EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

RANDOLPH FREDERICH RODRIGUES ALVES, brasileiro, Senador da República, portador da cédula de identidade nº 050360, inscrito no CPF sob o nº 431.879.432-68, com domicílio profissional na Avenida Procópio Rola, nº 2326, Bairro Santa Rita, Macapá - AP, CEP: 68.901-076; vem apresentar, com fulcro no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, e no artigo 53 da Lei nº 8.443, de 1992, o presente RELATO DE MATÉRIA EXTERNA para requerer a este TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO a tomada de todas medidas cabíveis para a investigação do esquema de “orçamento secreto” a nível federal divulgado nesse final de semana pelo jornal O Estado de São Paulo, com a aplicação das sanções de estilo caso constatadas as irregularidades delineadas nas reportagens.

Com efeito, no sábado, recebemos a notícia de que haveria um orçamento secreto bilionário de Bolsonaro responsável por bancar trator superfaturado em troca de apoio no Congresso: esquema do governo que destina R$ 3 bilhões em emendas para auxiliar base no Congresso; parte delas é gasta para compra de tratores com preços até 259% acima dos valores de referência.

Para que não restem dúvidas, confira-se a íntegra da reportagem1:

Um esquema montado pelo presidente , no final do ano passado, para aumentar sua base de apoio no Congresso criou um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões em emendas, boa parte delas destinada à compra de tratores e equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo.

1 Disponível em: . Acesso em 10/5/2021. O flagrante do manejo sem controle de dinheiro público aparece num conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados para indicar como eles preferiam usar os recursos.

O detalhe é que, oficialmente, o próprio Bolsonaro vetou a tentativa do Congresso de impor o destino de um novo tipo de emenda (chamada RP9), criado no seu governo, por “contrariar o interesse público” e estimular o “personalismo”. Foi exatamente isso o que ele passou a ignorar após seu casamento com o Centrão.

Os ofícios, obtidos pelo Estadão ao longo dos últimos três meses, mostram que esse esquema também atropela leis orçamentárias, pois são os ministros que deveriam definir onde aplicar os recursos. Mais do que isso, dificulta o controle do Tribunal de Contas da União (TCU) e da sociedade. Os acordos para direcionar o dinheiro não são públicos, e a distribuição dos valores não é equânime entre os congressistas, atendendo a critérios eleitorais. Só ganha quem apoia o governo.

O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), por exemplo, determinou a aplicação de R$ 277 milhões de verbas públicas só do Ministério do Desenvolvimento Regional, assumindo a função do ministro Rogério Marinho. Ele precisaria de 34 anos no Senado para conseguir indicar esse montante por meio da tradicional emenda parlamentar individual, que garante a cada congressista direcionar livremente R$ 8 milhões ao ano.

Ex-presidente do Senado, Alcolumbre destinou R$ 81 milhões apenas à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), a estatal que controla, ao lado de outros políticos.

Um caso emblemático é o do deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO). O governo aceitou pagar R$ 359 mil num trator que, pelas regras normais, somente liberaria R$ 100 mil dos cofres públicos. No total, o deputado direcionou R$ 8 milhões.

Há situações até em que parlamentares enviaram milhões para compra de máquinas agrícolas para uma cidade a cerca de dois mil quilômetros de seus redutos eleitorais. É o caso dos deputados do Solidariedade Ottaci Nascimento (RR) e Bosco Saraiva (AM). Eles direcionaram R$ 4 milhões para Padre Bernardo (GO). Se a tabela do governo fosse considerada, a compra sairia por R$ 2,8 milhões. À reportagem, Saraiva disse que atendeu a um pedido de Nascimento, seu colega de partido. Por sua vez, Nascimento afirmou ter aceito um pedido do líder da legenda na Câmara, Lucas Vergílio (GO).

Planilha secreta do governo obtida pelo Estadão revela que Alcolumbre também destinou R$ 10 milhões para obras e compras fora do seu Estado. Dois tratores vão para cidades no Paraná, a 2,6 mil quilômetros do Amapá. Sem questionar, o governo concordou em comprar as máquinas por R$ 500 mil, quando pelo preço de referência sairiam por R$ 200 mil.

