Universidade do Estado do Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia

Isis Regina dos Santos Mendes

Cidadania e autoestima com crianças e jovens da Orquestra de Violinos do Centro Cultural

Rio de Janeiro 2012

Isis Regina dos Santos Mendes

Cidadania e autoestima com crianças e jovens da Orquestra de Vi olin os do Centro Cultural Cartola

Dissertação apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.ª Drª. Regina Glória Nunes Andrade

Rio de Janeiro 2012

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A

M538 Mendes, Isis Regina dos Santos. Cidadania e autoestima com crianças e jovens da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola / Isis Regina dos Santos Mendes. - 2012 126f.

Orientadora: Regina Glória Nunes Andrade. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia.

1. Centro Cultural Cartola -Teses. 2. Cidadania – Teses. 3. Auto-estima – Teses. 4 Orquestra de Violinos Cartola- Teses. I. Andrade, Regina Glória Nunes. II. Uiversidade do Estado Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.

CDU 301.151

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.

______Assinatura Data

Isis Regina dos Santos Mendes

Cidadania e autoestima com crianças e jovens da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola

Dissertação apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 25 de maio de 2012.

Banca Examinadora:

______Profª. Dra. Regina Glória Nunes Andrade (Orientadora) Instituto de Psicologia da UERJ

______Profª. Drª Lúcia Maria Ozório Barroso Universidade Celso Lisboa Rio de Janeiro

______Profª Drª Teresinha Bernardo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Rio de Janeiro 2012

DEDICATÓRIA

Ao meu pai (in memoriam), Hamilton, por empenhar-se, com amor, na tarefa de me fazer ver o caminho libertador do estudo.

À minha mãe (in memoriam), Helena, por acrescentar à sua missão educadora cuidados e carinhos indeléveis.

Ao meu marido, Francisco, por entender minhas ausências e pela dedicação à família.

Aos meus filhos, Rodrigo e Ricardo, pela solidariedade ao aceitarem o enfrentamento do desafio.

AGRADECIMENTOS

À professora Regina Andrade, minha orientadora, pelo acolhimento à minha pesquisa e pela leitura atenta e crítica do texto. Sua energia impulsionou-me a concretizar mais uma etapa de vida.

Aos Professores Lúcia Ozório, Terezinha Bernardo, Jorge Coelho Soares e Ronald Arendt, por me darem o privilégio de fazerem parte da minha banca.

Ao Sr. Leonardo Sá (in memoriam), em especial, por sua amizade e valiosa contribuição ao meu trabalho.

À direção e aos funcionários, por me abrirem as portas do Centro Cultural Cartola e por aceitarem a contribuição do meu trabalho.

A todos os participantes da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, funcionários, alunos e responsáveis, pela valiosa colaboração que possibilitou essa troca de saber.

À amiga Edna Chernicharo, pelo incentivo e pelo trabalho na leitura de textos.

Aos amigos Ana Carnevale e Marcos César, por me ouvirem nos momentos de angústia.

Aos amigos de profissão (professores) Célia, Leonardo, Paula, por me ajudarem com as minhas turmas para que eu pudesse ir à campo.

A Soraya Goulart, pelo seu zeloso trabalho de revisora, ajudando-me de forma profissional e carinhosa; imparcial, científica e cuidadosa, possibilitou-me um caminho mais produtivo e prazeroso no bastião da escrita. E ademais, ganhei uma amiga.

RESUMO

MENDES, Isis Regina dos Santos. Cidadania e autoestima com crianças do Centro Cultural Cartola. 2012. 126f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Esta pesquisa parte da relação música/projeto social para estudar de que forma os integrantes da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, do Centro Cultural Cartola, no Rio de Janeiro, tiveram reforçada a autoestima pelo aprendizado de uma nova linguagem – a musical – e pelo convívio com os professores e com os demais companheiros músicos. Nesse percurso, foram analisadas as dificuldades de se morar em uma favela carioca, dentre elas o preconceito, seja do ponto de vista geográfico, seja do ponto de vista social, uma vez que a maioria dos componentes da Orquestra mora na Mangueira. O ponto de partida foi a leitura de teóricos como Axel Honneth, George Yúdice, Stuart Hall e a contribuição de outros estudiosos da área sociocultural, que comparecem para dar suporte à argumentação. Num segundo momento, foi desenvolvido o trabalho de campo, com o recolhimento dos dados colhidos em entrevistas com os atores sociais. O binômio reconhecimento social/solidariedade implica outro elemento aqui também abordado: o desenvolvimento da cidadania. Diante de tal cenário, é possível observar a possibilidade de imprimirem-se mudanças no contexto onde a realidade se configura, ou seja, qual o lugar que o sujeito ocupa antes e depois de ser instaurado o processo de apropriação do conhecimento e como as mudanças que se operam nele se estendem ao ambiente em derredor, incluindo a família.

Palavras-chave: Centro Cultural Cartola. Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras. Solidariedade. Cidadania. Autoestima.

ABSTRACT

This research start from relationship between music and social projects to study how the members of the Orchestra of Violins Cartola Petrobras from Centro Cultural Cartola, in Rio de Janeiro, had strengthened their self-esteem by learning a new language – the musical – and by living with the teachers and with other fellow musicians. Along the way, the difficulties of living in a slum in Rio were considered, including prejudice, whether from a geographical point of view or from the social side, since most of the components of the Orchestra lives in Mangueira. The starting point was the reading of theorists such as Axel Honneth, George Yúdice, Stuart Hall and the contribution of other scholars of socio-cultural area, which attend to support the argument. Foward, the fieldwork was developed, with the gathering of information from the interviews with the social actors. The binomial social/solidarity recognition implies another element here also covered: the development of citizenship. Faced with such a scenario, it is possible to see the possibility to observe changes in the context where reality configures itself, i.e. What place the subject occupies before and after being initiated the process of appropriation of knowledge and how changes that hapenning with him are extended to the environment around him, including family.

Keywords: Centro Cultural Cartola. Violin Orchestra Cartola-Petrobras. Solidarity. Citizenship. Self-esteem.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 - Crianças da Orquestra de Violinos num programa da Rede Globo de Televisão ...... 18

Figura 02 - Equipe de professores e monitores da Orquestra de Violinos ...... 22

Figura 03 - Apresentação dos jovens da Orquestra de Violinos com a cantora Sandra de Sá ...... 25

Figura 04 - Apresentação da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras ...... 27

Figura 05 - Regente em ensaio da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras ...... 31

Figura 06 - Mães das crianças e dos jovens da Orquestra ...... 32

Figura 07 - Orquestra de Violinos em frente ao Centro Cultural Cartola ...... 34

Figura 08 - Governador Sérgio Cabral e os componentes da Orquestra de Violinos 35 Figura 09 - O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva observa o pequeno músico no Palácio do Planalto, em Brasília ...... 36

Figura 10 - Jovens da Orquestra de Violinos numa apresentação ...... 37

Figura 11 - Demolição de cortiços do plano da reforma urbana de Pereira Passos no Rio de Janeiro (1902-1906) ...... 38

Figura 12 - Subida dos telégrafos - Favela da Mangueira ...... 39

Figura 13 - Sandra Grávida – Favela da Rocinha e letra de música ...... 40

Figura 14 - Morro da Providência, em seu início de favelização.Com a chegada os ex-combatentes de Canudos foi batizado de morro da Favela ...... 42 Figura 15 - Foto aérea da favela da Rocinha. Foto Carlos Cardoso da agência de notícias O Dia ...... 43

Figura 16 - Telégrafos - Favela da Mangueira ...... 44

Figura 17 - S. na porta da sua casa ...... 49

Figura 18 - Derrubada de comércio irregular num espaço público da Mangueira .... 50

Figura 19 - Crianças em meio ao lixo jogado numa das encostas do Morro ...... 53

Figura 20 - Policiamento no morro da Mangueira ...... 54

Figura 21 - Brincadeira de meninos (Foto de João Luiz Bulcão) ...... 58

Figura 22 - Guezinha na varanda de sua casa ...... 62

Figura 23 - Velha Guarda da Mangueira ...... 63

Figura 24 - e aluno da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola ...... 64

Figura 25 - Desenho: o violinista na Mangueira ...... 66

Figura 26 - Orquestra Sinfônica Brasileira ...... 67

Figura 27 - Banda Móveis Coloniais de Acaju ...... 67

Figura 28 - Samba de roda ...... 67

Figura 29 - Rapper brasileiro MV Bill recebendo o Prêmio “Verde das Américas”, 2011, na categoria “Direitos Humanos” ...... 69 Figura 30 - Retirada do álbum de fotos da página Clínica do deficiente mental, do site facebook. Abril de 2012 ...... 70

Figura 31 - Fachada do Centro Cultural Cartola. Acervo do CCC ...... 72

Figura 32 - Um dos espaços do Centro Cultural, utilizado para o ensaio da Orquestra. Acervo de Isis Mendes ...... 74

Figura 33 - Telecentro – alunos nas aulas de informática ...... 74

Figura 34 - Um dos quadros expostos no CCC – Cartola e D. Zica. Acervo Isis 76 Mendes ...... 75 Figura 35 - Quadros expostos no Centro Cultural com as fotos dos sambistas e ...... 76

Figura 36 - Projeto matrizes do Samba ...... 76

Figura 37 - Integrantes, professor e regente em momentos antes do início do ensaio da Orquestra de Violinos ...... 77

Figura 38 - II Seminário do Samba ...... 78

Figura 39 - Piano de ¼ de cauda doado pelo músico Wagner Tiso ao Centro Cultural Cartola ...... 79 Figura 40 - Violinista e ritmista na bateria da Escola de samba São Clemente do Rio de Janeiro no carnaval de 2012 ...... 81 Figura 41 - Jovens da Orquestra de Violinos e a diretora executiva do CCC, Profª. Nilcemar Nogueira, junto ao Presidente da República, Sr. Luis Ignácio Lula da Silva, em Brasília ...... 83 Figura 42 - Da esquerda para a direita: monitor, aluno e professor da Orquestra de Violinos, na festa de final de ano, no CCC ...... 89 Figura 43 - Desenho de aluna do grupo, cuja parte “de trás” da casa desabou. “Minha casa”. Maio de 2010 ...... 96

Figura 44 - Área de lazer no Morro da Mangueira ...... 102

Figura 45 - Cartola ...... 102

Figura 46 - Alunos da Orquestra de Violinos se apresentando num programa de 102 televisão ......

Figura 47 - Responsáveis por alunos da Orquestra de Violinos ...... 102

Figura 48 - Centro Cultural Cartola - Representação de barracos da favela nas Paredes do Salão ...... 104 Figura 49 - Apresentação da Orquestra de Violinos, com Gabriela, bisneta de Cartola ...... 108 Figura 50 - Parte da equipe do CCC (2010). Ao centro, o saudoso Leonardo, falecido no final de 2011 ...... 109

Figura 51 - Alunos da Orquestra de Violinos na UERJ ...... 117

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 11

PROJETO SOCIOCULTURAL: ORQESTRA DE VIOLINOS 1 18 CARTOLA-PETROBRAS ......

1.1 A história do projeto ...... 18

1.2 O som das vozes no Centro Cultural Cartola ...... 22

1.3 O dinamismo do projeto ...... 34

A FAVELA NA GANGORRA DOS SENTIDOS – DEPOIMENTOS 2 38 ......

2.1 Favela, beleza e pobreza: uma estética de contradições ...... 39

2.2 A Mangueira e seu cenário ...... 44

2.3 As vozes da Mangueira ...... 58

3 A MÚSICA EM PROJETOS SOCIOCULTURAIS ...... 64

3.1 A estética e a utilidade da expressão musical ...... 66

Centro Cultural Cartola: lugar de abrigo de cultura(s) e de luta social 3.2 72 ......

3.3 A educação fora da escola - O ensino musical em práticas sociais .. 83

4 DO SOM À ESCRITA DO CAMPO ...... 89

4.1 O pesquisador e o campo da ciência e do humano ...... 90

4.2 Virando a página: os alunos da Orquestra de Violinos ...... 96

4.3 O tecer dos dados ...... 101

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 111

REFERÊNCIAS ...... 118

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INTRODUÇÃO

“A arte existe porque a vida não basta”.

Pode-se constatar, no caso da cidade do Rio de Janeiro, a existência de diferentes grupos culturais (AfroReggae, Criarte, Instituto Avon, dentre outros) cujo objetivo maior é reunir pessoas em torno de manifestações artísticas variadas – música, dança, produção de vídeo/cinema/animação, literatura –, num movimento a favor da arte e, sobretudo, da cidadania e do fazer escutar uma voz antes calada. Paralelamente, projetos sociais vêm ocupando espaços onde o Estado, ao contrário de realizar seus deveres para com a população mais carente da sociedade, subtrai-lhe direitos que deveriam estar assegurados, conforme a Constituição. Um bom exemplo encontra-se dentro das Escolas de Samba cariocas, que abraçaram os bairros onde estão localizadas para ali implementarem cursos profissionalizantes e/ou voltados para o bem-estar. Além das questões básicas de sobrevivência, como ter o que comer e onde morar em condições decentes de abrigo e saneamento, deveria estar garantido ao cidadão – de fato e não somente de direito no papel – um viver com mais dignidade, com acesso ao sistema de saúde pública, ao lazer, aos equipamentos culturais da cidade (teatros, casas de cultura, museus) etc. Porém, quando as necessidades básicas de sobrevivência não são atendidas, fica difícil a compreensão de como atividades ligadas à cultura funcionam como um dos meios mais eficazes de promoção da cidadania. Fonte desta pesquisa, o Centro Cultural Cartola (CCC) nasceu do empenho dos irmãos Nilcemar Nogueira e Pedro Paulo Nogueira, netos de Angenor de Oliveira1, com o objetivo de preservar a obra do grande compositor. É uma organização não governamental (ONG), sem fins lucrativos, pertencente ao terceiro setor (serviços). Situado no bairro da Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro, suas atividades estão voltadas para a área cultural, tendo como

1 Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, avô de Nilcemar Nogueira, foi um dos grandes compositores do samba e da música popular brasileira. A preservação da sua obra foi um dos motivos para a construção do Centro Cultural Cartola, dada a sua importância no cenário musical brasileiro e ao seu exemplo de vida em Mangueira. Possuidor de vastíssima obra com reconhecimento nacional e internacional e por ser merecedor de atenção especial para a história do samba, o Centro Cultural possui um acervo que está à disposição de interessados.

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alvo principal as crianças e os adolescentes moradores do bairro. As propostas do Centro destacam a comunhão das ações educacionais, pautadas em atividades diversas: oficinas de artes, aulas de capoeira e jiu jitsu, dança de salão e dança contemporânea. Acrescente-se a isso os seminários ali ministrados, as pesquisas sobre o samba de raiz, o resgate de acervo musical, a valorização das raízes negras no Brasil (Ação Griô). O objetivo primeiro aqui destacado, contudo, é a Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola – Comunidade da Mangueira – Rio de Janeiro, que ganha destaque por ser uma aposta alta na capacidade de inserção da criança e do jovem em qualquer atividade cultural, incluindo a clássica, independente de ser realizada num ambiente social e financeiramente desprivilegiado. Criada desde 2004 a partir da ideia do Maestro Leonardo Bruno, a Orquestra de Violinos teve de imediato o aceite da fundadora do CCC e atual coordenadora, Profa. Nilcemar Nogueira. Trata-se de um projeto educativo, que abarca segmentos que vão desde o desenvolvimento cognitivo das crianças e jovens, com o aumento do universo musical, passando pelo estímulo ao convívio em grupo, num aprimoramento de relações, até o reforço da autoestima dos alunos, através de apresentações socialmente valorizadas, e o alcance da cidadania. Palco de tantas atividades, o Centro Cultural Cartola também é um campo de pesquisa do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ, coordenado pela Profª. Dra. Regina Glória Nunes Andrade. Ao solicitar ao Departamento de Psicologia Social da UERJ um trabalho de acompanhamento junto à Orquestra de Violinos, a Profa. Nilcemar Nogueira deixou claro seu propósito de registrar a evolução do projeto; com isso, abriu-se para mim, já no curso de Mestrado, a oportunidade de realizar um antigo desejo: fazer parte de um trabalho diretamente ligado à arte e, em especial à música, cujo poder ultrapassa o bem-estar que proporciona ao músico e aos ouvintes. Após a criação dessa possibilidade de pesquisa, através de um convênio existente, desde 2004, entre o Centro Cultural Cartola e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, especificamente, o Departamento de Pós-Graduação em Psicologia Social, foi-me oferecida a tarefa de traçar um painel da dinâmica do funcionamento da Orquestra de Violinos, dentro de um olhar acadêmico, ou seja, minha missão seria a de acompanhar, dentro de padrões acadêmicos já reconhecidos, as atividades e relações ali estabelecidas e verificar se o projeto atinge seus objetivos como um todo. 13

A abordagem da pesquisa visava a acompanhar, por determinado período, o desenvolvimento das atividades ali produzidas, fugindo do papel de estabelecerem-se avaliações, quer positivas quer negativas. O método escolhido foi o de orientação teórico-empírica, ou seja, inicia-se a partir da leitura de autores consagrados na área e prossegue na observação participante, por permitir uma interação social mais intensa entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa. Com isso, torna-se imprescindível que o sujeito da pesquisa esteja no próprio ambiente, junto com as demais pessoas envolvidas com a Orquestra. Ademais, a particularidade desse dispositivo de pesquisa é investigar a realidade, excluindo-se a pretensão de transformar o que foi observado. A fim de respeitar-se o universo dos sujeitos e das vidas que ali foram, direta ou indiretamente, acolhidas, foi imprescindível a elaboração de entrevistas com professores, crianças e jovens participantes, com familiares dos inscritos, com pessoas da comunidade e com funcionários do Centro Cultural Cartola. Porque as entrevistas são efetuadas no ambiente original, elas atendem certos dispositivos que vão desde a escolha dos entrevistados, a relação deles entre si e com o pesquisador, os momentos de pura observação, até as interações mais profundas, ou seja, a característica mais relevante não é o resultado numérico, mas o processo, o dia a dia da observação de campo. De posse desse material, os dados foram alinhados de modo a permitirem a associação das ideias do pesquisador com a teoria e a prática. Não basta ao pesquisador obter respostas para objetivos predefinidos, já que existem as surpresas do campo, as dúvidas e novos questionamentos, decorrentes do inesperado, do conhecimento do outro, que coloca no horizonte o não saber como valioso instrumento de busca para novos conhecimentos. Só assim a pesquisa de campo possibilitará vários raios de ação. Algumas questões se fizeram presentes: Que cuidados tomar para não conduzir o entrevistado em suas respostas? As perguntas seriam invasivas? Que perguntas seriam mais adequadas ao meu interesse de pesquisa? Como os participantes poderiam beneficiar-se com os resultados dela? Saberei conduzir uma entrevista sem torná-la cansativa ou desinteressante para o entrevistado? A aprendizagem musical auxiliaria na aquisição da cidadania e na elevação da autoestima? Diante dessas indagações, foi dado início ao processo de pesquisa com leituras sobre da história do projeto da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, obtidas em acervo próprio e em revistas e em matérias disponibilizadas em sites. 14

Para fundamentar a argumentação teórica, o presente trabalho baseia-se, principalmente, em autores como George Yúdice, Stuart Hall, Axel Honneth e nos estudos culturais e nos da área sociocultural. As teorias culturais de Yúdice (2004) e de Hall (1996) vêm esclarecer sobre os conceitos contemporâneos de cultura. Yúdice relaciona cultura aos aspectos sociais, enquanto Hall contribui com a teoria das diversidades. A teoria do sociólogo Honneth foi escolhida por abordar o binômio reconhecimento social e conflito social como aportes para o reconhecimento das capacidades e singularidades dos indivíduos como também a elevação da autoestima. Ainda sobre os conceitos de cultura, Canclini (2005) observa que eles abarcam vasta gama de significados, ao comentar que, desde 1952, dois antropólogos já tinham recolhido quase trezentas maneiras de definir a palavra. O recorte aqui escolhido leva em conta a complexidade da tarefa de unir cultura à sociedade, tomando por base as idéias de Canclini que enfatiza os aspectos culturais das práticas sociais dando-lhes sentido. A cultura, imbricada com o social, “aparece como parte de qualquer produção social e também da sua reprodução” (CANCLINI, 2005, p. 46). Várias atividades contribuíram para dar início à montagem do texto escrito, no sentido de analisar até que ponto um projeto sociocultural propicia a melhoria de condições de vida de crianças e jovens moradores, em sua maioria, da comunidade da Mangueira, cujas precariedades refletem no modo de viver. A teoria do reconhecimento, de Honneth (2009), é trabalhada com o propósito de fundamentar a qualificação do projeto sociocultural do Centro Cultural Cartola como instrumento instaurador de um status social, como ponte para aquisição da cidadania e elevação da autoestima. Utilizando-se de elementos conceituais de George H. Mead, Habermas e Winnicott, Honneth também se reporta, principalmente, ao modelo conceitual de Hegel de “luta por reconhecimento” para construir sua teoria e para realizar reflexões sobre como o conflito se insere numa categoria condutora de mudanças sociais. Em suas colocações, Honneth (2009) estabelece três dimensões do reconhecimento: a autoconfiança, que se dá pela dedicação afetiva dispensada pela mãe à criança; o autorrespeito, adquirido pela garantia dos direitos; e a autoestima, motivada pela valorização das capacidades de realização do indivíduo por outros. Se o reconhecimento da cidadania permite situar um projeto sociocultural como instrumento formador de reconhecimento social, é possível dizer que outros elementos também contribuem para uma aprendizagem socialmente valorizada: dedicação da equipe de professores, interesse pelo desempenho do aluno, apresentação aos participantes de cenários e 15

vivências que despertam a esperança na obtenção de melhores condições de vida etc. Tais cenários, quando somados, formam outro maior: a possibilidade de imprimirem-se mudanças no contexto onde a realidade se configura, ou seja, qual o lugar que o sujeito ocupa antes e depois de ser instaurado o processo de apropriação do conhecimento. Projetos sociais, de modo geral, são resultantes de esforços empreendidos anteriormente a sua existência; são construídos em cima de reivindicações já existentes na história da sociedade, ao longo de sua evolução, expressas em ações sociais, cuja expansão, no Brasil, data da época do golpe militar na década de 1960, como atesta Naves:

Quanto aos movimentos sociais, para compreendermos suas origens no Brasil é preciso voltarmos à década de 1960. Com o golpe militar de 1964, a repressão sistemática de todas as formas de contestação política e organização sindical fez com que a vida associativa se deslocasse para as comunidades e seus interesses localizados. [...] É quando se disseminaram os movimentos populares e sociais (NAVES, 2008, p. 567).

O projeto da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola também nasceu de uma luta dos seus fundadores. Não se pode negar o fato de que um projeto sociocultural que se faz independente da estrutura proporcionada pelo Estado traz em si características próprias. Como toda ONG, o Centro Cultural Cartola depende de parcerias, quer com o setor privado, quer com órgãos do governo, para concretizar seus projetos. De acordo com as informações obtidas em seu site2, sua missão concentra-se em:

Promover a inserção do indivíduo na sociedade através da cultura, da preparação profissional e do resgate da dignidade, de forma a contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos menos favorecidos e para a redução das desigualdades sociais, buscando sempre no exemplo de Cartola a referência para a construção da cidadania pela arte. (site do CCC, acesso em 2010)

Foi necessário seguir um roteiro de pesquisa de modo a contextualizar o projeto, a saber: a história de como o projeto da Orquestra nasceu dentro de outro maior (o do Centro Cultural Cartola), o território geográfico onde se encontra, as dificuldades de várias ordens ali vivenciadas, os sujeitos que o compõem, o trabalho de campo para escutar as demandas desses sujeitos diante das adversidades e de novas perspectivas projetadas, a análise do material coletado. Em outras palavras, tal roteiro deu o tom dos capítulos e, diante dos conceitos desenvolvidos, foram mesclados os depoimentos colhidos em entrevistas durante a pesquisa

2 http://www.cartola.org.br/missao.html. 16

de campo. Dentre alguns instrumentos de coleta de dados, como anotações, entrevistas, formação de grupos com as crianças e jovens do projeto, a entrevista figura como o mais importante deste trabalho, por refletir o que as pessoas estão vivenciando como parte de sua história individual e coletiva. A relevância dada às vozes dos envolvidos no projeto da Orquestra de Violinos e de alguns moradores da Mangueira garante um espaço especial, no interior dos capítulos, dedicado às suas falas. Tomando por base Huguet et al (2005, p. 293), “a tarefa (do pesquisador) consiste em observar, registrar e reportar o comportamento das pessoas na situação contemporânea sem a intenção de as mudar ou de mudar as situações nas quais se encontram”. Lapassade (2005, p. 286), sobre a metodologia, afirma que “o observador participante ocupa-se essencialmente em ver, escutar e conversar com as pessoas, recolher e reunir informações”. Após tais considerações, esta pesquisa foi dividida por temas assim distribuídos: No primeiro capítulo, encontra-se a descrição do projeto sociocultural da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola-Petrobras. A trajetória da Orquestra traz as diversas etapas por que passou até atingir o grau de profissionalismo da atualidade. São também apresentadas passagens das entrevistas com a equipe técnica da Orquestra e qual a estrutura que a mantém em permanente dinâmica. No segundo, são feitas referências ao contexto das favelas cariocas para prosseguir com a história da Mangueira, cujas características socioculturais e econômicas são brevemente descritas por abrigarem a maioria dos envolvidos no projeto. Nesse contexto histórico, estão inseridas as falas dos moradores quanto aos problemas enfrentados por quem reside no morro. Ao lado das reivindicações naturais – coleta de lixo e posto médico, em especial – de que esses moradores necessitam para sentirem-se cidadãos de direitos são narrados os casos de solidariedade entre vizinhos, fenômeno que, devido à força de sua penetração, consegue romper a barreira do abandono. No terceiro, realiza-se o estudo sobre a importância da música para os jovens da atualidade, com destaque para alguns movimentos como o hip hop, o reggae e o funk. Também vem em foco a luta do Centro Cultural Cartola que coloca sua estrutura de funcionamento a favor de nova realidade: a introdução, na favela, do ensino da música clássica. A ligação entre projeto social e educação finaliza o capítulo. E, finalmente, o quarto capítulo consta das análises dos dados colhidos no campo, tendo como centro as entrevistas com os alunos. Começa por descrever alguns itens do diário de campo da pesquisadora, passando à história de como se deram os encontros realizados com 17

o grupo até o momento em que os protagonistas dão os seus depoimentos, fazendo-se ouvir em cotidiano e em seus sonhos, inaugurando um espaço de fala, num deslocamento da posição de informantes para a de sujeitos da ação. É realizado também nesse capítulo o enlace dos pressupostos teóricos de Honneth com as características sociais e culturais dos participantes da pesquisa.

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1 PROJETO SOCIOCULTURAL: ORQUESTRA DE VIOLINOS CARTOLA- PETROBRAS

“A ideia de fazer uma orquestra na região da Mangueira não é uma questão de brincarmos de orquestra é algo feito com muita seriedade, e um dia quem sabe, esses meninos irem para uma orquestra profissional”

(Sr. Leonardo Sá, ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras)

1.1 A história do projeto

Figura 1: Crianças da Orquestra de Violinos num programa da Rede Globo de Televisão. Fonte: Acervo do CCC.

Foram utilizadas entrevistas que serviram de fonte de informação sobre a história da Orquestra de Violinos; como ponto de partida, optou-se pelo material da Profª. Nilcemar Nogueira, coordenadora de projetos do Centro Cultural Cartola, com o intuito de saber o que era priorizado, em sua comunicação, a respeito do assunto. Foi-lhe solicitado um texto que mencionasse a história do projeto e ela, gentilmente, escreveu:

A Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras é formada por crianças e por adolescentes das comunidades da Mangueira e adjacências. Iniciado há quatro anos, este projeto integra o programa de inclusão social através da arte e de resgate da cidadania [...] a iniciativa tem por principais objetivos a promoção do conhecimento para a identidade cultural, a orientação artística para uma futura profissionalização, o acesso ao consumo de bens culturais de qualidade para a educação do gosto, o desenvolvimento de novas vocações para as diversas áreas da carreira musical e o 19

desenvolvimento de ações comunitárias para a formação de plateias (NOGUEIRA, 2011)3.

O projeto apresenta uma estrutura bem sólida, com professores qualificados e dedicados ao aprendizado das crianças, e outras características que o tornam producente, como confirmam as palavras do ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos, Sr. Leonardo Sá, em entrevista cedida4:

Nossa metodologia tem por foco uma formação técnica de boa qualidade, que, ao mesmo tempo, propicia à criança uma apreciação e uma inserção na questão da linguagem de forma agradável, propiciando-lhe condições para, se ela quiser avançar, em médio prazo, para um processo de profissionalização, tenha as bases consistentes para isso. Então, há quatro anos, Noemi Uzeda, Alexandre Somas, eu e outros profissionais começamos a atuar de forma direta ou indiretamente, [...] Por trabalhar nesse tipo de projeto há muitos anos, sei exatamente, até como compositor e orquestrador, qual é o tipo de material musical de partitura, de adaptação que você precisa fazer para atender a certos preceitos técnicos de que a criança dispõe (SÁ, 2011).

A Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras foi criada em 2004. Surgiu de um desejo do maestro Leonardo Bruno de “colorir as orquestras”, ou seja, de incluir mais pessoas negras numa orquestra sinfônica. Essa idéia, relatada, na época, à vice-presidente do Centro Cultural, Profa. Nilcemar Nogueira, foi recebida com entusiasmo e encaminhada ao Ministério da Cultura, em forma de projeto para a criação de uma orquestra de violinos na comunidade da Mangueira, obtendo aprovação. Na fase inicial de execução, o objetivo do projeto era garantir a aprendizagem de um instrumento de música clássica, a fim de “mostrar aos jovens da comunidade que eles podem ter outras opções na vida e que são capazes de desenvolver o que desejarem” – palavras de Nogueira, citadas por Mazzini (2008, p. 44), para explicar a essência do trabalho. De acordo com informações contidas no site da Petrobras, empresa patrocinadora, a Orquestra de Violinos “tem uma importante missão de promover o acesso à arte, à formação musical e ao exercício da cidadania entre crianças e adolescentes das comunidades do Morro da Mangueira e adjacências, na cidade do Rio de Janeiro”5.

3 NOGUEIRA, N. Entrevista dada a Isis Regina dos Santos Mendes, no ano de 2011, por correio eletrônico.

4 SÁ, L. Ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. O Sr. Leonardo Sá faleceu em outubro de 2011.

5 Disponível no site: http://www.hotsitespetrobras.com.br/cultura/projetos. Acesso em jan 2011. 20

A primeira apresentação pública das crianças e jovens do projeto aconteceu após três meses de sua implantação, no ano ainda de 2004, e teve como espectador o então Ministro da Cultura, Sr. . As crianças e jovens apresentaram-se em vários equipamentos culturais da cidade do Rio de Janeiro, para logo viajarem para outros estados do País, como São Paulo, Minas Gerais e Brasília, onde se apresentaram para o Presidente da República, Sr. Luís Inácio Lula da Silva. De início, para ingressar na Orquestra de Violinos, alguns prerrequisitos são necessários: morar na comunidade da Mangueira, estar matriculado na escola e ter completado sete anos. Atualmente, a prioridade não é a idade, mas saber ler. A idade ganha relevância ao que reporta ao aproveitamento, ou seja, crianças que estão próximas da idade da adolescência adquirem interesses e, mesmo, a necessidade de trabalho que os afastam do projeto; daí, a prioridade em receber alunos na faixa etária entre seis e oito anos, garantindo- lhes a chance de terem obtido aprendizagem e, ao mesmo tempo, oportunidade de convívio num ambiente cultural, de forma a se operarem as transformações que o projeto objetiva. O modo de divulgação da Orquestra na comunidade foi o boca a boca: os próprios funcionários do centro cultural falavam com os moradores a respeito do novo projeto. Apresentações também eram feitas com o intuito de atraírem a atenção dos responsáveis e das crianças e jovens da comunidade. Em entrevista cedida, a Profa. Nilcemar esclarece:

A divulgação é feita por meio de cartazes colocados em ponto estratégicos, no corpo a corpo na comunidade, na associação de moradores, com diretores de escolas que repassam aos pais a importância. Os próprios pais repassam quando, no caso, acontece de uma mãe que vê o filho de outra que ficou muito melhor. É a escola que recomenda para os pais, aconselhando que eles coloquem o filho no CCC, falando das melhoras de determinadas crianças que ficaram mais calmas e aí outras mães ficam sabendo e ficam na fila de espera e, quando a gente vai abrir mais turmas, é mandada uma cartinha dizendo que tem vaga e assim vai. (NOGUEIRA, 2011)

Sá (2011) explicou que o primeiro método de ensino do violino adotado era o Suzuki – “O método, cuja principal característica é a busca de resultados mais rápidos, não trabalha uma formação técnica de maior consistência [...]; não é uma metodologia de ensino a médio e longo prazo”. Hoje, contudo, o método mudou para outro, que, inclusive, abarca também a leitura de partitura musical, num investimento na capacitação profissional dos alunos. Outra equipe de professores foi contratada e houve o acréscimo de aulas de musicalização, além das de violino, e dos ensaios na Orquestra. A presença e o desempenho dos alunos também são registrados. A mudança da equipe se deu porque a maestrina que estava à frente da orquestra foi estudar na França temas referentes à qualificação de regência. 21

No total, a equipe conta com sete profissionais, entre monitores, professores e a regente da Orquestra, que também assume o papel de orientadora pedagógica da equipe. No momento desta pesquisa, está matriculada no projeto uma média de sessenta alunos, entre crianças e jovens. Em seu início, o tempo máximo de permanência previsto era de oito anos. Porém, começaram a surgir várias solicitações por parte dos alunos para permanecerem mais tempo; a partir de então, “não existe mais esse prazo e nem idade certa para a saída”, explica a monitora da orquestra Sara (2011)6. Após a inscrição da criança, é feita uma avaliação com o intuito de verificar-lhe o grau de concentração; nesse mesmo momento, a criança assiste a uma aula de violino e conhece o instrumento. Ressalta-se que a avaliação não possui caráter excludente, mas, sim, de acordo com as palavras de Nogueira (2011), o de ser “um processo de inclusão, o aproveitamento é de quase 99%”. Em relação aos alcances do projeto da Orquestra de Violinos, diversos depoimentos colhidos ao longo da pesquisa, com vários atores sociais, confluem para o fator de transformação de vida das crianças e jovens através da educação musical, bem como para novas oportunidades de vida. Como dito pelo pai de um aluno da orquestra,

Através do projeto, ele já alcançou a oportunidade de ter outro universo, conhecer pessoas novas, entrar em contato com culturas diferentes, pessoas com visões diferentes daquilo que ele está acostumado a lidar, por morarmos em comunidade. O que o projeto trouxe para ele já está realizado, deu a ele uma visão de mundo diferente (C., pai de N.).

Sara, monitora da Orquestra no momento da pesquisa, acredita que o aprendizado alcançado pelos alunos nas aulas de música será levado para a vivência de seus cotidianos como a experiência mais criativa de vida. Nas palavras de Kater (2004, p. 44):

Entre as funções da educação musical, teríamos a de favorecer modalidades de compreensão e consciência de dimensões superiores de si e do mundo, de aspectos muitas vezes pouco acessíveis no cotidiano, estimulando uma visão mais autêntica e criativa da realidade.

A senhora S., moradora da Mangueira, expôs sua opinião pautada na própria vivência de moradora da comunidade, que acompanha o dia-a-dia das crianças e jovens que, em grande número, ficam ociosos pelas vielas da favela, sem conhecerem outras realidades. Para ela,

6 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 22

Num concerto de violinos, o jovem vai conversar com gente de outros lugares, pessoas cultas, que vão mostrar para ele coisas diferentes do que ele vê aqui. [...] O difícil para esses jovens é fazer com que eles cheguem até lá, então tem que ter oportunidade, e é nisso que esses projetos ajudam muito. Tocar violino pode trazer um futuro melhor para eles, pode até não ser um concertista, mas, através do violino, eles vão conhecer outras coisas e um mundo melhor, não é só ficar aqui com radinho escutando funk, como eu vejo muito aqui.

Para a coordenadora de projetos do CCC, Profª. Nilcemar Nogueira (2011), os ganhos obtidos no projeto são, além dos de longo prazo, imediatos, porém com uma parcela de esforço e dedicação:

Eles viajam, vão ao teatro, cinema, participam de reuniões, eles abrem a cabeça para o mundo, eles saem daquela vidinha circunscrita da comunidade, então eles começam a desejar outras coisas e a ver também que tem um caminho duro e aí o instrumento não poderia ser melhor, ele tem que ali pegar naquelas cordinhas da crina do cavalo e tirar o som, então não é tão fácil assim.

1.2 O som das vozes no Centro Cultural Cartola

Figura 2: Equipe de professores e monitores da Orquestra de Violinos. Fonte: Acervo do CCC. Desde o início da pesquisa, juntamente com a revisão bibliográfica, houve a preocupação em elaborarem-se questões para as necessárias entrevistas de campo – mesmo diante da definição do objeto de estudo, por razão do cuidado em evitar-se a não condução das respostas. Nesse ponto, vale lembrar que a pesquisa abarca uma gama grande de informantes, incluindo diretoria do Centro Cultural, funcionários, professores, alunos, familiares. Tal característica exigiu a elaboração de perguntas de diferentes níveis. Além disso, os dados 23

coletados receberam uma leitura não com o propósito de “adaptá-los” à pesquisa, mas, sim, com o de validarem, por si mesmos, a descrição dos resultados. No texto do filósofo francês Latour (2004), encontra-se uma concepção sobre a importância da etapa de realização de perguntas interessantes ao entrevistado, no sentido de que as perguntas não fiquem engessadas nos próprios objetivos do pesquisador e que permitam ao entrevistado a expressão do seu pensamento mais espontâneo. Porém, isso não é alcançado através da teoria existente acerca do tema, mas, sim, com o estabelecimento de uma inserção maior do pesquisador no campo, para conhecer um pouco melhor a realidade das pessoas e de seus modos de vida. Além disso, a convivência do pesquisador no ambiente original onde se encontram os atores visa a não interferir intencionalmente nessa situação. Bourdieu (2003), ao falar das “propriedades inerentes à relação da entrevista”, afirma que é o entrevistador quem estabelece de antemão as condições da entrevista, numa dissimetria com o entrevistado que fica à margem dessa construção: “É o pesquisador que inicia o jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de maneira unilateral e sem negociação prévia, os objetivos e hábitos, à vezes mal determinados, ao menos para o pesquisado” (BOURDIEU, 2003, p. 695). Mais adiante, o autor esclarece ainda ser preciso uma apropriação das perguntas por parte dos entrevistados, a fim de se tornarem sujeitos. Diante dessas formulações, foi tomada a decisão de se empreender um tempo de observação do funcionamento do projeto, da movimentação dos funcionários do Centro Cultural Cartola, das atividades das crianças e dos professores nas aulas de violino, das apresentações da Orquestra, dos grupos de mães que esperavam os filhos durante as aulas e os ensaios, além, naturalmente, das conversas que antecederam a elaboração das perguntas mais pertinentes à realidade a ser retratada. Abrangendo o tempo para compor o corporis, a metodologia do trabalho de campo foi traçada com as seguintes características: as entrevistas obedeceriam a um roteiro prévio, porém respeitando-se eventuais questões suscitadas no momento da conversa; o pesquisador teria a liberdade de fazer perguntas que julgasse necessárias fora do escopo do roteiro. Segundo Giust (2005, p. 262), a utilização desse tipo de entrevista “pretende obter um material ao mesmo tempo fiável e conforme as expectativas da pesquisa”. A mim couberam os papéis ora de estimuladora ora de agente encarregada da mudança tópica. Se, por um lado, não houve uma situação cuja naturalidade fosse completa, por outro, também não foi estimulado um total planejamento, resultando num discurso semiplanejado ou semiestruturado, segundo Contandriopoulos et al:

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A entrevista se apresenta sob a forma de um roteiro preliminar de perguntas, que se molda à situação concreta da entrevista, já que o entrevistador tem liberdade de acrescentar novas questões com o intuito de aprofundar pontos considerados relevantes aos propósitos do estudo (CONTANDRIOPOULOS et al apud MOURA, 2005, p.67).

O passo seguinte foi direcionado aos integrantes da equipe da Orquestra de Violinos, com o intuito de conhecer o funcionamento da estutura que a mantém. Algumas particularidades foram anotadas, como: número de componentes e suas respectivas posições dentro da orquestra, tarefas de cada professor, materiais indispensáveis, instrumentos musicais utilizados, ambiente onde ocorrem as aulas e os ensaios da orquestra, preparo que envolve as apresentações públicas. O coordenador técnico, na ocasião Sr. Leonardo Sá, concedeu uma entrevista esclarecedora, rica de detalhes e, curiosamente, de opiniões que convergiam com os propósitos da pesquisa. Seu relato confirma que o projeto da Orquestra de Violinos partiu da fundadora do Centro Cultural Cartola, Profa. Nilcemar Nogueira, que tinha como objetivo levar uma cultura diversificada para as crianças da Mangueira. Também esclarece que, após a primeira equipe de professores ser substituída para garantir a entrada de nova metodologia de ensino musical, ele e a equipe renovada de professores passaram a fazer parte do projeto. O método Suzuki foi abandonado como o principal, e uma moderna e mais eficaz metodologia foi adotada, com o propósito não só de valorizar as possibilidades de contato com o instrumento, numa prática mais imediata, como também de oferecer às crianças e jovens condições para prosseguirem rumo à profissinalização, por terem acesso a uma formação técnica/teórica de qualidade. Desde esse novo início, em 2007, a Orquestra de Violinos passou a oferecer, além das aulas de violino e de violoncelo e dos ensaios com a Orquestra, aulas de musicalização, onde os componentes aprendem a linguagem musical e, consequentemente, a leitura de partituras. Todas as crianças e os jovens inscritos têm aulas de instrumento, musicalização e orquestra. Ibrahine (2011) alerta para a importância de não ser um “analfabeto musical” em se tratando de música clássica: “Na música de concerto não saber ler música vai dificultar, eu colocaria que, num projeto como esse, é imprenscindível, além da aula instrumental e de orquestra, a leitura das partituras”7. De acordo com Sá (2011), alguns pontos estratégicos precisam ser pensados para que haja um resultado mais efetivo das ações empreendidas, mesmo porque essa iniciativa, em

7 IBRAHINE, Antonio. Professor de musicalização. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 09/02/2011. 25

particular, envolve todos os setores da sociedade, como o poder público, o setor privado e organizações não-lucrativas da sociedade civil que atuam com fins públicos.

Figura 3: Apresentação dos jovens da Orquestra de Violinos com a cantora Sandra de Sá. Fonte: Acervo do CCC.

Quanto ao setor privado, Sá (2011) destacou não apenas a concretização do projeto por meio dos recursos disponibilizados como também a produção da arte: “(O setor privado – Petrobras) viabiliza a criação de uma iniciativa que gere uma produção que aponta para um tipo de consumo que a própia empresa muitas vezes não está voltada para ele, ou seja, produzir arte, estabelecer o princípio de criar consumidores de arte” (Sá, 2011). Na verdade, Sá (2011) foi além ao observar que, muitas vezes, a arte, tal como qualquer objeto de consumo, precisa ser apresentada ao público, mesmo que sua demanda ainda não tenha sido deflagrada:

A arte de qualidade, a boa expressão e o patrimônio cultural são necessidades cujas demandas, muitas vezes, ainda não existem ou não se manifestaram; então, esses projetos propiciam, no que diz respeito ao chamado consumo, no melhor sentido da palavra, a geração das demandas, criando condições para que essas crianças demandem algo que, em geral, nas suas circunstâncias, não demandariam, suprindo, então, necessidades profundas da sua própria condição de cidadão, ou de ser humano.

O ex-coordenador explica o porque da necessidade de se investir em tais iniciativas: “Formação de plateias é formar consumidores de cultura”. A preocupação dos gestores do projeto com a garantia de os alunos terem condições para conquistarem vaga no mercado de trabalho está sempre presente, como revela o entrevistado: 26

Não adianta inventar uma atividade se não vai haver um consumo em resultado daquela atividade. [...] A ideia de fazer uma orquestra na região da Mangueira não é uma questão de brincarmos de orquestra; é algo feito com muita seriedade e, um dia, quem sabe, esses meninos irem para uma orquestra profissional. Se nós chegarmos ao ponto de podermos formar jovens músicos capazes de ir para uma orquestra profissional, então nós vamos pensar em formar uma orquestra filarmônica da Mangueira. Vamos constituir não só um grupo de formação de profissão, mas também de produção e consumo (SÁ, 2011).

Nessa altura da exposição da entrevista, foi abordado um dos importantes interesses deste estudo: O que é preciso ser feito para que os objetivos do projeto sociocultural sejam atingidos? Até aqui várias iniciativas do escopo do projeto, colocadas pelo entrevistado, convergiram para oferecer respostas à questão acima, como os cuidados com as técnicas de ensino musical e, acima de tudo, o aproveitamento pelo mercado de trabalho dos prováveis músicos formados pela Orquestra de Violinos. O ponto crucial apontado por Sá (2011) diz respeito à dimensão humana que fica evidenciada a partir do momento em que o Homem se permite investir no próprio desenvolvimento por meio da aprendizagem artística.

A gente não tem apenas uma imanência; estamos num mundo do qual nos transcendemos, simbolizamos, nos expressamos e, à medida que a criança ganha ferramentas até cognitivas para aprender operar isso aí, ela cresce primeiro como ser humano e, consequentemente, ela se torna um cidadão mais instrumentalizado para os embates políticos e sociais da própria vida [...] a questão do humano que coloco é o cerne, é a busca do próprio desenvolvimento naquilo que é mais humano [...] falo do humano naquilo que, na própria aventura histórica do homem, ele transcende a sua condição de apenas ser um ser biológico e se transforma num ser simbólico. Então, o desenvolvimento humano não pode acontecer se você tem fome, ou se você não tem condições mínimas de subsistência (Sá, 2011).

O discurso do músico acerca do desenvolvimento do indivíduo atrelado às necessidades biológicas, como matar a fome e a sede, por exemplo, vai ao encontro da letra da música Comida, do compositor , onde fica clara a denúncia das precariedades vividas pela população brasileira e do difícil acesso à cultura e ao entretenimento:

A gente não quer só comida/A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/A gente quer saída/ Para qualquer parte/ A gente não quer só comida/ A gente quer bebida/Diversão, balé/ A gente não quer só comida/ A gente quer a vida/ Como a vida quer/ Bebida é água!/ Comida é pasto!/ Você tem sede de que?/Você tem fome de que?/ A gente não quer só comer/ A gente quer comer/ E quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Prá aliviar a dor (TITÃS, 1987)8.

8 A música Comida foi lançada no álbum “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”, em 1987. Composição de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Brito. Letra retirada do site: http://letras.terra.com.br/titas/91453/. 27

Saciar o espírito com a arte implica mais que conhecê-la: apropriar-se dela. Apresentar o projeto aos pais das crianças e jovens é colocá-los em contato com a arte musical clássica e mostrar-lhes que é possível seus filhos alcançarem uma profissionalização por meio de um investimento na aprendizagem musical. Para isso, são feitas reuniões com os responsáveis, e as conversas e as aulas com as crianças vão erradicando a dificuldade inicial, pelo desconhecimento.

Figura 4: Apresentação da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras. Fonte: Acervo do CCC.

Seguindo as vozes do projeto, o próximo encontro deu-se com a orientadora pedagógica e regente da Orquestra de Violinos, Sra. Noemi Uzeda. Em seu relato inical, explicou o quanto o pai a havia influenciado em direção ao trabalho em projetos sociais e no seu desejo de transformar, para, “através da música, “tentar fazer algo melhor no mundo”. Para ela, foi preciso resgatar a união do ato profissional ao trabalho social9. A entrevista de Uzeda foi caracterizada por muita sensibilidade; suas opiniões apontavam para a possibilidade de a música transformar a vida das pessoas que nela se aventuram. Sua preocupação, contudo, é não perder a visão prática e objetiva do ofício técnico do ensino da música, nem esquecer as condições sociais das crianças e jovens inscritos no projeto. A entrevista desmembra-se na questão de haver ou não um paradoxo no fato de o ensino de um instrumento musical elitista ser administrado numa comunidade pobre. Em resposta, ela diz:

9 UZEDA, N. Coordenadora pedagógica e regente da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, no Centro Cultural. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 28

Na verdade não, a técnica que é muito complexa, por isso ela se torna elitista, é necesário muito tempo de investimento de quem vai se dedicar a fazer música, a tocar um instrumento. É uma linguagem de muitos anos de aprendizagem, e ela se torna elitista porque é preciso bastante investimento, e as pessoas que não têm recurso não podem investir muito tempo na educação, pois tem de ter um retorno rápido (UZEDA, 2011).

Ainda explorando as possíveis dificuldades e os entraves no caminho do projeto, perguntei-lhe como ficam as crianças que ou não demonstram possuir um dom musical ou, em demonstrando, não podem continuar no projeto em decorrência dos atropelos da própria vida. Poderiam elas se beneficiarem, de alguma forma, com as aulas de música? “Todas as crianças são beneficiadas, depois que elas, mesmo que seja por um instante, percebem que o som as atingem emocionalmente, elas nunca mais esquecem, mesmo que seja por uma única vez” – explica Uzeda (2011). Para ilustrar suas palavras, conta o caso de um menino muito inquieto, da Orquestra de Violinos, que vivia em meio à violência, como tantas outras crianças da favela dominada pelo tráfico. Em um dos seus encontros, ela colocou o violino no ombro dele e foi tocar o piano para acompanhar o som do violino; ao olhar para o menino, viu que estava chorando e, paralelo a isso, apesar de ser a primeira vez que ele tirava uma nota do violino, o som estava belíssimo devido à boa afinação do instrumento. Ela reparou a expressão facial do menino que abriu a boca e reposou a cabeça no violino,

Ele se abstraiu tanto naquele momento, e o som do instrumento afinado daquele jeito fica bonito, mesmo que seja o primeiro som, que esses cinco minutos iniciais ele nunca mais esquece. Sabe aonde ele estava naquele momento? No céu. É um momento mágico. Se eu consigo que aquele menino se concentre, ele consegue produzir um bom som, essa é a parte mais elevada que nos toca nesse momento (UZEDA, 2011).

Prossegue, narrando que o próprio menino, surpreso com o som bonito que havia acabado de produzir, pergunta para ela: “Eu estou chorando?” Segundo Uzeda (2011), esse é um dos benefícios que a arte pode oferecer, em contraponto às condições de violência e pobreza vividas por crianças que moram em comunidades carentes e dominadas pelo tráfico. Corrobora o pensamento da regente o fato de que, quanto antes forem apresentadas vivências mais altruístas para as crianças, aumentam suas chances de se reerguerem frente aos modelos, em geral, negativos que vivenciam em meio à violência.

Essas crianças muito inquietas são crianças muito aflitas, que vivem essa situação de violência no morro [...] Essas crianças parecem que têm a iminência da morte muito próxima, além de que veem muitas pessoas mortas [...] O íntimo dessas crianças é diferente, então, quando você põe o violino no ombro delas, parece que elas saem disso, no momento da concentração parece que tudo vai embora, se existe uma felicidade ela se torna real (UZEDA 2011). 29

As experiências vividas por Uzeda com crianças portadoras de dificuldades emocionais, demonstradas por comportamentos inquietos e muitas vezes agressivos, contribuem para uma maior compreensão de como é possível quebrar um padrão esteriotipado de comportamento através do despertar da autoestima. Santos explica:

Fala-se na tendência à violencia como algo de dentro do indivíduo, porém ela é também uma reação ante as condições exernas. [...] O fato de as influências sociais operarem muito cedo na vida da criança sugere que uma atenção especial deve ser focalizada no processo de seu desenvolvimento. Valores morais, atitudes sociais e estabilidade emocional podem ser afetados pela experincia social precoce (ou pela sua falta) (SANTOS, 2002, p. 190).

Mais uma vez, diante da pergunta sobre como proceder para que haja algum bom resultado com crianças mais difíceis de lidar, Uzeda (idem) exemplifica uma situação ocorrida com uma menina que antes só fazia bater nas outras crianças, não conversava com ninguém, nem obedecia a outra professora.

Quando eu colocava o violino no ombro dela, ela ficava na paz, era de uma concentração que não dá para acreditar, o som concentra, ela vai tocando, vai sentindo e o próprio som que ela vai fazendo vai interagindo com ela, o som tem um poder fantástico. Por isso a música é um veículo tão maravilhoso. A partir do momento que ela vê que está fazendo bem, então o comportamento dela muda e o comportamento das outras crianças em relação a ela também, antes ninguém conseguia suportá-la [...] Eu comecei a trabalhar coisas com ela muito difíceis, e ela sabia que estava conseguindo, conseguiu coisas que outras colegas mais calmas não conseguiam. Talvez a constituição dela tenha alguma coisa em relação ao som (UZEDA, 2011).

Indagada se o som musical traz mudanças para essas crianças e sobre o modo como o ser humano age diante da produção desse som, Uzeda coloca:

A música é um sistema principalmente mental de organização, e essas crianças, que não têm muita possibilidade de acesso a uma boa educação, se beneficiam dessa organização mental trazida pela música. A linguagem que a gente passa através da música tem um processo tão profundo neuronal que foram feitas pesquisas com crianças que começaram a estudar violino e piano com quatro ou cinco anos, colocando eletrodos, para verificar o que se passa a nível neuronal. Foi descoberto que o cérebro é ativado em lugares que não são ativados por qualquer outra atividade. As pesquisas foram realizadas com crianças que estudaram violino ou piano, porque existe muita atividade na mão esquerda. A sensibilidade na pontinha dos dedos gera umas outras organizações neuronais, diz essa pesquisa da qual estou falando. O que foi verificado é que os neurônios estão organizados de uma outra forma (UZEDA, 2011).

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Para fundamentar o que foi dito sobre a pesquisa mencionada, Uzeda (2011) apresenta um recorte de jornal, de 1998, mostrando a pesquisa do cientista búlgaro Christo Pantev que recebe o seguinte título: “Música na infância causa transformação cerebral”. Até hoje são feitos estudos acerca do assunto, com ênfase, inclusive, na capacidade que o cérebro tem, por ser o único órgão plástico do corpo humano, de expandir ou diminuir (em caso de acidentes ou doenças) sua rede de conexões. A regente (2011) conclui sua explanação sobre os efeitos da aprendizagem do violino na infância, voltando ao caso da menina do projeto que conseguiu uma transformação no seu comportamento.

O som é uma coisa muito forte, é uma concentração tão forte que seu físico está agindo, seu cérebro está agindo, suas terminações nervosas estão agindo de uma forma construtiva e positiva. que fica um recado muito presente. Isso então para essa menina é que a mudou radicalmente, ela estava prestes a ser expulsa da escola, mas, depois que ela sentiu o som, viu que fazia coisas bonitas, melhor do que os outros alunos, porque ela tem uma proximidade do som, ela se modificou. Porém ela não é melhor em tudo, porque continua num abandono no restante da sua vida. Por isso que eu digo a você que a minha colaboração com essas pessoas é só através do possibilitar (UZEDA, 2011).

Num momento anterior da entrevista, Uzeda tece uma crítica quanto ao modo de condução de alguns projetos semelhantes, onde é executado um trabalho superficial com as crianças, não exigindo delas o mais difícil e também não lhes possibilitando “o aprendizado da linguagem musical da forma mais completa”. Compara os projetos sociais que só ensinam de forma superficial a uma postura preconceituosa; para ela, é preciso oferecer um trabalho de qualidade e consistência.

Sem pensar que é porque as crianças não tenham condição econômica, não tenham convívio com a música, não vão conseguir. A maioria das travas é cultural, a maioria dos impedimentos não é da própria linguagem musical, é sempre social, são os preconceitos culturais e econômicos.[...] A resposta na Mangueira é fantástica, a maior dificuldade que eu tive foi lutar contra esse preconceito que estou falando (UZEDA, 2011).

Fala do diferencial do projeto da Orquestra de Violinos, demonstrando uma preocupação com todos os participantes, tanto com aqueles que empreendem maior estudo e dedicação ao instrumento, quanto com os que não possuem tais habilidades.

O diferencial é que nós estamos ensinando de forma intensa e extensa. Quando se atinge a maior quantidade de crianças possível, isso é uma forma extensa [..]. Através do contato com o som, com os instrumentos, eles se têm construído um pouco [...] que, através desse contato, eu tenha conseguido mexer com a 31

sensibilidade e mostrado um pouco de suas possibilidades. A forma intensa se aplica àqueles mais dedicados, aí trabalhamos com mais detalhes, com mais quantidade para que eles consigam obter mais conheicmtno do instrumento (UZEDA, 2011).

Figura 5: Regente da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras. Fonte: Acervo do CCC.

Outra característica do projeto chama atenção: o aprendizado de música clássica num contexto cultural onde ela praticamente inexiste. Sobre o assunto, o coordenador técnico da Orquestra de Violinos, Sr. Leonardo Sá, explicou:

O projeto de uma orquestra de cordas em que a princípio pode se dizer que vai ser totalmente fora do corpo de um centro de samba, ao contrário, se demonstra uma maneira de quebrar esse paradigma de que determinados segmentos fazem e outros não fazem, uns podem e outros não podem, mas de que a música é um patrimônio social. Da mesma maneira que o samba como referência deve ser irradiado para toda a sociedade, também outras manifestações culturais a disposição do patrimônio das sociedades, precisam e devem ser irradiadas para as comunidades que normalmente não tem acesso a elas. Em outras palavras, eu diria também que seria uma forma de ação de inserção, de inclusão social (SÁ, 2011).

Há todo um esforço para empreenderem-se políticas de diversidade cultural a fim de que fiquem ampliados o conhecimento de direito e as oportunidades de pensar e sentir o mundo, segundo as mais variadas formas e expressões culturais e artísticas. Almeida reflete sobre a questão:

O que podemos aprender ao longo de nossas vidas está diretamente relacionado ao nosso repertório de experiências. Portanto, é preciso não privilegiar uma determinada cultura hegemônica, mas criar oportunidades para que os alunos entrem em contato com as mais variadas formas de música, dança, teatro, artes visuais (ALMEIDA, 2001, p. 16).

