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Afeto, Autenticidade e Socialidade: Uma abordagem do Rock como Fenômeno Cultural.

Jeder Janotti Junior

Resumo: O texto procura desenvolver ferramentas que possibilitem a análise do rock como um fenômeno cultural através das noções de afeto, autenticidade e socialidade. Dentro dessa abordagem o rock é compreendido como um processo cuja delimitação está vinculada não só aos aspectos históricos, mas antes de tudo às suas relações afetivas e sociais. A cartografia, a tensão entre os diferentes grupamentos rockeiros e as constituições dos gêneros acabam por demonstrar que as apropriações locais e suas relações com a cultura global são elementos fundamentais na compreensão do que é denominado rock.

Rock e Afeto O afeto é um local privilegiado para a compreensão do rock e dos inúmeros investimentos sociais encontrados nos grupamentos rockeiros. Investir afetividade em uma banda ou em determinado gênero musical é um modo de vivenciar o cotidiano através de posicionamentos afetivos diante da cultura contemporânea. Quando escolhemos determinado gênero musical em detrimento de outros ou optamos por comprar um cd em uma loja especializada ao invés de adentrarmos os grandes shoppings estamos produzindo nichos específicos para nossas manifestações culturais. Consumir nas grandes redes ou nos pequenos mercados especializados são construções afetivas diferenciadas. Portanto, antes de localizar o rock nas intermináveis discussões situadas no âmbito das várias estratificações culturais ou nas armadilhas do vale tudo denominado "cultura pop", é preciso conectá-lo a ambientes mais precisos e análises pontuais, e talvez por isso, mais funcionais. O rock é sustentado pelo envolvimento afetivo e as manifestações sociais daí decorrentes. De acordo com Lawrence Groosberg:

'Afetar'1 aqui se refere à qualidade e quantidade de energia investida em determinados lugares, coisas, pessoas, sentidos e assim por diante. É o lugar que ancoramos e navegamos no mundo, mas não individualista e desestruturado; e

1 Lawrence Grossber utiliza o verbo Affect, literalmente afetar, no desenvolvimento deste trabalho utilizo o substantivo afeto para tentar traduzir a idéia do verbo afetar, daí a insistência na idéia de que afeto pressupõe o ato de afetar e ser afetado. Uma tentativa de compensar a transformação da ação verbal na nominação substantiva.

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também não é somente pura energia psíquica escoando por entre as estruturas sociais de poder. O 'afeto', é articulado e estruturado de maneira complexa, produzindo configurações não só de prazer e desejo (através de narrativas econômicas), mas também de volição (ou de vontade), de disposições e paixões. Estas descrevendo a organização do que realmente importa. As paixões apontam para o fato de que as pessoas experimentam coisas, vivem diferentes identidades, práticas, relações, em diferentes níveis e de diferentes modos (1997:111).

Os afetos são lugares privilegiados de percepção local. Investir afetividade em um bar ou em uma determinada loja é preencher as cidades com práticas afetivas. Os aspectos geográficos não podem ser subestimados. As cidades são os lugares onde se formam as intersecções entre a cultura global e suas apropriações locais. A manifestação do rock é ligada aos espaços urbanos idéia de autenticidade. Para citar um exemplo, em Salvador, diante da pressão da axé-music, os espaços para shows de rock são poucos, o mercado é pequeno e as possibilidades de viver como músico de rock são bastante reduzidas, mas a coesão grupal parece ser demarcada de maneira ainda mais feroz; como pode ser observado no depoimento de um rockeiro em Salvador:

Rapaz, é extremamente difícil fazer heavy metal em Salvador, nada contribui, não existem produtores, casas especializadas, gravadoras, estúdios de gravação com técnicos que entendam de metal e apenas duas lojas especializadas em rock pesado. Quanto a particularidades eu acredito que o próprio fato de existir uma cena em Salvador, cidade do axé, com bandas de qualidade já é algo fantástico (Serafin, vocalista e tecladista da banda de heavy metal Carnifire, entrevista ao autor em junho de 2000). O rock é uma espiral de afetos. Os diversos gêneros e grupamentos urbanos afetam e são afetados pelo aparato denominado rock. Os rockeiros fazem significar o mundo nas diferenças. A demarcação dos lugares é construída em relação ao outro, que varia de acordo com diferentes contextos e diferentes situações:

A história do rock é marcada por uma contínua disputa entre o que é na verdade rock autentico e que grupos são realmente dedicados a essa autenticidade. Para ser claro, eu não estou dizendo que o que importa de fato é a autenticidade, antes de mais nada, autenticidade é um efeito das diferenciações do rock, da lógica operacional na construção das relações entre cenas, diferentes aparatos, e, mais importante diferentes alianças (GROOSBERG 1997 :113).