As máquinas são destinadas a prefeituras para auxiliar nas obras em estradas nas áreas rurais e vias urbanas e também nos projetos de cooperativas da agricultura familiar. Os políticos costumam promover festas de entrega dos equipamentos, o que lhes garante encontros e fotos com potenciais eleitores em ano pré-eleitoral.

Ao serem entrevistados, deputados e senadores negavam o direcionamento dos recursos ou se recusavam a prestar informações. Confrontados com ofícios assinados por eles e a planilha do governo, acabaram por admitir seus atos.

O deputado Vicentinho Junior (PL-TO) escreveu à Codevasf que havia sido “contemplado” com o valor de R$ 600 mil para compra de máquinas. “Dificilmente esse ofício foi redigido no meu gabinete, porque essa linguagem aí, tão coloquial, eu não uso”, disse.

Somente após o Estadão encaminhar o documento, Vicentinho Junior admitiu a autoria, mas minimizou a expressão “contemplado” ali utilizada. “Às vezes, uma colocação nesse sentido nada mais é do que ser simpático”, resumiu.

“Minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados” eram termos frequentes nos ofícios dos parlamentares. Foi dessa última forma que a deputada e atual ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), se dirigiu à Codevasf para definir o destino de R$ 5 milhões. “Não me lembro. Codevasf?”, perguntou ao Estadão.

Ao ler o documento, Flávia desconversou: “É tanta coisa que a gente faz que não sei exatamente do que se trata”. Nem tudo, porém, é registrado. O senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL) admitiu que “ditou” para o ministro Marinho onde R$ 7 milhões deveriam ser aplicados.

Na prática, a origem do novo esquema está no discurso de Bolsonaro de não distribuir cargos, sob o argumento de não lotear o primeiro escalão do governo. De um jeito ou de outro, a moeda de troca se deu por meio da transferência do controle de bilhões de reais do orçamento ao Congresso. Tudo a portas fechadas, longe do olhar dos eleitores.

Em outra reportagem2, o próprio Estadão muito bem afirma que o esquema de um orçamento secreto montado pelo presidente Jair Bolsonaro para garantir apoio no Congresso

2 Disponível em: . Acesso em 10/5/2021. atropela a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e posições assumidas por ele na campanha e já no exercício do mandato. Na liberação sigilosa de R$ 3 bilhões para serviços de obras e compras de tratores e máquinas agrícolas indicados por um grupo escolhido a dedo de deputados e senadores, no final ano passado, o governo atropelou ao menos três exigências da legislação. Veja-se:

No que tange à LDO de 2020, as autorizações de repasses de recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional deixaram de estabelecer critérios para definição das localidades beneficiadas e não apresentaram indicadores socioeconômicos ao distribuir os recursos. Além disso, não priorizaram a continuidade de obras iniciadas.

Numa radiografia do orçamento secreto, as cidades de Tauá (CE), Santana (AP) e Petrolina (PE) aparecem em destaque como os redutos eleitorais de aliados do governo que receberam recursos de maneira desproporcional, por critérios apenas políticos. Os R$ 110,3 milhões que o relator-geral do orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), destinou a Tauá, em dezembro, logo após a eleição de sua mãe, Patrícia Aguiar (PSD), fizeram da cidade a maior beneficiada do Brasil por repasses da pasta do Desenvolvimento Regional no ano passado.

Encravado no Sertão dos Inhamuns, o município de 57 mil moradores vive da agricultura familiar e da pecuária. É um feudo familiar. Patrícia está no quarto mandato. O avô paterno do deputado, que lhe rendeu o nome, também foi prefeito duas vezes. O pai, Domingos Filho, foi vice-governador no mandato de , entre 2011 e 2014, e depois virou adversário da família Ferreira Gomes.

Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre (DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre redirecionou o investimento. O senador ainda redirecionou R$ 30 milhões para Tartarugalzinho (AP), onde o correligionário Bruno Mineiro (DEM) se elegeu.

Laços de família foram motivos também que tornaram Petrolina (PE) a nona cidade com mais investimentos do Ministério do Desenvolvimento Regional em 2020. O município é administrado por Miguel Coelho (MDB), filho do senador (MDB-PE). O líder do governo no Senado ditou a transferência de R$ 46.569.000,00 ao município por meio da estatal Companhia do Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) em dois convênios, celebrados nos mesmos valores. Há mais de duas mil cidades no Brasil com piores indicadores socioeconômicos do que Tauá, Santana e Petrolina. No ranking nacional de Índice de Desenvolvimento Humano, Petrolina e Santana estão na metade superior, enquanto Tauá não está nem entre as duas mil cidades de mais baixo índice, dentro de um total de 5565 municípios. Só no Ceará há 140 cidades com IDH mais baixo que o município administrado pela mãe do deputado.

