Racismo e homofobia no futebol: entre o permitido e o interdito1

Gustavo Andrada Bandeira UFRGS/RS

A violência é produzida na cultura e seus diferentes significados são construídos em um terreno de lutas por significação. Existe um constante esforço por parte dos jornalistas esportivos e de alguns pesquisadores acadêmicos em separar o que seria violência “simbólica” de violência “real” no futebol. Para este trabalho pretendo discutir as semelhanças e diferenças do tratamento dado pela imprensa esportiva, clubes de futebol e confederações esportivas para as manifestações sofridas pelos jogadores Emerson Sheik, do Sport Club Corinthians Paulista e Paulo César , do Esporte Clube Cruzeiro. O atacante do Corinthians foi ameaçado por um grupo de torcedores após ter postado um “selinho” em um amigo. O meio-campista do Cruzeiro foi alvo de insultos racistas na Bolívia em um jogo da da América. Ao contrário do ocorrido com Emerson Sheik, a violência sofrida por Paulo César Tinga gerou uma série de notas e campanhas contra o racismo promovidas pelo Cruzeiro, por rivais, CBF e até mesmo pela presidenta da república. Se a violência física tende a ser praticada eventualmente, a violência verbal está sempre presente nos espetáculos futebolísticos. A partir da diferença de tratamento entre diferentes violências alguns questionamentos podem ser feitos: o que é ou não violento no contexto do futebol?; quais violências são naturalizadas nesse esporte?; como se hierarquizam violências no futebol? Palavras-chave: Homofobia. Racismo. Futebol

Partindo do pressuposto de Susan Sontag de que “parece normal para as pessoas esquivarem-se de pensar sobre as provações dos outros, mesmo quando os outros são pessoas com quem seria fácil identificar-se” (2003, p. 83) me proponho a discutir duas formas de violências dirigidas a dois jogadores de futebol profissionais brasileiros de grandes clubes nacionais em 2013 e 2014. A violência, como qualquer outro conceito que tem seu significado produzido na cultura, não é um conceito essencial, fixo ou estável. Algumas manifestações violentas poderão ser adjetivadas de monstruosas, hediondas, terríveis enquanto outras poderão ser entendidas como legítimas e desejáveis ou mesmo, perderem sua caracterização

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

1 como violência, sendo naturalizada em determinado contexto e entendidas como não violentas. É produtivo pensar que essas classificações e adjetivações não são um “reflexo” das ações, mas são constitutivas do entendimento possível que acabam por produzir as ações como violentas ou não violentas. Para este trabalho pretendo analisar os casos de homofobia, envolvendo o atacante Emerson Sheik, então jogador do Sport Club Corinthians Paulista2, e de racismo, envolvendo o volante Paulo César Tinga, jogador do Cruzeiro Esporte Clube3. Para a construção do argumento me permito tomar as duas incidências como possíveis manifestações violentas e de ódio, em que os sujeitos foram alvo de xingamentos dirigidos por torcedores. Para organizar a explanação o texto está dividido em quatro partes. Após essa breve introdução, proponho uma discussão sobre algumas classificações de violência e suas permissividades no contexto do futebol de espetáculo envolvendo jogadores e torcedores. No terceiro tópico do trabalho apresento os casos Emerson Sheik e Paulo César Tinga com algumas de suas repercussões. Na última parte do trabalho realizo algumas interpretações e associo diferenças e semelhanças entre os dois episódios, encerrando com alguns apontamentos e uma tentativa de novos questionamentos.

Diferentes interpretações sobre violência(s): permissividades e interditos.

