Mural Internacional, , Vol.11, e50753, 2020.

DOI: 10.12957/rmi. 2020.50753| e-ISSN: 2177-7314

DIREITOS HUMANOS, E VIOLÊNCIA NO BRASIL: A QUALIDADE DA DEMOCRACIA EM PERSPECTIVA Human Rights, Citizenship and Violence in : the quality of democracy in perspective

Carlos F. Domínguez 1

1Centro Universitário Unieuro, Brasília, DF, Brasil. Atualmente faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Brasília. E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000- 0003-2377-276X Recebido em: 31 mar. 2020

Domínguez, C. F.

Mural Internacional, Rio de Janeiro, Vol.11, e50753, 2020. DOI: 10.12957/rmi.2020.50753| e-ISSN: 2177-7314

RESUMO

O artigo explora a evolução recente dos Direitos Humanos, da Cidadania e da Violência, e seus impactos na qualidade da democracia no Brasil. São utilizadas como unidades de análise três conjuntos de tópicos: a dignidade pessoal, os direitos civis, e os direitos políticos. Em geral, constata-se a existência de uma distância considerável entre a proclamação normativa desses Direitos Humanos no sistema legal, de um lado, e a efetiva promoção e execução desses direitos básicos na realidade política e social do Brasil.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Qualidade da Democracia; Brasil.

ABSTRACT

The paper explores the evolution of Human Rights, Citizenship and Violence, and their impacts in the study of democratic quality in Brazil. It is used three set of basic rights as topics for research: the personal dignity, the civil rights, and the political rights. At the end, it is noted some distance between the existence of opportunities for Human Rights in the legal system of the country and the actual guarantee of those set of basic rights in the political and social Brazilian reality.

Keywords: Human Rights; the Quality of Democracy; Brazil.

INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho é explorar a evolução recente e as correlações entre a promoção dos direitos humanos e da cidadania, com a situação de violência e a qualidade da democracia atualmente existentes no Brasil, principalmente no período 2018-2020. Certamente, existem afinidades eletivas entre as noções de referência, e numerosos autores as qualificaram como fundamentais para uma concepção ampliada de democracia. Além disso, entende-se aqui que essas temáticas devem ser investigadas a partir de uma perspectiva crítica, ou seja, indo além do formal-legal, e confrontando a evolução do problema-objeto com a realidade empírica (Santos, 2002; Mounk, 2019; Norris e Inglehart, 2018).

Em termos operacionais, as principais unidades de análise a serem incorporadas neste ensaio de interpretação são: a) a dignidade pessoal, b) os direitos civis, e c) os direitos políticos. Resumidamente, a dignidade pessoal inclui temas como o direito à vida, a proibição da tortura, a abolição da pena de morte, a proibição da escravidão e o reconhecimento de violações dos direitos humanos no passado (memória, justiça e reconciliação). Os direitos civis referem-se a tópicos como o direito à autodeterminação, o acesso à justiça, à segurança pessoal, o direito à privacidade e a inviolabilidade do lar, à liberdade de expressão, de informação e de pensamento, e os direitos das minorias. E os direitos políticos evidentemente se referem ao direito efetivo de votar, ser votado e participar da vida pública, em geral (Rey e Rey, 2016).

[2] Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Domínguez, C. F.

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A pergunta-orientadora deste trabalho é a seguinte: quão robusto e consistente tem sido o esforço do Estado e da sociedade brasileira no reconhecimento e na promoção dos direitos humanos e da cidadania – entendidos como elementos fundamentais da concepção de qualidade da democracia – especialmente no período de 2018-2020? A hipótese de trabalho sugere que os avanços nos direitos políticos teriam sido particularmente importantes – mesmo reconhecendo os efeitos negativos da irregular interrupção do mandato da presidente Dilma Rousseff, em 2016 –; entretanto, a evolução dos temas associados à Dignidade Pessoal e aos Direitos Civis teria experimentado uma evolução fundamentalmente insuficiente, o que, globalmente, teria um impacto negativo na evolução geral da qualidade da democracia atualmente no país.

Os objetivos do presente trabalho são: (a) auscultar a trajetória e os desafios na realização, promoção e reconhecimento da dignidade pessoal, entendida a partir da perspectiva da qualidade da democracia, (b) avaliar a coerência do cumprimento dos direitos civis, incluindo o que diz respeito ao acesso à justiça, e (c) verificar a evolução recente da cidadania política, com ênfase no exercício do direito ao voto e na eleição direta das autoridades. Em termos metodológicos, o trabalho adota um estilo de ensaio interpretativo. As fontes são fundamentalmente secundárias. Em termos conceituais, adere-se aos estudos sobre qualidade da democracia, especialmente na perspectiva de Leonardo Morlino (2016; 2011).

DIGNIDADE PESSOAL

Desde a perspectiva dos estudos e pesquisas na qualidade da democracia, a dignidade pessoal se correlaciona com os seguintes tópicos específicos: o direito à vida (abolição da pena de morte), a proibição da tortura e do tratamento desumano, a proibição da escravidão e do trabalho forçado, e o reconhecimento de violações passadas dos direitos humanos (memória, justiça e reconciliação). Como mencionado acima, em vez de corroborar a existência de normas legais sobre o assunto, o que é interessante aqui é ver até que ponto esses direitos são implementados e exercidos na prática social.

Em relação ao direito à vida, a Magna Carta brasileira aprovada em 1988 – e comumente chamada Constituição Cidadã – reconhece e valoriza o direito acima mencionado para todos os cidadãos da República. Assim, a pena de morte ou capital é proibida – somente sendo admitida em tempo de guerra declarada.

Entretanto, militantes dos direitos humanos, tanto brasileiros como estrangeiros, tomaram nota das altas taxas de violência policial que resultam na morte de cidadãos. Além disso, os agentes do Estado geralmente não são responsabilizados pelas altas taxas de mortalidade geradas como resultado de confrontos entre agentes da lei e suspeitos de crimes. Deve-se esclarecer que essas mortes não são classificadas como homicídios, uma vez que sua classificação

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é limitada a mortes pela “exclusão da ilegalidade”2 – isto é, as mortes cometidas pelo policial em legítima defesa e/ou com o objetivo de vencer a “resistência” do suposto criminoso.

Diante dessa prática, várias instituições de direitos humanos questionam as altas taxas de letalidade e a prática de execuções extrajudiciais das forças policiais – situação particularmente complexa e delicada no Estado do Rio de Janeiro. De fato, desde 2015, os homicídios por intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro têm aumentado tanto em termos absolutos quanto em termos relativos – ou seja, as mortes causadas pela polícia em relação ao total de homicídios. Em 2015, foram registrados 410 homicídios por intervenção policial, o que representou 14,0% do total de mortes no Estado do Rio de Janeiro. Em 2016, esse indicador cresceu para 474 (13,7%); em 2017, houve 643 homicídios por intervenção policial (16,4% do total). Em 2018, o número de mortes por agentes do Estado cresceu significativamente até 1534; isto é parcialmente explicado pelas ações da chamada intervenção federal – inclusive pelas forças armadas – na segurança pública da referida província.

Em suma, foram computados no mencionado Estado do Rio de Janeiro pouco menos de 5,000 mortes por intervenção policial entre 2010 e 2018. E em termos nacionais, a letalidade da polícia brasileira causou a morte de 6.160 pessoas somente no ano de 2018. Certamente, estes são números muito preocupantes sob a perspectiva do respeito pela dignidade da pessoa humana, em particular, e pela qualidade da democracia, em geral.3

Uma parte significativa dos homicídios causados pela ação policial foi registrada sob a rubrica do chamado Auto da Resistência. O auto da resistência foi criado durante o regime burocrático-autoritário brasileiro para justificar a não prisão em flagrante do policial responsável do homicídio. Fundamentalmente, predominava na época uma situação que se caracterizava por um baixo grau de fiscalização, pela prevalência da versão policial, por uma investigação não satisfatória e pela ausência de punição de policiais abusivos. No contexto do regime burocrático- autoritário mencionado acima também surgiram os chamados “esquadrões da morte” dentro das forças policiais. Além disso, na década de 1970, a tortura política e social-política foi amplamente utilizada. Todas essas práticas de evidente impunidade e abuso de autoridade foram logo usadas como forma de “solucionar” os problemas de segurança pública, ocultando execuções extrajudiciais por meio dos autos de resistência, então entendido como um mecanismo de controle social. A questão é importante porque muitas dessas práticas – e as mentalidades associadas a elas – continuam a ser consideradas pela polícia na atualidade.

2 O artigo 23 do Código Penal brasileiro sugere que: “Não há crime quando o agente pratica o fato: -I em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III- no estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular do direito”. 3 Velasco, C., G. Caesar e T. Reis (2019). ‘Número de pessoas mortas pela polícia no Brasil cresce 18% em 2018; assassinatos de policiais caem’. Monitor da Violência/ Portal G1, 19.4.2019. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da- violencia/noticia/2019/04/19/numero-de-pessoas-mortas-pela-policia-no-brasil-cresce-em-2018-assassinatos-de-policiais- caem.ghtml [Acesso em: 11 abr. 2020].