De acordo com a LDO de 2020, quando o Congresso não estabelece na lei orçamentária localidades específicas a serem beneficiadas, a transferência de recursos do governo "fica condicionada à prévia divulgação em sítio eletrônico, pelo concedente, dos critérios de distribuição dos recursos, considerando os indicadores socioeconômicos da população beneficiada pela política pública". O texto, que consta no artigo 77, tem por objetivo prestigiar a imparcialidade na definição do destino do dinheiro público, evitando o personalismo.

Esse tipo de exigência passou a ser previsto em 2010 nas leis orçamentárias. “Pensamos que a medida vai ao encontro das comunidades mais necessitadas, uma vez que essa tem maiores chances de ser beneficiada por critérios construídos a partir de políticas públicas”, disse naquele ano o relator da LDO 2010, Wellington Roberto (PL-PB) – por coincidência, um dos grandes beneficiados, agora, pelo orçamento secreto. Ele conseguiu indicar um valor total de R$ 80 milhões.

A regra deveria ter sido observada em relação aos R$ 3 bilhões que constam no planilhão do Ministério do Desenvolvimento Regional divulgado em janeiro pelo Estadão. A abertura desses créditos foi feita por meio dos projetos de lei do Congresso Nacional (PLNs) de números 29, 30 e 40, por meio de emenda de relator-geral do orçamento (a chamada RP9), estabelecendo, apenas, os tipos de ação orçamentária que deveriam receber os recursos.

Pelas regras, o Congresso, no entanto, não tem o poder de definir quais projetos devem ser executados. Essa é uma atribuição exclusiva do governo. Caberia ao Ministério do Desenvolvimento Regional fazer a prévia divulgação de critérios e a análise de indicadores socioeconômicos para, então, escolher os projetos.

Parlamentares até tentaram forçar o controle sobre o destino deste tipo de recursos ao aprovar, também na LDO 2020, um artigo prevendo que “as indicações e priorizações das programações com identificador de resultado primário derivado de emendas serão feitas pelos respectivos autores”. Na prática, esse artigo permitiria que os parlamentares, legalmente, indicassem o destino dos R$ 3 bilhões.

No entanto, o próprio presidente Jair Bolsonaro vetou esse artigo na LDO de 2020, sob a alegação de que contrariava o interesse público. Nas razões do veto, enviadas ao Congresso em 11 de novembro de 2019 — antes da aliança com o Centrão — o presidente afirmou que o dispositivo era “incompatível” com a “complexidade operacional” do procedimento em estabelecer que as indicações e priorizações sejam feitas pelos “autores”. “Ademais, o dispositivo investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública.”

Na teoria, o Congresso não derrubou o veto, mas, na prática, os parlamentares fizeram valer as suas vontades. A resistência do presidente derreteu-se à medida que ele se aproximou dos líderes do Congresso, diante da necessidade de se blindar contra pedidos de impeachment por apoiar atos antidemocráticos e pela criticada atuação do governo federal no enfrentamento à pandemia. Assim, o governo contrariou o próprio veto presidencial ao empenhar, sem critérios técnicos pré-definidos, R$ 3 bilhões em dezembro para os destinos que vieram carimbados por deputados e senadores.

Na Codevasf, ao menos 30 convênios foram assinados com prefeituras seguindo orientações de sete parlamentares. O senador Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo no Congresso Nacional, indicou dois convênios de R$ 23.875.000,00, para asfalto e drenagem em Araguaína e Gurupi, no . O senador Elmano Ferrer (-PI), vice-líder do governo no Senado, solicitou em ofício dez convênios com valores entre R$ 300 e 500 mil para o Piauí.

Em outro órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Regional, a Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) celebrou convênios conforme os apontamentos dos deputados e senadores. Nos ofícios, a reportagem encontrou sete propostas de convênios específicos, enviadas por três parlamentares, todas elas acolhidas. O número é apenas uma fração do total, pois o governo só entregou à reportagem uma parte dos documentos com as indicações feitas pelos parlamentares à Sudeco.

