Uso do DSM-IV na prática clínica – Matos et alii

Artigo de revisão A importância e as limitações do uso do DSM-IV na prática clínica

Evandro Gomes de Matos* Thania Mello Gomes de Matos** Gustavo Mello Gomes de Matos***

1 HISTÓRIA psicose maníaco-depressiva . Freud (1895), quase ao mesmo tempo, destacava da Na Grécia antiga, desde o século 5 a.C., neurastenia uma síndrome, denominada Hipócrates buscou estabelecer um sistema de neurose de angústia, que passou a ser classificação para as doenças mentais. classificada e estudada juntamente com outros Palavras como histeria, e melancolia tipos de neurose: hipocondríaca, histérica, eram usadas para caracterizar algumas delas. fóbica e obsessivo-compulsiva2. Esta Ao longo dos séculos seguintes, diversos terminologia perdurou até os anos 80, do século termos foram sendo incorporados ao jargão 20. médico, como, por exemplo: loucura circular, No ano de 1952, a Associação Psiquiátrica , hebefrenia, paranóia, etc. Entretanto, Americana (APA) publicou a primeira edição do o primeiro sistema de classificação abrangente “Manual Diagnóstico e Estatístico de e de cunho verdadeiramente científico surgiu Transtornos Mentais” (DSM-I), e as edições com os estudos de Emil Kraepelin (1856-1926), seguintes, publicadas em 1968 (DSM-II), 1980 que reuniu diversos distúrbios mentais sob a (DSM-III), 1987 (DSM-III-R) e 1994 (DSM-IV), denominação de demência precoce – foram revistas, modificadas e ampliadas3. posteriormente chamada de esquizofrenia por O DSM-III (1980) foi o mais revolucionário Bleuler –, ao lado de outros transtornos de todos e tornou-se um marco na história da psicóticos, separando-os do quadro clínico da psiquiatria moderna. Novas categorias diagnósticas foram descritas, como, por exemplo: a neurose de angústia foi subdividida * Professor Assistente, Doutor, Departamento de Psicologia Médica e em transtorno de pânico com e sem Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), SP. agorafobia e transtorno de ansiedade ** Psicóloga e Mestre, Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC- generalizada; a fobia social tornou-se uma Campinas), SP. entidade nosológica própria; a psicose *** Acadêmico de Medicina, Universidade de Uberaba (Uniube), MG. maníaco-depressiva passou a ser denominada

312 Recebido em 14/01/2005. Revisado em 18/01/2005. Aceito em 01/08/2005.

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de transtorno do humor bipolar, com ou sem delirante (297.1), dependência do álcool sintomas psicóticos. Muitas palavras (303.90), etc. passaram a ser evitadas. O termo neurose, por Eixo II: Descreve o retardo mental. Por exemplo, deixou de ser usado, para não suscitar exemplo: retardo mental severo (318.1) e questões etiológicas, a palavra histeria transtornos de personalidade, que foram desapareceu do texto, pelo mesmo motivo, a reunidos em três grandes agrupamentos expressão doença mental foi substituída por (clusters). No grupo A, estão os indivíduos com transtorno mental, etc. traços estranhos ou bizarros – por exemplo, Além disto, uma característica importante transtorno de personalidade esquizóide do DSM-III foi a hierarquização dos (301.20); no grupo B, os indivíduos com traços diagnósticos. Um paciente diagnosticado como dramáticos e instáveis – por exemplo, esquizofrênico, por exemplo, não poderia transtorno de personalidade borderline receber o diagnóstico simultâneo de transtorno (301.50); e, finalmente, os inseguros e ansiosos de pânico. A esquizofrenia, patologia mais no grupo C – por exemplo, transtorno de grave, era considerada hierarquicamente personalidade dependente (301.6). superior ao quadro do pânico. Desta forma, era Eixo III: Descreve as condições médicas atendida a velha máxima da medicina, que gerais. Por exemplo: otite média recorrente preconiza a identificação de uma única (382.9). patologia para explicar todos os sintomas que Eixo IV: Trata dos problemas psicossociais compõem o quadro clínico de um paciente. e ambientais, associados com o transtorno Entretanto, em 1987, com a publicação do mental em questão. Por exemplo: ameaça de DSM-III-R, esta hierarquia foi abolida, e o perda de emprego. manual passou a incentivar a feitura simultânea Eixo V: Constitui-se por uma escala de de dois ou mais diagnósticos num mesmo avaliação global de funcionamento (AGF), que paciente. Surgiu, assim, o conceito de recebe uma numeração. Por exemplo: AGF = comorbidade, em psiquiatria, que foi 82. confirmado pelo DSM-IV e amplamente As principais características do DSM-IV difundido nos anos 90, sendo utilizado são: 1. descrição dos transtornos mentais; 2. regularmente nos dias atuais3. definição de diretrizes diagnósticas precisas, Na verdade, o conceito de comorbidade através da listagem de sintomas que configuram remonta ao ano de 1970, quando Feinsten o os respectivos critérios diagnósticos; 3. modelo utilizou pela primeira vez para definir “qualquer ateórico, sem qualquer preocupação com a entidade clínica adicional que tivesse existido etiologia dos transtornos; 4. descrição das ou que pudesse ocorrer durante o curso clínico patologias, dos aspectos associados, dos de um paciente, que tivesse a doença índice padrões de distribuição familiar, da prevalência em estudo”4. O assunto será retomado mais na população geral, do seu curso, da evolução, adiante. do diagnóstico diferencial e das complicações psicossociais decorrentes; 5. busca de uma O QUE É O DSM-IV? linguagem comum, para uma comunicação adequada entre os profissionais da área de O DSM-IV é, portanto, um manual saúde mental; 6. incentivo à pesquisa. diagnóstico e estatístico, que foi adotado pela 5 APA e que correlaciona-se com a AS VANTAGENS DA UTILIZAÇÃO DO DSM-IV Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-106, da Organização O DSM-IV atingiu muitos dos seus Mundial da Saúde (OMS). Trata-se de um objetivos. Na prática clínica, inúmeros sistema classificatório multiaxial – publicado exemplos podem ser destacados. Indivíduos nos anos 90, que são considerados “a década anteriormente diagnosticados como “histéricos” do cérebro” pela OMS –, organizado de maneira eram ridicularizados, nas salas de atendimento a agrupar 16 classes diagnósticas distintas, que de urgência, por não terem o seu sofrimento recebem códigos numéricos específicos e se reconhecido pelos médicos. Alguns termos distribuem por cinco grandes eixos, que são os pejorativos ainda ressoam em nossos ouvidos: seguintes: “crise pitiática”, paciente “píssico”, “piti” ou “hy”. Eixo I: Descreve os transtornos clínicos Muitos deles sofriam, na verdade, de ataques propriamente ditos. Por exemplo: transtorno de de pânico e eram desmoralizados porque os pânico sem agorafobia (300.01), transtorno seus sintomas – parestesias (formigamentos e depressivo recorrente (296.3), transtorno adormecimentos), ondas de calor, 313

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despersonalização/desrealização, tonturas, bem à terapia comportamental. Episódios de medo de morrer ou de perder o controle, entre depressão leves e moderados respondem bem outros – eram mal interpretados por quem os tanto aos antidepressivos quanto à TCC, atendia7. Outros pacientes receberam isoladamente. Todavia, a associação dos dois indevidamente o diagnóstico de esquizofrenia, procedimentos oferece resultados ainda juntamente com todo o estigma decorrente melhores e mais duradouros. Da mesma forma, deste termo, ao invés de transtorno do humor pacientes com fobia social têm indicação para com sintomas psicóticos, o que muda não as duas formas de intervenção – apenas o prognóstico, mas também, antidepressivos e TCC –, porque muitos deles, substancialmente, a