UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO - FAHUD PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

ROGER BRADBURY

“O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”:

A literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2015

ROGER BRADBURY

“O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”:

A literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.

Dissertação apresentada à Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para a obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura.

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2015

FICHA CATALOGRÁFICA

Bradbury, Roger B727h “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero/ Roger Bradbury – São Bernardo do Campo, 2015.

165 fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós- Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo. Bibliografia.

Orientação de: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

1. . 2. Representações sociais. 3. Gênero (Religião)

CDD 291.21

A dissertação de mestrado sob o título “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero, elaborada por Roger Bradbury foi defendida e aprovada em 23 de fevereiro de 2015, perante banca examinadora composta por: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (Presidenta/UMESP), Profa. Dra. Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos (UMESP), Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (Universidade Presbiteriana Mackenzie).

______Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza Orientadora e Presidenta da Banca Examinadora

______Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

Dedico este trabalho à causa espírita da Emancipação Feminina, iniciada com e que urge ser encampada por todos e todas nós, espíritas e simpatizantes. Militantes ou simples consumidores da literatura espírita, das telenovelas e dos filmes de temáticas ligadas à cosmovisão espírita.

AGRADECIMENTOS

À e à Espiritualidade Maior, pela criação da vida em nosso orbe terrestre e pela cooperação em nossas missões particulares e, igualmente, nas coletivas... À minha orientadora, Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, pela orientação acadêmica e militante, e pela valiosa e produtiva parceria no Grupo de Pesquisa Mandrágora-NETMAL, e, também, em alguns congressos e eventos acadêmicos. À minha esposa, Rosa, e meus filhos, Erick e Bryan, pelo apoio e incentivo. À Seara Espírita , por ter suprido minha ausência no trabalho religioso junto à comunidade de Barcarena-PA, durante a realização desta pesquisa. Às editoras e sites espíritas, pela colaboração à pesquisa. À agência de fomento à pesquisa CAPES, pela bolsa de estudos que viabilizou financeiramente esta vultuosa empreitada. À Universidade Metodista de São Paulo, pela valiosa oportunidade de conviver em constante diálogo interreligioso, anteriormente, no lato sensu e agora, no stricto sensu.

Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; já não é uma concessão da força à fraqueza, mas um direito fundado nas próprias leis da Natureza. Dando a conhecer essas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade. Allan Kardec, in Revista Espírita, 1866.

O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado [...] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas [...] Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. Allan Kardec, in A Gênese, 1868.

BRADBURY, Roger. “O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero. 2015. 165 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) — Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.

“O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar”: a literatura doutrinária espírita contemporânea em perspectiva de gênero.

RESUMO Os resultados da pesquisa bibliográfica corroboram o que na prática religiosa já havia notado, a existência de certo sincretismo intencional de apreensão e revisão de conteúdos religiosos, ou seja, de cosmovisões de matriz judaico-cristã impregnadas de valores e modelos de comportamento que marcaram as novas representações de gênero do Espiritismo, ainda na França, e posteriormente, no Brasil. Constatou-se que tanto na literatura espírita quanto no ethos espírita sempre houve uma oscilação entre uma divisão sexual do trabalho mais tradicional e androcêntrica com a supervalorização das mulheres como mães, e dos homens como provedores – e como consequência disto ocorre a limitação do desenvolvimento das habilidades e competências de ambos os sexos nas várias instituições sociais (família, mercado de trabalho, etc.), inclusive nas instituições espíritas, de um lado, e; por outro lado, uma pretensa postura de defesa da progressiva liberação (emancipação) dos direitos da mulher. A presente pesquisa objetivou analisar as representações de gênero nas produções lítero-doutrinárias do Espiritismo brasileiro contemporâneo, a partir de um levantamento do contexto histórico que teria influenciado a elaboração das representações de gênero espíritas, desde uma fase anterior à institucionalização do Espiritismo, na França e no Brasil, aos dias de hoje e como tais representações de gênero estruturam a organização interna do Espiritismo, no que tange a divisão sexual do trabalho. Além de pesquisa bibliográfica foi realizada análise da literatura doutrinária espírita.

Conceitos-chave: Espiritismo. Literatura doutrinária. Representações de gênero.

BRADBURY, Roger. "The man builds the world, the woman takes care of the house": the contemporary ’s doctrinal literature on gender perspective. 2015. 165 p. Dissertation (Master of Science in Religion) —Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.

"The man builds the world, the woman takes care of the house": the contemporary Spiritism’s doctrinal literature on gender perspective.

ABSTRACT

The results of the literature search corroborate what in religious practice I had already noted, the existence of certain intentional syncretism of apprehension and religious content review, in other words, the matrix Judeo-Christian worldviews impregnated with values and role models that marked the new gender representations, still in France, and later in . It was found that both in literature and in the spiritist ethos has always been an oscillation between a sexual division of more traditional androcentric with the overvaluation of women as mothers, and men work as providers - and as a consequence the limitation on skills development occurs and competencies of both sexes in the various social institutions (family, work, etc.), including the spiritist institutions on the one hand, and; On the other hand, an alleged defense posture of the progressive liberation (emancipation) of women's rights. This research aimed to analyze the representations of gender in literary-doctrinal productions of contemporary Brazilian Spiritism, from a survey of the historical context that would have influenced the development of the gender representations from a stage prior to the institutionalization of Spiritism, in France and in Brazil, to the present day and how such representations of gender structure the internal organization of Spiritualism, regarding the sexual division of labor. In addition to literature search was performed analysis of the Spiritism’s doctrinal literature.

Key concepts: Spiritism. Doctrinal Literature. Representations of gender.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 12 1. SOBRE O TÍTULO ...... 12 2. POR QUE ESTUDAR AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DO ESPIRITISMO? ...... 13 3. ESPIRITISMO OU “ESPIRITISMOS”? POR QUE KARDECISMO, NÃO? ...... 18 4. PSICOGRAFIA: AUTORIA DO/A MÉDIUM OU DO/A AUTOR/A ESPIRITUAL? ...... 24 5. PROJEÇÃO DA DISSERTAÇÃO ...... 26 CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY” DO ESPIRITISMO? ...... 28 1.1. UMA INTRODUÇÃO AOS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO ...... 32 1.2. AS MENINAS-MÉDIUNS DA FAMÍLIA FOX ...... 36 1.3. UM DESENVOLVIMENTO ANORMAL? MAGIA CIÊNCIA RELIGIÃO...... 41 1.4. KARDEC, UM HOMEM DE SEU TEMPO? ...... 45 1.5. AMÉLIE GABRIELLE BOUDET, A MME. KARDEC ...... 47 1.6. AS MÉDIUNS E O CODIFICADOR ...... 49 1.7. O TRANSLADO PARA O BRASIL: SINCRETISMO E/OU TRAMPOLINAGEM? ...... 52 1.8. ANÁLIA FRANCO, AMÁLIA RODRIGUES E AMÁLIA DOMINGO Y SOLER 61 1.9. CHICO XAVIER, A MATRIFOCALIDADE E REFERENCIAIS MASCULINOS 64 CAPÍTULO 2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO ESPIRITISMO ...... 68 2.1. “SER ESPÍRITA É UMA FORMA DE SER INTELECTUAL” ...... 68 2.2. O LEITORADO ESPÍRITA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO ...... 76 2.3. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ETHOS E DE LOCI SEXUALMENTE DISTINTOS ...... 82 2.4. A OCUPAÇÃO DE CARGOS ENCONTRADA NA BIBLIOGRAFIA ACADÊMICA ...... 91 2.5. A ASSIMETRIA SEXUAL NAS REUNIÕES MEDIÚNICAS ...... 95 2.5.1. Dirigente, Doutrinador ou Médium Esclarecedor ...... 96 2.5.2. Médium de Incorporação ...... 103 2. 6. UMA DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA DA DIVISÃO DO TRABALHO ESPÍRITA ...... 105 CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO ...... 113 3.1. SOBRE A APLICAÇÃO DO MÉTODO: ANÁLISE DE CONTEÚDO ...... 113 3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO ...... 116 3.2.1. O “SEXO DOS ANJOS”: DA TEORIA METAFÍSICA ÀS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO 117 3.2.2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NA PERSPECTIVA ESPÍRITA, UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA ...... 121 3.2.2.1. A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas ...... 122 3.2.2.2. A mulher-mãe e o pai-provedor ...... 130 3.2.2.3. Feminismo e a inversão de papéis sexuais ...... 133 3.2.2.4. Direitos iguais, sim, funções (papéis sexuais), não...... 136 3.2.2.5. Um duplo modelo mariano: Kardec ou Roustaing ...... 139

3.2.2.6. A maternidade de Eva e as dores de parto ...... 141 CONCLUSÃO ...... 146 REFERÊNCIAS ...... 151 ANEXO A – RELAÇÃO DE CURSOS (RINO CURTI) ...... 164 ANEXO B - RELAÇÃO DE CURSOS (FEESP) ...... 165

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INTRODUÇÃO

1. SOBRE O TÍTULO

“O homem levanta o mundo, a mulher sustenta o lar” é uma citação dos versos da autoria espiritual de Antonieta Saldanha, psicografados1por Francisco Cândido Xavier (2012 [1973], p. 177) 2. A escolha desta citação para intitular a presente pesquisa de mestrado deve-se ao fato dela bem representar as várias dimensões em que o objeto de pesquisa é desdobrado. Nesta máxima, pode-se reconhecer claramente que em grande parte da literatura espírita há: Primeiro, um dualismo das representações de gênero – que oscilam entre concepções mais conservadoras e outras mais progressistas – contido nas obras espíritas mediúnicas3 ou não4, impressas ou em versão digital disponíveis na Internet, que legitimam ou questionam as propostas de divisão sexual do trabalho, vigentes nas religiões e na sociedade mais ampla. Segundo, uma dupla repercussão das representações de gênero, a qual devido à função de exemplaridade (STOLL, 2003, p. 102) resulta, por vezes, em uma formação diferenciada entre os sexos, e tende a resultar em ethos e loci diferenciados no movimento espírita5 (SILVA, 2006, p. 160-161).

1 O termo “psicografia” etimologicamente deriva do grego Psique = Alma e graphe = escrita, caracteriza-se pela escrita mediúnica, ou seja, aquela escrita produzida pela mão de um/a “médium” a partir da mensagem de um emissor (espírito comunicante) e tem como receptor final desta o/a consumidor/a da literatura espírita. 2 Para facilitar o acesso ao ano da primeira edição de cada texto e assim compreender a evolução do pensamento dos autores e, bem como, melhor situar cada texto ao panorama histórico em que foi escrito, optei em usar uma dupla referência: ano da publicação usada nesta pesquisa seguido do ano da primeira edição entre colchetes como elemento complementar (NBR 6023:2002), de modo a permitir melhor caracterização dos documentos. Justifico ainda esta opção pelo fato da edição usada da “Revista Espírita” ser toda de 2004, e pelas muitas citações de diferentes anos desta Revista que faço, obrigaria o/a leitor/a remeter-se ao fim da dissertação (Referências Bibliográficas) muitas vezes para buscar o espaço temporal em que fora escrito cada artigo, uma vez que não uso notas de rodapé para este fim. 3 Mediunidade ou medianimidade é o estado ou qualidade da pessoa considerada médium, ou seja, aquela que apresenta a faculdade de intermediar mensagens entre desencarnados e encarnados. 4 Na compreensão espírita sempre há a intervenção espiritual na produção literária, quer na forma da psicografia, onde a autoria é espiritual e o médium pouco influencia no texto final; quer no texto inspirado, onde é o espírito quem pouco influencia no texto, e, por vezes, de forma anônima e desapercebida do/a autor/a encarnado/a, daí não registrar a autoria espiritual. 5 Considera-se aqui como movimento espírita, o conjunto de associações religiosas, mais ou menos institucionalizada. Este conjunto apresenta-se, no Brasil, bastante heterogêneo, embora todas as associações que o integram dizem seguir, à sua maneira, os princípios propalados por Kardec. Para Cavalcanti (2008, p. 19) “O Movimento Espírita abrange desde os lares e centros até institutos culturais, laboratórios de pesquisa, associações profissionais, federações nacional e regionais, hospitais, asilos, orfanatos, imprensa e editoras. Essas atuações podem a princípio privilegiar um dos aspectos acima mencionados ou combiná-los de variadas maneiras.”

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Por último, o caráter transnacional (LEWGOY, 2008; STOLL, 2004) destas representações de gênero, que surgiram na França, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 1857, por Allan Kardec (pseudônimo do pedagogo H. L. D. Rivail6, 1804-1869), e pouco tempo depois foram incorporadas na literatura mediúnica do médium brasileiro Francisco Candido Xavier7 (mais conhecido como Chico Xavier, 1910-2002); e ambas produções, de Kardec e de Chico, têm sido traduzidas para várias línguas, daí seu alcance mundial, presente desde o surgimento do Espiritismo até os dias atuais. Esclareço, ainda, que embora estas tradicionais representações de gênero apresentem-se como consenso entre os/as autores/as espíritas não obstante, mais recentemente, têm aparecido perspectivas mais críticas e mais igualitárias, na literatura espírita impressa (FRANCO, 1994; SOUZA, 2007; INCONTRI, 2012; BASTOS, 2012) e em artigos da Internet (RÉGIS, 2001; ZELESCO, 2013; RODRIGUES, 2011).

2. POR QUE ESTUDAR AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO DO ESPIRITISMO?

Primeiramente, porque em relação a este objeto de pesquisa, eu sou um “nativo” da religião, ou seja, sou um pesquisador espírita8. Desde a licenciatura em Pedagogia (1990-1995) na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) venho, progressivamente, me dedicando ao estudo acadêmico do Espiritismo. Foi também na FEUSP onde tive o primeiro contato com a categoria de gênero, em uma das disciplinas eletivas do curso. Em 2008, objetivando a retomada da minha carreira acadêmica, e consolidar a carreia de magistério no ensino superior, ingressei na Especialização em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), cuja pesquisa bibliográfica do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) versou sobre a cosmologia espírita: “QUEDA DO PARAÍSO OU EXÍLIO DE CAPELLA? Um Ensaio Exegético na Perspectiva Espírita”. Daí em diante, minhas pesquisas acadêmicas versaram sempre sobre o Espiritismo.

6 Doravante, nesta pesquisa, denominarei o pedagogo H. L. D. Rivail apenas pelo seu pseudônimo Allan Kardec – exceto nas referências bibliográficas. 7 Informo ao/ à leitor/a que a frase é da psicografia de Chico Xavier, mas é de idêntico sentido àquela que figura na obra fundante do Espiritismo: “que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão” (KARDEC, 1995, [1857], p. 381), a qual centrarei o foco de minha análise de gênero. 8 Escrevo esta dissertação em 1ª pessoa, demarcando bem minhas falas enquanto pesquisador, diferenciando por vezes de outras falas da academia, e bem como apresentando meu posicionamento enquanto “nativo” espírita sem necessariamente partilhar das mesmas crenças e valores presente no Espiritismo.

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Como “nativo” espírita, tenho alguns privilégios em relação a outros pesquisadores “out siders”, mas, como pesquisador, estou ciente de que devo manter o devido distanciamento exigido pelo método científico. Neste sentido, compartilho do pensamento de Leonildo S. Campos (1997) que afirma: Em se tratando de análise de fenômenos religiosos, esse procedimento [de comentar como se deu a reconstrução do objeto, referindo-se a valores, objetivos, paradigmas, metodologia e dificuldades] ideal para todas as ciências, se torna obrigatório especialmente quando o pesquisador reconhece manter com seu objeto, duplos laços de amor ou de ódio. (CAMPOS, 1997, p. 29).

Entretanto, certamente, a justificativa principal desta pesquisa não se restringe a este aspecto, mas está relacionada à importância e à relevância social que o Espiritismo representa no “panorama religioso do Brasil”, como já destacava, em 1973, Cândido Procópio Ferreira de Camargo (p. 159), o Espiritismo, junto às “religiões mediúnicas no Brasil”, apresentava “acentuado ritmo de crescimento, notadamente nas zonas que apresentam urbanização mais intensa”. Conforme os dados do censo (IBGE, 2010), no Brasil, o Espiritismo é a terceira maior instituição religiosa declarada9. Entretanto o alcance da cosmovisão espírita – veiculada pela enorme produção editorial – “extrapola de longe suas fronteiras institucionais” (STOLL, 2004, p. 181): Algumas pesquisas de opinião pública corroboram essa conclusão, em especial quando se trata do tema da representação da vida pós-morte: uma delas, realizada em 1998 pelo Instituto Gallup, constatou que 45,9%, ou seja, quase metade dos católicos que dizem frequentar semanalmente serviços religiosos afirma “acreditar na reencarnação”. Embora se trate de tema proscrito pela tradição cristã, o mesmo constatou o Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) numa pesquisa realizada em 2000 em cinco metrópoles brasileiras: 55,7% dos entrevistados disseram “acreditar em vida após a morte”, sendo que 35,8% destes afirmaram crer na “reencarnação dos mortos”. (STOLL, 2004, p. 182)

O Espiritismo, assim, justifica sua importância acadêmica devido ao volume de adeptos e simpatizantes espíritas no Brasil e no mundo, dado que a bibliografia espírita brasileira é também transnacional (LEWGOY, 2008), pois conforme Sandra Jaqueline Stoll (2004, p. 181), o Brasil vem “sinalizando, de um lado, a posição por este assumida no contexto internacional como polo de irradiação da doutrina e, de outro, a importância conquistada pelo Espiritismo no cenário religioso nacional”. No mercado interno, os livros espíritas, há algum tempo, deixaram de ser vendidos apenas no círculo de adeptos/as, eles podem ser encontrados até em bancas de jornal,

9 O Espiritismo com 3.848.876 de adeptos declarados, segundo o Censo 2010, perde em número de adeptos apenas para a Igreja Católica Apostólica Romana (123.280.172) e para a Igreja Assembleia de Deus (12.314.410). Fonte: http://www.ibge.gov.br.

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hipermercados, farmácias e em catálogos da Avon e similares. Provavelmente, esta seja uma das causas da discrepância entre o número de adeptos/as espíritas declarados/as no censo IBGE 2000 – 2,2 milhões (apenas 1,3% da população brasileira) – e os 7 milhões de livros espíritas comercializados no Brasil apenas em 2002, sendo que somente o médium Chico Xavier teve, nos últimos anos, cerca de 25 milhões de livros vendidos (DALGALARRONDO, 2005, p. 183- 184). Mas, além da boa aceitação da literatura espírita, o Espiritismo deixou seu passado de clandestinidade, perseguição e rejeição, nos tempos de intolerância religiosa, e ganhou o gosto popular, passando a ser tema de superproduções de massa, tanto em novelas da rede Globo10, quanto no cinema nacional e internacional. Em relação ao tema “Espiritismo e gênero”, o Censo 2000 (IBGE, 2000) indicou ser espírita a maior porcentagem de mulheres de todas as categorias religiosas declaradas11, liderança e percentagem que se mantiveram com o novo Censo 2010 (IBGE, 2010), sendo a seguinte distribuição por sexo: Total de espíritas: 3.848.876 = 2,2% do total do universo da pesquisa: Homens 1.581.701 = 41% e Mulheres 2.267.176 = 59%. Em outras palavras, é bastante significativa a adesão feminina ao Espiritismo, como consumidoras e produtoras de bens e serviços religiosos, caritativos ou de assistência social (RODRIGUES, 2011, DAMAZIO, 1994), grandes consumidoras da literatura espírita (LEWGOY, 2000; STOLL, 2004) e, entretanto, pergunto o que faz com que estas mulheres desapareçam dos cargos mais elevados da administração e divulgação doutrinária dos centros espíritas? (LARA, 2001; ZELESCO, 2013); Quais fatores interferem na ascensão feminina de uma condição passiva de consumidora para uma participação mais ativa como trabalhadora e/ou como líder? (SOUSA, 2013; SILVA, 2006); Seriam as condições socioeconômicas ou a escolaridade? (CAVALCANTI, 2008; SILVA, 2006); Ou as fortes representações de gênero seriam uma herança sociocultural? (BRADBURY, 2013-b).

10 Um exemplo disto é a novela "Alto Astral", em exibição na Rede Globo de televisão, cuja temática central é a reencarnação e a mediunidade, que inicialmente estava prevista para 2011, mas a trama teve que entrar na fila porque outras novelas com temas espíritas, como "Escrito nas Estrelas" e "Amor à Vida", já estavam programadas pela emissora. Fonte: http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/11/03/publico-vai-se-identificar-com- alto-astral-e-tema-espirita-diz-diretor.htm. Acesso em: 05 jan. 2015. 11 A porcentagem de mulheres no universo da pesquisa do Censo IBGE, em 2000, foi de 50,7%; de mulheres evangélicas em geral: 56,2%; de mulheres na Igreja Assembleia de Deus: 54,8%; na Igreja Evangélica Metodista: 57,1%; na Igreja Católica Apostólica Romana: 50,4%. Assim, como confirma Maria das Dores Campos Machado (2005, p. 387-388) “os evangélicos encontram-se entre os grupos religiosos que apresentam as maiores taxas de fiéis do sexo feminino em suas fileiras. [...] e só perde para os espíritas, onde as mulheres representam 59,7% dos recenseados”.

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Estes são os questionamentos que motivaram esta pesquisa e mereceram – e ainda merecem mais pesquisas – portanto, um estudo mais detalhado a respeito das relações de gênero nos centros espíritas. Como pesquisa aplicada, esta pretendeu dar contribuição positiva para uma maior valorização e participação da mulher nos centros espíritas, colocando em prática as palavras de Kardec: Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado sobre as próprias leis da Natureza. Fazendo reconhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade. (KARDEC, 2004 [1866], p. 18)

Afinal o Espiritismo, em princípio, se coloca bastante aberto a corrigir-se a partir das contribuições acadêmicas, pois seu codificador (KARDEC, 2003 [1868], p. 40) prescreveu para as novas gerações que a Doutrina Espírita deveria sempre acompanhar pari passu a evolução de todos os ramos da ciência, incluindo as ciências sociais, aperfeiçoando e adequando seus conhecimentos nos pontos que se fizerem necessários. Esta pesquisa, resumindo, justifica-se por sua dupla relevância: 1) Social: dado o volume de adeptos e simpatizantes espíritas no Brasil e no mundo; a possibilidade de favorecer a desconstrução de discursos tradicionais e, por fim, possibilitar a revisão de práticas e discursos sexistas contidos na vasta bibliografia, ajustando-os à contemporaneidade, e assim desfazendo-se de suas ambiguidades; 2) Acadêmica: em minha revisão bibliográfica encontrei certo vazio bibliográfico acadêmico sobre “Espiritismo e Gênero”, pois alguns temas são comum e deliberadamente silenciados pela História (BRITO, 2013), e marginalizados pela academia em geral (SOUZA, 2011). Em relação a esta marginalização, que pode ser entendida através da pressão de uma sociedade conservadora, que guarda alguns costumes e princípios morais vitorianos (FOUCAULT, 1988), sobre uma academia de ciências que ainda guarda ranços de uma laicidade à francesa que interditava o estudo das religiões. Ao buscar retratar as contribuições das mulheres espíritas para a consolidação do movimento espírita, percebi que estas marginalidades eram agravadas, pois os vazios ou os “silêncios da história” na produção acadêmica e também na produção doutrinária12 a respeito do Espiritismo conotam certa interdição ou desinteresse proposital.

12 De certa forma, também é pouca a produção lítero-doutrinária espírita sobre a temática gênero se comparada ao enorme o volume do conjunto de toda a produção literária espírita.

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A prova disto está em não ter encontrado mais que quatro artigos científicos (BUENO, 2009; BRITO, 2013; VILELA e MESSIAS, 2011; SILVA e SGARBI, 2007) que relacionavam as temáticas gênero e Espiritismo, os quais se ocuparam apenas superficialmente das representações de gênero espíritas, constituindo-se em análises “românticas” ou pouco críticas. Sobre o pouco interesse da academia em pesquisar o Espiritismo, Flamarion da Costa compara: No Brasil, o interesse pela manifestação de religiosidade de caráter mediúnicas, especialmente a UMBANDA e o CANDOMBLÉ, provocou diversos estudos de cunho sociológicos e antropológicos, diferente do ESPIRITISMO KARDECISTA OU CRISTÃO cujo interesse é mais recente. Apesar de os estudiosos centralizarem suas pesquisas nos ritos e no crescimento das religiões, a produção literária sobre a UMBANDA E O CANDOMBLÉ, se comparada ao Espiritismo kardecista, ainda é muito pequena. (COSTA, 2001, p. 2)

Assim, completando o exposto por Costa, o desafio deste trabalho foi, basicamente, buscar mapear, em perspectiva de gênero, o trajeto das mulheres espíritas em um campo vasto e quase virgem de análises” acadêmicas e onde “os estudos acadêmicos sobre ele [o Espiritismo] no Brasil tendem a explicitar pouco, melhor dizendo, a contemplar de forma insatisfatória uma análise relacional entre os agentes envolvidos na produção e reprodução desse contingente religioso. (ARRIBAS, 2008, p. 11) [Grifos meus].

Quanto ao recorte temporal de nosso objeto de pesquisa, este vai de 1857 até data da defesa desta pesquisa. Centrarei a análise de conteúdo em perspectiva de gênero nas obras: KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos, 1857 [Edição original em Francês]13. KARDEC, Allan. Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos, 1858, 1865, 1866, 1867-a, 1867-b, 1869 [Edições originais em Francês]. KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 [Edição original em Francês]. DENIS, Léon. O Espiritismo e a Mulher, 1903 [Edição original em Francês]. XAVIER, Francisco C. [médium]; EMMANUEL [espírito]. O Consolador, 1940; XAVIER, F. C. Mãe - Antologia mediúnica, 1971. XAVIER, F. C.; J. Herculano Pires [médiuns]; Espíritos Diversos. Sobre o Feminismo, 1973. CALLIGARIS, Rodolfo. A Igualdade de Direitos do Homem e da Mulher, 1967. CALLIGARIS, R. A vida em família, 1973.

13 Todas as obras estrangeiras (inglesas ou francesas) consultadas nesta pesquisa foram traduções em português, disponíveis ao grande público espírita.

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3. ESPIRITISMO OU “ESPIRITISMOS”14? Por que Kardecismo, não?

A história de como o termo “Espiritismo” foi apropriado pelo senso comum e também pela academia é bastante longa, complexa15 e bem como equivocada. Constituindo-se em verdadeiro desafio tratar de forma sucinta, como se exige de uma introdução, embora mantendo a complexidade que o tema impõe. Na fase de implantação do Espiritismo no Brasil, o termo “Espiritismo” foi apropriado por muitas formas populares de religiosidade e magia16 – pois este rótulo se mostrara interessante a grupos minoritários e oprimidos por estar imbuído de cientificidade e de credibilidade, devido a sua origem francesa17 – primeiro, como forma de agregar valor aos serviços mágico-religiosos prestados, e, segundo, como forma de fugir à perseguição policial a qual eram submetidos seus/suas praticantes (ALMEIDA, 2007; GOMES, 2013; GIUMBELLI, 1997-b). Compreendo esta apropriação como a prática sincrética de “trampolinagem”, ou seja, como Michel de Certeau (1998, p. 79) afirma, não é simplesmente a incorporação de certos aspectos da cultura do opressor, mas se manifesta por “mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro”. Constitui-se de uma forma de resistência de grupos minoritários e oprimidos que

14 Eu, enquanto pesquisador do Espiritismo, estou ciente de que este não é um bloco monolítico, muito embora todo meu esforço de delimitação deste objeto, e todo o esforço das federações espíritas na unificação do movimento espírita. O movimento espírita é plural, pois às instituições espíritas resguardam para si certa autonomia entre si e em relação às federações (e similares) dada a liberdade de aderirem ou não a esta ou aquela proposta federativa de unificação, as quais, friso, são igualmente plurais e criam certa cisão e tensão no interior do movimento espírita, ao produzirem bibliografia própria e independente com regulamentações para a práxis espírita, a partir de autores encarnados ou autorias espirituais que são muito bem aceito por uns, mas recusados por outros, como as obras de Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879) ou aquelas de Pietro Ubaldi (1886-1972), ou ainda as obras mediúnicas do espírito Ramatis. 15 Segundo Emerson Giumbelli (1997-a, p. 32) “Espiritismo” é um termo cheio de “ambiguidades, imprecisões e, sobretudo de polissemias”, pois nomeia diversas práticas de vários tipos, centradas em torno da “mediunidade”, e mobilizam instituições de várias ordens, cujas células básicas são os “centros espíritas”. 16 Ubiratan Machado (1997, p. 130) afirma que, no Brasil, o sincretismo do Espiritismo “com as crenças de origem negra e o catolicismo popular” se deu num ritmo acelerado a ponto de os “mais desavisados chegavam a confundir espiritismo com feitiçaria africana”. Entretanto sempre houve apóstolos atentos buscaram “resguardar a doutrina de abastardamentos”. Como consequência do sincretismo, “as seitas afro-brasileiras incorporavam elementos e, sobretudo, a terminologia espírita” gerando uma infinidade de “práticas espíritas” que variavam “entre espiritismo popular e das elites, entre espiritismo de terreiro e de mesa”. (MACHADO, 1997, p. 131). Ubiratan Machado (1997, p. 115-116) esclarece ainda que o “nome espiritismo passou a abarcar uma gama imensa de manifestações religiosas, algumas bem distantes da matriz kardecista”. Percebe-se que “para o povo, bastava uma tintura de maravilhoso e a evocação dos mortos, para ser enquadrado como espiritismo”. 17 Segundo Marion Aubrée e François Laplantine (2009, p. 391) no Brasil, por ser um país jovem, as “classes dominantes e as camadas médias que delas dependem estão imbuídas de positivismo e de ideologia futurista” assumiram uma postura eurocêntrica de supervalorizar personalidades (encarnadas e desencarnadas) e crenças estrangeiras como forma de compensar uma pretensa “falta de história” nacional, negligenciando as “circunstâncias históricas próprias”.

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fazem uso de “astúcia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais” impostos pelos dominantes. Desta feita, era e ainda é interessante18 continuar associado, de alguma forma, ao Espiritismo, pois este sempre teve em seus meio intelectuais e autoridades influentes no meio acadêmico, militar, jurídico e político, certa condição privilegiada nos embates e perseguições aos “espiritismos”. Clovis Carvalho Brito (2013) explica que desde o início o Espiritismo teve sua condição privilegiada em relação aos grupos dominantes, pois se era crime praticar o espiritismo, tornava-se complicado denunciar seus primeiros adeptos: um deputado estadual, um juiz da Comarca, a esposa do Desembargador do Tribunal da Relação, as filhas do alferes da Guarda Nacional, a esposa de um tenente-coronel, a mãe do coronel e contador da Delegacia Fiscal, dentre outros [...] (BRITO, 2013, p. 34)

Emerson Giumbelli (2008) atesta que a diferença entre o Espiritismo e os “espiritismos” em termos da aceitação pública e da repressão policial ampliara-se a partir de 1949, tornando- se muito mais interessante aos praticantes de magia e de cultos afro-brasileiros estarem associados ao Espiritismo francês, pois assim driblavam-se as perseguições: A aceitação social cada vez maior da crença fica evidente com a promulgação do novo Código Penal brasileiro em 1949, no governo Vargas. Persistiam artigos acerca de “charlatanismo” e “curandeirismo”, mas o termo “espiritismo” já não constava mais da lei. Na prática, os kardecistas deixaram de ser assediados pelas autoridades. O mesmo não aconteceu com os cultos afro-brasileiros, que continuaram sendo vítimas de perseguição. (GIUMBELLI, 2008, s.p.)

Assim, esclarecidas, historicamente, as motivações para a apropriação pelo senso comum do termo “Espiritismo” e como se deu a origem do termo “espiritismos”, resta-me explicar como ocorreu a apropriação pela academia, e aproveito para legitimar o uso nesta pesquisa do termo “Espiritismo”19 no singular, e minha recusa em não adotar qualquer outro qualificativo diferencial para designar a Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec. Como Ary Lex (1996) descreve, o termo “espiritismo” ganhou vida própria, fugindo do controle dos espíritas ao ser incorporado no vocabulário popular e também, embora de forma

18 É muito comum, ainda hoje, se ler anúncios nos jornais, cartazes em postes ou em panfletos oferecendo serviços de adivinhação (leitura de cartas ou das mãos), intitulando-se médium espírita. Sendo que esta prática não é prescrita pela Doutrina Espírita, quer em sua literatura, quer na práxis espírita. 19 Segundo Ary Lex (1996, p. 136) o termo “Espiritismo “surge no dia 18 de abril de 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos” de Allan Kardec, que inicia sua obra esclarecendo que “para designar coisas novas são necessárias palavras novas; assim exige a clareza de uma língua, para evitar a confusão que ocorre quando uma palavra tem múltiplo sentido” (KARDEC, 1995 [1857], p. 13). Kardec, imbuído do espírito positivista de sua época, buscou utilizar-se do método científico (BRADBURY, 2010) também para formalizar a nova doutrina. Assim, redefiniu conceitos e criou outros novos, de modo que naquele momento histórico não houvesse indesejáveis ambiguidades na nova ciência que intentava demonstrar.