Uma nota técnica da consultoria do Senado, que analisou a distribuição global de recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional entre estados e municípios em 2020, constatou concentração de 25% de valores em apenas 22 dentre os 2214 municípios aos quais o ministério e seus órgãos vinculados fizeram transferências. Isto é, um centésimo deles recebeu um quarto dos valores. Em média, essas 22 cidades receberam R$ 54.404.161,77, enquanto as demais, R$ 2.113.132,79.

Esse levantamento inclui não apenas os valores do orçamento secreto de R$ 3 bilhões de dezembro, mas todos os investimentos feitos pela pasta e seus órgãos vinculados ao longo do ano. No ranking geral de cidades com mais valores empenhados, aparecem duas cidades do , reduto do ministro Rogério Marinho, que é cotado para concorrer ao governo estadual em 2022 – Parnamirim, com R$ 60,7 milhões, e Natal, R$ 58,9 milhões.

A nota técnica, redigida pelo consultor do Senado Fernando Moutinho, a pedido do gabinete do senador (REDE-AP), concluiu que os repasses não respeitaram os critérios de desenvolvimento socioeconômico que a Lei de Diretrizes Orçamentárias, no artigo 77, manda observar.

Além da falta de critérios, o orçamento secreto atropelou também a necessidade de priorizar do orçamento para obras em andamento e para a manutenção das obras existentes. A exigência é feita pela LDO 2020, no Art. 19º, e pela Lei de Responsabilidade Fiscal, no Art. 45. O objetivo disso é trazer eficiência e evitar a dispersão de recursos e a permanência desnecessária de estruturas inacabadas.

No entanto, o Congresso aprovou e o governo reservou os R$ 3 bilhões para novos projetos, mesmo diante de uma série de obras inacabadas sob supervisão da pasta, que ainda guardam o empenho de valores ainda maiores.

Os dados do Painel de Obras do Ministério do Desenvolvimento Regional, no dia 22 de abril, apontam a existência de 8.458 contratos em execução, assinados antes de 2020, com valores totais de R$ 71,71 bilhões, que ainda precisam do empenho de R$ 16,05 bilhões do Orçamento Geral da União para serem concluídos. Na média, é como se cada um desses contratos ainda necessitasse de R$ 1,9 milhão. Além disso, há 502 contratos paralisados, também assinados antes de 2020, com valores totais de R$ 8,22 bilhões, dos quais ainda falta empenhar R$ 2,76 bilhões.

Todos esses 8960 contratos estão em situação “normal”, o que quer dizer que não expiraram, não foram rescindidos, não foram alvo de liminares, não estão com cláusulas suspensivas e não estão em fase de prestação de contas. A ausência de impedimentos contratuais é um indicativo de que pode estar faltando recursos para a conclusão das obras, principalmente, no caso daquelas que estão paralisadas mesmo com situação de contrato “normal”. Mesmo naquelas obras que estão em andamento, o índice de execução equivale a R$ 49,5% dos valores totais dos contratos.

Se o governo tivesse cumprido a Lei de Responsabilidade e Fiscal e a LDO 2020, os R$ 3 bilhões deveriam ter como destino, predominantemente, essas obras, em vez da pavimentação asfáltica de novos trechos de estradas. Explicitando um pouco mais o tema, o portal O Antagonista publicou reportagem esclarecendo os principais pontos em debate3. Veja-se:

Entenda em 10 pontos toda essa história, que O Antagonista começou a desvelar ainda no início de 2020:

1. A reportagem do Estadão teve acesso a um conjunto de 101 ofícios enviados por deputados e senadores ao Ministério do Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados, para indicar como eles preferiam usar esses recursos públicos, sem que haja controle. Com parte desses recursos, 115 tratores foram comprados por valores até 259% acima do preço de mercado.

2. Como O Antagonista já mostrou em situações anteriores — leia aqui, por exemplo –, esses recursos são difíceis de ser rastreados, não possuem critérios definidos para a sua liberação nem há transparência sobre a lista de parlamentares beneficiados. Basicamente, congressistas escolhidos pelo governo — da situação à oposição — têm o poder de indicar como os recursos serão aplicados em suas bases eleitorais. Nenhum real sai de Brasília sem paternidade. Tudo, nesse modelo, é feito por meio de negociações nas coxias da Esplanada. Esses recursos não são contabilizados entre as chamadas emendas impositivas, aquelas a que cada parlamentar tem direito e que o governo tem a obrigação de liberá-las.