abordagem terapêutica. A após a remissão dos sintomas físicos da fobia social, negligenciada por todas as ansiedade obtida com o uso dos medicamentos, classificações anteriores ao DSM-III, foi descrita necessitam de treinamento para mudança de como uma entidade nosológica separada, e os comportamento, melhora da assertividade e do estudos subseqüentes mostraram tratar-se do crescimento do repertório social11. mais comum dos transtornos de ansiedade, atingindo cerca de 12% da população geral. LIMITAÇÕES E DESVANTAGENS DO USO Pôde-se compreender que o transtorno DO DSM-IV distímico é um distúrbio clínico que, embora de curso crônico, não se caracteriza por ser um O uso do DSM-IV é limitado e trouxe traço de personalidade, como era considerado, também inúmeras desvantagens. A primeira mas um estado patológico passível de ser delas diz respeito ao próprio sistema, que diagnosticado e tratado8. O transtorno produziu uma excessiva fragmentação dos obsessivo-compulsivo é mais freqüente do que quadros clínicos dos transtornos mentais. se pensava, atingindo cerca de 3% da Assim, muitos pacientes precisam receber população geral, e a sua associação com o simultaneamente inúmeros diagnósticos, já que transtorno de personalidade obsessivo- os sintomas ultrapassam os limites rígidos, compulsivo é infreqüente, ao contrário do que propostos pelo manual. Por isto, a comorbidade era postulado anteriormente. dentro de um eixo (ou de vários deles) passa a O desenvolvimento das pesquisas na área ser quase sempre a regra, e não a exceção. de saúde mental tomaram um impulso Fóbicos sociais recebem, em 80% dos casos, extraordinário nos últimos anos. A atenção para outro diagnóstico correlato11. O transtorno de o diagnóstico e a comunicação entre os pânico surge ao lado da depressão em mais de diversos profissionais – psiquiatras, 50% dos casos e muitas vezes está associado, psicoterapeutas e psicólogos – estabeleceram ainda, com ansiedade generalizada, fobia uma nova parceria entre a psiquiatria clínica e social, transtorno obsessivo-compulsivo e as psicoterapias comportamental, outros transtornos de personalidade, situados comportamental-cognitiva (TCC) e interpessoal no eixo II12. A recomendação de se registrar – únicas na história de nossa especialidade –, todos os diagnósticos representa, obviamente, que resultou no desenvolvimento de novas uma desvantagem. Além disto, as listas dos técnicas de terapia, com grande melhoria da sintomas não contemplam todas as queixas qualidade de vida oferecida aos nossos apresentadas pelos pacientes na prática clínica. pacientes. Alguns achados vão se confirmando Por exemplo, dor de cabeça, boca seca, visão na literatura especializada. Transtorno borrada e acessos de choro não estão descritos obsessivo-compulsivo, por exemplo, pode ser entre os sintomas dos ataques de pânico, tratado eficazmente com medicamentos embora surjam com freqüência na vigência antidepressivos, que inibem a recaptação da destes episódios. serotonina (IRSS), ou com terapia A segunda dificuldade diz respeito ao comportamental. Estudos originais constataram profissional que vai utilizá-lo. O DSM-IV não que as alterações funcionais, detectadas por deve ser usado como uma lista infalível, que, imagem cerebral, antes desses procedimentos, sendo preenchida, fornece automaticamente regridem ao seu término9,10. Por outro lado, um diagnóstico psiquiátrico. Em mãos sabe-se que os psicofármacos atuam melhor inexperientes, os resultados são desastrosos. nas idéias obsessivas, enquanto a terapia trata Muitos sintomas são superpostos a diversos melhor das compulsões. Em diversos casos, quadros clínicos, e a decisão de sua origem, ou portanto, há indicação para a escolha de ambas de qual estado eles fazem parte, deriva as formas de tratamento. A fobia específica não exclusivamente de um julgamento clínico. E 314 melhora com medicamentos, mas responde este advém dos conhecimentos teóricos de

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psicologia, psicopatologia e psiquiatria, do predispõe ao transtorno A; 3. A e B são treinamento adequado e da experiência influenciados por um fator subjacente C, acumulada ao longo dos anos de exercício da predisponente ou causal; 4. a associação entre profissão13. O DSM-IV não é um compêndio de A e B é produzida pelo acaso – por exemplo, psiquiatria e não deve ser consultado como a pela freqüente ocorrência de ambos os única fonte de conhecimento da especialidade. transtornos ao longo da vida, na população Ao listar os sintomas, o manual busca auxiliar o geral; 5. A e B estão associados porque os reconhecimento dos transtornos mentais, mas seus sintomas se superpõem15. não se presta a substituir a abrangência do O modelo categorial distingue também o diagnóstico clínico, que resulta, acima de tudo, transtorno primário, que ocorre primeiro em da intuição, da percepção e do feeling, que seqüência temporal, do secundário. É o caso surge desta relação única que se estabelece do quadro da depressão secundária ao entre o profissional e o seu paciente. Neste transtorno de pânico, descrito por Klein et al. sentido, é bom frisar que o próprio manual (apud Gomes de Matos16), que se origina da destaca, logo na introdução, um capítulo desmoralização pela qual passa o paciente, denominado “Uma palavra de cautela”, onde que não recebe do profissional o diagnóstico e estes aspectos são devidamente tratados, e o tratamento adequados. Ele passa a ser que recomendamos ao leitor. tratado com indiferença ou hostilidade pelos Tudo isto nos leva a refletir que o DSM-IV amigos e familiares, estribados pelo parecer está longe de resolver os problemas médico errôneo, e não consegue avaliar o grau diagnósticos e estatísticos de nossa de seu sofrimento e as limitações funcionais e especialidade. Mostra-nos um longo caminho a sociais decorrentes do transtorno. A depressão, percorrer, que será realizado com sucesso, neste caso, apresenta-se com características desde que as questões e preconceitos de cada diferentes de um episódio típico (primário) de especialidade sejam deixadas de lado, e, em depressão maior, com uma evolução mais seu lugar, esforcemo-nos para realizar um favorável, e remite com o tratamento específico trabalho conjunto, reunindo os achados para transtorno de pânico, que é considerado o científicos da psiquiatria, que inclui os avanços distúrbio primário e causal17. no campo da neuroimagem e da neurofisiologia Por outro lado, o modelo dimensional por um lado, e a aplicação, comparação e ganhou força, neste século, principalmente com aferição sistemática dos procedimentos os estudos de Kretschmer & Akiskal, que se psicofarmacológicos e psicoterapêuticos basearam no pensamento de Platão e na visão utilizados por outro. holística do homem. Eles descrevem a doença Desta forma, ambos os sistemas mental como sendo uma disfunção única, que diagnósticos – DSM-IV e CID-10 – são se expressa de forma variada. Os sintomas da nosográficos e têm por objetivo listar e depressão – segundo a escola de Akiskal et al., classificar os transtornos mentais, mas não por exemplo –, quando típicos, estão situados substituem o exercício da clínica. O modelo no extremo de um continuum, do qual faz parte destes sistemas, que é denominado categorial, a ansiedade, que, por sua vez, na sua forma se opõe, em contrapartida, a um outro, dito pura, situa-se no outro extremo. Os transtornos dimensional, como veremos em seguida. intermediários estariam representados pelos quadros de sintomatologia mista, onde os OS MODELOS CATEGORIAL E sintomas de depressão e ansiedade se DIMENSIONAL misturam e se superpõem das mais diversas maneiras. Assim, no modelo dimensional, ao