A violência é um dos temas mais presentes nas discussões sobre o futebol, especialmente nas discussões que envolvem as torcidas, com maior constância quando se tratam das torcidas organizadas. Durante as partidas, a utilização da força para vencer uma jogada poderá ser utilizada como registro legítimo. Uma falta praticada poderá gerar uma série de discussões se essa jogada é legal ou não, se o árbitro deveria punir os envolvidos com cartão amarelo ou vermelho... Em pesquisa anterior (BANDEIRA, 2009) pude observar que para os atletas parece estar na ordem do impensável recusar um desafio para um confronto físico. “Encarar” o adversário é entendido como positivo dentro da lógica de torcedores e mediadores especializados. Fora das quatro linhas, porém, a discussão parece seguir uma lógica menos flexível quando se pensa em confrontos físicos realizados por torcedores. Esses sujeitos são logo (des)qualificados como marginais, bandidos, violentos e falsos torcedores. Para

2 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Corinthians. 3 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Cruzeiro.

2 esses, a punição exemplar seria a solução. O poder público designa um número importante de policiais militares para os espetáculos esportivos nos estádios. A presença bastante equipada (cassetetes, bombas de efeito moral, balas de borracha, cavalos e cães) dos policiais produz um cenário belicoso, onde os confrontos físicos parecem estar sempre “potencialmente” presentes (TOLEDO, 1996). No contexto futebolístico essa violência precisa ser sempre enfrentada. Pensar, porém, que ela é exógena ao esporte pode ser um tanto apressado e equivocado. Os estádios de futebol são um importante local de socialização dos meninos no Brasil. É possível inferir a existência de um currículo de masculinidade nos estádios e nas torcidas de futebol (BANDEIRA, 2010). Diferentes manifestações de violência podem ser entendidas como uma característica importante e desejável em algumas representações de masculinidades e podem acabar atravessando esse currículo de masculinidade. A violência pode, também, aparecer como uma forma de socialização entre grupos de homens. A coletividade pode auxiliar ou incentivar as demonstrações violentas. “Homens sozinhos, sem outras pessoas para apoiá-los, nunca tiveram poder suficiente para usar da violência com sucesso” (ARENDT, 2009, p. 68). A popularização do futebol e a competitividade com que as disputas têm acontecido são utilizadas para justificar o ingresso da violência no futebol para algumas interpretações. Sua possível origem poderia ser associada à alteração do perfil dos jogadores e torcedores de elite do início do século XX4. A partir dessa alteração, alguns termos como “povo”, “homens”, “palavrões”, “ameaças”, “agressões” e “hostilidades” foram utilizados para desvalorizar os estádios de futebol e pensá-los como perigosos. A necessidade de vitórias e a alta competitividade não ficariam exclusivas ao campo de jogo, mas teriam rumado para as arquibancadas fazendo com que o espaço do sujeito coletivo “torcida” fosse entendido como arriscado. Existe um constante esforço por parte dos jornalistas esportivos e de alguns pesquisadores acadêmicos em separar o que seria violência “simbólica” de violência “real”. Heloísa Reis conceitua essa separação da seguinte forma: “a violência real (...) é perceptível pelas agressões físicas de contato, enquanto a violência simbólica é visível pelas agressões verbais e/ou gestuais” (2005, p. 114)5. Sobre essas agressões “verbais e/ou gestuais” ela faz outras diferenciações:

4 Sobre a mudança do perfil dos torcedores cf. DAMO, 2006. 5 Heloisa Reis não parece estar utilizando a expressão “violência simbólica” tal como Bourdieu a empregou, isto é, “o ato pelo qual os grupos dominantes impõem – como se fosse universal – sua cultura