3. Os recursos da chamada verba extra (que o Estadão optou por chamar de “orçamento paralelo” ou “secreto”), criada em 2019 sob a rubrica “emendas do relator”, não têm detalhamento e são transferidos para projetos solicitados pelos parlamentares diretamente aos ministérios — principalmente ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Distribuído para as pastas e outros órgãos geralmente como crédito suplementar, esse dinheiro sai da Esplanada para atender a interesses paroquiais, como revitalização de praças, pavimentação de ruas, construção de pontes e, agora se sabe, compra de tratores superfaturados. Os tribunais de contas têm dificuldade de monitorar e fiscalizar a aplicação desses recursos, pois eles não aparecem detalhadamente em sistemas existentes para acompanhamento orçamentário.

4. Ainda no início de 2020, O Antagonista conseguiu via Lei de Acesso à Informação (LAI) dados sobre o esquema no Ministério do Desenvolvimento Regional — vale a pena relembrar aqui –, então comandado por Gustavo Canuto. A pasta foi criada por Jair Bolsonaro. Destrinchamos nas nossas reportagens a destinação de R$ 3,8 bilhões, liberados no apagar das luzes do ano anterior. As notícias sobre o assunto

3 Disponível em: . Acesso em 10/5/2021. caíram como uma bomba nos bastidores do Congresso. Foi a primeira vez que um veículo de comunicação mostrou essa prática no governo Bolsonaro. Ao detalhar as planilhas, revelamos como o grupo de Davi Alcolumbre e outros aliados do governo em e no Amazonas, por exemplo, tinham sido beneficiados. Canuto acabou deixando o cargo, também em razão desse episódio, e no seu lugar entrou Rogério Marinho.

5. O Ministério do Desenvolvimento Regional, segundo parlamentares ouvidos por O Antagonista, continuou sendo o órgão campeão na liberação desses recursos extras. Mas também figuram com destaque os ministérios da Agricultura, do Turismo, da Infraestrutura, da e da própria Saúde. Também está jorrando dinheiro dessa forma via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e Companhia do Vale do São Francisco (Codevasf), onde líderes do Centrão emplacaram apadrinhados em cargos estratégicos. A Codevasf, no governo Bolsonaro, teve seu escopo de atuação ampliado pelo Congresso, justamente para que a possibilidade de uso desses recursos também se alargasse.

6. Em 27 de janeiro deste ano, às vésperas das eleições na Câmara e no Senado, O Antagonista publicou um espelho das planilhas da distribuição de R$ 630 milhões em emendas extras, para apoiar a eleição municipal de aliados e também garantir Arthur Lira (PP) e Rodrigo Pacheco (DEM) no comando do Congresso. Deu certo. Na semana passada, também publicamos com exclusividade a planilha do Planalto para a liberação de R$ 10 milhões a cada deputado federal aliado, como parte desse mesmo esquema.

7. Quando questionados sobre essas verbas extras, Planalto e ministérios, geralmente, alegam ser impossível ter controle da liberação desses recursos. No ano passado, por exemplo, a assessoria do ministro Luiz Eduardo Ramos, então na Secretaria de Governo, disse a O Antagonista que o único balanço feito por eles era o “das emendas impositivas”, ou seja, as individuais e de bancadas — também vale relembrar aqui.

8. Em fevereiro deste ano, O Antagonista enviou para quase 60 senadores e para mais de uma centena de deputados perguntas sobre se eles tinham recebido verba extra e pedindo o detalhamento da aplicação desses recursos. A maioria não respondeu ou fez cara de paisagem: relembre aqui. Lideranças, em reservado, dizem que esse esquema das emendas invisíveis, ou verba extra, é o que garante a sustentabilidade do governo Bolsonaro e afasta qualquer possibilidade de impeachment.