O modelo categorial admite, no seu bojo, a contrário do anterior, a depressão e a inclusão de entidades comórbidas. O conceito ansiedade são consideradas a expressão de de comorbidade de Feinsten – conforme vimos uma mesma e única patologia. Isto nos remete acima – foi ampliado para a psiquiatria por ao conceito de spectrum, termo utilizado como Klerman, em 1990, como sendo um termo que uma metáfora do fenômeno físico da “se refere à ocorrência conjunta de dois ou decomposição da luz, que ocorre ao passar por mais transtornos mentais entre si e/ou com um prisma. Da mesma forma, o espectro de um outras condições médicas”14. Posteriormente transtorno mental, que não pode ser abarcado (1990), Frances et al. criaram o seguinte pelo DSM-IV, inclui sintomas preditores, que esquema para o aparecimento de dois surgem na infância, e sintomas prodrômicos e transtornos comórbidos: 1. o transtorno A periféricos, que ocorrem junto com os sintomas predispõe ao transtorno B; 2. o transtorno B típicos, ou que se manifestam com magnitude 315

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suficiente para mascará-los18. Neste sentido, simples, poderá ser vista de uma nova maneira, os estudos de Kretschmer postulam que os tomando-se por referência os sintomas temperamentos esquizotímico e ciclotímico positivos (alucinações e idéias delirantes) e os fazem parte do espectro da esquizofrenia e do sintomas negativos (déficits cognitivos). Isto transtorno do humor (originalmente PMD), decorre dos achados obtidos nos estudos respectivamente, e que os indivíduos realizados com as técnicas de imagem cerebral esquizóides e ciclóides se situam numa posição de última geração. Os pacientes intermediária entre eles19. esquizofrênicos com sintomas Os quadros clínicos, sob a ótica do modelo predominantemente negativos apresentam, dimensional, são decorrentes de alterações de com uma freqüência muito maior do que os com quantidade, que se expressam conforme o seu sintomas positivos, alterações de algumas grau de intensidade, ao contrário do que propõe estruturas cerebrais, que atuam de forma o modelo categorial – que inclui os sistemas do correlata. A tomografia por emissão de DSM-IV e da CID-10 –, que considera os pósitrons (PET), nesses pacientes, permite uma transtornos mentais como sendo produzidos por avaliação – em vivo – do fluxo cerebral, que uma alteração de qualidade, distinta para cada está diminuído no córtex pré-frontal, no um dos transtornos. cerebelo e no tálamo, que é a estrutura cerebral que funciona como um filtro sensorial da PERSPECTIVAS FUTURAS informação. O cerebelo coordena a cognição, a linguagem e as habilidades motoras. O termo Atualmente, diversos autores desenvolvem dismetria cognitiva tem sido usado para pesquisas com o intuito de aprimorar os caracterizar esta disfunção, encontrada na sistemas categoriais, DSM-IV e CID-10. Alguns esquizofrenia. Se isto se confirmar, em estudos quadros serão subdivididos em outras futuros, a perda cognitiva das associações categorias diagnósticas, ampliando ainda mais lógicas será considerada o ponto central para o as listas dos transtornos mentais. É o que deve diagnóstico da esquizofrenia, confirmando a ocorrer, por exemplo, com os transtornos do descrição original de Bleuler do início do humor bipolar I e II. No DSM-IV, eles são século21. caracterizados pela sucessão de fases de Outros autores têm considerado que alguns depressão e mania ou de hipomania, transtornos de personalidade (eixo II) são, na respectivamente, e deverão ser acrescidos por realidade, parte do espectro de outros quadros duas novas categorias, III e IV. O transtorno mentais. Da mesma forma que o transtorno bipolar III se caracterizaria pelos quadros distímico – anteriormente reconhecido como um daqueles pacientes que desenvolvem, distúrbio de personalidade