UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

MACEIÓ 2006

MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Linguística.

Profa. Dra. Januacele Francisca da Costa Orientadora

Profa. Dra. Adair Pimentel Palácio Co-orientadora

Maceió 2006

Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale

O48o Oliveira, Maria das Dores de. Ofayé, a língua do povo do mel : fonologia e gramática / Maria das Dores de Oliveira. – Maceió, 2006. 258f.

Orientadora: Januacele Francisca da Costa. Co-Orientadora: Adair Pimentel Palácio. Tese (doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Maceió, 2006.

Bibliografia: f. 253-258.

1. Índios da América do Sul – Brasil – Língua e Linguagem. 2. Índios Ofayé. 3. Língua Ofayé – Linguística. I. Título. CDU: 809.8

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MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

Maceió, 19 de abril de 2006

Tese submetida à Comissão Examinadora designada pelo Colegiado do Curso de Pós- Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Linguística. (Aprovada em 19 de abril de 2006.)

Profa. Dra. Januacele Francisca da Costa (UFAL)

Profa. Dra. Adair Pimentel Palácio (UFPE)

Prof. Dr. Angel Corbera Mori (UNICAMP)

Profa. Dra. Sílvia Aguiar Carneiro Martins (UFAL)

Prof. Dr. Aldir Santos de Paula (UFAL)

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Ao povo Ofayé

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AGRADECIMENTOS

Ao Povo Ofayé, pela acolhida, amizade e ensinamentos sobre sua língua e seu modo de vida.

Ao cacique José de Souza (Koy), que colaborou sistematicamente para a realização deste trabalho, tanto fornecendo informações sobre a língua e o povo, como permitindo formalmente a minha entrada na comunidade.

Aos meus amigos e professores de Ofayé, Marilda de Souza (Xahtä), Joana Coimbra

(Okwin-e) e João Carlos de Souza (Käe), pela paciência, ensinamentos e receptividade para minha pesquisa com a língua.

Aos demais povos da comunidade – não-índios e índios Kaiwá e Guarani - que contribuíram para os bons momentos de convivência e oportunidade de intercâmbio cultural.

A minha orientadora, Januacele da Costa, pela paciência e incentivo para a realização do trabalho. Sua dedicação, empenho e tolerância tornaram esse trabalho possível. Meu carinho e agradecimento por tudo que tenho aprendido com você e sua família que também adotei como minha.

A minha co-orientadora Adair Pimentel Palácio, pelo carinho, amizade e sugestões valiosas para o trabalho. Obrigada por seus ensinamentos, sua alegria genuína e o incentivo à pesquisa.

Aos meus sobrinhos por adoção, Carol, Diogo, Claudeane, Fábia (minha parente

Fulni-ô) pela atenção e receptividade nas muitas vezes de nossa convivência, o que tornou a vida mais doce, mais leve, mais feliz. Em especial, agradeço a Fábio, pela disponibilidade em atender aos diversos favores solicitados, e a Lara pela sábia e pronta ajuda com o computador.

Aos amigos e grandes incentivadores Celso Brandão, Silvia Martins, Miriam Alves,

Alexandrina, Celsa, Nazaré, Edna, Cristina, Selma e Vitória, minha professora de Inglês.

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Ao Programa da Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFAL, pela acolhida e por me permitir ampliar os conhecimentos.

Aos professores deste Programa pelos ensinamentos e discussões prazerosas nas aulas de Linguística.

Aos Professores da minha qualificação de tese, Aldir Santos de Paula, Adair Pimentel

Palácio e Paulo José da Silva Valença, por suas observações, sugestões e incentivo.

Aos colegas de curso, em especial, Eliane, Eronilma e Luzia, com as quais criei laços.

A Pós Graduação do IEL/UNICAMP, que me recebeu para o Programa Sanduíche.

Em especial, aos Professores que me aceitaram em seus cursos, Wilmar da Rocha D’Angelis,

Filomena Spatti Sândalo e Angel Corbera Mori, meu orientador na UNICAMP. Agradeço imensamente a este professor pela atenção, apoio e disponibilidade para as leituras e sugestões valiosas para meu trabalho.

Aos meus colegas de pesquisa em línguas indígenas da UNICAMP, pelo apoio e encontros festivos.

À Fundação Ford, pelo apoio financeiro recebido através do Programabolsa, que me permitiu desenvolver minha pesquisa em boas condições de trabalho.

À Fundação Carlos Chagas, que coordena o Programabolsa admiravelmente e me fez sentir incluída em uma grande família.

Aos colegas do Programabolsa, pelo apoio e incentivo e por compartilharmos dos mesmos ideais de justiça e equidade social.

À FUNAI, pela liberação das minhas atividades profissionais e permissão para entrada na comunidade Ofayé.

Aos colegas da FUNAI, pelo carinho e amizade, especialmente àqueles com os quais tenho contato mais próximo: Leonice (Maceió), Inalda e Estela (Recife), João Valdez e sua

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esposa Emy (Campo Grande), que me receberam diversas vezes em sua casa, me levaram para conhecer os Ofayé e me deram apoio incondicional para a realização da pesquisa.

Por fim, agradeço a minha família pela compreensão do meu distanciamento em razão da pesquisa e aos demais parentes Pankararu, que, com seus ensinamentos e exemplos, me fizeram acreditar na possibilidade de ultrapassar limites, me encorajaram a ousar e enfrentar os desafios que um trabalho como esse apresenta.

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RESUMO

Esta é uma descrição da Fonologia e de Gramática da língua Ofayé, uma língua indígena brasileira filiada ao Tronco linguístico Macro-Jê e sem relação de família com outra língua conhecida. A língua Ofayé é falada pelos Ofayé, índios que vivem em uma aldeia a que eles próprios chamam Akanõdji – nosso lugar – situada no município de Brasilândia, Estado do do Sul. Nesta descrição, descrevemos os sons da língua e apresentamos os inventários de fonemas, consoantes e vogais, baseando-nos em contrastes e distribuição, discutimos a estrutura da sílaba fonética e fonológica e alguns processos de realização de fonemas, além de darmos uma descrição sucinta de algumas alomorfias e tecermos breves considerações sobre acento e tom. O nome e o verbo, no nível da palavra e do sintagma, são também descritos e o verbo é apresentado em termos de classes semânticas que vão definir as principais estruturas sintáticas da língua. Tanto o nome quanto o verbo são descritos mais extensamente, apresentando-se as categorias que os definem e as suas relações no sintagma.

As duas outras classes principais de palavras, adjetivos e advérbios, também foram descritas.

As classes fechadas, que, na maioria, exercem funções gramaticais, são discutidas em diversas partes do texto, juntamente com o nome, o verbo e na sintaxe. Por isso, somente aquelas classes fechadas que não aparecem nesses outros pontos são levantadas em um capítulo específico. Do ponto de vista sintático, definimos a estrutura sintática da língua e descrevemos diversos aspectos da sintaxe, como os tipos de sentenças, o sintagma adposicional e a coordenação de sentenças e de termos. Concluímos enfatizando algumas questões levantadas durante as análises efetuadas e apresentando sugestões para uma classificação tipológica da língua, tanto na morfologia quanto na sintaxe.

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ABSTRACT

This is a description of the phonology and grammatical aspects of Ofayé, a Brazilian

Indian language of which is thought to be affiliated to the linguistic stem Macro-Jê but with no relation to any other known language. The Ofayé language is spoken by the Ofayé Indians who live in a village called by the Indians themselves Akanõdji – which means our place - situated in Brasilândia, in the state of . In this work, the sounds of the language are described, and the inventory of the phonemes, consonants and vowels are presented on the grounds of contrasts and distribution. We discuss the phonetic and phonological syllable structure of the phonetic syllable and some processes of phoneme realization; in addition to giving a brief description of some allomorphs, we also address stress and tone. The noun and the verb, on the levels of word and phrase, are also described; the verb is shown on the basis of semantic classes which in turn define the main syntactic structures of the language. Both the noun and the verb are more extensively described and we present the categories which define them specifying their relations within the phrase. Two other main classes – the adjectives and adverbs – are described, as well. The closed classes which for the most part play grammatical roles are discussed along the text together with the noun and the verb, and also in the syntax. Specific chapters are assigned to address other closed classes which have not been mentioned so far. On the grounds of the syntax, we define the structure of the language and describe the aspects such as types of sentences. We conclude this work both emphasizing some questions arisen along the making of the analyses as well as presenting suggestions for a typological taxonomy in what concerns the morphology and syntax of the studied language.

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ABREVIATURAS E SÍMBOLOS

σ - Sílaba FEM - Feminino 1 - Primeira pessoa FON - Fonte 2 - Segunda pessoa FUT - Futuro 3 - Terceira pessoa IMP - Imperativo ADJ – Adjetivo IMPF - Imperfectivo AF – Afirmativa INC - Inceptivo ANT - Anterior IND - Indireto ASP – Aspecto INSTR - Instrumental ASS - Associativo INT - Internalizado AT – Ativo INTR - Verbo Intransitivo ATRIB - Atributivo LOC - Locativo AUM - Aumentativo NEG - Negação AUX – Auxiliar NEU - Neutro BITR - Verbo Bitransitivo NFUT - Não futuro C – Consoante NUM - Número COM - Comitativo OBJ - Objeto COMP - Comparativo OBV - Objetivo COMPL - Completivo OD - Objeto Direto CONCL - Conclusivo OI - Objeto Indireto CONT - Continuativo PART - Particípio CPT – Composto PAS - Passado DAT – Dativo PES - Pessoa DEM - Demonstrativo PF - Perfectivo DET - Determinante PL - Plural DIM - Diminutivo POS - Possessivo DIR – Direcional PRED - Predicativo ENF – Enfático PRES - Presente ESP - Especificador PROIB - Proibitivo EST – Estativo PRON - Pronome

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QUANT- Quantificador REC - Recente RECIP - Recipiente REFL - Reflexivo REL - Relativo REM - Remoto SG - Singular SOB - Sujeito-Objeto-Verbo SUF. - Sufixo SUJ - Sujeito SV - Sujeito-Verbo TRAJ - Trajeto TRANS - Verbo Transitivo V - Vogal VER - Verbalizador VT - Vogal Temática

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------19

1 QUEM SÃO OS OFAYÉ ------19 2. O PROJETO ------25 3 A LÍNGUA ------30 4 AS BASES TEÓRICA E METODOLÓGICA ------32 5 A PESQUISA DE CAMPO ------33 6 A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ------33

CAPÍTULO 1: FONOLOGIA ------36

1.1 Introdução ------36

1.2 Cartas fonéticas ------36 1.2.1 Segmentos consonantais ------36 1.2.2 Segmentos vocálicos ------38

1.3 Inventários de fonemas ------39 1.3.1 Fonemas consonantais ------39 1.3.2 Fonemas vocálicos ------41

1.4 A estrutura da sílaba ------43 1.4.1 A sílaba fonética ------43 1.4.2 A sílaba fonológica ------46

1.5 Processos de realização de fonemas ------51 1.5.1 Processos de realização de consoantes ------51 1.5.1.1 Labialização ------51 1.5.1.2 Dessonorização de oclusivas ------54 tЀ] $ [dЋ] ------58] $ [ש] $ [Alternância [t] $ [d 1.5.1.3 1.5.1.4 Oclusivas em coda silábica ------67 1.5.1.4.1 Oclusiva surda final com relaxamento oral ------67 1.5.1.4.2 Oclusiva surda final com relaxamento nasal ------68 1.5.1.4.3 Oclusiva surda medial com relaxamento oral ------68 1.5.1.4.4 Oclusiva sonora medial com relaxamento oral ------69 1.5.1.4.5 Oclusiva sonora medial com relaxamento nasal ------69 1.5.1.5 Nasalização de /d/ ------70 1.5.1.6 Nasalização de aproximante coronal ------73 1.5.1.7 Epêntese de [h] ------74 1.5.1.8 Elisão e fusão de glide lábio-velar em início de palavra ------75 1.5.1.9 Apagamento de /h/ em sílaba inicial ------75 1.5.1.10 Degeminação de plosivas ------76

1.5.1.11 Vocalização de coda nasal? ------78 1.5.2 Processos de realização de fonemas vocálicos ------80 1.5.2.1 Alongamento de vogais ------80 1.5.2.2 Elisão de vogais em fronteira de morfema e de palavra ------84 1.5.2.3 Crase ------85

1.5.3 Formação de onset complexo ------85

1.5.4 Observações sobre a morfofonologia------86 1.5.4.1 Morfema de aumentativo ------86 1.5.4.2 Morfema de aspecto ------87

1.6 Aspectos suprassegmentais ------89 1.6.1 Tom e acento ------89

CAPÍTULO 2: O NOME E O SINTAGMA NOMINAL ------93

2.1 Introdução ------93

2.2 A Classe nome em Ofayé------93 2.2.1 As categorias nominais ------96 2.2.1.1 Posse ------96 2.2.1.1.1 Nomes inalienavelmente possuíveis ------97 2.2.1.1.2 Nomes alienavelmente possuíveis ------101 2.2.1.1.3 Nomes não possuíveis ------103 2.2.1.2 Número ------104 2.2.1.3 Gênero ------105

2.3 O Sintagma Nominal ------106 2.3.1 Determinantes ------107 2.3.1.1 Demonstrativos ------107 2.3.1.2 Quantificadores ------109 2.3.1.2.1 Quantificadores numéricos ------109 2.3.1.2.2 Indefinidos ------111 2.3.1.2.3 Nome contável versus nome de massa ------112 2.3.2 Modificadores ------114 2.3.2.1 Nome em função de modificador ------114 2.3.2.1.1 Modificadores nominais em construção genitiva ------114 2.3.2.1.2 Modificadores nominais em construção possessiva ------117 2.3.2.2 Adjetivo em função de modificador ------118 2.3.3 A concordância no sintagma nominal ------119 2.3.4 A ordem das palavras no sintagma nominal ------120 2.3.4.1 Ordem das palavras na relação de posse e em construção genitiva ------120 2.3.4.2 A ordem Nome-Modificador adjetival ------121

2.4 Processos de formação de palavras ------121 2.4.1 Composição ------121 2.4.1.1 Justaposição modificado-modificador ------122

2.4.1.1.1 Nome + Nome ------122 2.4.1.1.2 Nome + Nome + Adjetivo ------124 2.4.1.1.3 Objeto-verbo------124 2.4.2 Derivação ------125 2.4.2.1 Avaliação ------125 2.4.2.2 Nominalização ------126 2.4.2.3 Verbalização ------127

CAPÍTULO 3: O VERBO E O SINTAGMA VERBAL ------128

3.1 Introdução ------128

3.2 Classes semânticas de verbos em Ofayé ------129 3.2.1 Fenômenos temporais ------129 3.2.2 Processos involuntários------133 3.2.3 Funções corporais ------135 3.2.4 Movimento voluntário ------136 3.2.5 Posição ------137 3.2.5.1 [ano⍧ցܦe] sentar, levantar ------137 3.2.5.2 [hϯhϯ] estar em pé ------139 3.2.5.3 [aЀi⍧ցe] deitar ------140 3.2.6 Ações ------141 3.2.7 Ações-processos ------142 3.2.8 Cognição ------144 3.2.9 Percepção ------144 3.2.10 Emoção ------146 3.2.11 Enunciados ------148 3.2.12 Predicados adjetivos ------152 3.2.13 Predicados existenciais------154 3.2.14 Predicados locativos ------155 3.2.15 Predicados possessivos ------156

3.3 Resumo ------157

3.4 Categorias verbais ------162 3.4.1 Tempo ------164 3.4.2 Argumentos pronominais ------166 3.4.3 Morfema verbalizador ------172 3.4.4 Aspecto ------173 3.4.4.1 Perfectivo vs. Imperfectivo ------174 3.4.4.2 Inceptivo vs. Completivo ------180 3.4.4.3 A interrelação Tempo-Aspecto ------181 3.4.5 Concordância ------185

CAPÍTULO 4: ADJETIVOS ------187

4.1 Introdução ------187

4.2 Adjetivo em Ofayé ------188

CAPÍTULO 5: ADVERBIAIS ------191

5.1 Introdução ------191

5.2 Adverbiais em Ofayé ------191 5.2.1 Palavras adverbiais ------191 5.2.2 Sintagmas adverbiais ------194

CAPÍTULO 6: CLASSES FECHADAS DE PALAVRAS ------196

6.1 Introdução ------196

6.2 Pronomes ------196 6.2.1 Pronomes livres ------197 6.2.2 Pronome Reflexivo/Recíproco ------197

6.3 Marcadores de polidez ------199

6.4 Respostas a questões polares ------200

CAPÍTULO 7: SINTAXE ------201

7.1 Introdução ------201

7.2 A estrutura sintática do Ofayé ------201 7.2.1 Verbos ativos ------202 7.2.1.1 Intransitivos ------202 7.2.1.2 Transitivos ------203 7.2.1.3 Bitransitivos ------205 7.2.2 Verbos estativos ------212 7.2.2.1 Predicados adjetivais ------212 7.2.2.2 Funções corporais ------213 7.2.3 Verbos de emoção ------213

7.3. Definindo a estrutura sintática de Ofayé ------214

7.4 A ordem dos constituintes na estrutura sintática ------217 7.4.1 A ordem na estrutura intransitiva ativa------218

7.4.2 A ordem na estrutura transitiva------219 7.4.3 A ordem na estrutura bitransitiva ------221 7.4.4 A ordem na estrutura estativa ------222 7.4.5 A ordem na estrutura com verbos de emoção ------223 7.4.6 Complementos ------224

7.5 Operações de mudança de valência ------227 7.5.1 Decréscimo de valência ------227 7.5.2 Acréscimo de valência ------229 7.5.2.1 Transitivação ------229 7.5.2.2 Manipulação ------230 7.5.2.3 Reflexivização/Reciprocidade ------230

7.6 O sintagma adposicional------232 7.6.1 Papéis semânticos ------233

7.7 Tipos de sentenças ------237 7.7.1 Declarativas ------237 7.7.1.1 Afirmativa ------238 7.7.1.2 Negativa ------238 7.7.2 Interrogativa ------240 7.7.2.1 Questões Sim-Não ------240 7.7.2.2 Questões de informação ------241 7.7.3 Comparativas ------243 7.7.4 Imperativas ------244

7.8 Coordenação ------245 7.8.1 Coordenação de sentenças ------246 7.8.2 Coordenação de termos ------247

CONCLUSÃO ------249

REFERÊNCIAS ------253

ÍNDICE DE QUADROS E DIAGRAMAS

Quadro 1: Carta de segmentos consonantais ------37

Quadro 2: Carta de segmentos vocálicos ------38

Quadro 3: Fonemas consonantais ------40

Quadro 4: Inventário de fonemas vocálicos ------42

Diagrama 1: Sílaba fonética ------46

Quadro 5: Ditongos crescentes ------49

Quadro 6: Ditongos decrescentes ------49

Diagrama 2: Sílaba fonológica ------50

Quadro 7: Constituição morfológica do nome ------95

Quadro 8: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: termos de parentesco ------97

Quadro 9: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: partes do corpo ------98

Quadro 10: Paradigma dos prefixos de posse em nomes alienavelmente possuíveis:objetos de uso ------101

Quadro 11: O sistema de prefixos possessivos de Ofayé ------104

Quadro 12: Constituição do sintagma nominal ------106

Quadro 13: Estrutura 1: verbos ativos (transitivos e intransitivos) ------158

Quadro 14: Estrutura 2: verbos inativos (intransitivos) ------159

Quadro 15: Estrutura 3: verbos de emoção e cognição ------160

Quadro 16: Estrutura 4: verbos ativos (bitransitivos) ------160

Quadro 17: Outros casos ------161

Quadro 18: Tipos de verbos e pronomes-sujeito ------161

Quadro 19: Estrutura gramatical da sentença ------163

Quadro 20: Pronomes gramaticais sujeito e objeto de verbos transitivos ativos ------168

Quadro 21: Pronomes gramaticais-sujeito de verbos estativos ------169

Quadro 22: A interrelação Tempo/Aspecto ------183

Quadro 23: Pronomes livres ------197

Quadro 24: Conjugação de um verbo intransitivo ------203

Quadro 25: Conjugação de um verbo transitivo ------204

Quadro 26: Pronomes que desempenham funções sintáticas centrais ------210

Quadro 27: Jogo das pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva ------210

Quadro 28: Conjugação de um predicado adjetival ------212

Quadro 29: Conjugação de um verbo de função corporal ------213

Quadro 30: Conjugação de um verbo de emoção ------214

Quadro 31: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos ------216

Quadro 32: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos (Revisado) ------217

Quadro 33: Constituição básica da estrutura da sentença ------226

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INTRODUÇÃO

1 Quem são os Ofayé

Os índios conhecidos historicamente como Ofayé ou Ofayé- estão localizados na cidade de Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Essas denominações não são únicas e não se tem ainda um consenso na representação ortográfica do nome desse povo: Ofayé, Ofaié,

Opaié, Opayé, Ypaié, Afaiá, Faié, Faia, Kukura, Xavante, Chavante, Shavante, Chavante-

Ofaié, Chavante-Opaié, Guachi são alguns dos nomes encontrados na literatura sobre esses

índios. (DUTRA, 1996 e 2004). Nossa opção é pela designação Ofayé, grafia comumente empregada na literatura atual sobre línguas indígenas brasileiras - Teixeira (1995) e Rodrigues

(2000), por exemplo - e aceita pelos próprios índios dessa etnia. Ofayé, que na língua Ofayé significa índio, é a autodenominação do grupo. Xavante1 é um nome dado pelos não-índios, comumente empregado para designar outros povos indígenas – os Akwe do Rio das Mortes e os Otí dos Campos Novos de São Paulo. (RIBEIRO, 1980). Os Ofayé consideram-se bastante distintos de seus homônimos, os Xavante. Sabe-se, porém, que eles mantêm, pelo menos, dois traços em comum: preferem viver nos campos e suas línguas pertencem ao tronco linguístico

Macro-Jê.

A história de vida dos Ofayé não é diferente da história dos demais povos indígenas brasileiros. Vítimas de grandes massacres e perseguições, os Ofayé foram quase totalmente destruídos pelas doenças, escravidão e, sobretudo, pelo avanço da criação de gado em suas terras. Ribeiro (1986; p. 84-85) retrata bem a situação de violência sofrida por esses índios.

1 De acordo com Dutra (2004, p. 47) em referência a Loukotka (1939, p.150) e ao Projeto RADAM-BRASIL (1982, p. 288) o nome Xavante é provavelmente uma alusão à região onde vivem esses índios, na qual a vegetação do tipo savana é predominante e corresponde ao cerrado sul mato-grossense. O termo savana, ele esclarece, é um conceito fitogeográfico de origem venezuelana levado para a África no século XV pelos naturalistas espanhóis e depois retornado para América sob os olhos dos viajantes na paisagem do Centro-Oeste brasileiro, onde habitavam vários povos indígenas. 20

À margem direita do Paraná entre o Sucuriju e o Ivinhema viviam os Ofaié- Xavante, contra os quais se lançou, em meados do século passado, a mesma onda de criadores de gado vinda do Rio São Francisco e que vimos investir sobre os Kayapó. Em sua fuga, os Ofaié se deslocaram para o sul onde foram encontrar outra fronteira de expansão pastoril que penetrava a região, vinda dos campos do Rio Grande do Sul. Assim cercados, esses índios foram dizimados sob as mesmas alegações que vimos levantar-se desde o Nordeste: seriam ladrões de gado que abatiam reses como se fossem veados ou porcos selvagens. O certo é que nenhum esforço foi feito pelos civilizados para se acercarem desses índios; os criadores simplesmente faziam chacinar cada grupo descoberto, quando um novo retiro de criação era fundado.

O genocídio praticado contra os Ofayé resultou numa depopulação de grandes proporções. Dutra (2004, p. 47) afirma que havia pelo menos duas dezenas de aldeamentos

Ofayé ao longo da margem direita do rio Paraná, que seguia desde a foz do rio Verde até o leito do Ivinhema, numa faixa aproximada de 70 mil quilômetros, estendendo-se pela margem sul-matogrossense, e avançava até a divisa com o Estado de São Paulo. Conforme Ribeiro

(op. cit), estima-se que em 1903, no primeiro contato oficial desses índios com o General

Cândido Mariano da Silva Rondon, existia uma população de 2.000 Ofayé. Em 1910, esse número caiu drasticamente para pouco mais de 900 indivíduos até chegar a menos de uma dezena por volta da década de 1970. A partir dessas informações, acreditou-se, então, no completo extermínio dessa etnia.

Entretanto, não foi o que aconteceu. Destituídos de suas terras e apagados2 do cenário nacional, os Ofayé estavam entregues à própria sorte. A estratégia era buscar alternativas de sobrevivência. Organizados em pequenos núcleos familiares, esses índios espalharam-se em fazendas da região onde estava localizado seu antigo território, explorados como mão-de-obra barata. Os índios afirmam que durante o tempo de dispersão do grupo sequer sabiam da existência da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Todavia, mesmo em circunstâncias de

2 Os Ofayé, ao que parece, sempre foram invisíveis aos olhos da sociedade nacional. Dutra (2004, p. 45) afirma que estes índios só passaram a ser percebidos (e dominados!) a partir da Republica, quando ocorreu uma sistemática ocupação das terras sul mato-grossenses pelos criadores de gado. 21

adversidades extremas, permaneceram unidos por um laço comum: a identidade étnica. Dutra

(1996, p. 129) apresenta a situação do seguinte modo:

Perdido o controle físico do grupo por parte do órgão oficial, por vinte anos não se ouve mais falar em Ofaié. Convivendo com essa idéia, a sociedade civil mais esclarecida acaba também por esquecê-los. A anônima resistência de um pequeno grupo que não soçobrou, entretanto, os mantém unidos na língua e nos costumes. Desafiam de maneira admirável a imposição cultural que lhes é imposta, preservando o mínimo de seu modus vivendi.

Em 1978, os Ofayé foram contatados pelo órgão oficial de apoio aos índios – a

FUNAI – que, reconhecendo a fragilidade e miséria em que se encontravam esses índios, propõe a sua remoção para outra localidade. No depoimento a seguir, é relatada a grave situação em que viviam os Ofayé e o consequente deslocamento de suas terras.

A FUNAI criou um projeto... de um parque indígena nas terras do Kadiwéu e... por isso que ... nós fomos jogados lá... [E como estava a situação dos Ofayé antes da transferência para o território dos Kadiwéu?] Era uma situação realmente dramática. Nós estávamos passando fome, jogados no meio de vacas dos fazendeiros... quando morria um índio... era um problema grave... e foi bem na época que morria um índio quase todo dia. Às vezes de doença, bebida alcoólica é... fome, né? Enquanto isso, estava acontecendo essa barbaridade, o fazendeiro estava... já tava tomando o restinho de terra que nós tínhamos na época. Já estava fazendo a cerca, derrubando tudo... e nós não sabíamos que um grupo de políticos na cidade de Brasilândia também estava articulando a transferência dos índios Ofayé para a região de Bodoquena. (ATAIDE OFAYÉ, março 2004).

A promessa era levá-los para uma área reservada para grupos ameaçados. Lá, eles teriam terra boa para a agricultura, fartura de caça e de pesca, além da assistência do órgão indigenista. Assim, com a perspectiva de uma vida melhor, os Ofayé foram levados para a

“terra prometida”, isto é, para a Serra da Bodoquena, território indígena Kadiwéu. Saíram às pressas, em cima de um caminhão contratado pela FUNAI. Neusa Ofayé, uma índia que escapou da transferência para Bodoquena porque estava trabalhando em uma fazenda, deu o seguinte depoimento: 22

Quando fui novamente à aldeia, quando cheguei lá, encontrei uma branca na estrada que disse “iih, sua família já foi embora pra Bodoquena”. Aí já comecei a chorar. Minha avó tinha ido embora... fiquei chorando... chorei bastante... minha mãe tinha falecido, meu pai tinha falecido... eu tinha só minha mãe que era a minha avó que me criou... fiquei anos e anos... anos e anos esperando... eu cada dia mais triste. Já não tinha mais esperança de ver minha família... Penso que não... eu estava tomando tereré com meu esposo e meus filhos e quando olhei na estrada vi alguém com uma troxinha na cabeça. Olhei pra lá. Quando chegou perto, era minha tia, a mãe do Arlindo, a filha dela... Foi uma surpresa grande pra mim. (NEUSA OFAYÉ, março 2004).

Na verdade, a viagem foi uma grande surpresa, tanto para Neusa quanto para seus parentes Ofayé. Antes de saírem de seu território, a proposta da FUNAI ainda era algo a ser pensado pelos índios. Para dar maior credibilidade ao projeto de transferência, um índio

Ofayé foi convidado a conhecer Bodoquena para depois retornar e contar aos demais suas impressões sobre o novo local de moradia dos Ofayé. Entretanto, esse índio não mais voltou e a transferência ocorreu abruptamente. Alguns deixaram para trás os poucos animais de criação, outros foram desprovidos até mesmo de seus parcos bens pessoais. Como estavam mudando para uma situação supostamente melhor, achavam que esse era um detalhe sem muita importância. Porém, tão logo chegaram a Bodoquena, perceberam o engodo em que caíram.

Aí perguntamos para o funcionário da Funai: Onde estão as casa que vocês prometeram? Sem responder a pergunta o funcionário disse: “Vocês tem que se virar!” “Mas onde?” Perguntamos. “Vocês tem que expulsar os brancos”, disse ele. (Ataíde Xehitâ-há, índio Ofayé, cit. em Dutra (1996, p. 50).

Assim, contrariando todas as promessas e expectativas, os Ofayé foram novamente abandonados, passando, então, a sofrer todos os tipos de hostilidade, agora por parte dos

Kadiwéu, historicamente reconhecidos como um povo dominador de outros povos indígenas.

(RIBEIRO, 1980, p. 62) e também por posseiros que lá estavam disputando a terra. Além dos

Ofayé, os outros povos, Guarani-Kaiwá e Guarani-Nhandeva, que foram levados para 23

Bodoquena, partilharam as mesmas mazelas, ou seja, além das perseguições, tiveram o infortúnio da fome, das doenças, das violências mais diversas e, consequentemente, a morte de muitos desses índios. Novamente nos reportamos à fala de Ataíde Ofayé, que resume essa fase da seguinte forma:

Lá foi pior ainda porque aqui [em Brasilândia] pelo menos era só os fazendeiros. Lá era todo mundo os posseiros, os fazendeiros, os próprios índios donos da terra que não nos deixava sossegados nem um minuto sequer. (ATAÍDE OFAYÉ, março 2004).

Passados oito anos, em 1986, os Ofayé conseguem, com o apoio do CIMI (Conselho

Indigenista Missionário), fugir de Bodoquena e voltar para Brasilândia, município de onde foram retirados pelo órgão oficial. Mesmo com as terras completamente usurpadas pelos fazendeiros, eles viram no retorno a possibilidade de nova chance de vida e manutenção de uma identidade étnica, respaldada na coesão do grupo e na vontade de reconquistas. A princípio, instalaram-se em fazendas locais, trabalhando como peões e bóias frias. Depois, a

FUNAI acomodou-os em uma área de 110 hectares, arrendada, às margens do Rio Verde, afluente do Rio Paraná. Essa história está bem viva na memória dos Ofayé.

Na época nós fugimos de Bodoquena para Brasilândia. Viemos direto para as fazendas. O Carlito3 arrumou... uma terra da Cisalpina... Primeiro conseguimos com essa fazenda... parece que era dois hectares para seis famílias nas barrancas do Rio Paraná. E lá nós ficamos quatro anos debaixo de lona e tomando aquela água suja, comendo aquela poeira aquele movimento de carro pra lá e pra cá porque era... entrada de ponto turístico, né? Depois conseguimos outra área grande... aí... onde começou essa luta, essa reivindicação [referindo-se à luta pela retomada de suas terras]. (ATAÍDE OFAYÉ, março 2004).

Mesmo com a luta dos Ofayé pela retomada de seu território, a falta de garantia de um lugar fixo para sobrevivência do grupo perdurou até 1997, quando foi adquirida uma nova

área, comprada pela Companhia Energética de São Paulo (CESP), a título de indenização das

3 Carlos Alberto dos Santos Dutra, na época missionário do CIMI. 24

terras tradicionais dos Ofayé, inundadas com a construção da Hidrelétrica de Porto Primavera, atualmente Hidrelétrica Engenheiro Sergio Motta (DUTRA, 1996; CARUSO et al., 2003).

Atualmente, os Ofayé vivem em uma área de 1.144 hectares, dividida em duas aldeias.

Só recentemente o grupo reocupou uma dessas áreas, também adquirida com os recursos da indenização pela CESP, e ainda aguardam na justiça a retomada de outra parte de seu território. Conseguiram também algumas benfeitorias, como a construção de 18 casas de alvenaria com água canalizada e energia elétrica. A aldeia mais antiga possui um poço artesiano que abastece a comunidade, uma escola, um galpão e um posto de saúde, todos em bom estado de conservação e funcionamento. Reconhecidos historicamente como um povo caçador e coletor, atualmente essas atividades acontecem timidamente entre os Ofayé. Eles preferem manter o equilíbrio ambiental em sua comunidade, completamente cercada de fazendas de gado bovino. A coleta de frutos silvestres é feita, sobretudo, pelas mulheres e crianças em época de safra. A pesca, atividade antes comum ao grupo, acontece só excepcionalmente quando algum fazendeiro vizinho permite que um ou outro Ofayé entre em suas terras. Índios ribeirinhos, eles foram colocados em uma área sem rio ou nascentes e uma terra pobre para atividade agrária. Por isso, a agricultura desenvolvida na aldeia é bastante incipiente. A maioria tem em redor de suas casas pequenas plantações de mandioca, abacaxi, limão, manga e laranja. Assim, a situação econômica deles é ainda precária. Eles dependem de cestas básicas e estão arrendando provisoriamente o pasto na aldeia retomada.

Esse panorama, entretanto, está sendo modificado paulatinamente. A ampliação das terras trouxe novo alento (e apoio) para os Ofayé. Estão sendo implantados diversos projetos de auto-sustento, como uma roça comunitária, a criação de gado, de abelha, de peixe e de frango, além da aquisição de maquinarias e equipamentos necessários ao desenvolvimento de tais projetos, alguns deles já com resultados favoráveis à comunidade, como plantio de 25

diversas culturas (feijão, milho, arroz) e a criação de peixes, a maior parte de tudo isso sendo produzida e distribuída coletivamente4.

Na aldeia, vivem 75 indivíduos, distribuídos em 23 famílias. Nos últimos tempos, mais

índios Kaiwá e Guarani5 estão se deslocando para a comunidade Ofayé. Quando iniciamos o trabalho de campo, em 2003, eram 61 pessoas distribuídas em 18 famílias. De lá para cá houve o nascimento de 03 crianças, 03 pessoas faleceram (02 idosos Ofayé e 01 jovem

Guarani-Kaiwá) e outras 12 pessoas vieram para a aldeia. Desse modo, convivem hoje em um mesmo ambiente 46 Ofayé, 11 Kaiwá, 13 Guarani e 5 não-índios. A presença desses indivíduos que não são Ofayé deve-se, principalmente, a casamentos interétnicos. Essa mistura resulta em uma miscelânea de línguas: Ofayé, Guarani-Nhandéva, Guarani- Kaiwá e a língua franca, o Português, ensinada na escola e falada por todos na comunidade.

2. O projeto

O nosso projeto de pesquisa foi tomando um formato, sem uma definição exata de qual povo iria fazer parte do estudo. Porém, alguns pré-requisitos já estavam bem delimitados para a pesquisa: seria a descrição de uma língua indígena brasileira com pouco ou nenhum estudo prévio, ameaçada de extinção e, preferencialmente, do Tronco Linguístico Macro-Jê. A decisão pela língua Ofayé aconteceu quando participamos de um encontro de técnicos da educação da FUNAI6, em Brasília, em 2001. Nesse evento, pudemos conhecer e conversar com pessoas que trabalham com povos indígenas do Brasil inteiro e, oportunamente, conhecemos os técnicos que trabalham com os Ofayé. Eles relataram a fragilidade do grupo e

4 A terra é propriedade coletiva, mas cada família pode ter acesso a um lote para seu usufruto particular. Mesmo nesses casos, pode ser observada a divisão social do trabalho. É comum a reunião de vários índios para as atividades agrícolas nas roças individuais, fazendo-se um revezamento dos trabalhos em cada roça ao tempo que permite o benefício e a colaboração mútua entre eles. 5 Referimo-nos aos Guarani-Nhandeva, que chamam a si mesmos de Guarani. 6 Fazemos parte do quadro de professores dessa instituição governamental. 26

chamaram a atenção para a necessidade de trabalhos de pesquisa com a língua. A partir daí, procuramos saber mais detalhes sobre o povo, localização, falantes, acesso e possibilidades de entendimento com os Ofayé a fim de apresentarmos uma proposta de pesquisa para a descrição da língua. Tivemos um primeiro contato com o cacique por telefone e combinamos uma visita à comunidade para apresentar nossa proposta de trabalho. Tivemos uma boa receptividade na comunidade e a partir dessa visita criamos laços e nos organizamos formalmente7 para a pesquisa de campo.

O projeto de pesquisa que vimos desenvolvendo consiste na descrição da língua Ofayé nos seus aspectos fonológicos e gramaticais. Inclui-se no projeto uma proposta de elaboração de um alfabeto e produção de materiais didáticos a serem utilizados na escola da comunidade, como desejam os Ofayé.

A língua Ofayé recentemente foi incluída no currículo escolar e está sendo ensinada às crianças da aldeia. Ao que parece, o entusiasmo e a receptividade para aprender a língua estão bastante evidentes, conforme nos informou Marilda de Souza, professora de Ofayé e nossa principal colaboradora no estudo da língua. O curso teve início em dezembro do ano passado e este ano será ministrado regularmente na escola, em um horário extra às outras atividades de sala de aula. Em parceria com a professora, em caráter experimental, estamos apresentando algumas propostas para a escrita da língua.

A vontade de manter a língua viva é forte entre os Ofayé. Não é raro ouvir os falantes conversarem entre si na língua indígena. Parte dos falantes só teve contato com o Português quando foi para a escola, passando, então, a conviver com as duas línguas. Há outros que se expressam quase que exclusivamente em Ofayé. Estes, principalmente, contribuem bastante para a manutenção da língua, uma vez que obrigam os demais falantes a se comunicarem com eles na língua materna. Tal situação pode ser observada principalmente em duas famílias.

7 Solicitamos autorização formal dos Ofayé e da FUNAI para entrada e permanência na aldeia. 27

A primeira família é formada por um casal de idosos8 que se mantêm fiel a sua língua indígena. Ou seja, eles pouco entendem e falam o Português e a chamam literalmente de língua de branco, ou como eles dizem em Ofayé: Ѐђje Ѐokojak. Mesmo em situações mais simples de conversação, é necessário um interprete para comunicarmo-nos com eles. Quando precisam deslocar-se à cidade, para ir ao médico, ou mesmo quando conversam com pessoas que não são de seu convívio, têm a companhia do neto, que faz as traduções.

A outra família que não sucumbiu às pressões impostas pelo Português na comunidade

é também composta por duas pessoas: mãe e filho. Embora falem e entendam o Português, a língua mais utilizada entre eles é a língua Ofayé. A mãe que, assim como o casal antes mencionado, também, já está na terceira idade, comunica-se com mais desenvoltura em sua língua indígena. Em ocasiões diversas de conversas com ela percebemos a sua resistência a falar Português. Ela fica o tempo todo alternando as duas línguas, quando não decide falar apenas Ofayé. Assim como os demais falantes de Ofayé, ela afirma ser a língua a maior marca de sua identidade indígena.

A língua é, inegavelmente, uma marca forte de etnicidade, mas vários sinais diacríticos são ainda bastante evidentes na sociedade Ofayé. A organização sócio-econômica apresenta uma característica singular do grupo. O trabalho é coletivo e geralmente os homens se reúnem para o serviço nas roças, limpeza do pátio central da aldeia e outras tarefas que lhes convêm dividir. As mulheres, embora participem das atividades da roça, junto a sua família

(marido e filhos), suas atividades principais são os serviços domésticos, a coleta de frutos silvestres, o cuidado com os filhos, que, por sinal, são tratados com carinho e paciência pelos pais. A terra é propriedade de todos, os bens são produzidos e divididos coletivamente, embora as pessoas possam ter ou receber algum bem particular. Quando se recebe algo para a

ϯ] minha avó ou, simplesmente, tia Francisquinha, como eraשRecentemente um dos cônjuges morreu, [a 8 carinhosamente chamada na comunidade. 28

comunidade, mesmo que em quantidade mínima, sempre é repartido entre as famílias que moram lá.

Não há um líder religioso e não presenciamos nenhum cântico ou ritual indígena.

Embora eles não participem sistematicamente de alguma igreja – alguns vão esporadicamente

– percebe-se a influência evangélica na comunidade. A maioria já foi evangélica de uma ou outra igreja (Assembléia de Deus e Deus é Amor, são as mais comuns entre eles) e de vez em quando vêm pastores à aldeia para fazer pregação e promover algumas comemorações, como dia das mães, dias das crianças, ou outras datas comemorativas do calendário nacional. A

FUNAI já tentou coibir essa prática, mas os Ofayé parecem bastante receptivos a esses encontros festivos.

O cacique é ainda bastante jovem. Ele foi eleito pela comunidade e sua liderança é fortalecida por sua representatividade política interna e externa ao grupo. Suas decisões são geralmente, acatadas, embora, algumas vezes, não se chegue a um consenso geral sobre as propostas discutidas em assembléias.

Atualmente, as próprias comunidades indígenas buscam revitalizar suas línguas como um dos meios de manutenção de identidade étnica. Também a política governamental, desde a

Constituição de 1988, vem adotando um discurso em que se contempla a diversidade cultural e linguística de cada povo. Dito de outro modo, pelo menos legalmente, uma nova mentalidade, por parte do governo, está sendo concebida para o tratamento das questões indígenas. Antes, o que se pretendia era a mera integração do índio à sociedade nacional, tendo como um dos mecanismos a educação institucionalizada. Hoje, reconhecidas as diferenças étnicas, tem-se buscado mantê-las.

Nessa perspectiva, a escola está também sendo rediscutida, no sentido de se reverter seu papel nas sociedades indígenas, de modo que ela possa servir aos interesses e anseios das comunidades, tornando-se, de fato, uma escola indígena autônoma e diferenciada. Nessa 29

discussão, o ensino de língua nas comunidades é tema indispensável. A preocupação, nesse sentido, é a sobrevivência das línguas indígenas existentes, o que não é diferente para a situação do povo Ofayé.

Somente agora, com a contratação de Xahtä (Marilda de Souza), a escola da aldeia começou a atender às expectativas da comunidade no tocante ao ensino da língua. São atendidos 09 alunos da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, em sistema multisseriado.

Embora o quantitativo de alunos matriculados na aldeia seja pequeno, a população na comunidade está crescendo. Atualmente, várias crianças estão na fase do pré-escolar e não são ainda atendidas na escola. Há alguns jovens que estudam na cidade e há aqueles que pararam de estudar por dificuldade de deslocamento ou conciliação de horários de trabalho na roça e o estudo, este último quase sempre fica prejudicado. Os Ofayé já solicitaram por diversas vezes o Ensino Fundamental -1ª e 2ª fase - na própria comunidade para que mais indígenas sejam contemplados com a educação escolar. Porém, a Prefeitura local, parece não ser sensível a esta reivindicação.

A proposta curricular aplicada na escola da aldeia segue os critérios estabelecidos pela

Secretaria de Educação do Município. Do mesmo modo que outros povos indígenas, os Ofayé anseiam por uma educação escolar que contemple não somente o conhecimento universal, inegavelmente importante para os povos indígenas de modo geral, e particularmente para os

Ofayé, mas também que sejam levadas em conta as suas especificidades, que se valorize seus saberes, sua história e sua língua. Nosso desejo, nesse sentido, é contribuir, de algum modo, com os estudos linguísticos voltados para a língua indígena desse povo, ajudando-os a refletir sobre a importância da língua, sua manutenção e valorização como uma das marcas de identidade étnica.

30

3 A língua

Conforme Ribeiro (1951, p. 107), as primeiras informações publicadas sobre o povo e a língua Ofayé foram apresentadas por Curt Nimuendaju, que visitou a aldeia em 1909 e

1913. A lista de palavras coletadas por ele o levou a classificar o grupo como de uma língua isolada com intrusões Jê. A lista também serviu de referência para que outros estudiosos estabelecessem a classificação linguística do Ofayé. Dos trabalhos linguísticos existentes9 sobre a língua Ofayé, o de maior referência é o artigo de Gudschinsky (1974), intitulado

“Fragmentos do Ofaié: a descrição de uma língua extinta” que trata de aspectos da estrutura da língua, basicamente, descrição fonológica dos segmentos e uma parte dedicada à morfologia do Ofayé. Nesse trabalho, resultado de um trabalho de campo realizado em 1968, a autora acredita estar trabalhando com o último falante da língua Ofayé, considerado-a praticamente como uma língua extinta e, consequentemente, fortalecendo a idéia de extinção do grupo, apresentada anteriormente por Darcy Ribeiro a partir de seu contato com um pequeno grupo de Ofayé, em fins de 1948. Esse mesmo núcleo familiar foi contatado por

Gudschinsky para análise do Ofayé.

Segundo classificação de Rodrigues (1986), a língua Ofayé é uma língua isolada que pertence ao tronco linguístico Macro-Jê. Porém, em uma publicação mais recente

(RODRIGUES, 2000), ele apresenta outra forma de classificação. Nela, a língua é inserida a uma família – a família Ofayé – que, de todo modo, tem apenas a língua Ofayé como sobrevivente. Atualmente essa língua é falada por 11 falantes, com idades que vão de 18 a 73 anos. Por ser um grupo bastante reduzido de falantes, a língua é considerada como fortemente

9 Existem listas de palavras publicadas por Hanke (1964); Iherig (1912), que tomou por base a lista coletada por Nimuendaju. Loukotka, também com base nos mesmos dados, procurou estabelecer a classificação linguística do Ofayé. Há ainda trabalhos de comparação entre o Ofayé e línguas do tronco Macro-Jê de Davis (1968) e Gudschinsky (1974). Trabalhos mais recentes sobre a língua são os de Guedes (1991 e 1997); uma cartilha publicada pela UNESP (1990-1991) e um artigo sobre o sistema vocálico da língua (SILVA, 2002). 31

ameaçada de extinção. Tal situação de ameaça é bastante lamentável, pois como bem diz

Rodrigues (1988, p. 106) “Cada língua é um instrumento fundamental da criação, da manifestação e da transmissão de uma cultura, isto é, do conhecimento que o povo elabora sobre o mundo que o cerca e sobre si mesmo”.

Mesmo assim, vemos que a língua, embora tenha perdido em parte a função social na comunidade, é ainda uma marca de identidade muito acentuada entre esses índios. Mesmo aqueles que apresentam certa resistência em usá-la no dia a dia, deram depoimentos que contradizem esse aparente descaso. Um exemplo típico é de uma falante, Joana Ofayé, que, ainda criança, foi levada para São Paulo por uma família não-índia que pretendia a qualquer custo que ela esquecesse suas origens. Mudaram o seu nome, encaracolaram os seus cabelos e proibiram-na de identificar-se como índia e de falar Ofayé. Por muito tempo, às escondidas, ela falava sozinha, recusando-se a perder a língua. Quando se sentiu fortemente ameaçada de esquecer as raízes, pediu para retornar para seu povo, desfazendo-se, assim, de sua identidade forçada de não-índia.

Para os Ofayé, falar a língua, levá-la para a escola e aprendê-la mais sistematicamente

é uma forma de fortalecê-la e fortalecer a própria identidade. Novamente nos reportamos à fala de Ataíde Ofayé para tornar mais evidente essa perspectiva:

Vamos pensar... será que convém elaborar uma escola bilíngue? Será que dará futuro? ... Se fosse eu pensaria assim: vai dar... nela [na escola] vou aprender a história do meu povo, nela vou aprender meu idioma... eu creio que se fosse eu pensaria desse jeito... porque não é um pensamento em vão. Porque todas as pessoas... seja branco seja preto seja índio, seja quem for tem sua história, seus valores... sua ideologia, sua crítica ... nós temos a nossa... vamos ser uma nação verdadeiramente indígena Ofayé...

A descrição da língua aqui iniciada pode ser considerada como um ponto de partida para a produção de um sistema simples de escrita e, consequentemente, a elaboração de materiais didáticos, como pretendemos. 32

4 As bases teórica e metodológica

Teórica e metodologicamente, o nosso trabalho estará fundamentado na literatura existente sobre pesquisa de campo linguístico e descrição e análise de línguas ágrafas. Para a coleta de dados, buscamos os subsídios fornecidos pela linguística de campo, com apoio em diversos autores e materiais existentes, como Payne (1997), Samarin (1967), Whaley (1997),

Museu Nacional (1965).

A nomenclatura utilizada na descrição fonética dos sons é a da Fonética de base articulatória. Para a descrição fonológica, principalmente no que diz respeito aos processos de realização de fonemas utilizamos os conceitos da fonologia gerativa, principalmente a partir de Kenstowicz (1994), mas utilizamos os sistemas de traços propostos por Chomsky e Halle

(1968), com algumas modificações propostas por Clements (1989).

Na descrição gramatical (morfologia e sintaxe) adotamos uma perspectiva tipológico- funcional: Dixon (1990 e 1999); Comrie (1976 e 1989); Shopen (1985)10; Givón (1984, 1990,

1995 e 1997]; Van Valin (2001); Spencer (1991); Rijkhoff (2003); Taylor (1999) e muitos outros trabalhos que estarão presentes no decorrer do trabalho e nas referências bibliográficas finais.

10 Shopen (1985) são três coletâneas de artigos de diversos autores sobre diferentes questões a respeito de descrição e análise de línguas. 33

5 A pesquisa de campo

Nosso trabalho na comunidade Ofayé deu-se em cinco viagens a aldeia. Na primeira vez, como já mencionado, fomos apresentar o projeto de pesquisa para a comunidade. Depois, ficamos indo à medida que precisamos coletar dados para a descrição da língua. Os períodos de permanência na comunidade são bastante diversificados. Em duas das viagens, ficamos uma semana, quando fomos conhecer o grupo e quando fomos participar de um evento promovido pela Secretaria de Educação do Mato-Grosso do Sul para conversar sobre a revitalização e ensino da língua. Em outras viagens, passamos períodos maiores. A fase mais longa entre os Ofayé durou dois meses e meio. A proposta era conhecer e compartilhar de sua realidade. Essa convivência foi salutar para entendermos um pouco sobre o povo e suas características sócio-culturais.

O nosso trabalho de coleta de dados deu-se através de gravação de listas de palavras, baseadas no questionário do SIL-Museu Nacional, do Museu do Pará Emilio Goeldi, das listas de Swadesh e de outras questões de livre escolha, relevantes para resolver as questões que iam surgindo à medida que a análise avançava. Gravamos ainda pequenos textos relacionados ao cotidiano da comunidade e à história do grupo. Tivemos três colaboradores mais diretos, mas sempre recorríamos a outros falantes para testarmos nossos conhecimentos acerca da língua.

As gravações foram feitas em MD (Mini Disc) com transcrição simultânea dos dados.

6 A organização do trabalho

O trabalho está dividido em 7 capítulos. No Capítulo 1, descrevemos o sistema de sons da língua. Nele, levantamos os sons da fala Ofayé, definimos o inventário de fonemas, 34

descrevemos o padrão silábico, os processos mais importantes de realização de fonemas e o padrão acentual. No Capítulo 2, dedicamo-nos à descrição do Nome e do Sintagma Nominal, observando as classes de nomes, o sistema de marcação de posse, a morfologia nominal e os processos de formação de palavras. O Capítulo 3 é a descrição do Verbo e do Sintagma

Verbal. Neste Capítulo, fazemos uma classificação semântica dos verbos e descrevemos as categorias verbais, que, em Ofayé, não são, na maioria, constituídas propriamente de morfologia presa. Daí a necessidade de tratarmos do verbo e do sintagma verbal ao invés de falarmos apenas de morfologia verbal. Porque as relações gramaticais estão intrinsecamente ligadas ao funcionamento do verbo na cláusula, já neste capítulo começamos a delinear a estrutura sintática da língua, que só será descrita mais detalhadamente no Capítulo 7, sobre sintaxe. Nos capítulos 4, 5 e 6, nessa ordem, descrevemos os adjetivos, os advérbios e outras classes menores de palavras.

Na numeração dos exemplos, consideramos o trabalho em sua totalidade. Assim, a numeração de um capítulo segue da numeração do capítulo precedente. Em todos os exemplos, damos primeiro a forma fonética e colocamos essa forma entre colchetes. Quando temos que apresentar a glosa dos exemplos, damos a forma fonológica ou o que presumimos ser a forma fonológica, dado que essa forma é o resultado de hipóteses que não são, por princípio, definitivas. Optamos por não apresentar a forma fonológica proposta entre barras inclinadas. Para isso, tivemos dois motivos. Primeiro, deixar as transcrições mais limpas; segundo, facilitar a leitura das glosas. Uma consequência desses fatos é que nos capítulos subsequentes à Fonologia, nem sempre as formas fonológicas que poderiam ser preditas a partir das regras sugeridas vão aparecer.

De modo geral, quando fazemos citação no texto de formas em Ofayé, optamos por colocá-las entre colchetes, sem fazer com isso qualquer referência à distinção forma 35

fonológica/forma fonética. Os significados dessas formas, nesses locais, são apresentados em seguida, em itálico.

Como já dissemos, o enfoque que damos à língua é essencialmente descritivo. A nossa maior preocupação ao tentarmos descrever a língua Ofayé, embora seja este um trabalho acadêmico – e por isso, principalmente na Fonologia, há algumas tentativas de formalização –

é a de fazer um trabalho que possa também ser lido pelos índios Ofayé, que esperam ansiosamente que “o livro da Maria saia logo”. 36

CAPÍTULO 1: FONOLOGIA

1.1 Introdução

Neste capítulo, descrevemos o sistema fonológico da língua. Primeiro, secção 1.2, apresentamos as cartas dos sons encontrados na fala Ofayé. Em seguida, secção 1.3, esboçamos os inventários de fonemas, consoantes e vogais. Esses inventários, em um primeiro momento, podem apresentar problemas que só serão resolvidos quando tratarmos dos processos de realização de fonemas. Na secção 1.4, trataremos da estrutura silábica, do ponto de vista fonético, seguido da descrição fonológica da sílaba e da definição do padrão silábico. Na secção 1.5, descrevemos os principais processos de realização de fonemas. Neste ponto, não fazemos distinção entre casos de alternação que podem ser apenas fonéticos e processos fonológicos propriamente ditos. A intenção é, principalmente, descrever os fatos observados, tornando-os disponíveis para posteriores investigações e interpretações mais profundas ou mais abstratas. Na secção 1.6, apresentamos as alternações de certos morfemas e, finalmente, na secção 1.7, fazemos uma descrição preliminar do acento no nível da palavra.

1.2 Cartas fonéticas

1.2.1 Segmentos consonantais

Na fala Ofayé, encontramos um conjunto de segmentos consonantais conforme apresentado no Quadro 1, abaixo. A ocorrência desses segmentos é ilustrada em seguida com exemplos de itens lexicais da língua.

37

Labiais Láb.dentais Alveolares Palatais Dorsais Glotais Oclusivas t d k ց Б

Ocl. labializadas kܦ ցܦ

Ocl. pós-nasalizadas tn kn ցn

ْ Nasais n

Fricativas f Ѐ h

Fric. labializadas fܦ hܦ

Africadas tЀ dЋ

ש Tepe

Semiconsoantes w j

Quadro 1: Carta de segmentos consonantais

towe] urubu 2. [konidiْϯ] cobrinha] .1

3. [fokoe] tamanduá 4. [wϯցete] teiú (do pintado)

5. [ЀoБe] casa 6. [jekܦe] panela

7. [oitn] rato 8. [aЀikn] corda

e] darܦaЀiցnْϯ] cordinhas 10. [anoց] .9

haցani] veado 12. [Ѐoցiْϯ] redes] .11

o] cachoeiraשi] seriema 14. [Ѐoשfa] .13

oktae] morcegoܦa] queixada 16. [hשiܦf] .15

17. [hetЀo] coração 18. [kodЋϯ] capins

ϯ] noiteשa] folha 20. [wϯשja] .19

21. [jϯta] tucano

38

1.2.2 Segmentos vocálicos

Os sons vocálicos encontrados na fala Ofayé foram os seguintes:

Anteriores Centrais Posteriores Orais Nasais Orais Nasais Orais Nasais bre lon bre lon bre lon bre lon bre lon bre lon Altas i i⍧ i u

Médias e e⍧ e ђ ђ⍧ o o⍧ o o⍧

Baixas ϯ ϯ⍧ a a⍧ a

Quadro 2: Carta de segmentos vocálicos

Esses sons são ilustrados pelas seguintes palavras Ofayé:

i⍧] galinhaשi] seriema 23. [kשfa] .22

24. [ita] formiga 25. [Ѐehђ] quati

aj] macacoשђhtee] mulher 27. [kreց] .26

28. [kђtϯ] pedra 29. [hђ⍧] árvore

o] capim 31. [hao] hojeשko] .30

e] noite 33. [aցatϯ⍧] cabeçaשwϯ] .32

34. [kato] papagaio 35. [tika] bicho, coisa

a] folhona 37. [atahu] ele é grandeשja⍧] .36

38. [to⍧tn] urubuzinho 39. [ano⍧ցܦe] sentar, ficar

39

1.3 Inventários de fonemas

1.3.1 Fonemas consonantais

Os seguintes contrastes encontrados demonstram contrastes que permitiram identificar os fonemas consonantais, apresentados em seguida, no Quadro 3.

/t d k kܦ ց Б/

o] capimשo] flecha 41. [koשto] .40

akaj] pele clara 43. [aցaniْe] ser mau] .42

44. [kokok] gavião 45. [БoБok] pomba

e] panela 47. [konidiْϯ] cobrinhaܦjek] .46

48. [ЀoБe] casa 49. [Ѐowe] fumaça

/n/

e] almoçarܦoցשe] sentar [Ѐeܦanoց] .50

/f Ѐ h tЀ dЋ/

51. [fokoe] tamanduá 52. [Ѐokojak] língua

53. [hoj] lagoa 54. [foj] jatobá

55. [haЀie] milho 56. [hetЀo] coração

[hϯdЋaցe] costurar

/ש/

a] folha 58. [jϯta] tucanoשja] .57

/w j/

59. [how] rã 60. [hoj] lagoa

61. [wahakata] papa ovo 62. [jђkђhђ] arco 40

Desse modo, os segmentos consonantais que foram considerados fonemas estão apresentados no Quadro 3, abaixo. Na definição desses segmentos em termos de traços distintivos, utilizamos traços propostos por Chomsky e Halle (1968) e traços propostos por

Clements (1989).

Labiais Coronais Dorsais Glotais -continuante t d k ց Б

-continuante, +labz kܦ

+nasal n

+continuante f Ѐ h

+distensão retardada tЀ dЋ

ש cont, +líquida+

+aproximante w j

Quadro 3: Fonemas consonantais

No nosso quadro de fonemas consonantais, embora não tenhamos contrastes entre [t] e

[d], consideramos que esses dois sons são fonemas na língua. Uma neutralização do traço

[±voz] em fronteira de palavra transforma todo /d/ nessa posição em [t]. Além disso, em meio

/e, antes de /Ѐ/, como [tЀ]. Outro alofone de /d [ש] de palavra, entre vogais, /d/ realiza-se como

é [n], que ocorre no ambiente entre duas vogais nasais, das quais a da direita é apagada. Esse processo está descrito com detalhes na secção sobre processos morfofonológicos. O único vestígio superficial de /d/ é o que aparece no morfema de diminutivo /-di/ quando esse sufixo ocorre antes de um outro sufixo. Ao tratarmos dos processos fonológicos, na secção 1.5, subsecção 1.5.1, forneceremos argumentos para sustentar essa tese. 41

Embora na secção sobre processos fonológicos levantemos e discutamos a hipótese de

não é um fonema, mas a representação de superfície de um /d/ subjacente, vamos [ש] que considerá-lo como tal para efeitos de elaboração da nossa proposta de alfabeto para Ofayé. O seu status de fonema é atribuído, portanto, considerando-se um nível de representação menos abstrato do que o que será apresentado na secção sobre processos fonológicos. Além disso, o

mesmo neste nível de representação que não é a estrutura ,[ש] status de fonema atribuído a profunda propriamente dita, parece ser necessário para podermos postular uma sílaba do tipo

.conforme veremos na secção 1.4, sobre estrutura da sílaba ,/ש/ CCVC, cujo C2 é

A africada [tЀ] tambem será aqui tratada como um fonema. Essa decisão foi tomada devido ao fato de que, apesar de sua distribuição ser restrita, pois só ocorre em meio de palavra, no que parece ser fronteira de morfema, na maior parte das suas ocorrências, a estrutura interna da palavra não pode mais ser recuperada. Pela mesma razão, consideramos também [dЋ] um segmento lexical, ainda que sua frequência não explicada fonologicamente seja muito mais baixa do que a de [tЀ].

Em todos esses casos, os falantes não parecem mais reconhecer uma representação subjacente diferente para esses segmentos, o que causa um problema para a nossa proposta de alfabeto.

1.3.2 Fonemas vocálicos

Os fonemas vocálicos em Ofayé são os apresentados a seguir, acompanhados de itens lexicais que mostram a sua não-previsibilidade.

42

/i i/

i cervo 64. kri papagaioשk .63

/e ϯ e ђ/

65. aցate ovo 66. aցatϯ branco

67. hetЀo coração 68. hђϯ terra

/a a/

69. ka Suf. de Caso Instr. 70. ka Suf. de Dir. Obj.

/o o/

o capimשo preto 72. koשako .71

Definimos, então, como fonemas vocálicos, os seguintes segmentos.

-posterior +posterior -arr +arr -nasal +nasal -nasal +nasal -nasal +nasal +alto, -baixo i i

-alto, -baixo e e ђ o o

-alto, +baixo ϯ a a

Quadro 4: Inventário de fonemas vocálicos

Não consideramos fonemas as vogais longas, embora este não seja um problema fácil de ser solucionado. Entretanto, preferimos não tratar as vogais longas como fonemas por razões que podem ser encontradas com mais detalhes quando tratarmos dos processos de realização de vogais, secção 5.2.1, conforme já dissemos na introdução deste Capítulo. 43

1.4 A estrutura da sílaba

Nesta secção, descrevemos a estrutura da sílaba, observada primeiro foneticamente e, em seguida, do ponto de vista fonológico. Veremos que, embora foneticamente os tipos de sílaba e, mais especificamente, as classes de sons possíveis em diferentes posições da estrutura silábica, sobretudo os constituintes onset e coda, sejam bastante diversificados, fonologicamente essa diversidade pode ser explicada em razão dos vários processos que se realizam nesses contextos.

1.4.1 A sílaba fonética

Os seguintes tipos de sílabas fonéticas foram encontrados:

73. V [e.wϯkn] 1POS

74. CV [to.we] urubu

75. VC [ok.tЀi] onça

i] galinhaשCCV [a.ց .76

77. CVC [tej] carrapato

78. CCVC [a.ցrϯj] olho

11 79. CCVV [a.tђϯ] pena

Apenas os seguintes sons foram encontrados em posição de onset silábico inicial.

80. [t] [towe] urubu

e] aranhaשk] [kate] .81

11 As duas vogais na mesma sílaba realizam-se ora como ditongo, ora como alongamento da vogal precedente, principalmente se as duas vogais são idênticas. 44

82. [Б] [БoБok] pomba

83. [f] [foj] lagoa

o] cachoeiraשЀ] [Ѐo] .84

85. [h] [haϯ] coelho

86. [hܦ] [hܦak] mel

87. [fܦ] [fܦiϯ] água

88. [n] [naka] o quê

89. [w] [wahakata] cobra papa-ovo

a] folhaשj] [ja] .90

Não ocorrem em posição de onset, em início de palavra, de modo geral, os demais segmentos mostrados na carta fonética apresentada no início deste Capítulo:

.[ש tn kn ցn ْ tЀ dЋ ܦց ܦd ց k]

Em sílaba do tipo C1C2VC, a posição C1 deve ser ocupada por uma das não-contínuas

.[ש] dorsais [k ց] e a posição C2 por

o] nambuשk] [שk] .91

ϯ.ցe] derramarשa.ko.k] [שk] .92

ah.tђ] griloשwo.ց] [שց] .93

(e] obrigado (cumprimentoש.aܦe.fשhe.ց] [שց] .94

As vogais que ocorrem em início de palavra são [a e ђ i o ϯ]. Das nasais, ocorrem

[a e i o]. A vogal posterior alta arredondada nasal [u] ocorre apenas em final de palavra, em um único morfema, em variação livre.

95. [a] [a.ցa] nosso 45

96. [a] [a.fܦϯ] seu braço

97. [ђ] [ђ.Ѐow] homem

i] narizשe] [e.Ѐeց] .98

99. [e] [e.wϯk]

ϯ] bocaש.ϯ] [ϯ] .100

101. [i] [i.tahna] eles são grandes

102. [i] [i.ta] formiga

103. [o] [o.i] cotia

104. [o] [o.tђ] 3SUJ

Na posição de coda silábica, podem ocorrer:

105. [tn] [ko.nitn] cobrinha

106. [k] [hetђk] vento

ikn] estreitoשkn] [a] .107

o] revólverשց] [katϯցto] .108

ցn] [aЀiցnْϯ] cordinhas] .109

110. [h] [ђhto] boi

111. [n] [howan] rãzinha 12 ϯ] patoשϯܦfשaܦf] [ש] .112

113. [w] [aЀow] vermelho

114. [j] [foj] lagoa

115. [ϯ] [a.tђϯ] pena

.em coda silábica fonética [ש] Este é, na verdade, o único exemplo em todo o corpus, em que ocorre o tepe 12 46

Resumindo, damos no diagrama a seguir a representação da sílaba fonética e os sons que podem preencher as diferentes posições.

σ

O R

Núcleo Coda

(C2) V C (C1)

αV]13 [t tn] [ש] ܦց ܦt d k k]

f fܦ hܦ vܦ k kn ց ցn

[j w V14 ש Ѐ h tЀ dЋ n

[ w j ש n Diagrama 1: Sílaba fonética

1.4.2 A sílaba fonológica

Fonologicamente, o padrão silábico da língua é CCVC. Algumas sílabas CCVC e algumas sílabas CCVC15 são criadas por uma série de processos que serão melhor descritos na secção sobre processos de realização de fonemas. Aqui, eles são apenas apresentados brevemente.

1. todas as oclusivas em coda silábica são o resultado de apagamento de vogal:

13 [α] ! representa o conjunto de vogais em Ofayé. 14 V está para qualquer vogal. (Ver secção 1.5.1.11). 15 Em alguns casos, existe realmente uma sílaba fonológica C1C2V, na qual a posição C1 é preenchida por uma

.[ש] oclusiva velar [k, ց] e a posição C2 por um tepe 47

116. /oi-di/ → [oitn] rato

o] revólverשo/ → [katϯցtoשցatϯցe-to/ .117

a-Ѐiցe-jϯ/ → [aЀiցnْϯ] suas cordinhas/ .118

119. /a-Ѐiցe/ → [aЀikn] sua corda

é, também, o [ש] em alguns casos, sílaba formada por obstruinte não contínua mais .2

.heterossilábico [ש] resultado de um processo que apaga vogal antes de

i] galinha deleשi/ → [aցשa-ga/ .120

e] AUX.FUTשe/ → [a ցשa ցa/ .121

3. a sílaba formada por vogal mais fricativa glotal é o resultado de uma regra de inserção de [h] depois de vogal e antes de [t] ou [n].

122. /ђЀowa-ta/ → [ђЀowhta] homem grande homem-AUM

123. /fitani/ → [fitahni] colher

4. a coda silábica formada por nasal coronal é o resultado de uma série de processos, conforme se pode ver na secção sobre processos de realização das consoantes (1.5.1). No exemplo (124), abaixo, a comparação entre as formas diminutivo singular e diminutivo plural mostra que o [n] em coda na primeira forma é resultado de um processo que nasaliza /d/ entre duas vogais nasais, quando a da direita é elidida em final de palavra. Esse processo estará descrito com maiores detalhes na secção 1.5.1.5. 48

SG PL DIM.SG. DIM.PL AUM.SG AUM.PL 124. mamão ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ

5. há, contudo, casos de travamento silábico por nasal coronal, como exemplificado em [kinhi] faca. Esse [n] em coda silábica realiza-se, às vezes, como um segmento vocálico, conforme tentaremos demonstrar mais adiante, secção 1.5.1.11.

6. algumas sílabas formadas por vogal mais aproximante parecem obedecer ao mesmo princípio de elisão de vogal ou de sílaba no final da palavra, como mostra a análise dos paradigmas apresentados em (125) e em (126).

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL ђЀow ђЀowْϯ ђЀowan ђЀowanْϯ ђЀowhta ђЀowhnajϯ homem .125

126. foj fojϯ fojn fܦodijϯ fܦojta fܦotajϯ lago

Entretanto, há sílabas formadas por vogal mais aproximante que não podem ser explicadas por elisão de vogal, desde que não encontramos evidências nesse sentido. Por isso, vamos considerar que a língua tem sequências que são ditongos. Nos Quadros 5 e 6, a seguir, listamos os ditongos encontrados na língua.

49

DITONGOS CRESCENTES ORAIS NASAIS wi wiheketa estrela wi wi passado (Adv)

we towe urubu we awetЀahu pesado

i mêsשwϯ tawϯ mato, cerrado wa hawaЀi

ije garça brancaשwa wahakata papa-ovo je hoku

a coruja ja hejaw nãoשwo wohђ

a línguaשji aցa jiwϯ nós temos medo jo jo

- - - i traíraשje jeց

jϯ jϯta tucano - - -

ja jakܦet rolinha - - -

jђ jђkђhђ arco - - -

jѐ ijѐte último - - -

jo joko sal - - -

Quadro 5: Ditongos crescentes

DITONGOS DECRESCENTES ORAIS NASAIS a sujoשa tatu peba aw akawשaw kanaw

o cabelo pretoשow how rã aj aj ko

- - - ej gatoשej tikak

aj ahaj amarelo - - -

oj foj lagoa - - -

Quadro 6: Ditongos decrescentes

50

Dadas essas observações, podemos concluir que:

1) a sílaba fonológica em Ofayé é CCVC;

2) [n] em coda, como ocorre em [ewϯցen] ararinha é fonético. Trata-se de /d/ que se nasaliza nessa posição. Há, porém, uma coda silábica /n/, que consideramos fonológica, embora sua definição não seja ainda muito precisa;

3) embora consideremos que [tЀ] e [dЋ] são sequências de consoantes /t/ mais /Ѐ/ e

/d/ mais /j/, respectivamente, do ponto de vista fonético elas se realizam como as africadas surda e sonora correspondentes e, por isso, não podemos dizer que há uma sílaba C1C2VC, com /t/ ou /d/ na posição C1 e /Ѐ/ ou /Ћ/ na posição C2;

4) as aproximantes formam com vogais sílabas do tipo CV, em que C é, na verdade, uma aproximante; sequências VC, com C sendo aproximante, devem ter a mesma interpretação;

No diagrama em árvore, a seguir, damos a representação da sílaba fonológica em

Ofayé.

σ

O R

Núcleo Coda

(C1) (C2) V C

/ αV / / w j n / / ש / t d k ց Б /

f Ѐ h tЀ dЋ

n w j / Diagrama 2: Sílaba fonológica 51

1.5 Processos de realização de fonemas

Nesta secção, procuramos descrever as alternâncias de sons verificadas na língua.

Alguns processos são fonológicos, no sentido em que o termo vem sendo usado na literatura, enquanto outros podem ser casos de implementação fonética, mas não estaremos nesse ponto da questão preocupados em estabelecer essa distinção. Todas as alternâncias observadas serão, por isso, descritas. Algumas alternações de morfemas que não podemos, ainda, justificar fonologicamente serão também aqui apresentadas sem, contudo, nos propormos a dar sobre os fatos observados uma explicação mais detalhada.

1.5.1 Processos de realização de consoantes

1.5.1.1 Labialização

As consoantes labializadas em Ofayé são predizíveis por regras e, portanto, não são fonemas na língua. Há apenas uma exceção, a consoante oclusiva velar labializada /kܦ/.

A realização velar labializada [ցܦ] é criada por uma regra que faz referência à morfologia, ou seja, é uma regra lexical: o sufixo /-ցe/, verbalizador, realiza-se como [-ցܦe] quando anexado a uma raiz verbal cujo segmento final tenha o traço [+arredondado].

Os exemplos de (127) a (131) apresentam ambientes propícios para aplicação da regra.

De (132) a (134), os ambientes são desfavoráveis.

e] vomitarܦajoցe/ → [aْoց/ .127

128. /anawցe/ → [anoցܦe] dar 52

129. /anoroցe/ → [ano⍧ցܦe] morar

130. /ahoցe/ → [ahoցܦe] soprar

e] almoçarܦoցשoցe/ → [ЀeשЀe/ .131

132. /henihaցe/ → [henihaցe] abrir

133. /hedЋaցe/ → [hedЋaցe] costurar

134. /naЀetϯցe/ → [naЀetϯցe] pensar

Outros segmentos labializados encontrados na língua são [kܦ fܦ hܦ]. Esses casos são ilustrados pelos exemplos (135) a (139), a seguir.

135. [jekܦe] panela

a] sapoשϯܦf] .136

137. [wehifܦaЀo] tartaruga d’água

138. [hafܦahta] ele está vivo

139. [afܦohiցe] coçar

Para os segmentos [fܦ] e [hܦ], propomos uma alternação puramente fonética, desde que essa variação é livre, alternando entre a realização simples e a realização labializada, como mostram os exemplos de (140) a (144), abaixo. Tanto [fܦ] quanto [hܦ] podem ser variantes livres de /f/. Há uma realização [hܦ], entretanto, que é variante livre de /h/. O arredondamento da consoante labial pode ser atribuído a uma assimilação do traço labial da consoante precedente, ao passo que o arredondamento da consoante glotal deve ser atribuído ao mesmo traço da vogal seguinte, desde que os únicos exemplos encontrados de arredondamento de /h/ ocorrem antes de /o/. Assim, [fܦ] e [hܦ] labializados, como dissemos 53

antes, podem ser alofones de /f/. O segmento [h], que é fonema na língua, como mostram os contrastes, pode também ser uma variante livre de /f/.

140. /foj/ [hoj] [fܦoj] [hܦoj] lago

141. /fokoj/ [hokoj] [fܦokoj] [hܦokoj] tamanduá

142. /fiЀa/ - [fܦiЀa] [hܦiЀa] piolho

143. /afohiցe/ [afohiցe] [afܦohiցe] [ahܦohiցe] coçar

144. /hoj/ [hoj] - [hܦoj] jatobá (esp. de árvore)

Desse modo, de (140) a (143), apresentamos exemplos de labialização de /f/ desde que, pelo menos, três realizações podem ser encontradas. Em (144), apresentamos um exemplo para o qual propomos a forma subjacente /h/, dado que nunca ocorre, com esse item lexical, a alternação [f] $ [h].

Temos, porém, o caso que não conseguimos explicar de [kܦ]. Para esse caso, desde que não há explicação fonética e/ou fonológica e desde que não aparece nenhum caso de variação livre, poderíamos dizer que se trata de um fonema na língua. Deve ter havido um processo de fonologização. Admitindo que ela tenha sido, em algum momento, o resultado de um processo fonológico, no atual estágio da língua pode ser considerado fonema, desde que sua predizibilidade não é mais possível e não encontramos casos de variação livre, como os listados acima, como temos dito.

Assim, no quadro de fonemas da língua, devemos incluir a velar labializada. É certo que essa decisão cria uma assimetria, dado que a contraparte sonora desse segmento, [ցܦ] é, claramente, criada por um processo de assimilação de arredondamento da vogal precedente, como demonstra a descrição desse processo, na secção correspondente. Entretanto, 54

assimetrias desse tipo são tipologicamente atestadas e, como de modo geral essas assimetrias são o resultado da evolução, isso serve para sustentar nossa hipótese de que esses segmentos são fonologizados a partir de um ambiente antigo que se perdeu. Se, porém, de um lado, serve para atestar e, de outro para negar, o seu status de fonema, no momento sincrônico devemos tratá-lo como tal.

1.5.1.2 Dessonorização de oclusivas

Como vimos na secção 1.3.1, sobre fonemas consonantais, /k/ e /ց/ são fonemas, o que foi demonstrado pelas oposições encontradas entre esses segmentos em posição medial na palavra.

Em início e final de palavra, há uma neutralização dos valores do traço [voz]. Os exemplos de (145) a (152) mostram a previsibilidade de [k] nesses ambientes. O fonema aqui

é /ց/, que se torna surdo em inicio e em final de palavra.

145. [kinhi] faca

146. [aցinhi] minha faca

147. [ewϯkn] arara

148. [ewϯցen] ararinha

i] sua galinhaשaց] .149

i⍧] galinhaשk] .150

151. [katϯk] arma (genérico)

(o] arma (como revólverשkatϯցto] .152

55

Um argumento em favor da hipótese que postula oclusivas velares surdas e sonoras para a língua como sendo representações subjacentes é o fato de se poder encontrar os dois fonemas nos mesmos ambientes, sem a possibilidade de (i) tornar sonoro o segmento surdo; ou (ii) tornar surdo o segmento sonoro. Sempre que foram apresentadas aos falantes as palavras com contrapartes dos sons já encontrados, surdos ou sonoros, nenhum teve dúvida ao afirmar que a outra palavra não existia. Nunca disseram, como eles sempre o fazem quando se tem um caso de variação livre: “é a mesma coisa”. Há mesmo oposição em pares mínimos e em pares análogos, como mostram os exemplos de (153) a (157).

iْϯ] cotovelosשafoց] .153

iْϯ] pássarosשfok] .154

155. [akaj] pele clara

aցaniْe] mau, ruim, bravo] .156

157. [aցije] marido dela

A ocorrência de [k] e [ց] entre vogais, como mostrado de (153) a (157), indica que esses sons podem ser fonemas distintos, desde que não são previsíveis em meio de palavra.

Observe-se que os dois sons ocorrem no mesmo ambiente. Note-se, também, que não é o ambiente entre vogais que permite a realização de [ց]. Os exemplos de (158) a (159), a seguir, mostram [ց] entre uma vogal e uma consoante. No exemplo (159), temos, mesmo, uma consoante surda no ambiente seguinte.

ϯj olho deleשaց .158

o revólverשkatϯցtѐ .159

Dessas observações, tiramos as seguintes conclusões: 56

1) tanto /k/ quanto /ց/ são fonemas na língua;

2) /k/ se realiza como /k/ em todos os ambientes;

3) /ց/ desvozeia em início e em final de palavra, criando uma neutralização do traço

[±voz] em favor de [-voz], nesses ambientes.

Isso quer dizer que a língua tem /k/ e /ց/ subjacentes. Os dois segmentos realizam-se iguais a suas representações lexicais em meio de palavra. A neutralização dos valores do traço

[voz] em início e em final de palavra ensurdece /ց/, que se realiza como [k] ou como um outro dos seus alofones, dependendo da aplicação de outras regras.

O processo se aplica da mesma forma para as oclusivas coronais /t/ e /d/. O comportamento de /d/ em meio de palavra, entre vogais, é, contudo, distinto, conforme veremos na secção 1.5.1.3.

Paradigmas com raízes nominais, apresentadas de (160) a (164), acrescidas de morfemas de grau e número, mostram a oclusiva sonora /d/, que se realiza como [tn] e como

[n] em final de palavra.

SG PL DIM. SG. DIM. PL AUM. SG. AUM. PL

ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧hta ђЀa⍧htajϯ mamão .160 ajϯ folhaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .161 otajϯ lagoܦojta fܦodiْϯ fܦojn fܦojϯ fܦfoj f .162 hђ⍧ hђ⍧ْϯ hђan hђ⍧diْϯ hђ⍧hta hђ⍧htajϯ árvore .163 koni konijϯ konitn konidiْϯ konita konitajϯ cobra .164

Mais um argumento em favor de duas consoantes oclusivas em cada um dos pontos de articulação, coronal e dorsal, especificamente, é que, enquanto a consoante inicial do sufixo 57

de diminutivo /-di/ torna-se [tn] em final de palavra, mantendo-se sonora em posição medial, a consoante inicial do sufixo de aumentativo /-ta/ não se modifica. Assim, podemos postular que o sufixo de diminutivo está listado no léxico da língua como /-di/ e o sufixo de aumentativo como /-ta/. O traço [voz] é, portanto, contrastivo em meio de palavra, sendo esse contraste neutralizado em fronteira de palavra em favor de [-voz]. Desse modo, tanto surdas quanto sonoras, em posição de coda silábica, em meio de palavra, mantêm-se inalteradas, ou seja, uma oclusiva surda em coda medial realiza-se como surda, e uma sonora como sonora, conforme podemos ver nos exemplos de (165) a (169), a seguir.

165. [katϯk] arma

o] revólverשkatϯցto] .166

n 167. [ewϯk ] arara

168. [ewϯցen] ararinha

ewϯցnْϯ] araras] .169

Em (165), a consoante final é [k], ao passo que em (166) ela é [ց], embora o morfema seja o mesmo, o item lexical [kateցe] arma. Em (165), a elisão da vogal deixa a consoante velar em posição final de palavra e ela se realiza como [k], conforme previsto pela neutralização dos valores do traço voz em fronteira de palavra. Em (166), temos uma fronteira

o] revólver, cuja estrutura interna pode serשde morfemas, na formação da palavra [katϯցto

o] arma+redondo. Nesse caso, a oclusiva velar realiza-seשanalisada como [katϯցe+to vozeada, demonstrando que ela é subjacentemente /ց/.

Uma questão que se apresenta neste ponto é a de observar-se que, enquanto a distribuição e frequência de /k/ e /ց/ são bastante amplas, tanto distribuição quanto frequência 58

de /t/ e /d/ é mais restrita e assimétrica, ocorrendo mais /t/ do que /d/. & Uma primeira explicação para essa assimetria é que /d/ subjacente é neutralizado em favor de /t/ em início e final de palavra, conforme descrevemos. Além disso, /d/ subjacente entre vogais realiza-se

.Traremos desse fato a seguir .[ש] como

[tЀ] $ [dЋ] $ [ש] $ [Alternância [t] $ [d 1.5.1.3

Há na língua duas sequências de sons que se realizam como africadas. São elas [tЀ] e

[dЋ].

Duas hipóteses são aqui levantadas para explicar essas realizações.

1. A primeira hipótese considera que as sequências como africadas são o resultado de processos lineares simples.

2. A segunda hipótese levanta uma questão com relação aos sons [t] e [d] e suas

no sistema [ש] no sistema Ofayé. Quer dizer, questiona o status de [ש] interrelações com o som fonológico da língua, ao mesmo tempo em que também questiona a existência de africadas subjacentes17.

16 Na verdade, [d] aparece apenas no morfema de diminutivo, quando este vem seguido de outro sufixo, ficando, portanto, em meio de palavra, e na sequência como africada [dЋ], onde podemos dizer que o /d/ subjacente se mantém enquanto o /j/ seguinte muda de [+aproximante] para [+consonantal]. 17 Um processo diferente, que envolve uma terminação vocálica, como a que ocorre em [fܦie] água e [hђϯ] terra, também parece se aplicar para criar uma africada surda subjacente. Como se trata de um outro tipo de fenômeno, trataremos os dois casos separadamente. 59

Hipótese 1: Em um grande número de casos em que parece haver consoantes africadas

[tЀ] e [dЋ], podemos dizer que o que ocorre, subjacentemente, é uma sequência de sons

[t] mais [Ѐ] ou [d] mais [j]. Um processo posterior transforma [j] em [Ћ].

.a] folhaשObserve-se o paradigma seguinte, formado a partir da base nominal [ja

SG. PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL CPT18 SECO aשa Ѐaשajϯ jatЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧t ja⍧diϯ ja⍧שja .170

Para a criação da sequência [dЋ], que aparece na forma Plural, duas regras se aplicam,

em [d] e, em seguida, /j/ em [Ћ]. Como mostra a /ש/ ,ordenadamente, que mudam, primeiro forma folha seca, quando comparada à forma seco, no exemplo acima, a sequência [tЀ] é

./antes da palatal surda /Ѐ /ש/ formada por uma regra que deriva [t] de

,o/ capimשOutro paradigma que mostra esse processo é formado a partir da palavra /ko por exemplo.

171. [kodЋϯ]

o-jϯשko capim-PL capins

172. [kotЀa]

o-Ѐaשko capim-semente arroz (Lit.: semente de capim)

18 Folha seca 60

Estas não seriam regras lexicais, pois se aplicam em outros ambientes que não estão exclusivamente em fronteira com morfema de plural. Nos exemplos a seguir, temos o processo se efetuando na fronteira com o pronome de terceira pessoa plural mais um adjetivo em uma construção adjetival/predicativa ((173) e (174)), e em prefixo de posse mais nome, nos exemplos de (175) a (178).

173. [ajow] 174. [idЋow]

a-jow ida-jow 3SUJ-velho 3SUJ.PL-velho ele é velho eles são velhos

175. [ђjakaha] 176. [idЋakaha]

ђ-jakaha ida-jakaha 2POS.SG-arco 3POS.PL-arco teu arco arco deles

177. [aЀoe] 178. [itЀoe]

a-ЀoБe ida-ЀoБe 3POS.SG-casa 3POS.PL casa sua casa (dele) sua casa (deles)

Analisando-se desse modo, teríamos que há um processo de espraiamento de traços

→ /ש/ d] antes de aproximante palatal sonora /j/, e] → /ש/ :que opera da direita para esquerda

[t] antes de fricativa palatal surda /Ѐ/. Como /Ѐ/ e /j/ são as duas únicas palatais da língua – isso dá uma boa base para excluir a nasal palatal do inventário de fonemas – elas formam uma classe natural que opera nesse processo. 61

Outra conclusão que é resultado dessa análise é que as africadas [tЀ] e [dЋ] também devem ser eliminadas do quadro de fonemas, dado que elas são previsíveis, embora apareçam alguns casos em que a previsibilidade não é mais aparente, uma vez que ocorre a cristalização dos morfemas e a impossibilidade de recuperar a estrutura interna da palavra, como nos exemplos (179) e (180). Esses casos não serão considerados como contra-exemplos, mas como exceções, ou melhor, como cristalização do processo, uma vez que se pode pressupor uma fronteira de morfema não mais recuperável.

179. [hetЀo] coração

180. [hedЋaցe] costurar

Mas passemos à segunda hipótese.

Hipótese 2: Neutralização e distribuição complementar de /d/ em início de palavra e entre vogais, respectivamente.

No caso de [t] e [d], parece haver uma certa segurança em afirmar-se que os dois são fonemas na língua e que ocorre uma neutralização, desde que a distinção promovida pelos dois valores do traço [voz] é neutralizada em fronteira de palavra. A relação entre esses dois

:porém, não parece satisfatória, dadas as seguintes observações ,[ש] segmentos e

ocorre somente [ש] ocorrem em distribuição complementar19, desde que [ש] a) [d] e entre vogais e [d] nunca aparece nesse ambiente. É certo que [d] também nunca ocorre em fronteira de palavra, mas aí temos demonstrado que há uma neutralização em favor da contraparte surda [t];

não é uma representação subjacente de um fonema, mas um alofone [ש] Neste ponto, estamos assumindo que 19 de /d/. 62

b) em meio de palavra, temos as realizações (181), (182) e (183) de um mesmo

:o] capimשmorfema, [ko

o] capimשko] .181

182. [kodЋϯ] capins

183. [kotЀa] arroz (Lit.: capim-semente)

No trabalho de Gudschinsky (1974, pp. 187 e 189), postula-se um processo fonológico

em [d] antes de /j/ e que, consecutivamente, transforma /j/ em [Ћ]. Desse /ש/ que transforma modo, podemos deduzir que as formas fonológicas que Gudschinsky sugeriria para esses morfemas são conforme as apresentadas de (184) a (186).

o/ capimשko/ .184 capim

o-jϯ/ capinsשko/ .185 capim-PL

(o-Ѐa/ arroz (Lit.: semente de capimשko/ .186 capim-semente20

Nós proporemos, como hipótese de trabalho, as formas fonológicas de (187) a (189).

187. /kodo/ capim capim

o-t-Ѐa/ capim-DIM-sementeשNa verdade, Gudschinsky propõe para essa palavra a forma fonológica /ko 20 semente pequena de capim. Veremos na análise morfológica que essa glosa não seria possível.

63

188. /kodo-jϯ/ capins capim-PL

189. /kodo-Ѐa/ arroz (Lit.: semente de capim) capim-semente

Essas formas fonológicas podem ser explicadas, desde que postulemos que a forma

com a ,[ש] o] é o resultado de uma distribuição complementar dos sons [d] eשfonética [ko

.[oשsendo favorecida entre vogais. Desse modo, /kodo/ → [ko [ש] realização

Para a forma [kodЋϯ] capins, a explicação é semelhante à de Gudschinsky, exceto pelo

kodo-jϯ/ → [kodЋϯ]. Aqui, por não/ :[ש] fato que postulamos uma forma subjacente /d/ e não

Em vez disso, a aproximante .[ש] estar entre vogais, /d/ não sofre o processo que o muda para seguinte /j/ torna-se continuante com o mesmo ponto de articulação: [Ћ].

Partindo da mesma forma de base, temos /d/ que se realiza [t] antes da fricativa palatal surda /Ѐ/: /kodo-Ѐa/ → [kotЀa].

e] ouשe] ou [ցשUma forma como o Auxiliar de Futuro, que pode ter as realizações [ցa

conforme o exemplo (190), a ,[ש] ,[ցat], mostra novamente essa relação entre os sons [t], [d] seguir, no qual, antes de palavra seguinte começada por /Ѐ/, a realização da consoante final do auxiliar, que, nesse caso, perde a vogal final, é [t].

64

[oeשi otђ ցat Ѐeשwe] .190

o-geשe Ѐeשi otђ ցaשwe amanhã 3SUJ AUX.FUT almoçar-VER amanhã ele vai almoçar

O item lexical para a terceira pessoa plural deve ser /ida/. Se postularmos essa representação lexical, as regras já propostas dão conta das alternâncias encontradas nos exemplos de (191) a (196)21.

[aשida hђ] .191

aשida hђ 3SUJ.PL bonito eles são bonitos

192. [idЋakђhђ]

ida-jakђhђ 3POS.PL-arco arco deles

193. [ihђwe]

ida-hђwe 3POS.PL-canoa canoa deles

21 A forma fonética [i], que também encontramos para a terceira pessoa do plural, é gerada por uma regra opcional que apaga vogal em fronteira de morfema. Se aplicada a regra, ela cria o ambiente que favorece degeminação de consoantes semelhantes, como [t] e [k] ou [k] e [ց]. A segunda regra também pode ser aplicada entre [t] e [h], como em [ihђwe] canoa. 65

194. [itЀow]

ida-Ѐow 3POS.PL-pai pai deles

[ϯjϯשik] .195

ϯjeשida-k 3POS.PL-olhos olhos deles

196. [it kinhi]

ida-ցinhi 3POS.PL-faca faca deles

,(e [d]. No exemplo (197 [ש] Há, ainda, um paradigma que mostra a interrelação entre abaixo, a separação de morfemas é efetuada, primeiro, sob a forma fonética. A seguir, damos o que seria a forma fonológica, de acordo com a hipótese aqui formulada.

197. lenha lenhas lenha pequena lenhas pequenas cortar lenha ϯdiցeܦϯdiْϯ i fܦϯ⍧tn ifܦϯdЋϯ ifܦϯ ifשϯܦif

ϯd i-ցeܦϯ-di-ْe ifܦϯ-tn ifܦϯd-Ћϯ ifܦϯ ifשϯܦif

ifܦϯde ifܦϯde-jϯ ifܦϯde-di  ifܦϯde-di-jϯ ifܦϯde i-ցe lenha lenha-PL lenha-DIM lenha-DIM-PL lenha cortar-VER

Desse modo, podemos dizer que há dois fonemas oclusivos coronais na língua,

/t/ e /d/. Esses dois fonemas são neutralizados em fronteira de morfema em favor de /t/. Em 66

em ,[ש] meio de palavra, tanto /t/ quanto /d/ podem, ainda, realizar-se como [t], [d] ou distribuição complementar. Essa análise permite-nos:

;como fonema na língua [ש] eliminar (1

2) explicar a baixa frequência de [d];

3) explicar por que os fones [t] e [d] nunca ocorrem em oposição em meio de palavra, enquanto que é possível encontrar [k] e [ց] em oposição nesses ambientes.

4) simplificar o processo que cria as sequências como africadas na língua. A sequência

[dЋ] seria, então, criada por um processo que mudaria o traço [+aprox] em [+cons, +cont], depois de /d/. Ou seja, /j/ → [Ћ] / /d/ . Ao mesmo tempo, a sequência [tЀ] seria o resultado de um processo que mudaria o traço [+voz] para [-voz], antes de consoante [-voz].

Para o momento, adotaremos a segunda hipótese como sendo capaz de fornecer a análise mais correta para o fenômeno observado. Um problema que surge dessa análise é o de explicar-se porque os morfemas de diminutivo e aumentativo /-di/ e /-ta/, respectivamente,

Atribuímos esse .[ש] não têm suas consoantes oclusivas, em meio de palavra, mudadas para fato à morfologia e remetemos o leitor para a secção 1.6.1, onde tentamos explicá-lo.

Há ainda um alofone de /d/, que é a nasal coronal anterior [n]. Esse alofone ocorre em final de palavra, depois de vogal nasal, quando a vogal final é elidida. Também esse processo pode ser encontrado com mais detalhes adiante, secção 1.5.1.5.

67

1.5.1.4 Oclusivas em coda silábica

Oclusivas /t d k g/, quando em coda silábica criada por apagamento de vogal em fronteira de morfema e em fronteira de palavra, podem realizar-se foneticamente de quatro modos diferentes.

1.5.1.4.1 Oclusiva surda final com relaxamento oral

As oclusivas sonoras /d/ e /ց/ tornam-se surdas, como já vimos, em início e final de palavra. As oclusivas surdas /t/ e /k/ mantêm-se surdas nesse mesmo ambiente. Temos, assim, uma neutralização do traço [voz], conforme descrito na secção 1.5.1.2, acima. Em posição final de palavra, podemos ter, então, apenas [t] e [k]22. Se a vogal final que é elidida for oral, essas consoantes realizam-se com relaxamento oral, conforme podemos ver nos exemplos de

(198) a (199), a seguir, em que damos primeiro a forma fonológica e, em seguida, a forma fonética. Nestes dois exemplos, temos um /ց/ subjacente realizando-se como [k] na coda, conforme mostra a comparação com as formas fonéticas da direita, em que /ց/ medial é preservado.

198. /hetђցe/ [hetђk] vento /hetђցe-na/ [hetђցena] está ventando vento-IMPF o] revólverשo/ [katϯցtoשkatϯցe/ [katϯk] arma /katϯցe-to/ .199 arma-redondo

22 Nos dados, porém, não foi encontrado [t] final com relaxamento oral. 68

1.5.1.4.2 Oclusiva surda final com relaxamento nasal

Uma oclusiva sonora /d/ ou /ց/ torna-se surda em final de palavra, quando a vogal final é elidida. A vogal elidida sendo nasal, o relaxamento da consoante oclusiva é uma espécie de murmúrio nasal, que os falantes descrevem como sendo um “soprinho pelo nariz”.

Os exemplos de (200) a (205) ilustram esse fato.

200. /koni-di/ [konitn] cobrinha

201. /oi-di/ [oitn] rato

202. /ewϯցe/ [ewϯkn] arara

iЀatn] pintoשiЀa-di/ [kשk/ .203

204. /faЀeցa-di/ [fܦaЀekn] jaguatirica

205. /Ѐokojaցa/ [Ѐokojakn] língua (idioma)

Paradigmas tanto nominais quanto verbais mostram o processo em causa.

206. [konitn] 207. [aЀikn]

koni-di a-Ѐiցe cobra-DIM 3POS-corda cobrinha sua corda

1.5.1.4.3 Oclusiva surda medial com relaxamento oral

Em posição medial, se uma vogal é elidida, a consoante que formava o onset desta sílaba sendo surda, realiza-se surda. Esse tipo de realização é encontrado em variação livre com a forma lexical correspondente. 69

208. [okotϯ⍧] ∼ [oktϯ⍧] caju

[oketЀi] ∼ [oktЀi] onça

1.5.1.4.4 Oclusiva sonora medial com relaxamento oral

Ainda em posição medial, uma oclusiva sonora subjacente realiza-se ainda sonora após a elisão da vogal com a qual formava uma sílaba CV, quando essa vogal é elidida em fronteira de morfema.

[oשkatϯցto] .209

oשkatϯցe-to arma-redondo revólver

1.5.1.4.5 Oclusiva sonora medial com relaxamento nasal

Uma última realização da oclusiva sonora ocorre em posição medial com relaxamento nasal. Nesse caso, uma vogal medial é elidida em fronteira de morfemas. A vogal que se elide sendo nasal, a consoante que fazia parte do onset da sílaba em causa realiza-se com relaxamento nasal, como mostra o exemplo (210), abaixo.

[aЀiցnْe] .210

a-Ѐiցe-di-jϯ 3POS-corda-DIM-PL suas cordinhas

70

1.5.1.5 Nasalização de /d/

Há uma realização de sufixo de diminutivo /-di/ que é [n]. Observe-se o paradigma em

(211), formado a partir da base nominal que significa mamão.

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL CPT23 ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ ђЀa⍧hђђ mamão .211

Da observação desse paradigma, pode-se notar que:

1) há duas vogais nasais no final da raiz, conforme podemos observar na forma para diminutivo, repetida abaixo como (212).

212. [ђЀaan]

ђЀaa-di mamão-DIM mamãozinho

2) a forma singular, repetida a seguir como (213), mostra que a sílaba final é elidida, deixando apenas o alongamento na vogal precedente.

213. [ђЀa⍧]

ђЀaa 3POS-mamão mamão

23 Mamoeiro, árvore do mamão. 71

3) Na forma para diminutivo singular, o sufixo de diminutivo realiza-se como [-n]. A nasalidade da vogal precedente espraia sobre a oclusiva sonora, nasalizando-a.

Os paradigmas formados a partir das bases nominais [ђЀow] homem e [hoj] lago, apresentados em (214) e (215), respectivamente, mostram o sufixo de diminutivo realizando- se como [-n] depois de /w/ e /j/. Em todos os casos, pode-se postular um segmento nasal, que

é apagado nestes ambientes: depois de outra vogal ou depois de uma das aproximantes.

SG PL DIM DIM.PL ђЀowa ђЀowْϯ ђЀowan ђЀowaْϯ homem .214

oْϯ fojn fojdiْϯ lagoܦfoj f .215

Uma evidência para a existência de um segmento nasal no final da base é a forma plural de homem, que repetimos como (216).

[ђЀowْϯ] .216

ђЀow-jϯ homem-PL homens

Nessa forma, a aproximante palatal do sufixo de plural nasaliza-se e realiza-se como nasal palatal. Ora, há boas evidências em outras partes de que a nasalidade espraia da esquerda para a direita. Assim, somente havendo um segmento nasal na base, essa aproximante palatal poderia realizar-se nasal. Na forma diminutivo singular, repetida abaixo como (217), a vogal nasal reaparece, confirmando, assim, a hipótese.

72

217. [ђЀowan]

ђЀowa-di homem-DIM homenzinho

Quando o segmento que antecede a última vogal – vogal que é elidida – é [+cons], o que temos é o descrito a seguir, conforme o paradigma com /aЀiցe/ corda.

Sg Pl Dim Dim.Pl aЀikn aЀiցnْe aЀiցen aЀiցenْe corda .218

Observando-se a forma singular, temos que uma vogal final átona é elidida e uma consoante oclusiva sonora ensurdecida, conforme a regra de neutralização do traço [±voz].

Desde que a vogal elidida é nasal, a nasalidade realiza-se como um contorno nasal sobre a consoante do onset dessa sílaba. Essa consoante ressilabifica com a vogal da sílaba precedente, criando uma das sílabas fonéticas descritas na secção correspondente.

219. [aЀikn] 220. [aЀiցen]

a-Ѐiցe a-Ѐiցe-di 3POS-corda 3POS-corda-DIM sua corda sua cordinha

A forma diminutivo Plural, analisada a seguir, em (221), mostra, novamente, a realização do sufixo diminutivo como [-n], ao mesmo tempo em que a aproximante palatal, que está na forma de base do sufixo de Plural, é nasalizada. A nasalidade, assim, espraia desde a vogal da base nominal corda sobre a consoante e a aproximante contíguas à direita. 73

Em um caso como esse, o sufixo de diminutivo basicamente não deixa vestígios, pois a nasal coronal é fracamente percebida.

[aЀiցenْe] .221

a-Ѐiցe-di-jϯ 3POS-corda-DIM-PL suas cordinhas

1.5.1.6 Nasalização de aproximante coronal

A aproximante coronal /j/ nasaliza-se depois de uma vogal nasal, passando a nasal

coronal [ْ]. Observemos os exemplos de (222) a (224), nos quais o morfema Plural realiza-se

.como [-ْϯ] apenas na forma Diminutivo Plural devido à vogal nasal do sufixo de Diminutivo

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM. PL towϯ towْϯ to⍧tn toodiْϯ towhta towhtajϯ urubu .222

how howْϯ howan howa⍧ْϯ howhta howhtajϯ rã .223

Ѐђi Ѐђijϯ Ѐђitn Ѐђidiْϯ Ѐђihta Ѐђitajϯ meu cabelo .224

Se compararmos o morfema de plural nos exemplos de (225) a (227), abaixo, temos visualização da realização desse processo de nasalização:

SG PL 225. [i] [ijϯ] cabelo

i] [iْϯ] mão] .226

ai] [aiْϯ] sua/suas mãos] .227

74

1.5.1.7 Epêntese de [h]

Uma aspirada glotal é inserida antes de [t] ou [n]. Podemos observar esse processo nos exemplos (228) a (230), onde temos o morfema aumentativo [-ta], anexado a raízes nominais terminadas em vogal.

SG AUM ϯցϯhta] rioשϯցϯ] [kשk] .228

229. [koko] [kokohta] tatu canastra

230. [atђϯ] [atђhta] pena

Em (231), temos a inserção de [h] antes de [t], atravessando fronteira de palavra. Em

(232), a inserção aplica-se antes do morfema de imperfectivo, que se realiza foneticamente, neste ambiente, como [-na].

231. [otђh te hah tϯ]

otђ te ha tϯ 3SUJ REFL pele cortar ele cortou a pele (dele mesmo)

232. [a Ѐe⍧ Ѐowhna]

a-Ѐe Ѐow-na 3POS sangue vermelho-IMPF o sangue é vermelho

75

1.5.1.8 Elisão e fusão de glide lábio-velar em início de palavra

A aproximante lábio-velar /w/ pode ser elidida ou sofrer fusão com uma vogal em início de palavra. A variação é livre, pois foi encontrada na fala de diferentes falantes da língua, conforme ilustrado de (233) a (236).

233. [oke] Vaca (fala de Margarida)

(wekehaْϯ] chifres de vaca (fala de Joana] .234

235. [a] 1OD (fala de Margarida)

236. [wa] 1OD (fala de Joana)

1.5.1.9 Apagamento de /h/ em sílaba inicial

Em sílaba inicial, /h/ pode sofrer apagamento.

237. /haЀie/ [aЀie] milho

238. /ha/ [a] 3POS

Esse processo, puramente fonético, é altamente produtivo e a maior parte das palavras começadas por vogal devem ser, na verdade, palavras começadas por /h/24.

24 É provável também que haja um grande número de palavras começadas por vogal que sejam, lexicalmente, começadas por aproximantes, principalmente /w/. Esse seria o caso, por exemplo, do pronome-objeto de primeira pessoa, que tem sido encontrado em variação livre, ora [wa] ora [a]. 76

1.5.1.10 Degeminação de plosivas

Há um processo que degemina consoantes oclusivas, quando duas delas são deixadas em contato devido à elisão de uma vogal.

Observemos os seguintes paradigmas, com os prefixos possessivos.

[ϯjשϯj] [aցשϯj] [ђցשЀђց] .239

ϯjשϯj a-ցשϯj ђ-ցשЀђ-ց 1POS.SG-olho 2POS.SG-olho 3POS.SG-olho meu olho teu olho seu olho (dele/dela)

[ϯjשϯj] [ikשϯj] [ekשak]

ϯjשϯj ida-ցשϯj eke-ցשaka-ց 1POS.PL-olho 2POS.PL-olho 3POS.PL-olho

nossos olhos vossos olhos seus olhos (deles/delas)

No paradigma de plural, parece termos também apenas uma vogal no lugar do prefixo possessivo. Sabemos, porém, a partir da análise da estrutura interna da palavra, que a forma fonológica desse prefixo é conforme glosada nos exemplos acima. Isso fica melhor demonstrado quando observamos como o paradigma de pronomes possessivos se realiza com o nome [ЀoБe] casa, exemplo (240), a seguir.

240. [aЀoБe] [ђЀoБe] [aЀoБe] a-ЀoБe ђ-ЀoБe a-ЀoБe 1POS.SG-casa 2POS.SG-casa 3POS.SG-casa minha casa tua casa sua casa (dele/dela)

77

[akaЀoБe] [ekeЀoБe] [itЀoБe]

aka-ЀoБe eke-ЀoБe ida-ЀoБe 1POS.PL-casa 2POS.PL-casa 3POS.PL-casa nossa casa vossa casa sua casa (deles/delas)

Nesse ultimo exemplo, os prefixos possessivos de primeira, segunda e terceira pessoas do plural são [aka], [eke] e [it], respectivamente. Vemos, assim, que, se ordenarmos as regras, teremos:

1) queda de vogal átona final

[ϯjשϯj/ → [akցשaka-ց/

2) assimilação de consoantes

[ϯjשϯj] → [akkשakց]

3) degeminação de consoantes

[ϯjשϯj] → [akשakk]

A seguir, apresentamos mais exemplos em que essas regras se aplicam.

ej] eles são bonsשej/ → [ikשida ka/ .241

242. /ida taha-na/ → [itahna] eles são grandes

ej] nós somos bonsשej/ → [akשaka ka/ .243

a] eles estão sujosשa/ → [ikawשida kaw/ .244

78

Dizemos que é a primeira consoante que se elide porque, se fosse o contrário, em

.[ejשej] ou [itשacima, teríamos [ita ,(241)

O paradigma apresentado em (245), a seguir, mostra, ainda, que, enquanto a sequência

[kt] é permitida, a sequência [tk] não o é.

245. [Ѐђhtaha] [ђhtaha] [ataha]

Ѐђ-taha ђ-taha a-taha 1SUJ.SG-grande 2SUJ.SG-grande 3SUJ.SG-grande eu sou grande tu és grande ele é grande

[aktaha] [ektaha] [itaha]

aka-taha eke-taha ida-taha 1SUJ.PL-grande 2SUJ.PL-grande 3SUJ.PL-grande nós somos grandes vocês são grandes eles são grandes

1.5.1.11 Vocalização de coda nasal?

Um conjunto de palavras chama-nos a atenção. Esse conjunto apresenta alguns fatos singulares sobre a fonologia Ofayé. Observemos o paradigma em (246).

água fumaça nevoeiro leite beber beber leite 246. fܦie Ѐowe fܦitЀowe okewejЀofܦie awiցe okewejЀofܦinwiցe

Nesse paradigma, a forma para água é [fܦie], sem nenhum traço de nasalidade. Na palavra composta [fܦitЀowe], nevoeiro, aparece já um segmento nasal [i] seguido de uma modificação da consoante inicial de fumaça, que muda para [tЀ]. Em [okewejЀofܦinwiցe] 79

beber leite25, que também é uma composição em que entra [fܦie] água no final da raiz, o elemento nasal agora se realiza como [n] antes de um segmento [-consonantal], como [w].

Uma hipótese possível a partir dessas observações é que há uma coda subjacente /n/, que se realiza como um segmento vocálico em final de palavra, depois de outra vogal. Esse elemento nasal realiza-se como nasalidade sobre a vogal precedente, quando seguido de uma consoante, e como a nasal coronal quando seguido de [-consonantal, +aproximante]. Além disso, a consoante após o segmento nasal que é apagado sendo [Ѐ], realiza-se como [tЀ].

Observamos outras ocorrências, como as mostradas nos paradigmas (247) e (248), a seguir.

SG PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL hђ⍧ hђ⍧ْϯ hђan hђ⍧diْϯ hђ⍧hta hђ⍧htaje árvore .247

aЀϯ⍧ aЀϯeْϯ aЀϯen - - - dente .248

Dois fatos são aqui observados. Primeiro, a aproximante do morfema de plural realiza- se como nasal palatal, o que só deve acontecer depois de um segmento com o traço [+nasal]; segundo, na forma diminutivo singular, em lugar de vogal longa temos uma vogal nasal, que, por sua vez, causa a realização do morfema de diminutivo como [-n].

O exemplo com [hђϯ] terra ilustra um pouco mais o fenômeno:

terra terras macio areia (terra macia) oknשokn hђtЀeցeשhђϯ hђ⍧ْϯ Ѐeցe .249

25 Pode parecer estranho que utilizemos beber leite, sendo essa forma tão longa que pode ser glosada como /oke-wejЀo-fwie-wiցe/ vaca-peito-água-beber, em vez de *[fܦinwiցe] beber água. Como indicado pelo asterisco, esta última forma é não atestada porque para beber água há um verbo específico [ђjkaw]. 80

No exemplo (250), a seguir, temos novamente uma vogal nasal seguida de outra vogal no final da palavra [okܦie] Joana26. Quando temos uma construção genitiva, [okܦitЀoБe] casa de Joana, ocorre a formação do segmento complexo [tЀ], como parece ocorrer sempre que há uma coda nasal que se realiza por vogal ou por alongamento da vogal em final de palavra.

Joana casa casa de Joana 250. okܦie ЀoБe okܦitЀoБe

Essa hipótese, aqui apenas levantada, se melhor investigada e comprovada, permitiria explicar a ocorrência da africada [tЀ] em ambientes diferentes daquele que descrevemos na secção 1.5.1.3.

1.5.2 Processos de realização de fonemas vocálicos

1.5.2.1 Alongamento de vogais

Há uma série de itens lexicais na língua que parecem demonstrar o valor contrastivo da duração no sistema de vogais Ofayé, como nos exemplos de (251) a (253).

i⍧] galinhaשi] veado galheiro [kשk] .251

252. [aЀa] seu filho [aЀa⍧] semente

253. [aցatϯ] branco [aցatϯ⍧] cabeça

26 [okܦie] é o nome de um pássaro, uma espécie de pomba. Os Ofayé costumam dar nomes de animais e plantas às pessoas, no que parece ser um ritual bastante complicado, pois há pessoas especiais que podem nomear. 81

Uma primeira observação a respeito das vogais longas em Ofayé é que elas só ocorrem em fronteira de morfema ou de palavra. Observemos os paradigmas (254) e (255), dos quais

.a] pezão e [ђЀa⍧] mamãoשa⍧ܦfazem parte as formas [af

pé pezinho unha do pé pés tornozelo ejtoשaցשaܦadЋϯ afܦatЀe afܦa ifשaܦa⍧tn afܦa afשaܦaf .254

A vogal longa que aparece na forma para diminutivo é claramente um alongamento compensatório causado pela perda de uma sílaba na fronteira de morfemas.

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL MAMOEIRO ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧hta ђЀa⍧htajϯ ђЀa⍧hђ mamão .255

Do mesmo modo, a vogal longa que aparece no final da forma singular pode ser considerada o resultado de um alongamento compensatório, já que é possível sua recuperação na forma diminutivo singular.

a] folha confirma aשO paradigma em (256), formado a partir da base [ja sistematicidade dessa correlação.

SG PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL SECO COMP.27 aשa jatЀaשajϯ aЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .256

Onde uma sílaba é elidida, como nas formas diminutivo e Aumentativo, tanto Singular como Plural, temos sempre uma vogal longa no final da raiz, na fronteira com os morfemas em causa. A vogal não é alongada nas formas Singular e Plural e na fronteira com o adjetivo

,a] folha seca. Na primeira forma, a vogal final da raiz não se elide eשa] seco, em [jatЀaשЀa]

27 Folha seca. 82

consequentemente, a consoante do onset dessa sílaba é mantida; na forma Plural, apesar da elisão da vogal, a consoante do onset é preservada, passando a formar um segmento complexo

,a]. Desse modoשcom o segmento da direita; o mesmo ocorre com a forma composta [jatЀa não há alongamento da vogal e fica demonstrado que vogais longas nesses ambientes não são lexicais.

Talvez seja possível dizer que alongamento de vogal em Ofayé é sempre o resultado de um processo que elide sílabas finais (naturalmente, sílabas não acentuadas porque sílabas finais em Ofayé são, de modo geral, não acentuadas). Essas sílabas podem ser formadas por qualquer tipo de consoante mais vogal. Observe-se o paradigma verbal apresentado em (257), no qual, claramente, o morfema verbalizador /-ge/, que é apagado de modo total: a) realiza-se plenamente, como na primeira forma; b) é apenas um alongamento da vogal precedente ou a vogal do morfema ou uma vogal, como na segunda forma; c) não deixa qualquer vestígio, como na terceira forma.

bater eu bato ele me bate eu bato em você ele bate em nós 257. a ցatiցe ta ցati⍧ wa ցati⍧ ta ђ kati wa kati⍧

ta katie

Nos exemplos de (258) a (261), encontramos realizações diferentes do mesmo morfema.

258. [ђhtee otђ ђЀow te ցie]

ђhten otђ ђЀowa te ցi-ցe mulher 3SUJ homem REL(?) ver-VER a mulher viu o homem

83

259. [ђhtee otђ ђЀow ցi]

ђhten otђ ђЀowa ցi mulher 3SUJ homem ver a mulher viu o homem

260. [otђ te hi fܦohie]

otђ te-hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele está coçando a perna (dele mesmo)

261. [ta hi fܦohiցe]

ta hi fohi-ցe 1SUJ perna coçar-VER eu estou coçando a perna

Todas essas alternações do morfema verbalizador podem ser observadas abaixo, no paradigma do verbo /aցiցe/ ver. Na forma em que a oclusiva velar realiza-se como [j], o que se tem é o morfema de plural, que indica que o sujeito desse verbo é plural, e a elisão total do morfema verbalizador. Devemos, porém, considerar que o apagamento do morfema de forma total aplica-se no nível da morfologia.

ver ele vê nós vimos você eles me viram 262. aցiցe otђ ki⍧ ta ђ ki otђ a ki

84

1.5.2.2 Elisão de vogais em fronteira de morfema e de palavra

Em fronteira de morfema, uma vogal não acentuada é elidida e, sendo oral, apenas causa a ressilabificação, visto que a consoante do onset passa para a coda da sílaba precedente, conforme descrito na secção 1.5.1.4. Se a vogal que se elide for nasal, cria-se um contorno nasal na consoante precedente. A maior parte dos processos que operam em fronteira de morfema são alimentados pelo processo de elisão de vogais. Assim, o relaxamento de oclusivas em coda silábica, oral ou nasal, é condicionado (i) pela elisão da vogal e (ii) pelo fato de esta vogal elidida ser ou não uma nasal subjacente. Vejamos os exemplos de (263) a (268), a seguir.

263. [aЀakn] carne

264. [aЀaցen] carne

ak] ele está cansadoשhe] .265

ak] eles estão cansadosשitЀe] .266

267. [hђi] feijão

268. [hђitn] feijãozinho

Vogais finais de palavra são frequentemente elididas.

Se a vogal é nasal, precedida por uma consoante oclusiva no onset, a consoante do onset sendo sonora é ensurdecida e realiza-se com relaxamento nasal. Se a vogal for oral, a consoante do onset realiza-se como surda com relaxamento oral, conforme vimos na secção

1.5.1.4 e subsecções correspondentes.

Nos casos em que uma vogal ou uma sílaba inteira é elidida em fronteira de palavra, a vogal da sílaba precedente é alongada. Ilustramos o processo com outros paradigmas nominais, (269) a (271), nos quais a base nominal tem uma sílaba final CV. 85

SG. PL. DIM DIM.PL. AUM AUM.PL. COMP.28 ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ ђЀa⍧hђ mamão .269

a folhaשajϯ jatЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .270

ajϯ wohђtЀa corujaשa wohђ⍧שa wohђdЋϯ wohђ⍧tn wohђdiْϯ wohђ⍧שwohђ .271

1.5.2.3 Crase

Quando duas vogais, em fronteira de morfema, se encontram, uma delas tende a ser apagada.

1POS mãe minha mãe 272. Ѐђ ђhtee Ѐђhtee

1.5.3 Formação de onset complexo

Na secção 1.4 e correspondentes subsecções 1.4.1 e 1.4.2, sobre sílaba, tratamos as

como sendo sílabas fonológicas. Entretanto, há casos em que essas /שe /ց /שsequências /k sequências parecem ser criadas pela elisão de vogais entre uma oclusiva e o tepe, principalmente em fala rápida. Essa afirmação é possível porque as realizações em que a vogal que sofre a elisão é preservada foram encontradas em dados elicitados. Ao contrário, mesmo em dados elicitados não foi possível fazer o falante fornecer a forma com a vogal, quando a sílaba CCVC parece ser fonológica.

28 As formas compostas apresentadas na última coluna são, de cima para baixo: /ђЀaa-hђ/ mamão-árvore, .a-Ѐa/ coruja-filho, filhote de corujaשa/ folha-seco, folha seca; /wohђשa-Ѐaשmamoeiro; /ja 86

[iשi/ → [kשցa/ .273

[iשi/ → [aցשa-ցa/ .274

1.5.4 Observações sobre a morfofonologia

Alguns morfemas realizam-se de diferentes formas e, no entanto, o processo de formação dessas alomorfias não está ainda claro, de um ponto de vista estritamente fonológico. Por isso, aqui, vamos apresentar algumas das alomorfias encontradas e para as quais não pudemos encontrar uma justificativa fonológica.

1.5.4.1 Morfema de aumentativo

O morfema de aumentativo /-ta/ apresenta uma alternação que a princípio parece livre

.(a], como podemos ver nos exemplos de (275) a (277ש-] ,[entre [-na], [-ta

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL atђϯ atђْϯ atђ⍧tn atђ⍧diْϯ atђ⍧hta atђ⍧htajϯ pena .275

atђ⍧h-na atђ⍧h-najϯ

ajϯ patoשϯ⍧ܦfשaܦa fשϯ⍧ܦfשaܦϯ⍧diْϯ fܦfשaܦϯ⍧t fܦfשaܦϯdЋϯ fܦfשaܦϯ fשϯܦfשaܦf .276

koni konijϯ konitn konidiْϯ konita konitajϯ cobra .277

Parece ser possível dizer que a variação [-na] ou [-ta] encontrada para a o morfema de aumentativo é, basicamente, livre. Uma mesma forma pode ter as duas realizações. Já a forma 87

a] deve ser condicionada. Observemos, para isso, as alternâncias que ocorremש-] alternante

.(a] folha, exemplo (278שem um paradigma que toma por base a palavra [ja

SG PL DIM DIM.PL AUM. AUM.PL

ajϯ folhaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .278

a] folha é elidida e a sílaba precedente alonga-seשA sílaba final da base [ja compensatoriamente nas formas diminutivo singular [ja⍧tn] folhinha, diminutivo plural

[ajϯשa] folhona e aumentativo plural [ja⍧שja⍧diْϯ] folhinhas, aumentativo singular [ja⍧] folhonas. Na forma para plural, não há alongamento porque a consoante da coda é preservada.

O morfema de diminutivo /-di/ mantém-se inalterado nessa posição. Contudo, o

:a/. Propomos a seguinte interpretaçãoש-/ morfema de aumentativo /-ta/ passa a

a] é elidida, essa elisão éש] como ocorre com as demais formas onde a sílaba (1 compensada pelo alongamento da sílaba precedente, o que resultaria em uma forma derivada

[ja⍧-ta];

2) /t/ intervocálico vozeia-se para [d] e, subsequentemente, entre vogais, [d] mesmo

.[ש] sendo derivado, muda para

1.5.4.2 Morfema de aspecto

O morfema de aspecto imperfeito apresenta uma série de alternações, podendo ser

a], [-hu]. Essas alternações estão exemplificadas de (279) aש-] ,[realizado como [-ta], [- na 88

(283). Novamente, parece que estamos diante de uma variação livre ou, se condicionada, não o é por fatores estritamente linguísticos.

279. [a johta]

a jo-ta 3SUJ dormir-IMPF ele está dormindo

280. [ataha]

a-taha-ta 3SUJ-grande-IMPF ele é grande

ou

281. [atahu]

a-taha-ta 3SUJ-grande-IMPF ele é grande

282. [atђhna]

a-tђ-ta 3SUJ- novo-IMPF ele é novo

283. [oktЀi Ѐihina otђ kaj ђЀow]

oketЀi Ѐihi-na otђ kaj ђЀow onça caçar-IMPF 3SUJ matar homem o homem foi matar a onça (Lit.: caçando onça, o homem foi matar).

89

1.6 Aspectos suprassegmentais

1.6.1 Tom e acento

Dos aspectos suprassegmentais, vimos que duração não é fonológica em Ofayé.

Conforme demonstramos nos processos fonológicos, vogais longas são resultado de apagamento de segmentos e de sílabas. Também o tom não é usado distintivamente na língua.

Quando testado experimentalmente, o tom, no nível da palavra fonológica29, mantém-se constantemente nivelado. Raros picos de altura são mais o resultado de certa ênfase por parte do falante do que uma modificação predizível propriamente dita.

A nossa análise mostra, pois, que o tom não tem qualquer papel a nível de palavra e a realização é como descrita acima.

O acento é fixo. Há maior intensidade sempre na primeira sílaba da palavra fonológica, em conjunção com uma leve subida do pitch. A diferença entre uma sílaba acentuada e uma sílaba não-acentuada é mínima.

Nos nossos registros, foram encontradas palavras de até cinco sílabas. Em todas, o acento recai sobre a primeira sílaba da esquerda. Damos exemplos de palavras de uma a cinco sílabas a seguir, exemplos de (284) a (309).

Observemos os conjuntos de palavras a seguir.

- uma sílaba

284. [⎆hܦok] mel

285. [⎆foj] lago

29 A marca de palavra fonológica é o acento, ou seja, o sinal de fronteira de uma palavra fonológica é o acento, .o] janela, em que, na verdade, tem-se três palavras: porta-redondo-curtoשe⎆ցeti⎆toשcomo em [⎆hiЀe 90

286. [⎆how] rã

287. [⎆hoj] jatobá (espécie de árvore)

-duas sílabas:

ђ] abelha mandaguariש.tђ⎆] .288

289. [⎆ja.tϯ] abelha borá

ϯ] anum pretoש.ђ⎆] .290

291. [⎆e.wϯkn] arara

292. [⎆o.itn] cotia

293. [⎆ђ.fܦo] criança

294. [⎆ђ.fܦotn] criancinha

295. [⎆a.jow] velho

- três sílabas

e] aranhaש.kђ.te⎆] .296

a] tatuש.ka.naw⎆] .297

o] tatu-bolaש.ka.no⎆] .298

299. [⎆fܦi.tЀeh.ta] ilha

300. [⎆hܦo.ցa.tЀaϯ] abelha jataí

- quatro sílabas

o.ցa.ْa.wϯ] abelha europaܦh⎆] .301

e mandaguariܦe.fש.oցn.Ѐeܦh⎆] .302

o.waϯ tatu-galinhaש.jϯ⎆] .303 91

aj] macacoשe.ցשk⎆] .304

305. [⎆we.hi.fܦa.Ѐo] tartaruga

306. [⎆ti.ka.fܦa.jϯ] cágado

a] lagartixaש.ka.ta.wa⎆] .307

e] vulvaש.a.Ѐa.Ѐe⎆] .308

- cinco sílabas

awnaցe] esfregar, limparשaha⎆] .309

Isso posto, parece não haver muito o que dizer sobre acento nessa língua. Tanto nomes como verbos mostraram o mesmo comportamento quanto ao padrão acentual. Podemos dizer, portanto, que Ofayé é uma língua de pés livres, ou seja, uma língua em que há apenas um acento por palavra e que coloca o núcleo acentuado na sílaba final ou inicial. Desde que

Ofayé tem apenas um acento por palavra e esse acento cai sobre a sílaba inicial, uma teoria métrica “(...) is enable to account for this simple stress system”. (KENSTOWICZ, 1994, p.

577) e tudo que se pode fazer é descrever os fatos observados, seguindo Hayes (1994, p. 33), que afirma o seguinte:

This completely symetrical pattern makes it difficult to argue for any really explicit mechanisms to derive umbounded stress. Since the facts in this area are quite simple and fill out the logical possibilities, it is hard to develop a theory that goes much beyond just describing the facts.

Resumindo, podemos estabelecer alguns princípios que governam o acento em Ofayé.

1. a sílaba é a unidade portadora de acento;

2. o acento principal – talvez único – cai sobre a primeira sílaba à esquerda, ou seja, na sílaba inicial da palavra; 92

3. a segunda sílaba é mais fraca do que a primeira, mas mais forte do que todas as sílabas subsequentes;

4. palavras compostas seguem o mesmo padrão das palavras simples;

5. sintagmas formados por nome mais adjetivo seguem o mesmo padrão, mas cada palavra do sintagma tem o seu próprio acento. O mesmo acontece em sintagmas formados por nome mais nome possuído, como em construções genitivas ou possessivas. 93

CAPÍTULO 2: O NOME E O SINTAGMA NOMINAL

2.1 Introdução

Neste capítulo, discutiremos a morfologia da língua Ofayé. No primeiro momento, nossa atenção estará voltada para a marcação de posse, especificamente. Essa preocupação com esse aspecto da morfologia nominal deve-se à observação que os nomes em Ofayé pertencem a três classes principais, de acordo com a marcação de posse que podem receber.

Na sequência, e de um ponto de vista puramente descritivo, apresentamos o que consideramos ser todas as particularidades morfológicas do nome, tanto em termos de flexão quanto de derivação e composição, que encontramos nos nossos dados da língua, e de relações internas ao sintagma nominal.

2.2 A Classe nome em Ofayé

Dixon (1990, p. 92) afirma que as palavras das línguas do mundo podem ser agrupadas em tipos semânticos, refletindo fatores de significados comuns ou semelhantes em diferentes línguas. Cada classe gramatical é a conjunção de um certo número de tipos semânticos. Quer dizer, gramaticalmente, toda língua apresenta um conjunto de palavras e as divide em classes.

Cada uma dessas classes tem propriedades sintáticas e ou morfológicas identificatórias daquela língua. Embora tais propriedades sejam diferentes de língua para língua, as classes de palavras são identificadas entre línguas e recebem o mesmo nome por causa de suas similaridades semânticas. Assim, toda língua tem uma classe de nomes que inclui humano, animado, coisa, grau de parentesco. Toda língua tem uma classe de verbos que inclui movimento, dar, gostar e outros tipos que caracterizam essa classe. Existe também em uma 94

boa parte das línguas uma classe de adjetivos que inclui, por exemplo, dimensão, propriedade física e cor. Diferentemente, em algumas línguas essa classe pode incluir menos tipos semânticos ou até mesmo não se constituir em uma classe separada, como acontece em algumas línguas. Há ainda alguns tipos semânticos que variam em seu pertencimento de uma classe para outra em línguas distintas.

A classe de nome, conforme o autor, tem um grau razoável de homogeneidade semântica, mas a classe de verbos, ao contrário, não apresenta esse mesmo comportamento, pois há uma quantidade de tipos semânticos distintos associados com a classe de verbos e cada um deles deve ser considerado separadamente.

Do mesmo modo, Rijkhoff (2003, p. 8) afirma que o conhecimento linguístico comumente divulgado em que se assume que cada língua tem classes principais (abertas) distintas não é uma regra universal, uma vez que, em algumas línguas, não é possível aplicar o mesmo conjunto de categorias lexicais. Em algumas línguas, a distinção entre nome e verbo não é muito marcada. A língua Salish, apontada como um dos exemplos, apresenta esse comportamento. Nela, “todas as palavras plenas, incluindo nomes, podem servir como predicados e podem ser flexionadas usando marcadores de pessoa”.

No que diz respeito à língua Ofayé, em termos gerais, ela parece adotar o comportamento mais usual das línguas do mundo, pois apresenta distinção entre a classe de nome e a classe de verbo. A noção de nome em Ofayé pode ser definida gramaticalmente em termos de suas propriedades morfológicas e sintáticas. Parece, ainda, representar semanticamente os conceitos estáveis para nomear pessoas, animais, plantas, objetos, lugares, entre outros.

Morfologicamente, o nome caracteriza-se pelo recebimento de prefixos de posse, sufixos derivativos – aumentativo e diminutivo – e um sufixo flexional – número. Tal comportamento morfológico da língua Ofayé já foi descrito por Gudschinsky (1974, p. 193), 95

que apresenta para sua interpretação a seguinte explicação: “os nomes se definem como a classe de elementos lexicais que apresentam a estrutura interna: prefixo de pessoa obrigatório ou optativo, sufixo derivacional optativo (aumentativo ou diminutivo), sufixo de plural optativo”.

Em nossos dados, pudemos atestar esse mesmo tipo de comportamento na formação dos nomes em Ofayé. Entretanto, algumas formas nominais apresentadas por essa autora não correspondem, a priori, às formas nominais por nós encontradas. Deve-se levar em conta, entretanto, os diferentes períodos de levantamento dos dados. Parece haver dialetos distintos em Ofayé, mas não sabemos, pelo menos por enquanto, o grau dessas diferenças dialetais. O

Quadro 7, a seguir, permite visualizar, com itens lexicais ilustrativos, a constituição morfológica do nome em Ofayé.

CLASSES DE NOME NOMES PREFIXOS RAIZ SUFIXOS (POSSE) (ÊNFASE) SG PL não-possuído - - kђtϯ ø pedra

alienável a- weke -jϯ minhas vacas

a- Ѐi- kђtђj ø o peixe dele (mesmo)

inalienável Ѐђ- ђЀow meu pai

a- tђ: -jϯ penas dele (pássaro)

Quadro 7: Constituição morfológica do nome

96

2.2.1 As categorias nominais

2.2.1.1 Posse

Conforme Taylor (1999), posse é um conceito semântico fundamental com ramificação na sintaxe e na morfologia. Ele afirma que se pode compreender a posse como uma relação entre pessoa e coisa (Jonh´s car), mas não apenas isso. Posse deve ser entendida de forma mais ampla, de modo a envolver diferentes tipos de relações de parentesco, relação parte-todo, relação entre coisa e atributo, relação de autoria, relações locativa e temporal, além de outros tipos. Assim, embora as línguas apresentem modos distintos de codificar as relações de posse, todas elas parecem apresentar termos para expressar tais situações.

Entre as particularidades dessa categoria semântica, há a distinção entre posse alienável e inalienável. Posse inalienável refere a uma relação inerente ao possuidor, ao passo que quando a posse é contingente ou circunstancial, tem-se posse alienável. Como posse inalienável, Taylor (op. cit.) aponta como exemplo termos para partes do corpo, pois estas estão inerentemente ligadas a seu possuidor em toda e qualquer situação. Como exemplo de posse alienável, ele cita coisas ou objetos, tendo em vista que apenas circunstancialmente estes podem pertencer a alguém.

Em Ofayé, a posse é marcada por um prefixo cuja posição é imediatamente anterior à raiz nominal, conforme vimos no Quadro 7, da secção 2.2.

Conforme já apresentado por Gudschinsky (op. cit.), na língua Ofayé há pelo menos duas categorias de nomes possuíveis e uma categoria de nomes não possuíveis, que podemos dividir do seguinte modo:

97

1. Inalienavelmente possuíveis

2. Alienavelmente possuíveis

3. Nomes não possuíveis

2.2.1.1.1 Nomes inalienavelmente possuíveis

Os tipos de nomes inalienavelmente possuíveis aparecem como raízes nominais que recebem obrigatoriamente um dos prefixos pessoais. Nessa categoria, estão incluídos termos que denominam relações de parentesco e partes do corpo. Nos Quadros 8 e 9, a seguir, apresentamos o paradigma dos prefixos de posse que são usados com a classe dos nomes inalienavelmente possuíveis.

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME IN. POSSUÍVEL

1 Ѐђ- ђЀow [ЀђЀow] meu pai SG 2 ђ- ђЀow [ђЀow] teu pai

3 a- ђЀow [aЀow] pai dele/dela

1 aka- ђЀow [akaЀow] nosso pai PL 2 eke- ђЀow [ekeЀow] vosso pai

3 ida- ђЀow [itЀow] pai deles/delas Quadro 8: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: termos de parentesco

98

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME IN. POSSUÍVEL

ϯj meu olhoשϯj ЀђցשЀђ- ց 1 SG ϯj teu olhoשϯj ђցשђ- ց 2

ϯj olho dele/delaשϯj aցשa- ց 3

ϯj nosso olhoשϯj akשaka- ց 1 PL ϯj olho de vocêsשϯj ekשeke- ց 2

ϯj olho delesשϯj ikשida- ց 3 Quadro 9: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: partes do corpo

Quando um desses itens lexicais inalienáveis é citado sem referência direta ao possuidor, ele será sempre marcado pelo prefixo de terceira pessoa do singular [a]. Isso significa que esses nomes não podem ser citados sem referência a um possuidor, mesmo que esse possuidor não possa ser identificado referencialmente. Em (310) e em (311), os nomes

ahijϯ] pernas e [aiْϯ] mãos são sempre marcados pelo prefixo de terceira pessoa, posse] inalienável. Em (312), o possuidor é expresso pelo nome próprio [koj].

310. [ahijϯ]

a-hi-jϯ 3POS-perna-PL pernas dele (de alguém)

[aiْϯ] .311

a-i-jϯ 3POS-mão-PL mãos dele (de alguém)

99

Assim, se tivermos mãos de Koy, por exemplo, teremos uma construção possessiva, como no exemplo a seguir.

[koj iْϯ] .312

koj i-jϯ Koy mão-PL mãos de Koy

Entretanto, se apenas citamos o nome mãos, necessariamente temos que dizer como em (311), acima. Isso significa mãos que necessariamente pertencem a alguém.

Para a primeira pessoa na classe dos inalienáveis, como partes do corpo e termos de parentesco, o prefixo de posse é sempre [Ѐђ].

313. [ЀђЀow]

Ѐђ-Ѐow 1POS-pai meu pai

314. [ЀђЀe]

Ѐђ-Ѐe 1POS-dente meu dente

Consideramos esse prefixo /Ѐђ-/ a marca de inalienabilidade, pois ocorre apenas com nomes que normalmente são inalienáveis, como relação de parentesco e partes do corpo.

Existem ainda em Ofayé alguns nomes inalienáveis que apresentam um comportamento diferente. Esses nomes podem receber marcação de posse inalienável, 100

alienável ou simplesmente serem expressos como os não-possuídos. Gudschinsky (op. cit., p.

195) chamou-os de irregulares, pois são poucos os casos observados. Nos nossos dados, constatamos essa irregularidade com os nomes unha, dedo, mãos, nariz, orelha, pênis e cabelos.

[Ѐђiْϯ] .315

Ѐђ-i-jϯ 1POS-mão-PL minhas mãos

[aiْϯ] .316

a-i-jϯ 1POS-mão-PL minhas mãos

[iْϯ] .317

i-jϯ mão-PL mãos

No exemplo (315), o uso do prefixo possessivo [Ѐђ-] reflete o tratamento do nome [i] mão como fazendo parte da classe dos nomes inalienáveis. Em (316), o prefixo possessivo

[a-] mostra o tratamento desse nome como alienável. Em (317), o mesmo nome é tratado como não possuível30. Essa indefinição no uso do marcador de posse parece indicar que a língua Ofayé, no estágio atual, sofre influência do uso do Português e passa por um processo

30 Mas a falante afirma que a forma inalienável é a mais utilizada. A outra forma é acidental, “de vez em quando, a gente diz”. 101

de mudança que pode vir a modificar totalmente a configuração desse sistema. A mudança de elementos possuíveis e não possuíveis é cultural, o que acarreta a mutação da língua.

2.2.1.1.2 Nomes alienavelmente possuíveis

Os nomes alienavelmente possuíveis podem aparecer ou não com um prefixo de posse.

Nessa categoria, estão os nomes de animais e utensílios domésticos, objetos culturais, plantas e outros. Para essa subclasse de nomes, a série de prefixos possessivos é um pouco diferente, basicamente na primeira pessoa, onde, em lugar de [Ѐђ-], usa-se [a-], como mostramos no

Quadro 10, abaixo.

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME AL. POSSUÍVEL

1 a- ցinhi [aցinhi] minha faca SG 2 ђ- ցinhi [eցinhi] tua faca

3 a- ցinhi [aցinhi] sua faca (dele)

1 aka- ցinhi [akinhi] nossa faca PL 2 eke- ցinhi [ekinhi] vossa faca

3 ida- ցinhi [ikinhi] sua faca (deles) Quadro 10: Paradigma dos prefixos de posse em nomes alienavelmente possuíveis:objetos de uso

Entre os nomes que, a princípio, são alienáveis, encontramos ocorrências em que a posse, além de ser marcada pelo prefixo de posse correspondente à classe, recebe ainda um marcador /-Ѐi/. Quanto às classes semânticas em que o elemento descrito foi encontrado, temos alguns nomes de animais, plantas ou frutas, comida e objetos de uso. Vamos considerar esse elemento um marcador de posse enfática. 102

Enquanto se pode traduzir (318), abaixo, por meu porco, (319) deve ser traduzido por meu próprio porco, o porco que verdadeiramente me pertence, o porco que é meu mesmo, diferente, portanto, do porco que é propriedade coletiva31. Em princípio os animais são bens não possuíveis, pois pertencem à natureza. Com a mudança cultural, alguns bichos são incorporados aos bens possuíveis.

[aЀiցiשiܦaf] .318

a -Ѐiցiשa-fi 1POS-porco-rabo meu porco

[aЀiցiשiܦaЀif] .319

aЀiցiשiܦa-Ѐi-f 1POS-ENF.POS-porco meu próprio porco

Essa expressão de posse pode ser explicada apenas culturalmente. Os Ofayé tinham tradicionalmente uma economia coletiva. Hoje, essa forma de economia se mantém, mas os

índios podem possuir bens próprios, bens que não são coletivos. Então, eles fazem uma diferença entre bens que pertencem a todos, conseguidos com o trabalho coletivo, e bens que pertencem a um indivíduo, para a aquisição do qual ele empregou seu esforço particular e do qual ele somente irá usufruir. Os peixes, por exemplo, que são uma conquista coletiva, que eles ganharam do IDATERRA (Instituto da Terra do Mato-Grosso do Sul) e que podem ser pescados por todos, são [akђtђj], meu peixe, o que eu possuo juntamente com os outros, mas o

31 Deve-se notar que, entre os Ofayé, há ainda um sistema econômico em que a posse da propriedade é coletiva. Assim, uma parte de terra, o gado, a criação de peixe, são bens comuns a todos os membros da comunidade. Entretanto, é possível para um indivíduo do grupo adquirir um bem próprio, com o seu empenho particular, como, por exemplo, quando alguém consegue comprar uma vaca com o dinheiro ganho em um trabalho específico ou apanhar um marolo da árvore para comer. O marolo na árvore é propriedade coletiva. 103

peixe que cada um pesca no córrego do fazendeiro vizinho é [aЀikђtђj], meu peixe particular, o peixe que eu peguei para mim. Outros exemplos são como os apresentados a seguir.

[eשeܦeցfשaЀik] .320

eשeցfeשa-Ѐi-k 1POS-ENF.POS-banana minha própria banana

321. [aЀiђhђϯ]

a-Ѐi-ђhђϯ 1POS-ENF.POSdoce meu próprio doce

2.2.1.1.3 Nomes não possuíveis

Os nomes que são tratados como não possuíveis são fenômenos da natureza, corpos celestes, acidentes geográficos. Logicamente, essa não é uma característica apenas do Ofayé, pois, na maior parte das línguas que distinguem três tipos de nomes com relação ao modo como são possuídos, são exatamente esses itens que são tratados como não possuíveis.

ϯ] noiteשwϯ] .322

323. [kђtawe] lua

324. [foj] lagoa

Resumindo, o sistema de prefixos de posse para Ofayé pode ser como apresentado no

Quadro 11. 104

ALIENÁVEL INALIENÁVEL ALIENÁVEL APROPRIADO NÚM↓ PES → 1 2 3 1 2 3 1 2 3 SG a ђ ha Ѐђ ђ a a Ѐi32 e Ѐi ha Ѐi

PL aka eke ida aka eke ida aka Ѐi eke Ѐi ida Ѐi

Quadro 11: O sistema de prefixos possessivos de Ofayé

Define-se, aqui, portanto, que os nomes em Ofayé podem ser divididos em três subclasses, de acordo com o tipo de marcação de posse que eles aceitam. A princípio, essa subdivisão parece ser estabelecida em termos de traços semânticos. Tem-se, assim: a) nomes inalienavelmente possuíveis, que são, basicamente, termos de parentesco e partes do corpo; b) nomes alienavelmente possuíveis, como objetos, animais e plantas; c) nomes não possuíveis, como seres da natureza, acidentes geográficos e outros. Além dessas marcas de posse, que separam as classes de nomes em Ofayé, há ainda uma marca de posse enfática. Essa última divisão parece ser estabelecida cultural ou discursivamente.

2.2.1.2 Número

Há duas distinções de número em Ofayé: singular e plural. O singular é a forma não marcada, ou morfema /ø/. O plural é marcado pelo sufixo /-jϯ/.

325. [aցinhi]

a-ցinhi 1POS-faca minha faca

32 Nossa colaboradora e professora Ofayé apresenta outras formas para expressar o que estamos chamando de posse enfática: [ahi, ehi, hђЀi, aցaЀi, eցeЀi, itЀi]. Informa-nos, ainda, que “é como se fosse velho”, querendo dizer com isso que é uma forma arcaica. 105

326. [aցinhijϯ]

a-ցinhi-jϯ 1POS-faca-PL minhas facas

.[O morfema de plural possui vários alomorfes: [jϯ], [ْϯ], [Ћϯ], [Бϯ], [ϯ

Sg Pl 327. [i] [ijϯ] cabelo

i] [iْϯ] mão] .328

tika] [tikaْϯ] animais] .329

adЋϯ] péܦa] [afשaܦaf] .330

331. [aЀe] [aЀeБϯ] dente

332. [anodЋi] [anodЋiϯ] banco

As regras que geram essas alomorfias, com exceção das duas últimas, que parecem ser puramente fonéticas, são descritas na secção 1.5, sobre processos de realização de fonemas.

2.2.1.3 Gênero

Embora não ocorra de forma sistemática, a língua emprega a palavra [fܦajϯk] ou

[fajϯk] para indicar o sexo feminino de alguns animais.

333. [afܦatЀe fܦajϯk]

a-fatЀe fajϯk 1POS-cavalo FEM minha égua 106

[ajϯkܦej fשtikak] .334

ej fajϯkשtikak gato FEM Gata

335. [ђhakanie fܦajϯk]

ђhђkђnie fajϯk cabrito FEM Cabrita

2.3 O Sintagma Nominal

Consideramos sintagma nominal construções em que nomes são núcleo. Desse modo, a constituição do sintagma nominal em Ofayé pode ser vista no Quadro 12, a seguir.

SINTAGMA NOMINAL (DET) (MOD)33 NÚCLEO (ADJ) (DEM) (QUANT)

hite ђfo esse menino

jakܦadЋϯ kђtϯjϯ duas pedras

ϯ asa de borboletaܦitђ fשoց

okܦin ЀoБe casa de Joana

oe parede da casaשaܦЀoБe k

ϯ meu primeiro filhoשЀђЀa hђjo

ЀoБe tђ casa nova

34 ђЀej tђ tua roupa nova Quadro 12: Constituição do sintagma nominal

33 Modificadores podem ser adjetivos, nomes e outras classes de palavras que atuam como modificadores do nome, inclusive os determinantes. Como determinantes co-ocorrem com modificadores, optamos por não os tratarmos, para efeito descritivo, como tal. A mesma observação é válida para adjetivos. 34 Estamos considerando a marca de posse como sendo um prefixo e, portanto, fazendo parte da palavra nominal, não do sintagma nominal. 107

2.3.1 Determinantes

Considerando, de acordo com Eijck (1999, p. 136), que “Syntactically, determiners are operators that combine with nouns to form noun phrases” e que “Semantically, determiners are functions that combine with noun denotations to form denotations of noun phrase”, assumimos aqui que os itens lexicais descritos nas subsecções a seguir são determinantes em

Ofayé: demonstrativos e diversos tipos de quantificadores.

2.3.1.1 Demonstrativos

Os demonstrativos em Ofayé apresentam apenas uma distinção dual: perto do falante

(336), longe do falante e do ouvinte (337).

336. [a he ցanie ha ђfo]

a he ցanie ha ђfo 1OBJ DAT não.gostar DEM menino eu não gosto deste menino

337. [a he ցanie hite ђfo]

a he ցanie hite ђfo 1OBJ DAT não.gostar DEM menino eu não gosto daquele menino

Dado que a língua não tem artigos definidos ou indefinidos, o demonstrativo é usado também como um especificador. De acordo com Frawley (1992, p. 75), “(...) many languages do not productively differentiate definites from indefinites, but nonetheless retain the 108

specific/nonspecific distinction”. O autor cita, a partir de Saul (1980, p. 110-111), a língua

Nung (Sino-Tibetana) como sendo desse tipo. Em uma língua em que falta um meio produtivo de assinalar definido versus indefinido, frequentemente o numeral “um” ou o demonstrativo é usado para codificar a relação. No que diz respeito a Ofayé, que não tem artigos definidos nem indefinidos, diríamos que a distinção específico/não-específico é realizada morfologicamente pela presença versus ausência desse elemento que classificamos como demonstrativo. Observemos o contraste entre (338) e (339).

338. [ta ђfo ki]

ta ђfo ցi 1SUJ menino ver eu vi o menino

339. [ta ki hite ђfo]

ta ki hite ђfo 1SUJ ver DEM menino eu vi aquele menino (ou seja, eu vi um menino específico)

Uma propriedade sintática do demonstrativo Ofayé é que ele tem, além da função de determinante, uma função predicativa. Nesse caso, ocupa a posição final da sentença.

340. [oke hђ ite] oke hђ hite vaca chifre DEM aquilo é um chifre de vaca

109

341. [haցani hђ ite] haցani hђ hite veado chifre DEM Aquilo é um chifre de veado (Lit.: aquilo é chifre de veado)

2.3.1.2 Quantificadores

Quantificadores expressam conceitos relacionados com quantidade, como muitos, pouco, um, primeiro, etc. e podem ser de dois tipos principais: numéricos e não numéricos.

2.3.1.2.1 Quantificadores numéricos

Quantificadores numéricos incluem modificadores de quantidades, como cardinais e ordinais. Em Ofayé, encontramos apenas os quantificadores numéricos cardinais, apresentados de (342) a (345)

342. [hђha] um

343. [jakܦadЋe] dois

adiْe] trêsܦjak] .344

345. [jakܦadЋe kђtϯϯ]

jakܦadЋe kђtϯ -jϯ dois pedra-PL duas pedras

110

Segundo uma das colaboradoras da pesquisa, há apenas três números na língua: um,

a] muitos. Entretanto, quando solicitado, ela nosשdois e três. Depois disso, utiliza-se [ao forneceu uma forma emprestada do Português e nativizada para Ofayé, como o numeral cinco

[sikoϯ], em que [ϯ] é um alomorfe do morfema de plural /-jϯ/.

O sistema de quantificadores numéricos ordinais é ainda mais reduzido, constituindo- se de apenas dois itens lexicais.

ϯ] primeiroשhђjo] .346

ϯϯ] últimoשhђ] .347

O comportamento sintático dessas expressões, porém, é mais como modificador do que como determinante. Sua posição no sintagma nominal, diferente dos demonstrativos e dos numerais, que são determinantes, é após o nome, do mesmo modo que modificadores como adjetivos.

[ϯשЀђЀa hђjo] .348

eשЀђ-Ѐa hђjo 1POS-filho primeiro é meu primeiro filho (Lit. meu primeiro filho)

[ϯ⍧שЀђЀa hђ] .349

ϯϯשЀђ-Ѐa hђ 1POS-filho último é meu último filho (Lit. meu último filho)

111

2.3.1.2.2 Indefinidos

Quantificadores indefinidos, do tipo muito, muitos, existem, mas a noção é expressa, mais frequentemente, pelo morfema [-jϯ], marca de plural. Assim, tanto muito quanto muitos podem ser expressos pelo mesmo morfema, indiferentemente. No exemplo (350), a seguir, o quantificador é usado com função predicativa.

[aשaցri o] .350

[aשa-ցri o] 3POS galinha muito suas galinhas são muitas

Comparando (351) e (352), vemos que o morfema de Plural está usado com valor de indefinido.

351. [kђtϯ]

kђtϯ pedra pedra

352. [kђtϯjϯ]

kђtϯ-jϯ pedra-PL pedras, muitas pedras

112

A quantificação indefinida com significado pouco, poucos é expressa por [a-

iցen] pequeno, como em (353). Se expressa por [taha] grande, o valor da sentença éש negativo, como em (354).

[iknשa] .353

iցeש-a 3SUJ-pequeno é pouco

354. [hi taha aЀiЀawkiցe]

hi taha a-Ѐi-Ѐawkiցe NEG grande 1POS-ENF-dinheiro meu próprio dinheiro não é muito

Ainda é preciso ter em mente que, visto desse modo, esse pouco não seria necessariamente um quantificador, mas um modificador. Conforme Payne (1999, p. 261), “In many cases, quantifiers permit the same kinds of modification as adjectives, and might therefore be treated as a special subclass of adjectives”.

2.3.1.2.3 Nome contável versus nome de massa

Não parece haver distinção entre um nome contável e um nome de massa. Quando solicitada, a diferença não se fez notar. Numerais que indicam quantidade e morfema de plural apareceram tanto com [kђtϯ] pedra, que, por suas características, sobretudo dada a 113

okn] areia que, pelo motivoשnoção de limite, espera-se seja contável, quanto com [hђtЀeցe oposto, espera-se seja incontável, ou nome de massa.

355. [hђha kђtϯ]

hђha kђtϯ um pedra uma pedra

[oknשhђha hђtЀeցe] .356

oցiשhђha hђtЀeցe um areia uma areia

357. [jakܦadЋe kђtϯjϯ]

jakܦadЋe kђtϯ-jϯ dois pedra-PL duas pedras

[oցnْϯשadЋe hђtЀeցeܦjak] .358

oցi-jϯשadЋe hђtЀeցeܦjak dois areia-PL duas areias

Quantificadores indefinidos, como já vimos, também não foram usados de modo a fazer a distinção, de modo que não é possível dizer que a língua separa nomes contáveis de nomes de massa. Novamente, o morfema de plural parece indicar a noção de mais de um, em ambos os casos. 114

359. [kђtϯjϯ]

kђtϯ-jϯ pedra-PL pedras, muitas pedras

[oցnْϯשhђtЀeցe] .360

oցi-jϯשhђtЀeցe areia-PL areias, muitas areias

2.3.2 Modificadores

2.3.2.1 Nome em função de modificador

No sintagma, o núcleo nominal pode ser modificado por outro nome. A relação entre os dois nomes pode ser de posse ou genitiva.

2.3.2.1.1 Modificadores nominais em construção genitiva

A língua não faz distinção, formalmente, entre os dois tipos de construções: posse e construção genitiva. A diferença entre definição e genericidade também não é explicitada. A relação genitiva ou de posse se dá quando o termo dependente é animado, como mostram os exemplos (361) e (362). 115

[a hiցi hoeשotђ kanaw] .361

a hiցi howeשotђ kanaw 3SUJ tatu rabo comer ele comeu o rabo do tatu

[a hiցi hoe ЀђЀaשhi kanaw] .362

a hiցi howe Ѐђ-Ѐaשhi kanaw NEG tatu rabo comer 1POS-filho meu filho não come rabo de tatu

Em (361), a relação é específica, o falante refere-se a um rabo de um determinado tatu.

Em (362), a relação entre os dois nomes do sintagma é genérica, pois o falante está se referindo a rabo de tatu em geral. Não há, porém qualquer distinção formal entre os dois enunciados no que diz respeito à constituição do sintagma [kanawra Ѐiցi] o rabo do tatu ou rabo de tatu. A ordem, nos dois casos, é sempre a mesma: modificador-nome modificado.

i] galinhaשUma relação que se estabelece entre dois nomes, como a que ocorre entre [k

i] galinhaשiցete] ovo de galinha, é uma relação genitiva, com [ kשe [ցete] ovo, em [k funcionando como modificador. Para Payne (1999, p. 262), ainda, “Nouns themselves may act as noun-phrase premodifiers”. Desse modo, em (363), abaixo, o núcleo do sintagma seria

[kate] ovo e o modificador, outro nome [afܦikatђϯ] meu jacaré. Quer dizer que o núcleo do composto é o elemento mais à direita, o elemento da esquerda sendo o modificador, ou dependente.

Outros exemplos dessa relação são dados de (363) a (365), abaixo.

116

363. [afܦikatђϯ kate]

a-fikatђϯ ցate 1POS-jacaré ovo o ovo do meu jacaré

[ϯܦie fשhok] .364

in fϯשhok passarinho asa asa de passarinho

[ϯܦihtђ fשoց] .365

itђ fϯשoց borboleta asa asa de borboleta

Há uma diferença quando temos um nome modificado por outro nome que não é animado. No exemplo (366), o modificador transmite a idéia de matéria.

[oeשaܦotaj aЀa k] .366

oeשaܦotђ taj a-Ѐa k 3SUJ cair-VER 1POS-casa parede a parede da minha casa caiu

Esse modificador, entretanto, não é um adjetivo – adjetivos, como veremos na secção sobre essa classe de palavra, colocam-se à direita do nome. Já sabemos, através da literatura, que 117

Nouns themselves may act as noun-phrase premodifiers. For example, it can be argued that, in English noun phrases like a plastic factory, the item plastic is a noun rather than an adjective. The evidence for this is that plastic can itself be modified by an adjective such as corrugated to give a corrugated plastic factory (=a factory which makes corrugated plastic). Adjectives themselves do not permit modification by adjectives, so there is no alternative but to consider plastic as a noun. (PAYNE, 1999, p. 262).

Do mesmo modo, podemos dizer que casa, no exemplo dado, não pode ser um adjetivo, mas um nome que modifica o nome núcleo da relação. O argumento da possibilidade de receber um adjetivo também se mantém, desde que podemos ter um sintagma parede da minha casa velha.

2.3.2.1.2 Modificadores nominais em construção possessiva

A construção de posse em Ofayé também é idêntica à construção genitiva. Em (367), a relação é de posse, enquanto em (368) é genitiva. Não havendo qualquer distinção formal entre os dois tipos de construção, os sentidos diferentes são percebidos semanticamente ou em contextos pragmático-discursivos, não estando codificados na gramática.

367. [okܦie tЀoe]

okܦin ЀoБe joana casa a casa de Joana

[a Ѐiցiשkanaw] .368

a hiցiשkanaw tatu rabo o rabo do tatu

118

2.3.2.2 Adjetivo em função de modificador

A classe de modificadores como adjetivos parece, não por acaso, ambígua na língua.

Se, por um lado, esses modificadores parecem se comportar como verbos, por outro, eles ocorrem claramente como modificadores do nome. Enquanto como verbos, quer dizer, com função predicativa, como veremos adiante, o adjetivo recebe o actante de terceira pessoa, [a], com função atributiva, no sintagma nominal, essa marca é dispensada. Nos exemplos (369) e

(370), o adjetivo é usado atributivamente. Em (369), o nome [Ѐej] roupa possuível e, por isso, recebe prefixo de posse. Em (370), [ЀoБe] casa também é possuível, mas não inalienável. A ausência de um pronome gramatical dá ao adjetivo função puramente atributiva.

369. [ђЀej tђ]

ђ-Ѐej tђ 2POS.SG-roupa novo tua roupa nova

370. [ЀoБe tђ]

ЀoБe tђ casa novo casa nova

Já em (371), o pronome gramatical cria uma construção predicativa.

371. [aЀoБe tђ]

a ЀoБe tђ 3SUJ casa novo a casa dele é nova

119

2.3.3 A concordância no sintagma nominal

No sintagma nominal, apenas o nome, que se flexiona em número somente, como temos visto, recebe um morfema flexional, a categoria de número. Não há concordância entre o nome e os demais constituintes do sintagma nominal.

[iցeteשaց] .372

iցateשa-ցa 1POS-ovo.de.galinha meu ovo de galinha

[iցetejϯשaց] .373

iցate-jϯשa-ցa 1POS-ovo de galinha-PL meus ovos de galinha

[aha ցajaknשk] .374

aha ցajaցiשց roupa rasgada roupa rasgada

375. [aЀejϯ jow]

a-Ѐej-jϯ jow 3POS-roupa-PL velho suas roupas velhas

120

2.3.4 A ordem das palavras no sintagma nominal

No sintagma nominal, a ordem canônica é dependente-núcleo, seja qual for a relação estabelecida entre os membros do sintagma, desde que esses membros sejam todos nomes.

2.3.4.1 Ordem das palavras na relação de posse e em construção genitiva

Na relação de posse que se estabelece entre dois nomes no sintagma nominal, a ordem

é possuidor – objeto possuído.

376. [okܦie tЀoБe]

okܦin ЀoБe Joana casa casa de Joana

A relação genitiva entre dois nomes é igual à relação de posse, com o núcleo do sintagma à direita.

[oeשaܦЀa k] .377

oeשaܦЀa k casa parede parede da casa

121

2.3.4.2 A ordem Nome-Modificador adjetival

Com relação ao modificador adjetival, a ordem canônica parece ser nome-adjetivo.

Essa ordem, porém, pode ser invertida, realizando-se adjetivo-nome. Não foi possível determinar se existem fatores pragmático-discursivos que condicionam essa alternância.

378. [ЀoБe tђ]

ЀoБe tђ casa novo casa nova

[aha jowْϯשk] .379

aha jow-jϯשk roupa- velho-PL roupas velhas

2.4 Processos de formação de palavras

2.4.1 Composição

O fato de a língua apresentar poucos afixos derivacionais faz com que composição seja o principal mecanismo pelo qual o léxico é formado e aumentado. De acordo com

Anderson (1985, p. 40), processos de composição são processos de formação de palavras baseados na combinação de dois ou mais membros de classes lexicais (potencialmente) abertas. Um critério inicial para distinguir compostos de sintagmas nominais é que os 122

primeiros são o resultado de processos de formação de palavra, enquanto os últimos são resultados de operações sintáticas.

Para Ofayé, vamos considerar composição apenas os casos em que dois nomes justapostos, A e B, dão como resultado, em termos de significado, um novo nome, C. Nos casos apresentados em (380) e em (381), na próxima subsecção, por exemplo, o sentido do total composto não é mais o sentido de nenhuma das partes envolvidas na composição, mas um terceiro sentido.

O processo de composição na língua é bastante semelhante ao processo de formação de sintagmas, como temos visto acima, que são criados sintaticamente. De modo geral, compostos são formados pela justaposição de membros das classes lexicais mais importantes da língua, nome, verbo e adjetivo. Não foram encontrados compostos em que entram membros da classe advérbio. Em nossos dados, porém, os compostos resultantes são todos nomes, não tendo aparecido casos de verbos ou adjetivos compostos.

Formalmente, os compostos distinguem-se dos sintagmas genitivo e possessivo, basicamente, porque enquanto nesses a ordem dos constituintes é modificador-modificado, nos compostos a ordem é modificado-modificador.

2.4.1.1 Justaposição modificado-modificador

2.4.1.1.1 Nome + Nome

A estratégia básica de composição de nomes em Ofayé é justaposição nome mais nome, em que o primeiro elemento é o nome modificado e o segundo o modificador. Em

(380) o nome modificado é [ђЀow] homem e o modificador [fo] criança. O composto 123

resultante é rapaz, um indivíduo que não é nem homem nem criança, portanto um terceiro sentido. O processo é o mesmo em (381).

380. [ђЀowfo]

ђЀow+fo homem+criança rapaz

381. [ђhtefo]

ђhten+fo mulher+criança moça

Em (382) e (383), temos dois outros exemplos de composição que utilizam esse mecanismo.

382. [ђfܦitЀowe]

ђfܦin+Ѐowe água+nuvem nevoeiro, neblina (fumaça d’água)

[aЀiցiשiܦf] .383

a+hiցiשiܦf cateto+rabo porco/doméstico (cateto com rabo)

Para a falante Ofayé, a explicação é que cateto, ou porco-do-mato, não tem rabo.

Porco doméstico tem rabo; logo, porco doméstico é um porco com rabo. 124

2.4.1.1.2 Nome + Nome + Adjetivo

Nesse tipo de composição, um nome forma um composto com outro nome que, por sua vez, é adjetivado.

[oשejցetitoשtikak] .384

oשej+ցetitoשtika+k bicho-olho-redondo gato

2.4.1.1.3 Objeto-verbo

Outra forma de expressar noções nominais é através de uma construção paralela a uma construção verbal objeto mais verbo. Em (385), [a ցataЀow] pescoço pode ser interpretado como o objeto do verbo [hђցђni] amarrar, que é um verbo transitivo. O resultado dessa construção é um nome.

385. [a ցataЀow hђցђni]

a ցataЀow hђցђni 3POS-pescoço amarrar colar (Lit.: amarra pescoço)

125

2.4.2 Derivação

2.4.2.1 Avaliação

Um mecanismo bastante produtivo na formação de nomes em Ofayé baseia-se no uso dos sufixos que indicam avaliação ou grau, [-di] pequeno e [-ta] grande. A derivação por sufixo de grau tanto avalia positiva ou negativamente a coisa referida pelo nome, como serve para criar nomes de outros seres, especialmente espécies do reino animal. Os exemplos de

(386) a (388), a seguir, ilustram essas possibilidades.

386. [atђϯ] [atђ⍧tn] [atђhta]

a-tђn a-tђn-di a-tђn-ta 3POS-pena 3POS-pena-DIM 3POS-pena-AUM pena peninha pena grande

387. [ђfo] [ђfotn]

ђfo ђfo -di menino menino-DIM menino criança

388. [oi] [oitn] [oihta]

oi oi-di oi-ta cotia cotia-DIM cotia-AUM cotia rato paca

126

2.4.2.2 Nominalização

Um outro processo de derivação pode ser compreendido como uma nominalização, porque uma raiz verbal, sem o sufixo verbalizador, recebe um sufixo relativizador que forma um nome, podendo o todo assim formado receber prefixo possessivo.

389. [afܦinodЋi]

o-jiשa-fi+no 1POS-água+ficar-PART35 meu pote (Lit.: onde água fica)

390. [anodЋi]

o-jiשa-no 3POS-sentar/ficar-PART banco de alguém (Lit.: onde alguém senta)

o/ água fica, depois deשin+noܦPode-se ver que o que seria uma sentença /f nominalizada pelo morfema /-ji/ pode receber o prefixo possessivo, próprio dos nomes. A

.o-ji/ banco, que recebe prefixo possessivo de terceira pessoaשmesma coisa ocorre com /a-no

Essas formas nominalizadas com /-ji/, podem ainda fazer parte de um sintagma posposicional, como mostra o exemplo (391), que é um sintagma locativo.

391. [anodЋih te]

o-ji teשa-no 3POS-sentar/ficar-PART LOC em um lugar

35 Estamos tratando esse morfema /-ji/ como particípio porque ele agrega-se somente a verbos, criando uma forma nominal com o valor de lugar. 127

2.4.2.3 Verbalização

Como nomes podem ser derivados de verbos, verbos podem ser derivados de nomes, quantificadores e outras classes de palavra pela adjunção do morfema verbalizador /-ցe/.

392. [hetЀohђ] frio [hetЀoցe] congelar

aցe] aumentarשa] muito [aoשao] .393

394. [awϯ] buraco [awϯցe] cavar

Uma diferença entre adjetivo e verbo torna-se explícita quando temos um paradigma como o seguinte:

395. sujo (ATRIB) sujo (PRED) sujar (TRANS) a-ցeשa otђ a kawשa a- kawשoktЀi kaw onça sujo 3SUJ sujo 3SUJ 3OBJ sujo-VER onça suja é/está sujo ele o/a suja

128

CAPÍTULO 3: O VERBO E O SINTAGMA VERBAL

3.1 Introdução

Neste capítulo, estaremos descrevendo os fatos relacionados à classe verbo em Ofayé.

Do ponto de vista nocional, a definição tradicional de verbo é a palavra que expressa ação.

Isso, porém, não seria verdade porque nem todos os verbos expressam ações. De acordo com

Frawley (1992, p. 141), “(...) if the traditional definition of verb is reversed (…) then the notional definition of verb goes through. Not all verbs are actions, but when actions are expressed, they overwhelmingly tend to surface as verbs”. Independente da noção expressa, verbo pode ser definido como uma classe através de critérios sintáticos de identificação. Por exemplo, podemos definir como verbo alguma coisa que toma um sujeito ou um objeto na sua expressão. E pode também ser definido através de critérios morfológicos, verbo sendo, por esses critérios, uma palavra que muda, quer dizer, uma base lexical à qual se agregam morfemas que expressam noções particulares, como Tempo, Modo, Aspecto, Pessoa,

Número, Modalizadores, Evidenciais, etc.

Para Ofayé, consideramos verbos as palavras que respondem ao critério sintático de tomar um sujeito ou um objeto quando expressas no nível clausal. Mas vamos considerar também a sua natureza mutável em um intervalo de tempo, tanto se essa mudança é externa –

Tempo – ou interna – Aspecto.

129

3.2 Classes semânticas de verbos em Ofayé

Neste capítulo, em primeiro lugar, faremos uma classificação semântica primária dos tipos de verbos em Ofayé. Do ponto de vista semântico, os tipos de verbos que foram identificados em Ofayé serão descritos nas próximas secções.

3.2.1 Fenômenos temporais

A expressão dos eventos relacionados a fenômenos temporais é feita usando-se diferentes estratégias.

1) alguns, como chover, são tratados não como o evento em si, mas como entidade que participa do evento, como um nome, portanto, em posição sujeito, como mostra o exemplo

(396), abaixo, em que [ђfܦie] chuva é o nominal co-referenciado pelo pronome [o], usado para sujeitos inanimados ou não agentes.

396. [o hђ fܦie]

o hђ ђfie 3SUJ chegar chuva a chuva chegou

Essa sentença pode ser modificada por um advérbio ou partícula que expressa tempo, como mostra o exemplos (397), em que [wi] é o advérbio que codifica o significado Passado

Recente.

130

397. [wi o hђ fܦie]

wi o hђ ђfie PAS 3SUJ chegar chuva choveu há poucas horas (Lit.: a chuva veio)

Entretanto, é possível acrescentar na fala Ofayé um morfema verbal aspectual ao nome

[ђfܦie] chuva. Isso forma uma construção como a de verbos estativos, o que é indicado pela ocorrência do pronome gramatical [a] em vez de [o] ou [otђ]. A mesma coisa é demonstrada pela construção com [hetђk] vento, exemplo (399).

398. [a fܦiehna]

a ђfie-ta 3SUJ chuva-IMPF está chovendo

399. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF está ventando

Esses verbos podem receber, também, o sufixo /-ta/, que indica progressivo, ação em curso, ou simplesmente imperfeito. No exemplo (399), acima, o sujeito pronominal foi omitido em uma situação de fala fluida. 131

Do mesmo modo que [fܦie] chover, [hetaցena] ventar também pode ser expresso por meio de uma estrutura intransitiva ativa, como mostra a presença de [otђ], que flutua com

[o] sujeito gramatical de terceira pessoa, nos exemplos de (400) a (402).

400. [wi otђ hetђցe hђ]

wi otђ hetђցe hђ PAS 3SUJ vento chegar já ventou (não está ventando mais)

401. [otђ hetђցe hђ]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou (ainda está ventando)

402. [o hђ hetђk]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou (ainda está ventando)

Uma sentença maior, como (403), abaixo, mostra com mais clareza essa expressão de ventar com uma estrutura intransitiva ativa. O evento narrado nesta sentença é futuro, como

.[eשindica o auxiliar [aց

[e hђ hetђkשe a ցשhao] .403

e hђ hetђցeשe a-ցaשhao daqui a pouco 3SUJ AUX.FUT chegar vento daqui a pouco, o vento vai chegar 132

Expressões que significam está amanhecendo, está anoitecendo são simplesmente expressas por nomes, advérbios, adjetivos, em construções em que nenhuma propriedade de verbo pode ser identificada. Várias dessas expressões são mostradas de (404) a (407).

[aשhajkaw] .404

aשhajkaw escuro noite

[aשe hajkawשia] .405

aשe hajkawשia quase escuro está escurecendo

[iשwe] .406

iשwe claro manhã

[iשe weשia] .407

iשe weשia quase claro está amanhecendo

133

3.2.2 Processos involuntários

Um processo involuntário, como a água ferveu, pode ser expresso:

1) sem qualquer marca de sujeito pronominal, como em (408), o que parece indicar que não há um sujeito.

408. [fܦie fܦafܦaj]

fin fafaj água ferver a água ferveu

2) com uma marca de sujeito ativo, como em (409):

409. [wi otђ fܦie fܦafܦaj]

wi otђ fin fafaj PAS 3SUJ água ferveu alguém ferveu a água

O que indica que o verbo aqui é tratado como ativo é a marca de sujeito gramatical

[otђ].

3) com um sujeito estativo, como em (410), como mostra a marca de sujeito gramatical [a] e a posição do nome [fܦie], água, depois do verbo.

[ieܦaj fܦafܦe a fשia] .410

e a fafaj finשia quase 3SUJ ferver água a água está quase fervendo

134

Há claramente uma certa indecisão na marcação do sujeito desses verbos, ora estativo, ora ativo, ora sem qualquer marca. Isso faz pensar em uma língua que teria sido de uma forma definida, ativa/estativa e, hoje, dada a situação sociolinguística, onde não pode mais ser considerada uma língua funcional (embora se deva explicar o seu uso pelos falantes que restam com muita segurança), está meio indecisa na marcação. Talvez essa indecisão na expressão de um tipo de evento tenha a ver com a relação aspecto/tempo – estrutura ativa/estativa. Há vários indícios que permitem levantar essa hipótese, embora não seja ainda possível tentar a sua investigação no âmbito deste trabalho.

Processos involuntários, como [awϯցe] quebrar, se o sujeito é inanimado, é expresso com a marca de sujeito inanimado [o].

[oשi ցetitoשo wϯj a heЀeց] .411

oשi ցetitoשo wϯj a-heЀeց 3SUJ quebrar 1POS-porta metade a minha janela está quebrada (Lit.: Quebrou-se, minha janela)

Ou ainda sem qualquer sujeito pronominal, como se a sentença fosse atributiva.

[o wϯjשi ցetitoשa heЀeց] .412

o wϯjשi ցetitoשa heЀeց 1POS porta metade quebrar a minha janela está quebrada

413. [afܦinwiցe wϯj]

a-fܦinwiցe wϯj 1POS-pote quebrar o pote quebrou 135

[aשe Ѐaܦjek] .414

aשe Ѐaܦjek panela secar a panela secou

3.2.3 Funções corporais

Os verbos de funções corporais, como [tajցetaցe] tossir, apresentam características específicas.

1) para a primeira pessoa do singular, há um pronome-sujeito especial, [Ѐђ].

415. [Ѐђ tajցetak]

Ѐђ tajցetage 1SUJ tossir eu tusso/tossi

416. [Ѐђ tajցetaցha]

Ѐђ tajցetaցe-ta 1SUJ tossir-IMPF eu estou tossindo

2) na terceira pessoa do singular, a marca de sujeito gramatical que acompanha o verbo e correfere, opcionalmente, a um nominal, é /a/, de verbos estativos, e nunca /otђ/, de verbos ativos. 136

417. [a tajցetaցha]

a tajցetaցe-na 3SUJ tossir-IMPF ele está tossindo

3.2.4 Movimento voluntário

Verbos de movimento voluntário são verbos de ação intransitivos. Em Ofayé, eles apresentam uma estrutura sintática ativa, como indica o uso de pronomes sujeito da classe ativa.

418. [ta Ѐa*Ѐej]

ta Ѐa*Ѐe-ցe 1SUJ pular-VER eu pulo/pulei

419. [otђ Ѐa*Ѐej]

otђ Ѐa*Ѐe-ցe 3SUJ pular-VER ele pula /pulou

420. [otђ taj fܦiketa]

otђ ta-ցe fiketa 3SUJ cair-VER marolo o marolo cai/caiu

137

3.2.5 Posição

Somente três verbos de posição foram encontrados em Ofayé. São os seguintes:

[ano⍧ցܦe] sentar, levantar; [hϯhϯ] estar em pé; [aЀi⍧ցe] deitar.

Observemos que os três verbos comportam-se diferentemente desde a forma usada como de citação, o nome do verbo. Enquanto [ano⍧ցܦe] sentar, levantar e [aЀi⍧ցe] deitar seguem um padrão regular, [hϯhϯ] estar em pé apresenta uma forma diferente de citação.

3.2.5.1 [ano⍧ցܦe] sentar, levantar

O verbo [ano⍧ցܦe] sentar, levantar apresenta uma estrutura sintática estativa, com a série de pronomes gramaticais [Ѐђ], [ђ] e [a] sendo usada como sujeito, o que mostramos com os exemplos de (421) a (423).

[oשЀђ no] .421

oשЀђ no 1SUJ sentar eu estou sentado

[oשђ no] .422

oשђ no 2SUJ sentar tu estás sentado

138

423. [a noro]

oשa no 3SUJ sentar ele está sentado

Para as pessoas do plural, o sujeito pronominal é expresso por um pronome pessoal da série livre.

Se o verbo [ano⍧ցܦe] sentar, levantar for usado como verbo de movimento, por exemplo, no futuro, os pronomes gramaticais serão os da série ativa. Nessa situação, a estrutura é a de um verbo intransitivo ativo. Exemplos são apresentados de (424) a (426).

[e no⍧שha ց] .424

oשe noשha ցa 3SUJ AUX.FUT. sentar eu vou me sentar36

[e no⍧שhe ց] .425

oשe noשte ђ ցa 2SUJ 2SUJ AUX.FUT sentar tu vais te sentar

[e no⍧שotђ a ց] .426

oשe noשotђ ha  ցa 3SUJ 3SUJ AUX.FUT sentar ele vai se sentar

36 No tempo futuro, a primeira pessoa do singular é comumente elidida. O auxiliar de futuro vem, então, seguido apenas do pronome de terceira pessoa que deve sempre acompanhar esse verbo auxiliar se nenhuma outra pessoa gramatical é especificada. 139

Uma observação interessante de se fazer neste ponto é que o mesmo verbo corresponde aos significados sentar e levantar em Português. A explicação para isso vem da falante Ofayé, que resume: “(...) quem está em pé senta; quem está deitado também senta: ninguém se levanta de vez. Depois que acaba de levantar, o sujeito está em pé”. Que é outro verbo.

3.2.5.2 [hϯhϯ] estar em pé

O verbo comporta-se sintaticamente como estativo. Os pronomes-sujeito que o acompanham são os mesmos que os pronomes-sujeito que entram na estrutura de predicados estativos, como adjetivais e processos corporais involuntários. (Exemplos de (427) a (429)).

427. [Ѐђ hϯ⍧]

Ѐђ hϯhϯ 1SUJ estar em pé eu estou em pé

428. [ђ hϯ⍧]

ђ hϯhϯ 2SUJ estar em pé tu estás em pé

429. [a hϯ⍧]

a hϯhϯ 3SUJ estar em pé ele está em pé 140

No plural, usam-se os pronomes livres.

3.2.5.3 [aЀi⍧ցe] deitar

O verbo [aЀi⍧ցe] deitar é, primariamente, estativo, como mostra o uso dos pronomes- sujeito nos exemplos de (430) a (432).

[eשЀђ Ѐi] .430

eשЀђ Ѐi 1SUJ deitar eu me deito

[eשђ Ѐi] .431

eשђ Ѐi 2SUJ deitar tu te deitas

[eשa Ѐi] .432

eשa Ѐi 3SUJ deitar ele se deita

Nas pessoas do plural, também, os pronomes livres são utilizados. Vemos essa utilização dos pronomes livres nos exemplos de (433) a (435).

141

[eשaցa Ѐi] .433

eשaցa Ѐi nós deitar nós nos deitamos

[eשeցe Ѐi] .434

eשeցe Ѐi vós deitar vós vos deitais

[eשit Ѐi] .435

eשida Ѐi eles deitar eles se deitam

Como acontece com o verbo sentar, se utilizado como verbo de movimento, recebe os pronomes gramaticais ativos na posição de sujeito.

3.2.6 Ações

Ações verdadeiras são expressas – quando intransitivas – com um único argumento na estrutura sintática. Esse argumento é tratado como agente e recebe como sujeito gramatical, nas três pessoas, os pronomes [ta], [te] e [otђ], que são próprios de verbos ativos.

142

436. [ta Ѐe]

ta Ѐe 1SUJ dançar eu danço/dancei

437. [te Ѐeցe]

te Ѐe-ցe 2SUJ dançar-VER tu danças/dançaste

438. [otђ Ѐe]

otђ Ѐe 3SUJ dançar ele dança/dançou

[e Ѐeשotђ a ցa] .439

e Ѐeשotђ a ցa 3SUJ AUX.FUT dançar ele vai dançar

3.2.7 Ações-processos

Verbos que descrevem ou narram uma ação-processo recebem uma marca de sujeito agente e uma marca de objeto paciente. O objeto pode ser pronominal, quando vemos que forma sentença autônoma com o verbo e demais participantes representados 143

pronominalmente. Na maior parte do tempo, esse complemento é nominal, quando na terceira pessoa, e sua posição é a mais próxima ao verbo. Se, ao mesmo tempo que expresso pronominalmente, ele for também explicitado por um nominal, a ordem se reflete como em um espelho depois do verbo. Essa configuração não é, porém, canônica. A ordem mais comum é aquela em que o objeto, expresso por pronomes ou por nominais, vem antes do verbo.

440. [ta hђh tϯ]

ta hђ tϯ 1SUJ árvore cortar eu cortei a árvore

441. [otђ hђh tϯ]

otђ hђ tϯ 3SUJ árvore cortar ele cortou a árvore

442. [ђhtee otђ hђh tϯ]

ђhten otђ hђ tϯ mulher 3SUJ árvore cortar a mulher cortou a árvore

Deve-se notar que a marca de sujeito ativo [otђ] pode vir antes ou depois do nome ao qual correferencia. Na secção 7.4, sobre ordem dos constituintes na sentença, trataremos mais detalhadamente dessa questão.

144

443. [ta a ki]

ta a ki 1SUJ 3OBJ ver eu o/a vi

3.2.8 Cognição

Verbos de cognição, como [hejwϯ] lembrar/saber, apresentam uma estrutura sintática na qual o sujeito, um Experienciador, é tratado como Dativo.

444. [a he hejwϯ]

a he hejwϯ 1OBJ DAT saber eu sei/sabia/lembro/lembrei

445. [e he hejwϯ]

e he hejwϯ 2OBJ DAT saber você sabe/sabia/lembra/lembrou

3.2.9 Percepção

Verbos de percepção, como [aցiցe] ver, [afܦaցe] escutar, [naցaЀi] sentir (gosto, tato, cheiro), são tratados como verbos de ação: trazem sujeito pronominal ativo, como os verbos 145

de ação. Podem ser tanto intransitivos (446) e (447), como transitivos (448) a (450), sintaticamente. A mudança de valência nesses verbos é feita simplesmente por acrescentar-se um actante paciente à sentença. (Ver secção 7.5, sobre operações de mudança de valência).

446. [ta ki]

ta ցi 1SUJ ver eu vejo

447. [ta fܦaj]

ta fa-ge 1SUJ escutar-VER eu escuto

448. [ta a ki]

ta a ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo

449. [ta naցaЀi ajteցe]

ta naցaЀi ajteցi 1SUJ cheirar comida eu cheiro comida (Eu sinto cheiro de comida)

146

450. [ta aЀa ցie]

ta a-Ѐa ցi-ցe 1SUJ 3POS-filho ver-VER eu vi (conheço) o filho dele

3.2.10 Emoção

Os verbos de emoção, assim como os de cognição, vistos acima, secção 3.2.8, apresentam propriedades especiais. O sujeito dessa classe de verbos é marcado como dativo e o objeto pode ser omitido. Note-se, porém, que o próprio sujeito, por assim dizer, não tem marca de sujeito de verbos ativos /ta/ nem de verbos estativos /Ѐђ/, mas a marca de objeto. No exemplo (451), essa marca é [a], objeto de primeira pessoa; em (452), [ђ], segunda pessoa e, em (453), um pronome livre é utilizado na posição de sujeito [aցa].

451. [a he Ѐeti Ѐђցije]

a he Ѐeti Ѐђ-ցije 1OBJ DAT gostar 1POS-marido eu gosto do meu marido

452. [e he Ѐeti aЀa]

e he Ѐeti a-Ѐa 2OBJ DAT gostar 1POS-filho tu gostas da filha dele (Lit.: a ti gosta, a filha dele)

147

453. [aցa he Ѐeti akajojϯ]

aցa he Ѐeti aka-ցajo-jϯ nós DAT gostar 1PL.POS-prole-PL nós gostamos dos nossos filhos

Os constituintes dessa construção são: um pronome livre marcado como Dativo

[aցa he] nós; o Verbo [Ѐeti] gostar; e um Tema [aka jojϯ] nossos filhos. O pronome marcado como Dativo é, semanticamente, Experienciador, e não é tratado como Agente, nem como

Paciente, mas como um terceiro papel semântico, o de Recipiente, o que é evidenciado pela marcação sintática de Dativo. O Tema, por sua vez, parece ser tratado como Objeto, desde que o Paciente de uma sentença com verbos transitivos primários, que, prototipicamente, são objetos sintáticos, são colocados em Ofayé, antes ou depois do verbo, se expressos nominalmente.

Ainda verbos de emoção, mas diferentes de gostar, como sentir raiva, ter medo, estar feliz, etc., são tratados como estativos, no sentido de que recebem um sujeito de primeira pessoa /Ѐђ/, de segunda pessoa /e/ e de terceira pessoa /a/ – estativo. Entretanto, podemos ouvir também esses verbos em construções como a de gostar, o que parece indicar que a língua passa por uma fase de transição, onde apenas o verbo de emoção mais prototípico, gostar, mantém a estrutura sintática original. Veja-se que, quando um verbo de emoção entra em uma estrutura sintática como estativos de modo geral, o falante tende a interpretá-los como predicativos.

[Ѐђ ցaniْe] .454

Ѐђ ցanije 1SUJ ser mau eu estou bravo/sou mau/estou com raiva 148

455. [Ѐђ jowϯ]

Ѐђ jowϯ 1SUJ ter medo eu estou com medo/estou medroso

456. [Ѐђ ifoho]

Ѐђ ifoho 1SUJ feliz eu sou feliz/estou feliz

[aْowϯ ђfo] .457

a jowϯ ђfo 3SUJ ter medo menino o menino está com medo/é medroso

3.2.11 Enunciados

Verbos de enunciados podem ser tratados como ativos. O sujeito de primeira pessoa é

/ta/ e o de terceira /otђ/. Entretanto, há modificações nessa ordem que ainda não podem ser explicadas. Eles podem ser sintaticamente intransitivo (458); transitivo (459); bitransitivo

(460).

458. [ta kђjaj]

ta kђja-ցe 1SUJ falar-VER eu falo 149

459. [ta kђjak ђfajϯ Ѐokojakn]

ta kђja-ge ђfajϯ Ѐokojakn a 1SUJ falar-VER índio.Ofayé língua eu/nós falo/falamos a língua dos índios Ofayé

460. [ta he kђjaj]

ta ø he kђja-ցe 1SUJ 3OBJ DAT falar-VER eu converso com ele

Em (460), diríamos que um objeto indireto seria [ø] porque o sujeito é claramente /ta/, primeira pessoa. Como a marca de Dativo /he/ refere ao Destinatário da fala, essa marca deve estar sobre um objeto [ø]. O exemplo (461), abaixo, em que esse argumento omitido em

(460), é um nominal, [Ѐђhtee] minha mãe, confirma que o lugar dele é exatamente antes da marca de Dativo.

461. [ta Ѐђhtee he kђjaj]

ta Ѐђ-ђhten he kђja-ցe 1SUJ 1POS mãe DAT falar-VER eu converso com minha mãe

Observe-se, nesses casos, como conversar é diferente de gostar. Para esse último verbo, o sujeito é um dativo. Já no caso de conversar, como em dar, o dativo é um actante marcado e não ocupa a posição de sujeito, que é preenchida por um agente. 150

iցe] cantar têm comportamentoשOs verbos [waneցe] contar; [hoցeցe] gritar; [aց semelhante, mas são apenas intransitivos.

462. [ta hoցe⍧]

ta hoցe-ցe 1SUJ gritar-VER nós gritamos

[ieשotђ ђfo ց] .463

i-ցeשotђ ђfo ց 3SUJ menino cantar-VER o menino canta/cantou

464. [wa he wane]

wa he wane 1OBJ DAT contar ele me contou

465. [ta e he wane]

ta e he wane 1SUJ 2OBJ DAT contar eu contei a você

Há casos em que o verbo intransitivo assume uma configuração transitiva. Veja-se a diferença entre (466). eu dormi e (467). eu fiz o menino dormir. Ou entre (468) e (469).

151

466. [ta oe]

ta o-ցe 1SUJ dormir/VER eu durmo/dormi

467. [ta ђfo johtђ]

ta ђfo o-ta 1SUJ menino dormir-IMPF eu fiz o menino dormir

[eܦoցשta Ѐe] .468

o-ցeשta Ѐ e 1SUJ alimentar-VER eu tomei uma refeição (almoçar, jantar, etc.)

[eܦoցשta ђfo Ѐe] .469

o-geשta ђfo Ѐe 1SUJ menino alimentar-VER eu alimentei o menino

Em (466) e (467), temos um sujeito ativo em uma estrutura intransitiva. Em (468) e

(469), temos o mesmo sujeito, agora com um objeto na posição indicada. O que há é apenas um aumento de valência e o verbo muda de intransitivo para transitivo. Nenhuma modificação

é feita na morfologia, mas apenas na sintaxe.

152

3.2.12 Predicados adjetivos

Os predicados adjetivos, que têm a fórmula N é ADJ, são construídos apenas por justaposição: N ADJ, como mostram os exemplos (470) e (471).

470. [kae hђkoho]37

kae hђkoho João alto João é alto

471. [a ЀoБe katϯ]

a-ЀoБe ցatϯ 1POS-casa branco minha casa é branca

Quando a parte do nome é representada por um pronome, para a primeira pessoa usa- se [Ѐђ], para a segunda pessoa, [e] e para a terceira pessoa, [a], igual aos verbos de funções corporais involuntárias, que são tratados como estativos. Vejamos os exemplos (472) a (474).

[ahnaש Ѐђ] .472

a-taש Ѐђ 1SUJ alto-IMPF eu sou alto

37 Comprido, alto, usado apenas para rapazes que estão crescendo. 153

473. [a ցatϯ]

a ցatϯ 3SUJ branco ele é branco

474. [Ѐђhi katϯ]

Ѐђ-hi ցatϯ 1POS-perna branco minha perna é branca

Esses predicados podem receber morfema de aspecto, o que dá à propriedade predicada o sentido de continuidade, o evento estendendo-se por uma certa duração. A distinção estabelecida é mais ou menos a que existe em Português entre os usos de ser e estar.

Comparemos os exemplos abaixo em que (475) pode ser traduzido por ser e (476) por estar.

475. [Ѐђ jow]

Ѐђ jow 1SUJ velho eu sou velho

476. [Ѐђ Ѐowhna]

Ѐђ Ѐow-ta 1SUJ vermelho-IMPF eu estou vermelho

154

3.2.13 Predicados existenciais

A expressão de existência é feita por verbos que indicam o modo como o ser existe: anda, sobe, etc., mais um complemento locativo. A construção existencial, porém, diferente de uma ação transitiva ou intransitiva, classificadas como ações-processos e ações, respectivamente, parecem ser impessoais. Mesmo o verbo sendo um de movimento voluntário, como em (477), abaixo, que, como temos visto, pede um sujeito ativo, na construção existencial, o pronome que acompanha esse verbo é um da classe dos verbos inativos. A ordem dos constituintes também é diferente do que ocorre com os verbos de ação e ação-processo: o sintagma verbal parece ser constituído do pronome mais o verbo, desde que o que seria o sujeito vai ocorrer depois do verbo, seguido do complemento locativo.

477. [ha fܦa ewϯkn tawϯ he]

ha ђfa ewϯցe tawϯ he 3SUJ andar arara mato LOC há arara no mato (Lit.: anda arara no mato)

Entretanto, nos exemplos (478) e (479), abaixo, temos construções existenciais cujos sujeitos pronominais são [otђ], que, como vimos, é usado com verbos da classe sintaticamente ativa.

[ϯ heܦa a fשotђ wi kђte] .478

a a-fe heשotђ wi kђte 3SUJ subir aranha 3POS-braço LOC há uma aranha no braço dele (Lit.: uma aranha subiu no braço dele)

155

479. [wi otђ fܦahna oktЀi tawϯ he]

wi otђ fa-na oketЀi tawe he PAS 3SUJ andar-IMPF onça mato LOC havia onça no mato (Lit.: onça andava nesse mato)

3.2.14 Predicados locativos

Os predicados locativos são, em um certo sentido, os mesmos que existenciais: alguma coisa existe/está em algum lugar. Observemos os exemplos (480) e (481).

480. [a wi kђtera Ѐђ fܦϯ he]

a wi kђtera Ѐђ-fϯ he 3SUJ subir aranha 1POS-braço LOC a aranha subiu no meu braço

481. [tawϯh te a fܦa oktЀi]

tawϯ te a fa oktЀi mato LOC 3SUJ andar onça a onça está no mato (Lit.: a onça anda no mato)

482. [wi otђ fܦahna oktЀi tawϯ he]

wi otђ fa-ta oketЀi tawϯ he PAS.REC 3SUJ andar-IMPF onça mato LOC a onça estava no mato (Lit.: a onça andava no mato)

156

3.2.15 Predicados possessivos

Para indicar posse, a língua utiliza, do mesmo modo que com existenciais e locativos, uma construção com verbos que informam sobre o processo de obtenção do objeto possuído, como mostram os enunciados de (483) a (485).

483. [otђ Ѐeheki ewϯցe Ѐa]

otђ Ѐeheki ewϯցe Ѐa 3SUJ achar arara filho ele tem um filhote de arara (Lit.: ele achou um filhote de arara)

[a ewϯցenשkoj otђ Ѐehe] .484

a ewϯցe-diשkoj otђ Ѐehe koj 3SUJ pegar arara-DIM José tem um filhote de arara (Lit.: José pegou uma ararinha)

[aЀiցiשiܦta hђhi f] .485

aЀiցiשta hђhi fi 1SUJ comprar porco eu tenho um porco (Lit.: eu comprei um porco)

Diferente de construções existenciais e locativas, a construção que indica posse não pede um sintagma posposicional.

Outros modos de expressar posse não são construções verbais e, por isso, são tratados no capítulo de morfologia nominal. Um modo de expressar posse é como uma construção predicativa, como mostram os exemplos de (486) a (488). 157

[aשi oשaց] .486

aשi oשa-ցa 3POS-galinha muita ele tinha muita galinha (Lit.: as galinhas dele eram muitas)

[atikaْϯ] .487

a-tika-jϯ 3POS-bicho-PL ele tinha bichos (Lit.: bichos dele)

488. [aЀiewϯցen]

a-Ѐi-ewϯցe-di 1POS-ENF-arara-DIM a ararinha é minha (Lit.: minha própria ararinha)

3.3 Resumo

De modo geral, todos esses verbos em Ofayé apresentam quatro estruturas, de acordo com o tipo de pronome que preenche gramaticalmente a posição de primeiro actante – considerando primeiro actante o que, de modo geral, seria o sujeito. Mais adiante, veremos que não podemos postular para os verbos da estrutura 3 uma função gramatical sujeito38, sem maiores consequências. A seguir, damos quadros resumitivos dos tipos de verbos aqui descritos, com exemplos. Deixamos fora desses quadros a expressão de eventos de temporais, porque vimos que eles podem ser expressos através de diferentes estruturas sintáticas, bem

38 O mesmo talvez possa ser dito em relação à estrutura 2. 158

como os verbos que chamamos de posição, que, de acordo com o sentido em que são utilizados (posição ou movimento), escolhem uma ou outra das duas estruturas básicas.

CLASSE SUJEITO OBJETO VERBO

SEMÂNTICA ação-processo ta hђ tϯ eu corto/cortei a árvore te hђ tϯ tu cortas/cortastes a árvore otђ hђ tϯ ele corta/cortou a árvore ação - ta kaj eu caço/cacei te kaj tu caças/caçaste otђ kaj ele caça/caçou mov. voluntário - ta ja eu corro/corri te ja tu corres/correstes otђ ja ele corre/correu percepção - ta fܦaj eu ouço/ouvi te fܦaj tu ouves/ouvistes otђ fܦaj ele ouve/ouviu enunciado - ta kђjaj eu falo/falei te kђjaj tu falas/falastes otђ kђjaj ele fala/falou Quadro 13: Estrutura 1: verbos ativos (transitivos e intransitivos) 159

CLASSE SEMÂNTICA SUJEITO VERBO

funções corporais Ѐђ tajցetaj eu tusso/tossi e tajցetaj tu tosses/tossistes a tajցetaj ele tosse/tosssiu aka tajցetaj nós tossimos eke tajցetaj vocês tossem/tossiram ida tajցetaj eles tossem/tossiram

ej eu sou/fui bomשpredicação Ѐђ ց ej tu és/foste bomשe ց ej ele é/foi bomשa ց ej nós somos/fomos bonsשa k ej vocês são/foram bonsשe k ej eles são foram bonsשida k Quadro 14: Estrutura 2: verbos inativos (intransitivos)

160

CLASSE SUJ VERBO OBJ

SEMÂNTICA emoção a he Ѐeti Ѐђցije eu gosto/gostei do meu marido e he Ѐeti ђցije tu gostas/gostaste do teu marido hђ he Ѐeti teցije ela gosta/gostou do seu marido aka he Ѐeti Ѐђցijeْϯ nós gostamos do nosso marido eke he Ѐeti ђցijeْϯ vocês gostam dos maridos de vocês

ita he Ѐeti ђցijeْϯ elas gostam dos seus maridos cognição a he hejwϯ eu sei/soube e he hejwϯ tu sabes/soubestes hђ he hejwϯ ele sabe/soube aka he hejwϯ nós sabemos/sabíamos eke he hejwϯ vós sabeis/sabíeis

ita he hejwϯ eles sabem/sabiam

Quadro 15: Estrutura 3: verbos de emoção e cognição

CLASSE SUJ OBJ1 VERBO OBJ2

SEMÂNTICA iցeteשdar ta e he no k eu dei o ovo a você

iցete você me deu o ovoשte wa he no k iցete ele me deu o ovoשø wa he no k conversar ta ø he kђjak - eu converso/conversei com ele Quadro 16: Estrutura 4: verbos ativos (bitransitivos)

161

CLASSE SUJ VERBO OBJ COMPL

SEMÂNTICA existência há uma aranha no braço dele ϯ heܦa a fשe wi kђte locação a onça está no mato e fܦa oktЀi tawϯ te Posse eu tenho um filhote de arara - aj ewϯցe Ѐaשta Ѐehe Quadro 17: Outros casos

Assim, os verbos em Ofayé podem ser classificados em três tipos sintáticos, que correspondem a distinções semânticas específicas da língua. O Quadro 18, abaixo, apresenta os três tipos sintáticos, com os dois primeiros tipos já definidos sintaticamente de acordo com uma literatura estabelecida e o último apenas identificado como se referindo semanticamente a emoção/cognição e sem uma classificação sintática específica. A classificação que fazemos obedece ao tipo de pronome que cada classe de verbo requer para uma posição que, a princípio, pode ser considerada sujeito gramatical.

NÚM PES TIPOS DE VERBOS ATIVOS ESTATIVOS EMOÇÃO/COGNIÇÃO INTR TRANS BITR 1 ta ta ta Ѐђ wa he Singular 2 te te te e e he

3 otђ otђ otђ a he

1 ta ta ta aka wa he Plural 2 te te te eke e he

3 otђ otђ otђ ida ida he

Quadro 18: Tipos de verbos e pronomes-sujeito

162

3.4 Categorias verbais

A raiz verbal, do ponto de vista morfológico, mantém-se basicamente inalterada, salvo pelos morfemas de aspecto que se realizam como sufixos e uma marca de concordância com o sujeito, que é opcional. Poucas vezes, o falante lembra-se de marcar essa concordância, embora ela devesse ser necessária, pois, quando representada por índices pronominais, não é encontrada a distinção singular/plural para esses elementos na língua, principalmente no caso dos verbos ativos.

Como a maior parte das categorias que, em línguas flexionais, são expressas por morfologia presa, em Ofayé uma noção como tempo é expressa por advérbios e, em alguns casos, por verbos que se especializaram como auxiliares.

As categorias que afetam o verbo, morfológica/flexionalmente ou sintaticamente, considerando-se também os pronomes gramaticais/correferenciais, que não podem faltar na sentença gramatical, são apresentadas no Quadro 19, abaixo. 163

SENTENÇA GRAMATICAL TEMPO SUJEITO RECIP OBJETO AUX VERBO ASPECTO NÚMERO Raiz VER ø ta a kaj -ցe +ø +ø eu o mato/matei

wi ta a kaj -ցe +ø +ø eu o matei

e kaj -ցe eu oשta a a ցa matarei

ta a kaj -ցe +ø -jϯ nós o matamos otђ wa ђfܦa ka -ցe -na ele está me matando

Ѐђ tajցeta _ ø eu tusso

a tajցeta _ ø ele tosse

ø a he a no -ցe ø ele o dá a você

a he Ѐeti _ ø eu gosto

ej _ ø ele é bomשa ց Quadro 19: Estrutura gramatical da sentença

164

3.4.1 Tempo

Assumimos que a distinção presente/passado é completamente ausente no lexema verbal, propriamente dito. A mesma forma – tanto no nível da palavra verbal, como no nível da sentença – pode expressar tanto passado quanto presente, conforme exemplo (489). O futuro, entretanto, é expresso no nível da sentença, obrigatoriamente, o que nos leva a imaginar que há uma distinção, mesmo que não-marcada morfologicamente, em termos de futuro/não-futuro. O mecanismo utilizado é um auxiliar que parece ser a gramaticalização – especialização de um item lexical para expressar uma função gramatical, como é a expressão

.(e] ir, como mostra o exemplo (490שde tempo – de um verbo de movimento [a ցa

489. [otђ te hi fܦohie]

otђ te hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar ele coçou/coça a perna (dele mesmo)

[ohieܦe te hi fשotђ a ց] .490

e te hi fohi-ցeשotђ a ցa 3SUJ 3SUJ AUX.FUT POS.REFL. perna coçar ele coçará a perna (dele mesmo)

Um futuro imediato é também expresso no nível da sentença, utilizando-se o

.e/ quaseשadvérbio39 /ia

e], o que nos permite dizer que o primeiro é um advérbio e o segundo umשe] e [a ցaשUma distinção entre [ia 39 verbo auxiliar, é que o verbo auxiliar vem acompanhado de um índice pronominal [a], enquanto o advérbio, não. Outra característica do advérbio, que o distingue do verbo auxiliar, é que ele vem sempre na periferia da 165

[e otђ a hi fohieשia] .491

e otђ a-hi fohi-ցeשia quase 3SUJ 3POS-perna coçar ele vai coçar a perna (está quase coçando)

Embora tenhamos dito que a língua não faz distinção passado/presente, devemos notar que essa noção, embora não obrigatória, pode ser expressa por um advérbio, conforme exemplo (492). O tempo não é expresso morfologicamente para a distinção passado/presente.

Quando em uma sentença não ocorre um advérbio temporal, o que temos, em termos semânticos, é uma espécie de aoristo. A mesma coisa acontece quando o verbo é marcado aspectualmente pelo morfema de Imperfectivo, sem expressão de tempo na sentença. Dada essa observação, na secção 3.4.4.3, trataremos mais detidamente da inter-relação entre a expressão de tempo e aspecto.

492. [wi ta fohi Ѐђ hi]

wi ta fohi-ցe Ѐђ-hi PAS 1SUJ coçar-VER 1POS perna eu já cocei a minha perna

O que o falante quer dizer, na verdade, é que coçou a perna um pouco antes, agora não a está coçando mais. Visto desse ângulo, o que temos parece ser uma categoria aspectual, um perfectivo, por excelência. Contudo, quando comparamos essa expressão de evento passado com outra em que se utiliza /wiha/ há muito tempo atrás, antigamente, ou simplesmente antes, querendo significar outrora, percebe-se que há uma oposição entre os dois marcadores, o que parece apontar para um passado recente /wi/ e um passado mais distante /wiha/.

cláusula, enquanto o verbo auxiliar ocupa uma posição mais central, embora essa posição seja móvel em relação ao verbo principal. 166

Encontramos /wi/ para passados até hoje. E encontramos /wiha/ sendo usado para expressar eventos passados de ontem para trás. Essa distinção é ilustrada pela diferença entre (493) e

(494).

493. [koj akwitajϯ]

koj aka witajϯ koj 1PL.OBJ cuidar José cuida de nós

494. [tђe wiha akwitaje]

tђe wiha aka witaje Ataíde antes 1PL.OBJ cuidar Ataíde antes cuidava de nós

3.4.2 Argumentos pronominais

O que estamos chamando de argumentos pronominais em Ofayé são elementos pronominais que ocupam as posições de sujeito e objeto, principalmente, na estrutura gramatical da sentença. Essas formas não são morfologicamente livres, devendo sempre se ligar a outra palavra. Entretanto, do mesmo modo que os pronomes livres, elas podem substituir sintagmas nominais plenos em uma sentença. Um problema com a classificação desses elementos em Ofayé é que eles não apenas substituem o sintagma nominal na estrutura sintática, mas ainda correferenciam a ele. Esse é o caso, principalmente, do elemento pronominal que funciona como sujeito. 167

Vejamos os exemplos a seguir. Em (495), temos uma sentença gramatical com apenas o elemento pronominal expresso, enquanto que em (496) o sujeito é expresso por um sintagma nominal e pronome é mantido.

495. [otђ hie]

otђ hi-ցe 3SUJ morrer-VER ele morreu

[oשotђ hie kaЀo] .496

oשotђ hi-ցe kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

Nos dois casos, a sentença é gramatical. Não podemos, porém, dizer que [otђ] seja apenas um clítico anafórico, do tipo que correferencia ao sujeito, pois ele também substitui o sujeito.

Neste trabalho, vamos nos referir a esses elementos como pronomes gramaticais porque assumimos a proposta de Andrews (1985, p. 75) de que “(...) the primary function of cross-referencing markers is as substitutes for (or perhaps as forms of) pronouns”. Diferente dos pronomes livres, esses elementos não podem ser usados em respostas a perguntas, tais como _ Quem pegou a arara? _ *ta.

No Quadro 20, a seguir, apresentamos os pronomes sujeito e objeto, usados em sentenças com verbos transitivos ativos. Em sentenças com verbos ativos, mas intransitivos é usada a mesma série sujeito. 168

PESSOAS SUJEITO OBJETO GRAMATICAIS 1 ta wa

2 te e

3 otђ ha

Quadro 20: Pronomes gramaticais sujeito e objeto de verbos transitivos ativos

Exemplos dos usos desses pronomes com verbos ativos – transitivos e intransitivos – são apresentados de (497) a (502 ).

497. [ta a ցi] 498. [ta Ѐe]

ta ha ցi ta Ѐe 1SUJ 3OBJ ver 1SUJ dançar eu o vejo/vi eu danço/dancei

499. [te a ցi] 500. [te Ѐe]

te wa ցi te Ѐe 2SUJ 1OBJ ver 2SUJ dançar tu me vês/viste tu danças/dançaste

501. [otђ e ցi] 502. [otђ Ѐe]

otђ e ցi otђ Ѐe 3SUJ 2OBJ ver 3SUJ dançar-VER ele te viu ele dança/dançou

Como a língua faz uma distinção principal entre dois tipos de verbos, colocando de um lado os verbos ativos e de outro os verbos inativos, há outra série de pronomes gramaticais 169

utilizados com verbos da classe sintática estativa. Observemos que a distinção mais marcada é feita na primeira pessoa, para a qual se utiliza um pronome que não é o mesmo que o objeto dos verbos ativos. Para a segunda e terceira pessoas, o pronome-sujeito desses verbos é o mesmo que o pronome-objeto da série ativa40. Os pronomes gramaticais da série inativa são vistos no Quadro 21. Os seus usos são exemplificados de (503) a (505).

PESSOAS GRAMATICAIS SUJEITO 1 Ѐђ

2 e

3 ha

Quadro 21: Pronomes gramaticais-sujeito de verbos estativos

503. [Ѐђtajցetak]

Ѐђ tajցetage 1SUJ tossir eu tusso/tossi

504. [ђhtajցetak]

e tajցetaցe 2SUJ tossir tu tosses/tossiste

505. [a tajցetak]

ha tajցetaցe 3SUJ tossir ele tosse/tossiu

40 Poderíamos, por isso, levantar a hipótese de que a língua teria uma marca de ergatividade. O que nos impede, porém, de pensar desse modo é o fato de que os verbos intransitivos recebem o mesmo sujeito dos verbos transitivos. A diferença, portanto, é entre uma classe ativa e uma classe estativa. 170

Os pronomes da série ativa – sujeito e objeto - vão ser usados em duas outras estruturas, a dos verbos bitransitivos e a dos verbos de emoção e de cognição, modificados, em alguns casos, por posposições.

Na estrutura bitransitiva, o sujeito é o mesmo dos verbos ativos. O argumento recipiente, objeto indireto, é expresso pelos pronomes-objeto que são, então, seguidos pela posposição [he], marca de locativo. Uma interessante característica das construções bitransitivas, uma espécie de jogo entre as pessoas gramaticais, será tratada na secção 7.2.1.3.

Abaixo, em (506) e (507), damos exemplos dessa construção.

506. [te a he no]

te wa he naw 2SUJ 1OBJ DAT dar tu me destes (alguma coisa)

507. [ta e he no]

ta e he naw 1SUJ 2OBJ DAT dar eu te dei (alguma coisa)

Além desses elementos pronominais, ainda temos os dois pronomes de terceira pessoa que indicam aspecto Inceptivo e Completivo, respectivamente, e que são /hђ/ e /na/.

Trataremos desses dois pronomes quando descrevermos o aspecto, na secção 3.4.4.2.

Outra distinção que, embora esporadicamente, encontramos no sistema pronominal da língua é uma que diz respeito ao uso de /o/ ou /otђ/. Gudschinsky (1974) nota essa distinção e afirma que ela é do tipo humano/não-humano. Essa distinção parece agora esmaecida em 171

Ofayé41. Nós a encontramos, por exemplo, em enunciados com o verbo morrer, tanto para humanos quanto para animais. Do mesmo modo que com outras distinções mais específicas na língua, no momento atual parece haver certa indecisão por parte do falante quanto a explicitá-la. Assim, podemos ter tanto (508) como (509), abaixo, com o mesmo valor.

[oשotђ hie kaЀo] .508

oשotђ hi-ցe kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

[oשo hie kaЀo] .509

oשo hi-ge kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

Contudo, em situações de elicitações, enquanto nomes de verbos que referem a ações próprias de actantes animados (Agentes ou não) são fornecidos acompanhados do pronome

/a/, nomes de verbos que referem a ações tipicamente desempenhadas/sofridas por animais ou seres inanimados são fornecidos com o pronome /o/, como podemos ver nos pares apresentados em (510) e em (511).

HUMANO NÃO-HUMANO 510. a Ѐeցe dançar o Ѐiցe Voar

iցe cantar o hiցe Morrerשa ց .511

41 Dados posteriores ao fechamento desse trabalho dão indícios de que a distinção não está ainda tão perdida e que se justifica uma investigação mais específica sobre esse fenômeno. 172

A língua não estabelece a distinção de número no âmbito dos pronomes gramaticais, embora existam mecanismos para estabelecer essa distinção de outro modo. Uma dessas estratégias é utilizar-se os pronomes livres na sentença, no lugar dos pronomes gramaticais

(512); outra é colocar um sufixo de plural no verbo para indicar que o sujeito, expresso pronominalmente por um clítico de primeira, segunda ou terceira pessoa, é plural (513).

Veremos a concordância verbal na secção 3.4.5.

512. [aցa Ѐek]

aցa Ѐe-ցe nós dançar-VER nós dançamos (PRES/PAS)

513. [ta Ѐejϯ]

ta Ѐe-jϯ 1SUJ dançar-PL nós dançamos (PRES./PAS)

3.4.3 Morfema verbalizador

O morfema verbalizador, além de apresentar uma quantidade grande de alomorfias, é também facultativo. O falante pode omiti-lo completamente. Embora, em alguns momentos, possamos atribuir esse fato ao apagamento total desse morfema, no nível fonológico, desde que sílabas não acentuadas finais tendem a ser apagadas, reconsideramos essa proposta e assumimos que há um apagamento do morfema, no próprio nível morfológico, ou seja, a morfologia verbal está em alternância. Em (514), o morfema verbalizador é representado 173

foneticamente por [-ցe]. Em (515), ele é completamente omitido, nenhuma pista fonética é deixada e, assim, optamos pela hipótese do apagamento desse morfema na morfologia42.

514. [a Ѐeցe] 515. [a Ѐe]

ha Ѐe-ցe ha Ѐe 3SUJ dançar-VER 3SUJ dançar ele dança/dançou ele dança/dançou

Verbos ativos em forma de citação são sempre fornecidos com o morfema verbalizador. Verbos inativos, de modo geral, e alguns outros verbos, que consideramos irregulares, são citados sem ele.

3.4.4 Aspecto

Apenas uma distinção aspectual, marcada morfologicamente, é produtiva na língua:

Perfectivo vs. Imperfectivo. Outra distinção também encontrada, mas raramente utilizada, dando sinais de desaparecimento do sistema, é Inceptivo vs. Completivo. Trataremos da distinção ainda plenamente em uso, mais detalhadamente, na secção 3.4.4.1, a seguir. A segunda distinção será tocada brevemente, dada a impossibilidade de estabelecer a sua sistematização, mais adiante, na secção 3.4.4.2.

42 Em Yaathe, uma língua indígena brasileira também classificada como pertencendo ao tronco linguístico Macro-Jê, o morfema verbalizador pode ser omitido e, ao que parece, o processo opera no nível da morfologia. Um verbo como /futЀi-ka/ pegar pode ser pronunciado em terceira pessoa do singular, indicativo presente, como [ta futЀkܕa] ou [ta futЀi] ele pega. (Januacele da Costa, comunicação pessoal). 174

3.4.4.1 Perfectivo vs. Imperfectivo

A distinção aspectual Perfectivo vs. Imperfectivo, como dissemos acima, é uma das mais produtivas, podendo ser encontrada em uma série de usos diferentes, mas sempre com a mesma característica semântica de denotar a extensão de uma ação. A distinção é marcada no verbo pelos morfemas sufixais [ø], para indicar o Perfectivo, e [-ta], para indicar o

Imperfectivo.

Essa distinção é ilustrada pelos exemplos (516) e (517).

[oשotђ hi kaЀo] .516

oשotђ hi kaЀo 3SUJ morrer cachorro o cachorro morreu/está morto

[oשa kaЀoܦђhiցena ђf] .517

oשђhi-ցe-na ђfa kaЀo morrer-VER-IMPF estar cachorro o cachorro está morrendo

As construções com imperfectivo são de dois tipos. Em uma delas, como mostramos em (518), apenas o verbo recebe a marca de imperfectivo. Na outra, exemplos (519) e (520), o verbo recebe o morfema aspectual [-ta], mas há ainda a ocorrência de um auxiliar [ђfܦa] andar. Enquanto a primeira construção tem sentido de continuativo, a segunda indica evento em curso, ou seja, progressivo.

175

518. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF venta continuadamente/ventava

519. [hetђցena ђfܦa]

hetђցe-ta ђfa vento-IMPF estar está ventando/estava ventando

520. [wi hetђցena ђfܦa]

wi hetђցe-ta ђfa PAS vento-IMPF estar estava ventando

Dado que a marca no verbo é a mesma em todos os casos, diremos que a língua não faz essa distinção mais refinada, mas que coloca tudo em uma classe mais geral, que vamos considerar imperfectivo.

O aspecto imperfectivo também pode ser usado em predicados adjetivais, indicando a duração do estado expresso pelo adjetivo.

521. [haցatϯ tahna]

haցatϯ taha-ta caminho grande-IMPF o caminho é largo

176

Além disso, o imperfectivo é frequentemente usado quando se trata de narrações no passado, quando se faz referência a ações cotidianas, costumeiras.

[oajשa jϯשata fokoe kanawשta ita tawϯ a  wiha a he Ѐihita heցa] .522

a-taשta i-ta tawϯ a wiha a he Ѐihi-ta heցa 1SUJ ir-IMPF mato DIR PRM 1OBJ DAT caçar-IMPF matar-IMPF [oajשa jϯשfokoe kanaw] tamanduá tatu-peba tatu-galinha nós íamos para o mato antigamente, caçar e matar tamanduá, tatu-peba, tatu- galinha para nós

O imperfectivo também é usado quando dois eventos estão relacionados.

[iցehuש otђ toe a] .523

iցe-naש otђ towe a 3SUJ comer 3SUJ pequeno-IMPF ele comeu quando ele era pequeno

Há outro uso interessante do Imperfectivo. Neste, a forma imperfectiva ocorre no início da sentença em construções como (524) e (525), em que parece termos uma construção adverbial do tipo gerundiva.

[a ђfoܦiցena ђfשђց] .524

i-ցe-na ђfa ђfoשђց cantar-VER-IMPF AUX menino o menino está cantando

177

525. [ђfܦaցena ђfܦa ђfo]

ђfa-ցe-na ђfa ђfo ouvir-VER-IMPF AUX menino o menino está ouvindo

Um outro uso do imperfectivo aparece na sentença dada em (526). Nesta sentença, o nome [jϯ] banha, gordura é verbalizado apenas por receber o morfema de imperfectivo.

Diferente, porém, dos nomes que são verbalizados pelo marcador [-ցe], que muda o nome e outras classes em verbo propriamente ditos, nesse caso temos um predicado adjetival.

[atnשiܦa jϯhna f] .526

a-diשha jϯ-ta fi 3SUJ banha-IMPF queixada-DIM o cateto estava gordo (Lit.: engordurado, o cateto)

Tentativas de separar [-na] e [-ta] como dois morfemas diferentes, atribuindo-lhes para isso noções aspectuais distintas, foram mal sucedidas. Exemplos como os apresentados abaixo sustentam a nossa decisão.

527. [aka te ta oe]

aka te ta oe mato LOC 1SUJ dormir nós dormimos no mato

178

[a ْohta] .528

a jo-ta 3SUJ dormir-IMPF ele está dormindo

[awtaשa ђj] .529

aw-taשa ђj 3SUJ nadar-IMPF ele nadava

Há, ainda, um caso em que o Imperfectivo é utilizado no futuro. A proposição parece, então, veicular uma noção semelhante ao que se usa hoje em Português vai estar Gerúndio.

[e wϯցenaשhatehta e ց] .530

e wϯ-ցe-taשhatehta e ցa onde 2SUJ FUT cavar-VER-IMPF onde você vai cavar? (Lit.: onde você vai estar cavando?)

Alguns verbos, que são eventos relacionados ao tempo, e que por isso podem ser tratados como unipessoais, recebem apenas o sufixo [-ta], progressivo, e um sujeito estativo

(531) ou apenas o primeiro (532) e (533).

531. [a fܦiehna]

a fie-ta 3SUJ chuva-IMPF está chovendo

179

Desde que [fܦie] chuva é nome, como se pode ver da construção com [hђ] chegar, apresentada na secção 3.2.1, exemplo (396), construções como (532) e (533) poderiam ser consideradas uma espécie de verbalização, com o nome recebendo apenas a morfologia verbal, o morfema de imperfectivo. Outros exemplos são:

532. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF está ventando

533. [wetahata]

wetaha-ta meia.noite-IMPF era meia-noite

Para podermos dizer que [hetђցe] vento, assim como [fܦie] chuva, são nomes, temos a construção em (534), na qual o sujeito é correferenciado por [otђ], em uma estrutura com verbo intransitivo ativo. Evidentemente, não dá para explicar a diferença entre essas duas construções, onde uma utiliza marcação de sujeito estativo e outra, ativo, do ponto de vista puramente semântico.

534. [wi otђ hetђցe hђ]

wi otђ hetђցe hђ PAS 3SUJ vento chegar o vento chegou (e já não está mais ventando)

180

O evento expresso em (534) é diferente de (535) no sentido em que neste último, apresentado a seguir, não está explícita a idéia de passado terminado.

535. [otђ hetђցe hђ]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou

3.4.4.2 Inceptivo vs. Completivo

A distinção Inceptivo vs. Completivo é marcada através do pronome-sujeito que é utilizado na estrutura gramatical. Assim, para indicar ação iniciada utiliza-se o pronome [hђ].

Para ações completadas, o pronome é [na]. Esses pronomes têm uma única forma e são utilizados em todas as pessoas gramaticais.

[oשe hђ hiցe kaЀoשia] .536

oשe hђ hi-ցe kaЀoשia quase 3INC morrer-VER cachorro o cachorro começou a morrer/ está quase morrendo

[oשe na hi kaЀoשhao] .537

oשe na hi kaЀoשhao agora 3COMPL morrer cachorro agora, o cachorro acabou de morrer

181

538. [wi na hђ fܦie]

wi na hђ fie PAS 3COMPL cair água a chuva parou/acabou de cair

3.4.4.3 A interrelação Tempo-Aspecto

Há uma interessante relação entre as expressões de tempo e aspecto, conforme descreveremos a seguir.

Antes de observarmos essas relações, que estão expostas resumidamente no Quadro

22, em seguida, algumas observações sobre este Quadro se fazem necessárias.

1) a sentença está incompleta, pois devemos considerar que uma sentença gramatical completa em Ofayé é constituída de Verbo mais os pronomes que representam os argumentos na estrutura gramatical. No Quadro indicado, apenas os elementos essenciais para a compreensão da interrelação tempo/aspecto verbal foram mantidos;

2) a ordem estabelecida para o auxiliar de Imperfectivo [ђfܦa] estar não é rigorosa. Na verdade, embora essa seja uma das posições possíveis, é mais frequente a sua ocorrência antes do verbo principal;

3) no Futuro, há uma distinção entre Futuro Neutro, em qualquer tempo depois do

e] e futuro imediato, talvez mesmoשmomento da fala, marcado por um auxiliar [a ցa

;[eשiminentivo, expresso por um advérbio [ia 182

4) o aspecto não-imperfectivo é não-marcado, ou pode-se dizer que o morfema para

o], o significado é passado eשesse aspecto é [ø]. Em uma sentença como [wi ota hiցe kaЀo completado, o cachorro já morreu;

5) as distinções expressas pelos pronomes sujeito, [hђ] para o inceptivo e [na] para o completivo não se interrelacionam com o tempo, pois o uso desses pronomes indica que o falante se refere a um evento acabado de iniciar ou acabado de se completar.

183

TEMPO ASPECTO VERBO ASPECTO NEU PRC PRM FUT FIM INC COMPL PF IMPF CT fohiցe ø coça/coçou a está coçandoܦe fohiցe na ђfשhao (progressivo) wi fohiցe ø coçou wi fohiցe na ђfܦa estava coçando (progressivo) wiha fohiցe ø coçou wiha fohiցe na ђfܦa estava coçando (progressivo) wi fohiցe na coçava (cont.) wiha fohiցe na coçava (cont.) e fohiցe coçaráשaցa (.e fohiցe coçará (imedשia hђ hiցe começou a morrer na hiցe acabou de morrer Quadro 22: A interrelação Tempo/Aspecto

184

Daremos alguns exemplos, em sentenças completas, que ilustram as relações apresentadas no Quadro 22.

Em (539), a raiz verbal não recebe morfema de aspecto. Na sentença, também, não há qualquer marca de tempo. Assim, trata-se de um evento do qual não se explicita nem a duração interna – aspecto – nem a sua relação temporal com o momento da fala – Tempo.

539. [otђ te hi fܦohiցe]

otђ te hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coça/coçou sua perna (dele mesmo)

Em (540), em que não há uma marca aspectual no verbo, mas há um advérbio na sentença que localiza o evento temporalmente no momento da fala, a sentença é neutra em relação a aspecto.

[ohiցeܦe otђ te hi fשhao] .540

e otђ te hi fohi-ցeשhao agora 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coça a perna

Em (541), sem advérbio na sentença que possa indicar o tempo do evento, mas com a marca de imperfectivo, novamente o tempo é neutro, podendo ser interpretado tanto como está coçando quanto como estava coçando.

541. [otђ te hi fܦohiցena]

otђ te hi fohi-ցe-na 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER-IMPF ele está/estava coçando a perna (dele mesmo) 185

Em (542), o advérbio [wi] coloca o evento no passado recente e a ausência de marca aspectual informa sobre o aspecto perfectivo, ação completada do fato enunciado.

542. [wi otђ te hi fܦohiցe]

wi otђ te hi fohi-ցe PAS.REC. 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coçou a perna dele

Em (543), a combinação de advérbio de tempo, passado recente, com a marca de aspecto [-na] informa sobre a imperfectividade da ação no passado, enquanto o auxiliar [ђfܦa] veicula o sentido de progressividade.

543. [wi otђ ђfܦa te hi fܦohiցena]

wi otђ ђfa te hi fohi-ցe-ta PAS.REC. 3SUJ AUX. POS.REFL perna coçar-VER-IMPF ele estava coçando a perna dele

Nos demais casos apresentados no Quadro 22, as situações são semelhantes. Os advérbios de tempo combinam-se com presença versus ausência do morfema aspectual e/ou do auxiliar de imperfectivo para expressar a distância temporal em relação ao momento do enunciado e a duração interna do evento.

3.4.5 Concordância

Como já se disse, há uma marca raramente manifestada de concordância verbal com o sujeito da sentença. Na verdade, essa concordância é apenas semântica, desde que, entre os 186

pronomes sujeitos, não se faz distinção de número. O falante, querendo indicar que o sujeito expresso pronominalmente é plural, marca o verbo com o morfema [-jϯ], conforme os exemplos (544) e (545), a seguir.

544. [otђ wa ցi]

otђ wa ցi 3SUJ 1OBJ ver ele me vê/viu

545. [otђ wa ցiϯ]

otђ wa ցi-jϯ 3SUJ 1OBJ ver-PL eles me vêem/viram

A marca de concordância é notadamente mais utilizada com os verbos ativos, que repetem os pronomes [ta], [te] e [otђ] para as pessoas correspondentes do plural, e com verbos de sentido recíproco. Com os verbos inativos, para os quais se faz uso do conjunto de pronomes [aka], [eke] e [ida], raramente, ou talvez mesmo nunca, a marca de concordância é observada. 187

CAPÍTULO 4: ADJETIVOS

4.1 Introdução

Embora consideremos que adjetivo constitui uma classe principal de palavras, ao descrever a classe adjetivo em uma língua, devido ao seu caráter fluido, é importante observar o conteúdo semântico e a distribuição dessa classe na estrutura linguística. Isso significa procurar semelhanças e diferenças em relação às classes nome e verbo. (DIXON; 1999, p. 1).

Separadamente, podemos retomar Dixon (op.cit, p. 3), que descreve cada uma das classes principais – nome, verbo, adjetivo – especificamente e, depois, aponta as similaridades entre adjetivos e cada uma das outras classes.

(a) Verbs describe activities, which generally involve movement and/or change, and are normally extended in, and delimited in, time. A noun typically describes a thing (or animal or person), for which the dimension of time is irrelevant. Adjectives describe properties of things most of which do not involve change but are relatively permanent, e.g., big, red, good. In terms of this semantic dimension, adjectives show more similarities to nouns than to verbs. (b) A noun is generally the central topic of a discourse, and comment on it can either be in terms of some activity (through a verb), or of some property (through an adjective). This establishes a point of similarity between verb and adjective. (c) Both verb and adjective can be grammatically linked to a noun in one of two ways: (i) within a noun phrase, as further specification of the reference of the noun – this may involve an adjective or a participial form of a verb as modifying word (e.g., angry lion, singing nun), or an adjective or verb as predicate of a relative clause (lion which is angry, nun who sings); or (ii) verb or adjective is main clause predicate which acts as ´comment‘ on a given noun as a ´topic‘ (e.g., That lion is angry, This nun sings in her bath).

Dixon (op. cit., p. 4) fornece uma tipologia de línguas de acordo com os modos como as gramáticas das línguas tratam a classe de adjetivos. O Ofayé parece estar incluído no tipo

(2), de Dixon, conforme sua descrição. 188

(2) There is an open class of adjectives which has grammatical properties very similar to those of verbs; for example, when an adjective is used predicatively it inflects on the same (or similar) pattern to a verb (and there is then no need for inclusion of a verb to be).

4.2 Adjetivo em Ofayé

Em Ofayé, os adjetivos, quando usados em forma de citação, o são sempre com um pronome actante de terceira pessoa do singular, igual ao utilizado com verbos estativos.

Quando usados predicativamente, dispensam um verbo como ser, estar e sua flexão tem similaridades com a flexão verbal. Verbos em Ofayé apresentam pouca morfologia. Assim, as diferenças de flexão entre verbos-predicados e adjetivos predicados não podem ser muito grandes. Quando usados como modificadores, os adjetivos não recebem o pronome de verbo estativo nem qualquer morfologia flexional como nome.

Podemos, então, postular uma classe distinta de adjetivos para Ofayé, pois as palavras que expressam significados adjetivais têm a maior parte das propriedades gramaticais de verbos estativos, ao mesmo tempo em que, quando usados atributivamente, não apresentam essas propriedades, como vimos na secção sobre Sintagma Nominal, no Capítulo II desta

Tese.

A seguir, listamos alguns adjetivos, cobrindo todas as dimensões possíves encontráveis nas línguas e encontradas nesta língua. Nesta lista, todos (ou quase todos) apresentam uma característica em comum: o elemento pronominal a. Desde que adjetivos não são, é o que nos parece, nomes na língua, preferimos classificar esse elemento como marca verbal de terceira pessoa. Isso significa que os adjetivos são, primariamente, verbos, mas se nominalizam ao tornarem-se parte do sintagma nominal, com função de modificador de nome. 189

1. idade

546. [a tђ] novo

547. [a jow] velho

2. tamanho

548. [a taha ] grande

o] curtoשa to] .549

ikn] pequenoש a] .550

551. [ha koho] comprido

ahhu] altoש a] .552

553. [hђЀi] plano

3. avaliação

ej] bomשa ց] .554

a ցaniْe] ruim] .555

4. cores

o] pretoשa ko] .556

557. [a ցatϯ] branco

558. [a Ѐow] vermelho

559. [a haj] amarelo

ϯ] verde/azulשa ցajϯ] .560

190

A princípio, observando apenas a marcação pronominal, temos que uma construção com adjetivos parece ser sempre uma construção verbal estativa, como era de se prever. No exemplo abaixo, o sentido é: sua roupa é velha. A ordem é sempre nome - adjetivo.

561. [a Ѐђ jow]

a Ѐђ jow 3POS roupa velho sua roupa é velha

Os adjetivos ocupam duas posições na estrutura sintática. Podem ser modificadores do nome, como um constituinte do sintagma nominal, e podem ser o núcleo do sintagma verbal em uma construção predicativa. Um tratamento mais extenso de adjetivos como núcleo do sintagma verbal pode ser encontrado na secção 3.2.12.

562. [a jow]

a jow 3SUJ velho é velho

Esses exemplos parecem mostrar um adjetivo com propriedades de verbo: ser velho, ser grande, desde que não se espera entender (562) como seu velho. Em (563), a seguir, novamente o pronome de verbos estativos diz que [taha] grande é o núcleo do sintagma verbal.

563. [a oktЀiցete taha]

a oketЀiցete taha 3SUJ cachorro grande seu cachorro é grande 191

CAPÍTULO 5: ADVERBIAIS

5.1 Introdução

Advérbios formam uma classe aberta de palavras, desde que são palavras lexicais, conforme Givón (1984, p. 49), embora ele mesmo afirme que das quatro classes consideradas abertas, “(...) the class adverb” is a mixed one, in terms of semantics, morphological/inflectional and syntactic criteria used to characterize word classes. One finds less cross generalization in the treatment of adverbs”. (OP.CIT., p. 51)

Seguindo Auwera (1999, p. 8), vamos utilizar aqui o termo adverbiais em vez de advérbios, desde que estarão sob esse rótulo não só os advérbios propriamente ditos, mas ainda sintagmas e sentenças que funcionam como advérbios.

De modo geral, admite-se que os advérbios mais comuns são as palavras que indicam tempo, lugar e modo e modificam classes de palavras que não são nomes.

5.2 Adverbiais em Ofayé

5.2.1 Palavras adverbiais

Nas seguintes sentenças, temos palavras que podem ser consideradas advérbios, de acordo com os critérios que costumam serem usados para definir essa classe de palavras. Na sequência, apresentamos alguns desses critérios e os ilustramos com exemplos de Ofayé. 192

e] quase dá aoשa) Um advérbio modifica um verbo, como ocorre em (564), onde [ia evento expresso pelo verbo [weho] picar o sentido de iminentivo, mas não realizado.

[e otђ koni a wehoשia] .564

e otђ koni wa wehoשia quase 3SUJ cobra 1OBJ picar/morder a cobra quase me picou

b) Um advérbio é opcional, no sentido de que, se apagarmos o advérbio, a sentença continua gramatical. O evento enunciado em (564), acima, é a seguir repetido como (565),

.e] quase. A sentença continua gramaticalשomitindo-se [ia

565. [otђ koni a weho]

otђ koni wa weho 3SUJ cobra 1OBJ picar/morder a cobra me picou

c) Um advérbio apresenta flexibilidade de ordem de palavras. Em (566), [wiha] antigamente (ou passado remoto) ocupa a última posição na sentença. Em (567), o mesmo item lexical é movido para o início da sentença sem que esse movimento altere o sentido.

566. [ta ђfܦa tawϯ ka wiha]

ta ђfܦa tawϯ ka wiha 1SUJ andar mato TRAJ antigamente antigamente nós andávamos pelo mato

193

567. [wiha ta efܦa tawϯ a]

wiha ta ђfܦa tawϯ a antigamente 1SUJ andar mato TRAJ antigamente nós andávamos pelo mato

d) Um advérbio não aceita categorias gramaticais que são próprias de nomes ou de verbos. Em Ofayé, palavras adverbiais não se flexionam em número ou grau e não aceitam prefixos possessivos, as categorias gramaticais aceitas pelo nome. Também não aceita nenhuma das categorias descritas como verbais.

Observados esses critérios, as palavras listadas a seguir podem ser consideradas advérbios em Ofayé.

568. [Ѐenaha] perto de alguém ou alguma coisa, ao lado

569. [ђnika] madrugada

570. [hђhite] em cima

571. [fܦite] acima

i] anoשhawa] .572

(e] mês (outro anoשaЀi] .573

(e] perto (distanciaשti] .574

575. [hao] hoje

576. [hђha] só um

e] agoraשhao] .577

578. [ijotϯ] apenas

e] imediatamenteשia] .579

580. [kђtawϯhe] dia

eka] aindaשk] .581

ϯ] longeשteցiho] .582 194

583. [tϯ] aí

584. [tϯj] ali, lá

585. [ti] aqui

ϯ] noiteשwϯ] .586

e] cedo,manhãשiשwϯ] .587

a] meia-noiteשwϯ⍧] .588

589. [wi] passado ainda hoje

590. [wiha] passado anterior a hoje

591. [teցi] assim, desse jeito

Também algumas palavras, que poderiam ser consideradas nomes ou verbos, podem desempenhar função como advérbio, como é o caso das listadas a seguir:

e] atrásשaho] .592

593. [hђցajo] à esquerda

594. [awϯhϯ] dentro

5.2.2 Sintagmas adverbiais

Os sintagmas e sentenças que funcionam como advérbios são expressões como sintagmas adposicionais com valor adverbial, tais como Locativo e outros, ou sintagmas com

.(i hi], em (595שvalor modal, como [ok

195

[i hiשe ta hie okשia] .595

i  hiשe ta hiցe okשia quase 1SUJ morrer fome MOD nós quase morremos de fome

Em (595), o complemento adverbial, com valor de advérbio de modo, é constituído por um nome que recebe uma posposição. Na secção 7.6.1, sobre papéis semânticos periféricos, veremos como as posposições, em Ofayé, têm múltiplos valores semânticos. Essa estratégia de marcar nomes com adposições para fazê-los funcionar como advérbios de modo

é encontrada em muitas línguas. As sentenças adverbiais, que são cláusulas subordinadas, conforme veremos no Capítulo 7, sobre sintaxe, não puderam ser descritas para esse trabalho. 196

CAPÍTULO 6: CLASSES FECHADAS DE PALAVRAS

6.1 Introdução

A maior parte das palavras que pertencem ao que chamamos classes fechadas servem a funções gramaticais e, por isso, estão tratadas nas secções referentes à constituição dos sintagmas – nominal, verbal, adposicional – e na sintaxe de modo geral. Desse modo, a maior parte dos pronomes – gramaticais, reflexivo e/ou recíprocos, possessivos, interrogativos, os marcadores de papel semântico (posposições), quantificadores, auxiliares, conjunções, marcadores de negação, etc. – estão descritos nas secções correspondentes às funções morfológicas e/ou sintáticas que eles exercem. Este capítulo, que trata de classes fechadas de palavras, serve apenas para abrigar algumas palavras que não se encaixaram em outras secções desse trabalho.

6.2 Pronomes

A classe pronome, devido a suas relações com o nome e com o verbo na estrutura sintática, tanto no nível do sintagma como no nível da sentença, será aqui apenas apresentada sucintamente. Esses elementos pronominais são vistos repetidamente nos capítulos sobre verbo e sobre sintaxe. Os pronomes pessoais livres, que fogem um pouco a essa relação mencionada acima, terão um lugar neste Capítulo, secção 6.2.1, a seguir, a fim de que algumas das particularidades por eles apresentadas sejam reveladas.

197

6.2.1 Pronomes livres

Como em algumas outras línguas indígenas brasileiras consideradas pertencentes ao tronco Macro-jê, em Ofayé os pronomes livres apresentam formas masculina e feminina para todas as pessoas do singular. No plural, a distinção de gênero não é marcada. Apresentamos os pronomes livres no Quadro 23, a seguir.

NÚMERO PESSOA MASCULINO FEMININO

1 [a] [aցn] SINGULAR 2 [e] [eցn]

3 [ϯ] [ϯցn]

1 [aցa] PLURAL 2 [eցe]

3 [ϯցϯ] Quadro 23: Pronomes livres

Os pronomes livres de plural podem ser usados em quase todas as funções. Ao contrário, as formas de singular são usadas apenas com a sua função específica de pronomes livres. Por isso, a sua frequência de uso é muito baixa.

6.2.2 Pronome Reflexivo/Recíproco

A mesma forma [Ѐђ] é usada em operações tanto de reflexivização quanto de reciprocidade em Ofayé. O exemplo (596) ilustra o uso de [Ѐђ] como reflexivo, enquanto

(597) ilustra o seu uso como recíproco. 198

[ђЀowْϯ otђ Ѐђ tϯցe] .596

ђЀow-jϯ otђ Ѐђ tϯ-ցe homem-PL 3SUJ REFL cortar-VER os homens se cortaram

597. [otђ Ѐђ oe]

otђ Ѐђ o-ցe 3SUJ REFL abraçar-VER eles se abraçaram

O pronome reflexivo/recíproco possui uma única forma e pode ser usado com todas as pessoas gramaticais. Assim, em (598), em vez de co-referir a uma terceira pessoa, o pronome

[Ѐђ] correfere a um sujeito de primeira pessoa. Em (599), onde o uso é de reciprocidade, também temos um sujeito de primeira pessoa.

598. [ta Ѐђ tϯ]

ta Ѐђ tϯ 1SUJ REFL cortar eu me cortei/nós nos cortamos

599. [ta Ѐђ oe]

ta Ѐђ o-ցe 1SUJ REFL abraçar-VER nós nos abraçamos

A interpretação reflexiva ou recíproca depende da informação semântica contida no lexema verbal. 199

Uma característica desse pronome é que ele correfere apenas ao sujeito. Para correferir ao objeto, usa-se o pronome reflexivo [te], como podemos ver em (600).

600. [otђ ђЀow te ЀoБe ka]

otђ ђЀow te ЀoБe ka 3SUJ homem POS.REFL casa construir o homem construiu a casa dele

Do mesmo modo que [Ѐђ], [te] correfere a todas as pessoas gramaticais.

601. [otђ te ЀoБe ka]

otђ te ЀoБe ka 1SUJ POS.REFL casa construir ele construiu a sua própria casa

602. [ta te ЀoБe ka]

ta te ЀoБe ka 1SUJ POS.REFL casa construir eu construí a minha própria casa

6.3 Marcadores de polidez

As seguintes palavras com função de marcadores de polidez foram encontradas:

ika] até logo, estou indoשha] .603

ϯ] boa-noiteשwϯ] .604

605. [hђhtao] boa-tarde 200

606. [tahђ] saudação de chegada em qualquer momento do dia

e] Obrigadoשaܦefשheց] .607

6.4 Respostas a questões polares

As respostas a questões polares são as palavras afirmativa e negativa, correspondentes ao Português sim e não, respectivamente.

608. [aha] Sim

609. [hejaw] Não 201

CAPÍTULO 7: SINTAXE

7.1 Introdução

As relações gramaticais e, consequentemente, a estrutura sintática da língua, serão aqui descritas de um ponto de vista funcional. Desse modo, pode-se encontrar diferenças entre os membros de uma classe, mas há sempre uma característica em comum, o que permite afirmar que todos os indivíduos são membros da mesma classe. Ainda neste Capítulo, trataremos uma série de fenômenos sintáticos, como ordem dos constituintes nas sentenças, operações de mudança de valência, constituição de sintagmas adposicionais, tipos de sentenças e sentenças complexas.

7.2 A estrutura sintática do Ofayé

Conforme foi visto no Capítulo 3, os verbos em Ofayé podem ser divididos em três classes principais: ativos, incluindo verbos transitivos primários e a maior parte dos verbos intransitivos que são ações – considerando-se, evidentemente, a prototipicalidade ou a neutralização de papéis semânticos sob uma função sintática, no caso do Ofayé, o Sujeito; estativos, incluindo nessa classe os verbos adjetivais, estativos propriamente falando, e os verbos que codificam funções corporais; e verbos de emoção, não necessariamente incluídos em uma terminologia típica.

Na estrutura gramatical do Ofayé, três papéis semânticos parecem ser relevantes: o

Agente, o Paciente e o Recipiente. De acordo com Payne (1997, p. 133), tem-se observado empiricamente que há uma tendência das línguas a ter cerca de três categorias distintas de relações gramaticais centrais, geralmente sujeito, objeto e objeto indireto. Embora em Ofayé 202

não existam muitas pistas que permitam identificar essas relações, vamos aqui, para efeito de descrição, considerar essas três funções gramaticais, observando os tipos de estrutura sintática apresentados pelas classes de verbos descritas no capítulo anterior.

7.2.1 Verbos ativos

7.2.1.1 Intransitivos

Um verbo intransitivo típico, aqui usado como exemplo, é o verbo dançar. Podemos dizer que ele é um verbo intransitivo típico porque expressa uma ação-processo com apenas um participante, o Ator43. Para que uma sentença seja gramatical em Ofayé, é bastante que o verbo esteja acompanhado por um elemento pronominal que desempenha as funções sintáticas e representa os papéis semânticos correspondentes. Que esses elementos são formas livres e não prefixos podemos ver quando, sendo o sujeito de terceira pessoa explicitado por um nominal, esse nominal pode ser inserido entre o elemento pronominal e o verbo, como mostra o exemplo (610), a seguir.

610. [otђ ђЀow Ѐe]

otђ ђЀow Ѐe 3SUJ homem dançar o homem dança/dançou

A seguir, apresentamos a conjugação de um verbo intransitivo.

43 Usaremos Ator como um termo cover para os tipos de participantes que podem aparecer nessa posição, desde Agentes até Temas e outros tipos. 203

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

1 ta Ѐe eu danço/dancei Singular 2 te Ѐe tu danças/dançaste

3 otђ Ѐe ele dança/dançou

Plural 1 ta Ѐejϯ nós dançamos

2 te Ѐejϯ vós dançais/dançastes

3 otђ Ѐejϯ eles dançam/dançaram Quadro 24: Conjugação de um verbo intransitivo

Na estrutura com verbo intransitivo, o Agente é representado pelos pronominais, /ta/,

/te/ e /otђ/ - primeira, segunda e terceira pessoas, respectivamente44.

7.2.1.2 Transitivos

Os verbos transitivos – verbos de ação-processo com dois participantes, um Agente e um Paciente – têm uma estrutura sintática com argumentos que, quando expressos pronominalmente, apresentam-se do seguinte modo45:

44 Para referir a um sujeito ou objeto plural, o falante pode, em discurso, utilizar os pronomes livres correspondentes. 45 Evidentemente, esse quadro mostra os pronomes sujeito e objeto em relação às pessoas gramaticais, mas não podemos dizer que [ta wa ki] signifique eu me vi. Nesse caso, teríamos que ter uma construção reflexiva, com o reflexivo [Ѐђ] na posição de objeto direto. O quadro, desse modo, é apenas demonstrativo. 204

NÚMERO/PESSOA SUJEITO OBJETO VERBO

1 ta wa ցi eu vejo/vi algo SINGULAR 2 te e ցi tu vês/viste algo

3 otђ a ցi ele vê/viu algo

1 ta aka ցi nós vemos/vimos algo PLURAL 2 te eke ցi vós vedes/vistes algo

3 otђ ida ցi eles vêm/viram algo Quadro 25: Conjugação de um verbo transitivo

Exemplos da construção transitiva são apresentados a seguir. Ilustramos, com os exemplos de (611) a (614) a construção gramatical com todos os argumentos representados apenas pronominalmente.

611. [ta a ki]

ta ha ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo/vi

612. [otђ wa ki]

otђ wa ցi 3SUJ 1OBJ ver ele me vê/viu

613. [ta e kaj]

ta e kaj 1SUJ 2OBJ matar eu te mato/matei 205

614. [otђ wa kati]

otђ wa kati 3SUJ 1OBJ bater ele me bateu

Nessas construções, [ta], [te] e [otђ] são Agentes, enquanto que [wa], [e] e [ha] são pacientes. A ordem canônica é, assim, definida como sendo SOV. Esses índices pronominais que referem a Agente e Paciente na sentença transitiva são também índices gramaticais sem referência externa. Quando nominais, que possuem referência plena, aparecem na sentença, os

índices gramaticais permanecem, o que nos permite dizer que eles também são correferenciadores. O índice de Paciente, entretanto, pode ser omitido, caso esse argumento seja expresso por um nominal. O índice de sujeito é, canonicamente, obrigatório46. A ordem dos nominais na sentença não parece ser rigorosa, mas o nominal representando um paciente, de modo geral ocupa a segunda posição, depois do sujeito e antes do verbo, na sentença central. Entretanto, esse nominal com função objeto pode ainda vir depois do verbo ou depois do Recipiente representado nominalmente e correferenciado na sentença por um pronome. Na secção 7.4, apresentamos todas as ordens possíveis desses argumentos centrais.

7.2.1.3 Bitransitivos

Verbos bitransitivos, cujo protótipo é o verbo dar – com uma estrutura semântica que apresenta três argumentos, Agente, Paciente e Recipiente – comporta-se sintaticamente do seguinte modo:

46 Evidentemente, essa obrigatoriedade diz respeito ao nível da sentença. No discurso fluente, espontâneo, como em qualquer língua, mesmo naquelas que são consideradas no modo de falar gerativista de non-pro-drop, o sujeito de uma sentença pode ser elidido, desde que ele pode ser recuperado do contexto. 206

- o Agente, o doador, é expresso por um pronome da série sujeito;

- o Paciente, o objeto doado, é expresso por um pronome da série objeto;

- o Recipiente, o participante a quem o objeto é doado, é expresso por um pronome da série objeto, com ligeira modificação, marcado com a posposição [he]. É, portanto, um

Dativo, em termos de marcação de caso, mesmo se a marcação é sintática em Ofayé.

Nessa estrutura bitransitiva, há um jogo interessante entre os participantes.

A princípio, toda a estrutura gramatical pode ser expressa apenas pelos índices actanciais, Sujeito-Objeto 1-Objeto 2-Verbo47. Essa parece ser a ordem canônica e a ilustramos com os exemplos de (615) e (616).

615. [te wa he noe]

te wa he naw-ցe 2SUJ 1OBJ DAT dar-VER tu me destes (alguma coisa)

616. [ta e he noe]

ta e he naw-ցe 1SUJ 2OBJ DAT dar-VER eu te dei (alguma coisa)

Se o sujeito for de primeira pessoa e o recipiente de segunda pessoa (617) ou vice- versa (618), tanto o sujeito quanto o objeto indireto estarão explicitados, gramaticalmente. O objeto será sempre de terceira pessoa e, por isso, equivalente a [ø], a menos que seja expresso apenas pronominalmente.

47 Objeto 1 corresponde ao objeto indireto e Objeto 2 ao objeto direto. 207

[iցeteשta e he no k] .617

iցateשta e he naw ցa 3SUJ 2OBJ1 DAT dar ovo.de.galinha eu te dei o ovo

[iցeteשte wa he no k] .618

iցateשte wa he naw ցa 2SUJ 1OBJ1 DAT dar ovo.de.galinha tu me deste o ovo

Nos dois exemplos, poderíamos postular um morfema [ø] para a posição do objeto

iցete] ovo, que segue o verbo. Nãoשantes do verbo. Esse pronome correferenciaria ao nome [k assumiremos, porém, neste trabalho, essa posição e continuaremos a transcrever os exemplos como vimos fazendo até aqui.

O sujeito de terceira pessoa é omitido, se o recipiente é de outra pessoa gramatical – primeira ou segunda. Em (619) e em (620), o sujeito é de terceira pessoa – ele – e não tem realização fonética na estrutura gramatical, onde encontramos apenas o argumento Recipiente, representado por um pronome gramatical objeto marcado como Dativo.

[iցeteשwa he no k] .619

iցateשø wa he naw ցa 3SUJ 1OBJ DAT dar ovo.de.galinha ele me deu o ovo

208

[iցeteשe he no k] .620

iցateשø e he naw ցa 3SUJ 2OBJ DAT dar ovo.de.galinha ele te deu o ovo

Se o sujeito for de pessoa diferente da terceira e o recipiente de terceira pessoa, o pronome que refere ao recipiente pode ser omitido. Em (621), o sujeito é [ta], primeira pessoa e o recipiente, terceira pessoa, não se realiza foneticamente, sendo representado por [ø]. O fato se observa ainda em (622), com sujeito de segunda pessoa [te] e recipiente de terceira pessoa [ø].

[iցeteשta he no k] .621

iցateשta ø he naw ցa 1SUJ 3OBJ DAT dar ovo.de.galinha eu lhe dei o ovo

[iցeteשte he no k] .622

iցateשte ø he naw ցa 2SUJ 3OBJ DAT dar ovo.de.galinha você lhe deu o ovo

Se o recipiente for expresso por um sintagma nominal, ainda assim a estrutura sintática será mantida, com o recipiente [ø], seguido da posposição que marca Dativo. Depois do verbo, vem o sintagma nominal, que pode ser ou não marcado como Dativo. Em (623), o 209

nome próprio [teցi] Tegin, que ocorre depois do verbo, é o recipiente, marcado como Dativo, seguido do nome [kriցete] ovo, que é o objeto direto.

[iցeteשta he no teցin he k] .623

iցateשta ø he naw teցi he ցa 1SUJ 3OBJ DAT dar Tegin DAT ovo.de.galinha eu dei o ovo a Tegin

Essa estrutura parece dar a seguinte informação: eu dei algo a alguém, que, por si só, é gramatical na língua. Agora, precisando dar uma informação em termos referenciais e não apenas gramaticais, dos participantes, acrescentam-se Nome marcado como Dativo, representando o Recipiente, e Nome não marcado, representando o Objeto. Os nominais refletem-se do lado oposto do verbo, como em um espelho.

Se o sujeito for expresso por um nome, o pronome correferenciador de terceira pessoa, exigido pela estrutura sintática, volta a aparecer. A marca de Dativo, nesse caso, está sobre um morfema [ø], pois os dois participantes, Agente e Recipiente, são da mesma pessoa gramatical.

[iցeteשMaria otђ he no k] .624

iցateשMaria otђ ø he naw ցa Maria 3SUJ 3OBJ DAT dar ovo Maria deu o ovo a ela

O Recipiente, nesse caso, é expresso apenas pronominalmente na estrutura gramatical.

Não há um nome ao qual ele correferenciaria e que viria depois do verbo.

Se compararmos os dois exemplos abaixo, teremos uma visão mais clara dos fatos. 210

[iցeteשMaria otђ he no k] .625

iցateשotђ ø he naw ցa ____ .626 ____ 3SUJ 3OBJ DAT dar ovo-de-galinha 625⎆) Maria ela lhe deu o ovo-de-galinha

626⎆) _____ ela lhe deu o ovo-de-galinha

Dessa análise, um quadro resumitivo dos pronomes que representam as principais relações gramaticais em Ofayé, considerando apenas os verbos Ativos, pode ser esboçado.

PESSOA SUJEITO OBJETO INDIRETO OBJETO DIRETO

1 ta wa he wa

2 te e he e

3 otђ ø he a Quadro 26: Pronomes que desempenham funções sintáticas centrais

O Quadro 27, a seguir, mostra o jogo de pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva, basicamente entre os participantes com papel semântico Agente e Recipiente.

Agente 1 2 3

Recipiente ta te otђ ø

1 - wa he - wa he

2 e he - - e he

3 ø he ø he ø he -

Quadro 27: Jogo das pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva

211

Em resumo, se o Agente for de primeira ou segunda pessoa, o Recipiente de terceira pessoa não é marcado nem gramatical nem correferencialmente. Se o Agente for de terceira pessoa, o recipiente de terceira pessoa pode ser não marcado. Entretanto, se o recipiente for de primeira ou segunda pessoa, o papel não marcado é o de Agente.

Um verbo que tem o mesmo comportamento sintático que o verbo dar é mostrar, como ilustram os exemplos de (627) a (629).

[a hitajϯשaܦe hokojfܦie otђ he oցܦok] .627

a hitajϯשin otђ ø he o-ցe hokoj.faܦok Joana 3SUJ 3OBJ DAT mostrar-VER tamanduá.pé anta Joana mostrou a anta a Pé-de-Tamanduá (Ramona)

A marcação do nominal Recipiente, depois do verbo, como Dativo, não é obrigatória, dado que o nominal Agente já ocupa a primeira posição na sentença, antes do verbo, ao passo que o nominal Tema (Objeto), desde que não é marcado, ocupa a última posição na sentença.

628. [ta e he oցܦe hitajϯ]

ta e he o-ցe hitajϯ 1SUJ 2OBJ DAT mostrar-VER anta eu mostrei a anta a você

629. [wa he oցܦe hitajϯ]

ø wa he o-ge hitajϯ 3SUJ 1OBJ DAT mostrar-VER anta ele me mostrou a anta

212

7.2.2 Verbos estativos

Como vimos no Capítulo 3, há dois tipos de verbos que podem ser ditos verbos estativos. São os verbos que compõem predicados adjetivais e os verbos que expressam funções corporais involuntárias. Os pronomes que têm função gramatical e/ou correferencial nessa estrutura sintática são diferentes dos pronomes com essas funções na estrutura dos verbos transitivos primários e dos outros verbos intransitivos. A seguir, damos apenas os modelos de conjugação de predicados adjetivais e de verbos que expressam funções corporais.

7.2.2.1 Predicados adjetivais

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

ej eu sou bomשЀђ- ց 1 SINGULAR ej tu és bomשe- ց 2

ej ele é bomשa- ց 3

ej nós somos bonsשaka- k 1 PLURAL ej vocês são bonsשeke- k 2

ej eles são bonsשida- k 3 Quadro 28: Conjugação de um predicado adjetival

213

7.2.2.2 Funções corporais

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

1 Ѐђ- Ѐϯhen eu sangro SINGULAR 2 e- Ѐϯhen tu sangras

3 a- Ѐϯhen ele sangra

1 aka- Ѐϯhen nós sangramos PLURAL 2 eke- Ѐϯhen vocês sangram

3 ida- Ѐϯhen eles sangram Quadro 29: Conjugação de um verbo de função corporal

Desse modo, podemos ver que a estrutura sintática nas classes de verbos que se configuram como estativas é diferente da estrutura sintática encontrada para as classes de verbos que se configuram como ativas. Na estativa, o pronome de primeira pessoa não é igual nem ao sujeito nem ao objeto dos verbos transitivos primários, mas um elemento diferente. Os pronomes que constituem a estrutura gramatical dos verbos estativos não podem ser repetidos, como ocorre com os pronomes da classe ativa, para as pessoas do plural. Com os verbos estativos, tem-se que usar para o plural os pronomes livres48.

7.2.3 Verbos de emoção

Os verbos que expressam emoção em Ofayé, como vimos, apresentam uma estrutura sintática específica. O experienciador é semanticamente um Recipiente e, como tal, é marcado

48 Os pronomes de plural, com exceção de /ida/, também foram encontrados em fala espontânea com verbos da estrutura ativa. Em dados elicitados, porém, esses pronomes nunca são utilizados nessa estrutura. 214

como Dativo, constituindo-se em um Objeto Indireto do ponto de vista sintático. O objeto da emoção é semanticamente um estímulo e tratado como Objeto na estrutura sintática.

NÚM/PES SUJ VERBO

1 wa he Ѐeti [Ѐђցije] eu gosto do meu marido SG 2 e he Ѐeti [ђցije] tu gostas do teu marido

3 a he Ѐeti [aցije] ela gosta do marido dela

aka he Ѐeti [akijeْϯ] nós gostamos dos nossos maridos 1 PL eke he Ѐeti [ekijeْϯ] vocês gostam dos maridos de vocês 2

ida he Ѐeti [te ցijeْϯ] elas gostam dos maridos delas 3 Quadro 30: Conjugação de um verbo de emoção

Segundo Van Valin (2001, p. 27), “expressing experiencer arguments in the dative case is not a property of so-called ´exotic´ languages alone; it also happens in many Indo-

European languages” e cita como exemplos Espanhol, Alemão e Croata.

7.3. Definindo a estrutura sintática de Ofayé

Considerando apenas as duas classes principais, verbos transitivos primários e verbos intransitivos, temos a seguinte configuração:

a) os verbos transitivos primários são verbos de ação prototípicos e comportam-se como tal, com o Agente sendo tratado sintaticamente como Sujeito;

b) uma parte dos verbos intransitivos comporta-se sintaticamente do mesmo modo que os verbos transitivos, ou seja, seu argumento único é tratado como o Agente nas sentenças com verbos transitivos primários. Assim, A = S. De quinze classes semânticas levantadas, onze comportam-se, sintaticamente, do mesmo modo que os verbos transitivos primários, com 215

uma estrutura ativa, quer dizer, o sujeito desses verbos é o mesmo dos verbos transitivos primários.

c) Outra parte dos verbos intransitivos, incluindo-se aí, grosso modo, os predicados adjetivais, recebem uma marcação de sujeito diferente.

Por esse cenário, teríamos uma estrutura sintática do tipo que é definido na literatura como Ativa-estativa. Contudo, algumas complicações aparecem, como veremos a seguir.

Os verbos estativos – predicados adjetivais e funções corporais – tomam como argumento único um sujeito que não é agentivo. Embora, nas segunda e terceira pessoas do singular, esse argumento seja igual ao objeto dos verbos transitivos primários, o fato de o pronome utilizado com esses verbos ser diferente, na primeira pessoa, do objeto dos verbos transitivos primários não nos permite dizer que o sujeito dessa classe de verbos é tratado como o objeto dos verbos transitivos primários, o que configuraria a língua como sendo do tipo sintático ativo-estativo.

Em vez disso, o que ocorre é que esse sujeito é diferente de A, mas é também diferente de S e de O. Para efeito de descrição, chamaremos o sujeito desses verbos Internalizado ou

Inerente. Por isso, a situação em que se encaixa a estrutura sintática da língua Ofayé parece mais próxima de um tipo que apresenta intransitividade cindida, porém com o argumento

único dos verbos estativos sendo diferente do argumento Paciente dos verbos transitivos primários. No Quadro 31, tentamos um primeiro esboço dessa situação.

216

A sujeito de verbos transitivos primários Agente S sujeito de verbos intransitivos

O objeto de verbos transitivos Paciente

I sujeito de verbos estativos Internalizado Quadro 31: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos

Finalmente, há uma classe de verbos, os que expressam emoções, que apresentam uma estrutura sintática diferente. Esses verbos têm dois argumentos na estrutura sintática, semanticamente um Experienciador da emoção e um Estímulo, o alvo da emoção. O

Experienciador é tratado como Recipiente, desde que marcado como Dativo, e o Estímulo como Paciente. Essa última classe pode ser desconsiderada no estabelecimento da estrutura sintática, desde que todas as línguas parecem ter verbos que se comportam à margem do padrão predominante49.

Podemos, então, modificar o Quadro 31, acima, reelaborando-o como o Quadro 32, abaixo, para acrescentar um quinto tipo de participante e dar uma visão geral da configuração sintática da língua, no que pudemos até aqui observar.

49 Esta estratégia de marcação do argumento central sujeito como um caso oblíquo não é, contudo, propriamente exótica. Muitas línguas seguem um padrão comum, ergativo-absolutivo, nominativo-acusativo, ativo-estativo, para as demais classes de verbos, mas sentenças com verbos de percepção, emoção, cognição, seguem um padrão diferente. Entre essas línguas, inclui-se línguas bem conhecidas como Alemão, Espanhol e Croata. (VAN VALIN, 2001, pp. 27-28). 217

A sujeito de verbos transitivos primários Agente S sujeito de verbos intransitivos

O objeto de verbos transitivos Paciente

I sujeito de verbos estativos Internalizado

R sujeito de verbos de emoção Recipiente Quadro 32: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos (Revisado)

7.4 A ordem dos constituintes na estrutura sintática

Estamos considerando, sob este título, apenas o verbo e os constituintes necessários à gramaticalidade da sentença. A estrutura informacional pode vir a ser bastante diferente, mas não estaremos enfrentando a questão neste ponto.

A ordem dos argumentos na estrutura gramatical do Ofayé é bastante fluida. Andrews

(1985, p. 71) observa que tem-se encontrado “(...) systems in which there is a preferred order, but where a great deal of variation is possible as long as ambiguity is not introduced (though some languages seem to tolerate surprising amounts of ambiguity)”. Um exemplo de uma língua desse tipo, segundo Andrews, é Dakota, cuja sintaxe

(...) does not seem to be sensible to try to describe the order possibilities in terms of a basic order and specific alternatives. Rather, the order is free, subject to a sov preference, especially when needed to prevent ambiguity. This sort of system we will call ´fluid‘, as opposed to the high determinate word-order system of languages like English. (ANDREWS, 1985, p. 72). 218

A ordem dos constituintes gramaticais na estrutura sentencial em Ofayé é, como vimos demonstrando, SOV. Essa parece ser uma ordem de constituintes bastante típica em línguas do tronco Macro-jê.

7.4.1 A ordem na estrutura intransitiva ativa

Na estrutura intransitiva ativa, a ordem básica é SV. O sujeito é sempre representado por um pronome da classe ativa, /ta/, /te/, /otђ/, primeira, segunda e terceira pessoa, respectivamente. O sujeito de terceira pessoa poderá correferenciar a um nominal. Nesse caso, a ordem do nominal é bastante fluida. Ele poderá vir:

a) antes do pronome

630. [ђfo otђ hoցe]

ђfo otђ hoցe menino 3SUJ gritar-VER o menino gritou

b) depois do pronome

631. [otђ ђfo hoցe]

otђ ђfo hoցe-ցe 3SUJ menino gritar-VER o menino gritou

219

7.4.2 A ordem na estrutura transitiva

Na estrutura transitiva, a ordem dos constituintes pronominais é SOV.

632. [ta a ki]

ta a ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo/vi

Se os pronomes gramaticais correferenciarem a nomes abertos na sentença, a ordem desses nominais pode ser variada.

1) um nominal é correferenciado por /otђ/ terceira pessoa de verbos ativos, e o objeto é também expresso nominalmente. Como nos verbos intransitivos, o nominal sujeito pode vir:

a) na primeira posição da sentença, antes do pronome que o correferencia.

[a kajשΣђЀow ohtђ oktЀi kaw] .633

a kajשЀђ-Ѐow otђ oketЀi kaw 1POS-pai 3SUJ onça pintada matar meu pai matou a onça pintada

b) depois do pronome correferenciador

[a kajשohtђ ЀђЀow oktЀi kaw] .634

a kajשotђ Ѐђ-Ѐow oketЀi kaw 3SUJ 1POS-pai onça pintada matar meu pai matou a onça pintada

220

635. [otђ ђЀow te ЀoБe ka]

otђ ђЀow te ЀoБe ka 3SUJ homem REFL.POS casa construir o homem construiu a casa dele

c) depois do verbo, ou seja, ocupando a última posição na sentença

636. [otђ fܦinweցi wϯj ЀђЀow]

otђ finweցi wϯj Ѐђ-Ѐow 3SUJ pote quebrar 1POS-pai meu pai quebrou o pote

No último exemplo, o nominal [ЀђЀow] meu pai ocupa a última posição na sentença. O objeto direto [fܦinweցi] pote mantém a sua posição imediatamente antes do verbo50

[wϯj] quebrar, que é o último elemento da sentença.

Há, ainda, uma outra ordem, com todos os nominais ocorrendo depois do verbo, espelhando os pronomes correferenciadores. O pronome-sujeito /otђ/, que é obrigatório, vai estar sempre por perto do nome que ele correferencia, exceto nessa terceira ordem.

2) o sujeito é expresso pronominalmente, desde que primeira pessoa. O objeto, de terceira pessoa, é expresso nominalmente e não é correferenciado por um pronome, conforme os exemplos (637) e (638).

637. [ta fܦinweցi wϯj]

ta finweցi wϯj 1SUJ pote quebrar nós quebramos o pote

50 Lembremo-nos que, quando o objeto não é expresso por um nome, a posição imediatamente anterior ao verbo é preenchida pelo pronome-objeto. 221

638. [otђ fܦinweցi wϯj]

otђ finweցi wϯj 3SUJ pote quebrar ele quebrou o pote

A ordem é SOV. Note-se, porém, que podemos sempre considerar que o pronome para objeto de terceira pessoa pode ser [ø], o que acontece em outros tipos de estrutura. Assim, diríamos que [fܦinweցi] estaria sendo correferenciado por este elemento [ø] antes do verbo.

Se o objeto expresso nominalmente ocupar a posição comum ao objeto, a ordem SOV será mantida.

7.4.3 A ordem na estrutura bitransitiva

Na estrutura bitransitiva, com três papéis semânticos principais correspondendo aos três argumentos centrais, a ordem é, se esses argumentos são expressos pronominalmente, S-

OI-OD-V. Se alguns desses constituintes forem expressos por nomes, há variações nessa ordem. A ordem em Ofayé é extremamente fluida e é possível encontrar-se essa fluidez nos dados que vimos descrevendo, como, por exemplo, na descrição da estrutura bitransitiva. Por isso, deter-nos-emos nesta secção apenas no que nos parece ser a ordem mais básica, embora nem sempre a que mais transparece na fala fluida.

a) todos os constituintes são expressos pronominalmente, menos obviamente, no exemplo abaixo, o sujeito, porque ele é de terceira pessoa e o recipiente é de primeira pessoa.

222

639. [a he a no]

ø wa he a naw 3SUJ 1OBJ DAT 3OBJ dar ele me deu (algo)

b) todos os constituintes, desde que são de terceira pessoa, são expressos nominalmente. A estrutura básica apresentar-se-ia como no exemplo a seguir.

[iցeteשia he kשie otђ he no maܦok] .640

iցateשia he ցaשin otђ ø he naw maܦok Okwin 3SUJ 3OBJ DAT dar Maria DAT ovo Joana deu o ovo a Maria

Nessa estrutura, que estamos propondo como sendo a estrutura mais básica em que aparecem todos os constituintes da sentença gramatical em Ofayé, a ordem é Sujeito (Pron)-

Objeto Indireto (Pron)-Objeto Direto (N)-V-Objeto Indireto (N)-Objeto Direto (N), na qual todos os constituintes gramaticais têm a sua referência explicitada depois do verbo por um sintagma nominal. Para que o recipiente seja distinguido do tema – o objeto transferido – o nome referente ao recipiente é, do mesmo modo que o pronominal [ø]51 antes do verbo, marcado como Dativo.

7.4.4 A ordem na estrutura estativa

Na estrutura estativa, a ordem é SV, quando o sujeito é expresso apenas pelo pronome.

Se o sujeito for explicitado por um nominal, a ordem desse nominal é igual à que ocorre na estrutura intransitiva, acima descrita.

51 Ver, na secção 7.2.1, a nossa discussão da estrutura bitransitiva e o jogo de pronomes nessa estrutura. 223

[ejשa ց] .641

ejשa ց 3SUJ bom é bom

[ej ђfoשa ց] .642

ej ђfoשa ց 3SUJ bom menino o menino é bom

643. [a ha wekahu]

a ha weka-ta 3SUJ casca grossa-IMPF a casca é grossa

7.4.5 A ordem na estrutura com verbos de emoção

Na estrutura com verbos de emoção, a ordem é SOV, se o objeto for expresso apenas pelo pronome. O sujeito sendo marcado como Dativo, o objeto de terceira pessoa é omitido, como em (644).

644. [a he Ѐeti]

a he Ѐeti 1OBJ DAT gostar eu gosto dele

224

Se, entretanto, o objeto não for de terceira pessoa gramatical, ele pode vir expresso pelo pronome correspondente e ocupa a segunda posição na sentença, exemplo (645).

645. [a he e Ѐeti]

a he e Ѐeti 1OBJ DAT 2OBJ gostar eu gosto de você

Se explicitado por um nome, que tem referência plena, o objeto pode vir antes ou depois do verbo. A ordem mais frequente é, porém, com o nome que refere ao objeto depois do verbo, exemplo (646).

646. [a he Ѐeti Ѐђցije]

a he Ѐeti Ѐђ-ցije 1OBJ DAT gostar 1POS-marido eu gosto do meu marido

7.4.6 Complementos

Outros complementos, tanto adverbiais como adposicionais, ou seja, representando tanto papéis semânticos periféricos, não obrigatórios, como adjuntos adverbiais, circundam a estrutura básica central. Esses complementos podem vir no início ou no final da sentença.

647. [koj otђ wiցe hђ⍧ he]

koj otђ wi-ցe hђn he José 3SUJ subir-VER árvore LOC José subiu na árvore 225

Algumas vezes, em fala fluida, eles parecem estar no meio da sentença. Olhando-se, porém, com mais cuidado, pode-se ver que se trata de uma sentença complexa e que o complemento está inserido no meio de duas estruturas sintáticas básicas.

648. [taihta tawϯ a  aka jojϯ he fܦoցi Ѐihi]

ta i-ta tawϯ a aka jo-jϯ foցi Ѐihi 1SUJ ir-IMPF mato DIR.OBV 1PL.POS prole-PL mel caçar nós íamos no mato caçar mel para nosso filhos

O Quadro 33, que damos mais adiante, procura mostrar a estrutura aproximada da sentença básica em Ofayé, incluídos os constituintes não gramaticais, como advérbios, verbos auxiliares e outros itens lexicais, como certas partículas. Dizemos que a estrutura é aproximada porque é quase impossível definir a ordem de todos os elementos na sentença.

Alguns são fixos, como a negação; outros mais ou menos fixos, como os advérbios temporais, que tendem a ocorrer no início da sentença, depois da negação, e as posposições, que ocorrem sempre depois do nome a que se ligam; outros são mais fixos, como os pronomes gramaticais, que, no máximo, permitem a intercalação de um nominal entre eles ou entre eles e o verbo; outros são definitivamente fixos, como os morfemas presos de avaliação, número e aspecto.

Os auxiliares, definitivamente, possuem extrema mobilidade e comportam-se, em

[eשa] progressivo, é mais móvel enquanto [a ցaܦrelação à ordem, de modos diferentes: [ђf futuro apresenta uma ordem mais fixa, ocorrendo quase sempre, pelo menos na maior parte dos dados elicitados, antes do verbo principal. 226

ESTRUTURA BÁSICA DA SENTENÇA Neg Tempo Suj Obj Núm Asp Af Ng Nft Prc Prm FT At Est Int Ind Dir Verbo Sg Pl Pf Ipf

e otђ a Ѐђ ø he a VERBO ø jϯ ø naשø hi ø wi wiha a ցa

ta a kaj

hi ta a kaj jϯ

wi a fܦa otђ a kaցe na

wiha ta a kay

e a kajשta a ցa

Ѐe Ѐehe

ta e he ø no Quadro 33: Constituição básica da estrutura da sentença 227

7.5 Operações de mudança de valência

Algumas operações de mudança de valência foram identificadas na língua. Uma operação como passiva, entretanto, não foi encontrada. Os falantes demonstraram completo desconhecimento dessa estratégia. Sempre que a construção foi solicitada, o resultado foi uma construção ativa. Parece que o mesmo se pode dizer com relação à relativização.

7.5.1 Decréscimo de valência

Estados resultantes de ação-processo são expressos intransitiva e ativamente. Quer dizer, a estrutura sintática tem um único actante, mas esse actante deve ser ativo, como indica o uso do sujeito gramatical [otђ].

649. [otђ wϯj]

otђ wϯj 3SUJ quebrar algo quebrou/está quebrado

650. [otђ ЀђnodЋi wϯj]

o-ji wϯjשotђ Ѐђ-no 3SUJ 1POS-sentar-PART quebrar ele quebrou meu banco

O que acontece, na verdade, é que a língua não expressa esses eventos como resultados de um processo, mas como o próprio processo. Esse tipo de construção parece tirar 228

uma parte da agentividade do Verbo, uma vez que reduz a valência para um argumento, fazendo a ação reverter sobre o próprio Agente. Isso é o que alguns autores chamam “a decrease in the degree of activity of an event” (ANDREWS.; 1985, p. 157). Esse tipo de operação ocorre em Espanhol, Português e em muitas outras línguas e consiste em tomar-se um verbo transitivo, destransitivá-lo, tornando-o, desse modo, semi-ativo. A esse tipo de construção, costuma-se chamar médio-passiva. Em Português, por exemplo, podemos ter exemplos como (651).

[o kebrow mew bakuשped] .651

o kebr-o-w mew baNkoשped Pedro quebrar-VT-PAS 1PRON.POS. banco Pedro quebrou meu banco

expresso como (652), em que o Agente é omitido, diminuindo-se o grau de atividade do evento,

652. [mew baku kebrow]

mew baNko kebr-o-w 1POS banco quebrar-VT-PAS meu banco quebrou

que apresenta a mesma estrutura de (650), acima, aqui repetido como (653) para comparação.

653. [otђ ЀђnodЋi wϯj]

o-ji wϯjשotђ Ѐђ-no 3SUJ 1POS-banco-PART quebrar meu banco quebrou/está quebrado

229

654. [otђ hie ђfotn]

otђ hi-ցe ђfo-di 3SUJ morrer-VER menino-DIM a criança morreu/está morta

7.5.2 Acréscimo de valência

7.5.2.1 Transitivação

Um verbo intransitivo pode ser transitivado apenas por aumentar-se um argumento na estrutura sintática. Observemos os exemplos de (655) a (657).

655. [ta ko]

ta kaw 1SUJ ir eu vou/fui

656. [otђ ko ђfo]

otђ kaw ђfo 3SUJ ir menino o menino vai/foi

657. [ta ha ko ђfo]

ta ha kaw ђfo 1SUJ 3OBJ ir menino eu deixei o menino ir

Nesse caso, que o menino, Agente em (656), passa a ser objeto em (657). 230

7.5.2.2 Manipulação

Verbos manipulativos são criados utilizando-se uma estrutura com Dativo, assim como se faz com gostar. O sujeito de uma sentença não manipulativa, que desce para a posição de objeto na sentença manipulativa, é marcado como Dativo. A morfologia verbal permanece inalterada. De todo modo, essa parece ser uma estrutura causativa, já que o verbo permanece o mesmo, como mostra (658) quando comparado com (659).

658. [otђ ko ђfotn]

otђ kaw ђfo-di 3SUJ ir menino-DIM a criança foi

659. [ta ђfo johta]

ta ђfo jo-ta 1SUJ menino dormir-IMPF eu fazia o menino dormir/eu adormeci o menino

7.5.2.3 Reflexivização/Reciprocidade

Reflexivização, embora não seja exatamente uma operação de mudança de valência, é feita na língua pelo uso do pronome reflexivo [Ѐђ]. O índice de reflexivização é o mesmo para todas as pessoas do discurso.

231

660. [ta Ѐђ tϯ]

ta Ѐђ tϯ 1SUJ REFL cortar eu me cortei

661. [otђ Ѐђ tϯ]

otђ Ѐђ tϯ 3SUJ REFL cortar ele se cortou

[ђЀowْϯ otђ Ѐђ tϯցe] .662

ђЀow-jϯ otђ Ѐђ tϯ-ge homem-PL 3SUJ REFL cortar-VER os homens se cortaram

A reciprocidade não difere da reflexivização. Ela é efetuada da mesma forma, o que quer dizer que a língua não faz distinção entre elas e que podemos juntá-las em um só lugar.

Esse tipo de igualdade entre marcação de reciprocidade e de reflexivização pode criar ambiguidade, mas é bastante comum. A desambiguação pode ser fazer, muitas vezes, pela semântica do verbo.

663. [otђ Ѐђ oցϯ]

otђ Ѐђ o-ցe 3SUJ REFL abraçar-VER eles se abraçaram

.iցe] brigar é expresso sempre reciprocamenteשUm verbo como [ցe 232

[iցeשotђ Ѐђ ցe] .664

i-ցeשotђ Ѐђ ցe 3SUJ REFL brigar-VER eles brigaram

Comparando as duas sentenças a seguir, (665) e (666), temos a idéia exata de reflexivização, em que o sujeito e o objeto são um único referente do evento narrado/descrito.

665. [ta Ѐђ Ѐђj]

ta Ѐђ Ѐђje-ցe 1SUJ REFL vestir-VER eu me vesti

666. [ta ЀђЀa Ѐђj]

ta Ѐђ-Ѐa Ѐђje-ցe 1SUJ 1POS-filho vestir-VER eu vesti meu filho

7.6 O sintagma adposicional

O sintagma adposicional é constituído por um nome e uma posposição. A ordem dependente-núcleo continua a ser obedecida se considerarmos que o núcleo do sintagma é representado pela posposição.

667. [ЀђЀow he]

Ѐђ-Ѐow he 1POS-pai DAT para meu pai 233

668. [haցatϯ te]

haցatϯ te caminho LOC no caminho

A seguir, apresentamos os principais tipos de sintagmas adposicionais encontrados, marcados de acordo com o papel semântico que exercem na sentença.

7.6.1 Papéis semânticos

Os argumentos exigidos pela estrutura sintática, os que detêm funções gramaticais, já estão descritos em relação com a valência dos verbos. Os demais participantes da sentença, os não-termos, por assim dizer, serão descritos a seguir. Optamos aqui por partir da forma para a função, quer dizer, primeiro damos o item lexical e exemplificamos os seus valores semânticos, do nosso ponto de vista, porque deve ser evidente que, na língua, cada um desses itens tem apenas um valor. Dito de outro modo, seguiremos uma via semasiológica, definiremos as funções das formas linguísticas apresentadas.

1. [he] A posposição [he] pode marcar o que seriam os seguintes papéis semânticos:

a) Beneficiário

669. [Ѐђhtee wa he nana ]

Ѐђ-ђhten wa he nanaցe 3SUJ 1OBJ BEN cozinhar minha mãe cozinhou para mim

234

b) Recipiente

670. [wa he ђjteցi na Ѐђhtee]

ø wa he ђjteցi nanaցe Ѐђ- ђhten 3SUJ 1OBJ REC comida fazer 1POS-mãe minha mãe cozinhou para mim

c) Locativo

Locativo abrange uma gama de locações. A língua não distingue dimensões como em cima, dentro, do lado, etc.

671. [koj otђ wiցe hђ⍧ he]

koj otђ wi-ցe hђn he José 3SUJ subir-VER árvore LOC José subiu na árvore

De acordo com a teoria de casos, que postula que Locativo é um termo e não um não- termo, podemos dizer que esses participantes que, semanticamente, são diferentes, comportam-se, morfossintaticamente do mesmo modo e podem ser considerados termos e, talvez, até que semanticamente ou culturalmente eles são um único. Além disso, tomando por princípio a noção de prototipicalidade, ou de neutralização de papéis semânticos, diríamos que todos esses papéis, Recipiente, Beneficiário, Locativo, são neutralizados pela função sintática Objeto Indireto.

d) Comitativo

Outro complemento que vem indicado pela posposição [he] é o comitativo.

235

[ie heܦe ko kaցanitЀo he okשk] .672

in heܦe kaw kaցanin.ЀoБe he okשցa AUX.FUT ir cidade LOC Joana COM (eu) vou para a cidade com Joana

2. [ka]

A posposição [ka] ou [a] indica direção para um objetivo, trajeto, etc.

673. [koj otђ ko te ЀoБe ka]

koj otђ kaw te ЀoБe ka José 3SUJ ir POS.REFL casa DIR.OBV José foi para casa dele

3. [wina]

A posposição [wina] indica direção a partir de uma fonte.

674. [okܦie ЀoБe wina na hђ koj]

okܦin ЀoБe wina na hђ koj Joana casa DIR.FON 3COMPL chegar José José está chegando da casa de Joana

4. [ka]

A posposição [ka] é usada para marcar uma série diferente semanticamente de papéis.

a) instrumento, propriamente dito

236

[a kajשkinhi ka otђ ђfo kanaw .675

a kajשցinhi ka otђ ђfo kanaw faca INSTR 3SUJ menino tatu matar o menino matou o tatu com a faca

b) trajeto

676. [haցatϯ ka ђfܦa] ]

haցatϯ ka ђfܦa caminho TRAJ andar ele está andando pelo caminho

c) conteúdo

677. [hawϯ Ѐowihna haniցetϯ ka]

hawϯ Ѐowih-na haniցetϯ ka canoa cheio-IMPF areia INSTR a canoa está cheia de areia

5. [hite]

A posposição [hite] compõe um sintagma posposicional com valor de associativo.

[e okeЀak ho kotЀa hiteשk] .678

e okeЀake ho-ցe kotЀa hiteשցa AUX.FUT carne comer arroz ASS (eu) vou comer carne com arroz

237

6 [a]

Um sintagma posposicional negativo vem marcado por uma posposição que significa sem, negação. Na verdade, esse é um tipo de sintagma que também cria termos novos na língua.

679. [aЀe] cortar 680. [aЀe a] cego, sem corte

ϯj a] cego, sem olhosשϯj] olhos 682. [aցשaց] .681

683. [aЀow] pai 684. [aЀow a] órfão, sem pai

Ao contrário, para indicar que a propriedade expressa pela raiz, nominal ou verbal, é positiva, usa-se o morfema de imperfectivo [ta].

685. a Ѐehta kinhi]

a Ѐe-ta ցinhi 3SUJ cortar-IMPF faca a faca está afiada

7.7 Tipos de sentenças

7.7.1 Declarativas

As sentenças declarativas podem ser afirmativas e negativas.

238

7.7.1.1 Afirmativa

A sentença declarativa afirmativa em Ofayé opõe-se à sentença declarativa negativa pela ausência versus presença de uma partícula negativa. Ou seja, enquanto a sentença negativa é marcada, a afirmativa é não marcada. Os exemplos (686) e (687) são de sentenças afirmativas.

[aj hђhteשeցשta k] .686

aj hђteשeցשta ց 1SUJ macaco atirar eu atirei no macaco

687. [ta oktЀi hђhte]

ta oketЀi hђte 1SUJ onça atirar eu atirei na onça

7.7.1.2 Negativa

Como dissemos acima, a negação em Ofayé é a forma marcada de sentença declarativa. Ela é expressa por uma partícula [hi], que ocupa sempre a primeira posição na sentença. Neste ponto, estaremos tratando apenas da negativa sentencial, considerando sentenças básicas no que seria o modo declarativo. Os exemplos (688) e (689) são sentenças negativas correspondentes às sentenças afirmativas apresentadas na secção precedente.

239

[aj hђhteשeցשhi ta k] .688

aj hђteשeցשhi ta ց NEG 1SUJ macaco atirar eu não atirei no macaco

689. [hi ta oktЀi hђhte]

hi ta oketЀi hђte NEG 1SUJ onça atirar eu não atirei na onça

É possível que alguns verbos em Ofayé, como [Ѐeti] gostar, por exemplo, não possam

ser negados. Em vez disso, o falante utiliza um verbo com significado oposto, [aցaniْe] ter raiva, ficar bravo.

[a he ցaniْe ite ђfo] .690

wa he ø ցanije hite ђfo 1OBJ DAT 3OBJ não.gostar aquele menino eu não gosto daquele menino

[a he ђ ցaniْe] .691

wa he ђ ցanije 1OBJ DAT 2OBJ não.gostar eu não gosto de você

240

[ђЀow he ђfo ցaniْe] .692

ђЀow he ђfo ցanije SUJ DAT menino não.gostar o homem não gosta do menino

7.7.2 Interrogativa

7.7.2.1 Questões Sim-Não

Nenhuma marcação morfológica ou sintática indicativa de interrogativa polar (yes-no

Question) foi encontrada. Um padrão entoacional diferente, porém, parece marcar esse tipo de questão. Podemos comparar o par abaixo, em que temos uma pergunta e uma resposta a essa pergunta.

693. [te fܦaj]

te fa-ցe 1SUJ escutar-VER você escuta?

694. [ta fܦaj]

ta fa-ցe 1SUJ escutar-VER eu escuto

No primeiro exemplo, há um tom mais alto sobre o pronome-sujeito e uma curva ascendente caindo bruscamente na última sílaba. No segundo caso, o tom é também um pouco mais alto na primeira sílaba, mas a descida é leve em comparação com o enunciado-questão. 241

O tom é mais alto no enunciado-questão, em relação com o enunciado-resposta. de modo geral, a diferença entre pergunta e resposta, do ponto de vista entoacional, é semelhante ao que ocorre em Português.

7.7.2.2 Questões de informação

As questões de informação têm a característica de assinalar o desejo do falante de obter informação do destinatário. A questão exige que um determinado constituinte da sentença, presumivelmente ignorado pelo falante, seja identificado. Para isso, quase todas as línguas do mundo usam as chamadas palavras interrogativas (Inglês WH question, Português

Questão QU). As seguintes palavras interrogativas, referentes aos diversos participantes da sentença (argumentos e complementos) foram até agora identificadas:

1. hawe onde

[eשhaweh te ց] .695

eשhawe te ցa onde 2SUJ ir onde você vai?

ita quandoשhaցi .2

[e kawשita te ցשhaցi] .696

e kawשita te ցaשhaցi quando 2SUJ FUT ir quando você vai?

242

3. henata quem

697. [henata ekܦitajϯ]

henata eke witaje quem 2OBJ.PL cuidar quem é o cacique? (Lit.: quem cuida de vocês?)52

4. nakata o que

698. [nakata itej]

nakata hiten o.que isso o que é isso?

699. [nakata e he hϯ]

nakata e he hϯ o.que 2OBJ DAT querer o que você quer?

5. hawehta para onde

[e koשhaweh te ց] .700

e kawשhawe te ցa para.onde 2SUJ AUX.FUT ir para onde você irá?

52 Pode-se demonstrar que a palavra usada para cacique é uma construção verbal (uma descrição) e não um nome, quando observamos que a forma afirmativa é [akܦitajϯ], enquanto a forma interrogativa é [ekܦitajϯ]. A primeira pode ser glosada em termos dos seguintes elementos: [aka witajϯ] 1PL.OBJ-cuidar. A segunda, com os elementos [eke witajϯ] 2PL.OBJ-cuidar. Isso nos dá um pronome-objeto na segunda posição da estrutura, com o sujeito, a palavra interrogativa, na primeira posição, demonstrando uma ordem SOV. 243

As palavras interrogativas são as mesmas que as palavras usadas para afirmar. Assim, parece que o valor interrogativo de uma sentença somente é expresso pela entonação. O enunciado a seguir, por exemplo, não é uma questão. A palavra [haցita] como está sendo usada como o título de uma descrição, em um texto narrativo.

701. [haցita ta fܦa wiha]

haցita ta ђfa wiha como 1SUJ viver antigamente como nós vivíamos antigamente

7.7.3 Comparativas

A comparação entre dois termos pode ser feita colocando-se no adjetivo um marcador.

Se a comparação for para maior, coloca-se no adjetivo um marcador de plural. O segundo termo da comparação recebe um marcador de comparação.

[ej weשo atajϯ tikakשkaЀo] .702

ej weשo a taha-jϯ tikakשkaЀo cachorro 3SUJ grande-PL gato COMP o cachorro é maior do que o gato

703. [Ѐђhtђ hђhђdЋϯ teke okܦie we]

in weܦaPL-jϯ teke okשЀђhtђ hђhђ Margarida bonito-PL mais Joana COMP Margarida é mais bonita do que Joana

244

.e] com valor de igualשPara expressar a igualdade, usa-se uma partícula [teցi

[ie weܦe okשa Ѐђhtђ teցiשhђhђ] .704

in weܦe okשa Ѐђhtђ teցiשhђhђ bonito Margarida igual Joana COMP Margarida é tão bonita quanto Joana

7.7.4 Imperativas

Classificamos o imperativo em Ofayé como um tipo de sentença pelo fato de não apresentar sujeito e ser marcado por partículas diferentes e não por algum tipo de flexão verbal.

Há três tipos diferentes, que podem ser considerados imperativo, propriamente falando, com valor afirmativo, e proibitivo, com valor negativo do evento, além de um exortativo. Todos se manifestam por partículas pré-sentenciais.

Para o imperativo, propriamente dito, utiliza-se a partícula [he].

[iש he] .705

iש he IMP comer coma!

Para o proibitivo, a partícula utilizada é [ЀeЀa]. Dizemos que esta é uma partícula negativa do Imperativo, desde que não é a partícula normalmente utilizada para negação em outros modos verbais. 245

[i henihaցeשЀeЀa hiЀeց] .706

i heniha-ցeשЀeЀa hiЀeց PROIB porta abrir-VER não abra a porta

Enquanto nas demais formas o morfema verbalizador é opcional – o falante pode omitir no verbo esse morfema sem prejuízo para a compreensão do enunciado – nas sentenças imperativas o morfema verbalizador nunca é utilizado, o que indica que a língua distingue o imperativo de outros modos verbais. Outra particularidade das formas verbais em sentenças imperativas, é que não há sujeito com esses verbos.

O exortativo é usado somente quando o falante inclui-se na ação que está sendo sugerida. A partícula que manifesta esse ato de fala é [hej].

707. [hej kaw]

hej kaw IMP ir vamos!

7.8 Coordenação

Nesta secção, traçaremos breves considerações sobre coordenação. Não nos ocuparemos das sentenças ditas subordinadas, pois não nos foi possível enfrentar essa questão, dada a sua complexidade e a dificuldade em coletar dados precisos para esse fim.

246

7.8.1 Coordenação de sentenças

Não há conjunção, por assim dizer, para ligar sentenças coordenadas. As sentenças são apenas justapostas. Outra observação a ser feita é que o sujeito dessas sentenças coordenadas não pode ser omitido. Em (711), abaixo, o sujeito é repetido em todas as sentenças que compõem a sentença complexa.

708. [ta hђ ta ki ta Ѐђ]

ta hђ ta ցi ta Ѐђ 1SUJ chegar 1SUJ ver 1SUJ entrar eu cheguei, vi e entrei

709. [ЀђЀa a ko tiЀeneցe otђ he no aցajotђ]

Ѐђ-Ѐa a kaw tiЀene-ցe otђ ø he naw aցajotђ 1POS-filho 3SUJ ir estudar-VER 3SUJ 3OBJ DAT dar livro meu filho foi estudar e alguém deu um livro a ele

Na sentença complexa a seguir, temos uma sentença principal e quatro sentenças como complementos dessa sentença principal, todas podendo ser consideradas finalidade. Não há nenhum conector entre elas. É um tempo narrativo, neutro, sem qualquer marcação temporal ou aspectual.

[a Ѐihiשoցi Ѐihi kanawܦta ite tawϯ a aka jojϯ he f] .710

a Ѐihiשta i-ta tawϯ a aka jo-jϯ he foցi Ѐihi kanaw 1SUJ ir-IMPF mato DIR 1POS filho-PL DAT mel caçar tatu caçar [i hi aցa jawשkђtђj Ѐeցe//ok]

i hi aka jawשkђtђj Ѐeցe ok peixe pescar fome NEG nós passar nós íamos no mato caçar mel, caçar tatu, pescar peixe para nossos filhos para nós não passar fome 247

Já na sentença seguinte, as marcas temporais e aspectuais aparecem. O tempo ainda é narrativo, mas o falante está preocupado em assinalar a continuidade dos eventos e o tempo distante.

[ђ ta tohtaשite kotЀa haiet ђhi hђש wiha hi ta] .711

ђ ta tohtaשite kotЀa hђidi ђhi hђש wiha hi ta antigamente NEG 1SUJ comer arroz feijão bicho assar 1SUJ comer- IMPF antigamente, nós não comíamos arroz nem feijão, assávamos bicho e comíamos

Uma tradução mais literal para a sentença acima dar-nos-ia o seguinte: Antigamente, nós não comíamos arroz, feijão. Assando bicho, nós comíamos.

7.8.2 Coordenação de termos

Algumas vezes, parece que a coordenação de termos não é possível. Na sentença seguinte, por exemplo, não conseguimos que os entrevistados nos dessem o objeto composto coordenadamente. Em vez disso, tivemos, sempre, as duas orações justapostas.

712. [otђ fܦiketaϯ akae otђ fitajϯ kaj]

otђ fiketaϯ kaj otђ fitajϯ-jϯ kaj 3SUJ jacarés matar 3SUJ anta-PL matar ele matou jacarés e antas (Lit.: ele matou jacarés, ele matou antas)

Entretanto, em fala espontânea, em textos narrativos, tivemos exemplos de coordenação de termos, como ilustrado em (713), a seguir.

248

[iketa ђheܦϯ he hahtϯ fשta he no k] .713

ϯ he hahtϯ⍧ fiketa ђheשta ø he naw k 1SUJ 3OBJ DAT dar Kré DAT flor marolo goivira eu dei flores, marolo e goivira para Kré (Tia Cida)

249

CONCLUSÃO

No capítulo sobre Capítulo 1, fizemos uma análise em que apresentamos os sons da fala, o inventário de fonemas da língua e os principais processos de realização dos fonemas. A estrutura da sílaba, primeiro foneticamente e em seguida do ponto de vista fonológico, foi descrita. Foram apresentados casos de alternação de morfemas que ainda precisam de uma análise mais profunda a fim de se determinar a natureza dessas alternações. Assumimos que o tom não tem um papel na fonologia da língua e que, em relação ao acento, Ofayé pode ser definida como uma língua de pés livres que não se presta a uma análise métrica.

Muitos dos fatos descritos, e para os quais assumimos algumas posições mais ousadas, seguramente merecem uma análise mais profunda. Entre esses casos, incluímos as questões

tЀ] e] ,[ש] referentes à inexistência de vogais longas subjacentes e à inclusão dos segmentos

[dЋ] no inventário de fonemas, considerando-se, para isso, um nível menos profundo de representação, ainda que, na descrição dos processos de realização de fonemas, tenhamos proposto regras que os derivam de representações lexicais. Entretanto, como uma análise preliminar, assumimos o princípio gerativista que sustenta que diferentes hipóteses são válidas, embora não definitivas, e que precisam ser testadas mais amplamente, o que não nos foi permitido por diversos tipos de escassez.

No Capítulo 2, descrevemos o nome com suas propriedades morfológicas e sintáticas e a constituição e comportamento do sintagma nominal. Vimos que o nome divide-se em três subclasses semânticas, de acordo com a categoria posse: inalienáveis, alienáveis e não possuíveis. A distinção morfológica no sistema de posse é muito sutil, marcada mais precisamente na primeira pessoa do singular. Nas demais pessoas, o que caracteriza inalienabilidade versus alienabilidade é muito mais a obrigatoriedade versus a não 250

obrigatoriedade de uma marca de possuidor. Uma categoria definida mais cultural do que semanticamente é a que chamamos de posse enfática. Além dos morfemas propriamente ditos que acompanham o nome – número e grau – descrevemos os constituintes do sintagma nominal – determinantes e modificadores – e os processos de formação de palavras, tanto através do uso de mecanismos morfológicos– basicamente composição e derivação – quanto sintáticos. Os mecanismos sintáticos são os mais utilizados, ou seja, novos nomes na língua são criados a partir de relações genitivas, posse e de relações internas ao sintagma verbal, como no caso de formações com verbo – objeto direto. Os sufixos derivacionais são poucos, mas são usados intensamente na criação de novos nomes.

No Capítulo 3, tratamos dos verbos, que se distribuem em classes semânticas com estruturas sintáticas específicas para determinadas classes, mas a estrutura sintática exigida por alguns verbos parece depender da situação de uso, o que ocorre basicamente com fenômenos temporais e verbos de posição. A morfologia do verbo mostrou, como a do nome, pouca morfologia. Por isso, optamos por apresentar, como havíamos feito com o nome, o

Verbo e o Sintagma Verbal. À raiz verbal, agregam-se apenas os sufixos de aspecto e um marcador opcional de concordância em número com o sujeito. Todas as outras categorias, como pessoa, tempo, função dos participantes, são expressas por formas livres, tais como pronomes, advérbios e auxiliares.

As análises do nome e do verbo permitem-nos propor que Ofayé é uma língua que se enquadra, em uma tipologia morfológica escalar, em um ponto intermediário na escala. Não se trata de uma língua aglutinante, pois parte dos morfemas são difíceis de serem detectados na estrutura interna da palavra, apresentando muita alomorfia e, por isso, configurando-se mais como uma língua fusionante. Por outro lado, há muito poucos morfemas por palavra, a maior parte dos significados sendo expressos lexicalmente. Desse ponto de vista, portanto, ela se aproxima também do extremo isolante da escala. 251

Do ponto de vista sintático, de acordo com a descrição efetuada no Capítulo 7, podemos considerar a língua como apresentando características de línguas com estrutura ativa/estativa. De acordo com o modo como os pronomes são usados, porém, dizemos que a língua apresenta uma intransitividade cindida, dado que os verbos intransitivos são divididos em duas classes, uma que se comporta do mesmo modo que os verbos transitivos primários e outra que recebe outro tipo de sujeito. Ao lado dessa estrutura predominante, há algumas construções marginais, como, por exemplo, a construção com verbos de emoção e de cognição, que apresentam um sujeito marcado como Dativo e, portanto, com papel semântico

Recipiente, na estrutura sintática.

As construções complexas mostraram-se extremamente difíceis quando tentamos fazer a sua descrição. Não se revelaram com clareza nem em textos espontâneos nem em dados elicitados. Não as tratamos, portanto, verdadeiramente, neste trabalho. Apenas alguns casos mais simples, como coordenação, foram sucintamente apresentados.

Conforme dissemos no início deste trabalho, esta é uma descrição ainda preliminar de

Ofayé. Consideramos que objetivos básicos do nosso projeto, que eram fazer esta descrição e propor um sistema ortográfico para a língua, para, a partir daí, elaborar materiais didáticos de apoio ao ensino de Ofayé na comunidade de Brasilândia, foram alcançados. Uma cartilha está sendo usada experimentalmente na aldeia. Junto com a nossa colaboradora e professora de

Ofayé, Marilda de Souza, esperamos poder dar continuidade ao trabalho, corrigindo a cartilha e elaborando novos materiais. Também um dicionário Ofayé-Português/Português-Ofayé encontra-se em fase de conclusão em uma versão em transcrição fonético-fonológica. Sua transposição para uma versão em ortografia Ofayé dependerá das correções feitas no sistema ortográfico a ser proposto e da sua aceitação pela comunidade. 252

Mais, porém, do que simplesmente cumprir os objetivos acadêmicos deste empreendimento, ficaremos felizes se tivermos cumprido a nossa missão de responder aos anseios da Nação Ofayé, O Povo do Mel. 253

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TEIXEIRA, R. F. A. 1995. As línguas indígenas no Brasil. In: Silva, A. L. e Grupioni, L. D. B. (Org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília MEC/MARI/UNESCO.

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WHALEY, L. 1997. Introduction to typology. The unity and diversity of language. Thousand Oaks/London/New Delhi: Sage. UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

MACEIÓ 2006

MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Linguística.

Profa. Dra. Januacele Francisca da Costa Orientadora

Profa. Dra. Adair Pimentel Palácio Co-orientadora

Maceió 2006

Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca Central Divisão de Tratamento Técnico Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale

O48o Oliveira, Maria das Dores de. Ofayé, a língua do povo do mel : fonologia e gramática / Maria das Dores de Oliveira. – Maceió, 2006. 258f.

Orientadora: Januacele Francisca da Costa. Co-Orientadora: Adair Pimentel Palácio. Tese (doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Maceió, 2006.

Bibliografia: f. 253-258.

1. Índios da América do Sul – Brasil – Língua e Linguagem. 2. Índios Ofayé. 3. Língua Ofayé – Linguística. I. Título. CDU: 809.8

ii

MARIA DAS DORES DE OLIVEIRA

OFAYÉ, A LÍNGUA DO POVO DO MEL FONOLOGIA E GRAMÁTICA

Maceió, 19 de abril de 2006

Tese submetida à Comissão Examinadora designada pelo Colegiado do Curso de Pós- Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas como requisito parcial para obtenção do grau de Doutora em Linguística. (Aprovada em 19 de abril de 2006.)

Profa. Dra. Januacele Francisca da Costa (UFAL)

Profa. Dra. Adair Pimentel Palácio (UFPE)

Prof. Dr. Angel Corbera Mori (UNICAMP)

Profa. Dra. Sílvia Aguiar Carneiro Martins (UFAL)

Prof. Dr. Aldir Santos de Paula (UFAL)

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Ao povo Ofayé

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AGRADECIMENTOS

Ao Povo Ofayé, pela acolhida, amizade e ensinamentos sobre sua língua e seu modo de vida.

Ao cacique José de Souza (Koy), que colaborou sistematicamente para a realização deste trabalho, tanto fornecendo informações sobre a língua e o povo, como permitindo formalmente a minha entrada na comunidade.

Aos meus amigos e professores de Ofayé, Marilda de Souza (Xahtä), Joana Coimbra

(Okwin-e) e João Carlos de Souza (Käe), pela paciência, ensinamentos e receptividade para minha pesquisa com a língua.

Aos demais povos da comunidade – não-índios e índios Kaiwá e Guarani - que contribuíram para os bons momentos de convivência e oportunidade de intercâmbio cultural.

A minha orientadora, Januacele da Costa, pela paciência e incentivo para a realização do trabalho. Sua dedicação, empenho e tolerância tornaram esse trabalho possível. Meu carinho e agradecimento por tudo que tenho aprendido com você e sua família que também adotei como minha.

A minha co-orientadora Adair Pimentel Palácio, pelo carinho, amizade e sugestões valiosas para o trabalho. Obrigada por seus ensinamentos, sua alegria genuína e o incentivo à pesquisa.

Aos meus sobrinhos por adoção, Carol, Diogo, Claudeane, Fábia (minha parente

Fulni-ô) pela atenção e receptividade nas muitas vezes de nossa convivência, o que tornou a vida mais doce, mais leve, mais feliz. Em especial, agradeço a Fábio, pela disponibilidade em atender aos diversos favores solicitados, e a Lara pela sábia e pronta ajuda com o computador.

Aos amigos e grandes incentivadores Celso Brandão, Silvia Martins, Miriam Alves,

Alexandrina, Celsa, Nazaré, Edna, Cristina, Selma e Vitória, minha professora de Inglês.

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Ao Programa da Pós-Graduação em Letras e Linguística da UFAL, pela acolhida e por me permitir ampliar os conhecimentos.

Aos professores deste Programa pelos ensinamentos e discussões prazerosas nas aulas de Linguística.

Aos Professores da minha qualificação de tese, Aldir Santos de Paula, Adair Pimentel

Palácio e Paulo José da Silva Valença, por suas observações, sugestões e incentivo.

Aos colegas de curso, em especial, Eliane, Eronilma e Luzia, com as quais criei laços.

A Pós Graduação do IEL/UNICAMP, que me recebeu para o Programa Sanduíche.

Em especial, aos Professores que me aceitaram em seus cursos, Wilmar da Rocha D’Angelis,

Filomena Spatti Sândalo e Angel Corbera Mori, meu orientador na UNICAMP. Agradeço imensamente a este professor pela atenção, apoio e disponibilidade para as leituras e sugestões valiosas para meu trabalho.

Aos meus colegas de pesquisa em línguas indígenas da UNICAMP, pelo apoio e encontros festivos.

À Fundação Ford, pelo apoio financeiro recebido através do Programabolsa, que me permitiu desenvolver minha pesquisa em boas condições de trabalho.

À Fundação Carlos Chagas, que coordena o Programabolsa admiravelmente e me fez sentir incluída em uma grande família.

Aos colegas do Programabolsa, pelo apoio e incentivo e por compartilharmos dos mesmos ideais de justiça e equidade social.

À FUNAI, pela liberação das minhas atividades profissionais e permissão para entrada na comunidade Ofayé.

Aos colegas da FUNAI, pelo carinho e amizade, especialmente àqueles com os quais tenho contato mais próximo: Leonice (Maceió), Inalda e Estela (Recife), João Valdez e sua

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esposa Emy (Campo Grande), que me receberam diversas vezes em sua casa, me levaram para conhecer os Ofayé e me deram apoio incondicional para a realização da pesquisa.

Por fim, agradeço a minha família pela compreensão do meu distanciamento em razão da pesquisa e aos demais parentes Pankararu, que, com seus ensinamentos e exemplos, me fizeram acreditar na possibilidade de ultrapassar limites, me encorajaram a ousar e enfrentar os desafios que um trabalho como esse apresenta.

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RESUMO

Esta é uma descrição da Fonologia e de Gramática da língua Ofayé, uma língua indígena brasileira filiada ao Tronco linguístico Macro-Jê e sem relação de família com outra língua conhecida. A língua Ofayé é falada pelos Ofayé, índios que vivem em uma aldeia a que eles próprios chamam Akanõdji – nosso lugar – situada no município de Brasilândia, Estado do Mato Grosso do Sul. Nesta descrição, descrevemos os sons da língua e apresentamos os inventários de fonemas, consoantes e vogais, baseando-nos em contrastes e distribuição, discutimos a estrutura da sílaba fonética e fonológica e alguns processos de realização de fonemas, além de darmos uma descrição sucinta de algumas alomorfias e tecermos breves considerações sobre acento e tom. O nome e o verbo, no nível da palavra e do sintagma, são também descritos e o verbo é apresentado em termos de classes semânticas que vão definir as principais estruturas sintáticas da língua. Tanto o nome quanto o verbo são descritos mais extensamente, apresentando-se as categorias que os definem e as suas relações no sintagma.

As duas outras classes principais de palavras, adjetivos e advérbios, também foram descritas.

As classes fechadas, que, na maioria, exercem funções gramaticais, são discutidas em diversas partes do texto, juntamente com o nome, o verbo e na sintaxe. Por isso, somente aquelas classes fechadas que não aparecem nesses outros pontos são levantadas em um capítulo específico. Do ponto de vista sintático, definimos a estrutura sintática da língua e descrevemos diversos aspectos da sintaxe, como os tipos de sentenças, o sintagma adposicional e a coordenação de sentenças e de termos. Concluímos enfatizando algumas questões levantadas durante as análises efetuadas e apresentando sugestões para uma classificação tipológica da língua, tanto na morfologia quanto na sintaxe.

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ABSTRACT

This is a description of the phonology and grammatical aspects of Ofayé, a Brazilian

Indian language of which is thought to be affiliated to the linguistic stem Macro-Jê but with no relation to any other known language. The Ofayé language is spoken by the Ofayé Indians who live in a village called by the Indians themselves Akanõdji – which means our place - situated in Brasilândia, in the state of Mato Grosso do Sul. In this work, the sounds of the language are described, and the inventory of the phonemes, consonants and vowels are presented on the grounds of contrasts and distribution. We discuss the phonetic and phonological syllable structure of the phonetic syllable and some processes of phoneme realization; in addition to giving a brief description of some allomorphs, we also address stress and tone. The noun and the verb, on the levels of word and phrase, are also described; the verb is shown on the basis of semantic classes which in turn define the main syntactic structures of the language. Both the noun and the verb are more extensively described and we present the categories which define them specifying their relations within the phrase. Two other main classes – the adjectives and adverbs – are described, as well. The closed classes which for the most part play grammatical roles are discussed along the text together with the noun and the verb, and also in the syntax. Specific chapters are assigned to address other closed classes which have not been mentioned so far. On the grounds of the syntax, we define the structure of the language and describe the aspects such as types of sentences. We conclude this work both emphasizing some questions arisen along the making of the analyses as well as presenting suggestions for a typological taxonomy in what concerns the morphology and syntax of the studied language.

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ABREVIATURAS E SÍMBOLOS

σ - Sílaba FEM - Feminino 1 - Primeira pessoa FON - Fonte 2 - Segunda pessoa FUT - Futuro 3 - Terceira pessoa IMP - Imperativo ADJ – Adjetivo IMPF - Imperfectivo AF – Afirmativa INC - Inceptivo ANT - Anterior IND - Indireto ASP – Aspecto INSTR - Instrumental ASS - Associativo INT - Internalizado AT – Ativo INTR - Verbo Intransitivo ATRIB - Atributivo LOC - Locativo AUM - Aumentativo NEG - Negação AUX – Auxiliar NEU - Neutro BITR - Verbo Bitransitivo NFUT - Não futuro C – Consoante NUM - Número COM - Comitativo OBJ - Objeto COMP - Comparativo OBV - Objetivo COMPL - Completivo OD - Objeto Direto CONCL - Conclusivo OI - Objeto Indireto CONT - Continuativo PART - Particípio CPT – Composto PAS - Passado DAT – Dativo PES - Pessoa DEM - Demonstrativo PF - Perfectivo DET - Determinante PL - Plural DIM - Diminutivo POS - Possessivo DIR – Direcional PRED - Predicativo ENF – Enfático PRES - Presente ESP - Especificador PROIB - Proibitivo EST – Estativo PRON - Pronome

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QUANT- Quantificador REC - Recente RECIP - Recipiente REFL - Reflexivo REL - Relativo REM - Remoto SG - Singular SOB - Sujeito-Objeto-Verbo SUF. - Sufixo SUJ - Sujeito SV - Sujeito-Verbo TRAJ - Trajeto TRANS - Verbo Transitivo V - Vogal VER - Verbalizador VT - Vogal Temática

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------19

1 QUEM SÃO OS OFAYÉ ------19 2. O PROJETO ------25 3 A LÍNGUA ------30 4 AS BASES TEÓRICA E METODOLÓGICA ------32 5 A PESQUISA DE CAMPO ------33 6 A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ------33

CAPÍTULO 1: FONOLOGIA ------36

1.1 Introdução ------36

1.2 Cartas fonéticas ------36 1.2.1 Segmentos consonantais ------36 1.2.2 Segmentos vocálicos ------38

1.3 Inventários de fonemas ------39 1.3.1 Fonemas consonantais ------39 1.3.2 Fonemas vocálicos ------41

1.4 A estrutura da sílaba ------43 1.4.1 A sílaba fonética ------43 1.4.2 A sílaba fonológica ------46

1.5 Processos de realização de fonemas ------51 1.5.1 Processos de realização de consoantes ------51 1.5.1.1 Labialização ------51 1.5.1.2 Dessonorização de oclusivas ------54 tЀ] $ [dЋ] ------58] $ [ש] $ [Alternância [t] $ [d 1.5.1.3 1.5.1.4 Oclusivas em coda silábica ------67 1.5.1.4.1 Oclusiva surda final com relaxamento oral ------67 1.5.1.4.2 Oclusiva surda final com relaxamento nasal ------68 1.5.1.4.3 Oclusiva surda medial com relaxamento oral ------68 1.5.1.4.4 Oclusiva sonora medial com relaxamento oral ------69 1.5.1.4.5 Oclusiva sonora medial com relaxamento nasal ------69 1.5.1.5 Nasalização de /d/ ------70 1.5.1.6 Nasalização de aproximante coronal ------73 1.5.1.7 Epêntese de [h] ------74 1.5.1.8 Elisão e fusão de glide lábio-velar em início de palavra ------75 1.5.1.9 Apagamento de /h/ em sílaba inicial ------75 1.5.1.10 Degeminação de plosivas ------76

1.5.1.11 Vocalização de coda nasal? ------78 1.5.2 Processos de realização de fonemas vocálicos ------80 1.5.2.1 Alongamento de vogais ------80 1.5.2.2 Elisão de vogais em fronteira de morfema e de palavra ------84 1.5.2.3 Crase ------85

1.5.3 Formação de onset complexo ------85

1.5.4 Observações sobre a morfofonologia------86 1.5.4.1 Morfema de aumentativo ------86 1.5.4.2 Morfema de aspecto ------87

1.6 Aspectos suprassegmentais ------89 1.6.1 Tom e acento ------89

CAPÍTULO 2: O NOME E O SINTAGMA NOMINAL ------93

2.1 Introdução ------93

2.2 A Classe nome em Ofayé------93 2.2.1 As categorias nominais ------96 2.2.1.1 Posse ------96 2.2.1.1.1 Nomes inalienavelmente possuíveis ------97 2.2.1.1.2 Nomes alienavelmente possuíveis ------101 2.2.1.1.3 Nomes não possuíveis ------103 2.2.1.2 Número ------104 2.2.1.3 Gênero ------105

2.3 O Sintagma Nominal ------106 2.3.1 Determinantes ------107 2.3.1.1 Demonstrativos ------107 2.3.1.2 Quantificadores ------109 2.3.1.2.1 Quantificadores numéricos ------109 2.3.1.2.2 Indefinidos ------111 2.3.1.2.3 Nome contável versus nome de massa ------112 2.3.2 Modificadores ------114 2.3.2.1 Nome em função de modificador ------114 2.3.2.1.1 Modificadores nominais em construção genitiva ------114 2.3.2.1.2 Modificadores nominais em construção possessiva ------117 2.3.2.2 Adjetivo em função de modificador ------118 2.3.3 A concordância no sintagma nominal ------119 2.3.4 A ordem das palavras no sintagma nominal ------120 2.3.4.1 Ordem das palavras na relação de posse e em construção genitiva ------120 2.3.4.2 A ordem Nome-Modificador adjetival ------121

2.4 Processos de formação de palavras ------121 2.4.1 Composição ------121 2.4.1.1 Justaposição modificado-modificador ------122

2.4.1.1.1 Nome + Nome ------122 2.4.1.1.2 Nome + Nome + Adjetivo ------124 2.4.1.1.3 Objeto-verbo------124 2.4.2 Derivação ------125 2.4.2.1 Avaliação ------125 2.4.2.2 Nominalização ------126 2.4.2.3 Verbalização ------127

CAPÍTULO 3: O VERBO E O SINTAGMA VERBAL ------128

3.1 Introdução ------128

3.2 Classes semânticas de verbos em Ofayé ------129 3.2.1 Fenômenos temporais ------129 3.2.2 Processos involuntários------133 3.2.3 Funções corporais ------135 3.2.4 Movimento voluntário ------136 3.2.5 Posição ------137 3.2.5.1 [ano⍧ցܦe] sentar, levantar ------137 3.2.5.2 [hϯhϯ] estar em pé ------139 3.2.5.3 [aЀi⍧ցe] deitar ------140 3.2.6 Ações ------141 3.2.7 Ações-processos ------142 3.2.8 Cognição ------144 3.2.9 Percepção ------144 3.2.10 Emoção ------146 3.2.11 Enunciados ------148 3.2.12 Predicados adjetivos ------152 3.2.13 Predicados existenciais------154 3.2.14 Predicados locativos ------155 3.2.15 Predicados possessivos ------156

3.3 Resumo ------157

3.4 Categorias verbais ------162 3.4.1 Tempo ------164 3.4.2 Argumentos pronominais ------166 3.4.3 Morfema verbalizador ------172 3.4.4 Aspecto ------173 3.4.4.1 Perfectivo vs. Imperfectivo ------174 3.4.4.2 Inceptivo vs. Completivo ------180 3.4.4.3 A interrelação Tempo-Aspecto ------181 3.4.5 Concordância ------185

CAPÍTULO 4: ADJETIVOS ------187

4.1 Introdução ------187

4.2 Adjetivo em Ofayé ------188

CAPÍTULO 5: ADVERBIAIS ------191

5.1 Introdução ------191

5.2 Adverbiais em Ofayé ------191 5.2.1 Palavras adverbiais ------191 5.2.2 Sintagmas adverbiais ------194

CAPÍTULO 6: CLASSES FECHADAS DE PALAVRAS ------196

6.1 Introdução ------196

6.2 Pronomes ------196 6.2.1 Pronomes livres ------197 6.2.2 Pronome Reflexivo/Recíproco ------197

6.3 Marcadores de polidez ------199

6.4 Respostas a questões polares ------200

CAPÍTULO 7: SINTAXE ------201

7.1 Introdução ------201

7.2 A estrutura sintática do Ofayé ------201 7.2.1 Verbos ativos ------202 7.2.1.1 Intransitivos ------202 7.2.1.2 Transitivos ------203 7.2.1.3 Bitransitivos ------205 7.2.2 Verbos estativos ------212 7.2.2.1 Predicados adjetivais ------212 7.2.2.2 Funções corporais ------213 7.2.3 Verbos de emoção ------213

7.3. Definindo a estrutura sintática de Ofayé ------214

7.4 A ordem dos constituintes na estrutura sintática ------217 7.4.1 A ordem na estrutura intransitiva ativa------218

7.4.2 A ordem na estrutura transitiva------219 7.4.3 A ordem na estrutura bitransitiva ------221 7.4.4 A ordem na estrutura estativa ------222 7.4.5 A ordem na estrutura com verbos de emoção ------223 7.4.6 Complementos ------224

7.5 Operações de mudança de valência ------227 7.5.1 Decréscimo de valência ------227 7.5.2 Acréscimo de valência ------229 7.5.2.1 Transitivação ------229 7.5.2.2 Manipulação ------230 7.5.2.3 Reflexivização/Reciprocidade ------230

7.6 O sintagma adposicional------232 7.6.1 Papéis semânticos ------233

7.7 Tipos de sentenças ------237 7.7.1 Declarativas ------237 7.7.1.1 Afirmativa ------238 7.7.1.2 Negativa ------238 7.7.2 Interrogativa ------240 7.7.2.1 Questões Sim-Não ------240 7.7.2.2 Questões de informação ------241 7.7.3 Comparativas ------243 7.7.4 Imperativas ------244

7.8 Coordenação ------245 7.8.1 Coordenação de sentenças ------246 7.8.2 Coordenação de termos ------247

CONCLUSÃO ------249

REFERÊNCIAS ------253

ÍNDICE DE QUADROS E DIAGRAMAS

Quadro 1: Carta de segmentos consonantais ------37

Quadro 2: Carta de segmentos vocálicos ------38

Quadro 3: Fonemas consonantais ------40

Quadro 4: Inventário de fonemas vocálicos ------42

Diagrama 1: Sílaba fonética ------46

Quadro 5: Ditongos crescentes ------49

Quadro 6: Ditongos decrescentes ------49

Diagrama 2: Sílaba fonológica ------50

Quadro 7: Constituição morfológica do nome ------95

Quadro 8: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: termos de parentesco ------97

Quadro 9: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: partes do corpo ------98

Quadro 10: Paradigma dos prefixos de posse em nomes alienavelmente possuíveis:objetos de uso ------101

Quadro 11: O sistema de prefixos possessivos de Ofayé ------104

Quadro 12: Constituição do sintagma nominal ------106

Quadro 13: Estrutura 1: verbos ativos (transitivos e intransitivos) ------158

Quadro 14: Estrutura 2: verbos inativos (intransitivos) ------159

Quadro 15: Estrutura 3: verbos de emoção e cognição ------160

Quadro 16: Estrutura 4: verbos ativos (bitransitivos) ------160

Quadro 17: Outros casos ------161

Quadro 18: Tipos de verbos e pronomes-sujeito ------161

Quadro 19: Estrutura gramatical da sentença ------163

Quadro 20: Pronomes gramaticais sujeito e objeto de verbos transitivos ativos ------168

Quadro 21: Pronomes gramaticais-sujeito de verbos estativos ------169

Quadro 22: A interrelação Tempo/Aspecto ------183

Quadro 23: Pronomes livres ------197

Quadro 24: Conjugação de um verbo intransitivo ------203

Quadro 25: Conjugação de um verbo transitivo ------204

Quadro 26: Pronomes que desempenham funções sintáticas centrais ------210

Quadro 27: Jogo das pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva ------210

Quadro 28: Conjugação de um predicado adjetival ------212

Quadro 29: Conjugação de um verbo de função corporal ------213

Quadro 30: Conjugação de um verbo de emoção ------214

Quadro 31: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos ------216

Quadro 32: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos (Revisado) ------217

Quadro 33: Constituição básica da estrutura da sentença ------226

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INTRODUÇÃO

1 Quem são os Ofayé

Os índios conhecidos historicamente como Ofayé ou Ofayé-Xavante estão localizados na cidade de Brasilândia, Mato Grosso do Sul. Essas denominações não são únicas e não se tem ainda um consenso na representação ortográfica do nome desse povo: Ofayé, Ofaié,

Opaié, Opayé, Ypaié, Afaiá, Faié, Faia, Kukura, Xavante, Chavante, Shavante, Chavante-

Ofaié, Chavante-Opaié, Guachi são alguns dos nomes encontrados na literatura sobre esses

índios. (DUTRA, 1996 e 2004). Nossa opção é pela designação Ofayé, grafia comumente empregada na literatura atual sobre línguas indígenas brasileiras - Teixeira (1995) e Rodrigues

(2000), por exemplo - e aceita pelos próprios índios dessa etnia. Ofayé, que na língua Ofayé significa índio, é a autodenominação do grupo. Xavante1 é um nome dado pelos não-índios, comumente empregado para designar outros povos indígenas – os Akwe do Rio das Mortes e os Otí dos Campos Novos de São Paulo. (RIBEIRO, 1980). Os Ofayé consideram-se bastante distintos de seus homônimos, os Xavante. Sabe-se, porém, que eles mantêm, pelo menos, dois traços em comum: preferem viver nos campos e suas línguas pertencem ao tronco linguístico

Macro-Jê.

A história de vida dos Ofayé não é diferente da história dos demais povos indígenas brasileiros. Vítimas de grandes massacres e perseguições, os Ofayé foram quase totalmente destruídos pelas doenças, escravidão e, sobretudo, pelo avanço da criação de gado em suas terras. Ribeiro (1986; p. 84-85) retrata bem a situação de violência sofrida por esses índios.

1 De acordo com Dutra (2004, p. 47) em referência a Loukotka (1939, p.150) e ao Projeto RADAM-BRASIL (1982, p. 288) o nome Xavante é provavelmente uma alusão à região onde vivem esses índios, na qual a vegetação do tipo savana é predominante e corresponde ao cerrado sul mato-grossense. O termo savana, ele esclarece, é um conceito fitogeográfico de origem venezuelana levado para a África no século XV pelos naturalistas espanhóis e depois retornado para América sob os olhos dos viajantes na paisagem do Centro-Oeste brasileiro, onde habitavam vários povos indígenas. 20

À margem direita do Paraná entre o Sucuriju e o Ivinhema viviam os Ofaié- Xavante, contra os quais se lançou, em meados do século passado, a mesma onda de criadores de gado vinda do Rio São Francisco e que vimos investir sobre os Kayapó. Em sua fuga, os Ofaié se deslocaram para o sul onde foram encontrar outra fronteira de expansão pastoril que penetrava a região, vinda dos campos do Rio Grande do Sul. Assim cercados, esses índios foram dizimados sob as mesmas alegações que vimos levantar-se desde o Nordeste: seriam ladrões de gado que abatiam reses como se fossem veados ou porcos selvagens. O certo é que nenhum esforço foi feito pelos civilizados para se acercarem desses índios; os criadores simplesmente faziam chacinar cada grupo descoberto, quando um novo retiro de criação era fundado.

O genocídio praticado contra os Ofayé resultou numa depopulação de grandes proporções. Dutra (2004, p. 47) afirma que havia pelo menos duas dezenas de aldeamentos

Ofayé ao longo da margem direita do rio Paraná, que seguia desde a foz do rio Verde até o leito do Ivinhema, numa faixa aproximada de 70 mil quilômetros, estendendo-se pela margem sul-matogrossense, e avançava até a divisa com o Estado de São Paulo. Conforme Ribeiro

(op. cit), estima-se que em 1903, no primeiro contato oficial desses índios com o General

Cândido Mariano da Silva Rondon, existia uma população de 2.000 Ofayé. Em 1910, esse número caiu drasticamente para pouco mais de 900 indivíduos até chegar a menos de uma dezena por volta da década de 1970. A partir dessas informações, acreditou-se, então, no completo extermínio dessa etnia.

Entretanto, não foi o que aconteceu. Destituídos de suas terras e apagados2 do cenário nacional, os Ofayé estavam entregues à própria sorte. A estratégia era buscar alternativas de sobrevivência. Organizados em pequenos núcleos familiares, esses índios espalharam-se em fazendas da região onde estava localizado seu antigo território, explorados como mão-de-obra barata. Os índios afirmam que durante o tempo de dispersão do grupo sequer sabiam da existência da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Todavia, mesmo em circunstâncias de

2 Os Ofayé, ao que parece, sempre foram invisíveis aos olhos da sociedade nacional. Dutra (2004, p. 45) afirma que estes índios só passaram a ser percebidos (e dominados!) a partir da Republica, quando ocorreu uma sistemática ocupação das terras sul mato-grossenses pelos criadores de gado. 21

adversidades extremas, permaneceram unidos por um laço comum: a identidade étnica. Dutra

(1996, p. 129) apresenta a situação do seguinte modo:

Perdido o controle físico do grupo por parte do órgão oficial, por vinte anos não se ouve mais falar em Ofaié. Convivendo com essa idéia, a sociedade civil mais esclarecida acaba também por esquecê-los. A anônima resistência de um pequeno grupo que não soçobrou, entretanto, os mantém unidos na língua e nos costumes. Desafiam de maneira admirável a imposição cultural que lhes é imposta, preservando o mínimo de seu modus vivendi.

Em 1978, os Ofayé foram contatados pelo órgão oficial de apoio aos índios – a

FUNAI – que, reconhecendo a fragilidade e miséria em que se encontravam esses índios, propõe a sua remoção para outra localidade. No depoimento a seguir, é relatada a grave situação em que viviam os Ofayé e o consequente deslocamento de suas terras.

A FUNAI criou um projeto... de um parque indígena nas terras do Kadiwéu e... por isso que ... nós fomos jogados lá... [E como estava a situação dos Ofayé antes da transferência para o território dos Kadiwéu?] Era uma situação realmente dramática. Nós estávamos passando fome, jogados no meio de vacas dos fazendeiros... quando morria um índio... era um problema grave... e foi bem na época que morria um índio quase todo dia. Às vezes de doença, bebida alcoólica é... fome, né? Enquanto isso, estava acontecendo essa barbaridade, o fazendeiro estava... já tava tomando o restinho de terra que nós tínhamos na época. Já estava fazendo a cerca, derrubando tudo... e nós não sabíamos que um grupo de políticos na cidade de Brasilândia também estava articulando a transferência dos índios Ofayé para a região de Bodoquena. (ATAIDE OFAYÉ, março 2004).

A promessa era levá-los para uma área reservada para grupos ameaçados. Lá, eles teriam terra boa para a agricultura, fartura de caça e de pesca, além da assistência do órgão indigenista. Assim, com a perspectiva de uma vida melhor, os Ofayé foram levados para a

“terra prometida”, isto é, para a Serra da Bodoquena, território indígena Kadiwéu. Saíram às pressas, em cima de um caminhão contratado pela FUNAI. Neusa Ofayé, uma índia que escapou da transferência para Bodoquena porque estava trabalhando em uma fazenda, deu o seguinte depoimento: 22

Quando fui novamente à aldeia, quando cheguei lá, encontrei uma branca na estrada que disse “iih, sua família já foi embora pra Bodoquena”. Aí já comecei a chorar. Minha avó tinha ido embora... fiquei chorando... chorei bastante... minha mãe tinha falecido, meu pai tinha falecido... eu tinha só minha mãe que era a minha avó que me criou... fiquei anos e anos... anos e anos esperando... eu cada dia mais triste. Já não tinha mais esperança de ver minha família... Penso que não... eu estava tomando tereré com meu esposo e meus filhos e quando olhei na estrada vi alguém com uma troxinha na cabeça. Olhei pra lá. Quando chegou perto, era minha tia, a mãe do Arlindo, a filha dela... Foi uma surpresa grande pra mim. (NEUSA OFAYÉ, março 2004).

Na verdade, a viagem foi uma grande surpresa, tanto para Neusa quanto para seus parentes Ofayé. Antes de saírem de seu território, a proposta da FUNAI ainda era algo a ser pensado pelos índios. Para dar maior credibilidade ao projeto de transferência, um índio

Ofayé foi convidado a conhecer Bodoquena para depois retornar e contar aos demais suas impressões sobre o novo local de moradia dos Ofayé. Entretanto, esse índio não mais voltou e a transferência ocorreu abruptamente. Alguns deixaram para trás os poucos animais de criação, outros foram desprovidos até mesmo de seus parcos bens pessoais. Como estavam mudando para uma situação supostamente melhor, achavam que esse era um detalhe sem muita importância. Porém, tão logo chegaram a Bodoquena, perceberam o engodo em que caíram.

Aí perguntamos para o funcionário da Funai: Onde estão as casa que vocês prometeram? Sem responder a pergunta o funcionário disse: “Vocês tem que se virar!” “Mas onde?” Perguntamos. “Vocês tem que expulsar os brancos”, disse ele. (Ataíde Xehitâ-há, índio Ofayé, cit. em Dutra (1996, p. 50).

Assim, contrariando todas as promessas e expectativas, os Ofayé foram novamente abandonados, passando, então, a sofrer todos os tipos de hostilidade, agora por parte dos

Kadiwéu, historicamente reconhecidos como um povo dominador de outros povos indígenas.

(RIBEIRO, 1980, p. 62) e também por posseiros que lá estavam disputando a terra. Além dos

Ofayé, os outros povos, Guarani-Kaiwá e Guarani-Nhandeva, que foram levados para 23

Bodoquena, partilharam as mesmas mazelas, ou seja, além das perseguições, tiveram o infortúnio da fome, das doenças, das violências mais diversas e, consequentemente, a morte de muitos desses índios. Novamente nos reportamos à fala de Ataíde Ofayé, que resume essa fase da seguinte forma:

Lá foi pior ainda porque aqui [em Brasilândia] pelo menos era só os fazendeiros. Lá era todo mundo os posseiros, os fazendeiros, os próprios índios donos da terra que não nos deixava sossegados nem um minuto sequer. (ATAÍDE OFAYÉ, março 2004).

Passados oito anos, em 1986, os Ofayé conseguem, com o apoio do CIMI (Conselho

Indigenista Missionário), fugir de Bodoquena e voltar para Brasilândia, município de onde foram retirados pelo órgão oficial. Mesmo com as terras completamente usurpadas pelos fazendeiros, eles viram no retorno a possibilidade de nova chance de vida e manutenção de uma identidade étnica, respaldada na coesão do grupo e na vontade de reconquistas. A princípio, instalaram-se em fazendas locais, trabalhando como peões e bóias frias. Depois, a

FUNAI acomodou-os em uma área de 110 hectares, arrendada, às margens do Rio Verde, afluente do Rio Paraná. Essa história está bem viva na memória dos Ofayé.

Na época nós fugimos de Bodoquena para Brasilândia. Viemos direto para as fazendas. O Carlito3 arrumou... uma terra da Cisalpina... Primeiro conseguimos com essa fazenda... parece que era dois hectares para seis famílias nas barrancas do Rio Paraná. E lá nós ficamos quatro anos debaixo de lona e tomando aquela água suja, comendo aquela poeira aquele movimento de carro pra lá e pra cá porque era... entrada de ponto turístico, né? Depois conseguimos outra área grande... aí... onde começou essa luta, essa reivindicação [referindo-se à luta pela retomada de suas terras]. (ATAÍDE OFAYÉ, março 2004).

Mesmo com a luta dos Ofayé pela retomada de seu território, a falta de garantia de um lugar fixo para sobrevivência do grupo perdurou até 1997, quando foi adquirida uma nova

área, comprada pela Companhia Energética de São Paulo (CESP), a título de indenização das

3 Carlos Alberto dos Santos Dutra, na época missionário do CIMI. 24

terras tradicionais dos Ofayé, inundadas com a construção da Hidrelétrica de Porto Primavera, atualmente Hidrelétrica Engenheiro Sergio Motta (DUTRA, 1996; CARUSO et al., 2003).

Atualmente, os Ofayé vivem em uma área de 1.144 hectares, dividida em duas aldeias.

Só recentemente o grupo reocupou uma dessas áreas, também adquirida com os recursos da indenização pela CESP, e ainda aguardam na justiça a retomada de outra parte de seu território. Conseguiram também algumas benfeitorias, como a construção de 18 casas de alvenaria com água canalizada e energia elétrica. A aldeia mais antiga possui um poço artesiano que abastece a comunidade, uma escola, um galpão e um posto de saúde, todos em bom estado de conservação e funcionamento. Reconhecidos historicamente como um povo caçador e coletor, atualmente essas atividades acontecem timidamente entre os Ofayé. Eles preferem manter o equilíbrio ambiental em sua comunidade, completamente cercada de fazendas de gado bovino. A coleta de frutos silvestres é feita, sobretudo, pelas mulheres e crianças em época de safra. A pesca, atividade antes comum ao grupo, acontece só excepcionalmente quando algum fazendeiro vizinho permite que um ou outro Ofayé entre em suas terras. Índios ribeirinhos, eles foram colocados em uma área sem rio ou nascentes e uma terra pobre para atividade agrária. Por isso, a agricultura desenvolvida na aldeia é bastante incipiente. A maioria tem em redor de suas casas pequenas plantações de mandioca, abacaxi, limão, manga e laranja. Assim, a situação econômica deles é ainda precária. Eles dependem de cestas básicas e estão arrendando provisoriamente o pasto na aldeia retomada.

Esse panorama, entretanto, está sendo modificado paulatinamente. A ampliação das terras trouxe novo alento (e apoio) para os Ofayé. Estão sendo implantados diversos projetos de auto-sustento, como uma roça comunitária, a criação de gado, de abelha, de peixe e de frango, além da aquisição de maquinarias e equipamentos necessários ao desenvolvimento de tais projetos, alguns deles já com resultados favoráveis à comunidade, como plantio de 25

diversas culturas (feijão, milho, arroz) e a criação de peixes, a maior parte de tudo isso sendo produzida e distribuída coletivamente4.

Na aldeia, vivem 75 indivíduos, distribuídos em 23 famílias. Nos últimos tempos, mais

índios Kaiwá e Guarani5 estão se deslocando para a comunidade Ofayé. Quando iniciamos o trabalho de campo, em 2003, eram 61 pessoas distribuídas em 18 famílias. De lá para cá houve o nascimento de 03 crianças, 03 pessoas faleceram (02 idosos Ofayé e 01 jovem

Guarani-Kaiwá) e outras 12 pessoas vieram para a aldeia. Desse modo, convivem hoje em um mesmo ambiente 46 Ofayé, 11 Kaiwá, 13 Guarani e 5 não-índios. A presença desses indivíduos que não são Ofayé deve-se, principalmente, a casamentos interétnicos. Essa mistura resulta em uma miscelânea de línguas: Ofayé, Guarani-Nhandéva, Guarani- Kaiwá e a língua franca, o Português, ensinada na escola e falada por todos na comunidade.

2. O projeto

O nosso projeto de pesquisa foi tomando um formato, sem uma definição exata de qual povo iria fazer parte do estudo. Porém, alguns pré-requisitos já estavam bem delimitados para a pesquisa: seria a descrição de uma língua indígena brasileira com pouco ou nenhum estudo prévio, ameaçada de extinção e, preferencialmente, do Tronco Linguístico Macro-Jê. A decisão pela língua Ofayé aconteceu quando participamos de um encontro de técnicos da educação da FUNAI6, em Brasília, em 2001. Nesse evento, pudemos conhecer e conversar com pessoas que trabalham com povos indígenas do Brasil inteiro e, oportunamente, conhecemos os técnicos que trabalham com os Ofayé. Eles relataram a fragilidade do grupo e

4 A terra é propriedade coletiva, mas cada família pode ter acesso a um lote para seu usufruto particular. Mesmo nesses casos, pode ser observada a divisão social do trabalho. É comum a reunião de vários índios para as atividades agrícolas nas roças individuais, fazendo-se um revezamento dos trabalhos em cada roça ao tempo que permite o benefício e a colaboração mútua entre eles. 5 Referimo-nos aos Guarani-Nhandeva, que chamam a si mesmos de Guarani. 6 Fazemos parte do quadro de professores dessa instituição governamental. 26

chamaram a atenção para a necessidade de trabalhos de pesquisa com a língua. A partir daí, procuramos saber mais detalhes sobre o povo, localização, falantes, acesso e possibilidades de entendimento com os Ofayé a fim de apresentarmos uma proposta de pesquisa para a descrição da língua. Tivemos um primeiro contato com o cacique por telefone e combinamos uma visita à comunidade para apresentar nossa proposta de trabalho. Tivemos uma boa receptividade na comunidade e a partir dessa visita criamos laços e nos organizamos formalmente7 para a pesquisa de campo.

O projeto de pesquisa que vimos desenvolvendo consiste na descrição da língua Ofayé nos seus aspectos fonológicos e gramaticais. Inclui-se no projeto uma proposta de elaboração de um alfabeto e produção de materiais didáticos a serem utilizados na escola da comunidade, como desejam os Ofayé.

A língua Ofayé recentemente foi incluída no currículo escolar e está sendo ensinada às crianças da aldeia. Ao que parece, o entusiasmo e a receptividade para aprender a língua estão bastante evidentes, conforme nos informou Marilda de Souza, professora de Ofayé e nossa principal colaboradora no estudo da língua. O curso teve início em dezembro do ano passado e este ano será ministrado regularmente na escola, em um horário extra às outras atividades de sala de aula. Em parceria com a professora, em caráter experimental, estamos apresentando algumas propostas para a escrita da língua.

A vontade de manter a língua viva é forte entre os Ofayé. Não é raro ouvir os falantes conversarem entre si na língua indígena. Parte dos falantes só teve contato com o Português quando foi para a escola, passando, então, a conviver com as duas línguas. Há outros que se expressam quase que exclusivamente em Ofayé. Estes, principalmente, contribuem bastante para a manutenção da língua, uma vez que obrigam os demais falantes a se comunicarem com eles na língua materna. Tal situação pode ser observada principalmente em duas famílias.

7 Solicitamos autorização formal dos Ofayé e da FUNAI para entrada e permanência na aldeia. 27

A primeira família é formada por um casal de idosos8 que se mantêm fiel a sua língua indígena. Ou seja, eles pouco entendem e falam o Português e a chamam literalmente de língua de branco, ou como eles dizem em Ofayé: Ѐђje Ѐokojak. Mesmo em situações mais simples de conversação, é necessário um interprete para comunicarmo-nos com eles. Quando precisam deslocar-se à cidade, para ir ao médico, ou mesmo quando conversam com pessoas que não são de seu convívio, têm a companhia do neto, que faz as traduções.

A outra família que não sucumbiu às pressões impostas pelo Português na comunidade

é também composta por duas pessoas: mãe e filho. Embora falem e entendam o Português, a língua mais utilizada entre eles é a língua Ofayé. A mãe que, assim como o casal antes mencionado, também, já está na terceira idade, comunica-se com mais desenvoltura em sua língua indígena. Em ocasiões diversas de conversas com ela percebemos a sua resistência a falar Português. Ela fica o tempo todo alternando as duas línguas, quando não decide falar apenas Ofayé. Assim como os demais falantes de Ofayé, ela afirma ser a língua a maior marca de sua identidade indígena.

A língua é, inegavelmente, uma marca forte de etnicidade, mas vários sinais diacríticos são ainda bastante evidentes na sociedade Ofayé. A organização sócio-econômica apresenta uma característica singular do grupo. O trabalho é coletivo e geralmente os homens se reúnem para o serviço nas roças, limpeza do pátio central da aldeia e outras tarefas que lhes convêm dividir. As mulheres, embora participem das atividades da roça, junto a sua família

(marido e filhos), suas atividades principais são os serviços domésticos, a coleta de frutos silvestres, o cuidado com os filhos, que, por sinal, são tratados com carinho e paciência pelos pais. A terra é propriedade de todos, os bens são produzidos e divididos coletivamente, embora as pessoas possam ter ou receber algum bem particular. Quando se recebe algo para a

ϯ] minha avó ou, simplesmente, tia Francisquinha, como eraשRecentemente um dos cônjuges morreu, [a 8 carinhosamente chamada na comunidade. 28

comunidade, mesmo que em quantidade mínima, sempre é repartido entre as famílias que moram lá.

Não há um líder religioso e não presenciamos nenhum cântico ou ritual indígena.

Embora eles não participem sistematicamente de alguma igreja – alguns vão esporadicamente

– percebe-se a influência evangélica na comunidade. A maioria já foi evangélica de uma ou outra igreja (Assembléia de Deus e Deus é Amor, são as mais comuns entre eles) e de vez em quando vêm pastores à aldeia para fazer pregação e promover algumas comemorações, como dia das mães, dias das crianças, ou outras datas comemorativas do calendário nacional. A

FUNAI já tentou coibir essa prática, mas os Ofayé parecem bastante receptivos a esses encontros festivos.

O cacique é ainda bastante jovem. Ele foi eleito pela comunidade e sua liderança é fortalecida por sua representatividade política interna e externa ao grupo. Suas decisões são geralmente, acatadas, embora, algumas vezes, não se chegue a um consenso geral sobre as propostas discutidas em assembléias.

Atualmente, as próprias comunidades indígenas buscam revitalizar suas línguas como um dos meios de manutenção de identidade étnica. Também a política governamental, desde a

Constituição de 1988, vem adotando um discurso em que se contempla a diversidade cultural e linguística de cada povo. Dito de outro modo, pelo menos legalmente, uma nova mentalidade, por parte do governo, está sendo concebida para o tratamento das questões indígenas. Antes, o que se pretendia era a mera integração do índio à sociedade nacional, tendo como um dos mecanismos a educação institucionalizada. Hoje, reconhecidas as diferenças étnicas, tem-se buscado mantê-las.

Nessa perspectiva, a escola está também sendo rediscutida, no sentido de se reverter seu papel nas sociedades indígenas, de modo que ela possa servir aos interesses e anseios das comunidades, tornando-se, de fato, uma escola indígena autônoma e diferenciada. Nessa 29

discussão, o ensino de língua nas comunidades é tema indispensável. A preocupação, nesse sentido, é a sobrevivência das línguas indígenas existentes, o que não é diferente para a situação do povo Ofayé.

Somente agora, com a contratação de Xahtä (Marilda de Souza), a escola da aldeia começou a atender às expectativas da comunidade no tocante ao ensino da língua. São atendidos 09 alunos da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, em sistema multisseriado.

Embora o quantitativo de alunos matriculados na aldeia seja pequeno, a população na comunidade está crescendo. Atualmente, várias crianças estão na fase do pré-escolar e não são ainda atendidas na escola. Há alguns jovens que estudam na cidade e há aqueles que pararam de estudar por dificuldade de deslocamento ou conciliação de horários de trabalho na roça e o estudo, este último quase sempre fica prejudicado. Os Ofayé já solicitaram por diversas vezes o Ensino Fundamental -1ª e 2ª fase - na própria comunidade para que mais indígenas sejam contemplados com a educação escolar. Porém, a Prefeitura local, parece não ser sensível a esta reivindicação.

A proposta curricular aplicada na escola da aldeia segue os critérios estabelecidos pela

Secretaria de Educação do Município. Do mesmo modo que outros povos indígenas, os Ofayé anseiam por uma educação escolar que contemple não somente o conhecimento universal, inegavelmente importante para os povos indígenas de modo geral, e particularmente para os

Ofayé, mas também que sejam levadas em conta as suas especificidades, que se valorize seus saberes, sua história e sua língua. Nosso desejo, nesse sentido, é contribuir, de algum modo, com os estudos linguísticos voltados para a língua indígena desse povo, ajudando-os a refletir sobre a importância da língua, sua manutenção e valorização como uma das marcas de identidade étnica.

30

3 A língua

Conforme Ribeiro (1951, p. 107), as primeiras informações publicadas sobre o povo e a língua Ofayé foram apresentadas por Curt Nimuendaju, que visitou a aldeia em 1909 e

1913. A lista de palavras coletadas por ele o levou a classificar o grupo como de uma língua isolada com intrusões Jê. A lista também serviu de referência para que outros estudiosos estabelecessem a classificação linguística do Ofayé. Dos trabalhos linguísticos existentes9 sobre a língua Ofayé, o de maior referência é o artigo de Gudschinsky (1974), intitulado

“Fragmentos do Ofaié: a descrição de uma língua extinta” que trata de aspectos da estrutura da língua, basicamente, descrição fonológica dos segmentos e uma parte dedicada à morfologia do Ofayé. Nesse trabalho, resultado de um trabalho de campo realizado em 1968, a autora acredita estar trabalhando com o último falante da língua Ofayé, considerado-a praticamente como uma língua extinta e, consequentemente, fortalecendo a idéia de extinção do grupo, apresentada anteriormente por Darcy Ribeiro a partir de seu contato com um pequeno grupo de Ofayé, em fins de 1948. Esse mesmo núcleo familiar foi contatado por

Gudschinsky para análise do Ofayé.

Segundo classificação de Rodrigues (1986), a língua Ofayé é uma língua isolada que pertence ao tronco linguístico Macro-Jê. Porém, em uma publicação mais recente

(RODRIGUES, 2000), ele apresenta outra forma de classificação. Nela, a língua é inserida a uma família – a família Ofayé – que, de todo modo, tem apenas a língua Ofayé como sobrevivente. Atualmente essa língua é falada por 11 falantes, com idades que vão de 18 a 73 anos. Por ser um grupo bastante reduzido de falantes, a língua é considerada como fortemente

9 Existem listas de palavras publicadas por Hanke (1964); Iherig (1912), que tomou por base a lista coletada por Nimuendaju. Loukotka, também com base nos mesmos dados, procurou estabelecer a classificação linguística do Ofayé. Há ainda trabalhos de comparação entre o Ofayé e línguas do tronco Macro-Jê de Davis (1968) e Gudschinsky (1974). Trabalhos mais recentes sobre a língua são os de Guedes (1991 e 1997); uma cartilha publicada pela UNESP (1990-1991) e um artigo sobre o sistema vocálico da língua (SILVA, 2002). 31

ameaçada de extinção. Tal situação de ameaça é bastante lamentável, pois como bem diz

Rodrigues (1988, p. 106) “Cada língua é um instrumento fundamental da criação, da manifestação e da transmissão de uma cultura, isto é, do conhecimento que o povo elabora sobre o mundo que o cerca e sobre si mesmo”.

Mesmo assim, vemos que a língua, embora tenha perdido em parte a função social na comunidade, é ainda uma marca de identidade muito acentuada entre esses índios. Mesmo aqueles que apresentam certa resistência em usá-la no dia a dia, deram depoimentos que contradizem esse aparente descaso. Um exemplo típico é de uma falante, Joana Ofayé, que, ainda criança, foi levada para São Paulo por uma família não-índia que pretendia a qualquer custo que ela esquecesse suas origens. Mudaram o seu nome, encaracolaram os seus cabelos e proibiram-na de identificar-se como índia e de falar Ofayé. Por muito tempo, às escondidas, ela falava sozinha, recusando-se a perder a língua. Quando se sentiu fortemente ameaçada de esquecer as raízes, pediu para retornar para seu povo, desfazendo-se, assim, de sua identidade forçada de não-índia.

Para os Ofayé, falar a língua, levá-la para a escola e aprendê-la mais sistematicamente

é uma forma de fortalecê-la e fortalecer a própria identidade. Novamente nos reportamos à fala de Ataíde Ofayé para tornar mais evidente essa perspectiva:

Vamos pensar... será que convém elaborar uma escola bilíngue? Será que dará futuro? ... Se fosse eu pensaria assim: vai dar... nela [na escola] vou aprender a história do meu povo, nela vou aprender meu idioma... eu creio que se fosse eu pensaria desse jeito... porque não é um pensamento em vão. Porque todas as pessoas... seja branco seja preto seja índio, seja quem for tem sua história, seus valores... sua ideologia, sua crítica ... nós temos a nossa... vamos ser uma nação verdadeiramente indígena Ofayé...

A descrição da língua aqui iniciada pode ser considerada como um ponto de partida para a produção de um sistema simples de escrita e, consequentemente, a elaboração de materiais didáticos, como pretendemos. 32

4 As bases teórica e metodológica

Teórica e metodologicamente, o nosso trabalho estará fundamentado na literatura existente sobre pesquisa de campo linguístico e descrição e análise de línguas ágrafas. Para a coleta de dados, buscamos os subsídios fornecidos pela linguística de campo, com apoio em diversos autores e materiais existentes, como Payne (1997), Samarin (1967), Whaley (1997),

Museu Nacional (1965).

A nomenclatura utilizada na descrição fonética dos sons é a da Fonética de base articulatória. Para a descrição fonológica, principalmente no que diz respeito aos processos de realização de fonemas utilizamos os conceitos da fonologia gerativa, principalmente a partir de Kenstowicz (1994), mas utilizamos os sistemas de traços propostos por Chomsky e Halle

(1968), com algumas modificações propostas por Clements (1989).

Na descrição gramatical (morfologia e sintaxe) adotamos uma perspectiva tipológico- funcional: Dixon (1990 e 1999); Comrie (1976 e 1989); Shopen (1985)10; Givón (1984, 1990,

1995 e 1997]; Van Valin (2001); Spencer (1991); Rijkhoff (2003); Taylor (1999) e muitos outros trabalhos que estarão presentes no decorrer do trabalho e nas referências bibliográficas finais.

10 Shopen (1985) são três coletâneas de artigos de diversos autores sobre diferentes questões a respeito de descrição e análise de línguas. 33

5 A pesquisa de campo

Nosso trabalho na comunidade Ofayé deu-se em cinco viagens a aldeia. Na primeira vez, como já mencionado, fomos apresentar o projeto de pesquisa para a comunidade. Depois, ficamos indo à medida que precisamos coletar dados para a descrição da língua. Os períodos de permanência na comunidade são bastante diversificados. Em duas das viagens, ficamos uma semana, quando fomos conhecer o grupo e quando fomos participar de um evento promovido pela Secretaria de Educação do Mato-Grosso do Sul para conversar sobre a revitalização e ensino da língua. Em outras viagens, passamos períodos maiores. A fase mais longa entre os Ofayé durou dois meses e meio. A proposta era conhecer e compartilhar de sua realidade. Essa convivência foi salutar para entendermos um pouco sobre o povo e suas características sócio-culturais.

O nosso trabalho de coleta de dados deu-se através de gravação de listas de palavras, baseadas no questionário do SIL-Museu Nacional, do Museu do Pará Emilio Goeldi, das listas de Swadesh e de outras questões de livre escolha, relevantes para resolver as questões que iam surgindo à medida que a análise avançava. Gravamos ainda pequenos textos relacionados ao cotidiano da comunidade e à história do grupo. Tivemos três colaboradores mais diretos, mas sempre recorríamos a outros falantes para testarmos nossos conhecimentos acerca da língua.

As gravações foram feitas em MD (Mini Disc) com transcrição simultânea dos dados.

6 A organização do trabalho

O trabalho está dividido em 7 capítulos. No Capítulo 1, descrevemos o sistema de sons da língua. Nele, levantamos os sons da fala Ofayé, definimos o inventário de fonemas, 34

descrevemos o padrão silábico, os processos mais importantes de realização de fonemas e o padrão acentual. No Capítulo 2, dedicamo-nos à descrição do Nome e do Sintagma Nominal, observando as classes de nomes, o sistema de marcação de posse, a morfologia nominal e os processos de formação de palavras. O Capítulo 3 é a descrição do Verbo e do Sintagma

Verbal. Neste Capítulo, fazemos uma classificação semântica dos verbos e descrevemos as categorias verbais, que, em Ofayé, não são, na maioria, constituídas propriamente de morfologia presa. Daí a necessidade de tratarmos do verbo e do sintagma verbal ao invés de falarmos apenas de morfologia verbal. Porque as relações gramaticais estão intrinsecamente ligadas ao funcionamento do verbo na cláusula, já neste capítulo começamos a delinear a estrutura sintática da língua, que só será descrita mais detalhadamente no Capítulo 7, sobre sintaxe. Nos capítulos 4, 5 e 6, nessa ordem, descrevemos os adjetivos, os advérbios e outras classes menores de palavras.

Na numeração dos exemplos, consideramos o trabalho em sua totalidade. Assim, a numeração de um capítulo segue da numeração do capítulo precedente. Em todos os exemplos, damos primeiro a forma fonética e colocamos essa forma entre colchetes. Quando temos que apresentar a glosa dos exemplos, damos a forma fonológica ou o que presumimos ser a forma fonológica, dado que essa forma é o resultado de hipóteses que não são, por princípio, definitivas. Optamos por não apresentar a forma fonológica proposta entre barras inclinadas. Para isso, tivemos dois motivos. Primeiro, deixar as transcrições mais limpas; segundo, facilitar a leitura das glosas. Uma consequência desses fatos é que nos capítulos subsequentes à Fonologia, nem sempre as formas fonológicas que poderiam ser preditas a partir das regras sugeridas vão aparecer.

De modo geral, quando fazemos citação no texto de formas em Ofayé, optamos por colocá-las entre colchetes, sem fazer com isso qualquer referência à distinção forma 35

fonológica/forma fonética. Os significados dessas formas, nesses locais, são apresentados em seguida, em itálico.

Como já dissemos, o enfoque que damos à língua é essencialmente descritivo. A nossa maior preocupação ao tentarmos descrever a língua Ofayé, embora seja este um trabalho acadêmico – e por isso, principalmente na Fonologia, há algumas tentativas de formalização –

é a de fazer um trabalho que possa também ser lido pelos índios Ofayé, que esperam ansiosamente que “o livro da Maria saia logo”. 36

CAPÍTULO 1: FONOLOGIA

1.1 Introdução

Neste capítulo, descrevemos o sistema fonológico da língua. Primeiro, secção 1.2, apresentamos as cartas dos sons encontrados na fala Ofayé. Em seguida, secção 1.3, esboçamos os inventários de fonemas, consoantes e vogais. Esses inventários, em um primeiro momento, podem apresentar problemas que só serão resolvidos quando tratarmos dos processos de realização de fonemas. Na secção 1.4, trataremos da estrutura silábica, do ponto de vista fonético, seguido da descrição fonológica da sílaba e da definição do padrão silábico. Na secção 1.5, descrevemos os principais processos de realização de fonemas. Neste ponto, não fazemos distinção entre casos de alternação que podem ser apenas fonéticos e processos fonológicos propriamente ditos. A intenção é, principalmente, descrever os fatos observados, tornando-os disponíveis para posteriores investigações e interpretações mais profundas ou mais abstratas. Na secção 1.6, apresentamos as alternações de certos morfemas e, finalmente, na secção 1.7, fazemos uma descrição preliminar do acento no nível da palavra.

1.2 Cartas fonéticas

1.2.1 Segmentos consonantais

Na fala Ofayé, encontramos um conjunto de segmentos consonantais conforme apresentado no Quadro 1, abaixo. A ocorrência desses segmentos é ilustrada em seguida com exemplos de itens lexicais da língua.

37

Labiais Láb.dentais Alveolares Palatais Dorsais Glotais Oclusivas t d k ց Б

Ocl. labializadas kܦ ցܦ

Ocl. pós-nasalizadas tn kn ցn

ْ Nasais n

Fricativas f Ѐ h

Fric. labializadas fܦ hܦ

Africadas tЀ dЋ

ש Tepe

Semiconsoantes w j

Quadro 1: Carta de segmentos consonantais

towe] urubu 2. [konidiْϯ] cobrinha] .1

3. [fokoe] tamanduá 4. [wϯցete] teiú (do pintado)

5. [ЀoБe] casa 6. [jekܦe] panela

7. [oitn] rato 8. [aЀikn] corda

e] darܦaЀiցnْϯ] cordinhas 10. [anoց] .9

haցani] veado 12. [Ѐoցiْϯ] redes] .11

o] cachoeiraשi] seriema 14. [Ѐoשfa] .13

oktae] morcegoܦa] queixada 16. [hשiܦf] .15

17. [hetЀo] coração 18. [kodЋϯ] capins

ϯ] noiteשa] folha 20. [wϯשja] .19

21. [jϯta] tucano

38

1.2.2 Segmentos vocálicos

Os sons vocálicos encontrados na fala Ofayé foram os seguintes:

Anteriores Centrais Posteriores Orais Nasais Orais Nasais Orais Nasais bre lon bre lon bre lon bre lon bre lon bre lon Altas i i⍧ i u

Médias e e⍧ e ђ ђ⍧ o o⍧ o o⍧

Baixas ϯ ϯ⍧ a a⍧ a

Quadro 2: Carta de segmentos vocálicos

Esses sons são ilustrados pelas seguintes palavras Ofayé:

i⍧] galinhaשi] seriema 23. [kשfa] .22

24. [ita] formiga 25. [Ѐehђ] quati

aj] macacoשђhtee] mulher 27. [kreց] .26

28. [kђtϯ] pedra 29. [hђ⍧] árvore

o] capim 31. [hao] hojeשko] .30

e] noite 33. [aցatϯ⍧] cabeçaשwϯ] .32

34. [kato] papagaio 35. [tika] bicho, coisa

a] folhona 37. [atahu] ele é grandeשja⍧] .36

38. [to⍧tn] urubuzinho 39. [ano⍧ցܦe] sentar, ficar

39

1.3 Inventários de fonemas

1.3.1 Fonemas consonantais

Os seguintes contrastes encontrados demonstram contrastes que permitiram identificar os fonemas consonantais, apresentados em seguida, no Quadro 3.

/t d k kܦ ց Б/

o] capimשo] flecha 41. [koשto] .40

akaj] pele clara 43. [aցaniْe] ser mau] .42

44. [kokok] gavião 45. [БoБok] pomba

e] panela 47. [konidiْϯ] cobrinhaܦjek] .46

48. [ЀoБe] casa 49. [Ѐowe] fumaça

/n/

e] almoçarܦoցשe] sentar [Ѐeܦanoց] .50

/f Ѐ h tЀ dЋ/

51. [fokoe] tamanduá 52. [Ѐokojak] língua

53. [hoj] lagoa 54. [foj] jatobá

55. [haЀie] milho 56. [hetЀo] coração

[hϯdЋaցe] costurar

/ש/

a] folha 58. [jϯta] tucanoשja] .57

/w j/

59. [how] rã 60. [hoj] lagoa

61. [wahakata] papa ovo 62. [jђkђhђ] arco 40

Desse modo, os segmentos consonantais que foram considerados fonemas estão apresentados no Quadro 3, abaixo. Na definição desses segmentos em termos de traços distintivos, utilizamos traços propostos por Chomsky e Halle (1968) e traços propostos por

Clements (1989).

Labiais Coronais Dorsais Glotais -continuante t d k ց Б

-continuante, +labz kܦ

+nasal n

+continuante f Ѐ h

+distensão retardada tЀ dЋ

ש cont, +líquida+

+aproximante w j

Quadro 3: Fonemas consonantais

No nosso quadro de fonemas consonantais, embora não tenhamos contrastes entre [t] e

[d], consideramos que esses dois sons são fonemas na língua. Uma neutralização do traço

[±voz] em fronteira de palavra transforma todo /d/ nessa posição em [t]. Além disso, em meio

/e, antes de /Ѐ/, como [tЀ]. Outro alofone de /d [ש] de palavra, entre vogais, /d/ realiza-se como

é [n], que ocorre no ambiente entre duas vogais nasais, das quais a da direita é apagada. Esse processo está descrito com detalhes na secção sobre processos morfofonológicos. O único vestígio superficial de /d/ é o que aparece no morfema de diminutivo /-di/ quando esse sufixo ocorre antes de um outro sufixo. Ao tratarmos dos processos fonológicos, na secção 1.5, subsecção 1.5.1, forneceremos argumentos para sustentar essa tese. 41

Embora na secção sobre processos fonológicos levantemos e discutamos a hipótese de

não é um fonema, mas a representação de superfície de um /d/ subjacente, vamos [ש] que considerá-lo como tal para efeitos de elaboração da nossa proposta de alfabeto para Ofayé. O seu status de fonema é atribuído, portanto, considerando-se um nível de representação menos abstrato do que o que será apresentado na secção sobre processos fonológicos. Além disso, o

mesmo neste nível de representação que não é a estrutura ,[ש] status de fonema atribuído a profunda propriamente dita, parece ser necessário para podermos postular uma sílaba do tipo

.conforme veremos na secção 1.4, sobre estrutura da sílaba ,/ש/ CCVC, cujo C2 é

A africada [tЀ] tambem será aqui tratada como um fonema. Essa decisão foi tomada devido ao fato de que, apesar de sua distribuição ser restrita, pois só ocorre em meio de palavra, no que parece ser fronteira de morfema, na maior parte das suas ocorrências, a estrutura interna da palavra não pode mais ser recuperada. Pela mesma razão, consideramos também [dЋ] um segmento lexical, ainda que sua frequência não explicada fonologicamente seja muito mais baixa do que a de [tЀ].

Em todos esses casos, os falantes não parecem mais reconhecer uma representação subjacente diferente para esses segmentos, o que causa um problema para a nossa proposta de alfabeto.

1.3.2 Fonemas vocálicos

Os fonemas vocálicos em Ofayé são os apresentados a seguir, acompanhados de itens lexicais que mostram a sua não-previsibilidade.

42

/i i/

i cervo 64. kri papagaioשk .63

/e ϯ e ђ/

65. aցate ovo 66. aցatϯ branco

67. hetЀo coração 68. hђϯ terra

/a a/

69. ka Suf. de Caso Instr. 70. ka Suf. de Dir. Obj.

/o o/

o capimשo preto 72. koשako .71

Definimos, então, como fonemas vocálicos, os seguintes segmentos.

-posterior +posterior -arr +arr -nasal +nasal -nasal +nasal -nasal +nasal +alto, -baixo i i

-alto, -baixo e e ђ o o

-alto, +baixo ϯ a a

Quadro 4: Inventário de fonemas vocálicos

Não consideramos fonemas as vogais longas, embora este não seja um problema fácil de ser solucionado. Entretanto, preferimos não tratar as vogais longas como fonemas por razões que podem ser encontradas com mais detalhes quando tratarmos dos processos de realização de vogais, secção 5.2.1, conforme já dissemos na introdução deste Capítulo. 43

1.4 A estrutura da sílaba

Nesta secção, descrevemos a estrutura da sílaba, observada primeiro foneticamente e, em seguida, do ponto de vista fonológico. Veremos que, embora foneticamente os tipos de sílaba e, mais especificamente, as classes de sons possíveis em diferentes posições da estrutura silábica, sobretudo os constituintes onset e coda, sejam bastante diversificados, fonologicamente essa diversidade pode ser explicada em razão dos vários processos que se realizam nesses contextos.

1.4.1 A sílaba fonética

Os seguintes tipos de sílabas fonéticas foram encontrados:

73. V [e.wϯkn] 1POS

74. CV [to.we] urubu

75. VC [ok.tЀi] onça

i] galinhaשCCV [a.ց .76

77. CVC [tej] carrapato

78. CCVC [a.ցrϯj] olho

11 79. CCVV [a.tђϯ] pena

Apenas os seguintes sons foram encontrados em posição de onset silábico inicial.

80. [t] [towe] urubu

e] aranhaשk] [kate] .81

11 As duas vogais na mesma sílaba realizam-se ora como ditongo, ora como alongamento da vogal precedente, principalmente se as duas vogais são idênticas. 44

82. [Б] [БoБok] pomba

83. [f] [foj] lagoa

o] cachoeiraשЀ] [Ѐo] .84

85. [h] [haϯ] coelho

86. [hܦ] [hܦak] mel

87. [fܦ] [fܦiϯ] água

88. [n] [naka] o quê

89. [w] [wahakata] cobra papa-ovo

a] folhaשj] [ja] .90

Não ocorrem em posição de onset, em início de palavra, de modo geral, os demais segmentos mostrados na carta fonética apresentada no início deste Capítulo:

.[ש tn kn ցn ْ tЀ dЋ ܦց ܦd ց k]

Em sílaba do tipo C1C2VC, a posição C1 deve ser ocupada por uma das não-contínuas

.[ש] dorsais [k ց] e a posição C2 por

o] nambuשk] [שk] .91

ϯ.ցe] derramarשa.ko.k] [שk] .92

ah.tђ] griloשwo.ց] [שց] .93

(e] obrigado (cumprimentoש.aܦe.fשhe.ց] [שց] .94

As vogais que ocorrem em início de palavra são [a e ђ i o ϯ]. Das nasais, ocorrem

[a e i o]. A vogal posterior alta arredondada nasal [u] ocorre apenas em final de palavra, em um único morfema, em variação livre.

95. [a] [a.ցa] nosso 45

96. [a] [a.fܦϯ] seu braço

97. [ђ] [ђ.Ѐow] homem

i] narizשe] [e.Ѐeց] .98

99. [e] [e.wϯk] arara

ϯ] bocaש.ϯ] [ϯ] .100

101. [i] [i.tahna] eles são grandes

102. [i] [i.ta] formiga

103. [o] [o.i] cotia

104. [o] [o.tђ] 3SUJ

Na posição de coda silábica, podem ocorrer:

105. [tn] [ko.nitn] cobrinha

106. [k] [hetђk] vento

ikn] estreitoשkn] [a] .107

o] revólverשց] [katϯցto] .108

ցn] [aЀiցnْϯ] cordinhas] .109

110. [h] [ђhto] boi

111. [n] [howan] rãzinha 12 ϯ] patoשϯܦfשaܦf] [ש] .112

113. [w] [aЀow] vermelho

114. [j] [foj] lagoa

115. [ϯ] [a.tђϯ] pena

.em coda silábica fonética [ש] Este é, na verdade, o único exemplo em todo o corpus, em que ocorre o tepe 12 46

Resumindo, damos no diagrama a seguir a representação da sílaba fonética e os sons que podem preencher as diferentes posições.

σ

O R

Núcleo Coda

(C2) V C (C1)

αV]13 [t tn] [ש] ܦց ܦt d k k]

f fܦ hܦ vܦ k kn ց ցn

[j w V14 ש Ѐ h tЀ dЋ n

[ w j ש n Diagrama 1: Sílaba fonética

1.4.2 A sílaba fonológica

Fonologicamente, o padrão silábico da língua é CCVC. Algumas sílabas CCVC e algumas sílabas CCVC15 são criadas por uma série de processos que serão melhor descritos na secção sobre processos de realização de fonemas. Aqui, eles são apenas apresentados brevemente.

1. todas as oclusivas em coda silábica são o resultado de apagamento de vogal:

13 [α] ! representa o conjunto de vogais em Ofayé. 14 V está para qualquer vogal. (Ver secção 1.5.1.11). 15 Em alguns casos, existe realmente uma sílaba fonológica C1C2V, na qual a posição C1 é preenchida por uma

.[ש] oclusiva velar [k, ց] e a posição C2 por um tepe 47

116. /oi-di/ → [oitn] rato

o] revólverשo/ → [katϯցtoשցatϯցe-to/ .117

a-Ѐiցe-jϯ/ → [aЀiցnْϯ] suas cordinhas/ .118

119. /a-Ѐiցe/ → [aЀikn] sua corda

é, também, o [ש] em alguns casos, sílaba formada por obstruinte não contínua mais .2

.heterossilábico [ש] resultado de um processo que apaga vogal antes de

i] galinha deleשi/ → [aցשa-ga/ .120

e] AUX.FUTשe/ → [a ցשa ցa/ .121

3. a sílaba formada por vogal mais fricativa glotal é o resultado de uma regra de inserção de [h] depois de vogal e antes de [t] ou [n].

122. /ђЀowa-ta/ → [ђЀowhta] homem grande homem-AUM

123. /fitani/ → [fitahni] colher

4. a coda silábica formada por nasal coronal é o resultado de uma série de processos, conforme se pode ver na secção sobre processos de realização das consoantes (1.5.1). No exemplo (124), abaixo, a comparação entre as formas diminutivo singular e diminutivo plural mostra que o [n] em coda na primeira forma é resultado de um processo que nasaliza /d/ entre duas vogais nasais, quando a da direita é elidida em final de palavra. Esse processo estará descrito com maiores detalhes na secção 1.5.1.5. 48

SG PL DIM.SG. DIM.PL AUM.SG AUM.PL 124. mamão ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ

5. há, contudo, casos de travamento silábico por nasal coronal, como exemplificado em [kinhi] faca. Esse [n] em coda silábica realiza-se, às vezes, como um segmento vocálico, conforme tentaremos demonstrar mais adiante, secção 1.5.1.11.

6. algumas sílabas formadas por vogal mais aproximante parecem obedecer ao mesmo princípio de elisão de vogal ou de sílaba no final da palavra, como mostra a análise dos paradigmas apresentados em (125) e em (126).

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL ђЀow ђЀowْϯ ђЀowan ђЀowanْϯ ђЀowhta ђЀowhnajϯ homem .125

126. foj fojϯ fojn fܦodijϯ fܦojta fܦotajϯ lago

Entretanto, há sílabas formadas por vogal mais aproximante que não podem ser explicadas por elisão de vogal, desde que não encontramos evidências nesse sentido. Por isso, vamos considerar que a língua tem sequências que são ditongos. Nos Quadros 5 e 6, a seguir, listamos os ditongos encontrados na língua.

49

DITONGOS CRESCENTES ORAIS NASAIS wi wiheketa estrela wi wi passado (Adv)

we towe urubu we awetЀahu pesado

i mêsשwϯ tawϯ mato, cerrado wa hawaЀi

ije garça brancaשwa wahakata papa-ovo je hoku

a coruja ja hejaw nãoשwo wohђ

a línguaשji aցa jiwϯ nós temos medo jo jo

- - - i traíraשje jeց

jϯ jϯta tucano - - -

ja jakܦet rolinha - - -

jђ jђkђhђ arco - - -

jѐ ijѐte último - - -

jo joko sal - - -

Quadro 5: Ditongos crescentes

DITONGOS DECRESCENTES ORAIS NASAIS a sujoשa tatu peba aw akawשaw kanaw

o cabelo pretoשow how rã aj aj ko

- - - ej gatoשej tikak

aj ahaj amarelo - - -

oj foj lagoa - - -

Quadro 6: Ditongos decrescentes

50

Dadas essas observações, podemos concluir que:

1) a sílaba fonológica em Ofayé é CCVC;

2) [n] em coda, como ocorre em [ewϯցen] ararinha é fonético. Trata-se de /d/ que se nasaliza nessa posição. Há, porém, uma coda silábica /n/, que consideramos fonológica, embora sua definição não seja ainda muito precisa;

3) embora consideremos que [tЀ] e [dЋ] são sequências de consoantes /t/ mais /Ѐ/ e

/d/ mais /j/, respectivamente, do ponto de vista fonético elas se realizam como as africadas surda e sonora correspondentes e, por isso, não podemos dizer que há uma sílaba C1C2VC, com /t/ ou /d/ na posição C1 e /Ѐ/ ou /Ћ/ na posição C2;

4) as aproximantes formam com vogais sílabas do tipo CV, em que C é, na verdade, uma aproximante; sequências VC, com C sendo aproximante, devem ter a mesma interpretação;

No diagrama em árvore, a seguir, damos a representação da sílaba fonológica em

Ofayé.

σ

O R

Núcleo Coda

(C1) (C2) V C

/ αV / / w j n / / ש / t d k ց Б /

f Ѐ h tЀ dЋ

n w j / Diagrama 2: Sílaba fonológica 51

1.5 Processos de realização de fonemas

Nesta secção, procuramos descrever as alternâncias de sons verificadas na língua.

Alguns processos são fonológicos, no sentido em que o termo vem sendo usado na literatura, enquanto outros podem ser casos de implementação fonética, mas não estaremos nesse ponto da questão preocupados em estabelecer essa distinção. Todas as alternâncias observadas serão, por isso, descritas. Algumas alternações de morfemas que não podemos, ainda, justificar fonologicamente serão também aqui apresentadas sem, contudo, nos propormos a dar sobre os fatos observados uma explicação mais detalhada.

1.5.1 Processos de realização de consoantes

1.5.1.1 Labialização

As consoantes labializadas em Ofayé são predizíveis por regras e, portanto, não são fonemas na língua. Há apenas uma exceção, a consoante oclusiva velar labializada /kܦ/.

A realização velar labializada [ցܦ] é criada por uma regra que faz referência à morfologia, ou seja, é uma regra lexical: o sufixo /-ցe/, verbalizador, realiza-se como [-ցܦe] quando anexado a uma raiz verbal cujo segmento final tenha o traço [+arredondado].

Os exemplos de (127) a (131) apresentam ambientes propícios para aplicação da regra.

De (132) a (134), os ambientes são desfavoráveis.

e] vomitarܦajoցe/ → [aْoց/ .127

128. /anawցe/ → [anoցܦe] dar 52

129. /anoroցe/ → [ano⍧ցܦe] morar

130. /ahoցe/ → [ahoցܦe] soprar

e] almoçarܦoցשoցe/ → [ЀeשЀe/ .131

132. /henihaցe/ → [henihaցe] abrir

133. /hedЋaցe/ → [hedЋaցe] costurar

134. /naЀetϯցe/ → [naЀetϯցe] pensar

Outros segmentos labializados encontrados na língua são [kܦ fܦ hܦ]. Esses casos são ilustrados pelos exemplos (135) a (139), a seguir.

135. [jekܦe] panela

a] sapoשϯܦf] .136

137. [wehifܦaЀo] tartaruga d’água

138. [hafܦahta] ele está vivo

139. [afܦohiցe] coçar

Para os segmentos [fܦ] e [hܦ], propomos uma alternação puramente fonética, desde que essa variação é livre, alternando entre a realização simples e a realização labializada, como mostram os exemplos de (140) a (144), abaixo. Tanto [fܦ] quanto [hܦ] podem ser variantes livres de /f/. Há uma realização [hܦ], entretanto, que é variante livre de /h/. O arredondamento da consoante labial pode ser atribuído a uma assimilação do traço labial da consoante precedente, ao passo que o arredondamento da consoante glotal deve ser atribuído ao mesmo traço da vogal seguinte, desde que os únicos exemplos encontrados de arredondamento de /h/ ocorrem antes de /o/. Assim, [fܦ] e [hܦ] labializados, como dissemos 53

antes, podem ser alofones de /f/. O segmento [h], que é fonema na língua, como mostram os contrastes, pode também ser uma variante livre de /f/.

140. /foj/ [hoj] [fܦoj] [hܦoj] lago

141. /fokoj/ [hokoj] [fܦokoj] [hܦokoj] tamanduá

142. /fiЀa/ - [fܦiЀa] [hܦiЀa] piolho

143. /afohiցe/ [afohiցe] [afܦohiցe] [ahܦohiցe] coçar

144. /hoj/ [hoj] - [hܦoj] jatobá (esp. de árvore)

Desse modo, de (140) a (143), apresentamos exemplos de labialização de /f/ desde que, pelo menos, três realizações podem ser encontradas. Em (144), apresentamos um exemplo para o qual propomos a forma subjacente /h/, dado que nunca ocorre, com esse item lexical, a alternação [f] $ [h].

Temos, porém, o caso que não conseguimos explicar de [kܦ]. Para esse caso, desde que não há explicação fonética e/ou fonológica e desde que não aparece nenhum caso de variação livre, poderíamos dizer que se trata de um fonema na língua. Deve ter havido um processo de fonologização. Admitindo que ela tenha sido, em algum momento, o resultado de um processo fonológico, no atual estágio da língua pode ser considerado fonema, desde que sua predizibilidade não é mais possível e não encontramos casos de variação livre, como os listados acima, como temos dito.

Assim, no quadro de fonemas da língua, devemos incluir a velar labializada. É certo que essa decisão cria uma assimetria, dado que a contraparte sonora desse segmento, [ցܦ] é, claramente, criada por um processo de assimilação de arredondamento da vogal precedente, como demonstra a descrição desse processo, na secção correspondente. Entretanto, 54

assimetrias desse tipo são tipologicamente atestadas e, como de modo geral essas assimetrias são o resultado da evolução, isso serve para sustentar nossa hipótese de que esses segmentos são fonologizados a partir de um ambiente antigo que se perdeu. Se, porém, de um lado, serve para atestar e, de outro para negar, o seu status de fonema, no momento sincrônico devemos tratá-lo como tal.

1.5.1.2 Dessonorização de oclusivas

Como vimos na secção 1.3.1, sobre fonemas consonantais, /k/ e /ց/ são fonemas, o que foi demonstrado pelas oposições encontradas entre esses segmentos em posição medial na palavra.

Em início e final de palavra, há uma neutralização dos valores do traço [voz]. Os exemplos de (145) a (152) mostram a previsibilidade de [k] nesses ambientes. O fonema aqui

é /ց/, que se torna surdo em inicio e em final de palavra.

145. [kinhi] faca

146. [aցinhi] minha faca

147. [ewϯkn] arara

148. [ewϯցen] ararinha

i] sua galinhaשaց] .149

i⍧] galinhaשk] .150

151. [katϯk] arma (genérico)

(o] arma (como revólverשkatϯցto] .152

55

Um argumento em favor da hipótese que postula oclusivas velares surdas e sonoras para a língua como sendo representações subjacentes é o fato de se poder encontrar os dois fonemas nos mesmos ambientes, sem a possibilidade de (i) tornar sonoro o segmento surdo; ou (ii) tornar surdo o segmento sonoro. Sempre que foram apresentadas aos falantes as palavras com contrapartes dos sons já encontrados, surdos ou sonoros, nenhum teve dúvida ao afirmar que a outra palavra não existia. Nunca disseram, como eles sempre o fazem quando se tem um caso de variação livre: “é a mesma coisa”. Há mesmo oposição em pares mínimos e em pares análogos, como mostram os exemplos de (153) a (157).

iْϯ] cotovelosשafoց] .153

iْϯ] pássarosשfok] .154

155. [akaj] pele clara

aցaniْe] mau, ruim, bravo] .156

157. [aցije] marido dela

A ocorrência de [k] e [ց] entre vogais, como mostrado de (153) a (157), indica que esses sons podem ser fonemas distintos, desde que não são previsíveis em meio de palavra.

Observe-se que os dois sons ocorrem no mesmo ambiente. Note-se, também, que não é o ambiente entre vogais que permite a realização de [ց]. Os exemplos de (158) a (159), a seguir, mostram [ց] entre uma vogal e uma consoante. No exemplo (159), temos, mesmo, uma consoante surda no ambiente seguinte.

ϯj olho deleשaց .158

o revólverשkatϯցtѐ .159

Dessas observações, tiramos as seguintes conclusões: 56

1) tanto /k/ quanto /ց/ são fonemas na língua;

2) /k/ se realiza como /k/ em todos os ambientes;

3) /ց/ desvozeia em início e em final de palavra, criando uma neutralização do traço

[±voz] em favor de [-voz], nesses ambientes.

Isso quer dizer que a língua tem /k/ e /ց/ subjacentes. Os dois segmentos realizam-se iguais a suas representações lexicais em meio de palavra. A neutralização dos valores do traço

[voz] em início e em final de palavra ensurdece /ց/, que se realiza como [k] ou como um outro dos seus alofones, dependendo da aplicação de outras regras.

O processo se aplica da mesma forma para as oclusivas coronais /t/ e /d/. O comportamento de /d/ em meio de palavra, entre vogais, é, contudo, distinto, conforme veremos na secção 1.5.1.3.

Paradigmas com raízes nominais, apresentadas de (160) a (164), acrescidas de morfemas de grau e número, mostram a oclusiva sonora /d/, que se realiza como [tn] e como

[n] em final de palavra.

SG PL DIM. SG. DIM. PL AUM. SG. AUM. PL

ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧hta ђЀa⍧htajϯ mamão .160 ajϯ folhaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .161 otajϯ lagoܦojta fܦodiْϯ fܦojn fܦojϯ fܦfoj f .162 hђ⍧ hђ⍧ْϯ hђan hђ⍧diْϯ hђ⍧hta hђ⍧htajϯ árvore .163 koni konijϯ konitn konidiْϯ konita konitajϯ cobra .164

Mais um argumento em favor de duas consoantes oclusivas em cada um dos pontos de articulação, coronal e dorsal, especificamente, é que, enquanto a consoante inicial do sufixo 57

de diminutivo /-di/ torna-se [tn] em final de palavra, mantendo-se sonora em posição medial, a consoante inicial do sufixo de aumentativo /-ta/ não se modifica. Assim, podemos postular que o sufixo de diminutivo está listado no léxico da língua como /-di/ e o sufixo de aumentativo como /-ta/. O traço [voz] é, portanto, contrastivo em meio de palavra, sendo esse contraste neutralizado em fronteira de palavra em favor de [-voz]. Desse modo, tanto surdas quanto sonoras, em posição de coda silábica, em meio de palavra, mantêm-se inalteradas, ou seja, uma oclusiva surda em coda medial realiza-se como surda, e uma sonora como sonora, conforme podemos ver nos exemplos de (165) a (169), a seguir.

165. [katϯk] arma

o] revólverשkatϯցto] .166

n 167. [ewϯk ] arara

168. [ewϯցen] ararinha

ewϯցnْϯ] araras] .169

Em (165), a consoante final é [k], ao passo que em (166) ela é [ց], embora o morfema seja o mesmo, o item lexical [kateցe] arma. Em (165), a elisão da vogal deixa a consoante velar em posição final de palavra e ela se realiza como [k], conforme previsto pela neutralização dos valores do traço voz em fronteira de palavra. Em (166), temos uma fronteira

o] revólver, cuja estrutura interna pode serשde morfemas, na formação da palavra [katϯցto

o] arma+redondo. Nesse caso, a oclusiva velar realiza-seשanalisada como [katϯցe+to vozeada, demonstrando que ela é subjacentemente /ց/.

Uma questão que se apresenta neste ponto é a de observar-se que, enquanto a distribuição e frequência de /k/ e /ց/ são bastante amplas, tanto distribuição quanto frequência 58

de /t/ e /d/ é mais restrita e assimétrica, ocorrendo mais /t/ do que /d/. & Uma primeira explicação para essa assimetria é que /d/ subjacente é neutralizado em favor de /t/ em início e final de palavra, conforme descrevemos. Além disso, /d/ subjacente entre vogais realiza-se

.Traremos desse fato a seguir .[ש] como

[tЀ] $ [dЋ] $ [ש] $ [Alternância [t] $ [d 1.5.1.3

Há na língua duas sequências de sons que se realizam como africadas. São elas [tЀ] e

[dЋ].

Duas hipóteses são aqui levantadas para explicar essas realizações.

1. A primeira hipótese considera que as sequências como africadas são o resultado de processos lineares simples.

2. A segunda hipótese levanta uma questão com relação aos sons [t] e [d] e suas

no sistema [ש] no sistema Ofayé. Quer dizer, questiona o status de [ש] interrelações com o som fonológico da língua, ao mesmo tempo em que também questiona a existência de africadas subjacentes17.

16 Na verdade, [d] aparece apenas no morfema de diminutivo, quando este vem seguido de outro sufixo, ficando, portanto, em meio de palavra, e na sequência como africada [dЋ], onde podemos dizer que o /d/ subjacente se mantém enquanto o /j/ seguinte muda de [+aproximante] para [+consonantal]. 17 Um processo diferente, que envolve uma terminação vocálica, como a que ocorre em [fܦie] água e [hђϯ] terra, também parece se aplicar para criar uma africada surda subjacente. Como se trata de um outro tipo de fenômeno, trataremos os dois casos separadamente. 59

Hipótese 1: Em um grande número de casos em que parece haver consoantes africadas

[tЀ] e [dЋ], podemos dizer que o que ocorre, subjacentemente, é uma sequência de sons

[t] mais [Ѐ] ou [d] mais [j]. Um processo posterior transforma [j] em [Ћ].

.a] folhaשObserve-se o paradigma seguinte, formado a partir da base nominal [ja

SG. PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL CPT18 SECO aשa Ѐaשajϯ jatЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧t ja⍧diϯ ja⍧שja .170

Para a criação da sequência [dЋ], que aparece na forma Plural, duas regras se aplicam,

em [d] e, em seguida, /j/ em [Ћ]. Como mostra a /ש/ ,ordenadamente, que mudam, primeiro forma folha seca, quando comparada à forma seco, no exemplo acima, a sequência [tЀ] é

./antes da palatal surda /Ѐ /ש/ formada por uma regra que deriva [t] de

,o/ capimשOutro paradigma que mostra esse processo é formado a partir da palavra /ko por exemplo.

171. [kodЋϯ]

o-jϯשko capim-PL capins

172. [kotЀa]

o-Ѐaשko capim-semente arroz (Lit.: semente de capim)

18 Folha seca 60

Estas não seriam regras lexicais, pois se aplicam em outros ambientes que não estão exclusivamente em fronteira com morfema de plural. Nos exemplos a seguir, temos o processo se efetuando na fronteira com o pronome de terceira pessoa plural mais um adjetivo em uma construção adjetival/predicativa ((173) e (174)), e em prefixo de posse mais nome, nos exemplos de (175) a (178).

173. [ajow] 174. [idЋow]

a-jow ida-jow 3SUJ-velho 3SUJ.PL-velho ele é velho eles são velhos

175. [ђjakaha] 176. [idЋakaha]

ђ-jakaha ida-jakaha 2POS.SG-arco 3POS.PL-arco teu arco arco deles

177. [aЀoe] 178. [itЀoe]

a-ЀoБe ida-ЀoБe 3POS.SG-casa 3POS.PL casa sua casa (dele) sua casa (deles)

Analisando-se desse modo, teríamos que há um processo de espraiamento de traços

→ /ש/ d] antes de aproximante palatal sonora /j/, e] → /ש/ :que opera da direita para esquerda

[t] antes de fricativa palatal surda /Ѐ/. Como /Ѐ/ e /j/ são as duas únicas palatais da língua – isso dá uma boa base para excluir a nasal palatal do inventário de fonemas – elas formam uma classe natural que opera nesse processo. 61

Outra conclusão que é resultado dessa análise é que as africadas [tЀ] e [dЋ] também devem ser eliminadas do quadro de fonemas, dado que elas são previsíveis, embora apareçam alguns casos em que a previsibilidade não é mais aparente, uma vez que ocorre a cristalização dos morfemas e a impossibilidade de recuperar a estrutura interna da palavra, como nos exemplos (179) e (180). Esses casos não serão considerados como contra-exemplos, mas como exceções, ou melhor, como cristalização do processo, uma vez que se pode pressupor uma fronteira de morfema não mais recuperável.

179. [hetЀo] coração

180. [hedЋaցe] costurar

Mas passemos à segunda hipótese.

Hipótese 2: Neutralização e distribuição complementar de /d/ em início de palavra e entre vogais, respectivamente.

No caso de [t] e [d], parece haver uma certa segurança em afirmar-se que os dois são fonemas na língua e que ocorre uma neutralização, desde que a distinção promovida pelos dois valores do traço [voz] é neutralizada em fronteira de palavra. A relação entre esses dois

:porém, não parece satisfatória, dadas as seguintes observações ,[ש] segmentos e

ocorre somente [ש] ocorrem em distribuição complementar19, desde que [ש] a) [d] e entre vogais e [d] nunca aparece nesse ambiente. É certo que [d] também nunca ocorre em fronteira de palavra, mas aí temos demonstrado que há uma neutralização em favor da contraparte surda [t];

não é uma representação subjacente de um fonema, mas um alofone [ש] Neste ponto, estamos assumindo que 19 de /d/. 62

b) em meio de palavra, temos as realizações (181), (182) e (183) de um mesmo

:o] capimשmorfema, [ko

o] capimשko] .181

182. [kodЋϯ] capins

183. [kotЀa] arroz (Lit.: capim-semente)

No trabalho de Gudschinsky (1974, pp. 187 e 189), postula-se um processo fonológico

em [d] antes de /j/ e que, consecutivamente, transforma /j/ em [Ћ]. Desse /ש/ que transforma modo, podemos deduzir que as formas fonológicas que Gudschinsky sugeriria para esses morfemas são conforme as apresentadas de (184) a (186).

o/ capimשko/ .184 capim

o-jϯ/ capinsשko/ .185 capim-PL

(o-Ѐa/ arroz (Lit.: semente de capimשko/ .186 capim-semente20

Nós proporemos, como hipótese de trabalho, as formas fonológicas de (187) a (189).

187. /kodo/ capim capim

o-t-Ѐa/ capim-DIM-sementeשNa verdade, Gudschinsky propõe para essa palavra a forma fonológica /ko 20 semente pequena de capim. Veremos na análise morfológica que essa glosa não seria possível.

63

188. /kodo-jϯ/ capins capim-PL

189. /kodo-Ѐa/ arroz (Lit.: semente de capim) capim-semente

Essas formas fonológicas podem ser explicadas, desde que postulemos que a forma

com a ,[ש] o] é o resultado de uma distribuição complementar dos sons [d] eשfonética [ko

.[oשsendo favorecida entre vogais. Desse modo, /kodo/ → [ko [ש] realização

Para a forma [kodЋϯ] capins, a explicação é semelhante à de Gudschinsky, exceto pelo

kodo-jϯ/ → [kodЋϯ]. Aqui, por não/ :[ש] fato que postulamos uma forma subjacente /d/ e não

Em vez disso, a aproximante .[ש] estar entre vogais, /d/ não sofre o processo que o muda para seguinte /j/ torna-se continuante com o mesmo ponto de articulação: [Ћ].

Partindo da mesma forma de base, temos /d/ que se realiza [t] antes da fricativa palatal surda /Ѐ/: /kodo-Ѐa/ → [kotЀa].

e] ouשe] ou [ցשUma forma como o Auxiliar de Futuro, que pode ter as realizações [ցa

conforme o exemplo (190), a ,[ש] ,[ցat], mostra novamente essa relação entre os sons [t], [d] seguir, no qual, antes de palavra seguinte começada por /Ѐ/, a realização da consoante final do auxiliar, que, nesse caso, perde a vogal final, é [t].

64

[oeשi otђ ցat Ѐeשwe] .190

o-geשe Ѐeשi otђ ցaשwe amanhã 3SUJ AUX.FUT almoçar-VER amanhã ele vai almoçar

O item lexical para a terceira pessoa plural deve ser /ida/. Se postularmos essa representação lexical, as regras já propostas dão conta das alternâncias encontradas nos exemplos de (191) a (196)21.

[aשida hђ] .191

aשida hђ 3SUJ.PL bonito eles são bonitos

192. [idЋakђhђ]

ida-jakђhђ 3POS.PL-arco arco deles

193. [ihђwe]

ida-hђwe 3POS.PL-canoa canoa deles

21 A forma fonética [i], que também encontramos para a terceira pessoa do plural, é gerada por uma regra opcional que apaga vogal em fronteira de morfema. Se aplicada a regra, ela cria o ambiente que favorece degeminação de consoantes semelhantes, como [t] e [k] ou [k] e [ց]. A segunda regra também pode ser aplicada entre [t] e [h], como em [ihђwe] canoa. 65

194. [itЀow]

ida-Ѐow 3POS.PL-pai pai deles

[ϯjϯשik] .195

ϯjeשida-k 3POS.PL-olhos olhos deles

196. [it kinhi]

ida-ցinhi 3POS.PL-faca faca deles

,(e [d]. No exemplo (197 [ש] Há, ainda, um paradigma que mostra a interrelação entre abaixo, a separação de morfemas é efetuada, primeiro, sob a forma fonética. A seguir, damos o que seria a forma fonológica, de acordo com a hipótese aqui formulada.

197. lenha lenhas lenha pequena lenhas pequenas cortar lenha ϯdiցeܦϯdiْϯ i fܦϯ⍧tn ifܦϯdЋϯ ifܦϯ ifשϯܦif

ϯd i-ցeܦϯ-di-ْe ifܦϯ-tn ifܦϯd-Ћϯ ifܦϯ ifשϯܦif

ifܦϯde ifܦϯde-jϯ ifܦϯde-di ifܦϯde-di- jϯ ifܦϯde i-ցe lenha lenha-PL lenha-DIM lenha-DIM-PL lenha cortar-VER

Desse modo, podemos dizer que há dois fonemas oclusivos coronais na língua,

/t/ e /d/. Esses dois fonemas são neutralizados em fronteira de morfema em favor de /t/. Em 66

em ,[ש] meio de palavra, tanto /t/ quanto /d/ podem, ainda, realizar-se como [t], [d] ou distribuição complementar. Essa análise permite-nos:

;como fonema na língua [ש] eliminar (1

2) explicar a baixa frequência de [d];

3) explicar por que os fones [t] e [d] nunca ocorrem em oposição em meio de palavra, enquanto que é possível encontrar [k] e [ց] em oposição nesses ambientes.

4) simplificar o processo que cria as sequências como africadas na língua. A sequência

[dЋ] seria, então, criada por um processo que mudaria o traço [+aprox] em [+cons, +cont], depois de /d/. Ou seja, /j/ → [Ћ] / /d/ . Ao mesmo tempo, a sequência [tЀ] seria o resultado de um processo que mudaria o traço [+voz] para [-voz], antes de consoante [-voz].

Para o momento, adotaremos a segunda hipótese como sendo capaz de fornecer a análise mais correta para o fenômeno observado. Um problema que surge dessa análise é o de explicar-se porque os morfemas de diminutivo e aumentativo /-di/ e /-ta/, respectivamente,

Atribuímos esse .[ש] não têm suas consoantes oclusivas, em meio de palavra, mudadas para fato à morfologia e remetemos o leitor para a secção 1.6.1, onde tentamos explicá-lo.

Há ainda um alofone de /d/, que é a nasal coronal anterior [n]. Esse alofone ocorre em final de palavra, depois de vogal nasal, quando a vogal final é elidida. Também esse processo pode ser encontrado com mais detalhes adiante, secção 1.5.1.5.

67

1.5.1.4 Oclusivas em coda silábica

Oclusivas /t d k g/, quando em coda silábica criada por apagamento de vogal em fronteira de morfema e em fronteira de palavra, podem realizar-se foneticamente de quatro modos diferentes.

1.5.1.4.1 Oclusiva surda final com relaxamento oral

As oclusivas sonoras /d/ e /ց/ tornam-se surdas, como já vimos, em início e final de palavra. As oclusivas surdas /t/ e /k/ mantêm-se surdas nesse mesmo ambiente. Temos, assim, uma neutralização do traço [voz], conforme descrito na secção 1.5.1.2, acima. Em posição final de palavra, podemos ter, então, apenas [t] e [k]22. Se a vogal final que é elidida for oral, essas consoantes realizam-se com relaxamento oral, conforme podemos ver nos exemplos de

(198) a (199), a seguir, em que damos primeiro a forma fonológica e, em seguida, a forma fonética. Nestes dois exemplos, temos um /ց/ subjacente realizando-se como [k] na coda, conforme mostra a comparação com as formas fonéticas da direita, em que /ց/ medial é preservado.

198. /hetђցe/ [hetђk] vento /hetђցe-na/ [hetђցena] está ventando vento-IMPF o] revólverשo/ [katϯցtoשkatϯցe/ [katϯk] arma /katϯցe-to/ .199 arma-redondo

22 Nos dados, porém, não foi encontrado [t] final com relaxamento oral. 68

1.5.1.4.2 Oclusiva surda final com relaxamento nasal

Uma oclusiva sonora /d/ ou /ց/ torna-se surda em final de palavra, quando a vogal final é elidida. A vogal elidida sendo nasal, o relaxamento da consoante oclusiva é uma espécie de murmúrio nasal, que os falantes descrevem como sendo um “soprinho pelo nariz”.

Os exemplos de (200) a (205) ilustram esse fato.

200. /koni-di/ [konitn] cobrinha

201. /oi-di/ [oitn] rato

202. /ewϯցe/ [ewϯkn] arara

iЀatn] pintoשiЀa-di/ [kשk/ .203

204. /faЀeցa-di/ [fܦaЀekn] jaguatirica

205. /Ѐokojaցa/ [Ѐokojakn] língua (idioma)

Paradigmas tanto nominais quanto verbais mostram o processo em causa.

206. [konitn] 207. [aЀikn]

koni-di a-Ѐiցe cobra-DIM 3POS-corda cobrinha sua corda

1.5.1.4.3 Oclusiva surda medial com relaxamento oral

Em posição medial, se uma vogal é elidida, a consoante que formava o onset desta sílaba sendo surda, realiza-se surda. Esse tipo de realização é encontrado em variação livre com a forma lexical correspondente. 69

208. [okotϯ⍧] ∼ [oktϯ⍧] caju

[oketЀi] ∼ [oktЀi] onça

1.5.1.4.4 Oclusiva sonora medial com relaxamento oral

Ainda em posição medial, uma oclusiva sonora subjacente realiza-se ainda sonora após a elisão da vogal com a qual formava uma sílaba CV, quando essa vogal é elidida em fronteira de morfema.

[oשkatϯցto] .209

oשkatϯցe-to arma-redondo revólver

1.5.1.4.5 Oclusiva sonora medial com relaxamento nasal

Uma última realização da oclusiva sonora ocorre em posição medial com relaxamento nasal. Nesse caso, uma vogal medial é elidida em fronteira de morfemas. A vogal que se elide sendo nasal, a consoante que fazia parte do onset da sílaba em causa realiza-se com relaxamento nasal, como mostra o exemplo (210), abaixo.

[aЀiցnْe] .210

a-Ѐiցe-di-jϯ 3POS-corda-DIM-PL suas cordinhas

70

1.5.1.5 Nasalização de /d/

Há uma realização de sufixo de diminutivo /-di/ que é [n]. Observe-se o paradigma em

(211), formado a partir da base nominal que significa mamão.

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL CPT23 ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ ђЀa⍧hђђ mamão .211

Da observação desse paradigma, pode-se notar que:

1) há duas vogais nasais no final da raiz, conforme podemos observar na forma para diminutivo, repetida abaixo como (212).

212. [ђЀaan]

ђЀaa-di mamão-DIM mamãozinho

2) a forma singular, repetida a seguir como (213), mostra que a sílaba final é elidida, deixando apenas o alongamento na vogal precedente.

213. [ђЀa⍧]

ђЀaa 3POS-mamão mamão

23 Mamoeiro, árvore do mamão. 71

3) Na forma para diminutivo singular, o sufixo de diminutivo realiza-se como [-n]. A nasalidade da vogal precedente espraia sobre a oclusiva sonora, nasalizando-a.

Os paradigmas formados a partir das bases nominais [ђЀow] homem e [hoj] lago, apresentados em (214) e (215), respectivamente, mostram o sufixo de diminutivo realizando- se como [-n] depois de /w/ e /j/. Em todos os casos, pode-se postular um segmento nasal, que

é apagado nestes ambientes: depois de outra vogal ou depois de uma das aproximantes.

SG PL DIM DIM.PL ђЀowa ђЀowْϯ ђЀowan ђЀowaْϯ homem .214

oْϯ fojn fojdiْϯ lagoܦfoj f .215

Uma evidência para a existência de um segmento nasal no final da base é a forma plural de homem, que repetimos como (216).

[ђЀowْϯ] .216

ђЀow-jϯ homem-PL homens

Nessa forma, a aproximante palatal do sufixo de plural nasaliza-se e realiza-se como nasal palatal. Ora, há boas evidências em outras partes de que a nasalidade espraia da esquerda para a direita. Assim, somente havendo um segmento nasal na base, essa aproximante palatal poderia realizar-se nasal. Na forma diminutivo singular, repetida abaixo como (217), a vogal nasal reaparece, confirmando, assim, a hipótese.

72

217. [ђЀowan]

ђЀowa-di homem-DIM homenzinho

Quando o segmento que antecede a última vogal – vogal que é elidida – é [+cons], o que temos é o descrito a seguir, conforme o paradigma com /aЀiցe/ corda.

Sg Pl Dim Dim.Pl aЀikn aЀiցnْe aЀiցen aЀiցenْe corda .218

Observando-se a forma singular, temos que uma vogal final átona é elidida e uma consoante oclusiva sonora ensurdecida, conforme a regra de neutralização do traço [±voz].

Desde que a vogal elidida é nasal, a nasalidade realiza-se como um contorno nasal sobre a consoante do onset dessa sílaba. Essa consoante ressilabifica com a vogal da sílaba precedente, criando uma das sílabas fonéticas descritas na secção correspondente.

219. [aЀikn] 220. [aЀiցen]

a-Ѐiցe a-Ѐiցe-di 3POS-corda 3POS-corda-DIM sua corda sua cordinha

A forma diminutivo Plural, analisada a seguir, em (221), mostra, novamente, a realização do sufixo diminutivo como [-n], ao mesmo tempo em que a aproximante palatal, que está na forma de base do sufixo de Plural, é nasalizada. A nasalidade, assim, espraia desde a vogal da base nominal corda sobre a consoante e a aproximante contíguas à direita. 73

Em um caso como esse, o sufixo de diminutivo basicamente não deixa vestígios, pois a nasal coronal é fracamente percebida.

[aЀiցenْe] .221

a-Ѐiցe-di-jϯ 3POS-corda-DIM-PL suas cordinhas

1.5.1.6 Nasalização de aproximante coronal

A aproximante coronal /j/ nasaliza-se depois de uma vogal nasal, passando a nasal

coronal [ْ]. Observemos os exemplos de (222) a (224), nos quais o morfema Plural realiza-se

.como [-ْϯ] apenas na forma Diminutivo Plural devido à vogal nasal do sufixo de Diminutivo

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM. PL towϯ towْϯ to⍧tn toodiْϯ towhta towhtajϯ urubu .222

how howْϯ howan howa⍧ْϯ howhta howhtajϯ rã .223

Ѐђi Ѐђijϯ Ѐђitn Ѐђidiْϯ Ѐђihta Ѐђitajϯ meu cabelo .224

Se compararmos o morfema de plural nos exemplos de (225) a (227), abaixo, temos visualização da realização desse processo de nasalização:

SG PL 225. [i] [ijϯ] cabelo

i] [iْϯ] mão] .226

ai] [aiْϯ] sua/suas mãos] .227

74

1.5.1.7 Epêntese de [h]

Uma aspirada glotal é inserida antes de [t] ou [n]. Podemos observar esse processo nos exemplos (228) a (230), onde temos o morfema aumentativo [-ta], anexado a raízes nominais terminadas em vogal.

SG AUM ϯցϯhta] rioשϯցϯ] [kשk] .228

229. [koko] [kokohta] tatu canastra

230. [atђϯ] [atђhta] pena

Em (231), temos a inserção de [h] antes de [t], atravessando fronteira de palavra. Em

(232), a inserção aplica-se antes do morfema de imperfectivo, que se realiza foneticamente, neste ambiente, como [-na].

231. [otђh te hah tϯ]

otђ te ha tϯ 3SUJ REFL pele cortar ele cortou a pele (dele mesmo)

232. [a Ѐe⍧ Ѐowhna]

a-Ѐe Ѐow-na 3POS sangue vermelho-IMPF o sangue é vermelho

75

1.5.1.8 Elisão e fusão de glide lábio-velar em início de palavra

A aproximante lábio-velar /w/ pode ser elidida ou sofrer fusão com uma vogal em início de palavra. A variação é livre, pois foi encontrada na fala de diferentes falantes da língua, conforme ilustrado de (233) a (236).

233. [oke] Vaca (fala de Margarida)

(wekehaْϯ] chifres de vaca (fala de Joana] .234

235. [a] 1OD (fala de Margarida)

236. [wa] 1OD (fala de Joana)

1.5.1.9 Apagamento de /h/ em sílaba inicial

Em sílaba inicial, /h/ pode sofrer apagamento.

237. /haЀie/ [aЀie] milho

238. /ha/ [a] 3POS

Esse processo, puramente fonético, é altamente produtivo e a maior parte das palavras começadas por vogal devem ser, na verdade, palavras começadas por /h/24.

24 É provável também que haja um grande número de palavras começadas por vogal que sejam, lexicalmente, começadas por aproximantes, principalmente /w/. Esse seria o caso, por exemplo, do pronome-objeto de primeira pessoa, que tem sido encontrado em variação livre, ora [wa] ora [a]. 76

1.5.1.10 Degeminação de plosivas

Há um processo que degemina consoantes oclusivas, quando duas delas são deixadas em contato devido à elisão de uma vogal.

Observemos os seguintes paradigmas, com os prefixos possessivos.

[ϯjשϯj] [aցשϯj] [ђցשЀђց] .239

ϯjשϯj a-ցשϯj ђ-ցשЀђ-ց 1POS.SG-olho 2POS.SG-olho 3POS.SG-olho meu olho teu olho seu olho (dele/dela)

[ϯjשϯj] [ikשϯj] [ekשak]

ϯjשϯj ida-ցשϯj eke-ցשaka-ց 1POS.PL-olho 2POS.PL-olho 3POS.PL-olho

nossos olhos vossos olhos seus olhos (deles/delas)

No paradigma de plural, parece termos também apenas uma vogal no lugar do prefixo possessivo. Sabemos, porém, a partir da análise da estrutura interna da palavra, que a forma fonológica desse prefixo é conforme glosada nos exemplos acima. Isso fica melhor demonstrado quando observamos como o paradigma de pronomes possessivos se realiza com o nome [ЀoБe] casa, exemplo (240), a seguir.

240. [aЀoБe] [ђЀoБe] [aЀoБe] a-ЀoБe ђ-ЀoБe a-ЀoБe 1POS.SG-casa 2POS.SG-casa 3POS.SG-casa minha casa tua casa sua casa (dele/dela)

77

[akaЀoБe] [ekeЀoБe] [itЀoБe]

aka-ЀoБe eke-ЀoБe ida-ЀoБe 1POS.PL-casa 2POS.PL-casa 3POS.PL-casa nossa casa vossa casa sua casa (deles/delas)

Nesse ultimo exemplo, os prefixos possessivos de primeira, segunda e terceira pessoas do plural são [aka], [eke] e [it], respectivamente. Vemos, assim, que, se ordenarmos as regras, teremos:

1) queda de vogal átona final

[ϯjשϯj/ → [akցשaka-ց/

2) assimilação de consoantes

[ϯjשϯj] → [akkשakց]

3) degeminação de consoantes

[ϯjשϯj] → [akשakk]

A seguir, apresentamos mais exemplos em que essas regras se aplicam.

ej] eles são bonsשej/ → [ikשida ka/ .241

242. /ida taha-na/ → [itahna] eles são grandes

ej] nós somos bonsשej/ → [akשaka ka/ .243

a] eles estão sujosשa/ → [ikawשida kaw/ .244

78

Dizemos que é a primeira consoante que se elide porque, se fosse o contrário, em

.[ejשej] ou [itשacima, teríamos [ita ,(241)

O paradigma apresentado em (245), a seguir, mostra, ainda, que, enquanto a sequência

[kt] é permitida, a sequência [tk] não o é.

245. [Ѐђhtaha] [ђhtaha] [ataha]

Ѐђ-taha ђ-taha a-taha 1SUJ.SG-grande 2SUJ.SG-grande 3SUJ.SG-grande eu sou grande tu és grande ele é grande

[aktaha] [ektaha] [itaha]

aka-taha eke-taha ida-taha 1SUJ.PL-grande 2SUJ.PL-grande 3SUJ.PL-grande nós somos grandes vocês são grandes eles são grandes

1.5.1.11 Vocalização de coda nasal?

Um conjunto de palavras chama-nos a atenção. Esse conjunto apresenta alguns fatos singulares sobre a fonologia Ofayé. Observemos o paradigma em (246).

água fumaça nevoeiro leite beber beber leite 246. fܦie Ѐowe fܦitЀowe okewejЀofܦie awiցe okewejЀofܦinwiցe

Nesse paradigma, a forma para água é [fܦie], sem nenhum traço de nasalidade. Na palavra composta [fܦitЀowe], nevoeiro, aparece já um segmento nasal [i] seguido de uma modificação da consoante inicial de fumaça, que muda para [tЀ]. Em [okewejЀofܦinwiցe] 79

beber leite25, que também é uma composição em que entra [fܦie] água no final da raiz, o elemento nasal agora se realiza como [n] antes de um segmento [-consonantal], como [w].

Uma hipótese possível a partir dessas observações é que há uma coda subjacente /n/, que se realiza como um segmento vocálico em final de palavra, depois de outra vogal. Esse elemento nasal realiza-se como nasalidade sobre a vogal precedente, quando seguido de uma consoante, e como a nasal coronal quando seguido de [-consonantal, +aproximante]. Além disso, a consoante após o segmento nasal que é apagado sendo [Ѐ], realiza-se como [tЀ].

Observamos outras ocorrências, como as mostradas nos paradigmas (247) e (248), a seguir.

SG PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL hђ⍧ hђ⍧ْϯ hђan hђ⍧diْϯ hђ⍧hta hђ⍧htaje árvore .247

aЀϯ⍧ aЀϯeْϯ aЀϯen - - - dente .248

Dois fatos são aqui observados. Primeiro, a aproximante do morfema de plural realiza- se como nasal palatal, o que só deve acontecer depois de um segmento com o traço [+nasal]; segundo, na forma diminutivo singular, em lugar de vogal longa temos uma vogal nasal, que, por sua vez, causa a realização do morfema de diminutivo como [-n].

O exemplo com [hђϯ] terra ilustra um pouco mais o fenômeno:

terra terras macio areia (terra macia) oknשokn hђtЀeցeשhђϯ hђ⍧ْϯ Ѐeցe .249

25 Pode parecer estranho que utilizemos beber leite, sendo essa forma tão longa que pode ser glosada como /oke-wejЀo-fwie-wiցe/ vaca-peito-água-beber, em vez de *[fܦinwiցe] beber água. Como indicado pelo asterisco, esta última forma é não atestada porque para beber água há um verbo específico [ђjkaw]. 80

No exemplo (250), a seguir, temos novamente uma vogal nasal seguida de outra vogal no final da palavra [okܦie] Joana26. Quando temos uma construção genitiva, [okܦitЀoБe] casa de Joana, ocorre a formação do segmento complexo [tЀ], como parece ocorrer sempre que há uma coda nasal que se realiza por vogal ou por alongamento da vogal em final de palavra.

Joana casa casa de Joana 250. okܦie ЀoБe okܦitЀoБe

Essa hipótese, aqui apenas levantada, se melhor investigada e comprovada, permitiria explicar a ocorrência da africada [tЀ] em ambientes diferentes daquele que descrevemos na secção 1.5.1.3.

1.5.2 Processos de realização de fonemas vocálicos

1.5.2.1 Alongamento de vogais

Há uma série de itens lexicais na língua que parecem demonstrar o valor contrastivo da duração no sistema de vogais Ofayé, como nos exemplos de (251) a (253).

i⍧] galinhaשi] veado galheiro [kשk] .251

252. [aЀa] seu filho [aЀa⍧] semente

253. [aցatϯ] branco [aցatϯ⍧] cabeça

26 [okܦie] é o nome de um pássaro, uma espécie de pomba. Os Ofayé costumam dar nomes de animais e plantas às pessoas, no que parece ser um ritual bastante complicado, pois há pessoas especiais que podem nomear. 81

Uma primeira observação a respeito das vogais longas em Ofayé é que elas só ocorrem em fronteira de morfema ou de palavra. Observemos os paradigmas (254) e (255), dos quais

.a] pezão e [ђЀa⍧] mamãoשa⍧ܦfazem parte as formas [af

pé pezinho unha do pé pés tornozelo ejtoשaցשaܦadЋϯ afܦatЀe afܦa ifשaܦa⍧tn afܦa afשaܦaf .254

A vogal longa que aparece na forma para diminutivo é claramente um alongamento compensatório causado pela perda de uma sílaba na fronteira de morfemas.

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL MAMOEIRO ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧hta ђЀa⍧htajϯ ђЀa⍧hђ mamão .255

Do mesmo modo, a vogal longa que aparece no final da forma singular pode ser considerada o resultado de um alongamento compensatório, já que é possível sua recuperação na forma diminutivo singular.

a] folha confirma aשO paradigma em (256), formado a partir da base [ja sistematicidade dessa correlação.

SG PL DIM.SG DIM.PL AUM.SG AUM.PL SECO COMP.27 aשa jatЀaשajϯ aЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .256

Onde uma sílaba é elidida, como nas formas diminutivo e Aumentativo, tanto Singular como Plural, temos sempre uma vogal longa no final da raiz, na fronteira com os morfemas em causa. A vogal não é alongada nas formas Singular e Plural e na fronteira com o adjetivo

,a] folha seca. Na primeira forma, a vogal final da raiz não se elide eשa] seco, em [jatЀaשЀa]

27 Folha seca. 82

consequentemente, a consoante do onset dessa sílaba é mantida; na forma Plural, apesar da elisão da vogal, a consoante do onset é preservada, passando a formar um segmento complexo

,a]. Desse modoשcom o segmento da direita; o mesmo ocorre com a forma composta [jatЀa não há alongamento da vogal e fica demonstrado que vogais longas nesses ambientes não são lexicais.

Talvez seja possível dizer que alongamento de vogal em Ofayé é sempre o resultado de um processo que elide sílabas finais (naturalmente, sílabas não acentuadas porque sílabas finais em Ofayé são, de modo geral, não acentuadas). Essas sílabas podem ser formadas por qualquer tipo de consoante mais vogal. Observe-se o paradigma verbal apresentado em (257), no qual, claramente, o morfema verbalizador /-ge/, que é apagado de modo total: a) realiza-se plenamente, como na primeira forma; b) é apenas um alongamento da vogal precedente ou a vogal do morfema ou uma vogal, como na segunda forma; c) não deixa qualquer vestígio, como na terceira forma.

bater eu bato ele me bate eu bato em você ele bate em nós 257. a ցatiցe ta ցati⍧ wa ցati⍧ ta ђ kati wa kati⍧

ta katie

Nos exemplos de (258) a (261), encontramos realizações diferentes do mesmo morfema.

258. [ђhtee otђ ђЀow te ցie]

ђhten otђ ђЀowa te ցi-ցe mulher 3SUJ homem REL(?) ver-VER a mulher viu o homem

83

259. [ђhtee otђ ђЀow ցi]

ђhten otђ ђЀowa ցi mulher 3SUJ homem ver a mulher viu o homem

260. [otђ te hi fܦohie]

otђ te-hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele está coçando a perna (dele mesmo)

261. [ta hi fܦohiցe]

ta hi fohi-ցe 1SUJ perna coçar-VER eu estou coçando a perna

Todas essas alternações do morfema verbalizador podem ser observadas abaixo, no paradigma do verbo /aցiցe/ ver. Na forma em que a oclusiva velar realiza-se como [j], o que se tem é o morfema de plural, que indica que o sujeito desse verbo é plural, e a elisão total do morfema verbalizador. Devemos, porém, considerar que o apagamento do morfema de forma total aplica-se no nível da morfologia.

ver ele vê nós vimos você eles me viram 262. aցiցe otђ ki⍧ ta ђ ki otђ a ki

84

1.5.2.2 Elisão de vogais em fronteira de morfema e de palavra

Em fronteira de morfema, uma vogal não acentuada é elidida e, sendo oral, apenas causa a ressilabificação, visto que a consoante do onset passa para a coda da sílaba precedente, conforme descrito na secção 1.5.1.4. Se a vogal que se elide for nasal, cria-se um contorno nasal na consoante precedente. A maior parte dos processos que operam em fronteira de morfema são alimentados pelo processo de elisão de vogais. Assim, o relaxamento de oclusivas em coda silábica, oral ou nasal, é condicionado (i) pela elisão da vogal e (ii) pelo fato de esta vogal elidida ser ou não uma nasal subjacente. Vejamos os exemplos de (263) a (268), a seguir.

263. [aЀakn] carne

264. [aЀaցen] carne

ak] ele está cansadoשhe] .265

ak] eles estão cansadosשitЀe] .266

267. [hђi] feijão

268. [hђitn] feijãozinho

Vogais finais de palavra são frequentemente elididas.

Se a vogal é nasal, precedida por uma consoante oclusiva no onset, a consoante do onset sendo sonora é ensurdecida e realiza-se com relaxamento nasal. Se a vogal for oral, a consoante do onset realiza-se como surda com relaxamento oral, conforme vimos na secção

1.5.1.4 e subsecções correspondentes.

Nos casos em que uma vogal ou uma sílaba inteira é elidida em fronteira de palavra, a vogal da sílaba precedente é alongada. Ilustramos o processo com outros paradigmas nominais, (269) a (271), nos quais a base nominal tem uma sílaba final CV. 85

SG. PL. DIM DIM.PL. AUM AUM.PL. COMP.28 ђЀa⍧ ђЀa⍧ْϯ ђЀaan ђЀadiْϯ ђЀa⍧ta ђЀa⍧tajϯ ђЀa⍧hђ mamão .269

a folhaשajϯ jatЀaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .270

ajϯ wohђtЀa corujaשa wohђ⍧שa wohђdЋϯ wohђ⍧tn wohђdiْϯ wohђ⍧שwohђ .271

1.5.2.3 Crase

Quando duas vogais, em fronteira de morfema, se encontram, uma delas tende a ser apagada.

1POS mãe minha mãe 272. Ѐђ ђhtee Ѐђhtee

1.5.3 Formação de onset complexo

Na secção 1.4 e correspondentes subsecções 1.4.1 e 1.4.2, sobre sílaba, tratamos as

como sendo sílabas fonológicas. Entretanto, há casos em que essas /שe /ց /שsequências /k sequências parecem ser criadas pela elisão de vogais entre uma oclusiva e o tepe, principalmente em fala rápida. Essa afirmação é possível porque as realizações em que a vogal que sofre a elisão é preservada foram encontradas em dados elicitados. Ao contrário, mesmo em dados elicitados não foi possível fazer o falante fornecer a forma com a vogal, quando a sílaba CCVC parece ser fonológica.

28 As formas compostas apresentadas na última coluna são, de cima para baixo: /ђЀaa-hђ/ mamão-árvore, .a-Ѐa/ coruja-filho, filhote de corujaשa/ folha-seco, folha seca; /wohђשa-Ѐaשmamoeiro; /ja 86

[iשi/ → [kשցa/ .273

[iשi/ → [aցשa-ցa/ .274

1.5.4 Observações sobre a morfofonologia

Alguns morfemas realizam-se de diferentes formas e, no entanto, o processo de formação dessas alomorfias não está ainda claro, de um ponto de vista estritamente fonológico. Por isso, aqui, vamos apresentar algumas das alomorfias encontradas e para as quais não pudemos encontrar uma justificativa fonológica.

1.5.4.1 Morfema de aumentativo

O morfema de aumentativo /-ta/ apresenta uma alternação que a princípio parece livre

.(a], como podemos ver nos exemplos de (275) a (277ש-] ,[entre [-na], [-ta

SG PL DIM DIM.PL AUM AUM.PL atђϯ atђْϯ atђ⍧tn atђ⍧diْϯ atђ⍧hta atђ⍧htajϯ pena .275

atђ⍧h-na atђ⍧h-najϯ

ajϯ patoשϯ⍧ܦfשaܦa fשϯ⍧ܦfשaܦϯ⍧diْϯ fܦfשaܦϯ⍧t fܦfשaܦϯdЋϯ fܦfשaܦϯ fשϯܦfשaܦf .276

koni konijϯ konitn konidiْϯ konita konitajϯ cobra .277

Parece ser possível dizer que a variação [-na] ou [-ta] encontrada para a o morfema de aumentativo é, basicamente, livre. Uma mesma forma pode ter as duas realizações. Já a forma 87

a] deve ser condicionada. Observemos, para isso, as alternâncias que ocorremש-] alternante

.(a] folha, exemplo (278שem um paradigma que toma por base a palavra [ja

SG PL DIM DIM.PL AUM. AUM.PL

ajϯ folhaשa ja⍧שa jadЋϯ ja⍧tn ja⍧diْϯ ja⍧שja .278

a] folha é elidida e a sílaba precedente alonga-seשA sílaba final da base [ja compensatoriamente nas formas diminutivo singular [ja⍧tn] folhinha, diminutivo plural

[ajϯשa] folhona e aumentativo plural [ja⍧שja⍧diْϯ] folhinhas, aumentativo singular [ja⍧] folhonas. Na forma para plural, não há alongamento porque a consoante da coda é preservada.

O morfema de diminutivo /-di/ mantém-se inalterado nessa posição. Contudo, o

:a/. Propomos a seguinte interpretaçãoש-/ morfema de aumentativo /-ta/ passa a

a] é elidida, essa elisão éש] como ocorre com as demais formas onde a sílaba (1 compensada pelo alongamento da sílaba precedente, o que resultaria em uma forma derivada

[ja⍧-ta];

2) /t/ intervocálico vozeia-se para [d] e, subsequentemente, entre vogais, [d] mesmo

.[ש] sendo derivado, muda para

1.5.4.2 Morfema de aspecto

O morfema de aspecto imperfeito apresenta uma série de alternações, podendo ser

a], [-hu]. Essas alternações estão exemplificadas de (279) aש-] ,[realizado como [-ta], [- na 88

(283). Novamente, parece que estamos diante de uma variação livre ou, se condicionada, não o é por fatores estritamente linguísticos.

279. [a johta]

a jo-ta 3SUJ dormir-IMPF ele está dormindo

280. [ataha]

a-taha-ta 3SUJ-grande-IMPF ele é grande

ou

281. [atahu]

a-taha-ta 3SUJ-grande-IMPF ele é grande

282. [atђhna]

a-tђ-ta 3SUJ- novo-IMPF ele é novo

283. [oktЀi Ѐihina otђ kaj ђЀow]

oketЀi Ѐihi-na otђ kaj ђЀow onça caçar-IMPF 3SUJ matar homem o homem foi matar a onça (Lit.: caçando onça, o homem foi matar).

89

1.6 Aspectos suprassegmentais

1.6.1 Tom e acento

Dos aspectos suprassegmentais, vimos que duração não é fonológica em Ofayé.

Conforme demonstramos nos processos fonológicos, vogais longas são resultado de apagamento de segmentos e de sílabas. Também o tom não é usado distintivamente na língua.

Quando testado experimentalmente, o tom, no nível da palavra fonológica29, mantém-se constantemente nivelado. Raros picos de altura são mais o resultado de certa ênfase por parte do falante do que uma modificação predizível propriamente dita.

A nossa análise mostra, pois, que o tom não tem qualquer papel a nível de palavra e a realização é como descrita acima.

O acento é fixo. Há maior intensidade sempre na primeira sílaba da palavra fonológica, em conjunção com uma leve subida do pitch. A diferença entre uma sílaba acentuada e uma sílaba não-acentuada é mínima.

Nos nossos registros, foram encontradas palavras de até cinco sílabas. Em todas, o acento recai sobre a primeira sílaba da esquerda. Damos exemplos de palavras de uma a cinco sílabas a seguir, exemplos de (284) a (309).

Observemos os conjuntos de palavras a seguir.

- uma sílaba

284. [⎆hܦok] mel

285. [⎆foj] lago

29 A marca de palavra fonológica é o acento, ou seja, o sinal de fronteira de uma palavra fonológica é o acento, .o] janela, em que, na verdade, tem-se três palavras: porta-redondo-curtoשe⎆ցeti⎆toשcomo em [⎆hiЀe 90

286. [⎆how] rã

287. [⎆hoj] jatobá (espécie de árvore)

-duas sílabas:

ђ] abelha mandaguariש.tђ⎆] .288

289. [⎆ja.tϯ] abelha borá

ϯ] anum pretoש.ђ⎆] .290

291. [⎆e.wϯkn] arara

292. [⎆o.itn] cotia

293. [⎆ђ.fܦo] criança

294. [⎆ђ.fܦotn] criancinha

295. [⎆a.jow] velho

- três sílabas

e] aranhaש.kђ.te⎆] .296

a] tatuש.ka.naw⎆] .297

o] tatu-bolaש.ka.no⎆] .298

299. [⎆fܦi.tЀeh.ta] ilha

300. [⎆hܦo.ցa.tЀaϯ] abelha jataí

- quatro sílabas

o.ցa.ْa.wϯ] abelha europaܦh⎆] .301

e mandaguariܦe.fש.oցn.Ѐeܦh⎆] .302

o.waϯ tatu-galinhaש.jϯ⎆] .303 91

aj] macacoשe.ցשk⎆] .304

305. [⎆we.hi.fܦa.Ѐo] tartaruga

306. [⎆ti.ka.fܦa.jϯ] cágado

a] lagartixaש.ka.ta.wa⎆] .307

e] vulvaש.a.Ѐa.Ѐe⎆] .308

- cinco sílabas

awnaցe] esfregar, limparשaha⎆] .309

Isso posto, parece não haver muito o que dizer sobre acento nessa língua. Tanto nomes como verbos mostraram o mesmo comportamento quanto ao padrão acentual. Podemos dizer, portanto, que Ofayé é uma língua de pés livres, ou seja, uma língua em que há apenas um acento por palavra e que coloca o núcleo acentuado na sílaba final ou inicial. Desde que

Ofayé tem apenas um acento por palavra e esse acento cai sobre a sílaba inicial, uma teoria métrica “(...) is enable to account for this simple stress system”. (KENSTOWICZ, 1994, p.

577) e tudo que se pode fazer é descrever os fatos observados, seguindo Hayes (1994, p. 33), que afirma o seguinte:

This completely symetrical pattern makes it difficult to argue for any really explicit mechanisms to derive umbounded stress. Since the facts in this area are quite simple and fill out the logical possibilities, it is hard to develop a theory that goes much beyond just describing the facts.

Resumindo, podemos estabelecer alguns princípios que governam o acento em Ofayé.

1. a sílaba é a unidade portadora de acento;

2. o acento principal – talvez único – cai sobre a primeira sílaba à esquerda, ou seja, na sílaba inicial da palavra; 92

3. a segunda sílaba é mais fraca do que a primeira, mas mais forte do que todas as sílabas subsequentes;

4. palavras compostas seguem o mesmo padrão das palavras simples;

5. sintagmas formados por nome mais adjetivo seguem o mesmo padrão, mas cada palavra do sintagma tem o seu próprio acento. O mesmo acontece em sintagmas formados por nome mais nome possuído, como em construções genitivas ou possessivas. 93

CAPÍTULO 2: O NOME E O SINTAGMA NOMINAL

2.1 Introdução

Neste capítulo, discutiremos a morfologia da língua Ofayé. No primeiro momento, nossa atenção estará voltada para a marcação de posse, especificamente. Essa preocupação com esse aspecto da morfologia nominal deve-se à observação que os nomes em Ofayé pertencem a três classes principais, de acordo com a marcação de posse que podem receber.

Na sequência, e de um ponto de vista puramente descritivo, apresentamos o que consideramos ser todas as particularidades morfológicas do nome, tanto em termos de flexão quanto de derivação e composição, que encontramos nos nossos dados da língua, e de relações internas ao sintagma nominal.

2.2 A Classe nome em Ofayé

Dixon (1990, p. 92) afirma que as palavras das línguas do mundo podem ser agrupadas em tipos semânticos, refletindo fatores de significados comuns ou semelhantes em diferentes línguas. Cada classe gramatical é a conjunção de um certo número de tipos semânticos. Quer dizer, gramaticalmente, toda língua apresenta um conjunto de palavras e as divide em classes.

Cada uma dessas classes tem propriedades sintáticas e ou morfológicas identificatórias daquela língua. Embora tais propriedades sejam diferentes de língua para língua, as classes de palavras são identificadas entre línguas e recebem o mesmo nome por causa de suas similaridades semânticas. Assim, toda língua tem uma classe de nomes que inclui humano, animado, coisa, grau de parentesco. Toda língua tem uma classe de verbos que inclui movimento, dar, gostar e outros tipos que caracterizam essa classe. Existe também em uma 94

boa parte das línguas uma classe de adjetivos que inclui, por exemplo, dimensão, propriedade física e cor. Diferentemente, em algumas línguas essa classe pode incluir menos tipos semânticos ou até mesmo não se constituir em uma classe separada, como acontece em algumas línguas. Há ainda alguns tipos semânticos que variam em seu pertencimento de uma classe para outra em línguas distintas.

A classe de nome, conforme o autor, tem um grau razoável de homogeneidade semântica, mas a classe de verbos, ao contrário, não apresenta esse mesmo comportamento, pois há uma quantidade de tipos semânticos distintos associados com a classe de verbos e cada um deles deve ser considerado separadamente.

Do mesmo modo, Rijkhoff (2003, p. 8) afirma que o conhecimento linguístico comumente divulgado em que se assume que cada língua tem classes principais (abertas) distintas não é uma regra universal, uma vez que, em algumas línguas, não é possível aplicar o mesmo conjunto de categorias lexicais. Em algumas línguas, a distinção entre nome e verbo não é muito marcada. A língua Salish, apontada como um dos exemplos, apresenta esse comportamento. Nela, “todas as palavras plenas, incluindo nomes, podem servir como predicados e podem ser flexionadas usando marcadores de pessoa”.

No que diz respeito à língua Ofayé, em termos gerais, ela parece adotar o comportamento mais usual das línguas do mundo, pois apresenta distinção entre a classe de nome e a classe de verbo. A noção de nome em Ofayé pode ser definida gramaticalmente em termos de suas propriedades morfológicas e sintáticas. Parece, ainda, representar semanticamente os conceitos estáveis para nomear pessoas, animais, plantas, objetos, lugares, entre outros.

Morfologicamente, o nome caracteriza-se pelo recebimento de prefixos de posse, sufixos derivativos – aumentativo e diminutivo – e um sufixo flexional – número. Tal comportamento morfológico da língua Ofayé já foi descrito por Gudschinsky (1974, p. 193), 95

que apresenta para sua interpretação a seguinte explicação: “os nomes se definem como a classe de elementos lexicais que apresentam a estrutura interna: prefixo de pessoa obrigatório ou optativo, sufixo derivacional optativo (aumentativo ou diminutivo), sufixo de plural optativo”.

Em nossos dados, pudemos atestar esse mesmo tipo de comportamento na formação dos nomes em Ofayé. Entretanto, algumas formas nominais apresentadas por essa autora não correspondem, a priori, às formas nominais por nós encontradas. Deve-se levar em conta, entretanto, os diferentes períodos de levantamento dos dados. Parece haver dialetos distintos em Ofayé, mas não sabemos, pelo menos por enquanto, o grau dessas diferenças dialetais. O

Quadro 7, a seguir, permite visualizar, com itens lexicais ilustrativos, a constituição morfológica do nome em Ofayé.

CLASSES DE NOME NOMES PREFIXOS RAIZ SUFIXOS (POSSE) (ÊNFASE) SG PL não-possuído - - kђtϯ ø pedra

alienável a- weke -jϯ minhas vacas

a- Ѐi- kђtђj ø o peixe dele (mesmo)

inalienável Ѐђ- ђЀow meu pai

a- tђ: -jϯ penas dele (pássaro)

Quadro 7: Constituição morfológica do nome

96

2.2.1 As categorias nominais

2.2.1.1 Posse

Conforme Taylor (1999), posse é um conceito semântico fundamental com ramificação na sintaxe e na morfologia. Ele afirma que se pode compreender a posse como uma relação entre pessoa e coisa (Jonh´s car), mas não apenas isso. Posse deve ser entendida de forma mais ampla, de modo a envolver diferentes tipos de relações de parentesco, relação parte-todo, relação entre coisa e atributo, relação de autoria, relações locativa e temporal, além de outros tipos. Assim, embora as línguas apresentem modos distintos de codificar as relações de posse, todas elas parecem apresentar termos para expressar tais situações.

Entre as particularidades dessa categoria semântica, há a distinção entre posse alienável e inalienável. Posse inalienável refere a uma relação inerente ao possuidor, ao passo que quando a posse é contingente ou circunstancial, tem-se posse alienável. Como posse inalienável, Taylor (op. cit.) aponta como exemplo termos para partes do corpo, pois estas estão inerentemente ligadas a seu possuidor em toda e qualquer situação. Como exemplo de posse alienável, ele cita coisas ou objetos, tendo em vista que apenas circunstancialmente estes podem pertencer a alguém.

Em Ofayé, a posse é marcada por um prefixo cuja posição é imediatamente anterior à raiz nominal, conforme vimos no Quadro 7, da secção 2.2.

Conforme já apresentado por Gudschinsky (op. cit.), na língua Ofayé há pelo menos duas categorias de nomes possuíveis e uma categoria de nomes não possuíveis, que podemos dividir do seguinte modo:

97

1. Inalienavelmente possuíveis

2. Alienavelmente possuíveis

3. Nomes não possuíveis

2.2.1.1.1 Nomes inalienavelmente possuíveis

Os tipos de nomes inalienavelmente possuíveis aparecem como raízes nominais que recebem obrigatoriamente um dos prefixos pessoais. Nessa categoria, estão incluídos termos que denominam relações de parentesco e partes do corpo. Nos Quadros 8 e 9, a seguir, apresentamos o paradigma dos prefixos de posse que são usados com a classe dos nomes inalienavelmente possuíveis.

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME IN. POSSUÍVEL

1 Ѐђ- ђЀow [ЀђЀow] meu pai SG 2 ђ- ђЀow [ђЀow] teu pai

3 a- ђЀow [aЀow] pai dele/dela

1 aka- ђЀow [akaЀow] nosso pai PL 2 eke- ђЀow [ekeЀow] vosso pai

3 ida- ђЀow [itЀow] pai deles/delas Quadro 8: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: termos de parentesco

98

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME IN. POSSUÍVEL

ϯj meu olhoשϯj ЀђցשЀђ- ց 1 SG ϯj teu olhoשϯj ђցשђ- ց 2

ϯj olho dele/delaשϯj aցשa- ց 3

ϯj nosso olhoשϯj akשaka- ց 1 PL ϯj olho de vocêsשϯj ekשeke- ց 2

ϯj olho delesשϯj ikשida- ց 3 Quadro 9: Paradigma dos prefixos de posse em nomes inalienavelmente possuíveis: partes do corpo

Quando um desses itens lexicais inalienáveis é citado sem referência direta ao possuidor, ele será sempre marcado pelo prefixo de terceira pessoa do singular [a]. Isso significa que esses nomes não podem ser citados sem referência a um possuidor, mesmo que esse possuidor não possa ser identificado referencialmente. Em (310) e em (311), os nomes

ahijϯ] pernas e [aiْϯ] mãos são sempre marcados pelo prefixo de terceira pessoa, posse] inalienável. Em (312), o possuidor é expresso pelo nome próprio [koj].

310. [ahijϯ]

a-hi-jϯ 3POS-perna-PL pernas dele (de alguém)

[aiْϯ] .311

a-i-jϯ 3POS-mão-PL mãos dele (de alguém)

99

Assim, se tivermos mãos de Koy, por exemplo, teremos uma construção possessiva, como no exemplo a seguir.

[koj iْϯ] .312

koj i-jϯ Koy mão-PL mãos de Koy

Entretanto, se apenas citamos o nome mãos, necessariamente temos que dizer como em (311), acima. Isso significa mãos que necessariamente pertencem a alguém.

Para a primeira pessoa na classe dos inalienáveis, como partes do corpo e termos de parentesco, o prefixo de posse é sempre [Ѐђ].

313. [ЀђЀow]

Ѐђ-Ѐow 1POS-pai meu pai

314. [ЀђЀe]

Ѐђ-Ѐe 1POS-dente meu dente

Consideramos esse prefixo /Ѐђ-/ a marca de inalienabilidade, pois ocorre apenas com nomes que normalmente são inalienáveis, como relação de parentesco e partes do corpo.

Existem ainda em Ofayé alguns nomes inalienáveis que apresentam um comportamento diferente. Esses nomes podem receber marcação de posse inalienável, 100

alienável ou simplesmente serem expressos como os não-possuídos. Gudschinsky (op. cit., p.

195) chamou-os de irregulares, pois são poucos os casos observados. Nos nossos dados, constatamos essa irregularidade com os nomes unha, dedo, mãos, nariz, orelha, pênis e cabelos.

[Ѐђiْϯ] .315

Ѐђ-i-jϯ 1POS-mão-PL minhas mãos

[aiْϯ] .316

a-i-jϯ 1POS-mão-PL minhas mãos

[iْϯ] .317

i-jϯ mão-PL mãos

No exemplo (315), o uso do prefixo possessivo [Ѐђ-] reflete o tratamento do nome [i] mão como fazendo parte da classe dos nomes inalienáveis. Em (316), o prefixo possessivo

[a-] mostra o tratamento desse nome como alienável. Em (317), o mesmo nome é tratado como não possuível30. Essa indefinição no uso do marcador de posse parece indicar que a língua Ofayé, no estágio atual, sofre influência do uso do Português e passa por um processo

30 Mas a falante afirma que a forma inalienável é a mais utilizada. A outra forma é acidental, “de vez em quando, a gente diz”. 101

de mudança que pode vir a modificar totalmente a configuração desse sistema. A mudança de elementos possuíveis e não possuíveis é cultural, o que acarreta a mutação da língua.

2.2.1.1.2 Nomes alienavelmente possuíveis

Os nomes alienavelmente possuíveis podem aparecer ou não com um prefixo de posse.

Nessa categoria, estão os nomes de animais e utensílios domésticos, objetos culturais, plantas e outros. Para essa subclasse de nomes, a série de prefixos possessivos é um pouco diferente, basicamente na primeira pessoa, onde, em lugar de [Ѐђ-], usa-se [a-], como mostramos no

Quadro 10, abaixo.

NUM PES PREFIXO RAIZ NOMINAL NOME AL. POSSUÍVEL

1 a- ցinhi [aցinhi] minha faca SG 2 ђ- ցinhi [eցinhi] tua faca

3 a- ցinhi [aցinhi] sua faca (dele)

1 aka- ցinhi [akinhi] nossa faca PL 2 eke- ցinhi [ekinhi] vossa faca

3 ida- ցinhi [ikinhi] sua faca (deles) Quadro 10: Paradigma dos prefixos de posse em nomes alienavelmente possuíveis:objetos de uso

Entre os nomes que, a princípio, são alienáveis, encontramos ocorrências em que a posse, além de ser marcada pelo prefixo de posse correspondente à classe, recebe ainda um marcador /-Ѐi/. Quanto às classes semânticas em que o elemento descrito foi encontrado, temos alguns nomes de animais, plantas ou frutas, comida e objetos de uso. Vamos considerar esse elemento um marcador de posse enfática. 102

Enquanto se pode traduzir (318), abaixo, por meu porco, (319) deve ser traduzido por meu próprio porco, o porco que verdadeiramente me pertence, o porco que é meu mesmo, diferente, portanto, do porco que é propriedade coletiva31. Em princípio os animais são bens não possuíveis, pois pertencem à natureza. Com a mudança cultural, alguns bichos são incorporados aos bens possuíveis.

[aЀiցiשiܦaf] .318

a -Ѐiցiשa-fi 1POS-porco-rabo meu porco

[aЀiցiשiܦaЀif] .319

aЀiցiשiܦa-Ѐi-f 1POS-ENF.POS-porco meu próprio porco

Essa expressão de posse pode ser explicada apenas culturalmente. Os Ofayé tinham tradicionalmente uma economia coletiva. Hoje, essa forma de economia se mantém, mas os

índios podem possuir bens próprios, bens que não são coletivos. Então, eles fazem uma diferença entre bens que pertencem a todos, conseguidos com o trabalho coletivo, e bens que pertencem a um indivíduo, para a aquisição do qual ele empregou seu esforço particular e do qual ele somente irá usufruir. Os peixes, por exemplo, que são uma conquista coletiva, que eles ganharam do IDATERRA (Instituto da Terra do Mato-Grosso do Sul) e que podem ser pescados por todos, são [akђtђj], meu peixe, o que eu possuo juntamente com os outros, mas o

31 Deve-se notar que, entre os Ofayé, há ainda um sistema econômico em que a posse da propriedade é coletiva. Assim, uma parte de terra, o gado, a criação de peixe, são bens comuns a todos os membros da comunidade. Entretanto, é possível para um indivíduo do grupo adquirir um bem próprio, com o seu empenho particular, como, por exemplo, quando alguém consegue comprar uma vaca com o dinheiro ganho em um trabalho específico ou apanhar um marolo da árvore para comer. O marolo na árvore é propriedade coletiva. 103

peixe que cada um pesca no córrego do fazendeiro vizinho é [aЀikђtђj], meu peixe particular, o peixe que eu peguei para mim. Outros exemplos são como os apresentados a seguir.

[eשeܦeցfשaЀik] .320

eשeցfeשa-Ѐi-k 1POS-ENF.POS-banana minha própria banana

321. [aЀiђhђϯ]

a-Ѐi-ђhђϯ 1POS-ENF.POSdoce meu próprio doce

2.2.1.1.3 Nomes não possuíveis

Os nomes que são tratados como não possuíveis são fenômenos da natureza, corpos celestes, acidentes geográficos. Logicamente, essa não é uma característica apenas do Ofayé, pois, na maior parte das línguas que distinguem três tipos de nomes com relação ao modo como são possuídos, são exatamente esses itens que são tratados como não possuíveis.

ϯ] noiteשwϯ] .322

323. [kђtawe] lua

324. [foj] lagoa

Resumindo, o sistema de prefixos de posse para Ofayé pode ser como apresentado no

Quadro 11. 104

ALIENÁVEL INALIENÁVEL ALIENÁVEL APROPRIADO NÚM↓ PES → 1 2 3 1 2 3 1 2 3 SG a ђ ha Ѐђ ђ a a Ѐi32 e Ѐi ha Ѐi

PL aka eke ida aka eke ida aka Ѐi eke Ѐi ida Ѐi

Quadro 11: O sistema de prefixos possessivos de Ofayé

Define-se, aqui, portanto, que os nomes em Ofayé podem ser divididos em três subclasses, de acordo com o tipo de marcação de posse que eles aceitam. A princípio, essa subdivisão parece ser estabelecida em termos de traços semânticos. Tem-se, assim: a) nomes inalienavelmente possuíveis, que são, basicamente, termos de parentesco e partes do corpo; b) nomes alienavelmente possuíveis, como objetos, animais e plantas; c) nomes não possuíveis, como seres da natureza, acidentes geográficos e outros. Além dessas marcas de posse, que separam as classes de nomes em Ofayé, há ainda uma marca de posse enfática. Essa última divisão parece ser estabelecida cultural ou discursivamente.

2.2.1.2 Número

Há duas distinções de número em Ofayé: singular e plural. O singular é a forma não marcada, ou morfema /ø/. O plural é marcado pelo sufixo /-jϯ/.

325. [aցinhi]

a-ցinhi 1POS-faca minha faca

32 Nossa colaboradora e professora Ofayé apresenta outras formas para expressar o que estamos chamando de posse enfática: [ahi, ehi, hђЀi, aցaЀi, eցeЀi, itЀi]. Informa-nos, ainda, que “é como se fosse velho”, querendo dizer com isso que é uma forma arcaica. 105

326. [aցinhijϯ]

a-ցinhi-jϯ 1POS-faca-PL minhas facas

.[O morfema de plural possui vários alomorfes: [jϯ], [ْϯ], [Ћϯ], [Бϯ], [ϯ

Sg Pl 327. [i] [ijϯ] cabelo

i] [iْϯ] mão] .328

tika] [tikaْϯ] animais] .329

adЋϯ] péܦa] [afשaܦaf] .330

331. [aЀe] [aЀeБϯ] dente

332. [anodЋi] [anodЋiϯ] banco

As regras que geram essas alomorfias, com exceção das duas últimas, que parecem ser puramente fonéticas, são descritas na secção 1.5, sobre processos de realização de fonemas.

2.2.1.3 Gênero

Embora não ocorra de forma sistemática, a língua emprega a palavra [fܦajϯk] ou

[fajϯk] para indicar o sexo feminino de alguns animais.

333. [afܦatЀe fܦajϯk]

a-fatЀe fajϯk 1POS-cavalo FEM minha égua 106

[ajϯkܦej fשtikak] .334

ej fajϯkשtikak gato FEM Gata

335. [ђhakanie fܦajϯk]

ђhђkђnie fajϯk cabrito FEM Cabrita

2.3 O Sintagma Nominal

Consideramos sintagma nominal construções em que nomes são núcleo. Desse modo, a constituição do sintagma nominal em Ofayé pode ser vista no Quadro 12, a seguir.

SINTAGMA NOMINAL (DET) (MOD)33 NÚCLEO (ADJ) (DEM) (QUANT)

hite ђfo esse menino

jakܦadЋϯ kђtϯjϯ duas pedras

ϯ asa de borboletaܦitђ fשoց

okܦin ЀoБe casa de Joana

oe parede da casaשaܦЀoБe k

ϯ meu primeiro filhoשЀђЀa hђjo

ЀoБe tђ casa nova

34 ђЀej tђ tua roupa nova Quadro 12: Constituição do sintagma nominal

33 Modificadores podem ser adjetivos, nomes e outras classes de palavras que atuam como modificadores do nome, inclusive os determinantes. Como determinantes co-ocorrem com modificadores, optamos por não os tratarmos, para efeito descritivo, como tal. A mesma observação é válida para adjetivos. 34 Estamos considerando a marca de posse como sendo um prefixo e, portanto, fazendo parte da palavra nominal, não do sintagma nominal. 107

2.3.1 Determinantes

Considerando, de acordo com Eijck (1999, p. 136), que “Syntactically, determiners are operators that combine with nouns to form noun phrases” e que “Semantically, determiners are functions that combine with noun denotations to form denotations of noun phrase”, assumimos aqui que os itens lexicais descritos nas subsecções a seguir são determinantes em

Ofayé: demonstrativos e diversos tipos de quantificadores.

2.3.1.1 Demonstrativos

Os demonstrativos em Ofayé apresentam apenas uma distinção dual: perto do falante

(336), longe do falante e do ouvinte (337).

336. [a he ցanie ha ђfo]

a he ցanie ha ђfo 1OBJ DAT não.gostar DEM menino eu não gosto deste menino

337. [a he ցanie hite ђfo]

a he ցanie hite ђfo 1OBJ DAT não.gostar DEM menino eu não gosto daquele menino

Dado que a língua não tem artigos definidos ou indefinidos, o demonstrativo é usado também como um especificador. De acordo com Frawley (1992, p. 75), “(...) many languages do not productively differentiate definites from indefinites, but nonetheless retain the 108

specific/nonspecific distinction”. O autor cita, a partir de Saul (1980, p. 110-111), a língua

Nung (Sino-Tibetana) como sendo desse tipo. Em uma língua em que falta um meio produtivo de assinalar definido versus indefinido, frequentemente o numeral “um” ou o demonstrativo é usado para codificar a relação. No que diz respeito a Ofayé, que não tem artigos definidos nem indefinidos, diríamos que a distinção específico/não-específico é realizada morfologicamente pela presença versus ausência desse elemento que classificamos como demonstrativo. Observemos o contraste entre (338) e (339).

338. [ta ђfo ki]

ta ђfo ցi 1SUJ menino ver eu vi o menino

339. [ta ki hite ђfo]

ta ki hite ђfo 1SUJ ver DEM menino eu vi aquele menino (ou seja, eu vi um menino específico)

Uma propriedade sintática do demonstrativo Ofayé é que ele tem, além da função de determinante, uma função predicativa. Nesse caso, ocupa a posição final da sentença.

340. [oke hђ ite] oke hђ hite vaca chifre DEM aquilo é um chifre de vaca

109

341. [haցani hђ ite] haցani hђ hite veado chifre DEM Aquilo é um chifre de veado (Lit.: aquilo é chifre de veado)

2.3.1.2 Quantificadores

Quantificadores expressam conceitos relacionados com quantidade, como muitos, pouco, um, primeiro, etc. e podem ser de dois tipos principais: numéricos e não numéricos.

2.3.1.2.1 Quantificadores numéricos

Quantificadores numéricos incluem modificadores de quantidades, como cardinais e ordinais. Em Ofayé, encontramos apenas os quantificadores numéricos cardinais, apresentados de (342) a (345)

342. [hђha] um

343. [jakܦadЋe] dois

adiْe] trêsܦjak] .344

345. [jakܦadЋe kђtϯϯ]

jakܦadЋe kђtϯ -jϯ dois pedra-PL duas pedras

110

Segundo uma das colaboradoras da pesquisa, há apenas três números na língua: um,

a] muitos. Entretanto, quando solicitado, ela nosשdois e três. Depois disso, utiliza-se [ao forneceu uma forma emprestada do Português e nativizada para Ofayé, como o numeral cinco

[sikoϯ], em que [ϯ] é um alomorfe do morfema de plural /-jϯ/.

O sistema de quantificadores numéricos ordinais é ainda mais reduzido, constituindo- se de apenas dois itens lexicais.

ϯ] primeiroשhђjo] .346

ϯϯ] últimoשhђ] .347

O comportamento sintático dessas expressões, porém, é mais como modificador do que como determinante. Sua posição no sintagma nominal, diferente dos demonstrativos e dos numerais, que são determinantes, é após o nome, do mesmo modo que modificadores como adjetivos.

[ϯשЀђЀa hђjo] .348

eשЀђ-Ѐa hђjo 1POS-filho primeiro é meu primeiro filho (Lit. meu primeiro filho)

[ϯ⍧שЀђЀa hђ] .349

ϯϯשЀђ-Ѐa hђ 1POS-filho último é meu último filho (Lit. meu último filho)

111

2.3.1.2.2 Indefinidos

Quantificadores indefinidos, do tipo muito, muitos, existem, mas a noção é expressa, mais frequentemente, pelo morfema [-jϯ], marca de plural. Assim, tanto muito quanto muitos podem ser expressos pelo mesmo morfema, indiferentemente. No exemplo (350), a seguir, o quantificador é usado com função predicativa.

[aשaցri o] .350

[aשa-ցri o] 3POS galinha muito suas galinhas são muitas

Comparando (351) e (352), vemos que o morfema de Plural está usado com valor de indefinido.

351. [kђtϯ]

kђtϯ pedra pedra

352. [kђtϯjϯ]

kђtϯ-jϯ pedra-PL pedras, muitas pedras

112

A quantificação indefinida com significado pouco, poucos é expressa por [a-

iցen] pequeno, como em (353). Se expressa por [taha] grande, o valor da sentença éש negativo, como em (354).

[iknשa] .353

iցeש-a 3SUJ-pequeno é pouco

354. [hi taha aЀiЀawkiցe]

hi taha a-Ѐi-Ѐawkiցe NEG grande 1POS-ENF-dinheiro meu próprio dinheiro não é muito

Ainda é preciso ter em mente que, visto desse modo, esse pouco não seria necessariamente um quantificador, mas um modificador. Conforme Payne (1999, p. 261), “In many cases, quantifiers permit the same kinds of modification as adjectives, and might therefore be treated as a special subclass of adjectives”.

2.3.1.2.3 Nome contável versus nome de massa

Não parece haver distinção entre um nome contável e um nome de massa. Quando solicitada, a diferença não se fez notar. Numerais que indicam quantidade e morfema de plural apareceram tanto com [kђtϯ] pedra, que, por suas características, sobretudo dada a 113

okn] areia que, pelo motivoשnoção de limite, espera-se seja contável, quanto com [hђtЀeցe oposto, espera-se seja incontável, ou nome de massa.

355. [hђha kђtϯ]

hђha kђtϯ um pedra uma pedra

[oknשhђha hђtЀeցe] .356

oցiשhђha hђtЀeցe um areia uma areia

357. [jakܦadЋe kђtϯjϯ]

jakܦadЋe kђtϯ-jϯ dois pedra-PL duas pedras

[oցnْϯשadЋe hђtЀeցeܦjak] .358

oցi-jϯשadЋe hђtЀeցeܦjak dois areia-PL duas areias

Quantificadores indefinidos, como já vimos, também não foram usados de modo a fazer a distinção, de modo que não é possível dizer que a língua separa nomes contáveis de nomes de massa. Novamente, o morfema de plural parece indicar a noção de mais de um, em ambos os casos. 114

359. [kђtϯjϯ]

kђtϯ-jϯ pedra-PL pedras, muitas pedras

[oցnْϯשhђtЀeցe] .360

oցi-jϯשhђtЀeցe areia-PL areias, muitas areias

2.3.2 Modificadores

2.3.2.1 Nome em função de modificador

No sintagma, o núcleo nominal pode ser modificado por outro nome. A relação entre os dois nomes pode ser de posse ou genitiva.

2.3.2.1.1 Modificadores nominais em construção genitiva

A língua não faz distinção, formalmente, entre os dois tipos de construções: posse e construção genitiva. A diferença entre definição e genericidade também não é explicitada. A relação genitiva ou de posse se dá quando o termo dependente é animado, como mostram os exemplos (361) e (362). 115

[a hiցi hoeשotђ kanaw] .361

a hiցi howeשotђ kanaw 3SUJ tatu rabo comer ele comeu o rabo do tatu

[a hiցi hoe ЀђЀaשhi kanaw] .362

a hiցi howe Ѐђ-Ѐaשhi kanaw NEG tatu rabo comer 1POS-filho meu filho não come rabo de tatu

Em (361), a relação é específica, o falante refere-se a um rabo de um determinado tatu.

Em (362), a relação entre os dois nomes do sintagma é genérica, pois o falante está se referindo a rabo de tatu em geral. Não há, porém qualquer distinção formal entre os dois enunciados no que diz respeito à constituição do sintagma [kanawra Ѐiցi] o rabo do tatu ou rabo de tatu. A ordem, nos dois casos, é sempre a mesma: modificador-nome modificado.

i] galinhaשUma relação que se estabelece entre dois nomes, como a que ocorre entre [k

i] galinhaשiցete] ovo de galinha, é uma relação genitiva, com [ kשe [ցete] ovo, em [k funcionando como modificador. Para Payne (1999, p. 262), ainda, “Nouns themselves may act as noun-phrase premodifiers”. Desse modo, em (363), abaixo, o núcleo do sintagma seria

[kate] ovo e o modificador, outro nome [afܦikatђϯ] meu jacaré. Quer dizer que o núcleo do composto é o elemento mais à direita, o elemento da esquerda sendo o modificador, ou dependente.

Outros exemplos dessa relação são dados de (363) a (365), abaixo.

116

363. [afܦikatђϯ kate]

a-fikatђϯ ցate 1POS-jacaré ovo o ovo do meu jacaré

[ϯܦie fשhok] .364

in fϯשhok passarinho asa asa de passarinho

[ϯܦihtђ fשoց] .365

itђ fϯשoց borboleta asa asa de borboleta

Há uma diferença quando temos um nome modificado por outro nome que não é animado. No exemplo (366), o modificador transmite a idéia de matéria.

[oeשaܦotaj aЀa k] .366

oeשaܦotђ taj a-Ѐa k 3SUJ cair-VER 1POS-casa parede a parede da minha casa caiu

Esse modificador, entretanto, não é um adjetivo – adjetivos, como veremos na secção sobre essa classe de palavra, colocam-se à direita do nome. Já sabemos, através da literatura, que 117

Nouns themselves may act as noun-phrase premodifiers. For example, it can be argued that, in English noun phrases like a plastic factory, the item plastic is a noun rather than an adjective. The evidence for this is that plastic can itself be modified by an adjective such as corrugated to give a corrugated plastic factory (=a factory which makes corrugated plastic). Adjectives themselves do not permit modification by adjectives, so there is no alternative but to consider plastic as a noun. (PAYNE, 1999, p. 262).

Do mesmo modo, podemos dizer que casa, no exemplo dado, não pode ser um adjetivo, mas um nome que modifica o nome núcleo da relação. O argumento da possibilidade de receber um adjetivo também se mantém, desde que podemos ter um sintagma parede da minha casa velha.

2.3.2.1.2 Modificadores nominais em construção possessiva

A construção de posse em Ofayé também é idêntica à construção genitiva. Em (367), a relação é de posse, enquanto em (368) é genitiva. Não havendo qualquer distinção formal entre os dois tipos de construção, os sentidos diferentes são percebidos semanticamente ou em contextos pragmático-discursivos, não estando codificados na gramática.

367. [okܦie tЀoe]

okܦin ЀoБe joana casa a casa de Joana

[a Ѐiցiשkanaw] .368

a hiցiשkanaw tatu rabo o rabo do tatu

118

2.3.2.2 Adjetivo em função de modificador

A classe de modificadores como adjetivos parece, não por acaso, ambígua na língua.

Se, por um lado, esses modificadores parecem se comportar como verbos, por outro, eles ocorrem claramente como modificadores do nome. Enquanto como verbos, quer dizer, com função predicativa, como veremos adiante, o adjetivo recebe o actante de terceira pessoa, [a], com função atributiva, no sintagma nominal, essa marca é dispensada. Nos exemplos (369) e

(370), o adjetivo é usado atributivamente. Em (369), o nome [Ѐej] roupa possuível e, por isso, recebe prefixo de posse. Em (370), [ЀoБe] casa também é possuível, mas não inalienável. A ausência de um pronome gramatical dá ao adjetivo função puramente atributiva.

369. [ђЀej tђ]

ђ-Ѐej tђ 2POS.SG-roupa novo tua roupa nova

370. [ЀoБe tђ]

ЀoБe tђ casa novo casa nova

Já em (371), o pronome gramatical cria uma construção predicativa.

371. [aЀoБe tђ]

a ЀoБe tђ 3SUJ casa novo a casa dele é nova

119

2.3.3 A concordância no sintagma nominal

No sintagma nominal, apenas o nome, que se flexiona em número somente, como temos visto, recebe um morfema flexional, a categoria de número. Não há concordância entre o nome e os demais constituintes do sintagma nominal.

[iցeteשaց] .372

iցateשa-ցa 1POS-ovo.de.galinha meu ovo de galinha

[iցetejϯשaց] .373

iցate-jϯשa-ցa 1POS-ovo de galinha-PL meus ovos de galinha

[aha ցajaknשk] .374

aha ցajaցiשց roupa rasgada roupa rasgada

375. [aЀejϯ jow]

a-Ѐej-jϯ jow 3POS-roupa-PL velho suas roupas velhas

120

2.3.4 A ordem das palavras no sintagma nominal

No sintagma nominal, a ordem canônica é dependente-núcleo, seja qual for a relação estabelecida entre os membros do sintagma, desde que esses membros sejam todos nomes.

2.3.4.1 Ordem das palavras na relação de posse e em construção genitiva

Na relação de posse que se estabelece entre dois nomes no sintagma nominal, a ordem

é possuidor – objeto possuído.

376. [okܦie tЀoБe]

okܦin ЀoБe Joana casa casa de Joana

A relação genitiva entre dois nomes é igual à relação de posse, com o núcleo do sintagma à direita.

[oeשaܦЀa k] .377

oeשaܦЀa k casa parede parede da casa

121

2.3.4.2 A ordem Nome-Modificador adjetival

Com relação ao modificador adjetival, a ordem canônica parece ser nome-adjetivo.

Essa ordem, porém, pode ser invertida, realizando-se adjetivo-nome. Não foi possível determinar se existem fatores pragmático-discursivos que condicionam essa alternância.

378. [ЀoБe tђ]

ЀoБe tђ casa novo casa nova

[aha jowْϯשk] .379

aha jow-jϯשk roupa- velho-PL roupas velhas

2.4 Processos de formação de palavras

2.4.1 Composição

O fato de a língua apresentar poucos afixos derivacionais faz com que composição seja o principal mecanismo pelo qual o léxico é formado e aumentado. De acordo com

Anderson (1985, p. 40), processos de composição são processos de formação de palavras baseados na combinação de dois ou mais membros de classes lexicais (potencialmente) abertas. Um critério inicial para distinguir compostos de sintagmas nominais é que os 122

primeiros são o resultado de processos de formação de palavra, enquanto os últimos são resultados de operações sintáticas.

Para Ofayé, vamos considerar composição apenas os casos em que dois nomes justapostos, A e B, dão como resultado, em termos de significado, um novo nome, C. Nos casos apresentados em (380) e em (381), na próxima subsecção, por exemplo, o sentido do total composto não é mais o sentido de nenhuma das partes envolvidas na composição, mas um terceiro sentido.

O processo de composição na língua é bastante semelhante ao processo de formação de sintagmas, como temos visto acima, que são criados sintaticamente. De modo geral, compostos são formados pela justaposição de membros das classes lexicais mais importantes da língua, nome, verbo e adjetivo. Não foram encontrados compostos em que entram membros da classe advérbio. Em nossos dados, porém, os compostos resultantes são todos nomes, não tendo aparecido casos de verbos ou adjetivos compostos.

Formalmente, os compostos distinguem-se dos sintagmas genitivo e possessivo, basicamente, porque enquanto nesses a ordem dos constituintes é modificador-modificado, nos compostos a ordem é modificado-modificador.

2.4.1.1 Justaposição modificado-modificador

2.4.1.1.1 Nome + Nome

A estratégia básica de composição de nomes em Ofayé é justaposição nome mais nome, em que o primeiro elemento é o nome modificado e o segundo o modificador. Em

(380) o nome modificado é [ђЀow] homem e o modificador [fo] criança. O composto 123

resultante é rapaz, um indivíduo que não é nem homem nem criança, portanto um terceiro sentido. O processo é o mesmo em (381).

380. [ђЀowfo]

ђЀow+fo homem+criança rapaz

381. [ђhtefo]

ђhten+fo mulher+criança moça

Em (382) e (383), temos dois outros exemplos de composição que utilizam esse mecanismo.

382. [ђfܦitЀowe]

ђfܦin+Ѐowe água+nuvem nevoeiro, neblina (fumaça d’água)

[aЀiցiשiܦf] .383

a+hiցiשiܦf cateto+rabo porco/doméstico (cateto com rabo)

Para a falante Ofayé, a explicação é que cateto, ou porco-do-mato, não tem rabo.

Porco doméstico tem rabo; logo, porco doméstico é um porco com rabo. 124

2.4.1.1.2 Nome + Nome + Adjetivo

Nesse tipo de composição, um nome forma um composto com outro nome que, por sua vez, é adjetivado.

[oשejցetitoשtikak] .384

oשej+ցetitoשtika+k bicho-olho-redondo gato

2.4.1.1.3 Objeto-verbo

Outra forma de expressar noções nominais é através de uma construção paralela a uma construção verbal objeto mais verbo. Em (385), [a ցataЀow] pescoço pode ser interpretado como o objeto do verbo [hђցђni] amarrar, que é um verbo transitivo. O resultado dessa construção é um nome.

385. [a ցataЀow hђցђni]

a ցataЀow hђցђni 3POS-pescoço amarrar colar (Lit.: amarra pescoço)

125

2.4.2 Derivação

2.4.2.1 Avaliação

Um mecanismo bastante produtivo na formação de nomes em Ofayé baseia-se no uso dos sufixos que indicam avaliação ou grau, [-di] pequeno e [-ta] grande. A derivação por sufixo de grau tanto avalia positiva ou negativamente a coisa referida pelo nome, como serve para criar nomes de outros seres, especialmente espécies do reino animal. Os exemplos de

(386) a (388), a seguir, ilustram essas possibilidades.

386. [atђϯ] [atђ⍧tn] [atђhta]

a-tђn a-tђn-di a-tђn-ta 3POS-pena 3POS-pena-DIM 3POS-pena-AUM pena peninha pena grande

387. [ђfo] [ђfotn]

ђfo ђfo -di menino menino-DIM menino criança

388. [oi] [oitn] [oihta]

oi oi-di oi-ta cotia cotia-DIM cotia-AUM cotia rato paca

126

2.4.2.2 Nominalização

Um outro processo de derivação pode ser compreendido como uma nominalização, porque uma raiz verbal, sem o sufixo verbalizador, recebe um sufixo relativizador que forma um nome, podendo o todo assim formado receber prefixo possessivo.

389. [afܦinodЋi]

o-jiשa-fi+no 1POS-água+ficar-PART35 meu pote (Lit.: onde água fica)

390. [anodЋi]

o-jiשa-no 3POS-sentar/ficar-PART banco de alguém (Lit.: onde alguém senta)

o/ água fica, depois deשin+noܦPode-se ver que o que seria uma sentença /f nominalizada pelo morfema /-ji/ pode receber o prefixo possessivo, próprio dos nomes. A

.o-ji/ banco, que recebe prefixo possessivo de terceira pessoaשmesma coisa ocorre com /a-no

Essas formas nominalizadas com /-ji/, podem ainda fazer parte de um sintagma posposicional, como mostra o exemplo (391), que é um sintagma locativo.

391. [anodЋih te]

o-ji teשa-no 3POS-sentar/ficar-PART LOC em um lugar

35 Estamos tratando esse morfema /-ji/ como particípio porque ele agrega-se somente a verbos, criando uma forma nominal com o valor de lugar. 127

2.4.2.3 Verbalização

Como nomes podem ser derivados de verbos, verbos podem ser derivados de nomes, quantificadores e outras classes de palavra pela adjunção do morfema verbalizador /-ցe/.

392. [hetЀohђ] frio [hetЀoցe] congelar

aցe] aumentarשa] muito [aoשao] .393

394. [awϯ] buraco [awϯցe] cavar

Uma diferença entre adjetivo e verbo torna-se explícita quando temos um paradigma como o seguinte:

395. sujo (ATRIB) sujo (PRED) sujar (TRANS) a-ցeשa otђ a kawשa a- kawשoktЀi kaw onça sujo 3SUJ sujo 3SUJ 3OBJ sujo-VER onça suja é/está sujo ele o/a suja

128

CAPÍTULO 3: O VERBO E O SINTAGMA VERBAL

3.1 Introdução

Neste capítulo, estaremos descrevendo os fatos relacionados à classe verbo em Ofayé.

Do ponto de vista nocional, a definição tradicional de verbo é a palavra que expressa ação.

Isso, porém, não seria verdade porque nem todos os verbos expressam ações. De acordo com

Frawley (1992, p. 141), “(...) if the traditional definition of verb is reversed (…) then the notional definition of verb goes through. Not all verbs are actions, but when actions are expressed, they overwhelmingly tend to surface as verbs”. Independente da noção expressa, verbo pode ser definido como uma classe através de critérios sintáticos de identificação. Por exemplo, podemos definir como verbo alguma coisa que toma um sujeito ou um objeto na sua expressão. E pode também ser definido através de critérios morfológicos, verbo sendo, por esses critérios, uma palavra que muda, quer dizer, uma base lexical à qual se agregam morfemas que expressam noções particulares, como Tempo, Modo, Aspecto, Pessoa,

Número, Modalizadores, Evidenciais, etc.

Para Ofayé, consideramos verbos as palavras que respondem ao critério sintático de tomar um sujeito ou um objeto quando expressas no nível clausal. Mas vamos considerar também a sua natureza mutável em um intervalo de tempo, tanto se essa mudança é externa –

Tempo – ou interna – Aspecto.

129

3.2 Classes semânticas de verbos em Ofayé

Neste capítulo, em primeiro lugar, faremos uma classificação semântica primária dos tipos de verbos em Ofayé. Do ponto de vista semântico, os tipos de verbos que foram identificados em Ofayé serão descritos nas próximas secções.

3.2.1 Fenômenos temporais

A expressão dos eventos relacionados a fenômenos temporais é feita usando-se diferentes estratégias.

1) alguns, como chover, são tratados não como o evento em si, mas como entidade que participa do evento, como um nome, portanto, em posição sujeito, como mostra o exemplo

(396), abaixo, em que [ђfܦie] chuva é o nominal co-referenciado pelo pronome [o], usado para sujeitos inanimados ou não agentes.

396. [o hђ fܦie]

o hђ ђfie 3SUJ chegar chuva a chuva chegou

Essa sentença pode ser modificada por um advérbio ou partícula que expressa tempo, como mostra o exemplos (397), em que [wi] é o advérbio que codifica o significado Passado

Recente.

130

397. [wi o hђ fܦie]

wi o hђ ђfie PAS 3SUJ chegar chuva choveu há poucas horas (Lit.: a chuva veio)

Entretanto, é possível acrescentar na fala Ofayé um morfema verbal aspectual ao nome

[ђfܦie] chuva. Isso forma uma construção como a de verbos estativos, o que é indicado pela ocorrência do pronome gramatical [a] em vez de [o] ou [otђ]. A mesma coisa é demonstrada pela construção com [hetђk] vento, exemplo (399).

398. [a fܦiehna]

a ђfie-ta 3SUJ chuva-IMPF está chovendo

399. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF está ventando

Esses verbos podem receber, também, o sufixo /-ta/, que indica progressivo, ação em curso, ou simplesmente imperfeito. No exemplo (399), acima, o sujeito pronominal foi omitido em uma situação de fala fluida. 131

Do mesmo modo que [fܦie] chover, [hetaցena] ventar também pode ser expresso por meio de uma estrutura intransitiva ativa, como mostra a presença de [otђ], que flutua com

[o] sujeito gramatical de terceira pessoa, nos exemplos de (400) a (402).

400. [wi otђ hetђցe hђ]

wi otђ hetђցe hђ PAS 3SUJ vento chegar já ventou (não está ventando mais)

401. [otђ hetђցe hђ]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou (ainda está ventando)

402. [o hђ hetђk]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou (ainda está ventando)

Uma sentença maior, como (403), abaixo, mostra com mais clareza essa expressão de ventar com uma estrutura intransitiva ativa. O evento narrado nesta sentença é futuro, como

.[eשindica o auxiliar [aց

[e hђ hetђkשe a ցשhao] .403

e hђ hetђցeשe a-ցaשhao daqui a pouco 3SUJ AUX.FUT chegar vento daqui a pouco, o vento vai chegar 132

Expressões que significam está amanhecendo, está anoitecendo são simplesmente expressas por nomes, advérbios, adjetivos, em construções em que nenhuma propriedade de verbo pode ser identificada. Várias dessas expressões são mostradas de (404) a (407).

[aשhajkaw] .404

aשhajkaw escuro noite

[aשe hajkawשia] .405

aשe hajkawשia quase escuro está escurecendo

[iשwe] .406

iשwe claro manhã

[iשe weשia] .407

iשe weשia quase claro está amanhecendo

133

3.2.2 Processos involuntários

Um processo involuntário, como a água ferveu, pode ser expresso:

1) sem qualquer marca de sujeito pronominal, como em (408), o que parece indicar que não há um sujeito.

408. [fܦie fܦafܦaj]

fin fafaj água ferver a água ferveu

2) com uma marca de sujeito ativo, como em (409):

409. [wi otђ fܦie fܦafܦaj]

wi otђ fin fafaj PAS 3SUJ água ferveu alguém ferveu a água

O que indica que o verbo aqui é tratado como ativo é a marca de sujeito gramatical

[otђ].

3) com um sujeito estativo, como em (410), como mostra a marca de sujeito gramatical [a] e a posição do nome [fܦie], água, depois do verbo.

[ieܦaj fܦafܦe a fשia] .410

e a fafaj finשia quase 3SUJ ferver água a água está quase fervendo

134

Há claramente uma certa indecisão na marcação do sujeito desses verbos, ora estativo, ora ativo, ora sem qualquer marca. Isso faz pensar em uma língua que teria sido de uma forma definida, ativa/estativa e, hoje, dada a situação sociolinguística, onde não pode mais ser considerada uma língua funcional (embora se deva explicar o seu uso pelos falantes que restam com muita segurança), está meio indecisa na marcação. Talvez essa indecisão na expressão de um tipo de evento tenha a ver com a relação aspecto/tempo – estrutura ativa/estativa. Há vários indícios que permitem levantar essa hipótese, embora não seja ainda possível tentar a sua investigação no âmbito deste trabalho.

Processos involuntários, como [awϯցe] quebrar, se o sujeito é inanimado, é expresso com a marca de sujeito inanimado [o].

[oשi ցetitoשo wϯj a heЀeց] .411

oשi ցetitoשo wϯj a-heЀeց 3SUJ quebrar 1POS-porta metade a minha janela está quebrada (Lit.: Quebrou-se, minha janela)

Ou ainda sem qualquer sujeito pronominal, como se a sentença fosse atributiva.

[o wϯjשi ցetitoשa heЀeց] .412

o wϯjשi ցetitoשa heЀeց 1POS porta metade quebrar a minha janela está quebrada

413. [afܦinwiցe wϯj]

a-fܦinwiցe wϯj 1POS-pote quebrar o pote quebrou 135

[aשe Ѐaܦjek] .414

aשe Ѐaܦjek panela secar a panela secou

3.2.3 Funções corporais

Os verbos de funções corporais, como [tajցetaցe] tossir, apresentam características específicas.

1) para a primeira pessoa do singular, há um pronome-sujeito especial, [Ѐђ].

415. [Ѐђ tajցetak]

Ѐђ tajցetage 1SUJ tossir eu tusso/tossi

416. [Ѐђ tajցetaցha]

Ѐђ tajցetaցe-ta 1SUJ tossir-IMPF eu estou tossindo

2) na terceira pessoa do singular, a marca de sujeito gramatical que acompanha o verbo e correfere, opcionalmente, a um nominal, é /a/, de verbos estativos, e nunca /otђ/, de verbos ativos. 136

417. [a tajցetaցha]

a tajցetaցe-na 3SUJ tossir-IMPF ele está tossindo

3.2.4 Movimento voluntário

Verbos de movimento voluntário são verbos de ação intransitivos. Em Ofayé, eles apresentam uma estrutura sintática ativa, como indica o uso de pronomes sujeito da classe ativa.

418. [ta Ѐa*Ѐej]

ta Ѐa*Ѐe-ցe 1SUJ pular-VER eu pulo/pulei

419. [otђ Ѐa*Ѐej]

otђ Ѐa*Ѐe-ցe 3SUJ pular-VER ele pula /pulou

420. [otђ taj fܦiketa]

otђ ta-ցe fiketa 3SUJ cair-VER marolo o marolo cai/caiu

137

3.2.5 Posição

Somente três verbos de posição foram encontrados em Ofayé. São os seguintes:

[ano⍧ցܦe] sentar, levantar; [hϯhϯ] estar em pé; [aЀi⍧ցe] deitar.

Observemos que os três verbos comportam-se diferentemente desde a forma usada como de citação, o nome do verbo. Enquanto [ano⍧ցܦe] sentar, levantar e [aЀi⍧ցe] deitar seguem um padrão regular, [hϯhϯ] estar em pé apresenta uma forma diferente de citação.

3.2.5.1 [ano⍧ցܦe] sentar, levantar

O verbo [ano⍧ցܦe] sentar, levantar apresenta uma estrutura sintática estativa, com a série de pronomes gramaticais [Ѐђ], [ђ] e [a] sendo usada como sujeito, o que mostramos com os exemplos de (421) a (423).

[oשЀђ no] .421

oשЀђ no 1SUJ sentar eu estou sentado

[oשђ no] .422

oשђ no 2SUJ sentar tu estás sentado

138

423. [a noro]

oשa no 3SUJ sentar ele está sentado

Para as pessoas do plural, o sujeito pronominal é expresso por um pronome pessoal da série livre.

Se o verbo [ano⍧ցܦe] sentar, levantar for usado como verbo de movimento, por exemplo, no futuro, os pronomes gramaticais serão os da série ativa. Nessa situação, a estrutura é a de um verbo intransitivo ativo. Exemplos são apresentados de (424) a (426).

[e no⍧שha ց] .424

oשe noשha ցa 3SUJ AUX.FUT. sentar eu vou me sentar36

[e no⍧שhe ց] .425

oשe noשte ђ ցa 2SUJ 2SUJ AUX.FUT sentar tu vais te sentar

[e no⍧שotђ a ց] .426

oשe noשotђ ha  ցa 3SUJ 3SUJ AUX.FUT sentar ele vai se sentar

36 No tempo futuro, a primeira pessoa do singular é comumente elidida. O auxiliar de futuro vem, então, seguido apenas do pronome de terceira pessoa que deve sempre acompanhar esse verbo auxiliar se nenhuma outra pessoa gramatical é especificada. 139

Uma observação interessante de se fazer neste ponto é que o mesmo verbo corresponde aos significados sentar e levantar em Português. A explicação para isso vem da falante Ofayé, que resume: “(...) quem está em pé senta; quem está deitado também senta: ninguém se levanta de vez. Depois que acaba de levantar, o sujeito está em pé”. Que é outro verbo.

3.2.5.2 [hϯhϯ] estar em pé

O verbo comporta-se sintaticamente como estativo. Os pronomes-sujeito que o acompanham são os mesmos que os pronomes-sujeito que entram na estrutura de predicados estativos, como adjetivais e processos corporais involuntários. (Exemplos de (427) a (429)).

427. [Ѐђ hϯ⍧]

Ѐђ hϯhϯ 1SUJ estar em pé eu estou em pé

428. [ђ hϯ⍧]

ђ hϯhϯ 2SUJ estar em pé tu estás em pé

429. [a hϯ⍧]

a hϯhϯ 3SUJ estar em pé ele está em pé 140

No plural, usam-se os pronomes livres.

3.2.5.3 [aЀi⍧ցe] deitar

O verbo [aЀi⍧ցe] deitar é, primariamente, estativo, como mostra o uso dos pronomes- sujeito nos exemplos de (430) a (432).

[eשЀђ Ѐi] .430

eשЀђ Ѐi 1SUJ deitar eu me deito

[eשђ Ѐi] .431

eשђ Ѐi 2SUJ deitar tu te deitas

[eשa Ѐi] .432

eשa Ѐi 3SUJ deitar ele se deita

Nas pessoas do plural, também, os pronomes livres são utilizados. Vemos essa utilização dos pronomes livres nos exemplos de (433) a (435).

141

[eשaցa Ѐi] .433

eשaցa Ѐi nós deitar nós nos deitamos

[eשeցe Ѐi] .434

eשeցe Ѐi vós deitar vós vos deitais

[eשit Ѐi] .435

eשida Ѐi eles deitar eles se deitam

Como acontece com o verbo sentar, se utilizado como verbo de movimento, recebe os pronomes gramaticais ativos na posição de sujeito.

3.2.6 Ações

Ações verdadeiras são expressas – quando intransitivas – com um único argumento na estrutura sintática. Esse argumento é tratado como agente e recebe como sujeito gramatical, nas três pessoas, os pronomes [ta], [te] e [otђ], que são próprios de verbos ativos.

142

436. [ta Ѐe]

ta Ѐe 1SUJ dançar eu danço/dancei

437. [te Ѐeցe]

te Ѐe-ցe 2SUJ dançar-VER tu danças/dançaste

438. [otђ Ѐe]

otђ Ѐe 3SUJ dançar ele dança/dançou

[e Ѐeשotђ a ցa] .439

e Ѐeשotђ a ցa 3SUJ AUX.FUT dançar ele vai dançar

3.2.7 Ações-processos

Verbos que descrevem ou narram uma ação-processo recebem uma marca de sujeito agente e uma marca de objeto paciente. O objeto pode ser pronominal, quando vemos que forma sentença autônoma com o verbo e demais participantes representados 143

pronominalmente. Na maior parte do tempo, esse complemento é nominal, quando na terceira pessoa, e sua posição é a mais próxima ao verbo. Se, ao mesmo tempo que expresso pronominalmente, ele for também explicitado por um nominal, a ordem se reflete como em um espelho depois do verbo. Essa configuração não é, porém, canônica. A ordem mais comum é aquela em que o objeto, expresso por pronomes ou por nominais, vem antes do verbo.

440. [ta hђh tϯ]

ta hђ tϯ 1SUJ árvore cortar eu cortei a árvore

441. [otђ hђh tϯ]

otђ hђ tϯ 3SUJ árvore cortar ele cortou a árvore

442. [ђhtee otђ hђh tϯ]

ђhten otђ hђ tϯ mulher 3SUJ árvore cortar a mulher cortou a árvore

Deve-se notar que a marca de sujeito ativo [otђ] pode vir antes ou depois do nome ao qual correferencia. Na secção 7.4, sobre ordem dos constituintes na sentença, trataremos mais detalhadamente dessa questão.

144

443. [ta a ki]

ta a ki 1SUJ 3OBJ ver eu o/a vi

3.2.8 Cognição

Verbos de cognição, como [hejwϯ] lembrar/saber, apresentam uma estrutura sintática na qual o sujeito, um Experienciador, é tratado como Dativo.

444. [a he hejwϯ]

a he hejwϯ 1OBJ DAT saber eu sei/sabia/lembro/lembrei

445. [e he hejwϯ]

e he hejwϯ 2OBJ DAT saber você sabe/sabia/lembra/lembrou

3.2.9 Percepção

Verbos de percepção, como [aցiցe] ver, [afܦaցe] escutar, [naցaЀi] sentir (gosto, tato, cheiro), são tratados como verbos de ação: trazem sujeito pronominal ativo, como os verbos 145

de ação. Podem ser tanto intransitivos (446) e (447), como transitivos (448) a (450), sintaticamente. A mudança de valência nesses verbos é feita simplesmente por acrescentar-se um actante paciente à sentença. (Ver secção 7.5, sobre operações de mudança de valência).

446. [ta ki]

ta ցi 1SUJ ver eu vejo

447. [ta fܦaj]

ta fa-ge 1SUJ escutar-VER eu escuto

448. [ta a ki]

ta a ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo

449. [ta naցaЀi ajteցe]

ta naցaЀi ajteցi 1SUJ cheirar comida eu cheiro comida (Eu sinto cheiro de comida)

146

450. [ta aЀa ցie]

ta a-Ѐa ցi-ցe 1SUJ 3POS-filho ver-VER eu vi (conheço) o filho dele

3.2.10 Emoção

Os verbos de emoção, assim como os de cognição, vistos acima, secção 3.2.8, apresentam propriedades especiais. O sujeito dessa classe de verbos é marcado como dativo e o objeto pode ser omitido. Note-se, porém, que o próprio sujeito, por assim dizer, não tem marca de sujeito de verbos ativos /ta/ nem de verbos estativos /Ѐђ/, mas a marca de objeto. No exemplo (451), essa marca é [a], objeto de primeira pessoa; em (452), [ђ], segunda pessoa e, em (453), um pronome livre é utilizado na posição de sujeito [aցa].

451. [a he Ѐeti Ѐђցije]

a he Ѐeti Ѐђ-ցije 1OBJ DAT gostar 1POS-marido eu gosto do meu marido

452. [e he Ѐeti aЀa]

e he Ѐeti a-Ѐa 2OBJ DAT gostar 1POS-filho tu gostas da filha dele (Lit.: a ti gosta, a filha dele)

147

453. [aցa he Ѐeti akajojϯ]

aցa he Ѐeti aka-ցajo-jϯ nós DAT gostar 1PL.POS-prole-PL nós gostamos dos nossos filhos

Os constituintes dessa construção são: um pronome livre marcado como Dativo

[aցa he] nós; o Verbo [Ѐeti] gostar; e um Tema [aka jojϯ] nossos filhos. O pronome marcado como Dativo é, semanticamente, Experienciador, e não é tratado como Agente, nem como

Paciente, mas como um terceiro papel semântico, o de Recipiente, o que é evidenciado pela marcação sintática de Dativo. O Tema, por sua vez, parece ser tratado como Objeto, desde que o Paciente de uma sentença com verbos transitivos primários, que, prototipicamente, são objetos sintáticos, são colocados em Ofayé, antes ou depois do verbo, se expressos nominalmente.

Ainda verbos de emoção, mas diferentes de gostar, como sentir raiva, ter medo, estar feliz, etc., são tratados como estativos, no sentido de que recebem um sujeito de primeira pessoa /Ѐђ/, de segunda pessoa /e/ e de terceira pessoa /a/ – estativo. Entretanto, podemos ouvir também esses verbos em construções como a de gostar, o que parece indicar que a língua passa por uma fase de transição, onde apenas o verbo de emoção mais prototípico, gostar, mantém a estrutura sintática original. Veja-se que, quando um verbo de emoção entra em uma estrutura sintática como estativos de modo geral, o falante tende a interpretá-los como predicativos.

[Ѐђ ցaniْe] .454

Ѐђ ցanije 1SUJ ser mau eu estou bravo/sou mau/estou com raiva 148

455. [Ѐђ jowϯ]

Ѐђ jowϯ 1SUJ ter medo eu estou com medo/estou medroso

456. [Ѐђ ifoho]

Ѐђ ifoho 1SUJ feliz eu sou feliz/estou feliz

[aْowϯ ђfo] .457

a jowϯ ђfo 3SUJ ter medo menino o menino está com medo/é medroso

3.2.11 Enunciados

Verbos de enunciados podem ser tratados como ativos. O sujeito de primeira pessoa é

/ta/ e o de terceira /otђ/. Entretanto, há modificações nessa ordem que ainda não podem ser explicadas. Eles podem ser sintaticamente intransitivo (458); transitivo (459); bitransitivo

(460).

458. [ta kђjaj]

ta kђja-ցe 1SUJ falar-VER eu falo 149

459. [ta kђjak ђfajϯ Ѐokojakn]

ta kђja-ge ђfajϯ Ѐokojakn a 1SUJ falar-VER índio.Ofayé língua eu/nós falo/falamos a língua dos índios Ofayé

460. [ta he kђjaj]

ta ø he kђja-ցe 1SUJ 3OBJ DAT falar-VER eu converso com ele

Em (460), diríamos que um objeto indireto seria [ø] porque o sujeito é claramente /ta/, primeira pessoa. Como a marca de Dativo /he/ refere ao Destinatário da fala, essa marca deve estar sobre um objeto [ø]. O exemplo (461), abaixo, em que esse argumento omitido em

(460), é um nominal, [Ѐђhtee] minha mãe, confirma que o lugar dele é exatamente antes da marca de Dativo.

461. [ta Ѐђhtee he kђjaj]

ta Ѐђ-ђhten he kђja-ցe 1SUJ 1POS mãe DAT falar-VER eu converso com minha mãe

Observe-se, nesses casos, como conversar é diferente de gostar. Para esse último verbo, o sujeito é um dativo. Já no caso de conversar, como em dar, o dativo é um actante marcado e não ocupa a posição de sujeito, que é preenchida por um agente. 150

iցe] cantar têm comportamentoשOs verbos [waneցe] contar; [hoցeցe] gritar; [aց semelhante, mas são apenas intransitivos.

462. [ta hoցe⍧]

ta hoցe-ցe 1SUJ gritar-VER nós gritamos

[ieשotђ ђfo ց] .463

i-ցeשotђ ђfo ց 3SUJ menino cantar-VER o menino canta/cantou

464. [wa he wane]

wa he wane 1OBJ DAT contar ele me contou

465. [ta e he wane]

ta e he wane 1SUJ 2OBJ DAT contar eu contei a você

Há casos em que o verbo intransitivo assume uma configuração transitiva. Veja-se a diferença entre (466). eu dormi e (467). eu fiz o menino dormir. Ou entre (468) e (469).

151

466. [ta oe]

ta o-ցe 1SUJ dormir/VER eu durmo/dormi

467. [ta ђfo johtђ]

ta ђfo o-ta 1SUJ menino dormir-IMPF eu fiz o menino dormir

[eܦoցשta Ѐe] .468

o-ցeשta Ѐ e 1SUJ alimentar-VER eu tomei uma refeição (almoçar, jantar, etc.)

[eܦoցשta ђfo Ѐe] .469

o-geשta ђfo Ѐe 1SUJ menino alimentar-VER eu alimentei o menino

Em (466) e (467), temos um sujeito ativo em uma estrutura intransitiva. Em (468) e

(469), temos o mesmo sujeito, agora com um objeto na posição indicada. O que há é apenas um aumento de valência e o verbo muda de intransitivo para transitivo. Nenhuma modificação

é feita na morfologia, mas apenas na sintaxe.

152

3.2.12 Predicados adjetivos

Os predicados adjetivos, que têm a fórmula N é ADJ, são construídos apenas por justaposição: N ADJ, como mostram os exemplos (470) e (471).

470. [kae hђkoho]37

kae hђkoho João alto João é alto

471. [a ЀoБe katϯ]

a-ЀoБe ցatϯ 1POS-casa branco minha casa é branca

Quando a parte do nome é representada por um pronome, para a primeira pessoa usa- se [Ѐђ], para a segunda pessoa, [e] e para a terceira pessoa, [a], igual aos verbos de funções corporais involuntárias, que são tratados como estativos. Vejamos os exemplos (472) a (474).

[ahnaש Ѐђ] .472

a-taש Ѐђ 1SUJ alto-IMPF eu sou alto

37 Comprido, alto, usado apenas para rapazes que estão crescendo. 153

473. [a ցatϯ]

a ցatϯ 3SUJ branco ele é branco

474. [Ѐђhi katϯ]

Ѐђ-hi ցatϯ 1POS-perna branco minha perna é branca

Esses predicados podem receber morfema de aspecto, o que dá à propriedade predicada o sentido de continuidade, o evento estendendo-se por uma certa duração. A distinção estabelecida é mais ou menos a que existe em Português entre os usos de ser e estar.

Comparemos os exemplos abaixo em que (475) pode ser traduzido por ser e (476) por estar.

475. [Ѐђ jow]

Ѐђ jow 1SUJ velho eu sou velho

476. [Ѐђ Ѐowhna]

Ѐђ Ѐow-ta 1SUJ vermelho-IMPF eu estou vermelho

154

3.2.13 Predicados existenciais

A expressão de existência é feita por verbos que indicam o modo como o ser existe: anda, sobe, etc., mais um complemento locativo. A construção existencial, porém, diferente de uma ação transitiva ou intransitiva, classificadas como ações-processos e ações, respectivamente, parecem ser impessoais. Mesmo o verbo sendo um de movimento voluntário, como em (477), abaixo, que, como temos visto, pede um sujeito ativo, na construção existencial, o pronome que acompanha esse verbo é um da classe dos verbos inativos. A ordem dos constituintes também é diferente do que ocorre com os verbos de ação e ação-processo: o sintagma verbal parece ser constituído do pronome mais o verbo, desde que o que seria o sujeito vai ocorrer depois do verbo, seguido do complemento locativo.

477. [ha fܦa ewϯkn tawϯ he]

ha ђfa ewϯցe tawϯ he 3SUJ andar arara mato LOC há arara no mato (Lit.: anda arara no mato)

Entretanto, nos exemplos (478) e (479), abaixo, temos construções existenciais cujos sujeitos pronominais são [otђ], que, como vimos, é usado com verbos da classe sintaticamente ativa.

[ϯ heܦa a fשotђ wi kђte] .478

a a-fe heשotђ wi kђte 3SUJ subir aranha 3POS-braço LOC há uma aranha no braço dele (Lit.: uma aranha subiu no braço dele)

155

479. [wi otђ fܦahna oktЀi tawϯ he]

wi otђ fa-na oketЀi tawe he PAS 3SUJ andar-IMPF onça mato LOC havia onça no mato (Lit.: onça andava nesse mato)

3.2.14 Predicados locativos

Os predicados locativos são, em um certo sentido, os mesmos que existenciais: alguma coisa existe/está em algum lugar. Observemos os exemplos (480) e (481).

480. [a wi kђtera Ѐђ fܦϯ he]

a wi kђtera Ѐђ-fϯ he 3SUJ subir aranha 1POS-braço LOC a aranha subiu no meu braço

481. [tawϯh te a fܦa oktЀi]

tawϯ te a fa oktЀi mato LOC 3SUJ andar onça a onça está no mato (Lit.: a onça anda no mato)

482. [wi otђ fܦahna oktЀi tawϯ he]

wi otђ fa-ta oketЀi tawϯ he PAS.REC 3SUJ andar-IMPF onça mato LOC a onça estava no mato (Lit.: a onça andava no mato)

156

3.2.15 Predicados possessivos

Para indicar posse, a língua utiliza, do mesmo modo que com existenciais e locativos, uma construção com verbos que informam sobre o processo de obtenção do objeto possuído, como mostram os enunciados de (483) a (485).

483. [otђ Ѐeheki ewϯցe Ѐa]

otђ Ѐeheki ewϯցe Ѐa 3SUJ achar arara filho ele tem um filhote de arara (Lit.: ele achou um filhote de arara)

[a ewϯցenשkoj otђ Ѐehe] .484

a ewϯցe-diשkoj otђ Ѐehe koj 3SUJ pegar arara-DIM José tem um filhote de arara (Lit.: José pegou uma ararinha)

[aЀiցiשiܦta hђhi f] .485

aЀiցiשta hђhi fi 1SUJ comprar porco eu tenho um porco (Lit.: eu comprei um porco)

Diferente de construções existenciais e locativas, a construção que indica posse não pede um sintagma posposicional.

Outros modos de expressar posse não são construções verbais e, por isso, são tratados no capítulo de morfologia nominal. Um modo de expressar posse é como uma construção predicativa, como mostram os exemplos de (486) a (488). 157

[aשi oשaց] .486

aשi oשa-ցa 3POS-galinha muita ele tinha muita galinha (Lit.: as galinhas dele eram muitas)

[atikaْϯ] .487

a-tika-jϯ 3POS-bicho-PL ele tinha bichos (Lit.: bichos dele)

488. [aЀiewϯցen]

a-Ѐi-ewϯցe-di 1POS-ENF-arara-DIM a ararinha é minha (Lit.: minha própria ararinha)

3.3 Resumo

De modo geral, todos esses verbos em Ofayé apresentam quatro estruturas, de acordo com o tipo de pronome que preenche gramaticalmente a posição de primeiro actante – considerando primeiro actante o que, de modo geral, seria o sujeito. Mais adiante, veremos que não podemos postular para os verbos da estrutura 3 uma função gramatical sujeito38, sem maiores consequências. A seguir, damos quadros resumitivos dos tipos de verbos aqui descritos, com exemplos. Deixamos fora desses quadros a expressão de eventos de temporais, porque vimos que eles podem ser expressos através de diferentes estruturas sintáticas, bem

38 O mesmo talvez possa ser dito em relação à estrutura 2. 158

como os verbos que chamamos de posição, que, de acordo com o sentido em que são utilizados (posição ou movimento), escolhem uma ou outra das duas estruturas básicas.

CLASSE SUJEITO OBJETO VERBO

SEMÂNTICA ação-processo ta hђ tϯ eu corto/cortei a árvore te hђ tϯ tu cortas/cortastes a árvore otђ hђ tϯ ele corta/cortou a árvore ação - ta kaj eu caço/cacei te kaj tu caças/caçaste otђ kaj ele caça/caçou mov. voluntário - ta ja eu corro/corri te ja tu corres/correstes otђ ja ele corre/correu percepção - ta fܦaj eu ouço/ouvi te fܦaj tu ouves/ouvistes

otђ fܦaj ele ouve/ouviu enunciado - ta kђjaj eu falo/falei te kђjaj tu falas/falastes otђ kђjaj ele fala/falou Quadro 13: Estrutura 1: verbos ativos (transitivos e intransitivos) 159

CLASSE SEMÂNTICA SUJEITO VERBO

funções corporais Ѐђ tajցetaj eu tusso/tossi e tajցetaj tu tosses/tossistes a tajցetaj ele tosse/tosssiu aka tajցetaj nós tossimos eke tajցetaj vocês tossem/tossiram ida tajցetaj eles tossem/tossiram

ej eu sou/fui bomשpredicação Ѐђ ց ej tu és/foste bomשe ց ej ele é/foi bomשa ց ej nós somos/fomos bonsשa k ej vocês são/foram bonsשe k ej eles são foram bonsשida k Quadro 14: Estrutura 2: verbos inativos (intransitivos)

160

CLASSE SUJ VERBO OBJ

SEMÂNTICA emoção a he Ѐeti Ѐђցije eu gosto/gostei do meu marido e he Ѐeti ђցije tu gostas/gostaste do teu marido hђ he Ѐeti teցije ela gosta/gostou do seu marido aka he Ѐeti Ѐђցijeْϯ nós gostamos do nosso marido eke he Ѐeti ђցijeْϯ vocês gostam dos maridos de vocês

ita he Ѐeti ђցijeْϯ elas gostam dos seus maridos cognição a he hejwϯ eu sei/soube e he hejwϯ tu sabes/soubestes hђ he hejwϯ ele sabe/soube aka he hejwϯ nós sabemos/sabíamos eke he hejwϯ vós sabeis/sabíeis

ita he hejwϯ eles sabem/sabiam

Quadro 15: Estrutura 3: verbos de emoção e cognição

CLASSE SUJ OBJ1 VERBO OBJ2

SEMÂNTICA iցeteשdar ta e he no k eu dei o ovo a você

iցete você me deu o ovoשte wa he no k iցete ele me deu o ovoשø wa he no k conversar ta ø he kђjak - eu converso/conversei com ele Quadro 16: Estrutura 4: verbos ativos (bitransitivos)

161

CLASSE SUJ VERBO OBJ COMPL

SEMÂNTICA existência há uma aranha no braço dele ϯ heܦa a fשe wi kђte locação a onça está no mato e fܦa oktЀi tawϯ te Posse eu tenho um filhote de arara - aj ewϯցe Ѐaשta Ѐehe Quadro 17: Outros casos

Assim, os verbos em Ofayé podem ser classificados em três tipos sintáticos, que correspondem a distinções semânticas específicas da língua. O Quadro 18, abaixo, apresenta os três tipos sintáticos, com os dois primeiros tipos já definidos sintaticamente de acordo com uma literatura estabelecida e o último apenas identificado como se referindo semanticamente a emoção/cognição e sem uma classificação sintática específica. A classificação que fazemos obedece ao tipo de pronome que cada classe de verbo requer para uma posição que, a princípio, pode ser considerada sujeito gramatical.

NÚM PES TIPOS DE VERBOS ATIVOS ESTATIVOS EMOÇÃO/COGNIÇÃO INTR TRANS BITR 1 ta ta ta Ѐђ wa he Singular 2 te te te e e he

3 otђ otђ otђ a he

1 ta ta ta aka wa he Plural 2 te te te eke e he

3 otђ otђ otђ ida ida he

Quadro 18: Tipos de verbos e pronomes-sujeito

162

3.4 Categorias verbais

A raiz verbal, do ponto de vista morfológico, mantém-se basicamente inalterada, salvo pelos morfemas de aspecto que se realizam como sufixos e uma marca de concordância com o sujeito, que é opcional. Poucas vezes, o falante lembra-se de marcar essa concordância, embora ela devesse ser necessária, pois, quando representada por índices pronominais, não é encontrada a distinção singular/plural para esses elementos na língua, principalmente no caso dos verbos ativos.

Como a maior parte das categorias que, em línguas flexionais, são expressas por morfologia presa, em Ofayé uma noção como tempo é expressa por advérbios e, em alguns casos, por verbos que se especializaram como auxiliares.

As categorias que afetam o verbo, morfológica/flexionalmente ou sintaticamente, considerando-se também os pronomes gramaticais/correferenciais, que não podem faltar na sentença gramatical, são apresentadas no Quadro 19, abaixo. 163

SENTENÇA GRAMATICAL TEMPO SUJEITO RECIP OBJETO AUX VERBO ASPECTO NÚMERO Raiz VER ø ta a kaj -ցe +ø +ø eu o mato/matei

wi ta a kaj -ցe +ø +ø eu o matei

e kaj -ցe eu oשta a a ցa matarei

ta a kaj -ցe +ø -jϯ nós o matamos otђ wa ђfܦa ka -ցe -na ele está me matando

Ѐђ tajցeta _ ø eu tusso

a tajցeta _ ø ele tosse

ø a he a no -ցe ø ele o dá a você

a he Ѐeti _ ø eu gosto

ej _ ø ele é bomשa ց Quadro 19: Estrutura gramatical da sentença

164

3.4.1 Tempo

Assumimos que a distinção presente/passado é completamente ausente no lexema verbal, propriamente dito. A mesma forma – tanto no nível da palavra verbal, como no nível da sentença – pode expressar tanto passado quanto presente, conforme exemplo (489). O futuro, entretanto, é expresso no nível da sentença, obrigatoriamente, o que nos leva a imaginar que há uma distinção, mesmo que não-marcada morfologicamente, em termos de futuro/não-futuro. O mecanismo utilizado é um auxiliar que parece ser a gramaticalização – especialização de um item lexical para expressar uma função gramatical, como é a expressão

.(e] ir, como mostra o exemplo (490שde tempo – de um verbo de movimento [a ցa

489. [otђ te hi fܦohie]

otђ te hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar ele coçou/coça a perna (dele mesmo)

[ohieܦe te hi fשotђ a ց] .490

e te hi fohi-ցeשotђ a ցa 3SUJ 3SUJ AUX.FUT POS.REFL. perna coçar ele coçará a perna (dele mesmo)

Um futuro imediato é também expresso no nível da sentença, utilizando-se o

.e/ quaseשadvérbio39 /ia

e], o que nos permite dizer que o primeiro é um advérbio e o segundo umשe] e [a ցaשUma distinção entre [ia 39 verbo auxiliar, é que o verbo auxiliar vem acompanhado de um índice pronominal [a], enquanto o advérbio, não. Outra característica do advérbio, que o distingue do verbo auxiliar, é que ele vem sempre na periferia da 165

[e otђ a hi fohieשia] .491

e otђ a-hi fohi-ցeשia quase 3SUJ 3POS-perna coçar ele vai coçar a perna (está quase coçando)

Embora tenhamos dito que a língua não faz distinção passado/presente, devemos notar que essa noção, embora não obrigatória, pode ser expressa por um advérbio, conforme exemplo (492). O tempo não é expresso morfologicamente para a distinção passado/presente.

Quando em uma sentença não ocorre um advérbio temporal, o que temos, em termos semânticos, é uma espécie de aoristo. A mesma coisa acontece quando o verbo é marcado aspectualmente pelo morfema de Imperfectivo, sem expressão de tempo na sentença. Dada essa observação, na secção 3.4.4.3, trataremos mais detidamente da inter-relação entre a expressão de tempo e aspecto.

492. [wi ta fohi Ѐђ hi]

wi ta fohi-ցe Ѐђ-hi PAS 1SUJ coçar-VER 1POS perna eu já cocei a minha perna

O que o falante quer dizer, na verdade, é que coçou a perna um pouco antes, agora não a está coçando mais. Visto desse ângulo, o que temos parece ser uma categoria aspectual, um perfectivo, por excelência. Contudo, quando comparamos essa expressão de evento passado com outra em que se utiliza /wiha/ há muito tempo atrás, antigamente, ou simplesmente antes, querendo significar outrora, percebe-se que há uma oposição entre os dois marcadores, o que parece apontar para um passado recente /wi/ e um passado mais distante /wiha/.

cláusula, enquanto o verbo auxiliar ocupa uma posição mais central, embora essa posição seja móvel em relação ao verbo principal. 166

Encontramos /wi/ para passados até hoje. E encontramos /wiha/ sendo usado para expressar eventos passados de ontem para trás. Essa distinção é ilustrada pela diferença entre (493) e

(494).

493. [koj akwitajϯ]

koj aka witajϯ koj 1PL.OBJ cuidar José cuida de nós

494. [tђe wiha akwitaje]

tђe wiha aka witaje Ataíde antes 1PL.OBJ cuidar Ataíde antes cuidava de nós

3.4.2 Argumentos pronominais

O que estamos chamando de argumentos pronominais em Ofayé são elementos pronominais que ocupam as posições de sujeito e objeto, principalmente, na estrutura gramatical da sentença. Essas formas não são morfologicamente livres, devendo sempre se ligar a outra palavra. Entretanto, do mesmo modo que os pronomes livres, elas podem substituir sintagmas nominais plenos em uma sentença. Um problema com a classificação desses elementos em Ofayé é que eles não apenas substituem o sintagma nominal na estrutura sintática, mas ainda correferenciam a ele. Esse é o caso, principalmente, do elemento pronominal que funciona como sujeito. 167

Vejamos os exemplos a seguir. Em (495), temos uma sentença gramatical com apenas o elemento pronominal expresso, enquanto que em (496) o sujeito é expresso por um sintagma nominal e pronome é mantido.

495. [otђ hie]

otђ hi-ցe 3SUJ morrer-VER ele morreu

[oשotђ hie kaЀo] .496

oשotђ hi-ցe kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

Nos dois casos, a sentença é gramatical. Não podemos, porém, dizer que [otђ] seja apenas um clítico anafórico, do tipo que correferencia ao sujeito, pois ele também substitui o sujeito.

Neste trabalho, vamos nos referir a esses elementos como pronomes gramaticais porque assumimos a proposta de Andrews (1985, p. 75) de que “(...) the primary function of cross-referencing markers is as substitutes for (or perhaps as forms of) pronouns”. Diferente dos pronomes livres, esses elementos não podem ser usados em respostas a perguntas, tais como _ Quem pegou a arara? _ *ta.

No Quadro 20, a seguir, apresentamos os pronomes sujeito e objeto, usados em sentenças com verbos transitivos ativos. Em sentenças com verbos ativos, mas intransitivos é usada a mesma série sujeito. 168

PESSOAS SUJEITO OBJETO GRAMATICAIS 1 ta wa

2 te e

3 otђ ha

Quadro 20: Pronomes gramaticais sujeito e objeto de verbos transitivos ativos

Exemplos dos usos desses pronomes com verbos ativos – transitivos e intransitivos – são apresentados de (497) a (502 ).

497. [ta a ցi] 498. [ta Ѐe]

ta ha ցi ta Ѐe 1SUJ 3OBJ ver 1SUJ dançar eu o vejo/vi eu danço/dancei

499. [te a ցi] 500. [te Ѐe]

te wa ցi te Ѐe 2SUJ 1OBJ ver 2SUJ dançar tu me vês/viste tu danças/dançaste

501. [otђ e ցi] 502. [otђ Ѐe]

otђ e ցi otђ Ѐe 3SUJ 2OBJ ver 3SUJ dançar-VER ele te viu ele dança/dançou

Como a língua faz uma distinção principal entre dois tipos de verbos, colocando de um lado os verbos ativos e de outro os verbos inativos, há outra série de pronomes gramaticais 169

utilizados com verbos da classe sintática estativa. Observemos que a distinção mais marcada é feita na primeira pessoa, para a qual se utiliza um pronome que não é o mesmo que o objeto dos verbos ativos. Para a segunda e terceira pessoas, o pronome-sujeito desses verbos é o mesmo que o pronome-objeto da série ativa40. Os pronomes gramaticais da série inativa são vistos no Quadro 21. Os seus usos são exemplificados de (503) a (505).

PESSOAS GRAMATICAIS SUJEITO 1 Ѐђ

2 e

3 ha

Quadro 21: Pronomes gramaticais-sujeito de verbos estativos

503. [Ѐђtajցetak]

Ѐђ tajցetage 1SUJ tossir eu tusso/tossi

504. [ђhtajցetak]

e tajցetaցe 2SUJ tossir tu tosses/tossiste

505. [a tajցetak]

ha tajցetaցe 3SUJ tossir ele tosse/tossiu

40 Poderíamos, por isso, levantar a hipótese de que a língua teria uma marca de ergatividade. O que nos impede, porém, de pensar desse modo é o fato de que os verbos intransitivos recebem o mesmo sujeito dos verbos transitivos. A diferença, portanto, é entre uma classe ativa e uma classe estativa. 170

Os pronomes da série ativa – sujeito e objeto - vão ser usados em duas outras estruturas, a dos verbos bitransitivos e a dos verbos de emoção e de cognição, modificados, em alguns casos, por posposições.

Na estrutura bitransitiva, o sujeito é o mesmo dos verbos ativos. O argumento recipiente, objeto indireto, é expresso pelos pronomes-objeto que são, então, seguidos pela posposição [he], marca de locativo. Uma interessante característica das construções bitransitivas, uma espécie de jogo entre as pessoas gramaticais, será tratada na secção 7.2.1.3.

Abaixo, em (506) e (507), damos exemplos dessa construção.

506. [te a he no]

te wa he naw 2SUJ 1OBJ DAT dar tu me destes (alguma coisa)

507. [ta e he no]

ta e he naw 1SUJ 2OBJ DAT dar eu te dei (alguma coisa)

Além desses elementos pronominais, ainda temos os dois pronomes de terceira pessoa que indicam aspecto Inceptivo e Completivo, respectivamente, e que são /hђ/ e /na/.

Trataremos desses dois pronomes quando descrevermos o aspecto, na secção 3.4.4.2.

Outra distinção que, embora esporadicamente, encontramos no sistema pronominal da língua é uma que diz respeito ao uso de /o/ ou /otђ/. Gudschinsky (1974) nota essa distinção e afirma que ela é do tipo humano/não-humano. Essa distinção parece agora esmaecida em 171

Ofayé41. Nós a encontramos, por exemplo, em enunciados com o verbo morrer, tanto para humanos quanto para animais. Do mesmo modo que com outras distinções mais específicas na língua, no momento atual parece haver certa indecisão por parte do falante quanto a explicitá-la. Assim, podemos ter tanto (508) como (509), abaixo, com o mesmo valor.

[oשotђ hie kaЀo] .508

oשotђ hi-ցe kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

[oשo hie kaЀo] .509

oשo hi-ge kaЀo 3SUJ morrer-VER cachorro o cachorro morreu

Contudo, em situações de elicitações, enquanto nomes de verbos que referem a ações próprias de actantes animados (Agentes ou não) são fornecidos acompanhados do pronome

/a/, nomes de verbos que referem a ações tipicamente desempenhadas/sofridas por animais ou seres inanimados são fornecidos com o pronome /o/, como podemos ver nos pares apresentados em (510) e em (511).

HUMANO NÃO-HUMANO 510. a Ѐeցe dançar o Ѐiցe Voar

iցe cantar o hiցe Morrerשa ց .511

41 Dados posteriores ao fechamento desse trabalho dão indícios de que a distinção não está ainda tão perdida e que se justifica uma investigação mais específica sobre esse fenômeno. 172

A língua não estabelece a distinção de número no âmbito dos pronomes gramaticais, embora existam mecanismos para estabelecer essa distinção de outro modo. Uma dessas estratégias é utilizar-se os pronomes livres na sentença, no lugar dos pronomes gramaticais

(512); outra é colocar um sufixo de plural no verbo para indicar que o sujeito, expresso pronominalmente por um clítico de primeira, segunda ou terceira pessoa, é plural (513).

Veremos a concordância verbal na secção 3.4.5.

512. [aցa Ѐek]

aցa Ѐe-ցe nós dançar-VER nós dançamos (PRES/PAS)

513. [ta Ѐejϯ]

ta Ѐe-jϯ 1SUJ dançar-PL nós dançamos (PRES./PAS)

3.4.3 Morfema verbalizador

O morfema verbalizador, além de apresentar uma quantidade grande de alomorfias, é também facultativo. O falante pode omiti-lo completamente. Embora, em alguns momentos, possamos atribuir esse fato ao apagamento total desse morfema, no nível fonológico, desde que sílabas não acentuadas finais tendem a ser apagadas, reconsideramos essa proposta e assumimos que há um apagamento do morfema, no próprio nível morfológico, ou seja, a morfologia verbal está em alternância. Em (514), o morfema verbalizador é representado 173

foneticamente por [-ցe]. Em (515), ele é completamente omitido, nenhuma pista fonética é deixada e, assim, optamos pela hipótese do apagamento desse morfema na morfologia42.

514. [a Ѐeցe] 515. [a Ѐe]

ha Ѐe-ցe ha Ѐe 3SUJ dançar-VER 3SUJ dançar ele dança/dançou ele dança/dançou

Verbos ativos em forma de citação são sempre fornecidos com o morfema verbalizador. Verbos inativos, de modo geral, e alguns outros verbos, que consideramos irregulares, são citados sem ele.

3.4.4 Aspecto

Apenas uma distinção aspectual, marcada morfologicamente, é produtiva na língua:

Perfectivo vs. Imperfectivo. Outra distinção também encontrada, mas raramente utilizada, dando sinais de desaparecimento do sistema, é Inceptivo vs. Completivo. Trataremos da distinção ainda plenamente em uso, mais detalhadamente, na secção 3.4.4.1, a seguir. A segunda distinção será tocada brevemente, dada a impossibilidade de estabelecer a sua sistematização, mais adiante, na secção 3.4.4.2.

42 Em Yaathe, uma língua indígena brasileira também classificada como pertencendo ao tronco linguístico Macro-Jê, o morfema verbalizador pode ser omitido e, ao que parece, o processo opera no nível da morfologia. Um verbo como /futЀi-ka/ pegar pode ser pronunciado em terceira pessoa do singular, indicativo presente, como [ta futЀkܕa] ou [ta futЀi] ele pega. (Januacele da Costa, comunicação pessoal). 174

3.4.4.1 Perfectivo vs. Imperfectivo

A distinção aspectual Perfectivo vs. Imperfectivo, como dissemos acima, é uma das mais produtivas, podendo ser encontrada em uma série de usos diferentes, mas sempre com a mesma característica semântica de denotar a extensão de uma ação. A distinção é marcada no verbo pelos morfemas sufixais [ø], para indicar o Perfectivo, e [-ta], para indicar o

Imperfectivo.

Essa distinção é ilustrada pelos exemplos (516) e (517).

[oשotђ hi kaЀo] .516

oשotђ hi kaЀo 3SUJ morrer cachorro o cachorro morreu/está morto

[oשa kaЀoܦђhiցena ђf] .517

oשђhi-ցe-na ђfa kaЀo morrer-VER-IMPF estar cachorro o cachorro está morrendo

As construções com imperfectivo são de dois tipos. Em uma delas, como mostramos em (518), apenas o verbo recebe a marca de imperfectivo. Na outra, exemplos (519) e (520), o verbo recebe o morfema aspectual [-ta], mas há ainda a ocorrência de um auxiliar [ђfܦa] andar. Enquanto a primeira construção tem sentido de continuativo, a segunda indica evento em curso, ou seja, progressivo.

175

518. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF venta continuadamente/ventava

519. [hetђցena ђfܦa]

hetђցe-ta ђfa vento-IMPF estar está ventando/estava ventando

520. [wi hetђցena ђfܦa]

wi hetђցe-ta ђfa PAS vento-IMPF estar estava ventando

Dado que a marca no verbo é a mesma em todos os casos, diremos que a língua não faz essa distinção mais refinada, mas que coloca tudo em uma classe mais geral, que vamos considerar imperfectivo.

O aspecto imperfectivo também pode ser usado em predicados adjetivais, indicando a duração do estado expresso pelo adjetivo.

521. [haցatϯ tahna]

haցatϯ taha-ta caminho grande-IMPF o caminho é largo

176

Além disso, o imperfectivo é frequentemente usado quando se trata de narrações no passado, quando se faz referência a ações cotidianas, costumeiras.

[oajשa jϯשata fokoe kanawשta ita tawϯ a  wiha a he Ѐihita heցa] .522

a-taשta i-ta tawϯ a wiha a he Ѐihi-ta heցa 1SUJ ir-IMPF mato DIR PRM 1OBJ DAT caçar-IMPF matar-IMPF [oajשa jϯשfokoe kanaw] tamanduá tatu-peba tatu-galinha nós íamos para o mato antigamente, caçar e matar tamanduá, tatu-peba, tatu- galinha para nós

O imperfectivo também é usado quando dois eventos estão relacionados.

[iցehuש otђ toe a] .523

iցe-naש otђ towe a 3SUJ comer 3SUJ pequeno-IMPF ele comeu quando ele era pequeno

Há outro uso interessante do Imperfectivo. Neste, a forma imperfectiva ocorre no início da sentença em construções como (524) e (525), em que parece termos uma construção adverbial do tipo gerundiva.

[a ђfoܦiցena ђfשђց] .524

i-ցe-na ђfa ђfoשђց cantar-VER-IMPF AUX menino o menino está cantando

177

525. [ђfܦaցena ђfܦa ђfo]

ђfa-ցe-na ђfa ђfo ouvir-VER-IMPF AUX menino o menino está ouvindo

Um outro uso do imperfectivo aparece na sentença dada em (526). Nesta sentença, o nome [jϯ] banha, gordura é verbalizado apenas por receber o morfema de imperfectivo.

Diferente, porém, dos nomes que são verbalizados pelo marcador [-ցe], que muda o nome e outras classes em verbo propriamente ditos, nesse caso temos um predicado adjetival.

[atnשiܦa jϯhna f] .526

a-diשha jϯ-ta fi 3SUJ banha-IMPF queixada-DIM o cateto estava gordo (Lit.: engordurado, o cateto)

Tentativas de separar [-na] e [-ta] como dois morfemas diferentes, atribuindo-lhes para isso noções aspectuais distintas, foram mal sucedidas. Exemplos como os apresentados abaixo sustentam a nossa decisão.

527. [aka te ta oe]

aka te ta oe mato LOC 1SUJ dormir nós dormimos no mato

178

[a ْohta] .528

a jo-ta 3SUJ dormir-IMPF ele está dormindo

[awtaשa ђj] .529

aw-taשa ђj 3SUJ nadar-IMPF ele nadava

Há, ainda, um caso em que o Imperfectivo é utilizado no futuro. A proposição parece, então, veicular uma noção semelhante ao que se usa hoje em Português vai estar Gerúndio.

[e wϯցenaשhatehta e ց] .530

e wϯ-ցe-taשhatehta e ցa onde 2SUJ FUT cavar-VER-IMPF onde você vai cavar? (Lit.: onde você vai estar cavando?)

Alguns verbos, que são eventos relacionados ao tempo, e que por isso podem ser tratados como unipessoais, recebem apenas o sufixo [-ta], progressivo, e um sujeito estativo

(531) ou apenas o primeiro (532) e (533).

531. [a fܦiehna]

a fie-ta 3SUJ chuva-IMPF está chovendo

179

Desde que [fܦie] chuva é nome, como se pode ver da construção com [hђ] chegar, apresentada na secção 3.2.1, exemplo (396), construções como (532) e (533) poderiam ser consideradas uma espécie de verbalização, com o nome recebendo apenas a morfologia verbal, o morfema de imperfectivo. Outros exemplos são:

532. [hetђցena]

hetђցe-ta vento-IMPF está ventando

533. [wetahata]

wetaha-ta meia.noite-IMPF era meia-noite

Para podermos dizer que [hetђցe] vento, assim como [fܦie] chuva, são nomes, temos a construção em (534), na qual o sujeito é correferenciado por [otђ], em uma estrutura com verbo intransitivo ativo. Evidentemente, não dá para explicar a diferença entre essas duas construções, onde uma utiliza marcação de sujeito estativo e outra, ativo, do ponto de vista puramente semântico.

534. [wi otђ hetђցe hђ]

wi otђ hetђցe hђ PAS 3SUJ vento chegar o vento chegou (e já não está mais ventando)

180

O evento expresso em (534) é diferente de (535) no sentido em que neste último, apresentado a seguir, não está explícita a idéia de passado terminado.

535. [otђ hetђցe hђ]

otђ hetђցe hђ 3SUJ vento chegar o vento chegou

3.4.4.2 Inceptivo vs. Completivo

A distinção Inceptivo vs. Completivo é marcada através do pronome-sujeito que é utilizado na estrutura gramatical. Assim, para indicar ação iniciada utiliza-se o pronome [hђ].

Para ações completadas, o pronome é [na]. Esses pronomes têm uma única forma e são utilizados em todas as pessoas gramaticais.

[oשe hђ hiցe kaЀoשia] .536

oשe hђ hi-ցe kaЀoשia quase 3INC morrer-VER cachorro o cachorro começou a morrer/ está quase morrendo

[oשe na hi kaЀoשhao] .537

oשe na hi kaЀoשhao agora 3COMPL morrer cachorro agora, o cachorro acabou de morrer

181

538. [wi na hђ fܦie]

wi na hђ fie PAS 3COMPL cair água a chuva parou/acabou de cair

3.4.4.3 A interrelação Tempo-Aspecto

Há uma interessante relação entre as expressões de tempo e aspecto, conforme descreveremos a seguir.

Antes de observarmos essas relações, que estão expostas resumidamente no Quadro

22, em seguida, algumas observações sobre este Quadro se fazem necessárias.

1) a sentença está incompleta, pois devemos considerar que uma sentença gramatical completa em Ofayé é constituída de Verbo mais os pronomes que representam os argumentos na estrutura gramatical. No Quadro indicado, apenas os elementos essenciais para a compreensão da interrelação tempo/aspecto verbal foram mantidos;

2) a ordem estabelecida para o auxiliar de Imperfectivo [ђfܦa] estar não é rigorosa. Na verdade, embora essa seja uma das posições possíveis, é mais frequente a sua ocorrência antes do verbo principal;

3) no Futuro, há uma distinção entre Futuro Neutro, em qualquer tempo depois do

e] e futuro imediato, talvez mesmoשmomento da fala, marcado por um auxiliar [a ցa

;[eשiminentivo, expresso por um advérbio [ia 182

4) o aspecto não-imperfectivo é não-marcado, ou pode-se dizer que o morfema para

o], o significado é passado eשesse aspecto é [ø]. Em uma sentença como [wi ota hiցe kaЀo completado, o cachorro já morreu;

5) as distinções expressas pelos pronomes sujeito, [hђ] para o inceptivo e [na] para o completivo não se interrelacionam com o tempo, pois o uso desses pronomes indica que o falante se refere a um evento acabado de iniciar ou acabado de se completar.

183

TEMPO ASPECTO VERBO ASPECTO NEU PRC PRM FUT FIM INC COMPL PF IMPF CT fohiցe ø coça/coçou a está coçandoܦe fohiցe na ђfשhao (progressivo) wi fohiցe ø coçou wi fohiցe na ђfܦa estava coçando (progressivo) wiha fohiցe ø coçou wiha fohiցe na ђfܦa estava coçando (progressivo) wi fohiցe na coçava (cont.) wiha fohiցe na coçava (cont.) e fohiցe coçaráשaցa (.e fohiցe coçará (imedשia hђ hiցe começou a morrer na hiցe acabou de morrer Quadro 22: A interrelação Tempo/Aspecto

184

Daremos alguns exemplos, em sentenças completas, que ilustram as relações apresentadas no Quadro 22.

Em (539), a raiz verbal não recebe morfema de aspecto. Na sentença, também, não há qualquer marca de tempo. Assim, trata-se de um evento do qual não se explicita nem a duração interna – aspecto – nem a sua relação temporal com o momento da fala – Tempo.

539. [otђ te hi fܦohiցe]

otђ te hi fohi-ցe 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coça/coçou sua perna (dele mesmo)

Em (540), em que não há uma marca aspectual no verbo, mas há um advérbio na sentença que localiza o evento temporalmente no momento da fala, a sentença é neutra em relação a aspecto.

[ohiցeܦe otђ te hi fשhao] .540

e otђ te hi fohi-ցeשhao agora 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coça a perna

Em (541), sem advérbio na sentença que possa indicar o tempo do evento, mas com a marca de imperfectivo, novamente o tempo é neutro, podendo ser interpretado tanto como está coçando quanto como estava coçando.

541. [otђ te hi fܦohiցena]

otђ te hi fohi-ցe-na 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER-IMPF ele está/estava coçando a perna (dele mesmo) 185

Em (542), o advérbio [wi] coloca o evento no passado recente e a ausência de marca aspectual informa sobre o aspecto perfectivo, ação completada do fato enunciado.

542. [wi otђ te hi fܦohiցe]

wi otђ te hi fohi-ցe PAS.REC. 3SUJ POS.REFL perna coçar-VER ele coçou a perna dele

Em (543), a combinação de advérbio de tempo, passado recente, com a marca de aspecto [-na] informa sobre a imperfectividade da ação no passado, enquanto o auxiliar [ђfܦa] veicula o sentido de progressividade.

543. [wi otђ ђfܦa te hi fܦohiցena]

wi otђ ђfa te hi fohi-ցe-ta PAS.REC. 3SUJ AUX. POS.REFL perna coçar-VER-IMPF ele estava coçando a perna dele

Nos demais casos apresentados no Quadro 22, as situações são semelhantes. Os advérbios de tempo combinam-se com presença versus ausência do morfema aspectual e/ou do auxiliar de imperfectivo para expressar a distância temporal em relação ao momento do enunciado e a duração interna do evento.

3.4.5 Concordância

Como já se disse, há uma marca raramente manifestada de concordância verbal com o sujeito da sentença. Na verdade, essa concordância é apenas semântica, desde que, entre os 186

pronomes sujeitos, não se faz distinção de número. O falante, querendo indicar que o sujeito expresso pronominalmente é plural, marca o verbo com o morfema [-jϯ], conforme os exemplos (544) e (545), a seguir.

544. [otђ wa ցi]

otђ wa ցi 3SUJ 1OBJ ver ele me vê/viu

545. [otђ wa ցiϯ]

otђ wa ցi-jϯ 3SUJ 1OBJ ver-PL eles me vêem/viram

A marca de concordância é notadamente mais utilizada com os verbos ativos, que repetem os pronomes [ta], [te] e [otђ] para as pessoas correspondentes do plural, e com verbos de sentido recíproco. Com os verbos inativos, para os quais se faz uso do conjunto de pronomes [aka], [eke] e [ida], raramente, ou talvez mesmo nunca, a marca de concordância é observada. 187

CAPÍTULO 4: ADJETIVOS

4.1 Introdução

Embora consideremos que adjetivo constitui uma classe principal de palavras, ao descrever a classe adjetivo em uma língua, devido ao seu caráter fluido, é importante observar o conteúdo semântico e a distribuição dessa classe na estrutura linguística. Isso significa procurar semelhanças e diferenças em relação às classes nome e verbo. (DIXON; 1999, p. 1).

Separadamente, podemos retomar Dixon (op.cit, p. 3), que descreve cada uma das classes principais – nome, verbo, adjetivo – especificamente e, depois, aponta as similaridades entre adjetivos e cada uma das outras classes.

(a) Verbs describe activities, which generally involve movement and/or change, and are normally extended in, and delimited in, time. A noun typically describes a thing (or animal or person), for which the dimension of time is irrelevant. Adjectives describe properties of things most of which do not involve change but are relatively permanent, e.g., big, red, good. In terms of this semantic dimension, adjectives show more similarities to nouns than to verbs. (b) A noun is generally the central topic of a discourse, and comment on it can either be in terms of some activity (through a verb), or of some property (through an adjective). This establishes a point of similarity between verb and adjective. (c) Both verb and adjective can be grammatically linked to a noun in one of two ways: (i) within a noun phrase, as further specification of the reference of the noun – this may involve an adjective or a participial form of a verb as modifying word (e.g., angry lion, singing nun), or an adjective or verb as predicate of a relative clause (lion which is angry, nun who sings); or (ii) verb or adjective is main clause predicate which acts as ´comment‘ on a given noun as a ´topic‘ (e.g., That lion is angry, This nun sings in her bath).

Dixon (op. cit., p. 4) fornece uma tipologia de línguas de acordo com os modos como as gramáticas das línguas tratam a classe de adjetivos. O Ofayé parece estar incluído no tipo

(2), de Dixon, conforme sua descrição. 188

(2) There is an open class of adjectives which has grammatical properties very similar to those of verbs; for example, when an adjective is used predicatively it inflects on the same (or similar) pattern to a verb (and there is then no need for inclusion of a verb to be).

4.2 Adjetivo em Ofayé

Em Ofayé, os adjetivos, quando usados em forma de citação, o são sempre com um pronome actante de terceira pessoa do singular, igual ao utilizado com verbos estativos.

Quando usados predicativamente, dispensam um verbo como ser, estar e sua flexão tem similaridades com a flexão verbal. Verbos em Ofayé apresentam pouca morfologia. Assim, as diferenças de flexão entre verbos-predicados e adjetivos predicados não podem ser muito grandes. Quando usados como modificadores, os adjetivos não recebem o pronome de verbo estativo nem qualquer morfologia flexional como nome.

Podemos, então, postular uma classe distinta de adjetivos para Ofayé, pois as palavras que expressam significados adjetivais têm a maior parte das propriedades gramaticais de verbos estativos, ao mesmo tempo em que, quando usados atributivamente, não apresentam essas propriedades, como vimos na secção sobre Sintagma Nominal, no Capítulo II desta

Tese.

A seguir, listamos alguns adjetivos, cobrindo todas as dimensões possíves encontráveis nas línguas e encontradas nesta língua. Nesta lista, todos (ou quase todos) apresentam uma característica em comum: o elemento pronominal a. Desde que adjetivos não são, é o que nos parece, nomes na língua, preferimos classificar esse elemento como marca verbal de terceira pessoa. Isso significa que os adjetivos são, primariamente, verbos, mas se nominalizam ao tornarem-se parte do sintagma nominal, com função de modificador de nome. 189

1. idade

546. [a tђ] novo

547. [a jow] velho

2. tamanho

548. [a taha ] grande

o] curtoשa to] .549

ikn] pequenoש a] .550

551. [ha koho] comprido

ahhu] altoש a] .552

553. [hђЀi] plano

3. avaliação

ej] bomשa ց] .554

a ցaniْe] ruim] .555

4. cores

o] pretoשa ko] .556

557. [a ցatϯ] branco

558. [a Ѐow] vermelho

559. [a haj] amarelo

ϯ] verde/azulשa ցajϯ] .560

190

A princípio, observando apenas a marcação pronominal, temos que uma construção com adjetivos parece ser sempre uma construção verbal estativa, como era de se prever. No exemplo abaixo, o sentido é: sua roupa é velha. A ordem é sempre nome - adjetivo.

561. [a Ѐђ jow]

a Ѐђ jow 3POS roupa velho sua roupa é velha

Os adjetivos ocupam duas posições na estrutura sintática. Podem ser modificadores do nome, como um constituinte do sintagma nominal, e podem ser o núcleo do sintagma verbal em uma construção predicativa. Um tratamento mais extenso de adjetivos como núcleo do sintagma verbal pode ser encontrado na secção 3.2.12.

562. [a jow]

a jow 3SUJ velho é velho

Esses exemplos parecem mostrar um adjetivo com propriedades de verbo: ser velho, ser grande, desde que não se espera entender (562) como seu velho. Em (563), a seguir, novamente o pronome de verbos estativos diz que [taha] grande é o núcleo do sintagma verbal.

563. [a oktЀiցete taha]

a oketЀiցete taha 3SUJ cachorro grande seu cachorro é grande 191

CAPÍTULO 5: ADVERBIAIS

5.1 Introdução

Advérbios formam uma classe aberta de palavras, desde que são palavras lexicais, conforme Givón (1984, p. 49), embora ele mesmo afirme que das quatro classes consideradas abertas, “(...) the class adverb” is a mixed one, in terms of semantics, morphological/inflectional and syntactic criteria used to characterize word classes. One finds less cross generalization in the treatment of adverbs”. (OP.CIT., p. 51)

Seguindo Auwera (1999, p. 8), vamos utilizar aqui o termo adverbiais em vez de advérbios, desde que estarão sob esse rótulo não só os advérbios propriamente ditos, mas ainda sintagmas e sentenças que funcionam como advérbios.

De modo geral, admite-se que os advérbios mais comuns são as palavras que indicam tempo, lugar e modo e modificam classes de palavras que não são nomes.

5.2 Adverbiais em Ofayé

5.2.1 Palavras adverbiais

Nas seguintes sentenças, temos palavras que podem ser consideradas advérbios, de acordo com os critérios que costumam serem usados para definir essa classe de palavras. Na sequência, apresentamos alguns desses critérios e os ilustramos com exemplos de Ofayé. 192

e] quase dá aoשa) Um advérbio modifica um verbo, como ocorre em (564), onde [ia evento expresso pelo verbo [weho] picar o sentido de iminentivo, mas não realizado.

[e otђ koni a wehoשia] .564

e otђ koni wa wehoשia quase 3SUJ cobra 1OBJ picar/morder a cobra quase me picou

b) Um advérbio é opcional, no sentido de que, se apagarmos o advérbio, a sentença continua gramatical. O evento enunciado em (564), acima, é a seguir repetido como (565),

.e] quase. A sentença continua gramaticalשomitindo-se [ia

565. [otђ koni a weho]

otђ koni wa weho 3SUJ cobra 1OBJ picar/morder a cobra me picou

c) Um advérbio apresenta flexibilidade de ordem de palavras. Em (566), [wiha] antigamente (ou passado remoto) ocupa a última posição na sentença. Em (567), o mesmo item lexical é movido para o início da sentença sem que esse movimento altere o sentido.

566. [ta ђfܦa tawϯ ka wiha]

ta ђfܦa tawϯ ka wiha 1SUJ andar mato TRAJ antigamente antigamente nós andávamos pelo mato

193

567. [wiha ta efܦa tawϯ a]

wiha ta ђfܦa tawϯ a antigamente 1SUJ andar mato TRAJ antigamente nós andávamos pelo mato

d) Um advérbio não aceita categorias gramaticais que são próprias de nomes ou de verbos. Em Ofayé, palavras adverbiais não se flexionam em número ou grau e não aceitam prefixos possessivos, as categorias gramaticais aceitas pelo nome. Também não aceita nenhuma das categorias descritas como verbais.

Observados esses critérios, as palavras listadas a seguir podem ser consideradas advérbios em Ofayé.

568. [Ѐenaha] perto de alguém ou alguma coisa, ao lado

569. [ђnika] madrugada

570. [hђhite] em cima

571. [fܦite] acima

i] anoשhawa] .572

(e] mês (outro anoשaЀi] .573

(e] perto (distanciaשti] .574

575. [hao] hoje

576. [hђha] só um

e] agoraשhao] .577

578. [ijotϯ] apenas

e] imediatamenteשia] .579

580. [kђtawϯhe] dia

eka] aindaשk] .581

ϯ] longeשteցiho] .582 194

583. [tϯ] aí

584. [tϯj] ali, lá

585. [ti] aqui

ϯ] noiteשwϯ] .586

e] cedo,manhãשiשwϯ] .587

a] meia-noiteשwϯ⍧] .588

589. [wi] passado ainda hoje

590. [wiha] passado anterior a hoje

591. [teցi] assim, desse jeito

Também algumas palavras, que poderiam ser consideradas nomes ou verbos, podem desempenhar função como advérbio, como é o caso das listadas a seguir:

e] atrásשaho] .592

593. [hђցajo] à esquerda

594. [awϯhϯ] dentro

5.2.2 Sintagmas adverbiais

Os sintagmas e sentenças que funcionam como advérbios são expressões como sintagmas adposicionais com valor adverbial, tais como Locativo e outros, ou sintagmas com

.(i hi], em (595שvalor modal, como [ok

195

[i hiשe ta hie okשia] .595

i  hiשe ta hiցe okשia quase 1SUJ morrer fome MOD nós quase morremos de fome

Em (595), o complemento adverbial, com valor de advérbio de modo, é constituído por um nome que recebe uma posposição. Na secção 7.6.1, sobre papéis semânticos periféricos, veremos como as posposições, em Ofayé, têm múltiplos valores semânticos. Essa estratégia de marcar nomes com adposições para fazê-los funcionar como advérbios de modo

é encontrada em muitas línguas. As sentenças adverbiais, que são cláusulas subordinadas, conforme veremos no Capítulo 7, sobre sintaxe, não puderam ser descritas para esse trabalho. 196

CAPÍTULO 6: CLASSES FECHADAS DE PALAVRAS

6.1 Introdução

A maior parte das palavras que pertencem ao que chamamos classes fechadas servem a funções gramaticais e, por isso, estão tratadas nas secções referentes à constituição dos sintagmas – nominal, verbal, adposicional – e na sintaxe de modo geral. Desse modo, a maior parte dos pronomes – gramaticais, reflexivo e/ou recíprocos, possessivos, interrogativos, os marcadores de papel semântico (posposições), quantificadores, auxiliares, conjunções, marcadores de negação, etc. – estão descritos nas secções correspondentes às funções morfológicas e/ou sintáticas que eles exercem. Este capítulo, que trata de classes fechadas de palavras, serve apenas para abrigar algumas palavras que não se encaixaram em outras secções desse trabalho.

6.2 Pronomes

A classe pronome, devido a suas relações com o nome e com o verbo na estrutura sintática, tanto no nível do sintagma como no nível da sentença, será aqui apenas apresentada sucintamente. Esses elementos pronominais são vistos repetidamente nos capítulos sobre verbo e sobre sintaxe. Os pronomes pessoais livres, que fogem um pouco a essa relação mencionada acima, terão um lugar neste Capítulo, secção 6.2.1, a seguir, a fim de que algumas das particularidades por eles apresentadas sejam reveladas.

197

6.2.1 Pronomes livres

Como em algumas outras línguas indígenas brasileiras consideradas pertencentes ao tronco Macro-jê, em Ofayé os pronomes livres apresentam formas masculina e feminina para todas as pessoas do singular. No plural, a distinção de gênero não é marcada. Apresentamos os pronomes livres no Quadro 23, a seguir.

NÚMERO PESSOA MASCULINO FEMININO

1 [a] [aցn] SINGULAR 2 [e] [eցn]

3 [ϯ] [ϯցn]

1 [aցa] PLURAL 2 [eցe]

3 [ϯցϯ] Quadro 23: Pronomes livres

Os pronomes livres de plural podem ser usados em quase todas as funções. Ao contrário, as formas de singular são usadas apenas com a sua função específica de pronomes livres. Por isso, a sua frequência de uso é muito baixa.

6.2.2 Pronome Reflexivo/Recíproco

A mesma forma [Ѐђ] é usada em operações tanto de reflexivização quanto de reciprocidade em Ofayé. O exemplo (596) ilustra o uso de [Ѐђ] como reflexivo, enquanto

(597) ilustra o seu uso como recíproco. 198

[ђЀowْϯ otђ Ѐђ tϯցe] .596

ђЀow-jϯ otђ Ѐђ tϯ-ցe homem-PL 3SUJ REFL cortar-VER os homens se cortaram

597. [otђ Ѐђ oe]

otђ Ѐђ o-ցe 3SUJ REFL abraçar-VER eles se abraçaram

O pronome reflexivo/recíproco possui uma única forma e pode ser usado com todas as pessoas gramaticais. Assim, em (598), em vez de co-referir a uma terceira pessoa, o pronome

[Ѐђ] correfere a um sujeito de primeira pessoa. Em (599), onde o uso é de reciprocidade, também temos um sujeito de primeira pessoa.

598. [ta Ѐђ tϯ]

ta Ѐђ tϯ 1SUJ REFL cortar eu me cortei/nós nos cortamos

599. [ta Ѐђ oe]

ta Ѐђ o-ցe 1SUJ REFL abraçar-VER nós nos abraçamos

A interpretação reflexiva ou recíproca depende da informação semântica contida no lexema verbal. 199

Uma característica desse pronome é que ele correfere apenas ao sujeito. Para correferir ao objeto, usa-se o pronome reflexivo [te], como podemos ver em (600).

600. [otђ ђЀow te ЀoБe ka]

otђ ђЀow te ЀoБe ka 3SUJ homem POS.REFL casa construir o homem construiu a casa dele

Do mesmo modo que [Ѐђ], [te] correfere a todas as pessoas gramaticais.

601. [otђ te ЀoБe ka]

otђ te ЀoБe ka 1SUJ POS.REFL casa construir ele construiu a sua própria casa

602. [ta te ЀoБe ka]

ta te ЀoБe ka 1SUJ POS.REFL casa construir eu construí a minha própria casa

6.3 Marcadores de polidez

As seguintes palavras com função de marcadores de polidez foram encontradas:

ika] até logo, estou indoשha] .603

ϯ] boa-noiteשwϯ] .604

605. [hђhtao] boa-tarde 200

606. [tahђ] saudação de chegada em qualquer momento do dia

e] Obrigadoשaܦefשheց] .607

6.4 Respostas a questões polares

As respostas a questões polares são as palavras afirmativa e negativa, correspondentes ao Português sim e não, respectivamente.

608. [aha] Sim

609. [hejaw] Não 201

CAPÍTULO 7: SINTAXE

7.1 Introdução

As relações gramaticais e, consequentemente, a estrutura sintática da língua, serão aqui descritas de um ponto de vista funcional. Desse modo, pode-se encontrar diferenças entre os membros de uma classe, mas há sempre uma característica em comum, o que permite afirmar que todos os indivíduos são membros da mesma classe. Ainda neste Capítulo, trataremos uma série de fenômenos sintáticos, como ordem dos constituintes nas sentenças, operações de mudança de valência, constituição de sintagmas adposicionais, tipos de sentenças e sentenças complexas.

7.2 A estrutura sintática do Ofayé

Conforme foi visto no Capítulo 3, os verbos em Ofayé podem ser divididos em três classes principais: ativos, incluindo verbos transitivos primários e a maior parte dos verbos intransitivos que são ações – considerando-se, evidentemente, a prototipicalidade ou a neutralização de papéis semânticos sob uma função sintática, no caso do Ofayé, o Sujeito; estativos, incluindo nessa classe os verbos adjetivais, estativos propriamente falando, e os verbos que codificam funções corporais; e verbos de emoção, não necessariamente incluídos em uma terminologia típica.

Na estrutura gramatical do Ofayé, três papéis semânticos parecem ser relevantes: o

Agente, o Paciente e o Recipiente. De acordo com Payne (1997, p. 133), tem-se observado empiricamente que há uma tendência das línguas a ter cerca de três categorias distintas de relações gramaticais centrais, geralmente sujeito, objeto e objeto indireto. Embora em Ofayé 202

não existam muitas pistas que permitam identificar essas relações, vamos aqui, para efeito de descrição, considerar essas três funções gramaticais, observando os tipos de estrutura sintática apresentados pelas classes de verbos descritas no capítulo anterior.

7.2.1 Verbos ativos

7.2.1.1 Intransitivos

Um verbo intransitivo típico, aqui usado como exemplo, é o verbo dançar. Podemos dizer que ele é um verbo intransitivo típico porque expressa uma ação-processo com apenas um participante, o Ator43. Para que uma sentença seja gramatical em Ofayé, é bastante que o verbo esteja acompanhado por um elemento pronominal que desempenha as funções sintáticas e representa os papéis semânticos correspondentes. Que esses elementos são formas livres e não prefixos podemos ver quando, sendo o sujeito de terceira pessoa explicitado por um nominal, esse nominal pode ser inserido entre o elemento pronominal e o verbo, como mostra o exemplo (610), a seguir.

610. [otђ ђЀow Ѐe]

otђ ђЀow Ѐe 3SUJ homem dançar o homem dança/dançou

A seguir, apresentamos a conjugação de um verbo intransitivo.

43 Usaremos Ator como um termo cover para os tipos de participantes que podem aparecer nessa posição, desde Agentes até Temas e outros tipos. 203

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

1 ta Ѐe eu danço/dancei Singular 2 te Ѐe tu danças/dançaste

3 otђ Ѐe ele dança/dançou

Plural 1 ta Ѐejϯ nós dançamos

2 te Ѐejϯ vós dançais/dançastes

3 otђ Ѐejϯ eles dançam/dançaram Quadro 24: Conjugação de um verbo intransitivo

Na estrutura com verbo intransitivo, o Agente é representado pelos pronominais, /ta/,

/te/ e /otђ/ - primeira, segunda e terceira pessoas, respectivamente44.

7.2.1.2 Transitivos

Os verbos transitivos – verbos de ação-processo com dois participantes, um Agente e um Paciente – têm uma estrutura sintática com argumentos que, quando expressos pronominalmente, apresentam-se do seguinte modo45:

44 Para referir a um sujeito ou objeto plural, o falante pode, em discurso, utilizar os pronomes livres correspondentes. 45 Evidentemente, esse quadro mostra os pronomes sujeito e objeto em relação às pessoas gramaticais, mas não podemos dizer que [ta wa ki] signifique eu me vi. Nesse caso, teríamos que ter uma construção reflexiva, com o reflexivo [Ѐђ] na posição de objeto direto. O quadro, desse modo, é apenas demonstrativo. 204

NÚMERO/PESSOA SUJEITO OBJETO VERBO

1 ta wa ցi eu vejo/vi algo SINGULAR 2 te e ցi tu vês/viste algo

3 otђ a ցi ele vê/viu algo

1 ta aka ցi nós vemos/vimos algo PLURAL 2 te eke ցi vós vedes/vistes algo

3 otђ ida ցi eles vêm/viram algo Quadro 25: Conjugação de um verbo transitivo

Exemplos da construção transitiva são apresentados a seguir. Ilustramos, com os exemplos de (611) a (614) a construção gramatical com todos os argumentos representados apenas pronominalmente.

611. [ta a ki]

ta ha ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo/vi

612. [otђ wa ki]

otђ wa ցi 3SUJ 1OBJ ver ele me vê/viu

613. [ta e kaj]

ta e kaj 1SUJ 2OBJ matar eu te mato/matei 205

614. [otђ wa kati]

otђ wa kati 3SUJ 1OBJ bater ele me bateu

Nessas construções, [ta], [te] e [otђ] são Agentes, enquanto que [wa], [e] e [ha] são pacientes. A ordem canônica é, assim, definida como sendo SOV. Esses índices pronominais que referem a Agente e Paciente na sentença transitiva são também índices gramaticais sem referência externa. Quando nominais, que possuem referência plena, aparecem na sentença, os

índices gramaticais permanecem, o que nos permite dizer que eles também são correferenciadores. O índice de Paciente, entretanto, pode ser omitido, caso esse argumento seja expresso por um nominal. O índice de sujeito é, canonicamente, obrigatório46. A ordem dos nominais na sentença não parece ser rigorosa, mas o nominal representando um paciente, de modo geral ocupa a segunda posição, depois do sujeito e antes do verbo, na sentença central. Entretanto, esse nominal com função objeto pode ainda vir depois do verbo ou depois do Recipiente representado nominalmente e correferenciado na sentença por um pronome. Na secção 7.4, apresentamos todas as ordens possíveis desses argumentos centrais.

7.2.1.3 Bitransitivos

Verbos bitransitivos, cujo protótipo é o verbo dar – com uma estrutura semântica que apresenta três argumentos, Agente, Paciente e Recipiente – comporta-se sintaticamente do seguinte modo:

46 Evidentemente, essa obrigatoriedade diz respeito ao nível da sentença. No discurso fluente, espontâneo, como em qualquer língua, mesmo naquelas que são consideradas no modo de falar gerativista de non-pro-drop, o sujeito de uma sentença pode ser elidido, desde que ele pode ser recuperado do contexto. 206

- o Agente, o doador, é expresso por um pronome da série sujeito;

- o Paciente, o objeto doado, é expresso por um pronome da série objeto;

- o Recipiente, o participante a quem o objeto é doado, é expresso por um pronome da série objeto, com ligeira modificação, marcado com a posposição [he]. É, portanto, um

Dativo, em termos de marcação de caso, mesmo se a marcação é sintática em Ofayé.

Nessa estrutura bitransitiva, há um jogo interessante entre os participantes.

A princípio, toda a estrutura gramatical pode ser expressa apenas pelos índices actanciais, Sujeito-Objeto 1-Objeto 2-Verbo47. Essa parece ser a ordem canônica e a ilustramos com os exemplos de (615) e (616).

615. [te wa he noe]

te wa he naw-ցe 2SUJ 1OBJ DAT dar-VER tu me destes (alguma coisa)

616. [ta e he noe]

ta e he naw-ցe 1SUJ 2OBJ DAT dar-VER eu te dei (alguma coisa)

Se o sujeito for de primeira pessoa e o recipiente de segunda pessoa (617) ou vice- versa (618), tanto o sujeito quanto o objeto indireto estarão explicitados, gramaticalmente. O objeto será sempre de terceira pessoa e, por isso, equivalente a [ø], a menos que seja expresso apenas pronominalmente.

47 Objeto 1 corresponde ao objeto indireto e Objeto 2 ao objeto direto. 207

[iցeteשta e he no k] .617

iցateשta e he naw ցa 3SUJ 2OBJ1 DAT dar ovo.de.galinha eu te dei o ovo

[iցeteשte wa he no k] .618

iցateשte wa he naw ցa 2SUJ 1OBJ1 DAT dar ovo.de.galinha tu me deste o ovo

Nos dois exemplos, poderíamos postular um morfema [ø] para a posição do objeto

iցete] ovo, que segue o verbo. Nãoשantes do verbo. Esse pronome correferenciaria ao nome [k assumiremos, porém, neste trabalho, essa posição e continuaremos a transcrever os exemplos como vimos fazendo até aqui.

O sujeito de terceira pessoa é omitido, se o recipiente é de outra pessoa gramatical – primeira ou segunda. Em (619) e em (620), o sujeito é de terceira pessoa – ele – e não tem realização fonética na estrutura gramatical, onde encontramos apenas o argumento Recipiente, representado por um pronome gramatical objeto marcado como Dativo.

[iցeteשwa he no k] .619

iցateשø wa he naw ցa 3SUJ 1OBJ DAT dar ovo.de.galinha ele me deu o ovo

208

[iցeteשe he no k] .620

iցateשø e he naw ցa 3SUJ 2OBJ DAT dar ovo.de.galinha ele te deu o ovo

Se o sujeito for de pessoa diferente da terceira e o recipiente de terceira pessoa, o pronome que refere ao recipiente pode ser omitido. Em (621), o sujeito é [ta], primeira pessoa e o recipiente, terceira pessoa, não se realiza foneticamente, sendo representado por [ø]. O fato se observa ainda em (622), com sujeito de segunda pessoa [te] e recipiente de terceira pessoa [ø].

[iցeteשta he no k] .621

iցateשta ø he naw ցa 1SUJ 3OBJ DAT dar ovo.de.galinha eu lhe dei o ovo

[iցeteשte he no k] .622

iցateשte ø he naw ցa 2SUJ 3OBJ DAT dar ovo.de.galinha você lhe deu o ovo

Se o recipiente for expresso por um sintagma nominal, ainda assim a estrutura sintática será mantida, com o recipiente [ø], seguido da posposição que marca Dativo. Depois do verbo, vem o sintagma nominal, que pode ser ou não marcado como Dativo. Em (623), o 209

nome próprio [teցi] Tegin, que ocorre depois do verbo, é o recipiente, marcado como Dativo, seguido do nome [kriցete] ovo, que é o objeto direto.

[iցeteשta he no teցin he k] .623

iցateשta ø he naw teցi he ցa 1SUJ 3OBJ DAT dar Tegin DAT ovo.de.galinha eu dei o ovo a Tegin

Essa estrutura parece dar a seguinte informação: eu dei algo a alguém, que, por si só, é gramatical na língua. Agora, precisando dar uma informação em termos referenciais e não apenas gramaticais, dos participantes, acrescentam-se Nome marcado como Dativo, representando o Recipiente, e Nome não marcado, representando o Objeto. Os nominais refletem-se do lado oposto do verbo, como em um espelho.

Se o sujeito for expresso por um nome, o pronome correferenciador de terceira pessoa, exigido pela estrutura sintática, volta a aparecer. A marca de Dativo, nesse caso, está sobre um morfema [ø], pois os dois participantes, Agente e Recipiente, são da mesma pessoa gramatical.

[iցeteשMaria otђ he no k] .624

iցateשMaria otђ ø he naw ցa Maria 3SUJ 3OBJ DAT dar ovo Maria deu o ovo a ela

O Recipiente, nesse caso, é expresso apenas pronominalmente na estrutura gramatical.

Não há um nome ao qual ele correferenciaria e que viria depois do verbo.

Se compararmos os dois exemplos abaixo, teremos uma visão mais clara dos fatos. 210

[iցeteשMaria otђ he no k] .625

iցateשotђ ø he naw ցa ____ .626 ____ 3SUJ 3OBJ DAT dar ovo-de-galinha 625⎆) Maria ela lhe deu o ovo-de-galinha

626⎆) _____ ela lhe deu o ovo-de-galinha

Dessa análise, um quadro resumitivo dos pronomes que representam as principais relações gramaticais em Ofayé, considerando apenas os verbos Ativos, pode ser esboçado.

PESSOA SUJEITO OBJETO INDIRETO OBJETO DIRETO

1 ta wa he wa

2 te e he e

3 otђ ø he a Quadro 26: Pronomes que desempenham funções sintáticas centrais

O Quadro 27, a seguir, mostra o jogo de pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva, basicamente entre os participantes com papel semântico Agente e Recipiente.

Agente 1 2 3

Recipiente ta te otђ ø

1 - wa he - wa he

2 e he - - e he

3 ø he ø he ø he -

Quadro 27: Jogo das pessoas gramaticais na estrutura bitransitiva

211

Em resumo, se o Agente for de primeira ou segunda pessoa, o Recipiente de terceira pessoa não é marcado nem gramatical nem correferencialmente. Se o Agente for de terceira pessoa, o recipiente de terceira pessoa pode ser não marcado. Entretanto, se o recipiente for de primeira ou segunda pessoa, o papel não marcado é o de Agente.

Um verbo que tem o mesmo comportamento sintático que o verbo dar é mostrar, como ilustram os exemplos de (627) a (629).

[a hitajϯשaܦe hokojfܦie otђ he oցܦok] .627

a hitajϯשin otђ ø he o-ցe hokoj.faܦok Joana 3SUJ 3OBJ DAT mostrar-VER tamanduá.pé anta Joana mostrou a anta a Pé-de-Tamanduá (Ramona)

A marcação do nominal Recipiente, depois do verbo, como Dativo, não é obrigatória, dado que o nominal Agente já ocupa a primeira posição na sentença, antes do verbo, ao passo que o nominal Tema (Objeto), desde que não é marcado, ocupa a última posição na sentença.

628. [ta e he oցܦe hitajϯ]

ta e he o-ցe hitajϯ 1SUJ 2OBJ DAT mostrar-VER anta eu mostrei a anta a você

629. [wa he oցܦe hitajϯ]

ø wa he o-ge hitajϯ 3SUJ 1OBJ DAT mostrar-VER anta ele me mostrou a anta

212

7.2.2 Verbos estativos

Como vimos no Capítulo 3, há dois tipos de verbos que podem ser ditos verbos estativos. São os verbos que compõem predicados adjetivais e os verbos que expressam funções corporais involuntárias. Os pronomes que têm função gramatical e/ou correferencial nessa estrutura sintática são diferentes dos pronomes com essas funções na estrutura dos verbos transitivos primários e dos outros verbos intransitivos. A seguir, damos apenas os modelos de conjugação de predicados adjetivais e de verbos que expressam funções corporais.

7.2.2.1 Predicados adjetivais

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

ej eu sou bomשЀђ- ց 1 SINGULAR ej tu és bomשe- ց 2

ej ele é bomשa- ց 3

ej nós somos bonsשaka- k 1 PLURAL ej vocês são bonsשeke- k 2

ej eles são bonsשida- k 3 Quadro 28: Conjugação de um predicado adjetival

213

7.2.2.2 Funções corporais

NÚMERO/PESSOA SUJEITO VERBO

1 Ѐђ- Ѐϯhen eu sangro SINGULAR 2 e- Ѐϯhen tu sangras

3 a- Ѐϯhen ele sangra

1 aka- Ѐϯhen nós sangramos PLURAL 2 eke- Ѐϯhen vocês sangram

3 ida- Ѐϯhen eles sangram Quadro 29: Conjugação de um verbo de função corporal

Desse modo, podemos ver que a estrutura sintática nas classes de verbos que se configuram como estativas é diferente da estrutura sintática encontrada para as classes de verbos que se configuram como ativas. Na estativa, o pronome de primeira pessoa não é igual nem ao sujeito nem ao objeto dos verbos transitivos primários, mas um elemento diferente. Os pronomes que constituem a estrutura gramatical dos verbos estativos não podem ser repetidos, como ocorre com os pronomes da classe ativa, para as pessoas do plural. Com os verbos estativos, tem-se que usar para o plural os pronomes livres48.

7.2.3 Verbos de emoção

Os verbos que expressam emoção em Ofayé, como vimos, apresentam uma estrutura sintática específica. O experienciador é semanticamente um Recipiente e, como tal, é marcado

48 Os pronomes de plural, com exceção de /ida/, também foram encontrados em fala espontânea com verbos da estrutura ativa. Em dados elicitados, porém, esses pronomes nunca são utilizados nessa estrutura. 214

como Dativo, constituindo-se em um Objeto Indireto do ponto de vista sintático. O objeto da emoção é semanticamente um estímulo e tratado como Objeto na estrutura sintática.

NÚM/PES SUJ VERBO

1 wa he Ѐeti [Ѐђցije] eu gosto do meu marido SG 2 e he Ѐeti [ђցije] tu gostas do teu marido

3 a he Ѐeti [aցije] ela gosta do marido dela

aka he Ѐeti [akijeْϯ] nós gostamos dos nossos maridos 1 PL eke he Ѐeti [ekijeْϯ] vocês gostam dos maridos de vocês 2

ida he Ѐeti [te ցijeْϯ] elas gostam dos maridos delas 3 Quadro 30: Conjugação de um verbo de emoção

Segundo Van Valin (2001, p. 27), “expressing experiencer arguments in the dative case is not a property of so-called ´exotic´ languages alone; it also happens in many Indo-

European languages” e cita como exemplos Espanhol, Alemão e Croata.

7.3. Definindo a estrutura sintática de Ofayé

Considerando apenas as duas classes principais, verbos transitivos primários e verbos intransitivos, temos a seguinte configuração:

a) os verbos transitivos primários são verbos de ação prototípicos e comportam-se como tal, com o Agente sendo tratado sintaticamente como Sujeito;

b) uma parte dos verbos intransitivos comporta-se sintaticamente do mesmo modo que os verbos transitivos, ou seja, seu argumento único é tratado como o Agente nas sentenças com verbos transitivos primários. Assim, A = S. De quinze classes semânticas levantadas, onze comportam-se, sintaticamente, do mesmo modo que os verbos transitivos primários, com 215

uma estrutura ativa, quer dizer, o sujeito desses verbos é o mesmo dos verbos transitivos primários.

c) Outra parte dos verbos intransitivos, incluindo-se aí, grosso modo, os predicados adjetivais, recebem uma marcação de sujeito diferente.

Por esse cenário, teríamos uma estrutura sintática do tipo que é definido na literatura como Ativa-estativa. Contudo, algumas complicações aparecem, como veremos a seguir.

Os verbos estativos – predicados adjetivais e funções corporais – tomam como argumento único um sujeito que não é agentivo. Embora, nas segunda e terceira pessoas do singular, esse argumento seja igual ao objeto dos verbos transitivos primários, o fato de o pronome utilizado com esses verbos ser diferente, na primeira pessoa, do objeto dos verbos transitivos primários não nos permite dizer que o sujeito dessa classe de verbos é tratado como o objeto dos verbos transitivos primários, o que configuraria a língua como sendo do tipo sintático ativo-estativo.

Em vez disso, o que ocorre é que esse sujeito é diferente de A, mas é também diferente de S e de O. Para efeito de descrição, chamaremos o sujeito desses verbos Internalizado ou

Inerente. Por isso, a situação em que se encaixa a estrutura sintática da língua Ofayé parece mais próxima de um tipo que apresenta intransitividade cindida, porém com o argumento

único dos verbos estativos sendo diferente do argumento Paciente dos verbos transitivos primários. No Quadro 31, tentamos um primeiro esboço dessa situação.

216

A sujeito de verbos transitivos primários Agente S sujeito de verbos intransitivos

O objeto de verbos transitivos Paciente

I sujeito de verbos estativos Internalizado Quadro 31: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos

Finalmente, há uma classe de verbos, os que expressam emoções, que apresentam uma estrutura sintática diferente. Esses verbos têm dois argumentos na estrutura sintática, semanticamente um Experienciador da emoção e um Estímulo, o alvo da emoção. O

Experienciador é tratado como Recipiente, desde que marcado como Dativo, e o Estímulo como Paciente. Essa última classe pode ser desconsiderada no estabelecimento da estrutura sintática, desde que todas as línguas parecem ter verbos que se comportam à margem do padrão predominante49.

Podemos, então, modificar o Quadro 31, acima, reelaborando-o como o Quadro 32, abaixo, para acrescentar um quinto tipo de participante e dar uma visão geral da configuração sintática da língua, no que pudemos até aqui observar.

49 Esta estratégia de marcação do argumento central sujeito como um caso oblíquo não é, contudo, propriamente exótica. Muitas línguas seguem um padrão comum, ergativo-absolutivo, nominativo-acusativo, ativo-estativo, para as demais classes de verbos, mas sentenças com verbos de percepção, emoção, cognição, seguem um padrão diferente. Entre essas línguas, inclui-se línguas bem conhecidas como Alemão, Espanhol e Croata. (VAN VALIN, 2001, pp. 27-28). 217

A sujeito de verbos transitivos primários Agente S sujeito de verbos intransitivos

O objeto de verbos transitivos Paciente

I sujeito de verbos estativos Internalizado

R sujeito de verbos de emoção Recipiente Quadro 32: Correlação entre sujeito, objeto e classes de verbos (Revisado)

7.4 A ordem dos constituintes na estrutura sintática

Estamos considerando, sob este título, apenas o verbo e os constituintes necessários à gramaticalidade da sentença. A estrutura informacional pode vir a ser bastante diferente, mas não estaremos enfrentando a questão neste ponto.

A ordem dos argumentos na estrutura gramatical do Ofayé é bastante fluida. Andrews

(1985, p. 71) observa que tem-se encontrado “(...) systems in which there is a preferred order, but where a great deal of variation is possible as long as ambiguity is not introduced (though some languages seem to tolerate surprising amounts of ambiguity)”. Um exemplo de uma língua desse tipo, segundo Andrews, é Dakota, cuja sintaxe

(...) does not seem to be sensible to try to describe the order possibilities in terms of a basic order and specific alternatives. Rather, the order is free, subject to a sov preference, especially when needed to prevent ambiguity. This sort of system we will call ´fluid‘, as opposed to the high determinate word-order system of languages like English. (ANDREWS, 1985, p. 72). 218

A ordem dos constituintes gramaticais na estrutura sentencial em Ofayé é, como vimos demonstrando, SOV. Essa parece ser uma ordem de constituintes bastante típica em línguas do tronco Macro-jê.

7.4.1 A ordem na estrutura intransitiva ativa

Na estrutura intransitiva ativa, a ordem básica é SV. O sujeito é sempre representado por um pronome da classe ativa, /ta/, /te/, /otђ/, primeira, segunda e terceira pessoa, respectivamente. O sujeito de terceira pessoa poderá correferenciar a um nominal. Nesse caso, a ordem do nominal é bastante fluida. Ele poderá vir:

a) antes do pronome

630. [ђfo otђ hoցe]

ђfo otђ hoցe menino 3SUJ gritar-VER o menino gritou

b) depois do pronome

631. [otђ ђfo hoցe]

otђ ђfo hoցe-ցe 3SUJ menino gritar-VER o menino gritou

219

7.4.2 A ordem na estrutura transitiva

Na estrutura transitiva, a ordem dos constituintes pronominais é SOV.

632. [ta a ki]

ta a ցi 1SUJ 3OBJ ver eu o vejo/vi

Se os pronomes gramaticais correferenciarem a nomes abertos na sentença, a ordem desses nominais pode ser variada.

1) um nominal é correferenciado por /otђ/ terceira pessoa de verbos ativos, e o objeto é também expresso nominalmente. Como nos verbos intransitivos, o nominal sujeito pode vir:

a) na primeira posição da sentença, antes do pronome que o correferencia.

[a kajשΣђЀow ohtђ oktЀi kaw] .633

a kajשЀђ-Ѐow otђ oketЀi kaw 1POS-pai 3SUJ onça pintada matar meu pai matou a onça pintada

b) depois do pronome correferenciador

[a kajשohtђ ЀђЀow oktЀi kaw] .634

a kajשotђ Ѐђ-Ѐow oketЀi kaw 3SUJ 1POS-pai onça pintada matar meu pai matou a onça pintada

220

635. [otђ ђЀow te ЀoБe ka]

otђ ђЀow te ЀoБe ka 3SUJ homem REFL.POS casa construir o homem construiu a casa dele

c) depois do verbo, ou seja, ocupando a última posição na sentença

636. [otђ fܦinweցi wϯj ЀђЀow]

otђ finweցi wϯj Ѐђ-Ѐow 3SUJ pote quebrar 1POS-pai meu pai quebrou o pote

No último exemplo, o nominal [ЀђЀow] meu pai ocupa a última posição na sentença. O objeto direto [fܦinweցi] pote mantém a sua posição imediatamente antes do verbo50

[wϯj] quebrar, que é o último elemento da sentença.

Há, ainda, uma outra ordem, com todos os nominais ocorrendo depois do verbo, espelhando os pronomes correferenciadores. O pronome-sujeito /otђ/, que é obrigatório, vai estar sempre por perto do nome que ele correferencia, exceto nessa terceira ordem.

2) o sujeito é expresso pronominalmente, desde que primeira pessoa. O objeto, de terceira pessoa, é expresso nominalmente e não é correferenciado por um pronome, conforme os exemplos (637) e (638).

637. [ta fܦinweցi wϯj]

ta finweցi wϯj 1SUJ pote quebrar nós quebramos o pote

50 Lembremo-nos que, quando o objeto não é expresso por um nome, a posição imediatamente anterior ao verbo é preenchida pelo pronome-objeto. 221

638. [otђ fܦinweցi wϯj]

otђ finweցi wϯj 3SUJ pote quebrar ele quebrou o pote

A ordem é SOV. Note-se, porém, que podemos sempre considerar que o pronome para objeto de terceira pessoa pode ser [ø], o que acontece em outros tipos de estrutura. Assim, diríamos que [fܦinweցi] estaria sendo correferenciado por este elemento [ø] antes do verbo.

Se o objeto expresso nominalmente ocupar a posição comum ao objeto, a ordem SOV será mantida.

7.4.3 A ordem na estrutura bitransitiva

Na estrutura bitransitiva, com três papéis semânticos principais correspondendo aos três argumentos centrais, a ordem é, se esses argumentos são expressos pronominalmente, S-

OI-OD-V. Se alguns desses constituintes forem expressos por nomes, há variações nessa ordem. A ordem em Ofayé é extremamente fluida e é possível encontrar-se essa fluidez nos dados que vimos descrevendo, como, por exemplo, na descrição da estrutura bitransitiva. Por isso, deter-nos-emos nesta secção apenas no que nos parece ser a ordem mais básica, embora nem sempre a que mais transparece na fala fluida.

a) todos os constituintes são expressos pronominalmente, menos obviamente, no exemplo abaixo, o sujeito, porque ele é de terceira pessoa e o recipiente é de primeira pessoa.

222

639. [a he a no]

ø wa he a naw 3SUJ 1OBJ DAT 3OBJ dar ele me deu (algo)

b) todos os constituintes, desde que são de terceira pessoa, são expressos nominalmente. A estrutura básica apresentar-se-ia como no exemplo a seguir.

[iցeteשia he kשie otђ he no maܦok] .640

iցateשia he ցaשin otђ ø he naw maܦok Okwin 3SUJ 3OBJ DAT dar Maria DAT ovo Joana deu o ovo a Maria

Nessa estrutura, que estamos propondo como sendo a estrutura mais básica em que aparecem todos os constituintes da sentença gramatical em Ofayé, a ordem é Sujeito (Pron)-

Objeto Indireto (Pron)-Objeto Direto (N)-V-Objeto Indireto (N)-Objeto Direto (N), na qual todos os constituintes gramaticais têm a sua referência explicitada depois do verbo por um sintagma nominal. Para que o recipiente seja distinguido do tema – o objeto transferido – o nome referente ao recipiente é, do mesmo modo que o pronominal [ø]51 antes do verbo, marcado como Dativo.

7.4.4 A ordem na estrutura estativa

Na estrutura estativa, a ordem é SV, quando o sujeito é expresso apenas pelo pronome.

Se o sujeito for explicitado por um nominal, a ordem desse nominal é igual à que ocorre na estrutura intransitiva, acima descrita.

51 Ver, na secção 7.2.1, a nossa discussão da estrutura bitransitiva e o jogo de pronomes nessa estrutura. 223

[ejשa ց] .641

ejשa ց 3SUJ bom é bom

[ej ђfoשa ց] .642

ej ђfoשa ց 3SUJ bom menino o menino é bom

643. [a ha wekahu]

a ha weka-ta 3SUJ casca grossa-IMPF a casca é grossa

7.4.5 A ordem na estrutura com verbos de emoção

Na estrutura com verbos de emoção, a ordem é SOV, se o objeto for expresso apenas pelo pronome. O sujeito sendo marcado como Dativo, o objeto de terceira pessoa é omitido, como em (644).

644. [a he Ѐeti]

a he Ѐeti 1OBJ DAT gostar eu gosto dele

224

Se, entretanto, o objeto não for de terceira pessoa gramatical, ele pode vir expresso pelo pronome correspondente e ocupa a segunda posição na sentença, exemplo (645).

645. [a he e Ѐeti]

a he e Ѐeti 1OBJ DAT 2OBJ gostar eu gosto de você

Se explicitado por um nome, que tem referência plena, o objeto pode vir antes ou depois do verbo. A ordem mais frequente é, porém, com o nome que refere ao objeto depois do verbo, exemplo (646).

646. [a he Ѐeti Ѐђցije]

a he Ѐeti Ѐђ-ցije 1OBJ DAT gostar 1POS-marido eu gosto do meu marido

7.4.6 Complementos

Outros complementos, tanto adverbiais como adposicionais, ou seja, representando tanto papéis semânticos periféricos, não obrigatórios, como adjuntos adverbiais, circundam a estrutura básica central. Esses complementos podem vir no início ou no final da sentença.

647. [koj otђ wiցe hђ⍧ he]

koj otђ wi-ցe hђn he José 3SUJ subir-VER árvore LOC José subiu na árvore 225

Algumas vezes, em fala fluida, eles parecem estar no meio da sentença. Olhando-se, porém, com mais cuidado, pode-se ver que se trata de uma sentença complexa e que o complemento está inserido no meio de duas estruturas sintáticas básicas.

648. [taihta tawϯ a  aka jojϯ he fܦoցi Ѐihi]

ta i-ta tawϯ a aka jo-jϯ foցi Ѐihi 1SUJ ir-IMPF mato DIR.OBV 1PL.POS prole-PL mel caçar nós íamos no mato caçar mel para nosso filhos

O Quadro 33, que damos mais adiante, procura mostrar a estrutura aproximada da sentença básica em Ofayé, incluídos os constituintes não gramaticais, como advérbios, verbos auxiliares e outros itens lexicais, como certas partículas. Dizemos que a estrutura é aproximada porque é quase impossível definir a ordem de todos os elementos na sentença.

Alguns são fixos, como a negação; outros mais ou menos fixos, como os advérbios temporais, que tendem a ocorrer no início da sentença, depois da negação, e as posposições, que ocorrem sempre depois do nome a que se ligam; outros são mais fixos, como os pronomes gramaticais, que, no máximo, permitem a intercalação de um nominal entre eles ou entre eles e o verbo; outros são definitivamente fixos, como os morfemas presos de avaliação, número e aspecto.

Os auxiliares, definitivamente, possuem extrema mobilidade e comportam-se, em

[eשa] progressivo, é mais móvel enquanto [a ցaܦrelação à ordem, de modos diferentes: [ђf futuro apresenta uma ordem mais fixa, ocorrendo quase sempre, pelo menos na maior parte dos dados elicitados, antes do verbo principal. 226

ESTRUTURA BÁSICA DA SENTENÇA Neg Tempo Suj Obj Núm Asp Af Ng Nft Prc Prm FT At Est Int Ind Dir Verbo Sg Pl Pf Ipf

e otђ a Ѐђ ø he a VERBO ø jϯ ø naשø hi ø wi wiha a ցa

ta a kaj

hi ta a kaj jϯ

wi a fܦa otђ a kaցe na

wiha ta a kay

e a kajשta a ցa

Ѐe Ѐehe

ta e he ø no Quadro 33: Constituição básica da estrutura da sentença 227

7.5 Operações de mudança de valência

Algumas operações de mudança de valência foram identificadas na língua. Uma operação como passiva, entretanto, não foi encontrada. Os falantes demonstraram completo desconhecimento dessa estratégia. Sempre que a construção foi solicitada, o resultado foi uma construção ativa. Parece que o mesmo se pode dizer com relação à relativização.

7.5.1 Decréscimo de valência

Estados resultantes de ação-processo são expressos intransitiva e ativamente. Quer dizer, a estrutura sintática tem um único actante, mas esse actante deve ser ativo, como indica o uso do sujeito gramatical [otђ].

649. [otђ wϯj]

otђ wϯj 3SUJ quebrar algo quebrou/está quebrado

650. [otђ ЀђnodЋi wϯj]

o-ji wϯjשotђ Ѐђ-no 3SUJ 1POS-sentar-PART quebrar ele quebrou meu banco

O que acontece, na verdade, é que a língua não expressa esses eventos como resultados de um processo, mas como o próprio processo. Esse tipo de construção parece tirar 228

uma parte da agentividade do Verbo, uma vez que reduz a valência para um argumento, fazendo a ação reverter sobre o próprio Agente. Isso é o que alguns autores chamam “a decrease in the degree of activity of an event” (ANDREWS.; 1985, p. 157). Esse tipo de operação ocorre em Espanhol, Português e em muitas outras línguas e consiste em tomar-se um verbo transitivo, destransitivá-lo, tornando-o, desse modo, semi-ativo. A esse tipo de construção, costuma-se chamar médio-passiva. Em Português, por exemplo, podemos ter exemplos como (651).

[o kebrow mew bakuשped] .651

o kebr-o-w mew baNkoשped Pedro quebrar-VT-PAS 1PRON.POS. banco Pedro quebrou meu banco

expresso como (652), em que o Agente é omitido, diminuindo-se o grau de atividade do evento,

652. [mew baku kebrow]

mew baNko kebr-o-w 1POS banco quebrar-VT-PAS meu banco quebrou

que apresenta a mesma estrutura de (650), acima, aqui repetido como (653) para comparação.

653. [otђ ЀђnodЋi wϯj]

o-ji wϯjשotђ Ѐђ-no 3SUJ 1POS-banco-PART quebrar meu banco quebrou/está quebrado

229

654. [otђ hie ђfotn]

otђ hi-ցe ђfo-di 3SUJ morrer-VER menino-DIM a criança morreu/está morta

7.5.2 Acréscimo de valência

7.5.2.1 Transitivação

Um verbo intransitivo pode ser transitivado apenas por aumentar-se um argumento na estrutura sintática. Observemos os exemplos de (655) a (657).

655. [ta ko]

ta kaw 1SUJ ir eu vou/fui

656. [otђ ko ђfo]

otђ kaw ђfo 3SUJ ir menino o menino vai/foi

657. [ta ha ko ђfo]

ta ha kaw ђfo 1SUJ 3OBJ ir menino eu deixei o menino ir

Nesse caso, que o menino, Agente em (656), passa a ser objeto em (657). 230

7.5.2.2 Manipulação

Verbos manipulativos são criados utilizando-se uma estrutura com Dativo, assim como se faz com gostar. O sujeito de uma sentença não manipulativa, que desce para a posição de objeto na sentença manipulativa, é marcado como Dativo. A morfologia verbal permanece inalterada. De todo modo, essa parece ser uma estrutura causativa, já que o verbo permanece o mesmo, como mostra (658) quando comparado com (659).

658. [otђ ko ђfotn]

otђ kaw ђfo-di 3SUJ ir menino-DIM a criança foi

659. [ta ђfo johta]

ta ђfo jo-ta 1SUJ menino dormir-IMPF eu fazia o menino dormir/eu adormeci o menino

7.5.2.3 Reflexivização/Reciprocidade

Reflexivização, embora não seja exatamente uma operação de mudança de valência, é feita na língua pelo uso do pronome reflexivo [Ѐђ]. O índice de reflexivização é o mesmo para todas as pessoas do discurso.

231

660. [ta Ѐђ tϯ]

ta Ѐђ tϯ 1SUJ REFL cortar eu me cortei

661. [otђ Ѐђ tϯ]

otђ Ѐђ tϯ 3SUJ REFL cortar ele se cortou

[ђЀowْϯ otђ Ѐђ tϯցe] .662

ђЀow-jϯ otђ Ѐђ tϯ-ge homem-PL 3SUJ REFL cortar-VER os homens se cortaram

A reciprocidade não difere da reflexivização. Ela é efetuada da mesma forma, o que quer dizer que a língua não faz distinção entre elas e que podemos juntá-las em um só lugar.

Esse tipo de igualdade entre marcação de reciprocidade e de reflexivização pode criar ambiguidade, mas é bastante comum. A desambiguação pode ser fazer, muitas vezes, pela semântica do verbo.

663. [otђ Ѐђ oցϯ]

otђ Ѐђ o-ցe 3SUJ REFL abraçar-VER eles se abraçaram

.iցe] brigar é expresso sempre reciprocamenteשUm verbo como [ցe 232

[iցeשotђ Ѐђ ցe] .664

i-ցeשotђ Ѐђ ցe 3SUJ REFL brigar-VER eles brigaram

Comparando as duas sentenças a seguir, (665) e (666), temos a idéia exata de reflexivização, em que o sujeito e o objeto são um único referente do evento narrado/descrito.

665. [ta Ѐђ Ѐђj]

ta Ѐђ Ѐђje-ցe 1SUJ REFL vestir-VER eu me vesti

666. [ta ЀђЀa Ѐђj]

ta Ѐђ-Ѐa Ѐђje-ցe 1SUJ 1POS-filho vestir-VER eu vesti meu filho

7.6 O sintagma adposicional

O sintagma adposicional é constituído por um nome e uma posposição. A ordem dependente-núcleo continua a ser obedecida se considerarmos que o núcleo do sintagma é representado pela posposição.

667. [ЀђЀow he]

Ѐђ-Ѐow he 1POS-pai DAT para meu pai 233

668. [haցatϯ te]

haցatϯ te caminho LOC no caminho

A seguir, apresentamos os principais tipos de sintagmas adposicionais encontrados, marcados de acordo com o papel semântico que exercem na sentença.

7.6.1 Papéis semânticos

Os argumentos exigidos pela estrutura sintática, os que detêm funções gramaticais, já estão descritos em relação com a valência dos verbos. Os demais participantes da sentença, os não-termos, por assim dizer, serão descritos a seguir. Optamos aqui por partir da forma para a função, quer dizer, primeiro damos o item lexical e exemplificamos os seus valores semânticos, do nosso ponto de vista, porque deve ser evidente que, na língua, cada um desses itens tem apenas um valor. Dito de outro modo, seguiremos uma via semasiológica, definiremos as funções das formas linguísticas apresentadas.

1. [he] A posposição [he] pode marcar o que seriam os seguintes papéis semânticos:

a) Beneficiário

669. [Ѐђhtee wa he nana ]

Ѐђ-ђhten wa he nanaցe 3SUJ 1OBJ BEN cozinhar minha mãe cozinhou para mim

234

b) Recipiente

670. [wa he ђjteցi na Ѐђhtee]

ø wa he ђjteցi nanaցe Ѐђ- ђhten 3SUJ 1OBJ REC comida fazer 1POS-mãe minha mãe cozinhou para mim

c) Locativo

Locativo abrange uma gama de locações. A língua não distingue dimensões como em cima, dentro, do lado, etc.

671. [koj otђ wiցe hђ⍧ he]

koj otђ wi-ցe hђn he José 3SUJ subir-VER árvore LOC José subiu na árvore

De acordo com a teoria de casos, que postula que Locativo é um termo e não um não- termo, podemos dizer que esses participantes que, semanticamente, são diferentes, comportam-se, morfossintaticamente do mesmo modo e podem ser considerados termos e, talvez, até que semanticamente ou culturalmente eles são um único. Além disso, tomando por princípio a noção de prototipicalidade, ou de neutralização de papéis semânticos, diríamos que todos esses papéis, Recipiente, Beneficiário, Locativo, são neutralizados pela função sintática Objeto Indireto.

d) Comitativo

Outro complemento que vem indicado pela posposição [he] é o comitativo.

235

[ie heܦe ko kaցanitЀo he okשk] .672

in heܦe kaw kaցanin.ЀoБe he okשցa AUX.FUT ir cidade LOC Joana COM (eu) vou para a cidade com Joana

2. [ka]

A posposição [ka] ou [a] indica direção para um objetivo, trajeto, etc.

673. [koj otђ ko te ЀoБe ka]

koj otђ kaw te ЀoБe ka José 3SUJ ir POS.REFL casa DIR.OBV José foi para casa dele

3. [wina]

A posposição [wina] indica direção a partir de uma fonte.

674. [okܦie ЀoБe wina na hђ koj]

okܦin ЀoБe wina na hђ koj Joana casa DIR.FON 3COMPL chegar José José está chegando da casa de Joana

4. [ka]

A posposição [ka] é usada para marcar uma série diferente semanticamente de papéis.

a) instrumento, propriamente dito

236

[a kajשkinhi ka otђ ђfo kanaw .675

a kajשցinhi ka otђ ђfo kanaw faca INSTR 3SUJ menino tatu matar o menino matou o tatu com a faca

b) trajeto

676. [haցatϯ ka ђfܦa] ]

haցatϯ ka ђfܦa caminho TRAJ andar ele está andando pelo caminho

c) conteúdo

677. [hawϯ Ѐowihna haniցetϯ ka]

hawϯ Ѐowih-na haniցetϯ ka canoa cheio-IMPF areia INSTR a canoa está cheia de areia

5. [hite]

A posposição [hite] compõe um sintagma posposicional com valor de associativo.

[e okeЀak ho kotЀa hiteשk] .678

e okeЀake ho-ցe kotЀa hiteשցa AUX.FUT carne comer arroz ASS (eu) vou comer carne com arroz

237

6 [a]

Um sintagma posposicional negativo vem marcado por uma posposição que significa sem, negação. Na verdade, esse é um tipo de sintagma que também cria termos novos na língua.

679. [aЀe] cortar 680. [aЀe a] cego, sem corte

ϯj a] cego, sem olhosשϯj] olhos 682. [aցשaց] .681

683. [aЀow] pai 684. [aЀow a] órfão, sem pai

Ao contrário, para indicar que a propriedade expressa pela raiz, nominal ou verbal, é positiva, usa-se o morfema de imperfectivo [ta].

685. a Ѐehta kinhi]

a Ѐe-ta ցinhi 3SUJ cortar-IMPF faca a faca está afiada

7.7 Tipos de sentenças

7.7.1 Declarativas

As sentenças declarativas podem ser afirmativas e negativas.

238

7.7.1.1 Afirmativa

A sentença declarativa afirmativa em Ofayé opõe-se à sentença declarativa negativa pela ausência versus presença de uma partícula negativa. Ou seja, enquanto a sentença negativa é marcada, a afirmativa é não marcada. Os exemplos (686) e (687) são de sentenças afirmativas.

[aj hђhteשeցשta k] .686

aj hђteשeցשta ց 1SUJ macaco atirar eu atirei no macaco

687. [ta oktЀi hђhte]

ta oketЀi hђte 1SUJ onça atirar eu atirei na onça

7.7.1.2 Negativa

Como dissemos acima, a negação em Ofayé é a forma marcada de sentença declarativa. Ela é expressa por uma partícula [hi], que ocupa sempre a primeira posição na sentença. Neste ponto, estaremos tratando apenas da negativa sentencial, considerando sentenças básicas no que seria o modo declarativo. Os exemplos (688) e (689) são sentenças negativas correspondentes às sentenças afirmativas apresentadas na secção precedente.

239

[aj hђhteשeցשhi ta k] .688

aj hђteשeցשhi ta ց NEG 1SUJ macaco atirar eu não atirei no macaco

689. [hi ta oktЀi hђhte]

hi ta oketЀi hђte NEG 1SUJ onça atirar eu não atirei na onça

É possível que alguns verbos em Ofayé, como [Ѐeti] gostar, por exemplo, não possam

ser negados. Em vez disso, o falante utiliza um verbo com significado oposto, [aցaniْe] ter raiva, ficar bravo.

[a he ցaniْe ite ђfo] .690

wa he ø ցanije hite ђfo 1OBJ DAT 3OBJ não.gostar aquele menino eu não gosto daquele menino

[a he ђ ցaniْe] .691

wa he ђ ցanije 1OBJ DAT 2OBJ não.gostar eu não gosto de você

240

[ђЀow he ђfo ցaniْe] .692

ђЀow he ђfo ցanije SUJ DAT menino não.gostar o homem não gosta do menino

7.7.2 Interrogativa

7.7.2.1 Questões Sim-Não

Nenhuma marcação morfológica ou sintática indicativa de interrogativa polar (yes-no

Question) foi encontrada. Um padrão entoacional diferente, porém, parece marcar esse tipo de questão. Podemos comparar o par abaixo, em que temos uma pergunta e uma resposta a essa pergunta.

693. [te fܦaj]

te fa-ցe 1SUJ escutar-VER você escuta?

694. [ta fܦaj]

ta fa-ցe 1SUJ escutar-VER eu escuto

No primeiro exemplo, há um tom mais alto sobre o pronome-sujeito e uma curva ascendente caindo bruscamente na última sílaba. No segundo caso, o tom é também um pouco mais alto na primeira sílaba, mas a descida é leve em comparação com o enunciado-questão. 241

O tom é mais alto no enunciado-questão, em relação com o enunciado-resposta. de modo geral, a diferença entre pergunta e resposta, do ponto de vista entoacional, é semelhante ao que ocorre em Português.

7.7.2.2 Questões de informação

As questões de informação têm a característica de assinalar o desejo do falante de obter informação do destinatário. A questão exige que um determinado constituinte da sentença, presumivelmente ignorado pelo falante, seja identificado. Para isso, quase todas as línguas do mundo usam as chamadas palavras interrogativas (Inglês WH question, Português

Questão QU). As seguintes palavras interrogativas, referentes aos diversos participantes da sentença (argumentos e complementos) foram até agora identificadas:

1. hawe onde

[eשhaweh te ց] .695

eשhawe te ցa onde 2SUJ ir onde você vai?

ita quandoשhaցi .2

[e kawשita te ցשhaցi] .696

e kawשita te ցaשhaցi quando 2SUJ FUT ir quando você vai?

242

3. henata quem

697. [henata ekܦitajϯ]

henata eke witaje quem 2OBJ.PL cuidar quem é o cacique? (Lit.: quem cuida de vocês?)52

4. nakata o que

698. [nakata itej]

nakata hiten o.que isso o que é isso?

699. [nakata e he hϯ]

nakata e he hϯ o.que 2OBJ DAT querer o que você quer?

5. hawehta para onde

[e koשhaweh te ց] .700

e kawשhawe te ցa para.onde 2SUJ AUX.FUT ir para onde você irá?

52 Pode-se demonstrar que a palavra usada para cacique é uma construção verbal (uma descrição) e não um nome, quando observamos que a forma afirmativa é [akܦitajϯ], enquanto a forma interrogativa é [ekܦitajϯ]. A primeira pode ser glosada em termos dos seguintes elementos: [aka witajϯ] 1PL.OBJ-cuidar. A segunda, com os elementos [eke witajϯ] 2PL.OBJ-cuidar. Isso nos dá um pronome-objeto na segunda posição da estrutura, com o sujeito, a palavra interrogativa, na primeira posição, demonstrando uma ordem SOV. 243

As palavras interrogativas são as mesmas que as palavras usadas para afirmar. Assim, parece que o valor interrogativo de uma sentença somente é expresso pela entonação. O enunciado a seguir, por exemplo, não é uma questão. A palavra [haցita] como está sendo usada como o título de uma descrição, em um texto narrativo.

701. [haցita ta fܦa wiha]

haցita ta ђfa wiha como 1SUJ viver antigamente como nós vivíamos antigamente

7.7.3 Comparativas

A comparação entre dois termos pode ser feita colocando-se no adjetivo um marcador.

Se a comparação for para maior, coloca-se no adjetivo um marcador de plural. O segundo termo da comparação recebe um marcador de comparação.

[ej weשo atajϯ tikakשkaЀo] .702

ej weשo a taha-jϯ tikakשkaЀo cachorro 3SUJ grande-PL gato COMP o cachorro é maior do que o gato

703. [Ѐђhtђ hђhђdЋϯ teke okܦie we]

in weܦaPL-jϯ teke okשЀђhtђ hђhђ Margarida bonito-PL mais Joana COMP Margarida é mais bonita do que Joana

244

.e] com valor de igualשPara expressar a igualdade, usa-se uma partícula [teցi

[ie weܦe okשa Ѐђhtђ teցiשhђhђ] .704

in weܦe okשa Ѐђhtђ teցiשhђhђ bonito Margarida igual Joana COMP Margarida é tão bonita quanto Joana

7.7.4 Imperativas

Classificamos o imperativo em Ofayé como um tipo de sentença pelo fato de não apresentar sujeito e ser marcado por partículas diferentes e não por algum tipo de flexão verbal.

Há três tipos diferentes, que podem ser considerados imperativo, propriamente falando, com valor afirmativo, e proibitivo, com valor negativo do evento, além de um exortativo. Todos se manifestam por partículas pré-sentenciais.

Para o imperativo, propriamente dito, utiliza-se a partícula [he].

[iש he] .705

iש he IMP comer coma!

Para o proibitivo, a partícula utilizada é [ЀeЀa]. Dizemos que esta é uma partícula negativa do Imperativo, desde que não é a partícula normalmente utilizada para negação em outros modos verbais. 245

[i henihaցeשЀeЀa hiЀeց] .706

i heniha-ցeשЀeЀa hiЀeց PROIB porta abrir-VER não abra a porta

Enquanto nas demais formas o morfema verbalizador é opcional – o falante pode omitir no verbo esse morfema sem prejuízo para a compreensão do enunciado – nas sentenças imperativas o morfema verbalizador nunca é utilizado, o que indica que a língua distingue o imperativo de outros modos verbais. Outra particularidade das formas verbais em sentenças imperativas, é que não há sujeito com esses verbos.

O exortativo é usado somente quando o falante inclui-se na ação que está sendo sugerida. A partícula que manifesta esse ato de fala é [hej].

707. [hej kaw]

hej kaw IMP ir vamos!

7.8 Coordenação

Nesta secção, traçaremos breves considerações sobre coordenação. Não nos ocuparemos das sentenças ditas subordinadas, pois não nos foi possível enfrentar essa questão, dada a sua complexidade e a dificuldade em coletar dados precisos para esse fim.

246

7.8.1 Coordenação de sentenças

Não há conjunção, por assim dizer, para ligar sentenças coordenadas. As sentenças são apenas justapostas. Outra observação a ser feita é que o sujeito dessas sentenças coordenadas não pode ser omitido. Em (711), abaixo, o sujeito é repetido em todas as sentenças que compõem a sentença complexa.

708. [ta hђ ta ki ta Ѐђ]

ta hђ ta ցi ta Ѐђ 1SUJ chegar 1SUJ ver 1SUJ entrar eu cheguei, vi e entrei

709. [ЀђЀa a ko tiЀeneցe otђ he no aցajotђ]

Ѐђ-Ѐa a kaw tiЀene-ցe otђ ø he naw aցajotђ 1POS-filho 3SUJ ir estudar-VER 3SUJ 3OBJ DAT dar livro meu filho foi estudar e alguém deu um livro a ele

Na sentença complexa a seguir, temos uma sentença principal e quatro sentenças como complementos dessa sentença principal, todas podendo ser consideradas finalidade. Não há nenhum conector entre elas. É um tempo narrativo, neutro, sem qualquer marcação temporal ou aspectual.

[a Ѐihiשoցi Ѐihi kanawܦta ite tawϯ a aka jojϯ he f] .710

a Ѐihiשta i-ta tawϯ a aka jo-jϯ he foցi Ѐihi kanaw 1SUJ ir-IMPF mato DIR 1POS filho-PL DAT mel caçar tatu caçar [i hi aցa jawשkђtђj Ѐeցe//ok]

i hi aka jawשkђtђj Ѐeցe ok peixe pescar fome NEG nós passar nós íamos no mato caçar mel, caçar tatu, pescar peixe para nossos filhos para nós não passar fome 247

Já na sentença seguinte, as marcas temporais e aspectuais aparecem. O tempo ainda é narrativo, mas o falante está preocupado em assinalar a continuidade dos eventos e o tempo distante.

[ђ ta tohtaשite kotЀa haiet ђhi hђש wiha hi ta] .711

ђ ta tohtaשite kotЀa hђidi ђhi hђש wiha hi ta antigamente NEG 1SUJ comer arroz feijão bicho assar 1SUJ comer- IMPF antigamente, nós não comíamos arroz nem feijão, assávamos bicho e comíamos

Uma tradução mais literal para a sentença acima dar-nos-ia o seguinte: Antigamente, nós não comíamos arroz, feijão. Assando bicho, nós comíamos.

7.8.2 Coordenação de termos

Algumas vezes, parece que a coordenação de termos não é possível. Na sentença seguinte, por exemplo, não conseguimos que os entrevistados nos dessem o objeto composto coordenadamente. Em vez disso, tivemos, sempre, as duas orações justapostas.

712. [otђ fܦiketaϯ akae otђ fitajϯ kaj]

otђ fiketaϯ kaj otђ fitajϯ-jϯ kaj 3SUJ jacarés matar 3SUJ anta-PL matar ele matou jacarés e antas (Lit.: ele matou jacarés, ele matou antas)

Entretanto, em fala espontânea, em textos narrativos, tivemos exemplos de coordenação de termos, como ilustrado em (713), a seguir.

248

[iketa ђheܦϯ he hahtϯ fשta he no k] .713

ϯ he hahtϯ⍧ fiketa ђheשta ø he naw k 1SUJ 3OBJ DAT dar Kré DAT flor marolo goivira eu dei flores, marolo e goivira para Kré (Tia Cida)

249

CONCLUSÃO

No capítulo sobre Capítulo 1, fizemos uma análise em que apresentamos os sons da fala, o inventário de fonemas da língua e os principais processos de realização dos fonemas. A estrutura da sílaba, primeiro foneticamente e em seguida do ponto de vista fonológico, foi descrita. Foram apresentados casos de alternação de morfemas que ainda precisam de uma análise mais profunda a fim de se determinar a natureza dessas alternações. Assumimos que o tom não tem um papel na fonologia da língua e que, em relação ao acento, Ofayé pode ser definida como uma língua de pés livres que não se presta a uma análise métrica.

Muitos dos fatos descritos, e para os quais assumimos algumas posições mais ousadas, seguramente merecem uma análise mais profunda. Entre esses casos, incluímos as questões

tЀ] e] ,[ש] referentes à inexistência de vogais longas subjacentes e à inclusão dos segmentos

[dЋ] no inventário de fonemas, considerando-se, para isso, um nível menos profundo de representação, ainda que, na descrição dos processos de realização de fonemas, tenhamos proposto regras que os derivam de representações lexicais. Entretanto, como uma análise preliminar, assumimos o princípio gerativista que sustenta que diferentes hipóteses são válidas, embora não definitivas, e que precisam ser testadas mais amplamente, o que não nos foi permitido por diversos tipos de escassez.

No Capítulo 2, descrevemos o nome com suas propriedades morfológicas e sintáticas e a constituição e comportamento do sintagma nominal. Vimos que o nome divide-se em três subclasses semânticas, de acordo com a categoria posse: inalienáveis, alienáveis e não possuíveis. A distinção morfológica no sistema de posse é muito sutil, marcada mais precisamente na primeira pessoa do singular. Nas demais pessoas, o que caracteriza inalienabilidade versus alienabilidade é muito mais a obrigatoriedade versus a não 250

obrigatoriedade de uma marca de possuidor. Uma categoria definida mais cultural do que semanticamente é a que chamamos de posse enfática. Além dos morfemas propriamente ditos que acompanham o nome – número e grau – descrevemos os constituintes do sintagma nominal – determinantes e modificadores – e os processos de formação de palavras, tanto através do uso de mecanismos morfológicos– basicamente composição e derivação – quanto sintáticos. Os mecanismos sintáticos são os mais utilizados, ou seja, novos nomes na língua são criados a partir de relações genitivas, posse e de relações internas ao sintagma verbal, como no caso de formações com verbo – objeto direto. Os sufixos derivacionais são poucos, mas são usados intensamente na criação de novos nomes.

No Capítulo 3, tratamos dos verbos, que se distribuem em classes semânticas com estruturas sintáticas específicas para determinadas classes, mas a estrutura sintática exigida por alguns verbos parece depender da situação de uso, o que ocorre basicamente com fenômenos temporais e verbos de posição. A morfologia do verbo mostrou, como a do nome, pouca morfologia. Por isso, optamos por apresentar, como havíamos feito com o nome, o

Verbo e o Sintagma Verbal. À raiz verbal, agregam-se apenas os sufixos de aspecto e um marcador opcional de concordância em número com o sujeito. Todas as outras categorias, como pessoa, tempo, função dos participantes, são expressas por formas livres, tais como pronomes, advérbios e auxiliares.

As análises do nome e do verbo permitem-nos propor que Ofayé é uma língua que se enquadra, em uma tipologia morfológica escalar, em um ponto intermediário na escala. Não se trata de uma língua aglutinante, pois parte dos morfemas são difíceis de serem detectados na estrutura interna da palavra, apresentando muita alomorfia e, por isso, configurando-se mais como uma língua fusionante. Por outro lado, há muito poucos morfemas por palavra, a maior parte dos significados sendo expressos lexicalmente. Desse ponto de vista, portanto, ela se aproxima também do extremo isolante da escala. 251

Do ponto de vista sintático, de acordo com a descrição efetuada no Capítulo 7, podemos considerar a língua como apresentando características de línguas com estrutura ativa/estativa. De acordo com o modo como os pronomes são usados, porém, dizemos que a língua apresenta uma intransitividade cindida, dado que os verbos intransitivos são divididos em duas classes, uma que se comporta do mesmo modo que os verbos transitivos primários e outra que recebe outro tipo de sujeito. Ao lado dessa estrutura predominante, há algumas construções marginais, como, por exemplo, a construção com verbos de emoção e de cognição, que apresentam um sujeito marcado como Dativo e, portanto, com papel semântico

Recipiente, na estrutura sintática.

As construções complexas mostraram-se extremamente difíceis quando tentamos fazer a sua descrição. Não se revelaram com clareza nem em textos espontâneos nem em dados elicitados. Não as tratamos, portanto, verdadeiramente, neste trabalho. Apenas alguns casos mais simples, como coordenação, foram sucintamente apresentados.

Conforme dissemos no início deste trabalho, esta é uma descrição ainda preliminar de

Ofayé. Consideramos que objetivos básicos do nosso projeto, que eram fazer esta descrição e propor um sistema ortográfico para a língua, para, a partir daí, elaborar materiais didáticos de apoio ao ensino de Ofayé na comunidade de Brasilândia, foram alcançados. Uma cartilha está sendo usada experimentalmente na aldeia. Junto com a nossa colaboradora e professora de

Ofayé, Marilda de Souza, esperamos poder dar continuidade ao trabalho, corrigindo a cartilha e elaborando novos materiais. Também um dicionário Ofayé-Português/Português-Ofayé encontra-se em fase de conclusão em uma versão em transcrição fonético-fonológica. Sua transposição para uma versão em ortografia Ofayé dependerá das correções feitas no sistema ortográfico a ser proposto e da sua aceitação pela comunidade. 252

Mais, porém, do que simplesmente cumprir os objetivos acadêmicos deste empreendimento, ficaremos felizes se tivermos cumprido a nossa missão de responder aos anseios da Nação Ofayé, O Povo do Mel. 253

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