9. O senador Major Olimpio (PSL), que morreu vítima de Covid, revelou em 2020 (e este site também publicou com exclusividade) que emissários do Palácio do Planalto procuraram senadores para oferecer a liberação de R$ 30 milhões em emendas extras e formar uma base de apoio no Senado. Uma das intenções era garantir o apoio à reeleição inconstitucional de Davi Alcolumbre como presidente do Senado, o que não se concretizou, mas o apoio teria sido transferido a Rodrigo Pacheco (DEM), o candidato de Bolsonaro. Ninguém nunca negou essa história. Pelo contrário, senadores confirmaram o recebimento das emendas extras, mas ponderaram que não prometeram nada em troca.

10. Um especialista em orçamento, com mais de 20 anos de experiência na Esplanada e hoje funcionário de um gabinete no Senado — e, por isso, pediu reserva –, já resumiu assim a O Antagonista, de maneira bem didática, o esquema agora chamado de Bolsolão: “Verba extra é ‘fio do bigode’. Isso não é de agora, sempre existiu. Mas há, sim, um volume muito maior sendo liberado neste governo. Emendas individuais e de bancadas têm marcadores no orçamento: você consegue rastrear no momento do pedido e da liberação dos recursos. Verba extra é diferente, porque ela não está prevista em lei alguma. O parlamentar chega para um ministro e diz: ‘Olha, minhas emendas acabaram e eu preciso de mais’. Pode ou não ter uma contrapartida. Quando o ministério não tem mais orçamento disponível, pode-se abrir esse espaço por meio de créditos suplementares, aprovados pelo Congresso. É claro que o assessor do ministro tem essa tabela de Excel, com tudo isso detalhado. Mas é carta na manga, essas informações não são encontradas em nenhum sistema corporativo”.

É importante, nesse momento, relembrar que os parlamentares federais têm direito a, anualmente, indicar R$ 8 milhões como prioridades orçamentárias para determinados programas ou atividades. Outros R$ 8 milhões devem ser destinados à saúde pública.

Nessa linha de argumentação, é hialino que a existência desse orçamento secreto, ou orçamento extra, gera um claro desequilíbrio democrático e republicano, na medida em que, de um lado, há nefasta e indevida diferenciação entre aqueles parlamentares apadrinhados e os renegados a uma espécie de escória de importância orçamentária, e, de outro lado, esse grande toma lá, dá cá acaba implicando enormes prejuízos ao fiel cumprimento do interesse público, já que se confundem os interesses pessoais patrimonialistas de gestores públicos e seus apoiadores políticos e as reais necessidades da população brasileira. Não à toa, são destinados milhões de reais a cidades que não precisariam de tantos recursos à luz de critérios científicos - e respaldados pela legislação.

Não coadunar com essa inversão de valores que se presta unicamente a dar perpetuidade de poder àqueles que hoje se encontram nele. O Brasil é um país republicano, que preza pelo primado do respeito às reais necessidades públicas. Alocação orçamentária deve seguir critérios de necessidade científica, baseados em dados do IBGE ou outras instituições de respeitabilidade nacional - não que haja preocupação do Sr. Presidente da República com essa espécie de critério, na medida em que sequer o orçamento do IBGE ao censo passou pela sua caneta de veto.

E, para além dessa situação pitoresca do ponto de vista de gestão orçamentária - que acaba afetando o próprio accountability público -, há também grau elevado de preocupação acerca da existência de corrupção. Com efeito, fala-se em superfaturamento de tratores e em destinação dos maquinários para localidades bem distantes do reduto eleitoral do “dono da verba”. Trata-se de estratégias típicas de quem está cometendo algum ilícito de índole penal-administrativa, o que também requer a atuação dessa nobre Corte de Contas.

Dito tudo isso, solicitamos a Vossa Excelência, na qualidade de Presidente do Tribunal de Contas da União, a tomada de providências urgentes em relação aos fatos narrados na presente representação, com a atuação fiscalizatória inerente ao Tribunal, com a finalidade de apurar a existência desses orçamentos secretos/paralelos/extras no âmbito do Governo Federal, bem como a aplicação porventura criminosa desses recursos públicos. A população brasileira merece ser esclarecida no que toca à existência desse tipo nefasto de barganhas e acertos eleitoreiros. O Brasil precisa de ciência e espírito republicano, e não mais desses achincalhos orçamentários.

Termos em que pede e espera deferimento. Macapá, 10 de maio de 2021.

Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP)