263 O Banco Mundial e o Sistema Único de Saúde brasileiro no início do século XXI The World Bank and the Brazilian National Health System in the beginning of the 21st century

Maria Lucia Frizon Rizzotto Resumo Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Departamento de Saúde Coletiva. Cascavel, PR, Brasil. Este ensaio tem o objetivo de atualizar as discussões E-mail: [email protected] sobre a perspectiva política e o papel desempenha- Gastão Wagner de Sousa Campos do pelo Banco Mundial na elaboração de políticas Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Medicina. públicas de saúde no Brasil, procurando identificar Campinas, SP, Brasil. continuidades e mudanças no modo de agir dessa E-mail: [email protected] instituição e sugerir hipóteses sobre as estratégias de ação neste início de século. Para isso, analisam- -se dois documentos, um de 2007 e outro de 2013, publicados por essa instituição, e levantam-se dados sobre projetos financiados pelo Banco no pe- ríodo de 2000 a 2015 no Brasil, com destaque para o setor de saúde. Conclui-se que os mecanismos tradicionais de intervenção não se alteraram em relação aos utilizados nas décadas de 1980 e 1990, tampouco mudaram os princípios orientadores: o que se observa é um deslocamento das ações do Banco da esfera nacional para as esferas estadual e municipal. Aponta-se a necessidade de estudos específicos dos contratos firmados entre o Banco e os governos subnacionais, uma vez que o modelo federativo brasileiro e o próprio sistema nacional de saúde permitem implementar mecanismos de gestão descentralizados que podem alterar a confi- guração do Sistema Único de Saúde. Palavras-chave: Banco Interamericano de Recons- trução e Desenvolvimento; Reforma dos Serviços de Saúde; Sistema Único de Saúde; Direito à Saúde.

Correspondência Maria Lucia Frizon Rizzotto Rua Visconde do Rio Branco, 1861, apto. 32. Cascavel, PR, Brasil. CEP 85802-190.

DOI 10.1590/S0104-12902016150960 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 263 Abstract Introdução

This essay has the aim of updating discussions on Desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), the political perspective and the role played by the em 1988, o Banco Mundial tem demonstrado inte- World Bank in the development of public health resse no setor de saúde brasileiro, especialmente policies in , seeking to identify continuities no que se refere às responsabilidades do Estado e à and changes in the way this institution acts and gestão pública. Interesse evidenciado pelo volume suggest hypotheses about action strategies in this de publicações e de contratos de empréstimos esta- new century. To do this, we analyzed a 2007 and belecidos com diferentes âmbitos da administração a 2013 document published by that institution, pública que visam interferir na dinâmica desse setor and gather data on projects funded by the World nacional (Rizzotto, 2012). Bank from 2000 to 2015 in Brazil, with emphasis Três aspectos merecem ser considerados nas on the healthcare industry. We concluded that the análises da relação do Banco com o campo da saúde traditional mechanisms of action have not changed brasileira: a garantia do direito universal à saúde, a from those used in the 1980s and 1990s, as well as forma de gerir essa política pública e o potencial que the guiding principles; what we observed is that the esse setor apresenta para a acumulação do capital. World Bank’s actions have shifted from the national São aspectos que se encontram intrinsicamente re- level to the state and municipal level. We indicate lacionados, evidenciando a dinâmica de intervenção the need for specific studies of the agreements do Banco, bem como sua intencionalidade. between the Bank and subnational governments, O direito universal à saúde não faz parte do since the Brazilian federative model and the ideário liberal e também não é mencionado nos national health system itself allow implementing princípios filosóficos do Banco. Para esse pensa- decentralized management mechanisms that can mento, a saúde é considerada um bem de consumo e alter the setting of the Unified Health System. deve ser oferecida pelo mercado que, supostamente, Keywords: Inter-American Development Bank; melhor organizaria a produção, a distribuição e o Health Care Reform; Brazilian National Health consumo; a intervenção do Estado deveria ocorrer System; Right to Health. apenas para regular a oferta e garantir “mínimos essenciais”, organizando ainda um aparato públi- co reduzido que desenvolvesse ações tradicionais de saúde pública, controlando epidemias e riscos tendentes a desestruturar o mercado. A noção de mínimos essenciais provém da Teoria de Justiça de John Rawls, uma variante do pensamento liberal que atribui ao Estado (mínimo) a promoção da justiça social por meio de políticas que visam reduzir as desigualdades e estabelecer certa equidade social (Rizzotto; Bortoloto, 2011). O Banco atualiza o ide- ário liberal incorporando conceitos do campo pro- gressista, como a noção de equidade, modificando-os semanticamente e reduzindo ao campo do possível liberal projetos históricos do movimento sanitário, como o caso da cobertura universal versus sistema universal que discutiremos logo adiante. Laurel (2014) analisa como a saúde tem se con- vertido em estratégia de acumulação capitalista, por meio da oferta de seguros privados de saúde, da gestão