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contraditória20, nos vocabulários jornalístico, censitário21 e acadêmico, os quais se deixaram impregnar pela polissemia própria do imaginário popular: No linguajar do povo sempre houve grande confusão quanto aos termos doutrina espírita, espiritismo, mediunismo, umbanda, espiritualismo, etc. Até os jornalistas e os recenseadores teimam em apresentar as práticas de umbanda como espíritas. (LEX, 1996, p. 136)

O “Culto Espírita”, de forma genérica - pois abarcava uma infinidade de práticas mágico-religiosas, entre elas o Espiritismo – é reconhecido como tradição religiosa pelas estatísticas governamentais e entra como registro, nos Anuários Estatísticos do Brasil (AEB), a partir do ano de 1955. Somente, a partir de 1967 é que o “Culto Espírita” desdobrado em kardecista e umbandista, reconhecendo-se as especificidades dessas duas religiões, porém continuam as mesmas as variáveis medidas para esses dois casos. (LANDIM, 2006, s.p.) No instrumental censitário do ano de 1973 encontram-se as seguintes orientações: DESTINA-SE este questionário a coletar elementos que permitam sejam conhecidos o movimento e a organização do Culto Espírita, estando, assim, sujeitos ao preenchimento do mesmo todos os Centros, Tendas, Uniões, Núcleos, Federações, etc. que se destinem a reunir adeptos para a difusão ou prática do espiritismo. [...] NÃO SE INCLUEM entre as entidades sujeitas ao preenchimento deste questionário as que não tenham estatuto, nem sejam registradas nos Cartórios de Pessoas Jurídicas ou de Registro de Títulos e Documentos, e bem como as que se dedicam à prática do chamado "baixo espiritismo" ou "magia negra", geralmente conhecidas como "terreiro", "macumba", "quimbanda", etc. (IBGE, 1973)

Nestas orientações, percebe-se que os prédios religiosos ostentavam fachadas e/ou estatutos que pouco definiam as práticas realizadas em seu interior. É notória a clandestinidade que viviam certas práticas afro-brasileiras e certo desconforto de uma instituição pública de pesquisa (IBGE) em mapear aqueles cultos religiosos que as autoridades médicas, políticas e policiais entendiam como ilegais, ou seja, os grupos marginalizados que incutiam curas por

20 Pois o rigor científico e de certa forma também o jornalístico exige a utilização de termos precisos e sem ambiguidades, evitando assim indesejáveis confusões. 21 Para se ter uma ideia da impropriedade do uso do termo “espiritismos”, às vésperas da realização do Censo IBGE/2010, postou um internauta informando que: “Rolou pela Internet (e fora dela) um burburinho sobre a questão do credo religioso que aparecerá nas pesquisas do CENSO 2010 realizadas pelo IBGE. Fala-se por aí que quem responder Espírita na pesquisa, não será enquadrado como Espírita, mas como Umbandista ou Candomblecista, apesar de o termo estar tomado errado, tanto pelos religiosos das correntes citadas, quanto pelo IBGE.” O internauta, preocupado com a fidelização dos dados do Censo, que segundo ele “o IBGE papou mosca na hora de definir a terminologia correta” - e suspeita “que foi mesmo proposital” – em colocar “muitas outras religiões, além de alguns exotéricos [sic.]” no mesmo balaio de gatos pardos, por se autodenominarem-se “Espíritas sem de fato o serem, apenas acreditados que se pensam como nós acerca da reencarnação e da comunicação mediúnica” crendo que por isto “têm o direito de classificarem-se Espíritas”, propõe a seguinte trégua: “Como o objetivo aqui não é ficar preso às terminologias, nem fazer juízo se devem ou não usar a terminologia, o ideal é que todos os Espiritistas saibam que na hora de responderem à pergunta sobre a sua religião, respondam Kardecista, embora este termo esteja genuinamente errado. A ideia não é assumirmos tal terminologia, mas apenas que contribuamos para a contagem correta a respeito dos Espíritas no Brasil.” Fonte: http://www.pensamentoshumanistas.com/2010/08/ibge-censo-2010-espiritas-ou.html.

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procedimentos mágicos – diferentes daqueles oferecidos pela religião hegemônica – daí a acusação de charlatanismo. Arribas (2008) confirma o uso generalizado do termo “espiritismo”, desde o senso comum à academia, passando pelas instituições de pesquisa, e assim descreve seu processo classificatório: É frequente encontrarmos na literatura acadêmica a utilização do termo espiritismo para indicar mais de um segmento religioso. Nesses escritos, a distinção entre os diferentes segmentos religiosos fica a cargo somente de adjetivos ou de partículas de mesma função que os especificam. Assim, aparecem as designações espiritismo kardecista ou espiritismo de mesa branca, ou ainda alto espiritismo para designar a teoria espírita criada originalmente por Allan Kardec; e espiritismo umbandista ou espiritismo de umbanda ou baixo espiritismo para se referir à religião nascida no Brasil em meados da década de 1920. (ARRIBAS, 2008, p. 11)

É importante destacar que não só a nomenclatura, mas também o critério de classificação utilizado, em determinado momento da academia, revelam-se equivocados22, ao definir, na época, a Umbanda como um dos “extremos do gradiente”, por falta de definição de nomenclatura23 dos cultos intermediários mais ou menos sincréticos com os extremos: A análise desta realidade religiosa dinâmica pode ser realizada por intermédio de um gradiente (CAMARGO:1961) em cujos polos extremos se localizam o Kardecismo e a Umbanda, encontrando-se nos pontos intermediários toda uma gama de formas religiosas mediúnicas resultantes do processo interativo entre os dois extremos do gradiente. O grau de simbiose doutrinária e ritualística identifica, ao longo do gradiente, estas diversas alternativas mediúnicas. (CAMARGO, 1973, p. 159)

Da afirmação acima é preciso se questionar entre outras coisas: pode-se traçar um gradiente igualmente entre o Espiritismo e o Catolicismo (ou o Orientalismo), uma vez que houve “processo interativo” entre estes extremos também? Daí poder-se-ia denominar de Espiritismo-católico ou Catolicismo-kardecista? Realmente houve uma “simbiose doutrinária e ritualística” que justificasse tal gradiente, sendo que em tese os extremos estariam fora do gradiente, por não terem assimilado, em absoluto, nada do extremo oposto? Qual a relação possível entre a doutrina dos espíritos (KARDEC, 1995 [1857]) e a mitologia dos Orixás? Qual a simbiose ritualística entre a psicografia – onde o médium em silêncio, sentado em frente a uma mesa, daí a denominação de “mesa branca” – e o ritual de “gira” – onde os médiuns (“cavalos”) ao som da música ritmada por tambores dançam em roda, e por vezes, para facilitar

22 É preciso lembrar que o texto organizado por Candido Procópio de Camargo (1973) é um texto clássico escrito por autores/as consagrados/as, na academia, como Reginaldo Prandi, entretanto como lembra Arribas (2008, p. 118) “a diferenciação em relação ao candomblé só seria trabalhada pelos intelectuais religiosos a partir dos anos 1960-70, momento de consolidação dessa religião no campo religioso brasileiro”, assim na falta de nomenclaturas específicas, todos os cultos afro-brasileiros eram denominados de Umbanda, ou seja, o que provavelmente estes autores estavam denominando de “extremo do gradiente”, a Umbanda, era na verdade o Candomblé. 23 Os termos que denominavam estas manifestações afro-brasileiras eram bem pejorativos e provavelmente não provinham da academia, mas sim da apropriação do senso comum, como “baixo espiritismo” e “alto espiritismo”, “espiritismo de mesa branca”, “espiritismo de terreiro”.

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a incorporação dos guias nas primeiras vezes dos médiuns iniciantes, o fazem “girar” sobre seu próprio eixo – próprio das religiões de matriz africana? O uso de “espiritismos” para designar um “gradiente mediúnico” envolve problemas éticos e antropológicos de classificação os quais depõe contra seus usuários, quer religiosos, quer acadêmicos. Primeiro, porque ordenar religiões conforme uma escala de valores é um retorno a práticas etnocêntricas hoje abolidas (ou abominadas) pelas ciências sociais que hierarquizam sociedades conforme escalas que iam do selvagem ao civilizado, do paganismo ao cristianismo... não é diferente a tentativa de estabelecer um gradiente mediúnico entre as religiões de matriz africana e o Espiritismo de origem francesa, qualquer critério de classificação e hierarquização será falho por desconsiderar a heterogeneidade de cada religião e tendencioso (etnocêntrico) por valorizar determinados aspectos socialmente aceitos em detrimento de outros aspectos que são de fundamental importância no interior do grupo, mas depreciados pela sociedade em geral. Segundo, o fenômeno mediúnico constitui traço fundamental comum a muitas religiões, inclusive do pentecostalismo, e neste caso o êxtase religioso pelo incorporar do espírito santo, profetizar e falar em línguas, dialogar com demônios (exus) incorporados em fiéis, impor as mãos e curar enfermos pelos dons do espírito santo, que o caracteriza, mesmo assim não nos autoriza englobá-lo como Espiritismo. Conforme o mesmo critério de classificação - fenômeno mediúnico proposto por Camargo (1973) - ficariam de fora dissidências espíritas como a Religião de Deus – ligada à Legião da Boa Vontade (LBV) - e o Racionalismo Cristão – que inicialmente denominava-se Espiritismo Racional e Científico Cristão – os quais necessariamente deveriam ser englobados como “espiritismo” devido a repartir a mesma cosmovisão (doutrina espírita), mas ficariam de fora, por não apresentar o fenômeno mediúnico como traço fundamental, nem em sua doutrina, nem em seu ritual. Assim também muitos centros espíritas e federações espíritas que aboliram as práticas mediúnicas ficariam igualmente de fora. Este posicionamento da academia de tudo englobar como “espiritismos” (CAMARGO, 1973), acaba sendo um desserviço para a própria academia ao deixar de considerar o contexto histórico que cada terminologia está imbricada, ou seja, ao desconsiderar a existência de tensões políticas e teológicas de distintos grupos sociais24 e em conflito. Arribas (2008) explica esta equivocada incorporação por parte da academia:

24 Importante ressaltar a existência de grupos em desacordo dentro do próprio movimento espírita, e bem como a existência de grupos sociais de diferentes origens – grupos religiosos de diferentes denominações; os grupos acadêmicos, como a classe médica e aqueles das ciências sociais; os grupos políticos republicanos ou monarquistas

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os trabalhos da academia, sem o saber (ou pelo menos sem dizer explicitamente), acabaram por empregar em suas análises os termos utilizados pelos próprios agentes sob exame, termos que se referem aos móveis em disputa e que servem para (des)classificar os agentes e/ou grupos no e em jogo. São, portanto, apropriações sem reflexões de uma linguagem êmica — linguagem que dá corpo a uma disputa em cuja dinâmica interna tem como princípio a busca incessante de distinção frente aos demais participantes. Em outras palavras, os pesquisadores, isto é, os sujeitos da objetivação apropriam-se da linguagem dos agentes analisados sem perceberem que a própria linguagem é ela mesma um fator importante a ser levado em conta na especificação do objeto a que se estuda, já que o que está em jogo é o poder legítimo, porque reconhecido, de ditar e de (des)classificar, [...]. (ARRIBAS, 2008, p. 11)

Paulo César Fernandes (2008) sintetiza bem não só este posicionamento, como toda a discussão sobre o uso do termo “espiritismos”: Cria-se assim o ambiente confuso que vai até os dias de hoje, o que levou alguns autores a se perguntarem se existiriam vários "espiritismos" em nosso país. Para o meio e instituições "oficiais" do espiritismo, a resposta é categórica e simples: não. Não existem vários espiritismos, existe um apenas, o que foi codificado por Allan Kardec. O que se convencionou chamar de "espiritismo popular" seria apenas uma apropriação nossa dessa doutrina francesa, que funcionava como mais uma arma para lidar com o ambiente de insegurança social que tinha se agravado com a Guerra do Paraguai e os conflitos sociais do século XIX. Mudou-se alguns nomes e títulos, leu-se Kardec para ele aparecer como figura de retórica, mas poucos sinais de um comprometimento com a doutrina e com vários aspectos basilares de seus princípios. Por isso, apesar de sabermos da existência de cultos que recebem nomes como "espiritismo kardecista", "espiritismo de mesa branca", "espiritismo umbandista", etc., devemos colocar em questão até onde vai o nível de envolvimento dessas crenças com o que o espiritismo diz de si. Naturalmente, qualquer indivíduo ou agrupamento de indivíduos teria a liberdade de ter e nomear um credo. Todavia, apropriações podem gerar confusões que se apresentam com demasiada força quando estamos no esforço por entender melhor uma doutrina, no caso, o espiritismo. Aliado a isso, os meios espíritas "oficiais" sempre resistiram (com muito empenho, devemos dizer) a essas tentativas, o que demonstra que essa busca por uma "pureza" pode conter algo mais do que simples apego doutrinário. (FERNANDES, 2008, p. 94)

Como, na atualidade, já não se faz tão necessário ou interessante a apropriação de termos correlatos ao Espiritismo por parte, ao menos, das religiões afro-brasileiras, pois o tempo de perseguição médico-jurídico-policial já passou. Assim, para fugir ao uso da classificação “Espiritismo kardecista” ou só “Kardecismo”, também levo em consideração o exposto por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2008): Os grupos religiosos com que entrei em contato definem-se como espíritas. Adotando como referência doutrinária básica as obras codificadas por Allan Kardec, esses grupos veem o Espiritismo como distinto de "outras formas de Espiritualismo". Se a maioria dos estudiosos do assunto enfatiza a relação ou continuidade entre Espiritismo e Umbanda, os grupos que pesquisei, definidos pela frequência a determinadas instituições e pelo partilhar da mesma crença, estão pelo contrário extremamente preocupados em demarcar as fronteiras de sua religião com relação às demais e, em especial, a Umbanda. (CAVALCANTI, 2008, p. 9)

– que disputavam o direito de uso da terminologia em questão, ora de forma pejorativa e depreciativa, ora de forma a “agregar valor” e autoridade à sua crença.

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Assim, concluo que o uso do termo “kardecista” para qualificar o Espiritismo de origem francesa, embora o diferencie de outras religiões que se apropriaram dos termos “espírita” e “espiritismo”, corrompe o objeto de pesquisa ao associar a este concepções que os espíritas desde o princípio combatem, como a divinização de Kardec e a adoração aos médiuns – pois a Doutrina Espírita é resultado do ensino dos espíritos, como creem a maioria dos espíritas, daí o termo “Espiritismo”, e não do ensino de Kardec (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44)25, para ser denominado de “Kardecismo” – entre outras questões. É preferível evitar.

4. PSICOGRAFIA: Autoria do/a médium ou do/a autor/a espiritual?

Ao contrário da produção dos intelectuais espíritas, produto de homens, as obras psicografadas são produtos espirituais. (CAVALCANTI, 2008, p. 111)

Ressalto que o presente texto pretende-se acadêmico e de cunho antropológico, ou seja, não tem pretensão de ser doutrinário, nem tampouco apologético. Aqui, tal como fez Maria Laura Viveiros de Castro (1988, p. 7), “O Espiritismo será analisado como um fato sociológico”. E como o objeto de pesquisa envolve textos psicografados e outros de autoria do/a próprio/a autor/a encarnado/a26, não é minha intensão afirmar ou rejeitar a possibilidade de autoria espiritual dos textos aqui analisados. Orientando-me no exemplo de Alexander Moreira de Almeida (2004), a respeito da fenomenologia das experiências mediúnicas, também não almejo “investigar a veracidade ontológica das vivências mediúnicas” (2004, p. 14). E, também, como Almeida (2004, p. 14), tomei como estilo dissertativo a utilização do presente do indicativo, na maior parte das vezes quando são descritas as teorias espíritas, “para evitar o uso excessivo e cansativo do futuro do pretérito e de expressões como ‘suposto’ ou ‘hipotético’”. Assim, aqui, a “mediunidade de psicografia” é entendida como um fenômeno ou experiência religiosa e subjetiva, e buscando como pesquisador, um distanciamento proposital,

25 “O Livro dos Espíritos, 500 páginas [...] é um trabalho de classificação e de síntese, uma sistematização realizada a partir de uma vasta quantidade de mensagens transmitidas por Espíritos a um grupo de médiuns [...] Não se trata de uma obra de Kardec, que sempre negou ter elaborado uma doutrina, mas de uma obra coletiva ‘codificada’ por ele e ‘corrigida’ por ‘Espíritos Superiores’ [...]” (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44) [Grifos meus]. 26 Termo do vocabulário espírita que designa aquele espírito que se encarnou ou reencarnou em um corpo carnal humano, no ato de seu nascimento; diferente do espírito desencarnado que pertence ao mundo espiritual por ter passado pela morte de seu corpo físico.

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não as considero como falsas ou patológicas, mas como “Experiência Anômala (EA)”27, e assim pode ser compreendida como questão religiosa ou espiritual e não necessariamente se constitui em loucura28 ou alucinação (MOREIRA-ALMEIDA; CARDEÑA, 2011, p. 22). Para Weber (1982, p. 340) o que importava no domínio carismático não era a veracidade ou falsidade dos conteúdos religiosos, mas sim na competência do/a líder carismático/a em promover o bem-estar dos/as adeptos/as, daí a eficácia de suas mensagens29. Assim, para esta pesquisa socioantropológica, não importa a autoria da mensagem (se espiritual ou anímica30) – embora seja interessante distingui-las – nem se existem espíritos ou a possibilidade destes se comunicarem com os/as médiuns. Para a análise são fundamentais não só os conteúdos veiculados (impregnados de representações de gênero), mas principalmente entender o grau de legitimação e autoridade de quem fala, pois é através do carisma deste que são assimilados ou não, tais conteúdos (crenças, práticas e valores). Neste sentido, esta pesquisa converge com o pensamento de Durkheim (1989, p. 30) quando este afirmava que fazer história ou etnografia religiosa não era fazer guerra contra a religião. Pois, para ele “esse não poderia ser o ponto de vista de um sociólogo”. E, bem como não cabe refutar a possibilidade de uma autoria espiritual, mas ter segurança de que tais experiências anômalas (ou mediúnicas), como propõe Durkheim (1989, p. 30), “se prendem no real e o exprimem” para aquele/a que crê (o/a leitor/a e sua comunidade), não importando se as razões que usa para justificá-las sejam errôneas ou equivocadas. Alerta Durkheim que tais razões são sempre reais e verdadeiras e cabe ao pesquisador analisá-las31.

27 “Experiência anômala (EA) é um termo que tem sido proposto para nomear, sem assumir implicações psicopatológicas, vivencias incomuns ou que se acredita serem diferentes do habitual ou das explicações usualmente aceitas como realidade: alucinações, sinestesia e vivencias interpretadas como telepáticas etc. Essas EA podem ser investigadas sem que se compartilhe das crenças que as envolvem, podendo ser pesquisadas como experiências subjetivas.” (MENEZES JR. et al., 2012, p. 203) 28 O Código Internacional de Doenças (CID-10), no item 44.3, são classificadas as psicopatologias de Estados de transe e de possessão, são “Transtornos caracterizados por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Devem aqui ser incluídos somente os estados de transe involuntários e não desejados, excluídos aqueles de situações admitidas no contexto cultural ou religioso do sujeito.” [Grifos meus]. Disponível em:. Acesso em: 24 maio 2014. 29 “A fonte dessas crenças e a ‘prova’ das qualidades carismáticas através de milagres, de vitórias e outros êxitos, ou seja, através do bem-estar dos governados. [...] O domínio carismático não é controlado segundo as normas gerais, tradicionais ou racionais, mas, em princípio, de acordo com revelações e inspirações concretas, e, nesse sentido, a autoridade carismática é ‘irracional’. É ‘revolucionaria’ no sentido de não estar presa a ordem existente: ‘Está escrito... mas eu vos digo...!’ ” (Weber, 1982, p. 340) 30 Diz-se “anímico” quando a mensagem é proveniente da própria consciência ou subconsciência do/a próprio/a médium. 31 “As religiões, com efeito, são consideradas como tendo valor e uma dignidade desiguais; diz-se, geralmente, que elas não possuem a mesma parte de verdade. [...] Não é nossa tarefa investigar aqui se realmente houve estudiosos que mereceram esta censura e que fizeram da história e da etnografia religiosa uma máquina de guerra contra a religião. Se como for, esse não poderia ser o ponto de vista de um sociólogo. [...] Na verdade, postulado essencial da sociologia é que uma instituição humana não poderia repousar sobre o erro e sobre a mentira: sem

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No entanto, para a análise deste objeto de pesquisa, em perspectiva de gênero, além de considerar a possibilidade da autoria espiritual, faz-se necessário distinguir a personalidade do/a médium e as personalidades dos espíritos que se comunicam através da psicografia, as quais têm biografias e características próprias e distintas entre si. É possível entender, por exemplo, o pensamento do médium Chico Xavier (Francisco de Paula Cândido Xavier) contido em suas entrevistas e depoimentos quando relaciono este aos acontecimentos ocorridos em sua biografia. Assim como é possível identificar os traços psicológicos e ideológicos dos/as autores/as espirituais quando associo às personalidades indicadas pelo movimento espírita como sendo a real autoria da mensagem psicografada. Assim, os depoimentos de Chico Xavier diferem do perfil psicológico da mensagem dos espíritos comunicantes Emmanuel, André Luiz, Humberto de Campos (identificados como personalidades masculinas) e Meimei, Maria Dolores, ou Maria João de Deus – espírito de sua mãe – (identificadas como personalidades femininas). Neste sentido, Bernardo Lewgoy (2000) destaca que a produção literária de Chico Xavier tem como característica fundamental uma “espécie de polivalência mediúnica”, construída a partir de uma “divisão do trabalho dos espíritos-autores” que se comunicam por meio dele: Emmanuel é o espírito de luz, doutrinador por excelência, ligado à moralidade e à religião; André Luiz é o médico e cientista que descreve o mundo espiritual, profundamente conectado às letras, às ciências, à perspectiva de evolução dos seres humanos; Meimei é o espírito feminino, bondosa e ligada ao lar, etc. (LEWGOY, 2000, p. 139)

5. PROJEÇÃO DA DISSERTAÇÃO

No primeiro capítulo, meu objetivo foi descrever a história do Espiritismo e seu estabelecimento no Brasil, e assim levantar as relações e as representações de gênero que se constituíram no caldo cultural onde a literatura doutrinária espírita foi produzida. No segundo capítulo, com base em algumas pesquisas de campo de autores/as que estudaram o Espiritismo pelo viés socioantropológico (CAVALCANTI, 2008; LEWGOY,

isso ela não poderia durar. Se não estivesse por base a natureza das coisas, encontraria nas coisas resistência que não poderia vencer. Portanto, quando enfrentamos o estudo das religiões primitivas já temos a certeza de que elas se prendem no real e o exprimem; [...] As razões que o fiel dá a si próprio para justificá-las podem ser, e são realmente, no mais das vezes, falsas; as razões verdadeiras existem, não obstante; cabe à ciência descobri-las. [...] Não há, pois, no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira: todas respondem, ainda que de maneira diferentes, determinadas condições da vida humana.” (DURKHEIM, 1989, p. 30-31).

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2000; SILVA, 2006), apresento e discuto a organização interna do Espiritismo no que tange a divisão sexual do trabalho. No último capítulo, analiso a produção lítero-doutrinária espírita em perspectiva de gênero, utilizando o método da análise de conteúdo.

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CAPÍTULO 1. “HIS-STORY” OU “HER-STORY”32 DO ESPIRITISMO?

A participação feminina na gênese do movimento espírita foi pequena mas significativa. [...] A presença da mulher era solicitada nas reuniões de estudos doutrinários, nas sessões de efeitos físicos, enfim, buscava-se a sua conversão, a sua participação na prática espírita e a orientação de sua prole. (DAMAZIO, 1994, p. 140).

O propósito deste capítulo é descrever a história do Espiritismo, em perspectiva de gênero, desde o “Modern Spiritualism” (DOYLE, 1960 [1926]) – movimento social iniciado nos Estados Unidos da América, com as irmãs Fox e que depois se espalhou pela Europa, caracterizado pelo intenso interesse por “fenômenos mediúnicos” (ALMEIDA, 2004, p. 14), como os “raps” e as “mesas girantes”33, o qual precedeu imediatamente o Espiritismo (1857)34 sistematizado por Allan Kardec – até seu estabelecimento no Brasil. Neste intuito, busquei fazer um levantamento histórico de algumas relações e representações de gênero que se constituíram em legado na França de Allan Kardec e, posteriormente – depois de serem potencializadas como num “efeito cascata” – também se tornaram herança no Brasil do médium Chico Xavier. O Codificador Allan Kardec e o psicógrafo Chico Xavier foram – em vida, e continuam sendo, post mortem, através de suas obras literárias – duas personalidades espíritas de referência para o movimento espírita. Homens que fizeram história no Espiritismo. Entretanto, desejo destacar que embora sempre se tenha contado uma “his-story”, como se fosse a única história existente, esta também é a história de muitas mulheres, dando ensejo para se investigar uma “her-story” espírita – e não somente reproduzir a androcêntrica história deles.

32 Este título inspira-se no filme “Escola da Vida” onde o personagem central, o Sr. D (Ryan Reynolds), é um inovador professor de História que questiona o androcentrismo do ensino tradicional de História ao apresentar possíveis etimologias: “his-story” e “her-story”. Conferir em: DEAR, William (Direção). Escola da Vida (School of Life), Canadá / EUA, Califórnia Home Vídeo, 2005, [Filme-DVD], 90 minutos. 33 Os “raps” foram fenômenos tidos como manifestações de espíritos por meio de estalos e ruídos em móveis e paredes e, as “mesas girantes” ou “mesas dançantes” eram igualmente fenômenos atribuídos a entidades extracorpóreas que produziam levitação e comunicação codificada onde certo número de batidas dos pés da mesa no chão correspondiam às respostas dos espíritos comunicantes às perguntas feitas por experimentadores. (1960 [1926], p. 70 e ss.) descreve as experiências ocorridas em 1848, quando a jovem Kate Fox desafiou uma “força invisível” a repetir as batidas que ela dava com os dedos: “Aqui, velho Pé-Rachado, faça o que faço!” e o ruído respondeu instantaneamente, para Doyle (1960 [1926], p. 76) “Isto foi precisamente o começo” das comunicações com os espíritos. 34 1857, ano da publicação de “O Livro dos Espíritos” (KARDEC, 1995[1857]), primeira obra basilar da codificação, cuja contracapa se lê: “FILOSOFIA ESPIRITUALISTA - PRINCÍPIOS DA DOUTRINA ESPÍRITA - sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por Espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns - recebidos e coordenados POR ALLAN KARDEC”. Repare a utilização genérica dos termos “os homens” e “diversos médiuns”, nada inclusivos, fazendo uma análise de gênero, pois tal prática discursiva tende reforçar a ocultação da participação feminina na história do Espiritismo.

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Certamente, as mulheres espíritas, simpatizantes ou beneficiárias dos bens de salvação ou de certa assistência social (médica, educacional, alimentícia, etc.) estavam presentes na história do Espiritismo; como médiuns ou mecenas a apoiar o movimento espírita cedendo seus próprios lares, espaço este histórica e culturalmente consagrado às mulheres; de forma mais passiva ou numa resistência clandestina35, mas elas estavam lá, quer como coadjuvantes ocultas e anônimas (esquecidas pela história oficial e também pelos espíritas), quer como consumidoras daqueles serviços religiosos e/ou caritativos. Muitas destas mulheres espíritas ou simpatizantes: várias heroínas anônimas; algumas poucas que foram tornadas coadjuvantes e outras tantas que foram deliberadamente ignoradas pelos “silêncios da história” (BRITO, 2013) contada por homens36, por uma historiografia espírita, androcêntrica e misógina, ou seja, um espaço majoritariamente masculino. Assim, como na "academia – o status de produção de conhecimento – é majoritariamente masculina” (NUNES, 1994, p. 70), os homens dominam igualmente a produção biográfica e a literatura doutrinária espírita37. Segundo Sandra Duarte de Souza (2011, p. 113): “Analisar gênero e religião no contexto acadêmico é trabalhar com duas marginalidades”. Para ela, Quando nos propomos a analisar um objeto considerando a equação religião e gênero, temos de entender que, nessa combinação, gênero é marginal duas vezes: é marginal para a academia e é marginal para a religião. Marginal para esta última enquanto categoria de análise, porém central na maneira como se produz o conhecimento religioso da realidade social. (SOUZA, 2011, p. 115)

Um exemplo flagrante do resultado dessa marginalização, na história do Espiritismo, encontra-se nas coletâneas de biografias de espíritas que se destacaram no movimento, onde as mulheres não somam nem 10%, isto quando aparecem mulheres biografadas, como Bismael B. Moraes critica: Também, dentro da Doutrina Espírita encontramos sofismas em relação ao desenvolvimento de homens e mulheres, entre especialistas. Observe-se, com efeito, no livro ‘Grandes Vultos da Humanidade e o Espiritismo’, do professor Sylvio Brito

35 Brito (2013, p. 25) relata que o Espiritismo na cidade de Goiás – embora certamente se pode generalizar este modus operandi para outras partes do Brasil e do mundo – “era realizado pelos primeiros adeptos em locais mais afastados, a exemplo das casas de veraneio, das fazendas na região do Bacalhau e das chácaras construídas nos arredores da própria cidade [...] Reprovadas pela Igreja Católica, essas experiências eram empreendidas a princípio de modo velado, movidas pela curiosidade e pela possibilidade de se comunicar com os mortos. Do mesmo modo, as fazendas e os povoados próximos a capital se apresentavam como espaços de experimentação com lógicas próprias, muitas vezes fora do controle direto da Igreja e do Estado, lembrando que nesse período a prática do espiritismo era considerada crime.” [Grifos meus.] 36 “Há uma violência silenciada na maior parte da produção historiográfica masculina. Este é um lado de nossa história coletiva, de séculos, que ainda hoje tem as suas marcas na vida de cada mulher ocidental. [...] Para compreendermos nosso corpo precisamos recorrer aos silêncios da historiografia.” (JARSCHEL, 1994, p. 38) 37 Embora o médium Chico Xavier tenha psicografado alguns romances mediúnicos de grande repercussão no movimento espírita, esta lavra é dominada pelas médiuns psicógrafas femininas, onde, atualmente, se destaca a médium Zíbia Gasparetto.

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Soares (Edição FEB, RJ, 1961, com 50 nomes de brasileiros e estrangeiros, todos homens, [...] Nenhum nome de mulher! Mais uma prova do preconceito científico, consciente ou inconsciente. (MORAES, 2008, p. 3)

Mas, como Souza (2011, p. 115) afirma, pesquisas que sigam esta abordagem de gênero são centrais para se compreender “a maneira como se produz [e principalmente se reproduz, pois, aqui, as mulheres desempenham um papel social (e sexual) de destaque para a manutenção e perpetuação das religiões] o conhecimento religioso da realidade social” de qualquer religião, e também do Espiritismo. Assim sendo, esta pesquisa tomou como já bem registrada a história deles, dos homens (“his-story”), no Espiritismo, e partiu para investigar, prioritariamente, a história delas, das mulheres (“her-story”), embora sempre mantendo o foco na perspectiva de gênero, ou seja, centrada na análise relacional (SCOTT, 1995, p. 72) do movimento espírita. A principal motivação de escrever esta “her-story” espírita, aplicando a teoria da curvatura da vara38, foi de trazer a lume o papel que as mulheres desempenharam e continuam desempenhando nas relações de gênero desdobradas na práxis religiosa espírita (teoria e prática; ação-reflexão-ação). E, para que a presente pesquisa acadêmica atingisse seu intento de analisar as representações de gênero do Espiritismo fez-se necessário cruzar a cosmologia espírita - presente na vasta literatura espírita – com o ethos de seus/ suas adeptos/as39, percebendo suas variações – por vezes muito sutis, quase imperceptíveis, determinadas na relação espaço-tempo – ao longo da história do movimento espírita. E, no ponto médio deste cruzamento encontra-se a experiência religiosa espírita, possibilitada em função da atividade mediúnica, ou seja, a relação comunicacional entre este mundo e o mundo dos espíritos. Assim, no Espiritismo, a relação dialética, teoria e prática, foi fundada na hierofania ou manifestação do sagrado, a qual ocorreu pela ruptura do domínio profano (ELIADE, 1992, p. 17), como se deu na residência da família Fox, ou na casa da senhora Roger, onde Kardec tivera a primeira oportunidade de observar o fenômeno espírita. A atividade mediúnica, a partir de então, transformada em rito por seus experimentadores, funda uma nova realidade ao propor

38 Esta metáfora utilizada por Lênin é uma concepção pragmática de que para se chegar obter o ponto médio de algo que está pendendo para um dos lados, faz-se necessário, curvá-lo para o lado oposto (ARCARY, 2002, p. 5). 39 Algo semelhante ao que fez Bernardo Lewgoy (2000), em “OS ESPÍRITAS E AS LETRAS: Um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista”, ao analisar o Espiritismo como um “sistema cultural através de uma etnografia da leitura e da fala dos espíritas, [...] um permanente vai-e-vem entre textos e trabalho de campo”. Como apresento no capítulo segundo, estão amalgamadas as representações de gênero contidas nos textos e aquelas vivenciadas nos contextos espíritas.

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uma nova compreensão do mundo, a qual se consolida na psicografia, como eixo central de toda a orientação futura. A comunicação mediúnica pode ser entendida pela tríade: emissor (espírito/s), receptor (leitores/as espíritas) e canal (o/a médium). Para Kardec a mediunidade é: um potencial que certas pessoas de todas as idades, de ambos os sexos e em todos os graus de desenvolvimento intelectual são dotadas, ou seja, uma faculdade humana – como qualquer outra – a qual pode ser desenvolvida pelo exercício. Estas pessoas são designadas pelo nome de médiuns, isto é, mediadores (as) ou intermediários (as) entre os Espíritos e a humanidade encarnada. (Kardec apud BRADBURY, 2013-a, p. 1046)

A essa concepção de mediunidade é possível relacionar as ideias estritamente naturalistas da religiosidade popular, descritas por Weber40 (2000, p. 279-280) como “forças extracotidianas” – o que reforça a opção desta pesquisa em tratar a mediunidade como experiência anômala (EA), como já tratado na introdução – atribuídas a um dom pura e simplesmente vinculado à pessoa que por natureza o possui, daí a denominação de carisma. E assim, como apresentarei a seguir, no transcorrer da história dos fenômenos psíquicos, repleta de médiuns notáveis, história na qual as representantes do sexo feminino superam, em grande número, os médiuns do sexo masculino (LOUREIRO, 2008, p. 17)41. Entretanto, as médiuns femininas, não só, sempre se destacaram em quantidade42, mas igualmente se destacaram pela excelência, tal como afirmou Leon Denis (1995 [1903], p. 75): “é à mulher, entretanto, que parecem outorgadas as mais belas faculdades psíquicas”. Desta feita, é bastante contraditório o fato das mulheres médiuns apresentarem melhor desempenho de que os homens, numa função imprescindível no trabalho espírita, e mesmo assim estarem relegadas aos “silêncios da história” (BRITO, 2013).

40 “Não exclusivamente, mas sobretudo, é a essas forças extracotidianas [...] para as quais empregamos aqui de uma vez por todas o nome ‘carisma’ ”. (WEBER, 2000, p. 279) 41 Carlos Bernardo Loureiro (2008, p. 455-458), em sua coletânea de biografias de mulheres médiuns, registra no índice alfabético cerca de noventa nomes de médiuns de diversos países, sendo que cerca de uma dezena ele classifica como médiuns católicas. Arthur Conan Doyle (1960 [1926]) em sua obra “HISTÓRIA DO ESPIRITISMO” dá destaque à biografia de apenas três nomes masculinos, Edward Irving (1792-1834), Emmanuel Swedenborg (1688-1772), (1826-1910), dentre aproximadamente uma dezena de médiuns- homens citados pelo autor. Na literatura mediúnica brasileira parecem se destacam, em número, mais os nomes femininos – como Yvonne Pereira (1900-1984), Zilda Gama (1878-1969), Marilusa M. Vasconcelos (1942-), Zibia Gasparetto (1926-), Wanda A. Canutti (1932-2004), Célia Xavier Camargo, Irene Pacheco Machado – do que os médiuns masculinos. E ainda, no mercado nacional, muito se consumiu as obras psicografadas pela médium russa Vera Kryzhanovskaia, (1885-1917), do autor espiritual J. W. Rochester. 42 Marcel Mauss (2003, p. 65), ressaltando o aspecto antropológico do fenômeno, afirma não ser tanto o biótipo feminino, mas o preconceito da sociedade que confere às mulheres virtudes mágicas (fenômenos histéricos ou faculdades mediúnicas). Mauss afirma que “É menos por seus caracteres físicos do que pelos sentimentos sociais suscitados por suas qualidades que elas devem ser reconhecidas em toda parte como mais aptas à magia que os homens.” (2003, p. 65).

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1.1. UMA INTRODUÇÃO AOS PRIMÓRDIOS DO ESPIRITISMO

Os primórdios do Espiritismo foram marcados por um processo de consolidação das lideranças masculinas, ainda no movimento espiritualista – anterior ao Espiritismo e que transmitiu a este como legado as suas relações de gênero conflitivas. Esta consolidação das lideranças masculinas – enquanto validação das relações de gênero da sociedade mais ampla – ocorreu devido às condições socioculturais destas mulheres médiuns em relação ao grupo dominante na hierarquizada sociedade americana do século XIX. E numa sociedade onde homens subjugavam outros homens43 as diferenças etno-raciais, formação acadêmica, entre outras diferenças, as relações sociais de gênero se projetavam igualmente para a academia, para as religiões, para os salões parisienses e também para o nascente Espiritismo, o qual não surge de forma institucionalizada como religião circunscrita em igrejas e nem como ciência circunscrita pelos muros de uma universidade. Este surge de forma espontânea, clandestina, improvisada num cômodo de uma residência44, e é justamente nestes espaços domésticos45, demarcados como femininos (BOURDIEU, 2012), sobre uma mesa46, típico utensílio (mobiliário) feminino, primeiro objeto desta nova epifania47, que as manifestações espíritas se irrompem (ELIADE, 1992, p. 17), pela ação conjunta de médiuns femininas48 e espíritos. Segundo M. L. V. de Castro (1988), a denominação “casa” ou “lar” – como qualificativo carinhoso ou como parte da razão social – para as instituições espíritas, ainda hoje, “não é gratuita”, pois:

43 E bem como também mulheres brancas e ricas subordinavam outras mulheres indígenas, negros de ambos os sexos, mulheres e crianças e ou homens brancos pobres embora estivessem abaixo de homens brancos ricos. 44 Somente algum tempo depois, com a grande repercussão do fenômeno é que este será exibido em salões de festa ou estudados em laboratórios de renomados cientistas. 45 “A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres [...].” (BOURDIEU, 2012, p. 18). 46 No Brasil, a prática popular, quase institucionalizada, de evocação de espíritos dos mortos para resolver perturbações e enfermidades (SILVEIRA e SILVA, 2013, p. 113) denominou-se de “mesa branca”. Esta consistia, como descreve Dona Marina da Ilha de Colares-PA, em: “A gente fazia uma mesa branca, botava umas flores, botava um copo com água, mandava os médiuns sentarem, rezava e pronto”. (SILVEIRA e SILVA, 2013, 117). 47 Outras experiências mediúnicas se utilizarão e consagrarão o copo (de boca para baixo, rodeado de letras do alfabeto e outros sinais), o pêndulo e a tábua-jogo “”, todos com estrutura e funcionamento semelhantes entre si. 48 Os primeiros fenômenos mediúnicos foram os de efeito físico, como já havia me referido anteriormente (sobre os “raps” e as “mesas girantes”), produzidos pelos espíritos a partir da doação de ectoplasma da/o médium, como a levitação e transporte de objetos, escrita e voz direta, e a própria materialização dos espíritos (KARDEC, 2003 [1861]).

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Historicamente os lares foram os seus focos de difusão e, ainda hoje, embora exista orientação da Federação no sentido de que se evitem determinadas reuniões nos lares (basicamente as de caráter mediúnico), eles permanecem ativos [...] uma das formas de nascimento de um novo centro é a ampliação das atividades de um lar. Esse laço com a casa, com o doméstico é um dos responsáveis pela vitalidade da presença feminina nessa religião. (CASTRO, 1988, p. 18).

Esta afirmação de Castro confirma o processo de implantação, descrito por Brito (2013), das primeiras experiências mediúnicas, na cidade de Goiás, empreendidas por grupos espíritas constituídos basicamente de familiares, que funcionavam de forma precária, sem estatuto e/ou denominação, em residências construídas na periferia da cidade (casas de veraneio, das fazendas e das chácaras) para fugir do controle direto da Igreja e do Estado49, pois por serem reprovadas pela Igreja Católica, eram realizadas a princípio de modo velado, pelo fato de que nesse período a prática do espiritismo era considerada crime (BRITO, 2013, p. 23-25). Este contexto sociocultural de repressão e de recolhimento ao espaço privado, bem mais que as poucas orientações de Kardec a respeito da organização de sociedades espíritas, marcou profundamente toda a estrutura e organização do movimento espírita: a arquitetura simples, com a adaptação de prédios residenciais; o mobiliário e ornamentação comuns a residências, a mesa com uma toalha alva, as cortinas de renda, os vasos de flores, o filtro de barro na entrada; o ritual de reuniões fechadas ou de acesso restrito, de portas fechadas; a aplicação de passes em câmaras reservadas, semi-iluminadas e longe das vistas de curiosos e perseguidores; a prece silenciosa. Bernardo Lewgoy (2000) confirma o “domínio cultural da casa” enquanto modelo estruturante das associações espíritas50, afirmando que o espiritismo é um religião do domínio do interno [...] só atua em ambientes internos, repelindo procissões e demonstrações públicas, na rua, sendo portanto, referido, basicamente, ao domínio cultural da casa. [...] Nesse sentido, o culto do evangelho no lar e as ações de caridade são as principais ações extra-centro legítimas. (LEWGOY, 2000, p. 78).

Assim, pode-se afirmar que o Espiritismo nasceu e ainda se dá – naqueles centros espíritas cujas atividades são centradas na reunião mediúnica – em um lócus feminino cuja “dominância de valores do feminino é rica e complexa” (LEWGOY, 2000, p. 78) forja um ethos

49 A Constituição do Império (1824), no seu art. 5, embora mantivesse a “Religião Catholica Apostolica Romana” como religião oficial do Império, em tese, permitia a coexistência de “todas” as outras religiões desde que seu culto fosse doméstico ou em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo. Isto certamente colaborou que a arquitetura das instituições espíritas mantivesse como característica essencial a simplicidade de sua fachada e a disposição de seus cômodos internos, desde sua implantação no Brasil aos dias de hoje. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 05 jan. 2015. 50 Denomino de associações espíritas aqueles grupamentos espíritas que realizam, de forma precária, reuniões de estudos e/ou exercício mediúnico em locais improvisados como a residência de um dos membros ou um local cedido ou alugado para este fim até que seja feita sua institucionalização legal como centro espírita.

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igualmente feminino (SILVA, 2006), principalmente naquelas atividades relativas à mediunidade, onde as mulheres são a esmagadora maioria, ou seja, nos trabalhos que envolvem diretamente o corpo na comunicação com os espíritos ou com as energias de maneira mais ostensiva, ao passo que a presença dos homens enquanto médiuns é ainda muito acanhada. Isso, obviamente, contribui para a conformação de um determinado ethos mediúnico, pois apesar das especificidades individuais há um tom emocional coletivo permeando as reuniões onde ocorre o transe condicionado tanto pela religião, quando pelo grupo que as compõe. (SILVA, 2006, p. 160) [Grifos meus.]

Na ilustração abaixo é possível perceber, a partir da análise das fachadas, este domínio doméstico das reuniões espíritas, principalmente se for considerado o contraste com a Igreja Católica, esta claramente caracterizada como espaço público e religioso, pela sua arquitetura com crucifixo, porta larga de entrada, torre e sino. Nela aparece o Centro Espírita “Luiz Gonzaga”, fundado por Chico na própria residência da família Xavier – primeiro na residência de José Cândido Xavier e depois, a nova sede foi construída no local onde se erguia, antigamente, a casa de Maria João de Deus, genitora de Chico Xavier – em 1927, em Pedro Leopoldo, onde iniciou o exercício mediúnico. Figura 1 - Centro Espírita “Luiz Gonzaga” (fachada alva à direita)

Fonte: Página “A Nova História do Espiritismo” 51

Para Lewgoy (2000, p. 78), os atributos e valores culturalmente atribuídos ao gênero feminino emprestam à atividade mediúnica um caráter marcadamente feminino, onde “A passividade é necessária para o bom funcionamento da mediunidade, assim como a atitude de humildade é condição extremamente valorizada para a elevação moral e espiritual.”

51Disponível em: Acesso em 03 mar. 2015.

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Assim, não obstante o movimento espírita ter nascido a partir de médiuns-mulheres, no interior de um lar, em redor de uma mesa – espaço e instrumento ideológica e pretensamente atribuído às mulheres52, e estas mulheres comuns até então, marginais em uma sociedade androcêntrica, mesmo tendo recebido certa forma de “empoderamento” 53 – contraditoriamente, não são elas, mas os homens que – até então eram apenas mero espectadores – passam a desempenhar funções de liderança, fiscalização, controle e sistematização doutrinária. Assim, as mulheres mesmo “empoderadas” espiritualmente – pela mediunidade, ou seja, pela capacidade de comunicação com o sagrado e de produzir melhoras de saúde – continuaram rebaixadas, em relação ao seu status social, tanto na sociedade quanto no próprio movimento espírita, nos embates da institucionalização deste. Boa parte das mulheres-médiuns era pobre, de uma etnia estrangeira, com pouca ou nenhuma escolarização, muito jovem e tida como desviada da igreja – como as irmãs Fox – o que era compreendido como premente necessidade de tutela. Estes tutores eram o extremo oposto das mulheres: homens bem sucedidos, intelectuais – homens de ciência. Difícil dizer que estas mulheres que acumulavam caracteres tão depreciativos na escala de valores sociais foram valorizadas, tal como afirmam muitos historiadores nativos (KARDEC, 1995 [1857]; DENIS, 1988 [1903]; DOYLE, 1960 [1926]) e pesquisadores da academia (SILVA e SGARBI, 2007; BUENO, 2009; VILELA e MESSIAS, 2011; BRITO, 2013). É neste contexto sociocultural androcêntrico que destaco algumas “her-storys” do Espiritismo.

52 Até mesmo no espaço destinado às mulheres – segundo a divisão sexual do trabalho - ainda os homens são entendidos como “chefes de família”, numa clara definição de hierarquia nas relações de poder e gênero no interior das famílias, também em relação aos filhos e agregados. Culturalmente, exigia-se que o pai, o chefe da família fosse tratado - e respeitado seu comando - pela esposa e filhos com deferência extremada (LARA, 2001, p. 2). 53 Michelle Marinho Veronese (2013, p. 199) sustenta a tese de “empoderamento ao afirmar que “Circulando entre o público e o privado, combinando ciência e religião e ousando negar os papéis então imposto às mulheres, estas figuras encontraram em pleno século XIX, uma forma de empoderamento.”

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1.2. AS MENINAS-MÉDIUNS DA FAMÍLIA FOX

Embora ainda haja certa indefinição, no movimento espírita e também na academia, sobre qual seria o marco inicial54 dos fenômenos mediúnicos fizemos a opção de situar este início nas experiências anômalas ocorridas com as jovens-médiuns Katherine "Kate" Fox (1837–1892) e Margaret "Maggie" Fox (1833–1893) - ver figura 2 - , com 11 e 14 anos de idade, respectivamente, na época (1848) em sua residência no povoado de Hydesville, estado de Nova Iorque-EUA, assombrada pelo espírito de um homem assassinado no local. Esta opção ou recorte na pesquisa justifica-se, primeiro por ser este marco considerado por muitos espíritas e pelo próprio Kardec (1997 [1869], p. 13), como o princípio do movimento e, particularmente, por este caso ter ocorrido com médiuns femininas, pobres e muito jovens e, portanto, por estas acumularem diversos tipos de discriminação social. Assim sendo, este caso enquadra-se nos dois enfoques da pesquisa “Espiritismo” e “Gênero”, nos possibilitando além da análise histórica do movimento, uma análise de gênero do caso. Figura 2 – As irmãs Fox.

Fonte: Página “Library of Congress (USA)”. 55

54 Não começaremos pela análise da biografia do vidente sueco Emmanuel Swedenborg (1688-1772), ou pelo escocês Edward Irving (1792-1834), nem pelo clarividente norte-americano Andrew Jackson Davis (1826- 1910), como faz Doyle (1926, p. 32 e ss.) descrevendo a experiência destes, como marco divisão entre as “interferências preternaturais” ocorridas no passado – “casos esporádicos de extraviados de uma esfera qualquer” – casos, segundo Doyle, “têm características de uma invasão organizada” – antes de narrar os acontecimentos da família Fox. 55 Disponível em: < http://cdn.loc.gov/service/pnp/cph/3a00000/3a06000/3a06200/3a06258r.jpg> Acesso em 02 mar. 2015.

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Conforme Arthur Conan Doyle (1960 [1926]) registra no primeiro apêndice de sua “História do Espiritismo”, depoimentos informam que a casa era “assombrada” antes dos Fox residirem lá. A mãe, Sra. Hannah Weekman, afirma: Algumas noites depois uma de nossas meninas, que dormia no quarto onde agora são ouvidas as batidas acordou-nos a todos soluçando. [...] Ela sentou-se na cama em pranto e nós custamos a verificar o que se passava. Disse ela que algo se movimentava acima de sua cabeça e que ela sentia um frio sem saber o que era. [...] Ela se levantou e foi para a nossa cama, mas custou muito a adormecer. [...] Tinha ela então oito anos. (DOYLE, 1960 [1926], p. 472)

Tal como a criança da família Weekman, a princípio, as crianças da família Fox, ficaram com medo e correram para a cama dos pais. André Luís Q. de Paiva conta que as irmãs Fox, como tantas mulheres-médiuns precursoras do Espiritismo, “amedrontadas, desamparadas, sem rumo algum”, foram vítimas de toda sorte de calúnia e perseguição. Como apresento a seguir, as irmãs Fox foram as primeiras vítimas da violência de gênero no meio espiritualista, violência – principalmente, por parte de experimentadores e pesquisadores – que se repetiria com outras tantas mulheres-médiuns, as quais jamais se recusaram carregar “até o fim da vida, a pesada cruz” do mediunato, por pior que fosse a humilhação e a violência pela que passassem em inspeções minuciosas e brutais, antes e durantes as sessões mediúnicas (PAIVA, s.d., s.p.). Doyle relata, neste sentido, que em determinado momento do crescimento do fenômeno mediúnico das irmãs-médiuns: despiram as meninas, submetendo-as a investigações aflitivas e de modo brutal. Seus vestidos foram amarrados apertados nos corpos, e elas colocadas sobre vidros e outros isolantes. A comissão se viu obrigada a referir que, “quando elas se acham de pé sobre almofadas, com um lenço amarrado à borda de seus vestidos, amarradas pelas cadeiras, todos nós ouvimos as batidas distintas nas paredes e no soalho”. (DOYLE, 1960 [1926], p. 83)

Marcel Souto Maior (2014) ressalta que as primeiras comissões de investigação dos fenômenos produzidos pelas irmãs Fox eram compostas só de homens e que os atos daqueles “cavalheiros” de tocar, amarrar cordas em redor dos vestidos e atar seus tornozelos eram “atos quase libidinosos” (MAIOR, 2014, p. 90). O autor afirma que, para se evitar este abuso masculino, um novo comitê “complementar” formado por mulheres que “levou-as a um cômodo à parte, tirou seus vestidos e fez buscas, em seus ‘corpos e roupas’, à cata de objetos capazes de fazer ruídos” (MAIOR, 2014, p. 91). Situação esta ainda muito vexatória para as meninas-médiuns, que além de ter de expor seus corpos nus, eram suspeitas de serem inidôneas e fraudulentas.

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Esta violência de gênero entre intelectuais masculinos “idóneos e competentes” e as mulheres-médiuns (LOUREIRO, 2008 [1996]) em parte se explica pela condição de inferioridade em que estas eram localizadas na hierarquia de gênero das sociedades de origem europeia, no século XIX. Lúcia Loureiro retrata que estas mulheres-médiuns eram, quase sempre, suspeitas de possessão demoníaca, de loucura, de fraudes, de serem mercenárias e, “nos laboratórios” serviam como cobaias humanas enjauladas, sofrendo os maiores sacrifícios e humilhações: Em benefício da Ciência, mulheres entraram nos laboratórios e se submeteram aos maiores sacrifícios e humilhações, a fim de serem experimentadas por pesquisadores idóneos e competentes (LOUREIRO, 2008 [1996], p. 17-18).

As duas imagens que apresentam abaixo testificam esta violência de gênero a que eram submetidas as médiuns por experimentadores do sexo masculino. A figura 3 mostra a médium Otília Diogo sendo amarrada por elementos de uma equipe de aproximadamente 15 experimentadores (médicos e repórteres da revista "O Cruzeiro"), para a realização de uma sessão de materialização de espíritos na cidade de em 1964, sob coordenação do médico e espirita e contando com a presença de Chico Xavier. Na figura 4, a médim se encontra só com uma camisola preta, com os pés e mãos atados, e encarcerada em uma jaula, supostamente preparada, de acordo com os homens de ciência, para a experiência de materialização de espíritos. Figura 3 – A médium sendo preparada para a experiência.

Fonte: Página “Resgate histórico: revista O Cruzeiro de 01/02/1964” 56.

56 Disponível em: Acesso em 02 mar. 2015.

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As irmãs Fox, nos Estados Unidos da América, acumularam muitas interdições da religião de origem (Metodismo), por serem menores de idade, por ser leigas, por serem mulheres e por manipularem “magia” ou “carisma” ao comunicarem-se com espíritos dos mortos. E tais manifestações populares não tardaram em ganhar o interesse da academia, onde eminentes cientistas e intelectuais buscavam compreender e dominar o fenômeno, à semelhança de um corpo sacerdotal (secularizado) a desejar o direito do monopólio do controle de tais manifestações metafísicas. Embora o Espiritismo tenha sempre alegado a inexistência de uma hierarquia sacerdotal oficial57, enquanto ciência e filosofia espírita, o domínio do capital simbólico (a Doutrina Espírita) e do rito (o método experimental), por muitas vezes, conferiu – e certamente ainda hoje confere – à categoria de experimentadores (doutrinadores e dirigentes de reunião mediúnica) uma supervalorização destes em relação às médiuns. Figura 4 – a médium amarrada e enjaulada.

Fonte: RIZZINI, 1997 [1964]58. Como Fernandes (2008) afirma, com isto houve uma hierarquização das funções de experimentadores (pesquisadores) e de médiuns, onde se separou o trabalho intelectual do trabalho mecânico (braçal): Os médiuns [principalmente as do sexo feminino] tiveram um papel mais acentuado na divulgação espírita a partir do século XX, [...] Todavia, no princípio do espiritismo, os médiuns estavam mais subjugados ao mando e orientação de

57 O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas, não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu o título de sacerdote ou de sumo-sacerdote. Estes qualificativos são de pura invenção da crítica. (KARDEC, 2011 [1890], p. 221) [Grifos meus.] 58 Cf. referências RIZZINI, 1997 [1964], p. 7.

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intelectuais pesquisadores, que lhes solicitavam que produzissem os fenômenos para que esses fossem estudados. Mesmo no caso de Kardec, nota-se que os médiuns ocupavam um segundo plano no processo de "formação do conhecimento espírita", sendo o primeiro plano ocupado pelo seu trabalho e de seus colaboradores que, apesar de dizerem que "pertenciam aos espíritos" os princípios gerais da doutrina que estavam a trabalhar, eram eles os grandes responsáveis por sistematizar e dar corpo a tais conhecimentos. (FERNANDES, 2008, p. 15)

Estes intelectuais das classes mais abastadas, majoritariamente do sexo masculino, movimentaram-se a fim de resguardar para si o direito de exclusividade sobre a manipulação de mulheres com poderes especiais, as quais produziam curas pela imposição de mãos, faziam diagnósticos de saúde, sem ter conhecimentos mínimos de medicina, e etc. Assim, encontra-se na elite intelectual de então, apenas nomes masculinos59, como Fernandes afirma: os intelectuais foram e são os grandes divulgadores do espiritismo. É a doutrina de um intelectual que era assistido por intelectuais. César Lombroso, Gabriel Delanne, Ernesto Bozzano, , entre tantos outros, foram pensadores e cientistas importantes do seu tempo que se dedicaram ao estudo e divulgação de alguns dos princípios espíritas. (FERNANDES, 2008, p. 15)

A figura 5 ilustra esta relação entre as médiuns femininas e os “homens de ciência”. Do lado direito encontra-se a médium Eusapia Paladino, que foi submetida a experiências por cientistas da época, tais como Alexandre Aksakof, César Lombroso, Charles Richet, Ernesto Bozzano, Enrico Morselli, Pierre Curie e Marie Curie, , William Barrett, Camille Flammarion e outros. Entre estes intelectuais, esteve Allan Kardec, que elaborou sua proposta de ciência espírita dentro de uma nova cosmologia religiosa, em oposição à crença vigente, atraindo para si e para seus/suas divulgadores/as e médiuns a perseguição religiosa, policial e política de Estados não-laicos. Portanto, pode-se afirmar que as perseguições que sofreu – e de certa forma ainda sofre – o Espiritismo são decorrentes da concepção que se tinha de suas práticas mediúnicas, as quais eram consideradas profanas em oposição aos: detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, [...] e, paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (ou seja, a magia ou

59 Em breve levantamento, cheguei a dezenove nomes de pesquisadores que mais se destacaram no estudo da mediunidade: Alexander Aksakof (1832-1903), Alfred Russel Wallace (1823-1913 ), Baron von Schrenck-Notzing (1862-1929), Camille Flammarion (1842-1925), Cesare Lombroso (1835-1909), Charles Richet (1850-1935), Ernesto Bozzano, 1862-1943, Eugene Auguste Albert D'Aiglun Rochas (1837-1914), Frederic Myers (1843-1901), Gustave Geley (1865-1924), Henri Bergson (1859-1941), James Hyslop (1854-1920), Johann Karl Friedrich Zöllner (1834-1882), Julien Ochorowitz (1850-1918), Oliver Lodge (1851-1940), Paul Gibier (1851-1900), W. J. Crawford (1881-1920), William Barrett (1844-1925), William Crookes (1832-1919).

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a feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia como anti-religião ou religião invertida). (BOURDIEU, 2007, p. 43)

Figura 5 - Levitação pela médium Eusapia Paladino (25/11/1898).

Fonte: Página “Mesas girantes” 60

1.3. UM DESENVOLVIMENTO ANORMAL? Magia ciência religião...

Os acontecimentos que, na Europa, sucederam a partir do Renascimento (em sua múltipla dimensão: comercial, filosófica, científico-tecnológica) com a ascensão da burguesia e decadência da nobreza e do clero, em especial após as grandes navegações e a revolução industrial, forjaram uma nova religiosidade no Ocidente, resultado, em parte, de um processo de secularização das instituições sociais (das ciências, das artes, das leis,... e das religiões), que produzirá um “desencantamento do mundo” (Weber apud PIERUCCI, 2003) entendido como não só uma nova cosmovisão, mas também um novo ethos (modus vivendi) nas metrópoles (Europa) e nas colônias (Américas, África e Ásia). Elisabeth Badinter (2003, p. 21) dirá que na Europa – em especial na Inglaterra e França, O espírito de religião não é mais o que era: a devoção é frequentemente mais uma polidez da velhice que um ideal de vida. O inferno já não causa tanto medo [...] Para isso há uma razão essencial: uma mudança radical de objetivo. A vontade de viver feliz aqui e agora substituiu o desejo de beatitude eterna. [...] O materialismo moral vindo da Inglaterra faz estragos no espírito dos franceses.

É neste contexto de otimismo tecnológico, estimulado pelo cientificismo e pelo Positivismo, e em contrapartida num processo de crise da religiosidade europeia em que se constitui o Espiritismo, justamente na apoteótica e revolucionária classe burguesa e intelectual da França, dos séculos XVIII e XIX:

60Disponível em: Acesso em 03 mar. 2015.

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O momento não é mais de temerosa submissão ao Deus ciumento nem aos medos do inferno. Os homens das Luzes falam mais de deísmo e de ateísmo que de religião. Denunciam os dogmas e a superstição que opõem à razão e à tolerância. As próprias mulheres ousam rir das devotas e se distanciam das práticas religiosas. [...] os deístas eram relativamente numerosos na aristocracia e na grande burguesia. Para eles, o Deus terrível e os padres cruéis das religiões reveladas se comportavam como impostores. Somente a lei da Natureza era divina e universal. [...] Havia, em Paris, círculos ateus. Nos cafés da moda, frequentados pelos intelectuais, zombava-se do "Ser Supremo". Madame du Châtelet sempre se proibiu, como Voltaire, de ser ateia. Na verdade ela tinha muita necessidade de Deus como último princípio para consolidar sua física. Não um Deus que fala ao coração do homem, mas um Deus geométrico, universal e racional no qual basear suas equações. “Seu deísmo geométrico exclui o sentido do mistério e a angústia metafísica.” (BADINTER 2003, p. 24-25) [Grifos meus.]

Este é o mesmo Deus concebido e propalado pelo deísta Allan Kardec, não o deus antropomórfico da tradição judaico-cristã, mas um deus imanente, o qual se confunde com as irrevogáveis leis naturais61. Após a ascensão da burguesia, esta se fez, de certo modo e ironicamente, à semelhança do modus vivendi da nobreza, onde o status quo do ócio e da ostentação de riqueza e poder se transladara dos saraus medievais para os salões modernos. Neste contexto social surgia o Espiritismo, intimamente relacionado com este espírito de curiosidade filosófico-científica, fruto da secularização, por um lado, e por outro, ostentação da burguesia e busca de uma nova espiritualidade. Sintetizando, antes de surgir a versão espírita codificada por Allan Kardec, manifestações do sagrado deram origem a práticas que foram denominadas de Modern Spiritualism e de magnetismo animal que revelou por um lado certo relaxamento na vigilância das tendências racionalistas e pelo “desencantamento” e pela secularização, e por outro, certo anseio pelo retorno da religiosidade e pela magia, como Ubiratan Machado afirma: longe de seus olhos vigilantes [da deusa da Razão], em seitas secretas e lojas misteriosas, começou a florescer uma religiosidade mística que [...] Aos poucos, a sociedade, dominada pelas mulheres, também começou a revelar o seu tédio com a frieza da razão [...] O maravilhoso renascia em toda a Europa [...] As damas da mais alta aristocracia se extasiavam com o mistério. (MACHADO, 1996, p. 22) [Grifos meus.]

E como destaco acima, nas citações de Badinter (2003) e Machado (1996, p. 22), as mulheres não estavam ausentes nesta nova religiosidade, aqui elas não foram excluídas tal como elas foram nas igrejas e templos das religiões, como Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, entre outras. Algumas delas mais abastadas, patrocinavam, em especial na “Paris, com a insuperável

61 No terceiro capítulo pode-se ter uma ideia de como Kardec e os espíritos comunicantes, em “O Livro dos Espíritos”, alternam os termos “Deus” e “natureza” como se fossem sinônimos, ou melhor, há uma utilização da metonímia (a troca da obra pelo autor).

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vida de seus salões, a graça de suas mulheres e a espiritualidade de seus habitantes [...]” (MACHADO, 1996, p. 22). Segundo Paulo César Fernandes (2008, p. 12-13), as transformações sociais na França culminaram no “eclodir de novas questões sociais”, onde as mulheres buscavam uma ascensão social, e intelectual, mas não por cursos formais nas universidades, mas abrindo “os famosos salons da burguesia francesa” atuavam como mecenas promovendo saraus para atrair intelectuais, trazendo prestígio social para estas mecenas modernas. Foi assim que Kardec tomou contato com o fenômeno mediúnico: Com a urbanização francesa, que se encontrava em ritmo acelerado - como no resto da Europa -, o deslocamento do eixo do campo para as cidades permitiu o estreitamento dos meios de comunicação e favoreceu o eclodir de novas questões sociais, [...] foi fundamental para o surgimento e proliferação, não só do espiritismo, mas para várias outras doutrinas e movimentos de cunho intelectual: os famosos salons da burguesia francesa. (FERNANDES, 2008, p. 12-13)

Assim diferentes tipos de mulheres se envolveram nos fenômenos espíritas - e de certa forma isto permanece até os dias atuais. Destaco aqui três tipos: as anfitriãs, as quais não eram necessariamente espíritas; as beneficiárias, aquelas que estavam em busca de algum benefício de saúde – algumas destas estavam apenas por curiosidade ou em busca de manter um status social – e, as médiuns (sonâmbulas), as quais foram quem primeiro colaboraram na difusão e consolidação do Espiritismo, como explica Machado: “Uma nova atividade está surgindo: a de sonâmbulo. Em geral, exercido por mulheres, o sonambulismo apregoava o dom de leitura do pensamento, a vidência, o poder de atuar sobre os espíritos perturbadores e de combater os fluidos maléficos que persigam a pessoa.” (MACHADO, 1996, p. 43)

A nova atividade, a qual se tornara moda na França de Kardec, não tardou chegar ao Brasil, introduzida por imigrantes franceses, “Ou melhor, por francesas” (MACHADO 1996, p. 43). Arrisca, o autor, que tal introdução deve-se a mulheres mercenárias: “Daquelas que, embaladas pelo sonho de um dia retornar à França, com um farto pecúlio” (MACHADO, 1996, p. 43) viajavam pelo mundo, mercadejando seus dons espirituais. Mas é provável, que mais mercenários eram os magnetizadores62, estes sim todos homens, sábios e intelectuais, hábeis na capacidade de sugestionar e hipnotizar colocavam suas médiuns em transe e controlavam a manifestação (o fenômeno). Neste sentido Machado (1996, p. 52) registra a dupla analogia: o magnetizador – “aventureiro”, alguém desprovido de dons

62 Esta tutoria por vezes confundira-se com o empresariado artístico: as médiuns se apresentavam para as pesquisas científicas, mas também por vezes eram apresentações públicas e com cobrança de ingressos. E na relação artista (no caso as médiuns) e empresário (no caso os experimentadores e magnetizadores) era comum que houvesse uma inversão hierárquica, sendo este último entendido como o líder e o artista, embora quem fizesse todo o show, devia submissão ao empresário. Tais empresários na busca de otimizar lucros, por vezes, criavam condições vexatórias (amarrando ou trancafiando suas médiuns em jaulas) e fraudulentas como se fossem truques de mágica.

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especiais aventura-se a explorar os dons de outrem, e, a sonâmbula – “pitonisa” antiga sacerdotisa que era induzida ao transe para proferir oráculos. E este comércio da manipulação da magia e do espetáculo, chegou, de início, a ser associado com a “bruxaria”, “mandinga” ou “feitiço” de origem africana, “uma quase mandinga à europeia” por uma minoria da população, pois a maioria acreditava que o magnetismo teria “um certo poder antimandinga”, e assim, “magnetizadores e sonâmbulas vão assumindo, na sociedade brasileira, o papel até então reservado exclusivamente ao feiticeiro”, e bem como ia “aumentando o número de pessoas que trocaram o feiticeiro pelo magnetizador e a sonâmbula” (MACHADO 1996, p. 53; 57). Nesta pré-história do Espiritismo, as mulheres médiuns possuíam certo poder de barganha por serem detentoras de certo carisma, mas certamente não era o suficiente para alterar sua posição numa hierarquia de poderes na sociedade patriarcal, onde “benzedeiras curavam o quebranto dos sinhôs, rezavam mau-olhado” (MACHADO, 1996, p. 54), mas isto não lhes garantia alforria, apenas pequena distinção dentre os demais escravos, da mesma forma as sonâmbulas com seus feitos maravilhosos não lhes garantia um status social à altura dos homens, mas pequena distinção das mulheres comuns. O Espiritismo irá surgir também como um dos subprodutos dessa nova "moda social", pois foi num desses saraus burgueses que pela primeira vez se assistiu ao bailado das "mesas dançantes", e foi ao comparecer a uma dessas reuniões que Allan Kardec teve seu primeiro contato com o fenômeno mediúnico. (FERNANDES, 2008, p. 13) Kardec fora recepcionado por anfitriãs que como mecenas modernas investiam na nova manifestação do sagrado, do fantástico e da magia. Algumas destas mulheres eram mães zelosas de jovens médiuns em busca de explicação, controle e segurança naquelas manifestações de “forças extracotidianas” (WEBER, 2000, p. 279). Outras mulheres, nos luxuosos salões, eram as madames da burguesia que administravam o espaço e as atividades culturais e recreativas, como os cafés parisienses, e também eram igualmente mulheres, as médiuns (sonambulas), que nas experiências curativas de Mesmer (pelo magnetismo animal), eram os instrumentos indispensáveis, embora por vezes inconscientes e passivas, conduzidas e manipuladas por homens experimentadores e hipnotizadores, “homens de ciência”.

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1.4. KARDEC, UM HOMEM DE SEU TEMPO?

Kardec, que não era nem um pouco ingênuo, [...] Sustentou posições conservadoras em relação à mulher, à raça negra e aos movimentos políticos de esquerda. Isso não diminui o seu valor. Apenas demonstra que era um homem de seu tempo, sujeito aos condicionantes psicológicos, culturais e políticos como qualquer ser humano. [Grifos meus] (LARA, 2009, p. 13-14)

Sobre a emancipação da mulher, duas posições contrárias no pensamento de Kardec buscam inutilmente amalgamar-se: De um lado, a supervalorização da família conduz para a reafirmação da tradicional divisão sexual do trabalho. Sendo que, para ele como para Saint- Simon, é no casamento que se pretende estabelecer a igualdade dos sexos. Estas representações de gênero mais tradicionais, no pensamento kardequiano, parecem ser resultado de um longo processo de elaboração, que inicia-se no Naturalismo de Rousseau, o qual pressupunha que a natureza criara mulher para agradar ao homem e para ser subjugada por ele, pois um era “ativo e forte” e o outro “passivo e fraco”. Por isso: a rigidez dos deveres relativos a ambos os sexos não pode ser a mesma, ao homem deveria caber o mundo da política (e do trabalho produtivo) e à mulher o restrito espaço do lar. Este processo ganha força na biologia positiva de Auguste Comte que afirma ser próprio da constituição humana uma inevitável subordinação da mulher ao sexo masculino, assim interditando, às mulheres, a possibilidade de sair de “seu santuário privado”, para exercer funções laborais, intelectuais ou sacerdotais. Estava reservada às mulheres apenas a função de reprodução moral da sociedade (SAFFIOTI, 2013, p. 112). Dora Incontri e Przemyslaw Grzybowskiy (2012), para explicar o caráter conservador de Kardec, buscam localizar o seu pensamento no contexto da época (1847) e associá-lo a pensadores conservadores, como Rosseau: pode nos parecer hoje muito limitante para a mulher, mas devemos entendê-lo no contexto de 200 anos atrás. A mulher então não era considerada como força de trabalho profissional [...] Os estudos que se davam às mulheres da burguesia e da aristocracia eram apenas uma concessão e não eram vistos como obrigatórios. O próprio Rousseau, [...] era nesse ponto muito conservador, limitando ao extremo a educação dada a Sophie, companheira de Emilio. (INCONTRI; GRZYBOWSKI, 2012, p. 121)

Por outro lado, o pensamento progressista de Charles Fourier (1772-1837) – que vivera em Paris na época de Kardec – parece querer emergir, com dificuldade, no pensamento kardequiano. Ao contrário do que este escrevera na juventude (aos 24 anos): que a educação feminina forme moças que “devem ser antes de tudo esposas, mães e dirigentes do lar”, Fourier propunha que “a sociedade ofereça à mulher educação idêntica à do homem e que a libere definitivamente dos trabalhos domésticos” (SAFFIOTI, 2013, p. 113).

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Mas nem tudo era atraso na época de juventude de Kardec (RIVAIL, 2005 [1828], p. 121). Por exemplo, em sua proposta educacional este reconhece que “mulheres são requisitadas a realizar importantes funções no comércio, na indústria e até na administração”, entretanto sua proposta de educação feminina era muito limitada. Quarenta anos depois, na Revista Espírita (2004 [1867]; 2004 [1869]), Kardec parece advogar o direito das mulheres se formarem bacharéis63, e até em medicina; a ter direito ao voto, mas de forma muito sutil, nada muito prescritivo. Em relação à emancipação feminina, parece haver uma comunhão de ideais entre Fourier que propõe que “Os progressos sociais e as mudanças de períodos [históricos] se operam em razão do progresso das mulheres em direção da liberdade, e as decadências de ordem social se operam em razão do decréscimo da liberdade das mulheres” (SAFFIOTI, 2013, p. 114) e Kardec (1995 [1857], p. 381), que fechando o subcapítulo “Igualdade dos direitos do homem e da mulher” registra: “A emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização. Sua escravização marcha de par com a barbaria.” No entanto, Kardec não fugiu aos moldes da família burguesa da França napoleônica. Uma sociedade revolucionária em alguns aspectos e conservadora nas questões de gênero. Ele parece identificar-se plenamente com este modelo de família, consagrados pela escrita de Fénelon64, Rosseau e Pestalozzi. Famílias nucleares com bem distinta divisão sexual do trabalho: os homens deveriam se incumbir da provisão da casa, e às mulheres restava-lhes o serviço doméstico, em especial a educação da prole.

63 Kardec (RIVAIL, 2005 [1828], p. 123) propõe que “Para a vida diária, mulheres necessitam saber um pouco de tudo, seja para seu uso pessoal, seja para prover para seus filhos noções justas e cuidar de sua educação” - e a fim de resguardar a “imagem de mulher inspirada na filosofia comteana, a mulher-mãe com qualidades morais altruísticas, a fêmea humana, bondosa, redentora”, devia-se “afastar a mulher brasileira das doutrinas excessivas” (ALMEIDA, 1998, p. 32). 64 Para Sebastião Pinheiro Martins (2006, p. 123), Kardec era “fiel às ideias de Fénelon”, em duplo aspecto, na insistência em “não se descurar da educação das meninas e das moças” e na proposição de uma educação desigual para meninos e para meninas. Baseado no naturalismo, afirmavam que sendo os sexos biologicamente diferentes, os papéis sociais deveriam ser igualmente distintos (MARTINS, 2006, p. 123).

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1.5. AMÉLIE GABRIELLE BOUDET, A MME. KARDEC

Kardec nem todo tempo fora conservador, pois também quebrara a tradição machista de se casar com uma mulher mais nova, para subjugá-la65, ao casar-se com uma mulher quase dez anos mais velha, Amélie Gabrielle Boudet (1795-1832). Esta também pertencia à pequena burguesia. Era filha única de rico proprietário e antigo tabelião, era oriundo de uma família de “renomados intelectuais”. foi educada como todas as mulheres de sua condição econômica, provavelmente em colégio interno. Nessa época começaram a se proliferar os internatos de moças entre 15 e 18 anos, pertencentes à elite, onde eram ministradas aulas de educação moral e social, a fim de se tornarem raparigas encantadoras e aptas nos salões matrimoniais da burguesia. [...] Era, como se vê, uma mulher da elite, rica e solteirona, integrada na cultura literária dos salões parisienses. [...] Foi, desde cedo, preparada para as chamadas prendas domésticas, como qualquer mulher da burguesia. [...] Amélie fugiu a essa regra. Mesmo tendo sido educada para ser uma matrona, daquelas grã-finas fúteis e vazias que recheavam os salões de festa de Paris, preferiu seguir outro caminho. (LARA, 2011, p. 4-5)

Gaby, como carinhosamente Kardec a tratava, era professora de 1ª classe e também de Letras e Belas Artes (WANTUIL, 1982, p. 51) e escritora de livros didáticos, tal como Kardec. A pouca biografia a respeito da esposa de Kardec não nos permite fazer grandes especulações. Mas o que teria acontecido com a brilhante carreira de Gabi, depois de casada? Wantuil afirma que até o casamento (06/02/1832) Amélie Gabrielle escrevera três livros: Contos Primaveris (1825), Noções de Desenho (1826) e O Essencial em Belas Artes (1828). E em relação à sua carreira de magistério após o casamento, “colaborava de alguma forma na preparação dos cursos gratuitos que haviam organizado na própria residência” (WANTUIL, 1982, p. 51-53). Entretanto, tendo em vista a divisão sexual do trabalho vigente na época – e que ainda tem vigência em muitas famílias – quantas mulheres, como Gabi, não encerram suas carreiras para assumir apenas o trabalho doméstico? Num período de revoluções na França, o trabalho feminino (e o infantil) embora pouco remunerado, era possivelmente a única fonte de renda de muitas famílias. Kardec que passara por ao menos dois períodos de crise financeira, me pergunto se o trabalho remunerado de

65 Dora Incontri (2005, p. 121) sugere que a relação de Kardec “com o tema da mulher no século XIX mereceria um estudo mais aprofundado, [relação esta que busquei nesta pesquisa] já a partir de sua atitude, pouco convencional, de se casar com uma mulher 9 anos mais velha que ele, intelectualizada escritora e envolvida com a educação”. Em relação ao casamento “pouco convencional” de Kardec esclarece Eugenio Lara (2001, p. 3) que “Os casamentos eram de preferência endogâmicos, entre donzelas e homens maduros, com uma diferença de idade razoavelmente grande. A união matrimonial de um casal, onde o homem fosse bem mais novo que a mulher era execrável, não era de bom-tom, um fato repreensível e evitado pela grande maioria.”

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escritora e professora de Gaby não teria salvado o orçamento doméstico? Sem a necessidade de recorrer a empréstimos. Em 1835, o casal sofreu doloroso revés. Aquele estabelecimento de ensino [propriedade da família] foi obrigado a cerrar suas portas e a entrar em liquidação. Possuindo, porém, esposa altamente compreensiva, resignada e corajosa, fácil lhe foi sobrepor-se a esses infaustos acontecimentos. (WANTUIL, 1982, p. 52)

Marcel Solto Maior (2014) explica que era outro homem (provedor masculino) que salvava o orçamento da família, o sogro: Durante todo o tempo, Amélie esteve ao lado do marido e, com o suporte do pai, tabelião e próspero proprietário de terras, ajudou Rivail [Kardec] a complementar a renda mensal obtida com a venda dos livros pedagógicos – cada vez mais escassa no novo regime – e com os bicos como contador. (MAIOR, 2014, p. 66-67)

Mesmo sem filhos66, o casal desenvolve seus papéis sexuais bem distintos - tal como na divisão sexual do trabalho que seria consagrada anos mais tarde em “O Livro dos Espíritos”: “que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão” (Kardec, 1995, p. 381). Zêus Wantuil afirma que na hierarquia de família, Kardec era o chefe, o principal e Amélie era a “secretária”, cuja função é secundária, contribuição oculta realizada na “vida privada”: Tornou-se ela verdadeira secretária do esposo, secundando-o, nos novos e bem mais árduos trabalhos que agora lhes tomavam todo o tempo, estimulando-o, incentivando-o no cumprimento de sua missão. Sem dúvida, os espíritas muito devemos a Amélie Boudet e estamos de acordo com o que acertadamente escreveu Samuel Smiles: os supremos atos da mulher geralmente permanecem ignorados, não saem à luz da admiração do mundo, porque são feitos na vida privada, longe dos olhos do público, pelo único amor ao bem. (WANTUIL, 1982, p. 55) [Grifos meus.]

Com o falecimento de Kardec, sua esposa, Amélie Gabrielle Boudet foi quem assumiu as rédeas do movimento espírita francês (MESSIAS e VILELA, 2011). A fibra com que essa valorosa mulher enfrentou o que se convencionou chamar de Processo dos Espíritas é um grandioso exemplo de tenacidade, coragem e determinação na defesa dos princípios espíritas que professava, da memória de seu marido e do próprio Espiritismo. O zelo e carinho com que cuidou da herança doutrinária de Allan Kardec será sempre algo notável para quem procurar conhecer a sua biografia. (LARA, 2001, p. 15)

Para se ter uma ideia da personalidade de Mme. Allan Kardec, aos 80 anos, transcrevo o protesto por escrito – o qual foi incluído nos autos do Processo dos Espíritas – que fez ao

66 Lara afirma (2001, p. 16) que na virada do século 19 e o início do século 20, “Os casamentos deixam de ser fundamentalmente voltados para a procriação, como foi o exemplo do casal Rivail e da escritora francesa e feminista George Sand e Chopin. Sand foi contemporânea de Kardec, se correspondeu com ele e tornou-se uma entusiasta do Espiritismo [...]”.

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truculento Juiz Millet devido à violência recebida (assédio moral) e ao escárnio em relação ao trabalho doutrinário do marido: “Declaro que o Senhor Presidente da Sétima Câmara Correcional não me deixou livre para bem desenvolver o meu pensamento, pois, em meu interrogatório introduziu reflexões estranhas ao debate e desejou ridicularizar o Senhor Rivail, conhecido como Allan Kardec, fazendo dele um simples compilador e negando seu título de escritor. Protesto energicamente contra essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente, porque é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo quando têm cabelos brancos. Não se deveria interromper-me e mandar-me sentar, após se terem divertido com o que considero inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo para o meu companheiro de provações, para o esposo estimado e honrado por homens do mais alto valor.” (LARA, 2001, p. 13)

Entretanto a performance da esposa e continuadora de Kardec não se pode configurar como uma mudança de paradigma, pois sua a ascensão no Espiritismo, foi temporária67 e circunstancial (emergencial?), como nos informa Fernandes que: Depois de sua morte, instala-se um grande problema no meio espírita. Kardec era o pilar do espiritismo. Seu falecimento [...] foi determinante para os fenômenos que se seguiram. Sua mulher, Amélie Gabrielle Boudet, passou a ser a grande referência do espiritismo, mas a administração da Sociedade passou para as mãos de Pierre- Gaëtan Leymarie, socialista e um dos acompanhantes de Kardec nos estudos de espiritismo desde os primeiros tempos. (FERNANDES, 2008, p. 66)

1.6. AS MÉDIUNS E O CODIFICADOR

Rivail não dera qualquer crédito às irmãs Caroline e Julie Baudin, A Ruth Japhet e a outros médiuns também consultados. Ruth Japhet não se conformou. Pelas suas contas, três quartos do livro se deviam à sua mediunidade e a seus manuscritos, e a omissão a seu nome era, portanto, inadmissível. [...] Aos amigos e colaboradores mais próximos, Rivail dera a seguinte explicação [...]: queria preservar a identidade delas para poupá-las de exposição desnecessária. (MAIOR, 2014, p. 84)

Lúcia Loureiro (2008 [1996], p. 18) afirma que a obra de Carlos Bernardo Loureiro, “Mulheres Médiuns”, “vem resgatar, historicamente, o trabalho abnegado de mulheres médiuns que muito contribuíram, até mesmo com o sacrifício da saúde, do conforto do lar e do lazer”, entretanto, ela lembra que, infelizmente, ao contrário dos ilustres homens de ciência, “no campo da mediunidade, muitas médiuns se conservaram [ou foram propositalmente conservadas?] no anonimato e desconhecidas suas realizações, ou porque não foram pesquisadas ou porque os fatos extraordinários que produziram não vieram ao conhecimento do público”. Lúcia Loureiro (2008 [1996], p. 18) reclama que “existe, ainda, o problema da manutenção da privacidade” - é verdade, mas como diz Foucault (1988, p. 30): “Não existe um

67 Kardec desencarna em 1869 e em 1871 P. G. Leymarie assume a gerência da Revue Spirite e da Livraria, tomando sozinho os encargos da direção da “Sociedade Anônima do Espiritismo”, embora sempre acatando com respeito as instruções de Mme. Kardec (WANTUIL, 1981, p. 60-61).

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só, mas muitos silêncios e são, parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos”, conforme Perrot afirma: o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou no templo; maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas não podem nem ao menos penetrar na hora das orações. [...] Silêncio até mesmo na vida privada. (PERROT, 2005, p. 9-10)

Ironicamente, as médiuns, tão ou mais que seus espíritos comunicantes, são invisíveis, estas tem passado quase despercebidas pelos teóricos espíritas e também pela academia, tais lacunas ou os “silêncios da história” na produção acadêmica e doutrinária, que segundo Lúcia Loureiro (2008 [1996], p. 18), trazem prejuízo à “pesquisa histórica do Movimento Espírita Mundial”. Para a confecção do primeiro livro da codificação – “O Livro dos Espíritos” (1857) – não concorreram somente os espíritos (todos os citados eram masculinos) e Allan Kardec, mas muitas mulheres68 que abriram seus lares, cederam suas mesas e seus “carismas”. O primeiro contato de Allan Kardec com o fenômeno espírita se dera de forma indireta com o mesmerismo ou o magnetismo animal, cujo estudo despertou seu interesse desde 1820. No entanto, foi em 1854, que Kardec ouve falar, pela primeira vez das mesas girantes, pela boca do magnetizador Sr. Fortier, companheiro de estudos sobre o magnetismo (MOREIL, 1986, p. 47). No ano de 1855, Kardec a convite do Sr. Carlotti, outro magnetista, comparecia na casa da médium sonâmbula Sra. Roger, a qual era magnetizada ou hipnotizada pelo Sr. Fortier. Na ocasião, Kardec conhece a médium Sra. Plainemaison, e esta o convida para assistir sessões em sua casa – Kardec testemunha este fato: Foi aí que, pela primeira vez, presenciei o fenômeno das mesas que giravam, saltavam e corriam em condições tais que não deixavam lugar para qualquer dúvida. Assisti então a alguns ensaios, muito imperfeitos, de escrita mediúnica numa ardósia, com o auxílio de uma cesta. Minhas ideias estavam longe de precisar-se, mas havia ali um fato que necessariamente decorria de uma causa. (KARDEC, 2011 [1890], p. 267)

Kardec assim descreve sobre esta parceria com as mulheres que abriam suas casas e colocavam-se à disposição para serem estudadas e manipuladas as suas faculdades extrassensoriais: fui à casa da sonâmbula Sra. Roger, em companhia do Sr. Fortier, seu magnetizador. Lá encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison, que daqueles fenômenos me falaram no mesmo sentido em que o Sr. Carlotti se pronunciara, mas em tom diverso. O Sr.

68 “Foi assim que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.” (KARDEC, 2011 [1890], p. 271)

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Pâtier [...] quando me convidou a assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison, [...] aceitei imediatamente.” (KARDEC, 2011 [1890], p. 267)

Segundo Fernandes (2008, p. 61): “Outras reuniões se sucederiam, só que desta vez com a família Baudin. [...] Continuaram-se as investigações, em 1856, Kardec passa a frequentar as reuniões na casa do senhor Roustan e a Srta. Japhet, sonâmbula”, confirmando a presença marcante destas mulheres, embora aparente anônimas, pois apresentam seus primeiros nomes de batismo eclipsados pelo sobrenome do marido. Lá conhece a jovem-médium Aline Carlotti e recebe de seu anfitrião Carliotti mais de cinquenta cadernos, contendo as mensagens psicografadas dos últimos cinco anos (MOREIL, 1986, p. 49). Ali, também, Kardec é convidado pela família Baudin a participar das sessões realizadas pelas jovens médiuns Caroline e Julie Baudin. Na produção de “O Livro dos Espíritos” outras jovens-médiuns se destacaram como Ruth Japhet, Ermance Dufaux, Adele Maginot, e das senhoras Leclerc, Canu e De Cardone. Mas se o Espiritismo nasce num espaço privado, domínio feminino, de uma cultura oral – da decodificação de manifestações auditivas (raps) e sinestésicas de mesas dançantes que formavam diálogos verbais - logo a psicografia tornaria o movimento espírita letrado. O fenômeno (carisma) era essencialmente feminino, mas sua sistematização enquanto doutrina e sua divulgação era masculina, feita por intelectuais. Comparando as jovens médiuns que contribuíram na codificação kardequiana às irmãs Fox, Maior (2014, p. 85) afirma, “Ao ser ignorada, desprezada ou simplesmente preservada por Rivail, Ruth Japhet talvez tenha se livrado dos riscos enfrentados por suas colegas americanas mais famosas: as irmãs Fox [...] A celebridade custou caro para elas.” Além do mais, muitas jovens médiuns estavam sendo internadas em manicômios pelas próprias famílias (MESSIAS e VILELA, 2011) com apoio de padres e médicos e com suporte legal e policial. Elas eram “diagnosticadas como vítimas de delírios histéricos e possessões demoníacas atribuídos a práticas espíritas” (MAIOR, 2014, p. 107). Segundo Marcel Souto Maior (2014, p. 97), o fenômeno mediúnico constituíra-se em uma “epidemia recente, vinda da América. Uma moléstia mental, altamente contagiosa, que fazia vítimas na Alemanha, na Inglaterra e, agora, na França. O mal atacava, principalmente, as moças mais sujeitas à ‘ação magnética’”. Canuto Abreu (1996), em “O Livro dos Espíritos e sua Tradição Histórica e Lendária”, traz uma possível argumentação de Kardec para justificar o fato de ter omitido o nome das médiuns na coautoria de “O Livro dos Espíritos”:

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—Resolvi afrontar, sozinho, as ondas de oposição que O LIVRO vai suscitar, porque, dum lado, pela revelação particular, sei que, sobre essa obra, desabará a tormenta dos interesses feridos, soprarão os ventos da ira fanática e se quebrarão, com estrondo, as vagas dos princípios contrariados. Não devia, portanto, arrastar ao inevitável infortúnio as prezadas pessoas que concorreram para a elaboração da obra. [...] Procedendo pois, como acabo de proceder, se a Crítica, sectária ou acadêmica, receber O LIVRO como obra de heresia ou de demência, só o homem que assumiu a responsabilidade, ganhará o estigma de heresiarca ou de insensato. Só ele, como autor e editor, amargurará os insultos e as agressões da Perseguição religiosa ou científica, ambas cegas e ferozes. (ABREU, 1996, p. 65-66)

Ainda segundo Abreu (1996), Kardec teria justificado tal procedimento devido a precedentes históricos, tanto na França quanto na América, como aqueles que envolviam as “Meninas Fox” que estavam, ainda naquele momento (1857), sendo perseguidas cruelmente: Vivem refugiadas e por favor, em casas Amigas, sem possibilidade de emprego remunerado em parte nenhuma, excomungadas de sua igreja e repelidas de todas as comunidades religiosas, temendo a agressão física a qualquer momento e enxovalhadas pela Imprensa. [...] são forçadas, para não morrer de fome, a aceitar, mais como esmola, que como salário, uma retribuição miserável pelos serviços mediúnicos — que, certamente, elas desejariam dar de graça. Apesar desse motivo de força maior são elas, por causa desse ganho de fome, apontadas aos quatro ventos como embusteiras e venais (ABREU, 1996, p. 66)

Angélica Aparecida Silva de Almeida (2000, p. 27-28), em sua dissertação de mestrado “Religião e confronto: o espiritismo em Três Rios 1922-1939”, retrata que a nova doutrina, mesmo referendada por renomados cientistas, acaba transformando-se numa heresia. Assim o Espiritismo, embora dividindo opiniões, não escapou de contundentes críticas proferidas pela Igreja, imprensa, por alguns intelectuais e juristas. A reação da Igreja não se fez esperar [...] Nas igrejas multiplicaram-se os sermões, e nos jornais, os artigos. Para a Igreja, a fenomenologia espírita, quando não fraudulenta, seria provocada por demônios e, por isso, devia ser severamente combatida. O movimento foi duramente atacado pela imprensa e Igreja Católica, que não hesitou em fazer constar do índex, a partir de 1864, todas as obras espíritas. A imprensa, de quando em quando, estampava anedotas e “charges” sobre o fenómeno das mesas girantes. (ALMEIDA, 2000, p. 28)

1.7. O TRANSLADO PARA O BRASIL: Sincretismo e/ou trampolinagem?

No Brasil, o Espiritismo aumenta a bricolagem que se iniciara ainda França de Allan Kardec. O Espiritismo à brasileira (STOLL, 2003) não conseguira manter-se intacto no confronto com o Catolicismo, e assim absorvera deste, “uma religiosa” (Durkheim apud SANCHIS, 2003, p. 39) algo que lhe concederia certa coesão social necessária à sua manutenção e perpetuação no Brasil: o Espiritismo é uma religião importada, que se difunde no país confrontando-se com uma cultura religiosa já consolidada, hegemónica e, portanto, conformadora do ethos nacional. Sua difusão, como postulam certos autores, foi em parte favorecida pelo fato das práticas mediúnicas já estarem socialmente disseminadas, de longa

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data, no âmbito das religiões de tradição afro. No entanto, em contraposição a estas, o Espiritismo define a sua identidade, elegendo como sinais diacríticos elementos do universo católico. Deste, porém, não endossa apenas, como sugerem Aubrée e Laplantine (1990), certas práticas rituais. O Espiritismo brasileiro assume um "matiz perceptivelmente católico" na medida em que incorpora à sua prática um dos valores centrais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade. (STOLL, 2003, p. 61) [Grifos meus.]

Isto ocorreu porque, quando uma ideia ou atividade é transplantada para um meio já formatado, este tende a acomodar-se perante a hierarquia local já constituída, e ir-se adequando os conteúdos novos de acordo com a aceitação daqueles/as que recepcionam e sancionam os conhecimentos e práticas estrangeiros. Esse caráter plástico das religiões, também pode ser exemplificado em relação ao movimento espiritualista – similar e anterior ao Espiritismo – que nos Estados Unidos “teve centenas de teóricos, estudiosos e médiuns, milhares de simpatizantes e adeptos. Obteve um rápido florescimento, sofrendo uma curiosa integração com diversos ramos do protestantismo” (ALMEIDA, 2000, p. 23). Neste caso, o caráter plástico (sincrético) do modern spiritualism fez com que este se amoldasse às crenças pré-existentes no país e abrisse mão de um pressuposto espiritualista de grande relevância: Era comum, no novo espiritualismo anglo-americano, não se aceitar a ideia da reencarnação, que entrava em choque com a orientação religiosa protestante desses povos. Então, a maneira de estabelecer um sincretismo entre o novo espiritualismo e a "religião dos nossos pais" desses países foi aceitar as realidades "materiais" dos fenômenos, deixando de lado pontos mais nevrálgicos que tocassem em aspectos delicados de suas crenças. A reencarnação era um desses pontos, então, não foi levada muito adiante. (FERNANDES, 2008, p. 51-52)

Esta mesma plasticidade da doutrina dos espíritos fez com que no Brasil, o Espiritismo sofresse uma inculturação de determinados setores do Catolicismo - em especial do setor intelectual e também do setor popular, ligado a terapias mágicas, como as benzeduras. O Espiritismo à brasileira, assim, absorvera muito do ethos católico e menos dos símbolos sagrados cristãos, embora conflitasse abertamente ambas visões de mundo (ARRIBAS, 2008; CAMARGO, 1973; LEWGOY, 2001; MACHADO, 1996; STOLL, 2004). Bernardo Lewgoy afirma que a origem entre os espíritas um leitorado feminino predominante de camadas médias urbanas instruídas, é “nominalmente católica, as quais combinam os traços de uma moralidade católica com o respeito ao racionalismo científico”. (LEWGOY, 2004, p. 56). Marion Aubrée e François Laplantine (2009, p. 20) parecem concordar com isso ao afirmar que: “O destino do espiritismo no Brasil será, portanto, moldado pela concorrência com a religião católica dominante e a religiosidade popular na qual a magia e as entidades espirituais florescem”.

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Gleide Sacramento da Silva (2006) também reforça a tese de que embora o Espiritismo possuísse um cosmos coerente, sólido, significativo, mas não hermético ou fechado em si mesmo. Foi, sem dúvida, o que ocorreu com o espiritismo desde a sua origem e por todo o seu histórico. Um constante “negociar de interesses”, em que não obstante mantendo um núcleo firme de concepções e de formas de agir no mundo modeladores de realidades, era também modelado por elas, incorporando outros signos, dialogando com outros âmbitos do social. (SILVA, 2006, p. 62) [Grifos meus].

Assim, o Espiritismo sai de uma configuração de sociedade de estudos, mais ou menos laica e de caráter filosófico-cientifico, ou seja, já havia na Europa toda uma contextualização secular para sediar as reuniões espíritas, desde sua organização e funcionamento ao mobiliário próprio, e quando é transplantado para o Brasil, é no interior dos lares de famílias tradicionais (de intelectuais e autoridades locais), que este se transmuta em religião, grandemente influenciado pela religiosidade exacerbada dos lares brasileiros, que viviam a carência não só de educação científica e filosófico, mas também de uma assistência médica de qualidade e acessível a todos. Chegando ao Brasil, essa capacidade adaptativa do espiritismo vai ser submetida a algumas provas. A realidade brasileira era, em muitos momentos, totalmente diferente daquela que Kardec consolidou o espiritismo. (FERNANDES, 2008, p. 76)

Certamente o Espiritismo não encontrou no Brasil o mesmo ambiente parisiense, eram duas realidades muito díspares: metrópole versus colônia, em termos de urbanização e desenvolvimento intelectual. Entretanto, em termos de perseguição e intolerância religiosa, por parte da religião oficial do Estado, e da tentativa de dupla pertença, ou seja, a busca de conciliação entre o ethos cristão e a cosmovisão espírita, por parte dos neófitos espíritas não parece divergir tanto geograficamente, da América do Norte à Europa, e desta ao Brasil. Tomo como exemplo, Luís Olímpio Telles de Menezes (1828-1893), considerado como um dos pioneiros do Espiritismo na Bahia. Ele fundou em 1865, na cidade de Salvador, o “Grupo Familiar do Espiritismo”, primeira agremiação doutrinária no Brasil. Telles é também considerado pioneiro da imprensa espírita no Brasil, com a publicação do jornal “O Écho d’Além-túmulo”, de tiragem bimestral com aproximadamente 50 páginas, chegou a circular no exterior - em Londres, Madri, Nova Iorque e Paris. É de Paris que Kardec (1869, p. 474 – 479) critica duplamente o periódico, primeiro endereça-lhe “vivas felicitações, pela iniciativa corajosa de que nos dá prova. Com efeito, é preciso grande coragem de opinião para criar num país refratário como o Brasil” – Kardec parece antever os conflitos religiosos com o Catolicismo que o Espiritismo iria enfrentar. E segundo, referindo-se mais especialmente à questão religiosa, reclama:

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Para nós, o Espiritismo não deve tender para nenhuma forma religiosa determinada. Ele é e deve continuar como uma filosofia tolerante e progressiva, abrindo seus braços a todos os deserdados, seja qual for a nacionalidade e a convicção a que pertençam. Não ignoramos que o caráter e a crença daqueles a quem se dirige o Eco de Além-Túmulo devem levar o Sr. Luiz Olympio a manejar certas susceptibilidades. Mas acreditamos, por experiência, que a melhor maneira de conciliar todos os interesses consiste em evitar tratar de questões que a cada um cabe resolver, e empenhar-se em popularizar os grandes ensinamentos que encontram eco simpático em todos os corações chamados ao batismo da regeneração e ao progresso infinito. (KARDEC, 1869, p. 475) [Grifos meus].

Célia da Graça Arribas (2008, p. 52) explica a preocupação de Kardec em relação a Telles de Menezes, ou seja, do risco de sincretismo religioso que corria o Espiritismo, em terras brasileiras. A autora afirma que no primeiro confronto do grupo de Telles de Menezes, “não houve a intenção, em nenhum momento, por parte dos espíritas de negar a sua religião católica e contra ela investir pesados esforços”. Telles de Menezes reivindicava até com certa insistência a sua condição de católico "de nascimento e de crença", e ainda voltou a insistir ao afirmar que "o Espiritismo e o Catolicismo são a mesma Igreja de NOSSO SENHOR JESUS CRISTO: somente estão mudados os tempos e as palavras: o Espiritismo é o tradutor fiel, pelos enviados de Deus, das doutrinas do Evangelho". (ARRIBAS, 2008, p. 52)

Um flagrante das práticas sincréticas do Espiritismo com o Catolicismo está, justamente, na linguagem e nos princípios religiosos desposados pelo espírito se denominou “Anjo de Deus”, em mensagem psicográfica endereçada aos membros do “Grupo Familiar do Espiritismo”. Para Fernandes (2008), os espíritos comunicantes, na França, não eram e nem se passaram por nada além de humanos, alguns ilustres, outros desconhecidos: Segundo os relatos das comunicações, notar-se-ia que esses ditos espíritos não caberiam nas categorias teológicas de "anjos" ou mesmo "demônios". Para essas novas correntes do espiritualismo, os espíritos se apresentariam como seres humanos "apenas mortos": teriam seus defeitos, conhecimentos limitados, vícios de linguagem, costumes, marcas de personalidade, etc. Seriam, em suma, seres humanos, gente como toda gente. (FERNANDES, 2008, p. 50)

Sobre a questão do uso do termo “anjo”, Kardec em 1865 reforça o que já havia descrito anteriormente: os anjos não formam uma categoria especial, de natureza diferente da dos outros Espíritos (1995 [1857], p. 99), ou seja, todas as almas ou Espíritos são criados simples e ignorantes (1976 [1865], p. 113) e pela reencarnação podem chegar à perfeição. O codificador, copiando a tendência do cientificismo, identificava a necessidade da ciência espírita em utilizar termos novos, mais precisos, cumprindo assim a exigência de se obter a “clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras” (1995 [1857], p. 13). Entretanto, Kardec com a terminologia “anjo” fora mais complacente do que os termos “alma” e “espiritualismo”, como se pode ler abaixo:

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A palavra anjo desperta geralmente a ideia de perfeição moral. Entretanto, ela se aplica muitas vezes à designação de todos os seres, bons e maus, que estão fora da Humanidade. Diz-se: o anjo bom e o anjo mau; o anjo de luz e o anjo das trevas. Neste caso, o termo é sinônimo de Espírito ou de gênio. Tomamo-lo aqui na sua melhor acepção. (KARDEC, 1995 [1857], p. 100)

Nas comunicações mediúnicas europeias, o termo “anjo” foi mais associado a espírito guardião, a exemplo de “O Evangelho segundo o Espiritismo” onde aparecem 21 referências de “anjo/s guardião/ões, sendo que destas uma é assinatura anônima de uma mensagem mediúnica. No Brasil, parece ter faltado ao espírito comunicante (“Anjo de Deus”), humildade e respeito aos pressupostos estabelecidos por Kardec, e ao mesmo tempo, abundado soberba e ranço religioso. Fernandes (2008) retrata que muitas comunicações traziam à tona o universo religioso em que viveram os espíritos comunicantes: E quando [os espíritos comunicantes] chamados a opinar, apresentar-se-ia, em muitos momentos, a falta de consenso: um que teria sido católico, falava do céu, do inferno, do purgatório; outro, que teria sido protestante, dava o seu endereço, pois continuava na terra a trabalhar pela glória do Senhor; (FERNANDES, 2008, p. 50).

Creio que estas comunicações carregadas de símbolos e valores cristãos (católicos) – como, mais tarde, serão as comunicações do espírito Emmanuel, pela psicografia de Chico Xavier, revivendo a verve católica de sua encarnação passada como Padre Manoel da Nóbrega – mais do que os pressupostos fundamentais da Doutrina Espírita – até porque esta tardou chegar por aqui, e quando chegou foi fragmentária e por vezes em francês – foram responsáveis pela caracterização mais religiosa do Espiritismo à brasileira (STOLL, 2003). Encontro neste fato, o princípio da sacralização do Espiritismo francês em solo brasileiro. Isto se explica, pois, na França, o interesse de Kardec era fundar uma filosofia espiritualista e não uma religião, tal como se configurou no Brasil; dando seguimento às suas pretensões, Kardec em 1858 funda a “Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas” e um periódico de nome “Revue Spirite: Journal D'Études Psychologiques”, ambos compostos por intelectuais, buscando um caráter mais científico, ao contrário de Telles que cria um grupo familiar e um jornal carregado de referências religiosas. Aos neófitos espíritas brasileiros importava única e exclusivamente a diferença dogmática: ressurreição/reencarnação; juízo final/evolução; comunicação com os mortos e etc., e não uma radical mudança de paradigma religioso. O Espiritismo chegara ao Brasil ainda num tempo caracterizado pela união Estado- Igreja, onde o Catolicismo era entendido como religião oficial do império – conforme rezava o art. 5º da Constituição do Império de 1824 – e como tal o Espiritismo sofrera pela falta de

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liberdade de culto, onde não se reconhecia o direito nem à tolerância ou à mobilidade religiosa, pois a lei (BRAZIL, 1824), art. 179 e inciso V, dava amplos poderes para a Igreja perseguir aquelas manifestações religiosas que desrespeitassem a religião oficial do Estado e/ou ofendessem a “Moral Publica”. Arribas (2008) explica que, no período correspondente a meados do século XIX e início do século XX, os intelectuais de ambas religiões em litígio, católicos e espíritas, que disputavam um espaço que foi sendo paulatina e exclusivamente destinado à produção de bens simbólicos de salvação. E nesta disputa foi sendo constituído um Espiritismo com características próprias, uma versão brasileira algo diferente da versão original francesa ou anglo-saxônica, a partir de composições com o catolicismo popular e os cultos afro-indígenas, já existente aqui, num processo de sincretismo ou trampolinagem. (ARRIBAS, 2008, p. 10)

Para Mônica Maria de Souza Silveira (2009) o Catolicismo popular é um bom exemplo de trampolinagem e pode ser considerado uma das maiores criações dos grupos dominados (vencidos). Para a autora a imposição de uma religião (o Catolicismo oficial) abriu também brechas de forma que grupos dominados: apropriam-se culturalmente do que lhes foi dado como e criativamente a transformaram, porém sem permitir que se perdessem alguns sentidos originais. O catolicismo popular traduziu a religião oficial mediante um saber próprio. Assim os vencidos conseguiram vive-la, tornaram-se católicos, incorporando uma religião à sua própria cultura. O uso popular da religião modifica o seu funcionamento, expressões e sentidos. Os usos dos elementos impostos pelo catolicismo oficial acabam por tomar o catolicismo popular uma forma de resistência matreira, engenhosa. (SILVEIRA, 2009, p. 104)

O Espiritismo, de forma semelhante, ao tomar de assalto o domínio territorial do Catolicismo brasileiro, conquistando adeptos/as, provocou uma reação católica, dando início a uma guerra religiosa contra a nova doutrina. Para Kardec (2004 [1869], p. 475), este deve ter sido o motivo que levou o Sr. Luiz Olympio “a manejar certas susceptibilidades” dos/as leitores/as do jornal “Eco de Além- Túmulo”. Para o codificador as “susceptibilidades” deste leitorado se explicavam por Brasil ser “país refratário”, quando comparado à França, terra natal de Kardec, que passava por processo laicização de suas instituições e como consequência, o comportamento de seus/suas cidadãos/ãs buscava acompanhar este processo. Assim, era compreensível que os/as primeiros/as adeptos/as espíritas brasileiros para não perderem direitos civis69, nem serem perseguidos e reprimidos, faziam uso de certa trampolinagem ao se afirmarem católicos e defenderem que o Espiritismo também era cristão

69 O Art. 94. da Constituição de 1824, em seu inciso III, proibia o voto na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província a todos aqueles “que não professarem a Religião do Estado”, e qual cidadão (espírita) de posse (“renda liquida annual duzentos mil réis”, inciso I) abriria mão do direito de influir politicamente nos destinos de seus próprios bens e de sua família? Era sem dúvida uma decisão difícil?

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e tinha muitos aspectos em comum com o Catolicismo70. Buscavam assim uma conciliação entre as duas pertenças71. Para tanto era preciso se comportar como católico/a e seguir os padrões morais do Catolicismo, logo as mulheres deveriam continuar se comportando conforme as representações de gênero católicas: de boa filha, de boa esposa e de boa mãe. Assim reclama Lewgoy (2001, p. 67) que o Espiritismo estabelecera uma “relação conciliadora com um catolicismo que lhe era frequentemente hostil da parte dos padres e intelectuais católicos”, entretanto o Espiritismo era “tido como autenticamente devoto, familiar e benéfico, quando encarnado em pessoas “simples”, “humildes” e “mães devotas”, e isto conforme o autor, Em Chico, as pontes do espiritismo brasileiro com o universo popular católico, estremecidas em décadas de atritos com as autoridades leigas e eclesiais, começam a ser lentamente recompostas na direção de uma suave continuidade entre universos religiosos até então bem distintos” (LEWGOY, 2001, p. 67)

Para o autor “por meio da vida e obra de Chico Xavier, o espiritismo abre um leque de trocas com um catolicismo familiar, em que se destaca o papel moral, espiritual, educacional e mediador das mães” (LEWGOY, 2001, p. 70). Ou seja, aquela bricolagem ou trampolinagem iniciada com o grupo de Telles de Menezes, amplia-se com Chico Xavier, “na interface do espiritismo com o ethos católico das camadas populares” (LEWGOY, 2001, p. 70). Assim, o “ethos católico” assimilado pelo Espiritismo, não só reafirmava as representações de gênero e a divisão sexual do trabalho europeia trazida no bojo da doutrina espírita, como também, adiava a proposta progressista e/ou socialista de muitos autores espíritas, em especial Léon Denis, de lutar contra as diferenças sociais, privilégios, preconceitos, superstições religiosas, que se constituíam nos grandes obstáculos para o progresso, dando lugar aos benefícios da liberdade, da igualdade e fraternidade [...] a extinção das barreiras que separavam sexos, classes, raças e credos. (ALMEIDA, 2000, p. 25)

E as mulheres espíritas – médiuns, simpatizantes ou simples promotoras/anfitriãs – que tanto colaboraram na difusão e na consolidação do Espiritismo, continuariam desempenhando um papel subalterno na hierarquia da nova instituição, limitada por misóginas representações sociais em relação ao papel das mulheres na sociedade.

70 Conferir categoria de análise: 3.2.2.5. Um duplo modelo mariano: Kardec ou Roustaing. 71 Para Regina Novaes (2003, p. 12) manter uma dupla pertença, mas não declarar publicamente a pertença espírita é uma coisa clássica constitutiva da cultura brasileira. Diz ela que "Em relação aos espíritas, [...] Ainda hoje, muitas pessoas e apresentam socialmente como católicos, se casam e batizam os filhos na Igreja Católica, mas frequentam o espiritismo”.

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Até a legislação imperial brasileira pressionava que o Espiritismo ficasse no âmbito doméstico, e que suas práticas não rivalizassem com as igrejas tradicionais, e sobre a rígida autorização da autoridade católica local (ARRIBAS, 2008, p. 69). Por tudo que foi afirmado, conclui-se que, também no Brasil – tal como o Modern Spiritualism americano – o espaço original de surgimento do Espiritismo deu-se em domínio feminino, e suas primeiras experimentadoras foram as “sinhás”, que igualmente evocavam epifanias sobre mesas das casas grandes. O paralelo negro da evocação dos espíritos, os cultos afro-brasileiros, era produzido em casas humildes, e também nas senzalas: Se a sinhá fazia reunião de mesa branca, com copo d'água em cima da toalha, porque a gente do terreiro não podia fazer o mesmo? Em muitos casos, era a própria sinhá quem convidava a mucama para participar da sessão, trazendo-a para dentro da sua magia, contaminando-a com o seu mana particular, num processo "educativo" que garantia a si e a sua família uma proteção maior contra os descontentamentos do chicote. (FERNANDES, 2008, p. 20)

Assim, os médiuns espíritas (receitistas ou passistas) em geral – pessoas simples, por vezes incultas, das camadas populares – eram em sua maioria mulheres que atuavam de forma mais ou menos passiva, e assim formavam certa estratificação na hierarquia de gênero dos grupos espíritas. A atuação destas médiuns certamente caracterizou-se por certo empoderamento feminino ao angariar para si o prestígio da comunidade. E também se constituiu em oportunidade de liberação feminina de seu confinamento no espaço doméstico – mesmo que este ainda ocorresse de forma clandestina – pois tais terapêuticas eram tidas como exercício ilegal da medicina, pela classe médica e pelo aparato jurídico-militar – no recinto do lar. E se, por vezes, tais práticas mágicas não eram remuneradas em dinheiro, algum tipo de oferta em espécie (galinha, ovos, tabaco, café entre outros gêneros alimentícios) ou até mesmo votos de fidelidade – do tipo “se precisar... conte comigo.” – deveriam ser frequentes. As práticas religiosas, principalmente do negro, ganhavam cada vez mais força em um ambiente tão marcado de incertezas, o que acabou por servir também como uma maneira dessa raça, uma vítima constante do preconceito, se distinguir socialmente: as relações de poder mudavam da casa grande para a senzala quando o sol baixava e o "sinhozinho" ia buscar uma reza ou um quebranto. (FERNANDES, 2008, p. 91- 92)

Assim, o Espiritismo adentra no Brasil nas brechas de certa tolerância religiosa católica (popular e não ortodoxa) da aristocracia brasileira às práticas mágicas dos negros. Aos poucos o Espiritismo se torna uma arma contra estas próprias práticas mágicas, das quais as elites eram reféns e consumidoras, como descreve Fernandes (2008): a recepção dessa doutrina pelas elites muito se deu por influência do ambiente de conflito mágico que aqui existia e do medo desses setores privilegiados dos outros estamentos da população, que seriam os "verdadeiros" portadores da magia. As

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diferenças sociais acabavam por respaldar em uma luta mágica entre esses setores da sociedade, e as elites, nesse quesito, estariam em desvantagem, pois a percepção era a de que se o "sinhô" descontentasse a um deles, a resposta vinha como um mau- olhado ou alguma macumba para prejudicar os da casa grande. Foi por isso que quando o espiritismo aqui chegou, foi largamente recebido pelos setores abastados da sociedade brasileira, que viam nele uma espécie de "antimandinga": se o negro mandasse um espírito contra o senhor ou a senhora, era só evocá-lo em uma sessão e doutriná-lo, convencê-lo a não prejudicá-lo. Se acontecesse de cair sobre ele um mau-olhado, era só tomar um passe, etc. Em suma, a maneira a qual as elites se manifestaram para incorporar o espiritismo foi transformá-lo em um amuleto contra a magia popular. (FERNANDES, 2008, p. 92) [Grifos meus].

Desta forma, o Espiritismo, que vinha revestido de modernidade e cientificidade (fruto da racionalização e secularização) buscou se desvencilhar e desvalorizar as práticas mágicas populares (afro-indígenas). Tais práticas populares ao serem vistas como atraso de um país, o qual através de políticas higienistas desejava mudar sua imagem no exterior, foram perseguidas. A solução dos/as praticantes da magia (cartomantes, pajés, mães de santo, e etc.) foi se apropriar ao menos da linguagem do Espiritismo, talvez de seus ritos espíritas, de forma a re-empoderar- se: Já a população no geral, com a tradução das obras e o passar do tempo, tentou se apropriar dele como mais um item de sua magia. O pajé e o pai-de-santo tornar-se- iam "médiuns espíritas", agora dotados de um poder maior que o anterior e de um prestígio maior, porque conheciam as artes e o segredo daquela doutrina que era até então um privilégio dos ricos. Conhecer o espiritismo era conhecer um pouco mais do ambiente daqueles que todos cobiçavam ser: a elite. Cartomantes eram "espíritas videntes" (como as de hoje em dia) e forneciam previsões para se ganhar no jogo- do-bicho, que começava a proliferar. Em suma, todos queriam parecer familiares daquela doutrina que, além de ser europeia [...], era tida em alta conta pelos membros ricos da sociedade brasileira. Ser espírita era uma maneira de buscar uma distinção e uma aproximação (no caso dos estratos menos favorecidos) com esse universo dos mais abastados. (FERNANDES, 2008, p. 93) [Grifos meus].

Pode-se concluir que um outro aspecto da trampolinagem exercida, naquele momento histórico, pelas mulheres, espíritas ou não, altruístas ou mercenárias, produtoras ou consumidoras de serviços religiosos e assistenciais ligados ao Espiritismo, foi que estas se desdobravam procurando suprir uma demanda não atendida pelos serviços públicos72 (nas áreas de medicina, educação, proteção social e alimentação) através do oferecimento de homeopatia e o magnetismo/passes73, sopas-fraternas, asilos e etc., por vezes, driblando as leis, as autoridades médicas e a polícia.

72 Resultado de um atraso de políticas públicas, verdadeiro vazio assistencial população brasileira – que dirá da população negra escrava ou recém alforriada que continuava na miséria - ainda não havia sido superado com meio século de império, e nem mesmo depois de décadas de república. 73 “O passe, segundo os espíritas, é uma ‘transmissão dirigida de fluidos de perispírito para perispírito’ [...] é uma troca fluídica entre o Mundo Visível e o Mundo Invisível.” usado como agente terapêutico (CAVALCANTI, 2008, p. 93).

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Em relação aos “males do corpo e da alma”, Reginaldo Prandi (1996, p. 68) afirma que o Espiritismo foi se constituindo como agência de cura, aproveitando, por um lado, da quase inexistência de agências públicas de assistência social e de saúde, e por outro lado, aproveitou uma estrutura consolidada pelas “religiões africanas [que já] ofereciam esse tipo de atendimento, mas numa outra escala, a do feiticeiro, digamos, muito mais reprimida pelos preconceitos contra os negros e suas tradições”. Se as Constituições de 1824 e 1981 prescreviam certas liberdades em relação à religião, o mesmo não ocorreu com a promulgação do Código Penal de 1890, cujo artigo 157 dizia o seguinte: “É considerado delito (crime) praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública” (BRAZIL, 1890), dando início então uma perseguição cível contra aqueles/as que praticassem a “mediunidade receitista” tanto nos centros espíritas como nos terreiros umbandistas. Eufrazia Cristina Menezes Santos (2005, p. 140) afirma que embora não se possa esquecer que na “situação de dominação, os grupos minoritários criaram maneiras engenhosas de viver com ela em seu cotidiano”, fazendo uso do exercício da “trampolinagem”. Contudo, ressalta a autora, “o poder dos fracos não consegue mudanças estruturais efetivas”. Portanto, a versão médico-pragmática do Espiritismo não ajudou as mulheres-médiuns a se libertarem, por não lhes ter garantido acesso ao conhecimento acadêmico mais avançado (enfermagem, medicina), um projeto impensável, pois entraria em conflito com o papel de mãe.

1.8. ANÁLIA FRANCO, AMÁLIA RODRIGUES E AMÁLIA DOMINGO Y SOLER

Estas três personalidades femininas, espíritas e jornalistas se destacaram no movimento espírita mundial, mas não obstante escreverem artigos para revistas femininas, alguns destes bem críticos e politizados, seus escritos não trouxeram para o interior do movimento uma significativa mudança em relação às representações de gênero espíritas. Registro aqui um pouco da biografia destas três lideranças femininas para afirmar a existência de vozes dissonantes, em relação às representações de gênero, dentro do Espiritismo, ainda no início do século XX.

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Anália Franco (185674-1919), nascida da cidade de Rezende-RJ, mas foi em São Paulo que fez toda sua atuação e militância. Foi professora nomalista, jornalista, escritora e filantropa brasileira. Ela sempre foi muito discreta em relação a sua adesão (simpatia?) ao Espiritismo, pois “em seus manuais e periódicos não há nenhuma citação direta de Anália ser adepta do Espiritismo”75 (CHRISTO e LODI, 2012, p. 241). A biografia de Anália Franco aparenta ser76 muito semelhante à de Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues (1861-1926) nascida em Santo Amaro da Purificação-BA. Ambas professavam ideias feministas e mantinham publicações em revistas femininas, mas não- espíritas. Augusta do Sacramento Rodrigues, para nós espíritas Amélia Rodrigues. Baiana de Santo Amaro é considerada a precursora do movimento feminista naquele estado, professora, escritora, poetisa, teatróloga, militante na defesa da igualdade de direitos percorria as cidades alertando sobre a situação das mulheres na sociedade. Estimulava-as a se reunir em grupos para atuar coletivamente, sendo a fundadora da revista “A Paladina”, primeira publicação feminista do estado da Bahia, que defendia o direito às mulheres de uma educação formal e também ao voto. Inspiradas por ela foram criadas associações que recebiam moças vindas do interior, de famílias pobres, para que encontrassem apoio, trabalho e dignidade em Salvador. (TEODORO, 2014, s.p.) [Grifos meus].

Anália Franco tinha uma “visão inspirada e futurista”77 que buscava atender “a necessidade mulher alfabetizar-se e profissionalizar-se para sair da pobreza ou, por opção,

74 Sobre o ano do seu nascimento, há documentos que indicam ser 1853, como o batistério. 75 Monteiro (1992, p. 78) assim justifica a atitude reservada de Anália Franco, em relação à sua convicção religiosa por ela “ser espírita e não a Associação por ela criada [...] Não que negasse sua fé espírita, mas é que Anália fazia questão de separar as atividades espíritas das educacionais para não prejudicar estas últimas [semelhante ao que fizera o pedagogo Rivail, criando o pseudônimo Kardec para as obras espíritas], já que no começo do século era muito forte a influência da Igreja na sociedade e deveras considerável o preconceito contra os espíritas [...] Continua Monteiro (1992, p. 192) “Conquanto procurasse se preservar dos comentários e discussões religiosas da época, na intimidade de suas cartas e na convivência com seus alunos, Anália não perdia a oportunidade de incentivar o estudo e a prática da Doutrina Espírita. Nesta carta à sua discípula Augusta Ormiéres, ela registra todo o apego que tinha pelo Espiritismo: [...] Peço-lhe encarecidamente que nunca deixe de estudar os santos Evangelhos de Kardec, seguindo sempre essa bela e santa doutrina que tanto nos fala à alma e ao coração [...] Anália Franco”. 76 Como não era objeto desta pesquisa investigar biografias, não aprofundei o estudo biográfico de Amélia Rodrigues, me restringindo a poucas pesquisas na Internet. De sua formação e atuação em obras sociais católicas, suponho que em vida não tenha conhecido ou aderido ao Espiritismo. Entretanto, “No Plano Espiritual, continuou seu trabalho esclarecedor e educativo, baseado no Evangelho de Jesus, fonte inspiradora de suas obras quando encarnada. Encontrou na Espiritualidade – seara infinita da imortalidade – maior expansão para seu espírito sequioso de conhecimento e faminto de amor, dando vazão aos anseios mais nobres. Aprofundou-se na mensagem de Jesus e, na atualidade, participa da falange de Joanna de Angelis, mentora de .” Fonte: http://www.espiritismobrasil.com/biografias-de-icones-do-espiritismo/amelia-rodrigues-biografia/. Acesso em: 15 nov. 2014. 77 Para o visionário espírita Leon Denis (1987, p. 142) um programa de ação do socialismo espiritualista poderia “dissipar os prejuízos de castas, de raças, de cores, de religiões e fazer nascer um sentimento profundo de fraternidade única”. Repare que a discriminação sexual não está clara para o autor espírita. Para ele, entre outras ações, o programa deveria: “Proteger a mulher contra as fraquezas mórbidas e as seduções funestas, proporcionar-lhe no estado de gravidez o trabalho manual que lhe torne possível à vida familiar e a educação

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desgarrar-se da tutela do homem” (MONTEIRO, 1992, p. 71), e também favorecendo ao “contingente feminino pobre de complementar o orçamento doméstico trabalhando fora , com a tranquilidade de saber que suas crianças estariam seguras e bem cuidadas numa instituição asilar [...] [onde] as crianças entravam às 6hs da manhã e se retiravam às 19:35 hs” (MONTEIRO, 1992, p. 86). Anália pensava uma escola que incluísse e desse acesso indiscriminado a crianças, independente da sua condição social, [sexo,] cor e credo. Partilhava do ideal de que a mulher alcançasse sua independência, por esforço próprio, por isso colaborou, por meio de ações educativas e pela imprensa feminina, com a promoção da educação da mulher. (CHRISTO e LODI, 2012, p. 19)

Christo e Lodi (2012, p. 207) explicam que Anália Franco também recebera as influências de algumas ideias de feminismo, como as de John Stuart Mill, que estavam em voga78 no final do século XIX e início do século XX. As autoras explicam o livro “A sujeição das mulheres” de Mill, publicado no ano de falecimento de Kardec (1869), já defendia a ideia de que a mulher era intelectualmente apta a qualquer tipo de trabalho. Elas, as autoras, afirmam que Anália Franco publicou na edição de nº 5 de “A Voz Maternal”, notícias sobre o feminismo desenvolvido na Austrália. E concluem as autoras: “Por suas constantes publicações em defesa da emancipação da mulher, conclui-se que Anália Franco tinha alguma relação com princípios feministas” (CHRISTO e LODI 2012, p. 207). Outra semelhança entre estas jornalistas feministas, Anália e Amélia, é o caráter filantropo de suas obras sociais, Amélia Rodrigues depois de aposentada fundou o “Instituto Maternal Maria Auxiliadora”, que mais tarde assume a direção da “Casa dos Expostos” e, Anália Franco fundou a “Associação Feminina Beneficente e Instrutiva,” com inúmeras escolas profissionalizantes e asilos-creche. Amália Domingo y Soler (1835 - 1909) esta, sim, expoente do jornalismo feminino e espírita, diferente das anteriores. Foi médium e escritora, pertencente ao movimento espírita espanhol. Dirigiu o periódico “La Luz del Porvenir”, revista dedicada exclusivamente à mulher espírita e onde só escreviam mulheres (BOGO, 1974, p. 93).

dos filhos.” Com este pensamento, Denis antecipa alguns direitos trabalhistas de proteção à maternidade, porém não responsabiliza os homens pela educação dos filhos... 78 De fato as ideias de Stuart Mill estavam em voga e também chegaram ao conhecimento de Allan Kardec, o qual publicou na Revista Espírita (junho de 1867) algumas ideias feministas de Stuart Mill, em um artigo intitulado de “Emancipação das Mulheres nos Estados Unidos”. Cf. página 38 e nota de rodapé de nº 6.

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O periódico foi denunciado79 à polícia-de-imprensa de Alfonso XII (BOGO, 1974, p. 97) e teve a sua publicação suspensa por 42 semanas, logo após a publicação do terceiro número, por ordem das autoridades eclesiásticas, que nesse tempo exerciam o papel de policiamento das publicações religiosas. Estas escritoras, Amália Rodrigues e Anália Franco, à semelhança de Amália Domingo tinham “audácia, valentia e virilidade intelectual” (BOGO 1974, p. 182). Elas mantiveram um comportamento em flagrante contradição com a representação feminina da época. Elas desafiaram o fechado gueto masculino da imprensa. Principalmente, Anália Franco, que em suas escolas profissionalizantes, educara e profissionalizara mulheres pobres e com pouca instrução no ofício de tipografia80. E finalizo este primeiro capítulo histórico e introdutório para a compreensão das representações de gênero no Espiritismo, tratando da biografia do principal médium brasileiro, Chico Xavier, cujo exemplo de vida e sua produção literária reafirmam as representações contidas nos textos de Allan Kardec – como já afirmei anteriormente.

1.9. CHICO XAVIER, A MATRIFOCALIDADE E REFERENCIAIS MASCULINOS

Bernardo Lewgoy (2001), Sandra Stoll (2004), Marcel Souto Maior (1994), entre outros biógrafos espíritas, traçaram a biografia de Chico buscando compreender a relevância que este e sua obra literária tiveram no movimento espírita. Tal relevância, consubstanciada por uma “aura de credibilidade que contribuiu para consolidar sua liderança religiosa” (STOLL, 1999, p. 154), a qual conforme Fábio Luiz da Silva (2005) foi: Garantida pelos muitos livros e pela santificação de sua imagem, confere ao discurso que estamos analisando uma autoridade quase incontestável dentro do movimento espírita. O “capital simbólico” vinculado a Chico Xavier garante, para a maioria dos espíritas, a veracidade do conteúdo de suas obras, o que representa, ao mesmo tempo, um ganho de autoridade para aqueles que as publicam, no caso, a FEB. (SILVA, 2005, p. 80)

79 Parece-me que vários fatores somaram-se nesta denúncia, entre eles a violência de gênero, por ser mulher num campo masculino (a imprensa) e por não ter formação própria para a função – tal como reclama Amália Domingo: “que títulos tenho eu para dirigir um periódico” (BOGO, 1974, p. 96), principalmente porque instrução feminina oferecida era limitada – e por fim, por defender uma doutrina religiosa contrária à região oficial do país (Espanha). 80 No relatório de 1905, da “Associação Feminina Beneficente e Instrutiva”, Anália Franco retrata, empolgadamente, que as tiragens de “A Voz Maternal” e “Manual Educativo”, ambos órgãos da Associação, estavam “a cargo das alunas tipógrafas que apresentem mais vocação e gosto para essa arte”. Nesta oficina profissionalizante achavam-se empregadas, além de 12 asiladas, uma vigilante e dois empregados subalternos. Retirando os professores auxiliares de Tipografia, os quais eram todos homens (Monteiro, 1992, p. 134), chama a atenção a ocupação feminina de ofícios tipicamente masculinos.

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Chico Xavier, nasceu em 2 de abril de 1910, na cidade de Pedro Leopoldo, era filho do vendedor de loteria João Cândido Xavier e de uma mãe muito católica, Maria João de Deus. A analise da família do médium Chico Xavier (na sua infância) remete ao modos vivendi de uma família tipicamente católica, interiorana (mineira) do início do século XX. Onde os comportamentos de cada elemento da família eram condicionados pelas representações de gênero do jeito católico de ser81. Segundo Heleieth Saffioti (2013, p. 145), as relações de gênero que se engendram na hierarquia do “grupo familial” católico82 se fazem “segundo o preceito bíblico de que o homem é a cabeça, e a mulher o coração”83, cabendo assim, ao homem buscar o sustento da família e seu governo, e quanto à mulher, “a Igreja católica insiste em colocá-la ao lado das crianças e confiná-la aos trabalhos domésticos sempre que possível” (SAFFIOTI, 2013, p. 144). Chico, aos quatro anos de idade, viveu o drama da ineficiência deste modelo de família, onde homens e mulheres são seres complementares84, onde há rígido controle por parte da sociedade e de suas instituições sobre a manutenção e o cumprimento dos papéis sexuais diferenciados. E para compreender o drama de infância de Chico é preciso que se entenda que neste modelo de família a divisão sexual do trabalho mutila não só “várias dimensões da personalidade feminina” como “existem também condutas impostas aos homens, que limitam extraordinariamente seu desenvolvimento” (SAFFIOTI, 1987, p. 27). Os homens “são, pois, obrigados a castrarem certas qualidades”, como cuidados e proteção à prole ou gestão (democrática) da economia doméstica, “por serem estas consideradas femininas, por conseguinte, negativas para um homem”, assim para que estes

81 Chico Xavier, oriundo de família católica, “Amoldou-se à comunidade católica, obedecia às obrigações ditadas pelo catolicismo, confessava-se, comungava, comparecia pontualmente à missa e acompanhava as procissões” (AGUIAR, 2006, p. 17). Em 1927 ajudou a fundar o Centro Espírita Luís Gonzaga, uma referência ao santo católico, como descreve Souto Maior (1994, p. 16) seria uma homenagem ao “rei da França e não São Luiz Gonzaga. De qualquer forma, o batismo do centro não foi tão despropositado assim. O monarca francês tinha protegido Allan Kardec, o codificador da doutrina espírita, no século passado e, portanto, merecia algum respeito”. 82 Estas representações de gênero parecem não diferir muito do “grupo familial” espírita do entresséculos em questão. 83 Este preceito paulino (I Corintios 11:3), que norteou as representações de gênero do cristianismo, foi também usado por Kardec (2004 [1858], p. 513) para reforçar esta tradicional divisão sexual do trabalho nas famílias espíritas: “Homens, [...], sereis a cabeça e as mulheres serão o coração”. Posteriormente, o espírito Emmanuel prescreveu algo semelhante: “O homem e a mulher, no instituto conjugal, são como o cérebro e o coração do organismo doméstico.” (EMMANUEL [Espírito]; XAVIER [médium] 1945 [1940], p. 30) 84 A ideia de complementaridade dos sexos é central para as representações de gênero no Espiritismo. A diferença anatômica dos sexos é projetada também para espaços, funções (papéis sociais) e padrões comportamentais distintos. E é na família que se dá esta complementaridade, diz Kardec (2004 [1858], p. 513) que sendo distintos os sexos “formareis então um todo” e prescreve “Uni-vos, pois, não só pelo amor, mas ainda pelo bem que podereis fazer a dois”.

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cumpram “adequadamente o papel do macho” os homens devem “inibir sua sensibilidade” (SAFFIOTI, 1987, p. 25). Para Heleieth Saffioti (1987, p. 23) a manutenção de um modelo de família androcêntrico, “o machismo do trabalhador” – e não só da classe trabalhadora, mas também da burguesia, como apresentei anteriormente, o caso das dificuldades financeiras do professor Kardec que poderia ser diferente se Amélie Gabrielle Boudet continuasse sua carreira profissional, de escritora e professora após o casamento – volta-se contra o próprio chefe de família, por dois motivos: primeiro porque cobra-se dele “um preço excessivamente alto para mandar na mulher” e segundo, porque “a supremacia masculina” impede o sucesso da própria família, como tal. Feitas estas necessárias exposições sobre as representações de gênero católicas, retomo o drama vivido pelo menino Chico, como retratado por Marcel Souto Maior: Maria João de Deus foi embora cedo demais e, ao se despedir, deixou em casa um garoto ao mesmo tempo magoado e impressionado. Pouco antes de morrer, ela pediu ao marido que distribuísse os nove filhos pelas casas de amigos e parentes. Só assim João Cândido, vendedor de bilhetes de loteria, conseguiria viajar pelas cidades vizinhas em busca de dinheiro. No pé da cama onde a mãe agonizava, atormentada por crises de angina, Chico cobrou: - Por que a senhora está dando seus filhos para os outros? Não quer mais a gente, é isso? (MAIOR, 1994, p. 12)

Em atitude desesperada e desesperançada, a mãe de Chico, Maria João de Deus pediu ao marido repartir os/as filhos/as, pois sabia da incapacitação (cultural) dos homens em administrar o trabalho doméstico e conciliar este com um trabalho remunerado. A crença de que os homens só se realizam, com sucesso, no espaço externo ao lar impediu que o pai de Chico, João Cândido Xavier, mantivesse a coesão familiar – contando, inclusive, com a ajuda dos/as filhos/as para a composição do orçamento doméstico – e encontrar uma solução simples, como aquela implementada uns dois anos depois, pela segunda esposa, Cidália Batista que Pediu a ajuda de Chico. Plantaria uma horta, e ele venderia os legumes. O menino abriu um sorriso e arregaçou as mangas. Sempre descalço, carregou baldes com água, encheu balaios com esterco colhido no campo e, em poucas semanas, já percorria as ruas da cidade com um cesto de verduras a tiracolo. Cada maço de couve ou cada repolho valia um tostão. Até dezembro de 1918, de tostão em tostão, eles conseguiram juntar 32 mil-réis. Em janeiro, Chico já estava matriculado no Grupo Escolar São José. (MAIOR, 1994, p. 16).

Segundo Lewgoy (2001), a infância e a adolescência de Chico Xavier são marcadas por influências decisivas da figura materna ou de suas substitutas. Consequentemente, a obra de Chico ficou marcada por personalidades femininas que orbitam as representações de gênero da mulher-mãe. Para Lewgoy:

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A ênfase na mãe [...] nunca deixará de povoar desde as manifestações públicas de Chico Xavier até os seus textos psicografados. É justamente esse destaque atribuído à “mãe” como formadora moral, influência decisiva no âmbito familiar e intercessora privilegiada junto ao plano espiritual, que é afirmada nessa trajetória de juventude. (LEWGOY, 2001, p. 62)

E agora, realizado o esforço de contar uma “her-story” espírita, destacando o papel das mulheres na história do Espiritismo, no próximo capítulo, passo a descrever, em perspectiva de gênero, a participação de homens e mulheres nas instituições espíritas. Embora o enfoque desta pesquisa seja relacional, ainda precisei destacar o papel feminino no Espiritismo, para poder visualizar as relações de gênero através de uma pesquisa bibliográfica, pois textos acadêmicos e também espíritas pouco, ou quase nada, tratam destas relações. E quando o fazem, destacam só o papel (“função”) social das mulheres no interior dos lares. A grande maioria dos textos utiliza-se do termo genérico masculino “o homem” para referir-se a pessoa humana, o que esconde relações desiguais de gênero no interior do movimento. Por isso, ainda, nos próximos capítulos, continuarei a dar destaque à participação feminina nos centros espíritas (capítulo 2) e às representações de mulher (capítulo 3) na produção lítero-doutrinária espírita.

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CAPÍTULO 2. A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO ESPIRITISMO

Como procurei demonstrar, no capítulo anterior, ao longo dos quase 150 anos de história do Espiritismo, na França, no Brasil e provavelmente pelo resto do mundo, as relações e representações de gênero foram sendo constituídas com base no entrechoque deste com o Catolicismo e com a classe médico-psiquiátrica, e bem como, estas se constituíram sob a influência da filosofia positivista, dos ideais dos socialistas utópicos e da classe militar. Se no capítulo anterior o enfoque foi histórico, neste capítulo, busquei estabelecer no processo dialético das representações de gênero, contidas na literatura espírita85, e da práxis espírita – registrada em pesquisas de campo de pesquisadores/as brasileiros/as (SILVA, 2006; LEWGOY, 2000; RODRIGUES, 2012; FERNANDES, 2008; ALMEIDA, 2004; CAVALCANTI, 2008) e em minha experiência pessoal – possíveis explicações para a divisão sexual do trabalho nas instituições espíritas. A intenção foi buscar contextualizar, dentro das limitações de uma pesquisa bibliográfica, as representações de gênero espíritas em seu lócus – o centro espírita, espaço privilegiado da produção e reprodução do ethos espírita – e assim embasar o próximo capítulo que consiste em “investigar a compreensão dos indivíduos no contexto cultural em que são produzidas as informações ou, enfim, verificar a influência desse contexto no estilo, na forma e no conteúdo da comunicação” (FONTELES, 2007, p. 8).

2.1. “SER ESPÍRITA É UMA FORMA DE SER INTELECTUAL”86

Espíritas! amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo. No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além-túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: “Irmãos! nada perece. Jesus-Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade.” – O Espírito de Verdade. Paris, 1860. (KARDEC, 2010 [1864], p. 134) [Grifos meus.]

Tratando-se, agora, especificamente do Brasil, o Espiritismo, ao ser transplantado para cá, ainda na segunda metade do século XIX, constituiu-se, majoritariamente, como uma alternativa religiosa típica de camadas médias urbanas (CAMARGO, 1973; AUBRÉE e

85 Embora não faça parte do objeto de estudo desta pesquisa, aqui apresentarei uma pequena síntese de como outros autores da academia trataram as questões de gênero nos romances espíritas, e bem como no artigo apresentado na ABHR-Sudeste (BRADBURY, 2013-b) onde fiz uma pequena análise de gênero, do texto e das imagens, na literatura espírita infantil para termos um certo paralelo com a produção lítero-doutrinária, a qual é o foco desta pesquisa. 86 Expressão de Parke Renshaw que se encontra em: A Sociological Analysis of Spiritism in Brazil (mimeog.). Dissertation presented to the Graduate Council of The University of Florida, University of Florida, 1969, citada por M. L. V. C. Cavalcanti (2008, p. 17).

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LAPLANTINE, 2009; ARRIBAS, 2008; STOLL, 2002 e IBGE, 2000; 2010). E como tanto as camadas médias urbanas quanto o contingente de espíritas e simpatizantes apresentam como característica comum certo domínio do “saber letrado e a formação erudita”, em decorrência disto, a práxis espírita tem se caracterizado por intensa valorização das práticas de estudo e leitura (LEWGOY, 2000; 2004). Em decorrência disto, entre o Espiritismo e seu público de classe média87 existe uma “afinidade eletiva” determinada pela racionalização da fé88 – ou “racionalização do sagrado” (DIAS, 2011, p. 11) – e pelo espírito metódico e crítico89 – muito próximo de modelos científicos e pedagógicos – prova disto é como o Espiritismo, numa época marcada pelo cientificismo, conseguiu ganhar aceitação entre intelectuais, aqui e pelo mundo (MACHADO, 1996; DAMAZIO, 1994). Stoll (2003, p. 26) afirma que o Espiritismo “se trata de uma versão erudita: não apenas pelo fato de ser letrada, mas, principalmente, por ter sido formulada tendo como parâmetro preceitos, ideias e procedimentos que se querem "científicos". Este ethos acadêmico, resultado da elaboração da “ciência espírita”90 a partir de uma epistemologia própria, fica bem claro na seguinte expressão de Kardec: Apliquei a essa nova ciência [Espiritismo], como até então o tinha feito, o método da experimentação; [...] Foi assim que sempre procedi em meus trabalhos anteriores, desde a idade de quinze a dezesseis anos. [...] se fazia agir com circunspeção e não levianamente, ser positivista e não idealista, para me não deixar arrastar pelas ilusões. (KARDEC, 2011 [1890], p. 268)

O Espiritismo (institucionalizado), quando de sua implantação aqui, coincidindo com a instauração da República e seu projeto higienista (sanitarista) da sociedade brasileira e da

87 Na pesquisa de doutorado de Alexander Moreira de Almeida (2004) cujos objetivos relacionavam o perfil sociodemográfico e a saúde mental em médiuns espíritas, chegou-se aos seguintes resultados de uma amostra de 115 médiuns: 76,5% mulheres, 2,7% de desemprego e 46,5% de escolaridade superior. A conclusão do estudo é que o perfil sociodemográfico da presente amostra difere do padrão dos casos incidentes de esquizofrenia, os quais apresentam limitações sociais: estados de exclusão e privação social (desemprego, migração, pobreza, isolamento social) (ALMEIDA, 2004, p. 146). Esta pesquisa parece indicar que mesmo para aquele público mais fragilizado socialmente, os médiuns espíritas apresentam “escores de adequação social pouco piores que uma população sem psicopatologia” (ALMEIDA, 2004, p. 156), pois ao buscar “no Espiritismo respostas ou o entendimento de questões existenciais ou para problemas pessoais e familiares que enfrentavam” (ALMEIDA, 2004, p. 132) encontravam ali um ambiente social onde vivências mediúnicas e/ou experiências dissociativas dos médiuns “são bem aceitas e a ocorrência apenas num contexto religioso” (ALMEIDA, 2004, p. 156) disciplinado pela experimentação controlada e pelos estudos sistematizados. 88 Para Kardec não só a ciência e a filosofia espíritas são submetidas à razão, mas igualmente a crença espírita é uma “fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica não deixa nenhuma obscuridade” (2010 [1864], p. 321). 89 É preciso se lembrar que o Espiritismo é fruto de um pedagogo que recebeu grande influência do positivismo para que se possa melhor compreender o modus operandi e o ethos acadêmico dominante nas instituições espíritas, e sua consequente consolidação na forma de manuais e “estudos sistematizados” apostilados. 90 Sobre a “ciência espírita” conferir em: LEWGOY, Bernardo. Representações de ciência e religião no espiritismo kardecista: antigas e novas configurações. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 6, n. 2, jul./dez. 2006. p. 151- 167.

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infraestrutura urbana, buscou manter o formato modernista de Kardec e afastar-se de práticas rituais de tradição afro-brasileira, com seus tambores, danças e sacrifícios, coibidos pelas autoridades porque “denunciavam o atraso do país” (SILVA, 2005, p. 106). Pode-se afirmar que o movimento espírita, de modo geral, sempre incentivou e pautou sua práxis no estudo, na aquisição de conhecimentos, no aprimoramento moral e intelectual (SILVA, [1997], p. 2)91 de seus/as adeptos/as. Segundo Eliane Moura Silva [2007], o movimentou organizou-se a partir da preocupação em divulgar a doutrina através de grupos de estudo e como consequência isto levou a intenso movimento de produção literária. Segundo ela, a “doutrina espírita foi codificada em livros e textos de natureza variada, sobretudo obras concebidas ‘psicograficamente’, através de um médium que escreve mensagens, poesias, textos literários, provenientes da inteligência consciente de desencarnados” (SILVA, [1997], p. 3)92. O Espiritismo, a partir das províncias da Bahia e do Rio de Janeiro, se desenvolve em meios literários que fizeram da escrita o principal instrumento de divulgação doutrinária com a edição do primeiro periódico espírita brasileiro, “Echos de Além-Túmulo” (1865); e do primeiro livro espírita editado no Brasil “Les temps sont arrivés” (1860) escrito, em francês, por Casemir Lieutaud, diretor do Colégio Francês; seguido pelo opúsculo “O Espiritismo - Introdução ao Estudo da Doutrina Espirítica” (1866) contendo páginas extraídas e traduzidas por Telles de Menezes de “O Livro dos Espíritos” (1857); e, outra brochura de propaganda, “O Espiritismo reduzido à sua mais simples expressão” escrita por Kardec e tradução do professor Alexandre Canu (1866). Bernardo Lewgoy (2000), em sua tese de doutorado, fez uma pesquisa etnográfica e análise de literatura, na qual analisa o modo como a cultura escrita, a oralidade e narrativas relacionam-se no Espiritismo93. Para o autor, Ao estabelecer um sistema de referências erudito, cuja base divide-se entre, de um lado, orientações reveladas através do transe mediúnico e a discussão grupal dessas orientações, o espiritismo atualiza não apenas um sistema religioso de crenças, práticas e valores, mas toda uma cultura bibliográfica por meio de um conjunto de performances de estudo e leitura, citação e comentário, oratória, doutrinação e prece, cujo domínio constitui a condição de participação efetiva na religião, aliás práticas vinculadas a uma socialização prévia no mundo escolar e erudito da sociedade. (LEWGOY, 2000, p. III)

91 Também afirma o mesmo Gleide da Silva (2006, p. 67) que o Espiritismo nascido “num contexto em que a ciência dominante invadia todos os âmbitos com suas concepções, o espiritismo valoriza muito a aquisição de conhecimento através do estudo”. 92 A terminologia espírita rejeita o conceito de “morto”, pois parte do pressuposto da sobrevivência da alma à morte física (corpo/carne). Daí a designação espírita da dualidade humana, “encarnados/as” e “desencarnados/as”, usada por Silva (1997), e que também me utilizarei algumas vezes, para não fugir à terminologia espírita. 93 Sua pesquisa realizou-se em um centro espírita num bairro de classe média próximo do centro de Porto Alegre- RS.

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Em termos gerais, nos centros espíritas, só a alfabetização de seus/suas adeptos/as não é o suficiente, quer para acompanhar os estudos sistematizados, quer para ascender na hierarquia doutrinário-administrativa, mas é preciso ter certo domínio de uma crítica e ampla visão secular da História e de outras áreas do conhecimento94 e bem como da cosmologia espírita, estas são condições sine qua non da “participação efetiva na religião” (LEWGOY, 2000, p. III). Desta feita, o cotidiano de um/a adepto/a, em sua práxis espírita, quer em sua residência – na prática do “Evangelho no Lar” em família – quer nos centros espíritas, está povoado de constantes solicitações de leitura e interpretação – e, desconfio que, ainda hoje, com todo movimento de libertação da mulher, de forma diferente respondem grupos masculinos e femininos a tais solicitações. Para Bernardo Lewgoy (2000; 2004; 2006) e Maria Laura V. C. Cavalcanti (2008), ser espírita é ser iniciado/a em um hábito de leitura e estudo, manter um contínuo exercício interpretação crítica de textos e contextos, e saber articular referências escritas, de citações, de exemplos e de narrativas de “causos espíritas” em conversas informais, em reuniões de estudos ou em palestras públicas95. Nesse sentido, Lewgoy afirma que no Espiritismo tudo gira em torno Da leitura, por fundamentar-se, desde as primeiras experiências do iniciante no centro espírita, numa relação de estudo e exegese de textos, aproximando-o de todo um abrangente universo de referências escritas, de citações, de exemplos e de narrativas, que coroam sua concepção de mundo e seu imaginário em relatos supostamente ditados pelos Espíritos. Ser espírita no Brasil não é apenas dar e receber passes, assistir a palestras e sessões de mesa ou mesmo comunicar-se com os mortos mas, por exemplo, ter lido Allan Kardec, saber citar o Espírito de Emmanuel, estar atento às transformações no mundo [...]. (LEWGOY, 2000, p. 12). [Grifos meus.]

Isto vem ao encontro da afirmação de Cavalcanti (2008, p. 63) de que o estudo constitui- se no eixo central do cotidiano de um centro espírita, para ela, o “estudo está plenamente integrado às demais atividades espíritas”: todos os campos de trabalho e suas ocupações (cargos e funções) têm um estudo sistematizado (com apostilas, manuais, apresentação de slides, e vídeo-aulas baixadas da internet) associado a eles, curso de atendimento fraterno, curso de médiuns, curso de passes, curso de desobsessão, curso para evangelizadores de infância... e até cursos superiores aprovados pelo MEC, como a graduação em Teologia Espírita96 e a pós-

94 Segundo Fernandes (2008, nota 22, p. 15) “Vários livros de outros autores espíritas [...] exigem do leitor conhecimentos prévios de biologia, química, física e outras ciências naturais. Sem esse preparo científico anterior, fica extremamente prejudicada a leitura de tais obras e a apreensão de seus princípios e explicações sobre a ciência espírita.” 95 “Todo espírita deve ser capaz de ler e comentar um trecho de um livro espírita diante do público ou de seus pares. [...] São sempre citadas outras obras espíritas, fornecendo-se por vezes referências bibliográficas precisas.” (CAVALCANTI, 2008, p. 64) [Grifos meus.] 96 Oferecido pela Faculdade Doutor Leocádio José Correa (FALEC), Curitiba-PR.

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graduação em Pedagogia Espírita97. É comum os/as espíritas se referirem ao centro espírita como uma escola (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 48). A imagem de escola é bem apropriada à realidade das instituições espíritas. Muitos/as são os/as alunos/as, mas como rede oficial de ensino, nem todos concluem os estudos e são admitidos em cursos mais técnicos ou avançados, mas todos/as passam obrigatoriamente por algum tipo de estudo. No caso dos centros espíritas, por vezes, até aqueles que vão só para obter um prato de sopa ou uma cesta básica recebem alguma forma de estudo (instrução, palestra, entrevista, etc.). Como diz Cavalcanti (2008, p. 62) o estudo “consiste na lei aura” dos centros espíritas. Os estudos oferecidos nos centros espíritas, de acordo com seu porte98, podem ser divididos em dois tipos: os doutrinários e os de formação de trabalhadores. No primeiro tipo, onde a cosmologia espírita é estudada em seu tríplice aspecto, são tomados os cinco livros da codificação de Kardec99, sendo que no primeiro aspecto, a religião, os estudos se baseiam em “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Este, geralmente, é entendido como nível básico e obrigatório para todos/as iniciantes. São considerados avançados e complementares os dois últimos aspectos, a filosofia e a ciência, e se baseiam em quatro livros: “O Livro dos Espíritos”, “O Livro dos Médiuns”, a “Gênese” e “O Céu e o Inferno”, todos de Kardec. O segundo tipo de estudo objetiva a formação de trabalhadores para os centros espíritas: médiuns, passistas, doutrinadores, expositores/divulgadores, evangelizadores de infância e juventude entre outras funções. Assim, como diz Cavalcanti (2008, p. 62), o estudo circunscreve um conjunto de práticas como “comentários, exposição de textos espíritas, na produção de artigos, apostilas e livros, na realização de debates, palestras, mesas-redondas”. Trabalhadores/as e assistidos/as, ministrantes da palavra e público estão diretamente envolvidos com tais práticas. Não só são seriados os estudos, como os graus em uma escola – com duração de um ano – não possibilitando o acesso aleatório aos níveis mais elevados, como também a simples participação em determinadas reuniões depende do domínio prévio de certos conhecimentos

97 Oferecido pela Universidade Santa Cecília (Unisanta), Santos-SP. 98 Segundo Maria Laura Castro, “O ciclo ritual espírita tem como unidade básica a semana. Todas as sessões [de estudo e assistenciais] são oferecidas semanalmente em um ou dois turnos. Há modelos expressamente sugeridos pela Federação aos centros” (CASTRO, 1988, p. 18-19). Porém nem todos os centros oferecem igual e necessariamente todas as sessões do repertório federativo, devido a inúmeras variáveis (tempo de fundação, número de trabalhadores/as, localização, etc.) assim “a maneira pela qual essas sessões se organizam e se combinam pode variar bastante” (CASTRO, 1988, p. 19). 99 O conjunto das cinco principais obras de Kardec também denominado de pentateuco kardequiano (SILVA, 2006, p. 159).

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espíritas. Cavalcanti (2008, p. 62) explica que para ela fosse autorizada a assistir às reuniões mediúnicas, como parte de sua pesquisa de campo, era preciso que ela tivesse algum estudo/conhecimento espírita, de modo que fosse capaz de compreender o que se passaria ali. Em muitos centros espíritas, apenas ser médium ostensivo100 não confere autorização para participar de reuniões mediúnicas, pois o “ contato com o Mundo invisível é considerado sempre potencialmente perigoso” (CASTRO, 1988, p. 48). Os/As dirigentes, zelosos/as, alegam a possibilidade de neófitos/as adquirirem uma confusão doutrinária ou, pior, um desiquilíbrio mental, caso não apresentem a preparação teórica necessária (mínima). Assim, pode-se afirmar que o “espiritismo é uma religião da cultura escrita (ou letrada no sentido de pressupor limiares mínimos de ‘letramento’ para a participação em seu cotidiano) e isso faz toda a diferença” (LEWGOY, 2000, p. 9). E até mesmo atividades simples como ser recepcionado à porta de um centro espírita, de ser convidado a fazer uma prece em público, ou compartilhar o evangelho em família existe um apelo ao estudo, à busca de enriquecimento cultural. Lembro-me das vezes que pessoas idosas e analfabetas, a maioria mulheres, ficavam vexadas logo na entrada do centro espírita, quando eu lhes oferecia uma mensagem espírita impressa, algumas delas aceitavam e guardavam consigo, outras rejeitavam e alegavam – contrafeitas – que não sabiam ler. Mas ficavam realmente mais constrangidas quando eu – desconhecendo sua condição de analfabetas – pedia-lhes que assinassem o livro de presença. Também os momentos de oração exigem do/a executor/a um nível intelectual superior à mera memorização, pois a prece espontânea, a qual é a preferência espírita, ao contrário da oração decorada, por vezes, pressupõe a interpretação e adequação de orações tradicionais como o “Pai Nosso” e a “Ave Maria” às necessidades instantâneas do momento, à tipologia de “trabalho” (atividade) espírita e ainda adequação aos diferentes objetivos que se pretende alcançar com a prece. Isto não é fácil – não foi para mim, aos quatorze anos – para pessoas pouco dadas à leitura e falar em público e, pior, de improviso, por vezes, para pessoas tímidas, como eu era. Embora, quando convidado a fazer uma prece, nervoso e vexado pela situação e pelo “branco” que dava na mente, eu tomava estes convites como desafios a serem superados pelo estudo. Foi assim que tomei contato com a literatura espírita. Igualmente complexa é a prática do “Evangelho do lar”, que se recomenda ser semanal,

100 Pessoa que apresenta sinais patentes de mediunidade, como ouvir vozes ou ver espíritos.

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envolvendo preferencialmente todos os familiares e agregados. Esta vai além da simples leitura de textos religiosos e preces espontâneas, pressupõe a leitura em voz alta de um trecho do “Evangelho segundo o Espiritismo” – precedida ou não da leitura de um livro de mensagens espírita – a qual se estimula a participação ativa de todos os alfabetizados, como num jogral, onde cada um leia um parágrafo (ou um trecho) e, em seguida, solicita-se que todos façam individualmente a socialização da compreensão do trecho lido coletivamente. Não muito diferente são os estudos sistematizados oferecidos nos centros espíritas, onde a dinâmica de grupo também segue uma metodologia semelhante àquela da escola tradicional: exercício de leitura individual em voz alta; sabatina de perguntas e respostas e fechamento pelo/a ministrante do curso. O próprio “O Livro dos Espíritos” (Kardec, 1995[1857]), por ser composto de perguntas e respostas, entremeadas de alguns comentários de Kardec, já facilita esta dinâmica pedagógica. Portanto, basta o dirigente do estudo ler a pergunta, solicitar que público reflita e discuta as possíveis respostas, e depois comparar estas com as respostas dos espíritos, contidas no livro. Este caráter didático é presença marcante nas obras de Rino Curti101 e de Edgar Armond102, e nos programas de federações espíritas como a FEB103 e a FEESP104, tanto para estudos de adultos quanto para a juventude e infância espíritas, como os catecismos espíritas de Leon Denis105 e Eliseu Rigonatti106. Toda esta dinâmica de estudos nos centros espíritas faz com que haja um grande investimento no campo editorial espírita, pois para Lewgoy (2000, p. 13): “ser espírita é ser leitor de livros, revistas e jornais espíritas, é ser consumidor de um importante segmento da indústria do livro religioso no Brasil”. Todo este consumo107 do leitorado espírita, como Stoll (2003) afirma, coloca o Brasil

101 Conferir a lista de “livros das escolas” de Rino Curti no Anexo A, desta dissertação. 102 Embora nas obras deste autor não apresentem o formato de perguntas e respostas e nem contenham perguntas ao final de cada capítulo, chama a atenção a forma didática de dividir e expor os conteúdos doutrinários. Digno de nota é a obra “Vivência do Espiritismo Religioso", da Editora Aliança [2006, 6ª ed,. 288 págs.], cuja primeira edição foi coordenada por E. Armond, que discorre sobre o programa de cursos e atividades espíritas oferecidos pela Aliança Espírita Evangélica, um entidade que congrega centros espíritas que aderem a seus programas: Escola Aprendizes do Evangelho, Cursos de Médiuns, Assistência Espiritual, Mocidade Espíritas e Evangelização Infantil. 103 A Federação Espírita Brasileira (FEB) disponibiliza vários cursos em versão impressa, digital e também na modalidade de Educação à Distância (EaD), nas seguintes áreas: Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita (ESDE), Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita (EADE) e Estudo e Educação da Mediunidade (EEM). Conferir no site: 104 Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP), conferir lista de livros/cursos no Anexo B. 105 DENIS, Leon. Catecismo Espírita, Editora: FEB. 106 RIGONATTI, Eliseu. 52 lições de catecismo espírita. Editora: Pensamento, 1981, 1ª edição. 107 Isso sem levar em conta toda uma produção independente de mensagens psicografadas avulsas que são distribuídas no hall de entrada dos centros espíritas; informativos e folhetins internos; ou apostilas customizadas às necessidades da instituição e de seu público alvo. Publicações de pequena tiragem e de quase sempre baixo

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em posição de destaque no cenário internacional: Essa posição de destaque foi mantida pelo país ao longo de todo o século XX, especialmente depois do "fenómeno Chico Xavier". Conforme um levantamento recente realizado pela Federação Espírita Brasileira, "ultrapassam de 1.600 os títulos espíritas publicados no país, o que significa que o Brasil detém a maior parte da literatura espírita produzida no mundo". (STOLL, 2003, p. 50)

E para alimentar este mercado editorial, médiuns publicam suas psicografias, de forma independente ou através de alguma instituição espírita vinculada a uma editora; divulgadores itinerantes (palestrantes) espíritas escrevem coletâneas de crônicas e estudos de suas experiências pessoais na doutrina; e associações classistas (medicina, direito, pedagogia, entre outros) promovem congressos e publicam em seus anais as pesquisas acadêmicas com a temática espírita de seus congressistas108. Interessante que esta vocação acadêmica do Espiritismo já se encontrava em Kardec, que em 1858, apenas um ano depois da publicação do principal obra (fundante) espírita, lança a “Revista Espírita”, cujo título explicativo exibia sua pretensão científica: “Jornal de Estudos Psicológicos”109. A motivação de Kardec em organizar a Revista Espírita explica-se pois, Dando-se conta da imperiosa necessidade de criar uma folha que periodicamente pusesse os estudiosos dos fenômenos espíritas a par do que se passava no mundo e os instruísse de modo ordenado sobre as mais variadas questões doutrinárias. Até então a França não dispunha de um único jornal [...] Situação diversa ocorria em outros países; os Estados Unidos, por exemplo, dispunham de dezessete jornais, em língua inglesa, consagrados às manifestações mediúnicas [...] (MASOTTI, 2004, p. 13)

O Espiritismo, na França, nos Estados Unidos e também no Brasil, buscava determinadas pretensões de legitimidade científica e filosófica, o que de certa forma moldou o ethos religioso espírita, em todo o mundo. As primeiras instituições espíritas foram sociedades de intelectuais que produziam experiências mediúnicas com registros escritos, debates e publicação em “revistas científicas” da época. O conhecido jornalista João do Rio, testemunha de época, surpreendeu-se com o fato. Segundo seu depoimento, por volta de 1900 circulavam no mundo 96 jornais e nível técnico – por vezes, impressas em papel reaproveitável, cujo verso está em branco – as quais anteriormente se faziam em mimeógrafo e hoje, são replicadas em fotocopiadoras ou em simples impressoras pessoais. 108 Eu apresentei dois trabalhos em congressos espíritas: BRADBURY, R. “OUTROS OLHARES DO E SOBRE O UNIVERSO: Uma proposta de ensino integrada de cosmogonias e de cosmologia” apresentado como comunicação oral e publicado seu resumo nos anais do 1º Congresso Internacional de Educação e Espiritualidade e do 4º Congresso Brasileiro de Pedagogia Espírita, São Paulo-SP, 2010; e “PARA UMA SEXUALIDADE SAUDÁVEL E RESPONSÁVEL - Contribuições da Doutrina Espírita para a compreensão das relações de gênero”, apresentado como pôster e publicado seu resumo nos anais do IX Congresso Nacional da AME, Maceió- AL, 2013. 109 Na França, o Espiritismo de Kardec não tinha pretensões religiosas tal como no Brasil, e assim ele fundou um círculo de pesquisadores e médiuns denominado de “Associação Parisiense de Estudos Espíritas” e uma revista intitulada “REVISTA ESPÍRITA: Jornal de Estudos Psicológicos”, tudo denunciando as pretensões científicas do grupo.

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revistas espíritas; 56 deles eram editados em toda a Europa e 19 somente no Brasil. (STOLL, 2003, p. 50)

Até o momento, apresentei as características gerais do movimento espírita que auxiliam, em parte, na compreensão do objeto da pesquisa, a produção literária espírita. No próximo subcapítulo, busco relacionar o consumo de literatura espírita às questões de gênero de modo possa lançar algumas luzes sobre as representações de gênero espíritas. Não é minha pretensão aprofundar muito neste sentido, pois foge à delimitação de nosso objeto e, além do mais, há pouquíssimas referências teóricas sobre este tema o que, por fim, demandaria uma ampla pesquisa de campo.

2.2. O LEITORADO ESPÍRITA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO

A família espírita se distancia de qualquer gênero de autoritarismo e opressão. O machismo fica abolido, porque sabemos que, como espíritos encarnados, independentemente de sexo, devemos evoluir em dois sentidos: “Espíritas, amai-vos, eis o primeiro mandamento, e instruí-vos, eis o segundo”. O Espírito da Verdade não disse: “Mulheres, amai, e homens, instruí-vos”, como querem certos retrógrados que o homem seja o cérebro e a mulher o coração. Homens e mulheres devem ser coparticipantes no mundo e no lar. (INCONTRI, 1986, p. 14)

O Espiritismo ao se auto definir como doutrina tríplice: filosófica, científica e religiosa (CAVALCANTI, 2008) sem desconstruir ou debater suficientemente110 as representações de gênero da sociedade onde estava sendo gestado, fez continuar segregando as mulheres a funções e espaços de menor prestígio social, no movimento. Estes três aspectos da Doutrina Espírita, a Filosofia e a Ciência, no campo secular e a Religião em sua alta hierarquia, até bem pouco tempo atrás111, foram campos altamente intelectualizados e elitizados, e portanto, foram espaços, predominantemente, masculinos, espaços determinados por certa posse de capital simbólico acumulado. Se na época de Kardec eram poucas as mulheres pesquisadoras, livres dos afazeres domésticos e liberadas para a pesquisa, hoje, com as conquistas femininas em vários campos sociais, principalmente em relação à democratização do ensino no Brasil, muito deste quadro mudou. Mas por que uma maior escolarização feminina não correspondeu a uma maior

110 E no momento histórico em que surge o Espiritismo, o contingente de intelectuais e pesquisadores era quase exclusivamente masculino. Embora Kardec (2004 [1866], p. 14) tenha criticado isto: “Não faz ainda muito tempo a questão foi agitada para saber se o grau de bacharel podia ser conferido a uma mulher”, parece me que a repercussão deste e de alguns artigos semelhantes, na Revista Espírita, não foram suficientes para desconstruir as representações de gênero contidas em “O Livro dos Espíritos” ou aquelas vigentes sociedade em geral. 111 Embora já não haja interdição, certa sequela persiste no imaginário popular de que estes espaços sejam privilégios masculinos, espaços não recomendados às mulheres.

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participação das mulheres nos cargos de liderança nas casas espíritas? (BRADBURY, 2013-b, p. 1150) Para Gleide Silva (2006, p. 159) um dado talvez mais significativo – relacionado ao que denominei de “afinidade eletiva” entre o Espiritismo e a classe média – é a importância do domínio, por parte de seus/suas adeptos/as, de certo capital simbólico, o qual é constituído por um conjunto de performances de estudo e leitura, e pelo conhecimento da produção literária espírita, em especial a codificação kardequiana, para a divisão (sexual) do trabalho nas casas espíritas: por tudo o quanto foi dito e caracterizado tanto para a religião quanto para as camadas médias, o do nível de leitura e conhecimento das obras basilares da religião, isto é, o pentateuco kardequiano, vemos que este parece ser mais importante para o desempenho dos papéis deste subgrupo, isto não por se apresentar enquanto um dado meramente mensurável e, portanto, traduzível em valores quantitativos, mas por, indubitavelmente, refletir-se no cotidiano dessas pessoas na instituição, que demonstram um domínio muito grande sobre os conteúdos cosmológicos e posturas seguras no centro, sendo mesmo procurados por outros para aconselhamento e orientações religiosas. (SILVA, 2006, p. 159)

A literatura espírita em geral, não só a doutrinária112 – foco desta pesquisa – está repleta de representações de gênero, masculinas e femininas, bem definidas, isto em especial nos romances mediúnicos, cujo caráter marcante é de “edificação moral” (LEWGOY, 2004) e “exemplaridade” (STOLL, 2003). Predomina, entre os kardecistas, um leitorado feminino de camadas médias urbanas instruídas, muitas das quais com uma origem nominalmente católica, as quais combinam os traços de uma moralidade católica com o respeito ao racionalismo científico. Este público [FEMININO] encontra nos romances psicografados uma espécie de gênero-síntese das pretensões de autocultivo e edificação moral, em narrativas mediadas pela explícita presença da doutrina espírita coroando a metadiscursivamente a conclusão dos textos (LEWGOY, 2004, p. 56). [Grifos meus.]

[os] romances atribuídos a "Emmanuel", [...] Além de introduzirem os temas doutrinários básicos do Espiritismo por meio de novos recursos literários, seus livros sugerem ao leitor modelos de conduta exemplar, [...] Nesse sentido, a literatura mediúnica psicografada por Chico Xavier [...] introduz novas estratégias textuais e configura modelos exemplares de conduta [...]. (STOLL, 2003, p. 104) [Grifos meus.]

O cruzamento dos dados que as pesquisas de campo (LEWGOY, 2000; 2004; STOLL, 2003; CAVALCANTI, 2008) com os dados do Censo IBGE 2000 e 2010 dá uma pista de como também a literatura espírita pode estar sendo consumida diferentemente entre os sexos. Se quase 60% dos espíritas são mulheres, conforme o Censo (IBGE, 2000; 2010), e se

112 Por outra, a própria literatura espírita, tão rica em títulos e tiragens, de forma mais sutil, está fortemente marcada por sexismos, desde a literatura infantil, com textos e imagens estereotipadas de meninos e de meninas; e de ocupações diferenciados por sexo que hoje não mais condizem com a realidade social dos centros urbanos, onde o Espiritismo tem maior adesão (BRADBURY, 2013-b, p. 1151).

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como afirmam Stoll (2003, p. 89): “o romance constitui o gênero de maior apelo popular”113, e Lewgoy (2000, p. 21): “a maioria das pessoas que entra na livraria [em Porto Alegre-RS] é de mulheres em busca dos livros [romances] de Zíbia Gasparetto e de Patrícia (espírito), especialmente por causa da linguagem, ‘mais simples e acessível’”, pode-se inferir que boa parte do leitorado que consome romances seja constituído de mulheres. Sendo que comparativamente o valor dado à leitura de livros doutrinários é muito maior em detrimento daquele valor conferido à leitura de romances espíritas. No computo geral, as mulheres que evitam a leitura das obras básicas de Kardec – com exceção de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, disparadamente a obra mais vendida do pentateuco kardequiano – ou os livros do espírito André Luiz, psicografados por Chico Xavier, “por considerá-lo complicado e chato” 114 (LEWGOY, 2000, p. 21), podem ter sua ascensão aos cargos mais qualificados, no quadro de trabalhadores, prejudicada, principalmente quando seus concorrentes masculinos se dedicam mais à leitura, justamente, das obras doutrinárias. Esta literatura doutrinária provavelmente seja mais consumida por homens espíritas115, de forma espontânea e não porque tal obra é um livro base de determinado grupo de estudo sistematizado116, pois como todo alunado deve acompanhar o estudo pela mesma obra (livro ou apostila), neste caso não há diferença de gênero. Na pesquisa de campo de Maria Laura Cavalcanti (2008) percebe-se igualmente a dicotomia entre textos mais técnicos e filosóficos (doutrinários) e outros, mais de moral cristã (mensagens, poesias, crônicas e romances):

113 Nesse sentido, as observações no Diário de campo de Lewgoy (2000, p. 21) chamam a atenção para o romance mediúnico “Violetas na Janela, [ditado por Patrícia (espírito)] best-seller de mais de meio milhão de exemplares vendidos, está na estante da editora Petit, diferenciada das outras pelo modo de apresentação dos livros”. Trata- se de uma narrativa curta e bem coloquial – diferente do geral das obras espíritas que usam um português arcaico e que exigem o uso constante do dicionário – da vida após a morte de uma adolescente, talvez sejam estes os motivos do grande sucesso de vendagem, principalmente pelo fato de ter poucas páginas e, portanto, ser mais barato que os volumosos romances de Chico Xavier ou de Zíbia Gasparetto. 114 Certamente não é toda a série de livros de André Luís (espírito) que apresenta rejeição espontânea do/a leitor/a, pois o romance “Nosso Lar”, o primeiro da série, lançado em 1944, 50 anos depois teve uma edição comemorativa ao completar um milhão de exemplares. E tamanha é a aceitação deste livro que o romance teve, em 2010, sua versão cinematográfica, um feito ainda inédito, pois nenhuma obra espírita tinha ainda conseguido tal feito. E em 2012, um outro romance da série, “E a Vida Continua...”, também ganhou sua versão cinematográfica, demonstrando que a rejeição é só relativa aos livros doutrinário de André Luís. 115 Digo provavelmente, pois me faltam dados e referências científicas para afirmar categoricamente tal fenômeno, entretanto parece-me uma hipótese bastante plausível uma vez que os homens, além de serem associados pelas representações de gênero à liderança e à razão, estes dominam numericamente os setores mais técnicos dos centros espíritas, e assim tem mais necessidade de se inteirar de forma mais profunda nas questões doutrinárias de modo a lhes respaldar a práxis espírita, e o fazem pela literatura doutrinária e não pelo romance. 116 Interessante pesquisa campo e/ou documental, em perspectiva de gênero, seria analisar as listas de matrícula e de presença dos diferentes cursos sistematizados oferecidos nos centros espíritas, e verificar se existem diferenças de gênero na escolha dos cursos. O resultado desta pesquisa poderia favorecer a compreensão da divisão sexual do trabalho no Espiritismo, uma vez que estes cursos especializados formam diferentes tipos de trabalhadores: médiuns, divulgadores/palestrantes, passistas, etc.

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Algumas pessoas individualmente podem definir-se como "mais da parte evangélica" ou "mais da parte filosófica". Segundo a avaliação do presidente do ICEB, reunindo dez espíritas, encontram-se dois que preferem a parte filosófica e oito que dizem: "Ah! Eu prefiro o Evangelho!" Não entendo nada do que fulano fala, que nem o sicrano que às vezes fala para um grupo muito pequeno de pessoas, a gente às vezes está cansada, procurando uma consolação e vem ouvir falar de espermatozoides, ou ainda falou, falou e não falou em Jesus Cristo. (CAVALCANTI, 2008, p. 20)

Se a maioria dos espíritas é composta de mulheres, arrisco uma hipótese de que na afirmação do presidente do ICEB117 (citado acima), os dois espíritas que preferem a parte filosófica sejam homens e dos oito que dizem: “Ah! Eu prefiro o Evangelho!”, a maioria seja de mulheres. Esta hipótese só poderá ser confirmada através de uma específica e ampla pesquisa de campo. Pois neste sentido, também, Lewgoy (2000, p. 77) afirma não ter “elementos conclusivos para recusar ou confirmar” as teses de Christian Gate de que a formação de um público feminino estava marcada por “formas empáticas e identificatórias da leitura feminina [romance burguês], em oposição às predileções tipicamente masculinas”: Se aplicadas ao nosso universo de pesquisa, suas hipóteses deveriam conduzir a um modelo genericamente "masculino" de leitura espírita, guiado pela preferência a obras de cunho doutrinário - ou por uma leitura mais abstrata de toda a sorte de obras - e um outro feminino, com predileção pela vertente folhetinesca e romântica das obras psicografadas - ou por uma preocupação interiorizante na leitura. (LEWGOY, 2000, p. 77) [Grifos meus.]

Em minha experiência de quase quarenta anos de Espiritismo, percebi que há dois caminhos para se adquirir os conhecimentos doutrinários; a literatura doutrinária e o romance. As representações de gênero espíritas me induzem a crer que uma pretensa racionalidade masculina conduza os neófitos do sexo masculino a escolher o primeiro caminho, enquanto que uma pretensa sensibilidade feminina conduza as mulheres espíritas escolherem o caminho do romance. Isto aconteceu comigo, ao solicitar uma leitura para embasamento teórico inicial e assim poder melhor participar de um grupo de estudos e prática mediúnica, algumas jovens senhoras recomendaram um duplo caminho: ler “O Livro dos Espíritos”, que segundo elas, era de difícil compreensão, ou eu poderia começar os estudos pela obra do espírito de André Luís, tal como elas fizeram. Foi este último que tomei, só anos mais tarde tomei coragem de enfrentar o mal afamado livro de Kardec, o qual depois de anos de estudos e práticas espíritas já não me pareceu de difícil compreensão. É preciso que se faça, aqui, uma ressalva, as observações de campo citadas aqui são muito pontuais e, portanto, como Lewgoy (2000, p. 77) afirma, em relação à sua pesquisa, foi

117 Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB) é uma instituição que se define como cultural, e funciona no auditório da Federação Espírita do Rio de Janeiro (FEERJ) (CAVALCANTI, 2008, p. 9).

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uma “restrita experiência de campo”. Tais observações favorecem o levantamento de hipóteses, mas não permitem generalizações. Além do mais, não foco destas observações não era fazer análises de gênero do movimento espírita. Entretanto, o autor explica que a presença majoritária de mulheres na religião espírita pode ser em parte explicada pelo fato de que tudo o que é valorizado no Espiritismo “pode ser assimilado à dominância genérica de valores socialmente adscritos como ‘femininos’” em contraposição àqueles entendidos como masculinos: a “frieza das relações na esfera pública, dominava pela competição e pela busca de poder” (LEWGOY, 2000, p. 77). Retomando os “modelos de conduta exemplar” feminina e certa complacência em relação ao comportamento masculino contidos nos romances espíritas (STOLL, 2003), pode-se concluir que explícita e/ou subliminarmente esteja condicionando as relações de gênero desiguais no interior das instituições e das residências (famílias) dos/as espíritas. Para Edmund Leite (apud STOLL, 2003) tal como retratado no romance inglês do século XVIII – e também verdadeiro em relação aos romances espíritas – as representações de gênero reforçam e repassam a seus/suas leitores/as a ideia de “hierarquia de gênero”: ...lá pelo século XVIII as mulheres tornaram-se mais morais que os homens; assim sua sexualidade era considerada mais fraca. [...] Se a noção de moralidade superior feminina era uma ficção ou um fato, a hierarquia de gênero do século XVIII veio a ser, creio, uma libertação dos homens quanto à carga de demanda de constância moral e a expectativa que a acompanha de que pessoas boas viverão a vida inteira sem defeitos morais significativos. [...] A cultura "oficial" do fim do século XVIII e começo do XIX desposou essa ideia da mulher pura. [...] Os homens [...] podiam ser menos virtuosos. [...] O valor exemplar da masculinidade não era procurado na perfeição moral, mas na vontade de comando. (Leite apud STOLL, 2003, p. 103) [Grifos meus.]

Os romances espíritas, mediúnicos ou não (novelas de ficção)118 não só exploram os papéis sexuais distintos, tal como as representações de gênero denunciadas por Edmund Leite, mas igualmente as reforçam, quer com a vida exemplar de seus/ suas personagens e consequente sucesso daquela encarnação, quer com a vida desregrada destes e consequente reencarnações punitivas para reparar os erros do passado. Neste sentido Stoll (2003) afirma: A desventura dessas personagens em questão não provém, contudo, exclusiva ou principalmente dessa transgressão. Embora retratadas como moralmente irrepreensíveis, essas mulheres, vítimas de intrigas, acabam sendo acusadas de adultério. Os sofrimentos decorrentes (a separação do casal, o ostracismo social e, em alguns casos, a condenação à morte) não se destinam, porém, a promover o aprimoramento moral da própria personagem, caracterizada, desde o início, como "espiritualmente elevada". Sua resignação diante das perdas afetivas, materiais, de status social etc., tem caráter exemplar; sua postura diante destes fatos é

118 Novelas de ficção com temáticas espíritas, como a comunicação com os desencarnados (mediunidade), a reencarnação e a vida no mundo espiritual, escritas por autores consagrados como J. Herculano Pires, embora não sejam comuns na literatura espírita, constituem um gênero literário frequente das telenovelas da Rede Globo de televisão.

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considerada instrumento de ensino, de "edificação", visto que reitera, a exemplo da vida de Cristo, a ideia de que sua trajetória na Terra não tem a função de expiação, mas de exemplaridade. (STOLL, 2003, p. 102) [Grifos meus.]

É preciso lembrar que os romances espíritas trazem histórias de vida bastante recorrentes na sociedade brasileira, mesmo sendo alguns romances históricos (novelas de época) é possível ao/ à leitor/a utilizar tais parâmetros de comportamento em sua vida, não importando o anacronismo ou o contexto socioeconômico e cultural do enredo do romance. Para Lewgoy: Esta narrativa põe em circulação o tradicional estoque simbólico do feminino nas narrativas populares no qual as mulheres tendem a ser representadas como "ingênuas" e "manipuláveis", dicotomizadas entre a casta mulher doméstica e a ambivalente mulher pública, a prostituta, fora dos controles religiosos e familiares e onde a iniciativa da ação na trama é prerrogativa masculina. (LEWGOY, 2000, p. 293).

A citação, abaixo, de Eliane Moura da Silva (1997) corrobora com o exposto por Stoll (2003) e por Lewgoy (2000) ao afirmar que os romances, como literatura edificante, objetivam o esclarecimento espiritual, através da vida exemplar de personagens virtuosas, porém sofredoras — a quais segundo Stoll (2003, p. 103), “representam o modelo ideal da espiritualidade espírita”: Estes romances, já clássicos da literatura espírita, apresentam modelos de romance históricos como literatura edificante: histórias com começo, meio e fim, personagens simples sem grandes complexidades psicológicas ou sociais, uma trama organizada que tem como objetivo final o esclarecimento espiritual, uma positividade de ensinamentos que procuram levar os leitores à compreensão dos mecanismos da existência e dos objetivos da vida encarnada, da trajetória humana sobre a Terra, em constante provações e sofrimentos, através dos quais se alcança o aprimoramento espiritual. (SILVA, 1997, p. 7) [Grifos meus.]

Logo, se depreende que nas representações de gênero dominantes no Espiritismo, as mulheres quase são invariavelmente os parâmetros de moralidade – pois devem cumprir sua função de exemplaridade na família, no recesso do lar – vidas de renúncia ao desenvolvimento individual para dar oportunidade de desenvolvimento aos filhos – e não às filhas? – e ao esposos no rico palco de experiências evolutivas no mercado de trabalho e na carreira acadêmica. Importante destacar que para Stoll (2003) nos textos romanceados de autoria espiritual de Emmanuel, mais do que nos textos doutrinários de Kardec, estão explícitos os modelos exemplares de conduta conforme uma dupla hierarquia, espiritual e de gênero: Essa forma de concepção da exemplaridade, que sustenta a existência de duas possibilidades — a do ser e do vir-a-ser —, consignada pelo entrecruzamento da ideia da existência de uma hierarquia espiritual e de uma hierarquia de gêneros, não se encontra formulada nesses termos no corpo da doutrina espírita tal como elaborada por Allan Kardec. [...] Nesse sentido, a literatura mediúnica psicografada por Chico Xavier é inovadora, pois introduz novas estratégias textuais e configura modelos

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exemplares de conduta que não se encontram explicitados na literatura que deu origem à doutrina. (STOLL, 2003, p. 104) [Grifos meus.]

É preciso relativizar esta afirmativa de Stoll, pois no levantamento bibliográfico que fiz, os textos fora do pentateuco kardequiano (obras básicas), contidos na “Revista Espírita” e as referências que Kardec faz na obra “Viagem Espírita em 1862”, sugerem, sim, aos leitores modelos de conduta exemplar de forma bastante explícita e reforçam uma tradicional divisão sexual do trabalho, característica de uma hierarquia de gênero, tal como analisarei no próximo capítulo. Igualmente é importante frisar que o autor espiritual Emmanuel, além dos romances, ditou uma grande quantidade de mensagens avulsas – publicadas em jornais e depois editadas em coletâneas, tal como a antologia mediúnica: “Mãe” (XAVIER, F. C. [médium]; EMMANUEL [Espírito] 1971-a; b) – que melhor explicita o pensamento de Emmanuel a respeito da “hierarquia de gênero” e padrões de comportamento ideais para cada sexo. Neste tópico, busquei identificar as características do leitorado espírita em perspectiva de gênero. A seguir retomo a questão da escolarização diferenciada por gênero, e juntamente com a questão de um leitorado espírita sexualmente distinto, são possíveis hipóteses para se entender a assimetria sexual das funções na hierarquia espírita.

2.3. O PROCESSO DE FORMAÇÃO DE ETHOS E DE LOCI SEXUALMENTE DISTINTOS

Como tratei anteriormente, a escolarização e a ocupação de cargos no Espiritismo não se deu igualmente entre os sexos. A diferença do grau de instrução entre intelectuais (experimentadores) e médiuns, entre homens e mulheres, já existente desde a época das irmãs Fox, se reproduziu na fase de sistematização com Kardec, igualmente, no período de implantação no Brasil, e de certa forma ainda é visível nos dias de hoje, embora não de forma tão acentuada como de início, tal é a assimetria nos centros espíritas do Brasil. Esta escolarização diferenciada entre os sexos, não só em grau mas também diferenciada na qualidade e finalidade desta, tende a condicionar ou influenciar a ocupação de cargos na hierarquia doutrinário-administrativa, no meio espírita, gerando guetos mais femininos e outros, masculinos. Diferente da ascensão de cargos em outras religiões, no Espiritismo a ascensão de cargos não se dá tanto em função da formação teológica, não obstante os centros espíritas ofereçam cursos específicos para formação de trabalhadores/as em geral, só que geralmente não há

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diplomação e nem validação de estudos, de modo a facilitar a transferência de centro espírita pelo/a trabalhador/a, por vezes, recomenda-se recomeçar por de baixo da hierarquia e pelo início dos estudos oferecidos pela nova instituição. Muito influi na distribuição e ocupação de cargos no Espiritismo uma relação ambivalente que os espíritas têm com a sua própria formação dividida entre reverência a uma heterogênea literatura sagrada119 e uma hermenêutica da suspeita, que tudo põe em dúvida, que se justifica pelo ânimo racionalista e cientificizante – por uma busca constante de “desmagificação do mundo”120 – daí o anticlericalismo empreendido pelo Espiritismo (LEWGOY, 2000, p. 10-11; CAVALCANTI, 2008, p. 42). Percebe-se este anticlericalismo na fala de Dora Incontri (2012), quando se refere ao processo de institucionalização do movimento espírita no Brasil, o qual se comparado ao de outras religiões é mais democrático, segundo ela, devido à “ausência de sacerdócios e hierarquias e pela eleição de seus membros, que ocupam cargos administrativos”. (INCONTRI, 2012, p. 168), o que estabeleceria, em tese, a igualdade de elegibilidade entre os sexos. Fazendo uma leitura de gênero deste anticlericalismo, Costa (2001) afirma que o Espiritismo não discrimina a figura da mulher, como fazem os católicos, que não permitem que ela tenha acesso ao sacerdócio e à hierarquia. Já para os espíritas, em termos de prática e participação nos trabalhos, quer mediúnicos, quer assistenciais, ou de pregação, a mulher participa em igualdade de condições com o homem. (COSTA, 2001, p. 160).

Neste sentido as autoras Cléria Bittar Bueno (2009), Maria Cláudia Novaes Messias e Ana Maria Jacó-Vilela (2011) concordam com Flamarion da Costa (2001) ao afirmarem que muitas mulheres participaram do movimento espírita desde a sua constituição [...] especialmente, porque o espiritismo possuiu uma organização institucional bastante diversa das religiões tradicionais, pois não tem uma classe sacerdotal organizada [...] (MESSIAS e VILELA, 2011, s.p.).

É preciso frisar que, de fato, não conheci em toda minha experiência espírita e nem na literatura espírita que li qualquer proibição explicita à ascensão e ocupação de cargos, no Espiritismo, por mulheres, entretanto o mesmo não se pode afirmar em relação à dominação masculina simbólica - em especial veiculada por uma educação sexista - que sempre existiu restringindo tal movimentação das mulheres espíritas na hierarquia dos centros espíritas

119 Aqui, estão compreendidos não só os livros espíritas, mas igualmente os livros sagrados de outras tradições religiosas, em especial a Bíblia cristã. 120 Em seu livro “A GÊNESE: os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, no capítulo XIII “Caracteres dos milagres” e no sub capítulo “O Espiritismo não faz milagres”, Allan Kardec (2003 [1868], p. 228), em seu positivismo cientifizante, afirma que “O Espiritismo, pois, vem, a seu turno, fazer o que cada ciência fez no seu advento: revelar novas leis e explicar, conseguintemente, os fenômenos compreendidos na alçada dessas leis.”

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brasileiros, em geral. A colocação de trabalhadores/as deve-se mais a certa performance fortemente determinada pela escolarização e por certa vocação, esta última pode apresentar certos elementos considerados inatos no meio espírita, mas é significativamente condicionada pelas representações de gênero do grupo social. Desta maneira, mesmo naquelas ocupações onde são permitidos ambos os sexos ocuparem, as representações de gênero interagem de forma endógena, através de uma escolha ou motivação pessoal e também de forma exógena, quando há uma expectativa do grupo religioso, classificando diferentemente os homens das mulheres. (BRADBURY, 2013-a, p. 1147). A diretora de um dos departamentos descreveu-me assim seu ingresso no centro: Eu cheguei aqui, era professora. Vi as crianças na evangelização. Interessei-me. A pessoa pergunta: "Qual o programa da casa, como posso me situar?", e procura se colocar conforme seus recursos. Na reunião de jovens, na mesa mediúnica, nos estudos doutrinários, os espíritas, na medida em que progride a sua socialização nesse sistema de crenças, vão sendo classificados e encaminhados para tarefas específicas. Como em todas as atividades humanas há os que vão se destacar. Nesse movimento funda-se uma hierarquia sim, mas que os espíritas pensam como nascida do mérito, da moral individual, nas próprias circunstâncias do trabalho, uma hierarquia de potencial. (CAVALCANTI, 2008, p. 47)

No exemplo, acima, percebe-se que dois importantes fatores contribuem na colocação de pessoal: a disponibilidade e a necessidade. Os/as neófitos/as depois de um tempo de centro espírita – mas nem sempre – passam por entrevistas e certa sondagem das qualidades das vocações destes/as. Neste momento, são importadas certas características vocacionais e ocupacionais da sociedade mais ampla, aproveitando potenciais e distribuindo-os conforme as necessidades mais urgentes da casa. Em minha primeira ocupação como trabalhador espírita, iniciei na evangelização infantil, logo no primeiro dia que apenas visitava o centro. Explicou-me o diretor dos trabalhos que eles precisavam muito de alguém que ficasse com as crianças durante a reunião para os adultos. Tentei, sem sucesso, questionar minha inexperiência e a falta de preparo prévio para desenvolver aquela empreitada inesperada para mim, ao que me respondeu “os espíritos lhe intuirão o que fazer”, ali, na área de infância fiquei por dois anos até que formei novo substituto para a função, desta vez um estudante de pedagogia. No exemplo de Cavalcanti, a novata espírita já era professora e provavelmente existia a carência deste/a profissional ali. E se ela fosse formada em Administração de Empresas (uma carreira entendida como tipicamente masculina), ela teria, em qualquer centro espírita do Brasil seu acesso facilitado a um cargo de liderança por este fato? Provavelmente não.

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Clara Rodrigues Sousa (2013) questiona se os caminhos propostos aos homens espíritas são mais simples do que das mulheres. Não teriam eles, por conta do desprendimento das tarefas domésticas e cuidado da prole, consideradas de responsabilidade feminina, a liberdade e a disponibilidade de tempo para se dedicar às tarefas espíritas (CASTRO, 2008; AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009), além de uma pretensa racionalidade e espírito de liderança natos nos homens, melhores qualificativos para vencer as eleições para cargos de diretoria? Mulheres na cozinha, costurando, poucas em direções de centros. Não precisa ir muito distante. Basta questionar por que a maioria dos médiuns célebres da história do espiritismo são homens, e não mulheres. Algumas poucas podem ser lembradas, mas o que, de fato, é mais comum? Esta enorme discrepância pode ser explicada por uma simples coincidência ou será que os caminhos propostos aos homens são mais simples? A quem é dada maior credibilidade? (SOUSA, 2013, p. 2) [Grifos meus.]

Uma das respostas para tal assimetria dos sexos, no Espiritismo, pode ser como a autora (SOUSA, 2013, p. 1) afirma: tanto o movimento espírita quanto os textos fundantes do espiritismo propagam o pensamento burguês e como tal “estão imbuídos de posições sócio- políticas propagadas” no século XIX, de modo a se reproduzir no meio espírita a mesma ordem vigente da sociedade mais ampla: suas representações e relações de gênero, sua divisão sexual do trabalho, e etc. Para Ivone Gebara (2010) as representações de gênero constituem-se num “conjunto de atribuições simbólicas dadas ao sexo das pessoas”, ou seja, a partir das diferenças biológicas das pessoas, de homens e mulheres, todos nós “fizemos cultura, e cultura sexista”, que segrega e que castra potenciais humanos. Diz a autora (GEBARA, 2010, p. 18) que estas atribuições são aprendidas, ensinadas e transmitidas culturalmente de geração em geração por inúmeras instituições sociais, como a família, a escola e as religiões. Sobre estas últimas, as religiões, Maria José Rosado-Nunes (2005, p. 363) afirma que têm “explícita ou implicitamente, em seu bojo teológico, em sua prática institucional e histórica, uma específica visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos”. No próximo capítulo retornarei a este assunto, por hora importa destacar que as representações de gênero no Espiritismo, como nas demais religiões, demarcam espaços e habitus sexualmente diferenciados. O certo é que as mulheres estão “ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas”, sendo que o forte investimento feminina divide-se entre a ação coadjuvante nos rituais e a educação religiosa das novas gerações (NUNES, 2005, p. 363). São elas as medidoras que proveem recursos simbólicos, afetivos e religiosos para toda a família (NOVAES, 2003, p. 12). Enquanto que

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Historicamente, os homens dominam a produção do que é 'sagrado' nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. (NUNES, 2005, p. 363)

Transpondo esta realidade geral das religiões para o Espiritismo, pode-se afirmar que as representações de gênero espíritas ou o “conjunto de atribuições simbólicas” ligadas ao sexo perpassado pela literatura espírita, em toda sua tipologia121, lida individual ou coletivamente, deixa sua marca na divisão sexual do trabalho, tal como vislumbrada por Eugenio Lara: Na história do Espiritismo poucas foram as mulheres que se destacaram, seja como intelectuais ou como ativistas. Quase sempre seu papel situa-se num plano bem subalterno, à sombra do marido. Destacam-se mais no campo assistencial, organizando chás beneficentes, administrando entidades assistenciais ou promovendo eventos promocionais. (LARA, 2001, p. 1)

Como parâmetro para análise de gênero desta baixa presença feminina na liderança espírita proponho dois relatos: O primeiro, Mercês Cabral (2006) a partir de sua experiência docente na Universidade Católica de Pernambuco (1986 até 2005) no curso de Psicologia registra a reprodução, em sala de aula, de um habitus (comportamento condicionado culturalmente) diferenciado entre as alunas e os alunos: turmas com, no mínimo, 80% do corpo discente composto por mulheres. No entanto, via de regra, quando solicito a uma turma que se pronuncie acerca da matéria estudada, constato que os homens (gênero masculino), mesmo que não tenham tido a compreensão adequada e necessária do conteúdo estudado, colocam-se com mais desenvoltura e segurança que as mulheres (gênero feminino). (CABRAL 2006, p. 139)

O segundo relato, de Cordelia Fine: Pesquisadores demonstraram que as nossas representações implícitas de grupos sociais são, com frequência, extraordinariamente reacionárias, mesmo quando as convicções que comunicamos conscientemente são modernas e progressistas. No que diz respeito ao gênero, as associações automáticas das categorias masculina e feminina não são alguns fios frágeis ligados ao pênis e à vagina. Medidas de associações implícitas revelam que os homens, mais do que as mulheres, são implicitamente associados à ciência, à matemática, à carreira, à hierarquia e à autoridade elevada. Em contrapartida, as mulheres, mais do que os homens, são implicitamente associadas às ciências humanas, à família e à vida doméstica, ao igualitarismo e à baixa autoridade. (FINE, 2012, p. 30)

121 Eliane Moura da Silva (1997) assim classifica os “vários gêneros literários espíritas: biografias, literatura infanto-juvenil [...], textos de natureza científica, filosófica e doutrinária, romances variados e, acentuadamente, os romances históricos” (SILVA, 1997, p. 5). E segundo a autora estes “romances, já clássicos da literatura espírita, apresentam modelos de romance históricos como literatura edificante [...] tem como objetivo final o esclarecimento espiritual, uma positividade de ensinamentos que procuram levar os leitores à compreensão dos mecanismos da existência e dos objetivos da vida encarnada, da trajetória humana sobre a Terra, em constante provações e sofrimentos, através dos quais se alcança o aprimoramento espiritual.” (SILVA, 1997, p. 7), e, completa ela, “Sob este ponto de vista, é uma literatura redentora, científica e soteriológica, revelando um sentido e um destino da condição humana e da situação existencial.” (SILVA, 1997, p. 8).

