Olhar Etnográfico... – Araújo et alii.

UM OLHAR ETNOGRAFICO: AMPLITUDE PATRIMONIAL E HISTÓRIA AMBIENTAL NO VALE DO RIACHO SÃO JOSÉ, CAETÉS – PE

d.o.i. 10.13115/2236-1499.v1n17p111 1 - Alexandre Gomes Teixeira Vieira - UPE1 2 - Rafael Felipe da Silva - UPE2 3 - Emanuel Silva Oliveira,- - UPE3 4 - Rogério Ferreira de Oliveira - UPE4 5 - Leandro da Rocha Vieira - UPE5 6 - Marina de Sá Leitão Câmara de Araújo - UPE6

Resumo A História Ambiental está fundamentada na interpretação histórica que é feita das relações entre humanos e o meio ambiente ao longo do tempo. Neste artigo foi feita uma análise do variado

1 Graduado em História, UPE – Campus Garanhuns. Contato: [email protected] 2 Estudante do curso de licenciatura em História, UPE – Campus Garanhuns. Contato: rafabass96outlook.com 3 Estudante do curso de licenciatura em História, UPE – Campus Garanhuns. Contato: [email protected] 4 Especialista em Gestão Ambiental, UPE – Campus Garanhuns. Contato: [email protected] 5 Especialista em Gestão Ambiental, UPE – Campus Garanhuns. Contato: [email protected] 6 Prof.ª Dr.ª do curso de licenciatura em Ciências Biológicas, UPE Campus Garanhuns. Contato: [email protected] Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 111

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. patrimônio do vale do riacho São José, localizado predominantemente na área rural do município de Caetés-PE, tendo a História Ambiental como área do conhecimento onde as abordagens serão feitas. Na primeira parte do trabalho constará uma reflexão sobre História Ambiental, bem como os procedimentos e referenciais de pesquisa nessa área. Na segunda parte será feito um mapeamento do patrimônio Arqueológico/histórico, ligado às populações locais e devido sua importância na formação da paisagem e das identidades. Desta forma, será produzido um mapeamento em caráter geral da riqueza patrimonial a nível interdisciplinar, inserindo os elementos citados enquanto locais e objetos de pertença histórica na área de estudo. Este trabalho apresenta uma nova perspectiva para a produção de pesquisas no âmbito da Historiografia e da interdisciplinaridade, sobre tudo, na região do Nordeste brasileiro onde estes ainda são muito escassos. Além de sua relevância enquanto paradigma metodológico de pesquisa, traz à tona um lado da identidade das populações rurais e sua relação e “dependência” do meio ambiente possibilitando uma nova compreensão das identidades construídas historicamente e evidenciando sua relação com a natureza. Palavras chave: História Ambiental, Etnografia, Meio Ambiente Abstract The Environmental History is based on the historical interpretation that is made of the relations between humans and the environment over time. This article analyzes the varied heritage of the São José stream, located predominantly in the rural area of the municipality of Caetés-PE, with Environmental History as the area of knowledge where the approaches will be made. In the first part of the work will be a reflection on Environmental History, as well as the procedures and referential research in this area. In the second part will be done a mapping of the Archaeological / historical heritage, linked to the local populations and due to its importance in the formation of the Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 112

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. landscape and the identities. In this way, a general mapping of heritage wealth will be produced at an interdisciplinary level, inserting the mentioned elements as places and objects of historical belonging in the study area. This work presents a new perspective for the production of research in the scope of Historiography and interdisciplinarity, especially in the region of the Northeast of where these are still very scarce. In addition to its relevance as a methodological research paradigm, it brings to the forefront the identity of rural populations and their relationship and "dependence" on the environment, enabling a new understanding of historically constructed identities and evidencing their relation to nature. Keywords: Environmental History, Ethnography, Environment

1.Introdução A pesquisa própria da História Ambiental foi aprovada e aceita pela revista Annales em 1974, reafirmando a preocupação com as ações que o ser humano exerce sobre a natureza (VIEIRA, 2012). Desde os anos 1970 trabalhos no campo da História Ambiental foram produzidos, apesar de ainda escassos, obras como as de Nora e Le Goff (1974), Le Roy Ladurie (1974-1991), Burke (1992) e Burke et al. (2009), aparecem como um marco teórico interessante para alicerçar esse campo da História. No Brasil alguns trabalhos também foram produzidos a exemplo de Oliveira (2007), que traça uma História Ambiental da Mata Atlântica a partir da ideia de paleoterritórios; Padua (2010), que discute as bases teóricas para a História Ambiental; Soffiati (2008), que discute o conceito de eco-história e suas teorias e Martinello (2008), que visita a obra de Braudel para uma releitura de seus conceitos. Percebemos no entanto, a abertura da História para além de assuntos puramente políticos, religiosos e econômicos. Com isso,