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A violência simbólica envolve apenas atitudes verbais e/ou gestuais, sendo que normalmente ela é emocionalmente satisfatória e agradável, produzindo até mesmo um efeito catártico no indivíduo. A violência afetiva é aquela em que os indivíduos se manifestam com o intuito de demonstrar seus sentimentos e de liberar a energia provocada pela tensão causada pela ansiedade da partida e pela expectativa do resultado. Ela é socialmente aceita e, nos estádios de futebol, pode ser observada a partir dos gestos e gritos realizados pelos torcedores e de algumas canções e hinos cantados por eles (Ibidem, p. 112). Essa “aceitação social” não está restrita ao contexto brasileiro. Na Argentina, o programa televisivo El aguante mostrava os cânticos da torcida com referências homofóbicas, racistas e xenófobas, que naquele contexto eram socialmente aceitos, pois, “la cláusula del humor es el dispositivo que garantiza que en la representación estos intercambios sean simples bromas, un mero ejercicio lúdico (SALERNO, 2005, p. 137). Além dessa diferenciação entre formas de violências, existe uma associação um tanto conservadora que aponta que a ocorrência de eventos violentos, de diferentes ordens, seria maior em países pobres ou em crises econômicas, pois os jovens não teriam acesso a uma vida digna (REIS, 2005). Luiz Ribeiro rechaça essa associação. “As ações racistas e homofóbicas... recorrentes no futebol... não são questões de exclusão econômica, de pauperização. Na maioria das vezes os participantes desse tipo de discurso e prática violentos são brancos e originários das classes médias altas” (2007, p. 60). A divisão entre violência “real” e “simbólica” da forma como discutida anteriormente parece um tanto tênue. Uma das suas limitações é diferenciar hierarquicamente agressões dirigidas a outrem. Outra diferenciação possível seria pensar essas violências como físicas e verbais. Conquanto ela não esteja livre de uma divisão hierarquizante, me permito pensar que essa hierarquia seja um tanto menor. As duas manifestações seriam entendidas como violentas. Elas apenas utilizariam elementos diferentes em sua expressão. A violência não pode ser entendida fora de um contexto histórico e cultural. “O aspecto social da conceituação de violência refere-se a que, em um grupo social, alguns vão nomear como violência algo que outros poderão considerar como corriqueiro ou não violento, isso na dependência de fatores culturais” (SEFFNER, 2004, p. 89). No contexto dos estádios de futebol as violências verbais são mais constantes e naturalizadas, o que faz com que, em diferentes situações, não sejam entendidas como violentas. Acredito, porém, que tomar essa distinção como dada seja um tanto perigoso. particular sobre os grupos dominados, ocultando que na origem desta imposição está um ato de força, ou seja, de violência propriamente dita” (SILVA, 2000, p. 111).

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Dizer tão somente que um coletivo como um “nós” atores do espetáculo futebolístico toleram algumas manifestações e não outras parece pouco produtivo. Susan Sontag entende que “nenhum ‘nós’ deveria ser aceito como algo fora de dúvida, quando se trata de olhar a dor dos outros” (2003, p. 12). Ao olharmos para manifestações de violência “socialmente aceitas” neste contexto poderemos enxergar um diálogo entre diferentes entendimentos de legitimidade em relação a algumas práticas e a algumas populações. Nos estádios de futebol, as manifestações verbais estão associadas à violência estrutural, que seriam as formas de violência que atravessam e constituem a intimidade dos indivíduos (SEFFNER, 2004). Por sua atuação constante, essas formas de violência poderão ser “naturalizadas” e, em consequência, dificilmente serão nomeadas como violentas. Os estádios de futebol se produziram historicamente como um locus privilegiado para a socialização masculina. Nos estádios os sujeitos se inscrevem em uma comunidade afetiva e masculina. Arlei Damo classifica o espetáculo futebolístico como um (...) processo ritual, de homossociabilidade masculina, tão intensa e carregada de afetividade que a condição de heterossexuais dominadores tem de ser afirmada e reafirmada (...) dentro do estádio; uma modalidade de afirmação dada pelo ângulo da aversão aos outros (2005, p. 395). É interessante localizar quem são esses “outros”. Quem são as vítimas potenciais das violências verbais? Nas torcidas de futebol, as manifestações verbais da violência podem acontecer entre diferentes grupos de homens heterossexuais (duas torcidas adversárias, por exemplo), mas também aparecem contra uma espécie de coletivo de “outros” sujeitos, especialmente homens não heterossexuais. A preocupação em relação a essa socialização masculina aumenta quando essa aversão aos homossexuais é valorizada sendo entendida como desejável nessa socialização. Se a violência física tende a ser praticada eventualmente, a violência verbal é uma constante nos espetáculos futebolísticos. Essas formas de violência são vividas e pensadas em um contexto bastante específico. Christian Bromberger salienta que durante as partidas (ou outros eventos esportivo) aparecem “as dimensões salientes da experiência social e cultural (a relação com o corpo, a afirmação das identidades, o lugar da competição nas sociedades contemporâneas, as novas formas de heroísmo...)” (2008, p. 241). Os estádios de futebol e as torcidas podem ser lidos como instituições que possibilitam determinadas práticas e impossibilitam outras. As torcidas colocam sua ética, estética e seus entendimentos de mundo em um contexto festivo e/ou lúdico. Esse entendimento permite borrar algumas