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Mais recentemente, tanto o presidente quanto o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ambos eleitos em outubro de 2018, demonstraram interesse e disposição para impulsionar planos mais radicais de segurança pública. Isto implica, por exemplo, interpretar de forma mais frouxa e flexível o referido critério da exclusão de ilicitude. Na opinião do governador Witzel, “qualquer ação da polícia militar, antes de qualquer discussão, é legítima.”4 Além disso, o governador anunciou a entrada em operação de atiradores de elite supostamente para lutar contra “narcoterroristas armados”, em particular, e contra a criminalidade, em geral.5

Naturalmente, isso gerou muitas preocupações nas entidades de proteção e promoção de direitos de acordo com os riscos de generalização de execuções sumárias e abuso de autoridade. Note-se, por exemplo, que, em 2019, apenas no Estado do Rio de Janeiro, mais de 1800 cidadãos foram mortos pela intervenção de agentes do Estado (policiais e militares), sendo alguns deles crianças, adolescentes e cidadãos completamente alheios a ações criminosas de qualquer tipo.6 Deve-se acrescentar que modelos radicais de segurança pública comparáveis aos implementados no Rio de Janeiro estão sendo considerados por autoridades de outros estados brasileiros, como São Paulo e Paraná. Obviamente, essa excessiva violência policial deveria ser levantada como motivo de reflexão sobre o futuro da efetiva proibição da pena de morte e do respeito ao direito à vida no Brasil.

No que diz respeito à questão espinhosa do aborto e seu impacto sobre o direito à vida e à qualidade da democracia, parece pertinente considerar que a interrupção da gravidez é legal apenas em casos de estupro, de ameaça à vida da mãe, ou na hipótese de deformidade craniana ou fetos anencefálicos (Miguel, 2012). O exercício dos direitos reprodutivos das mulheres é limitado em termos de valores socioculturais tradicionais e também em termos do direito à vida do ser ainda não nascido. O problema torna-se mais grave em função de acesso limitado ao planejamento familiar e às práticas de aborto clandestino – cerca de 500 mil abortos clandestinos por ano. Certamente, esses abortos clandestinos causam sérias consequências para a saúde de muitas mulheres e famílias.

Convém agregar que, sob uma perspectiva política, a questão do aborto e dos direitos reprodutivos das mulheres – bem como outras demandas de gênero, em geral – foram relegadas ao parlamento, com base em pressões de setores mais conservadores, essencialistas e até fundamentalistas. Prevalece no congresso brasileiro uma visão desfavorável à legalização do aborto, e favorável a um reconhecimento do direito à vida dos seres humanos em gestação. Neste contexto, os governos federais sucessivos – mesmo durante as administrações do Partido dos

4 Betim, F. (2019). ‘Rio de Janeiro com licença para matar’, El País Brasil, 20.3.2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/18/politica/1552935288_972000.html?rel=mas?rel=mas [Acesso em: 11 abr. 2020]. 5 Betim, F. (2019). ‘Carta branca de Witzel a ação de ‘snipers’ eleva o temor por abusos policiais no Rio’, El País Brasil, 6.4.2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/03/politica/1554246098_836562.html [Acesso em: 11 abr. 2020]. 6 Galarraga, N. (2020). ‘Recorde de mortes por policiais e a queda de homicídios no Rio são fenômenos desconectados’, El Pais Brasil, 29.1.2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-30/recorde-de-mortes-por-policiais-e-a-queda-de- homicidios-no-rio-sao-fenomenos-desconectados.html [Acesso em: 11 abr. 2020].

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Trabalhadores – não assumiram uma atitude proativa nessa área. Assim, os avanços modestos no assunto foram impulsionados por decisões do judiciário (Machado, 2016).

Com relação ao tema da proibição da tortura, é pertinente considerar que a Constituição brasileira refuta o uso de tortura por autoridades públicas e outros atores políticos ou sociais, em qualquer hipótese. Nesta linha, a chamada Lei da Tortura (n. 9,455/97) define o referido crime nos seguintes termos: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando- lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Da mesma forma, o Estado brasileiro ratificou, em 1989, a Convenção Internacional contra a Tortura – bem como seu protocolo adicional, em 2007. Tudo isso permitiu e possibilitou a realização de inspeções de agentes nacionais e internacionais sobre o tema, incluindo a visita periódica in loco de funcionários especializados do sistema de Nações Unidas. As visitas de inspectores do Conselho de Direitos Humanos de Nações Unidas têm o objetivo de monitorar a evolução da realidade, investigar reclamações e propor alternativas. Em um desses relatórios periódicos sobre a tortura no Brasil – publicado em 2016 – se pondera, categoricamente, o seguinte: O Brasil realizou progressos [em matéria de legislação, salvaguardas, prevenção e reforma institucional] no papel; no entanto, na implementação a prática está muito atrasada. Tortura e maus-tratos nos processos de interrogatório são ocorrências frequentes. Os assassinatos cometidos pela polícia e pelo pessoal penitenciário continuam e não são incidentes isolados. Eles afetam muito as pessoas pertencentes a minorias raciais, sexuais, de gênero e outros grupos minoritários. As condições de encarceramento constituem um tratamento cruel, desumano ou degradante. A grave superlotação torna a situação nas instalações caótica e afeta muito as condições de vida dos internos e seu acesso a alimentos, água, assistência judicial, assistência médica, apoio psicossocial, oportunidades de trabalho e educação, bem como luz natural, ar fresco e atividades recreativas. A impunidade continua a ser a regra e não a exceção, em parte devido a sérias deficiências nos procedimentos e práticas de monitoramento e documentação. [ONU, 2016a, p. 19s].

É bastante evidente a existência de dissonâncias e contradições entre a evolução normativa contra a tortura e sua aplicação. Não faltam denúncias e casos comprovados de uso da tortura como instrumento de investigação policial, principalmente quando se trata de vítimas com menor capacidade econômica e sociopolítica. Neste caso, não é possível ignorar ou desprezar a existência de tolerância social à tortura policial por camadas socioeconômicas de nível médio-alto

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da sociedade brasileira, assim como certos estigmas antipopulares da polícia e, por último, mas não menos importante, deficiências técnico-profissionais na formação de oficiais e suboficiais da segurança pública. Basicamente, trata-se de preencher a lacuna entre o estado formal/legal e a situação cotidiana dos cidadãos, particularmente das pessoas privadas de liberdade.

Deve-se acrescentar que os governos federal, estadual e municipal fizeram esforços para restringir, impedir e combater a tortura policial – bem como de outros agentes públicos. Isso incluiu um trabalho mais sistemático em relação à reforma dos currículos de formação e aperfeiçoamento das forças policiais, o encaminhamento de denúncias de abusos policiais e um controle mais efetivo dos procedimentos de investigação. Igualmente, existe uma crescente presença de organizações de defesa e promoção dos direitos humanos – nacionais e internacionais – que foram colocadas à frente das denúncias e investigações sobre o tema, com resultados importantes e alvissareiros.

Além do uso de tortura nas investigações policiais, também foi possível encontrar casos comparáveis de tratamento desumano imposto por atores não-estatais violentos, incluindo-se traficantes de drogas, milícias, jagunços de grandes proprietários de terra, gangues juvenis, bandidos, piratas e assim por diante. Esses atores não-estatais violentos exercem influência socio- criminal nas grandes regiões urbanas e rurais do país, principalmente onde a ausência do aparato estatal brasileiro é mais evidente. E frequentemente isso leva a um uso indiscriminado, alto e crescente de tortura física e mental, bem como a tratamentos desumanos e degradantes. Ou seja, um virtual estado paralelo, com implicações graves e negativas sob a perspectiva da qualidade da democracia.

A luta contra o trabalho escravo moderno é outra das facetas fundamentais das políticas de proteção da dignidade pessoal promovidas no Brasil – tudo no contexto da qualidade da democracia. Tenha-se em mente que a escravidão moderna se refere a situações de exploração em que uma pessoa não pode desafiar ou abandonar um local de trabalho devido a ameaças, violência, coerção, dolo e/ou abuso de poder econômico. Nessa ordem de ideias, constitucionalmente, o trabalho forçado é proibido no Brasil. O artigo 149 do Código Penal e a Lei 10.803 de 2003, por exemplo, condenam explicitamente o chamado trabalho em condição análoga à escravidão. Isso implica, Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Obviamente, a questão do trabalho escravo moderno está diretamente ligada à liberdade de mobilidade, à condição de possibilidade de definir o local de residência correspondente e à inserção laboral mais vantajosa. Dificilmente uma pessoa sujeita a trabalho escravo pode desfrutar da livre mobilidade para viajar dentro ou fora de uma localidade ou do país, em geral. Muitos deles são forçados a permanecer em certos lugares para pagar dívidas, atender demandas ou garantir um mínimo vital de sobrevivência. Deve-se acrescentar que a maioria das pessoas sujeitas ao

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trabalho escravo são de origem camponesa e humilde e, em muitos casos, estrangeiros – especialmente bolivianos, paraguaios, nigerianos, bengalis, peruanos, senegaleses, paquistaneses e equatorianos – foram registrados como tal (Baptista, Bandeira e Souza, 2018).

Assim, em 2005, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva promoveu a criação e implementação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. O referido acordo tornou-se o principal fórum de discussão e ação contra o trabalho escravo moderno. Segundo o Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil – entidade vinculada ao Ministério Público do Trabalho –, entre 2003 e 2020, um total de 45 mil trabalhadores brasileiros foram resgatados desse regime de evidente exploração, principalmente na região norte do país – mas também em oficinas de costura e vestuário em grandes cidades como São Paulo. Ao mesmo tempo, uma emenda constitucional autorizou, em 2012, o confisco de propriedades rurais onde fosse encontrado e confirmado o uso de mão de obra escrava, bem como a elaboração de “listas sujas” de empresas e imóveis acusados de praticar, impor e se beneficiar dessas práticas trabalhistas desfasadas. Nesse diapasão, em 16 de dezembro de 2016, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma condenação paradigmática contra o Estado brasileiro por tolerar, no século XXI, a prática nefasta do trabalho escravo.7

Mais recentemente, de acordo com o Índice Global da Escravidão de 2018, patrocinado pela Walk Free Foundation, o Brasil foi classificado na posição 142° entre 167 países. Vale observar que as primeiras posições no referido índice são as que apresentam uma intensa prevalência da escravidão moderna, isto é: Coréia do Norte (1º), Eritreia (2º) e Burundi (3º). Inversamente, as últimas posições correspondem aos países com menor prevalência de escravidão moderna, ou seja: Japão (167º), Canadá (166º) e Taiwan China (165°).8 Metodologicamente, o Índice Global de Escravidão de 2018 inclui fenômenos como trabalho forçado, peonagem por dívidas, tráfico de seres humanos, exploração sexual de crianças e adolescentes, e casamento servil. Atualmente, segundo a fonte, mais de 40 milhões de pessoas no mundo estariam sujeitas à escravidão moderna (WFF, 2018).

Os dados específicos sobre a escravidão moderna no Brasil são de particular interesse para os propósitos deste estudo. Segundo a WFF, atualmente cerca de 369 mil pessoas estariam sujeitas a alguma forma de escravidão moderna em território brasileiro – cumpre acrescentar que esse dado é consistente e convergente com os estudos e pesquisas realizadas pelo Observatório Digital do Trabalho Escravo. O trabalho forçado seria importante nas áreas rurais, principalmente em atividades intensivas em trabalho barato e de baixa qualificação – pecuária, café, carvão e madeira; geralmente nas regiões Norte e Centro-Oeste do país (CPT, 2019). Nas áreas urbanas, há

7Murillo, Á. (2015). ‘Brasil recebe a primeira condenação da CIDH por escravidão’, El País Brasil, 16.12.2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/16/internacional/1481925647_304000.html?rel=mas [Acesso em: 18 abr. 2020]. 8 Segundo o Global Slavery Index 2018, os países com maior prevalência de trabalho escravo moderno na América Latina eram Venezuela, Haiti e República Dominicana. Por outro lado, os países com os indicadores de prevalência mais baixos do trabalho escravo moderno são o Chile, o Uruguai e a Costa Rica (WFF, 2018).

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registros de trabalho escravo moderno na indústria têxtil, na construção civil, na exploração sexual de adolescentes e adultos9 e no trabalho doméstico.

Povos indígenas, afrodescendentes e mulheres são particularmente vulneráveis a essas formas modernas de escravidão. Todavia, parece pertinente levar em consideração que, no âmbito do comércio internacional, importações brasileiras procedentes do exterior são suscetíveis de incluir trabalho escravo especialmente em vestimentas, computadores e certas matérias- primas procedentes de países afro-asiáticos. Por outro lado, as exportações brasileiras – principalmente de minérios e alimentos – têm sido acusadas de certa tolerância em relação ao assunto em questão.

Seja como for, após a irregular interrupção do mandato de Dilma Rousseff, os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro reduziram gradativamente as atividades de controle e repressão do trabalho em condições análogas à escravidão. Em 2017, por exemplo, o chefe do Ministério do Trabalho e da Previdência Social anunciou que não continuaria a publicar as “listas sujas” de empresas e propriedades acusadas de usar trabalho forçado. E o próprio conceito ou definição de trabalho em uma condição análoga à escravidão sofreu algumas tentativas – falhas – de limitação e redução, com o objetivo de enfraquecer as capacidades de enquadrar e criminalizar o objeto- problema.

Mais recentemente, em 2019, o próprio Ministério do Trabalho acabou sendo eliminado e suas atribuições transferidas para outras instâncias, por determinação do governo do presidente Bolsonaro. Tais ajustes legais e institucionais manifestaram-se no contexto de pressão de latifundiários e ruralistas influentes em ambos governos de centro-direita e extrema-direita, respectivamente. Isso sugere que o trabalho análogo da escravidão continuará sendo um grave desafio à qualidade da democracia brasileira, seja em áreas rurais ou urbanas (Schwarzc, 2019).

Correlacionando ao trabalho escravo, está questão do trabalho infantil, do tráfico de pessoas e da exploração sexual de menores, cuja erradicação é tarefa de diferentes órgãos governamentais, bem como de organizações não-governamentais e da sociedade civil. O trabalho infantil e a exploração sexual de menores são práticas espúrias, normalmente vinculadas à situação de pobreza e de vulnerabilidade social de muitas famílias de baixa renda. Eles alegam a necessidade de renda dos infantes e adolescentes para complementar os recursos e ativos do domicílio. Em alguns casos se pondera que o trabalho infantil poderia ser pedagógico e socialmente aceito, principalmente quando se trata de crianças e adolescentes que precisam de treinamento de trabalho e profissional.

De qualquer forma, o Ministério Público do Trabalho propôs continuar suas inspeções para inibir ambas as práticas, que acabam atacando o futuro das crianças e adolescentes. Perceba-se que em muitos casos o trabalho forçado de crianças e adolescentes provoca um distanciamento,

9 Deve-se ter em mente que existem também registros de exploração sexual de brasileiros residentes no exterior, principalmente na União Europeia.

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deserção ou evasão das escolas, tudo isso em um momento crítico para o desenvolvimento pessoal, psicossocial e educacional. Além disso, desde 2014, a exploração sexual de menores foi classificada como um crime muito grave. Infere-se do exposto que o Brasil deve fazer ainda mais para enfrentar os dois desafios.

Quanto ao reconhecimento de violações passadas de direitos humanos, o Estado brasileiro acabou sendo condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por deixar pendente a punição das violações de direitos humanos cometidas durante o regime autoritário (1964-1985). A esse respeito, deve-se ter em mente que o Supremo Tribunal Federal-STF confirmou a validade da Lei de Anistia (n. 6683 de 1979). Em termos operacionais, isso acabou garantindo uma condição de impunidade para os acusados de graves violações contra os direitos humanos, incluindo crimes como tortura, estupro, desaparecimentos forçados e assassinatos.

Apesar da impunidade, deve-se lembrar que o Estado brasileiro compensou e pagou indenizações às vítimas diretas da repressão política ou às suas famílias. Ao mesmo tempo, no campo da memória histórica, entre 2012 e 2014, funcionou a chamada Comissão Nacional da Verdade.10 A Comissão investigou as circunstâncias e os responsáveis pela tortura, mortes e desaparecimentos de presos políticos no país. As recomendações de seu Relatório Final, publicado em dezembro de 2014, procuraram avançar em uma reconciliação nacional. Isto incluiu o reconhecimento dos excessos e abusos cometidos contra os cidadãos pelas forças repressivas do Estado – tanto policiais como militares – principalmente durante o período entre 1964 e 1985. No entanto, a demissão de Dilma Rousseff e a assunção de Michel Temer e Jair Bolsonaro, particularmente este último – um adversário histórico e reconhecido opositor da Comissão Nacional da Verdade –, colocam dúvidas sobre o futuro do processo de memória, justiça e reconciliação no país. Obviamente, tudo isso não deixa de causar preocupação sob a perspectiva da qualidade da democracia e dos estudos sobre memória, justiça e reconciliação (Schwarcz, 2019; Abranches et al., 2019).

Efetivamente, o panorama geral das políticas públicas ligadas à memória, à justiça e ao reconhecimento de violações passadas de direitos humanos enfrenta um momento de inflexão desde a posse do presidente Jair Bolsonaro. Fundamentalmente, o novo governo brasileiro não só abandonou os esforços destinados a melhorar a memória histórica e a reparação das violações dos direitos humanos, como decidiu louvar, recordar e comemorar o regime burocrático- autoritário predominante entre 1964 e 1985.

Tal situação implica, por exemplo, a revisão de currículos e livros escolares, procurando a divulgação de uma falsa concepção das bases sociais e das motivações que resultaram na interrupção irregular do mandato do presidente João Goulart em 1964 e na imposição de um regime de exceção durante as décadas seguintes. Consequentemente, não parece incorreto

10 A aprovação da Comissão Nacional da Verdade motivou a abertura e o funcionamento de Comissões da Verdade provinciais, municipais e até mesmo de instituições específicas – tanto privadas quanto públicas (Hollanda, 2019).

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pensar que os avanços comparativamente modestos que o Brasil fez em termos de memória, justiça e reconciliação nacional terão muitas dificuldades no futuro próximo.

Além dos quatro temas mencionados, vale acrescentar que o futuro da dignidade pessoal dos brasileiros também tem a ver com outras liberdades e garantias constitucionais, entre elas: o direito à propriedade privada. Em relação ao direito à propriedade privada, as leis brasileiras têm uma orientação favorável à economia social de mercado. As relações capitalistas de produção são amplamente predominantes e, em geral, os cidadãos têm a possibilidade de estabelecer empresas privadas sem interferência excessiva do Estado e de atores não estatais.

Entretanto, também é conhecido e corroborado que existem muitos problemas administrativos e burocráticos para iniciar empreendimentos produtivos. Tudo isso sem ignorar os numerosos e frequentes casos de corrupção, clientelismo e falta de ética nos negócios que envolvem muitos agentes públicos e privados (Transparency International, 2020). O abuso do poder econômico e a corrupção político-eleitoral acabaram minando a credibilidade da qualidade da democracia atualmente existente no país. Nesse sentido, o abuso do poder econômico e da corrupção são certamente questões preocupantes, tanto do ponto de vista da dimensão da dignidade pessoal, quanto da qualidade da democracia brasileira, em geral.

DIREITOS CIVIS

Os direitos civis incluem principalmente a autodeterminação, o acesso à justiça, a segurança pessoal, a expressão, o pensamento, a criação, a informação e manifestação (imprensa), o culto (religião), a assembleia e associação e o respeito às minorias. O artigo 5 da Constituição brasileira, em particular, é bastante explícito nesse ponto. E, naturalmente, em termos normativos, tanto a promoção da cidadania quanto os direitos civis aparecem em leis secundárias da República. Seja como for, em vez de repetir ou registrar as leis existentes, é interessante examinar o impacto e a evolução de tais direitos civis, especialmente sob a perspectiva da qualidade da democracia.

E ao problematizar o assunto, aparecem luzes e sombras na construção da cidadania civil. Observamos avanços, retrocessos e reorganização da agenda de formulação e implementação de políticas públicas, dependendo, em grande medida, da orientação estratégica dos detentores de poder político federal, estadual ou municipal – além da presença de poderes factuais e de outros atores políticos e sociais com vínculos e interesses no assunto em questão.

Deve-se acrescentar também que a constituição brasileira aprovada em 1988 tem uma posição bastante progressista, inclusiva e laica. Isso favoreceu a promoção dos direitos civis, especialmente durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. No entanto, esse ciclo progressista parece ter terminado desde os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Consequentemente, o Brasil se encontra fundamentalmente em uma fase de introspecção, congelamento e até inflexão em relação ao futuro dos direitos civis (Avritzer, 2018).

[11] Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. Domínguez, C. F.

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Assim, um primeiro direito civil de interesse para os fins do presente estudo é aquele relacionado à autodeterminação – particularmente a autodeterminação pessoal em termos político-sociais e econômico-culturais. Nesse sentido, a votação é obrigatória para maiores de 18 anos, com raras exceções. Algo semelhante pode ser dito sobre as condições de elegibilidade para candidaturas a cargos públicos. Deve acrescentar-se que estas questões mais correlacionadas com a cidadania política serão abordadas principalmente no próximo subtítulo.

Seja como for, no que diz respeito à autodeterminação social, econômica e cultural, o Brasil apresenta dados contraditórios. Por um lado, o país destaca-se pelos altos índices de estímulo à autossuficiência (empreendedorismo e espírito empresarial), que se combina ao declínio da confiança social (Ibope, 2019; Putnam, 2005). Da mesma forma, a alta concentração de renda e as dificuldades em oferecer uma educação de alta qualidade são apontadas como obstáculos à mobilidade social ascendente e à constituição definitiva de uma sociedade de classe média.

Igualdade de acesso à justiça é outro dos direitos civis mais básicos e fundamentais no futuro da democracia brasileira. De particular interesse para os propósitos deste estudo é o que diz respeito à proteção contra a detenção de longo prazo sem o julgamento correspondente. Isso se torna dramático quando acusados ou suspeitos de crimes comuns acabam transformando suas detenções preventivas – isto é, de caráter provisório –, em detenções que podem se estender por anos, violando definitivamente o princípio da presunção de inocência, a transparência das causas e acusações contra o cidadão, e a prestação de serviços jurisdicionais; sem esquecer-se que todos eles são tópicos característicos dos Estados Democráticos de Direito.

Deve-se acrescentar que a insuficiência econômica da população mais vulnerável da sociedade coloca uma pressão adicional sobre o sistema judiciário e ao acesso à justiça no Brasil. Observe-se que os cidadãos comuns só podem ser defendidos ou representados por advogados particulares ou defensores públicos, uma vez que a possibilidade de autodefesa não existe no sistema legal local. Muitos cidadãos de baixa renda só podem ter acesso à justiça com o apoio de defensores públicos – caso os mesmos ofereçam seus serviços profissionais na região onde vivem os requerentes.

Efetivamente, a Defensoria Pública procura garantir a defesa dos segmentos sociais mais vulneráveis nos tribunais da República. Por isso, uma necessidade importante é a expansão da Defensoria Pública. Segundo dados recentes, para cada grupo de 100 habitantes existem 1,5 ou dois defensores públicos. Essa situação coloca em questão sua viabilidade, credibilidade e eficiência da justiça em termos de cumprimento das normas constitucionais relativas à defesa dos direitos civis, em particular, e dos direitos humanos, em geral.

O déficit dos defensores destaca outro problema: o da desigualdade racial no sistema penitenciário brasileiro (Infopen, 2020). Por conta desse déficit de defensores públicos, constatou- se que aproximadamente 253 mil pessoas estão privadas de liberdade sem terem sido

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condenadas. Ou seja, aproximadamente 30% dos 700 mil presos em todo o país ainda não haviam sido condenados. E o que deveria ser uma prisão preventiva acaba prolongando uma condição de injustiça óbvia (Costa, 2015).11

No outro extremo, os mecanismos para controlar o comportamento de altos funcionários do Estado – principalmente o próprio judiciário, bem como os poderes executivo e legislativo – são limitados e ineficazes. Juízes que cometem abuso ou crimes raramente são processados. Além disso, algumas autoridades gozam de privilégios e imunidades criminais, especialmente durante o exercício do mandato eletivo. Nesta mesma ordem de ideias, o fim do chamado foro especial por prerrogativa de função – ou foro privilegiado de políticos e outras autoridades –, aprovado em dezembro de 2018, representa um passo em frente em termos de melhor prestação de serviços jurisdicionais e de republicanismo.

Em terceiro lugar, temos o que diz respeito à liberdade e segurança dos cidadãos. Deve-se notar que constitucionalmente “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e segurança e à propriedade” (Art. 5º, Constituição Federal). A este respeito, reitera-se que ninguém pode ser submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante. Além disso, considera-se que o lar é um asilo inviolável para os cidadãos; que as comunicações interpessoais são sigilosas; que o exercício de qualquer trabalho, comércio ou profissão é livre; que as pessoas têm um direito inviolável à privacidade, à vida privada, à honra e à preservação de sua imagem; que os cidadãos têm o direito à liberdade de consciência e crença religiosa, no âmbito de um Estado laico; e que o racismo e outros crimes similares ou relacionados (incluindo tráfico de drogas) são imprescritíveis.

Para garantir o cumprimento, o exercício e a promoção de tais direitos civis existem as Comissões de Direitos Humanos em ambas as casas do Congresso Nacional, bem como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, ligado ao recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – atualmente chefiado pela ministra Damares Alves. E para garantir os direitos civis a grupos específicos foram aprovados estatutos especiais, como o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Igualdade Racial ou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao mesmo tempo, a constituição brasileira oferece e garante a existência de certos mecanismos para evitar prisões arbitrárias, entre elas o Habeas Corpus. Obviamente, tais avanços no campo normativo devem refletir-se melhor no cotidiano dos cidadãos. E neste contexto prático, sabe-se que o esforço conjunto da sociedade civil organizada e do Estado nacional acaba sendo extremamente relevante.

11 A cada ano, milhares de prisioneiros acabam sendo libertados como resultado de irregularidades processuais e de detenção que fizeram com que esses prisioneiros permanecessem mais tempo do que deveriam. Em outras circunstâncias, dado que não há advogados, esses cidadãos acabam abandonados, o que configura uma clara violação do princípio constitucional da presunção de inocência.

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O tema da liberdade e segurança dos cidadãos também afeta o que diz respeito à política penitenciária. São cerca de 700 mil pessoas sujeitas à justiça penal, sendo que um número bastante significativo – aproximadamente 30% – é constituído, como mencionado acima, por prisioneiros sem condenação definitiva (Infopen, 2020).12 Da mesma forma, as condições de superlotação dificilmente permitem uma ressocialização efetiva dos cidadãos que cometeram crimes. Consequentemente, é necessário encontrar novas alternativas para o sistema penitenciário brasileiro, evitando que as prisões se tornem sistemas espúrios de desumanização total. Nesse diapasão, é urgente recuperar a função humanista e ressocializante das mesmas. A este respeito, um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de 2017, ponderou, por exemplo, o seguinte, O Relator Especial acolheu com satisfação a ampliação das medidas alternativas à prisão preventiva, como a prisão domiciliar, os dispositivos de vigilância eletrônica, as restrições de viagem, a retenção de passaporte e a obrigação de comparecer regularmente perante um tribunal [ONU, 2017].

No caso de adolescentes infratores, as leis vigentes determinam a permanência daqueles em instituições especiais, por um prazo máximo de três anos. Note-se que atualmente existem pressões sociais no Congresso Nacional orientadas a favorecer a redução da maioridade penal dos indivíduos, permitindo que os jovens sejam imputados a partir dos 14 anos de idade, dependendo das infrações e dos crimes a que forem eventualmente acusados. Além disso, não faltam vozes que reivindicam um aumento do prazo máximo de internação até os 10 anos, para os adolescentes que infringem a lei.

No que diz respeito à liberdade e à segurança dos cidadãos, vale ressaltar o desafio representado pelo fenômeno dos “desaparecidos”, particularmente de crianças e adolescentes que “desaparecem” do domínio parental anualmente no país. Anualmente, mais de 50 mil crianças, adolescentes e adultos desaparecem em todo o Brasil – provavelmente muitos deles migram para outros estados ou para o exterior. Com o propósito de contribuir para encontrar esses indivíduos foi criado, em 2010, o denominado Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, registro vinculado ao Ministério da Justiça. Mais recentemente, em março de 2019, foi aprovada uma lei que instituiu uma política nacional de busca de pessoas desaparecidas no Brasil.

Em quarto lugar, aparece o correlacionado à efetiva proteção da liberdade de expressão e informação – isto é, a emissão livre de pensamento e imprensa. A esse respeito, parece pertinente notar que a Constituição Federal e as leis secundárias garantem a liberdade de expressão e informação. Neste sentido, os meios de comunicação de massa – especialmente a imprensa escrita, o rádio, a televisão e as redes sociais (Internet) – apresentam um debate

12 Convém agregar que, mesmo levando em consideração as estatísticas citadas, a efetividade da justiça penal brasileira é muito limitada. Menos de 10% dos homicídios anuais resultam em uma condenação definitiva dos acusados. E a maioria dos processos judiciais acaba sendo arquivado sem qualquer resolução. Tudo isso resulta em uma baixa credibilidade do sistema penal e da justiça criminal, em particular, e do Estado de Direito – entendido como uma das dimensões da qualidade da democracia –, em geral. Paradoxalmente, o sistema judiciário-policial é extraordinariamente oneroso para o erário público, o que resulta em uma dolorosa ineficiência, ineficácia, desigualdade e, finalmente, falta de habilidade.

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vibrante e constante, com argumentação e deliberação sobre diferentes tópicos da economia, política e sociedade nacional. Note-se que a maior parte dos escândalos de corrupção que assolaram o país desde 2004 foram quase sempre originados de investigações jornalísticas.

Da mesma forma, os regulamentos para evitar abusos, difamação e desinformação são mínimos ou praticamente inexistentes. De fato, em 2009, o Supremo Tribunal Federal-STF, a mais alta corte do país, derrubou uma proposta de lei de imprensa, que buscava maior regulamentação do setor; contudo, esse projeto foi vigorosamente combatido pelos donos da mídia e outros atores ligada a tais oligopólios comunicativos. Há poucos e raros episódios de violação da liberdade de expressão e informação, isto é, a censura jornalística. Quando são apresentados casos do tipo, eles estão ligados a determinações judiciais que se baseiam na preservação da honra de eventuais afetados.13

Em termos práticos, algumas das principais ameaças à liberdade de expressão e informação surgem da evidente concentração de propriedade da mídia. Essa concentração de propriedade de mídia tem um impacto direto nas pautas editoriais, já que normalmente os proprietários dos principais meios de comunicação impõem abordagens e visões convergentes com os interesses estratégicos e financeiros dos respectivos meios de comunicação – o que nem sempre é congruente com os interesses e liberdades da sociedade como um todo.

Com efeito, no que diz respeito à questão da influência dos meios de comunicação social e à sua correlação com a qualidade da democracia, é necessário introduzir algumas ponderações essenciais. Inicialmente, a disseminação de informação independente e pluralista é extremamente importante nas democracias modernas. Nesse sentido, o famoso jornalista americano radicado no Brasil Glenn Greenwald comenta acertadamente o seguinte: Numa democracia, o jornalismo tem um propósito: o principal é ser uma força contra facções poderosas, que podem ser os ricos, o governo, a polícia, as grandes empresas. Ser realmente o Quarto Poder. Ele deve ser um poder que vai esclarecer, trazer à luz o que certos grupos estão fazendo às escuras. Quando o jornalismo está servindo a esta ou aquela facção, para mim é corrupto. Jornalismo que luta contra os poderosos é o jornalismo honesto, fiel a seu propósito de investigar e mostrar a verdade.14

No caso brasileiro, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são, como mencionado acima, princípios muito valorizados pela sociedade, em geral. Entretanto, é muito

13 Em 8 de abril de 2019, o ministro Alexandre de Morães, membro do Supremo Tribunal Federal - STF, o mais alto tribunal de justiça da República, impôs virtual censura judicial à revista Crusoé e ao portal de notícias O Antagonista, em virtude de uma investigação jornalística sobre a suposta participação de outros membros do supracitado STF em possíveis desvios de conduta. Essa imposição de censura judicial tem causado comoção na sociedade brasileira, devido à possível violação da liberdade de expressão e informação. Essa situação anômala de censura judicial imposta pelos ministros do próprio STF estendeu-se até 18 de abril, quando acabou suspensa, com base em clamor e rejeição popular e institucional. Nesse diapasão, recomenda-se conferir: Benites, A, (2019), ‘STF recua de censura a revista e libera entrevista de Lula a EL PAÍS e outros veículos’, El País Brasil, 18.4.2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/19/politica/1555626856_805348.html [Acesso em: 21 abr. 2020]. 14 Duarte-Plon, L. e C. Meireles. (2016). ‘Entrevista – Glenn Greenwald ‘Tudo ficou mais claro: é golpe’’’, Carta Capital, 8.6.2016. Disponível em: www.cartacapital.com.br [Acesso em: 18 abr. 2020].

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importante ter em mente que uma avaliação mais detalhada do assunto em questão precisa levar em consideração critérios adicionais, tais como: o pluralismo, a independência dos meios de comunicação, o ambiente e a autocensura, o quadro legislativo, a transparência, a infraestrutura e a violência contra jornalistas.

É com base nesses critérios que a organização Repórteres Sem Fronteiras-RSF publica anualmente seu relatório sobre a liberdade de imprensa no mundo. Nesse contexto, vale ressaltar que nos últimos anos a classificação brasileira sofreu uma evidente deterioração, sendo que em 2019 o país aparece na posição 105ª – numa escala que inclui desde a 1ª posição de máxima liberdade de imprensa (Noruega) até à 180ª posição de liberdade de imprensa mínima (Turquemenistão).

Para RSF (2013), a questão mais complexa da relação entre a liberdade de imprensa e a qualidade da democracia no Brasil está ligada à propriedade muito concentrada da mídia – imprensa escrita, televisão e rádio, lembrando que estes últimos são concessões públicas. Ainda assim, no mais recente relatório da RSF (2019), essa organização sugere que, Ameaças, agressões, assassinatos. O Brasil continua sendo um dos países mais violentos da América Latina a praticar contra o jornalismo; com frequência os jornalistas são mortos por causa de seu trabalho. Na maioria dos casos, os atores da informação – repórteres, apresentadores de programas de rádio, blogueiros. Eles foram assassinados porque abordaram ou investigaram questões relacionadas à corrupção, políticas públicas ou crime organizado, especialmente em cidades pequenas ou médias, onde são mais vulneráveis. A eleição de Jair Bolsonaro como presidente, em outubro de 2018, após uma campanha marcada por discursos de ódio, desinformação, violência contra jornalistas e depreciação dos direitos humanos, augura um período sombrio para a democracia e a liberdade de imprensa. Por outro lado, o cenário da mídia ainda é muito concentrado no Brasil, muitos meios de comunicação estão nas mãos de grandes famílias de industriais, muitas vezes próximos à classe política. O sigilo das fontes muitas vezes não é respeitado e muitos jornalistas investigativos enfrentam processos judiciais abusivos.

Em resumo, embora em alguns casos as contribuições do jornalismo investigativo acabem sendo muito importantes e significativas, não é possível perder de vista os excessos e manipulações em muitos episódios de cobertura da mídia – isto tem sido particularmente evidente no caso de grandes veículos de comunicação, tais como Estado de São Paulo, Veja, Isto É, e Globo. Ao mesmo tempo, é importante lembrar a violência direta e indireta à qual muitos comunicadores sociais estão sujeitos, especialmente nas áreas periféricas das grandes cidades e no interior do país. Tudo isso afeta uma correlação complexa entre violência, crime e jornalismo. Assim, o Brasil é considerado o segundo país mais letal e perigoso para jornalistas no continente latino-americano, apenas superado por México.15

15 Em geral, no Brasil também se respeita e se cumpre o que diz a Constituição e as leis secundárias a respeito da livre manifestação do pensamento, criação, expressão e emissão de informações – sendo esta última limitada apenas quando existe uma apologia da violência, ou ofensas contra a honra, dignidade e boa vida das pessoas. Os casos de censura são muito escassos ou insignificantes. Consequentemente, o Estado abstém-se de impor restrições espúrias, irracionais, discriminatórias ou intoleráveis, com o objetivo de violar a autodeterminação e a autossuficiência.

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Em quinto lugar, temos o que diz respeito às liberdades de crença ou do culto, do pensamento, da associação e das minorias. Segundo a Carta Magna brasileira, o Estado é laico. Isto implica, entre outras coisas, que existe um amplo e irrestrito respeito por todas as crenças religiosas dos habitantes da República. Paradoxalmente, nos últimos tempos, o principal problema percebido é a marcada penetração dos líderes religiosos nas diferentes esferas do poder político, principalmente no parlamento federal, na mídia e nos partidos políticos.

Composto de deputados federais de inspiração católica e evangélica, existe atualmente no Congresso nacional uma virtual bancada da Bíblia, que reúne cerca de 200 representantes de diferentes partidos (Oro e Tadvlad, 2019). Esse importante agrupamento suprapartidário visa promover leis de orientação cristã, principalmente ligadas a questões familiares, bem como resistir e se opor à aprovação de legislação sobre direitos reprodutivos das mulheres (aborto), casamento homossexual ou certas diretrizes de política educacional – incluindo aqui a proposta controversa da Educação sem partido.

Essa forte presença de representantes eleitos com base em critérios religiosos colocou em evidência e em questionamento a concepção secular do Estado brasileiro, bem como a qualidade da democracia existente no país. Isto é, em um contexto de crescente aumento de ativismo católico e evangélico – particularmente neopentecostal –, a constituição de um Estado não- religioso pode estar sendo silenciosamente ameaçada por grupos fundamentalistas, essencialistas e tradicionalistas, com graves consequências para toda a sociedade brasileira. Salvo melhor juízo, as ameaças fundamentalistas e mágico-religiosas ao Estado laico brasileiro são, coletivamente, uma das principais preocupações que a sociedade deve abordar em um futuro próximo (Oualalou, 2019).

Em relação à liberdade de pensamento – incluindo a liberdade acadêmica – ainda prevalece um respeito maioritário. Em consequência, os cidadãos geralmente têm liberdade para expressar seus pontos de vista, deliberar e desafiar as autoridades – inclusive por meio de participação política não convencional. As mobilizações massivas realizadas no âmbito do chamado ciclo de protestos 2013-2018, que resultou em irregular interrupção do mandato de Dilma Rousseff, demonstram isso. Prevalece, assim, o direito de sustentar opiniões sem interferência governamental ou outros poderes factuais, assim como a possibilidade de buscar fontes alternativas de informação.

Entretanto, mais recentemente, a liberdade de expressão pode estar sendo ameaçada por um forte e persistente discurso de ódio e intolerância, presente sobretudo nas redes sociais. Igualmente, não é possível descartar a manipulação e influência exercida pela mídia, controlada pelas elites culturais, econômicas e ideológicas, bem como a questão da censura judicial de certas mídias. Algo semelhante pode ser sustentado em relação às crescentes dificuldades em relação à liberdade de ensino nos diferentes níveis do sistema educacional – especialmente nos níveis médio e superior. Além disso, alguns funcionários públicos – incluindo diplomatas experientes, como foi o caso do embaixador Paulo Roberto de Almeida – foram punidos administrativamente

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por expressarem suas ideias e pensamentos em relação a questões políticas, econômicas ou sociais em seus próprios meios de disseminação (redes sociais, Internet). E o deputado federal Jean Wyllys, eleito em outubro de 2018, teve que renunciar ao mandato e se exilar no exterior, em função de ameaças à sua integridade física. Tudo isso está ligado à polarização político- ideológica presente no país, principalmente a partir de 2015 (Avritzer, 2018).

As liberdades de reunião, associação e organização também são garantidas pela Constituição do país. A participação política, em sentido amplo, tem sido uma das inovações mais significativas da democracia brasileira nos últimos tempos. Eis os exemplos de mecanismos como o chamado orçamento participativo, as conferências nacionais sobre políticas sociais, o voluntariado ou a proliferação de organizações não governamentais. Essas práticas de participação política estão ligadas ao desenvolvimento da sociedade civil e aos movimentos sociais contemporâneos. Convém agregar que Santos e Avritzer (2002) concordam que a participação política dos cidadãos é uma das características distintivas do que eles chamam de concepção não hegemônica da democracia – isto é, uma democracia de alta e crescente qualidade (Morlino, 2011).

Para os fins deste estudo, parece pertinente refletir sobre a grande relevância das organizações não governamentais e movimentos sociais ligados à demarcação de terras indígenas- quilombolas-camponesas e à proteção ambiental. Estes grupos são particularmente relevantes nas áreas rurais. No entanto, eles também são vulneráveis às ameaças e assassinatos encomendados por poderosos grupos de interesse – latitudinários, madeireiros, mineiros (CPT, 2019).16

Igualmente relevante é o trabalho dos movimentos sindicais e profissionais. O direito de greve é garantido por lei. E, de fato, ele é exercido com relativa prudência pelas principais centrais sindicais do país. Vale acrescentar que, em abril de 2017, ocorreu uma das últimas greves gerais no país, com cerca de 20 milhões de trabalhadores, e que certamente se tornou uma demonstração significativa de força.

E, para concluir, os direitos das minorias, embora constitucionalmente consagrados, são muitas vezes ignorados, desdenhados ou intencionalmente esquecidos. Isso acaba impedindo que membros de minorias – especialmente de minorias de gênero, etnia, orientação sexual, condição física ou circunstância no ciclo de vida – exerçam efetivamente todos os seus direitos e garantias fundamentais. Portanto, não é possível ignorar a persistência de discriminações e exclusões racistas, sexistas ou xenófobas. Ou seja, na prática, certos cidadãos não podem ou não são capazes de exercer plenamente seus direitos e garantias.

Muitas comunidades indígenas, por exemplo, sofrem de vulnerabilidade social, desenvolvimento social limitado e falta de serviços apropriados de educação e saúde – o que é

16 Essa problemática agrária e ambiental tem sido particularmente evidente durante a administração de Jair Bolsonaro (Schwarcz, 2019).

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ainda mais sério quando se trata de minorias étnicas com domínio limitado da língua portuguesa. Nesse sentido, um dos relatórios sobre os direitos dos povos indígenas, feito a pedido do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2016, considera, por exemplo, o seguinte, O Brasil tem uma série de disposições constitucionais exemplares sobre os direitos dos povos indígenas e, no passado, foi pioneiro na demarcação dos territórios desses povos. No entanto, no que diz respeito aos oito anos decorridos desde a visita do mandato anterior, é preocupante que a implementação das recomendações tenha sido estagnada e a resolução de problemas que persistem há muito tempo e que são de especial importância para a povos indígenas. Entretanto, as informações recebidas pelo Relator Especial apontam para um revés preocupante na proteção dos direitos dos povos indígenas. No atual contexto político [isto é, exatamente no momento da suspensão irregular do mandato de Dilma Rousseff, seguida pela polêmica assunção de poder do vice-presidente Michel Temer], as ameaças enfrentadas pelos povos indígenas podem ser exacerbadas e que corra perigo a proteção de longo prazo de seus direitos humanos [ONU, 2016b, p. 19].

A população afrodescendente – que representa quase a metade da população total do país e, portanto, acaba sendo uma verdadeira maioria nacional – apresenta persistentes, estruturais e inconsequentes taxas de pobreza, de analfabetismo e de violência. Observe, a este respeito, que mais de 70% das vítimas de homicídios no Brasil são jovens afrodescendentes em situação de pobreza (Ipea e Fbsp, 2019; Waiselfisz, 2016). Algo semelhante pode ser dito sobre a população feminina, pessoas com deficiência, migrantes e refugiados, e minorias de orientação sexual (LGBT). Daí que, mesmo o Brasil sendo um país formalmente tolerante e receptivo, a violência de gênero – inclusive a violência doméstica – e a violência homofóbica continuam sendo um sério problema a ser enfrentado (GGB, 2019; Schmidt e Machado, 2019; Ipea, Unifem, Sepm e Seppir, 2011).

DIREITOS POLÍTICOS

O Brasil é uma república federal governada por um sistema presidencialista. A Constituição Federal de 1988 e as leis secundárias garantiram aos brasileiros uma ampla e generosa cidadania eleitoral, além de inúmeras oportunidades para o exercício da participação política convencional. Desde as eleições presidenciais de 1989, o voto no Brasil é universal, obrigatório, direto e secreto. Para isso, basta que os cidadãos do Brasil se inscrevam no registro eleitoral correspondente, procedimento normalmente rápido e simples (Avritzer, 2016; Fleischer, 2016; Domínguez, 2017).

Em termos numéricos, o censo eleitoral nacional do Brasil é um dos maiores do mundo, superado apenas por seus equivalentes na Índia, nos Estados Unidos e, possivelmente, na Indonésia. Em janeiro de 2020, o eleitorado brasileiro somava 148,0 milhões pessoas. Juntamente com a expansão gradual do eleitorado, foi possível verificar nas últimas eleições gerais uma participação persistente de 80% dos eleitores. Concomitantemente, 20% dos cidadãos – ou um quinto do censo –, mesmo sendo o voto obrigatório no país, se absteve de votar. Essa abstenção persistente tem sido atribuída principalmente às limitações socioeconômicas de certos eleitores (pobreza, analfabetismo, baixo desenvolvimento humano), dificuldades logísticas e acesso às

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urnas (transporte, infraestrutura), falta de depuração do próprio censo e alguns casos a uma possível insatisfação político-eleitoral.

É importante acrescentar que a cidadania brasileira não é desinteressada da política, em geral, e da qualidade da democracia, em particular. Investigações de opinião pública patrocinadas pelo Senado brasileiro, em março de 2016, sugerem que 74% dos entrevistados apoiam a democracia e concordam com a frase: “A democracia é sempre a melhor forma de governo” (DataSenado, 2016b, p. 29). Especificamente em relação ao grau de interesse dos brasileiros pela política, um assunto de particular relevância para os propósitos deste estudo, a maioria (39%) declarou ter um interesse médio (DataSenado, 2016a, p. 16).

Mais recentemente, Latinobarómetro (2018) trouxe informações novas e preocupantes sobre a democracia atualmente vigente no Brasil, sob a perspectiva da opinião pública. Infelizmente, o apoio dos cidadãos ao regime democrático no Brasil experimentou uma queda de 55% em 2009 para 34% em 2018 – isto é, uma perda de 20 pontos em dez anos. Esse dado foi complementado por um aumento significativo dos assim chamados indiferentes e uma estabilização dos cidadãos com inclinações autoritárias. Isso colocou o Brasil entre os cinco países da América Latina com o menor apoio dos cidadãos ao regime democrático, constatação realmente preocupante.

Outros indicadores ponderados pela investigação do Latinobarómetro (2018) reforçam essa tendência de declínio na qualidade da democracia brasileira no período 2013-2018. A aprovação do governo, por exemplo, despencou de 56% em 2013 para 6% em 2018 – ou seja, 50 pontos percentuais a menos. A confiança interpessoal brasileira registrou um histórico mínimo de 4% em 2018, o que praticamente significa irrelevância estatística em um indicador extremamente importante para estudos em capital social, Responsividade, Solidariedade/Igualdade e também na Participação Política. Todavia, somente 9% dos entrevistados se dizia satisfeito com a democracia efetivamente existente no país. Infelizmente, por razões de espaço, não é possível aprofundar uma análise mais exaustiva do assunto. Mas é evidente que a democracia brasileira passou por um momento de grande dificuldade nos últimos cinco anos (Domínguez, 2017).

Os teóricos da cidadania política reconhecem a relevância não só da participação eleitoral dos cidadãos, mas também o que diz respeito à cidadania cívica e ao capital social. Nesse sentido, a cidadania política também pode ser auscultada por meio das atividades realizadas pelos cidadãos em certas organizações políticas e sociais. No que diz respeito à participação no âmbito das organizações políticas – também chamado de partidarismo – é necessário verificar as questões de: (i) identificação/preferência partidária, (ii) as condições e possibilidades de afiliação e militância, e (iii) democracia dentro dos partidos políticos.

Em relação ao estudo da participação no âmbito de partidos políticos – ou partidarismo – inicialmente, é pertinente verificar que a identificação ou preferência partidária no Brasil alcançaria 25% dos cidadãos. Concomitantemente, mais de 70% dos eleitores brasileiros não

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teriam uma identidade ou preferência partidária relativamente estável ou consolidada (DataSenado, 2016a, p. 19). Note que este resultado é consistente com outras pesquisas sobre partidarismo realizadas no Brasil, especialmente aqueles que fazem referência aos denominados Estudos Eleitorais Brasileiros – ESEB, realizados em 2002, 2006, 2010 e 2014 (Gimenes et al, 2016).

Em relação à questão da filiação de cidadãos a partidos políticos, destaca-se o elevado número de afiliados em relação ao total do censo eleitoral vigente, sendo que ambos os dados são atualizados com frequência pela entidade responsável pelos processos eleitorais brasileiros. – Significa, o Tribunal Superior Eleitoral-TSE. Assim, em janeiro de 2020, para um censo nacional de 148 milhões de eleitores, um total de 15,6 milhões de filiados foram registrados pelos partidos – ou seja, 10,6% do total de eleitores brasileiros, proporção maior que a observada em muitas democracias consolidadas.

A militância partidária implica uma participação política ainda mais qualificada. Geralmente corresponde à militância contribuir com recursos financeiros e materiais em suas organizações – complementando, assim, os recursos obtidos do chamado Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos –, realizar atividades de propaganda e divulgação político-ideológica, contactar eventuais simpatizantes e outros possíveis eleitores, apresentar-se como candidatos de base, assumir responsabilidades administrativas e logísticas, organizar campanhas de formação política, atualizar estatutos partidários, participar em comissões setoriais, entre outros assuntos.

Em suma, parece evidente que, mesmo em meio às vicissitudes dos últimos anos, o Brasil é uma democracia com eleições competitivas e com uma sociedade vibrante. Em outubro de 2018, Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal) triunfou no segundo turno das eleições gerais, com 55% dos votos válidos, e assumiu o cargo de Presidente da República em 1º de janeiro de 2019. No primeiro turno das eleições de outubro de 2018, deputados federais e dois terços do Senado também foram eleitos. Em geral, as eleições foram livres, honestas e competitivas (ver Quadro 1).

Seja como for, não parece imprudente acrescentar que a eleição e a posse do presidente Jair Bolsonaro representam um desafio singularmente significativo para pesquisadores das ciências sociais. Essa preocupação adicional com relação ao atual governo do Brasil deve-se, em grande parte, ao histórico político e social do próprio presidente e seu entorno imediato. Sendo que algumas das políticas públicas promovidas no primeiro ano do novo mandato presidencial – incluindo questões relacionadas à política educacional, segurança individual, questões ambientais, e movimentos sociais – justificam as ponderações acima mencionadas (Xavier, Domínguez e Fonseca, 2020; Schwarcz, 2019; Abranches et al., 2019).

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Quadro 1 – Resultados das eleições presidenciais brasileiras de 2018: Concorrência para a Presidência da República Candidato(a) Vice 1º turno 2º turno 7 de outubro de 2018 28 de outubro de 2018 Votação Total % Total % Jair Bolsonaro (PSL) Hamilton Mourão (PRTB) 49277010 46,03 57797847 55,13 Fernando Haddad (PT) Manuela d’Ávila (PCdoB) 31342051 29,28 47040906 44,87 Ciro Gomes (PDT) Kátia Abreu (PDT) 13344371 12,47 Geraldo Alckimin (PSDB) Ana Amélia Lemos (PP) 5096350 4,76 João Amoêdo (NOVO) Christian Lohbauer 2679745 2,50 (NOVO) Cabo Daciolo (PATRI) Suelene Balduino 1348323 1,26 (PATRI) Henrique Meirelles Germano Rigotto (MDB) 1288950 1,20 (MDB) Não participou Marina Silva (REDE) Eduardo Jorge (PV) 1069578 1,00 Álvaro Dias () Paulo Rabello (PSC) 859601 0,80 Guilherme Boulos Sônia Guajajara (PSOL) 617122 0,58 (PSOL) Vera Lúcia (PSTU) Hertz Dias (PSTU) 55762 0,05 José Maria Eymael (DC) Helvio Costa (DC) 41710 0,04 João Goulart Filho (PPL) Léo Alves (PPL) 30176 0,03 Total de votos válidos 107050673 91,21 104838753 90,43 Votos brancos 3106936 2,65 2486593 2,14 Votos nulos 7206205 6,14 8608105 7,43 Votos pendentes 746 0,01 0 0,00 Total 117346654 79,67 115933451 78,70 Abstenções 29941171 20,33 31371704 21,30 Não verificado 470 0,01 1139 0,01 Eleitores aptos a votar (censo) 147306295 100 147306294 100 Fonte: Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2020.

Todavia, em relação ao exercício dos direitos políticos, deve-se acrescentar que, além da participação nas eleições, os cidadãos brasileiros têm à disposição outros mecanismos de democracia direta e participativa, como: o plebiscito, o referendo e as iniciativas populares. Estes mecanismos adicionais de democracia direta e participativa foram colocados em prática em numerosas ocasiões – especialmente em contextos estaduais e municipais, com resultados razoáveis. Existe também a possibilidade de exercer direitos político-sociais por meio da participação política não convencional (petições, manifestações, protestos), que, aliás, ficou bastante evidente durante o ciclo de protestos 2013-2018 (Domínguez, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o primeiro semestre de 2020, o Brasil foi acometido por uma pandemia de um novo coronavírus, o Covid-19. A pandemia gerou uma emergência sanitária de grandes proporções, especialmente nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará, bem como no

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Distrito Federal. No momento de terminar de redigir este artigo (abril de 2020), a pandemia do Covid-19 tinha-se tornado um tópico fundamental da agenda e do interesse público, tanto sob a perspectiva sanitária, quanto pelas suas implicações sociais, políticas, econômicas ou culturais. Nesse diapasão, parece pertinente que as reflexões finais deste manuscrito examinem algumas implicações da referida pandemia no devir da promoção dos direitos humanos e da cidadania, bem como na qualidade da democracia atualmente existente no país.

A bem da verdade, mesmo antes da chegada do Covid-19 ao Brasil – em fevereiro de 2020 – o panorama econômico e político local era bastante complexo, conturbado e preocupante. A emergência sanitária instalada desde então tornou a situação do país ainda mais dramática, principalmente em termos de Dignidade Pessoal, de Direitos Civis e Direitos Políticos. Vale acrescentar que em uma época de crise sanitária nacional é normal, necessária e até esperada a imposição de enérgicas medidas para conter e reverter uma doença particularmente contagiosa. Ao mesmo tempo, para os fins do presente artigo parece ser especialmente importante o afloramento de conflitos político-sociais pré-existentes e que terminam sendo dimensionados pela difícil conjuntura sanitária. Eis uma conjunção de temáticas estruturais e conjunturais sumamente significativa, relevante, transcendente e convergente com o problema-objeto deste ensaio de interpretação.

Em termos de Dignidade pessoal, a pandemia do novo coronavírus evidentemente representa uma ameaça ao direito à vida, à supervivência dos indivíduos e coletividades, e à saúde da nação, em geral. Mesmo sem alcançar as trágicas estatísticas sanitárias da China, da Itália, da Espanha ou dos Estados Unidos, o Covid-19 tem implantado no Brasil um cenário pouco comum de medo, angústia, ansiedade e pânico. Sendo que esse sentimento de inconformidade parece ser maior que o observado em eventos semelhantes do passado, especialmente no contexto de pandemias como a de Aids, cólera, influenza, a gripe suína, o ebola, Zika, Chicungunha, o H1N1, o Sars ou a dengue.

Sabe-se que a melhor estratégia de confronto da pandemia do Covid-19 é o denominado isolamento social, isto é, uma virtual quarentena domiciliar, com intuito de impedir a transmissão comunitária do vírus. Em função das realidades socioeconómicas, demográficas e regionais, a atual pandemia é particularmente preocupante para a população mais idosa e/ou para coletivos com doenças pré-existentes. Neste caso, o respeito aos direitos humanos destes grupos da população deverá ser levado em consideração pelas autoridades. Algo semelhante se pode relatar com relação aos perigos que podem acontecer com a população carcerária (700 mil pessoas) e ou aos locais onde predominam condições de trabalho análogas à escravatura (300 mil pessoas).17

Em termos de Direitos Civis, a questão da autodeterminação – ou autossubsistência – é complexa para o enorme contingente de população que sobrevive no setor informal da economia.

17 Jiménez, C., e F. Betim (2020). ‘Mandetta prega consenso nacional para lidar com avanço do coronavírus e reforça pedido de isolamento’, El Pais Brasil, 28.3.2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-28/mandetta-prega-consenso- nacional-para-lidar-com-avanco-do-coronavirus-e-reforca-pedido-de-isolamento.html [Acesso em: 11 abr. 2020].

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Aproximadamente, 40% da população adulta brasileira aufere recursos em atividades do setor informal. No meio da pandemia, tal situação tem gerando ainda mais preocupação, medo e paranoia, inclusive pela terrível vicissitude a que muitos cidadãos estão submetidos no sentido de ter que escolher entre o risco de perder o emprego e a renda, de um lado, ou colocar em risco a vida e a saúde, de outro lado.

Evidentemente, essa situação de ameaça sanitária não pode ser aceita ou tolerada passivamente pelo conjunto da sociedade, especialmente se levarmos em consideração princípios, valores e tradições tipicamente republicanas como a fraternidade, o bem comum, o civismo, ou o altruísmo. Daí que, em geral, as enérgicas medidas de contenção do Covid-19 tenham sido aceitas e apoiadas pela maioria da população. Perceba-se que a virtual quarentena sanitária vigente implica, entre outras determinações e imposições, a restrição temporária de certos direitos e garantias constitucionais, inclusive o direito de reunião, a livre circulação de pessoas, o direito de manifestação, a livre empresa, e a livre associação sindical.18

Em termos de Direitos Políticos, a pandemia do Covid-19 também colocou alguns dilemas, contradições e polêmicas. Possivelmente, a questão mais preocupante até o momento de redigir o artigo tenha sido a gestão política da crise sanitária. Especialmente problemática tem sido a confusa, errática e até contraditória intervenção do próprio presidente Bolsonaro, que em inúmeras oportunidades ao longo da crise sanitária se manifestou de forma desdenhosa, insensível ou mesmo negligente.19 Essa intervenção presidencial na crise sanitária tem contrastado com o trabalho técnico-político das autoridades do Ministério da Saúde, com os poderes legislativo e judiciário, com os governos subnacionais – estaduais e municipais –, com os principais centros de pesquisa e desenvolvimento científico, com a sociedade civil organizada, e com a cooperação internacional.

Todavia, a ala tecnocrática e liberal do governo, encabeçada pelo ministro de Economia, tem tentado aproveitar-se da crise sanitária para avançar na agenda de flexibilização, desregulamentação e precarização do emprego, bem como o questionamento do sindicalismo, de um lado, e para impulsionar reformas administrativas e tributárias de interesse do empresariado, de outro – eis o projeto de Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020. Simultaneamente, a ala fundamentalista ou conservadora do regime bolsonariano tem reativado e difundido nas redes sociais irresponsáveis campanhas de disseminação de notícias falsas, de manipulação ou de simples ignorância.

Em um ano de eleições municipais – previstas para outubro de 2020 –, certamente a pandemia do Covid-19 terá significativas consequências político-eleitorais. Pelo observado ao

18 Benites, A., e F. Betim. (2020). ‘Congresso aprova renda básica por crise do coronavírus enquanto Planalto luta por protagonismo’, El Pais Brasil, 30.3.2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-31/congresso-aprova-renda- basica-emergencial-por-crise-do-coronavirus-enquanto-planalto-luta-por-protagonismo.html [Acesso em: 11 abr. 2020]. 19 Betim, F. (2020). ‘Afastado até de Trump, Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus no mundo e incentiva ‘fake news’’, El Pais Brasil, 30.3.2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-31/afastado-ate-de-trump-bolsonaro-lidera- negacionismo-do-coronavirus-no-mundo-e-incentiva-fake-news.html [Acesso em: 11 abr. 2020].

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longo da crise sanitária, existe uma alta e crescente tensão entre atores localizados à direita do espectro político, destacando-se alguns embates entre o presidente Bolsonaro e antigos aliados ou parceiros – inclusive os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro ou Goiás. Ao mesmo tempo, parece estar acontecendo uma convergência do centro com a esquerda brasileira. Tudo isso sem esquecer uma crescente insatisfação popular com a gestão política da crise sanitária do titular do poder executivo, situação que se demonstrou em manifestações no espaço virtual e em panelaços acontecidos em numerosas cidades brasileiras, entendidos como ações de participação política não-convencional, bem como em algumas solicitações de abertura de processo de destituição presidencial (impeachment).

Sob uma perspectiva geral, e levando-se em consideração tanto a pergunta-orientadora quanto a hipótese de trabalho apresentados na Introdução deste artigo, entende-se que existem argumentos consistentes para confirmar a relevância dos direitos políticos. Contudo, sob a perspectiva da qualidade da democracia, parece evidente a necessidade de fazer ainda mais pela promoção da Dignidade Pessoal e dos Direitos Civis no Brasil. Essas ponderações voltaram à tona, recentemente, no meio de uma dramática pandemia global de Covid-19, cujas consequências societais no Brasil, no continente e no mundo ainda estão sendo qualificadas.20

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