264 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 privada de fundos públicos e da incorporação plena o Banco, o setor público deve ser responsável pelas da ciência ao capital no complexo médico-hospitalar- tarefas de regulamentação, promoção e educação -farmacêutico, ao mesmo tempo que examina a luta em saúde, além do financiamento; já a prestação de de governos progressistas da América Latina pela serviços deve ser feita por toda e qualquer entidade inclusão da saúde no âmbito público e como direito capaz de realizá-los mais eficientemente, uma vez universal, tendo em vista as contradições existentes que o setor privado é mais criativo, mais eficiente entre acumulação e legitimação da ordem social. e oferece serviços de melhor qualidade, além de ser Pode-se afirmar que a saúde tem se transfor- “comprovadamente superior aos serviços públicos mado em um espaço de luta política e ideológica. disponíveis” (Banco Mundial, 1991, p. 119). Esses argu- Nesse aspecto, o movimento sanitário brasileiro mentos encontram justificação no programa liberal tem acumulado derrotas no legislativo, na disputa de reinvenção do governo e reengenharia do Estado pelo fundo público e na própria implementação das que incorpora as regras da cultura organizacional diretrizes organizativas do sistema (Mendes, 2014). das empresas privadas nas instituições públicas Cita-se como exemplos o movimento “saúde + 10”, (Osborne; Gaebler, 1994; Almeida, 1999). que lutava por 10% da Receita Corrente Bruta de No Brasil, na década de 1990, a intervenção do recursos federais, mas o que se aprovou foram por- Banco no setor de saúde se deu de forma sistemática centagens da Receita Corrente Líquida (EC 86/2015); e concomitante à adesão do governo federal ao projeto a aprovação da entrada do capital estrangeiro na neoliberal, baseado nas diretrizes do Consenso de Wa- área da saúde (Lei 13.097/2015); e o incentivo para a shington. Atualmente, apesar de menos visível, o Banco ampliação do consumo de planos de saúde coletivos não abdicou de oferecer “recomendações” para reformar (PEC 451/2014). No entanto, apesar das dificuldades o nosso sistema de saúde, orientadas pelos mesmos enfrentadas e dos ataques sofridos, “ainda está viva pressupostos pró-mercado (Rizzotto, 2012, 2014). a vocação do SUS de ser um direito do cidadão e um Dentre as diretrizes do SUS, a descentralização ini- dever do Estado” (Marques; Mendes, 2014, p. 290). cialmente recebeu apoio do Banco, que a associava à no- Isso porque, em alguma medida, o direito à saúde ção de privatização, ao funcionamento descentralizado já foi incorporado subjetivamente pela sociedade do mercado e ao deslocamento do poder do nível central brasileira e o movimento sanitário permanece vivo para as instâncias subnacionais, o que resultaria em e atuante em várias frentes de defesa do SUS. maior autonomia gerencial e na possibilidade de atribui- O fato de o Brasil ter garantido constitucional- ção de responsabilidades (accountability) aos gestores mente assistência integral à saúde para todos como desses níveis. Arretche (1997) discute a descentralização responsabilidade do Estado recebeu já no início do como um mito das reformas do Estado desse período, que processo de implementação do SUS fortes críticas supostamente se constituiria em mecanismo de demo- do Banco Mundial (Banco Mundial, 1991, 1995). A cratização e eficiência das políticas públicas. questão central nunca foi saber se o Brasil poderia ou Mas, como o processo de descentralização re- não arcar com os custos do sistema, mas pela oposição sultou em uma municipalização do sistema e certo de raiz entre o pensamento liberal e a implementação alijamento dos estados federados da gestão do SUS, de sistemas de saúde públicos universais. Para o libe- o Banco passou a fazer ressalvas pelo suposto equí- ralismo, é inadmissível o alijamento do mercado em voco também neste aspecto da reforma sanitária qualquer setor da vida social, como pretendia o movi- brasileira, alegando que a descentralização teria mento sanitário brasileiro quando da criação do SUS. sido demasiada, com pequeno grau de privatização Neste sentido, nos anos de 1990, o Banco defendeu a da prestação de assistência e tendência de univer- revisão da premissa constitucional que atribui um pa- salização do acesso, o que teria representado uma pel de complementaridade ao setor privado no âmbito enorme sobrecarga, muito além da capacidade do sistema e sugeriu que o Brasil realizasse reformas financeira do País (Rizzotto, 2012). que favorecessem maior participação do setor privado Neste trabalho busca-se atualizar as discussões na oferta de serviços de saúde (Rizzotto, 2012). Para sobre a perspectiva política e o papel desempenha-