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As políticas de diversidade citadas já estão aprovadas empiricamente por vários moradores da comunidade, como comprovam as palavras de S.: “Aprender violino é algo que só acrescenta, porque esses meninos e meninas só têm que cantar e dançar funk?”. A filosofia do projeto, pois, afina-se com o que foi dito do seu diferencial, quanto a viabilizar a qualquer criança a possibilidade do contato com a música, com a produção musical da humanidade da melhor qualidade. Uzeda (2011) impressiona-se com o talento do expoente da Orquestra, um menino morador do morro da Mangueira, que rapidamente conseguiu um lugar de destaque na Orquestra e agora já ensina outras crianças a arte de tocarem o instrumento.

O N. tem o rendimento brilhante, até uma outra pessoa de um outro projeto que é muito exigente, que já morou na Europa e conheceu muitos excelentes alunos, disse que nunca viu talento do tamanho do N. É assim muito assombroso, a habilidade física, motora e de compreensão da linguagem da música clássica é incrível (UZEDA, 2011).

Finaliza a entrevista fazendo uma referência ao esforço de toda a equipe de professores em conseguir bons resultados com as crianças do projeto: “A dedicação que esse grupo tem, e ciente de que está fazendo uma coisa boa, a resposta que temos é excelente, não damos uma aula de música fria e preconceituosa” (UZEDA, 2011).

Figura 6: Mães das crianças e dos jovens da Orquestra. Fonte: Acervo Isis Mendes

Ir ao campo (no caso, Centro Cultural Cartola e Mangueira), colher dados de todos os atores, interpretá-los e redigi-los são tarefas programadas na metodologia desta pesquisa. Contudo, é preciso chamar atenção para o fato de que existe, ao lado da expressão verbal dos 33

entrevistados, uma comunicação não verbal no texto – entonação de voz, expressão facial e corporal, alguns silêncios voluntários, olhares significativos, entre outros – que a transcrição fidedigna dos dados gravados não será capaz de traduzir. Como salienta Bourdieu (2003, p. 710): “Sabe-se por exemplo que a ironia, que nasce frequentemente de uma discordância intencional entre a simbólica corporal e a simbólica verbal, ou entre diferentes níveis de enunciação verbal, fica quase inevitavelmente perdida na transcrição”. As entrevistas realizadas com os responsáveis fazem parte da primeira etapa de uma série delas. Inicialmente, é importante destacar dois aspectos observados durante essa etapa: o primeiro revela que, em geral, as crianças e os jovens escolheram participar espontaneamente do projeto da Orquestra de Violinos, ou seja, eles souberam do projeto por algum meio de divulgação, inscreveram-se e continuam ali por livre vontade. Alguns responsáveis disseram que os filhos se aborrecem quando chegam atrasados ou precisam faltar à aula de violino. O segundo aspecto diz respeito aos efeitos positivos que os responsáveis notaram a partir do momento em que seus filhos começaram a frequentar as aulas do projeto da Orquestra de Violinos. Nitidamente se dá uma mudança na forma de pensar, que se reflete na mudança de comportamento, observada com clareza pelos pais, tanto que a maioria cita que o filho conseguiu um maior poder de concentração nas suas atividades. “Ele ficou mais responsável, mais atento com as coisas que acontecem” – diz a mãe de L. Em geral, os responsáveis entrevistados acreditam e depositam esperanças na melhoria de vida para os filhos. Relatam o esforço necessário para levarem os filhos até o Centro Cultural, porque percebem que eles gostam de participar das aulas. Conversam também em casa sobre o que aprenderam e animam-se quando se aproxima a data de alguma apresentação da Orquestra.

Vou ser sincera com você, eu é que não queria, por ser longe, eu ia ter de andar muito, eu perguntava a ela: “Minha filha, você tem certeza?” Ela falava: “Mamãe, eu quero”. Já teve dias que, mesmo com febre alta, ela ia às aulas, e a profesora falava pra mim que não tinha necessidade de vir doente, e eu dizia para a profesora falar isso para ela, pois ela quer vir mesmo doente (M., mãe de S.).

Ela só fala coisas boas, o que aprendeu, o que cantou, fala das notinhas que aprendeu no dia, fala da professora que trata ela bem, que ensina, que incentiva e que também diz que não pode faltar. Ela me diz: “Mãe, não pode faltar, tá?” Sinceramente, eu não esperava, hoje mesmo quando fui com a madrinha dela, a J. estava cantando, sambando, é superdivino e hoje ela me surpreendeu (N., mãe de J.).

Espero que ela venha a tocar mesmo, que ela prossiga nessa carreira. Quando ela está no telefone conversando com a prima, ela toca para a prima escutar (S., avó de T.)

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1.3 O dinamismo do projeto

Cada projeto social tem sua própria dinâmica – eles são “vivos”. Por exemplo, quando se assiste a uma apresentação da Orquestra, pode-se fazer um esforço para imaginar os ensaios realizados, o dinheiro gasto, o tempo utilizado para atingir a performance, todo um caminho trilhado até ali. Acompanhar os participantes nesse esforço é ser, de algum modo, testemunha do processo. Assistir às crianças e aos jovens no palco é revê-los na lembrança, reclamando do cansaço, brincando com os colegas, rindo, confidenciando algo de suas vidas; é escutar as mães falando das dificuldades em levá-los e mostrando-se ansiosas pelo dia de ver os filhos numa apresentação pública. Ali se assiste a todos os votos e histórias de esperança e dor, o pulsar das vidas. A música embala os sonhos dos presentes, sem exceção.

Figura 7: Orquestra de Violinos em frente ao Centro Cultural Cartola. Fonte: acervo do Centro Cultural.

Os dias que antecedem alguma apresentação são agitados pelos preparativos com roupas, horários, ensaios, quem vai, como vai, se o aluno está preparado para tocar bem no dia. Esses momentos antecedem o ponto culminante: a apresentação da Orquestra e o reconhecimento do público e da sociedade. As crianças, em sua maioria, ficam apreensivas quando sabem que alguma figura conhecida do público estará presente ou mesmo participando junto a eles, como é o caso dos artistas músicos que os acompanham. Numa das apresentações da Orquestra, uma das crianças disse como se sentiu no palco: “Antes eu estava nervosa, mas na hora fiquei com vergonha”. 35

As viagens também são pontos altos do projeto e provocam uma euforia natural nos participantes. Eles viajam de avião, sem a família, dormem em hotéis, conhecem outros lugares que, devido a sua condição socioeconômica, seria difícil de acontecer em circunstâncias cotidianas. Nessas ocasiões, as crianças e os jovens sentem o resultado de um investimento próprio e o de outras pessoas (coordenação do projeto, equipe de professores, patrocinadores, responsáveis) e também de parte da sociedade que noticia, assiste e valoriza. Estar próximo a figuras públicas parece também conferir importância às atividades dessas crianças; numa entrevista feita com um dos jovens da Orquestra, ele diz: “Eu conheci o Presidente do Brasil”. Essa fala veio acompanhada de uma forte entonação, de um vigor notável se comparado ao que ele falava antes.

Figura 8 – Governador Sérgio Cabral e os componentes da Orquestra de Violinos (2011). Fonte: Acervo do CCC.

Para reforçar a importância da participação de autoridades governamentais nas apresentações públicas, o Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, recebe a Orquestra Criança Cidadã, formada por crianças da Favela do Coque, da cidade de Recife (PE).

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Figura 9: O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva observa o pequeno músico no Palácio do Planalto, em Brasília (2011)10. Fonte: Acervo do CCC.

A foto de Lula atento à criança que toca violino explicita uma situação bem peculiar: de um lado, um homem que veio do nordeste do Brasil, de origem humilde e se torna presidente do País; de outro, um menino morador de uma favela do Recife, aprendendo um ofício que talvez o leve a presidir a sua vida com melhores condições.

Aproveitando a oportunidade, o maestro Lanfranco Marcelletti Jr. comentou: “Em Pernambuco, um preso custa aos cofres públicos algo em torno dos R$ 2,5 mil. Sem falar que ressocializar esses detentos é difícil. Por menos da metade conseguimos mudar e dar um direcionamento positivo a essas crianças”, finalizou11. A fala do maestro evoca a possibilidade de uma transformação positiva na vida das crianças, através da participação no projeto em questão. Aliás, toda a literatura estudada sobre projetos socioculturais voltados para atividades artísticas, em especial os ligados à aprendizagem musical, mencionava uma gama de benefícios, dentre eles a integração social e a promoção do autoconhecimento, que, quando interligados, conduzem à melhoria das condições de vida dos participantes. Segundo Kater (2004, p. 45), “considerar uma educação musical formadora nos remete a um processo educativo [...] essencialmente desimobilizante”. O autor prossegue, descrevendo as habilidades desenvolvidas no ensino da música:

O desenvolvimento da percepção desconstrução de padrões automatizados, novas formulações, transitividade, inventividade, etc. [...] O exercício de tais capacidades é recurso de autoconhecimento que promove a consciência de comportamentos e também a recriação dinâmica de vínculos, valores, atitudes, contemplando uma formação global, efetiva e integradora (KATER, 2004, p. 45).

Num primeiro momento, parece óbvia essa conclusão, já que são feitos investimentos para o aprendizado de uma profissão e, com isso, amplia-se a possibilidade de melhorar a qualidade de vida. Contudo, a mudança não se restringe somente a esse fato, já que as crianças e os jovens, diante da educação musical, desenvolvem o sentido de cidadania e tem elevada a autoestima. Conforme o trabalho de campo avançava, eram observadas diversas dificuldades enfrentadas pelos participantes do projeto, principalmente as ligadas ao nível socioeconômico baixo e à localização da moradia, ou seja, a par de essas crianças estarem inseridas numa

10 Foto retirada do site: http://www.senadorhumberto.com.br/tag/parque-dona-lindu/

11 Para maiores informações sobre a Orquestra Criança Cidadã, acessar: http://www.associacaocriancacidada.org.br/verMateria.php?id=113. 37

proposta inovadora, elas não ficam imunes aos problemas enfrentados por quem mora num local cujo acesso fica comprometido pela própria aglomeração das moradias construídas em encostas, bem como pela imagem negativa que, por muito tempo, associou favela à marginalidade.

APRESENTAÇÃO DA ORQUESTRA “Aqui no DE VIOLINOS CARTOLA projeto mostra PETROBRAS uma nova forma de enxergar a vida” (N. aluno da orquestra de violinos)

Figura 10: Jovens do projeto Orquestra de Violinos numa apresentação. Fonte: Revista Samba do CCC.

A breve história do nascimento da Orquestra de Violinos, bem como de seu desenvolvimento e do estágio atual, permite entender as lutas objetivas para preservar sua existência, em meio a outras tantas lutas de ordem subjetiva, tema do próximo capítulo.

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2 A FAVELA NA GANGORRA DOS SENTIDOS

Nasceu pobre Nasceu gente nessa guerrilha só mais um sobrevivente e tá no gueto e tá na pista é vilão do asfalto mas no morro é artista.

(Trecho da música 5X favela MV Bill e Afroreggae)

Figura 11: Demolição de cortiços do plano da reforma urbana de Pereira Passos no Rio de Janeiro (1902-1906). Fonte: site www.arquitetonico.ufsc.br. Acesso em: dez. 2011.

Temas referentes a favelas podem tornar-se grande armadilha caso o pesquisador não considere as várias facetas que envolvem o viver nessas comunidades. É preciso, por exemplo, logo de início, estar ciente do tipo de olhar que o pesquisador dirige à favela. Subir morro, descer morro, escutar moradores são partes do ofício, mas, desde as primeiras etapas, existe a possibilidade de incorrer-se num desvio de interpretação da história. Tal preocupação estende-se à observação e à investigação de campo, somando-se ao cuidado com os sujeitos que fazem parte da pesquisa, seja para não constrangê-los com perguntas ou comentários impertinentes, seja para respeitar o ponto limite de suas contribuições. 39

Mais um receio merece atenção: por um lado, o de correr-se o risco de ser piegas e agir com a ingenuidade de abordar apenas o lado lúdico da favela, com sua poesia, sua música, sua cultura; por outro, o de lançar-se um olhar preconceituoso, incapaz de enxergar o cotidiano “comum” das pessoas, o trabalho, o divertimento, a solidariedade, além, é claro, das mazelas, dentre as quais a de maior impacto: a violência, que, na verdade, não se limita às fronteiras do corpo, atingindo o indivíduo em sua integridade.

2.1 Favela, beleza e pobreza: uma estética de contradições

"Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver." (Bertold Brecht)

Figura 12: Subida dos telégrafos - Favela da Mangueira. Fonte: Acervo Isis Mendes.

As contradições do imaginário social acerca da favela coexistem lado a lado como se pode constatar nas palavras de Zaluar & Alvito (2006, p. 8):

A favela sempre inspirou e continua a inspirar tanto o imaginário preconceituoso dos que dela querem se distinguir quanto os tantos poetas e escritores que cantaram suas várias formas de marcar a vida urbana no Rio de Janeiro.

Muitos poetas cantam o lado social da fome, da pobreza e da discriminação, tal como nas músicas Alagados, de , Bi Ribeiro e João Barone, e Eu sou favela, de Noca da e Sérgio Mosca. 40

ALAGADOS

Palafitas, tristes farrapos/ Filhos da mesma agonia/ E a cidade de braços abertos num cartão postal/ Com os punhos fechados da vida real/ Lhes nega a oportunidade/ Mostra a face dura do mal/ Alagados, trench town, favela da Maré/ A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV/ A arte é de viver da fé/ Só não se sabe fé em quê.

EU SOU FAVELA

Sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal, eu falei, A favela nunca foi reduto de marginal, Só tem gente humilde, marginalizada, E essa verdade não sai no jornal, A favela é um problema social, A favela é um problema social. É mas eu sou favela, E posso falar de cadeira, Minha gente é trabalhadeira, E nunca teve assistência social, Sim mas só vive lá, Porque para o pobre não tem outro jeito, Apenas só tem o direito, A um salário de fome, E uma vida normal, A favela é um problema social. Figura 13: Sandra grávida – Favela da Rocinha A favela é um problema social. Rio de Janeiro. Fotografia: André Cypriano (Noca da Portela e Sérgio Mosca) FIGURA: fotografia de André Cypriano e letra da música, Eu sou favela. Figura 13: Sandra Grávida – Favela da Rocinha e letra de música.

A favela é um lugar de contradições; convivem nela a beleza e o horror: da musicalidade de seus poetas ao estridente som da violência. Em meio às belezas e às asperezas, outra realidade se impõe: a da discriminação. Desde os seus primórdios, a favela sofre com o preconceito, e muitos dos seus moradores são taxados de vagabundos e criminosos. A distância entre a população do “asfalto” e os moradores das favelas provoca uma espécie de segregação geográfica, criando uma “cidade partida”, que exclui os moradores da favela de certos bens e serviços oferecidos aos cidadãos do asfalto pelo poder público. Tal fenômeno não está associado à localização em si – morros da cidade – e, sim ao desequilíbrio socioeconômico provocado pelos agentes do mercado de capitais, como alerta Rocha (2005, p. 114): “Ela (a cidade) é cerzida a partir da lógica da produção dos bens públicos, em sua diversidade e, no entanto, partida pela não possibilidade do acesso aos mesmos bens produzidos”. 41

Consciente do contínuo aumento do número das favelas na cidade do Rio de Janeiro, a Prefeitura vem implantando planos de urbanização – o primeiro, o Favela-Bairro, e o atual, o Morar Carioca –, numa tentativa de integrar essas áreas à cidade. Mas nem sempre foi assim; ao contrário, o que foi e é considerado feio sempre precisou ser escondido, tanto das “elites” como das visitas. Davis (2006, p. 112), no livro Planeta favela, cita uma passagem que ele mesmo refere como pouco conhecida: “Durante os preparativos para os jogos de 1936, os nazistas expurgaram impiedosamente os sem-tetos e favelados de áreas de Berlim que talvez pudessem ser avistadas pelos visitantes internacionais”. Alguns dados acerca do processo de favelização no Rio de Janeiro vêm completar as observações feitas no campo de pesquisa. O termo favela, “tal como definido pela agência das Nações Unidas UN-HABITAT, diz respeito a uma área degradada de determinada cidade, caracterizada por moradias precárias, falta de infraestrutura e sem regularização fundiária. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adota a terminologia de “aglomerados subnormais” como forma de “abarcar a diversidade de assentamentos irregulares existentes no País, conhecidos como: favela, invasão, grota, baixada, comunidade, vila, ressaca, mocambo, palafita, entre outros (IBGE, 2011, p. 26). Em relação à História, segundo dados do site do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP)12, o nascimento das favelas no Rio de Janeiro concretizou-se com o desmonte dos cortiços – conglomerados de residências desprovidas de saneamento básico, localizados principalmente no centro da cidade. Chamada de “bota-abaixo”, essa política foi empreendida pelo então prefeito Pereira Passos e tinha o intuito de promover o embelezamento e a abertura de maiores vias de circulação, assim como de sanear a cidade. Valladares explica como os cortiços foram dizimados da cidade do Rio de Janeiro:

Percebido como o espaço por excelência, do contágio das doenças e do vício, sua denúnica e condenação pelo discurso médico-higienista foram seguidas por medidas administrativas: primeiro, uma legislação proibindo a construção de novos cortiços no Rio; em seguida, uma verdadeira “guerra” que resultou na destruição do maior de todos, o ‘Cabeça de Porco’; e finalmente, a grande reforma urbana do prefeito Pereira Passos, entre 1902 e 1906, que se propunha a sanear e civilizar a cidade acabando com as habitações antissanitárias (VALLADARES, 2000, p. 2).

Foi dada a partida para o processo de segregação socioespacial com o deslocamento dos ex-moradores do cortiço para as favelas e periferias do subúrbio e com a ocupação das áreas mais nobres da cidade pelas pessoas da classe média. Coube ao morro da Providência, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, na época, capital da República, o primeiro a

12 http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp. Acesso em jan 2011. 42

abrigar, em 1880, uma população advinda, primeiramente, do Combate de Canudos, no sertão da Bahia, como informa Davis (2006). Eram cerca de dez mil ex-combatentes que, ao retornarem à capital, ocuparam os terrenos do morro como forma de “ pressionar o Ministério da Guerra a lhes pagar os soldos devidos.”, como esclarece Valladares (2000, p. 7).

Figura 14: Morro da Providência, em seu início de favelização.Com a chegada os ex-combatentes de Canudos foi batizado de morro da Favela. Fonte: Site http://blogdochicofurriel.blogspot.com.br/. Acesso em jan. 2012.

Do início do século XX até os dias atuais, houve um aumento expressivo do número de favelas no Rio de Janeiro, com maior intensidade a partir da década de 80, em decorrência de várias mazelas sociais, como: aumento da taxa de desemprego, empobrecimento da população, migração de nordestinos e, em destaque, a desigualdade social. Davis (2006), referindo-se, em especial, ao Brasil, enfatiza a contribuição da desigualdade para o fomento da escassez de recursos de considerada parte da população: “Não se pode responsabilizar a globalização e as políticas neoliberais pela segregação e pela pobreza que são estruturais em um país cuja esfera social é profundamente desigual” (DAVIS, 2006, p. 215). Fator agravante da situação social no País, Santos (2002, p. 61) igualmente afirma que a desigualdade já existente ampliou-se para os ramos “interpessoais, de classes, regionais, internacionais”. A identidade social dos favelados da cidade do Rio de Janeiro sofreu modificações de acordo com o período histórico: de início, o local era conceituado como um agregador de desordens e de doenças e habitado por malandros e desocupados. De acordo com Zaluar e Alvito (2006), não se pode ignorar a tônica de discriminação étnica, contida no texto que revela o resultado do primeiro censo das favelas, realizado em 1948, do então Distrito Federal: “Os ‘pretos’ e ‘pardos’ prevaleciam nas favelas por serem ‘hereditariamente atrasados’, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas” 43

(ZALUAR & ALVITO, 2006, p. 13). O documento oficial do censo, ressaltam os autores, alcança um tom de intenso preconceito:

O preto [...] retornou à estagnação que estiola. [...] Como ele, todos os indivíduos de necessidades primitivas sem amor próprio e sem respeito à própria dignidade – priva-se do essencial à manutenção de um nível de vida decente, mas investe somas relativamente elevadas em indumentária exótica, na gafieira e nos cordões carnavalescos (ZALUAR & ALVITO, 2006, p. 13).

Contudo, nem todos os momentos foram de insultos e de discriminação à população das favelas. Na época da ditadura militar (1964-1985), em especial, foram veiculados textos exaltando as qualidades e o lado da potência de seus moradores. Nas palavras de Boschi (1970, apud ZALUAR & ALVITO, 2006, p. 15), a favela era “um complexo coesivo, extremamente forte em todos os níveis: família, associação voluntária e vizinhança”. Dada a chegada ao Rio de Janeiro do tráfico de drogas, na década de 80, reinaugurou- se o “discurso dualista” acerca das favelas, já ali se viu instalada uma espécie de “quartel general” de traficantes; consequentemente, as favelas passam a ser referência de “covil de bandidos, zona franca do crime, habitat natural das ‘classes perigosas’” (ZALUAR & ALVITO, 2006, p. 15).

Figura 15: Foto aérea da favela da Rocinha. Foto Carlos Cardoso da agência de notícias O Dia.

Com o tráfico e a violência, novamente a favela vê-se evitada, temida e excluída pelos moradores da cidade/asfalto. A partir de 2011, após algumas medidas do governo para a recuperação da paz, o território favela passa a ser objeto de turismo e, mais do que isso, a ser procurado por moradores de classe média que, atraídos não só pela expulsão da bandidagem como também pela vantagem dos preços mais baixos, buscam ali comprar imóveis, principalmente os localizados nas áreas da zona sul da cidade, como se comprova na fala de 44

um administrador de imóveis da Rocinha, ouvida num telejornal carioca: “Todos os dias, moradores da zona sul da cidade ligam em busca de imóveis na favela”13.

2.2 A Mangueira e seu cenário

Hino de Exaltação à Mangueira Mangueira teu cenário é uma beleza Que a natureza criou O morro com seus barracões de zinco Quando amanhece que explendor Todo mundo te conhece ao longe Pelo som dos seus tamborins E o rufar do seu tambor Chegou ô, ô, ô, ô A Mangueira chegou, ô, ô

( de Holanda)

Figura 16: Telégrafos - Favela da Mangueira. Fonte: Acervo Isis Mendes.

A favela da Mangueira é a nona maior do Rio de Janeiro; sua população, segundo dados do projeto favela-bairro14, é de vinte mil habitantes, num total de quatro mil, duzentos e vinte e nove domicílios. É a terceira mais antiga do Estado. As áreas da favela da Mangueira,

13 Disponível no site: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rio-classe-media-se-muda-para-favelas- pacificadas-apos-alta-de-alugueis-na-zona-sul-20120. Acesso em fev. 2012.

14 O programa Favela-Bairro está inserido no escopo da política habitacional do Município do Rio de Janeiro, instituída em 1993, cujo objetivo é construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) das favelas consolidadas e oferecer condições sociais e ambientais de transformação e integração da favela como bairro da cidade. 45

do Chalé, do Parque Candelária, dos Telégrafos e de outros pequenos núcleos populacionais – o Buraco Quente, que tem um caráter cultural, e a Vila Miséria, conhecida pela extrema pobreza dos moradores – compreendem o Complexo da Mangueira. Segundo informações contidas no site do Instituto Pereira Passos (IPP)15, grande parte das pessoas que iniciou a ocupação da Mangueira procedia de Minas Gerais e do Nordeste do país. Os soldados do exército também ocuparam a região por motivos estratégicos militares. Os ocupantes dos prédios onde, mais tarde, passou a funcionar a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) também fomentaram a ocupação da região. Ciente da dualidade em relação à imagem social das favelas – o lirismo e a pobreza – e provida de informações territoriais acerca da comunidade, iniciei o estudo de campo no morro da Mangueira. Embora a imagem poética exista, o registro mais impregnante das favelas, desde o seu início, é de um local habitado por malandros onde impera a pobreza.

Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas hospedarias da Rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda sorte, mulheres sem arrimo de parentes, velhos dos que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio à gente válida, porém, o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus (EDMUNDO apud LICIA, 2000, p. 5).

Apesar de essa imagem corresponder ao início do século XX, data referente aos primeiros barracos alocados na encosta carioca, muito dela ainda permanece nos dias atuais, o que pode justificar os vários tipos de discriminação quanto aos seus moradores. Em entrevista16, a moradora da Mangueira, E., explica: “Nós vivemos numa sociedade muito hipócrita, uma hipocrisia que dói, eu incomodo porque sou crioula e penso, olha quem pediu pra nascer negão, louro etc? ”. Mais adiante, E. aponta a pobreza como uma das marcas do lugar: “Têm famílias que não sabem o que é um vaso, porque não tem vaso sanitário dentro de casa, elas não têm uma visão do amanhã, elas não têm nem um banheiro, elas não têm uma mesa, têm pessoas aqui que nem sabem o que é uma mesa, comem sempre o resto de alguém”. Apesar de os moradores reclamarem de muitas promessas feitas e poucas cumpridas pelos órgãos governamentais, pode-se constatar, pelas informações do SABREN (Sistema de Assentamento de Baixa Renda)17 – que reúne dados sobre moradias consideradas precárias e

15 Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/ipp. Acesso em jan. 2011.

16 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. 17 Dados disponíveis em: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/sabren/index.html Acesso em jan. 2012. 46

informais do Estado do Rio de Janeiro –, um “avanço” da comunidade da Mangueira, onde já existe um projeto implantado de urbanização, ou seja, embora ainda esteja dentro de um sistema de assentamento de baixa renda, pelo critério do Instituto Pereira Passos (IPP), a Mangueira não é mais considerada como “favela” e, sim, como “comunidade urbanizada” desde a implantação do Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais conhecido por Programa Morar Carioca18, em 2010. Esse plano da prefeitura visa garantir uma infraestrutura básica suficiente para uma urbanização a contento dos moradores de assentamentos “precários informais”. Contudo, independente da categoria em que está inserida, para os moradores é o dia a dia da comunidade que importa, com uma realidade dura e melodiosa dos seus becos e vielas. Que “lado” da favela mostrar – o lírico ou o repleto de carências –, depende do propósito da pesquisa. Neste trabalho, estarão lado a lado tanto as condições adversas como os exemplos de uma potência para a transformação e de palco de solidariedade. As palavras de M.19, ex-moradora da Mangueira, traduzem esse sentimento:

Na comunidade você aprende mais com a vida, se aprende o que é e o que não é necessidade, se aprende o que é sacrifício, ter que acordar muito cedo mesmo tendo um baile funk que não deixa você dormir. Você vê filhos de vizinhos que se formam, e isso é muito bonito. Na comunidade não só tem bandido como dizem, mesmo sendo pobres muitos têm oportunidades, a maioria tem. As mães batalham, vendem cachorro quente, cervejas no isopor trabalham em casa de família e isso é a maioria.

Paralelamente, uma questão permeou este trabalho: Como fomentar a potência econômica de uma população exposta à precariedade de infraestrutura, às rudimentares construções residenciais, à violência, ao preconceito pelas condições oriundas da pobreza e por ser morador de favela? Naturalmente que, por serem fatores de longa data que se somam a uma gama de deficiências pessoais e sociais, não se pode, aqui, cair na armadilha de se supor capacitado para falar de soluções definitivas, mas, conforme a pesquisa avançava, ou melhor, conforme as histórias e as formas de viver das pessoas da comunidade foram sendo conhecidas, desvelou-se outro prisma sobre os territórios Mangueira: o espectro do preconceito social que

18 O programa Morar Carioca foi criado em julho de 2010 pela Prefeitura do Rio com o objetivo de promover a inclusão social, através da integração urbana e social completa e definitiva de todas as favelas do Rio até o ano de 2020. Informação disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/smh/exibeconteudo?article-id=1451251. Acesso em jan. 2012.

19 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes no CCC. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 47

recai sobre o morador das favelas direciona-se à ética da cidade, que exclui não só o que teme como também aquilo que, embora não esteja explícito ou concretizado, é produzido por discursos mercadológicos que reforçam apenas o ganho capital. As palavras de Rocha abordam o panorama da segregação social:

Se as favelas são as contradições mais vivas dos modelos de cidade que se espalham pelo mundo, sua circulação prende-se à lógica do consumo e da acumulação do lucro. Porém, são as feridas cada vez mais sangrentas que chocam ainda aqueles que só a veem a partir da janela do asfalto, que facilita a criação perversa da cultura discricionária que consolida a idéia de que a favela e os demais espaços de acumulação da pobreza e da miséria são, automaticamente, classificados como lugares violentos e destinados a tal (ROCHA, 2005, p.115).

“Narciso acha feio o que não é espelho”20, verso contido na música Sampa de , reflete a visão estereotipada dos moradores da cidade/asfato, que tem em seu modelo hegemônico de habitação, de uma representação marginal que se estende do território ao indivíduo. Partindo de toda uma realidade constatada e com o objetivo de conhecer os significados que sustentam ações e interações que constituem a realidade de um grupo social focado, alguns tópicos foram observados no trabalho de campo, numa união de duas estratégias: a observação direta das pessoas por certo período de tempo e a realização de entrevistas, quer programadas, quer espontâneas, efetuadas durante os contatos pessoais com elas. As diversidades de assuntos a serem explorados, no primeiro momento, fizeram com que esses temas fossem subdivididos, conforme os materiais coletados em campo.