5 fronteiras. Rita Amaral (2001) comenta que nas festas acontece uma diminuição da distância entre os indivíduos, uma “efervescência coletiva” e transgressão de algumas normas coletivas. Nem tudo é permitido nas festas, assim como as identidades individuais não são apagadas. A ideia da festa possibilita pensar que as hierarquias entre os sujeitos mudam, que ações condenáveis em alguns ambientes são, nesses contextos, permitidas. No campo de disputa por significados, as manifestações verbais de homofobia e de racismo não possuem as mesmas permissividades e legitimidades.

Casos Emerson Sheik e Tinga

Emerson Sheik, então atacante do Corinthians, publicou em seu perfil na rede social Instagram um “selinho” dado em seu amigo Isaac Azar após a vitória do Corinthians por 1 a 0 diante do pela 15ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2013. Foi o início de uma polêmica que acompanhou o atleta pelo resto da temporada. O jogador foi duramente criticado por torcedores do Corinthians e virou motivo de chacota para os torcedores rivais. O jogador corintiano afirmou ser heterossexual – chegou a sugerir que seus seguidores “vasculhassem” seu perfil na rede social – e disse que a intenção do beijo era desarmar os preconceitos. A imagem provocou a ira de milhares de corintianos. Integrantes de uma torcida organizada foram cobrar explicações do atleta, herói do título inédito do Corinthians na Libertadores em 2012. Os torcedores foram autorizados pelo clube a entrar no Centro de Treinamentos para realizar essa “cobrança” ao atacante. O diretor da Camisa 12 argumentava que a bitoquinha do jogador feria a ética da “coritiologia”. O “protesto” contra o toque de lábios do atleta possuía as faixas: “Viado (sic) não”; “Aqui é lugar de homem”. Segundo seu diretor, “a gente não quer ser homofóbico, mas tem de ter respeito com a camisa do Corinthians. Aqui não vai ficar beijando homem”6. Mesmo “não querendo ser homofóbica”, a organizada não aceita gays defendendo as cores alvinegras: “Corinthians é o time do povo, não de veado”7. O jogador tentou argumentar (ou se defender) afirmando que a imagem não possuía vínculo algum com o clube. A necessidade de desvincular seu ato individual da

6 Disponível em: SAKAMOTO, Leonardo. Não fique apenas com dó. Dê carinho a um torcedor homofóbico. 2013. Disponível em: . Acesso em 13 de janeiro de 2014, às 17h02. 7 Disponível em: PIRES, Breiller. Porta da esperança? Selinho de Sheik reforça a homofobia no futebol. 2013. Disponível em: . Acesso em 13 de janeiro de 2014, às 16h52.