O rock é um mapa reconstruído constantemente, sujeito às forças do mercado, dos vazios entre gerações e das diferentes juventudes presentes em uma mesma geração. Reconstruir Recife na união do rock com o maracatu pode ser significativo para uma geração que procurava revitalizar suas raízes culturais, mas pode ser extremamente paralisante para grupamentos urbanos que querem proferir sua aderência ao rock como linguagem mundializada. O global pode ser o que permite o reconhecimento do regional como

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação diferencial ou o que permite que as raízes sejam relativizadas, possibilitando que certos grupamentos urbanos possuam uma caracterização mais preocupada com as relações mundializadas. O cotidiano é demarcado na tensão entre ser rockeiro e as pressões exercidas por outros espaços da vida social. Hoje, o rock dificilmente se coloca como uma opção entre um estilo de vida marginalizado ou cooptado. Ele abre espaços que permitem saltos dentro das práticas cotidianas:

Apesar de não poder estar fora da vivência do dia-a dia, a trajetória de sua mobilidade pode ao menos (mesmo se isso não for definitivo) apontar um mundo transcendente, uma alternativa para o dia-a-dia. É como se o rock imaginasse que 'Saturday Night' estava fora das amarras da territorialização e projetasse um mundo em que a qualquer momento fosse possível de ser vivido como "Saturday Night" (GROSSBERG 1997: 115). O processo do rock não projeta mais uma vivência totalmente alternativa. A resistência ao modelo econômico e social é dada antes de tudo na possibilidade de vivências em meio ao turbilhão social e econômico do fim de século. É um modo de sobrevivência dinâmica, que propicia alguns ancoradouros em meio às incertezas da cultura contemporânea. Mas ao contrário do fim da década de sessenta e do início dos anos setenta, o rock não é o único e nem o mais proeminente aglutinador das idéias de autenticidade ligadas à juventude (Se é que podemos falar que ele realmente desempenhou esse papel em termos de Brasil). O rock sofre hoje externamente com o mesmo fenômeno que lhe é reconhecido internamente, o policentrismo: A nova formação pode certamente incluir grande parte do techno pop e até do hard rock, especialmente algumas cenas e aparatos alternativos. E eles devem ser colocados juntos ao lado de aparatos e cenas como o Festival Lollapalooza. Mas também deve incluir, de forma mais centralizada do que a formação do rock, textos televisivos e fílmicos e suas práticas (como também uma ampla camada de outros imaginários culturais) (GROOSBERG 1997:119).

Rock e Socialidade O rock é um produto midiático surgido no pós-guerra. Podemos localizar suas raízes nas apropriações que músicos como Elvis Presley e Bill Halley fizeram do blues, rhythm blues negros em seu encontro com a música branca norte-americana. O rock carrega o peso da melancolia do blues negro, sua rebeldia e conotações sexuais. Mas também não se pode deixar de lado o peso mercadológico (e as tensões que aqui surgem) de ser a música utilizada como forma expressiva pelo novo segmento que se configura na América do Norte nos anos cinqüenta, a juventude. Segundo Roy Shuker (1994), o termo rock and roll já era popular na década de vinte. O bluesman Trixie Smith gravou em vinte e dois a música “My Daddy

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Rocks me (With One Steady Roll)”. Mas a expressão só veio a firmar-se depois que os músicos brancos, e a expansão mercadológica que isso representou, difundiram o gênero musical como um campo afetivo que interligava rebeldia, sexualidade e novas formas de socialidade na nova configuração cultural do pós-guerra. A afirmação do rock como expressão musical ligado ao espaço juvenil veio com o sucesso de Elvis Presley (cujo requebrado foi considerado indecente por parte dos adultos norte-americanos da época) e com os filmes Blackboard Jungle (cuja trama envolve um professor em uma escola nova-iorquina cheia de problemas com a rebeldia dos alunos) e Rock Around the Clock, que popularizou o termo rock and roll e o tema musical interpretado por Bill Halley. Vale ressaltar que em várias partes do mundo foram noticiadas confusões e comportamentos agressivos dos espectadores nas exibições desses filmes. Alguns países chegaram a proibir a exibição de Rock Around the Clock. O potencial econômico da música rock foi detectada imediatamente não só pelas gravadoras, como pela indústria midiática de uma maneira geral. Segundo Roy Shunker o filme¨ (…) era apenas um motivo para os números de rock da trilha sonora ¨(1994 :255). Desde o início o rock firmava-se como um processo midiático: ¨As gravadoras por natureza não ligam muito para as formas que as músicas tomam, desde que elas possam ter assegurada o controle dos lucros - música e músicos podem ser embalados e vendidos-qualquer que sejam seus estilos¨ (BENNET 1999 :32). Mas reduzir o rock a um espiral histórico é perder de vista as potencialidades que uma arqueologia afetiva pode proporcionar em torno da compreensão de termos chaves presentes nas manifestações rockeiras. As expressões comunicacionais presentes na história do rock e em suas manifestações específicas permitem o entendimento de parte das manifestações juvenis presentes na cultura midiática e suas contradições. De acordo com André Lemos:

A socialidade marcaria ('daria o tom') os agrupamentos urbanos contemporâneos, colocando ênfase na 'tragédia do presente', no instante vivido além de projeções futuristas ou morais, nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de todo dia. Isso a diferencia da sociabilidade que se caracteriza por relações institucionalizadas e formais de uma determinada sociabilidade (1998: 2). Grande parte das questões que aparecem na análise do rock como processo apontam para a necessidade de estudos que estejam atentos para a dinâmica dos diversos gêneros musicais e suas formas expressivas no dia-a-dia. Segundo Lawrence Grossberg:

Dentro desse contexto, rock refere-se ao âmbito do pós-guerra, jovem- orientado, tecnologicamente e economicamente mediado pelas práticas musicais e seus

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estilos. Descrevendo o rock como uma formação2, eu quero enfatizar o fato de que a identidade e os efeitos do rock são mais abrangentes do que sua dimensão sonora. Falar do rock como uma formação demanda que nós sempre localizamos práticas musicais em um contexto de um complexo (e sempre específico) quadro de relações com outras práticas sociais e culturais; daí eu descreverei o rock como uma cultura antes de descrevê-lo como uma prática musical (1997: 102).