Sobre a economia da favela da Mangueira Muitos dos problemas cotidianos da Mangueira – acúmulo de lixo nas encostas, falta de caçambas para recolhimento, falta d’água em residências, problemas de saneamento, esgoto a céu aberto – estão narrados num documentário21, que apresenta a fala de E., agente social e moradora, sobre a importância de medidas que realmente venham a deliberar as deficiências locais:

20 Letra disponível em: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/41670/. Acesso em jan. 2012.

21 MOREIRA, Anita; PIVETTA, César Lucas. O Complexo da Mangueira. Acervo de Pesquisa e documentação Cartola, Rio de Janeiro, 2010. Vídeo de apresentação da realidade socioeconômica do Complexo da Mangueira para a reunião de 21 de agosto de 2010, com lideranças da comunidade. Estavam presentes a Ministra Márcia Lopes, da pasta de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e a Ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Vídeo do Centro de Pesquisa e Documentação Cartola. 48

Estamos nos preparando para a nossa copa, eu me sinto honrada, mas não me sinto tão honrada se cair as encostas e matar os moradores da Mangueira. 2014 passa bonito e eu quero viver 2010, eu quero uma realidade que eu vivo ela diariamente, porque eu acredito que o dia que todos nós não importe aonde estivermos, mas cada um de nós tivermos consciência do dever que nós estamos desenvolvendo em cada cargo e cumprir ele corretamente, eu acredito que a gente vai ter um mundo bem melhor.

Quanto ao problema do lixo na favela da Mangueira – um dos principais, uma vez que seu acúmulo pode vir a desencadear desabamentos de partes da encosta e de barracos –, o filme apresenta a sugestão da Keila, moradora e aluna do Projeto “Mulheres construindo um novo Rio”, cujo objetivo é dar qualificação profissional em construção civil, realizado no Centro Cultural Cartola em parceria com o Município do Rio de Janeiro. Ela aponta a importância da conscientização dos moradores sobre os problemas causados pelo hábito de espalharem-se lixos por terrenos improvisados e também sugere a construção de uma usina de reciclagem, onde os próprios moradores poderiam trabalhar. Tal iniciativa, sob o seu ponto de vista, não só acabaria com o problema como também geraria uma fonte de renda. Chama atenção o fato de K., assim como de outros moradores, pensarem mudanças que abarquem soluções a curto, médio e longo prazo, numa promoção em mais de um nível: social, humano, educativo, profissional. Ressaltando a importância de medidas que venham a minimizar os males da disseminação do lixo, o prefeito do Rio de Janeiro, Sr. Eduardo Paes, por ocasião da inauguração de um novo modelo de coleta de lixo, que se deu após a implantação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), em 2011, relata: “O nosso esforço é qualificar a prestação de serviço do dia a dia. E a coleta de lixo talvez seja o mais importante deles”. Se, por um lado, se espera do Estado medidas que contemplem moradia, saneamento, segurança, educação – e outras que venham a promover condições mais dignas para os moradores das favelas –, por outro, enquanto isso não ocorre de modo mais efetivo, devido, sobretudo, à extensão dos problemas, espera-se dos projetos sociais ali existentes a iniciativa de qualificação para o trabalho. Neste ponto, vale a pena ressaltar que, na esfera do terceiro setor, as medidas tomadas, se podem dar conta de uma formação profissional, não visam a solucionar, efetivamente, problemas crônicos quanto aos déficits de condições mais dignas de vida relacionadas aos direitos básicos do viver, como aponta o documentário de Milton Tendler sobre o geógrafo , onde este diz:

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O Estado, através do exercício da política, a tendência dele é cuidar de todos, de todas as pessoas, e essa produção democrática que as ONG’s ou terceiros setores não podem, pela sua própria definição, cuidar porque tem a limitação de sua origem, de seu financiamento, dos seus objetivos. Então, o Estado se torna algo cada vez mais indispensável porque as fontes criadoras de diferença, de desigualdade são hoje muito mais fortes do que no passado, então para desmanchar essas diferenças, para reduzir essas desigualdades, é necessário o Estado intervir, o Estado socializante, por conseguinte (TENDLER, 2007).

Paralelamente, além das iniciativas de ordem prática, a população marginalizada anseia por outras que lhes possam minimizar os efeitos dos preconceitos que sofrem, sobretudo as que os re-situam no fluxo da economia social. Ao ser perguntada, em entrevista22, sobre a vida econômica da Mangueira, S. prontamente lista vários tipos de estabelecimentos comerciais presentes no morro, principalmente bares e biroscas, incluindo o seu. Sua casa é moradia e trabalho, e, enquanto a entrevista acontecia, fregueses chegavam à procura de cigarros ou de alguma bebida.

Figura 17: S. na porta da sua casa. Fonte: Acervo Isis Mendes.

S. lamenta a derrubada de muitas barracas de bebidas e lanches que existiam embaixo do viaduto, porém acredita que, após as novas instalações comerciais ficarem prontas em substituição às antigas, o local ficará mais bonito e atrairá mais fregueses, principalmente os que frequentam a quadra da escola de samba. E isso tudo, continua S., proporcionará maiores ganhos aos antigos barraqueiros que já têm os seus cadastros feitos pela prefeitura.

22 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. 50

Figura 18: Derrubada de comércio irregular num espaço público da Mangueira. Fonte: http://jornalanovademocracia.blogspot.com.br. Acesso em jan. 2012.

Por sua vez, M.23 reclama sobre o preço alto do aluguel que paga pelo barraco; sente- se explorada: “Ele (o proprietário) sabe da minha luta, deveria cobrar menos, logo eu vou ter o meu canto nem que precise sair daqui”. Sobre a particularidade da economia envolvendo a locação nas favelas e o que isso acarreta, Davis informa:

A locação, na verdade, é uma relação social fundamental e divisiva na vida favelada do mundo todo. É o principal modo para os pobres urbanos gerarem renda com o seu patrimônio (formal ou informal), mas, com freqüência, numa relação de exploração de pessoas ainda mais pobres (DAVIS, 2006, p. 52).

Em todos os níveis, existem modos de apresentar-se o que é “valorizado”, seja no aspecto humano, seja no material; dessa forma, aqueles que, por algum motivo, não se enquadram no padrão aceito pela sociedade são “deixados de fora”, excluídos do “negócio”. Grande parte da população que mora em favelas sofre esse efeito, o que produz novas formas de exclusão e preconceito – exclusão produzida pelo critério do mercado, entendido por Canclini (2005) como “lógica organizadora das interações sociais”. Fora da categoria de entidade, o mercado, prossegue o autor, é o modo “de organizar a circulação de bens, mensagens e serviços como mercadorias, que tende na atualidade a reduzir as interações sociais ao seu valor econômico de troca” (CANCLINI, 2005, p. 127).

23 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. 51

Sobre o preconceito Nos encontros dos grupos com as crianças da Orquestra de Violinos, não foi difícil constatar que elas são capazes de apontarem certas precariedades de outras crianças, sem, contudo, mencionarem as próprias. Tal conduta promove uma hierarquia entre elas; assim, a criança que mora na “invasão”24 é discriminada pelas que moram no morro da Mangueira e, dependendo da região do morro onde moram, essa discriminação também existe. A criança que morava na invasão se mostrava envergonhada quando uma colega do grupo fazia a “denúncia”: “Tia, ela mora na invasão”; nesse momento, a criança apontada tentava defender- se de alguma forma, ora dizendo que estava morando com algum parente, ora mudando de assunto. A exclusão é encontrada em vários segmentos da vida dos indivíduos, ela pode estar inserida nas áreas da cultura, da religião, do gênero, da etnia, da economia. Tratando-se de moradores de áreas “desprivilegiadas” dos grandes centros urbanos, a evolução histórica vem explicar as desigualdades, porém não justificá-las. Preconceitos sociais e descasos do poder público em relação às pessoas que vivem em favelas talvez acentuem essa característica que, num efeito direto e indireto, produz violência, como mencionado por Velho:

A impossibilidade de acesso da grande maioria das camadas populares a bens e valores largamente publicizados, através da mídia e da cultura de massas em geral, acirra a tensão e o ódio sociais. A inadequação de meios legítimos para realizar essas aspirações fortalece o mundo do crime (VELHO, 2000, p. 20).

A exclusão circunscrita à pobreza é um fenômeno da globalização como afirma Santos (2002), adjetivada por ele de “estrutural”. Pobreza produzida com a “colaboração consciente dos governos nacionais” e com a conivência dos “intelectuais” que forjam aparência de naturalidade aos quadros de necessidade e indigência das populações pobres. Se antes a pobreza era “local” hoje ela é globalizada, produzida política e cientificamente e considerada natural. Nos últimos cinqüenta anos do século passado, os pobres receberam três designações, “foram já incluídos e, depois, marginalizados, e acabam por ser o que hoje são, isto é, excluídos.” (SANTOS, 2002, p. 74). Nessa mais recente forma, o status social dos indivíduos é medido de acordo com a “potência de consumo”, a cultura do consumo tatua nos indivíduos o seu lugar na sociedade.

24 Termo utilizado por crianças e jovens do morro como sinônimo do prédio abandonado do IBGE, que fica ao lado do Centro Cultural Cartola (CCC). 52

S.25 aborda diretamente o preconceito dirigido a quem mora em favela:

A gente sente muita diferença quando as pessoas falam dos moradores de favela, por exemplo, a gente vê isso quando trabalhamos fora, em alguma repartição ou algum supermercado. Eu mesma já trabalhei em mercado e sempre ouço uma conversinha: isso é coisa de favelado, tá pensando que sou favelado, não moro no morro não. Então tem sempre um preconceito (S., 2011).

A fala de M., também moradora, aborda os dois pontos mais contrastantes quando o assunto é favela. Com ar de revolta, ela fala sobre a discriminação sofrida pelos moradores, mas também sobre o maior tesouro dos morros: a música.

Olha, minha filha, esse pessoal vem pra cá comer feijoada, comprar drogas e ouvir do nosso samba, mas, quando a gente está na área deles, eles te olham de lado, parece que a gente é bicho, que não tem educação. Se alguém gritar e xingar, mesmo sem conhecer, eles dizem que é favelado.

A música funciona como meio privilegiado para mostrar o quanto a favela é discriminada e também o quanto ela tem de beleza, o quanto é habitável por gente “decente” e trabalhadora – contrapondo-se à imagem difundida de berço de malandragem. Mas a simplicidade é um modo de vida que não exclui a apreciação das “boas coisas”. O samba de Leandro Sapucahy apresenta poeticamente a favela:

Meu nome é Favela

Eu sempre fui assim mesmo/Firmeza total e pureza no coração/ Eu sempre fui assim mesmo/ Parceiro fiel que não deixa na mão/É o meu jeito de ser/Falar com geral e ir a qualquer lugar/E é tão normal de me ver/Tomando cerveja calçando chinelo no bar/Não dá pra evitar bate papo informal/Quando saio pra comprar o pão/Falar de futebol/E do que tá rolando de novo na televisão/Suburbano nato com muito orgulho. Mostro no sorriso nosso clima de subúrbio/Eu gosto de fritada e jogar uma pelada/Domingo de sol/E fazer churrasquinho com a linha esticada/no poste passando cerol/Cantar partido alto no morro,/no asfalto sem discriminação porque/Meu nome é favela/é do povo do gueto a minha raiz/Becos e vielas/Eu encanto e canto uma história feliz/De humildade verdadeira/Gente simples de primeira./Salve ela o meu nome como é/Meu nome é favela/é do povo, do gueto, a minha raiz/Becos e vielas/Eu encanto e canto/uma história feliz/De humildade verdadeira/Gente simples de primeira.

Numa matéria feita pela revista Exame ON LINE26, de 20/09/2011, acerca do mutirão feito por homens do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e por funcionários da

25 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011.

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Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), após a instalação da UPP (Unidade de polícia pacificadora), para retirada do lixo acumulado nos prédios do antigo IBGE, onde reside uma média de duzentas pessoas, a fala de um dos soldados participantes da operação testemunha as condições subhumanas vividas por essas pessoas: “É desumano, isso aqui, sim, é violência”. Violência conseqüente também da desconsideração “instituída” nas relações humanas, como o individualismo manifestado em vários segmentos da nossa sociedade, a falta de cooperação com o outro, a coisificação das pessoas, ou seja, o indivíduo tratando o outro como objeto são “estilos” de vida da nossa sociedade atual que constitui, segundo Milton Santos (2002) uma forma de desrespeito às pessoas.

Figura 19: Crianças em meio ao lixo jogado numa das encostas do Morro. Acervo: Isis Mendes.

Sobre a violência Cabe registrar que o interesse desta pesquisa não recai sobre o fenômeno da violência, seja por sua complexidade sociohistórica, seja pelo objeto primeiro do estudo; porém, em diversos momentos e de diversas formas, ela se presentificou nos relatos dos entrevistados, nas observações do campo e no material pesquisado. Diante dessas experiências, a violência ocupa um lugar que merece atenção do pesquisador por influenciar o modo de vida das pessoas que fazem parte do estudo e ocupam o território da Mangueira, especificamente. Acreditar que a violência é apenas decorrente de fatos pontuais e desconectados de um sistema social mais abrangente e, ademais, que possui a característica de evento “natural” dos tempos atuais retira de cena o que Santos (2002) chama de “violência estrutural”, ou, nas palavras do autor, “central”, “original” e produtora das outras violências. Nesse seu estudo a

26 Disponível em: http://exame.abril.com.br/economia/meio-ambiente-e-energia/noticias/mutirao-retira-lixo-da-favela-da- mangueira-no-rio--2. Acesso em outubro de 2011. 54

respeito dos efeitos da globalização, Santos (2002, p. 57) ainda se refere a um mundo reconstruído por uma engrenagem perversa, que tem a competitividade virulenta, pautada numa ambição de “conquista de melhor posição”, como prática que abate “os valores morais e é um convite ao exercício da violência”. Essa competitividade, baseada no uso da força, parece configurar-se como “indispensável para competir e fazer mais dinheiro; vem acompanhada pela desnecessidade de responsabilidade perante o outro, a coletividade próxima e a humanidade, em geral” (SANTOS, 2002, p. 58). Quando o homem não mais se preocupa com o semelhante e o ato de ganhar do outro, seja esse outro quem for, passa a ser uma das grandes realizações da vida, instaura-se na sociedade um estado de desamparo, de medo e de violência, fomentado pela falta de “solidariedade”. Uma das formas mais visíveis de violência são as condições precárias vividas por determinados segmentos da população, submetidos ao discurso do mercado global, porém materializados por meio do tráfico, das batidas policiais, do desemprego, da falta de infraestrutura e da fome. Velho (2000) revela o modelo de sistema sociopolítico brasileiro é insuficiente para atender a uma grande fração da população, pela inoperância da cidadania. Os relatos de algumas crianças do projeto da Orquestra de Violinos chamam atenção. Por exemplo: um dia foi-lhes pedido que desenhassem o local onde moravam. P., de oito anos, desenhou o que seria a sua casa e acrescentou uma caveira em frente da porta da entrada. E completou: “Tia, não fala a palavra caveira que ela pode aparecer na sua casa”. Novamente, foi-lhe pedido que explicasse o curioso desenho. P., então, relatou que, de vez em quando, vê corpos próximos a sua casa. Ao falar sobre o assunto, sua voz soava trêmula, denunciando o medo que sente e que vem a tona em algumas situações de confronto.

Figura 20: Policiamento no morro da Mangueira. Fonte: www.extra.globo.com acesso em abr. 2012.

Outro exemplo resume uma manhã de trabalho de campo no Centro Cultural Cartola. Após ver-me de costas para o morro e defronte a policiais armados, tal como um escudo humano, consegui chegar à Escola de Samba, onde as crianças, que antes estavam aguardando 55

no Centro Cultural Cartola, se encontravam enfileiras junto da mãe comunitária27, que explicou o motivo daquela atitude: uma funcionária da escola lhe telefonou avisando sobre a chegada da polícia no morro e lhe deu a ordem de voltar para a escola com as crianças por motivo de segurança, pois poderia haver tiroteio. As crianças demonstravam apreensão, não respondendo às brincadeiras. A cena delas, no meio do caminho, entre a entrada do morro, onde estavam os policiais, e o Centro Cultural Cartola, onde deveriam ter aula de violino, fez aumentar o meu interesse sobre as reais condições da comunidade da Mangueira. Esse “meio caminho” foi um divisor de águas: antes, o foco deste trabalho estava unicamente nas realizações do projeto; agora, voltou-se para a compreensão de como a história de vida daquele grupo contrapõe-se entre a dureza da realidade e a beleza do contato com a música clássica. Tais episódios ocorridos no trabalho de campo tiveram importância crucial para intensificarem minha aproximação com as crianças e os jovens da Orquestra, todos igualmente vítimas das mesmas, ou de bem piores, circunstâncias. Após definir o novo objeto de estudo, a primeira pergunta feita foi: Numa localidade onde existem problemas tão graves que expõem os locais a um risco eminente, de ordem pessoal e social, qual o alcance das ações pertinentes a um projeto sociocultural? Sob a égide da violência e do medo, e com o empuxo do temor e da imagem projetada em tom carmim para todo o mundo, o Estado inaugura medidas pacificadoras não só dos lugares problemáticos como da própria imagem, vista, até então, como omissa e subjugada. Palco de futuros eventos internacionais (Olimpíadas e Copa do Mundo), a cidade do Rio de Janeiro segue com sua preocupação em minimizar a violência, adotando medidas que objetivam extinguir o tráfico nas favelas e garantir a segurança dos moradores e dos futuros visitantes. A implantação das UPP’s (Unidade de Polícia Pacificadora) veio acompanhada das reivindicações dos moradores das áreas transformadas, tais como, saúde, educação e saneamento. O passo seguinte tem sido, pois, inaugurar as UPP’s Sociais, cujas ações incluem: “recuperação de espaços públicos; regularização urbana, de serviços e de negócios; oportunidades para a juventude; e iniciativas cidadãs, culturais, esportivas e de lazer”28 – medidas que também objetivam a transformação do preconceito em inclusão social dos moradores no plano da cidade/asfalto.

27 Mãe comunitária é a designação atribuída a uma pessoa, que de preferência more na comunidade, incumbida de fazer ponte entre a escola, o seu entorno e as famílias.

28 Disponível no site: http://www.uppsocial.com.br/o-projeto. Acesso em fev. 2012. 56

Em dado momento da execução da pesquisa, novembro de 2011, instaura-se, na área da comunidade da Mangueira, um ato da Secretaria de Segurança do Estado que alteraria o fenômeno da violência oriundo do tráfico de drogas: o policiamento comunitário. Segundo a reportagem29, a UPP da Mangueira é a décima oitava unidade, sendo a maior do Rio de Janeiro em número de policiais, abarcando um contingente de quatrocentos e três militares que, além de policiar aquele território específico, também zela pela segurança de mais sete comunidades adjacentes, beneficiando, aproximadamente, vinte mil moradores. À época da inauguração da unidade pacificadora, ficou explicitada a importância estratégica da retirada do tráfico em localidade próxima ao Estádio do Maracanã, palco de alguns jogos da Copa do Mundo de futebol, em 2014, conforme comprova a reportagem “Polícia inaugura maior UPP do Rio e fecha o cinturão de segurança em torno do Maracanã”, exibida pela Rede Record Rio30, em 03/11/2011, às 12h50min. S.31, moradora da Mangueira, em relação às mudanças ali ocorridas após a instalação da UPP, diz:

Só que agora a gente não vê mais gente armada, foi isso que mudou, de resto está tudo a mesma coisa. A violência diminuiu, mas eles vêm com a UPP e enganam a gente, vem com a UPP, mas não vêm com uma infraestrutura para fazer benefício de nada. Veio aí o homem da Light para a gente pagar a luz; acabaram com a tevê a cabo, agora quem quiser a cabo tem de pagar um dinheirão.

M.32, outra antiga moradora, fala que “o lugar ficou mais calmo, mas tem o resto que eles prometeram fazer, já que não adianta só tirar bandido e deixar tudo como está”. Em relação a esse “tudo”, ela explica que é “o problema do lixo espalhado, a falta de atendimento médico na área e o esgoto que ainda corre por vários lugares do Morro”. Os moradores aproveitaram a presença das autoridades, à época da instalação da UPP, para pedirem melhorias na comunidade, principalmente aquelas ligadas à educação, à saúde e ao saneamento, numa clara demonstração do quanto lhes incomoda a ausência de ações sociais mais prementes por parte das esferas do governo do Estado. E, mesmo havendo

29 Disponível no site: http://g1.globo.com/videos/rio-de-janeiro/v/maior-upp-do-rio-de-janeiro-e-inaugurada-na- mangueira/1684341/#/Todos%20os%20vídeos/page/1. Acesso em jan. 2012.

30 Disponível em: http://videos.r7.com/inauguracao-da-upp-da-mangueira-rj-fecha-cinturao-de-seguranca-no- maracana/idmedia/4eb2a7cce4b0db8bdb058a17.html. Acesso em jan 2012.

31 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011.

32 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. 57

confusão dos reais direitos a serem reivindicados, como no caso da TV a cabo, o povo computa ao escalão do governo o poder para organizar a vida em sociedade, pois depende disso a melhoria da qualidade de vida. O interessante é que, em geral, as reivindicações dizem respeito a tomadas de decisões que fogem ao raio de ação de um cidadão comum para recaírem sobre a autoridade, como no caso de redes de esgoto e de instalação de escolas e creches.

Sobre a proposta sociocultural

Sabe-se que a violência, na maioria das vezes, caminha de mãos dadas com o tráfico de drogas existente nas favelas. Tal constatação causa grande impacto na vida dos moradores que vivem, diariamente, expostos à violência quer por da parte dos traficantes, quer por parte dos policiais. Numa entrevista dada ao programa Contraponto33, a professora Angela Paiva, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-RIO, afirma que o convívio com a violência interfere no aprendizado e no rendimento escolar dos alunos. A essa situação outra se acrescenta: pessoas que residem no “asfalto” se dirigirem ao morador de favela como se ele, por morar ali, fosse um bandido em potencial, pela proximidade inevitável com os marginais e pela condição de pobreza que facilitaria a entrada no crime. Por causa disso, toda vez que um projeto social se instaura, a expectativa dos envolvidos é a de que ele vem para “tirar crianças e jovens da rua”. Essa ideia, aliás, é muito difundida pela população e, inclusive, tornou-se foco de preocupação de grande parte dos responsáveis pelas crianças e jovens do projeto da orquestra de violinos. Por ocasião das entrevistas, por exemplo, testemunhei os esforços dos responsáveis de alguns alunos para não deixar os filhos à toa na rua, para colocá-los em atividades que ocupem quase todo o seu dia. Assim, inscrever os filhos em projetos sociais, além de ser investimento para um futuro mais promissor, parece ser também uma questão de preservação de vidas. Iniciativas que venham a minimizar qualquer situação que envolva o tráfico e a violência são muito bem- vindas, como se verifica na fala da mãe de D.34: “Eu acho bom pelo espaço que está sendo utilizado, talvez, se não tivesse isso aqui, poderia estar sendo ocupado com pessoas se

33 Este programa faz parte do documentário a respeito da violência nas favelas do Rio de Janeiro, exibido na TV PUC RIO.

34 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na residência da entrevistada, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. 58

drogando, fazendo coisas erradas. Então eu acho que todo espaço que você pode ocupar, principalmente, para cultura é bom”. Entretanto, o simples fato de tirar a criança da rua, ocupando-a com atividades, não garante sua exclusão da vida do crime. O ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos, Sr. Leonardo Sá (2011), apontou o fracasso de tal estratégia:

A ideia de que esse projeto existe para tirar a criança da rua ou do tráfico ou da droga é um discurso vazio. [...] O fato é que se existe tráfico, por exemplo: o tráfico não existe por si, ele existe porque também é resultado de alguma ausência. Existem necessidades humanas que são supridas de um jeito ou de outro então, quando o Estado se ausenta, ou se omite, ou falha, ele deixa um lugar vazio e esse lugar vazio é ocupado por alguém. [...] O projeto não tira da rua, ele negocia outro espaço e ele tem que se tornar sedutor o bastante para que a criança opte em ir para ele. Mas, a criança não vai para ele assim direto, com certeza, é uma alternativa, existem questões.

As ações empreendidas pelos projetos socioculturais dependem, em larga escala, das políticas públicas e também do mercado de trabalho. Ressalta-se também a necessidade de se conhecer a realidade social, cultural e econômica da comunidade para onde os esforços convergem; com isso, os objetivos podem ser mais facilmente atingidos.

Figura 21: Brincadeira de meninos (Foto de João Luiz Bulcão).

2.3 As vozes da Mangueira

Como é viver na Mangueira? Como são sentidos os problemas da comunidade? Como a Mangueira é referida dentro da própria Mangueira? O caminho aqui adotado para responder a essas indagações foi ouvir seus moradores; para isso, foram selecionadas pessoas que, além de serem moradores antigos, queriam dar seu depoimento e deixar registradas as histórias consideradas relevantes para esta pesquisa. 59

A primeira moradora entrevistada é agente social e mãe comunitária da Escola Humberto de Campos, Senhora E35. Com presença marcante, E. possui um tom de voz forte, alto; sua fala é acompanhada pelo olhar – não desvia atenção das ideias nem do interlocutor. É ela quem leva as crianças da escola Humberto de Campos para o Centro Cultural Cartola, com o fim de terem aula de violino e de participarem do grupo, apelidado “de conversa”. As crianças obedecem-na apenas por um único chamado. Embora com atitudes de autoridade, E. demonstra carinho e grande senso de humor, como numa passagem contada por ela na entrevista:

Elas me respeitam, elas me amam, eu nem acredito quando elas falam que gostam da tia E. pra caramba. Às vezes, eles vêm e faz um carinho na minha cabeça e eu pergunto: O que é? Tá botando piolho na minha cabeça? Ou me oferecem uma bala, aí eu pergunto: Por quê? A bala tá com chumbinho? Eles falam: Poxa, minha tia E. é demais. [...] Eles não são meus filhos que saíram de dentro de mim, mas, cada instante que estou com eles, eu tenho uma posição de mãe. (E. 2011)

Há várias passagens na entrevista de E. que demonstram o alto grau de coesão e de solidariedade referenciado pelos moradores mais pobres da comunidade:

Eu vivo a realidade do Quilombo. Eu sei quem é o meu vizinho que tá com fome. Eu sei quem é o meu vizinho que tá doente, que precisa de ajuda e que ele não tá tirando onda contigo de te pedir ajuda à toa, ele está falando pra você que está com fome, que ele necessita. Que é diferente de você morar e não viver essa realidade e é diferente de você morar e viver ela. Eu divido o que tenho. Eu, por exemplo, eu não preciso botar um quilo de feijão no fogo, mas eu já botei 1,5 kg pra dividir com outros que estavam com fome, tá entendendo? Porque eu vi que aquela pessoa tá sentindo fome. (E. 2011)

Mencionando os problemas vividos pela população do morro, E. relata, principalmente, as péssimas condições de saneamento com problemas de esgoto correndo ao “céu aberto”, e também aponta a inoperância por parte de alguns órgãos do poder público, com ações inacabadas e sem o conhecimento mais profundo das deficiências da localidade: “Mas não fazem nada. Não atingem aquele que está precisando. Porque não respeitam a pauta daquele que está vivendo ali. Se aquele que está vivendo ali tá falando pra dar prioridade a isso aqui primeiro, você não tem que dar prioridade ao que você acha” (E. 2011).

35 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, na Escola Humberto de Campos, no Morro da Mangueira. Rio de Janeiro, 2011. A referida escola, inaugurada, pessoalmente, pelo prefeito Pedro Ernesto, em 1936, no Buraco Quente, foi a primeira escola pública construída numa favela do Rio de Janeiro. Um sinal de prestígio dos sambistas e da comunidade da Mangueira junto aos administradores da cidade. Na sua inauguração, estiveram presentes moradores ilustres da Mangueira, Carlos Cachaça, Cartola, Dona Neuma... (Informação colhida no painel exposto no hall de entrada, durante visita feita por mim à escola). 60

E. destaca um importante ponto relacionado à interação das pessoas de fora da comunidade, que produzem algum tipo de trabalho com os moradores. O modo de chegar, de falar, tem importância vital para a aceitação e a compreensão desses “estranhos”. E esse é um fato considerado relevante em todo o andamento da pesquisa, baseada, em grande parte, nos depoimentos tanto dos moradores da comunidade da Mangueira como de outros atores implicados no trabalho da orquestra de violinos. Exemplificando o que foi dito por ela:

Você (a pesquisadora), que é formada, você está colocando vários assuntos. Você não tem que ser técnica, você tem que ser objetiva e, dentro desse objetivo, você não está mexendo em dicionário. Você tem que expor aquilo que você quer e tem que falar a linguagem deles. Você já reparou que tem pessoas ali que são até analfabetas, então você vai usar uma linguagem para que aquelas pessoas te entendam. Ela pode ser analfabeta, mas elas entendem o que você fala (E. 2011).

