Racismo E Homofobia No Futebol: Entre O Permitido E O Interdito1
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Racismo e homofobia no futebol: entre o permitido e o interdito1 Gustavo Andrada Bandeira UFRGS/RS A violência é produzida na cultura e seus diferentes significados são construídos em um terreno de lutas por significação. Existe um constante esforço por parte dos jornalistas esportivos e de alguns pesquisadores acadêmicos em separar o que seria violência “simbólica” de violência “real” no futebol. Para este trabalho pretendo discutir as semelhanças e diferenças do tratamento dado pela imprensa esportiva, clubes de futebol e confederações esportivas para as manifestações sofridas pelos jogadores Emerson Sheik, do Sport Club Corinthians Paulista e Paulo César Tinga, do Esporte Clube Cruzeiro. O atacante do Corinthians foi ameaçado por um grupo de torcedores após ter postado um “selinho” em um amigo. O meio-campista do Cruzeiro foi alvo de insultos racistas na Bolívia em um jogo da Copa Libertadores da América. Ao contrário do ocorrido com Emerson Sheik, a violência sofrida por Paulo César Tinga gerou uma série de notas e campanhas contra o racismo promovidas pelo Cruzeiro, por rivais, CBF e até mesmo pela presidenta da república. Se a violência física tende a ser praticada eventualmente, a violência verbal está sempre presente nos espetáculos futebolísticos. A partir da diferença de tratamento entre diferentes violências alguns questionamentos podem ser feitos: o que é ou não violento no contexto do futebol?; quais violências são naturalizadas nesse esporte?; como se hierarquizam violências no futebol? Palavras-chave: Homofobia. Racismo. Futebol Partindo do pressuposto de Susan Sontag de que “parece normal para as pessoas esquivarem-se de pensar sobre as provações dos outros, mesmo quando os outros são pessoas com quem seria fácil identificar-se” (2003, p. 83) me proponho a discutir duas formas de violências dirigidas a dois jogadores de futebol profissionais brasileiros de grandes clubes nacionais em 2013 e 2014. A violência, como qualquer outro conceito que tem seu significado produzido na cultura, não é um conceito essencial, fixo ou estável. Algumas manifestações violentas poderão ser adjetivadas de monstruosas, hediondas, terríveis enquanto outras poderão ser entendidas como legítimas e desejáveis ou mesmo, perderem sua caracterização 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 1 como violência, sendo naturalizada em determinado contexto e entendidas como não violentas. É produtivo pensar que essas classificações e adjetivações não são um “reflexo” das ações, mas são constitutivas do entendimento possível que acabam por produzir as ações como violentas ou não violentas. Para este trabalho pretendo analisar os casos de homofobia, envolvendo o atacante Emerson Sheik, então jogador do Sport Club Corinthians Paulista2, e de racismo, envolvendo o volante Paulo César Tinga, jogador do Cruzeiro Esporte Clube3. Para a construção do argumento me permito tomar as duas incidências como possíveis manifestações violentas e de ódio, em que os sujeitos foram alvo de xingamentos dirigidos por torcedores. Para organizar a explanação o texto está dividido em quatro partes. Após essa breve introdução, proponho uma discussão sobre algumas classificações de violência e suas permissividades no contexto do futebol de espetáculo envolvendo jogadores e torcedores. No terceiro tópico do trabalho apresento os casos Emerson Sheik e Paulo César Tinga com algumas de suas repercussões. Na última parte do trabalho realizo algumas interpretações e associo diferenças e semelhanças entre os dois episódios, encerrando com alguns apontamentos e uma tentativa de novos questionamentos. Diferentes interpretações sobre violência(s): permissividades e interditos. A violência é um dos temas mais presentes nas discussões sobre o futebol, especialmente nas discussões que envolvem as torcidas, com maior constância quando se tratam das torcidas organizadas. Durante as partidas, a utilização da força para vencer uma jogada poderá ser utilizada como registro legítimo. Uma falta praticada poderá gerar uma série de discussões se essa jogada é legal ou não, se o árbitro deveria punir os envolvidos com cartão amarelo ou vermelho... Em pesquisa anterior (BANDEIRA, 2009) pude observar que para os atletas parece estar na ordem do impensável recusar um desafio para um confronto físico. “Encarar” o adversário é entendido como positivo dentro da lógica de torcedores e mediadores especializados. Fora das quatro linhas, porém, a discussão parece seguir uma lógica menos flexível quando se pensa em confrontos físicos realizados por torcedores. Esses sujeitos são logo (des)qualificados como marginais, bandidos, violentos e falsos torcedores. Para 2 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Corinthians. 