Os gêneros (rock and roll, heavy metal, rock latino, punk rock, rock progressivo…) formam fronteiras que se interligam através da produção, circulação e consumo das práticas de socialidade presentes no rock. A musicalidade, os discursos verbais e as práticas imagéticas são os elementos que agregam fãs, músicos, críticos e produtores. Esses feixes são construídos através de afetividades presentes na produção de sentido do rock. Para compreender tal fenômeno, partimos da definição do semioticista Louis Hjmeslev3: “O sentido em si mesmo é informe, isto é, não está submetido, em si mesmo a uma formação qualquer. Se há limites aqui, eles estão na formação e não no sentido” (1975: 79). Os sentidos forjados nas práticas rockeiras estão diretamente relacionados às práticas cotidianas. Antes de serem pré-delimitados por qualquer instância de produção, tais práticas envolvem a circulação e o consumo como fatores preponderantes na partilha das afetividades que envolvem os diversos gêneros. Ouvir Chico Science em Pernambuco pode ser completamente diverso de consumi-lo como prática antropofágica do rock brasileiro diante do mercado internacional da música latino-americana. As práticas rockeiras se manifestam como textualidades que englobam as constantes inter-relações entre produção, circulação e consumo. Os textos do rock só existem enquanto textualidades, espirais de sentido cujo:

(…) objeto examinado só existe em virtude desses relacionamentos ou dessas dependências, a totalidade do objeto examinado é apenas a soma dessas dependências, e cada uma das partes define-se apenas pelos relacionamentos que existem 1) entre elas e outras partes coordenadas 2) entre as totalidades das partes e os graus seguintes 3) entre o conjunto dos relacionamentos e das dependências a essas partes (1975: 28). A textualidade do rock é um processo, onde o que importa são as relações entre as partes, ou seja, dentro de uma espiral que conecta as expressões rockeiras através do consumo, circulação e produção de sentidos, afetos e textos rockeiros. A partir dessas relações é possível cartografar o rock em seus diversos gêneros e subgêneros. As cartografias dos gêneros são provisórias e dinâmicas. É mais fácil reconhecer um

2 Os grifos são de minha autoria. 3 Apesar de sua relações com a línguistica ‘strictu sensu’, o desenvolvimento (não a simples transcrição) dos conceitos de Louis Hjmeslev na análise e compreensão dos fenômenos da cultura contemporânea são extremamente úteis e funcionais.

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação gênero por afirmações que especificam o que ele não é do que pela descrição precisa de suas fronteiras. Podemos perceber isso claramente na crítica de uma ‘suposta’ banda de heavy metal retirada da revista Rock Brigade:

O primeiro calafrio já nos acomete quando o release informa que o Thou Shalt Suffer não pode ser definido via um dos rótulos metálicos usuais (death, power, etc.), mas sim como um 'sonho'. Lá vem 'bomba' supõe o ouvinte. E ela explode cruelmente em nossos pobres ouvidos, meu amigo. Pretensioso, convencido, metido a pomposo, pseudo-intelectual, desnecessário, sem pé nem cabeça, chato, moroso, forçosamente hermético, grosseiro esteticamente e totalmente maléfico à reputação de seu condutor, , baixista e vocalista do Emperor. Via tais palavras o leitor há de ter uma vaga idéia do que é este Sommiun. Na verdade, o Thou Shalt Suffer foi uma banda pré-Emperor de e Ihsahn, na época tipicamente . Depois da formação do novo grupo, Ihsahn manteve este como seu projeto paralelo, aos poucos juntando material para seu álbum debut. Demorou, mas infelizmente, ele não veio. Não há guitarras, baixo, vocais ou bateria neste CD, apenas um monte de sons viajantes e metidos a clássicos tirados de sintetizadores e teclados em geral. Mais uma prova de como podem fazer coisas ridículas esses caras do Black Metal que começam a se achar gêneros musicais. Passe bem longe! (Rock Brigade, n164,2000,p.29). Além da sonoridade e do campo imagético, o afeto rockeiro é envolto por determinadas configurações de campos temáticos (melancolia, euforia, violência, obscuridade, leveza, etc…) que são articulados através de estratégias discursivas - lento/rápido, centrado/descentrado, leve/pesado, superficial/profundo, diáfano/denso limpo/distorcido - produtores de zonas de sentido que irão dar coesão ao gênero através da apropriação cultural das temáticas presentes no consumo cultural. O grupo Legião Urbana, por exemplo, sempre esteve relacionado aos campos da melancolia e euforia associados não só às letras e sonoridade do grupo como à imagem de excessos e depressões do vocalista/letrista Renato Russo. Já o Titãs do disco Cabeça Dinossauro valorizou as estratégias discursivas rápido/descentrado/pesado/distorcido que envolveu um rock mais eufórico e violento,associado em alguns momentos aos gêneros punk/rock pesado. Entrando no universo dos gêneros podemos perceber como violência e obscuridade estão conectados às estratégias do heavy metal pesado/distorcido (como do grupo brasileiro Sepultura), enquanto o chamado "rock progressivo" do grupo inglês Pink Floyd está mais próximo aos campos melancólicos e obscuros; sendo as estratégias mais visíveis: lento/denso. A textualidade implica determinadas técnicas de configurações expressivas - musicalidade, letras, imagens, discursos de críticos, discursos de músicos e consumo musical- enformando temáticas que fundam os grupamentos rockeiros e suas especificidades. Esses elementos só são passíveis de separação durante o processo analítico, uma vez que como textualidade, eles se manifestam de forma interdependente. As escolhas operadas ao redor dos gêneros musicais são calcadas em julgamento de valores. Não há dentro do rock