Em resposta ao questionamento sobre a importância do projeto da Orquestra de Violinos na vida das crianças, ela prontamente diz que o enxerga como uma “oportunidade” para essas crianças e jovens.

Caso consiga atingir a todos, amém. Caso não atinja a todos, será atingido quem tem que ser atingido. Eu acho esses projetos fundamentais. Eu gostaria que todos seguissem, eu passaria até mal se fossem todos. Mas, mesmo assim, quando alguns estiverem se apresentando, o restante vão ver e aplaudir na plateia. A partir daí, você não estará mais lidando com o tolo e, sim, com o consciente. Ele vai olhar e dizer “eu fiz parte”, mas não era pra mim. Mas, hoje eu estou sentado aqui vendo o meu amigo, então a gente conseguiu, nós conseguimos (E. 2011).

E. engaja-se nas questões sociais da comunidade e mostra-se autêntica ao colocar seu pensamento, suas opiniões. As observações comentadas por ela para este estudo não tiveram importância apenas pelo valor informativo, mas, sobretudo, por demonstrarem o espírito de luta e de “potência” dos moradores. Em meio às incursões à Mangueira, após indicação, tive acesso a uma mulher, de nome Márcia, que atende pelo apelido Guezinha – mais conhecido que o nome de batismo. Pertencente a uma família tradicional do morro, neta do primeiro presidente da Escola de Samba da Mangueira, o Sr. Saturnino, e filha da conhecida e respeitada D. Neuma, Guezinha é pessoa simpática e sorridente. Recebe-me com hospitalidade e me mostra toda a casa e os retratos da família. Ao final da entrevista, coincidindo com o fim de tarde, serve-me um delicioso café e, como se não bastassem as gentilezas, me leva até o ponto de ônibus com um guarda-chuva, para proteger-me da eventual tempestade. Divertida, alegre, hospitaleira e 61

solícita, Guezinha, além de autorizar a divulgação da sua imagem, fornece uma entrevista prazerosa e com bastantes conteúdos. Guezinha começa a entrevista contando sobre o passado de sua família no morro da Mangueira, da vinda do seu avô, Saturnino, para a favela, trazido por Cartola. Ela tem mais quatro irmãos, todos nascidos ali. Menciona que seu avô fora um dos fundadores, e primeiro presidente, da Escola de Samba da Mangueira. Justifica esse cargo por ele ter habilidade para escrever e por ser “falante”. Sua mãe, como conta a entrevistada, “era uma figura muito popular; ela teve aqui na Mangueira oitenta e cinco afilhados”. Acrescenta várias passagens que ilustra a popularidade e o lado acolhedor da mãe, que se torna um exemplo para grande parte da comunidade:

Quando alguma vizinha ia ter bebê, às vezes não dava tempo de a ambulância chegar, nascia aqui em casa mesmo. Se ela falasse: “eu vou votar em fulano”, todos votavam, a D. Neuma falou e acabou. [...] Se ela visse uma criança indo para escola sem merenda ela levava para casa e fazia um lanche para ela [...] (GUEZINHA, 2011)

Sobre os problemas da favela da Mangueira, Guezinha os aponta com muito cuidado, porém não abre mão de expor os incômodos, referindo-se com tristeza a grande quantidade de lixo espalhada pelo morro, mas salienta que isso também é de grande responsabilidade dos moradores. Apesar da sua queixa o lado positivo de morar na comunidade se mostra muito mais visível, informa que os serviços do governo chegam até lá, como o serviço de coleta de lixo, água, luz, creches, escolas, posto médico; “nós não podemos reclamar de nada”. Menciona o lado da união existente na comunidade, o que torna mais uma característica agradável do local,

Se eu não abrir a janela, os vizinhos logo batem na porta, preocupados [...] Se morre alguém, providenciam tudo, até a capela. São todos muito unidos, avisam a todos o horário da capela, horário do enterro, é só falar pra um e todos se mobilizam. Independente da religião, qualquer problema você nunca está sozinha. Eu não me acostumaria morar em outro lugar (GUEZINHA, 2011).

Voltando a mencionar os incômodos enfrentados pelos moradores do morro da Mangueira, ela frisa o problema maior que é a do saneamento e o lixo espalhado, e são esses os únicos problemas que a associação não está dando conta, “o problema é lixo e esgoto”. Continua expondo esse grande problema da população do morro, citando com mais detalhes como acontece a prestação do serviço de coleta de lixo pela Comlurb e sugere uma solução:

62

A Comlurb não tem dias definidos na semana para recolhimento, às vezes, pasam duas vezes no mesmo dia, outras vezes ficam três dias sem recolher. Não temos também um local apropriado em pontos diversos para o morador despejar seu lixo. A caçamba não resolveria o problema, tem que ter lugar com bastante espaço para todos colocarem o seu lixo, tendo isso o próprio morador fiscalizaria quando alguém colocasse o lixo em qualquer lugar. Nós temos aqui o gari comunitário, ele sobe o morro, limpa e desce com o lixo, mas não dá vazão (GUEZINHA, 2011).

Relata a quantidade de moscas e ratos que assola a favela: “Saio do samba e chego em casa sambando, batendo o pé para espantar os ratos no caminho, nós temos sorte de não pegarmos doenças por causa de ratos e de mosca, Deus protege. [...] Fora isso, morar na comunidade é uma delícia” (GUEZINHA, 2011).

Figura 22: Guezinha na varanda de sua casa. Acervo: Isis Mendes.

Diante do questionamento de como é a convivência da comunidade com o tráfico de drogas, ainda vigente à época da entrevista, ela responde de um modo breve: “O negócio é tão sério que a gente acostuma, assim como em qualquer outro lugar que exista, é muito sério mesmo, mas deixa isso pra lá. O tráfico é digno de pena, os pais cuidam dos filhos com todo carinho para depois perderem para o tráfico” (GUEZINHA, 2011). A Escola de Samba é um elemento de orgulho para a comunidade e para ela, explica efusivamente alguns aspectos da escola e da sua participação,

Das doze escolas a desfilar, a Mangueira tem mais fama, mas o poder aquisitivo é menor. Naquilo que a gente se propõe a fazer a gente faz, melhor do que a gente não tem [...] Com a garra que a gente tem ia dar sempre Mangueira. [...] Sou presidente da ala “Au, au, au”. Esse nome é porque na minha época a gíria do morro era au, au, au, quando passava uma mulata bonita. Veio a ideia daí e está até hoje. Tem a ala das Mimosas, tem a ala das “Depois eu digo”, porque a presidente da ala falava muito isso. Tudo na escola tem uma história (GUEZINHA, 2011).

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É visível o orgulho dos moradores da Mangueira quando é atribuído à região o berço de famosos e talentosos poetas do samba, como Cartola, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, e tantos outros filhos ilustres da arte e do morro. Para prestigiarem um projeto sociocultural cuja base é a música, os moradores da Mangueira não enxergam obstáculos; em seu imaginário, mesmo quando em confronto com a realidade, a musicalidade se faz presente, seja nas canções dos seus artistas mais expoentes (Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Sargento...), seja nas lembranças pessoais advindas das alegrias com a Escola de Samba. Ao falar sobre o quanto é positiva a existência de um projeto de música clássica na região da Mangueira, Nogueira (2011) justifica a aceitação desse gênero musical: “Isso (o ensino dos clássicos) na Mangueira seria ótimo, pois lá a música está muito presente, a possibilidade musical na Mangueira é muito alta por causa do próprio samba”.

Figura 23: Velha Guarda da Mangueira. Fonte: modernalaparetro.blogspot.com. Acesso em dez. 2011

Violência, preconceito, falta de recursos econômicos, pobreza, todos esses fatores juntos, a princípio, seriam obstáculos intransponíveis para o acesso à cultura. Mas nada disso conseguiu impedir o florescer da Orquestra de Violinos. Em meio à violência, os atos de solidariedade; em meio à discriminação, o orgulho de ser herdeiro dos maiores poetas do samba; em meio ao lixo, a riqueza dos sonhos de mudança do destino. Se os contrastes se sucedem tal qual numa gangorra, algo de maior fica: a certeza de que a educação e a autoestima são frutos de investimentos no bem mais precioso da humanidade, o homem.

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3 A MÚSICA EM PROJETOS SOCIOCULTURAIS

Brasil Por favor, preste atenção Saúde, terra, educação São as vigas mestras do País

Brasil O teu proceder lhe insulta Mas a juventude vai à luta Para te fazer feliz

(Trecho da letra Conversando com o Brasil, de Nelson Sargento)36

Figura 24: Nelson Sargento e aluno da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola. Fonte: Acervo do CCC.

A letra da canção de Nelson Sargento revela alguns dos problemas sociais do Brasil e aponta o desamparo com que o Estado trata os “filhos” que ficam à margem dos direitos e das políticas sociais mais eficazes. Mas não é só isso, pois indica também a solução: a força presente da juventude. Indo além, pode-se dizer que, ao colocar-se em comunhão com a força da juventude, Sargento deixa transparecer a potência do artista que é, quando faz uso de sua maior “arma”, a arte musical, para denunciar tais circunstâncias. Segundo Freud, em seu texto “Mal-estar na cultura” (1930), de importância crucial para os estudos sociológicos, dentre vários fatores característicos da civilização, destaca a utilidade das realizações do homem com o fim de protegerem-se contra as forças da natureza, por tornarem a vida mais proveitosa e demais outros proveitos, com a ressalva de que essa característica de ordem prática é necessária, mas não é a proeminente. Conforme explica, não

36 Disponível em: http://letras.terra.com.br/nelson-sargento/1922371/. Acesso em jan 2012. 65

há outro aspecto que pareça “caracterizar melhor a civilização do que sua estima e seu incentivo em relação às mais elevadas atividades mentais do homem – suas realizações intelectuais, científicas e artísticas” (FREUD, 1930, p. 114). Pelo pensamento freudiano, a arte é uma das realizações das capacidades que caracteriza o homem como um ser de cultura. A arte subverte a lógica da utilidade. A arte não tem funcionalidade. O poeta , em seu livro Sobre nada, desvela a despretensão funcional da poesia: “O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora” (BARROS, 1996, pretexto). “Perder o nada é um empobrecimento” (BARRO, 1996, p. 63). A arte nada diz, nada revela, não se prende a significados; ao contrário, convoca como na seguinte passagem:

Sabemos que a religião, a ciência e a arte são formas sublimatórias que concernem ao sujeito na sua elaboração de saber em torno do vazio. No entanto, só a arte não pretende tamponar este vazio com uma verdade estabelecida. Muito ao contrário, ela o convoca exigindo do sujeito seu dizer (Texto de apresentação s/ nome de autor, 2003, p. 7).

Muitos críticos e artistas, ao longo do tempo, defenderam a ideia de que a arte não “necessita, para legitimar a sua existência, de se colocar ao serviço da polis moral, da filosofia etc.” (SILVA, 1976, pp. 81-82). Em outras palavras, ela não possuiria finalidade prática, apenas estética, e, portanto, não teria a obrigação de ser utilitária em referência a qualquer setor da vida, inclusive o social. A arte seria justificada pelo fazer artístico em si mesmo; daí a expressão “arte pela arte”. Silva (1976, p. 129) explica que, após as perguntas lançadas, em 1948, por Jean-Paul Sartre – o que é escrever?; por que escrever?; para quem escrever? –, a literatura rendeu-se às novas reflexões e passou a considerar o enfoque utilitário da arte, com duas vertentes: a da literatura comprometida (defesa de valores por livre arbítrio do escritor) e a da literatura dirigida (defesa de valores impostos por algum poder, em geral o político). Evidentemente, a proposta do presente capítulo não é abranger e/ou conciliar os diversos pontos conceituais acerca da função da arte, mas, sim, levantar uma discussão: sabendo-se que, cada vez mais, a arte é utilizada numa enorme gama de projetos sociais que visam à superação das adversidades vividas por uma camada da população carente de recursos simbólicos e materiais, até que ponto a música influencia na transformação de vidas? Desdobrando, haveria uma “função para o uso da música” em projetos sociais, já que, em si, ela não é artigo de utilidade? 66

Tais indagações suscitaram um breve estudo de alguns estilos musicais, no que eles têm de singular no mundo das artes.

Figura 25: Violinista da Mangueira. Desenho feito por Francisco Mendes.

3.1 A estética e a utilidade da expressão musical

O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.

(Manoel de Barros)

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Figuras 26, 27 e 28: Orquestra Sinfônica Brasileira. Fonte: http://www.flickr.com. Acesso em jan. 2012 ; Banda Móveis Coloniais de Acaju. Fonte: musica.terra.com.br. Acesso em jan. 2012.; Samba de roda, respectivamente. Fonte: charmedance.blogspot.com. Acesso em jan. 2012.

A música – expressão artística cantada em prosa e verso, falada, declamada, desejada, inventada e de difícil definição – comporta tantos conceitos atribuídos a ela que precisar um é correr o risco de ceifar algum desses sentidos, como em Moraes:

Para muita gente – inclusive para quem fisiologicamente não pode ouvir – tudo pode ser música: o movimento mudo das constelações em contínua expansão, a escola que passa sambando, um jogo, o pulsar cadenciado do coração seu ou alheio, um rito, um grito, o canto coletivo que dá mais força ao trabalho [...]. Pois música é antes de mais nada, movimento. E sentimento ou consciência do espaço-tempo. Ritmo; sons, silêncios e ruídos. Música é igualmente tensão e relaxamento, expectativa preenchida ou não. [...] Música: alturas, intensidades, timbres e durações peculiar maneira de sentir e de pensar (MORAES, 1983, p. 7).

Moraes (1983) catalogou divergências e sensibilidades de diversos músicos acerca da complexidade em definir a música. Por exemplo, para Wolfang Amadeus Mozart, “assim como as paixões, violentas ou não, jamais devem ser expressas de forma a produzir asco, a música, ainda que nas situações as mais terríveis, nunca deve ofender o ouvido, mas agradar, continuar a ser música, enfim” (MOZART apud MORAES, idem, p. 45). Já para o compositor John Cage ela remete ao som despretensioso:

Se eu quero ‘a vida enquanto arte’, corro o risco de cair no estetismo, porque tenho o ar de pretender impor alguma coisa, uma certa idéia da vida. Parece-me que a música – ao menos tal, como a encaro – não impõe nada. Ela pode ter como efeito mudar nossa maneira de ver, fazer-nos olhar como sendo arte tudo o que nos cerca. Mas isso, não é um fim. Os sons não têm um fim! Eles são, simplesmente. Eles vivem. A música é esta vida dos sons, esta participação dos sons na vida, que pode tornar-se – mas não voluntariamente – uma participação da vida nos sons. Nela mesma, a música não nos obriga a nada (CAGE apud MORAES, idem, p. 45).

A exultante apreciação do romancista Thomas Mann vem assim exposta: 68

Grande é o mistério da música. Pela sua natureza simultaneamente sensual e supra- sensual, pela sua espantosa reunião de rigor e de sonho, de moralidade e magia de razão e sentimento, de dia e noite, ela é sem dúvida alguma a mais sedutora manifestação da cultura e da humanidade, a mais profunda e, no plano filosófico, a mais inquietante (MANN apud MORAES, 1983, p. 40).

Moraes (1983, p. 41) ainda ressalta uma das referências de Mann à transcendência da música, que opera numa vertente onde habitam e convivem as contradições da alma humana e dos mistérios do mundo espiritual, cujos espíritos malignos encontram uma amálgama. Daí a música ser descrita como “uma rigorosa ciência divina”, onde a técnica convive com o irracional. Mann continua e aponta a missão apaziguadora da música: “Em terríveis sofrimentos ela procura, sempre e novamente, recobrar essa noção religiosa; uma esperança apaixonada em um mundo melhor e mais justo, mais justo em todas as acepções e também no sentido de um equilíbrio humano mais feliz” (MANN apud MORAES, 1983, p. 42). Essa missão/definição da música sob a ótica da linguagem literária demonstra uma preocupação humanitária. A citação de Mann, por ousada associação, reflete o terceiro parágrafo da constituição brasileira de 1988, que versa sobre um dos objetivos da República – a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”37. A revelação das desigualdades, das injustiças e das misérias sociais apresenta-se em diversos gêneros musicais, ou ainda em movimentos socioculturais, que utilizam a canção como instrumento de denúncia das “violências” sofridas pelos desassistidos. São muitas as composições que vêm evidenciar as mazelas socioculturais de norte a sul do Brasil. Na atualidade, podem-se citar compositores brasileiros como Caetano Veloso (Haiti), Chico Buarque (O meu guri), Gabriel o Pensador (Dança do desempregado), (É fim de mês), ao lado de tantos outros que se firmaram no final do século XX e início do XXI, como os rappers e os mcs (mestres de cerimônias). Daí a importância do hip hop, cujas mensagens centram-se em denúncias sobre a pobreza, o racismo, a injustiça e as desigualdades discriminatórias da sociedade. Foschi (2007) informa que, na verdade, o hip hop não é um gênero musical, mas tem na música e na dança um potente meio de expressão das suas ideias. Rose (1997 apud FOSHI, 2007) compreende o surgimento do hip hop como construção alternativa de identidade “e de status social para jovens numa comunidade, cujas antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores importantes” (FOSHI, 2007, p. 62).

37 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em fev. 2012. 69

A relevância do movimento evidencia-se pela atividade artística como um norte à cidadania. Diz Foshi: “Ele (hip hop) busca conscientizar, educar, humanizar, promover, instruir e divertir os moradores da periferia, além de reivindicar direitos e o respeito a esse povo” (idem, p. 63). Cantado pelos rappers, o hip hop, assim da sua chegada ao Brasil nos anos de 1980, não portava a característica de “luta social”, mas, em pouco tempo, as suas letras já refletiam as frágeis condições de vida que eram impostas, principalmente, pelo descaso do poder público, aos mais “desafortunados” da sociedade.

Figura 29: Rapper brasileiro MV Bill recebendo o Prêmio “Verde das Américas”, 2011, na categoria “Direitos Humanos”. Fonte: greenmeeting.org. Acesso em jan. 2012.

Gênero musical resultante da fusão de vários ritmos nacionais e da música negra norte americana (black music), o funk se firmou como um poderoso meio de inclusão social de jovens da periferia. Segundo o então Ministro da Cultura do governo Dilma Rousseff, Sr. Juca Ferreira (2011), o funk é alvo de preconceito por ser um “fenômeno cultural ligado à construção da identidade da juventude pobre e urbana no Brasil”. A isso, podem-se acrescentar mais dois fatores: estar associado ao tráfico de drogas e revelar letras cheias de sensualidade38. No site de relacionamentos da internet foi postada uma imagem que pode sugerir várias interpretações, porém o que fica muito visível é a ideia de embate e intolerância cultural.

38 Juca Ferreira em encontro com funkeiros no Circo Voador – Rio de Janeiro em setembro de 2011. 70

Figura 30: Retirada do álbum de fotos da página Clínica do deficiente mental, Fonte: Facebook. Abril de 2012.

Para Yúdice, essa específica importância do movimento funk está ligada ao prazer: “A música e a dança funk têm sido um meio de se obter prazer, algo que muitas vezes falta aos movimentos sociais ou aos relatos a seu respeito, escritos pela maioria dos cientistas sociais” (YÚDICE, 2004, p. 158). Freud, em “O mal-estar na cultura” (1930), refere-se ao prazer como sendo uma das metas pretendidas pelo homem e pela qual ele imprime empenho em suas realizações. Nesse sentido, o prazer conta importância para a formação da cultura de um povo. Prazer com o ritmo, com a dança, com a letra, numa manifestação explícita do gosto musical e das vivências cotidianas dos jovens favelados, em geral desrespeitadas pela separação morro/asfalto e pelas “atuais condições produtoras de segregação baseadas em fatores pós-modernos e econômicos imbricados com a lei de mercado” (YÚDICE, 2004, p. 158). Dada à pertinência de suas ações cidadãs, como forma de valorização da cultura e como meio de promover o sentimento de pertença dos jovens favelados e de criar possibilidades para a aquisição do respeito aos seus valores, o funk luta para ser considerado, oficialmente, uma manifestação cultural carioca e brasileira pelo Ministério da Cultura39. Yúdice (2004) cita os usos da cultura nos movimentos sociais brasileiros, ao ressaltar os trabalhos dos ativistas do Grupo Cultural AfroReggae (GCAR), que, com suas principais atrações, a banda de música e a dança, realizam um trabalho direcionado à conquista da

39 Disponível no site do ministério da cultura, http://www.cultura.gov.br/site/2009/09/22/encontro-com- funkeiros/. Acesso em fev. 2012.

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cidadania em todas as raias de pertencimento. Numa das inúmeras letras do grupo40, pode-se constatar a relevância da cultura como mediadora ética entre os indivíduos:

Iguais sobrepondo iguais

A cultura é o principal instrumento da mudança mais forte do que nunca esta a nossa esperança respeito ao próximo e não mais iguais sobrepondo iguais.

Mesmo em meio a todo um trabalho de inclusão, há os críticos desse uso diferenciado da cultura que, em alguns segmentos, se prestaria a realizar certas funções sociais que, a princípio, caberiam ao Estado. O Centro Cultural Cartola seria um exemplo disso, à medida que inscreve o sujeito como um artista reconhecido na sociedade. Dito de outra forma existe um receio generalizado de que tais instituições tirariam do Estado a responsabilidade de arcar com o efetivo processo de Educação dos seus cidadãos, transferindo para a sociedade civil e para setores não governamentais ações da esfera pública. Yúdice (2004) refere-se à esfera diferencial dos usos da cultura como recurso capaz de gerar e de atrair investimentos para o desenvolvimento econômico nos setores do turismo, indústrias culturais e organizações produtoras de cultura acopladas a projetos sociais, os quais, por sua vez, possuem a característica de transformarem as atividades culturais em propriedade intelectual. Yúdice (2004) ocupa-se em descrever os aspectos da cultura atingidos pelas políticas globalizadas, vindo a servir aos interesses econômicos sociopolíticos. Acerca da discussão sobre acréscimos e desvios do papel tradicional da cultura e da arte, ele destaca uma esclarecedora crítica feita por Larson41: Não mais restritas unicamente às esferas sancionadas da cultura, as artes poderiam ser literalmente espalhadas por toda a estrutura cívica, encontrando seu lugar numa variedade de serviços comunitários e atividades de desenvolvimento econômico – de programas para a juventude e prevenção ao crime até o treinamento profissional e relações raciais – bem longe das funções estéticas tradicionais das artes. Esse papel adicional também pode ser visto nas várias novas parcerias que as organizações artísticas assumiram nos últimos anos, [...] todas servindo para dar proeminência aos aspectos utilitários das artes na sociedade contemporânea (LARSON, G, 1997 apud YÚDICE, 2004, p. 27).

40 Disponível no site, http://www.musiconline.xpg.com.br/letras/afroreggae/iguais-sobrepondo-iguais/9334. Acesso em fev. 2012.

41 Gary O. Larson, crítico americano, gerencia o Centro para Democracia Digital "Dot-Commons". 72

Yúdice (2004) não deixa de fora o que ele denomina de “Ong-ização” das produções culturais, ou seja, tal expressão objetiva deixar evidente a possibilidade de limitarem-se as práticas culturais à performatividade circunscrita aos modelos das ONG’s: “A minha preocupação é que a prática cultural corre o risco de responder a injuções performativas que deixam pouco espaço para experiência que não se adéquam a uma ilustração ong-izada de desenvolvimento, de valor, de autoestima e assim por diante” (Yúdice, 2004, p. 213). Em meio a esse emaranhado de exaltação e crítica ao trabalho social realizado pelo terceiro setor, que tem o binômio arte/cultura como agente potencializador da cidadania, o presente estudo volta-se para as vivências da ONG Centro Cultural Cartola, berço do projeto da Orquestra de Violinos.

3.2 Centro Cultural Cartola: lugar de abrigo de cultura(s) e de luta social

Todo tempo que eu viver só me fascina você, Mangueira Guerreei na juventude, fiz por você o que pude, Mangueira Continuam nossas lutas, podam-se os galhos, colhem-se as frutas e outra vez se semeia e no fim desse labor, surge outro compositor, com o mesmo sangue na veia.

(Trecho da música No tom da Mangueira, de Cartola)

Figura 31: Fachada do Centro Cultural Cartola. Acervo do CCC.

No início da pesquisa foi objetivado um trabalho de observação do local, com suas peculiaridades e dinâmica de funcionamento. A realização da tarefa deu-se com todo o cuidado prescrito na metodologia da observação participante, cujo início enfatiza a 73

negociação da presença do pesquisador, incluindo o estabelecimento de uma harmoniosa interação com os atores locais. Conforme Lapassade:

Entende-se também por negociação de acesso ao terreno o trabalho efetuado pelo pesquisador para adquirir a confiança das pessoas a fim de que elas aceitem abrir-se realmente ao entrevistador, e mesmo colaborar com ele (LAPASSADE, 2005, p. 289).

Logo nas primeiras incursões, o que chamava atenção era a amplitude do local42, com largos espaços para comportar estudo, pesquisa e trabalho; alunos dos projetos e seus familiares, funcionários, pesquisadores vindos de fora em busca de informações, visitantes oficiais, dentre outros, todos compunham o mesmo ambiente.

Desde 2003, o Centro Cultural Cartola ocupa uma área de sete mil metros quadrados na Rua Visconde de Niterói, na Mangueira, em prédio desativado do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cedido pelo Ministério da Cultura43.

Em uma das salas, há a exposição permanente de artefatos artísticos do samba – fantasias, adereços, vídeo mostrando uma parte da vida do Cartola, símbolos que contam uma parte da história do samba e da própria Mangueira. A sala espelha a preocupação da Nilcemar com a preservação da história cultural do samba, como ela mesma conta ao responder sobre a história da fundação do Centro Cultural:

O CCC foi criado a partir de uma inquietação em relação à manutenção de memória das pessoas que ajudaram a construir a história da Mangueira, e uma dessas pessoas é o meu avô - Cartola. Eu via a história da contribuição dele para o samba, para a Mangueira, desaparecendo, então eu ficava pensando em criar um aparelho para servir de lugar de memória que pudesse manter essa história viva, difundir isso para as novas gerações e foi essa inquietação que fez surgir o CCC. (SAYONARA, 2011)44

O Centro Cultural possui dois andares, com várias salas onde acontecem as aulas dos projetos; no primeiro, acolhe-se quem chega com suas demandas de visita e ficam abrigados alguns espaços importantes: a exposição do samba, o ensaio da Orquestra de Violinos, o Telecentro, a sala de psicologia, a secretaria, o pátio das aulas em aberto; no segundo, a área fica reservada aos pesquisadores e ao pessoal administrativo.

42 O CCC foi inaugurado em 2001, num espaço bem menor do que vem a ocupar hoje, embora no mesmo lugar, e com uma construção mais modesta.

43 Informação retirada do Portfólio do Centro Cultural Cartola, cedido pela pesquisadora Sayonara, em outubro de 2011. 44 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, jan. 2011. 74

Figura 32: Um dos espaços do Centro Cultural, utilizado para o ensaio da Orquestra. Acervo de Isis Mendes.

Figura 33: Telecentro – alunos nas aulas de informática. Acervo CCC.

Os administradores estão atentos às necessidades mais prementes e, por isso, o CCC não é lugar estático, fechado para novas ideias. Prova disso é o espaço dedicado ao atendimento de crianças e jovens da Orquestra de Violinos, aberto após uma pesquisa de mestrado da atual psicóloga do Centro Cultural, Edna Chernicharo45, que conta como se deu esse processo: De todos os projetos, se tinha uma briga no Griô me chamavam para resolver. O caso mais interessante aconteceu numa reunião de mães aqui dentro dessa sala (sala onde ela faz atendimentos) e tinha uma menina chorando e a irmã batendo na menina e eu fiquei meio dividida e me perguntei qual o meu lugar ali, se interfiro ou não interfiro, foi aí que defini bem o meu papel aqui no CCC que é o de psicóloga mesmo e não de consultora organizacional [...] Então hoje o Centro Cultural Cartola tem um consultório de psicanálise, isso foi sendo construído, foi se constituindo em função da minha formação de psicanalista. (2011)

45 CHERNICHARO, Edna. Psicóloga do Centro Cultural Cartola. Realizou, entre 2008 e 2010, o curso de Mestrado em Psicologia Social no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social na Uerj, com orientação da professora Regina Glória Nunes Andrade. Título da dissertação – Cartola-grafia: “Causa” do Centro Cultural Cartola. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, out. 2010. 75

Com “pistas” do caminho dos artistas em sua jornada no samba, as paredes do Centro Cultural Cartola contam histórias que vêm ilustradas pela exposição dos quadros com fotos de figuras importantes do mundo do samba. Os visitantes param para ver artistas como Cartola, Ismael Silva, Donga, Carlos Cachaça. O trabalho dos funcionários do primeiro pavimento indica uma função de apoio a todos os projetos que ali acontecem, como também aos trabalhos de pesquisa realizados nas salas do andar de cima, que aloca os pesquisadores, secretária, a atual diretora executiva e coordenadora dos projetos sociais – a fundadora, na verdade. Há os espaços para aulas, palestra, biblioteca e reuniões. Andares sobrepostos em trabalhos alinhados. Para além da amplidão e divisão dos espaços, salta aos olhos a determinação e o empenho de todos os envolvidos na conquista dos objetivos já alinhavados desde a fundação do Centro Cultural com a preservação da memória do samba. Consta no portfólio:

O Centro Cultural Cartola desenvolve ainda projetos de pesquisa, tendo sido responsável pela instrução do dossiê que legou ao samba o reconhecimento como Patrimônio Imaterial Brasileiro. Desde janeiro de 2009, com o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Centro Cultural Cartola passou a Pontão de Memória do Samba Carioca, instituindo um centro de referência de pesquisa e de documentação do samba do Rio de Janeiro. (Dados do Portfólio).