6 relação de atleta do clube pode ser lida como mais uma demonstração de como a relação de gênero e sexualidade institucionalizada nas práticas esportivas, especialmente a do futebol no Brasil, possibilitam uma margem muito pequena para as vivências de desejos e prazeres corporais. Sobre o selinho de Emerson Sheik, o Corinthians não fez pronunciamento oficial. O vice-presidente, Roberto de Andrade argumentou: “O Corinthians não se mete nisso. Afinal, o clube beijou alguém?”8. Colegas de profissão como o volante Wellington, então do São Paulo Futebol Clube9, debochou: “A Hebe voltou”10. Seus companheiros de equipe, porém, o receberam com aplausos na reapresentação da equipe. Apesar dos aplausos, o jogador também foi alvo de gozações. Na primeira partida após o episódio, pela 2013 diante do Luverdense Esporte Clube, Emerson Sheik se estranhou com o zagueiro Zé Roberto. Ambos foram expulsos. O defensor adversário ironizou o atacante: “Não aceito provocação dele, muito menos beijo”11. O presidente do clube adversário, Helmute Lawisch, reforçou a crítica ao atacante corintiano: “Sheik estava desestabilizado. Ele joga num time de macho e toma uma atitude daquela. Sou da moda antiga. Ou seja, homem é homem”12. A atitude do atleta acabou propondo uma discussão sobre sexualidade, gênero e homofobia nos estádios de futebol. “O toque de lábios (...) do atacante Emerson Sheik com seu amigo, em São Paulo, virou bandeira da aceitação dos homossexuais no esporte e escancarou uma dura realidade: falta muito para a diversidade sexual ser tratada com naturalidade”13. A discussão, porém, acabou gerando uma pequena margem de apoio a manifestação do atleta. A publicação da notícia recebeu diferentes interpretações do público na Internet. Dentre elas, “as manifestações de apoio ao gesto foram raras (...). De resto, um desfile de preconceito. Os homofóbicos se dividiram entre xingamentos impublicáveis e argumentos contra o que consideram uma onda de ‘propaganda gay’”14.

8 Idem nota anterior 9 De agora em diante me refiro ao clube apenas como São Paulo. 10 Idem nota 7 11 Idem nota anterior 12 Idem nota anterior 13 Disponível em: BAIBICH, André. “Selinhos” escancaram encruzilhada na luta por maior tolerância à diversidade sexual no esporte. 2013. Disponível em: . Acesso em 13 de janeiro de 2014, às 16h31. 14 Idem nota anterior

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Após os protestos de diferentes torcidas organizadas do Corinthians, o jogador se “retratou”. No mesmo dia em que a Adidas lançou uma chuteira personalizada para o atacante com os dizeres: “fora preconceito”, o atleta pediu desculpas pelo selinho: “Não poderia ter feito isso, até porque eu não sou são-paulino”15, dentro da lógica naturalizada da homofobia e da rivalidade no futebol brasileiro. Ao comentar a transferência do jogador para o Botafogo de Futebol e Regatas16, o lateral-esquerdo do Corinthians, Fábio Santos, creditava ao selinho dado pelo atleta uma aceleração da saída do atacante do clube paulista. Se não pode ser tomada como uma operação de causa e efeito, o toque de lábios do atleta nas redes sociais não dificultou a troca de clubes para o, agora, ex-jogador do Corinthians.

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No dia 12 de fevereiro de 2014, durante a primeira partida do Cruzeiro na Libertadores da América contra a Asociación Civil Real Atletico Garcilaso, no Peru, o volante Paulo César Tinga foi alvo de racismo. Sempre que o jogador tocava na bola, boa parte do estádio peruano entoava sons de macaco. O atleta, bicampeão da Libertadores da América pelo Sport Club Internacional17, campeão do Campeonato Brasileiro pelo Cruzeiro e da Copa do Brasil pelo Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense18 afirmou que trocaria seus títulos por igualdade entre raças. Por meio da rede social Twitter, a presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Roussef, afirmou que era lamentável o episódio de racismo sofrido pelo atleta. A presidenta informou que tratou com a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a Federação Internacional de Futebol Association (Fifa) para que a Copa do Mundo de 2014 fosse a Copa contra o racismo19. O ministro do Esporte, Aldo Rebelo, emitiu nota oficial em que pressionava a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) a tomar uma atitude enérgica relativamente ao episódio. A Confederação prometeu analisar o caso que foi adjetivado por ela como inaceitável20.