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação um gênero que não indique uma certa maneira de interpretar e expressar determinadas afetividades diante da cultura,, mesmo que de maneira cínica ou desdenhosa. Como afirma Simon Frith: “Parte do prazer da cultura popular4 é falar sobre, parte dos sentidos é este falar, falar é reforçar os julgamentos de valor. Ocupar-se da cultura popular é fazer distinções (…). 'Bom' e ‘mau’ ou suas versões vernaculares (brilhante, sofrível) são os termos mais freqüentes nos diálogos culturais do dia-a-dia” (Firth 1998: 4).

Rock e valor O sistema axiológico é a base da cartografia não só do rock, mas da cultura musical de uma maneira geral. Um gênero musical dentro da cultura midiática é uma tendência para o investimento de determinadas valorações e afetividades. Cada escolha é um posicionamento que contempla aspectos de demarcações territoriais e uma referência a atribuições de valores diferenciados, fundados na negação ou desqualificação de outros gêneros. Quando uma gravadora, um músico, um crítico ou um fã assumem ou nega determinado gênero, eles o fazem de acordo com referências que estão situadas à margem ou nos confins das estratégias textuais, como é possível perceber na seguinte crítica:

Fãs de rock brazuca5, alegrai-vos! O grupo Homens do Brasil lançou seu álbum auto-intitulado que é uma verdadeira jóia no quesito rock nacional. Até quem não gosta desse tipo de música tem que tirar o chapéu para um trabalho bem-feito como esse. A sonoridade é bem trabalhada, aproveitando bem todo o ritmo e a musicalidade tipicamente brasileira num material que é 100% nacional, com letras em português, elementos brasileiros e temas nacionais. O sexteto paulista apresenta 11 faixas de pop rock, acessível, animado e bem tocado, com um instrumental bem sólido e o vocal caindo como uma luva. Não dá para negar a qualidade do trabalho dos rapazes (…) (Rock Brigade, n168,2000, p.28).

A cultura musical envolve modos de gostar/não gostar, modos de audição específicos e conseqüentes afetividades ligadas às apropriações da musicalidade. As divergências entre os fãs de rock são diferenças nos modos de posicionamento diante da cultura musical. A cultura centrada nos produtos musicais midiáticos está relacionada diretamente com aspectos da socialidade, elemento central na compreensão do modo como os rockeiros produzem sentido:

Se as relações são constituídas em práticas culturais, então nosso senso de

4 Na linhagem francesa e brasileira existe uma distinção entre cultura popular (de feições mais foclóricas ou nativistas) e cultura pop (popular midiática) que não é necessariamente observada pelos autores dos Estudos Culturais ingleses e norte-americanos. No caso em destaque, cultura popular faz uma referência cruzada ao encontro dos dois universos, já que é popular o ato de comentar, ouvir e partilhar o universo da cultura pop. No caso deste trabalho procura-se seguir a idéia de que cultura pop engloba parte da cultura popular. 5 Os grifos são de minha autoria.

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identidade e diferença é estabelecido no processo de discriminação (…) importante para os mais importantes níveis de sociabilidade (um aspecto do modo como as redes de amizade e namoro são organizados), e o mais importante nível das escolhas ligadas ao mercado (o modo como as indústrias da moda e propaganda procuram nos posicionar socialmente traduzindo jugalmentos individuais do que gostamos ou não em padrões de venda). As relações entre padrões estéticos e a formação de grupos sociais são cruciais para as práticas da cultura pop, para os gêneros, cultos e subculturas (CALABRESE 1998:18). A textualidade do rock pode alcançar espaços de produção de sentidos ampliados, ancorados em colagens que envolvem música, cinema, literatura e outras expressões midiáticas. O rock brasileiro do início dos anos oitenta esteve associado ao cinema através de filmes como Beth Balanço e Garota Dourada. Um fã do grupo de punk rock Ramones relaciona a música Pet Cemetary com o livro de Stephen King e o filme homônimo que popularizou a trilha sonora. Parte dos fãs do cantor Nick Cave ou do grupo irlandês U2 é capaz relacionar seu universo temático com alguns filmes de Win Wenders. Quando um rockeiro escolhe um gênero específico ou um grupo em detrimento de outros, ele está posicionando-se diante de nichos específicos de valorações afetivas e culturais:

Eles estão de volta! Os Zumbis do Espaço voltam ao ataque com seu billy altamente inspirado em Misfits. Inspirado? Na verdade a impressão que fica é de que os Zumbis ouvem Misfits o dia inteiro e ainda detonam uma sutil homenagem ao conjunto americano na faixa Demonolatria. No geral, é quase impossível não se divertir com esse CD e suas incontáveis referências a filmes de horror B, quadrinhos, defuntos, vampiras, piratas sanguinários, Ed Wood, Tura Santana, Bela Lugosi e outros maravilhosos e inesquecíveis ícones do estilo. Algumas músicas beiram o hardcore e convidam a poga agressiva, como a empolgante Vale das Almas Penadas. Igualmente contagiante é Caminhando E Matando, cujo ritmo é todo inspirado naquelas musiquinhas de piratas tipo 'Ho! Ho! Ho, uma garrafa de rum'. Pegue sua pipoca de groselha e seu guaraná, coloque 'Plan 9 from Outer Space'no vídeo e os Zumbis no Cd-player. É diversão garantida! (Rock Brigade, n167, 2000,p.28).

O espaço da textualidade rockeira é híbrido, local de afirmação de diferenças e indiferenças. O modo como os sentidos são vivenciados dão origem a campos de socialidades características que funcionam como marcos fronteiriços entre diversas formas de investimento afetivo. Debater a relevância e autenticidade de músicos como Cazuza, Arnaldo Antunes e Renato Russo é uma forma de discutir parte das cartografias existenciais e de posicionamentos diante da cultura pop brasileira. De acordo com Simon Frith (1998): a apropriação musical pode expressar o funcionamento de vários quadros de valoração do mundo ligados à crença (que intermédia realismo e fantasia); coerência (o que é bom/ruim); familiaridade (novo e novidade), usos (quando, onde e de que maneira ouço música) e um lado ligado à experiência estética (como

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação a música afeta o indivíduo e quais suas implicações cotidianas). A compreensão das manifestações rockeiras como processo midiático está relacionada às práticas cotidianas que dão forma a uma textualidade afetiva. Adentrar a casa de um rockeiro, deparar com sua coleção de posters, livros, revistas e cd's é ser convidado a penetrar no universo valorativo de suas práticas cotidianas. Em uma estante de livros ou cd's é possível perceber rigidez, ecletismo, falta de especificidades ou hibridismos.

Os meus cd's são guardados numa gaveta ordenada alfabeticamente. As revistas em outra gaveta, dividida em duas colunas: rock brigade e outras. Tenho outra gaveta destinada ao material que recebo da undermetal. As paredes são quase todas ocupadas por fotos do Iron Maiden. 1 do metallica, 1 do dream theater, 1 do angra. Na porta do meu quarto tem um pôster da formação do Maiden na época do x- factor (entrevista do músico e fã de heavy metal Marcelo Martins ao autor em agosto de 2000).

A idéia de uma constante tensão entre 'incorporação' e 'excorporação' é fundamental na construção da afirmação rockeira. A afirmação da diferença em relação ao tédio, a auto- ironia e a falta de sentido presentes na crueza do cotidiano é revertida como afetividade, transformada em expressões de prazer. O rock é auto-afirmação contra o tédio que reside nos espaços normativos do cotidiano: "Todo dia a gente se encontrava às 6 da tarde, começava a beber e metia bronca, tocando até às 10 da noite. James trabalhava de dia, eu trabalhava de noite, e aquelas quatro horas eram uma espécie de refúgio contra aquela babaquice" (Lars Urich, baterista do grupo americano Metallica, Bizz, janeiro 1988).

Rock e autenticidade Uma noção fundamental na compreensão do que efetivamente assume o valor de música rock (e suas implicações culturais) é a idéia de música cooptada como forma de contraposição à autenticidade do rock. De acordo com Grossberg: “Cooptação é o resultado de uma recontextualização do afeto, uma reestruturação das alianças afetivas que afetam e circundam a música” (GROOSBERG 1997:60). O rock utiliza a música dita 'cooptada' como um recorte das diferenças e da afirmação de sua socialidade. É um constante reordenamento das fronteiras e do que é importante na cartografia do rock. Por isso, a idéia de cooptação, e sua contrapartida a autenticidade, não pode se valer somente de aspectos históricos, ela depende de uma rede de relações afetivas. Só para citar um exemplo, o rock inglês da década de oitenta (como The Smiths e The Police) foi importante influência na formação das bandas brasileiras da década de oitenta (como Legião Urbana e Paralamas do Sucesso), mas foi considerado "música pop" por parte dos fãs de heavy metal que na mesma época construíam uma cena de rock pesado local, que

