, disponível em https://portal.oa.pt/ advogados/pareceres-da-ordem/processo-legislativo/2012/parecer-da-oa-sobre-projecto-de- proposta-de-lei-que-visa-a-alteracao-do-codigo-de-processo-penal/ (consultado a 28.09.2018) e “Proposta de alteração ao Código de Processo Penal é inconstitucional”, Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 86, Janeiro 2012, p. 11. 10. No ponto 1 da parte preambular do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945.

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11. Veja-se, a título meramente exemplificativo, o artigo 315.º do CPP que concede ao arguido o prazo de 20 dias, a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, para, assim querendo, contestar e apresentar o seu rol de testemunhas. 12. De acordo com Patrício (2005: 16), “a utilização do arguido como meio de prova é sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade”. 13. O autor, após expor os três tipos de interrogatório (pelo juiz a arguidos presos, pelo Ministério Público a arguidos não presos ou presos, pelo juiz ou Presidente do Tribunal em audiência de julgamento), a propósito dos quais se debate o papel das declarações do arguido como meio de prova ou como meio de defesa, acaba por concluir “não cremos, porém, que toda esta consideração diferenciada do estatuto jurídico do arguido se imponha”, acrescentando que “em qualquer deles se torna nítido o estatuto jurídico fundamental do arguido tal como atrás o desenhámos, i. é, como estatuto próprio de um sujeito processual sempre armado com o seu ‘direito de defesa’” (Dias, 2004: 442). 14. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16/02/2016, Processo n.º 176/06.3TNLSB.L2-1, relator: Rijo Ferreira. Consultado a 16.12.2016, em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/ F2DF5C9FEEF843ED80257FDF006B80CD. 15. De 9 de Março de 2016, relativa ao reforço de certos aspectos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L 65/1, em 11.03.2016. 16. À semelhança do então artigo 380.º-A do CPP que fora introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, prevendo o recurso e novo julgamento em caso de julgamento na ausência, revogado pelo DL n.º 320-C/2000, 15 de Dezembro. 17. Que seguramente terá reflexos ao nível da positivação na lei processual penal, cujas alterações se aguardam. 18. Assim se lê no ponto 7 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 77/XII, aprovada em Conselho de Ministros, datada de 21 de Junho de 2012, disponível em https://www.oa.pt/upl/ %7B9aaf8b94-84eb-4a92-a439-b56826cf4ba6%7D.pdf, consultada a 28.09.2018. 19. O tribunal singular, pela própria estrutura, confere ao arguido menos garantias de defesa. Sendo os factos apreciados por uma só pessoa, o risco de erro aumenta; vejam-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 393/89, proferido no Processo n.º 417/88, 2.ª Secção, de 18/05/1989, e 326/90, proferido no Processo n.º 50/90, 1.ª Secção, de 13/12/1990, o primeiro disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19890393.html e o segundo disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900326.html (consultados a 20.01.2018). 20. Aquele uso que Canotilho e Moreira (2007: 516) designam como “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação”. 21. Publicado no Diário da República, n.º 51, I Série, de 13 de Março de 2014. 22. Ver Acórdão supra indicado, p. 1862. Nele se conclui: “Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição”. Consultado a 01.10.2018, em https://dre.pt/application/file/a/571825. 23. O mesmo Acórdão, na p. 1864. 24. “A questão da eficácia deve ser vista de maneira integrada: deve permanecer subordinada à justiça”, assim o afirma Rodrigues (2003: 57). 25. Assim o expressam Canotilho e Moreira (2007: 415). 26. Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (USA PATRIOT ACT) Act of 2001, Public Law 107-56-oct. 26, 2001. Consultado a 19.01.2018, em https://www.sec.gov/about/offices/ocie/aml/patriotact2001.pdf.

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27. Germano Marques da Silva (2012) pronunciou-se sobre a matéria, apresentando fortes críticas a esta alteração legislativa, na qualidade de Relator e Presidente do Gabinete de Estudos da Ordem dos Advogados: “[…] resultado das intuições de alguns juristas e políticos inspiradas por um certo populismo em matéria de combate ao crime que parece ter-se apoderado da sociedade portuguesa ou pelo menos dos meios de comunicação social”. Este autor conclui tratar-se de “[…] uma importante limitação do direito ao silêncio”, falando na existência de “um retrocesso grave em termos de garantias da defesa no processo penal” (ibidem).

RESUMOS

A crescente sensação de insegurança da população vai exigindo do poder punitivo estatal um desempenho maior, mais acelerado e eficaz. Esta reivindicação tem vindo a denotar uma evidente determinação no sentido de se obter uma justiça penal dura, rígida e modelar. Nesta linha, o legislador, não imune às reclamações da população, mas também em consequência de populismos triviais, acaba por ceder e introduzir mudanças na lei processual penal, respondendo assim ao fenómeno reivindicativo. Acontece que a tendência punitivista e securitária restringe necessariamente as garantias dos arguidos, que também são cidadãos. E é justamente esta vertente, da discutível trilogia “segurança, liberdade, administração da justiça penal”, que é objecto desta reflexão. Daí que tivéssemos tentado dar um contributo, a propósito de algumas alterações da lei processual penal portuguesa, no que respeita às declarações do arguido e ao julgamento em processo sumário, que afectaram alguns direitos deste sujeito processual.

The growing sense of insecurity of the population will require greater, swifter and more effective performance from the State’s punitive power. This claim has come to denote a patent determination to obtain a hard and rigid model of criminal justice. In this way, the legislator, not immune to the complaints of the population, but also in consequence of trivial populisms, ends up giving in and introducing changes in criminal procedural law responding to the phenomenon of vindication. The punitive and security tendency turns out to be one that is likely to narrow the guarantees of the defendants, who are also citizens. And it is precisely this aspect of the debatable trilogy “security, freedom, administration of criminal justice”, which is the subject of this reflection. Thus, we have tried to make a contribution regarding some changes in Portuguese criminal procedural law that have impacted certain rights of the accused.

Un sentiment croissant d’insécurité de la population exige du pouvoir punitif de l’État une performance meilleure, plus rapide et plus efficace. Cette affirmation montre une détermination claire à l’obtention d’une justice pénale dure, plus rigide et servant de modèle. Par conséquent, le législateur non immunisé contre les réclamations de la population et, aussi en raison du populisme trivial, fini par céder et apporte des modifications à la loi sur la procédure pénale, pour répondre au phénomène revendicatif. La tendance punitiviste et sécuritaire restreint nécessairement les garanties des accusés, qui sont aussi des citoyens. Et c’est précisément cet aspect, la trilogie controversée “sécurité, liberté, administration de la justice pénale” qui fait l’objet de cette réflexion. Par conséquent, nous avons essayé d’apporter une contribution, à propos de quelques modifications de la loi sur la procédure pénale portugaise, en ce qui concerne les déclarations de l’accusé et du jugement en procédure sommaire, qui a affecté certains droits de ce sujet procédural.

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ÍNDICE

Keywords: criminal justice, , fight against crime, Portugal, State intervention Palavras-chave: combate ao crime, intervenção do Estado, justiça penal, Portugal, processo penal Mots-clés: intervention de l’État, justice pénale, lutte contre le crime, Portugal, procédure pénale

AUTORES

MARIA MANUELA MAGALHÃES

Instituto Jurídico Portucalense, Departamento de Direito da Universidade Portucalense Rua Dr. António Bernardino Almeida, 541-619, 4200-486 Porto, Portugal [email protected]

ANA PAULA GUIMARÃES

Instituto Jurídico Portucalense, Departamento de Direito da Universidade Portucalense Rua Dr. António Bernardino Almeida, 541-619, 4200-486 Porto, Portugal [email protected]

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“Temporalidades emaranhadas”: desafios metodológicos da dinâmica dos protestos em rede de 2013 no Brasil* “Entangled Temporalities”: Methodological Challenges of the Dynamics of the 2013 Networked Protests in Brazil “Temporalités enchevêtrées”: challenges méthodologiques de la dynamique des protestations en réseau de 2013 au Brésil

Regina Helena Alves da Silva e Paula Ziviani

NOTA DO EDITOR

Revisto por Rita Cabral Artigo recebido a 30.07.2017 Aprovado para publicação a 17.07.2018

1. Contextualização e abordagem metodológica

1 Os recentes protestos sociais – nomeadamente em Madrid (2011), Tiananmen (1989), Tahrir (2011) até Maidan (2013) e Hong Kong (2014) – ocorreram no espaço público urbano e se organizaram, em geral, em torno do direito à cidade, da melhoria das condições de vida e da ampliação dos espaços democráticos (Lefebvre, 2012; Harvey, 2014). No seu desenrolar destacaram, por um lado, a relevância política das ruas e praças enquanto tecnologia política e, por outro lado, o papel da mídia, da internet e das redes sociais e a sua relação com os movimentos sociais. Os casos são numerosos e diferenciados.

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2 No Brasil, os protestos se deram, inicialmente, em torno do aumento do preço das tarifas de transporte público e se alastraram à questão da moradia e dos direitos sociais em geral.

3 A conquista para sediar um evento globalmente popular como a Copa do Mundo da FIFA 2014 e, posteriormente, os Jogos Olímpicos de 2016 colocou o Brasil no centro do mundo. Uma onda de protestos desafiou a capacidade de compreensão de todos. Acostumados que estávamos a movimentos sociais bem definidos com relação à reivindicação e ao campo de atuação, nos deparamos com um infinito mar de possibilidades avançando pelas ruas e na internet.

4 Uma análise mais abrangente dos acontecimentos registrados no Brasil em junho de 2013 é capaz de localizá-los num contexto mundial de aumento dos protestos a partir de 2006 em praticamente todos os continentes. A pesquisa realizada pela Columbia University em parceria com a fundação Friedrich-Ebert-Stiftung em Nova Iorque corrobora tal afirmação. Foram levantados e analisados 843 protestos ocorridos em 84 países entre janeiro de 2006 e julho de 2013, o que representa, de acordo com o estudo, 90% da população mundial (Ortiz et al., 2013). Interessante ressaltar que 112 protestos ocorreram na primeira metade do ano de 2013, nomeadamente os que se verificaram no Brasil.

5 Os protestos na Tunísia em 2010 foram o ponto de partida de uma série de revoltas populares que eclodiram, posteriormente, em diferentes países do Norte de África e Oriente Médio. Um estudo sobre o uso das mídias sociais no mundo árabe realizado pela Dubai Press Club em parceria com a Mohammed bin Rashid School of Government mostra que, durante a Primavera Árabe, o número de usuários do Facebook nos países afetados quase duplicou entre fevereiro de 2010 e 2011. Isto é, no período de um ano, os usuários desta rede social passaram de 14,8 milhões para 27,7 milhões, segundo os dados apresentados pela pesquisa. Especificamente na Tunísia, o Facebook teve um aumento de 200 mil novos cadastrados entre novembro de 2010 e janeiro de 2011. No início das manifestações no Cairo, em janeiro de 2011, uma página do Facebook que anunciava um dos protestos ganhou mais de 55 mil adesões em menos de 24 horas. O relatório aponta ainda que nove em cada dez tunisianos e egípcios afirmaram ter usado o Facebook para organizar os protestos e aumentar a participação da população nas manifestações. Quando os movimentos começaram a ganhar força, o potencial de mobilização das redes sociais não passou despercebido e, em 28 de janeiro de 2011, o governo de Hosni Mubarak desconectou por cinco dias praticamente todo o acesso à internet no Egito (Mourtada e Alkhatib, 2014).

6 Os dados acima referidos nos levam a crer que a propagação do movimento conhecido como Primavera Árabe teria tomado outras proporções sem os recursos proporcionados pela internet. As mídias sociais foram utilizadas para organizar protestos, comunicar e sensibilizar a população em favor das causas levantadas, assim como para denunciar à comunidade internacional as tentativas de repressão e censura na internet por parte dos Estados.

7 Os protestos ocorridos em Londres em agosto de 2011 também registraram influência das mídias sociais (Baker, 2012; Denef et al., 2013). A revista The Economist (2011) chegou a apontar a tecnologia, mais especificamente o serviço de mensagens do celular BlackBerry,1 como o responsável pela desordem urbana em Tottenham, no norte de Londres, e que dias depois se espalhou para outras cidades como Birmingham, Liverpool e Manchester. A importância dada ao serviço acabou por resultar na decisão

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do Ministro do Parlamento de Tottenham que determinou a suspensão do serviço de mensagens, assim como na sugestão do Primeiro Ministro Britânico no sentido de desconectar o serviço BlackBerry Messenger como forma de prevenção de novos protestos (Baker, 2012).

8 Em todos os exemplos o destaque dado à tecnologia digital é intrigante, uma vez que o uso da mídia social ajuda a explicar a velocidade com que os motins foram orquestrados em várias cidades. No entanto, a utilização desta mídia não nos esclarece porque tais protestos ocorreram em determinados lugares e em outros não. O nosso entendimento é que tais análisesnãopodem ignorar ouso das ruas e do espaço público como tecnologia política aliada às novas tecnologias, e não apenas o contrário.

9 Nossa proposta consiste em discutir e problematizar a dinâmica de articulação entre as redes urbanas (a cidade e suas ruas e praças) e as intermidiáticas (internet e as redes sociais) nos recentes processos de mobilização política no Brasil. Entendemos que esse fenômeno é fruto da apropriação social das ferramentas digitais e do espaço urbano. Apropriação que, entre outros aspectos, se caracteriza por agenciamentos múltiplos e em rede, pela sobreposição de mediações sociotécnicas e pela complexificação da circulação de ideias na interface entre internet e ruas.

10 Nossa aproximação metodológica aborda esse momento que ficou conhecido como “Jornadas de Junho” como um acontecimento-núcleo de diversas questões que se fundiram em um determinado intervalo de tempo. Isto é, partimos do entendimento de que neste momento vários tempos foram intercruzados num só tempo. Grupos anarquistas e entre eles o de maior visibilidade foi representado pelos ativistas que optaram pela tática black bloc; movimentos voltados para a luta dos direitos civis, como o das mulheres e dos LGBT;2 grupos reunidos em torno da violação dos direitos humanos por conta da realização dos megaeventos no país; integrantes da luta pelo direito à moradia, como as Brigadas Populares; grupos voltados para a questão da mobilidade urbana, como o Tarifa Zero e o Movimento Passe Livre (MPL);3 movimentos pela luta da preservação da paisagem urbana contra a especulação imobiliária, como o Ocupe Estelita, entre vários outros.

11 O objetivo aqui não é tratar especificamente dos movimentos sociais, suas identidades e reivindicações, mas abordar a dinâmica, o tempo e as temporalidades que explodiram nesse acontecimento aparentemente único na história brasileira, quando assistimos provavelmente à maior onda de protestos populares no país desde a sua redemocratização pós-ditadura civil-militar implantada pelo Golpe de 1964.4

12 Ao contrário da forma com que a mídia tradicional tentou mostrar as manifestações – como algo único, passageiro e sem demandas claras –, propomos falar de algo que possui outro tempo que não episódico e fugaz. Nossa forma de olhar para a questão requer um tempo multifacetado, emaranhado, ou seja, dinâmico, mutável, com múltiplos aspectos e características. Os protestos, quer através das passeatas que percorrem as ruas, quer através das ocupações de prédios públicos e praças, são compostos por uma multiplicidade de grupos e demandas. Grupos esses que se autoinfluenciam numa dinâmica entre a rua e a rede com seus diferentes tempos e temporalidades.

13 Estes grupos se unem na luta por direitos sociais e principalmente pelo direito à cidade, no sentido proposto por David Harvey (2014), um movimento por um direito difuso. Ou seja, um interesse que abrange um número indeterminado de pessoas unidas pelo

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mesmo fato, que não pertence a nenhuma classe ou grupo especificamente, e que se manifesta tanto na rua quanto na rede.

2. Brasil e os megaeventos: intensificação das práticas urbanas neoliberais

14 A partir do momento em que o Brasil foi escolhido para sediar grandes eventos, como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, as cidades brasileiras passaram a ser alvo de constantes intervenções urbanas. Associada à lógica de remodelação do espaço urbano, os megaeventos impactaram e transformaram as cidades a partir do modelo de gerenciamento empresarial (Vainer, 2000). Foram implementadas várias ações de cerceamento do espaço público e de violação dos direitos humanos pelo Estado, aliado às organizações promotoras dos megaeventos. Neste processo de transformação, os espaços públicos e urbanos foram geridos com base nas regras do mercado impostas pelas empresas privadas responsáveis pela realização dos eventos e em nome da viabilização dos mesmos.

15 De acordo com o Comitê Popular da Copa do Mundo e das Olimpíadas do Rio de Janeiro – CPCMO (2013, 2014), desde 2010, em torno de 150 mil famílias tiveram que deixar suas casas em função dos megaeventos. O mapa das remoções no Rio de Janeiro (Figura 1) mostra as famílias que foram retiradas das áreas centrais e turísticas e colocadas na periferia extrema da cidade. As remoções foram levadas a cabo nas regiões turísticas e mais valorizadas, próximas aos locais onde seriam realizados os eventos esportivos. Os pontos do lado direito no mapa – ícone denominado “favelas com remoção” – representam os locais originais das favelas e os ícones no formato de casa (a maioria do lado esquerdo no mapa) são os locais onde os moradores foram reassentados, longe do centro, do oceano e das áreas ricas da cidade.

FIGURA 1 – Remoções de favelas no Rio de Janeiro

Fonte: Faulhaber e Azevedo (2015: 67).

16 Asações de cerceamento do espaçopúblico e de violação dos direitos humanos não aconteceram apenas no Rio de Janeiro. Segundo os dossiês apresentados pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – ANCOP (2014) e pelo CPCMO

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(2013, 2014), o direito à moradia foi o mais violado nas 12 cidades-sede5 da Copa do Mundo. Em todas as cidades-sede, com exceção de Brasília e Manaus, se realizaram desapropriações e deslocamentos de pessoas durante os anos de preparação para a Copa do Mundo, com acusações de violação de direitos humanos (ANCOP, 2014). O relatório elaborado pelo Centre on Housing Rights and Evictions – COHRE (2007), uma organização governamental com sede na Suíça, denuncia o que chama de dark side dos megaeventos, algo que comumente tem efeito oposto aos ideais universais de promoção da paz, solidariedade, cooperação e diálogo propagados em suas cerimônias de abertura.

17 No Brasil, as remoções e ações de violência decorrentes da governança dos megaeventos foram denunciadas pela relatoria da ONU e pela Anistia Internacional (Rolnik, 2011). Segundo avaliação da ANCOP (2014: 21), as remoções tiveram como propósito “limpar o terreno para grandes projetos imobiliários com fins especulativos e comerciais”, já que a maioria das comunidades afetada está localizada em regiões cujos imóveis sofreram algum tipo de valorização ao longo do tempo. Dessa forma, o processo de reestruturação urbana decorrente da realização da Copa do Mundo, em praticamente todas as cidades, fez reforçar e acelerar práticas já existentes de expulsão da população de baixa renda de áreas centrais para as periferias, ou de áreas onde houve ou está previsto haver uma melhora significativa das condições de moradia.

18 A temporalidade do megaevento pressupõe um calendário célere para as construções e a finalização de necessidades das cidades e do evento, mas coordenado pelo tempo da longa duração do uso do que seria instalado como infraestrutura. Assim, os eventos tentam instituir uma dinâmica de aceleração do tempo para o crescimento e desenvolvimento econômico de um país. Os problemas urbanos do Brasil foram, portanto, atravessados pela urgência da organização dos megaeventos e o seu tempo instantâneo/efêmero de realização. A vida dos brasileiros foi impactada de diferentes formas, pelo que antigos problemas sociais – transporte, moradia, corrupção, segurança, educação e saúde – vieram à tona e se intercruzaram num só momento. Essas faltas cotidianas da população que faziam parte do tempo futuro da promessa de solução, com a urgência das obras foram ficando cada vez mais acirradas e o legado dos megaeventos – apresentado como justificativa da paralisação do presente para soluções futuras – se revelou insuficiente.

19 Os brasileiros se depararam com a revelação de que o megaevento se transformou num negócio, algo que representa muito mais do que uma competição esportiva entre países e a confraternização entre nações. Os megaeventos são utilizados hoje como alternativa de ampliação das condições de competitividade no mercado global. As justificativas para sediá-los são as promessas de multiplicação da riqueza para o país, possibilidade de novos investimentos financeiros, aprimoramento da infraestrutura do lugar com a realização de intervenções urbanas, entre outras. As transformações verificadas na sua estruturação marcam principalmente a entrada de corporações privadas na organização e promoção da competição – como a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o Comitê Olímpico Internacional (COI). Nesse sentido, os megaeventos passam a operar em prol de determinados interesses e lógica de atuação próprios que, quando colocados em prática, ao invés de promover o desenvolvimento do país que os sediam, acabam por acentuar velhas fragmentações e fissuras sociais, bem como potencializar antigas relações de conflito existentes no território.

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3. A cobertura da mídia: os diferentes tempos

20 Os projetos de melhoria na infraestrutura e serviços de telecomunicações, nos aeroportos estrangulados pelo crescimento econômico do país e pelo aumento da capacidade de viagens da população, a remodelação e construção de portos e uma nova mobilidade urbana nas cidades-sede eram promessas que contavam com um imenso apoio popular (Silva e Ziviani, 2014). No entanto, várias camadas da população começaram a questionar os gastos excessivos num país ainda com muitas falhas nos serviços públicos. A população começou a perceber que a organização da Copa do Mundo no Brasil inverteu prioridades sociais em detrimento da realização de uma “festa”, que favorecia muito poucos.

21 Nesse momento, o que vem sendo chamado desde a década de 1990 de “urgência das ruas” se conformou, no Brasil, como uma onda de protestos desencadeada primeiro em São Paulo, quando o MPL foi às ruas para contestar o aumento das passagens de ônibus. Exatamente um ano antes da Copa do Mundo, em 2013, o Brasil realizou a Copa das Confederações, torneio entre seleções nacionais organizado também pela FIFA que, desde 2001, tem lugar no mesmo local onde ocorre a Copa do Mundo, como uma espécie de ensaio geral. A cerimônia de abertura da Copa das Confederações aconteceu no dia 15 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, cinco dias depois do primeiro ato convocado pelo MPL contra o aumento da tarifa de ônibus na cidade de São Paulo e que deu início a uma onda de protestos que se alastrou pelo país.

22 A manifestação, que inicialmente foi organizada em função do aumento de R$ 0,20 no valor da passagem do transporte público urbano na capital paulista, consistiu na pedra de toque para levar as pessoas às ruas. A violência com que a manifestação foi reprimida desencadeou toda uma repercussão que acabou por detonar um processo de reordenação e surgimento de movimentos na cena pública em torno de uma grande multiplicidade de reivindicações. Ao aumento das passagens somaram-se diversas reinvindicações, tanto políticas quanto econômicas.

23 A grande imprensa vinculou os protestos à ideia de “onda”. O infográfico do G1 Brasil (2013)6 mostra o número de pessoas que se manifestaram nas ruas, identificando um pico no dia 20 de junho de 2013, após o que a “onda” vai se espraiando até formar uma pequena marola três meses depois. A “onda” apresenta uma dinâmica temporal linear e constante durante o mês de junho, mas uma espacialidade que se expande em determinados momentos, isto é, revela territórios que, por sua vez, comportam em si outras temporalidades e espacialidades. Os protestos assumiram diferentes configurações conforme o lugar/a cidade em que ocorreram, pelo quenãopodem ser vistos como algo único e passageiro, tal como previamente sugerido pela mídia.

24 Umas das dificuldades da grande mídia é a de captar o “tempo real”, o tempo instantâneo das manifestações. A captura “em tempo real” que produz o espetáculo “ao vivo” se dá, em alguma medida, através das mídias “alternativas”. Nesse momento, surge no cenário das manifestações a Mídia NINJA,7 que se destaca pelo envio de imagens dos acontecimentos que incluem participação nas manifestações, contando com um repórter-manifestante que produz imagens “ao vivo” e convoca os participantes para discutirem as cenas produzidas. Além das imagens em movimento, surgiram as mensagens curtas propagadas no Twitter enviadas por aqueles que participam das manifestações, como, por exemplo: “Protesto no Rio de Janeiro agora! Acompanhe ao vivo: twitcasting.tv/blackninjarj” (Black Ninja RJ, 2013) e “Protestos

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Brasil: notícias em tempo real de todos os protestos que estão acontecendo pelo Brasil. Demorou, mas o país acordou!” (Protestos Br, 2013).

25 Este é o tempo dos múltiplos – das diferentes percepções e experiências vividas – que emergem em ações não combinadas, mas que se tornam compartilhadas ao produzirem vários pontos de vista “sobre” e “em” um acontecimento. Este tempo é apropriado por vários grupos de jovens estudantes de jornalismo que produzem várias páginas no Facebook de acompanhamento dos acontecimentos em diferentes cidades.

26 O mais efetivo foi o BH nas Ruas, cuja página no Facebook se propôs a fazer uma cobertura colaborativa das manifestações populares (Facebook BH nas Ruas, 2015). Em dois dias, a página criada por alunos da Universidade Federal de Minas Gerais passou a ter 30 mil seguidores, e ao longo das Jornadas agregou quase 100 mil pessoas que acompanharam, comentaram e postaram informações sobre as manifestações. O BH nas Ruas contou com 300 colaboradores-repórteres e cobriu notícias sobre a cidade, as demandas dos grupos de trabalho, as tomadas de decisão e de ações estratégicas dos movimentos.

27 No site da BBC Brasil várias visualizações do Twitter tentam captar o tempo rápido das redes sociais em torno da convocação e participação das pessoas n os protestos. Milhares de tweets foram monitorados, como forma de mostrar a intensa atividade das pessoas na internet durante a sua permanência nas ruas.

28 As informações divulgadas pela BBC Brasil revelam a crescente participação dos brasileiros no Twitter durante os protestos que aconteceram no país em junho de 2013. O ato do dia 13 de junho realizado na cidade de São Paulo registrou o maior confronto com a polícia do estado, que reprimiu violentamente a manifestação, causando ferimentos inclusive em jornalistas da mídia tradicional, presentes para realizar a cobertura do protesto. Diante da repressão, o movimento acaba por tomar dimensões nacionais, espalhando-se para várias outras cidades do país nos dias 16, 17, 18 e 19 de junho. Consequentemente, houve também um aumento do número de perfis de Twitter que participaram das discussões sobre as manifestações entre os dias referidos, como demonstra a notícia “Análise do uso do Twitter revela ‘mapa’ de protestos no Brasil”, BBC Brasil, de 11 de julho 2013: de 9450 perfis no dia 15 de junho, passou-se para 26 019 a 16 de junho, para 167 809 no dia seguinte, 83 384 a 18 de junho e 30 441 a 19 de junho.8

29 Outra tentativa da grande mídia para o “acompanhamento” dos acontecimentos, perante a impossibilidade de “estar junto” de cada uma destas ações, deu-se através da criação de linhas de tempo das várias ações por cidade, bem como a marcação das cidades que convocaram e também nas quais ocorreram manifestações, por meio da utilização de mapas. O portal de notícias brasileiro G1, mantido pelo Grupo Globo, criou um mapa interativo com o número de manifestantes em todos os estados e principais cidades do país (G1 Brasil, 2013). No mapa é possível visualizar a estimativa da quantidade de pessoas que foram às ruas diariamente em cada cidade: por exemplo, no dia 20 de junho de 2013, em Maceió (Alagoas) – cerca de 10 mil; em Manaus (Amazonas) – cerca de 100 mil; em Salvador (Bahia) – cerca de 20 mil; em Fortaleza (Ceará) – cerca de 40 mil; em Brasília (Distrito Federal) – cerca de 60 mil; em Vitória (Espírito Santo) – cerca de 100 mil; em Recife (Pernambuco) – cerca de 52 mil; em Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) – cerca de 300 mil; em São Paulo (São Paulo) – cerca de 100 mil; etc.9

30 Como foi possível perceber, a cobertura dos eventos de caráter urgente, ou seja, que sofrem alteração de forma constante, impõe outro desafio. As inúmeras visualizações,

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figuradas em variadas reportagens nos grandes jornais e nas postagens nas redes sociais, revelam as dificuldades metodológicas no entendimento das interações possíveis a partir da ideia de urgência das ruas e agora também das redes. Os infográficos procuram organizar a informação e disponibilizá-la para uma melhor avaliação dos acontecimentos, mas são todos posteriores ao tempo em que eles aconteceram. Buscam ainda representar o número de pessoas que se manifestam nas redes sociais em um determinado momento. Os gráficos e os mapas quantificam as mensagens, as cidades e o número deações de manifestantes, mas em nenhuma dessas visualizações apresentadas – as postagens dos manifestantes nas redes sociais e os infográficos elaborados pela imprensa – aparecem as reivindicações das pessoas que foram às ruas.

4. “Temporalidades emaranhadas”: movimentos que foram às ruas

31 Na busca pelo entendimento das Jornadas de Junho érecorrenteolharmos para o passado, na esperança de que este nos forneça indícios que nos auxiliem na produção de qualquer inteligibilidade das questões do presente. O tempo-surpresa do presente, o tempo atual, o contemporâneo, segundo Agamben (2009: 72), “[...] é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história”. As Jornadas colocam em ação uma relação especial entre os tempos. Buscamos na história recente do país outros acontecimentos que possam ter elementos capazes de nos indicar alguma legibilidade para a surpresa, uma luz capaz de clarear ainda que minimamente a obscuridade do presente.“Écomo se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por este facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas de agora” (ibidem).

32 Então no confronto de tempos diversos – o tempo do evento, efêmero e urgente, versus o tempo da cidade e dos problemas sociais e urbanos do país, que é de longa duração, resistente e incessante – percebemos um emaranhado de temporalidades. Percepção que se dá no sentido de recusar a efeméride e a fugacidade do presente, a fim de dar um sentido amplo ao acontecimento. Nesse movimento identificamos atravessamentos do tempo presente: como vimos, vários e diversos movimentos que hámuito tempo já tomavam as ruas das cidades somaram- se a novas formas de organização e a uma grande diversidade de reivindicações.

33 Sabemos que muitos dos grupos que se manifestaram neste momento no Brasil são movimentos sociais ligados a formas já consideradas tradicionais de organização, que possuem formato já definido de atuação na cena política e nas relações com o Estado, como por exemplo o movimento LGBT e o do direito das mulheres. Uma luta por direitos civis, por conta do momento político e das questões que tramitavam no Congresso Nacional na época.10 No confronto do presente com outros tempos, esses movimentos foram atravessados por formas relativamente recentes de luta pelos direitos da cidade, como o Movimento Passe Livre.

34 Mas um grande número de grupos que surgiram nas ruas neste período foram conformados em torno de questões do tempo presente: lutas pelo espaço público das cidades, ameaçado por projetos de gentrificação; luta contra as intervenções causadas

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pelos megaeventos (Copa e Olimpíadas) e lutas locais contra inúmeros projetos de prefeituras que propõem a densificação, verticalização e destruição de espaços comuns. Novas formas de resistência e contenção de práticas políticas que legitimam a exclusão e o mercado, que instalam novas feições de autoritarismo.

35 Os protestos revelam uma cidade comunicante e uma gramática política renovada na relação da rua com a rede intermidiática. A rua, o espaço vivido das cidades, foi palco e lugar do acontecimento. Na mesma medida, o espaço urbano foi um elemento ativo de modelação dessas dinâmicas, uma vez que a cidade constituiu também foco principal das reivindicações. Ou seja, as cidades não foram apenas o cenário das manifestações, mas também o seu motivo. As condições da “pradaria” (as nossas cidades) é um dos fortes motivos do “incêndio”, e não apenas seu lugar de acontecimento (Vainer, 2013).

36 Muitos dos grupos mais ativos nas redes sociais na internet tomam a insurreição como uma forma de combate para rechaçar todas as formas de poder. Justamente por constituir sede dos megaeventos esportivos, o país se tornou notícia de destaque na mídia nacional e internacional. A visibilidade dada aos protestos trouxe para a cena pública estes movimentos, que surgiram na internet em decorrência da escolha do Brasil para sediar a Copa da FIFA e as Olimpíadas. Isso acabou por conformar uma porta de entrada, permitindo que parcelas da população tomassem contato com as lutas populares, principalmente a luta por moradia e transporte público. São lutas históricas pelo direito à cidade, cujos movimentos atuavam dentro de um espaço político restrito e pouco compreendido pela maioria da população. A partir da integração das lutas através da rede conformada pelos eventos há um aumento do grau de engajamento na rede.

37 Como veremos nos dois exemplos explorados a seguir, ambos têm em comum o papel das redes sociais na comunicação e na visibilidade, servindo de ferramentas de organização, mobilização e difusão dos protestos. Por outro lado, as redes contribuem para uma rápida expansão territorial das ações e uma descentralização da luta. Estes são espaços importantes e que interagem, sendo que oferecem a oportunidade de as pessoas, que nunca se movimentaram nesse sentindo, conseguirem participação ativa nos processos de mobilização e ação no seio do espaço urbano.

4.1. Dois exemplos: Belo Horizonte e Recife

38 Ao tomarmos como base a relação entre movimentos com reivindicações de mais longa duração e grupos conformados em torno da Copa/Olimpíadas, dois tipos de ocupações do espaço da cidade e da cena pública que dizem dessa interligação nos chamam a atenção. O primeiro possui uma demanda histórica, que se traduz na luta pela terra urbana e pela moradia, como o caso dos grupos que atuaram na ocupação da Prefeitura de Belo Horizonte, em 2013. O outro se configura a partir de demandas das urgências da cidade, que tem como foco principal barrar o projeto de transformação do Cais José Estelita, próximo ao centro histórico da cidade de Recife, localizada no nordeste do país. Estes grupos e formas de ação permanecem até hoje tensionando as duas cidades.

39 No primeiro caso, em julho de 2013, a Prefeitura de Belo Horizonte foi ocupada por movimentos pelo direito à moradia, cujo propósito era pressionar o governo para que suspendesse as ações de despejo e garantisse a regularização fundiária de suas comunidades. As Brigadas Populares e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), junto com as ocupações de sem-teto, reivindicavam a suspensão imediata das

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ações de reintegração de posse e demolição de suas casas por parte do poder público local.

40 Estes movimentos, que representavam cerca de 5 mil famílias em condições precárias de moradia na cidade, ocuparam a Prefeitura sem nenhum aviso prévio a nenhum outro grupo ligado às manifestações. Os grupos que se estruturaram em torno dos protestos foram, aos poucos, rodeando a Prefeitura, organizando estratégias para ampliar as denúncias feitas pelos ocupantes e dar visibilidade às ações da polícia. Uma tentativa de impedir, dessa maneira, uma desocupação violenta, como é comum nas relações entre o Estado e estas comunidades.

41 Àstáticas ditas tradicionais, de organização da luta do movimento pelo direito à moradia – como a ocupação, uso de faixas e passeatas – se somaram outras ações de resistência e visibilidade, como a projeção de frases11 que denunciavam o embate em prédios públicos da cidade, especialmente na fachada do edifício da Prefeitura. Uma ação pequena, mas de grande peso simbólico, dada a sua capacidade de sintetizar no formato da imagem diferentes pontos de vista da mesma causa, a de produzir um encontro decisivo dos tempos: “essa colisão de um presente ativo com o seu passado reminiscente”, em que o ontem coincide com o agora como o “lampejo e a esperança intermitentes dos vaga-lumes” (Didi-Huberman, 2014: 130).

42 No encontro dos dois grupos – os integrantes do movimento por moradia com os demais grupos que rodearam a Prefeitura – um ativista com o celular nas mãos transmitia, em cada canto do prédio e ao vivo, o seu ponto de vista sobre a ocupação. Assim, diferentes pontos de vista são produzidos, causando transformações no formato da imagem, no sentido proposto por Benjamin (2006) sobre a imagem dialética. Uma imagem que transpõe “o horizonte das construções totalitárias” (Didi-Huberman, 2014: 118). A imagem gerada por muitos pontos de vista transforma o formato que tínhamos de uma câmera ligada a uma forma de transmissão – a de um repórter, num único lugar. São produzidos no momento vários pontos de vista “em tempo real” com os quais se interage em “tempo real”. São imagens de um mesmo lugar, mas também de lugares diferentes. Uma outra forma de controlar a cena, já que participamos dela. Uma “arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo” (Agamben apud Didi-Huberman, 2014: 70) e de produzir “cenas de dissenso” (Rancière, 2005).

43 Assistimos então a uma sobreposição de temporalidades ou “temporalidades emaranhadas”: o tempo passado das lutas históricas, o tempo presente dos grupos ligados à Copa e o “tempo real” de transmissão das imagens e acompanhamento da cena. Um reconhecimento das montagens temporais necessárias para toda a reflexão sobre o contemporâneo, segundo Didi-Huberman ao citar as considerações de Agamben acerca da apreensão do tempo presente. Descobrimos assim, na ocupação em Belo Horizonte, um “espaço de imagens” capaz de “organizar o pessimismo” (Benjamin, 2006) pela ressurgência de certas imagens e com a graça dos “vaga-lumes” (Didi- Huberman, 2014).

44 Já o movimento Ocupe Estelita12 se organiza em torno de uma demanda nova, iminente: a urgência de se preservar a cidade que se quer no futuro. A luta não é pelo direito à moradia, mas pelo direito à memória, a memória que se quer ter dos lugares da cidade. Trata-se de uma luta pela preservação da paisagem urbana, da memória do sentido que o Cais José Estelita tem para a cidade do Recife. Uma luta para impedir que o Projeto Novo Recife avance, transformando a orla da cidade num complexo imobiliário,

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hoteleiro e comercial com uso estritamente privado do local. Trata-se de uma área de aproximadamente 10 hectares, localizada na Bacia do Pina, no centro da cidade, onde um consórcio composto por grandes construtoras e empreiteiras pretende construir 12 torres de edifícios que incluem até 40 andares, transformando completamente a paisagem do lugar.13

45 O local, um pátio ferroviário comvários armazéns de açúcar antigos e abandonados pelo poder público, faz parte da história da cidade. Situada entre um bairro de classe média- alta com uma avenida na beira-mar repleta de edifícios de luxo e o Recife Antigo (nome dado ao centro histórico), a área tem sido alvo de investidas da especulação imobiliária por parte de grandes construtoras. Em 2008, o consórcio imobiliário Novo Recife adquiriu em leilão a área da antiga Rede Ferroviária Federal. No projeto, os armazéns históricos do cais dariam lugar a edifícios residenciais e comerciais, além de estacionamento com capacidade para aproximadamente 5 mil veículos. A proposta causou indignação na população e a sociedade civil passou a se organizar para impedir o seu avanço.

46 Apesar da mobilização social, no início de 2013 o consórcio conseguiu autorização da Prefeitura de Recife para começar as obras de demolição dos armazéns. Numa das noites de maio de 2014, dias antes do começo da Copa do Mundo no país, as empreiteiras deram início à demolição do cais.

47 Por volta da meia noite, a ação chamou a atenção de um dos ativistas que passava pelo local, que enviou as imagens pelo celular para outros integrantes do movimento. A notícia rapidamente se espalhou pelas redes sociais. Ao longo da madrugada foram mobilizadas cerca de 200 pessoas, que se dirigiram ao local para impedir a continuidade do processo de demolição. Com esse objetivo, passaram a noite no cais de modo a evitar que os tratores fossem novamente ligados e voltassem a derrubar os armazéns. A ocupação daquela noite prolongou-se por mais 58 dias e mobilizou centenas de pessoas. Além do acampamento no local, foram organizadas ações culturais, shows, aulas públicas, rodas de debate sobre urbanismo, assembleias, feira de livros, piqueniques, entre outras atividades que tinham como propósito mostrar à população o potencial e a importância histórica, ambiental, social e cultural do cais para a cidade (Bueno, 2014).

48 O processo de especulação imobiliária no país não é algo novo nem recente. No entanto, a escolha estratégica de fazer uso dos megaeventos como política de desenvolvimento e reestruturação urbana das cidades brasileiras fez aflorar e acelerar práticas de privatização do espaço público já em curso no Brasil.

49 Os novos espaços públicos contemporâneos, resultantes das intervenções promovidas pelos megaeventos, ao serem privatizados, se distanciam de seus usos sociais e procuram limitar as possibilidades de apropriação. São recorrentes nas intervenções urbanas as ações de higienização dos espaços considerados essenciais à realização do evento. Estas ações procuram fazer a assepsia dos espaços da cidade destinados ao turismo ou dos que são necessários à circulação dos produtos a serem consumidos, promovendo a remoção e/ou repressão de populações ou práticas que não se enquadrem no conceito dominante de espetáculo, consumo e cultura (Silva e Ziviani, 2014).

50 Com o intuito de barrar tal processo crescente de privatização e sob o slogan “A cidade é nossa. Ocupe-a”, o movimento convoca a população para “estar junta” na defesa ao direito à cidade, e convoca todos os outros movimentos, grupos e pessoas para tomarem posse da cidade. O movimento #OcupeEstelita incita à ocupação do cais,

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conformando um outro tipo de ação onde a cidade é chamada a lutar pela sua imagem. Aqui temos uma reimaginação às avessas, constituída pela resistência às imagens de cidade que os megaeventos tentam impor. Um novo sentido para a ideia de paisagem urbana, representada pela luta contra as empreiteiras e os megaempreendimentos imobiliários em favor de uma paisagem que respeite a identidade e a história da cidade. A cidade diz “Não ao Novo Recife, sim ao Nosso Recife”.14

5. Temporalidades difusas

51 Terminar com o #OcupeEstelita nos aponta para a compreensão de um espaço público que neste momento passa a ser um lugar de representação e ação, um espaço institucional e insurgente, um meio caminho em tensão entre um desenho rígido e regulador e um flexível e espontâneo.

52 O uso das ruas como lugar da batalha se funda na proposta de transformação deste espaço. A rua passa a ser disciplinada e disciplinadora da multidão a partir do século XIX, pelo que as ruas de nossas cidades atuais, pensadas como espaço institucional e regulado, não são vistas como lugares para os corpos jogarem pedras nem construírem barricadas, não são lugares para o enfrentamento político e econômico. Mas quando tomada pelos grupos de ação direta, anarquistas, insurgentes e espontâneos, passa a ser o espaço do vivido, da explicitação dos conflitos da desigualdade, o lugar da partilha – a partilha do comum, mas de um comum que é desigual (Rancière, 2005). Isso porque se o espaço é fruto do jogo das relações que o constroem (Massey, 2008), este não será nunca algo posto, único, monolítico. Ou seja, nele estão implicados, invariavelmente, traços de poder, conflito, “participação em um conjunto comum” e “divisão de partes exclusivas” (Rancière, 2005).

53 O planejamento das cidades ressalta, em seu discurso, o bem comum, sem considerar que o comum é ocupado por muitos e de formas diferentes. Tais políticas partilham determinadas mensagens, que ao mesmo tempo produzem um controle de enunciados, uma redução da pluralidade em circulação, fazendo circular uma única narrativa. Os protestos que agitaram o país em 2013 ocorreram em diferentes tempos, espaços e dinâmicas: na forma de passeatas que caminhavam por pontos estratégicos da cidade; na mobilização ocorrida através das redes sociais pela internet; ou nas ocupações que expressavam e marcavam no espaço, tanto físico quanto simbólico, a tensão presente entre os interesses dos megaeventos e os interesses dos habitantes da cidade. Nesse aspecto, as Jornadas de Junho surgem como um acontecimento-núcleo de várias outras questões que acabam por garantir um aumento da pluralidade de narrativas, ou seja, uma temporalidade difusa em que os contornos não estão bem definidos.

54 A rua passa a ser o espaço por excelência da visibilidade do enfrentamento e as novas tecnologias servem para o registro, a conexão “ao vivo”, a internet como o lugar da transmissão do espetáculo que a performance da ação nas ruas quer contrapor à espetacularização capitalista. Estas manifestações mudam a cena urbana, rompem o pacto do consenso, emergem várias vezes como “vandalismo”, como destruidoras da cidade. Mas estão propondo um uso das ruas como forma de visibilidade da luta de classes e de exposição dos atos do outro contra o qual lutamos.

55 As cidades ressurgem, portanto, não apenas como campo de transformação do urbano, mas como espaços sociais políticos transformadores. Os mesmos eventos – no caso a

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Copa do Mundo e as Olímpiadas – que potencializam as intenções de acumulação do capital em nossas cidades, são os que, ao serem colocados em prática, abrem novas possibilidades de ação política que oportunizam a articulação de redes e movimentos sociais na busca pelo direito à cidade.

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NOTAS

*. Este texto é uma versão ampliada da apresentação oral proferida na Reframing Media/Cultural Studies in the Age of Global Crisis Conference, na University of Westminster, Communication and Media Research Institute (Londres, 19 e 20 de junho de 2015). A expressão “temporalidades emaranhadas” foi retirada da obra de Georges Didi-Huberman (2014: 69), Sobrevivência dos vaga-lumes, no momento em que o autor cita o modo como Agamben compreende o contemporâneo 1. O serviço BlackBerry Messenger (BBM) permite com que seus usuários enviem mensagens gratuitas para todos os seus contatos simultaneamente. 2. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênero. 3. O MPL teve a sua constituição formalizada em 2005, mas o movimento é fruto de campanhas e fatos históricos importantes como a Revolta do Buzu (Salvador, em 2003) e as Revoltas da Catraca (Florianópolis, em 2004 e 2005). O MPL, caracterizado como movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, atua pela luta em prol da mobilidade urbana e contra o carro (transporte individual e privado) – símbolo do capitalismo, na concepção do movimento. Dessa forma, os seus membros consideram que a bandeira do movimento é uma luta contra o sistema, contra o modo de produção econômico-político da sociedade atual, sendo a tarifa zero uma afirmação do direito à cidade, e luta pela democratização efetiva do acesso ao espaço urbano (Locatelli, 2013). 4. O Brasil passou por dois processos de transição política que colocaram fim aos regimes ditatoriais e ficaram conhecidos como redemocratização: o primeiro deles ocorreu em 1945, ano em que cessou a ditadura do Estado Novo (1937-1945); já o segundo ocorreu com o fim do Regime Militar que permaneceu no país por 21 anos, especificamente, entre 1964 e 1985. 5. São elas: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. 6. Ver G1 Brasil (2013), terceiro infográfico (intitulado “Quantas pessoas foram às ruas”) disponível em http://g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/. Consultado a 18.04.2015.

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7. Mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um projeto vinculado à Pós TV (uma web TV criada pelo Circuito Fora do Eixo) composto por um grupo de “repórteres” que transmite ao vivo (live streaming), através de um celular de última geração conectado a uma rede 3G ou 4G, por horas a fio, imagens das manifestações, em especial dos conflitos entre manifestantes e a polícia. Com o avançar das manifestações, novos “ninjas” (nem sempre vinculados a esse projeto, mas com constante apoio técnico e de divulgação dele) foram surgindo e oferecendo diferentes leituras e ângulos dos acontecimentos (Mídia NINJA, 2015; Bainbridge, 2014). 8. Ver BBC Brasil (2013), último gráfico disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/ 2013/07/130710_protestos_tweets_hashtags_cc_mdb. Consultado a 18.04.2015. 9. Ver G1 Brasil (2013), segundo infomapa “Protestos de junho e julho”, do dia 20/06, disponível em http://g1.globo.com/brasil/protestos-2013/infografico/platb/. Consultado a 18.04.2015. 10. Faz-se menção aos projetos de lei que tramitavam no Congresso Nacional: 1) o Estatuto do Nascituro, que dentre outras ações proíbe o aborto em qualquer situação, inclusive em caso de estupro; 2) o projeto de lei mais conhecido como “cura gay”, cuja a proposta suprimia a resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe os profissionais de participarem de terapia para alterar a orientação sexual. 11. “Quando morar é um privilégio, ocupar é um direito” foi a frase mais projetada no momento. 12. Facebook Movimento Ocupe Estelita (2015) e Direitos Urbanos Recife (2015). 13. Ver imagens da orla da cidade de Recife, do Cais José Estelita e do movimento Ocupe Estelita em Direitos Urbanos (2012) e Araújo (2014). 14. Facebook Movimento Ocupe Estelita (2015).

RESUMOS

Os protestos sociais que seguiram a conquista do Brasil para sediar a Copa do Mundo 2014 desafiaram a capacidade de compreensão de todos. Os eventos de junho de 2013 – conhecidos como “Jornadas de Junho” – abriram um infinito mar de possibilidades, avançando pelas ruas e na internet. As “Jornadas” constituíram um acontecimento-núcleo de diversas questões que se fundiram em um determinado intervalo de tempo. O objetivo deste artigo é refletir sobre a dinâmica, o tempo e as temporalidades que explodiram neste contexto. Destina-se a abordar a articulação da ação política com as tecnologias, as redes digitais e os meios de comunicação, isto é ,discutir e problematizar a dinâmica dainteração entre espaçospúblicos urbanos e redes intermidiáticas nas recentes mobilizações políticas brasileiras.

The social protests that followed Brazil’s being selected to host the 2014 World Cup challenged the populace’s ability to understand it all. The events of June 2013 – known as “June Days” [Jornadas de Junho] – opened a totally new world of possibilities, which extended from the Internet to the streets and back. These Jornadas were a core-event of various issues that melded together during a given time interval. The aim of this article is to reflect on the dynamics, the time, and the temporalities which burst forth in this context. It is intended to address the interaction of political action with technologies, digital networks and the communication media. That is, discuss and problematize the dynamics of articulation between public urban spaces and inter media networks in the recent events of Brazilian political mobilization.

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Les protestations sociales qui résultèrent de la nomination du Brésil comme siège de la Coupe du Monde de Football 2014 ont mis au défi la capacité de compréhension de tout un chacun. Les évènements de juin 2013 – connus comme “Journées de Juin” [Jornadas de Junho] – offrirent une infinité d’occasions qui se firent jour dans la rue et sur internet. Les “Journées” furent un évènement-nucléaire de maintes questions qui se forgèrent en un laps de temps donné. Le but de cet article est de se pencher sur la dynamique, le temps et la temporalité qui explosèrent dans ce contexte. Il a pour fin d’aborder l’articulation de l’action politique aux technologies, aux réseaux numériques et aux moyens de communication, c’est-à-dire, de débattre et de mettre en cause la dynamique de l’interaction entre espaces publics urbains et réseaux inter-médiatiques au cours des récentes mobilisations politiques brésiliennes.

ÍNDICE

Palavras-chave: Brasil, contestação social, espaço urbano, meios de comunicação Mots-clés: Brésil, espace urbain, médias, protestation sociale Keywords: Brazil, media, social protest, urban space

AUTORES

REGINA HELENA ALVES DA SILVA

Centro de Convergência de Novas Mídias, Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte – MG, Brasil [email protected]

PAULA ZIVIANI

Centro de Convergência de Novas Mídias, Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, Belo Horizonte – MG, Brasil [email protected]

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A violência no namoro em casais do mesmo sexo: discursos de homens gays Violence in Same-Sex Relationships: Gay Men’s Discourses La violence dans les couples du même sexe: discours d’hommes gays

Rita Elísio, Sofia Neves e Rita Paulos

NOTA DO EDITOR

Revisto por Sofia Silva Artigo recebido a 13.06.2017 Aprovado para publicação a 07.05.2018

Introdução

1 A violência na intimidade é um problema social complexo que afeta de forma significativa o quotidiano das pessoas. Atingindo diferentes grupos etários, de proveniências culturais diversas, a violência parece ser hoje um recurso relacional banalizado e legitimado pelas sociedades contemporâneas, figurando nas suas práticas e nos discursos, apesar da intolerância social face à violência ter vindo a crescer, quer ao nível das representações em geral, quer ao nível legislativo e das políticas públicas (e.g. notar as diferenças entre os códigos penais atuais e os anteriores a 1974).

2 Nas últimas décadas, os estudos têm vindo a demonstrar que, dentre o espectro da violência na intimidade, a violência no namoro é uma das que se revela mais expressiva, afetando tanto casais de pessoas do mesmo sexo como de pessoas de sexo diferente. Nos anos 80, com a publicação da primeira investigação sobre a natureza e a prevalência da violência no namoro heterossexual, Makepeace (1981) sugeria já que as relações entre jovens eram pautadas por experiências de vitimação, estimando que um/

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a em cada cinco estudantes universitários/as tinha experienciado, pelo menos uma vez na vida, um episódio de violência física no contexto da intimidade. Tais evidências têm sido corroboradas por outras investigações realizadas ao longo dos últimos 40 anos, as quais salientam o caráter mútuo e recíproco da violência no namoro (e.g. Neves, 2014a, 2014b; Magalhães et al., 2016; O’Leary et al., 2008; Straus, 2008).

3 Não obstante a investigação sobre a violência no namoro entre pessoas do mesmo sexo ser bastante mais escassa, tendo surgido apenas no final dos anos 80 (Duke e Davidson, 2009; Hill et al., 2012; Murray e Mobley, 2009) e muito associada às questões do VIH/ SIDA (Byrne, 1996; Finneran e Stephenson, 2012), os dados indicam que a sua prevalência não é diferente da prevalência da violência na intimidade heterossexual (Freedner et al., 2002), assim como não são diferentes muitas das suas características gerais (Antunes e Machado, 2005; Costa et al., 2011; Topa, 2010; Wise e Bowman, 1997). Com efeito, a violência perpetrada no seio de casais de pessoas do mesmo sexo, sejam as pessoas lésbicas ou gays (LG), parece ter a mesma incidência daquela que ocorre em relações entre pessoas de sexo diferente (Matthews et al., 2002). Estima-se, assim, que aproximadamente de um quarto a metade das relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo seja caracterizada por dinâmicas abusivas (Alexander, 2002; Murray et al., 2007). Tal como sucede no âmbito da violência na intimidade heterossexual, a violência psicológica emerge como uma das formas de vitimação mais expressivas (Craft e Serovich, 2005; Craft et al., 2008), seguindo-se a violência física (Halpem et al., 2004) e a violência sexual (Feldman et al ., 2008). Autores/as como Peterman e Dixon (2003) referem que a violência na intimidade é o terceiro maior problema enfrentado pelos homens gay, a seguir ao consumo de substâncias e ao VIH/SIDA.

4 Para esta análise, éútil considerar os antecedentes históricos dosEstudos de G énero que forneceram um contextofértil para a evolução da perspetiva das normas sociais associadas à orientação sexual e à identidade de género. Para tal, muito contribuíram a teoria da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw (1991) e a teoria da masculinidade hegemónica de Raewyn Connell (1995). Com a distinção teórica entre o conceito de sexo e o conceito de género, fruto das investigações e dos movimentos feministas, começou a problematizar-se a influência das relações sociais de género na construção das identidades sociais. A partir desta conceção, entende-se que as normas sociais em torno do género são transmitidas através de mensagens culturais que são reproduzidas por agentes de socialização e pelos discursos culturais dominantes que prescrevem o modo como homens e mulheres devem ser e agir (Kahn, 1981). Desta forma, a masculinidade é relacional, construída socialmente e varia historicamente, sendo que a cultura e o tempo determinam o que é percebido como normativo para cada um dos sexos (Addis et al., 2016). Assim, em vez de se considerar como inata e dogmática a dominância masculina patente na cultura ocidental, perspetiva-se o masculino (assim como o feminino) em mutação, com alterações fluidas e dependentes de outras divisões sociais, como a de raça/etnia, classe social e orientação sexual. O masculino e o feminino não são algo que existe à partida, mas que se constrói e se reconstrói.

5 Muitos/as outros/as teóricos/as sociais concordam que a ideologia da masculinidade hegemónica é um poderoso influente na forma como os homens reagem a e se apropriam do papel de género masculino ideal (ibidem). No entanto, sabemos que as masculinidades são múltiplas e polifónicas, tal como o são as feminilidades (Kimmel, 1995; Kimmel e Messner, 1989; Levant, 1996; Levant e Kopecky, 1995).

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6 A teoria da interseccionalidade pretende examinar precisamente a forma como as várias categorias (social e culturalmente construídas) interagem a múltiplos níveis para se manifestarem em termos de desigualdade social (Costa et al., 2010). Fortemente influenciados por Kimberlé Crenshaw na década de 1990, acredita-se que os modelos clássicos de compreensão dos fenómenos de opressão dentro da sociedade – sendo os mais comuns baseados no sexo/género, na raça/etnicidade, na classe, na religião, na nacionalidade, na orientação sexual ou na diversidade funcional – não agem de forma independente uns dos outros; pelo contrário, essas formas de opressão interrelacionam-se, criando um sistema de opressão que reflete a intersecção de múltiplas formas de discriminação (Azzarito e Solomon, 2010; Browne e Misra, 2003; DeFrancisco e Palczewski, 2007; Nash, 2008).

7 Como explicam Clarke et al. (2010), pensar de forma interseccional é importante para que possamos explorar as diferentes formas pelas quais as pessoas estão organizadas em relação a categorias dominantes. Assim, géneros e identidade(s) de género, orientações sexuais, classes sociais, etnias, localizações geográficas ou meios habitacionais e graus de incapacidade/deficiência reúnem-se e operam de diversas formas na construção e manutenção das discriminações. Podemos assim dizer, e segundo esta teoria, no seio dos relacionamentos de pessoas LG, a violência e a discriminação podem também ocorrer, uma vez que um homem gay, negro, de classe social baixa e pertencente a um bairro social desfavorecido está mais propício a ser vitimado ou agredido pelo seu parceiro, quando comparado com um homem branco de classe média alta.

8 A análise da violência na intimidade não heterossexual obriga, pois, à adoção de uma lente não heteronormativa, que permita repensar o género e as suas expressões (Mason et al., 2014). Se é verdade que a violência na intimidade tende a caracterizar-se por assimetrias de género, independentemente da orientação sexual dos membros do casal, o facto é que entre casais do mesmo sexo tais assimetrias podem acentuar-se por influência de outras vulnerabilidades (FRA, 2014; Viggiani, 2013). Explanaremos algumas delas, em seguida.

9 Messinger (2011) não só constatou que as pessoas LG têm maior probabilidade de sofrer formas de violência na intimidade, como as lésbicas estão em maior risco de ser vítimas de violência na intimidade do que os gays. As mulheres, lésbicas ou heterossexuais, são mais suscetíveis à vitimação do que os homens, sendo os homens heterossexuais aqueles que apresentam menor risco.

10 Estes dados foram recentemente confirmados pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, o qual revelou, a partir do Questionário Nacional sobre a Violência na Intimidade e a Violência Sexual, que a prevalência da violência na intimidade (física e sexual, mas não psicológica) é mais elevada em adultos/as que se identificam como LG (e.g. 43,8% para as lésbicas e 26% para os gays) do que em adultos/as heterossexuais (35% para as mulheres e 29% para os homens) (Walters et al., 2013). Quando considerada apenas a violência física, as taxas de prevalência são semelhantes ou superiores para adultos/as LG (29,4% para lésbicas e 16,4% para gays) do que para adultos/as heterossexuais (23,6% para mulheres e 13,9% para homens) (Edwards et al., 2015).

11 Um dos estudos da União Europeia (FRA, 2014) concluiu que 7% dos casos mais recentes e mais graves de violência sofrida pelas populações LG configuravam situações de violência doméstica. Quanto à violência no namoro, os dados demonstram que os/as

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jovens LG estão em maior risco de a sofrer e de a praticar do que os/as jovens heterossexuais (Dank et al., 2013).

12 Tal como alertam Moleiro et al. (2016), a discriminação e a violência dirigida a pessoas LG é específica, o que requer uma abordagem igualmente particular. Conceitos como o heterossexismo, a heteronormatividade e a homofobia internalizada tornam a violência na intimidade especialmente complexa, quer no que se refere às suas práticas, quer aos seus significados. O conceito de heterossexismo estipulado por Morin, em 1977, enquadra-se numa lógica marcada pelos valores culturais socialmente partilhados e difundidos, correspondendo a um sistema de crenças e valores que nega e estigmatiza qualquer comportamento, identidade, relação e comunidade não heterossexual e, como tal, está profundamente ligado à própria reprodução da heterossexualidade como sistema político (Morin, 1977). Ou seja, não se trata de ver apenas a existência de diferentes orientações sexuais, trata-se antes de reconhecer que as sociedades reproduzem ativamente determinadas formas de sexualidade em detrimento de outras – que tentam manter controladas enquanto minoritárias. Assim sendo, o heterossexismo está ligado à estruturação social dos privilégios da heterossexualidade tanto em termos legais como sociais, desqualificando as não heterossexualidades. O heterossexismo está igualmente ancorado num sistema de género que reforça as equivalências entre sexo e género, assente num regime de diferença sexual socialmente construído que valoriza, simbólica e culturalmente, o masculino em detrimento do feminino (Butler, 1993).

13 Ligada a esta linha de investigação, a heteronormatividade surgiu como um conceito que reflete o modo como a heterossexualidade se tornou a norma para pensar comportamentos e identidades de todas as pessoas numa determinada sociedade ou cultura, institucionalizando a heterossexualidade no centro de uma ordem de género que privilegia o masculino (Costa et al., 2010).

14 Por sua vez, o conceito de homofobia aparece inicialmente ligado ao “receio de estar em espaços fechados com homossexuais” (Hegarty e Massey, 2006: 6).Sómais tarde é que otermo passou a ser visto e interpretado como uma atitude negativa face a pessoas homossexuais.

15 Assim, as vítimas estão habitualmente sujeitas a uma dupla estigmatização ou a um “duplo armário” (Carneiro, 2012; Nunan, 2004), na medida em que têm de lidar simultaneamente com o facto de serem LG e com o facto de estarem a ser alvo de violência no contexto de uma relação LG.

16 Ao estigma associado à orientação sexual e aos processos de vitimação soma-se, muitas vezes, a ameaça do outing, isto é, a iminência da revelação da orientação sexual da vítima sem o seu consentimento e o reforço do insulto social, ou seja, a acentuação da culpa e da vergonha (Moleiro et al., 2016). Os/As agressores/as podem igualmente inibir as vítimas de denunciar a violência às autoridades competentes, ora alegando que os casos não configuram verdadeiras situações de violência doméstica (por serem atípicos), ora descredibilizando o sistema de apoio (Goldberg, 2016). Estes fatores, que geram por sua vez uma dupla invisibilidade (Moleiro et al., 2016), contribuem para que muitos casos de violência permaneçam no anonimato. Considerando que o sistema de apoio das pessoas LG pode estar diminuído pela não aceitação da sua orientação sexual, em situações de vitimação o isolamento social pode ter efeitos muitíssimo nefastos. Recorde-se, a título ilustrativo, que as pessoas LG estão em maior risco de desenvolver sintomatologia depressiva e ansiógena e de cometer suicídio do que as pessoas

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heterossexuais (Reuter et al., 2017). A rede de respostas sociais e institucionais é, por outro lado, muito frágil, o que agrava as dificuldades elencadas anteriormente (Goldberg, 2016).

17 A assunção das singularidades da violência na intimidade sofrida e praticada por pessoas LG justifica, pois, o desenvolvimento de estudos que melhor permitam ouvir as suas vozes e aferir as suas necessidades, objetivo que norteou o estudo que apresentamos de seguida.

A violência no namoro representada e interpretada por jovens gays: contributos empíricos

18 O presente estudo qualitativo procurou compreender como uma parte da população gay representa e justifica a violência no namoro praticada no seio de casais de pessoas do mesmo sexo, sejam as pessoas gays ou lésbicas. Nele participaram 17 indivíduos do sexo masculino, com uma orientação sexual gay e com idades compreendid as entre os 19 e os 29 anos (M=24.06). A amostra, de tipo intencional, foi constituída através do contacto com várias associações de defesa e promoção dos direitos LG, tendo sido usada posteriormente a técnica de snow ball. Foram definidos como critérios de inclusão os indivíduos identificarem-se como gays e terem mais de 18 anos de idade.

19 Oito dos participantes eram estudantes de Licenciatura e três de Mestrado. Os restantes seis elementos já tinham terminado quer a Licenciatura, quer o Mestrado.

20 A grande maioria dos entrevistados (N=14) estava ligada ao ativismo LG. Cinco dos participantes eram da zona norte do país, dois do arquipélago dos Açores e os restantes nove eram oriundos do sul do país.

21 Os dois grupos focais, um constituído por oito pessoas e outro por nove, foram moderados por uma pessoa com formação em Psicologia, tendo decorrido as sessões de ambos nas instalações de uma associação LG. As questões que serviram de ponto de partida para a discussão foram as seguintes: 1. Como são, na vossa opinião, as relações de namoro de jovens LG da vossa idade? 2. Consideram que existe violência nessas relações? Se sim, como a caraterizam? 3. Quais as motivações/crenças? 4. Quem é o/a agressor/a e a vítima? 5. Julgam existir diferenças entre a violência no seio de casais do mesmo sexo e a violência em casais de sexo diferente? 6. Quais são, para vocês, as consequências da violência sofrida? 7. Quais as estratégias de combate à violência?

22 Depois de obtidos os consentimentos informados dos participantes, as sessões (cuja duração média foi de uma hora) foram gravadas em áudio. As mesmas foram depois transcritas e sujeitas a uma análise de conteúdo temática, a qual permite a produção de inferências e a sua relação com diversos aspetos da vida social dos indivíduos (Bardain, 2009; Guerra, 2006; Pereira, 2015; Vergara, 2005). Na presente investigação, o corpus de análise foi constituído pelos conteúdos integrais das duas entrevistas, as categorias foram definidas a posteriori e a unidade de registo foi a sequência pergunta-resposta.

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23 Os resultados foram organizados em torno de três temas: i) as dinâmicas das relações íntimas LG; ii) as práticas da violência na intimidade e iii) as estratégias de prevenção e combate à violência.

24 O primeiro tema descreve as representações face às relações íntimas não heterossexuais, o segundo tema caracteriza os comportamentos associados à violência na intimidade LG e o terceiro e último tema sistematiza as estratégias de prevenção e combate, focando aspetos como a visibilidade da população LG, a capacitação das vítimas e a mudança social.

As dinâmicas das relações íntimas LG

25 Na tentativa de caracterizar as relações íntimas LG, os participantes começaram por distingui-las das relações heterossexuais, pontuando o estigma a que aquelas estão sujeitas. Os argumentos da norma social heterossexista e da subsequente naturalização da heterossexualidade foram usados para explicar os impedimentos sociais, legais e políticos com os quais os gays e as lésbicas se confrontam nos seus quotidianos, assim como o preconceito e a discriminação a que estão sujeitos. Eu acho que são diferentes sim […] por uma questão de construção social. Porque não há uma naturalidade que é inerente às relações heterossexuais que são percecionadas como indiferentes e isso não acontece com pessoas, com casais de pessoas do mesmo sexo tanto mulheres como gays. (Participante 1, 27 anos) […] Eu acho que em qualquer parte do mundo, em qualquer país, se for um casal heterossexual, nunca haverá qualquer espécie de impedimento social, legal, político. Acho que nenhum casal heterossexual em qualquer país do mundo tenha [sic] um problema por ser um casal heterossexual. (Participante 5, 26 anos) Acho que existe diferença, fundamentalmente nos preconceitos que foram incutidos nas pessoas. (Participante 12, 21 anos) Tendo em conta a questão, a diferença entre uma relação homossexual e uma relação heterossexual, se nós formos mesmo ao cerne da questão eu acho que no fundo somos todos pessoas portanto, independentemente numa questão mais física, se nós [es]tivermos a namorar com uma rapariga ou namorar com um rapaz eu não vejo diferenças em mim, vejo é nos outros, na sociedade, mas também tenho que admitir que nos últimos anos eu tendo a ver uma certa diminuição da discriminação, ou seja, acho que a sociedade portuguesa está-se a começar a abrir mais, a tentar compreender. (Participante 13, 25 anos)

26 A resistência social a normalizar as relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo reforça, não raras vezes, a invisibilidade, favorecendo esta a não ocupação do espaço público e o isolamento. A ocultação das relações e a inibição da demonstração pública de afetos, segundo os participantes, tendem a ser mais notórias no caso dos homens, já que os comportamentos afetivos entre mulheres (lésbicas, bissexuais ou não) são habitualmente mais aceites e tolerados. Com efeito, os homens tendem a ser vítimas de discriminação ou de violência quando são reconhecidos como gays. Já passei por situações em que eu fui verbalmente discriminado, fisicamente não, mas houve situações em que me diziam ‘bicha’ ou ‘os gays’ sem as pessoas me conhecerem de lado nenhum, simplesmente veem uma representação de amor não normativa e sentem-se desconfortáveis e, portanto, manifestam-se dessa forma, por isso sim, sinto-me discriminado. (Participante 12, 21 anos) A coisa [em] que mais difere uma relação homossexual duma relação heterossexual, o [que está] mais à vista é os afetos, as demonstrações de afeto em público que, numa relação heterossexual,nãohágrande problema na demonstração desse afeto,

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mas numa relação homossexual há mais […] acho que há sempre mais um pudor por parte das relações homossexuais. (Participante 11, 20 anos) Existe uma ocupação do espaço público muito diferente por partes dos homens e das mulheres […] e só isso já faz com que as relações em si sejam diferentes porque esta naturalidade falta nas relações entre pessoas do mesmo sexo. A troca de afetos ou [a] proximidade entre dois homens pode gerar outras consequências diferentes das [geradas pela proximidade] de por duas mulheres. Claro que depende do contexto da localização das pessoas envolvidas, mas por exemplo duas mulheres que andem de mão dada na rua podem não ser automaticamente conotadas – ou de braço dado, o que quer que seja – como sendo um casal e isso não acontece com os homens. (Participante 1, 27 anos)

27 A questão do espaço público é trazida para a discussão pelos participantes, sendo este visto como um potencial ambiente de discriminação, ainda que diferenciado em função da orientação gay ou lésbica. Concordo muito com a questão do espaço público porque as mulheres nunca têm tanta visibilidade, até porque [de] lésbicas toda a gente gosta. Há sempre a discussão de os casais homossexuais, os casais gays, sofrerem mais shaming que as lésbicas principalmente por causa disso, porque [o que] os rapazes todos que são hétero, e que são meus amigos dizem das lésbicas, é que toda a gente gosta e que não te podes preocupar tanto com isso porque não vais ser o primeiro alvo. Acho que numa relação entre pessoas do mesmo sexo as demonstrações de afeto na rua tornam-se bastante mais complicadas porque acho que nós temos, na nossa consciência,a noção de que ao fazermos certas coisas podemos estar-nos a pôr em perigo desnecessariamente[…] então acho que acabamos por estar sempre a refletir muito mais no que fazemos do que um casal heterossexual faria. (Participante 2, 19 anos)

28 Também a apropriação do espaço familiar é, em algumas situações, dificultada pela relutância da família em apoiar e aceitar o coming out. No entanto, não negando a discriminação ainda existente, temos vindo a assistir, nos últimos anos, a grandes mudanças na sociedade portuguesa. Há toda outra questão de família e amigos e colegas que também se põe aqui em causa [e] que não tem que ver, que não é necessariamente igual para casais heterossexuais e casais de pessoas do mesmo sexo, independentemente do sexo das pessoas envolvidas. (Participante 1, 27 anos)

29 Os participantes definiram ainda as suas relações íntimas como mais fáceis do que as relações lésbicas, uma vez que relatam sentir menos pressão para a conformidade do que as mulheres. Assim, têm frequentemente mais parceiros do que elas, experimentando menos pressão do que elas para manter relações duradouras e estáveis. Assim, a invisibilidade é, em alguns casos, vantajosa para os homens gays, dado que lhes permite ter mais parceiros. O não investimento na longevidade das relações deve-se, na sua ótica, ao demorado reconhecimento formal das relações LG e à sua equiparação às relações entre pessoas de sexo diferente. O que eu posso ver é que há, de facto, pensando em relações entre homens, que existem [sic] em muitos casos alguma instabilidade no sentido em que há demasiada oferta no mercado ou seja, é muito fácil ter vários parceiros sexuais e isto em algum momento pode ser uma questão. (Participante 4, 22 anos) Também não sentimos a pressão social de [es]tar a namorar que, se calhar, eu acho é muito mais propícia no caso dos heterossexuais. (Participante 7, 23 anos) Tirando tudo isso, temos a mais agravante de ser um casal do mesmo sexo que, se calhar,não

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tem proteção legal em vários países, socialmente em vários sítios, e isso acho que faz com que o próprio conceito de uma relação duradoura ou uma relação estável, e se calhar monogâmica entre pessoas do mesmo sexo, esteja consciente ou inconscientemente na cabeça de qualquer pessoa, que esteja propícia a isso como algo inalcançável ou menos alcançável. (Participante 2, 19 anos) Acho que ainda existe algum preconceito – mesmo dentro da população LGB – relativamente às relações de longa duração entre os casais. Entre dois homens, acho que ainda existe um pouco aquela visão que a partir de determinada idade se a pessoa não está com alguém, dificilmente vai encontrar outra pessoa, acho que existe um grande idealismo aí e acho que também existe um grande receio ou uma grande ignorância […], [já] que existe[m] efetivamente relações de longa duração entre dois homens. Sinceramente, para isso mudar é importante as pessoas estarem formadas, é importante que as pessoas que efetivamente têm essas relações não se fechem em casa, não tenham vidas duplas […]. (Participante 11, 20 anos)

30 Por outro lado, segundo eles, as mulheres em geral estão mais condicionadas do que os homens no que respeita à liberdade sexual. Apesar de o lesbianismo ser mais aceite do que a homossexualidade masculina, os participantes referem que as lésbicas continuam a ser constrangidas pelas expectativas sociais em torno do facto de serem mulheres. Assim, constata-se que há um maior controlo da sexualidade feminina do que da masculina. Num casal hétero, é preciso que o homem e a mulher queiram ter sexo, os gays não, os gays já [es]tão numa libertação sexual. Querem ter sexo, vão ter sexo, não são vistos como prostitutos, e as mulheres se tiverem sexo com muita gente são vistas como umas putas e não sei quê […] e tu notas que a mulher muitas vezes se calhar até quer fazer, mas não quer que se saiba, ou nem quer fazer que é p[a]ra não ser “fácil”; os gays não, os gays estão-se a borrifar, tipo, não tens a pressão da sociedade. (Participante 3, 24 anos) É a diferença entre os homens e as mulheres, os homens não têm a necessidade de esconder, as mulheres têm necessidade de esconder. (Participante 4, 22 anos)

31 Nos testemunhos dos participantes, a dimensão sexual das relações gays foi muito valorizada, sendo ainda assim patente a preocupação com a possibilidade de poderem estar mais vulneráveis ao contágio do VIH. De facto, quando se fala de promiscuidade ou seja, em que pessoas têm mais parceiros sexuais, de facto a população de homens que têm sexo com homens, e aqui incluímos os gays, bissexuais ou aqueles que se identificam como metrossexuais, enfim, homens que têm sexo com homens, há de facto muito sexo e há mais sexo aqui do que há na população heterossexual, por isso é que nós continuamos a ser um grupo com maior número de novas infeções do VIH. (Participante 4, 22 anos) Há aquela ideia que é um bocado sobrevivência, tentarmos encontrar alguém com quem passar a nossa vida, que é apenas um bocado a ideia que nós queremos tirar proveito e não nos sentirmos sós, e sentimos realmente as nossas exigências satisfeitas, é um bocado por aí, e por aí vamos então dizer que, realmente, uma relação homossexual pode ser um bocado mais sexualizada que uma heterossexual. (Participante 5, 26 anos)

32 Esta valorização da sexualidade parece estar também presente nas representações que, segundo os participantes, as pessoas heterossexuais têm das pessoas LG. As expetativas sociais sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo parecem estar menos associadas à componente relacional ou afetiva e mais à componente sexual.

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Para mim, a grande diferença é que o facto de serem de sexos diferentes, no caso heterossexual tem [sic] toda a diferença, ou seja as expetativas para um homem são diferentes das expetativas para uma mulher, quer se queira quer não, portanto vão- se gerar conflitos num casal heterossexual que não se iriam gerar – acho eu – num casal homossexual, precisamente porque não se pode, o que se esperaria de um vai- se esperar do outro. (Participante 4, 22 anos)

As práticas de violência na intimidade LG

33 Ainda que apresentada como uma das mais prevalentes na intimidade LG, a violência psicológica é referida como a mais invisível. Tende, segundo os jovens entrevistados, a manifestar-se através da intimidação, das agressões verbais e das ameaças. A violência sexual é também uma das menos reportadas, embora se revista – em alguns casos – de extrema gravidade. Muitas das vezes a violência que as pessoas caraterizam como violência a sério é muitas vezes o dar um murro, dar uma chapada, dar um pontapé, mas quando há aquela violência mais suave e mais escondida por trás daquilo que é normalmente a forma como as pessoas interagem. Por exemplo, na minha primeira relação – [em] que muitas das vezes o rapaz se recusava a eu ir ter com ele e quando eu insistia para ir ter com ele, ele começava a criticar-me do meu foro pessoal por eu querer fazer algo –, isso para mim é violência […] é uma violência que se calhar é mais psicológica e não deixa tantas marcas a nível físico […]. (Participante 10, 23 anos) Uma violência que é também muito importante referir é a violência psicológica, que acredito que exista muito, que afeta muitas pessoas que principalmente não tenham aceite a sua identidade ou seja, são homossexuais, mas ainda não aceitaram bem essa parte da sua identidade. (Participante 11, 20 anos) Há também uma outra forma de violência que ainda não vi aqui ninguém a falar, que também não é muito retratada, mas tem a ver com aquele tipo de relação em que um dos parceiros acaba por ser violado sexualmente pelo outro parceiro, ou seja, em que apesar de estarem numa relação o outro força sexualmente o outro ao ato, e em que mais que isso, acaba por ser uma relação só para esse fim, é uma relação para ter sexo e infelizmente eu vejo isso muito, principalmente naqueles que – pronto eu vou usar uma expressão – ‘aqueles que têm a mania que são héteros’ e que só estão numa relação LGB p[a]ra ter sexo. (Participante 13, 25 anos)

34 Quando analisada a questão da génese da violência na intimidade entre casais de pessoas do mesmo sexo, os participantes enfatizaram a homofobia internalizada como uma das causas da emergência e da manutenção da mesma. A não aceitação da orientação sexual pode, segundo eles, afetar a autoestima ou favorecer o sentimento de inadequação sexual, procurando o/a agressor/a compensar a sua frustração através da subjugação do/a parceiro/a. A homofobia internalizada e a manifestação da violência resulta também da homofobia, da incapacidade da pessoa aceitar a sua orientação sexual e depois, às vezes, nós vemos um espelho de um comportamento que gostaríamos de ver em nós, mas que não conseguimos aceitar no parceiro ou na nossa parceira e sentimo- nos mal por não conseguir fazer isso […] e depois há uma repercussão que é sermos violentos. (Participante 12, 21 anos)

35 Por seu turno, a homofobia internalizada pode também contribuir para a legitimação da violência por parte das vítimas, acreditando estas merecerem ser castigadas pela sua orientação sexual ou pela sua conduta. Eu acho que uma coisa que acresce para as relações terem violência psicológica é porque também, às vezes, uma pessoa tem dentro de si uma homofobia internalizada. Eu acho que tendo uma certa homofobia internalizada [em] nós,

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tende-se a pensar ‘ok isto é assim não vou conseguir arranjar melhor’. (Participante 3, 24 anos)

36 Também a exposição prévia à vitimação, na família ou em contextos sociais, assim como a socialização violenta, surgem como fatores preditores da violência. O heterossexismo, ancorado num sistema de género binário, tende a penalizar formas outras de expressão de género ou de orientação sexual. Nesse aspeto, eu acho que a violência faz parte do processo de socialização e de aculturação [de] que a criança é alvo desde que nasce e são-lhes incutidos aqueles valores por aculturação, o rapaz veste-se assim tem estes comportamentos e a rapariga veste-se assado e tem x comportamentos […] e depois as crianças são formatadas assim e tudo aquilo que derive e que seja oposto àquele tipo de comportamento é discriminado porque elas foram educadas assim. (Participante 14, 25 anos)

37 Também as assimetrias de poder, subjetivas e objetivas, ajudam a explicar a etiologia da violência. Independentemente de se tratar de uma relação heterossexual ou homossexual, na ótica dos participantes o que de facto está na origem da vitimação é um dos membros do casal se considerar superior ao outro. A dependência da vítima face ao/àagressor/a alimenta a subjugação e dificulta o término das relações. Nós vamos ser discriminados, vão-nos chamar nomes, vão-nos fazer imensas coisas porque é que deveria [es]tar a sustentá-la e isto também acaba por passar de uma outra forma para uma relação homossexual em que tem mais a ver com aquele que sustenta realmente […] e se no caso de hoje aquele que trabalhar acha que tem mais poder sobre o que recebe menos porque acaba por ser ele que [es]tá a pagar mais despesas. (Participante 13, 25 anos) O fator que desencadeia todo um processo de violência é mais a fragilidade – como ele estava a dizer – do que propriamente o facto de ser um homem a bater numa mulher ou uma mulher a bater num homem, porque exatamente existem casos de violência doméstica que são contra machistas […] ou seja, se eu percecionar que eu tenho mais poder [do] que a pessoa com quem eu estou e que eu posso dar[-me] ao luxo de impor certas coisas e de castigar a pessoa por fazer algo que eu não gosto e assim, acho que – isso sim – vai levar à violência entre as pessoas. (Participante 7, 23 anos) Eu acho que [es]tá muito ligado com esta questão de que se uma pessoa se acha superior à outra […] e vê-se uma questão de ‘eu devo algo a esta pessoa’ ou seja, está abaixo daquela pessoa e eu acho que isto é que fulmina muito a violência num casal. Para além disso,háa questão psicológica e aquilo que eu noto das pessoas que eu conheçoe tambémolhando para as situações de vítimas e para o que elas dizem,háuma dependência, há uma relação de dependência, às vezes a vários níveis, dependência financeira, dependência mesmo de autoestima e a pessoa sente que ‘eu sou mal tratado mas émelhor estar com esta pessoa do que[es]tar sozinho’. (Participante 11, 20 anos) Para mim, a violência doméstica também está muito relacionada com fragilidades do agressor e da vítima, ou seja, que há aqui esta relação vítima-agressor de dependência e codepedência que é assim uma coisa que depois é muito difícil de quebrar, e se estamos a falar de uma população que é discriminada, que não está bem resolvida com a sua orientação sexual – a família não sabe não sei quê –, acho que a pressão sobre a pessoa que está ali ao lado é muito maior. (Participante 8, 22 anos)

38 As consequências destes processos são várias e acentuam as especificidades da vitimação que ocorre em relações LG. Assim, as vítimas estão sujeitas a um duplo estigma, o de ser vítima no âmbito de uma relação de intimidade e o de assumir uma

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relação LG. Tal estigma, associado à vergonha, reforça o silenciamento e reduz a motivação para a denúncia junto das autoridades policiais e dos serviços de apoio. Eu acho que ainda é mais difícil entre uma relação homossexual as pessoas queixarem-se de violência doméstica, até porque há sempre aquela ideia que o polícia vai ser homofóbico e ainda nos vai gozar por cima. Reportar situações de violência é complicado, as pessoas sentem-se com vergonha e nós sentimos isso. (Participante 13, 25 anos) Sem dúvida, eu acho é que se agrava para pessoas do mesmo sexo porque ao estigma de ser vítima de violência doméstica acresce o estigma de ser vítima de violência doméstica com um parceiro do mesmo sexo, e isto torna as coisas sensivelmente piores. (Participante 2, 19 anos) Acho que há outra nuance na violência nestes casais, que é a questão da visibilidade, eu sinto que muitas pessoas – em casos de violência doméstica – não vão fazer queixa porque, para além da vergonha que há em ir fazer uma queixa de violência doméstica, que existe também nos casais heterossexuais, depois há a questão da orientação sexual, de repente eu tenho também de fazer o coming out para a polícia que, se calhar, nem [es]tá minimamente preparada p[a]ra isso. (Participante 4, 22 anos) Existem várias pessoas que passaram e que sentiram algum receio em denunciar situações de violência, de assédio na escola, na família etc., por causa da sua orientação sexual, a partir do momento em que reportem,têmde dizer porquê– já estão a fazer um coming out. (Participante 11, 20 anos) Enquanto isto não [es]tiver interiorizado por todos nós, que nenhuma forma de violência é justificável, nós vamos continuar a sofrer em silêncio e a pensar três, quatro, cinco vezes antes de dizer ao nosso amigo que o nosso namorado ou a nossa namorada nos anda a agredir há anos. (Participante 12, 21 anos)

39 A ansiedade, a depressão e a ideação suicida aparecem retratados como os principais problemas de saúde experienciados pelas pessoas LG, resultando da discriminação associada à orientação sexual e da vitimação sofrida. Acho que existem uma série de outros fatores específicos para a população LGB que causam ansiedade e pronto, sabemos hoje em dia que a população jovem LGB, pelo menos, está muito mais atreita a desenvolver depressão e depois suicídio. Tudo isso, nãoestando diretamente ligado aos papéis de género, tambéméuma questão importante dentro desta discussão,que a ansiedade depois gera violência, é uma das maneiras de lidar com isso. (Participante 2, 19 anos) Sinto uma grande desproteção e uma grande falta de informação por parte das pessoas que supostamente deveriam estar lá para me ajudar, para nos apoiar e para nos informar, nomeadamente os nossos pais, os educadores, e os auxiliares de escola, que têm muita responsabilidade […] e enquanto isto não mudar, o agressor continua a sentir poder [e] a vítima subjuga-se a esse poder, porque não vê alternativas,nãovêapoios,a própria pessoa não se consegue defender e isto continua. (Participante 11, 20 anos)

40 Segundo os relatos dos participantes, as taxas de violência e as respetivas denúncias variam em função das zonas do país. Assim, a vitimação tende a ser mais elevada no Norte e nas zonas rurais, ainda que as denúncias aí sejam menos frequentes. A não acessibilidade à informação, sobretudo através da internet, dificulta o reconhecimento do estatuto de vítima e a subsequente denúncia das situações de vitimação. Por sua vez, o contexto social e o estatuto socioeconómico da vítima, bem como o seu grau de conforto com a sua orientação sexual, afeta a dinâmica da violência. Eu acho que a violência vai estar de certa forma ligada com o nível de aceitação da cultura do país ou da região de onde o casal é. Se houver uma grande adaptação, se a pessoa estiver bem consigo própria eu acho que os níveis de violência, a taxa de violência, na zona vai ser muito menor. (Participante 15, 28 anos)

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Eu acredito por exemplo, que as pessoas do Norte têm muita mais dificuldade em denunciar certos e determinados problemas da sua vida afetiva e da sua vida como seu parceiro ou parceira do que pessoas que vivam aqui, por exemplo, em Lisboa. (Participante 14, 25 anos) De repente,háum vídeo viral com milhares e milhares delike e dez mil visualizações, [es]tou a dizer um vídeo viral porque é uma coisa (risos), e se calhar isso vai fazer com que essa pessoa não se sinta sozinha porque acho que aconteceu isto já com os LGB perdidos aí nas aldeias de Trás-os-Montes e, de repente, veem na internet todo um maravilhoso mundo novo. (Participante 7, 23 anos)

Estratégias de prevenção e combate à violência

41 Do ponto de vista dos entrevistados, é urgente a adoção de estratégias de prevenção e combate à violência contra pessoas LG. A aposta no desenvolvimento de políticas públicas promotoras da igualdade, assim como no reforço da visibilidade das pessoas LG, deveriam ser prioridades, na ótica dos participantes. Enquanto não houver uma educação incisiva e que seja eficiente em Portugal para que as crianças deixem de ter esse tipo de comportamento, que nunca deixam de ter, mas acaba por influenciar. Pode ser que esse tipo de comportamentos diminua, ou que desapareça mesmo, e que acabe por transmitir determinados valores aos pais que, se calhar,têmmuito menos escolaridade do que eles, portanto acho que as crianças – nesse aspeto – até podem ser veículos desse tipo de formação. (Participante 14, 25 anos) Há falta de algo sobre afetos nas relações LGB, na escola, nos pais e acho que o nosso principal referencial são os amigos e eu acho que aqui a escola e os pais desempenham um papel muito importante e quanto mais cedo se falar sobre isto, mais do que um slide ou uma imagem de órgãos reprodutores ou [do que] falar das doenças sexualmente transmissíveis, é importante falar de afetos e a importância da comunicação […]. (Participante 11, 20 anos) Acho que há falta de modelos nos média,háfalta de modelos na própria política; quando falam de famílias, eu acho que ainda existe um longo caminho a percorrer para as pessoas efetivamente sentirem que [não] têm de pensar duas vezes antes de darem as mãos,[não]têmque pensar duas vezes em que sítio éque estão para dar um beijo.(Participante 12, 21 anos) Por exemplo, eu tenho muita dificuldade como gay de, mesmo àquelas pessoas que eu conheço e com quem contacto diariamente, expressar a minha identidade de género e [es]tando seguro de que não irei sofrer qualquer tipo de agressões verbais ou psicológicas, ou mesmo até físicas, e eu acho que em Portugal ainda há muito para fazer, nesse aspeto ainda depende muito de região para região, acho que é um bocadinho relativo nesse aspeto. (Participante 14, 25 anos)

42 A par da educação formal, também a qualificação e a especialização de profissionais que intervêm na área da violência doméstica foram referidas como fundamentais, já que o conhecimento e as respostas adequadas sobre as especificidades das relações LG podem contribuir para diminuir a discriminação e o estigma. A educação também das forças policiais, de pessoal de saúde e pessoal das casas de acolhimento, que não sabem lidar com questões específicas LGB […]. (Participante 3, 24 anos) Formação de profissionais. É preciso um profissional que tenha a sensibilidade e [o] conhecimento suficiente para lidar com isto. (Participante 1, 27 anos) Um ponto que eu acho que é importantíssimo é a falta de portos de abrigo quando as coisas correm mal, e com isto eu quero dizer a falta de formação dos profissionais nas linhas de apoio para saberem responder a estes casos. (Participante 8, 22 anos)

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43 Os entrevistados entendem que a capacitação das próprias vítimas é essencial. Assim, sugerem a realização de atividades de partilha de informação através, por exemplo, da criação de espaços de diálogo e de reflexão sobre a necessidade do empoderamento das vítimas. Uma vez que muitas desconhecem os seus direitos, seria fundamental apoiá-las na identificação de recursos que pudessem ser acionados para prevenir e combater as dinâmicas de violência. A importância das pessoas saberem também detetar situações em que [es]tão a ser mal tratadas, que devem pedir ajuda, etc., etc., e falta isso, falta essa informação e essa sensibilização desde cedo. (Participante 14, 25 anos) Eu acho que devia abrir uma conversação, um espaço de conversa onde se poderia falar sobre isso porque as pessoas não falam porque têm vergonha e, a partir do momento em que se sentem mais seguras para falar, conseguem explicar aquilo por que estão a passar, e também perceber que não têm de passar por aquilo, e essa conversa é boa não só para quem sofre no momento, mas também para todos nós, para não virmos a sofrer dessas situações. (Participante 3, 24 anos)

Conclusões e reflexões finais

44 O estudo sobre o qual aqui se discorre permitiu a caracterização da violência no namoro entre pessoas LG, a partir das representações de um grupo de homens gays, não tendo pretensões de generalização.

45 Da análise dos resultados foi possível concluir que, embora as tipologias e as dinâmicas da violência entre pessoas LG possam ser comparadas à violência praticada entre pessoas heterossexuais, há especificidades que têm de ser consideradas, sendo uma das mais relevantes a ameaça do outing.

46 Na ótica dos participantes, a violência na intimidade LG não depende apenas da orientação sexual das vítimas e dos/as agressores/as, mas igualmente da sua identidade de género. Com efeito, os entrevistados reconhecem que a violência na intimidade lésbica e gay é diferente da violência na intimidade heterossexual, sendo que no âmbito da primeira, a violência entre lésbicas tende a ser mais grave. Assim, gays e lésbicas estão sujeitos/as a um duplo processo de vitimação que, por sua vez, gera um duplo processo de invisibilidade. Se o facto de ser LG potencia vulnerabilidades várias, ser vítima de violência numa relação íntima LG reforça-as.

47 Nos discursos dos participantes é notória a perceção do estigma social associado às relações LG. De um modo geral, estas parecem ser representadas pelos/as heterossexuais, como promíscuas e instáveis, isto é, como relações erotizadas e sexualizadas, num sentido que tende a ser negativo. Neste contexto, a intimidade parece ser um não atributo das relações LG, o que dificulta o seu reconhecimento e a sua aceitação. Ainda que tal representação não espelhe a generalidade das relações LG, o facto é que as constrange, nomeadamente em termos da sua longevidade. Os entrevistados afirmam que as suas relações tendem a ser mais fortuitas e fugazes do que as relações heterossexuais porque quanto mais duradouras elas são, mais difícil é mantê-las no anonimato, ou seja, mais difícil é evitar a exposição pública e, por conseguinte, a discriminação. Por outro lado, este facto pode aumentar o envolvimento das pessoas LG em comportamentos sexuais de risco, tal como indicaram os entrevistados. A existência de vários parceiros, sobretudo no caso dos homens, pode potenciar o contágio do VIH.

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48 Quando existem situações de violência nestas relações, a homofobia parece funcionar, segundo os entrevistados, como um fator de risco adicional. Não só a homofobia internalizada pode ser promotora da violência, como pode favorecer a sua manutenção, já que as vítimas se sentem culpadas por estarem a viver uma relação fora da norma. Por outro lado, o isolamento social e a resistência em apresentar denúncia deixam as vítimas mais fragilizadas. Se é verdade que a violência doméstica heterossexual continua a ser tratada como um assunto privado, no caso das relações entre pessoas LG tal evidência ainda é mais expressiva. A clandestinidade das vivências LG, a par da ameaça do outing e da inexistência ou da existência deficitária de redes de apoio familiares e institucionais, entre outros fatores, ocasionam situações de elevada complexidade. Complexas são também as consequências ao nível da saúde, identificadas pelos participantes, que resultam em sofrimento e mal-estar para as vítimas, não procurando estas, na grande maioria das vezes, qualquer ajuda.

49 No caso das lésbicas, os entrevistados consideram verificar-se uma pressão social particular para a conformidade, o que as coloca numa posição de risco especial. Por serem mulheres, estão restringidas às expectativas sociais criadas em torno da sua identidade de género. Espera-se, portanto, que a sua sexualidade seja mais controlada do que a dos homens, o que as coíbe na expressão da sua orientação sexual. Quando são vítimas de outras mulheres, tendem a ser descredibilizadas e identificadas como falsas vítimas, inibindo-as muitas vezes do exercício de reivindicação dos seus direitos. Daqui se depreende que, independentemente da orientação sexual, a identidade de género das vítimas e dos/as agressores/as exerce uma influência capital nas situações de vitimação.

50 Partindo do pressuposto que os homens gays e as mulheres lésbicas são educados/as, tal como os homens e as mulheres heterossexuais, à luz da ordem de género (Connell e Pearse, 2015), antes de serem gays ou lésbicas são homens ou mulheres, o que equivale a dizer que a sua orientação sexual não existe à margem do género. Assim, a violência nas relações íntimas está dependente de lógicas de privilégio versus opressão que se manifestam quer em casais de pessoas do mesmo sexo, quer em casais de pessoas de sexo diferente.

51 Com efeito, se se pensar o género não como uma mera fonte de diferenças na violência que é dirigida a gays e a lésbicas, mas como um processo que homens e mulheres procuram preservar nas suas relações sociais inter e intragrupos, a constatação de que a violência no contexto das relações LG é também uma forma de violência de género é inevitável. De acordo com Tomsen e Mason (2001), a violência é uma resposta hostil à desordem de género, através da qual o/a agressor/a procura reforçar os laços e as hierarquias de género entre e dentro dos grupos das mulheres e dos homens.

52 A prevenção e o combate à violência na intimidade entre pessoas LG passam, na opinião dos entrevistados, pela educação, pela formação e pela especialização. Passam também pelo reforço de equipamentos públicos que ofereçam às vítimas serviços de qualidade.

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RESUMOS

A violência na intimidade entre casais de pessoas do mesmo sexo é semelhante, em termos de caraterísticas e dinâmicas, à violência praticada entre casais de pessoas de sexo diferente. O presente artigo qualitativo tem o principal objetivo de retratar a violência entre casais de pessoas do mesmo sexo através de representações de homens gays. Assim, realizaram-se dois grupos focais com 17 jovens, com idades entre os 19 e 29 anos (M=24.06). Após uma análise de conteúdo temática, concluímos que apesar das semelhanças entre os diversos casais, existem fatores (e.g., dupla estigmatização, invisibilidade, isolamento) que apontam para uma ocultação agravada da violência. A criação de serviços de apoio a vítimas e a formação de profissionais foram apontados como as principais formas de combate à violência, considerando-se pertinente integrar conteúdos de igualdade de género nos programas escolares.

In terms of characteristics and dynamics, the violence occurring in intimate same-sex relationships is similar to that of couples of different sexes. The main objective of the present qualitative article is to portray the violence between same-sex pairs through representations of gay men. Thus, two focus groups were established with 17 young men, aged 19 to 29 (M=24.06). After conducting a final content analysis, we conclude that despite the similarities shared by diverse couples, there are factors such as dual stigmatization, invisibility, and isolation that indicate how violence may be deeply hidden. The creation of support services and the training of

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professionals were offered as ways to combat violence, along with the meaningful inclusion of content on gender equality in school programs.

La violence dans l’intimité entre couples de personnes du même sexe est semblable, en termes de caractéristiques et de dynamiques, à celle qui est pratiquée entre personnes de sexe différent. Le présent article qualitatif a pour objectif principal de dresser un portrait de la violence entre couples de personnes du même sexe par le biais de représentations d’hommes gays. Dès lors, nous avons créé deux groupes cibles comportant 17 jeunes dont l’âge était compris entre 19 et 29 ans (M=24.06). Après une analyse de contenu thématique, nous sommes parvenus à la conclusion que, en dépit des similitudes entre divers couples, il existe des facteurs (i.e., double stigmatisation, invisibilité, isolement) qui indiquent une dissimulation aggravée de la violence. La création de service d’appui aux victimes et la formation de professionnels furent désignées comme étant les meilleures formes de lutte contre la violence. Il fut aussi tenu comme pertinent d’intégrer des contenus d’égalité de genre dans les programmes scolaires.

ÍNDICE

Mots-clés: couples homosexuels, égalité de genre, espace public, homophobie, prévention de la violence, victimisation Palavras-chave: casais homossexuais, espaço público, homofobia, igualdade de género, prevenção da violência, vitimação Keywords: gender equality, homophobia, homosexual couples, public space, victimisation, violence prevention

AUTORES

RITA ELÍSIO

Doutoranda na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Rua Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal [email protected]

SOFIA NEVES

ISMAI – Instituto Universitário da Maia | Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa | Associação Plano i Avenida Carlos Oliveira Campos, Castêlo da Maia, 4475-690 Maia, Portugal [email protected]

RITA PAULOS

Casa Qui – Associação de Solidariedade Social Casa da Cidadania do Lumiar, Largo das Conchas 1, 1750-155 Lisboa, Portugal [email protected]

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Crítica da razão populista* Critique of Populist Reason Critique de la raison populiste

Gonçalo Marcelo

NOTA DO EDITOR

Revisto por Victor Ferreira Artigo recebido a 31.07.2017 Aprovado para publicação a 17.07.2018

Introdução

1 Qual o papel da crítica, hoje? Em 1937, quando Max Horkheimer escreveu o texto fundador “Traditional and Critical Theory” (Horkheimer, 2002 [1937]), com a ameaça do nazismo em pano de fundo, ainda parecia possível conceber um esforço crítico que de alguma forma mitigasse a distância entre a teoria e a práxis; que, tendo em conta os critérios avançados pela própria teoria, visasse analisar a sociedade, nela detetando fenómenos perniciosos eventualmente escondidos e, em virtude dessa mesma crítica, tentasse ultrapassá-los. Oito décadas depois, será possível dizer o mesmo? A tarefa não se afigura fácil, por várias ordens de razões. Em primeiro lugar, porque a crítica – incluindo a crítica da “sociedade de massas” celebrizada por Adorno – inclui obviamente uma reflexão sobre os modos de reprodução material assegurados pelo sistema económico e não deixa de ser verdade, até certo ponto, que o sucesso do capitalismo e a ausência de alternativa palpável levou, como diagnosticaram Boltanski e Chiapello (1999), a um certo “silenciamento da crítica”, na medida em que os atores económicos nele têm colaborado de forma mais ou menos pacífica (com exceção, é claro, da mobilização coletiva que se viu em alguns países após a crise de 2007-2008). Em segundo lugar, porque o tipo de critérios fortes que a Teoria Crítica tendia a emitir – isto é, critérios que assumiam que o “teórico”, armado com o poder da crítica, de

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alguma forma via “mais longe” do que quem estava afetado pelo fenómeno ideológico e que, por isso, a crítica poderia assumir um estatuto de validade quase universal – são hoje mais difíceis de defender (Honneth, 2009), dada a prevalência daquilo a que se poderia chamar um relativismo cultural mais ou menos dominante. E a consequência disso é, chamemos-lhe assim, o desprestígio da crítica ou mesmo a suspeita da sua inutilidade social, muitas vezes acusada de ser arrogante, ou mesmo ilegítima, uma vez que se afigura difícil advogar qualquer tipo de superioridade política ou moral quando a força epistémica dessa asserção é cortada pela base porque tudo é suposto equivaler a tudo o resto.

2 Contudo, neste artigo, gostaria de recuperar não só a importância da crítica e de argumentar a favor da sua relevância social e política como também de analisar, de forma mais circunscrita, um fenómeno específico, o do “populismo”, visto sob o ângulo da crítica. Para mais, fá-lo-ei recorrendo a outra noção mais ou menos suspeita nos dias que correm, a de “razão”, com isso recuperando uma tradição pelo menos tão antiga quanto a da filosofia kantiana, a da crítica da razão (Kant, 2008 [1781, 1787]). É claro que aquilo que aqui designo como a “crítica da razão populista”, servindo-me para isso das análises de Ernesto Laclau (2005), não é senão um aspeto daquilo que a razão pode significar ou do âmbito que uma “crítica da razão” escrita em termos contemporâneos poderia abranger. Porém, pelo facto de ser um fenómeno especificamente social e especialmente preocupante no momento atual, e não esquecendo que o esforço da crítica social passa precisamente por tentar levar a cabo uma “história do presente” (Foucault, 1972: 35), parece-me que é um aspeto no qual a importância das “ciências sociais críticas” se torna evidente; por conseguinte, ao operar, ainda que de forma necessariamente sucinta dadas as limitações de espaço, uma tal “crítica da razão populista”, espero estar, mesmo se modestamente, a contribuir para a revalorização dessa função crítica, tantas vezes desvalorizada.

3 Assim sendo, na primeira secção deste artigo, relembrarei a forma como o conceito de populismo tem aparecido no espaço público em tempos recentes de forma não só vaga (o que, como se verá, talvez seja uma das suas características inerentes), mas tendencialmente pejorativa, tornando-se uma espécie de conceito tão plástico que as suas fronteiras praticamente se dissolvem e cujo único elemento comum parece ser a condenação. Na segunda secção, a finalidade é mostrar, com Laclau, que o funcionamento do populismo requer um tipo específico de razão, uma “racionalidade”, e elencar algumas das suas características. Ao longo destas duas secções, um dos objetivos é mostrar que, no fundo, não se deve atacar o “populismo” em bloco, desvelando a razão de ser da sua existência, e argumentar que uma arte da distinção é necessária para o analisar. Na terceira secção, consubstancia-se essa distinção ao atacar as formas inaceitáveis de populismo, caracterizando-as como “patologias da razão”, uma noção tomada à teoria crítica da Escola de Frankfurt. Finalmente, na breve conclusão, tento fornecer algumas indicações relativas à forma como as democracias ocidentais liberais devem tentar lidar com as diversas formas de populismo.

I. O espectro do populismo

Um espectro assola a Europa – o espectro do comunismo. MARX e ENGELS (1997 [1848])

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4 A frase inaugural do Manifesto do Partido Comunista, escrito em 1848 por Marx e Engels, poderia hoje ser reescrita com duas alterações de pormenor. Substitua-se “comunismo” por “populismo” e, com apenas um pouco de exagero, “Europa” por “mundo ocidental” e talvez a frase reflita bem o espírito da época. Tudo se passa como se, hoje em dia, fosse de facto o espectro do populismo a assombrar-nos. E, no entanto, talvez consigamos pronunciar uma tal frase com o mesmo toque de leve ironia com que Marx e Engels abriram o manifesto. Com efeito, o ano de 2016 alterou aquela que seria a ordem previsível dos eventos políticos à escala internacional, sobretudo no eixo do Atlântico Norte; entre a vitória do Brexit, a 24 de junho, e a de Trump, a 10 de novembro, todos os factos pareceram conjugar-se para mostrar que, afinal Fukuyama (1992) não tinha razão: a história não acabou e os processos de globalização não resultaram necessariamente numa ordem liberal internacional sem resto. Por um lado, existe a tendência clara do recrudescimento dos velhos nacionalismos, embora, curiosamente, favorecida por um espírito de colaboração transnacional à qual se poderia chamar, passe o oxímoro, uma “internacional nacionalista” e que tem agregado figuras como Nigel Farage, Marine Le Pen, Donald Trump ou Geert Wilders. Por outro, a verdade é que um levantamento dos conceitos mobilizados mais frequentemente no espaço público, em termos da análise política destes eventos recentes, provavelmente revelaria o populismo como o conceito-chave usado de forma mais pejorativa; uma espécie de conceito bode expiatório que, através de uma série de deslizes semânticos, se torna a justificação de todas as derivas que, de uma ou de outra forma, são denunciadas pelo discurso “normal” ou “normalizado” da lógica política tradicional.

5 Tanto assim é que se torna extremamente difícil fazer uma tipologia dos populismos, das suas causas e características. É que não é só às figuras que acabámos de elencar que a etiqueta “populista” se cola. Pelo contrário, do outro lado do espectro político, fenómenos como o Syriza, o Podemos e até mesmo Bernie Sanders (não esquecendo o Movimento 5 Estrelas, mais difícil de caracterizar do ponto de vista ideológico) foram, também eles, sistematicamente desacreditados perante a opinião pública, acusados de ter um discurso ora irrealista e utópico, ora manipulador, precisamente por ser, alegadamente, populista. Ao mesmo tempo, a operação de denúncia e de redução explicativa acaba por servir como uma espécie de legitimação ao contrário; se todo o discurso ou opção política que escapa aos trâmites do “normal” ou do “instituído” é, eo ipso, populista e se, nesta linha argumentativa, o populismo nada mais é do que “manipulação” ou “distorção” dos factos (e, logo, algo a evitar), então tudo se passa como se o statu quo não tivesse, de facto, alternativa credível. Tese que, convenhamos, no óbvio jogo de poder que pauta a lógica política enquanto tal, é conveniente para as formas político-partidárias e as opções já constituídas, sejam lá elas quais forem.

6 Relembremos as razões da exclusão do populismo do panteão dos conceitos política e filosoficamente dignos. Como relembra Ernesto Laclau em On Populist Reason, as ciências sociais sempre tenderam a remeter o populismo para o domínio do irracional, do não pensável (Laclau, 2005: 19), como se a sua lógica não pudesse aspirar a um estatuto de racionalidade plena. Quer isto dizer que, a maior parte das vezes, o próprio uso do termo é instrumento de exercício de violência simbólica, como diria Bourdieu. Para Laclau, esta exclusão do populismo do domínio do pensável equivale à negação da própria política enquanto tal e à “asserção de que a lógica da comunidade é da responsabilidade de um poder administrativo cuja fonte de legitimidade é um conhecimento adequado daquilo que uma ‘boa’ comunidade é” (ibidem: x) – ou seja,

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aquilo que se opõe ao populismo é uma visão meramente tecnocrática da gestão da “coisa pública”.

7 O resultado, segundo Laclau (2005: 17), é que o populismo passa a ser considerado um mero epifenómeno. Analisam-se os conteúdos sociais (interesses de classe ou de outros grupos sociais) a que ele supostamente dá voz, mas não se começa sequer a considerar a possibilidade de que, talvez, algumas alternativas políticas eventualmente desejáveis só possam ser atingidas por meio da operação da lógica populista. Mas será que, então, o fenómeno populista pode ser considerado um fenómeno totalmente irracional, ou meramente negativo e a evitar? A minha hipótese, sobretudo apoiada nas reflexões de Laclau, é que não. Mas para isso teremos de entender qual o tipo de racionalidade a que corresponde e qual a lógica a que preside.

II. A razão populista

8 Para Laclau (2005: 117), o populismo tem uma lógica política específica e, portanto, a sua própria razão, no duplo sentido de lógica imanente de funcionamento interno e de razão de ser, ou seja, de justificação da sua existência. Para ele, aquilo que caracteriza a operação populista é que ela visa, passe a redundância, a constituição de um “povo”, isto é, de uma vontade coletiva, expressa através de um conjunto de reivindicações que são unificadas e que tentam transformar a ordem social através do uso de mecanismos retóricos e mobilização dos afetos. Esta lógica é parcialmente agonística, procede através da identificação de um adversário, um “outro”. Porém, esse adversário é quase sempre o sistema institucional vigente tal como está constituído. E isso explica, para Laclau, parte do seu poder mobilizador: como qualquer tipo de sistema institucional é inevitavelmente, e pelo menos parcialmente, limitador e frustrante, existe algo de apelativo em qualquer figura que o desafie, sejam quais forem as formas desse desafio. Existe, em qualquer sociedade, um reservatório de sentimentos anti-statu quo que se cristalizam em alguns símbolos de modo bastante independente das formas da sua articulação política e é a presença deles que intuitivamente percebemos quando chamamos “populista” a um discurso ou mobilização. (Laclau, 2005: 123; itálicos no original)1

9 Isto é, o desafio populista radica, em parte, na recusa de reificação das opções políticas à disposição em dado momento. E, diga-se de passagem, o mesmo se aplica, mutatis mutandis, aos usos normativamente aceites (ou impostos) da linguagem na qual habitamos. Isso explica, até certo ponto, a associação de discursos populistas, sobretudo os de direita ou extrema-direita à crítica do alegadamente “politicamente correto”. Entenda-se, aquilo que está em causa nesta observação não é atacar os limites de um discurso que recuse o inaceitável (discursos de ódio, racismo, xenofobia, etc.). Esses limites existem e por boas razões. Na próxima secção, ver-se-á como parte da operação judicativa de separar o trigo do joio em matéria de populismo passa por esta distinção. Contudo, parte da operação populista muitas vezes está associada a um determinado tipo de recusa da fixação de determinadas normas, opções ou usos (políticos, da linguagem, etc.). Daí a tendência para o ataque ao “instituído”, com tudo o de bom, e mau, que isso pode ter.

10 Para Laclau, de facto, a lógica política tem que ver com a própria instituição do social. E esta instituição recorre sempre, pelo menos de forma parcial, à imaginação, ao domínio simbólico, àquilo a que Cornelius Castoriadis (1975) chamava a “imaginação instituinte”. Mas isto significa que todas as lógicas políticas são parcialmente

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contingentes. No mundo ocidental, ao longo das últimas décadas, a lógica prevalente foi, com a ajuda da globalização, a articulação entre a democracia representativa e o pensamento liberal, sobretudo alimentada por aquilo que se veio a designar, de forma pejorativa, o neoliberalismo económico. Porém, aquilo que as formas de populismo têm vindo a mostrar é que existe, para o bem ou para o mal (ou mesmo para o pior), uma possibilidade real de quebrar a lógica desse consenso. O que é o mesmo que dizer que as fronteiras do político (e daquilo que é pensável como forma do político) são móveis – e Laclau (2005: 153) invoca, a propósito do rompimento desta lógica de consenso, a noção gramsciana de “guerra de posição”. Para Laclau trata-se, portanto, de mostrar que há uma pluralidade de diferentes maneiras de formar uma subjetividade popular democrática. E isso inclui, obviamente, o recurso a formas de democracia mais direta.

11 Colocar a questão nestes termos tem um potencial chocante porque desafia, até certo ponto, e como diria Rawls (1971), todas as nossas “convicções ponderadas” comummente aceites sobre a nossa forma de exercício da democracia e o seu funcionamento. Acontece é que esse funcionamento, e todo o aparato teórico que o suporta, também têm os seus pressupostos específicos, e esses pressupostos têm de ser pensados. São importantes, a esse respeito, as críticas de Chantal Mouffe: O fracasso da teoria democrática contemporânea em tratar de modo adequado a questão da cidadania é consequência do facto de operar com uma conceção do sujeito que pensa os indivíduos como existindo antes da sociedade, e como sendo portadores de direitos naturais, ou maximizadores de utilidade ou sujeitos racionais. Eles são, portanto, abstraídos de todas as relações sociais, todas as relações de poder, linguagem e cultura, e de todo o conjunto de práticas que tornam possível a agência. Assim, aquilo que é escondido por estas abordagens racionais é a própria questão das condições de existência de um sujeito democrático. (Mouffe apud Laclau, 2005: 166)

12 Estas observações de Mouffe são importantes por vários motivos. Não é só por revelarem um dos graves problemas da corrente dominante da filosofia política contemporânea, a saber, a do seu afastamento de uma análise social concreta, isto é, a renúncia à tentativa de procurar conhecer as sociedades como elas realmente são, em vez de se fixar em princípios normativos puramente abstratos (Honneth, 2014: 1). É também porque ataca de frente as consequências da conceção de razão dominante para a forma como concebemos os agentes individuais e as suas motivações, maneira de agir e opções (incluindo políticas) à sua disposição. Em certo sentido, quer a teoria económica dominante – aquilo a que se veio a chamar a economia neoclássica e, sobretudo, a teoria da escolha racional –, quer a filosofia política liberal (no sentido de Rawls) partem deste pressuposto de um indivíduo autónomo e intrinsecamente racional, sendo esta racionalidade equivalente ao interesse próprio (ou, em versões mais sofisticadas, à maximização da utilidade esperada e respetiva modelização). Em ambos os casos, é excluída a possibilidade de qualquer coisa como a inversão da ordem de prioridade entre a subjetividade e a subjetivação, no sentido de Foucault (2001). É que a subjetividade não é um dado. Os indivíduos não nascem “todos feitos”; e, em certo sentido, o processo de socialização é também um processo de subjetivação, de criação daquilo que a filosofia reflexiva designa como um “si-mesmo”. E desse processo não estão excluídas as relações de poder nas relações intersubjetivas, nem nas relações dos indivíduos com as ordens normativas vigentes, ou as narrativas que refletem as suas identidades pessoais e coletivas (Butler, 2005). E é óbvio que reformular o conceito de razão que temos disponível, afiná-lo por comparação com o comportamento real dos agentes e as dinâmicas sociais que os envolvem – abrindo-o, por exemplo, à

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possibilidade de uma “razão populista” mesmo que ela implique uma crítica –, será parte do trabalho de compreensão dos mecanismos que temos à disposição para pensar a construção da subjetividade.

13 Ora, para Laclau, é a construção desta subjetividade que é essencial para o funcionamento da democracia. Mas isso implica, necessariamente, a contestação e a alteração de uma ordem prévia: O populismo apresenta-se não só como subvertendo o estado de coisas existente mas também como o ponto de partida para uma reconstrução mais ou menos radical de uma nova ordem, sempre que a ordem anterior tenha sido abalada. Por conseguinte, o sistema institucional tem de ser (mais ou menos) quebrado para que o apelo populista seja efetivo. (Laclau, 2005: 177)

14 Significa isto que o populismo é vetor de mudança; ou, como Laclau (ibidem) também o expressa: “algum grau de crise da antiga estrutura é uma precondição necessária do populismo”. E os exemplos que dá são elucidativos. Sem a Grande Depressão da década de 1930, Hitler mais não teria sido do que um vociferante líder de um movimento político marginal; sem a crise da IV

15 República francesa e a guerra da Argélia, De Gaulle não se teria conseguido afirmar; sem a erosão do sistema oligárquico na Argentina da década de 1930, a ascensão de Perón teria sido impensável (Laclau, 2005: 177).

16 Em última instância, Laclau desenvolve toda uma teoria dos afetos, da linguagem, e da estratégia política para explicar a “razão populista”. Não interessa entrar aqui em todos os detalhes desta teoria, o que seria fastidioso. Será talvez suficiente invocar, em resumo, que é concebida uma estratégia agonística na qual, na luta hegemónica e contra-hegemónica, se visa a tal construção da vontade coletiva, democrática, consubstanciada no “povo” e nas suas reivindicações coletivas; sendo que o populismo é compreendido como necessariamente vago e, claro, tendo em conta a mobilização dos afetos em política. No esquema de Laclau, o populismo requer a identificação com um “significante vazio” que funciona como mecanismo de representação. Para ele, as identidades populares têm uma estrutura interna que é representativa (ibidem: 163) ou, se se quiser, “simbólica”. Mas, como o significante é “vazio”, pode ser ocupado por diferentes formas de constituição da “objetividade social”, por diferentes interesses ou tentativas de construção hegemónica.

17 Parte da conclusão de Laclau, contra Lefort, é que a ligação entre democracia e liberalismo é meramente contingente (ibidem: 167) e que, portanto, existem outras articulações possíveis, também elas contingentes. Isto é: nenhum regime político é autorreferencial e, portanto, em tese, é possível a existência de formas de democracia que não são devedoras do imaginário simbólico liberal (ibidem). O que resulta desta análise é que existe uma pluralidade de práticas e de imaginários diferentes que podem refundar aquilo que o conteúdo de uma democracia pode vir a ser; e uma visão da razão que não ignora a produção de subjetividade e de vontade democrática enquanto processo, nem a contingência dos imaginários e das opções políticas, nem o papel dos afetos políticos como motor de transformação.

18 Talvez o percurso desta secção, que foi feito sobretudo com Laclau, tenha sido mais ou menos suficiente para mostrar não só que o populismo tem uma “razão” como também uma “razão de ser” que equivale, se não, obviamente, a uma justificação de todas as suas instanciações, pelo menos a uma lógica política específica que de facto existe. Portanto, não faz sentido rejeitá-lo “em bloco”, até porque fazê-lo acaba por poder não

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ser mais do que uma espécie de justificação automática do “dado”, do já existente, da ordem de coisas, simbólica e prática, tal como ela está constituída. Assim, perceber a razão populista equivale, por um lado, a renunciar à perspetiva de uma sociedade totalmente reconciliada (porque o elemento agonístico é constitutivo da lógica política enquanto tal) e, por outro, como já se viu, à redução da política a uma mera gestão tecnocrática (Laclau, 2005: 225). Porém, como é óbvio, o diabo está nos detalhes. É que, se o significante é vazio, como Laclau argumenta, e se há uma heterogeneidade que se constitui como excesso e sobredeterminação (ibidem: 223), diferentes estratégias hegemónicas podem ser tentadas e, como é óbvio, algumas serão melhores do que outras. Por exemplo, argumenta Laclau, não se consegue prever a priori se a constituição de determinada identidade coletiva formada por meio da razão populista se tornará ou não nacionalista (ibidem: 227) uma vez que o elemento de contingência radical associado ao significante vazio pode ser ocupado por diferentes formas. Porém, na prática, parece-me que isso não nos deixa alternativa a não ser – afastada que está a hipótese fácil mas pouco rigorosa de afastar o populismo tout court enquanto alegadamente irracional – proceder a uma operação de separação e depuração. Quais são os movimentos políticos que, escapando ao alegado statu quo e, por isso, podendo ser denominados “populistas” (ainda que, como se viu, a maior parte das vezes, a partir de fora e de forma pejorativa – veja-se como raramente um movimento reivindica o epíteto “populista”; normalmente o populista, como o “terrorista” é sempre o “outro”), podem ser considerados aceitáveis, e quais devem ser rejeitados?

III. Será o populismo uma patologia da razão?

19 A questão que acaba de ser invocada na secção precedente não é anódina porque, pelo menos a fazer fé em Laclau, não é só a denúncia do populismo que, como se viu na primeira secção, está na ordem do dia. É que é o próprio populismo que tende a aumentar de forma estrutural porque, segundo Laclau (2005: 230), a nossa condição histórica é testemunha de uma proliferação de “pontos heterogéneos de rutura e antagonismos [que] requerem cada vez mais formas políticas de reagregação”. E, segundo ele, a causa disso reside no capitalismo global, entendido enquanto um complexo no qual determinações económicas, políticas, militares, tecnológicas e outras – cada uma com a sua própria lógica e uma certa autonomia – entra na determinação do movimento do todo. Por outras palavras, a heterogeneidade pertence à essência do capitalismo, cujas estabilizações parciais são por natureza hegemónicas. (ibidem)

20 É curioso notar que Laclau não atribui à globalização do capitalismo uma tendência de homogeneização mas, pelo contrário, nela descobre a fonte da heterogeneidade. Porém, o que é importante sublinhar é que, neste caldo de tensões que é a ordem capitalista global, o autor argentino vê uma causa estrutural do acentuar da própria operação populista. E isto porque, em parte, a construção discursiva da divisão social é exacerbada por este processo. Para Laclau, a lógica antagónica é inerente à operação populista. Contudo, nestas condições estruturais, a “identidade do inimigo” torna-se “mais instável” (Laclau, 2005: 231). Por outras palavras, há uma lógica de proliferação dos inimigos e de aprofundamento da operação populista, não necessariamente no melhor dos sentidos. E, para mais, como se percebe pela passagem destacada acima, estes antagonismos tornam-se nem só económicos, nem só políticos, mas ambos, numa

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complexidade de fatores que nem sempre são possíveis de discernir. Dir-se-ia, então, que a sobredeterminação tem os seus perigos específicos.

21 Mas toda esta problemática obriga, até certo ponto, a mudar o foco da análise. Laclau reconhece que a lógica que preside às reivindicações que mais tarde se podem tornar populistas é baseada na heterogeneidade. E dá o exemplo de uma reivindicação de salários mais elevados: essa lógica não é puramente “capitalista”, recorrendo antes a uma gramática diferente, que é a do “discurso da justiça” (Laclau, 2005: 232). A minha hipótese é a de que distinguir aquilo que há de aceitável ou mesmo necessário no populismo daquilo que nele há de inaceitável passa por mudar o nível da análise, abandonando o nível de ontologia social que foi adotado na secção anterior e colocando o foco simplesmente numa distinção entre diferentes formas de populismo consoante os valores que defendem, as narrativas que promovem e as consequências a que podem levar. E isto significa, por outro lado, que, embora reconhecendo a existência de algo como a “razão populista”, a crítica da mesma ainda deve poder rejeitar as formas perniciosas de populismo. Isto equivale, mutatis mutandis, a renovar o gesto crítico de Kant na Crítica da razão pura, sobretudo quando, no prefácio à 2.ª edição, menciona a dupla valência da crítica (Kant, 2008 [1787]: Bxxiii-xxiv). Para Kant a crítica é simultaneamente negativa e positiva. O seu lado negativo consiste, obviamente, na denúncia dos usos ilegítimos da razão; porém, ao depurar a razão destes usos, o lado positivo aparece: o de libertá-la para um uso legítimo, impondo-lhe o mais adequadamente possível os seus limites.

22 Uma das hipóteses que gostaria de explorar aqui é a de a razão populista ser especialmente atreita a uma lógica de exacerbação dos antagonismos que se torna excludente e atentatória dos valores das sociedades liberais que, embora contingentes na sua formulação específica, como Laclau assinala, são as nossas. E, para o fazer, adotarei a terminologia da Teoria Crítica, recuperando as análises de Axel Honneth. Segundo Honneth (2009), podem entender-se as críticas de alguns dos autores mais importantes da Escola de Frankfurt (a saber: Horkheimer, Adorno, Marcuse e Habermas) como estando ancoradas na identificação de distorções no processo de desenvolvimento da razão na sociedade. Como é óbvio, também Honneth se reconhece nesta descrição, embora admita a necessidade de adaptar este quadro teórico aos fenómenos contemporâneos. A patologia, neste caso, consiste na distância que vai entre o “potencial da razão” e a forma como este potencial falha muitas vezes em ser instanciado. Um exemplo claro aqui poderia ser a discrepância entre aquilo a que nominalmente aderimos e aceitamos como fazendo parte do núcleo essencial de valores a que aderimos enquanto sociedade, e a forma como depois, na prática, esses valores não são respeitados. Este fenómeno, nos termos de Honneth (2009), seria claramente uma patologia social e, na medida em que pressupõe uma instanciação falhada de um objetivo que seria, em si, racional, configuraria igualmente uma patologia da razão.

23 De forma mais específica, Honneth atribui a este conjunto de autores que denunciam as patologias da razão um alvo de crítica comum, a saber, a forma específica como a racionalidade moderna se deixou influenciar, em termos teóricos e sociais, pelo desenvolvimento do capitalismo. Um exemplo claro é a denúncia da reificação que é feita por Lukács, e que depois teve influência significativa em Adorno e Horkheimer: o sistema objetivo de troca e de busca de lucro e manipulação de bens promovido pelo capitalismo tende a desenvolver nos indivíduos uma mentalidade estratégica na qual, em última instância, não são só os bens que são tratados como objetos de troca, são

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também as pessoas que acabam por ser consideradas como “coisas” e submetidas a um tratamento instrumental.

24 Honneth também considera que estas patologias causam aquilo a que chama “sofrimento social”, isto é, um tipo de sofrimento que atinge diferentes indivíduos nas suas vidas pessoais mas que, em última instância, tem causas que são endémicas às próprias sociedades; e, finalmente, relembra que a especificidade da Teoria Crítica é a de procurar, por assim dizer, um alívio destes sintomas, uma emancipação em relação às condições sociais patológicas que, se bem-sucedida, seria igualmente um avanço da razão no sentido certo, uma correção da sua instanciação, que deixaria portanto de ser patológica. Cabe igualmente lembrar que a noção de razão é polissémica, e que parte das consequências patológicas do seu exercício pode derivar de uma compreensão inadequada das suas potencialidades. Daí a necessidade da crítica. Em resumo, pode dizer-se que tal esforço crítico, a ser bem-sucedido, deve passar por uma vigilância permanente que, mais do que aplicar uma esquematização categorial preconcebida à realidade social, tem de apontar hic et nunc os fenómenos patológicos. De um diagnóstico correto dos usos abusivos, injustos ou reificados de razão, inclusive nos seus possíveis efeitos perniciosos a um nível ético e político, é que poderá decorrer uma conceção de razão mais justa.

25 E é neste ponto que é possível perceber a ligação com o populismo. É que, se a razão pode ser emancipatória, também pode ser violenta e persecutória, como a primeira geração da Escola de Frankfurt bem percebeu. O percurso feito até aqui com Laclau permitiu a perceção de como uma lógica antagónica, agonística, está na base do próprio processo democrático. Porém, ocupar o significante vazio com uma panóplia de inimigos é, em si mesmo, uma ameaça à democracia. Por outro lado, a lógica representacional e simbólica que forma o horizonte de funcionamento das nossas sociedades – ou, como Castoriadis (1975) diria, a relação entre o instituinte e o instituído – tem uma consubstanciação muito prática nos quadros normativos pelos quais nos regemos e nas narrativas que suportam as nossas opções políticas e enformam, até certo ponto, as nossas identidades coletivas (e, logo, ajudam a desenvolver os processos de subjetivação que foram relembrados acima).

26 Neste sentido, a lógica política populista pode ser importantíssima na quebra da “tirania do dado”. E isto porque existem vantagens na perceção do carácter eminentemente contingente de qualquer ordem política. Pensar na radical novidade e fragilidade da ação humana implica a desnaturalização do statu quo, com todas as consequências que isso pode ter. Por um lado, qualquer ordem vigente que se pretenda sem alternativa é ideológica, em sentido patológico, como mostra Ricœur (1986). Assim sendo, a contestação, mesmo aquela que assume a forma populista, pode pelo menos ter a virtude de chamar a atenção para os pontos cegos da situação atual e ajudar a evitar a reprodução social de situações que, muitas vezes, podem ser injustas – embora se possa igualmente dizer, de passagem, que alterar a ordem anterior também não é necessariamente desejável, sobretudo se isso implicar destruir frágeis conquistas.

27 Porém, o sentimento anti-establishment pode muitas vezes ser capitalizado por um tipo de populismo ao qual se pode de facto chamar patológico, que capitaliza um sentimento que muitas vezes é legítimo. Pense-se agora a partir de um exemplo concreto. Como é sabido, a globalização económica, com a sua conjunção muito específica de mercados e sociedades abertas, teve um impacto brutal na redistribuição da riqueza pelo mundo. E se reduziu, como é óbvio, imenso a pobreza absoluta à escala global também é verdade

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que gerou os seus deserdados e fomentou, sobretudo nos países com economias mais desenvolvidas (pense-se no eixo transatlântico) um aumento das desigualdades. O triunfo de Trump entre o operariado branco da chamada “cintura de ferrugem” americana ou a popularidade da Frente Nacional em França não se conseguem compreender sem este fator. E à capacidade de mobilização que têm tido não é alheia a dificuldade de os partidos de esquerda produzirem um discurso para as classes trabalhadoras que faziam parte do seu eleitorado tradicional. De facto, não é preciso procurar com muito afinco para, na ressaca da crise do subprime e das dívidas soberanas, encontrar discursos de enfado ou mesmo de revolta perante “os burocratas”, seja em Bruxelas ou em Washington, alguns não eleitos e por isso com défice de legitimidade democrática, outros eleitos mas sem que isso esconda algum grau de descontentamento com uma democracia meramente formal onde se exerce o direito de voto para em seguida se perceber que a capacidade real de mudança é severamente limitada. É nesse pano de fundo que o discurso populista, feliz ou infelizmente, muitas vezes faz sentido, tem razão de ser. O que não quer dizer, por outro lado, que seja desejável ou esteja correto.

28 Aquilo que me parece fulcral enfatizar é que é importante que não nos enganemos de adversário. Reunir, na mesma etiqueta, Bernie Sanders e Donald Trump, o Podemos e Marine Le Pen não revela apenas falta de rigor; é também, até certo ponto, intelectualmente desonesto, porque tende a emanar de um tipo de posição que parece ter interesse na manutenção de uma ordem de coisas exatamente como está constituída, elidindo assim qualquer hipótese de alternativa racional, atirando-a para fora das margens do pensável e, logo, do legítimo. Mas não haverá uma diferença incomensurável entre, por um lado, agendas progressistas, que se pautem por discursos e propostas inclusivas, de crítica ao sistema atual mas que, ao mesmo tempo, visam a melhoria real de condições de vida de todos, isto é, do “povo” em geral e o alargamento da esfera de direitos universais e, por outro, o discurso xenófobo, racista e autoritário que exacerba, precisamente, a figura do inimigo e, logo, a operação de exclusão? E não será que este segundo fenómeno tem de ser denunciado, e rejeitado, com muito mais força do que o primeiro, por corresponder precisamente a uma patologia e, se se quiser, uma “patologia da razão”?

29 Parece-me, por conseguinte, que a verdadeira ameaça não é o “populismo”, como se se pudesse opor um conhecimento político alegadamente especializado – e que, na cabeça dos apoiantes destes movimentos, não é só arrogante como também paternalista e, logo, passível de gerar revolta – às alternativas discursivas e políticas que tentam falar às grandes camadas de população descontentes com o rumo que as coisas levam. A verdadeira ameaça é, isso sim, o tipo de populismo autoritário de direita que é atentatório dos princípios inclusivos que fundam as nossas sociedades democráticas. Porque é este o tipo de populismo que multiplica os inimigos por toda a parte e é ele que ameaça a inclusão nas nossas sociedades democráticas. Entendamo-nos: não é que uma sociedade totalmente reconciliada seja possível, como Laclau mostra. Não é que sejamos impermeáveis à influência da esfera do económico sobre o político, obviamente não o somos, e a escolha democrática é sempre mais ou menos coartada por influências que são extrapolíticas. Mas a forma como se lida ou não com este problema é que faz a diferença. Construir narrativas que encontrem bodes expiatórios – as minorias, o “outro” racial, sexual, ou estrangeiro –, multiplicando as metáforas de exclusão e levando, como consequência, a uma possível regressão nos direitos e conquistas sociais, isso, sim, é uma patologia da razão que ameaça a democracia. E coloca um dos desafios

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mais sérios, hoje em dia, não só às ciências sociais críticas (que devem contribuir para a denunciar) como à democracia em geral. Contudo, hoje, como há 80 anos, talvez possamos estar à altura de o enfrentar.

Conclusão

30 No termo desta breve reflexão, espero ter conseguido demonstrar que o populismo não é um fenómeno que deva ser remetido para o domínio do irracional e que, pelo contrário, é preciso compreender a sua racionalidade específica, a “razão populista”, em sentido próprio para, em seguida, compreender a sua razão de ser e a legitimidade da existência de tipos de discurso “populista” bem fundados – como os discursos progressistas de um Bernie Sanders, por exemplo – e, por outro lado, em nome de valores como a tolerância e a inclusão nas sociedades democráticas, rejeitar os discursos populistas patológicos (como os que estão normalmente associados ao populismo de extrema-direita) que, obviamente, não passam o teste do paradoxo da tolerância – em democracia, tolera-se tudo, menos o que é intolerável, isto é, aquilo que precisamente exclui, oprime e é instrumento de violência, simbólica ou real.

31 O que fazer para ajudar a prevenir este fenómeno? Habermas (2016) advoga que, para combater este tipo de populismo é necessário que os partidos tradicionais voltem a ter programas políticos suficientemente diferenciados entre si e não tenham medo de enfrentar as questões decisivas. Por exemplo, como conseguir reformular a globalização e a regulação financeira num contexto em que a tendência para o nacionalismo, o isolacionismo e, quem sabe, o protecionismo, ressurgem com força. De forma complementar, parece-me também que aquilo de que precisamos é de uma renovada pedagogia democrática que permita, na medida do possível, que todos consigam exercer um exame crítico das alternativas que se lhes deparam, sejam elas mais tradicionais ou mais inovadoras, mais “elitistas” ou mais “populistas”. Uma prática mais substancial da democracia como exercício da escolha do bem comum, tal como é defendida por Charles Taylor (apud Rothman, 2016).

32 Isso significa não temer necessariamente o populismo, mas compreendê-lo e confrontar as suas causas. Deixar que ele nos leve a alterar o que deve ser alterado sem que com isso se perca o que deve ser protegido e estimado. Separar, como disse no início, o trigo do joio. Saibamos nós contribuir para esse exercício de análise crítica, e metade do nosso trabalho estará feito.

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NOTAS

*. Este artigo foi desenvolvido com o apoio concedido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito da Bolsa de pós-doutoramento com a referência SFRH/BPD/102949/2014. 1. Todas as traduções são do autor.

RESUMOS

Neste artigo, coloca-se a questão da atualidade da crítica, analisando igualmente, de forma mais circunscrita, um fenómeno específico – o do “populismo”. Mostra-se como o populismo tem aparecido de forma pejorativa no espaço público e defende-se, com Laclau (2005), que este fenómeno não deve ser rejeitado em bloco, uma vez que apresenta uma racionalidade específica, importante para o processo democrático, mas que, no entanto, deve ser submetida a uma crítica.

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Assim, avançando aquilo a que no artigo se chama uma “crítica da razão populista”, pretende-se contribuir não só para uma reavaliação do que significa a razão nos dias que correm, mas também se avançam critérios para distinguir aquilo que de produtivo ou nocivo pode existir no fenómeno do populismo, através de uma análise das narrativas e valores que cada discurso “populista” transmite.

This paper poses the question of the present state of criticism while also analyzing, in a more circumscribed manner, the specific phenomenon of “populism”. It shows the way in which populism as appeared in the public space mainly in a pejorative sense, and it suggests, along with Laclau (2005), that this phenomenon must not be rejected as such, insofar as it contains a specific rationality that is important for the democratic process but that must also be submitted to critical scrutiny. Thus, putting forward what the article calls a “critique of populist reason”, not only does it aim at reassessing what reason means today, but it also tries to distinguish the productive from the pernicious uses of populism by analyzing the narratives and values that each “populist” discourse mobilizes.

Cet article pose la question de l’actualité de la critique et il analyse aussi, d’une façon plus restreinte, le phénomène spécifique du “populisme”. L’article montre comment le populisme apparaît dans un sens péjoratif dans l’espace public et soutient, avec Laclau (2005) que ce phénomène ne doit pas être rejeté en bloc car il fait preuve d’une rationalité spécifique qui est importante pour le processus démocratique mais doit aussi passer au crible de la critique. L’article propose donc ce qu’il appelle une “critique de la raison populiste” et contribue ainsi non seulement à réévaluer ce que “raison” veut dire aujourd’hui, mais aussi à avancer des critères pour distinguer ce qui de productif ou de nocif peut faire surface dans le phénomène du populisme, par le biais d’une analyse des récits et des valeurs que chaque discours “populiste” met en avant.

ÍNDICE

Mots-clés: démocratie, populisme, raison, théorie critique, tolérance Keywords: critical theory, democracy, populism, reason, tolerance Palavras-chave: democracia, populismo, razão, teoria crítica, tolerância

AUTOR

GONÇALO MARCELO

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra | Católica Porto Business School Largo da Porta Férrea, Faculdade de Letras, 3004-530 Coimbra, Portugal [email protected]

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Mauro Serapioni and Ana Raquel Matos (dir.) Dossier "Participação pública nos sistemas de saúde"

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Participação pública nos sistemas de saúde. Uma introdução*

Mauro Serapioni

1 As inovações democráticas que envolvem os/as cidadãos/ãs nos processos de decisão política têm assumido grande relevância a nível internacional, tendo-se multiplicadas, nos últimos anos, as iniciativas de participação promovidas tanto pelas instituições públicas como pela sociedade civil (Santos, 2003; Smith, 2010; Pateman, 2012). Este debate tem vindo a ser intensificado nas ciências sociais aplicadas à saúde. Vários estudos realçam a acentuada dificuldade de inter-relação entre, por um lado, a tecnicização da medicina e a organização burocrática do sistema de saúde e, por outro, o padrão de comunicação mais natural do “mundo da vida”, segundo a aceção de Habermas (Barry et al., 2001; Chaudhary et al., 2013).

2 É, portanto, manifesta a necessidade de promover uma maior autonomia dos pacientes e uma relação mais equitativa com os profissionais. Existe também uma crescente procura de melhor qualidade na atenção à saúde, uma maior personalização e humanização dos cuidados a prestar e uma valorização da voz dos/as cidadãos/ãs. A literatura assinala diversos argumentos a favor da participação pública nos sistemas de saúde: valoriza o saber e a experiência dos/as pacientes, melhorando, à partida, a qualidade das decisões, conduzindo, consequentemente, a melhores resultados de saúde (van de Bovenkamp et al., 2009); contribui para o incremento da responsabilidade e da transparência nos serviços de saúde (Tritter e McCallum, 2006); aumenta o empoderamento dos/as pacientes (Wallerstein, 2006); fortalece as atividades de promoção da saúde (Serapioni e Matos, 2013); reforça a representatividade dos grupos mais vulneráveis (Timotijevic e Raats, 2007). Potenciar a perspetiva dos/as cidadãos/ãs representa também uma importante estratégia para superar o crescente “défice democrático” que caracteriza os sistemas de saúde (Cooper et al., 1995; Coulter, 2013). Neste contexto, várias organizações internacionais (WHO, 2015; OECD, 2005; Council of Europe, 2001) têm incentivado os governos nacionais a desenvolverem espaços públicos dentro da sociedade civil como locus adequados para democratizar os sistemas de saúde.

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3 Até ao momento, foram desenvolvidas várias iniciativas e mecanismos para envolver os/as cidadãos/ãs – conselhos de saúde no Brasil, em Espanha e em Portugal, comités consultivos mistos na Itália, júris de cidadãos/ãs em Inglaterra e nos Estados Unidos da América, ChoiceWork Dialogue no Canadá, etc. (Degeling et al., 2015; Serapioni e Matos, 2016) – e investidos recursos significativos no desenho e implementação de tais práticas participativas. Entretanto, os resultados de diversas investigações (Morrison e Dearde, 2013; Conklin et al., 2015) indicam que, apesar das boas intenções e de alguns esforços louváveis empreendidos, o grau de institucionalização da participação ainda está longe de ser satisfatório. A maioria dos benefícios esperados da participação pública baseia- se, principalmente, em pressupostos teóricos e normativos, e não tanto em dados empíricos (Contandriopoulos, 2004; Boivin et al., 2014).

4 Neste prisma, diversos estudos têm apontado os pontos críticos que afetam a qualidade e a efetividade da participação pública nos sistemas de saúde. Alguns dos mais significativos são os seguintes: 1) a falta de representatividade dos fóruns participativos e sua dificuldade em incluir os diversos segmentos da sociedade civil, nomeadamente os grupos socialmente excluídos (Contandriopoulos, 2004; Li et al., 2015); 2) a necessidade de criar mais mecanismos capazes de produzir decisões coletivas e de aumentar a legitimidade das decisões. Neste âmbito, os métodos deliberativos têm despertado um grande interesse no campo da saúde, em virtude de sua dinâmica organizativa inovadora, na qual os/as participantes podem expressar livremente os seus argumentos, num ambiente democrático (Avritzer, 2011; Fung, 2015); 3) a escassez de investigações avaliativas que demonstrem a efetividade das práticas de participação pública (Burton, 2009; Serapioni, 2014). Apesar de anos de experiências e práticas participativas, ainda poucos estudos se debruçaram sobre a forma como os/as cidadãos/ãs poderão ser legítima e efetivamente envolvidos/as nas decisões sobre políticas e organização do cuidado em saúde (Boivin et al., 2014; Conklin et al., 2015).

5 Os contributos incluídos neste dossier debruçam-se sobre algumas das dimensões críticas da participação assinaladas nesta introdução. São de salientar, aqui, três artigos (do Brasil, Espanha e Itália) que abordam os dispositivos de participação promovidos pelas instituições públicas, regionais ou estaduais, também denominados como “espaços convidados” (invited spaces) (Cornwall e Coelho, 2006; Gaventa, 2006). O quarto artigo descreve as iniciativas promovidas pelas associações de doentes em Portugal (created spaces), que reivindicam a abertura de novos fóruns e canais de participação a nível local, regional e nacional (claimed spaces) (Cornwall e Coelho, 2006; Gaventa, 2006). Os fóruns de participação da Europa do Sul abordados neste dossier (Espanha, Itália e Portugal) desempenham um papel consultivo, ao passo que a experiência do Brasil é deliberativa, no sentido em que os/as representantes escolhidos/as participam diretamente nos processos de tomada de decisão.

6 No texto “Avanços e desafios da participação institucionalizada no sistema de saúde do Brasil”, José Patrício Bispo Júnior faz uma descrição dos principais dispositivos de participação institucionalizada, no âmbito do Sistema Único de Saúde do Brasil, nomeadamente as conferências e os conselhos de saúde. Para além disso, analisa os resultados de um estudo de caso sobre o Conselho de Saúde do estado da Bahia. O autor realça os avanços do conselho – no que diz respeito à maior inclusão e ampliação das entidades sociais envolvidas no processo de participação – assinalando, ao mesmo tempo, o escasso poder de decisão (ou “de agenda”) dos/as representantes dos/as utentes e dos/as profissionais. O que pode ser interpretado como um indicador de

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resistência dos/as gestores/as em reequilibrar as relações assimétricas de poder entre os/as diferentes protagonistas bem como constatar um nível insuficiente de influência do conselho sobre a definição de políticas de saúde do estado.

7 Marta Aguilar Gil e José María Bleda García analisam em “El modelo de participación ciudadana en salud en Puertollano (España): más allá de la voluntad política y del empoderamiento ciudadano” os fatores que influenciaram o desaparecimento de uma inovadora experiência de participação implementada na área de saúde de Puertollano, na Comunidade Autónoma de Castilla-La Mancha, em Espanha. Este modelo de participação – composto por um fórum participativo de saúde, um conselho de participação e administração bem como um fórum virtual – funcionou regularmente entre 2008 e 2011, envolvendo um número crescente de associações de pacientes e de cidadãos/ãs. Entretanto, o governo conservador que ganhou as eleições regionais de 2011 não deu continuidade à experiência participativa que, em poucos anos, foi desmantelada, sem que houvesse quaisquer formas de resistência da sociedade civil, dos/as profissionais de saúde e dos partidos políticos da oposição. Entre os fatores responsáveis pela interrupção prematura desta experiência, os autores identificam a falta de um real envolvimento das instituições políticas, a sedimentação insuficiente do projeto na cultura das associações de saúde e a escassa formação de agentes envolvidos/as sobre o tema da participação.

8 O artigo de Silvia Cervia, intitulado “Citizen Engagement and the Challenge of Democratizing Health: An Italian Case Study”, analisa o processo de reorganização da governança da região Toscana (Itália) que, a partir de 2008, instituiu 20 consórcios de saúde (Società della Salute – SDS) para responder às necessidades sociais e de saúde da população. Como parte essencial deste processo, em cada SDS foram introduzidos comités de participação, compostos por representantes das comunidades locais, e grupos consultivos, incluindo organizações de voluntariado e do terceiro setor que trabalham no campo da saúde e dos assuntos sociais. Os resultados dos estudos de caso destacam algumas experiências bem-sucedidas, particularmente no caso dos SDS que estabeleceram regras claras de funcionamento e asseguraram um apoio organizacional às instâncias representativas das comunidades locais, estendendo, desta forma, os seus papéis e influência. Entretanto, como consequência da crise financeira, em 2010, a reorganização regional foi fortemente travada pelo governo nacional, situação que gerou um enfraquecimento desta restruturação.

9 Em “Participação pública na saúde: das ideias à ação em Portugal”, Sofia Crisóstomo e Margarida Santos apresentam a experiência de ativismo em saúde desenvolvida por uma rede de associações de doentes e utentes com o objetivo de institucionalizar mecanismos participativos, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde português. As autoras, após terem assinalado o desfasamento entre o envolvimento público – reconhecido tanto na Constituição como nos planos nacionais de saúde – e a ausência de canais de participação efetivos, descrevem as estratégias e as atividades realizadas no âmbito do projeto “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” (MPms). Adotando abordagens participativas e metodologias de aprendizagem baseadas na investigação- ação, o projeto MPms conseguiu obter resultados relevantes, como: o levantamento de perceções e experiências sobre o tema da participação, tanto de doentes e utentes como das associações que os representam; a elaboração, discussão pública e lançamento da petição “Carta para a participação pública em saúde”; e a entrega dessa petição à Assembleia da República e aos/às deputados/as da Comissão Parlamentar de Saúde.

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10 Os resultados dos casos examinados neste dossier contribuem assim para ampliar o conhecimento sobre as dimensões e os pontos críticos da participação pública nos sistemas de saúde, assim como identificar os fatores contextuais que influenciam a efetividade dos processos participativos e os potenciais défices de representatividade.

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NOTAS

*. Este texto foi desenvolvido com o apoio concedido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/98655/2013).

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AUTOR

MAURO SERAPIONI

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal [email protected]

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Avanços e desafios da participação institucionalizada no sistema de saúde do Brasil Advances and Challenges of Institutionalized Participation in Brazil’s Health System Avancées et challenges de la participation institutionnalisée dans le cadre du système de santé du Brésil

José Patrício Bispo Júnior

NOTA DO EDITOR

Revisto por Rita Cabral Artigo recebido a 01.02.2018 Aprovado para publicação a 05.07.2018

Introdução

1 Nas últimas décadas, reformas participativas ocuparam a agenda governamental em vários países. As pressões da sociedade civil por maior poder de influência e maior espaço nos processos de definição e acompanhamento das políticas públicas influenciaram o desenvolvimento de mecanismos institucionais de vocalização das demandas dos segmentos sociais. No Brasil, as reformas participativas conseguiram prover a abertura de órgãos e entidades estatais aos movimentos e àsdiversas formas de representação da sociedade. Nesse sentido, o país torna-se exemplo para as demais nações, por possibilitar a disseminação da participação da sociedade nas mais variadas áreas de políticas públicas, em todos os níveis de gestão e nos diversos momentos do ciclo da política – planejamento, gestão, execução e avaliação das políticas (Côrtes, 2009).

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2 O incremento da participação social tem a premissa de tornar os governos mais democráticos e sensíveis às aspirações da população. Nos regimes liberais existem distorções sobre a identificação das preferências da sociedade, uma vez que os mecanismos de ausculta às demandas são débeis. As preferências são identificadas a partir dos resultados das eleições, que indicariam as opções ideológicas da maioria votante.

3 De acordo com a concepção minimalista de democracia, esta deve ser entendida como procedimento e como forma. Constitui-se em princípios gerais e regulamentos que tornem o convívio possível. Schumpeter (1976) enfatiza que a democracia é um método político e deve ser compreendida como arranjo institucional para se alcançar decisões políticas. Nesse sentido, a democracia é entendida enquanto atividade meio, ou seja, é utilizada apenas como mecanismo para se tomar decisões. Tal perspectiva reducionista não contempla outras dimensões inerentes aos regimes democráticos, como a garantia de direitos sociais. Bobbio (2009) caracteriza o regime democrático como um conjunto de regras e procedimentos para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação dos interessados. Além disso, inclui no conceito geral de democracia a estratégia de compromisso entre as partes para o respeito às decisões. Habermas (2002), ao discutir os modelos normativos de democracia, considera que o modelo liberal utiliza o regime democrático como estratégia de aglutinação e identificação de interesses.

4 Frente a esse contexto, o sufrágio universal constituiu-se como sinônimo de democracia e distribuição de poder. A possibilidade de estender o direito de escolha à massa trabalhadora confere o status democrático aos regimes liberais. A eleição é utilizada como procedimento e instrumento da sociedade para escolha dos representantes e das políticas. Por meio do voto, a população tem a chance de eleger entre as opções ideológicas e de políticas públicas a que melhor se adequa às suas expectativas.

5 No entanto, como chamam a atenção Lavalle et al. (2006), há sérias controvérsias e ressalvas quanto à capacidade de as eleições levarem à formação de governos realmente representativos das demandas dos cidadãos. As eleições democráticas e representativas distam de ser sinônimo de indicação de preferências sobre políticas públicas, isso, sobretudo, pela natural incapacidade de configuração desse processo. Os resultados dos processos eleitorais podem até registrar o bruto da opinião pública, mas não revelam envergadura para representar a vontade popular e o desejo coletivo (Dryzec, 2004).

6 A partir da segunda metade do séculoXX, as relações entre Estado e sociedade mudaram profundamente e a dinâmica social impôs novos comportamentos e posturas aos atores individuais e coletivos. Nessa conjuntura, as correlações de força se alteraram e a democracia representativa passou a ser questionada enquanto método capaz de responder às demandas materiais, culturais e participativas da sociedade.

7 Assim, foram desenvolvidas várias iniciativas de promoção da participação social. Movimentos e fóruns participativos foram criados com o propósito de ampliar a democracia para além do processo eleitoral. Importante também frisar o processo de fragilização dos sindicatos como entidades tradicionais de representação de interesses da classe trabalhadora e outros segmentos sociais (Braga, 2014; Requena Mora e Rodríguez Victoriano, 2017).

8 Como consequência, as relações e os limites entre Estado e sociedade civil foram significativamente alteradas. Tanto as categorias Estado quanto sociedade civil, em seu

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significado atual, apresentam-se de forma emaranhada e com limite poroso e pouco definido (Borón, 2003).

9 Espaços de participação social e mecanismos de democratização do processo decisório são exemplos de aproximação e indefinição dos limites da relação entre Estado e sociedade civil. Para Santos e Avritzer (2005), a democracia é uma gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade. Questões sobre os papéis e limites da ação do Estado e da sociedade civil permeiam constantemente o debate sobre os mecanismos de democratização e participação.

10 Côrtes (2009) enfatiza os limites do conceito de sociedade civil para análise das relações entre Estado e sociedade. Destaca tanto a necessidade de desmistificação da positividade atribuída ao conceito de sociedade civil, vista como portadora de interesses gerais, quanto à negatividade conferida às instituições políticas, que tendem a agir de acordo com interesses corporativos e particulares. Tanto atores estatais como societais refletem e realizam escolhas movidas por interesses das instituições que representam, bem como por ideias e crenças compartilhadas por eles. Os atores agem, também, constrangidos e estimulados pelas instituições e pelas relações e redes sociais que construíram ao longo de suas trajetórias políticas. Desta forma, os fóruns participativos podem moldar a postura dos atores e, por constrangimento, induzir posicionamentos não esperados para o tipo de entidade que representam.