A iniciativa de salvaguarda da história do samba é crucial para a manutenção e o fortalecimento cultural do povo carioca e brasileiro. Essa salvaguarda se dá em várias frentes: catalogação de livros, de documentos e de fotos; projeção de filmes e de vídeos; gravação de depoimentos de sambistas.

Figura 34: Um dos quadros expostos no CCC – Cartola e D. Zica. Fonte: Acervo Isis Mendes.

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Figura 35: Quadros expostos no Centro Cultural com as fotos dos sambistas Donga e Ismael Silva Fonte: Acervo Isis Mendes.

As gravações realizadas no CCC com figuras ilustres do samba, como Mestre Mug, Monarco, Nelson Sargento, Noca da Portela, Sérgio Jamelão, e tantos outros nomes importantes, destacam-se por reproduzirem, para as gerações futuras, a história do samba permeada com detalhes cheios de vivacidade vividos pelos sambistas – tive na época o privilégio de assistir a alguns depoimentos. Enfatizando a relevância do projeto, o jornalista Aloy Jupiara afirma:

Este projeto é essencial para aprendermos (porque parece que esquecemos) a respeitar esses sambistas e suas tradições. Tudo que está aí agora, isso que chamam de ‘o maior espetáculo da terra’, não existiria sem eles, seus ais, seus avós. É uma herança deles (JUPIARA, 2009, p. 58).

Figura 36: Projeto matrizes do Samba. Fonte: Acervo do Centro Cultual Cartola

Hall (2003) relata que as sociedades multiculturais apresentam problemas em relação às diversidades e ressalta a importância “de estratégias e políticas adotadas para governar ou 77

administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais” (HALL, 2003, p. 52). Nogueira (2011) refere-se à iniciativa de preservação do samba como uma luta: “A luta é exatamente essa: ver o samba como expressão cultural que ele é”. Tal atitude, juntamente com outras propostas do CCC, prioriza a memória cultural dos símbolos de um povo, formando um contramovimento local que vai de encontro ao apagamento de tradições, operado pelas engrenagens globais da modernidade que, além de outros prejuízos às sociedades, provoca o “colapso de todas as identidades culturais” (SOARES, 1998, p. 5).

Figura 37: Integrantes, professor e regente em momentos antes do início do ensaio da Orquestra de Violinos. Fonte: Acervo Isis Mendes.

Construindo projetos sociais voltados para a diversidade cultural, o Centro Cultural “oferece à comunidade da Mangueira e adjacências a promoção da cidadania por meio da educação e da cultura, através de oficinas de teatro, dança, música, poesia, além de atividades socioeducativas e esportivas” (Dados do Portfólio). Mas, como ensinar violino a crianças e jovens pertencentes à outra cultura musical? – pergunta comum diante da ousadia de um projeto sociocultural cuja base é ensinar instrumentos de música clássica a crianças carentes. Antes de imaginar-se tamanho investimento, o mais fácil seria pensar num determinismo cultural, blindando possibilidades de expansão do indivíduo às diversas áreas da arte e da cultura e esbarrando no preconceito social e cultural.

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Figura 38: II Seminário do Samba. Fonte: Acervo do Centro Cultural Cartola

Em divergência a posturas preconceituosas, o depoimento cedido à revista Samba do Centro Cultural Cartola (2008, p. 46), o então secretário dos Pontos de Cultura46, do Ministério da Cultura, Célio Turino, diz que o que salta aos olhos no projeto da Orquestra de Violinos é justamente o fato de “contrastar música erudita e cultura popular”. Vive-se um momento onde esforços dos governos nacionais e internacionais pretendem minar, por acordos e políticas públicas, os efeitos avassaladores da discriminação não apenas quanto às diferenças de etnia, de raça, de padrão econômico quanto também às de cultura. Lopes & Calabre (2005), ao organizarem o livro Diversidade cultural brasileira, chamam atenção para o fato de que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), ao reconhecer a importância de produção, uso e expressão das diversas formas de todas as categorias culturais dos povos, lança a concepção da diversidade cultural em uma dimensão que “amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; pois ela é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente como crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva moral e espiritual satisfatória” (LOPES & CALABRE, 2005, contracapa). Compreende-se com mais clareza a complexidade dos temas relativos à diversidade cultural quando é colocada a questão da valorização das práticas culturais de etnias ainda

46 Pontos de Cultura são entidades reconhecidas, que recebem apoio financeiro e institucional do Ministério da Cultura e desenvolvem ações de impacto sociocultural em suas comunidades. Não têm um modelo único, nem de instalações físicas, nem de programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão compartilhada entre poder público e comunidade. Podem ser instalados em uma casa, ou em um grande centro cultural. A partir desses Pontos, desencadeia-se um processo orgânico, agregando novos agentes e parceiros, e identificando novos pontos de apoio: a escola mais próxima, o salão da igreja, a sede da sociedade amigos do bairro, ou mesmo a garagem de algum voluntário. Informação disponível no site do Ministério da Cultura. http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura/. Acesso em jan. 2012. 79

castigadas por preconceitos, como as dos afro-descendentes, nordestinos e indígenas, no caso do Brasil.

Figura 39: Piano de ¼ de cauda doado pelo músico Wagner Tiso ao Centro Cultural Cartola. Fonte: Acervo: Isis Mendes

Diante da quantidade inesgotável de expressões artísticas advindas de vários grupos de todo o território nacional, qual barreira estaria, então, erguida frente às crianças e jovens moradores de favelas para o aprendizado de música clássica? Segundo a regente da Orquestra47, o preconceito é social, como afirma,

Pensar que é porque as crianças não têm condição econômica, não têm convívio que elas não conseguem. Acho que não se pode ter uma postura preconceituosa. [...], na verdade a maioria das travas é cultural, a maioria dos impedimentos não é da própria linguagem musical, é sempre social, são preconceitos culturais e preconceitos econômicos (UZEDA, 2011).

Ernest Grossi (2011), no artigo História da arte, ressalta aspectos da inteligência musical, distinguindo-a de outras formas de conhecimento:

Um homem pode ter uma instrução geral muito rudimentar, diz Fechner, o que não o impedirá de ser mais sensível às impressões produzidas pela música, compreendê-la e apreciá-la mais que um homem instruído, contanto que esteja mais apto para perceber os elementos musicais e possua maior talento musical48.

47 UZEDA, N. Coordenadora pedagógica e regente da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, no Centro Cultural. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 48 Disponível em http://www.consciencia.org/a-musica-capitulo-da-historia-da-arte-de-ernest-grosse. Acesso em out. 2011.

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O ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos, Leonardo Sá, mencionou pontos precisos referentes à recepção e à difusão dessa multiplicidade cultural, como forma de inclusão social. Sá classificou a música como “patrimônio social”. A música clássica e a valorização da expressão cultural local dos mangueirenses, quando juntas, situam-se no rol da diversidade cultural; entretanto, imbricados nas diferenças das expressões artísticas, estão os conteúdos socioeconômicos que ditam hierarquias sociais. Segundo Canclini, as políticas de respeito destinadas à aceitação e ao convívio das diferenças “frequentemente reforçam a segregação” (CANCLINI, 2005, p. 17). O que se passa no “micro espaço social” principalmente entre alunos, professores e funcionários do CCC da Orquestra de Violinos parece traduzir modos de negociações para a compreensão dos diversos modos de vida e como “gerir” as dinâmicas internas. Neste ponto, é possível estabelecer uma analogia com o conceito de interculturalidade de Canclini (2005, p. 17), que “remete à confrontação e ao entrelaçamentos” ocorridos nos “espaços de troca” dos grupos. Esse conceito traduz não apenas a aceitação do diferente, mas, sobretudo, “implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos” (ibidem). Sá49 explicou:

O projeto de uma orquestra de cordas em que, a princípio, se pode dizer que vai ser totalmente fora do corpo de um centro de samba, ao contrário, se demonstra uma maneira de quebrar esse paradigma de que determinados segmentos fazem e outros não fazem, uns podem e outros não podem, mas de que a música é um patrimônio social. Da mesma maneira que o samba como referência deve ser irradiado para toda a sociedade, também outras manifestações culturais à disposição do patrimônio das sociedades precisam e devem ser irradiadas para as comunidades que normalmente não têm acesso a elas. Em outras palavras, eu diria também que seria uma forma de ação de inserção, de inclusão social (SÁ, 2011).

O fenomeno da globalização evidencia as diferenças culturais e sugere formas de diálogo entre elas; as políticas referentes à diversidade devem levar em conta o imaginário social do grupos, o convívio das diferenças como também as formas de negociar essas diferenças, respeitando-se as contrações e alastramentos das representações de ordem cultural, política e social.

49 SÁ, L. Ex-coordenador técnico da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 81

Figura 40: Violinista e ritmista na bateria da Escola de samba São Clemente do Rio de Janeiro no carnaval de 2012. Fonte: carnaval.bol.uol.com.br. Acesso em abril 2012

Porque sempre teve uma boa resposta quanto ao aprendizado das crianças e jovens da Mangueira, Uzeda (2011) comenta que a linguagem musical clássica não é o maior problema enfrentado por ela no projeto: “A maior dificuldade que eu tive foi lutar contra esses preconceitos (culturais e econômicos) que estou falando”. Por congregar inúmeras especialidades, com públicos oriundos, em geral, da Mangueira – embora também haja estudantes de outras localidades –, o CCC precisa estar amparado por profissionais que consigam unir conhecimento técnico ao interesse pela causa social que ali se apresenta e à capacidade para operar soluções. Ioni Martins50, a administradora do CCC na ocasião da pesquisa, descreve as várias funções e oficinas que coexistem lá:

Faço um pouco de tudo. Cuido da limpeza, da organização do CCC, dos uniformes das crianças do violino, da capoeira, do jazz, do jiu jitsu. Supervisiono a limpeza e a organização de todas as salas do CCC. [...] É um cargo que exige muito, pois tem muita coisa para ser feita, mas eu gosto muito. (2011)

As entrevistas realizadas com esses profissionais refletem o ponto de vista não idealizado da casa como um todo, uma vez que abre espaço de expressão para aqueles que vivem outra realidade, que não a das crianças e a dos responsáveis ali atendidos. Assim, vale a pena perguntar: como os funcionários do Centro veriam a Orquestra de Violinos, em particular? Suas respostas para essa pergunta traduzem a importância desse projeto:

50 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 82

No momento, ele é a “menina dos olhos” do CCC. Ele serviu, principalmente, para dar abertura aos demais projetos. A partir do momento em que viram que esse deu certo, ele passou a ser referência – diz Sayonara Potes.

É algo que eu não conhecia: uma orquestra de crianças, que eu só vi aqui. É maravilhoso, tudo de bom. Eu até choro quando assisto. Emociono-me muito com as crianças pequenas daqui, normalmente tão discriminadas, e elas ali com um futuro. Eu os vejo como músico, vejo uma dedicação delas quando estão tocando, como se só tivessem aquilo em suas vidas – relata Ioni Martins.

Os dois depoimentos supracitados refletem tanto o lado funcional do projeto – a ênfase no sucesso de mídia, com o patrocínio, inclusive, da Petrobras, acrescentando credibilidade ao Centro –, como a emoção que ele suscita diante de todos que assistem àquelas crianças executando peças do repertório clássico e popular. Tanto Sayonara quanto Ioni chamam atenção para a postura profissional que permeia a Orquestra de Violinos, revelada desde a arrumação das salas até o comprometimento de cada um de seus integrantes. Além, é claro, do atendimento à própria Orquestra e, acima de tudo, aos sujeitos que ali se desenvolvem, todo esse pessoal de “bastidor” trabalha na tentativa de ultrapassar as dificuldades do dia a dia e garantir a preservação da outra grande riqueza do CCC: a catalogação e a organização do acervo de inúmeros depoimentos, materiais fotográficos, catálogos, músicas e livros relacionados ao samba de raiz, produzido nas Escolas. Nogueira (2011) fala da luta consciente para fazer com que o samba fosse reconhecido como patrimônio cultural: “A luta é exatamente essa: ver o samba como expressão cultural que ele é; ver os espaços de samba como aparelhos culturais”. Sob tal concepção, o Centro Cultural é administrado, e seu acervo vem a ser, hoje, manuseado pela assistente de pesquisa Sayonara Potes51, como ela mesma esclarece:

Trabalho com livros, a parte de acervo, indicando novos livros, CD’s, DVD’s, tudo relacionado ao samba ou às escolas de samba. Trabalhamos com revistas ligadas ao samba e às escolas. Sambas e sambistas (autores) que não estão na mídia, o chamado samba de raiz. A pesquisa maior é em cima disso. Procuramos também pôsteres e fotografias, jornais antigos, para podermos digitalizar para o grande público.

Hoje o CCC é a salvaguarda do samba, de pesquisa e de documentação. Ficou como referência porque foi através do CCC que começou a luta do samba como patrimônio cultural. Desde que a Nilcemar começou com historiadores o trabalho de catalogar o samba, conseguindo seu registro como patrimônio, ela obteve o direito de fazer a salvaguarda.

Neste momento, a pesquisa aqui desenvolvida deixa-se surpreender por outra vertente da Orquestra de Violinos: o Centro Cultural Cartola é, hoje, um espaço reservado à cultura

51 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 83

produzida por aqueles que, por muito tempo, estiveram à margem da sociedade, não só porque lhes foi negado o acesso ao padrão privilegiado de escolaridade/cultura, mas também por trazerem em si as mazelas advindas da pobreza: alcoolismo, doenças sexualmente transmissíveis, moradias precárias, e, acima de tudo, uma criatividade sem limites.

3.3 A educação fora da escola - O ensino musical em práticas sociais

A música é absolutamente independente do mundo fenômeno. Ela o ignora simplesmente. Poderia mesmo existir sem sentido, ainda que o mundo não tivesse vida, coisa que não se pode dizer a respeito das outras artes.

(Schopenhauer)

Figura 41: Jovens da Orquestra de Violinos e a diretora executiva do CCC, Profª. Nilcemar Nogueira, junto ao Presidente da República, Sr. Luis Ignácio Lula da Silva, em Brasília, em 2007. Fonte: Acervo do Centro Cultural Cartola.

Pensar a educação utilizada em projetos sociais é pensar que ela é transmitida fora do sistema de ensino institucionalizado; possui, portanto, um caráter não formal, no que diz respeito aos seguintes pontos:

A educação não formal, embora obedeça também a uma estrutura e a uma organização e possa levar a uma certificação, diverge ainda da educação formal no que diz respeito a não fixação de tempos e locais e à flexibilidade na adaptação dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto (AFONSO, 2001, p. 78).

Libâneo, por sua vez, caracteriza três modalidades de educação:

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A educação informal corresponderia a ações e influências exercidas pelo meio, pelo ambiente sociocultural, e que se desenvolve por meio das relações dos indivíduos e grupos com seu ambiente humano, social, ecológico, físico e cultural, das quais resultam conhecimentos, experiências, práticas, mas que não estão ligadas especificamente a uma instituição, nem são intencionais e organizadas. A educação não-formal seria a realizada em instituições educativas fora dos marcos institucionais, mas com certo grau de sistematização e estruturação. A educação formal compreenderia instâncias de formação, escolares ou não, onde há objetivos educativos explícitos e uma ação intencional institucionalizada, estruturada, sistemática (LIBÂNEO, 2005, p. 31)

A educação fora do seu enquadre formal não objetiva funcionar como remedo à lacuna deixada pelo Estado em suas políticas e práticas de ensino; seu papel direciona-se a uma complementaridade, num leque de atribuições em auxílio ao desenvolvimento do indivíduo. De acordo com Gohn,

A educação não formal é um processo que abrange quatro campos: o primeiro diz respeito à aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; o segundo está relacionado à capacitação dos indivíduos para o trabalho por meio da aprendizagem de habilidades; o terceiro é a aprendizagem de questões e práticas voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; por fim, a aprendizagem de conteúdos da educação formal em espaços diferenciados (GOHN, 2005 apud PACHECO, 2011, p. 8).

Essas diferenciações dadas por Gohn (ibidem) compreendem apenas a forma e os espaços das práticas da educação, sendo o restante de suas características pertinentes também à educação formal. A operacionalidade dessa prática de educação costuma estar relacionada ao quanto ela pode resultar para o domínio reflexivo do indivíduo, ou seja, o lugar que ele ocupa na sociedade, os seus direitos e deveres e a transformação da sua vida. O quanto será que uma educação livre das amarras da burocratização pode, ao menos, contribuir para a fluidez de outros discursos fora do escopo dominante? Para Althusser (1976), a escola funciona como um aparelho de reprodução ideológica, mantendo assim o status quo da sociedade já definido pelo ideário dominante do Estado. Como meio de romper os grilhões rígidos que segregam mentes e corpos, os projetos socioculturais, executados em sua maioria por ONG’s, lançam mão da arte para formar cidadãos, já que ela fomenta uma expressão individual sistematizada como alternativa de ensino. As ONG’s, a filantropia e os movimentos sociais foram as “sementes” do chamado terceiro setor, que, conforme Naves & Marques, se definem por serem: 85

Conjunto de atividades espontâneas, não governamentais e não lucrativas, de interesse público, realizadas em benefício geral da sociedade e que se desenvolvem independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora deles possa, ou deva, receber colaboração (NAVES & MARQUES, 1999 apud NAVES, 2008, p. 574).

Dada a evolução político-histórica no País, o foco de atuação das ONG’s, nos anos 90, passou a considerar os aspectos que envolvem a cidadania e, posteriormente, alastrou-se para diversas esferas, como atesta Naves:

A contestação do discurso hegemônico começou a se dar no âmbito dos ‘direitos humanos’ universais, a luta social perdeu o enfoque capital-trabalho e vinculou-se às questões da cidadania. [...] Hoje há ONG’s voltadas para os mais variados problemas: fornecer apoio a vítimas de calamidades e refugiados, crianças carentes, idosos ou inválidos, questões do meio ambiente, saúde pública, prevenção da Aids, direitos humanos, etc. (NAVES, 2008, pp. 570-571).

Apesar de um reconhecido valor social pelas suas realizações, as ONG’s também suscitam críticas tanto quanto à transparência de suas ações como a de seu papel frente à pertinência das funções assumidas. Na avaliação das dificuldades em relação às ações das ONG’s, Naves aponta que “sua participação na implementação de políticas públicas se vê ameaçada pela ausência de credibilidade de muitas entidades, pela falta de apoio da mídia e de um marco legal satisfatório” (NAVES, 2008, p. 577). Estabelecida brevemente a relevância do papel exercido pelas organizações não governamentais na sociedade, é preciso situar, especificamente, a importância dos projetos sociais que atuam na área ensino/aprendizagem musical, sob a ótica da abertura de novas perspectivas de vida. No cenário da educação musical voltada para ações sociais, é recorrente o questionamento sobre quais necessidades atender, de que forma, qual o papel da música nos projetos, o que se espera dos professores. Como são muitas as perguntas, também são muitas as respostas. Em Kater (2004, p. 44), encontra-se a seguinte definição para a contribuição da educação musical para o desenvolvimento humano: “Música e educação são, como sabemos, produtos da construção humana, de cuja conjugação pode resultar uma ferramenta original de formação, capaz de promover tanto processos de conhecimento quanto de autoconhecimento”. Enfatizando a importância, demonstrada por Kater (2004), da inserção da música em conteúdos educativos, Sá pontua o vigor da música como agente transformador:

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A possibilidade de uma criança, um adolescente e de um jovem ter contato em amplo aspecto na produção da arte, da música é sempre algo que é muito enriquecedor, acho que se coloca de um lado o que diz respeito a questão social da comunidade da Mangueira o fato de se ter uma cidadania consciente de fincar esse movimento na direção dos grandes patrimônios, sejam elas culturais, artísticos, históricos; esse é o primeiro ponto, essa é uma atitude que diz respeito ao direito do cidadão. De outro lado existe a questão da dimensão humana, de que o índice do desenvolvimento humano não é só uma referência de ordem de saneamento de saúde ou até de alimentação, o índice de desenvolvimento humano é também o índice de acesso a produção de todas as representações simbólicas que existem na sociedade então isso extrapola o ato sumariamente da cidadania (SÁ, 2011).

Em reflexões sobre a integração da realidade cultural dos alunos com o que se ensina em música, Souza indica a relevância dessa vivência educacional para fazer despertar o senso crítico dos alunos:

E do outro lado do processo educativo, os desafios que os alunos enfrentam ao aprender música, de pensarem a realidade na relação com o mundo que os cerca no seu dia a dia, ou perceberem como se dá a integração de cada um deles nas diferentes realidades desse mundo (SOUZA, 2004, p. 9).

Como em qualquer ensino de uma nova linguagem, a musical, para ser assimilada, necessita de muita dedicação tanto dos professores quanto dos alunos; por parte dos alunos, sendo disciplinados nos estudos e, por parte do corpo docente, para, além da sua imprescindível qualificação técnica, acreditar e insistir no aprendizado do aluno, dentre outras exigências da profissão. O ensino musical pautado no projeto da Orquestra de Violinos não se restringe às atividades com finalidades sociais; os professores têm a preocupação de expandirem o universo musical dos alunos. Tal importância é constatada por Gordon (2000, p. 51): “Os alunos devem aprender a compreender o que ouvem na música de todas as culturas, eras, estilos e formas, e então decidirem por si próprios que música vão escutar, executar e compor”. Quanto às competências do educador, Kater (2004) enfatiza características importantes que são encontradas no trabalho dos professores da Orquestra de Violinos, como: interesse pelo desempenho do aluno; percepção das respostas dos alunos frente ao conteúdo proposto; adequação aos recursos didáticos; limitação das ambições educativas, sem deixarem de exigir um melhor desempenho; abstenção de fazerem juízos preconceituosos de valor na presença de baixos rendimentos. Gordon (2000, p. 65) fala sobre aptidão musical: “Nem a natureza nem a educação são exclusivamente responsáveis pelo nível de aptidão musical das crianças. A aptidão musical é 87

produto do potencial inato, a que vem juntar-se às influências do meio ambiente”. Mais adiante, a mesma autora explica a diferença entre a aptidão musical e o desempenho musical:

Enquanto o desempenho musical é racional e, fundamentalmente, ocorre no cérebro, a aptidão musical é espontânea e ocorre, fundamentalmente, nas células e nos genes, isto é, no corpo inteiro. [...] Esse nível muda até os nove anos de idade, após isso independente da qualidade do meio musical em que vive uma pessoa, esse fato, a partir dos nove anos, deixa de ter qualquer influência no nível de aptidão musical (idem, pp. 64-65)

No trabalho de campo, observei o esforço dos professores para obterem a atenção dos alunos, a postura deles sempre atenta quanto ao rendimento e ao comportamento dos alunos. Nas entrevistas realizadas com esses professores, foram obtidas várias falas que reforçam as características essenciais de um educador. A professora Sara52, de violino, diz: “Sempre passo para eles informações sobre a música e sobre a vida. Transmito ideias, a gente conversa muito e isso nos aproxima”. Perguntado sobre o que é preciso ser feito para facilitar a aprendizagem dos jovens e crianças da Orquestra, o professor Ibrahine, de musicalização53, menciona: “O professor precisa ter carisma, por exemplo, pego os meus pontos positivos como pessoa e os uso na aula. Costumo usar meu bom humor para deixar o clima mais leve, no meio da aula falo algo engraçado para descontrair”. Uzeda (2011) salienta: “Acho que a dedicação de todos serve como um tipo de aposta nessas crianças, a certeza que esse grupo tem que está fazendo uma coisa boa, a resposta que nós temos é excelente”. O projeto da Orquestra de Violinos tem a grande vantagem de possuir, em seu quadro de professores, músicos formados ou em formação – até mesmo os monitores estão numa trajetória intensa de qualificação. Essa informação é o oposto da encontrada na pesquisa do educador e musicólogo Kater, que chama atenção para o fato de os projetos sociais não possuírem, em sua maioria, “educadores musicais” e, sim, pessoas com “formação musical bastante modesta do ponto de vista teórico e criativo” (KATER, 2004, p. 49). Tal conclusão, na verdade, contradiz Kater, na medida em que, de 2004 para 2011, se passaram sete anos – período em que houve um aumento expressivo de controle dos trabalhos das ONG’s, evidenciando uma evolução dos projetos. O quadro da Orquestra de Violinos, segundo informa a regente, é composto por “oito professores, mais eu como regente. Um de teoria,

52 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011.

53 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes, no Centro Cultural Cartola. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 88

quatro de violino, um de violoncelo, um pianista e agora o N., que está saindo do quadro de monitor e agora está também como professor”. Sá, narrou o histórico da profissão de músico no Brasil, referindo-se ao grande preconceito sofrido por toda classe artística até o reconhecimento atual:

Interessante é que a arte conviveu muito de perto com a situação de ser senão ilegal, imoral. Então, se vai fazer arte, não importa qual, o que fica marcado é que é algo ilícito [...] Os grandes movimentos artísticos muitas vezes são associados aos movimentos urbanos também, as boemias, as bebidas, as drogas, então essa mitologia urbana predominou. [...] O fato é que há 30 anos talvez até menos, vem ocorrendo uma alteração substancial por razões que não tem a ver mais com a arte, tem a ver com a própria estrutura do sistema brasileiro. De um lado, as diversas crises sociais que atingiram o mundo do trabalho, então profissões ainda ditas como nobres, conhecidas e estáveis, foram perdendo o brilho como o direito, engenharia. [...] Depois a descoberta de que o mercado contempla não apenas bens de consumo direto, mas bens de consumo ideais como a arte, o esporte e aí se observou que ser um esportista é algo muito sério, ser músico é algo tão rigoroso como ser um advogado, engenheiro (SÁ, 2011).

Atividades desenhadas para a consecução do projeto, salas apropriadas para as aulas, presença do patrocinador garantindo a manutenção física, professores qualificados, todos esses aspectos cooperam para o sucesso do empreendimento.

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4 DO SOM À ESCRITA DO CAMPO

Um verso me levou Do Rock a Jovem Guarda Fui caminhando e cantando ao luar Com a Tropicália no olhar Atrás do trio eu quero ver O baile começar, e a noite adormecer O sol nascerá, as cortinas irão se fechar Folhas secas virão e o show vai continuar!

Meu coração é verde-e-rosa Descendo o morro eu vou A música alegria do povo Chegou a Mangueira chegou

(Samba enredo de 2010 – Mangueira é música do Brasil)

Figura 42: Da esquerda para a direita: monitor, aluno e professor da Orquestra de Violinos na festa de final de ano, no CCC. Fonte: Acervo Isis Mendes.

A fase de avaliação das entrevistas suscita a rememoração das falas de tantos atores ouvidos, de histórias que, em grande parte, transbordavam pelas paredes das perguntas. O contato direto com os entrevistados permitiu aprendizados, surpresas, compartilhamentos e outras séries de experiências que auxiliaram, principalmente, na desmistificação dos papéis sociais atribuídos a eles. Thompson (1992, p. 32), em sua exposição sobre a “história oral”, enfatiza as descobertas do campo, desloca o pesquisador para a posição de aprendiz: “O historiador vem para a entrevista para aprender”. Contaminar o menos possível os relatos dos entrevistados 90

com concepções adquiridas nas leituras e durante a vida do pesquisador é um cuidado imprescindível para se obterem dados mais fidedignos à realidade estudada; por isso, a adoção da postura do não saber torna-se crucial. A metodologia da observação participante, adotada para a pesquisa, permite que a ação do pesquisador no campo oscile entre momentos de “pura” observação a uma participação mais ativa. Essa variação de usos da técnica faz com que a intervenção do observador participante no campo seja questionada: “Essa questão (do papel) tornou-se central na literatura etnográfica” (LAPASSADE, 2005). Foram publicadas várias categorizações da observação participante, indicando modos diversos de agir. Tais variações quanto à atuação do pesquisador geram, muitas vezes, incômodos, principalmente no nível do imaginário; entretanto, é o campo que facilita o caminho, que permite o avanço do impasse, no passo, com tropeços, certamente. O observador participante passou a ser a forma utilizada nessa pesquisa por indicar o modo que melhor se adequou à realidade do campo:

Nesse papel, as atividades do observador são tornadas públicas desde o início e mais ou menos encorajadas publicamente pelas pessoas estudadas... O observador pode assim ter acesso a uma grande diversidade de informações e mesmo a segredos se se sabe que ele respeitará o caráter confidencial (LAPASSADE, 2005, p. 290).

A entrevista não diretiva foi o instrumento escolhido por permitir, de acordo com Giust (2005, p. 262), “explorar as condutas a um nível mais dinâmico do que as opiniões e as intencionalidades”. Fornece espaço maior de interação entre entrevistador e entrevistado e acolhe pontos de vista surgidos no momento da entrevista por não obedecer padrões de perguntas rigidamente preestabelecidos.

4.1 O pesquisador e o campo da ciência e do humano.

Além da apresentação da metodologia, a apreciação da voz do pesquisador também aqui ganha espaço. Fora encontrada uma grande quantidade de material sobre as especificidades das pesquisas na área social, da gangorra entre as ações ditas científicas e as que podem ser consideradas fora do escopo de cientificidade, do papel do pesquisador e, enfim, de todos os procedimentos implicados numa pesquisa qualitativa. Referindo-se à teoria do ator-rede de 91

Latour, Arendt (2008, p. 7), acerca da esfera de ação do pesquisador, expõe que os atores são os “experts, não o pesquisador. Em termos de implicação para formação de pesquisa, haveria de seguir os atores e formular a eles as boas questões”. O campo apresentou-se, de início, como um território de difícil exploração, devido, em parte, às expectativas do pesquisador que se mostraram “equivocadas”. Por mais recomendações que a literatura científica teça aos pesquisadores, não esperar por algo torna-se postura idealizada, pois todos têm, de antemão, representações dos fatos sociais. Blumer, considerando as representações dos cientistas sociais, afirma:

O pesquisador formará, sem se dar conta, algum tipo de quadro da área da vida que se propõe a estudar. Porá em jogo as crenças e imagens que já possui para formar uma visão mais ou menos inteligível da área da vida. [...] Quer sejamos leigos ou estudiosos, vemos necessariamente qualquer área não conhecida da vida em grupo através de imagens que já possuímos. [...] É nesse ponto, como todos sabemos, que imagens estereotipadas entram em cena e assume o controle. Todos nós, como estudiosos, temos nossa cota de estereótipos, que usamos para ver uma esfera da vida social empírica que não conhecemos (BLUMER, 1969 apud BECKER, 2008, p. 31).

O terreno desta pesquisa dificilmente corresponderá ao “imaginado”; ele há de ser descoberto, há de ser desvendado com toda a “ciência da experiência”. Foram várias as situações em que o “ir ao campo” virou prova de tolerância à frustração. Os exercícios de ir e acontecer e de ir e não acontecer foram indicativos da própria limitação da instituição e das suas práticas que, por sua vez, estão submetidas às dinâmicas do local e às histórias de vida dos participantes da pesquisa. Algumas ocorrências relativas ao tráfico, como batida policial e a consequente troca de tiros com os bandidos, suspendiam as atividades dos projetos do Centro Cultural. Outras foram de ordem prática, como as crianças que não compareciam ao grupo por não terem quem as levasse, ou não “se comportavam bem” no próprio local, atrapalhando a aula das outras, ou se aborreciam com algum professor, por serem exigidas quanto à disciplina. Todos esses fatos acrescentaram informações valiosas para a pesquisa, que nenhum livro pode ilustrar. Arendt (2008, p. 8) relata: “No trabalho de campo, em levantamentos, pesquisas de opinião, nós ouvimos, aprendemos, tornamo-nos competentes, mudamos nossos pontos de vista O bom trabalho de campo produz uma quantidade de novas descrições”. Esse é o campo: os acontecimentos ali vividos conduzem a pesquisa, que, nesse sentido, traduz, de forma exemplar, a posição de sujeito/aprendiz do pesquisador. Algumas notas do diário de campo trazem a tona situações constituintes da vida do próprio projeto, proporcionando-me a oportunidade de estabelecer uma relação de troca com 92

os atores. Nesses momentos, tornava-se notório a importância do deixar-se surpreender e do estar atento às idiossincrasias. Ao falar sobre a atuação do pesquisador junto aos atores pesquisados, Ozório explica que o amadurecimento advém das análises de sua atuação e do saber lidar com as desigualdades: “Deste amadurecimento faz parte um compartilhar tanto a alegria da potência dessas vidas como também um sofrimento indizível quando convivemos com vidas marcadas pelas violentas desigualdades sociais” (OZÓRIO, 2007, p. 30). O diário de campo foi um dispositivo de grande importância não somente por servir de “lembrete”, mas, sobretudo, por registrar momentos de reflexão, enquanto da sua construção, e auxiliar na avaliação das condutas pessoais. Como forma de contribuir para a elaboração de outros diários de campo, exemplifico algumas das minhas anotações, feitas ao longo de todo o percurso de coleta de dados.

Diário de campo – algumas notas:

1) Conhecendo o futuro objeto de pesquisa: “Em 16 de março, fui com a minha orientadora, Regina Andrade, ao Centro Cultural Cartola falar com a Gestora do Centro, Nilcemar, com o intuito de conhecer os projetos socioculturais que estavam em vigor”. (Março 2010). 2) Dia de desmistificações: “Ao chegar no CCC, mesmo adiantada, E. – mãe comunitária da Escola Municipal Humberto de Campos. Já me esperava, então fomos para a sala onde fiz a entrevista, que durou cerca de uma hora. E. é muito expressiva, fala com ênfase sobre os assuntos que envolvem a comunidade. Foi uma entrevista que me permitiu expandir meu olhar para a realidade vivida pelas pessoas da comunidade da Mangueira”. (Agosto 2010). 3) Dia do mal-estar: “A mãe de uma aluna chegou embriagada e parecia também estar drogada, falando agressivamente e alto. Consegui contornar a situação sem alimentar a provocação dela. Não reagir é difícil, mas tive de contornar com paciência. O grupo ficou tenso, eu também, mas fomos adiante com a tarefa”. (Outubro 2010). 4) Obtendo informações: “A diretora (da escola situada no morro da Mangueira) conta-me também que ali no Buraco Quente, onde está situada a escola, na época 93

da escravidão, as brigas eram resolvidas por meio da capoeira, jongo. É uma área onde, já de longa data, ocorrem conflitos”. (Agosto de 2010).

Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos dentro de um contexto que faz parte da história da pesquisa, aqui agora narrada: Logo no início dos trabalhos de observação no Centro Cultural, o Sr. Leonardo, coordenador técnico da Orquestra de Violinos, convidou-me a participar da atividade de recrutamento de crianças e jovens para comporem o quadro de alunos do projeto. Convite prontamente aceito. Juntamente com ele, fui à Escola Municipal Humberto de Campos, localizada no Buraco Quente, no morro da Mangueira. Lá, o Sr. Leonardo informou à diretora, Profª. Ada, os objetivos do ensino cultural do projeto rumo à consolidação da cidadania. A diretora ficou muito interessada no projeto e dispôs-se a contribuir para melhorar a concentração das crianças. O Sr. Leonardo explicou o funcionamento das aulas e disse que precisava antes, ali mesmo na escola, poder trabalhar com as crianças com o fim de averiguar o real interesse delas. Ela indicou uma turma de 3ª série para que o coordenador da Orquestra fizesse o trabalho com o grupo e pudesse observar e verificar quais estariam aptas a participarem do projeto. Nos quatro encontros realizados com os alunos da terceira série, o Sr. Leonardo aplicou algumas dinâmicas com as crianças que visavam à integração entre eles e o projeto e também serviam para observar os comportamentos individuais. No final do período, houve o encaminhamento das crianças ao Centro Cultural, onde elas já começariam as aulas de violino e teriam um primeiro encontro comigo. Neste ponto, é importante abrir um parêntese para narrar como se deram essas atividades: Início do grupo: 24 de agosto. Os alunos eram em número de vinte, embora nem todos comparecessem aos encontros. Não importando o número de alunos, metade ia para a aula de violino e metade ficava comigo, por uma hora, quando então havia o revezamento. Foi criado um espaço onde elas, além das aulas de violino, poderiam sentir-se mais a vontade e expressarem suas dificuldades na aula ou afirmarem seu desejo de ingresso na Orquestra. 94

Por que aceitei? Era o início das minhas atividades no projeto e fazia-se necessário que eu conhecesse um pouco das suas histórias, como também da própria dinâmica das aulas pelo olhar das crianças. Eu não tinha como objetivo transformar nenhuma realidade, e sim conhecê-la. As atividades que eu planejei para os dois primeiros encontros tinham o intuito de fazer com que as crianças expusessem suas dúvidas, seus sentimentos em relação à nova atividade. Logo percebi que esse planejamento não funcionava muito bem, pois as demandas eram outras: enquanto as meninas queriam falar das suas vidas, de namorados, de dançar e ouvir música, os meninos queriam jogar bola e brincar com os colegas. A maioria das crianças tinha um comportamento muito disperso, não se concentrava numa atividade. Ao final, elas saíam da sala e corriam pelo CCC. Mudei de estratégia. As atividades – desenhos livres, bate-papo, ensaio para uma show de dança solicitado pelas meninas – passaram a ser negociadas entre mim e o grupo e, quando surgia algum “problema”, este era debatido juntamente com as possíveis medidas a serem tomadas. Agia-se no interior do grupo sob a forma de “deliberação”. Foram dez encontros no total, nem sempre com as mesmas crianças devido a motivos variados: calendário escolar, não ter quem as levasse ao encontro, o CCC estava em obras, problemas pessoais dos próprios alunos. O que pude constatar foi que as crianças que não queriam permanecer na OV eram as que não aceitavam ordens, como no caso de duas meninas que reagiram quando a professora as mandou ficarem quietas. Elas se rebelaram agressivamente. Auxiliei no processo, pedindo- lhes que colocassem o seu “ponto-de-vista”. Uma, após queixar-se dos professores, saiu da OV, enquanto a outra voltou para as aulas. Ao fim desses encontros, o prazo para o grupo terminou. As crianças que quiseram continuar na OV passaram a frequentar por conta própria. Para o coordenador, o objetivo com a formação do grupo era o de estabelecer vínculo e construir um espaço onde as crianças pudessem colocar suas dúvidas, anseios e outras questões; para mim, era conhecer com um pouco mais de profundidade a realidade daquelas crianças. Vale enfatizar que o grupo aceitou minha entrada. Outro ponto a destacar é o fato de esse grupo ter funcionado como acolhimento das crianças ao projeto, já que, nessa mesma fase, vários encontros foram cancelados em consequência da violência no morro e de outras intercorrências relativas ao funcionamento da Escola e/ou do Centro Cultural. 95

As atividades preferenciais das alunas eram os desenhos. Durante a atividade, cantavam músicas, dançavam e falavam da vida própria e da das colegas. Enquanto D. desenhava sua casa de três andares, as outras falavam do desabamento daquela casa e que D. dormia no quintal. A atenção dos meninos ficava mais voltada às brincadeirinhas com bola e carrinhos.

Figura 43: Desenho de aluna do grupo, cuja parte “de trás” da casa desabou. “Minha casa”. Maio de 2010. Fonte: Acervo de Isis Mendes.

Apesar da aparente informalidade do grupo, toda a construção foi cuidadosamente sistematizada quanto aos participantes, o número, o tempo de duração de cada encontro, como a elaboração das atividades desempenhadas no dia, os objetivos e o enfrentamento das dificuldades. Quanto ao papel do pesquisador frente aos sujeitos participantes, uma interessante passagem em Thiollent vem ilustrá-lo:

Alguns autores têm mantido uma relativa confusão acerca do papel dos participantes, ao darem a impressão de que o principal ator seria o próprio pesquisador. [...] O principal ator é quem faz ou quem está efetivamente interessado na ação. O pesquisador desempenha um papel auxiliar, ou de tipo “assessoramento”, embora haja situações nas quais os pesquisadores precisam assumir maior envolvimento e responsabilidade, em particular nas situações cercadas de obstáculos políticos ou outros (THIOLLENT, 2004, p. 70).

Desse grupo, uma média de cinquenta por cento passou a freqüentar as aulas do projeto da Orquestra de Violinos. Ao fim de dois meses os encontros chegaram ao seu término permanecendo na orquestra de violinos os alunos que realmente se engajaram no projeto. 96

4.2 Virando a página: os alunos da Orquestra de Violinos

Os motivos centrais que impulsionam a transformação de crianças e adolescentes da Orquestra de Violinos rumo à cidadania foram exaustivamente buscados em todo o percurso da pesquisa. Para tanto, foram adotados os referenciais das literaturas psicanalítica e sociocultural para a análise das falas. As crianças e os adolescentes do projeto da Orquestra de Violinos fazem parte de uma população cujos direitos são ceifados pelas condições socioeconômicas. O quadro social em que se encontram, somado às especificidades da fase da vida criança e adolescente, torna-se um diferencial quanto aos benefícios obtidos através das atividades do projeto. O parágrafo quarto do Estatuto da Criança e do Adolescente54 traz as seguintes deliberações:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; e) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Se a Lei garante todas as espécies de direitos a essa parcela da população, independente da situação econômica, a realidade dos centros populacionais, contudo, as tira, sem que o poder público, muitas vezes, consiga suprir-lhe as necessidades mais básicas. Quando se tem em mãos uma pesquisa relacionada às crianças e aos adolescentes, o primeiro impulso é separar esses segmentos, uma vez que cada faixa etária possui características próprias. Não é possível ignorar-se que às crianças cabem papéis bem diferentes dos assumidos pelos adolescentes. Sequer o grau de responsabilidade das etapas cronológicas é igual.

54 BRASIL. Ministério da Justiça / Secretaria de Estado dos Direitos Humanos / Departamento da Criança e do Adolescente (DCA) / Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Estatuto da criança e do adolescente. Normativas Internacionais. Convenções Nºs 138 e 182, e Recomendação Nº 190 – OIT. Portaria Nº 6/2002, Brasília: 1990. 97

Assim, a criança precisará ir à escola, fazer pequenas tarefas educacionais em casa, brincar, enquanto os adolescentes, dependendo do tipo de escolaridade, já podem começar a preparar-se para o mercado futuro de trabalho. As categorias “criança” e “adolescente” é uma classificação cultural de meados do século passado. De adulto em miniatura, surge a figura do então dito “menor” de idade, considerado incapaz perante a sociedade de direito, não respondendo juridicamente por seus atos. A criação de ordenamentos jurídicos desloca a posição do “menor” incapaz para criança e adolescente possuidores de direitos garantidos por lei e de forma diferenciada responde por eles. Entretanto, para além dessas particularidades, há universais pertencentes à humanidade, que independem da faixa etária em que se encontram os indivíduos. Assim, quando se analisam as respostas dos questionários, o que fica são os questionamentos próprios da condição de seres humanos com as mesmas inquietações e esperanças. Por isso, adoto aqui o método de não separar as respostas, já que todas, sem exceção, têm o mesmo grau de importância, porque tratam de colocações que transcendem à idade. Outro equívoco possível seria o de interpretar essas mesmas respostas superficialmente, como se não houvesse por trás delas outros desdobramentos de ordem maior. Por exemplo: os responsáveis pelos alunos relatam mudanças visíveis no comportamento deles “ele está mais calmo”; porém, voltando-se a uma análise mais profunda, o pesquisador vai além dos discursos manifestos e averigua, através do dito dos atores, um apontamento para mudanças de posição diante das questões da vida, posições subjetivas que resvalam na realidade.

As entrevistas com os alunos

A primeira pergunta endereçada aos alunos foi sobre a iniciativa de participar do projeto: havia partido deles o interesse ou eles estariam atendendo conscientemente à vontade de outra pessoa? O que surpreendeu nas respostas foi o fato de a maioria ter respondido que era um desejo íntimo participar do projeto, demonstrando interesse, como se pode constatar nos recortes a seguir: Sim, fui eu quem pediu para entrar. Sempre me interessei por música, toco outros instrumentos, como violão, bateria, guitarra e baixo (J. V., 16 anos).

Eu vi um programa que tinha um homem tocando violino e eu perguntei a minha mãe que instrumento era aquele e que gostaria de tocar. Aí ela me falou que era um violino. Depois (...) quando a minha mãe passou e viu a propaganda do projeto de 98

violinos, ela esperou um pouquinho e depois me colocou quando eu fiz seis anos (A. C., 8 anos).

Quando eu tinha mais ou menos cinco anos a minha irmã estava aprendendo a tocar violão e eu ficava vendo ela tocar. Um dia eu vi na televisão uma orquestra tocando e aí falei com a minha avó que eu queria tocar violino. Aí eu já tinha 8 anos, foi quando minha avó passou por aqui e viu que tinha vaga, aí ela me inscreveu (T., 11 anos).

Desde pequena eu sempre gostei de violino, só que eu não sabia aonde tinha aula, aí soube daqui e vim (N., 12 anos).

Foi sim, eu achava muito bonito, mas ficava pensando que era muito difícil, nunca tinha visto um antes. Até que meu colega falou que era só prestar atenção que aprendia. Ele me mostrou o violino e eu achei o som muito bonitinho, então resolvi entrar (M., 11 anos).

De onde vem o desejo pela música? São muitas as respostas: amor à beleza; identificação com alguém da família por intermédio das aspirações; vontade de ter acesso a um objeto valorizado; desejo de atender ao ideal dos pais... Nesse sentido, não importa os motivos, mas, sim, a saída encontrada por crianças e jovens na lida de seus embates quando se trata das pulsões epistemofílicas, tão caras à educação. O fator que mais chama atenção nas entrevistas com os alunos adolescentes diz respeito à busca deles por uma “independência”, acompanhada pela conquista de um espaço para o diálogo, quer no Centro Cultural, quer em casa. Essa “vontade” de colocar-se, de defender ideias, aponta para um dos ensinamentos de Lacan aos seus discípulos: ter coragem de expressar suas ideias, mesmo que elas sejam diferentes das dos que estão à volta. Essa posição mais “autônoma” dos filhos surge mais na fala dos pais: “Vou ser sincera com você: eu é que não queria, por ser muito longe. Eu ia ter que andar muito, eu perguntava a ela: minha filha você tem certeza? Ela falava: mamãe eu quero” (M. mãe de A.). Em casa, eles contam para os demais familiares das suas conquistas, pedem aos responsáveis para participarem de outras atividades paralelas (natação, capoeira, balé, violão...), “exigem” estar presentes nas aulas, arrumam-se sozinhos, veem programas musicais pela televisão junto com os demais membros da casa; enfim, o fato de estarem participando de um projeto socialmente reconhecido a nível nacional opera uma mudança na relação familiar, sentida tanto por eles próprios quanto pelos demais parentes. Explica a mãe de R, onze anos: “Quando aparece alguém tocando na televisão e o pai ou o irmão veem, chamam e ele vai correndo ver. Fica sentado assistindo”. Essa mudança também é observada pela mãe de DH, dez anos:

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Uma vez, eu e o pai dele estávamos nos desentendendo muito e discutíamos até na frente dele, e ele estava quieto, mas estava prestando atenção e ele nos chamou atenção: ‘Pô! Vocês vão ficar discutindo toda hora? Vão ficar discutindo na minha frente?’ Eu achava, pelo fato de ele ficar sempre de frente para a televisão, quieto, como se nada estivesse acontecendo, eu pensava que ele não estava prestando atenção, mas ele estava. Ele presta mais atenção em tudo. Hoje, não discuto mais com o meu marido na frente dele e nem na frente do outro. (2011)

Sobre o irmão de DH, no caso, ME, de sete anos, também participante da Orquestra, a mesma mãe comenta: “Quando o pai chega de viagem de trabalho, ele conta tudo o que ele faz. Conversa na maior satisfação”. JV, de dezesseis anos, explica como a sua relação com a família mudou: “Eles agora me dão mais apoio. Agora, com apresentações importantes, eles percebem que eu preciso do apoio deles, inclusive eles me incentivam a estudar. Agora têm mais carinho e atenção”. A busca por uma “independência” traduz-se de várias formas: desde conseguir colocar-se diante dos pais, passando pelo exercício diário de cidadania, como saber que tem opção de escolha, até disciplinar-se para cumprir os horários e os programas da OV – deveres primordiais. Por outro lado, emancipar-se dos pais não é sem paga, nem para os filhos, nem para os pais. Não é “com açúcar” que os pais “convivem” com a diversidade de pensamento e conduta dos filhos. Mellman (1999, p. 32) aponta um erro que é comumente cometido:

É que nós transmitimos às nossas crianças uma mensagem e esperamos delas que a retomem como papagaios, quer dizer, sob uma forma direta. [...] Porém, não responder ao lugar esperado pode apontar para uma posição dialética, um lugar fora da repetição quanto ao discurso parental.

Observadas por alunos, responsáveis e professores, as mudanças operadas no seio familiar se estendem também a outros campos da vida do aluno. Como destaca o professor de musicalização, Sr. Antonio Ibrahine, o estímulo cerebral opera uma mudança na forma de pensar:

Penso que a transformação começa desde o acesso. A música é uma das artes que as pessoas têm um contato muito forte desde que nascem. A música desenvolve os dois lados do cérebro; ela abre a visão do mundo. Quando se aprende um novo idioma, a maneira de pensar da pessoa modifica, e com a música acontece a mesma coisa. (2011).

A partir do momento em que se inicia uma mudança na forma de pensar, várias outras mudanças comportamentais são desencadeadas: de muito agitado a mais concentrado, de tímido a comunicativo, de não habilidoso a muito habilidoso, de descompromissado a 100

comprometido com o aprendizado, de individualista a preocupado com o coletivo. Enfim, as características mais aparentes, mais facilmente observadas pelos pais, nada mais são que consequências naturais de quem agora pensa diferente. Resume o músico N, de quinze anos:

Eu vou fazer, no final do ano, prova para a Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem. Faço aula particular de violino. Há mais ou menos três meses, me tornei monitor. Me trouxe mais educação, contato com outras pessoas, com outras situações, viagens. [...] Vejo (o projeto) como uma forma de incentivo às pessoas em fazer coisas boas. O projeto não ensina só música; ele ensina a se comportar, dá disciplina. Aqui no projeto mostra uma nova forma de enxergar a vida. (2011).

Uzeda (2011) explica: “Como uma obra de arte, a sensibilidade de uma música é muito transformadora. Eu sentia que a linguagem musical, não porque tenha algum recado nem mensagem, traz em si uma outra forma de pensar a vida”. Para a psicanálise, a partir de Freud, a educação não alcança o seu total sucesso. No viés psicanalítico, diferentemente do ensino estabelecido e sistematizado, essa falta de sucesso não significa fracasso de aprendizagem, antes está voltada para a impossibilidade de domar as pulsões sexuais. Pautada desde a sua entrada e a de sua equipe, Uzeda sempre apostou em apostar na transformação de vidas através da aprendizagem musical, mas, para isso, ela ressalta a qualidade do ensino dada a essas pessoas: “Quando entrei, tinha outra forma de aula, e eles não aprendiam nem a escrever e nem a ler música. Fazia-se uma coisa amadorística, não proporcionavam às crianças um conhecimento mais profundo”. Santos (2004) ressalta o enfoque humanizador da educação musical, da formação humana e integradora, a promoção de processos de socialização; além disso, enfatiza sobre o modo como se ensina música nos projetos sociais, chamando atenção para a necessidade de os recursos pedagógicos serem flexibilizados sem, entretanto, desviarem-se do rigor, ou seja, deve-se levar em conta a “capacidade de adaptarem-se propostas sem mediocrizar e reduzir ao ‘mais facilmente assimilável’ (banalizar e subestimar)”. Quando se ouve as crianças e/ou os adolescentes do projeto da Orquestra de Violinos, facilmente se percebe o quanto eles são exigidos e o quanto de resultado e responsabilidade isso gera. Em algumas entrevistas, podem-se constatar importantes procedimentos para a aprendizagem: “O tempo aqui no Centro é pouco, mais ou menos duas horas de treino, e quando a maestrina passa a música e a partitura, a gente tem de estudar” – diz J. V. Na fala de M., comprova-se a dificuldade: “No começo, eu achei muito mole, depois vi que era difícil”. 101

Algo perceptível na fala das crianças é o quanto elas respeitam os professores e nutrem por eles uma grande carga afetiva, tanto hostil, quanto amorosa; algumas recebem a atenção dos professores como sinal de importância. “Os professores são muito legais”, declara A., enquanto J. reverencia a regente: “A Noemi sempre está vendo o que está certo, se erro ela corrige, também ela sabe muito”. No grupo, N. reclamava da professora: “Ela é muito chata, ela não me manda, não é minha mãe”. De acordo com Freud, em seu artigo sobre a psicologia escolar (1914), a importância do fenômeno da transferência55, relembrando a figura dos mestres e sua influência para a futura vida acadêmica dos alunos: “É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres” (FREUD, 1914, v. 13, p. 286). A confrontação com a ordem simbólica ocorre na fase da adolescência de forma mais intensa. Vê-se, no ato de educar, conforme remete Almeida (1999, p. 61), uma de suas “manifestações sintomáticas, que é a identificação do adolescente ao mestre ou, no seu oposto, a desqualificação de sua autoridade, o que se dá, em um caso ou outro, em função da idealização primitiva de seu próprio pai, posto, agora, em questão”. As questões problematizadas pela psicanálise frente à educação não constituem uma dificuldade apenas para o educando; o educador é afetado com suas questões subjetivas frente ao outro do ensino. Continuando, Almeida (1999, p. 61) completa: “Essa relação transferencial gera, no adolescente, uma série de moções ambivalentes e, no adulto/educador, um mal-estar inerente à tarefa educativa, pois se encontra ele mesmo, em função de sua posição, remetido às próprias renúncias e às exigências de seus ideais educativos”. Além de todo voto (fundamental) de sucesso dirigido às atividades do projeto, vê-se que nelas estão imbricadas questões subjetivas que ultrapassam o nível da “boa vontade” e dos “recursos”. Com um ouvido atento às histórias dessas crianças e jovens e com um bom encontro com os mestres, pode-se prosseguir, apesar das questões sintomáticas de todo ser falante – professores e alunos.

4.3 O tecer dos dados.

55 Designa, em psicanálise, o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro de relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivido com uma sensação de atualidade acentuada. Ver: PONTALIS & LAPLANCHE. Vocabulário da psicanálise, 1988. 102

Figuras 44, 45, 46 e 47: Área de lazer no Morro da Mangueira. Fonte: Acervo Isis Mendes; Cartola. Fonte: diversita.blog.br. Acesso em jan. 2012. Alunos da Orquestra de Violinos se apresentando num programa de televisão. Fonte: Acervo do CCC; Responsáveis por alunos da Orquestra de Violinos. Fonte: Acervo Isis Mendes.

O filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth tem escrito sobre temas ligados à sociedade, incluindo os modos como ocorrem as relações sociais na atualidade, principalmente em seu viés de poder, reconhecimento social e respeito. Seus conceitos de reconhecimento e de solidariedade vêm aqui relacionados à própria atividade do projeto sociocultural da Orquestra de Violinos. A aproximação das atividades e especificidades do projeto com os conceitos de solidariedade e reconhecimento ultrapassa questões de avaliações e de julgamentos. Durante a pesquisa, quer nas entrevistas e visitas ao campo, quer no momento das leituras, foi sendo constatada a importância de atitudes e de iniciativas solidárias como um dos possíveis antídotos às doenças sociais, advindas de várias frentes, como: contágio da globalização, política neoliberal, insólito individualismo, esmaecimento das tradições, preconceito de toda sorte, discriminação, desequilíbrio das balanças monetárias, fenômeno da violência, dentre outras mazelas. 103

A respeito do alastramento da pobreza, devido ao poderio da economia globalizada fora dos controles políticos e das dimensões territoriais locais, Bauman, no livro A sociedade individualizada (2009), cita exemplos da grande desigualdade de renda existente no mundo. Comenta ele que os três homens mais ricos do globo possuem bens privados cujos valores superam o Produto Interno Bruto combinado dos quarenta e oito países mais pobres: “O fardo maior dessa desigualdade atinge os países ‘em desenvolvimento’, dentre seus habitantes ‘um terço não tem acesso a água potável’” (BAUMAN, 2009, p. 148). De fato, uma estatística lamentável. Apesar de, a partir de 2001, ter diminuído o seu índice de desigualdade de renda, segundo dados do IPEA (Instituto de pesquisa econômica aplicada), o Brasil ainda é conhecido por apresentar um alto nível de desigualdade, o que traz consequências sociais desastrosas. Mesmo com todos os programas sociais do governo do presidente Luis Inácio da Silva, que retirou da linha de miséria milhares de cidadãos, ainda existe um panorama muito deficiente quando consideradas as condições socioeconômicas da população. As favelas cariocas abrigam uma vasta gama de problemas políticos, econômicos e sociais. O complexo da Mangueira lida com precariedades comuns a tantas outras existentes na cidade do Rio de Janeiro. As diferenças entre elas dizem respeito aos investimentos do governo naquelas áreas, a localização dentro da cidade e a forma de convívio da comunidade. Além do preocupante e triste quadro da pobreza local/global, a indiferença quanto às situações adversas de que padece a grande parte da população enfraquece elos solidários. Os individualismos tão propalados nesses tempos veiculam mensagens que se retroalimentam, num enfraquecimento dos laços. As entrevistas com alguns moradores da comunidade da Mangueira demonstram a importância da união como meio de minimizar as dificuldades que eles enfrentam, como é o caso de E.:

Eu vivo a realidade do Quilombo. Eu sei quem é o meu vizinho que tá com fome. Eu sei quem é o meu vizinho que tá doente que precisa de ajuda e que ele não tá tirando onda contigo de te pedir ajuda à toa, ele está falando pra você que está com fome, que ele necessita. [...] Eu divido o que tenho, eu, por exemplo, eu não preciso botar um quilo de feijão no fogo, mas eu já botei 1,5 kg pra dividir com outros que estavam com fome. (2011)

A moradora G. fala sobre a figura da sua mãe na favela, da afetividade e auxílio aos outros moradores: Aqui em casa não tinha chave na porta, sempre foi um entra e sai que nunca acaba. [...] As vizinhas pediam auxílio pra tudo para minha mãe. Quando o filho da vizinha 104

ficava com febre, quando alguma vizinha ia ter bebê, às vezes não dava tempo de a ambulância chegar e nascia aqui em casa mesmo, ela acolhia a todos. (2011)

Essa questão da proximidade geográfica leva a rearranjos nas relações entre as pessoas e aumenta as possibilidades de ação. Honneth (2009) coloca como eixo de sua teoria crítica as categorias de “reconhecimento” e “conflito social”. Utiliza como base os estudos sobre a luta por reconhecimento do “jovem Hegel”, desenvolvendo-a, posteriormente, segundo outras concepções, como a de George Mead. Enfatiza os processos de construção de identidade pessoal e coletiva, salientando que a formação da identidade se dá num processo intersubjetivo entre parceiros de interação. Para Honneth (2009), o primeiro padrão de relação se dá pelo amor, sendo esta a primeira etapa de reconhecimento recíproco, dada numa relação primária com o outro – relação de dependência da criança com a mãe. Honneth recorre a Winnicott para dar conta dessa formação subjetiva. O outro padrão de relação abordado por Honneth (2009) está relacionado ao direito em cuja forma moderna do sistema jurídico os direitos são universalizáveis. Antes da mudança de constituição jurídica, a estima social era dada pelas atribuições e propriedades particulares do sujeito, pelo prestígio social de que gozava; agora os direitos têm de ser dados de modo igual a todas as pessoas, pois elas merecem o respeito de todos. Para que o indivíduo tenha uma autorrelação positiva, três condições precisam ser satisfeitas: dedicação afetiva, reconhecimento jurídico e a estima social.

Figura 48: Centro Cultural Cartola - Representação de barracos da favela nas Paredes do Salão. Fonte: Acervo Isis Mendes.

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Honneth recorre a Max Weber para fazer a relação de como a estima social está ligada à honra: “O sujeito, na medida em que possa vir a realizar atividades que correspondem aos valores culturalmente estabelecidos pela sociedade, atinge o status que lhe dá uma reputação social entendida nesses moldes tradicionais como a honra” (HONNETH, 2009, p. 202). Com o “desaparecimento” da atribuição de honra aos valores previamente determinados, a estima social aporta na questão da dignidade humana. Agora são “as capacidades biograficamente desenvolvidas do indivíduo aquilo que começa a orientar a estima social” (HONNETH, 2009, p. 205). As capacidades individuais vão ocupando lugar no cenário do reconhecimento da estima social onde, anteriormente, eram os grupos sociais que ditavam os valores. O indivíduo agora adquire confiança em relação as suas capacidades e realizações, consideradas como “valiosas” pelas outras pessoas da sociedade. Honneth denomina de solidárias as relações que se dão no interior de um grupo que divide os mesmos valores, que se estimam pelas identificações de interesses similares. “Por solidariedade pode-se entender, numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida, já que eles se estimam entre si de maneira simétrica” (HONNETH, 2009, p. 209). Porém, quando as formas de reconhecimento são recusadas, os indivíduos perdem a compreensão positiva que têm de si próprios, podendo vir a danificar a sua identidade. Saavedra & Sobottka enfatizam sobre os danos que o desrespeito pode causar a uma pessoa:

Para que os atores sociais possam desenvolver um autorrelacionamento (Selbstbeziehung) positivo e saudável, eles precisam ter a chance simétrica de desenvolver a sua concepção de vida boa sem sofrerem os sintomas das patologias oriundas das experiências de desrespeito. [...] Quando um ator social experimenta uma situação de desrespeito, consequentemente a sua autorrelação positiva, adquirida intersubjetivamente, adoece (SAAVEDRA & SOBOTTKA, 2008, p. 14).

A privação do reconhecimento é sentida como uma forma de desrespeito. Honneth (2009) apresenta três formas de desrespeito: a primeira advinda de lesão física, quando a pessoa fica submetida, sem proteção, à vontade arbitrária do outro e tem como conseqüência a perda da confiança em si própria, conseguida na fase da dedicação amorosa. A segunda diz respeito à exclusão de direitos sociais – isso lhe traz o sentimento de não gozar do mesmo status que um companheiro de interação, de mesmo valor, possui. Tal fato lhe prejudica a expectativa de ser reconhecido como uma pessoa com capacidade de formar juízo moral. Finalmente, a terceira forma de desrespeito converge para o rebaixamento do valor do 106

indivíduo na sociedade, onde não é atribuído valor as suas capacidades e propriedades, ou seja, a sua forma de vida e as suas crenças são consideradas de menor valor. Com isso, a autorrealização do sujeito é abalada pelo desrespeito, havendo uma perda da autoestima pessoal, já que “são as três formas de reconhecimento do amor, do direito e da estima que criam primeiramente, tomadas em conjunto, as condições sociais sob as quais os sujeitos humanos podem chegar a uma atitude positiva para com eles mesmos” (HONNETH, 2009, p. 266). Essas experiências de ofensa direcionadas ao indivíduo podem trazer sequelas psíquicas, e a geração de sentimentos como a vergonha social e a ira. Os sentimentos negativos advindos das situações de desrespeito social, sejam em resposta a uma lesão física, sejam quanto à exclusão dos direitos sociais ou à degradação cultural de forma de vida, carregam o potencial motivador para encetar a luta por reconhecimento. Nesse contexto, a luta só pode ser considerada social se seus objetivos abrangerem o movimento coletivo, como é o caso do reconhecimento do direito e da estima social que são capazes de afetar outros sujeitos. Em contribuição com esse estudo, o professor Jorge C. Soares56 envia-me explicação a respeito do conceito de conflito social para Honneth,

“Conflito social” como um embate de perspectivas sobre as maneiras de viver, de sentir e de ser no mundo da vida. Para Honneth, como para os demais frankfurtianos, vários fatores colaboram para que isto aconteça, mas as graves discrepâncias econômicas e sociais entre as classes sociais que compõem uma dada sociedade fomentam em muito a possibilidade de conflito, de incompreensões sobre a perspectiva do outro, que, às vezes, estão calcadas somente em idealizações, já que o outro é, na maioria das vezes, um “desconhecido” (Texto enviado por e-mail, 2011).

Para Soares (2011), projetos sociais de engajamento e aproximação social tendem a diminuir essas idealizações e conduzem a uma possibilidade maior de re-leitura desse outro, que, quase sempre, é visto como algo a ser temido ou uma “classe perigosa”. Aqui o preconceito contra os moradores de favelas, negros, pobres tem uma incidência lasciva. No trabalho de campo, foram ouvidas histórias de vários sujeitos que traduziam o que se pode chamar de ofensa social na concepção de Honneth (2009) – como, por exemplo, os desconfortos oriundos das precariedades dos serviços prestados a comunidade. A própria História mostra a relação desrespeitosa com que os moradores dessas localidades são

56 Professor Doutor do departamento da Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ. 107

considerados, quer pela polícia, quer pelo descaso político, quer pelo olhar preconceituoso dos moradores de outras áreas da cidade. Outras formas de desrespeito podem assolar o autoconceito, como o individualismo manifestado em vários segmentos da sociedade, a falta de cooperação com o outro, a coisificação das pessoas, ou seja, o indivíduo, ao tratar o outro como objeto, adota “estilos” de vida da sociedade atual que constitui, segundo Santos (2002), uma forma de desrespeito às pessoas. As situações de desrespeito despertam sentimentos que podem vir a mobilizar os indivíduos para a luta social, mas não apenas no sentido de busca ou aumento de poder, mas uma luta que visa a sua moral e integridade, já que um dos pontos defendidos por Honneth (2009) é que a formação da identidade está ligada, desde o início da vida, diretamente ao assentimento do outro, num movimento de mútuo reconhecimento. Por outro lado, a conquista do reconhecimento social leva ao caminho da cidadania pela consideração e conquista dos direitos que concedem ao indivíduo o autorrespeito perante aos demais membros da sociedade. Os projetos sociais, de modo geral, são construídos em cima de reivindicações já existentes na sociedade, podem ser considerados resultados de vários movimentos orquestrados pela sociedade em busca de direitos sociais, de direitos trabalhistas, de liberdade cultural, e tantos outros que venham a “reparar” as desigualdades e injustiças da nossa sociedade. A regente da Orquestra de Violinos, Noemi Uzeda (2011)57, testemunha sobre a contribuição de um projeto que envolve música fomentando cidadania e auxiliando na participação mais ativa dos jovens na sociedade. Seu depoimento aponta para os resultados diretos do projeto como meio de auxílio na transformação de vidas: “Eu sentia que a linguagem musical transforma não porque tenha algum recado de palavra, nem mensagem, mas é porque ela traz em si outra forma de sentir a vida”. Como enfatiza Nilcemar Nogueira, a Orquestra abarca os desdobramentos típicos de um projeto artístico-cultural: “O trabalho aqui não é só a música; a música é o caminho. Eles viajam, vão ao teatro, cinema, participam de reuniões”. Sayonara completa:

A Nilcemar [...] sempre procura algo a mais. Isso a gente vê no projeto com uma participação no DVD da Alcione. Ela vai à luta em defesa do samba e da comunidade, principalmente, isso também é um dos méritos dela. [...] Os meninos do violino têm acesso ao jiu jitsu, capoeira, telecentro (internet), cinema para eles e

57 UZEDA, N. Coordenadora pedagógica e regente da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras, no Centro Cultural. Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 108

também para os pais. Alguns pais nunca entraram num cinema, nunca foram ao Teatro Municipal e conseguiram isso acompanhando os filhos. (2011)

Figura 49: Apresentação da Orquestra de Violinos, com Gabriela, bisneta de Cartola. Fonte: Revista Samba do Centro Cultural Cartola

A oportunidade de entrar em contato com artistas nacionalmente reconhecidos, de viajar e de frequentar ambientes sofisticados, está entre as mudanças que se operam na vida daqueles que participam da Orquestra, como Nogueira (2011) explica: “Eles abrem a cabeça para o mundo; eles saem daquela vidinha circunscrita da comunidade e começam a desejar outras coisas e a ver também que tem um caminho duro e aí o instrumento não poderia ser melhor – ele tem de ali pegar aquelas cordinhas da crina do cavalo e tirar o som”. A transformação é vivida igualmente pelos familiares, como comprovam as palavras de Sayonara: “As crianças e os pais começam a ver a importância do CCC como orientação na formação de um cidadão dentro da sociedade. Eles começam a ter uma postura dentro das atividades de que participam, e isso emociona a todos”. Chamada para intermediar relações conflituosas no Centro Cultural, a psicóloga Edna Chernicharo58, que, desde 2010, mantém ali seu consultório, lança sobre a questão um olhar atento, aqui resumido:

A importância é que o Centro Cultural oportuniza pessoas, desde a criança até o idoso, a terem um espaço de convivência com a arte, pela cultura, pela dança, pela música. A importância é esse poder de escolha que essas crianças e jovens passam a ter. [...] Os benefícios que elas (crianças da OV) têm não são visíveis, não são mensuráveis, até porque as crianças e os jovens que escolhem determinados projetos já têm um outro olhar. [...] As crianças que têm um poder aquisitivo maior, que têm uma família mais estruturada, que têm um pouquinho mais de cultura e de conhecimento tendem a vir para a Orquestra de Violinos. As crianças mais levadas, ditas menos

58 Entrevista concedida a Isis Regina dos Santos Mendes. Gravada. Rio de Janeiro, 2011. 109

talentosas, vão para a capoeira, para a percussão, que são ainda ligadas a uma cultura mais popular, menos erudita. (2011)

Sobre os benefícios não mensuráveis de que fala Chernicharo, Sayonara completa:

O que me salta os olhos é a autoestima deles, o crescimento dessa autoestima junto com o seu crescimento natural; elas começam a se sentir importantes. Hoje elas são cidadãs, independente da idade. Se nós erramos, elas nos corrigem da mesma forma que fazemos com elas. Elas aprendem direitos e deveres. (2011)

Figura 50: Parte da equipe do CCC (2010). Ao centro, o saudoso Leonardo, falecido no final de 2011. Fonte: Acervo Isis Mendes.

O reconhecimento que essas crianças recebem através dos seus feitos na Orquestra (participação de atividades valorizadas socialmente, apresentações em espetáculos, contato com figuras eminentes da sociedade) traz-lhe “prestígio social” diante das pessoas a sua volta, e isso é motivo de muita alegria e de orgulho para eles. O aluno J. expressa como se sente nas apresentações: “O nosso público colabora muito quando a gente desafina, até hoje nunca recebemos nenhuma vaia” (risos). A. expõe o valor que dá ao violino: “Agora com o violino eu estou mais inteligente, porque o violino é uma coisa inteligente”. Em muitas ocasiões, pude observar o modo cuidadoso como eles carregam o instrumento, numa indicação de que estão de posse de algo de grande valor. N. resume numa bela frase a respeito da representação do violino em sua vida: “É muito difícil de explicar, o violino para mim é o centro de tudo, ele traz felicidade para mim, trato o violino como se fosse parte de mim”. 110

O grupo da Orquestra de Violinos apresenta-se de forma bastante coesa. Os alunos se ajudam quanto ao preparo do instrumento – os mais experientes ajudam os “novatos”, uns apóiam os outros no enfrentamento de obstáculos, como acontece nas apresentações. Honneth (2009) evidencia as relações solidárias existentes no interior dos grupos onde todos se estimam. Para ele, de um modo mais geral, a solidariedade pode ser entendida por “uma espécie de relação interativa em que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida, já que eles se estimam entre si de maneira simétrica” (2009, p. 209). Não se trata de enveredar por uma panacéia do reconhecimento, mas de ressaltar, através da complexa teoria de Honneth, as tramas de uma sociedade onde o desrespeito desconstrói categorias humanas de integridade física, integridade social e autoestima. Ao contrário, o respeito, em seus aspectos de dignidade, promove o autorrespeito, a autoconfiança e a autoestima, na valoração de capacidades e no reforço dos direitos.

111

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho indagou sobre possíveis contribuições que projetos socioculturais com base na música podem trazer, em especial, às crianças e aos adolescentes neles inseridos. Visando à aprendizagem de uma profissão diferenciada, a iniciativa da Orquestra de Violinos Cartola-Petrobras é aqui considerada como capaz de proporcionar o reconhecimento social, por meio de ações conjuntas, a saber: dedicação da equipe de professores, interesse verdadeiro pelo desempenho do aluno, condições intersubjetivas de relação como fator importante para a autorrelação positiva, apresentação de outros cenários e vivências que alimentam a esperança de se obterem melhores condições de vida. Foram tomados vários direcionamentos na busca de variáveis que pudessem influenciar, positiva ou mesmo negativamente, os resultados da pesquisa. O instrumento privilegiado para a coleta dos dados foi a entrevista não diretiva, que permite o aprofundamento das informações fornecidas pelo entrevistado. As primeiras pessoas entrevistadas foram do corpo técnico da Orquestra de Violinos, sendo o coordenador técnico, Leonardo Sá, o primeiro a ser procurado devido a sua grande experiência como gestor de projetos sociais e sua grande erudição em música. Antes de prosseguir com as considerações, narro um acontecimento ocorrido durante a pesquisa, como forma de licença para a continuação dos registros finais. No final de 2011, Leonardo falece subitamente, provocando grande tristeza em mim e em outras pessoas da Orquestra e do Centro Cultural que com ele conviveram de forma mais próxima. A pesquisa ficou de luto – permaneci um tempo sem conseguir produzir, pela lacuna deixada com a partida do amigo. Entretanto, o trabalho estava todo ali para ser conduzido em seu final, e assim deveria ser feito. Leonardo Sá não só forneceu importantes esclarecimentos a respeito do funcionamento do projeto da Orquestra de Violinos, como também auxiliou na condução prática da pesquisa, apresentando-me aos responsáveis, corpo técnico, crianças e adolescentes. Do relato do Leonardo, destaco a solidariedade dispensada ao outro, como forma de trabalho responsável, com objetivos práticos (profissionalização qualificada, no caso) para a vida das crianças e adolescentes:

112

A ideia de fazer uma orquestra na região da Mangueira não é uma questão de brincarmos de orquestra; é algo feito com muita seriedade e um dia, quem sabe, esses meninos irem para uma orquestra profissional. Se nós chegarmos ao ponto de podermos formar jovens músicos capazes de irem para uma orquestra profissional, então nós vamos pensar em formar uma orquestra filarmônica da Mangueira. (2011)

No discurso da equipe técnica, a dedicação ao trabalho tornou-se poderosa ferramenta de transformação para a vida dos participantes da orquestra. A fala da regente Uzeda exemplifica tal esforço:

A minha postura não é de achá-los que são coitados, são pessoas iguais a mim, mas só que tento provocar que se desenvolvam e dar condições para isso. [...] Fico o tempo todo tentando inventar coisas para que eles se desenvolvam, mas não é porque eu esteja ajudando, o meu objetivo não é dar esmolas, eles precisam de assistência, mas é para que eles não passem mais por tanto sofrimento. (2011)

Nas visitas ao Centro Cultural, pude acompanhar o incansável trabalho dos professores, no ensino da música, dos funcionários do Centro, no suporte administrativo, dos participantes, no aprendizado e na preocupação em não desafinarem o instrumento, dos responsáveis em acompanhá-los nessa trajetória. Obtive deles alguns relatos de muitas mudanças ocorridas na vida dessas crianças e adolescentes. Portanto, mesmo com várias evidências, não é possível medir, objetivamente, os benefícios que advêm do ato de fazer parte de um grupo voltado para a expressão artística; a opção pela entrada na Orquestra parece indicar, em primeiro lugar, uma mudança de pensamento, que por sua vez, pode vir a desencadear várias outras mudanças de ordem comportamental nos alunos, como visto na fala de vários responsáveis ao serem perguntados se foi observada alguma mudança nas crianças após a entrada no projeto:

Mãe de L.: Em relação ao comportamento da L., eu senti alguma diferença, ela ficou mais calma,

Avó de T.: Ela ficou um pouco mais calma [...]. Acho que ficou um pouco mais concentrada.

Mãe de A.: Acho que tirou mais a timidez dela, ela está bem mais solta, às vezes até tenho que travar um pouco.

Mãe de R.: Ele mudou muito, ficou mais responsável, mais seguro das coisas, mais concentrado.

Mãe de M.: Ele ficou mais responsável, levanta pra ir para à explicadora sozinho, não precisa mais eu chamar. Outro dia, quando levantei, ele já estava saindo.

113

As próprias crianças e adolescentes relatam alguns benefícios obtidos: em geral, acham-se mais calmos e concentrados. A. relatou que ficou mais inteligente depois que começou a estudar violino: “Agora, com o violino, eu estou mais inteligente, porque o violino é uma coisa inteligente, a pessoa precisa de inteligência para tocar e eu estou ficando cada vez mais porque tem que tocar as notas certinho também a corda que a gente precisa botar o dedo certinho”. T., de onze anos, refere-se ao aprendizado do violino como responsável pela maior união em casa: “Em casa as pessoas estão mais juntas, a relação fica mais perfeita, eu toco violino e a minha família vê, então a família fica mais reunida. Eles me ajudam mais com as coisas que faço, como na escola”. T. enfatiza também a melhora das notas na escola, pela especificidade do poder de concentração que a aprendizagem do instrumento proporciona: “Na escola está tudo indo bem, as minhas notas estão boas. No violino, a gente tem de aprender a escutar; então, eu estou aprendendo mais. Com as músicas clássicas tudo tem um tempo, então eu aprendi a ficar mais calma. Eu acho que fiquei mais calma”. J. menciona que, além do aprendizado, o relacionamento com as pessoas do projeto lhe proporcionou uma maior concentração:

Eu mudei muita coisa. Eu era muito agitado e bagunceiro, depois desse contato com o pessoal daqui, com os professores e colegas as coisas mudaram, até a minha mãe falou que eu me acalmei muito. Aqui a gente consegue até esquecer os problemas. Eu fico concentrado e isso me traz uma calma. (J. , 2011)

A regente da orquestra fornece algumas explicações em relação à obtenção da concentração e do desenvolvimento cognitivo proporcionados aos estudantes de música e, especificamente, do violino:

A música é um sistema principalmente mental de organização, e é desse sistema que essas crianças estão se beneficiando quando estudam música. A linguagem que a gente passa através da música tem um processo tão profundo neuronal que em algumas universidades estão pesquisando como isso se processa colocando eletrodos nas cabeças das crianças que começam a tocar violino com rapidez. No caso do violino as terminações nervosas para você conseguir afinar, tem que perceber na pontinha do dedo a afinação. Então o seu cérebro começa um tipo de pensamento muito fino e descobriu-se que ele é ativado em lugares que nunca ficam ativados por qualquer outra atividade. (2011)

Para a regente, a aprendizagem do violino pode, juntamente com o “poder” do som, beneficiar intelectualmente os alunos:

114

Fica claro para mim que em algumas aulas de violino é possível chegar a um lugar onde acho que consigo proporcionar um processo de pensamento em que a criança possa ser mais criativa, só pela criança tocar ela será ativa no seu processo de pensamento no seu processo de construção e sentir prazer no seu próprio físico através do som. Então acho que o som é uma coisa muito forte, é uma concentração tão forte em que seu físico está agindo, seu cérebro está agindo, suas terminações nervosas estão agindo de uma forma construtiva e positiva e com isso fica um recado muito forte, fica muito presente. (2011)

De posse do novo modo de pensar, as famílias dos integrantes vivem uma espécie de “efeito dominó” e também se veem afetadas em suas expectativas de vida, que aumentam; cada conquista alcançada aciona sentimentos de autoestima e promove a cidadania. É como se fosse uma cadeia de novos significantes estruturando novamente cada sujeito de modo a modifica-lo e consequentemente provocando modificações àqueles que com ele convivem. Os trabalhos realizados pelos funcionários do Centro Cultural Cartola imprimem de modo marcante a preocupação e os votos ofertados às crianças e aos adolescentes de uma transformação significativa de vida. Encaram como bem precioso o ensino da música para crianças e jovens da Mangueira. Ioní, a administradora do Centro, relata, emocionada, suas observações:

Uma orquestra de crianças que eu só vim ver aqui. É maravilhoso, tudo de bom, eu até choro quando assisto. Emociono-me muito com as crianças pequenas daqui, normalmente tão discriminadas e elas ali com um futuro, eu as vejo como músicos, vejo uma dedicação delas quando estão tocando, como se elas só tivessem aquilo em suas vidas. Eu vejo esse projeto como uma oportunidade muito grande. (2011)

Tônica presente em quase 100% dos depoimentos, a dedicação e o trabalho incansável são os combustíveis para o alcance dos bons resultados do projeto. Na opinião de Ioní, o que faz com que o projeto alcance o sucesso em relação aos seus resultados é “muito trabalho, amor e dedicação da Nilcemar e de todos que aqui trabalham. Chega a ficar noites sem dormir para fazer esse projeto caminhar”. A Orquestra de Violinos é fruto de uma ideia “revolucionária” do maestro Leonardo Bruno, pois parte de um movimento de inclusão de negros num espaço elitizado, como se observa na fala de Nilcemar, ao contar sobre o início da história da Orquestra de Violinos: “E ele me disse que tinha um sonho de colorir as orquestras da cidade, ou seja, de ter mais negros nas orquestras sinfônicas”. Projetos sociais, de modo geral, são resultantes de lutas travadas anteriormente a sua existência; são construídos em cima de reivindicações já existentes na história da sociedade, 115

ao longo de sua evolução, expressas em ações sociais, cuja expansão, no Brasil, data da época do golpe militar na década de 1960, como atesta Naves:

Quanto aos movimentos sociais, para compreendermos suas origens no Brasil é preciso voltarmos à década de 1960. Com o golpe militar de 1964, a repressão sistemática de todas as formas de contestação política e organização sindical fez com que a vida associativa se deslocasse para as comunidades e seus interesses localizados. [...] É quando se disseminaram os movimentos populares e sociais (NAVES, 2008, p. 567).

O projeto da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola também nasceu do empenho dos seus fundadores. Não se pode negar o fato de que um projeto sociocultural que se faz independente da estrutura proporcionada pelo Estado traz em si características próprias. Como toda ONG, o Centro Cultural Cartola depende de parcerias, quer com o setor privado, quer com órgãos do governo, para concretizar seus projetos. De acordo com as informações obtidas em seu site59, sua missão concentra-se em:

Promover a inserção do indivíduo na sociedade através da cultura, da preparação profissional e do resgate da dignidade, de forma a contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos menos favorecidos e para a redução das desigualdades sociais, buscando sempre no exemplo de Cartola a referência para a construção da cidadania pela arte.

A cidadania está atrelada à esfera dos direitos civis, políticos e sociais. Sua definição está ligada ao contexto histórico do lugar, às lutas até a independência. A luta travada para a manutenção do projeto perpetua-se, ou seja, não tem fim, pois a cada ano é preciso avançar para poder fazer jus aos recursos financeiros ali investidos. O objetivo maior do projeto não tem no assistencialismo sua meta, uma vez que ali não se faz apologia de soluções de problemas, mas, ao contrário, se investe no aprendizado, na educação em essência. A luta não está mais referida a levantes, e, sim, ao próprio dia a dia, com dificuldades, esforços, enfrentamentos das adversidades; enfim, trata-se de uma parcela de pessoas que se reúne e imprime esforços para a transformação das situações desfavoráveis vividas por elas. Espera-se que o maior alcance da cidadania possa contribuir para a retirada desses jovens do quadro/rótulo de vulneráveis, deslocando-os para uma posição de sujeito de suas ações, o que implica a total consciência dos próprios atos.

59 http://www.cartola.org.br/missao.html. 116

Assim, não são importantes apenas os direitos/deveres legais assegurados por contratos, mas os direitos/obrigações sociais que tornam possível a participação igualitária de todos em relação aos padrões básicos da vida. A solidariedade entra como mola propulsora à tomada de novos rumos. O fato de esses participantes morarem dentro na região do “Complexo” da Mangueira acarreta situações que ilustram a força das pessoas quando os laços de união estão presentes. Constatei, nas entrevistas com os moradores da Mangueira, uma grande luta para sobrepujar as frágeis condições do local. Os elos solidários efetivados com o outro da comunidade reforçam os vínculos e afastam o isolamento trazido com o individualismo dos tempos atuais:

É isso que eu gosto, da convivência, das pessoas que tenho um laço de amizade há muito tempo. Eu saio, viajo mas fico morrendo de vontade de voltar. Às vezes eu falo que estou doida de vontade de ir embora daqui, mas quando saio daqui fico doida de vontade de voltar. Agora mesmo estou aborrecida por causa dessa luz, mas depois a raiva passa (S., 2011).

Gosto muito daqui, dos meus vizinhos. Todo mundo é unido, todo mundo ajuda todo mundo (M., 2011)).

Se eu não abrir a janela dos vizinhos logo batem na porta preocupados, achando que tem doente, querem logo saber se é preciso levar ao médico. Se morre alguém, providenciam tudo, até a capela. São todos muito unidos. Avisam a todos, o horário da capela, horário do enterro, local, é só falar para um e todos se mobilizam. Independente de religião, qualquer problema você nunca está sozinha. Eu não me acostumaria morar em outro lugar. Tem certos lugares que ninguém nem te cumprimenta, aqui eu fico cansada de tanto dar tchau (G., 2011).

Embora acompanhadas de grande excitação, as apresentações das crianças e dos jovens da Orquestra parecem representar um “ponto alto” do projeto; nesses momentos, eles recebem o retorno do investimento deles, com os aplausos e a emoção da plateia. As apresentações parecem representar, factualmente, o reconhecimento social tão importante para a valorização dos indivíduos e do conjunto. Finalizando, para (1999) cidadania é um processo inacabado e sempre aberto a novas aquisições de consciência, de participação e de solidariedade. É, portanto, no convívio do dia a dia que o exercício da cidadania se constrói sob novas relações com os outros, com o poder público e com o meio ambiente. Se, por um lado, não se pode afirmar que um projeto sociocultural acarretará a instauração da cidadania, por outro, é possível observar, nos discursos aqui destacados, que o projeto da Orquestra de Violinos funciona como um operador de mudanças positivas no que diz respeito ao aumento da autoestima e da autoconfiança, à conscientização da necessidade de se investir sempre na educação, ao fortalecimento da união com um grupo de pertencimento; enfim, como traduzir 117

em palavras todas as aspirações desses sujeitos senão com a música de Cartola? “Sinto vibrando no ar, / E sei que não é vã, a cor da esperança, / A esperança do amanhã”.

Figura 51: Jovens da Orquestra de Violinos do Centro Cultural Cartola na UERJ. 2011. Fonte: centroculturalcartolaoficial.blogspot.com. Acesso em jan. 2012.

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Alagados. Paralamas do Sucesso / Herbert Viana e Bi Ribero

5 X favela. AfroReggae / Mv Bill

Eu sou favela. Seu Jorge/ Seu Jorge

Hino de exaltação à Mangueira. Chico Buarque / Chico Buarque

Meu nome é favela. Leandro Sapucahy / Leandro Sapucahy

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