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação respondia a outras alianças afetivas. A idéia do que vem a ser rock depende de alianças descentradas e extremamente especializadas. Os fanzines especializados, pequenos selos e redes de distribuições específicas refletem a fragmentação, a tensão e uma imensa teia afetiva onde os detalhes e confins são extremamente valorizados. A história do rock é uma dinâmica constante entre o que foi denominado rock e o que é rock. A idéia de rock é sempre uma espiral de socialidade, investimentos afetivos na idéia de rock em geral ou em pequenos gêneros (moldando inclusive o que vem a ser rock para certos grupamentos, mas é inaceitável para outros):

Alguns localizam o rap como rock, posicionando rap como um novo lugar de autenticidade dentro do rock (reproduzindo a estrutura rock versus pop). Outros, reclamam que o rap não é parte da formação rock (normalmente apontando uma diferença crucial entre a formação musical negra e branca), no entanto, posicionando o rap como herdeiro da vitalidade do rock e de seu potencial como uma fonte de resistência (GROOSBERG 1997:104). A cultura rock responde à questão da cooptação de maneira espacial e temporal. A diferença entre gerações também é um fator fundamental nas demarcações fronteiriças do rock: "(…)'todos os nossos pais ouvem rock clássico - Led Zeppelin, The Doors' disse Josh McCall, 20 anos, operador de telemarketing, nas portas do show do Slipknot, 'Então comecei a ouvir algumas dos grupos jovens, como White Zombie e Gwar. De repente um monte de novas bandas apareceu, foi só uma questão de tempo" (New York Times, May 4, 2000).

Comunidades, Cenários e Cenas O consumo do rock, como a maior parte dos produtos culturais contemporâneos, se dá nas relações entre o espargimento dos meios de divulgação mundializados (turnês mundiais, distribuição/divulgação globalizada, partilha dos mesmos signos dos diversos 'territórios') que constituem comunidades de sentido; cenários regionais (revistas nacionais, grandes cadeias nacionais de venda de cd's, bandas locais que abrem os shows das turnês mundiais, turnês nacionais, relações específicas com determinado gênero) e as cenas locais (pequenas lojas, fanzines, pequenas apresentações e apropriações em espaços urbanos específicos). O consumo oriundo do que antes era considerado centros geradores do rock (EUA e Inglaterra) criou recontextualizações e reapropriações simbólico-musicais que dificultam visões mais tradicionalistas em relação à complexidade envolvida nesses fenômenos. Como afirma Jesús Martin Barbero: "A partir dos anos oitenta temos visto como mexicanos, argentinos, peruanos, colombianos têm assumido o rock como uma matéria expressiva através da qual afirmam sua própria identidade (…)" (1994: 145).

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O modo como a textualidade rockeira circula nas diferentes cenas e como essas experiências dão sentido ao espaço urbano passa pela valoração presente nos diversos gêneros e nas possibilidades inscritas nos diversos cenários. O rock possibilita a abertura para determinadas experiências, mas ao mesmo tempo restringe essas possibilidades através de suas práticas significantes e suas relações com as comunidades de sentido. Apesar de concordar com algumas críticas endereçadas a idéia de comunidade, é possível abordar com essa idéia graus variáveis de inter-relações entre a circulação dos gêneros através das cadeias midiáticas e suas apropriações nos consumos localizados. As comunidades que giram ao redor do rock são fontes de campos temáticos, valorações e experiências que interagem com os diverso(a)s cenários/cenas, permitindo a vivência de experiências afetivas ligadas à música rock. Vale notar, que parte da crítica ao conceito de comunidade é direcionada a idéia de comunidade localizada geograficamente, que aqui é substituído pela idéia de cena. Segundo Will Straw: “Uma cena musical, em contraste, é aquele espaço cultural em que redes de práticas musicais coexistem, interagindo umas com as outras e com uma variedade de processos de diferenciação, conforme uma diversidade de trajetórias de mudanças e inter-relações" (STRAW, 1991:373). As comunidades de sentido estariam ligadas à idéia de esquema, padrões estilísticos mundializados que formam diretrizes básicas para a constituição do cenário - as normas dos diversos gêneros do rock, quando filtradas pelos cenários nacionais (uma espécie de cena mais ampla). A apropriação local é o local de encontro entre os parâmetros estilísticos dos gêneros com os filtros e negociações locais, que englobam características que vão desde negociações lingüísticas até os contatos com a musicalidade local. Esse esboço permite abordar o rock como um processo, onde a dinâmica está presente nos diversos graus de interação entre comunidade de sentido, cenário e cena, formando assim, práticas significantes diferenciadas de acordo com o peso de cada uma das três instâncias e as capacidades de cada gênero em negociar/apropriar as "práticas significantes regionalizadas". Os gêneros do rock são constituídos dentro do processo de espraiamento de sentidos através da mundialização, para depois serem apropriados pelos grupamentos urbanos, que fazem movimentar as práticas significantes desses gêneros. É essa forma diferenciada que determina quem são seus membros, pois cada comunidade delimita fronteiras mais ou menos rígidas na massa amorfa dos sentido, privilegiando ou negligenciando alguns temas, valores e afetividades em detrimento de outro(a)s. Esses sentidos são expressos no modo como a música e os objetos que a circundam são apropriados. Os sentidos assumem formas