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Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. devemos re-situar o ser humano no espaço e na escala zoológica, entendendo o contexto social não apenas de forma antropocêntrica ou sociocêntrica, mas também inserindo-o enquanto aparelho biológico atuante na história. Atualmente, a pesquisa no campo da História Ambiental engloba vários segmentos, podendo referenciar as relações homem/natureza tendo como ponto de partida pontos de vista como cultura, sociedade, política, ideologia e religião como propôs Vieira (2012), podemos ainda abrir as questões territoriais, paisagísticas e indenitárias no contexto da História Ambiental. Quando pensamos o meio ambiente, não devemos considerar apenas a natureza por si só, afinal é a interação ou o interesse humano que dá aos espaços sentido e importâncias (SANTOS, 2001). Ainda assim, é preciso pensar o meio ambiente artificial, que são todos os ambientes criados pelos humanos para suprir suas necessidades, ainda que a concepção desses ambientes não provoque grandes mudanças no meio natural. Uma das categorias de pensamento em História Ambiental aqui aplicadas é a paisagem, que consiste na análise das relações e inferências humanas em um meio (Paisagem) específica. Assim como observar os elementos participantes e formadores da paisagem, tanto em seus aspectos naturais (sem influência humana) quanto no que pesa a ação humana significante nesses meios. A paisagem é tudo aquilo passível da interpretação e da percepção que o ser humano faz da realidade, em outras palavras, tudo que vemos (MACEDO et al. 2012). Não há como contar a História ou descrever uma paisagem fora da ideia de espaço e de interpretação da realidade. Esses elementos formadores da paisagem também são determinantes na composição das identidades e importantes para as representações humanas, afinal, o ser humano se apropria daquilo que a natureza põe à sua disposição, logo o meio é o incentivador primário para a construção da história, como propõe Braudel (1992). Portanto esse trabalho trará uma narrativa etino-histórica no âmbito da História Ambiental do vale do São José e de seu patrimônio, Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 114

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. tendo como ponto de partida sítios históricos da área do vale do riacho São José em Caetés. O presente trabalho tem por objetivo geral estudar a área de forma interdisciplinar, abordando aspectos geográficos, arqueológicos e biológicos, importantes aqui para a análise do ponto de vista da História Ambiental, podendo assim absorver o máximo de elementos referentes à área enquanto patrimônio. Para isso também foi avaliado o estado de preservação ambiental dessa área, nos aspectos citados anteriormente.

2. Material e Métodos Para a realização dessa pesquisa, foram mapeados e catalogados os sítios arqueológicos/históricos na área do vale do riacho São José, zona rural do município de Caetés, no Agreste pernambucano. Em toda a extensão da área de drenagem do Riacho São José, foram analisados 90 pontos, bem como os percursos entre eles, no período de setembro de 2012 a novembro de 2015. Essas rotas de observação variaram desde: Sítios arqueológicos pré-históricos e históricos, conhecidos previamente, casas de moradores locais, corpos hídricos, áreas de vegetação remanescentes de Caatinga e importantes monumentos naturais locais, enfim, qualquer lugar peculiar que demonstre potencial enquanto fonte para a análise da História Ambiental da região. As incursões ocorreram de forma esporádica, num período que variou de 15 a 30 dias no máximo entre uma incursão e outra a campo. Vale ressaltar o auxílio de moradores locais como guias em algumas das expedições à área de estudo. Foi realizado o geoposicionamento dos sítios históricos da região utilizando aparelhos GPS. Outros métodos aplicados para o levantamento do patrimônio local neste trabalho foram; ensaio fotográfico, levantamento bibliográfico e diário de campo, construído a partir de conversas informais com moradores mais antigos da região. Esse método que utilizou-se de abordagens etno-históricas e etno- biológicas, para coletar informações e relatos pontuais das memórias Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 115

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. locais acerca da área de estudo não compõe uma abordagem da história oral.

3. Resultados e Discussão A área do vale do São José é formada por quatro afluentes principais que drenam vários córregos e riachos menores e todos deságuam no riacho principal, o São José, apresentando em sua extensão solos arenosos, argilosos e litólicos, bem como formações de aluviões e bancos de sedimento ao longo dos riachos. O Vale é caracterizado por grandes formações rochosas ígneas, algumas com presença de enclaves dioríticos e formações características, provocadas por erosão diferencial (VIEIRA et al. 2015). Também é possível encontrar estruturas alveolares/elípticas em algumas das formações rochosas na extensão do Vale, esse tipo de formação também foi observada nos sítios de “Pedra Furada”- – PE (MARIANO et al., 2013). Até recentemente haviam sido listados por Vieira et al. (2015) uma soma de 23 sítios arqueológicos de caráter “pré-histórico” encontrados na área de estudo, porém esse número subiu para 25 sítios, sem mencionar outros materiais de cunho arqueológico encontrados na área de estudo. Os sítios arqueológicos citados acrescentam uma nova área aos pontos de ocorrência arqueológica – Pré-histórica – no estado de , o que contribui para a compreensão do povoamento do Nordeste brasileiro no geral, e no específico, no Agreste Pernambucano como já foi proposto por Vieira et al. (2015). Apesar da grande riqueza de sítios arqueológicos pré-históricos existentes no vale do riacho São José, a discussão não se aprofundará no que diz respeito a estes. Aqui será tratado prioritariamente o patrimônio arqueológico histórico que engloba o patrimônio existente nessa região no máximo a dois séculos. Esse patrimônio arqueológico histórico é composto por capelas, cruzeiros, estradas, açudes, casas antigas e demais edificações Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 116

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. contemporâneas (ainda que arcaicas), que imprimem uma memória local na paisagem. São considerados sítios arqueológicos neste trabalho todos os locais onde o ser humano promoveu alguma ação, sejam esses locais; formações rochosas com arte rupestre, capelas, estradas, ruínas de casas ou quaisquer outros elementos da paisagem, onde houve interferência e/ou apropriação humana. Os locais listados a seguir, foram escolhidos com base na ideia de pertença coletiva impressa nesses locais, seguindo o proposto por Nora (1993), que os lugares materializam a história e criam um elo entre o passado e o presente, sem necessariamente permitir uma lembrança desse passado. Esses sítios devem ser entendidos como patrimônio cultural, uma vez que estão de forma remanescente, responsáveis pela construção de uma identidade local do vale do São José. Como afirma Brusadin (2015), o patrimônio e a identidade estão quase sempre ligadas a um espaço (lugar). Esse conceito de sítio arqueológico pré-histórico e histórico bem como o conceito de patrimônio cultural aqui discutidos foram fundamentado nas leituras de Aguiar (1986), Costa (1980), Lemos (1981), Carvalho (2003), Pessis (2003), Macedo et al. (2012) e Vieira et al. (2014a,b/2015). Apesar da discussão não se aprofundar acerca dos sítios pré- históricos da área, vale salientar que Vieira et al. (2014b), afirmou em seu trabalho, sobre o sítio arqueológico “Pedra do Moinho”, que muito do imaginário local está ligado a este sítio. Além dos sítios arqueológicos “pré-históricos”, estão inseridos na área de estudo e entorno 10 locais de valor histórico-arqueológico extremamente importantes para o estudo da história local, podendo ainda existir vários outros pontos de potencial e de interesse similar. Há ainda uma relação de interesse e de convivência das populações locais com esses lugares, essas possuem importância religiosa, folclórica, cultural e estética. Além de permitirem às novas gerações um contato com a memória materializada nesses locais, que para os moradores de seu entorno externam valores próprios da identidade que estes construíram Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 117

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. e valorizam. Na pesquisa de Silva Oliveira et al. (2015) esse sentimento de pertença e relação com o vale do São José foi constatado, através de entrevistas que tiveram como objetivo conhecer as memórias e a relação que as populações que circundam o Vale possuem com ele.

Tabela I – Sítios arqueológicos Históricos de maior importância para as populações do entorno do vale do São José.

N° Nome do local Tipo de sítio Localização 01 Capela dos Terina Capela 8° 47’19” S 36° 47’00” O 02 Igrejinha da Serra Branca Capela 8°49'37.46” S 36°45'7.91” O 03 Capela da Laguinha Capela 8°44'48.97” S 36°42'58.09”O 04 Estrada de Garanhuns ao Paisagem/estrada Inicio do percurso Santo Antônio 8°44'15.93"S 36°51'38.04"O Fim do percurso 8°52'42.37"S 36°30'12.17"O 05 Cruzeiros Monumento 8°46'30.19” S 36°43'5.51” W 06 Açude velho Paisagem 8° 46’27” S 36° 42’51” W 07 Casa da cascavel Moradia antiga 8°48'8.26” S 36°44'53.39” W

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08 Casa do fundo do Vale Moradia antiga 8°48'8.44” S 36°44'56.80” W 09 Casa Amarela Moradia antiga 8°48'58.53” S 36°44'30.39” W 10 Barreiro da Olaria Local 8°48'21.21"S 36°43'50.54"O

Esses sítios têm grande valor para os moradores locais, sobretudo as capelas e os cruzeiros, pois imprimem na paisagem a religiosidade local. Em sua maioria as capelas foram construídas por moradores, para fins de “pagar” promessas, prática comum na religiosidade dessa área. Assim como as igrejas, os vários cruzeiros colocados nas bordas do planalto da Borborema a pelo menos seis décadas, provenientes de missões religiosas encabeçadas por padres holandeses, também são para as populações locais, lugares onde a cultura e a religiosidade local são representados, há por parte dos locais, uma saudade dos tempos dessas missões, também materializado nestes cruzeiros, ao todo três desses cruzeiros encontram-se na área de entorno do Vale do São José, e cinco no município de Caetés como um todo. Sobre o “Açude Velho” e todo o percurso da “Estrada de Garanhuns ao Povoado Santo Antônio”. Por volta de 50 anos atrás a principal estrada que ligava o Sertão central e o Agreste meridional de Pernambuco, na microrregião de Garanhuns, cortava partes do que hoje são os municípios de Pedra, Venturosa, Caetés e Garanhuns. Essa estrada iniciava-se na vila de Santo Antônio do Tará – hoje no município de Pedra – e finalizava na sede da cidade de Garanhuns, partes dessa estrada ainda estão preservadas até hoje. O “Açude Velho” assim como outros locais, a exemplo de encruzilhadas, guildas de Avelós (Euphorbia sp.), árvores como imbuzeiro (Spondias tuberosa Arruda), Pau-ferro (Libidibia leyostachia Mart. ex. Tul.), Caixão (Ruprechtia laxiflora Meisn.), e Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 119

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. formações rochosas, são até hoje lembradas na memória dos mais velhos como locais mal assombrados, ou onde fatos curiosos e marcantes na história local aconteceram, tais como assassinatos, missas, pactos demoníacos, “pagamento de promessas”, descarte de cadáveres humanos e enterros de “anjos” – recém nascidos não batizados que faleciam nessa área. Por isso, estão aqui registrados enquanto patrimônio arqueo/histórico da área do vale do São José.

Figura 12 – Exemplares das espécies: Avelós (Euphorbia sp.); Imbuziero, (Spondias tuberosa); Pau-ferro (Libidibia leyostachia);Caixão (Ruprechtia laxiflora), respectivamente.

Fotos de: VIEIRA, A.G.T.

Além do caráter mal-assombrado, o açude velho, foi durante muitos anos um dos principais pontos de água comunitário do lado

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Norte do Vale do São José, devido ao seu porte, mantinha quantidade considerável de água durante os períodos mais longos de estiagem, segundo relatos locais e investigação in loco foi possível constatar a existência de uma nascente existente no “porão” – fundo – do açude no passado. Um dos locais mais relatados quanto à ocorrência de causos de assombração é a Casa Amarela, a mesma está localizada no sítio Cacimba Cercada, lado Sul do Vale. Segundo populares que moravam próximo ou transitavam pelo local, após a morte de seus moradores essa casa passou a ser mal-assombrada, o que afugentou potenciais moradores da mesma, estando fortemente presente no imaginário da população local. Em geral, todas as casas “velhas” estão associadas às histórias de assombração. Uma delas está localizada no fundo do vale do São José na localidade do Rebeiro. “A Casa da Cascavel”, como é popularmente conhecida, onde além dos relatos de assombração, há informações de que um dos primeiros moradores dessa casa coexistia com uma cascavel debaixo do fogão de lenha, o que veio a sugerir o nome atribuído a casa. A Casa do fundo do Vale e o Barreiro da Olaria, compunham uma área onde localizava-se uma antiga habitação situada no fundo do vale do São José, acerca de 15m curso do riacho São José e aproximadamente 200m da Casa da cascavel. Mesmo depois que a casa foi desocupada até os dias de hoje, o local é uma referência, pois em frente à casa passa uma trilha que corta o Vale no sentido norte-sul. O Barreiro da Olaria é utilizado para reabastecer o suprimento de água de quem passa pela trilha em meio à vegetação de Caatinga. Originalmente na área do Barreiro funcionava uma olaria onde foram fabricadas as primeiras telhas e tijolos para a construção das primeiras habitações da região. A Casa e o Barreiro são amplamente usados como local de lazer, onde pessoas vão acampar frequentemente, também de refúgio para caçadores que costumam “faxiar” (caçar a noite). Vale dizer que da Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 121

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. mesma forma que no passado as populações pré-históricas utilizaram esses espaços as populações “contemporâneas” que chegaram a essa região povoaram primeiro o fundo do Vale e não as bordas ou arredores. Essa leitura do espaço nos leva a analisar que as casas do fundo do Vale estão construídas próximo ao curso dos rios, numa distância similar ou igual à localização dos sítios pré-históricos da área. Não é comum encontrar sítios de arte rupestre fora do curso dos riachos ou das bordas dos Vales, o mesmo é aplicado às ruínas e a antigas moradias da área. Assim como os moradores primitivos dessa região, o “homem civilizado” que chegou no vale do São José a apenas algumas décadas utilizou os mesmos espaços e recursos que seus antecessores. Mesmo sem que houvesse um contato entre ambas as populações. o meio e os recursos nele presente foram determinantes para sua ocupação, como disposição de abrigos, fontes de água, caça, pesca e coleta de frutos e sementes. Para concluir a reflexão acerca do povoamento do Vale, basta observar a Casa do Fundo do Vale, ela está voltada para Oeste, direção oposta à das chuvas de inverno e dos ventos diários. Do lado Norte da casa há um curral usado para abrigar grande criação de caprinos, o mesmo fica a menos de 15m do curso do riacho São José. Do lado oposto da casa (lado Sul) afastado do curral, o Barreiro das Olarias foi cavado estrategicamente num local de maior inclinação, o facilita a captação do máximo de água das enxurradas vindas das partes altas e paredões do Vale. Como já foi dito todo esse complexo habitacional foi construído ao lado do riacho São José, segundo os moradores mais antigos da região, o riacho mantinha água em seu curso por um período de 8 a 10 meses o que resolvia o abastecimento de água das populações de seu entorno. Logo, as populações que viveram na região mantiveram vivas essas memórias em seus discursos até hoje, bem como materializado nas edificações locais. Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 122

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Quando a degradação ambiental dessa localidade se intensificou e os recursos naturais tornaram-se escassos, as populações migraram para as partes altas do entorno do Vale, compondo comunidades rurais habitadas até os dias de hoje. Essa migração se deu por volta de 50 anos atrás, com o início dos grandes períodos de seca na região e o esgotamento das fontes de água e outros recursos naturais no fundo do Vale.

Figura 14 - Imagens de parte do patrimônio arqueológico histórico do Vale. Capelo Terina; Cemitério do entorno da Capela Terina; Cruzeiro do Sítio Serrote; Casa do fundo do Vale; Açude Velho; Capelinha da Serra Branca, respectivamente.

Fotos de: VIEIRA, A.G.T.; OLIVEIRA, R.F.; MORAIS, W.P.

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Vale salientar ainda que a História Ambiental se fundamenta nas relações que o ser humano estabelece com a natureza numa perspectiva histórica. Ainda há uma carência de trabalhos relacionados à interação da sociedade humana atual com a natureza, bem como das sociedades humanas do passado. A relação entre o ser humano e o meio onde habita é íntima (MAIA, 2012), visto que assim como qualquer outro ser vivo, o ser humano necessita de condições adequadas para sua sobrevivência em ambientes naturais (LUCENA, 1984). Com isso, voltamos o nosso olhar para as relações de significação ligadas a ocupação e apropriação do meio imediato no vale do São José, sobretudo no que pesam as experiências vivenciadas pelos primeiros humanos a habitar essa região, pois estas propiciam um contato único e direto com a memória referente ao meio ambiente ali existente outrora (VIEIRA et al. 2014b). Hoje através do registro histórico é possível observar que o meio físico desperta nos seres humanos não somente significados práticos relacionados à sobrevivência, mas sobretudo sentidos que transcendem a lógica da apropriação dos recursos naturais, ou seja, um sentido cultural (COSTA, 1980). O espaço é um ambiente de significação e ressignificação constantes (SANTOS, 2001), pois diante da ação humana é que o meio ambiente apresenta-se enquanto local de valor simbólico. As atitudes humanas que vão sendo tomadas face ao meio ambiente ao longo da história são incontáveis e em geral ofensivas ao mesmo. Como afirma Martinello (2011), quando diz que:

O emergir da história ambiental é um de tantos outros acontecimentos dos campos do saber, mas entendo que é justamente a crise, devido à má gestão dos bens naturais, que faz com que se busque olhar para o passado e escrever uma história do ambiente (MARTINELLO, 2011).

Segundo Vieira (2012), não é papel do historiador quantificar ou qualificar as ações feitas pelo ser humano na natureza. Em discordância Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 124

Olhar Etnográfico... – Araújo et alii. ao afirmado por Vieira (2012), e concordando com Martinello (2011), é possível dizer que sim, cabe ao historiador lançar um olhar analítico e reflexivo sobre a ação humana no espaço/natureza, visto que analisar tais práticas é papel implícito no oficio de escrever a história, afinal toda ação humana no tempo e no espaço é propriamente história como ressalta Vieira et al. (2014b). Com isso, independentemente de quais espaços sejam analisados pelo historiador sendo estes trópicos (espaços naturais) ou antrópicos (espaços alterados pela humanidade) devemos lembrar da afirmação de Silveira (2011), que nos diz que o espaço é sempre histórico, e Certeau (1994), que coloca o espaço como o lugar primário das práticas humanas. Além disso, como disse Moore (2003), parafraseando Braudel, “História é o homem e tudo mais. Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.” (BRAUDEL apud MOORE, 2003). A própria conjuntura do espaço no contexto geográfico é a forma como o ser humano se apropria do meio (VIEIRA, 2012). Considerando as afirmações anteriores, é possível pensar o meio enquanto local de produção, mas, sobretudo, de apropriação e significação do ser humano. Contudo, analisar a história de um lugar e sua importância enquanto patrimônio perpassa não só a dinâmica da identidade histórica atual, mas sua importância para além da apropriação comum. Trata-se, enfim, de seu valor universal, Burke (1992) afirma o seguinte: O acontecimento, o “fato” não era digno da principal preocupação do historiador, mas sua importância se encontrava na capacidade de revelar estruturas mais profundas; essas sim de interesse amplo do historiador da longa duração (Burke, 1992).

Sendo assim, não há como tratar uma história do ambiente apenas na ótica do presente, visto que os espaços transcendem o tempo e as sociedades. Várias sociedades humanas, a exemplo dos indígenas, pensavam a natureza enquanto um ser superior ou mesmo divino (VIEIRA, 2012). Revista Diálogos – mar./abr. – 2017 – n.° 17 125

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Isso implica no “cuidar” se sobrepondo ao “usar”. Os indígenas por exemplo apropriavam-se do espaço de modo a observar que é da natureza que se tira todo o essencial para a sobrevivência. É preciso lembrar que da mesma forma que a natureza dá o essencial para existir, é nela onde estão documentadas as primeiras experiências humanas conhecidas, não somente as práticas primordiais de nossa espécie.

4. Conclusão

Este trabalho apresenta uma nova perspectiva para a produção de pesquisas no âmbito da Historiografia e da interdisciplinaridade, sobre tudo, na região do Nordeste brasileiro onde estes ainda são muito escassos. Além de sua relevância enquanto paradigma metodológico de pesquisa, traz à tona um lado da identidade das populações rurais e sua relação e “dependência” do meio ambiente imediato, que nos mostra tanto sua riqueza simbólica, quanto a amplitude dos elementos a serem elevados à categoria de patrimônio. Esta pesquisa ainda abre portas para análises similares em outras áreas rurais de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil, possibilitando uma nova compreensão das identidades construídas historicamente e evidenciando sua relação com a natureza.

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