3 De agora em diante me refiro ao clube apenas como Cruzeiro. 2 esses, a punição exemplar seria a solução. O poder público designa um número importante de policiais militares para os espetáculos esportivos nos estádios. A presença bastante equipada (cassetetes, bombas de efeito moral, balas de borracha, cavalos e cães) dos policiais produz um cenário belicoso, onde os confrontos físicos parecem estar sempre “potencialmente” presentes (TOLEDO, 1996). No contexto futebolístico essa violência precisa ser sempre enfrentada. Pensar, porém, que ela é exógena ao esporte pode ser um tanto apressado e equivocado. Os estádios de futebol são um importante local de socialização dos meninos no Brasil. É possível inferir a existência de um currículo de masculinidade nos estádios e nas torcidas de futebol (BANDEIRA, 2010). Diferentes manifestações de violência podem ser entendidas como uma característica importante e desejável em algumas representações de masculinidades e podem acabar atravessando esse currículo de masculinidade. A violência pode, também, aparecer como uma forma de socialização entre grupos de homens. A coletividade pode auxiliar ou incentivar as demonstrações violentas. “Homens sozinhos, sem outras pessoas para apoiá-los, nunca tiveram poder suficiente para usar da violência com sucesso” (ARENDT, 2009, p. 68). A popularização do futebol e a competitividade com que as disputas têm acontecido são utilizadas para justificar o ingresso da violência no futebol para algumas interpretações. Sua possível origem poderia ser associada à alteração do perfil dos jogadores e torcedores de elite do início do século XX4. A partir dessa alteração, alguns termos como “povo”, “homens”, “palavrões”, “ameaças”, “agressões” e “hostilidades” foram utilizados para desvalorizar os estádios de futebol e pensá-los como perigosos. A necessidade de vitórias e a alta competitividade não ficariam exclusivas ao campo de jogo, mas teriam rumado para as arquibancadas fazendo com que o espaço do sujeito coletivo “torcida” fosse entendido como arriscado. Existe um constante esforço por parte dos jornalistas esportivos e de alguns pesquisadores acadêmicos em separar o que seria violência “simbólica” de violência “real”. Heloísa Reis conceitua essa separação da seguinte forma: “a violência real (...) é perceptível pelas agressões físicas de contato, enquanto a violência simbólica é visível pelas agressões verbais e/ou gestuais” (2005, p. 114)5. Sobre essas agressões “verbais e/ou gestuais” ela faz outras diferenciações: 4 Sobre a mudança do perfil dos torcedores cf. DAMO, 2006. 5 Heloisa Reis não parece estar utilizando a expressão “violência simbólica” tal como Bourdieu a empregou, isto é, “o ato pelo qual os grupos dominantes impõem – como se fosse universal – sua cultura 3 A violência simbólica envolve apenas atitudes verbais e/ou gestuais, sendo que normalmente ela é emocionalmente satisfatória e agradável, produzindo até mesmo um efeito catártico no indivíduo. A violência afetiva é aquela em que os indivíduos se manifestam com o intuito de demonstrar seus sentimentos e de liberar a energia provocada pela tensão causada pela ansiedade da partida e pela expectativa do resultado. Ela é socialmente aceita e, nos estádios de futebol, pode ser observada a partir dos gestos e gritos realizados pelos torcedores e de algumas canções e hinos cantados por eles (Ibidem, p. 112). Essa “aceitação social” não está restrita ao contexto brasileiro. Na Argentina, o programa televisivo El aguante mostrava os cânticos da torcida com referências homofóbicas, racistas e xenófobas, que naquele contexto eram socialmente aceitos, pois, “la cláusula del humor es el dispositivo que garantiza que en la representación estos intercambios sean simples bromas, un mero ejercicio lúdico (SALERNO, 2005, p. 137). Além dessa diferenciação entre formas de violências, existe uma associação um tanto conservadora que aponta que a ocorrência de eventos violentos, de diferentes ordens, seria maior em países pobres ou em crises econômicas, pois os jovens não teriam acesso a uma vida digna (REIS, 2005). Luiz Ribeiro rechaça essa associação. “As ações racistas e homofóbicas... recorrentes no futebol... não são questões de exclusão econômica, de pauperização. Na maioria das vezes os participantes desse tipo de discurso e prática violentos são brancos e originários das classes médias altas” (2007, p. 60). A divisão entre violência “real” e “simbólica” da forma como discutida anteriormente parece um tanto tênue. Uma das suas limitações é diferenciar hierarquicamente agressões dirigidas a outrem. Outra diferenciação possível seria pensar essas violências como físicas e verbais. Conquanto ela não esteja livre de uma divisão hierarquizante, me permito pensar que essa hierarquia