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação diferenciadas, dependendo das características específicas dos grupamentos urbanos que os ‘enformam’: “Música e estilo, como sugeri, funcionam como meios pelos quais a juventude pode negociar aqueles aspectos locais que eles acham pouco atrativos enquanto, ao mesmo tempo, modelam novas formas de identidades locais que simultaneamente conectam o global e suas expressões locais" (BENNET 1999:69). Em uma detalhada descrição das diversas fontes de produção do rock, Lawrence Groosberg, localiza as práticas significantes no que ele denomina "Rock and Roll apparatus":

O 'rock and roll apparathus' inclui não somente práticas e textos musicais, mas também determinação econômicas, possibilidades tecnológicas, imagens (de músicos e fãs), relações sociais, convenções estéticas, estilos de linguagem, movimento, aparência e dança, comprometimentos ideológicos e representações midiáticas do próprio aparelho. O aparelhamento descreve 'cartografia de gostos' que são sincrônicas e diacrônicas ao mesmo tempo e englobam os registros musicais e não-musicais do cotidiano (1997:41). Esse aparelho permite a percepção da idéia de rock como um processo. A comunidade de sentido global é partilhada nos discos, nas entrevistas, sites oficiais, imagens, nas grandes turnês e nas atividades midiáticas de padrão global. Os cenários são filtrados pelas revistas, distribuidoras/gravadoras nacionais, apropriação das entrevistas e críticas pelos zines/sites locais que possibilitam a construção das diversas cenas, local privilegiado da apropriação dos gêneros e de interação constante com as referências oriundas do esquema das comunidades de sentido. Na construção da cena estariam presentes os espaços de show de rock e sua tensão com a musicalidade local, a diferenciação entre as grandes cadeias de distribuição e lojas especializadas, enfim toda especificidade que passa pelo encontro do rock como um fenômeno globalmidiático e a especificidade do consumo/produção midiático localizado. O modelo parece enxergar como a dinâmica dos diversos gêneros e subgêneros do rock são dinâmicos e ao mesmo tempo dependentes das tensões e assimilações dos sentidos através das cenas e cenários. Se compararmos gêneros como o ska, que encontrou diversas formas de manifestação através das línguas locais (inglês, francês, português) poderemos perceber como a comunidade de sentido posiciona-se ideologicamente de maneira diferente do heavy metal, um estilo caracterizado pelas letras e expressões em inglês. É praticamente impossível um trabalho de análise que englobe todas as categorias de maneira equilibrada, em geral privilegiamos alguns aspectos do 'rock and roll apparathus', mas ele serve para lembrar-nos como são complexas as práticas significantes do rock. A formação rock é constituída por diferentes grupamentos que assumem diferentes formas e mapeamentos, e que, apesar de possuírem entrelaçamentos semelhantes, são diferenciados nas relações do aparato que as definem como comunidades de sentido, cenários

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e cenas de rock. A configuração do aparato, e conseqüentemente a constituição do gênero, é o que ao final permite o reconhecimento entre pares e a inscrição das diferenças, fundando às ‘ topografias do desejo’ (Cf.GROSSBERG 1997). As alianças afetivas que compõem as cenas são construídas através de uma bricolagem que une pedaços oriundos das comunidades de sentido, dos cenários nacionais e das culturas localizadas, ensejando práticas significantes através de cartografias musicais e simbólicas. Os modos como a apropriação musical e as práticas sociais que giram ao redor do consumo constituem uma cena é bastante significativo na análise do rock como uma máquina processual sujeita a constantes transformações diante da mundialização cultural: “Claramente, a questão não é a designação particular de espaços culturais como únicos ou alternativos, mas examinar os modos como práticas musicais particulares trabalham na produção de um senso de comunidade dentro dos padrões das cenas musicais metropolitanas" (STRAW 1991:373).

Rock como Processo A idéia de rock como processo permite localizar as raízes e citações não só em termos históricas, mas como forma de reconhecimento grupal, sinalizadores da comunidade de sentido, do cenário e uma espécie de marco diferencial para a bricolagem que caracteriza as cenas. Os grupos brasileiros de Recife têm como uma de suas referências musicais o tropicalismo, valorizando a colagem entre "brasilidades" e referências externas tal como exemplificada na música Maracatu Atômico e Mateus Enter(re) gravadas por Chico Science & Nação Zumbi:

"O bico do beija-flor, beija a flor, beija-flor/ e toda fauna flora grita de amor/ quem segura o porta-estandarte tem a arte, tem a arte/ aqui passa com raça eletrônico o maracatu atômico…"

"(…)cheguei com meu universo/ e aterriso no seu pensamento/ trago as luzes dos postes nos olhos/ rios e pontes no coração/ Pernambuco debaixo dos pés/ e minha mente na imensidão…"

Podemos perceber nessa ilustração um dos dispositivos característicos do rock, a fragmentação e o policentrismo, cuja configuração é disposta no modo como as comunidades de sentido e as cenas esboçam suas cartografias, dando visibilidade às suas textualidades. O rock só pode ser delimitado e abordado por um determinado olhar grupal. O que interessa aos fãs do grupo carioca Planet Hemp; a bandeira da liberação da maconha como lugar de contestação dos espaços normativos, a relação de musicalidade com o rock negro e hispânico (Jimi Hendrix, Reggae, Rock Against the Machine) e sua interconexão com o "samba