e que passou a ser naturalmente, apenas episódios de depressão, descrito como uma categoria do eixo I, como mas que passam a apresentar episódios de vimos acima –, o transtorno de personalidade mania ou de hipomania, desencadeados pelo borderline deixaria de ser considerado uma uso de medicamentos antidepressivos. O condição clínica isolada, para fazer parte do transtorno bipolar IV ocorreria em pessoas com espectro do transtorno bipolar, e os transtornos temperamento hipertímico, que desenvolvem de personalidade esquizotípico, esquizóide e episódios depressivos, geralmente muito paranóide seriam incluídos na esquizofrenia. graves, e com elevado risco de suicídio. A Atualmente, diversas pesquisas clínicas recuperação de quadros psicopatológicos, têm sido levadas adiante no sentido de negligenciados pelos sistemas classificatórios reconhecer e agrupar os sintomas que não são atuais, como a alteração de personalidade típicos, mas que se misturam ou encobrem o hipertímica, descrita originalmente por Kurt quadro principal e não estão presentes nas Schneider, é louvável do ponto de vista listas dos critérios diagnósticos do DSM-IV, científico20. aproximando os modelos categorial e Por outro lado, alguns transtornos deverão dimensional. Na UNICAMP, no ano de 2000, ser reagrupados, como o transtorno de implantou-se um serviço ambulatorial personalidade de esquiva, situado no eixo II, denominado Núcleo de Atendimento e que poderá ser incluído, juntamente com o Tratamento dos Transtornos de Ansiedade quadro de mutismo seletivo da infância, dentro (NATA), que estabeleceu uma parceria com a da fobia social, por compartilharem os mesmos Universidade de Pisa, onde a equipe do Prof. sintomas, evolução e resposta ao tratamento. A Giovani Cassano desenvolveu um amplo esquizofrenia, classicamente subdividida nas projeto para o estudo do espectro dos 316 formas paranóide, hebefrênica, catatônica e transtornos mentais. A parceria entre as duas

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universidades permite a comparação deste comum, entre médicos psiquiatras e psicólogos novo modelo em populações diferentes. Os em todo o mundo. Entretanto, o uso do manual é primeiros resultados serão publicados em limitado, não substitui o estudo dos tratados conjunto, num futuro próximo. À guisa de clássicos de psicologia, psicopatologia e exemplo, descreveremos abaixo, sucintamente, psiquiatria, e nem a experiência clínica e o o trabalho com o transtorno de pânico, treinamento que o precede. Modelos híbridos atualmente em andamento. que buscam conciliar os modelos categorial e O Spectrum Project, assim denominado por dimensional, envolvendo psiquiatras e Cassano et al., inclui a avaliação dos diversos psicólogos, têm sido desenvolvidos atualmente, transtornos de ansiedade e do humor. Para o com perspectivas promissoras para o transtorno de pânico, foram desenvolvidas, desenvolvimento de nossa especialidade. especificamente, duas escalas de avaliação diagnóstica. A primeira destina-se à população REFERÊNCIAS geral, e a segunda, aos pacientes diagnosticados com pânico: SCI-PAS e PAS- 1. Alexander FG, Selesnick ST. História da psiquiatria. São SR, respectivamente. Ambas contemplam os Paulo: IBRASA; 1968. seguintes itens: 1. utilização dos critérios do 2. Freud S. (1895). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada “neurose DSM-IV para identificar ataques de pânico; e 2. de angústia”. In: Obras completas de Sigmund Freud, entrevista estruturada, composta por diversas Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: IMAGO; questões, para avaliar: a) sensibilidade à 1974. v. 8, p. 107-37. separação na infância (considerada um preditor 3. Stone MH. A cura da mente. Porto Alegre: Artmed; 1999. importante, embora não específico, do transtorno 4. Feinstein AR. The pre-therapeutic of co-morbidity in chronic disease. J Chron Dis. 1970;23:455-68. de pânico); b) sintomas típicos e atípicos do 5. American Psychiatric Association. Diagnostic and pânico (sensação de perda da visão ou da statistical manual of mental disorders. 4.ed. Washington: audição, sensação de que algo se rompeu em APA; 1994. seu cérebro, desconforto no escuro ou na 6. Organização Mundial da Saúde. Classificação de neblina, desconforto ao ruído, etc.); c) transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993. sensibilidade ao estresse (sintomas de 7. Gomes de Matos E, Gomes de Matos TM, Gomes de ansiedade física, como palpitações, sudorese, Matos G. Histeria: uma revisão crítica e histórica do seu tremores, etc., em situações de estresse conceito. J Bras Psiquiatr. 2005;54(1):49-56. consideradas não intensas, como excesso de 8. Spanemberg L, Juruena MF. Distimia: características históricas e nosológicas e sua relação com transtorno trabalho, problemas familiares, etc.); d) depressivo maior. Rev Psiquiatr RS. 2004;26(3)300-11. sensibilidade ou fobia aos fármacos e outras 9. Schwartz JM, Stoessel PW, Baxter LR, Phelps ME. substâncias (intolerância a antidepressivos, Systematic changes in cerebral glucose metabolic rate ansiolíticos, café, perfumes ou outros odores, after successful behavior modification treatment of obsessive-compulsive disorder. Arch Gen . etc.); e) expectativa ansiosa (ansiedade 1996;55(2):109-13. antecipatória e estado de alarme); f) agorafobia 10. Goodman WK. Obsessive-compulsive disorder: diagnosis (típica e atípica); g) sintomas hipocondríacos e and treatment. J Clin Psychiatry. 1999;60(18):27-32. fobia a doenças (sensação de estar preso ou de 11. Lecrubier Y. Comorbidity in social : sufocação na cadeira do dentista, medo de impact on disease burden and management. J Clin Psychiatry. 1998;17(59):33-7. procedimentos médicos, como realizar 12. Kaplan HI, Sadock BJ. Comprehensive textbook of eletroencefalograma, colheita de sangue, ver um psychiatry. 6.ed. Baltimore: Willians & Wilkins; 1995. bisturi, etc.); e h) sensibilidade ao 13. Cheniaux E. Psicopatologia descritiva: existe uma reasseguramento (procura de ajuda, como idas linguagem comum? Rev Bras Psiquiatr. 2005;2(27)157- freqüentes ao pronto-socorro, interpretações 62. 22 14. Klerman GL. Approaches to the phenomena of catastróficas de situações, dramatização, etc.) . comorbidity. In: Maser JD, Cloninger CR, eds. Comorbidity of mood and anxiety disorders. Washington: American Psychiatric Press; 1990. p. 13. CONCLUSÕES 15. Frances A, Widiger T, Fyer MR. The influence of classification methods on comorbidity. In: Maser JD, A consulta e o uso adequado do DSM-IV é Cloninger CR, eds. Comorbidity of mood and anxiety de suma importância para os profissionais que disorders. Washington: American Psychiatric Press; atuam na área da saúde mental. A sua utilização 1990. p. 256. tem resultado, nos últimos anos, em avanços 16. Gomes de Matos E. Contribuições ao estudo do distúrbio de pânico e prolapso de valva mitral [tese de doutorado]. científicos significativos no campo da prática Campinas: Unicamp; 1992. clínica e do estudo epidemiológico dos 17. Gomes de Matos E. Ansiedade antecipatória, distúrbio transtornos mentais. Possibilitou também uma de pânico e depressão secundária. J Bras Psiquiatr. ampla comunicação, através de uma linguagem 1994;43(2):75-8. 317