15 Idem nota 7 16 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Botafogo. 17 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Internacional. 18 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Grêmio. 19 A Prefeitura Municipal de Porto Alegre e o Internacional iniciaram uma campanha com o slogan “Todos, os povos, todas as cores – Porto Alegre contra o preconceito”, durante o Campeonato Brasileiro de 2014. 20 O clube peruano acabou multado em US$ 12 mil.

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Pela mesma rede social utilizada pela presidenta, a expressão “fechado com o Tinga” esteve entre os tópicos mais comentados. Por diferentes redes sociais, o atleta do Cruzeiro recebeu o apoio do jogador , do ex-jogador Ronaldo, do presidente da Fifa, Joseph Blatter, de outros colegas de profissão, além de receber um pedido de desculpas do goleiro Juan Pretel, da equipe peruana. O presidente do Clube Atlético Mineiro, Alexandre Kalil, histórico rival do Cruzeiro, também se posicionou contra o racismo sofrido pelo atleta do clube adversário. Após o ocorrido, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) reproduziu uma imagem de seu símbolo nas cores preta e branca junto com os dizeres “somos iguais”. Além do símbolo, a CBF criou uma campanha com o mesmo título promovendo ações nas partidas das séries A e B e em amistosos da Seleção Brasileira. Além da manifestação nas redes sociais, a presidenta Dilma Roussef, recebeu o atleta e o árbitro de futebol Márcio Chagas, que também havia sido vítima de racismo, para prestar solidariedade. O atleta entendia que a punição aos envolvidos seria necessária e que, a solução do problema só apareceria através da educação. O ministro do Esporte, também presente a reunião, reforçou que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível no Brasil. O jogador e o árbitro ainda lançaram em parceria com a Central Única das Favelas (CUFA), do Rio Grande do Sul o projeto “Chutando o Preconceito”. O jogador que já trabalhava em conjunto com a CUFA aproveitou sua exposição midiática para se tornar símbolo da luta contra o preconceito racial.

Racismo, homofobia e futebol: violência(s) a ser enfrentada ou naturalizada?

É possível entender que tanto Emerson Sheik quanto Paulo César Tinga sofreram ações de violência verbal ou simbólica, uma vez que não foram vítimas diretas de uma agressão física. Essa diferenciação, porém, perde força ou é insuficiente quando imaginamos as diferenças entre as legitimidades das ofensas proferidas e, mesmo, da inteligibilidade de uma das ações como violenta ou não violenta. Estou entendendo que a homofobia enfrentada pelo ex-atacante do Corinthians tenha sido realizada pelas redes sociais e pelos torcedores que foram lhe cobrar explicações no centro de treinamentos da equipe profissional. O Corinthians não somente se omitiu em falar oficialmente sobre o caso como abriu as portas do clube para os manifestantes. Atletas de outros clubes participaram das chacotas dirigidas ao jogador e um de seus colegas chegou a sugerir que o episódio acelerou o fim de seu