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação marginal" (Bezerra da Silva); pode ser de pouca valia, descartado como pop pelos os fãs de heavy metal. A formação do rock gira ao redor das idéias de instabilidade e movimento. A ligação entre os fãs e músicos, filtrada pelos produtores/críticos, cria portos afetivos que permitem aos jovens ancoradouros para agüentar a 'barra' do dia-a-dia: "(…) os investimentos afetivos do aparato rock and roll energia suas audiências com estratégias que, colocados topograficamente, definem níveis de oposição potencial e, geralmente, sobrevivência" (GROSSBERG 1997: 44). Abordar os diversos gêneros do rock como um processo nos leva a realçar os estudos localizados como fundamentais, porque apontam as contradições das apropriações culturais. Mas esse fator não nos deve deixar de lado as complexidades e a importância das estratégias globais que fundam as comunidades de sentido. De acordo com o gênero teremos estratégias discursivas espraiadas mundialmente ou fixadas nacionalmente. O Mangue Beat é uma cena conectada à determinada região (Recife-Pernambuco), localizada em um cenário de dimensões nacionais, mas cuja comunidade de sentido é essencialmente brasileira. Já as cenas de heavy metal são erigidas de maneira totalmente diferenciadas, onde a comunidade de sentido mundializada exerce um papel agregador preponderante em relação às cenas locais. O rock brasileiro da década de oitenta, por exemplo, iniciou sua trajetória com uma relação direta com bandas que marcaram a renovação do rock de uma maneira global durante aquele período (Paralmas/The Police… Legião Urbana/U2… Blitz/B'52… Titãs/Talking Heads… Ira/The Jam). Nessa época havia a necessidade de construção de espaços que delimitassem claramente o que era música popular brasileira e rock. O cenário forjado diante da cena (aparição em programas televisivos, fanzines e revistas especializadas, divulgação através das rádios), acabou possibilitando a construção do cenário brasileiro de rock e sua especialização em cenas localizadas (rock de brasilense - Plebe Rude, rock carioca - Miquinhos Amestrados, rock baiano-Camisa de Vênus, rock paulista-Inocentes). Após a estabilização dessas bandas no mercado fonográfico brasileiro foi possível notar o surgimento de outros movimentos (Raimundos e o forrócore, Mangue Beat e a cena recifense) que respondiam aos anseios de um público juvenil, utilizando elementos regionais na construção das cenas e ao mesmo tempo, mantendo a idéia do Rock como uma música "não-cooptada" e "autêntica":

Rock and roll não é caracterizado somente pela heterogeneidade musical e estilística; seus fãs diferem radicalmente entre si, embora ouçam a mesma música.

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Diferentes fãs parecem utilizar a música com diferentes propósitos e de diferentes modos; eles têm diferentes fronteiras definindo não somente o que eles ouvem, mas o que eles incluem na categoria rock and roll. Deste modo eles se opõem a minha tentativa de definir uma experiência ou um uso do rock and roll como único. Às vezes, por exemplo, o sentido de determinada letra foi importante; outras vezes e o que é mais comum, a experiência foi puramente afetiva (GROOSBERG 1997:29). A formação do campo afetivo denominado rock ultrapassa o reconhecimento de um estilo musical e constitui um campo importante para a compreensão da globalização cultural e suas 'socialidades'. A complexidade do rock contemporâneo aponta para a necessidade de estudos que sejam dinâmicos o bastante para dar conta da veloz transformação dos fenômenos musicais midiáticos; e antropofágicos o suficiente para levar em conta as limitações dos estudos culturais quando expostos ao cotidiano do “rock and roll”. Análises que não deixem de lado pensamentos de ‘rockeiros’ como Lobão e Bernardo Vilhena:

“Dizem que o Rock andou errando Não valia nada, alienado E eu aqui na maior das inocências O que fazer da minha santa inteligência Será que esse é o meu pecado, porque Errou, errou, errou, errou Eu sei que o rock errou Acho que é melhor passar a borracha Ninguém é perfeito você não acha? Nem mesmo o bruxo da vassoura Música do Planeta Terra Cantiga de guerra Canto, espanto e fico rouco E ainda acham pouco porque Errou, errou, errou, errou Eu sei que o rock errou…”

Referências Bibliográficas

BENNETT, Andy. Popular Music and Youth Culture: music, identity and place. McMillian Press, 1999.

CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. Lisboa, Edições 70, 1988.

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FRITH, Simon. Performing Rites: on the value of popular music. Cambridge/ Massachusetts, Havard University Press 1998.

GROSSBERG, Lawrence. We Gotta Get out of this Place: popular conservatism and postmodern culture. London/New York, Routledge, 1992.

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SHUKER, Roy. Understanding Popular Music. London/New York, Routledge, 1994.

STRAW, Will. Systems of Articulation, Logics of Change: communities and scenes in popular music. (in) Culture Studies 5: 368-88.