11 Santos e Avritzer (2005) destacam a peculiaridade do Brasil no que diz respeito ao papel da participação na construção da democracia, após um período de duas ditaduras no s éculoXX. As ações dos movimentos sociais, alicerçada na capacidade de aglutinar pessoas e propor mudanças, demandaram novas práticas políticas que acabaram por gerar novas formas de participação consagradas na Constituição de 1988. Nesse sentido, a constituição cidadã estabeleceu 14 princípios participativos na organização do Estado brasileiro e o mais importante desses é a participação da sociedade civil na deliberação sobre as políticas públicas (Avritzer, 2009). Assim, a participação institucionalizada é entendida nesse texto como a criação de conselhos e conferências de políticas públicas enquanto mecanismos oficiais e integrantes das estruturas dos órgãos do governo.

12 Dentre essas experiências participativas, a que foi desenvolvida no sistema de saúde ganhou notoriedade e destaque no cenário nacional e internacional (Paiva et al., 2014). Conforme será discutido adiante, a criação de conselhos e conferências de saúde representa um importante mecanismo de democratização do setor saúde, com a peculiaridade de se situarem na contramão da tradicional tendência clientelista e autoritária do Estado brasileiro (Gerschman, 2004).

13 Os conselhos possuem uma composição que privilegiam a participação comunitária. Assim, a população conquista um importante espaço para influenciar e definir os rumos das políticas de saúde e para acompanhar e fiscalizar as ações desenvolvidas. Com o processo de descentralização do sistema de saúde brasileiro e a criação de conselhos de saúde em todos os municípios e estados, a institucionalização da participação constitui- se no mais amplo fenômeno de democratização setorial e de compartilhamento de poder do Estado com a sociedade.

14 Ao tomar por referência os estudos de Dahl (2005), é possível sugerir que os conselhos de saúde, conforme instituído em seus marcos legais, apresentam características poliárquicas. Inclusividade e contestação pública são os dois fatores que caracterizam uma poliarquia. Assim, a depender da maior ou menor participação dos indivíduos –

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inclusividade – e da maior ou menor possibilidade de contestar as ações do governo e de interferir em suas decisões, os regimes se tornarão mais ou menos democráticos.

15 No caso dos conselhos de saúde, esses aglutinam a ampla possibilidade da contestação pública e da inclusividade. A inclusividade é materializada com a incorporação dos segmentos populares, a partir da representação dos usuários, bem como de outros segmentos a exemplo do empresariado e de profissionais de saúde. A contestação pública é concretizada com a possibilidade de o conselho propor e decidir por políticas de saúde que podem não necessariamente coincidir com as ideias dos gestores. Também as atribuições de controle e fiscalização sobre a gestão, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, contribuem para o desenvolvimento da contestação pública.

16 Frente a esse contexto, o presente artigo tem como objetivo apresentar e discutir os principais desafios e características da participação institucionalizada no sistema de saúde brasileiro. Para tanto, o manuscrito está organizado em três outras sessões. No tópico seguinte são apresentados um breve histórico, a lógica organizativa e os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Em seguida,sãoanalisadas as características e atribuições dos conselhos e conferências de saúde, como mecanismos institucionalizados de participação. Na sessão posteriorsão analisados os resultados do estudo de caso doConselho de Saúde do estado da Bahia, com especial interesse no que toca ao poder de interferência dos representantes sociais e à capacidade do conselho em interferir sobre os rumos da política de saúde no estado da Bahia.

1. O sistema de saúde do Brasil: breve histórico, princípios e características

17 O sistema de saúde brasileiro, denominado Sistema Único de Saúde (SUS), foi criado na Assembleia Nacional Constituinte de 1988. O principal destaque do texto constitucional foi estabelecer a Saúde enquanto direito de todos e dever do Estado. Com o SUS, é instituído no Brasil o primeiro sistema nacional de saúde.

18 Anteriormente à criação do mesmo, existia no país um sistema de saúde vinculado ao sistema previdenciário, ao qual apenas os trabalhadores do setor formal tinham acesso. Em decorrência das grandes desigualdades existentes no país e das elevadas taxas de desemprego, havia grandes parcelas da população que não tinham acesso regular aos cuidados de saúde. A atuação do Estado estruturava-se através de campanhas sanitárias e programas específicos para o combate às endemias e epidemias de doenças infecciosas e parasitárias (Escorel, 2012). Conforme destacam Paim et al. (2011), o sistema de saúde do país era fragmentado, desigual e excludente, com diferentes serviços e níveis de cobertura.

19 Importante destacar que o SUS é a principal conquista do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. A reestruturação do sistema de saúde seguiu na contramão das reformas difundidas pelas agências internacionais e demais países, que questionavam a abrangência da proteção social por parte do Estado (Paim et al., 2011). A reforma sanitária brasileira desenvolveu-se no decorrer da década de 1980 em paralelo com a luta pelo fim do regime autoritário e pela transformação da realidade social e política do país. Neste contexto, um amplo movimento social de cunho democrático-popular cresceu no país que envolvia profissionais de saúde, acadêmicos, sindicatos, políticos e

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movimentos sociais (ibidem). Assim, pode-se afirmar que o sistema de saúde brasileiro é o resultado de um intenso processo de participação social, que à época logrou forte poder de influência na agenda política do país.

20 Em 1986, realizou-se a 8.ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), marco do movimento da reforma sanitária. Conforme discutido adiante, esta foi a primeira conferência nacional que envolveu amplamente a sociedade civil e os movimentos sociais na discussão dos rumos do sistema de saúde. Com vasta participação popular, os debates fundamentaram-se em três temas: saúde como direito de cidadania; reformulação do sistema nacional de saúde; e financiamento do setor (Noronha et al., 2012). Também foram discutidas a concepção de saúde para além dos aspectos biológicos e a necessidade de criação de instâncias de participação social no âmbito do sistema de saúde (Escorel, 2012). O relatório da 8.ªCNS constituiu- se em referência para todo o movimento sanitário e em alicerce para a construção do SUS (Escorel, 2012; Paim et al., 2011).

21 Após a realização da 8.ªconferência, o movimento sanitário ganhou ainda mais força e seguiu no processo de mobilização e defesa do ideário reformista. Nos anos seguintes (1987 -1988), durante a Assembleia Nacional Constituinte, o movimento sanitário manifestou grande poder de influência ao garantir que o texto da saúde da Constituição Federal fosse elaborado com base n esse relatório, mesmo diante da forte oposição do setor privado e da federação brasileira de hospitais. Assim, a Constituição de 1988 estabeleceu que a saúde é parte da seguridade social e que o SUS constituiu-se em sistema universal, fundamentado no conceito ampliado de saúde.

22 Em 1990 foi publicada a Lei n.º 8080 de 19 de setembro,1 que regulamenta o SUS e estabelece os princípios e diretrizes do sistema. Dentre os 13 princípios e diretrizes estabelecidos, vale destacar: a universalidade do acesso aos serviços de saúde; a integralidade da assistência; a igualdade da assistência à saúde; a descentralização político-administrativa; a participação da comunidade.

23 Os princípios da universalidade do acesso, da integralidade da assistência e da igualdade conformam o SUS como um sistema nacional de saúde que garante a todos os brasileiros uma assistência integral conforme as suas necessidades. O acesso à saúde no país éum direito de cidadania, portanto nãoexistem seguros públicos ou qualquer tipo de taxa ou copagamento para uso dos serviços no âmbito do SUS. Mesmo diante de problemas relacionados às dificuldades de acesso, demora no atendimento e qualidade de alguns serviços (Vargas et al., 2015), o SUS é considerado uma das maiores experiências de sistemas de saúde que se conhece (Paim et al., 2011) e uma política social de grande impacto sobre as iniquidades em saúde (Macinko e Harris, 2015).

24 A diretriz da descentralização político-administrativa orientou uma nova lógica organizava do sistema de saúde. A descentralização redefiniu as responsabilidades entre os entes da federação, proporcionando maior protagonismo e responsabilidades aos estados e, sobretudo, aos municípios. Com isso, cada município passou a ser responsável pela garantia da atenção à saúde dos cidadãos residentes e pela organização dos serviços de saúde em seu território. A descentralização está associada

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também à constituição de uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços de saúde. Assim, os serviços, especialmente os de maior densidade tecnológica, não disponíveis em um determinado município, devem ser assegurados ao cidadão em outro território.

25 A participação da comunidade visa garantir que a população possa participar do processo de formulação de diretrizes e prioridades das políticas de saúde, da fiscalização do cumprimento dos dispositivos legais e normativos dos SUS e do controle e avaliação de ações e serviços de saúde executados nas três esferas de governo (Noronha et al., 2012). O envolvimento comunitário é um dos principais pilares do movimento sanitário e a criação do SUS é, em grande medida, resultado do intenso processo de mobilização da sociedade brasileira. O ideário sanitário tinha como propósito ir muito além da expansão do direito e da reforma setorial, compreendia a saúde como estratégia de democratização social e como potente elemento transformador de toda a sociedade (Lobato, 2009).

26 Nesse sentido, o movimento sanitário fez valer que a participação social fosse institucionalizada no âmbito do Sistema de Saúde. Conforme destaca Lobato (2009), este movimento buscou a criação de um aparato legal a partir da inclusão de um conjunto de mecanismos inovadores que garantissem formalmente a participação dos cidadãos na estrutura administrativa do SUS, como ferramenta para consolidação de Estado democrático e sustentação do próprio movimento da reforma sanitária.

2. Mecanismos institucionais de participação no SUS: as conferências e os conselhos de saúde

27 Ainda como parte do processo de regulamentação do SUS, em 1990 foi também publicada a Lei n.º 8142 de 28 de dezembro,2 que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do sistema de saúde. Essa lei institucionaliza e regulamenta os espaços participativos no âmbito do SUS. Estabelece que as instâncias de participação são as conferências de saúde e os conselhos de saúde e que ambas devem estar presentes em todas as unidades da federação.

28 Segundo Noronha et al. (2012), a institucionalização da participação no SUS é coerente com três ideias principais: 1) o ideal da democracia participativa, que envolve o controle da sociedade sobre o poder público e as políticas de saúde; 2) o desenvolvimento de uma gestão participativa, em que o processo de formulação e de implementação da política de saúde pelos gestores devem ser compartilhados pela sociedade; 3) a necessidade de propiciar um ciclo virtuoso entre a sociedade organizada e as instituições públicas de saúde, que rompam com padrões de comportamento clientelista e patrimonialista ainda presentes na sociedade brasileira.

2.1. Conferências de saúde no Brasil

29 Embora tenham sido estabelecidas a partir de 1990 como mecanismos integrantes da estrutura organizativa do SUS, as conferências de saúde têm uma longa história no Brasil e o seu surgimento antecede em muito a criação do atual sistema de saúde. A primeira conferência nacional de saúde foi realizada em 1941 e até à presente data já foram realizadas no país 15 conferências (Quadro 1).

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QUADRO 1 – Conferências nacionais de saúde do Brasil, ano de realização e temas

Conferência Ano Temas

1. Organização sanitária estadual e municipal 2. Ampliação e sistematização das campanhas nacionais contra a hanseníase e a tuberculose 1.ª CNS 1941 3. Determinação das medidas para desenvolvimento dos serviços básicos de saneamento 4. Plano de desenvolvimento da obra nacional de proteção à maternidade, infância e adolescência

2.ª CNS 1950 Legislação referente à higiene e à segurança no trabalho

1. Situação sanitária da população brasileira 2. Distribuição e coordenação das atividades médico-sanitárias nos níveis 3.ª CNS 1963 federal, estadual e municipal 3. Municipalização dos serviços de saúde 4. Fixação de um plano nacional de saúde

4.ª CNS 1967 Recursos humanos para as atividades em saúde

1. Implementação do Sistema Nacional de Saúde 2. Programa de Saúde Materno-Infantil 5.ª CNS 1975 3. Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica 4. Programa de Controle das Grandes Endemias 5. Programa de Extensão das Ações de Saúde às Populações Rurais

1. Situação atual do controle das grandes endemias 2. Operacionalização dos novos diplomas legais básicos aprovados pelo 6.ª CNS 1977 governo federal em matéria de saúde 3. Interiorização dos serviços de saúde 4. Política Nacional de Saúde

7.ª CNS 1980 Extensão das ações de saúde por meio dos serviços básicos.

1. Saúde como direito 8.ª CNS 1986 2. Reformulação do Sistema Nacional de Saúde 3. Financiamento setorial

9.ª CNS 1992 Municipalização é o caminho

1. Saúde, cidadania e políticas públicas 2. Gestão e organização dos serviços de saúde 3. Controle social na saúde 10.ª CNS 1996 4. Financiamento da saúde 5. Recursos humanos para a saúde 6. Atenção integral à saúde

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Efetivando o SUS – Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com 11.ª CNS 2000 controle social

Saúde – Direito de todos e dever do Estado, o SUS que temos e o SUS que 12.ª CNS 2003 queremos

13.ª CNS 2007 Saúde e qualidade de vida, políticas de Estado e desenvolvimento

Todos usam o SUS! SUS na seguridade social – Política pública, patrimônio do 14.ª CNS 2011 povo brasileiro

Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas: direito do povo 15.ª CNS 2015 brasileiro

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Brasil (2014), CONASS (2009) e Faria e Lins (2013).

30 O propósito, formato e relevo político das conferências nacionais variaram muito ao longo dos anos. É possível classificar a trajetória das conferências em dois tempos históricos, destacando-se como marco a 8.ª CNS, realizada em 1986. As conferências foram instituídas pela Lei n.º 378 de 1937 como espaço de discussão e avaliação da situação de saúde, no entanto eram restritas a especialistas e burocratas do nível federal e dos governos estaduais. Constituíam espaços estritamente intergovernamentais e de caráter técnico, dos quais participavam apenas as autoridades e os representantes dos governos (CONASS, 2009).

31 Outra característica das primeiras conferências foi a irregularidade temporal da sua realização, previstas a cada dois anos (ibidem). Embora a lei que institui as conferências seja de 1937, a primeira CNS só aconteceu em 1941. Da primeira até à segunda conferência transcorreram nove anos e a terceira só foi realizada 13 anos após a segunda (Quadro 1). O que significa que em nenhum período foi obedecido o intervalo de tempo de dois anos entre as conferências.

32 A 8.ªCNS representou um ponto de inflexão na história das conferências de saúde. Essa conferência contou com grande participação popular, inaugurando um novo formato e conceito das conferências no país .A partir de então,as conferências deixaram de ser um espaço exclusivamente técnico e passaram tambémaconstituir um canal de escuta de setores populares e de diversas representações da sociedade, bem como de amplo debate sobre os rumos do sistema de saúde.

33 A Lei n.º 8142/1990 estabeleceu critérios e fundamentos para a realização das conferências na era SUS. Segundo ela, estas devem ocorrer a cada quatro anos em todas as esferas de governo. A forma organizativa adotada é a convocação da conferência nacional pelo Ministério da Saúde ou pelo Conselho Nacional de Saúde. Como etapas que antecedem a conferência nacional são realizadas as conferências estaduais e as conferências municipais.

34 As conferências envolvem a representação de diversos segmentos sociais, a exemplo de: representações comunitárias e populares; trabalhadores da saúde; sindicatos; gestores; acadêmicos e prestadores privados de serviços. A composição dos delegados de cada conferência obedece ao princípio da paridade, pelo que metade dos membros da conferência consiste em representantes sociais, denominados de usuários, e a outra

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metade é dividida entre trabalhadores de saúde (25%) e gestores e prestadores de saúde, formando um bloco com 25% dos delegados.

35 Os objetivos das conferências consistem em avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para formulação da política de saúde. Desta forma, as conferências de saúde devem servir como ferramenta de planejamento do SUS e balizar o processo de tomada de decisão em todas as esferas de governo.

36 Mesmo diante da importância da inclusão participativa no setor sanitário, estudos demonstram a existência de fragilidades e desafios no que se refere às conferências de saúde (Müller Neto e Artmann, 2014; Ricardi et al., 2017). Em estudo realizado por Ricardi et al. (2017) com o propósito de analisar o modo como as conferências nacionais têm pautado o processo de planejamento do Ministério da Saúde, observou-se que em âmbito nacional o processo de planejamento pouco considera o que foi discutido nas conferências. Um dos aspectos limitantes do efetivo papel das CNS foi a questão da temporalidade. Nas situações analisadas, a realização das conferências ocorre em período posterior à elaboração do Plano Nacional de Saúde, que tem a duração de quatro anos. Outra fragilidade identificada foi a escassez de mecanismos de monitoramento e avaliação. Após a publicação do relatório da conferência não há mecanismos que efetuem o acompanhamento e verifiquem se as diretrizes definidas são incorporadas.

37 Por sua vez, Avritzer (2013), ao analisar a importância das conferências no modo de fazer política do governo federal, identifica que a expansão das conferências nacionais em diversas áreas impactou sobre o poder legislativo e impulsionou o Congresso Nacional a se debruçar sobre novos arranjos para as políticas sociais. Ainda segundo o autor, as conferências nacionais têm um importante impacto nas políticas públicas destinadas aos grupos minoritários e na ampliação das formas deliberativas de tomadas de decisão.

38 Diante desse cenário, vale refletir que as conferências nacionais de saúde, antecedidas pelas etapas municipais e estaduais, são grandes eventos cívicos que mobilizam atores sociais e institucionais em todo o país para o debate e proposições de aprimoramento do sistema nacional de saúde. Mesmo diante dos desafios inerentes à realização de eventos de grande porte e da diversidade dos interesses na área da saúde, as conferências de saúde no Brasil são espaços de ampliação democrática, de inclusão participativa e de ausculta das demandas sociais em saúde.

2.2. Conselhos de saúde no Brasil

39 Os conselhos de saúde são colegiados de caráter permanente e também existentes nos três níveis de governo. Todos os estados e municípios possuem obrigatoriamente um conselho de saúde, para além do Conselho Nacional de Saúde. Essas instâncias participativas fazem parte da estrutura organizacional e administrativa do setor. É estabelecido que a esfera de governo correspondente garante autonomia administrativa e financeira ao conselho para o desenvolvimento das suas atividades.

40 Os aspectos relacionados à composição e atribuições dos conselhos concedem a esses fóruns um arranjo participativo bastante avançado no que diz respeito ao poder de influência da sociedade civil sobre as políticas de saúde. No que tange à composição, a Resolução n.º 453/2012 do Conselho Nacional de Saúde3 estabelece que os conselhos devem ser formados por quatro grupos de participantes: usuários, trabalhadores em

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saúde, prestadores de serviços públicos e privados e gestores governamentais em saúde. Nos conselhos também é observado o princípio da paridade, segundo o qual a representação dos usuários deve equivaler a 50% dos membros. A representação dos trabalhadores em saúde equivale a 25%, sendo os outros 25% distribuídos entre gestores e prestadores de serviços. Essa arquitetura organizacional constitui-se num importante fator de fortalecimento da democracia, pois insere no cenário sanitário atores pertencentes a segmentos sociais de diversas matizes ideológicas e políticas (Bispo Júnior e Gerschman, 2013).

41 Não obstante a importante abrangência de representações no conselho, um dos problemas desse arranjo organizacional é a dificuldade de definição sobre as representações dos usuários. Nesse sentido, duas questões apresentam-se como fundamentais nesse debate. Quem são os(a) usuários do SUS? Como escolher os representantes desse segmento?

42 Como o SUS é um sistema universal de livre acesso aos cidadãos brasileiros, a resposta à primeira questão é que todos(a) são usuários(s) do SUS, inclusive os segmentos que na composição do conselho têm assento diferenciado, como os trabalhadores da saúde, os gestores e os prestadores. Tal situação tem gerado problemas em determinadas localidades no que se refere a que instâncias devem assumir as cadeiras destinadas aos usuários. Em algumas situações, entre os representantes dos usuários observam-se alguns que são provenientes do setor privado (Pereira et al., 2009), de deputados (Escorel e Delgado, 2008) e de vereadores (Bispo Júnior e Sampaio, 2008).

43 Côrtes (2009) reflete que o conceito de usuário de serviços, assim como o de consumidor, é inadequado para analisar as relações sociais que se desenvolvem nos fóruns participativos. Segundo a autora, tais noções são derivadas do campo da economia e referem-se especificamente a indivíduos que usam determinados bens e serviços oferecidos por diferentes vendedores e prestadores. O conceito pode ser útil para análises gerenciais e administrativas da qualidade e condições da oferta dos serviços prestados. Todavia verifica-se que não é a denominação mais apropriada e tampouco o instrumento analítico adequado para compreensão de processos políticos complexos e que envolvam a relação entre Estado e sociedade.

44 No que tange às atribuições, a Resolução n.º 453/2012 do Conselho Nacional de Saúde estabelece que os conselhos têm a função deliberativa e que as resoluções do mesmo serão obrigatoriamente homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído no prazo máximo de 30 dias. Dentre as competências, cabe ainda aos conselhos de saúde atuar na formulação e no controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Tais prerrogativas sugerem um forte mecanismo de compartilhamento de poder dos governos com a sociedade civil.

45 No entanto, esse é um processo social e político complexo e cheio de controvérsias. Na literatura especializada observa-se um importante debate sobre o que se constituiria no caráter deliberativo do conselho. De acordo com Serapioni (2014), na literatura sociológica e política predominam duas visões sobre o termo deliberativo. Na visão anglo-saxônica, deliberar expressa a possibilidade de um grupo debater e analisar determinadas questões, algo que não está obrigatoriamente relacionado ao processo de tomada de decisão. Na literatura do Brasil, a função deliberativa dos conselhos está mais relacionada ao poder de tomar decisões na área da saúde, mesmo que contrariem interesses e proposições dos representantes dos gestores.

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46 Dessa forma, evidencia-se um debate dicotômico sobre o sentido da deliberação: como prática do debate esclarecido sem estar, no entanto, vinculado ao processo decisório ou como processo efetivo de tomada de decisão, após a discussão esclarecida. Serapioni (2014) destaca a importância dos resultados do processo participativo. Embora participar tenha uma função em si mesma, as instâncias participativas devem ter a capacidade de exercer influência sobre as políticas, sobre pena de gerar descrédito e de desmobilização para os que participam. Para Cohen (2009), a noção de democracia deliberativa está enraizada num ideal de compromisso com a resolução de problemas a partir da escolha coletiva. Cidadãos em tal ordem entendem as instituições deliberativas como legítimas e esperam a continuidade de ações após a deliberação pública livre. Segundo Abelson et al. (2003), a deliberação vai muito além da simples discussão de algo; está implicada com o resultado dessa mesma discussão e a efetivação das decisões tomadas.

47 Especificamente sobre os conselhos de saúde, o atributo deliberativo os diferencia dos demais conselhos de outros segmentos sociais, bem como instâncias de diversos países com natureza apenas consultiva na participação em saúde (Bispo Júnior e Gerschman, 2013). Foram desenvolvidos no país normas operacionais e marcos organizativos com o intuito de garantir o pleno funcionamento dos conselhos. Todas as ações e políticas de saúde devem ser obrigatoriamente aprovadas nos conselhos de saúde, sob pena de não receberem repasse de recursos federais para o financiamento do setor. Desta forma, os gestores devem submeter e obter a aprovação do conselho para as políticas a serem desenvolvidas.

48 Tal processo deliberativo pressupõe compartilhamento de poder por parte dos gestores, que até então detinham o monopólio do poder decisório. Nesse contexto, é natural imaginar que essa prática política está sujeita a resistências. Estudos demonstram que em diversas localidades os gestores procuram obstaculizar ou manipular o funcionamento desses fóruns (Ventura et al., 2017; Bispo Júnior e Pinheiro, 2016; Oliveira e Pinheiro, 2010). Moreira (2016) afirma que os conselhos de saúde vivenciam um processo de deslegitimação da função deliberativa seja por via direta, com a não homologação das deliberações por parte dos gestores, seja por via indireta, com restrições às condições de funcionamento e práticas manipulativas dos gestores nos conselhos.

49 Conforme destaca Gerschman (2004), os conselhos de saúde são como convidados inconvenientes ao exercício do processo decisório e a sua postura firme e coesa é fundamental para o ganho de respeito e espaço na arena deliberativa. Segundo Labra (2009), o processo deliberativo é, por natureza, complexo e cheio de incertezas. As plenárias do conselho são espaços de estimado valor para ampliação da democracia e as resoluções são, tipicamente, produtos de processos decisórios. Todavia, não se pode desconsiderar que as deliberações dos conselhos são apenas parte de um processo muito maior, complexo, demorado e incerto. As resoluções dos conselhos não constituem um ciclo completo nem se pretendem finalísticas.

50 A decisão final não ocorre unicamente a partir da deliberação do conselho. A decisão e implementação de uma política é o resultado do embate de várias forças. Atores diversos buscam fazer valer suas intenções com articulação e mecanismos de pressão em diferentes arenas, a exemplo dos poderes legislativo e judiciário, das burocracias estatais, da mídia, ou até mesmo manipulando o imaginário popular (Labra, 2009). Assim, vale destacar que as dificuldades e resistências ao processo de incorporação de

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atores sociais nos espaços deliberativos não podem ser consideradas sinônimos de inópia ou da pouca importância dos conselhos de saúde.

3. Entre a institucionalização e a efetiva participação: o caso do Conselho de Saúde do estado da Bahia

3.1. Objetivo, método e cenário de estudo

51 A fim de ilustrar a participação institucionalizada no sistema de saúde do Brasil, será explorado o estudo realizado no Conselho de Saúde do estado da Bahia (CES/BA) (Bispo Júnior, 2013). O objetivo da pesquisa foi analisar o conselho estadual de saúde enquanto espaço de construção coletiva das políticas de saúde, em dois períodos políticos com matrizes ideológicas distintas. O recorte temporal do estudo foi de 2003 a 2011. Esse período pode dividir-se em dois momentos: de 2003 a 2006, em que o estado era governado pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), de orientação conservadora e privatizante; e entre 2007 e 2011, em que o governo foi conduzido pelo Partido dos Trabalhadores, em uma linha de centro-esquerda. Nesse artigo, se dará ênfase à análise sobre o poder de interferência dos representantes sociais no âmbito do conselho e a capacidade deste em interferir sobre os rumos da política de saúde no estado.

52 A presente investigação caracteriza-se como estudo de caso. Os dados e informações que subsidiaram o estudo foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, de observação participante da dinâmica do conselho e de análise documental. Foram entrevistados 20 conselheiros e ex-conselheiros de saúde, assim distribuídos conforme o segmento representado: sete usuários; quatro trabalhadores da área da saúde e nove gestores e prestadores públicos e privados. As entrevistas foram realizadas entre fevereiro e junho de 2012. Sobre os documentos, foram analisados as atas do plenário do conselho, resoluções do conselho, regimentos internos, relatórios de gestão, planos de saúde e documentos oficiais com leis e portarias da Secretaria de Saúde. Os documentos analisados correspondem ao período de realização do estudo, entre 2003 e 2011. Também foram observadas as reuniões plenárias do conselho no período de 12 meses, entre maio de 2011 e abril de 2012 e uma conferência estadual de saúde do estado, ocorrida entre 12 e 15 de setembro de 2011.

53 Os anos de existência do conselho da Bahia podem ser agrupados em dois períodos. Da sua implantação, em 1993, até 2006, o estado foi governado por um grupo político conservador, de tradição autoritária e de pouca sensibilidade em relação às questões sociais e participativas. Isso se constitui numa grande contradição no que se refere à instância decisória da saúde. No momento em que o SUS assume uma postura de democratização dos espaços de decisão ,com a criação dos conselhos e conferências desaúde, assume o poder na Bahia um governo de orientação pouco participativa, que perdura por 16 anos. Todavia, em 2006, o grupo conservador perde a eleição estadual para o Partido dos Trabalhadores (PT). A partir de 2007, assume o governo do estado um grupo político que defende ideias de democratização da gestão e de envolvimento da população na condução das políticas públicas. Assim, buscou-se analisar o desempenho do conselho da Bahia e o poder de influência dos representantes sociais frente a esses dois cenários políticos.

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54 O conselho estadual de saúde foi criado pela Lei Estadual n.º 6074, de 22 de maio de 1991.4 A Lei n.º 6074/91 dispõe sobre toda a estrutura administrativa do estado. Desta forma, a criação do CES/BA não ocorreu a partir de um ato administrativo próprio e direcionado à institucionalização da participação social no estado. O propósito da referida lei foi a reestruturação organizacional de toda administração pública do estado.

55 Embora o CES/BA tenha sido criado legalmente em 1991, a sua implementação e o respetivo funcionamento ocorreu apenas em 1993. A primeira reunião do conselho aconteceu em 21 de julho de 1993, com um intervalo superior a dois anos entre o ato de criação e a efetiva implementação. A lei de criação do conselho só foi alterada em 2011, com a publicação da Lei n.º 12.053/2011, que dispõe sobre a nova estrutura do CES/BA.5

3.2. Composição do conselho

56 De 2003 até 2012, o Conselho de Saúde do estado da Bahia manteve uma composição não condizente com perspectiva de participação paritária dos segmentos sociais e populares. O conselho era composto por 24 representantes, 12 dos quais em nome dos usuários. No entanto, a ocupação da representação dos usuários era feita de forma que pouco permitia valorizar a representação popular. Dos 12 assentos dos usuários, cinco eram de representantes de segmento de mercado, a exemplo da Federação da Indústria do Estado da Bahia (FIEB), e um era de representação dos deputados estaduais. Ou seja, apenas metade da representação dos usuários era de fato destinada aos representantes de segmentos sociais.

57 Já na gestão do Partido dos Trabalhadores, em 2012 o conselho da Bahia sofre uma importante reestruturação que modifica e amplia o espaço destinado à representação popular: passa a ser composto por 32 membros, 23 dos quais representantes sociais. Os representantes de mercado, que na composição anterior possuíam 33% dos assentos, passaram a ocupar apenas 9% do total. Tal situação demonstra os avanços na representação de segmentos sociais no conselho.

3.3. Poder de agenda dos representantes sociais

58 De acordo com Silva et al. (2009), o controle sobre o processo de formação da agenda de discussão se constitui em um dos principais indicadores relativos à distribuição do poder entre os participantes de um espaço deliberativo. No conselho da Bahia, apesar da possibilidade regimental de inclusão de temas por parte de usuários e trabalhadores, o poder de agenda desses segmentos mostrou-se comprovadamente baixo. Embora representantes dos gestores em saúde afirmem que a pauta é definida democraticamente a partir da demanda dos conselheiros, verifica-se que a pauta era construída exclusivamente conforme conveniência da gestão.

59 Sobre os temas discutidos no âmbito do conselho, os referentes às políticas e programas de saúde e às prestações de contas e aprovação de relatórios foram os predominantes. Embora estas sejam duas temáticas de grande relevância para o exercício do controle social, éimportante destacar que esses temas são pautados por direcionamento da gestão. A discussão de políticas e programas de saúde é motivada principalmente pela obrigatoriedade legal de aprovação no conselho das ações a serem implementadas pela secretaria de saúde. Muitas dessas políticas e programas são proposições do Ministério

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da Saúde que demandam homologação do conselho estadual, a fim de que o estado possa receber a transferência de recursos financeiros.

60 Quando o tema entrava em pauta, a dinâmica adotada se constituía de uma apresentação técnica, seguida de uma breve discussão, contando com momentos para os conselheiros esclarecerem possíveis dúvidas, ocorrendo logo em seguida a votação para se aprovar a referida política ou o programa.

61 Esse modelo de condução foi questionado por muitos conselheiros, que argumentaram sobre o pouco tempo de debate destinado a conhecer a fundo a política ou o programa a ser implementado. Também é colocada em questão a lógica indutiva em favor da aprovação, visto que o debate era conduzido de uma forma que permitia a criação de mecanismos que constrangiam os representantes sociais a aprovar as propostas mesmo sem conhecer a contento o seu conteúdo, com o argumento de que a não aprovação poderia prejudicar a ampliação de serviços para a população. Nesse contexto, é possível concluir que os gestores mantêm rígido controle sobre a formação da pauta, o que sinaliza a existência de relações assimétricas de poder e a dificuldade visível por parte das entidades sociais vocalizarem as suas demandas.

62 Na comparação entre as duas gestões, evidencia-se um processo de avanço limitado no desenvolvimento da participação social. Durante a gestão do Partido dos Trabalhadores foi realizada a reestruturação do conselho com abertura e estímulo à maior participação dos movimentos sociais, o que evidencia a inciativa em direção à democratização do conselho. No entanto, o rigoroso controle da pauta e da agenda de discussão sinaliza a limitação na democratização da saúde em ambos os governos analisados.

63 Ao retomar os critérios propostos por Dahl (2005), de inclusividade e contestação pública como os parâmetros que possibilitam maior participação e permeabilidade ao processo decisório, é possível inferir que o conselho da Bahia avançou apenas parcialmente no sentido de uma maior democratização de suas atividades. No que tange a inclusividade, comprovou-se um crescente processo de ampliação desta, com a valorização da participação popular e o aumento do número de entidades sociais representadas no conselho. No entanto, a postura por parte dos gestores, no que toca a permanecerem resistentes à abertura do controle da agenda de discussão, limita sobremaneira a possibilidade de os setores populares influenciarem os rumos da política, conduzindo assim a um incompleto processo de democratização dessa instâ ncia participativa.

3.4. Efetividade deliberativa e o poder de influência do Conselho de Saúde

64 A análise do poder de interferência do conselho na definição e condução da política de saúde do estado foi embasada no conceito de efetividade deliberativa. Para Cunha (2007), a efetividade deliberativa está relacionada à capacidade efetiva de as instituições influenciarem, controlarem e decidirem sobre determinada política pública. Nesse sentido, a análise se pautou no poder do conselho em influenciar os rumos das políticas de saúde e em exercer controle e acompanhamento da execução.

65 No caso da Bahia, evidencia-se o diminuto poder de influência do conselho sobre a definição da política de saúde do estado. Apesar de manter um bom nível discursivo em

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suas reuniões plenárias, o conselho revela baixa capacidade propositiva sobre a política de saúde, caracterizando-se muito mais como espaço de homologação das proposições do gestor do que como locus de avaliação e direcionamento da política de saúde estadual. Observou-se um direcionamento para atividades de cunho burocrático, com predomínio de acompanhamento das prestações de contas e aprovação de relatórios de gestão. A atuação propositiva sobre políticas mostrou-se frágil.

66 Também foram detectadas fragilidades na capacidade de o conselho acompanhar o processo de implementação das políticas de saúde deliberadas. Foi relatado que a multiplicidade de atribuições e responsabilidades a cargo dos conselheiros constitui-se como fator limitador para o acompanhamento das deliberações proferidas. As ações do conselho são demasiadamente amplas, de modo que, para que fosse possível o conselheiro cumprir suas responsabilidades conforme preconizado, ele teria que se dedicar integralmente à função de conselheiro.

67 Por sua vez, Delgado e Escorel (2008) salientam que os marcos legais que regulamentam os conselhos de saúde têm sobrevalorizado a dimensão técnica, o que parece afastar a dimensão política inerente ao processo democrático. Assim, um desvio tecnocrático estaria balizando as competências normatizadas, extirpando dos conselhos a função política e participativa, com sobrecarga de atribuições fiscalizatórias nem sempre passíveis de serem desempenhadas pelos representantes.

68 Ainda sobre o acompanhamento das políticas, deve-se destacar que a implementação de uma política não é um processo simples e imediato. Em muitos casos, o conselho aprova ações que exigem articulação intersetorial e que demandam um longo período de tempo para serem efetivadas. Assim, o acompanhamento da ação é de difícil controle por sua própria natureza. Além do mais, a implementação efetiva não depende, muitas vezes, apenas das ações dos gestores em saúde. A concretização de uma deliberação do conselho pode estar sujeita às vontades de outros segmentos sociais e de governo, a exemplo das áreas econômica e de planejamento, nem sempre sensíveis às demandas sociais.

Conclusão

69 As reflexões apresentadas no presente artigo apontam para a importância da institucionalização da participação social no sistema de saúde brasileiro. As conferências e os conselhos de saúde constituem-se em importantes mecanismos de inovação democrática, de fomento à participação e de inserção de segmentos sociais na arena deliberativa em saúde.Não obstante a importância de tais avanços, as instâncias participativas também enfrentam dificuldades para constituir- se enquanto mecanismos de vocalização das demandas sociais eem exercer efetiva influência sobre as políticas de saúde.

70 O caso do Conselho de Saúde do estado da Bahia ilustra os avanços e entraves para a democratização do setor, com persistências de relações assimétricas de poder e resistências por parte dos gestores em democratizar o processo decisório. Na análise empreendida, observaram-se diferenças consideráveis e também similaridades entre as duas gestões. Pode-se concluir que tais diferenças e similaridades guardam relação com os pressupostos de inclusividade e contestação pública. O estudo demonstrou que na gestão do Partido dos Trabalhadores muito se avançou na perspectiva da inclusividade,

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com incremento das representações dos segmentos sociais e diminuição dos espaços das representações de mercado. Por sua vez, quando se analisa a dimensão da contestação pública, relacionada com a capacidade do conselho em pautar temas e interferir nos rumos da política, conclui-se que ambas as gestões mantêm impermeável controle sobre a agenda e práticas pouco democráticas no processo de definição das políticas.

71 A democratização do setor da saúde perpassa não apenas pela manutenção da exigência legal de funcionamento dos conselhos de saúde, mas, também, pela disposição das autoridades em compartilhar poder e incorporar os anseios e aspirações dos representantes societais. Por fim, cabe refletir sobre a limitada capacidade de influência das representações dos segmentos sociais no âmbito do conselho. A qualidade da representação nas instâncias participativas é determinada pelo grau de comprometimento e participação da sociedade no processo de construção e implementação das políticas. Assim, a representatividade está sempre assegurada onde existe o interesse e a participação daqueles que serão afetados pela política, ao tempo que a representação tende a ser frágil em contextos de apatia participativa e isolamento do representante.

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NOTAS

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RESUMOS

O presente artigo tem como objetivo analisar os principais desafios e características da participação institucionalizada no sistema de saúde brasileiro. Discute, primeiramente, as características e os princípios do Sistema Único de Saúde, com destaque para a importância da mobilização social na conformação do atual sistema de saúde do país. Em seguida, apresentam-se as características e atribuições dos conselhos e conferências de saúde enquanto mecanismos institucionalizados de participação. Os conselhos de saúde são analisados quanto às características de composição paritária e função deliberativa. Por fim, discutem-se os resultados do estudo de caso do Conselho de Saúde do estado da Bahia. Evidencia-se o baixo poder de agenda dos representantes sociais e a frágil capacidade de influência do conselho na definição da política de saúde.

This paper aims to analyze the main characteristics and challenges of institutionalized participation in the Brazil’s health system. First, it discusses the features and principles of the Unified Health System (SUS), highlighting the importance of social mobilization in shaping the country’s current health system. Next, the characteristics and attributes of health councils and conferences are presented as institutionalized mechanisms of participation. The health councils are analyzed for parity composition and deliberative function. Lastly, the results of the case study of the health council of the state of Bahia are discussed. The results demonstrated the low power of the social representatives’ agenda and the health council’s fragile capacity to exert influence in the definition of health policy.

Le présent article a pour but de se pencher sur les principaux challenges et les principales caractéristiques induits par la participation institutionnalisée dans le cadre du système de santé brésilien. En premier lieu, nous abordons les caractéristiques et les principes du Système Unique de Santé, en soulignant l’importance de la mobilisation sociale dans la forme prise par l’actuel

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système de santé du pays. Ensuite, nous nous rapportons aux caractéristiques et aux attributions des conseils et conférences de santé en tant que mécanismes institutionnalisés de participation. Les conseils de santé sont étudiés en regard des caractéristiques de composition paritaire et de fonction délibérative. Enfin, nous nous penchons sur les résultats de l’étude du Conseil de Santé de l’état de Bahia, qui mettent en évidence que l’agenda des représentant sociaux est faible tout autant qu’est fragile la capacité d’influence du conseil sur la définition de la politique de santé.

ÍNDICE

Palavras-chave: Brasil, democracia, participação cidadã, sistemas de saúde Keywords: Brazil, citizen participation, democracy, health systems Mots-clés: Brésil, démocratie, participation citoyenne, systèmes de santé

AUTOR

JOSÉ PATRÍCIO BISPO JÚNIOR

Instituto Multidisciplinar em Saúde, Universidade Federal da Bahia Rua Hormindo Barros, 58, Bairro Candeias, CEP: 45.029-094, Vitória da Conquista – BA, Brasil [email protected]

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El modelo de participación ciudadana en salud en Puertollano (España): más allá de la voluntad política y del empoderamiento ciudadano The Model of Citizen Participation in Health Services in Puertollano (Spain): Beyond Political Will and Citizen Empowerment Le modèle de participation citoyenne en matière de santé à Puertollano (Espagne): au-delà des décisions politiques et de l’autonomisation citoyenne

Marta Aguilar Gil y José María Bleda García

NOTA DEL EDITOR

Revisado por José Morales Recibido: 24.01.2018 Aceptación comunicada: 14.05.2018

Introducción

1 En el año 2005, el gobierno regional de la comunidad autónoma de Castilla-La Mancha (España) puso en marcha un proceso de participación ciudadana en salud con el objetivo de articular un nuevo modelo que superase y complementase los órganos de participación existentes en ese momento. Este proceso culminó con la implementación de un innovador modelo participativo, basado principalmente en la deliberación de diferentes actores sociales (ciudadanos, profesionales y políticos), en que la toma de

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decisiones era llevada a cabo por todos los sectores implicados, dando un gran peso en la misma a los representantes de los ciudadanos.

2 El modelo funcionó, más o menos adecuadamente, durante los años 2008 a 2011. Si consideramos que la participación ciudadana tiene como meta construir sociedades más democráticas y como objetivos consolidar la democracia, limitar el poder de la Administración y comprometer a los individuos haciéndolos más responsables y copartícipes, podemos afirmar que tal fue alcanzado en la implantación del modelo. Asimismo, los objetivos que se pretendían conseguir específicamente con este modelo eran superar el tradicional modelo de asesoramiento y consulta, y hacer viable un mayor grado de participación en las decisiones sobre gestión sanitaria en el área de salud, que tambiénse logró. En cuanto a la finalidad de los diferentes mecanismos de participación (Foro Participativo de Salud, Foro Virtual y Consejo de Participación y Administración), se alcanzaron los objetivos planteados inicialmente: a) deliberar, planificar y elaborar propuestas ciudadanas para el presupuesto económico del área sanitaria; b) debatir y priorizar las propuestas de los dos foros.

3 El modelo diseñado contemplaba diversos mecanismos –asamblearios, representativos, consultivos y ejecutivos– favoreciendo así una deliberación, tanto fuera como dentro de las instituciones, a través de diferentes órganos de participación donde se planteaba a la Administración las necesidades sanitarias y de salud que se percibían o que se consideraban más importantes para los ciudadanos, a la par de los discursos o propuestas de los políticos y de los técnicos.

4 Posteriormente a su implantación se llevaron a cabo varias evaluaciones intermedias durante dos años; una realizada por una agencia externa –Instituto de Estudios Sociales Avanzados (IESA/CSIC)– y otra efectuada por profesores de la Universidad de Castilla- La Mancha (UCLM), detectándose en ambas evaluaciones aspectos que había que mejorar, esencialmente los relacionados con el empoderamiento ciudadano, la comunicación entre los actores y la falta de una dotación económica específica para el funcionamiento del modelo (Bleda García y Aguilar Gil, 2016: 114). Las propuestas de mejora que se identificaron en estas evaluaciones detallaron indicadores de las realizaciones efectuadas, así como los éxitos y fracasos del modelo. Estas recomendaciones no pudieron ser asumidas por la Administración pública debido a la paralización/neutralización del modelo por parte de la Consejería de Sanidad (Bleda García y Aguilar Gil, 2014: 151), ya que en el año 2009 se inició la redacción del Plan de Salud y Bienestar Social (2011-2020), en el que se pretendía contemplar la participación ciudadana en salud como una línea transversal que afectaría a todas las líneas es tratégicas del mismo.

5 Por otro lado, las elecciones regionales del año 2011 representan la llegada de un gobierno conservador que en muy poco tiempo hace desaparecer la experiencia participativa, favoreciendo así una democracia de baja intensidad. A partir de ese momento se entró en un período de deconstrucción del innovador modelo de participación ciudadana en salud. Transcurridos unos cuatro años, el modelo se desactivó por completo sin ningún tipo de contestación por parte del movimiento ciudadano, la sociedad civil, los profesionales sanitarios o los partidos políticos de la oposición. En el año 2015 hubo nuevas elecciones regionales, lo que significó el regreso de un gobierno socialdemócrata que contemplaba en su programa electoral numerosas acciones de participación ciudadana en salud, pero sin ninguna alusión al modelo participativo que estamos analizando. Estos dos acontecimientos políticos, tan

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importantes en el sistema sanitario de la región, nos hicieron ver la necesidad de investigar por qué había desaparecido un modelo innovador, legítimo y participativo de gran intensidad democrática, reduciendo casi a la nada la participación ciudadana. Es decir, se vio como necesario conocer las causas de la desaparición del modelo, pues tal como dice Luis López Giraldo (2008: 83): “La comunidad académica es uno de los actores más importantes de un sistema sanitario. Es la conciencia crítica y científica que identifica, estudia, analiza y expresa soluciones a los problemas de salud de toda la población”.

6 Esta investigación social aplicada se ha desarrollado una vez que se ha anulado el modelo y se han iniciado nuevas políticas de participación ciudadana en Castilla-La Mancha, dando así por concluido el modelo participativo anterior, y entendiendo la evaluación como un instrumento para la acción y posibilitador de recomendaciones para mejorar la gestión y ejecución de políticas públicas (Ogando y Miranda, 2001: 17).

7 El objetivo principal de esta investigación fue analizar el diseño, la implementación y el desarrollo del modelo para identificar qué factores pudieron influir en la desaparición del mismo. Los objetivos específicos son, primero, conocer las opiniones de los principales actores y, segundo, identificar las causas que determinaron la desaparición del modelo favoreciendo la disminución del grado de democracia.

8 Se partió de las siguientes hipótesis: a. El modelo se implantó y desarrolló sin empoderar adecuadamente a los actores implicados. b. La Administración progresista no asumió sus responsabilidades políticas y gestoras, facilitando así su erradicación por parte del nuevo gobierno conservador.

9 El equipo investigador ha estado formado por investigadores sociales españoles, profesores de las universidades de Sevilla y de Castilla-La Mancha, con una amplia experiencia en investigación sobre políticas públicas en salud. El hecho de ser un equipo externo a la Administración regional conlleva ventajas tales como transparencia, objetividad, rigor y comparabilidad (Jorba y Anduiza, 2009: 152). El interés del equipo investigador no solo ha sido académico, sino también político, en el sentido de incidir en la responsabilidad y la transparencia de la Administración.

10 La metodología usada principalmente ha sido la cualitativa, empleando la técnica de la entrevista en profundidad. Se entrevistó a los actores implicados directamente en la aplicación y desaparición del modelo –ciudadanos, profesionales sanitarios y políticos–, con la finalidad de identificar los diferentes discursos cualitativos para determinar los factores de los éxitos conseguidos y del fracaso del modelo participativo, generando así un gran número de ideas.

1. Fundamentación teórica y conceptual

11 Las tendencias teóricas sobre la participación nos hablan de que esta puede ser por invitación a los ciudadanos por parte de la Administración o por irrupción de los ciudadanos en el poder (GinésSánchez et al., 2010). Partimos de la base de que el modelo de participación ciudadana en salud que hemos analizado fue impulsado en sus primeros momentos desde la Administración regional, iniciando el proceso y regulándolo, con el objetivo de fomentar la participación y articular nuevos instrumentos que la facilitasen; es decir, empezó invitando a diversos agentes sociales a participar en la construcción de un modelo participativo. Fue una propuesta

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sistemática fundamentada y teóricamente sustentada en una democracia más allá de la representativa, donde la administración pública fuese más transparente y permeable a los intereses ciudadanos (Pires y Pineda Nebot, 2011: 261 y ss.; Bispo y Gerschman, 2015: 191).

12 Ahora bien, aunque el protagonismo inicial fue de la Administración, rápidamente los ciudadanos (movimientos sociales, ciudadanía y sociedad civil) y los profesionales sanitarios (organizaciones profesionales y técnicos) se implicaron activamente en la construcción del mismo mediante el debate con la Administración regional (políticos y técnicos); por lo tanto, se estableció una democracia del tipo deliberativa que, siguiendo al profesor Jesús Ibáñez (1997: 62), se dio a tres niveles: 1. Los elementos. Los ciudadanos, a nivel individual o colectivo, se expresaron democráticamente. 2. La estructura. Las relaciones entre los diferentes actores fueron democráticas, simétricas. 3. El sistema. Se optó por la creación de unas nuevas estructuras que mejoraran la esencia democrática.

13 Nos encontramos así con un proceso de democracia participativa y directa, con un control de la acción por parte de los ciudadanos, los cuales adquirieron una posición primordial en la toma de decisiones, inclinándose de esa manera por una democracia de alta intensidad y acercando a los ciudadanos a la política, a las instituciones y al gobierno (Santos, 2005; Requena Mora y Rodríguez Victoriano, 2017: 4 y ss.). Es decir, el modelo participativo de Puertollano se fundamentaba en las teorías de la democracia deliberativa (Ackerman y Fishkin, 2004; Beste, 2013; Bohman, 2009; Cohen, 2001; Habermas, 2005; Hansen y Rosboll, 2012; Held, 2008; Macpherson, 1997; Robles, 2008), las cuales se consideran un avance en el pensamiento de la democracia que pone el acento en la deliberación, el razonamiento público y la justificación de la acción, con la mayor participación ciudadana posible de una manera individual o colectiva.

14 Estas teorías consideran que la estrategia fundamental de un proyecto institucional es promover un mejoramiento de la participación ciudadana (en este caso en el ámbito sanitario) a través de un proceso de democracia deliberativa, mejorando las expectativas y las motivaciones de la población, creando nuevos instrumentos o mecanismos de participación y realizando reformas institucionales (Bleda García y Aguilar Gil, 2011: 99). Dicho planteamiento figura en la estrategia del modelo que estamos analizando, complementado con los criterios establecidos por diversos autores (Donoso, 2009; Richer, 2005; Segura, 2010), tales como establecer marcos jurídicos y normativos que faciliten la participación deliberativa, crear mecanismos de participaci óndeliberativa, delegar responsabilidad por parte de la Administración, incrementar el peso de los ciudadanos en los diferentes procesos y aumentar su responsabilidad, fomentar la conformación de redes, empoderar a los ciudadanos, facilitar el acceso a la información, y formular mecanismos de control, rendición de cuentas y gestión transparente.

15 La investigación se ha centrado fundamentalmente en la búsqueda de indicadores cualitativos, sin olvidar otros cuantitativos. Ogando y Miranda consideran que es “en la última etapa de la vida de una política pública, una vez que desaparece, cuando hay que comprobar si realmente las medidas que se adoptaron surtieron los efectos deseados modificando el estado natural de las cosas, que, en principio, es la razón de ser de toda intervención” (Ogando y Miranda, 2001: 16). La finalidad de esta investigación es

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detectar, mediante instrumentos cualitativos, qué factores de diseño, ejecución y utilidad influyeron en la erradicación del modelo, cómo se llevaron a cabo y por qué sucedieron esos hechos, adoptando una actitud experimental, buscando las relaciones entre causas y efectos de la política p ública participativa con el fin de mejorar las políticas futuras, fortaleciendo así los mecanismos ylos procesos de participación ciudadana en salud, en la Comunidad de Castilla-La Mancha.

16 Antes de establecer los indicadores o preguntas que utilizaríamos decidimos delimitar ciertos conceptos clave, tales como participación ciudadana, gobernabilidad y gobernanza (AA.VV., 2008: 17 y ss.): • La participación ciudadana hay que entenderla como un proceso de comunicación entre la ciudadanía y la Administración para tener un conocimiento más aproximado de la realidad social y de las necesidades de la población, con el fin de mejorar la política y la gestión de lo público. • La gobernabilidad respondería a las diferentes modalidades del poder y a la capacidad que tienen las sociedades para mejorar sus instituciones democráticas y políticas. • La gobernanza se correspondería con la mejora de la eficiencia de las instituciones democráticas y políticas, incidiendo especialmente en la descentralización del poder, el control de lo social y la eficiencia en la implementación de las políticas públicas, lo que supone también una implicación de diferentes actores en la gestión y en el gobierno.

17 Otros conceptos clave son: • Empoderamiento. Entendido aquí como la implicación del ciudadano en la evaluación y planificación de los servicios sanitarios para que sean más eficaces y eficientes, así como en las políticas públicas de salud, pudiendo influir en las agendas de decisión (López Giraldo, 2008: 77). • Transparencia. Transparencia para explicar la gestión realizada, los resultados conseguidos y los recursos empleados, con la finalidad de lograr una mayor confianza tanto en los ciudadanos como en los profesionales.

18 Los indicadores o preguntas seleccionados han seguido los siguientes requisitos: homogeneidad, relevancia, claridad, confiabilidad y verificabilidad (AA.VV., 2008: 19). Asimismo, otros autores proponen que para evaluar políticas y planes de salud es conveniente evaluar el proceso, monitorizarlo respecto a cuatro aspectos: actividad, cobertura, calidad y satisfacción(Villalbíy Tresserras, 2011: 18).

19 Fue así como en relación con las teorías sobre democracia y participación ciudadana en salud, con los conceptos clave, con las características de los indicadores mencionadas anteriormente y con los aspectos del proceso, elegimos los siguientes indicadores pensados específicamente para el análisis: tipos de democracia/de participación, rol de los actores, gobernanza, empoderamiento/conocimiento, comunicación/transparencia y economía/financiación funcionamiento.

2. Metodología

20 La investigación ha consistido en un análisis del modelo para identificar las debilidades y amenazas que contribuyeron a su erradicación, utilizando la técnica de las entrevistas individuales en profundidad.

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21 El análisis llevado a cabo en esta investigación social aplicada lo hemos entendido como un “proceso integral de observación, medida, análisis e interpretación, encaminado al conocimiento de una intervención pública –norma, programa, plan o política– que permita alcanzar un juicio valorativo, basado en evidencias, respecto a su diseño, puesta en práctica, resultados e impactos” (AEVAL, 2010: 13), pero sin olvidar su papel instrumental para hacer más transparente y responsable la acción pública, produciendo de esa manera conclusiones útiles para todos los actores.

22 El proceso mediante el cual definimos los criterios, preguntas e indicadores para el análisis, tal como hemos explicado anteriormente, contempló tanto las teorías de participación democrática deliberativa, como los conceptos clave; esto nos condujo a unos criterios positivos que se reflejaban en la participaciónde los actores implicados. Una vez establecidos los criterios relevantes, específicos, que podían responder a las preocupaciones, comportamientos y vivencias de los actores (Jorba y Anduiza, 2009: 155 y ss.; Parés i Franzi y Castellà, 2009: 241 y ss.), se establecieron unos indicadores amplios: tipos de participación democrática, gobernanza y gobernabilidad, empoderamiento y conocimiento de los actores, comunicación y transparencia, y financiación funcionamiento del modelo.

23 La técnica. Las entrevistas perseguían identificar los diversos discursos de los actores sociales implicados en el proceso de participación ciudadana en salud, objeto de esta investigación, siguiendo así las premisas teóricas de la evaluación naturalista o pluralista que se centran en la importancia de los valores y de las opiniones de la pluralidad de actores (AEVAL, 2010: 85), siendo una técnica “capaz de aproximarse a la intimidad de la conducta social de los sujetos” (Sierra Caballero, 1998: 282). Elaboramos unas preguntas específicas cumpliendo los requisitos formales para este tipo de técnica: sencillas, observables, accesibles, válidas y creíbles para los participantes y los distintos agentes del proceso (Jorba y Anduiza, 2009: 157).

24 El guion. Para llegar al guion definitivo se elaboró un listado de líneas de indagación con unas cuantas preguntas para cada una de ellas. Posteriormente se llevó a cabo una entrevista piloto, que sirvió para preparar la versión definitiva del cuestionario base de las entrevistas. El guion para la entrevista se estructuró en torno a los siguientes aspectos: tipo de democracia, gobernanza, empoderamiento, comunicación y evaluación.

25 Entrevistados seleccionados. Se hizo un muestreo selectivo e intencional escogiendo a las personas que podían facilitar una información profunda y detallada sobre el objetivo de la investigación, pues en este tipo de estudios cualitativos lo que interesa es la comprensión de los fenómenos y de los procesos sociales; también se tuvo en cuenta el rol que desempeñaban en el contexto del proceso. Es decir, el criterio fundamental de su inclusión fue su elevada implicación en la toma de decisiones y su gran conocimiento del proceso.

26 Se seleccionaron a los entrevistados entre los actores más implicados en el proceso de construcción, desarrollo e implantación del nuevo modelo de participación ciudadana en salud, pues se consideró que ellos eran los más capaces y más dispuestos a dar información relevante, eran accesibles y eran personas muy comunicativas, ya que los actores involucrados asumen un papel fundamental, tanto en la formulación e implementación como en la evaluación de las políticas (López Giraldo, 2008: 77). Se dividieron en tres tipos de actores: tres políticos, dos profesionales y tres ciudadanos, cuyos intereses y prácticas eran diferentes.

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27 Los actores políticos elegidos (E1, E2, E8) –máximos responsables sanitarios– fueron los que más se implicaron en la construcción del modelo: los dos consejeros de Sanidad, bajo cuyo mandato se desarrolló el modelo, y un alto responsable –secretario general– del órgano gestor sanitario, el Servicio de Salud de Castilla-La Mancha (SESCAM). Así pues, eran personas que ejercieron altos cargos de nivel directivo y estratégico en las organizaciones políticas sanitarias regionales.

28 Los actores profesionales (E3, E4) –máximos responsables del área de salud donde se implantó el proyecto– fueron los que impulsaron el modelo en el área sanitaria de Puertollano: el director gerente del Área de Gestión Integrada de Puertollano y un técnico que desde un primer momento coordinó técnicamente el proyecto dinamizándolo en su implantación. El gerente del área era el principal responsable de la gestión del área sanitaria, que a la vez estaba liderando una experiencia única en Castilla-La Macha donde se unificaron la atención primaria y la especializada. Mientras que el técnico coordinador era el profesional que se puso a tiempo completo, dedicado a la organización del proyecto y su posterior extensión y dinamización.

29 En cuanto a los ciudadanos (E5, E6, E7) –líderes del movimiento asociativo del territorio donde se llevó a cabo el proyecto–, se seleccionó a tres representantes del movimiento asociativo: una representante de los pacientes y dos representantes de los vecinos, una de las cuales fue la coordinadora del Foro de Participación Ciudadana. Todas ellas estuvieron muy vinculadas al Foro Participativo y muy comprometidas con el movimiento ciudadano de Puertollano.

30 Realización de las entrevistas. Antes de efectuar las entrevistas se les informó de los motivos e intenciones de la investigación, fijando con ellos un lugar adecuado y la hora de la cita, así como la intención de devolverles los resultados de la investigación. Posteriormente, unos días antes de la entrevista se les remitió un correo electrónico con un documento –que era un artículo de los autores de esta investigación– publicado en una revista brasileña (Bleda García y Aguilar Gil, 2016), donde se describía el proceso participativo investigado y una evaluación del mismo, con el fin de rememorar el proceso de construcción, implantación y desarrollo del modelo.

31 Las entrevistas se realizaron en los meses de octubre y noviembre del 2017, en los lugares donde los actores desarrollan sus actividades: a los políticos, en la ciudad de Toledo; a los profesionales, en el municipio de Malagón; y a los representantes de los ciudadanos, en el municipio de Puertollano. Las entrevistas se grabaron para su posterior transcripción escrita y análisis del contenido, llevándose también un diario de campo donde se recogía lo más relevante de la entrevista, así como lo hablado con los actores entrevistados antes y después de realizada la entrevista.

3. Resultados y discusión

32 En este apartado se contemplan las respuestas a las principales cuestiones que hemos planteado como más importantes para el análisis del proceso. Comprende así los análisis de los factores explicativos y las evidencias en las que basaremos nuestras conclusiones y recomendaciones (AEVAL, 2010: 103). En el análisis del proceso nos hemos centrado principalmente en tres aspectos: la valoración cualitativa que los distintos actores tienen sobre el funcionamiento del proceso; la identificación de los

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factores que han influido positiva y negativamente en el desarrollo del modelo, y las propuestas de mejora y recomendaciones (Ogando y Miranda, 2001: 22).

33 A continuación se exponen las preguntas sobre las que giraron las entrevistas personales y las respuestas de los encuestados, recogiendo así la percepción individual de los actores sociales, pues tal como dice López Giraldo (2008: 78): “Cada actor social construye su propia percepción de los problemas que le rodean”.

3.1. Pregunta 1 y respuestas

34 El nuevo modelo de participación basado en la democracia deliberativa, aunque estaba legitimado por una normativa aprobada por el gobierno regional, ¿fue asumido por la organización sanitaria (SESCAM) y la dirección política (Consejería)?

35 Para la mayoría de los actores consultados la organización política sí que asumió el modelo; al más alto nivel sí que fue aceptado, entre otros, por el propio presidente del Gobierno de la comunidad autónoma (E3),1 “se aprobó una normativa legal (Decreto 61/2007), que fue impulsada por la Consejería de Sanidad y por el SESCAM apoyando las iniciativas previas y el desarrollo posterior” (E8);2 pero los niveles más inferiores no se comprometieron, no se consiguió su connivencia o complicidad, aunque fuera mínimamente, pese a que se intentó.

36 Los actores políticos y ciudadanos estiman que en el diseño y la construcción sí que existía una responsabilidad política, la cual empieza a decaer con el siguiente consejero de Sanidad, paralizando de esta manera la extensión del modelo a otros lugares de la comunidad autónoma, probablemente debido a que comienza un periodo de restricción presupuestaria a consecuencia del inicio de la crisis económica global. Otro factor pudo ser el temor a que se incrementaran las demandas ciudadanas, lo que podría suponer un incremento económico en el presupuesto sanitario, que no podría ser contraído: “Temor ante las demandas de la democracia deliberativa, no se van a poder satisfacer las nuevas demandas” (E1),3 había “miedo en la organización política sobre las peticiones ciudadanas… se les hizo hasta grande, no se esperaban que funcionara tan rápido” (E4).4 La elite gestora del SESCAM, formada por más de 50 personas, no debatió el nuevo modelo participativo, aunque tampoco lo cuestionó públicamente: “lo escucha, es muy bonito, está muy bien… pero no levanta ningún interés entre los directivos” (E2).5 El mensaje político en defensa de la democracia deliberativa era atractivo para los propios políticos: “encajaba bien en la filosofía de la Junta y de la Consejería de favorecer la participación ciudadana” (E8); un lema de aquella época era: “El paciente es el centro del sistema”. Para fundamentarlo se inició el nuevo modelo participativo, pero la realidad fue que gran parte de los directivos políticos y gestores no creían en el mismo: “Por debajo del consejero no se lo creía nadie” (E4), con la excepción del gerente del Área de Puertollano que “facilitó todo lo necesario para el funcionamiento del Foro” (E5),6 “hacía caso a las peticiones ciudadanas” (E6).7

37 Para los ciudadanos el proyecto fue muy atractivo en un principio, confiaron plenamente en las organizaciones política y gestora, pero “cuando no hubo presupuesto económico para el funcionamiento del Foro, pues empecé a no creer en el compromiso” (E5). Los ciudadanos sí que se implicaron en el proyecto, apostaban por una democracia deliberativa, los políticos no: “A los políticos les molesta que los ciudadanos les demos ideas, les molesta que les cuestionemos… la presencia política distorsiona… yo les dejaría completamente al margen en un proyecto participativo” (E5).

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38 De las opiniones anteriores se deduce una mínima implicación de las organizaciones políticas y sanitarias en el desarrollo del modelo participativo, poniendo más el acento en un proyecto impulsado por unos pocos actores, que son los que ejercen el liderazgo inicial, pero que cuando entran otros actores aquellos ya no se implican de la misma manera y, por consiguiente, el modelo entra en decadencia, propiciando de este modo su desaparición posterior con la entrada de un gobierno conservador en la comunidad de Castilla-La Mancha.

39 Una posible interpretación de esta, casi única, implicación de los actores políticos y gestores que impulsaron inicialmente el proceso, está relacionada con lo que apunta Segura (2010: 60): “Probablemente el renovado interés en el fomento de la implicación de ciudadanos y pacientes en la escena de la política sanitaria tiene que ver con la necesidad de contención de los costes públicos y con la de compartir las responsabilidades en la utilización de los servicios sanitarios”, que pudo traducirse en unos intereses políticos coyunturales y personales, impidiendo así la asunción de un modelo por parte de la organización política y gestora. O, tal vez, como opinan otros autores, muchas organizaciones no pueden hacer frente a todas las posibilidades de participación que se le atribuyen (van de Bovenkamp et al., 2010: 73). A ello habría que añadir la frustración de los ciudadanos ante esa falta de implicación, pues tal como ha sucedido en otras experiencias deliberativas, sus expectativas fueron mayores que los resultados obtenidos, y la participación sin la cooperación de los servicios sanitarios y el apoyo financiero y organizacional lleva consigo una disminución en la participación ciudadana (Serapioni y Duxbury, 2012: 488; Matos y Serapioni, 2017).

3.2. Pregunta 2 y respuestas

40 ¿Estaban preparadas las organizaciones sanitarias, sociales y profesionales para asumir un control compartido en la toma de decisiones?

41 Para los profesionales sanitarios la participación ciudadana no entra en sus prioridades; en aquel momento estaban preocupados por “sus retribuciones, nuevos servicios, carrera profesional, incremento de personal... la participación ciudadana no les interesaba” (E1). En su gran mayoría no reconocen la democracia deliberativa, consideran que no tienen que compartir con ellos la gestión;a lo que habríaque añadir“ su ideología,que en su mayoríaesconservadora, lo que supone estar en contra de los fines de la democracia deliberativa... Los profesionales médicos y de enfermería, así como las organizaciones sindicales no apoyan la democracia deliberativa en salud” (E2). No obstante, hay que reconocer que sí que hay profesionales sanitarios progresistas que se implican apoyando los modelos participativos.

42 Al principio, las asociaciones que formaban parte del Foro Participativo estaban a la expectativa, no acababan de creerse ese nuevo modelo de gestión, de democracia deliberativa. Posteriormente, cuando empezó a desarrollarse, vieron que debían comprometerse en la gestión de su área sanitaria; en ese momento “hubo asociaciones que se mostraron reticentes a asumir una corresponsabilidad en la gestión… ¿Que yo tengo que decidir? No, decide tú (profesionales, gestores, políticos), que para eso cobras” (E1). Aun reconociendo sus temores, los ciudadanos asumieron su responsabilidad en la toma de decisiones y formaron parte de los órganos consultivos y directivos; de hecho, todas las acciones aprobadas en esos órganos fueron remitidas a la dirección del SESCAM, ejecutándose la mayoría de ellas “tal vez porque no suponían un

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gran cambio en la gestión y no suponía un incremento económico en el presupuesto anual” (E1). La desconfianza inicial fue superada muy pronto, sobre todo por los actores sociales más implicados en el desarrollo del proyecto.

43 Uno de los grandes problemas en la asunción de responsabilidades por parte de los ciudadanos fue la rivalidad entre ellos: “cada uno tiraba hacia lo suyo” (E7). Se reconocía su espíritu de lucha, ya que el movimiento asociativo de ese territorio es combativo y tiene tras de sí una historia ejemplarizante, pero en un modelo organizativo donde hay que olvidar los intereses sectoriales y pensar en lo común, la experiencia fue, principalmente, conflictiva; surgieron las rivalidades y las envidias. Sin embargo, con el paso del tiempo, “cuando empezaron a ver que iban consiguiendo actuaciones que redundaban en lo común, fueron implicándose más en el proyecto” (E4). Es decir, era un cambio cultural en la participación ciudadana a la que estaban acostumbrados históricamente: “Es un cambio cultural de participación, tenemos que olvidar lo nuestro, debemos pensar en los otros” (E5). A esto habría que añadir que los componentes del Foro no conocían el funcionamiento del sistema sanitario: “Les faltaba información, eran personas comprometidas socialmente, pero no tenían ni información, ni formación” (E6), o tal como expresa un actor del sector ciudadano,“ éramos incapaces de asumir responsabilidades” (E7);8 cuestión que es muy importante, tanto al principio como durante el desarrollo del proyecto, sobre todo en un sistema tan complejo como es el sanitario.

44 Este nuevo modelo conllevaba también un cambio en la cultura participativa: “Lo que no es fácil y se precisa de más formación y sensibilización, tanto de las organizaciones sociales como de los profesionales. Es un proceso que se había iniciado, pero que quedó truncado” (E8).

45 De todo lo anterior y teniendo en cuenta investigaciones empíricas internacionales, podemos deducir que aunque la participación brinda a los ciudadanos y a los pacientes muchas oportunidades de implicarse, también causa importantes tensiones (van de Bovenkamp et al., 2010: 73). Al mismo tiempo, la evidencia científica nos dice que existen muchos mitos sobre la necesidad de compartir la toma de decisiones, pero que la realidad es todo lo opuesto; sin embargo, esto no es óbice para lograr ese cambio de paradigma, pues es necesario, sobre todo, para optimizar el uso de los recursos escasos e integrar los enfoques centrados en el paciente (Légaré y Thompson-Leduc, 2014: 284).

3.3. Pregunta 3 y respuestas

46 Antes de implantar el modelo, ¿se debería haber formado convenientemente a los ciudadanos y a los profesionales ante los nuevos compromisos?

47 En la implantación del modelo se partió de que era necesario empoderar convenientemente a los ciudadanos y a los profesionales; por ello, desde un primer momento se planteó la información del nuevo modelo a los miembros del Foro, así como una formación adecuada a los nuevos escenarios en los que se iba a participar. Sin embargo, la organización gestora, el SESCAM, que era quien iba a asumir y liderar la puesta en marcha del nuevo modelo, no se implicó todo lo que hubiera sido deseable en los aspectos formativos de los ciudadanos y los profesionales: “La organización gestora no se creyó el nuevo modelo, lo veían como un proyecto del consejero de Sanidad y dos más” (E1). En su defensa, quizás habría que tener en cuenta que eran los primeros momentos de asunción de las competencias sanitarias en la región, “por lo que estaban

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en otras cuestiones que ellos consideraban más prioritarias, fundamentalmente las asistenciales” (E1).

48 Desde el primer momento se desarrollaron acciones de formación dirigidas a los ciudadanos. Estas acciones fueron muy bien acogidas por los miembros del Foro, sirvieron para tener una percepción más creíble del modelo: “En las asambleas se empezaron a debatir las necesidades y a priorizar las decisiones… se comenzó a pensar en lo común” (E4). Sin embargo, hubo dificultades para que los actores acudieran a esas actividades formativas, fundamentalmente por el costo económico de los desplazamientos, la lejanía del lugar residencial o el horario en que se realizaban: “Es necesario financiar esas horas de formación” (E7).

49 En cuanto a los profesionales, la mayoría carecía de información y formación sobre el nuevo modelo; incluso para los que tenían cierto conocimiento, la participación ciudadana en salud no se encontraba entre sus prioridades e incluso la rechazaban: “¿ Que los ciudadanos me van a decir lo que tengo que hacer?” (E4). Uno de los gestores opina que “los profesionales se tenían que haber involucrado más en el modelo, incluso en su propio interés” (E4).

50 Todos los consultados consideran la conveniencia del empoderamiento de todos los actores implicados, para lo que hubiera sido necesario contar con una partida económica dedicada exclusivamente a tal fin, sobre todo para los componentes del consejo de participación y administración. El empoderamiento de los actores es clave; se hicieron actividades con esa finalidad, pero escasas; se debería haber invertido mucho más en formación.

51 Las teorías clásicas consideran fundamental el empoderamiento de los actores participantes; sin embargo, un paso más allá es el aportado por Robert White (2004: 22) cuando afirma que el empoderamiento valora la identidad propia y la cultura local, debe orientarse hacia el servicio de la sociedad y debe ser considerado como un derecho humano. A ello habría que añadir el aumento continuo de ciudadanos que utilizan internet para su información y formación en salud, lo que supone un reto para los profesionales sanitarios al encontrarse con ciudadanos informados y facultados (Santana, 2011).

3.4. Pregunta 4 y respuestas

52 ¿Los diferentes actores afectados (políticos, profesionales y ciudadanos) por la implantación del modelo estaban informados razonablemente sobre el nuevo modelo de participación? ¿Hubo una adecuada comunicación a la sociedad en general sobre el nuevo modelo y las acciones que se llevaron a cabo posteriormente?

53 Consideran que la información debería haber sido clave, pero la realidad es que el nuevo modelo no se comunicó adecuadamente a los ciudadanos en general, aunque sí a los miembros del Foro Participativo, a través de reuniones, cursos, página web, prensa, radio, seminarios y congresos. Sobre todo se hizo un gran esfuerzo en informar acerca del modelo en todos los municipios que integran el área sanitaria de Puertollano. Sin embargo, estos últimos no se implicaron en su totalidad, no hicieron suyo el modelo; a lo que habríaque añadir laescasa implicación de las organizaciones políticas en su papel de difundir y propagar el modelo. “Hubo una información razonable, aunque siempre mejorable. De hecho, muchas asociaciones ciudadanas demandaron participar

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en el proceso. También los ayuntamientos y los medios de comunicación fueron informados” (E8).

54 Habría que destacar que todas las actuaciones que se llevaban a cabo en los diferentes órganos participativos del Foro, eran comunicadas a todos sus miembros a través de diferentes medios, tales como las actas y la página web –diseñada específicamente para darle visibilidad e informar a toda la ciudadanía–, aunque “la sociedad en general no tenía información de lo que se hacía en el Foro… fuera del Foro no se tenía conocimiento de lo que se hacía” (E5).

55 En el ámbito político y de gestión sanitaria se deberían haber realizado actuaciones de información, de divulgación del nuevo modelo participativo dirigidas a los responsables políticos, sociales y sanitarios de la región; incluso se “tenía que haber informado del modelo fuera del territorio de Castilla-La Mancha… habría hecho falta una campaña informativa en toda regla” (E2). Los procesos de comunicación en salud son necesarios, ya que pueden ayudar a potenciar y alcanzar los objetivos de las organizaciones sanitarias; hay que facilitar tanto la comunicación interna como la externa, ascendente, descendente y transversal (Bustamante Ospina, 2013). Asimismo, otros estudios a tener en cuenta nos muestran que la mala comunicación entre los diferentes grupos implicados es una barrera y que la actitud y comunicación basada en un respeto mutuo es una ventaja (Atanasova-Pieterse y Kerekovska, 2013).

3.5. Pregunta 5 y respuestas

56 Desde su perspectiva, ¿cuáles pudieron ser las tres principales causas del fracaso del modelo?

57 Todos los actores consultados coincidieron en que el modelo no ha fracasado, sino que no ha interesado que funcionase y, sobre todo, que no hubo tiempo suficiente para desarrollarlo –insuficiente sedimentación–, ya que mientras estuvo en marcha fue operativo; las evaluaciones que se hicieron así lo manifestaban. Sin embargo, están de acuerdo en que hubo errores que impidieron que su desarrollo fuera el más adecuado e identifican como más importantes los siguientes: • Consideran que el factor que más influyó en el desarrollo del nuevo modelo fue la falta de implicación de las organizaciones políticas (Consejería de Sanidad) y la gestora sanitaria (SESCAM), que sin embargo fueron las que lo elaboraron, aprobaron una norma legal para su implantación y pusieron los primeros recursos para su desarrollo, lo que supone una discordancia entre el plano legal y la práctica real. • La segunda causa más citada es la escasa información y formación de todos los actores implicados en el desarrollo del modelo, así como de la ciudadanía en general. • La tercera causa es la ausencia de una partida económica finalista para el funcionamiento del Foro de Participación en salud, lo que no es óbice para que los ciudadanos hubieran defendido el proyecto, ya que lo consideraban muy positivo.

58 Estas causas también han sido identificadas en otras experiencias participativas (Serapioni y Romaní, 2006; Mosquera et al., 2009; Serapioni y Duxbury, 2012).

59 De las respuestas de los entrevistados podemos deducir que el modelo participativo en salud de Puertollano cumplió, al comienzo de su implantación, con los principios de “buen gobierno”, que recoge el Libro Blanco de la Gobernanza Europea (apud AEVAL, 2010: 17), tales como apertura (comunicación activa), participación (amplia participación ciudadana), responsabilidad (de los actores implicados), eficacia (producción de

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resultados) y coherencia (políticas y acciones coherentes y comprensibles). Sin embargo, durante el poco tiempo en que estuvo desarrollándose las responsabilidades de los actores van decayendo, incumpliendo así las responsabilidades asumidas inicialmente o que les correspondían entre sus deberes y obligaciones.

60 Tras el análisis de las entrevistas hemos identificado las siguientes debilidades y amenazas del modelo participativo.

61 1. Debilidades (internas): a. De comunicación. Escasa comunicación interna y externa, escaso desarrollo del plan de comunicación existente en el Foro Participativo, insuficiente transparencia de las acciones efectuadas, y deficiente comunicación entre los órganos participativos y la organización gestora. b. De cultura. Diferentes culturas participativas que varían según el grupo concreto de actores y desconocimiento por parte de los ciudadanos de la cultura de la organización gestora y del funcionamiento del sistema sanitario. c. De comportamiento. Desconfianza entre los actores implicados, liderazgo muy personalizado y focalizado, y poca o nula implicación de la organización gestora y de los profesionales. d. De formación. Deficiente empoderamiento de todos los actores involucrados en el proyecto.

62 2. Amenazas (externas): a. De comunicación. Desconocimiento del modelo participativo por parte de la sociedad. b. De cultura. Choque cultural entre la organización gestora y los ciudadanos; resistencia al cambio por parte de los profesionales, los gestores y los políticos, que les lleva a una escasa implicación en el proyecto; y la preocupación prioritaria de los profesionales y los gestores es su actividad asistencial y de resolución de problemas más acuciantes. c. De comportamiento. Ausencia de liderazgo de los responsables políticos y gestores que continuaron con el proyecto inicial, pues el primer cambio político después de aprobar la norma condujo a una menor implicación en el mismo, tanto de los nuevos políticos como de los nuevos gestores de la organización sanitaria. d. De economía. Incumplimiento de la inclusión en los presupuestos económicos anuales de las actuaciones aprobadas por los ciudadanos en los órganos creados para la toma de decisiones, lo que supone un control inadecuado de los procesos económico-administrativos derivados de esas decisiones; y la reducción de los presupuestos destinados a la sanidad pública debido a la crisis económica regional y estatal.

Conclusiones

63 La importancia de las políticas públicas es fundamental en las sociedades contemporáneas. Un sector importante de las mismas desea aumentar la participación directa en la construcción de dichas políticas; sin embargo, la realidad va por otro camino, agravado aún más por la incertidumbre de los procesos políticos, ya que estos siempre están sujetos a cambios debido a las diversas coyunturas económicas, políticas o sociales, por lo que es difícil ser fiel a los compromisos adquiridos (Manin et al., 2006: 113 y ss.).

64 En principio, seguimos considerando que es necesario analizar los procesos participativos, pues hay pocos estudios empíricos que puedan ayudar a seguir avanzando en la construcción del paradigma teórico de democracia. El debate entre teoría y praxis, lo normativo y lo positivo, lo políticamente pragmático y lo analítico

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crítico reflexivo sigue en pie (Pires y Pineda Nebot, 2011: 274). El paradigma teórico de democracia es conflictivo a la hora de aplicarlo a realidades sociales concretas, ya que es difícil desarrollar el discurso académico y/o teórico; ambas cuestiones se encuentran muy distanciadas.

65 La insuficiente sedimentación del proyecto podría ser una causa básica en el escaso desarrollo y nula exportación del modelo a otras áreas sanitarias. Habría que resaltar el corto periodo de tiempo que estuvo desarrollándose el modelo de Puertollano; estaban sentadas las bases, pero no dio tiempo a ejecutar todo lo programado ni a corregir los defectos identificados en las evaluaciones anteriores. Un cambio cultural, tal como era la meta del proyecto, necesita más tiempo; se sembró, pero no dio tiempo a que creciera un mínimo. Por lo tanto, más que un problema de diseño institucional, hubo factores que pudieron influir en el desarrollo del modelo participativo, tales como la cultura de la organización y el comportamiento de los actores.

66 El grado de desconfianza entre los diferentes actores respondía a que cada grupo defendía sus propios intereses. Un deficiente empoderamiento de todos los actores puede estar en el origen de la misma, mientras que el devenir histórico pasa por la democratización del conocimiento (Requena Mora y Rodríguez Victoriano, 2017: 11).

67 El liderazgo fue ejercido, fundamentalmente, por dos personas: un político (consejero de Sanidad) y un profesional/gestor (gerente de Área), lo que puede considerarse un error, pues al desaparecer estas personas el modelo entró en declive. La organización política y la gestora deberían haber asumido el liderazgo, explicando el modelo participativo (transparencia en la comunicación) y dedicando más recursos a la formación de los ciudadanos y de los profesionales, ya que estos son elementos muy importantes en la democracia.

68 Otros aspectos que habrán podido influir en el desarrollo del proyecto han sido los relacionados con la comunicación, tanto interna como externa. Problemas no tan difíciles de resolver si existe voluntad política para hacerlo.

69 Como conclusión final y recomendación, consideramos que el modelo participativo implantado en el área sanitaria de Puertollano es viable, siempre y cuando se aborden adecuadamente las debilidades y amenazas identificadas en esta investigación. Habría que recuperarlo aplicándolo a todo el territorio de Castilla-La Mancha, con el fin de avanzar en una democracia deliberativa, es decir, de alta intensidad democrática.

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NOTAS

1. E3: Álvaro Santos Gómez, gerente de Área Sanitaria. 2. E8: Fernando Lamata Cotanga, consejero de Salud y Bienestar Social (2008-2011). 3. E1: Roberto Sabrido Bermúdez, consejero de Sanidad (2004-2008). 4. E4: César Fernández Carretero, técnico coordinador. 5. E2: Rafael Peñalver Castellano, secretario general del SESCAM. 6. E5: Trinidad Sánchez Pérez, representante de la asociación de vecinos. 7. E6: Mariano Rodríguez Rodríguez, representante de la asociación de vecinos. 8. E7: Ana Valderas Caldero, representante de la asociación de pacientes.

RESÚMENES

El modelo de participación ciudadana en salud implantado en el área sanitaria de Puertollano (Castilla-La Mancha, España) se desarrolló durante los años 2008-2011. Fue un modelo innovador, prestigioso y legitimado, basado en la participación activa y deliberativa de diferentes actores implicados en el sistema sanitario. En el año 2011, el gobierno conservador surgido de las elecciones regionales paralizó todas las actuaciones relacionadas con el modelo. A consecuencia de ello se ha estimado conveniente hacer una evaluación a posteriori al finalizar el periodo de implantación, con el objetivo de realizar un análisis riguroso, sistemático y científico sobre lo sucedido durante los años 2008-2015, incidiendo en las debilidades y amenazas del modelo en su aplicación. Para el análisis se ha utilizado una metodología cualitativa, mediante entrevistas en profundidad a actores implicados en la implantación del modelo.

A model for citizen participation in the area of health services was established in Puertollano (Castilla-La Mancha, Spain) and was carried out from 2008 to 2011. This was an innovative, prestigious and legally established model, based on the active and deliberative participation of the different actors involved in the health care system. In 2011 the conservative government that

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was formed after the regional elections halted all the actions taken under this model. As a result, we have considered it necessary to evaluate the model at the end of this period, carrying out a rigorous, systematic and scientific analysis of what took place during the years 2008-2015, examining the weaknesses in the application of the model and the possible threats it posed. For our analysis we have used a qualitative method based on in-depth interviews with actors involved in establishing the model.

Le modèle de participation citoyenne en matière de santé mis en place dans la zone d’intervention sanitaire de Puertollano (Castille-La Manche, Espagne) eut lieu au cours des années 2008-2011. Il s’agit d’un modèle innovateur, prestigieux et consacré, reposant sur la participation active et délibérative de différents acteurs impliqués dans le système de santé. En 2011, le gouvernement conservateur issu des élections régionales a bloqué toutes les actions ayant trait au modèle en cause. Par conséquent, nous avons estimé qu’il convenait de procéder à une évaluation a posteriori àl’issue de la période de mise en œuvre, dans le but d’ effectuer une analyse rigoureuse, systématique et scientifique de ce qui a eu lieu durant les années 2008 -2015,en mettant en exergue les faiblesses et les menaces de l’application du modèle. À des fins de recherche, nous avons utiliséune méthodologie qualitative s’ appuyant sur des entretiens approfondis d’acteurs engagésdans la mise en place du modèle.

ÍNDICE

Keywords: citizen participation, democracy, health systems, public policies, Spain Palavras-chave: democracia, Espanha, participação cidadã, políticas públicas, sistemas de saúde Mots-clés: démocratie, Espagne, participation citoyenne, politiques publiques, systèmes de santé

AUTORES

MARTA AGUILAR GIL

Departamento de Sociología, Universidad de Sevilla C/ Pirotecnia, s/n. C.P. 41013 Sevilla, España [email protected]

JOSÉ MARÍA BLEDA GARCÍA

Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, Universidad de Castilla-La Mancha C/ Cobertizo San Pedro Mártir, s/n. CP. 45071 Toledo, España [email protected]

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Citizen Engagement and the Challenge of Democratizing Health: An Italian Case Study O envolvimento dos cidadãos e o desafio da democratização da saúde: um estudo de caso italiano L’engagement des citoyens et le challenge de la démocratisation de la santé: une étude de cas italien

Silvia Cervia

EDITOR'S NOTE

Edited by Scott M. Culp Received on 27.02.2018 Accepted for publication on 01.08.2018

Introduction

1 Modern times have witnessed the re-definition of decision-making processes in the healthcare system. Initially, these processes were built upon expertise and bureaucratic hierarchies, but they have become increasingly inclusive and shared, as shown by the new concept of governance and participatory regulations. The adoption of participatory practices has been identified by international organisations (WHO, 1986, 2002; WHO and UNICEF, 1978; Council of Europe, 2001) as a way – and perhaps the only way – to respond to the issue of the “democratic deficit” in the healthcare sector at the local level (Dickinson, 2004).1 Nonetheless, scholars have cautioned about the risk of considering this process of redefining the structure of decision-making as a linear movement towards a fairer redistribution of decisional power in healthcare. Beginning with the seminal contribution of Sherry Arnstein (1969), many a scholar has pointed

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out the risk of the instrumental use of such a form of participatory decision-making to achieve non-democratic goals by manipulating public opinion (Maloff et al., 2000; Farrell, 2004; Bekkers et al., 2013). The literature highlights how this risk is reinforced by the ambivalent and multiform meaning of specific key concepts – such as citizen participation and governance – each of which identifies a process that could be embodied in very different and opposite forms, with very different and opposite outcomes (White, 1999). By analysing said literature, an antidote to the likely threat of such tendencies can be identified: the bottom-up process. When the re-definition of decision-making processes starts from the bottom, with the claims of civil society, the likelihood of an effective and more equal redefinition of decisional power is greater (Massey and Johnston-Miller, 2016). However, the process of renewal of decision- making processes promoted by the institutions themselves (top-down) must be duly considered, both for their consistency, in particular in Europe, and for the role that public institutions are called upon to play when such renewal processes affect collective goods (i.e. health) and services (i.e. healthcare). Indeed, scholars underline how public bodies are urged to play a greater role in contributing to the “publicness” of the public sector and to improve its accountability and responsiveness as the warrantor of equity and social justice (Martinelli, 2013; VV. AA., 2012).

2 This paper intends to offer a theory-based analysis of a concrete top-down process promoted in the healthcare sector. The aim is to better understand the conditions under which the renewal of local health governance (promoted by public bodies) can occur in an actual democratisation process.

3 In this first part, the article defines a theory-based evaluation framework in which to analyse end-user engagement in healthcare governance as a democratisation practice. Two main dimensions have been identified for consideration. The first refers to the logic of consequences (LoC), i.e. promoting a bold process that takes end-users from a passive role to an increasingly active one by giving them a participatory role in the re- design of public services (Mulgan, 2009). The second dimension deals with the logic of appropriateness (LoA), defined according to the international literature on civic engagement as a strategy for democratisation in the framework of Community Health Governance (Lasker and Weiss, 2003). Both dimensions will be operationalised in qualitative variables capable of detecting the constitutive elements and evaluating their function according to the aforementioned framework.

4 In the second part of the paper an empirical study is described – addressing the dimensions identified according to the LoA and LoC – whose aim is to investigate the scaling process in the selected case study, i.e. the Region of Tuscany, specifically its system of healthcare governance under the consortiums in the Società della Salute (SdS), which comprise local healthcare centres/units and municipalities and have introduced forms of citizen participation in the SdS governance as a way to better respond to the social and health needs of the community. This seems to be an interesting case study, firstly, due to the nature of the institutional initiatives introduced by a top-down process, and secondly, given that it allows us to investigate the scaling processes that have received little attention in the literature (Albury, 2005; Bekkers et al., 2013). This part presents and discusses the outcomes of the analysis of the translational process and the diffusion and adoption processes of the last ten years.

5 In the final section, the paper highlights the issues that need to be addressed to better understand the dynamics of democratisation in health governance, especially the

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context in which socially innovative practices are institutionalised as top-down initiatives.

Defining Participation as Democratisation

6 In order to evaluate citizen engagement in healthcare governance as a democratisation process, it is important to briefly consider how, from a theoretical point of view, the broader horizons pushing for the inclusion of citizens in decision-making processes can be included in three compatible frameworks: technocratic, democratic-radical and strategic-residual. Faced with the dispersion of knowledge through multiple sources and the complexity of the process of understanding, which is typical of advanced societies, the technocratic approach proposes a governance framework based on the participation of all stakeholders and an efficient mechanism of interaction between expert knowledge and lay expertise (Prior, 2003; Sintomer, 2008). For the democratic-radicals, participatory practices become the strategy through which part of decision-making power is returned to citizens (Arnstein, 1969; Charles and DeMaio, 1993), while in the strategic-residual approach, participation becomes the strategy for resolving conflicts, without any implications for the re-distribution of decisional power (Connor, 1986).

7 From the second perspective, the research assesses how citizen engagement in public decision-making affects the dynamics of social relations, including power relationships, and redefines the way in which public interest, priorities and policies are defined by including those previously excluded groups and individuals. Our approach stressed how the ethical dimension of public participation is very much related to social justice (Moulaert et al., 2005) and the logic of accountability, for its part, one of the lesser studied issues in social innovation (Anderson et al., 2014).

8 As emphasised by scholars, this affects different values that need to be linked and balanced, such as values related to the logic of consequence – efficiency, effectiveness, compliance – and values referring to the logic of appropriateness – trust, support and legitimacy (Bekkers et al., 2013).

9 Firstly, the consequences of citizen engagement in public decision-making can be analysed in terms of productivity and outcomes (Moore, 1995; Bason, 2010). However, as has already been noted, defining the value used to measure efficiency and effectiveness is no easy task (Bekkers et al., 2013). It is difficult to link the added value of this process to efficiency and outcome-effectiveness when one refutes public participation and, in particular, public participation in governance structure. To be taken into account is how involvement in decision-making processes “can therefore be seen as a symbolic act by which public managers and politicians try to achieve legitimacy and support for the work that they are doing” (ibidem: 12). This legitimacy is attainable in different ways, from manipulation to effective democratisation processes (Cervia, 2014) and calls to mind why citizens’ engagement in governance structures needs to improve empowerment at individual and community level. This is the main goal of the collaborative form of governance introduced to indicate the specific management of citizen engagement and civil society representatives in public decision-making processes to support local empowerment and capacity building processes (Newman, 2001). Thanks to this concept, further developed by Ansell and Gash (2007), we can identify goals and tools suitable for defining the effectiveness and efficiency of a relational-decisional structure focused on local empowerment and capacity-building.

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10 This framework points to the crucial role of the network in being effective, meaning that it cannot have a mere advisory role: collaboration involves bi-directional communication and must promote a circuit of mutual influence. This explains why it is crucial to consider how much the structure of a network and its operations can favour the sharing of responsibilities, even when the final say is in the hands of a public body (Freeman, 1997). These elements are embodied in collective-based decision-making. The contents of the decision cannot be defined through individual bilateral agreements or through decision-making paths based on power relationships and resources made available or potentially usable by individual partners; on the contrary, a collaborative approach is based on the institutionalisation of a collective decision-making process (Rummery, 2006) and on consensus among participants (Connick and Innes, 2003). For this to be possible, it is important that the decision-making process allow participants to develop a common reading and vision (Ansell and Gash, 2007).

11 The process leading to the decision must therefore be considered cyclical or reflective, in the sense that the architecture of the decision-making process should allow the network to learn from past experience (Huxham, 2003). For this reason, a necessary albeit insufficient condition is that the interaction between the subjects of the network be face-to-face in order to facilitate the removal of barriers and to facilitate the overcoming of shared prejudices (Ansell and Gash, 2007). Institutions are called upon to handle the proper use, application and respect of the principles and rules that they themselves have defined (Imperial, 2005; Fung and Wright, 2001) to foster the engagement of the participants and their sense of belonging and responsibility with respect to the final contents of the process.

12 Secondly, citizen involvement in healthcare governance must be considered from the LoA perspective, by considering the specific political and societal context in which governments have to operate (March and Olsen, 1989). As previously noted, when considering the appropriateness of innovation in the context in which it is being developed, we need to consider: a) institutional legitimacy and support; b) increasing citizen access, participation and empowerment, transparency, accountability and equality; c) the responsiveness of innovation with regard to the “publicness” of the public sector, thereby improving its legitimacy; d) its feasibility, with reference to the legal system and legal value (Bekkers et al., 2013). From a broader perspective, one must consider the innovation’s level of appropriateness in terms of the democratic and legal values to be respected. The public value of the renewal of the governance structure in a participatory way is dependent on its legal feasibility and whether it respects specific legal values, given that governments are required to operate within the rule of law (Kelman, 2008; Korteland and Bekkers, 2008), as well as respond to the needs of society (Bekkers et al., 2013).

13 In light of the above factors, the issue of the legalistic culture of the public sector deserves attention. Firstly, the culture of standardisation and formalisation – a guarantee of free, universal and equal access – has to be tempered by the foundations of social innovation, which are inextricably linked to creativity and embeddedness (Bekkers et al., 2013). The legal competence and mandate of public institutions must also be considered, as they often come into conflict with the need for innovation across sectors, jurisdictions and mandates (Matthews et al., 2009).

14 From this point of view, however, the collaborative framework allows us to point out how the democratic and social legitimacy of a network is inextricably linked to its

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representativeness (Ansell and Gash, 2007). Once again, an extremely polymorphic concept comes into play, which can have statistical, corporate, interest-related or experiential representation, etc. Yet even in this case, the work of Ansell and Gash helps to identify a unique theory: the legitimacy of “mixed” participation, founded on both representation and the right to citizenship (uti singuli participation) and formalised in appropriate environments for participatory and deliberative democracy (with the integration of representative democracy). This form of participation can favour the process of empowerment (Fung and Wright, 2003).

15 However, the composition of a public body does not depend solely on the authorities but rather requires the free and voluntary involvement of private subjects. Therein lies the motivation for participation. The literature on this subject has determined that the asymmetries of power play an important role in reinforcing exclusion and removing marginal subjects from the network (Gray, 1989). The literature has also stressed the importance of private individuals’ expectations and the ability of the structured system of participation to have a real impact on the contents of policies (Brown, 2000).2 The effectiveness of the system of participation is assessed according to the time and energy required (Bradford, 1998). The availability of resources is inversely related to the alternatives available to these stakeholders to influence the final decision. In the presence of a multitude of possibilities, private individuals prefer to resort to lobbying, preferential contacts, etc. (Khademian and Weber, 1997), rather than to pursue their goal(s) as part of a collaborative process (Logsdon, 1991).

16 The motivation to participate is also closely linked to the clarity of the mandate of the network that is also a crucial element in avoiding the risk of instrumentalisation. However, the literature on governance states that collaborative governance can only be referenced if it is limited to the political and programmatic sphere (Ansell and Gash, 2007) rather than organisational and/or management aspects.

17 The literature on participation also stresses the importance of a transparent public decision-making process, including deliberations, as a key element favouring citizens’ control over the process (Coney, 2004; Rowe and Frewer, 2000).

18 These elements, linked to both the LoC and LoA, seem to generate trust and social capital both within and between the actors involved in the collaborative process (Lewis, 2010; Lewis et al., 2011). Respecting collaborative principles when defining the legal framework of the public decision-making renewal would represent a powerful tool for empowerment and the construction of social capital and would result in cohesion and capacity-building in any context (Ansell and Gash, 2007).

Methods

19 For the empirical part of this study, this framework has been translated into an analytical model to investigate the scaling process by analysing the dynamics caused by a renewal of healthcare decision-making over an extended period of time. The reform in Tuscany was promoted by a large body (at regional level) and concerned the local level. It defined a general framework expected to be applied and adapted to each context by the local authorities (municipalities and health authorities). The aim was to favour embeddedness, a key factor for the success of the project. Fifteen years have passed since the experiment was first launched in 2003 (in certain parts of the Region),

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and ten years since its institutionalisation in 2008, meaning that the scaling process can be analysed over an extended period of time.

20 The provisions introduced in the Regional Law are a point of departure to evaluate the positive and negative changes witnessed at the local level, depending on whether the regulatory provisions or the institutional practices identified at the local level were in line with the collaborative approach defined in the previous paragraph. The empirical base of this analysis consists of the Regional Law (Law no. 60/2008) and of the constituting Statute of each SdS, of the internal regulations of the governing bodies, and the documents related to the Integrated Health Plan, a key document. Therefore, a content analysis was performed to identify the correspondence between the final document and the amendments or proposals defined by the bodies representing the citizens and local community.

21 The results of the analysis are depicted in Figure 1. The work of the local consortiums has been clearly shown, together with information on whether or not they introduced regulatory provisions or developed institutional practices that are more or less akin to the collaborative approach as opposed to the framework defined at regional level. The two analytical dimensions are represented along the two axes, indicating the position of the social innovation analysed in the present research.

22 However, a word of caution before discussing the results is fitting. To position the different experiences, the degree of adherence to the theory-based model was considered, with a more coherent form of adherence judged more favourably and vice- versa. The evaluation criteria shall be discussed further below.

23 In order to facilitate the interpretation of the graph, two orthogonal lines were used, representing the provisions of the Regional Law. In the upper right quadrant are those cases in which the LoC and LoA are reinforced by the provisions of the law; in the lower left quadrant are the SdS in which LoC and LoA are both reduced by the provisions of the law. In the upper left quadrant are the SdS that defined their network as more effective but less appropriate; and finally, in the lower right quadrant are the SdS that defined their network as less effective but more appropriate. Before proceeding, it is worth noting that the order of the SdS in the groups offers no interpretative value; of greater significance is the position of the group in the quadrant.

Analysis

Regional level

24 With regard to the LoA, the legal framework needs to be considered. The establishment of the SdS is an experiment introduced by the Integrated Social Plan 2002-2004, the Regional Health Plan 2002-2004 and the Regional Act for the establishment of the consortiums, adopted by the Regional Council with the Decision no. 155/2003. These Plans were subsequently and permanently transposed into the Regional Regulation on the Regional Health Service, by the Regional Law no. 40/2005 as amended by the subsequent Regional Law no. 60/2008. Already in the first phase of the experiment, the SdS were established to introduce change, necessary both in formal and substantive terms, the aim being to guarantee the quality and appropriateness, as well as the universality and fairness of the services on offer, through the greater involvement of the local communities. The establishing Decision no. 60/2002, adopted by the Regional

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Council, indicates how “change cannot be brought about solely by the law but must be tested and validated on the ground” (par. 1.6.2., p. 7). Subsequent provisions – Regional Law no. 40/2005 and Regional Law no. 60/2008 – reinforced this idea, in addition to transforming the SdS from experimental bodies into an organizational solution, a point of reference for the entire regional socio-health system. The key act of these authorities was the Integrated Health Plan, through which and in accordance with which the guidelines provided at regional level, specific health and wellbeing objectives and specific services and forms of assistance were identified, defined and implemented to address the idiosyncrasies of the territory.

25 Unfortunately, the national regulatory framework has changed since the regional law’s entry into force. With the financial law of 2010, the State ordered the abolition of all consortiums with the National Law no. 191/2009 (Art. 2, 186e), a decision declared binding even by the Constitutional Court, which rejected the appeal filed by the Region of Tuscany, with the judgment no. 326/2010. This situation led to a period of uncertainty, during which the SdS operated illegally and was forced to fight the administrative structure.

26 At first, the Region seemed willing to continue the journey undertaken with the reform.3 But it quickly yielded; indeed, at the end of 2013, the Regional Council asked the Local Assembly to shut down the consortiums by March 2014.4 With the Regional Laws no. 40/2014 and no. 45/2014 the Regional Council had therefore established that the SdS were not the only legitimate organisational and institutional structure. It also acknowledged that the districts could organise themselves through a simple agreement between the municipalities and the reference local health centres/units.

27 The Region proceeded by reorganising the health zones, thus introducing new elements in relation to one of the two constituent bodies of the consortiums and affecting the area of responsibility. According to the Regional Law no. 84/2015, the Region regulated the pooling of the local health centres/units, which fell from 12 to 3 in number, as well as the reorganisation of the zones/districts, which had to be reduced from 34 to 26.

28 Before examining how the timing of the diffusion of this institutional and organisational model was affected by such a complex and uncertain environment, a return to the analysis of the appropriateness of the network system is now called for, one which remained essentially unchanged from the initial trial phase to the implementation of Regional Law no. 60/2008.

29 The network of actors involved in the governance structure of the consortiums comprised not only the constituent bodies of the consortiums (i.e. the municipalities and the local health centres/units of the zone/district), but also civil society, which was involved in the governance structure through two distinct bodies as provided by Article 71 undecies, with different set-ups and functions: the Participation Committee and the Third Sector Consultation Group.5

30 The Participation Committee is made up of representatives from the local community. It represents the users benefitting from the services, as well as the associations of protection and promotion and active support, provided they do not offer benefits. The Third Sector Consultation Group includes volunteer and third-sector organisations, which are present in situ and work in the field of health and social affairs.

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31 The different composition of the bodies was useful for carrying out different tasks and at different times in relation to the decision-making process. The Committee intervened when drawing up guidelines and plans, it advanced proposals on programming and general governance and provided an opinion on the proposed Integrated Health Plan (PIS), the evaluation of service provision or, generally, the respect for citizens’ rights and their dignity. The Consultation, on the other hand, only participated in the translation phase of the direction and guidelines of specific projects for the Integrated Health Plan. The members of the two bodies participated in the appointment of an Assembly. Members are appointed according to the criterion of representation of the local community.

32 As for the LoC, it is worth emphasising that according to the regulation, the Committee was assigned an essentially advisory role,6 whereas the Consultation was a group where plans were put together. In addition to examining the various regulations, it will be interesting to see how these roles were translated and if the practices developed within the consortiums led to their taking on a more or less cogent role.

33 The Regional Law was silent on the method of participation, on how to put together the decisions of the various bodies and on the facilities available for the organisation and operation of the bodies. There were also few indications about training. The Committee could access epidemiological statistical data relating to activities constituting the reference framework for health and social operations in the district/zone. It could also request that the Directors of the SdS provide specific analyses. This put the Committee in a privileged position, from which it could control the preparatory phase of the decision-making process, i.e. reading and interpreting the needs of the local community and identifying priorities.

34 As is evident, the regulation dedicated to “forms of participation” was rather “simplistic”. Indeed, the text merely defined a sort of mesh system in which local actors were called upon to define the “rules of the game” that best fit each context. This is a feature that gives rise to two different scenarios. On the one hand, it seems to pervade the embedded nature of governance, which must be intrinsically “engrained”, “rooted”, or “incorporated” in the broader social context that, in various ways, favours, models and binds governance, leaving open the possibility of specific definitions that adapt the rules and processes to the characteristics of each local context (Moini, 2012). But this freedom can also be translated into a boomerang that backfires and returns as a form of manipulation and exploitation. Our examination of the institutional translational process will, through documented analysis, aim to verify the direction taken by the dissemination process within the regional political and institutional system and according to the theoretical coordinates identified in the section devoted to define participation as democratisation.

Local level

35 As of July 2017, nine years after the entry into force of the regulation that institutionalised the consortiums as a stable body for health governance in Tuscany, the reform is 60% operational. The problems encountered when establishing the consortiums and the few cases of dissolution are closely linked to the uncertainties arising from the situation in recent years. During the initial trial phase, in 2004, 18 SdS were established, involving a total of 158 municipalities and 10 local health centres/

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units, accounting for about 57% of the population. Following the entry into force of Regional Law no. 60/2008, the system was extended to another seven districts/zones; subsequently, following the events that overturned the legitimacy of the consortiums, 1/5 of the SdS did not follow through with the project. Specifically, one consortium opted for dissolution (SdS Casentino in 2012), one was only registered after Regional Law no. 84/2015 was passed and therefore not set up (SdS Firenze Sud-est), and the remainder were meant to be set up in the period between 2008 and 2011, but were never established (with the exception of Alta Valdelsa, Pistoiese, Senese and Versilia). Therefore, there are currently 20 active SdS.

36 By comparing the provisions defined at local level with the regulatory framework mapped out in the Regional Law no. 60/2008, we identified four groups. The provisions or the institutional practices developed at local level could be considered more or less coherent with the collaborative model. Of importance in the graph below (Figure 1) is the position of the group in the quadrant and not the position of each SdS within the group.

FIGURE 1 – Graph representing the results of the analysis

Source: Elaboration by the author. Note: In square brackets the SdS that are no longer operational.

37 The group placed where the dotted lines meet (Group A) represents the modal group, which essentially proposes the regulation as is, without any particular changes. To keep track of some of the more interesting examples, the SdS Versilia, Firenze, Empoli and Lunigiana were placed in the upper right quadrant. This decision was made to enhance the status of the first two cases, where the members of the Committee are required to ensure the involvement of the relevant stakeholders in each sector and/or territorial area represented by activating information dissemination outlets to reach and engage the highest number of users possible (a critical point is the absence of elements that can turn the regulation into something more than just an invitation or wish). In the other two cases, one observes the possibility for the Committee and the Consultation Group to share and compare notes, thereby enhancing their unitary role

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(which is also present in two of the SdS belonging to Group C, i.e. SdS Valdichiana and Valdarno Inferiore).

38 The group located in the lower left quadrant (Group B) is represented by the SdS that neither set up the network provided for by the regulation in place at the time of their establishment nor introduced a sort of warranty for a quick set up. This occurred in roughly two out of ten cases, with more than four years going by before any appointments were made.

39 In some cases, it is still not possible to find any rules or other documentation related to their operations (SdS Amiata Grossetana, Bassa Val di Cecina and Colline Metallifere). Of particular interest is that when looking at the appropriateness axis, Group B includes SdS that have extended the membership of the Committee to include federal and independent trade unions (Statute of Bassa Val di Cecina) and, in the case of the SdS Val di Cornia, industry trade unions, business associations and pensioners. In these cases, it is difficult to evaluate the effectiveness and efficiency of governance, which is why they have been positioned below the regulatory standard, also in terms of the LoC. In one case, that of Bassa Val di Cecina, additional details corroborate our decision. The SdS introduced a diminution of the role of the Committee, meaning that under the Statute, it could not access any statistical data, thus depriving it of any legitimacy from an autonomous point of view. This was countered by a strengthening of the role of the Consultation Group, which was granted an advisory role greater than that provided by the regulation, meaning it could be actively involved in the definition of the Health Profile and Integrated Health Plan and could consult the preparatory material and express recommendations before anything was approved. These methods have been criticised, as they increased the role and power of service providers at the expense of the end-users.

40 There are two groups in the mirror or upper right quadrant: Group C and Group D. Group C includes the SdS that, in line with the regulation, interpreted the construction of a decision-making network as mandatory, e.g. SdS Valdichiana, Senese, Firenze Nord-Ovest and, in particular, the SdS Mugello, whose Statute envisaged the compulsory establishment of the Participation Committee and the Third Sector Consultation Group “within six months of the entry into force of the Regulation”.7 It is no coincidence that the SdS in this group assigned a greater role to the local community’s representative body (i.e. the Participation Committee) regarding the contents of the Integrated Health Plan. The Statutes of the SdS Valdichiana and Valdera, as well as that of Valdarno Inferiore8 envisaged that the Assembly would show just cause for all decisions deviating from the opinion expressed by the Committee.

41 Group D comprises the SdS that did not explicitly provide for a larger role given to the Participation Committee but that introduced practices and arrangements favouring the extension of their role and influence. This is the case of the SdS Valdinievole, where members of the Committee and Consultation Group could request to be present at any thematic discussions of the SdS in order to participate actively in the entire institutional programming process. When these discussions were held, the two participating bodies were allowed to select their own representatives (as per Committee and Consultation Rules). The Presidents of the two bodies had the right to participate in the meetings of the Assembly but did not hold voting rights. This was a permanent right of the SdS Valdinievole, Pisana and Pistoiese.

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42 Interesting to note is that despite the lack of inverse correspondence between the degree of inclusion of the legitimacy of participation and the weakening of the role of the participating bodies (specifically the Committee) in Group B, in the upper left quadrant we find the SdS providing the most rigorous indications in terms of entitlement to participate. In most cases, this was a pre-dated determination of legitimate subjects, but in two cases, SdS Mugello (Group C) and SdS Pisana (Group D), lists were provided.

43 The logic of the quadrant allows for isolating another important dimension of appropriateness, that of the services provided by the SdS to the Committees and Consultations to assist them in their work. In certain cases (very few, in fact), providing assistance can also mean sending staff from the SdS. This is the case in Group C, for the SdS Valdichiana, Mugello and Firenze Nord-Ovest, as well SdS Pisana and Valdinievole in Group D, and SdS Empolese, Firenze and Versilia in the modal group. However, we must emphasize how this dimension of appropriateness expresses the most relevant degree of innovation in the shift from the experimental to the institutional phase. Unlike what occurred in the trial period, but also thanks to that very phase (as is apparent from the documentation consulted), it became important to provide minimum services and to ensure timely and congenial moments for the expression of opinions and proposals, all of which was then translated into the statutory provisions applied after the 2008 reform.

44 To conclude the analysis, we must address the bottom-up dynamics promoted by the participating bodies of SdS Mugello, supported by the SdS Valdinievole, Valdarno Inferiore, Firenze Nord-Ovest and Firenze. This initiative was launched to encourage collaboration and a comparison between different consortiums in order to develop a common network and strategies. Thanks to this idea, on 16 March 2011, a Metropolitan Area Coordination Unit was established (the unit includes not just the SdS that promoted the initiative but also all SdS in the provinces of Florence, Prato, Pistoia and the district of Empoli). Unfortunately, despite such a potentially useful initiative, hopes were dashed with the introduction of financial austerity measures in 2010 and the ruling of the Constitutional Court, both of which created a climate of disorientation and uncertainty in which the most promising but also vulnerable incentives were encumbered.

Conclusion

45 A number of conclusions can be derived from the analysis presented above. Let us begin with a premise related to state and governance. The literature argues that the dominance of a legalistic culture can be seen as a constraint on the willingness of the public sector to innovate (Bekkers et al., 2013). Italy is seen as one of those countries with an entrenched legalistic tradition. In this context, the social innovation introduced by the Region of Tuscany seemed to strike the right balance between tradition and innovation, but it was not enough. It did not suffice that this innovation was introduced by law, thereby increasing its appropriateness, and that it was preceded by a trial period at the behest of the Region to ensure that the proposal would be adapted to the needs of the local communities. The reform was soon crushed by national law, which from one day to the next, rendered the entire process invalid. The decision undermined the appropriateness of the system and outlawed the institutional

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model originally chosen for the SdS. It profoundly, truly and symbolically discredited the entire proposal. Following the Constitutional Court’s ruling, which confirmed the government’s decision (and not that of the Region), no new SdS were established. The Region, after attempting to limit the damage, took a step back, and changed the SdS from the only body in charge of territorial socio-health planning and management to merely one of the possible options. The process of transposing the regulation and social innovation suffered a heavy setback between 2011 and 2012; indeed, very little documentation was produced by the consortiums after that period.

46 Examining the analysis carried out on the other dimensions, one can only comment positively on how this attempt at innovation changed the role of the citizens, associations and volunteer organisations. Specifically, the Statutes reinforced the role and power of the representatives of the local community, in addition to bolstering efforts to establish a network (Metropolitan Area Coordination Unit) that would encourage collective learning and mutual contamination with good practices. Nevertheless, the governance architecture promoted by the Region of Tuscany was unable to overcome the past history of relations between the Third Sector, the local community and the institutions. Indeed, if we observe the geographic location of the SdS, we will notice that there is a concentration of SdS belonging to the most developed territories (located on the Florence-Pisa line) in the upper right quadrant, where we have the only example of transversal contamination and coordination (the aforementioned Unit).

47 It can be seen, however, that this body was formed in the wake of a practice launched during the trial phase, during which the exchange between the stakeholders working for the same association in different territories led to greater comparison and contamination, and resulted in an isomorphism in the translational processes of the SdS belonging to those territories (contrary to what happened in other areas of Tuscany). An excellent example of this is the more important role assigned to the Committee in the overall decision-making process, reinforced by the regulations compelling the decision-making bodies of the consortiums to corroborate those decisions differing from the opinions received, and by regulations providing the resources needed for the proper functioning of the bodies, including the coordination of their agendas and timely planning, management and approval of documents and programmes.

48 In conclusion, it must be stressed how the arrangement of the case studies analysed along the rising diagonal axis represents the inextricable link between the two dimensions used for the present analysis and even seems to be a predictive reading tool for appreciating the possibilities for their development. Unfortunately, the sudden blow suffered by the process hindered innovation and prevented our analysis from observing the relations – and their dynamics – between the different groups, particularly those between Group C and D and those within Group A. Would we have witnessed the negative reinforcement of any inequalities or would the good practices developed by the best groups have contaminated the others too? And by virtue of what conditions/prerequisites/practices? The meaning to be drawn is that continued study of the more advanced stages of social innovation is needed to better understand these dynamics and to comprehend how the voice of the local community can (even if it is involved in a top-down participatory approach), in time, make itself heard within the space “permitted” and can go on to find new voices and new outlets.

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NOTES

1. Dickinson defined the “democratic deficit” in healthcare as a combination of two processes: the crisis of legitimacy faced by the representative democracy and the traditional dominance of the medical profession in the sector (Freidson, 1973), which hindered alternative forms of public involvement in healthcare decision-making in order to monitor and control the activities of professional subsystems (Dickinson, 2004). 2. This decreases considerably and ultimately disappears when network members suddenly perceive their participation as a mere ritual of participation (Futrell, 2003). 3. The Decision no. 243/2011, adopted the 11 of April by the Regional Council, reiterated the Region’s willingness to pursue this goal in spite of the uncertainty deriving from the government’s regulations.

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4. With Resolution no. 219 of 18 December 2013, the Regional Council ordered the Local Assembly to submit a proposal to overturn the existing provisions regulating the consortiums by March 2014. 5. Regional Law no. 60/2008 also contemplated the creation of another tool for the local community, the so-called Agorà della Salute. These agencies were not included in the government network and have therefore been excluded from our analysis. 6. It is worth noting that in the transition from trial period to institutionalization, there was a far from negligible reduction in the Committee’s role. Indeed, in the experimental phase, if the government body dared to diverge from the opinion expressed by the Committee, it had to provide explicit reasons for its decision. 7. Provision included in the article 36 of the Statute establishing the SdS Mugello was approved on 23 December 2009 (archive document no. 13606). This provision was respected: the Participation Committee and the Third Sector Consultation Group was established on 30 June 2010, exactly six months and six days after the approval of the founding Statute. 8. It should be noted that in this case the regulation is contained in the Committee’s Rules, a subordinate act to the Statute, which is approved by the Assembly.

ABSTRACTS

Participatory practices, within broader processes of rescaling and governance, have been identified as the solution to the “democratic deficit” in healthcare. Conversely, scholars have underscored how these practices could well be used for a contrary purpose, particularly in a top- down process. The first part of this paper outlines a theory-based evaluation framework oriented towards the analysis of institutional practices fostering citizens’ involvement in healthcare decision-making processes and how this involvement can act as a driver for the democratisation of the healthcare system. Following this interpretation, the second part of the paper analyses the new local governance structure adopted by Tuscany (Italy) in the healthcare sector, in particular the later stages of its adoption and diffusion and more than ten years after its institutionalisation. This leads us to identify certain crucial issues to be addressed when institutions promote re-visiting decision-making processes.

As práticas participativas, em contextos mais alargados de redimensionamento e governação, foram identificadas como sendo a solução para o “défice democrático” nos cuidados de saúde. Por outro lado, os académicos sublinharam que tais práticas podem muito bem ser utilizadas para fins opostos, nomeadamente em processos do topo para a base. A primeira parte deste artigo apresenta um quadro de avaliação, baseado na teoria, orientado para a análise das práticas institucionais que promovem o envolvimento dos cidadãos nos processos decisórios, e como esse envolvimento pode funcionar como um impulsionador para a democratização do sistema de saúde. Na sequência de tal interpretação, a segunda parte do artigo analisa a nova estrutura de governação local adotada pela Toscana (Itália) no setor da saúde, designadamente as fases mais recentes da sua adoção e difusão, e mais de dez anos após a respetiva institucionalização. Isso leva-nos a identificar alguns aspetos cruciais a ter em conta quando as instituições promovem a reavaliação dos processos de tomada de decisão.

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Les pratiques participatives, dans des contextes plus élargis de redimensionnement et de gouvernance, furent identifiées comme étant la solution au “déficit démocratique” en matière de soins de santé. Par ailleurs, les académiques ont souligné que de telles pratiques peuvent fort bien être utilisées à des fins contraires, notamment dans des procédures partant du sommet vers la base. La première partie de cet article présente un encadrement de l’évaluation, reposant sur la théorie, orienté par l’analyse des pratiques institutionnelles qui promeuvent l’engagement des citoyens dans les procédures de décision, tout autant que cet engagement peut fonctionner comme un moteur de la démocratisation du système de santé. Dans l’esprit de cette interprétation, la seconde partie de l’article se penche sur la nouvelle structure de gouvernance locale adoptée par la Toscane (Italie) dans le secteur de la santé, en particulier les phases les plus récentes de son adoption et de sa diffusion et plus de dix ans après ladite institutionnalisation. Cela nous conduit à identifier quelques points cruciaux dont il faut tenir compte lorsque les institutions promeuvent la réévaluation des processus de prise de décision.

INDEX

Palavras-chave: cuidados de saúde, democratização, governação, Itália, participação cidadã, políticas de saúde Keywords: citizen participation, democratization, governance, healthcare, health policies, Italy Mots-clés: démocratisation, gouvernance, Italie, soins de santé, engagement des citoyens, politiques de santé

AUTHOR

SILVIA CERVIA

Dipartimento di Scienze politiche, Università degli Studi di Pisa Via Serafini 3, 56126, Pisa, Italia [email protected]

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Participação pública na saúde: das ideias à ação em Portugal Public Participation in Health: From Ideas to Action in Portugal Participation publique à la santé: des idées à l’action au Portugal

Sofia Crisóstomo e Margarida Santos

NOTA DO EDITOR

Revisto por Rita Cabral Artigo recebido a 13.07.2018 Aprovado para publicação a 18.10.2018

Introdução: um breve olhar sobre a participação pública

1 A participação pública é hoje um conceito, mas também uma prática, transversal a várias áreas da sociedade, nomeadamente enquanto elemento estruturante das políticas públicas. Em particular nas sociedades democráticas ocidentais, a participação na conceção das políticas públicas é assumida como condição necessária para aportar mais transparência aos processos de decisão e para aproximar, numa base de confiança, representantes do sistema técnico-político e cidadãos e organizações da sociedade civil (Cass, 2006; Mannarini et al., 2009). Face a um profundo afastamento dos cidadãos em relação aos decisores e às formas de participação política convencionais (Gianolla, 2017)1 os tradicionais decisores, técnicos e políticos veem-se confrontados com a necessidade de inovar os processos políticos, introduzindo, por exemplo, componentes de envolvimento dos cidadãos na decisão política. Por outro lado, a literatura, em áreas como o ambiente (Batel e Devine-Wright, 2015; Gonçalves, 2002), a política (Swyngedouw, 2015), a ciência e a tecnologia (Entradas, 2016) e a saúde (Matos e Serapioni, 2017), tem sido prolífica em estudos que suportam a necessidade de envolver

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os cidadãos nos processos de tomada de decisão que os afetam. Se, numa fase anterior, os chamados novos movimentos sociais e as suas reivindicações – defesa dos direitos ambientais, dos direitos humanos, dos direitos das minorias, de mais e melhor democracia, entre outras (Matos, 2016) – marcaram de forma indelével os processos políticos, a partir do final dos anos 1970 percebe-se uma preocupação crescente por parte da ciência, que a leva a olhar e discutir os processos de participação pública, em particular os processos já institucionalizados (Barnett et al., 2012; Knudsen et al., 2015).

2 A institucionalização da participação através de mecanismos diversos – participação do tipo convencional – concretiza a resposta dos decisores políticos face a movimentos reivindicativos de aprofundamento da democracia, que reclamam mais e melhor participação na vida pública. Os mecanismos de envolvimento dos cidadãos em formatos institucionais inserem-se, por isso, naquilo que se tem designado de participação do tipo top-down, correspondendo a processos de participação pensados, promovidos e implementados por quem já detém o controlo sobre os processos de decisão. A institucionalização da participação, promovida desta forma, sem que os principais interessados, os cidadãos, sejam envolvidos nas várias fases de conceção dos processos que a sustentam, não tem contribuído para a uma participação efetiva (Gonçalves e Castro, 2009; Santos et al., 2018), ou seja, capaz de influenciar verdadeiramente as decisões. Nesse sentido, essa participação de tipo top-down tem contribuído mais para o desenvolvimento de uma retórica, por parte da maior parte dos responsáveis políticos, segundo a qual os processos já são participados (Santos et al., 2018), do que para promover o envolvimento efetivo dos cidadãos.

3 Em Portugal, a participação pública está prevista, do ponto de vista normativo, em diferentes áreas e a diferentes níveis. Na prática, no entanto, estes processos não são verdadeiramente participativos, já que, de uma maneira geral, muitas das instâncias participativas que se encontram legalmente regulamentadas não estão a funcionar (Matos e Serapioni, 2017). O caso da saúde é paradigmático. Embora a organização do sistema de saúde preveja, formalmente, a participação dos cidadãos nos processos de decisão, esta, como se discute e se ilustra neste artigo, não tem acontecido. O reconhecimento desta inoperância esteve na base da conceção da iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”. Neste artigo analisa-se o potencial desta experiência de ativismo de tipo bottom-up, reivindicativa de espaços alargados de participação direta e regular dos cidadãos e/ou seus representantes nas decisões sobre saúde, em Portugal. Partindo de um projeto participativo de investigação-ação, que se descreve e contextualiza, reflete-se sobre a sua pertinência na realidade da participação pública em saúde em Portugal e são elencadas as potencialidades e os limites identificados ao longo do percurso realizado.

Breve contextualização da participação pública em saúde

4 O desenvolvimento da participação pública em saúde, em Portugal, insere-se numa tendência mais vasta de âmbito internacional, que reclama e promove como boa prática o envolvimento e a participação dos cidadãos na definição de políticas públicas e respetivos processos de decisão. Sobretudo desde a Conferência de Alma Ata, em 1978, este é um assunto de renovado interesse na agenda de várias instituições europeias e internacionais, como o Conselho da Europa (Council of Europe, 2000), a Comissão

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Europeia (European Commission, 2007), a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2011) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OECD, 2001). Desde há algumas décadas encontramos também, em vários países, práticas institucionalizadas de participação na área da saúde, as quais assumem formas, modelos e consequências diversas ao nível das decisões. Existem, por exemplo, os conselhos de saúde, na Austrália (van Thiel e Stolk, 2013), no Brasil (Ministério da Saúde, 1993), em Espanha (Ministerio de Sanidad y Consumo, 2007), no Canadá (van Thiel e Stolk, 2013) e no Reino Unido (Department of Health, 2001; NHS England, 2013; UK Parliament, 2012); os comités consultivos mistos, na região de Emilia-Romagna em Itália (Hanau e Gattei, 1998); as consultas públicas, no estado do Oregon nos Estados Unidos da América e na província de Ontário no Canadá (van Thiel e Stolk, 2013); a conferência nacional (Ministére des Solidarités et de la Santé, 2017) e as conferências regionais de saúde (Devictor, 2010), em França, entre outros. A participação dos cidadãos – na qualidade de pessoas com doença, utentes dos serviços de saúde, ou consumidores, e das organizações que os representam –, ocorre, por exemplo, em decisões relacionadas com a definição de prioridades e dotações orçamentais globais da política de saúde, medidas e programas específicos de saúde, avaliação de tecnologias de saúde, normas e orientações ou investigação (Florin e Dixon, 2004; Mitton et al., 2009; van de Bovenkamp et al., 2010).

5 A participação em saúde não só é reconhecida como um direito de todas as pessoas, como a sua concretização é advogada como responsabilidade dos governos, com o objetivo de alcançar sistemas de saúde, políticas e instituições centradas na pessoa e consequentes ganhos em saúde (Council of Europe, 2000; Kickbusch e Gleicher, 2012). O contributo dos cidadãos é assumido como indispensável e necessário para informar a decisão, pois constitui um conhecimento experiencial único sobre o sistema de saúde, a prestação de cuidados de saúde e a vivência com doença (Broerse et al., 2010; Euroean Medicines Agency, 2011; Nordin, 2000; Scutchfield et al., 2006; Telford et al., 2002; van de Bovenkamp et al., 2009). A participação pública em saúde responde, assim, ao objetivo de adequar e alinhar a política de saúde com a prestação de cuidados, de acordo com as prioridades e necessidades não satisfeitas das pessoas e com as preferências individuais e coletivas. Por outro lado, não só aumenta a qualidade dos processos de tomada de decisão em saúde, em termos de relevância e adequação, como reforça a legitimidade, a transparência e a responsabilidade do sistema de saúde (Cooper et al., 1995; Council of Europe, 2000, Tritter e McCullum, 2006). Finalmente, a participação pública em saúde, aliada à participação nas decisões relacionadas com a saúde e os cuidados individuais, é um elemento-chave na coprodução de saúde (Kickbusch e Gleicher, 2012) e, portanto, é assumida como fundamental para alcançar melhores resultados de saúde.

6 Neste contexto, o conhecimento leigo assume relevância e centralidade, em contraposição com a representação negativa do sistema técnico-político a respeito do público leigo em geral, sistematicamente rotulado como emocional ou irracional, insuficientemente informado e hostil aos avanços tecnológicos, o que legitima a desqualificação e não consideração das posições do público (Barnett et al., 2012; Batel e Devine-Wright, 2015). Falar de participação em saúde é reclamar como legítima a possibilidade de o conhecimento leigo poder contribuir para a melhor compreensão dos problemas de saúde e para a organização dos serviços, mas também para a mitigação de desigualdades na saúde, mesmo considerando eventuais conflitos que esta abertura possa acarretar nomeadamente com os diferentes grupos profissionais, ou seja, com os

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detentores do conhecimento perito (Popay e Williams, 1996; Garthwaite e Bambra, 2017). Sobre isto importa ainda considerar, a partir de experiências realizadas noutros domínios, a configuração que devem assumir os processos participativos que promovem o envolvimento público em saúde. Geralmente estas são pensadas e implementadas numa lógica top-down, podendo condicionar a forma como estes exercícios de envolvimento decorrem e como se valoriza, ou não, o conhecimento leigo e a forma como este pode influir nas consequentes políticas públicas (Carvalho e Nunes, 2018). Neste sentido, também na saúde, devem pensar-se tecnologias sociais de participação como epistemologias cívicas (Jasanoff, 2004), permitindo a presença informada e crítica dos cidadãos no domínio da saúde, valorizando os seus conhecimentos e experiências numa lógica de coprodução de conhecimento sobre, por exemplo, como promover a eficiência na saúde. É a partir deste objetivo de uma epistemologia cívica em saúde que sociedades democráticas promovem a coprodução de conhecimento sobre determinadas questões, a partir do qual pensam soluções mais adequadas.

7 Para o crescente envolvimento dos cidadãos e o reconhecimento, hoje indiscutível, da importância da participação pública em saúde, muito têm contribuído as pessoas com doença e seus representantes, nomeadamente o European Patients’ Forum (s.d., 2015) e a International Alliance of Patients’ Organizations (IAPO, 2005), mas também outras organizações não governamentais como a Active Citizenship Network (Terzi, 2013), que se têm mobilizado e agido para colocar, ainda de forma mais urgente, a participação pública na agenda institucional e mediática, e criar janelas de oportunidade para o envolvimento dos cidadãos, em particular na qualidade de pessoas com doença, utentes dos serviços de saúde ou consumidores. Apesar disso, persistem barreiras importantes para um maior envolvimento e a uma participação mais significativa, ou seja, com impacto efetivo nas decisões. A este propósito, destacam-se o contexto cultural e institucional, assim como as atitudes dos vários atores na área da saúde, a par das dificuldades geradas por um conhecimento limitado dos temas e dos processos de decisão, associadas a questões de ordem prática e financeira (Crisóstomo, 2009; Crisóstomo e Lima, 2013; Direção-Geral da Saúde, 2012; IAPO, 2005; Serapioni e Matos, 2014a).

8 Importa também não negligenciar que a participação e sua definição variam em função dos contextos e das suas características, designadamente no que respeita à cultura política e aos arranjos institucionais preexistentes (Loeber et al., 2011). A participação que este artigo advoga aponta no sentido da adoção de mecanismos capazes de envolver, de forma efetiva e regular, a população nas decisões sobre saúde, recusando uma participação meramente instrumental como meio de legitimar decisões prévias (Fiorino, 1990). Assume-se também que o direito de participação só é efetivo, e se reveste de verdadeiro significado, quando as necessidades e os valores dos cidadãos são colocados no centro dos processos coletivos de tomada de decisão, os quais são orientados por princípios de corresponsabilização e transparência (Pestre, 2008).

Do aparente envolvimento ao envolvimento significativo – Onde estamos em Portugal?

9 No contexto português, o direito a participar nos processos de tomada de decisão é reconhecido pela Constituição da República Portuguesa, que atribui ao Estado a

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responsabilidade pelo “aprofundamento da democracia participativa”2 e por “assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais”.3 No que respeita à saúde, a Constituição consagra ainda que “o serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada”.4

10 No âmbito da política de saúde, tanto o Plano Nacional de Saúde (PNS) de 2004-2010 (Direção-Geral da Saúde, 2004), como o de 2012-2016 (ibidem, 2012) e a revisão e extensão a 2020 (ibidem, 2015), preconizam a promoção da cidadania como eixo estratégico para maximizar os ganhos em saúde, a concretizar, nomeadamente, através do envolvimento e da participação dos cidadãos. O PNS entende o papel dos cidadãos no seu sentido mais lato (com doença, utentes dos serviços de saúde, cuidadores, familiares e membros da comunidade), podendo atuar como coprodutores da sua própria saúde ou agentes de mudança coletiva, participando no âmbito da política de saúde ou das instituições de saúde. O PNS salienta ainda o papel e a responsabilidade das organizações de pessoas com doença, utentes dos serviços de saúde e consumidores, não só na representação e defesa dos direitos e interesses dos seus membros, como na promoção da participação pública, através do empoderamento e capacitação destes e da participação ativa das próprias organizações. No entanto, o PNS tem sido omisso relativamente à definição de medidas concretas para a implementação e a concretização das orientações propostas.

11 Na avaliação que fez ao PNS (WHO, 2010a) e ao sistema de saúde português (ibidem, 2010b), a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerou seletivo e insuficiente o envolvimento dos vários atores do sistema de saúde. Por isso a OMS recomendou um envolvimento mais precoce dos cidadãos e em diferentes momentos, e também de forma mais abrangente e consistente, incluindo no âmbito da atividade governamental e do próprio PNS, por exemplo, através da criação reiterada de oportunidades para que todos possam apresentar propostas de melhoria do desempenho do sistema de saúde, em particular nas áreas prioritárias. A OMS sugeriu ainda a implementação de plataformas para o maior envolvimento de representantes de diferentes grupos populacionais. As recomendações da OMS continuam por cumprir, o que salienta a necessidade de existir, em Portugal, um plano que contemple os vários níveis, setores e instituições, numa estratégia integrada para a promoção da participação pública em saúde.

12 Na prática, a participação pública institucionalizada na área da saúde, em Portugal, situa-se, a maioria das vezes, nos níveis mais baixos da escala de participação (Arnstein, 1969; Direção-Geral da Saúde, 2012; OECD, 2001): informação, recolha de opinião (através de inquéritos, consultas públicas e outros meios) ou discussão em reuniões ad hoc. As poucas iniciativas de institucionalização da participação pública na área da saúde em Portugal – sendo as mais relevantes, no âmbito da política de saúde, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), os Conselhos da Comunidade dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) – não só espelham uma conceção ainda associada à participação como informação/consulta, como se tratam de experiências pontuais, ainda recentes ou a carecer de aprofundamento. Noutros casos ainda, o envolvimento traduz-se em situações de tokenismo, sem quaisquer consequências percebidas (Crisóstomo, 2009), tal como definido por Arnstein (1969). O CNS tem previsão legal desde 1990 (Lei de Bases da Saúde),5 mas apenas iniciou a sua atividade em 2017, um ano depois da sua regulamentação.6 Já os Conselhos da Comunidade dos ACES, instituídos há uma década,7

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ainda não conseguiram garantir a participação efetiva dos utentes e das respetivas organizações de modo a que as suas necessidades e expetativas sejam incorporadas nos processos de decisão no âmbito dos ACES (Serapioni e Matos, 2014b). Não obstante, ao dilatarmos o conceito de participação para além da fronteira da institucionalização de práticas percebemos, em Portugal, a riqueza de iniciativas que têm alimentado este debate. Desde logo, é incontornável o papel que, ao longo dos anos, têm assumido as associações de pessoas com doença na luta por influenciar decisões que lhes dizem diretamente respeito (Filipe et al., 2010; Rabeharisoa et al., 2014; Clamote, 2014), sem negligenciar também o papel da mobilização coletiva não convencional, como as ações de protesto, onde se encontram muitas manifestações de rua e petições sobre saúde (Matos, 2016).

“MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” – Uma iniciativa bottom-up

13 A iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” surgiu, em 2015, do reconhecimento, por parte da sociedade civil, das limitações e insuficiências da participação pública na área da saúde, em Portugal, em particular no que respeita à afirmação do tema na agenda dos decisores e à ausência de espaços de participação pública significativa e efetiva. Tendo por base o enquadramento político e legal preexistente, assumiu o objetivo promover a institucionalização e a efetivação da participação dos cidadãos e seus representantes nos processos de decisão em saúde, tanto a nível político, como institucional, ou seja, no contexto das políticas públicas de saúde e da organização e prestação de cuidados de saúde em Portugal.

14 O primeiro passo foi estabelecer um grupo de trabalho representativo de pessoas com doença, utentes dos serviços de saúde e consumidores, assente numa base alargada de apoio e com potencial para concretizar com sucesso uma abordagem bottom-up à participação pública em saúde. Para o efeito, o promotor inicial da iniciativa – uma associação de pessoas com doença que trabalha na área do VIH, hepatites virais, tuberculose e outras infeções sexualmente transmissíveis8 – contactou outras associações no âmbito dos programas de saúde prioritários,9 assim como plataformas de associações de pessoas com doença e também associações de utentes dos serviços de saúde e de consumidores. Na sequência, integraram o grupo de trabalho, em paridade com a associação promotora, representantes de associações de pessoas com doença (acidente vascular cerebral, artrite reumatoide e outras doenças reumáticas, cancro, depressão, diabetes, doença de Alzheimer, doença de Parkinson e doenças respiratórias), utilizadores de drogas, portadores de dispositivos médicos e consumidores.10

15 Por se pretender implementar um projeto de investigação-ação (Minkler e Wallerstein, 2008), foi também estabelecida uma colaboração científica com um centro de investigação e formação avançada na área das ciências sociais,11 tendo sido alocados a este projeto dois investigadores na área da participação pública na área da saúde, que integraram o grupo de trabalho, trazendo para os espaços reflexivos do projeto a evidência empírica sobre as práticas participativas noutros países, em particular no âmbito da saúde, e questionando as visões e práticas dos restantes membros do grupo de trabalho.

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16 Para promover a reflexão conjunta e a construção de posições comuns, foi utilizada uma metodologia participativa, de aprendizagem com os pares e de investigação-ação, em que os representantes das associações foram corresponsáveis por todas as decisões e pelo desenvolvimento das várias atividades em conjunto (Schiefer et al., 2006), tendo as reuniões do grupo de trabalho adotado a forma de plenário aberto a outros interessados.

17 A coordenação do grupo de trabalho foi assumida pelas autoras,12 que facilitaram os trabalhos de forma independente relativamente aos interesses das associações representadas no grupo de trabalho.

18 A estratégia, tal como definida e implementada pelo grupo de trabalho (Tabelas 1 e 2), assentou em três pilares: 1) caracterização de visões, atitudes e experiências dos cidadãos e das organizações da sociedade civil, 2) formulação de uma proposta-quadro para o seu adequado envolvimento e 3) sensibilização para institucionalizar a participação pública em saúde.

TABELA 1 – Estratégia para a institucionalização da participação pública em saúde da iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”

Objetivo Meio Resultado

Produção de evidência sobre Caracterizar as visões, as a participação pública em atitudes e as experiências dos Inquérito por questionário saúde para demonstrar a cidadãos e das organizações da necessidade de promover e sociedade civil melhorar a mesma

Estabelecimento de princípios, Formular uma proposta- âmbito, linhas orientadoras e “Carta para a Participação quadro para o adequado formas de participação, assim como Pública em Saúde” (MAIS envolvimento dos cidadãos e critérios de elegibilidade para a PARTICIPAÇÃO melhor seus representantes participação das organizações saúde, 2016a) representativas

- “10+ Participação pública em Saúde” (MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde, 2016b); Sensibilizar os tradicionais Definição e implementação de uma decisores para a importância estratégia de ativismo para colocar - Fórum “MAIS da participação pública em na agenda a participação pública PARTICIPAÇÃO melhor saúde e promover a sua em saúde a nível político e saúde”; institucionalização institucional - Petição; - Página no Facebook; - Sítio na internet; - Proposta de Projeto de Lei

Fonte: Elaboração das autoras.

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TABELA 2 – Cronologia dos momentos-chave relacionados com a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”

Constituição do grupo de trabalho 2015/jul. Início da elaboração da proposta-quadro (“Carta para a Participação Pública em Saúde”) e do questionário

2015/out. Lançamento da página “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” no Facebook*

2015/nov. a Recolha de respostas ao questionário 2016/abr.

Finalização da proposta de “Carta para a Participação Pública em Saúde” 2016/jun. Definição e votação das 10 propriedades para promover a participação pública em saúde (“10+ Participação Pública em Saúde”)

Início da discussão pública e do processo de recolha de subscrições da “Carta para a 2016/jul. Participação Pública em Saúde”

Incorporação das sugestões de alteração à “Carta para a Participação Pública em 2016/set. Saúde” Lançamento de petição à Assembleia da República**

Realização do Fórum “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” e de uma Exposição na 2016/out. Assembleia da República alusiva ao tema

2017/abr. Lançamento do sítio na internet “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”***

2018/mar. Entrega à Assembleia da República da petição

Entrega aos deputados da Comissão Parlamentar da Saúde de uma proposta de 2018/out. projeto de lei para aprovação da “Carta para a Participação Pública em Saúde”

Fonte: Elaboração das autoras. Notas: * Ver www.facebook.com/participacaosaude; ** Disponível em www.parlamento.pt/ ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=13178; *** Cf. www.participacaosaude.com.

19 A evidência recolhida por questionário, ao qual responderam 618 cidadãos e 78 organizações, contribuiu para demonstrar a pertinência dos objetivos e a necessidade de um maior envolvimento e uma participação mais efetiva, tendo os resultados sido apresentados publicamente, com a presença de organizações da sociedade civil, decisores políticos e outros representantes dos demais atores da saúde, no Fórum “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”. A discussão pública e a subscrição da “Carta para a Participação Pública em Saúde” mobilizaram mais de uma centena de organizações – associações de pessoas com doença e outras – que são atualmente signatárias desta iniciativa, à qual se juntaram mais de 4000 cidadãos, através da petição dirigida à Assembleia da República. A Carta e a petição – conjuntamente com a identificação de 10 prioridades para promover a participação pública em saúde, em Portugal (Tabela 3) – constituíram, assim, os alicerces da estratégia de ativismo virtual (Crisóstomo et al., 2017) e presencial, em particular junto dos principais decisores políticos na saúde

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(Comissão Parlamentar de Saúde e respetivos deputados e Ministério da Saúde e seus organismos). No seguimento da petição entregue na Assembleia da República e com o intuito de promover a aprovação, por este órgão, de uma iniciativa legislativa, foi também preparada e apresentada pelos signatários da “Carta para a Participação Pública em Saúde” uma proposta de projeto de lei para institucionalizar a participação pública em saúde.

TABELA 3 – Prioridades para a promoção da participação pública em saúde

1 “Carta para a Participação Pública em Saúde”

Institucionalização da participação no Plano Nacional de Saúde e outras áreas de decisão em 2 saúde

3 Criação do Conselho Nacional para a Participação em Saúde

4 Institucionalização da participação nas Administrações Regionais de Saúde

Aprofundamento da participação nos Conselhos da Comunidade dos Agrupamentos de Centros 5 de Saúde (ACES)

6 Aprofundamento da participação nos Conselhos Consultivos dos Hospitais

7 Institucionalização do Conselho Municipal de Saúde

8 Capacitação para a participação pública em saúde

9 Divulgação e promoção da participação em saúde

10 Fórum Nacional sobre Participação em Saúde

Fonte: MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde, 2016b.

20 Para além da participação do tipo bottom-up, salienta-se também a abordagem global – dirigida a toda a sociedade – que a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” adotou desde a fase de discussão pública da “Carta para a Participação Pública em Saúde”, tal como preconizado pelas Nações Unidas (United Nations, 2011) e pela OMS (Kickbusch e Gleicher, 2012), como estratégia para uma melhor governança na saúde. Assim, reconhecendo a contribuição de todas as partes interessadas, procurou-se envolver os vários intervenientes em saúde ao longo de todo o processo, por exemplo, através da abertura à subscrição da “Carta para a Participação Pública em Saúde” por qualquer organização da sociedade civil ou de profissionais, bem como entidades públicas ou outras com intervenção na área da saúde ou da participação pública. Também no Fórum “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” foram criados amplos espaços interdisciplinares de debate, onde os vários atores na área da saúde tiveram um papel ativo como oradores e participantes. Ambas as iniciativas contribuíram para sensibilizar e mobilizar todas as partes interessadas e lançar as bases para uma abordagem alargada e centrada na pessoa, concretizada a posteriori em diversas ações conjuntas, que envolveram associações de pessoas com doença, utentes dos serviços de saúde e consumidores, e também entidades do Ministério da Saúde,13 associações

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profissionais14 e setoriais, 15 academia 16 e órgãos do poder local. 17 Esta cultura participativa e colaborativa, refletida num diálogo continuado de reflexão e partilha mútuas, que tem como ponto de partida as necessidades, os conhecimentos e as experiências dos cidadãos, resultou na apropriação do tema pelos representantes dos vários atores na área da saúde, e traduz-se, hoje, numa rede informal de apoio à reivindicação de mais e melhor participação na saúde e efetiva promoção desta, tanto a nível político, como institucional.

Conclusão

21 Ao posicionar-se a favor da literatura científica, assim como orientações internacionais, emanadas de várias instâncias/organismos desde finais da década de 1970, este artigo dá mais um passo na legitimação da pertinência em acolher o conhecimento leigo, sobretudo na área da saúde, a partir de tecnologias sociais capazes de sustentar a voz dos cidadãos e seus representantes, para alcançar políticas públicas de saúde mais adequadas e cuidados de saúde que respondem às necessidades e preferências dos cidadãos. De facto, a participação pública ativa permite aos cidadãos, e aos seus representantes no contexto de saúde, tornarem-se parceiros-chave no processo de decisão em saúde e serem reconhecidos pelos demais atores.

22 A implementação da “Carta para a Participação Pública em Saúde” pode significar uma transformação disruptiva no sistema de saúde se a conceção das políticas públicas no âmbito da saúde e a prestação de cuidados de saúde, em particular no âmbito do SNS, passarem a beneficiar continuadamente da experiência pessoal e do conhecimento (perícia) que em particular possuem as pessoas com doença ou os utentes dos serviços de saúde. Simultaneamente, os princípios e orientações defendidos, nomeadamente em termos de rotatividade, transparência e publicitação podem limitar o risco de cooptação que não está excluído nestes processos. Desta forma, podem contribuir para a coprodução de conhecimento no âmbito das políticas públicas e do SNS, condição fundamental para uma governança de qualidade na saúde. Através do estabelecimento deste compromisso entre os cidadãos e da conceção das próprias políticas de saúde e do SNS, a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” pode também contribuir para decisões em saúde mais relevantes, mais adequadas, com implementação mais efetiva e melhores resultados em saúde. Apesar de a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” atuar apenas a nível político e institucional, o maior envolvimento neste contexto pode funcionar também como facilitador do envolvimento dos cidadãos nas decisões individuais sobre a própria saúde e a prestação de cuidados.

23 Ao caber às próprias organizações da sociedade civil a liderança na promoção da participação pública em saúde, assumindo-se como parceiros ativos dos demais atores nesta área, incluindo os tradicionais decisores, a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” pode equiparar-se ao nível mais elevado de empoderamento, participação e influência neste tipo de processos (Arnstein, 1969; Direção-Geral da Saúde, 2012; OECD, 2001). A iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde” tem vindo a afirmar-se, per se, como um ator amplamente reconhecido no âmbito da saúde, colocando a participação pública em saúde como prioridade na agenda política e institucional a nível nacional, o que significa uma conquista irrefutável (Crisóstomo e Santos, 2018). A luta pela participação em saúde concretizou-se também na conquista de um lugar, com voz, no Conselho Nacional de Saúde.

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24 Mas tal não basta, sendo que o caminho é a afirmação de mais espaços, plurais, capazes de albergar possibilidades de participação de cariz mais universal, de todos/s os cidadãos, em espaços deliberativos em saúde, em Portugal. Não obstante o caminho já percorrido, é ainda longo (e sinuoso) o caminho por fazer. Apesar dos ganhos aqui reportados, está ainda por cumprir o objetivo maior: de institucionalização de mecanismos participativos e de espaços regulares e efetivos de participação pública dos cidadãos e seus representantes no contexto de saúde, enquanto parceiros-chave na mudança e corresponsáveis nos processos de decisão em saúde.

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NOTAS

1. Em Portugal, a participação eleitoral tem vindo a decrescer, nomeadamente nas eleições legislativas, com níveis de abstenção de 8,5% em 1975, de 33,8% em 1995, chegando aos 44,1% em 2015 (FFMS, 2015). 2. Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa. 3. Alínea c) do artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa. 4. N.º 4 do artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa. 5. Lei n.º 48/90 de 24 de agosto. Diário da República n.º 195/90 – I Série. Lisboa: Assembleia da República. 6. Decreto-Lei n.º 49/2016 de 23 de agosto. Diário da República n.º 161/2016 – I Série. Lisboa: Ministério da Saúde. 7. Decreto-Lei n.º 28/2008 de 22 de fevereiro. Diário da República n.º 38/2008 – I Série. Lisboa: Ministério da Saúde. 8. GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos. 9. Despacho n.º 404/2012 de 3 de janeiro de 2012. Diário da República n.º 10/2012 – II Série. Lisboa: Ministério da Saúde, Gabinete do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde. 10. Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras, Alzheimer Portugal, ANDAR, Associação Nacional AVC, Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson, Associação Portuguesa de Portadores de Pacemakers e CDIs, Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, CASO, DECO, EUTIMIA, Liga Portuguesa contra as Doenças Reumáticas, Liga Portuguesa contra o Cancro e RESPIRA. 11. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. 12. As autoras deste artigo integram a equipa promotora do projeto. A sua implicação na escrita deste artigo, entendem, não suscita qualquer questão ética na medida em que o escrevem ao abrigo de uma sociologia pública (Burawoy, 2005), ou seja, uma sociologia preocupada com a resolução de problemas, com a visibilidade de quem é usualmente “invisível”, a partir de uma

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relação de diálogo e de reflexão permanente com um público afetado por determinado problema. Esta escrita é ainda resultado da produção de “conhecimento situado” (Haraway, 1988), em refutação de uma lógica de total objetividade, mas em sintonia com Boaventura de Sousa Santos (1995: 235), quando este afirma que escrever, neste contexto, é escrever alguma coisa do lado de alguém e nunca do centro. 13. Administração Central do Sistema de Saúde, INFARMED, Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e SNS + Proximidade. 14. Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar (USF-AN), Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e Associação Portuguesa de Desenvolvimento Hospitalar. 15. Associação Nacional das Farmácias e Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica. 16. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 17. Câmara Municipal de Cascais e Câmara Municipal de Lisboa.

RESUMOS

Em Portugal, a participação em saúde está prevista do ponto de vista normativo, em particular ao nível político e institucional. Apesar da preocupação de alguns decisores em promover a participação pública em saúde, esta tem-se revelado insuficiente. É neste contexto, de reconhecimento dos benefícios da participação, mas de ausência de mecanismos capazes de garantir essa participação em processos de decisão sobre saúde, que surge a iniciativa “MAIS PARTICIPAÇÃO melhor saúde”. Esta visa a reivindicação da institucionalização de mecanismos participativos, dando resposta aos anseios de um vasto conjunto de ativistas em saúde, mas também da população portuguesa em geral, que reivindicam o direito a serem envolvidos, de forma regular e efetiva, nas decisões em saúde que os afetam.

In Portugal, participation in health is framed from the normative point of view, in particular, at the political and institutional level. Despite the efforts of some decision-makers to promote public participation in health, it has proved to be insufficient. It is in this context – one in which the benefits of participation are recognised but mechanisms capable of guaranteeing participation in health decision-making processes are lacking – that the “MORE PARTICIPATION better health” initiative appears. This aims to claim the institutionalization of participatory mechanisms responding to the aspirations of a wide range of health activists, but also of the Portuguese population in general, who claim the right to be involved in a regular and effective way in health decisions that affect them.

Au Portugal, la participation à la santé est prévue en termes normatifs, en particulier au niveau politique et institutionnel. Malgré le souci de certains décideurs à promouvoir la participation du public à la santé, cela s’est avéré insuffisant. C’est dans ce contexte, dans lequel les avantages de la participation sont reconnus, mais où il n’existe aucun mécanisme capable de garantir cette participation aux processus décisionnels en matière de santé, que l’initiative “PLUS DE PARTICIPATION meilleure santé” apparaît. Il s’agit de revendiquer l’institutionnalisation de mécanismes participatifs répondant aux aspirations d’un large éventail de militants de la santé, y

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compris la population portugaise en général, qui revendiquent le droit de participer de manière régulière et efficace aux décisions sanitaires qui les concernent.

ÍNDICE

Mots-clés: activisme, participation publique, Portugal, Système national de santé Keywords: activism, Nacional Health Service, Portugal, public participation Palavras-chave: ativismo, participação pública, Portugal, Serviço Nacional de Saúde

AUTORES

SOFIA CRISÓSTOMO

Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) | Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) | GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

MARGARIDA SANTOS

Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) | Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) | GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

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