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 265 do pelo Banco Mundial na elaboração de políticas são “fornecer uma avaliação objetiva e neutra do públicas de saúde no Brasil, procurando identificar desempenho do sistema e dos desafios futuros” e continuidades e mudanças no modo de agir dessa “apresentar recomendações baseadas no diagnósti- instituição e sugerir hipóteses sobre as estratégias co e em experiências de outros países com reformas de ação neste início de século. similares” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, Para isso, num primeiro momento analisam-se p. 21-22, grifos nossos). dois documentos do Banco sobre a saúde brasileira, Invariavelmente, o interesse do Banco gira em um de 2007, intitulado “Governança no Sistema torno da gestão do Estado, do financiamento e da Único de Saúde (SUS) Brasileiro – fortalecendo a relação com o mercado. O documento de 2007 tem qualidade dos investimentos públicos e da gestão como foco a “governança”, um modo de gestão do Es- de recursos”, e outro, de 2013, com o título “20 anos tado que advém das teorias da gerência empresarial de construção do sistema de saúde no Brasil: uma e do Estado management, que emergiu nas últimas análise do Sistema Único de Saúde”. Na sequência décadas do século XX diante das crises dos estados apresentam-se dados sobre os projetos co-financia- de bem-estar e do crescente mal-estar social decor- dos pelo Banco de 2000 a 2015 que indicam possíveis rente do fim do pacto keynesiano. Para Graña (2005), mudanças de estratégias do Banco para intervir na diferentes abordagens/interpretações se sucederam dinâmica do setor de saúde brasileiro. à retomada do conceito de governança, nas décadas de 1980 e 1990, quase sempre sugerindo se tratar de A avaliação do Banco Mundial um processo de decisão horizontal a partir de nego- sobre o Sistema Único de Saúde ciações coletivas com o envolvimento de diferentes atores sociais (supostamente homogêneos), da ado- neste início de século ção de mecanismos que prescindem da autoridade e sanção do Estado e do fim das fronteiras entre Entre as formas de atuação do Banco Mundial público e privado. De acordo com esse autor, o dis- está a produção e divulgação de documentos que curso da boa governança legitimou a intervenção do refletem a visão da instituição sobre os setores de Banco Mundial nas políticas econômicas e sociais interesse, acompanhados de “recomendações” que, dos países tomadores de empréstimo e favoreceu a via de regra, visam redirecionar o setor para uma implementação das reformas neoliberais dos Esta- melhor adequação à lógica liberal de mercado. No dos nesse período, com renúncia da redistribuição início da década de 1990, afirmava que os estudos de renda, privatização de serviços públicos e retorno tinham como objetivos “contribuir para aprofundar do culto ao mercado. o conhecimento sobre este setor nacional” e “apre- No documento de 2007, o Banco Mundial adota o sentar sugestões para o enfrentamento dos desafios termo governança ou accountability como sendo um do sistema de saúde brasileiro nas próximas déca- mecanismo capaz de “captar a responsabilidade dos das” (Banco Mundial, 1991, p. 1,20). Passados mais atores e as consequências que serão enfrentadas por de vinte anos, os objetivos seguem praticamente eles com base em seu desempenho” (Banco Mundial, os mesmos, pois o documento de 2007 apresenta 2007, p. 1). Com isso, a instituição prestadora de servi- como objetivos pesquisar e descrever como se alo- ços de saúde, os gerentes e os trabalhadores poderiam cam recursos públicos; avaliar como os recursos ser responsabilizados pelo seu comportamento na transferidos para os estados e municípios são uti- gestão, no planejamento, no monitoramento e na lizados; coletar evidências de atrasos e defasagens administração dos recursos financeiros, “onde um na execução orçamentária; e “oferecer um conjunto desempenho ruim e sancionado e um bom desem- de recomendações para políticas visando melhorar penho e recompensado por promover qualidade e a eficiência na gestão de recursos e na qualidade impacto” (Banco Mundial, 2007, p. 1). Para o Banco, da atenção no SUS” (Banco Mundial, 2007, p. 2, gri- a ausência de responsabilização, ou seja, de punição fos nossos). E, no documento de 2013, os objetivos de gerentes e profissionais com baixo desempenho,

266 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 levaria a um sistema injusto que comprometeria a ção dos problemas do setor estaria no microespaço qualidade e o impacto das ações de saúde. A ideia de e na adoção de procedimentos técnicos, e nunca em governança local, descentralizada, transfere para decisões de macropolítica. o espaço da micropolítica a responsabilidade pela O documento de 2013 (Gragnolati; Lindelow; atenção à saúde prestada à população, deixando in- Couttolenc, 2013) apresenta um diagnóstico sobre a tacta qualquer crítica à macropolítica, onde se define trajetória do SUS, tema amplamente abordado por a alocação dos recursos públicos, até porque, para o pesquisadores brasileiros como Campos (2007), Paim Banco, o problema não está na falta de recursos, mas et al. (2011), Santos, Santos e Borges (2013). Por isso, na sua má gestão. neste trabalho será destacado aquilo que o Banco A partir de uma amostra com seis estados, 17 considera como os desafios para que alcancemos os municípios, 49 hospitais e 40 unidades de saúde, o objetivos definidos na Constituição Federal de 1988, Banco (2007) afirma que realizou um “amplo” diag- cujas “recomendações”, em nosso entendimento, se nóstico sobre o setor de saúde brasileiro e apresenta contrapõem ao SUS na medida em que distorcem prin- uma série de recomendações. Em linhas gerais, o cípios e propõe medidas que favorecem os interesses diagnóstico é negativo sobre todos os aspectos: o do capital e não a construção de um sistema público modelo de planejamento adotado é muito complexo universal. Embora isso também não se constitua em e centralizado; a participação das estruturas do con- novidade, uma vez que desde a criação do SUS o Banco trole social é insuficiente, ineficaz e potencialmente vem reiteradamente afirmando sua posição contrária contraproducente; os orçamentos são significativa- aos princípios constitucionais, como destacado em mente modificados durante a execução orçamentá- Parecer Técnico do Ministério da Saúde (Brasil, 1994), ria; a gestão de suprimentos e medicamentos é fonte em estudos sobre o Banco (Almeida, 2002; Rizzotto, de malversação de recursos e desperdícios; a gestão 2012; Lima, 2014) e por Carvalho (2013), que afirma: de equipamentos e instalações é ineficiente tanto na aquisição como na manutenção; a gestão de pessoal É paradoxal que esses pontos críticos ainda são, é dificultada e distorcida pela legislação inflexível e de fato, críticos, em grande medida, pela ferrenha pelas práticas gerenciais, pela falta de gestão e pela oposição que o Banco Mundial sempre fez ao SUS ausência completa de accountability dos gerentes; […] é preciso advertir aos leitores jovens que, desde e a gestão da produção e qualidade está apenas en- o final dos anos de 1980, o Banco Mundial sempre gatinhando, ou seja, a gestão do sistema de saúde foi prejudicial à saúde brasileira (p. 1). brasileiro é um fracasso. Diante desse diagnóstico, recomenda: (1) sincro- nizar e alinhar os processos de planejamento, orça- Em meio ao reconhecimento de alguns avanços, mento, execução e informação, e orienta-los para como a expansão da rede básica de atenção e a am- o desempenho; (2) consolidar as transferências de pliação do acesso, a descentralização da prestação recursos em categorias mais abrangentes e vincular de serviços e a redução de disparidades regionais, qualquer aumento no financiamentoa melhoria do o documento de 2013 centra no financiamento e na desempenho, recompensando o bom desempenho e gestão do sistema. Deliberadamente deixou de fora penalizando o inadequado; (3) Desenvolver e intro- os recursos humanos e fármacos, já que “essas áreas duzir arranjos organizacionais que proporcionem tiveram menos relevo na visão original de constru- autonomia e autoridade para a tomada de decisão e ção do SUS e porque elas têm um impacto menor gestão de recursos; (4) fortalecer e profissionalizar a nos resultados finais de interesse para a avaliação” capacidade gerencial; e (5) aplicar mecanismos para (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 18). Os fortalecer a responsabilização, como os contratos de temas considerados centrais pelo Banco se desdo- gestão que induzam os administradores a focarem bram em análises críticas sobre o direito à saúde, a em objetivos específicos e resultados mensuráveis governança, a eficiência e a relação público/privado (Banco Mundial, 2007), ou seja, para o Banco, a solu- na oferta de serviços de saúde no Brasil.

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 267 Direito à saúde luções que restringem o acesso e reduzem o direito. A defesa do uso da relação custo-efetividade como De acordo com o Banco, o direito à saúde no Brasil parâmetro para a alocação de recursos e a oferta teria sido operacionalizado por meio de dois princí- limitada de serviços de saúde se alia à ideia de “co- pios: a garantia legal de que qualquer pessoa tem direi- bertura universal”, conceito adotado por organismos to a ser tratada gratuitamente no SUS e a expansão da internacionais como a Organização Mundial da Saú- rede pública de unidades e serviços de saúde. Mas, para de (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde o Banco, “nenhum desses dois princípios é uma con- (OPAS) e o próprio Banco, conforme notícia veicula- dição necessária para garantir o direito à saúde, uma da pelo coordenador de operações do Departamento vez que os serviços de saúde não precisam ser gratuitos de Desenvolvimento Humano do Banco Mundial no nem serem prestados por um sistema público para Brasil: “Na área de saúde, há hoje um movimento am- serem acessíveis” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, plo e crescente nos países em desenvolvimento, que 2013, p. 48). Argumenta que “em vários países, onde o tem buscado as reformas necessárias para se atingir direito à saúde é tido como garantido e universal, os cobertura universal de saúde para seus cidadãos. O serviços de saúde não são gratuitos (são subsidiados) Banco Mundial está completamente alinhado com e não são necessariamente prestados por um sistema este movimento” (Lindelow, 2013, p. 1, grifos nossos). público” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. A cobertura universal é uma proposta da Organi- 48). E acrescenta que, como não foi definida uma lista zação das Nações Unidas (ONU), expressa na Agenda de serviços abrangidos e, consequentemente, “fazendo de Desenvolvimento Pós-2015, que dá sequência aos crer que cobre todos os serviços de que um doente pre- Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) cisa, o SUS é, pelo menos no papel, mais generoso do e se refere à garantia de um conjunto limitado de que a maior parte dos países desenvolvidos e ricos que serviços que pode ser oferecido pelo mercado e regulamentaram e definiram uma lista de serviços co- comprado pelos Estados. Essa proposta é absoluta- bertos” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 48). mente distinta de sistemas universais como o SUS, Para o Banco, países como o Reino Unido e Canadá onde os serviços são de natureza pública e de acesso “limitam ou priorizam a cobertura de certos procedi- igualitário, integral e gratuito para todos. A ideia mentos caros a casos em que o paciente irá, muito pro- de cobertura universal vem sendo duramente cri- vavelmente, se beneficiar deles (segundo um princípio ticada e denunciada por organismos de integração de custo-efetividade)” (Gragnolati; Lindelow; Coutto- regional, comunidades de intelectuais, movimentos lenc, 2013, p. 48). Analisa que “é improvável que um sociais, entidades da reforma sanitária brasileira e pacote de benefícios ilimitados possa ser aplicado de latino-americana e por governos progressistas (Ce- forma sustentada” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, bes, 2014; Moreno; Nascimento, 2014; Lima, 2014). 2013, p. 48), o que teria gerado dois conflitos legais no Ainda sobre o direito à saúde, a análise do banco Brasil: a obtenção de medicamentos e procedimentos (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 58) é por via judicial e a recusa das seguradoras de reem- de que o princípio da universalidade, pedra funda- bolsarem os custos dos serviços prestados pelo SUS mental do SUS, “está longe de ter sido cumprido”, aos seus segurados. A ausência de uma lista clara de e que “evidências mais recentes sugerem que a de- serviços e bens cobertos teria permitido aos provedores pendência do SUS aumentou na última década […], expandir a oferta e o uso de novas tecnologias caras, essas diferenças podem, ao menos parcialmente, resultando em uma fonte de ineficiências e de custos resultar da forma como as perguntas foram realiza- desnecessários, “já que o Brasil tem sido rápido a ado- das”? (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 58). tar novas tecnologias e as emprega de uma forma inefi- Neste caso, problemas metodológicos das pesquisas ciente” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 48). estariam “obscurecendo” a realidade, pois há “outras Essa crítica ao direito universal e acesso integral evidências que sugerem que as pessoas recorrem a à saúde reitera a posição do Banco de que o Brasil uma seleção livre (pick-and-choose), dependendo ousou demasiado ao criar o SUS, e aponta para so- do tipo de serviço necessário e das circunstâncias”

268 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 58). ciar, monitorar, prestar e usar serviços de saúde Conclui que “ainda que o SUS seja usado pela maior (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 4). parte dos brasileiros em algum momento, o aparente declínio no percentual de quem utiliza o sistema como sua fonte habitual de cuidados é significativo” Essa noção de governança, aparentemente demo- (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 58). crática, subtrai dos governos e do próprio Estado o O crescimento do setor privado suplementar poder e o dever para definir e garantir as políticas no Brasil de fato cresceu muito nas últimas déca- sociais, e desconsidera os interesses antagônicos das. Isso, no entanto, não significa que mesmo os em uma sociedade de classes e o poder de pressão usuários dos planos privados não utilizem o SUS, que cada grupo exerce sobre os agentes estatais e sobretudo quando necessitam de atendimento de sobre o uso dos fundos públicos. Parte do princípio alta complexidade, nível de atenção geralmente não de que ao Estado cabe, fundamentalmente, o papel coberto pelos planos populares, uma vez que os com de condutor dos processos de negociação e regulador melhor cobertura são praticamente impossíveis de da oferta de serviços públicos, como a saúde, sem, serem comprados e/ou mantidos pelos trabalha- necessariamente, ser responsável por essa oferta e dores, que ao se aposentarem são excluídos dos nem mesmo pelo seu financiamento integral. planos empresariais e invariavelmente retornam Segundo o Banco, a governança é um problema ao sistema público. crucial no SUS em todos os níveis de governo, pela bai- xa capacidade local para gerenciar responsabilidades Governança descentralizadas, pela falta de inovação nos modelos organizacionais e de gestão que corrijam as distorções Nesse horizonte que tende a pensar a tomada de atuais, adotando métodos de pagamento que ofereçam decisão (sempre um processo político) como um ato incentivos para que os provedores melhorem o desem- de gestão, neutralizando a influência da dinâmica penho, aumentando a eficácia no uso dos recursos política e remetendo-a à qualidade dos meios orga- disponíveis e melhorando o desempenho do SUS “no nizacionais e técnicos (descentralização, gestão e contexto de um sistema de financiamento factível e sus- avaliação), a noção de governança é central, pois tentável” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 12). “induz e reproduz melhores práticas, para garantir Ainda, para o Banco, no caso dos provedores públicos, aos gestores a tomada de decisão mais adequada à gestão e aos princípios constitucionais do SUS” a reforma do sistema de pagamentos poderia vir (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 4). A acompanhada de medidas de reforço da autonomia governança, na perspectiva do Banco, estaria ainda financeira e administrativa dos hospitais asso- relacionada com: (1) o estabelecimento do direito ciado a sistemas robustos de monitoramento e à saúde e suas consequências; (2) as instâncias de avaliação, para que os incentivos relacionados com coordenação e financiamento em todos os níveis de os pagamentos resultem em impacto no desempe- governo; (3) a participação e a capacidade de influ- nho (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 12). ência da sociedade; (4) o relacionamento entre com- pradores e provedores de serviços de saúde, ou seja, A introdução no espaço público da administração gerencial, própria da empresa capitalista, efetivada governança diz respeito ao gerenciamento do por meio de contratos de gestão, autonomia admi- relacionamento entre as várias partes envolvidas nistrativa e financeira, baseada no cumprimento de na saúde, incluindo indivíduos, famílias, comu- metas pré-definidas e na recompensa por resultados nidades, firmas, níveis de governo, organizações alcançados, não se constitui em novidade nas pres- não governamentais, empresas privadas e outras crições do Banco. Essa noção foi largamente difun- entidades que tenham a responsabilidade de finan- dida e imposta nas reformas dos Estados periféricos

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 269 no bojo dos contratos de ajuste estrutural, a exemplo nação, enfoque na atenção primária, reforma do sis- da reforma do aparelho do Estado levada a cabo tema de pagamento e fortalecimento da governança durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e da responsabilização. No entanto, essas reformas na década de 1990 (Pimenta, 1998; Rizzotto, 2012). teriam sido só parcialmente implementadas, sendo Ainda no documento de 2013, retoma a defesa da pequenos os ganhos, mesmo com a ampliação da privatização do setor, destacando “o pioneirismo de atenção primária. Analisa que países semelhantes São Paulo ao contratar organizações privadas sem ao Brasil alcançaram melhores resultados na saúde fins lucrativos (Organizações Sociais) para a gestão com níveis de gastos comparáveis ou inferiores. Os de unidades de saúde” (p. 5) e do , que principais fatores que estariam contribuindo para a “está agora utilizando uma abordagem semelhante ineficiência do nosso sistema seriam a ausência de para a atenção primária e muitos outros estados uma lista clara de serviços e bens cobertos, a peque- e municípios estão seguindo o mesmo caminho” na escala das operações, o uso elevado de recursos (p. 108). Ressalta que em outras partes do Brasil humanos, a baixa utilização da capacidade instala- observa-se um aumento de experiências com parce- da, além do modelo de gestão e dos mecanismos de rias público-privadas, tanto na construção como no pagamento (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013), gerenciamento de unidades públicas. Analisa que ou seja, continuamos ineficientes porque não segui- “as inovações nos modelos organizacionais, tanto mos integralmente as “recomendações” recebidas na no pagamento dos serviços a provedores quanto nas década de 1990: não limitamos legalmente o acesso modalidades de contratação, são ainda limitadas, e mantivemos o direito à saúde; não conseguimos mesmo ganhando impulso e qualidade nos anos re- organizar descentralizadamente o sistema; não centes” por meio das Organizações Sociais (OS), das punimos exemplarmente os maus gestores; não Parcerias Público-Privada (PPP) e das Fundações Pú- constituímos equipes de atenção básica apenas com blicas (FP) (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. trabalhadores com pouca formação; não introdu- 10). Embora essas modalidades de gestão não sejam zimos os mecanismos da administração gerencial exclusivas das instâncias subnacionais, é nessas como a recompensa/punição; e não instituímos o instâncias que mais rapidamente são adotadas, dada copagamento. a menor visibilidade midiática que ganham e a menor Para o Banco, apesar da pressão constante da área resistência que recebem por parte dos trabalhadores. da saúde por mais financiamento público, a questão central é se isso seria mesmo necessário, uma vez que Eficiência “o relatório afirmou deforma inequívoca” (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 110, grifos nossos) que a Eficiência e financiamento são duas faces de uma falta de recursos e materiais não é o fator impeditivo de mesma moeda, pois eficiência é compreendida como a uma melhoria no acesso e na qualidade. E embora o de- relação entre insumos e produtos, ou seja, entre gastos bate sobre o subfinanciamento tenha começado antes e resultados. Para o Banco, um sistema de saúde efi- da criação do SUS, “infelizmente não existe nenhuma ciente seria aquele que produz mais com um mesmo forma clara e científica de determinar isso” (Gragnolati; nível de gastos. Admite ser difícil determinar a eficiên- Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 110, grifos nossos). cia do sistema em nível macro, por isso as avaliações de Para o Banco, o sistema de saúde brasileiro po- eficiência tendem a focar em elos específicos da cadeia, deria produzir mais serviços e melhores resultados como a eficiência alocativa (destinação adequada de de saúde com o mesmo nível de recursos se fosse recursos a programas ou intervenções) e eficiência mais eficiente, reduzisse desperdícios, não fizesse técnica (maior volume de serviços por insumos dis- uma má utilização de fundos e fizesse uma melhor poníveis) (Gragnolati; Lindelow; Couttolenc, 2013). priorização na alocação dos gastos governamentais, De acordo com o Banco, esperava-se que a cons- ofertando serviços mais eficientes em termos de trução do SUS melhorasse a eficiência do sistema de custo. Conclui dizendo que “não há soluções simples saúde por meio de medidas de integração e coorde- para estas questões mas, sim, uma vasta experiência

270 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 internacional a que o Brasil pode recorrer” (Gragno- Apesar de reconhecer que existe um marco regula- lati; Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 13). No entanto, dor proporcionado pelo SUS, avalia que “a coordena- admite que “a parcela de financiamento público do ção entre os dois setores permanece muito deficiente total de gastos médicos permanece, comparativa- e as inconsistências entre a legislação básica do SUS mente, menor no Brasil do que nos países da OCDE – que confere um papel marginal ao setor privado – e e em muitos países de renda média” (Gragnolati; a existência de um setor privado forte e dinâmico Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 4), mas, antes de têm de ser harmonizadas”, sendo “imprescindível” aumentar o financiamento do SUS, bandeira do solucionar a falta de integração e a definição clara movimento sanitário, deveríamos arrumar a casa de papéis entre o SUS e o setor privado (Gragnolati; e explorar as possibilidades de gestão que oferece Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 108). como “recomendações” para esse setor nacional. Nesse aspecto há que se reconhecer que os gover- nos brasileiros pós-SUS têm sido generosos com o Relação público-privado setor privado e negligentes com o SUS, facilitando a expansão desse setor e induzindo a população ao Nos documentos analisados, diferente do temor consumo de planos de saúde com baixa cobertura presente no início dos anos 1990, quando parecia (Bahia, 2001, 2009). Mas não é apenas na saúde real a possibilidade de instituirmos aqui um siste- suplementar que o setor privado avançou, os Ser- ma público onde a iniciativa privada teria um papel viços Auxiliares de Diagnóstico e Terapia (SADT), complementar ao SUS, o Banco apresenta certa sobretudo os de alta incorporação tecnológica, tranquilidade diante dos números amplamente estão majoritariamente no setor privado, que em favoráveis ao setor privado, sobretudo no âmbito alguns casos oferta mais de 90% desses serviços hospitalar e na saúde suplementar. Os dados sobre (Menicucci, 2007; Santos; Uga, Porto, 2008; Santos; o aumento dos planos e seguros privados, sobre a Santos; Borges, 2013). hegemonia da oferta de serviços ambulatoriais pelo setor privado e o predomínio dos leitos hospitalares Antigas e novas estratégias de privados parece que tranquilizaram a instituição. intervenção do Banco Mundial no Segundo o Banco, o papel do setor privado foi inten- samente debatido às vésperas da nova Constituição, setor de saúde nacional e no final definiu-se o papel complementar para esse setor. “Havia uma nítida política de favorecimento Como se sabe, a partir da crise da dívida exter- da expansão do setor público, em detrimento da na dos anos 1980, o Banco passou a financiar não contratação de provedores privados” (Gragnolati; apenas projetos específicos, mas priorizou os deno- Lindelow; Couttolenc, 2013, p. 34), e “previa-se minados Programas de Ajuste Estrutural e Projetos que, a partir da implantação do sistema, haveria Setoriais mais abrangentes e, por isso, com maiores uma queda gradual e natural de importância do efeitos tanto no redirecionamento do padrão de sistema de saúde privado (‘suplementar’) em re- desenvolvimento econômico, como nas reformas lação ao sistema público” (Gragnolati; Lindelow; setoriais, o que de imediato deu maior visibilidade Couttolenc, 2013, p. 4). Entretanto, passadas mais e politizou as intervenções do Banco (Melo; Costa, de duas décadas, observa-se que “esta expectativa 1994; Pereira, 2014). não se confirmou” (Gragnolati; Lindelow; Coutto- Foi por meio desse mecanismo de financiamento lenc, 2013, p. 4). Corretamente, conclui afirmando – projetos setoriais – e de suas condicionalidades que que problemas de acesso e de qualidade estão o Banco assumiu particular poder de intervenção na contribuindo para a demanda contínua por planos definição de políticas e sistemas nacionais de saúde privados de saúde, o que “está minando as metas de em grande parte dos países periféricos. E o fez não universalidade e equidade” (Gragnolati; Lindelow; como uma imposição de fora para dentro, mas por Couttolenc, 2013, p. 122). uma confluência de interesses dos governos de plan-

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 271 tão, de empresários e de pesquisadores desses países lações de trabalho, introduz os contratos de gestão, que comungavam da mesma perspectiva ideológica. a gestão por metas de desempenho, o sistema de No caso do Brasil, com o intenso processo governança profissional e, em última instância, a de descentralização que se realizou a partir da desresponsabilização do estado para com a saúde Constituição Federal, em que se transferiu o po- da população. der decisório sobre a definição e implementação de políticas para os municípios, o Banco também Tabela 1 – Número e valor total dos projetos financiados atualizou as suas estratégias de ação, deslocando pelo Banco Mundial, segundo os estados da federação o foco do governo federal para as esferas estadu- e Distrito Federal, Brasil. 2000-2015 ais. Isso se evidencia em recente manifestação Valor total em Estado/ Distrito Federal Nº de projetos de representante do Banco Mundial no Brasil, “o milhões US$ Banco Mundial, ciente do seu papel, acompanha Rio de Janeiro 12 2.838,60 de perto a trajetória do SUS e tem apoiado projetos São Paulo 13 2.794,99 de desenvolvimento em quase todos os estados Minas Gerais 05 2.092,00 brasileiros” (Lindelow, 2013, p. 1). Rio Grande do Sul 04 1.865,00 Nos últimos 15 anos (2000-2015), o Banco Mun- Bahia 14 1.766,40 Pernambuco 10 1.633,50 dial financiou parcialmente 211 projetos no Brasil, Ceará 10 1.289,75 isso porque todos os contratos, independentemente Acre 03 520,00 da modalidade, exigem uma contrapartida da insti- Rio Grande do Norte 04 440,90 tuição prestatária. Entre os projetos, 103 (48,81%) Piauí 02 372,50 foram com algum estado da federação ou Distrito Tocantins 02 360,00 Federal, 66 (31,27%) foram contratos com o Governo Paraná 02 358,00 Federal, 24 (11,37%) com fundações privadas e 17 Espírito Santo 04 336,50 (8,05%) com municípios. Conforme se observa na Mato Grosso do Sul 01 300,00 tabela 1, 23 dos 26 estados brasileiros e o Distrito Sergipe 04 261,88 Federal firmaram acordos de empréstimo com o Amazonas 02 240,25 Banco Mundial entre 2000 e 2015; apenas Rondônia, Alagoas 01 195,45 Roraima e Sergipe não realizaram nenhum acordo Distrito Federal 02 187,64 com o Banco nesse período. O Rio de Janeiro e São 02 152,80 Paulo foram os que obtiveram o maior volume de Goiás 02 71,00 recursos e a Bahia a maior quantidade de projetos Pará 01 60,00 aprovados. Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em- Maranhão 01 30,00 bora tenham tido menos projetos aprovados, cinco Paraíba 01 20,90 Amapá 01 4,80 e quatro, respectivamente, tiveram o volume de recursos alto (tabela 1) (World Bank, 2015). Fonte: World Bank (2015) Apenas a título de exemplo, o governo do estado Entre os 32 projetos aprovados pelo Banco para do Paraná, como parte do acordo de empréstimo o setor de saúde brasileiro de 2000 a 2015 (tabela firmado com o Banco, criou a Fundação Estatal de 2), apenas nove (28,2%) são do Governo Federal; a Atenção em Saúde (Funeas-Paraná), transferindo a grande maioria (71,87%) são de instâncias subna- gestão da Secretaria Estadual de Saúde para uma cionais, majoritariamente estados da federação. Fundação Estatal de direito privado. O argumento Como se observa, o Banco tem privilegiado esses é que, por meio dessa Fundação, buscou-se “insti- gestores do SUS que possuem poder de decisão e tuir um novo modelo de gerenciamento da saúde” autonomia para introduzir no âmbito do sistema com possibilidade de “geração de fonte de recursos mecanismos defendidos pelo Banco, inicialmente no que não apenas do Estado” (Paraná, 2014, p. 1). Na que se refere à gestão do trabalho, mas que pode ter prática, a fundação permite a flexibilização das re- desdobramentos na própria noção do direito à saú-

272 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 Tabela 2 – Projetos da área da saúde financiados pelo Banco Mundial, número de controle e valor, segundo o ente contratante. Brasil, 2000-2015

Valor em Ente contratante Nome do projeto Nº de controle milhões de US$ Brasil MF Hd Prgm. Sector Reform Loan P080746 505,05 Brasil MS QUALISUS-REDE Brazil Health Network Formation and Quality Improvement P088716 235,00 Project Brasil MEC Federal University Hospitals Modernization Project P120391 150,00 Brasil MS AIDS and STD Control Project (03) P080400 100,00 Brasil MS VIGISUS APL 2 – Disease Surveillance & Control P083013 100,00 Brasil MS Second Family Health Extension Adaptable Lending P095626 83,45 Brasil MS Family Health Extension Program P057665 68,00 Brasil MS AIDS-SUS (National AIDS Program – National Health Service) P113540 67,00 Brasil MEC/MS/ Brazil: Human Development Technical Assistance Loan (TAL) P082523 8,00 MAS Distrito Federal Federal District Multisector Management P107843 130,00 Acre Acre Social and Economic Inclusion and Sustainable Development P107146 120,00 Project – PROACRE Acre Additional Finance to Acre Social and Economic Inclusion and P130593 150,00 Sustainable Development Project Amazonas Alto Solimoes Basic Services and Sustainable Development Project in P083997 24,25 Support of the Zona Franca Verde Program Bahia Integrated Health and Water Management Project (SWAP) P095171 60,00 Bahia Bahia Inclusion and Economic Development DPL P126351 700,00 Bahia Bahia Health System Reform Project P054119 30,00 Bahia BR Bahia DPL P147984 400,00 Ceará Ceara Multi-sector Social Inclusion Development P082142 149,75 Ceará BR Ceara Inclusive Growth (SWAp II) P106765 240,00 Maranhão BR Maranhao Integrated Program: Rural Poverty Reduction Project P080830 30,00 Minas Gerais Minas Gerais Partnership II SWAP P101324 976,00 Minas Gerais Minas Gerais Partnership II SWAP AF P119215 461,00 Paraná SWAp for Parana Multi-sector Development Project P126343 350,00 Pernambuco Pernambuco Equity and Inclusive Growth DPL P132768 550,00 Rio de Janeiro Brazil – Rio de Janeiro Renovating and Strengthening Public P106768 18,67 Management Rio de Janeiro Rio State Fiscal Sustainability, Human Development and P117244 485,00 Competitiveness DPL Rio de Janeiro Rio State Development Policy Loan III P126465 300,00 Rio de Janeiro Strengthening Public Management and Integrated Territorial P126735 48,00 Development Rio de Janeiro Rio de Janeiro Municipality Fiscal Consolidation for Efficiency and P111665 1.045,00 (município) Growth DPL Rio de Janeiro Rio de Janeiro Strengthening Public Sector Management Technical P127245 16,20 (município) Assistance Project Rio Grande do Rio Grande do Norte: Regional Development and Governance P126452 360,00 Norte Sergipe Development Policies for the State of Sergipe P129652 150,00 Fonte: World Bank (2015)

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.2, p.263-276, 2016 273 de. Por isso a necessidade de estudos que analisem públicos universais. O objetivo de reformar a saúde essas iniciativas estaduais e municipais com maior brasileira a partir de sua organização nos estados profundidade, buscando identificar em que medida federados parece ser o horizonte imediato do Banco. estão contribuindo para desconfigurar o SUS naquilo Com sua “ajuda”, visa contribuir para restituir poder que lhe é nuclear, ou seja, na possibilidade de ser um a esse nível de governo que teria mais condições de sistema público universal para todos os brasileiros. implementar mecanismos de responsabilização e A opção do Banco pelos acordos com governos punição na gestão pública, e de transferência de estaduais se dá possivelmente porque nesse nível responsabilidades ao mercado. da gestão pública as reformas são menos diluídas Mas não é só por meio do financiamento de pro- do que em nível municipal, portanto mais eficazes jetos e das condicionalidades que os acompanham e podem ser implementadas com menor resistência que o Banco pode contribuir para desconfigurar o do que se forem em nível nacional. SUS. A ideologia liberal-privatista, defendida por essa instituição, é constitutiva da visão de mundo Considerações finais de parte da sociedade brasileira, de muitos gestores, trabalhadores, analistas e pesquisadores envolvidos As crises de acumulação têm levado o capital a com a política de saúde brasileira que nunca apos- expandir-se para todos os espaços da vida social, taram no SUS como um sistema público universal. transformando-os em esferas de valorização do Em nossa opinião, urge que o movimento em de- capital. A saúde representa um campo do público fesa do SUS e do direito à saúde tanto faça a crítica com enorme potencial de investimento, na medida aos projetos de liquidação do direito à saúde e da em que articula vários processos produtivos, con- estrutura organizacional potencialmente capaz de formando o complexo industrial da saúde. O Banco efetivar esse direito, quanto trabalhe para a elabo- Mundial, como instância desse novo ciclo de capi- ração de um projeto comum de defesa dos valores talismo financeiro, reafirma a centralidade do mer- constitucionais que deram origem ao SUS, acresci- cado como mecanismo organizador e gestor mais dos de medidas necessárias à correção de distorções eficiente das políticas públicas, entre elas a saúde. que se acumularam ao longo dessas duas décadas e O SUS é um experimento que, na perspectiva do meia. Nos referimos à defesa de um financiamento Banco, não deve se expandir para outros países da compatível com as necessidades de saúde; ao firme América Latina e mesmo para o mundo, na medida combate às privatizações mediante o avanço de uma em que garante, constitucionalmente, o direito reforma democrática do Estado que liquide com o universal à saúde. O que deve servir de modelo patrimonialismo e consolide os mecanismos de con- são os países que possuem coberturas universais trole social de trabalhadores e da sociedade sobre o limitadas, que deixam a cargo do mercado a oferta poder executivo; à constituição de uma política de dos serviços de saúde; os governos que adotam pessoal comum a todo o sistema; e, centralmente, mecanismos da gerência empresarial para punir ao avanço da constituição de políticas sociais de gestores e trabalhadores; os Estados que adotam o qualidade na saúde, educação, mobilidade e vida new public management como forma de gestão das urbana, e segurança pública. estruturas e dos assuntos públicos, enfoque micro- -organizacional que transforma o planejamento em Referências um ato puramente técnico. ALMEIDA, C. Reforma de sistemas de servicios A visão crítica sobre o sistema de saúde brasi- de salud y equidad en América Latina y el Caribe: leiro, associada às reformas estaduais colocadas algunas lecciones de los años 80 y 90. Cadernos em prática a partir dos contratos de empréstimo de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. e à negação do direito à saúde, pode caracterizar 905-925, ago. 2002. uma nova ofensiva liberal contra o SUS e contra qualquer pretensão de instituir sistemas de saúde ALMEIDA, C. M. Reforma do Estado e reforma de sistemas de saúde: experiências internacionais e

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Contribuição dos autores Ambos os autores contribuíram igualmente na elaboração do presente ensaio.

Recebido: 16/06/2015 Reformulado: 03/11/2015 Aprovado: 23/11/2015

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