9 ciclo no clube. O jogador não recebeu apoio institucional de nenhuma confederação e não se cogitou punição alguma aos torcedores que lhe intimidaram. Ao contrário, quem precisou se retratar foi o atacante que o fez praticando homofobia contra o São Paulo, clube rival. No caso do atleta do Cruzeiro, os xingamentos aconteceram durante uma partida em uma competição internacional, fora do Brasil. Nas mesmas redes sociais que condenaram a atitude do atacante corintiano, o jogador recebeu apoio de torcedores, profissionais da imprensa, colegas de profissão, ex-atletas, dirigentes de clubes rivais, da CBF, da Conmebol, da Fifa e da presidenta da república. A punição dada ao clube peruano foi considerada branda e o jogador acabou se tornando símbolo de campanhas antirracismo realizadas pela CBF e por movimentos sociais. A diferença de legitimidade entre uma violência e outra nos aponta para maiores sutilezas entre o que é possível ou não dentro do que se pratica nos estádios de futebol ou relacionados ao futebol para além da diferenciação entre “simbólico” e “real”. Dentro da lógica de que a violência somente pode ser entendida dessa forma dentro de um contexto cultural específico, algumas violências “reais” poderão ser autorizadas enquanto algumas violências “simbólicas” poderão ser condenadas. Nessa reflexão não pretendi discutir se racismo ou homofobia devem ser entendidas da mesma forma nas discussões envolvendo os esportes e as práticas de lazer. A proposta do trabalho foi demonstrar como diferentes manifestações de violência, incluindo manifestações de ódio, podem ser naturalizadas ou condenadas mostrando que existe certo fluxo entre essas significações. A legitimidade da violência “simbólica” sobre a violência “real” apareceu com grande clareza ao pensarmos nos eventos que envolveram o jogador Emerson Sheik. Essa mesma legitimidade, porém, não esteve presente nas manifestações contra Paulo César Tinga. No Brasil, o racismo é crime inafiançável e imprescritível, enquanto os movimentos sociais que militam pelos direitos sexuais ainda precisam enquadrar a homofobia dentro dos crimes de preconceito em geral. O fato de o episódio racista ter acontecido no Peru também possibilita um maior engajamento em defesa do jogador do Cruzeiro, pois permite que esse episódio seja entendido como externo a um entendimento de “nós”, praticado por “outros” o que poderia, em alguma medida, resguardar nossa identidade como não racista nessa relação com a alteridade. O jogo entre visibilidade e invisibilidade pode ser pensado para essa discussão. Em 2014, além do caso Tinga, tivemos manifestações racistas contra o árbitro Márcio

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Chagas, os jogadores brasileiros Arouca e Daniel Alves, o italiano Mario Balotelli entre outros. Em relação à homofobia, não temos registro de outro jogador que tenha sido vítima dessa violência após o caso Emerson Sheik. Uma interpretação mais apressada poderia apontar para o racismo como um problema mais recorrente no futebol. Outra leitura, porém, pode interpretar como a homofobia não parece ser um problema legítimo na cultura do futebol de espetáculo. Enquanto concluía esse texto, outro caso envolvendo o jogador Emerson Sheik me ajudou a pensar. O atacante, hoje no Botafogo, acusou o zagueiro Lúcio da Sociedade Esportiva Palmeiras de tê-lo chamado de gay. Curiosamente, enquanto assistia a transmissão do jogo entre Sport Club do Recife e Grêmio pelo canal Sportv um dos comentaristas salientou que Emerson Sheik precisava tomar cuidado, pois ele era um ídolo e muitas crianças assistiam aos jogos. Ele não discutiu se o jogador foi ou não ofendido, mas que o botafoguense não deveria colocar esse tema em pauta. A pergunta que imediatamente me vem à cabeça é se a frase seria a mesma, caso Emerson Sheik acusasse alguém de tê-lo chamado de macaco. A diferença entre legitimidades também pode se associar aos jogos de construção de identidade sobre o futebol brasileiro. O racismo não parece ser uma bandeira importante ou legítima para diferenciar torcidas entre si (é possível visualizar alguns respingos mais importantes relacionados a origens regionais). Clubes e torcidas procuram se associar como não racistas. Por sua vez a homofobia permanece invicta. Ela ainda pode ser utilizada para a qualificação em relação ao adversário no jogo entre nós e eles. A associação com a aceitação da diversidade sexual ainda aparece como algo negativo nessas produções de significados. No atual contexto, me permito questionar se é mais fácil e mais possível estar “fechado com o Tinga” e sermos “todos macacos” do que “fechado com o Sheik” ou sermos “todos ve(i)ados”? Nas campanhas pelo respeito a todas as cores, cabem às cores do arco-íris?

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