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18. Cassano GB, Dell’Osso L, Frank E, Minati M, Fagiolini A, models, both dimensional and categorical, was carried Shear K, et al. The bipolar spectrum: a clinical reality in out as well. The paper was divided into the following search of diagnostic criteria and an assessment methodology. J Affect Disord.1999;54:319-28. sections: history, concept, advantages and disadvantages of the DSM-IV, discussion and 19. Kretschmer E. Psicologia médica. 13.ed. São Paulo: Atheneu; 1970. conclusion. The article also presents a project 20. Schneider K. Psicopatologia clínica. São Paulo: Mestre developed by the Núcleo de Atendimento dos Jou; 1976. Transtornos de Ansiedade (NATA), from the 21. Korn M. Novas questões de tratamento e neurociências Department of Psychiatry at FCM/UNICAMP, which em esquizofrenia. Neuropsiconews. 2000;32:34-9. will use an instrument for the diagnostic of the 22. Cassano GB, Michelini S, Shear K, Coli E, Maser J K, disorder that will follow a dimensional Frank E. The panic-agoraphobic spectrum: a descriptive model. approach to the assessment and treatment of subtle symptoms. Am J Psychiatry. 1997;154(6):27-38. Keywords: DSM-IV, multiaxial system, psychopathology. Title: The importance and constraints of the DSM-IV RESUMO use in the clinical practice Introdução: O DSM-IV é um sistema diagnóstico e estatístico de classificação dos transtornos mentais, RESUMEN segundo o modelo categorial, destinado à prática clínica e à pesquisa em psiquiatria. O objetivo do presente estudo foi apresentar as vantagens do uso Introducción: El DSM-IV es un sistema deste instrumento e suas limitações. diagnóstico y estadístico de clasificación de los Metodologia: Os autores realizaram uma ampla trastornos mentales, conforme al modelo categorial, revisão bibliográfica e apresentaram a relevância do destinado a la práctica clínica y a la investigación en tema, como está no momento configurado. Foram psiquiatría. El objetivo del presente estudio fue apontadas algumas mudanças prováveis, que presentar las ventajas del uso de este instrumento, ocorrerão nas próximas edições, e a discussão entre así como sus límites. os modelos diagnósticos – dimensional e categorial. Metodología: Los autores realizaron una amplia O artigo inclui os seguintes tópicos: histórico, revisión bibliográfica y presentaron la relevancia del conceito, vantagens e desvantagens da utilização, tema, tal como se configura en el momento. Señalaron discussão e conclusão. Apresenta, também, um algunos cambios probables, que ocurrirán en las projeto que será desenvolvido no Núcleo de próximas ediciones, y la discusión entre los modelos Atendimento dos Transtornos de Ansiedade (NATA), diagnósticos - dimensional y categorial. El artículo do Departamento de Psiquiatria da FCM/UNICAMP, incluye los siguientes tópicos: histórico, concepto, aplicando um novo instrumento diagnóstico para o ventajas y desventajas de la utilización, discusión y espectro do pânico agorafóbico, segundo o modelo conclusión. Presenta, además, un proyecto que será dimensional. desarrollado en el Núcleo de Atendimento dos Transtornos de Ansiedade (NATA), del Departamento Descritores: DSM-IV, sistema multiaxial, de Psiquiatría de la FCM/UNICAMP, aplicando un psicopatologia. nuevo instrumento diagnóstico para el espectro del pánico agorafóbico, conforme al modelo dimensional.

ABSTRACT Palabras clave: DSM-IV, sistema multiaxial, psicopatología. Introduction: The DSM-IV is a diagnostic and statistical system for the classification of mental Correspondência: disorders that follows a categorical model. It is used in Evandro Gomes de Matos the clinical practice and research in the psychiatry Rua Américo Brasiliense, 244/62 area. The aim of this study was to analyze the use of Cambuí – Campinas – SP the DSM-IV in the clinical practice and to report on its CEP 13094-770 advantages and limitations. Fone/Fax: (19) 3295.8333 Methods: A wide bibliographic review was made E-mail: [email protected] to show the relevance of the topic. Some probable changes were pointed out, which will be included in Copyright © Revista de Psiquiatria the next editions. A discussion on the diagnostic do Rio Grande do Sul – SPRS

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