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Neste dois relatos percebe-se a ocorrência do mesmo fenômeno: as “representações implícitas” ou “associações automáticas” de gênero que condicionam os homens a serem líderes e as mulheres a serem submissas em trabalhos relacionados à vida doméstica. A questão-problema da professora Mercês Cabral, é como mulheres universitárias, nascidas, em sua grande maioria na década de 80, ainda se comportam no ambiente público com receio de expor suas ideias e conhecimentos. Agem com timidez diante da voz masculina que se levanta. Poderíamos mesmo dizer que são "pouco ousadas", ou seja, não ficam à vontade para errar ou acertar e calam- se para ouvi-la. (CABRAL 2006, p. 140)

A hipótese que ela levanta é que algumas posturas que reforçam e são reflexo da condição de submissão e sentimento de inferioridade da mulher em relação ao homem na sociedade brasileira (CABRAL 2006, p. 139). Para a autora esse habitus sexuado (BOURDIEU, 2012) revela que as representações de gênero que perpassam as relações de gênero “ainda são praticamente as mesmas utilizadas desde o tempo em que a mulher ainda não atuava de forma significativa no ‘mundo do público’.” (CABRAL 2006, p. 139). O estranhamento da professora Mercês Cabral deve-se ao fato de mulheres legalmente liberadas para estudar, nascidas numa época onde a mídia e a experiência cotidiana transbordam imagens de mulheres independentes, apresentarem comportamentos de uma época onde a submissão frente aos homens era encarado como algo natural e, portanto, incontestável (CABRAL 2006, p. 141). Estranhamento semelhante experimentei quando em um auditório com aproximadamente 100 acadêmicos de medicina, onde a proporção entre os sexos pareceu-me igualitária, no IX Congresso Nacional da Associação Médico-Espírita (AME), em Maceió-AL, 2013. Quando se solicitou que se candidatassem os organizadores do próximo congresso, nenhuma espírita, estudante de medicina, se candidatara, mesmo após dois pedidos – um da comissão eleitora e o outro meu – de que se formassem uma chapa sexualmente mista. O mesmo não estaria ocorrendo com as lideranças femininas nos centros espíritas? As mulheres espíritas não estariam inconscientemente adotando uma postura de submissão como as alunas da professora Mercês Cabral? O ethos feminino espírita de ser (LEWGOY, 2000; SILVA, 2006; STOLL, 2003): sensível, de sofrer calada e resignada, passível e submissa como se espera de uma boa médium não estaria reforçando as velhas representações de gênero de uma sociedade patriarcal? Em contrapartida, estas representações de gênero não estariam favorecendo os homens espíritas, que assim concorrentes femininas, não teriam seu acesso facilitado (SOUSA, 2013,

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p. 2) na ascensão ao cargos de liderança nos centros espíritas? Pois, como afirma Cabral em relação aos alunos, “mesmo que não tenham tido a compreensão adequada e necessária do conteúdo estudado, colocam-se com mais desenvoltura e segurança” (CABRAL 2006, p. 139). Assim não bastam as afirmações de Kardec e de Denis de que o Espiritismo abre as portas da emancipação feminina, se nos centros espíritas continuam a reforçar as representações de gênero que colocam a responsabilidade da família como incumbência das mulheres e dos homens, a provisão da casa. Gleide Silva (2006) descreve um exemplo semelhante, onde, embora seja igual o domínio do “conteúdo literário” entre homens e mulheres espíritas, a autora reconhece que há uma tendência das mulheres não desempenharem as funções de liderança: Assim, para os quatro homens representantes desta nossa diminuta amostra, os dois deles que ocupam tais cargos [de liderança] não só leram na integra toda obra kardequiana, como demonstram um conteúdo literário e referencial acerca da religião, de fato, espantoso. Sob este aspecto as mulheres também não se fazem de rogadas. Todas que desempenham tais papéis não só leram os livros de Kardec e muitos outros, como demonstram um profundo conhecimento acerca do espiritismo. O interessante deste cruzamento de informações, todavia, não diz respeito a quem está ocupando estes cargos e desempenhando tais papéis, mas, sim, a quem encontra- se fora deles, pois outras três mulheres que também leram toda a obra espírita, que promovem palestras, que dão cursos, que, enfim, demonstram um igual profundo conhecimento religioso não os desempenham. (SILVA, 2006, p. 159-160).

Questiona ainda a autora que sendo o Espiritismo “uma religião que valoriza os estudos e nível de conhecimento – muito por ser constituída por camadas médias”, o grau de escolarização formal dos entrevistados parece não influir na ocupação dos cargos de liderança, pois “das quatro que ocupam cargos desta natureza, apenas uma tem superior completo, enquanto seis delas que o possuem não pertencem a este quadro” (SILVA, 2006, p. 159). A realidade apresentada pela autora parece ser bem pontual ou própria de centros espíritas centrais, de grande ou médio porte, que apresentem um alto nível de escolaridade entre seus/suas trabalhadores/as122. Neste caso não é tanto pela formação superior que se tem acesso aos cargos de liderança espírita, tal como Gleide da Silva (2006) afirma, mas é de grande relevância, na ocupação de cargos, um contrato simbólico onde as representações de gênero prevaleçam e, por consequência, formatem espaços (loci) e comportamentos (ethos) sexualmente distintos nas instituições espíritas.

122 A autora (SILVA, 2006, p. 162) destaca que “ao realizar um estudo semelhante em um centro frequentado por camadas populares a presença da mulher no desempenho destes últimos papéis [liderança] era praticamente nula”. Ali, provavelmente não só a escolaridade maior seja dos homens, e bem como o domínio doutrinário destes seja maior do que o apresentado pelas mulheres espíritas. Estes são os dois fatores mais recorrentes na indicação e colocação de pessoal na hierarquia de centros espíritas mais periféricos e frequentados por camadas populares.

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Parece haver aí a permanência de uma dominação simbólica (masculina) que mesmo já não mais existindo as interdições que se colocavam às mulheres em exercer cargos de liderança religiosa, como o grau de escolaridade ou um sacerdócio exclusivamente masculino. Como Cordelia Fine afirma mesmo alguns grupos sociais se mostrem conscientemente mais modernos e progressistas, as representações de gênero – como diz a autora “representações implícitas” – são “com frequência, extraordinariamente reacionárias” e conduzem a classificar as pessoas pelo seu sexo (FINE, 2012, p. 30). Parece ser o caso de alguns grupos espíritas e da maioria dos/as escritores/as espíritas (encarnados ou não) pesquisados, como por exemplo Rodolfo Calligaris: Enquanto o homem se conduz pela razão e precisa raciocinar para entender os fatos, a mulher, dotada de intuição, pode sentir de imediato a realidade deles. A inteligência do homem dá-lhe maiores aptidões para as artes, as ciências e a filosofia, onde é reclamada a capacidade de concentrar-se, pesquisar, lucubrar; a da mulher, para as profissões de contato e comunicação com o público: comerciários, professoras, telefonistas, secretárias, nas quais comprovam a maior facilidade que têm para falar e escrever. (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 47-48)

Essa dominação simbólica androcêntrica, que libera os homens e restringe as atividades e funções das mulheres ao lar, faz com que elas continuem alegando não terem disponibilidade para assumir grandes responsabilidades, porque elas têm de cuidar da casa e da família, como se pode constatar nas análises abaixo, que relacionam liderança feminina e divisão sexual do trabalho nos centros espíritas: Obviamente, que tal análise deve ser relativizada com informações provenientes das próprias mulheres acerca de disporem de tempo escasso para um maior desempenho de tais atividades, já que o repartem com atenção à família, ao trabalho, etc. [...] é algo que extrapola, e muito, o âmbito do centro ou da religião, sendo estes apenas reflexos da dinâmica social mais ampla, em que o gênero, às vezes de forma muito desfavorável à mulher, se sobrepõe a outros indicadores e variáveis. (SILVA, 2006, p. 159-160). [Grifos meus.]

Os organizadores do Lar de Tereza são em sua grande maioria mulheres, em geral aposentadas ou donas-de-casa que em alguns casos preferiram largar o trabalho fora para dedicar-se ao centro. (CAVALCANTI, 2008, p. 44).

Nas descrições acima percebe-se que as mulheres que ocupam as funções no topo da hierarquia espírita tem dificuldades em conciliar esta jornada religiosa com mais uma dou duas jornadas de trabalho: dentro e fora do lar. A tradicional divisão sexual do trabalho defendida pela Doutrina Espírita tendem a liberar mais os homens casados do que as “donas de casa” para exercer compromissos fixos (permanentes) nos centros espíritas. Conforme as representações de gênero espíritas, os maridos, em sua grande maioria, provavelmente não se sentiriam à vontade em “largar o trabalho fora para dedicar-se ao centro”, um cargo voluntário e depender exclusivamente do salário da esposa.

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Além da questão financeira, os maridos espíritas não têm outros compromissos para com a família e com a manutenção do lar? Esta é uma pergunta que é pouco respondida na literatura doutrinária espírita. Zelesco (2013, s.p), por exemplo, critica o livro “Conduta Espírita” de autoria espiritual de André Luiz, psicografia do Chico Xavier, onde há um capítulo intitulado “Da Mulher”, mas não há um capítulo que trate da conduta “Do Homem” espírita. Em “O Livro dos Espíritos”, Kardec (1995 [1857], p. 176) e os espíritos comunicantes, na questão nº 208, utilizam-se do termo “pais” de forma genérica, entendendo responsabilidade de ambos, pai e mãe, na educação dos filhos: “os Espíritos dos pais têm por missão desenvolver os de seus filhos pela educação. Constitui lhes isso uma tarefa. Tornar-se-ão culpados, se vierem a falir no seu desempenho.” Esta resposta não deixa claro qual a participação específica do pai nesta educação de sua prole, o que dá margem à compreensão de uma autoridade ausente fisicamente seja o desejável e suficiente, muito comum em famílias tradicionais, e que coloca quase todo o trabalho educativo dos/as filhos/as sob encargo das mães. Estas, sim, muito cobradas na literatura espírita enquanto “missionárias no lar”123. Divaldo Pereira Franco (1994, p. 39) reclama que “É necessário que o homem compreenda que, para a preservação da família, não somente a questão financeira é importante.” Isto questiona o papel exclusivo de provedor dos homens – uma representação de gênero comum nos textos doutrinários espíritas, como apresento no próximo capítulo – e os coloca como corresponsáveis também pelo cuidado com a casa e com a família, como a educação dos/as filhos/as. O autor vai mais além criticando tal postura dos homens espíritas: “Por outro lado, conhecemos espiritistas que, depois de se afeiçoarem à doutrina, abandonam a família, ficando no Centro Espírita, salvando as famílias dos outros, enquanto perdem aquela com a qual têm compromisso imediato” (FRANCO, 1994, p. 40). Para Clara Rodrigues Albuquerque Sousa (2003) “Tais pensamentos [androcêntricos] são propagados pelos que seguem a religião espírita, aqueles que acreditam cegamente no Livro dos Espíritos (a “bíblia dos espíritas”), e ratificados diariamente nos diversos centros

123 Segundo Edmund Leite (apud STOLL, 2003, p. 103) “As mulheres [...] ganharam um tipo de poder com a ideia iluminista de gênero: o poder moral [...] [Por isso mesmo] elas tiveram um papel social maior nos movimentos sociais devotados à reforma das maneiras e da moralidade...” Este ideário iluminista da mulher como “redentora da nação” – como a representação da matrona de seios à mostra que segura a bandeira francesa e o mosquete, na tela “La Liberté guidant le peuple” de Eugène Delacroix (1830) - muito influenciou Kardec, Denis e ainda continua influenciando a literatura espírita.

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espíritas e casas que se propõem a analisar as palavras de Kardec” (SOUSA, 2013, p. 2). Para ela, o Espiritismo é duplamente “machista”, primeiro porque os cargos na hierarquia espírita “são ocupados por pessoas que adotam diariamente posições machistas” e segundo, “porque a bibliografia básica do espiritismo aponte os caminhos da discriminação de gênero” (SOUSA, 2013, p. 3). Assim, pode-se concluir que pelo estudo doutrinário espírita – à semelhança do romance espírita – não só há a assimilação da cosmologia espírita, pois “A interiorização da doutrina, isto é, o processo de formação doutrinal passa pela escrita e pela leitura” (SILVA, 2006, p. 67), mas igualmente há assimilação de valores e atitudes. Se é através do estudo que se obtém a interiorização da doutrina, pela sua aplicação no cotidiano das pessoas se obtém “sua transformação em vivência evangélica”, ou seja, a conversão da doutrina em comportamentos morais e éticos, “pois a doutrina espírita deve ser como uma bagagem que trazemos sempre conosco para pensar e usar”. (CAVALCANTI, 2008, p. 63). Como consequência, a leitura espírita orienta a vida de cada um (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 17), entendendo isso, também, no sentido de conversão das representações de gênero contidas na literatura espírita em relações de gênero que se refletem na distribuição de cargos na hierarquia espírita. E assim como há uma expressiva afinidade entre cultura letrada-Espiritismo-produção literária espírita, e outras afinidades semelhantes existem no interior do movimento espírita, são as associações: masculinidade-razão-liderança e feminilidade-sensibilidade-mediunidade que marcam a divisão sexual do trabalho nas instituições espíritas.

2.4. A OCUPAÇÃO DE CARGOS ENCONTRADA NA BIBLIOGRAFIA ACADÊMICA

Na revisão bibliográfica, encontrei apenas três autores (CAVALCANTI, 2008; LEWGOY, 2000; SILVA, 2006) que em suas pesquisas de campo124 descrevem a participação de homens e mulheres na hierarquia de funções na administração e na práxis doutrinária espírita. Embora o foco de suas pesquisas não seja uma análise de gênero da organização e funcionamento das instituições espíritas, as informações repassadas permitem um diagnóstico

124 No final deste tópico transcrevo apenas uma pequena citação da experiência pessoal de José Rodrigues (2012), que embora também faça um pesquisa de campo, seu intento não é fazer uma descrição pormenorizada das relações que se dão nas instituições espíritas, mas enfoca o trânsito religioso e sua motivação.

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atualizado – embora precário por ser apenas três instituições: Rio de Janeiro-RJ, Porto Alegre- RS e Salvador-BA – do movimento espírita brasileiro. O centro espírita “Lar de Tereza”, localizado em Ipanema-RJ, estudado por Maria Laura Castro é “organizado sobretudo por mulheres. Porém, excluindo-se as organizadoras, homens e mulheres participavam igualmente das tarefas” (CAVALCANTI, 2008, p. 52). Parece que as tarefas administrativas e mediúnicas acumulam-se sobre as mesmas pessoas, mulheres, devido, provavelmente, ser estas os “médiuns mais qualificados do centro” (CAVALCANTI, 2008, p. 53), o que lhes confere uma liderança carismática, ou seja, sua capacidade administrativa não segue tanto “normas gerais, tradicionais ou racionais”, mas advém das qualidades carismáticas através do controle do fenômeno mediúnico “e outros êxitos, ou seja, através do bem-estar dos governados”, que por sua vez, advém das “revelações e inspirações concretas” (Weber, 1982, p. 340) do plano espiritual, como se pode ler abaixo: Tereza, a presidente e a diretora administrativa, sua amiga pessoal e quem a substitui nas ausências e divide com ela a tarefa de direção do desenvolvimento mediúnico, são também os dois médiuns mais qualificados do centro. A autoridade que exerce no plano terreno deriva do contato com o plano espiritual, é conferida por ele. A mediunidade emerge como o valor englobante de todo esse sistema. (CAVALCANTI, 2008, p. 53)

Na descrição da autora percebe-se que – pode-se levantar como hipótese – as mulheres no topo da hierarquia espírita são “donas de casa” que já cumpriram dupla jornada de trabalho (dentro e fora do lar), e para que tenham disponibilidade de horário para se dedicarem às tarefas no centro espírita ou são aposentadas ou dependem da renda de um provedor, possivelmente um homem, ou seja, suas famílias devem seguir uma tradicional divisão sexual do trabalho. Os homens da família provavelmente não poderiam “largar o trabalho fora para dedicar-se ao centro” – pois, certamente, na diretoria os trabalhos não são remunerados: Os organizadores do Lar de Tereza são em sua grande maioria mulheres [...] Algumas encontram-se diariamente no centro, outras revezam-se durante a semana de acordo com a tarefa que desempenham. As portas do centro encontram-se geralmente abertas, guardadas por um porteiro, que é também faxineiro e ajudante em múltiplos serviços, ou por algum cooperador. O movimento de pessoas nos horários de sessões públicas é grande, nos de sessões privadas menor. Nos horários em que não há sessões (hora de almoço, intervalo entre sessões, sábado à tarde e domingo) encontram-se lá sobretudo as organizadoras, trabalhando na programação de alguma tarefa, discutindo algum assunto pendente, arrumando a secretaria ou simplesmente conversando e contando casos. (CAVALCANTI, 2008, p. 44)

Para Cavalcanti, embora formalmente exista uma diretoria, “na prática a direção do centro é individualizada na figura de sua presidente ou diretora”, devido à liderança carismática, assim, embora apresente toda uma estrutura funcional, a “organização do centro está longe de dar conta de seu funcionamento efetivo” (CAVALCANTI, 2008, p. 47).

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A autora, com base em Renshaw125 e Camargo126, afirma que a organização e estrutura – “extremamente flexível e informal” – do movimento espírita “se caracteriza: pela simplicidade, voluntarismo e personalismo [...] a natureza democrática do grupo espírita como representando um valor dos urbanistas socialmente ascendentes e a rejeição da organização tradicional da sociedade” (CAVALCANTI, 2008, p. 47). Este tipo de liderança carismática provavelmente tenda a favorecer a ascensão feminina, uma vez que – como retratei anteriormente – a mediunidade parece constituir um locus e um ethos feminino. Assim a autora explica a colocação de pessoal nos cargos de um centro espírita conforme a “hierarquia de potencial”: De fato, todo espírita tem potencialmente acesso a todas as posições no centro, e, de fato, a presidente ou as diretoras de departamentos fazem de tudo, desde arrumar uma sala até dirigir uma sessão. Essa percepção todavia é superficial, e dissocia o aspecto organizacional do centro do conteúdo do sistema de crenças espírita. No plano das representações espíritas, a distribuição e divisão de tarefas no centro é regida pela noção de hierarquia de potencial, pois não há no Espiritismo "posições sacerdotais" ou "hierarquia no sentido ritualístico". Essa noção dá conta de uma dimensão relevante do funcionamento do centro, e ancora-se nas representações espíritas acerca da pessoa. A construção dessa hierarquia é vista como tendo seu início no encaminhamento das pessoas para as tarefas existentes. Os espíritas percebem esse processo como correspondendo à adequação entre as necessidades do centro e o julgamento da presidente, ou dirigente de núcleo específico de tarefas, de um lado, e a escolha, vontade e capacidade do participante de outro. (CAVALCANTI, 2008, p. 47)

Diferentemente, para Bernardo Lewgoy, o Espiritismo segue uma tendência de racionalização do sagrado nos moldes do militarismo127 e da burocracia estatal128, onde segue- se o critério de antiguidade e desempenho de sua função: Castro (1983), ao discutir as concepções nativas de indivíduo e pessoa, já havia chamado a atenção para a existência de uma hierarquia de potencial no espiritismo, ao que acrescentei acima o fator da antiguidade. Importante ainda é a coincidência entre hierarquia e responsabilidade no espiritismo: um respeito hierárquico devido a um médium corresponde a uma expectativa e um controle maior sobre o desempenho de sua função. (LEWGOY, 2000, p. 268)

125 RENSHAW, Parke. A Sociological Analysis of Spiritism in Brazil (mimeog.). Dissertation presented to the Graduate Council of The University of Florida, University of Florida, 1969. 126 CAMARGO, C. P. Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Pioneira, 1961. 127 Aqui temos uma outra “afinidade eletiva” do Espiritismo, agora, com o militarismo, que se fortalecem em nosso país, ao mesmo tempo, a partir do fim do Império, e que segundo Bernardo Lewgoy (2001, p. 71) o Espiritismo se identificou “com os valores militares, a disciplina, a obediência e o mérito, pois a Companhia de Jesus [a qual pertenceu o espírito Emmanuel] sempre foi conhecida como uma espécie de ordem religiosa militarizada”. O autor exemplifica sua afirmação com base em uma das obras nacionalistas psicografadas por Chico Xavier: “Como numa hierarquia militar, Emmanuel comanda uma falange de espíritos de luz, assim como está subordinado a Ismael (patrono espiritual do Brasil) e este, por sua vez, subordinado a Cristo, governador espiritual da Terra na versão veiculada em Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho” (LEWGOY 2001, p. 71). 128 Lewgoy (2000, p. 16) afirma que “o modelo de relação do espiritismo com o público externo inspira-se numa certa concepção estatista de sociedade ou de ‘público’ no Brasil, daí a semelhança estética de centros espíritas com repartições públicas, com a austeridade de suas cadeiras, suas fichas de papelão, mas também com a noção fortemente moralizada de trabalho vigente nesses espaços, que lembra o ideário populista”.

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Neste novo modelo, “liderança burocrática (em que o que importa é a responsabilidade funcional do cargo)” creio que os homens tenham facilidade de ascensão, diferente da “liderança carismática (implícita na hierarquia de potencial entre os médiuns)” (LEWGOY, 2000, p. 268) que tende a favorecer as mulheres, pois no ideário espírita: o homem é o cérebro e a mulher, o coração (EMMANUEL [Espírito] e XAVIER, [médium]. 1945 [1940], p. 48; KARDEC, 2004 [1858], p. 513). Assim uma maior sensibilidade feminina favoreceria a liderança carismática devido apresentar um potencial mediúnico maior que os médiuns masculinos que por estar associado à maior racionalidade e autoridade é favorecido pela liderança burocrática. Segundo Lewgoy, a organização da prática mediúnica segue o modelo burocrático estatal: Em último lugar, as categorias utilizadas, "serviço", "trabalho", "mandato mediúnico" (ou "mediunato"), decreto de desapropriação, remetem ao coração de uma linguagem burocrática, administrativa, impessoal e abstrata, [...] que liga-se a visão orgânica, hierárquica, militarizante e meritocrática de sociedade [...] (LEWGOY, 2000, p. 190)

O grupo espírita, Instituto Espírita Luz e Caridade, situado no centro de Porto Alegre- PR, pesquisado por Lewgoy (2000), em Porto Alegre, parece mesclar ambas tipologias de liderança, carismática e burocrática (cf. LEWGOY, 2000, p. 324). E por último o registro e as reflexões de gênero de Gleide Silva (2006), que pesquisou um centro espírita, a Casa de Oração Bezerra de Menezes, situado no bairro de Brotas da cidade de Salvador-BA: Vale ressaltar que para as outras categorias que envolvem a doutrinação e atividades relacionadas aos cargos da diretoria, a composição é semelhante, tendo um leve incremento na participação das mulheres da amostra. Dessa forma, enquanto todos os homens estão envolvidos com palestras e doutrinação dos espíritos, cinco mulheres desenvolvem estes mesmo trabalhos. Em relação aos cargos da diretoria, nesta amostra as representantes femininas se mostram mais participativas do que os homens, embora em relação a elas mesmas, a participação ainda é pequena: apenas três de onze mulheres desempenham as atividades de direção. (SILVA, 2006, p. 160)

Gleide da Silva (2006) parece confirmar que ainda elas estão em desvantagem no Espiritismo. E conclui a autora a relação gênero, mediunidade e administração: Por fim, lançando um olhar setorial e também global para o quadro de atividades percebemos que os desenhos que se formam em torno dos dados agregados da mediunidade e os da participação, nos quais existe uma predominância feminina, é muito semelhante. Por sua vez, a presença masculina é muito mais forte nos setores das atividades concernentes à coordenação e à doutrina. Eles – na amostra, volto a repetir - são menos expressivos, porém, nas atividades relacionadas à administração, ao passo que as mulheres se sobressaíram mais. Os dois quadros (o de papéis e o de atividades) em termos proporcionais, de certa maneira, acabam ainda refletindo um modelo tradicional de divisão de papéis entre o homem e a mulher por enquanto vigente na sociedade, mas com uma tendência à mudança, já que as mulheres da classe média no centro estão, aos poucos, ocupando os espaços e papéis de forma

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mais equânime. Elas, de maneira esmagadora, preenchem os espaços e funções em que a emoção e a afetividade são mais presentes, mas também se fazem notar nas posições de coordenação, embora em menor quantidade, e até de administração. (SILVA, 2006, p. 160-161) [Grifos meus.]

Na observação, “em mais de 50 anos de contato com Centros Espíritas no Brasil”, de José Rodrigues (2012), os homens predominam as áreas de administração e divulgação, enquanto as mulheres são maioria no campo assistencial: No Espiritismo existem áreas onde as mulheres estão mais presentes do que os homens, e vice-versa. A observação do autor, em mais de 50 anos de contato com Centros Espíritas no Brasil, revela, por exemplo, que nas atividades assistenciais realizadas nos Centros Espíritas predominam as mulheres; nas atividades de direção e divulgação por palestras e eventos, predominam os homens. [...] como no Espiritismo a grande maioria de Centros Espíritas possui atividade filantrópica, há mais campo para a participação das mulheres que já demonstraram preferência por esse setor. O pendor das mulheres para as atividades assistenciais também pode ser evidenciado na pesquisa de SIMÕES (2005). (RODRIGUES, 2012, p. 227) [Grifos meus.]

2.5. A ASSIMETRIA SEXUAL NAS REUNIÕES MEDIÚNICAS

Neste subcapítulo, a ideia é aprofundar a relação entre as representações de gênero espíritas com a assimetria sexual na ocupação de cargos e funções em reuniões mediúnicas de acesso restrito, como o exercício mediúnico da escola de médiuns, sessões espíritas de caráter diverso e reunião de desobsessão. As reuniões mediúnicas são “rituais fechados” (SILVA, 2006, p. 128) cujo caráter, por vezes, é incerto, pois seus componentes encarnados (médiuns e doutrinadores) não sabem previamente se a reunião será só de comunicações com bons espíritos129 (superiores) ou se será apenas de doutrinação de espíritos imperfeitos (inferiores)130, ou ainda, se será um misto de ambas comunicações.

129 Utilizarei aqui uma classificação dos espíritos que Kardec (1995 [1857], p. 87 e ss.) estabelece tendo como base o grau de adiantamento dos espíritos, “nas qualidades que já adquiriram e nas imperfeições de que ainda terão de despojar-se. Esta classificação, aliás, nada tem de absoluta. Apenas no seu conjunto cada categoria apresenta caráter definido. [...] Dá-se aqui o que se dá com todos os sistemas de classificação científica, que podem ser mais ou menos completos, mais ou menos racionais, mais ou menos cômodos para a inteligência.” Destaco aqui a Terceira ordem: “Espíritos imperfeitos” (inferiores), os espíritos obsessores que causam desequilíbrios nos encarnados (obsediados) se encontram estacionados aqui. Eles apresentam-se predominância das paixões carnais, propensão para o mal, ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes (KARDEC, 1995 [1857], p. 89); e Segunda ordem: “Bons Espíritos” (superiores), nas reuniões mediúnicas são eles que inspiram e aconselham os dirigentes/doutrinadores. Neles, ao contrário dos anteriores, há a predominância do Espírito sobre a matéria. Suas qualidades e poderes para o bem estão em relação com o grau de adiantamento que hajam alcançado; uns têm a ciência, outros a sabedoria e a bondade. Entre estas ordens há uma infinidade de classes, não estanques – como em outras cosmologias religiosas – mas embora haja o estacionamento por tempo indefinido de espíritos, o princípio é a evolução espiritual pela reencarnação, e nunca o retrocesso (KARDEC, 1995 [1857], p. 94). 130 Como se pode notar, a nomenclatura varia muito na literatura e também no movimento espírita, apesar de todo o esforço de Kardec em unificar os termos seguindo uma lógica científica. Mas, embora isto ocorra com frequência, os termos por vezes são sinônimos muito próximos, de fácil associação.

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Mesmo em reuniões específicas de doutrinação de espíritos obsessores, denominada de “Desobsessão”, há geralmente a manifestação de bons espíritos no início e no fim dos trabalhos, e, por vezes, durante a reunião para ministrar alguma orientação mais precisa que não foi bem intuída pelo dirigente. O transe da desobsessão é assim um confronto em vários planos. Ele reencena o drama do obsidiado, que se confunde com um Espírito desencarnado até a perda de sua vontade e livre-arbítrio, invertendo esse processo. O Espírito comunicante, obsessor, é conduzido até o arrependimento - que é afirmação de seu livre-arbítrio - pela dupla ação do médium de incorporação e do doutrinador. No personagem do doutrinador enfatiza-se a consciência e individualidade humanas. (CAVALCANTI, 2008, p. 121)

André Luiz (espírito), em seu manual intitulado “Desobsessão”, psicografado por Chico Xavier, estabelece que o número máximo de componentes encarnados da reunião mediúnica nunca deve exceder o número de quatorze, sendo que para este número, o ideal é, por exemplo: 2 a 4 médiuns esclarecedores; 2 a 4 médiuns passistas e 4 a 6 médiuns psicofônicos. (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 85) Para M. L. V. C. Cavalcante (2008), O transe da desobsessão coloca em cena quatro tipos: o Espírito superior, o médium de incorporação, o doutrinador/médium de sustentação, e o Espírito inferior. No jogo que se estabelece entre esses personagens, a tensão entre as imagens de homem como guardando sua individualidade e como joguete de forças ocultas a ele se expressa e se resolve momentaneamente num equilíbrio instável. (CAVALCANTI, 2008, p. 118)

Outros tipos de mediunidade e funções podem surgir dependendo da disponibilidade destes/as trabalhadores/as em cada grupo, como o médium psicógrafo ou o receitista, um escrivão ou responsável pela musicalização de fundo e gravação das comunicações verbais, entre outras. Analisarei a seguir cada uma das funções dos encarnados, para depois fazer uma análise de gênero centrada em dois focos: médiuns e doutrinadores.

2.5.1. Dirigente, Doutrinador ou Médium Esclarecedor

A doutrinação tem um propósito instrutivo, esclarecedor e exortador. Mas o papel de doutrinador não se restringe só na fala persuasiva, na ausência de uma equipe mais completa e atuante, este/a oferece suporte vibratório para o/a médium de incorporação através de passes, preces, mentalizações, vibrações positivas e orientações para melhora da concentração (CAVALCANTI, 2008, p. 118). André Luiz (espírito) explica que o dirigente (a figura 6 ilustra e fixa a representação de gênero masculina para este cargo) deve ter claro que “suas funções, diante dos médiuns e freqüentadores do grupo, são semelhantes às de um pai de família, no instituto doméstico” e

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segue descrevendo as qualidades ideiais para este: “Direção e discernimento. Bondade e energia. [...] Autoridade fundamentada no exemplo. [...] Brandura e firmeza.” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 59). Figura 6 – O dirigente.

Fonte: Livro “Desobsessão”131 A função de dirigente de reuniões mediúnicas substituiu a função de experimentador, cujo princípio é fazer uma mediação ativa – ao contrário da passiva exercida pelos/as médiuns – desempenhando o papel de controlador e de moderador da comunicação mediúnica. Esta função foi historicamente exercida por intelectuais masculinos por combinar espírito de liderança, autoridade e conhecimento. André Luís compara sua performance à de “um professor reto e nobre cultiva perante os alunos” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 60). Para se ter uma ideia do “habitus viril” (BOURDIEU, 2012) que se espera de um doutrinador, transcrevo o caso ocorrido numa reunião de desobsessão, onde Chico Xavier levou uma “surra de bíblia”: Mudara-se para Pedro Leopoldo um homem bom e rústico, de nome Manuel, que o povo dizia muito experimentado em doutrinar espíritos das trevas. O irmão do Chico não hesitou e resolveu visitá-lo, pedindo cooperação [...] “Seu” Manuel [...] compareceu ao “Centro Espírita Luiz Gonzaga”, com uma Bíblia antiga sob o braço direito. A sessão começou eficiente e pacífica. Como de outras vezes, depois das preces e instruções de abertura, o Chico seria o médium para a doutrinação dos obsessores. Um dos espíritos amigos incorporou-se, por intermédio dele, fornecendo a precisa orientação e disse ao “seu” Manuel entre outras coisas: — Meu amigo, quando o perseguidor infeliz apossar-se do médium, aplique o Evangelho com veemência. — Pois não, — respondeu o diretor muito calmo, — a vossa ordem será obedecida.

131 Cf. referências: XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito] (1997 [1964]), p. 58.

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E quando a primeira das entidades perturbadas assenhoreou o aparelho mediúnico, exigindo assistência evangelizante, “seu” Manuel tomou a Bíblia de grande formato e bateu, com ela, muitas vezes, sobre o crânio do Chico, exclamando, irritadiço: — Tome Evangelho! Tome Evangelho! ... O obsessor, sob a influência de benfeitores espirituais da casa, afastou-se, de imediato, e a sessão foi encerrada. Mas o Chico sofreu intensa torção no pescoço e esteve seis dias de cama para curar o torcicolo doloroso. (GAMA, 1963, p. 49-50)

O caso relatado acima ilustra alguns pontos interessantes da ocupação de cargos na Doutrina Espírita: primeiro a convocação de “seu” Manuel não se deu por este ser espírita, diplomado em curso de formação de médiuns, mas o forasteiro fora admitido apenas por ter fama de ser “muito experimentado em doutrinar espíritos das trevas”, possivelmente por ser “um homem bom e rústico”. O perfil esperado, tanto por dirigentes encarnados como também pela assessoria desencarnada (os espíritos), era de austeridade para com “o perseguidor infeliz” causador da obsessão, e por isso o pedido de aplicação do “Evangelho com veemência”. Este perfil austero do doutrinador não era esperado – e nem desejado - no comportamento feminino de meados do século vinte. O perfil de doutrinador era, e continua sendo, um habitus viril. O espírito de André Luiz, na frase abaixo, bem explica a postura ideal do doutrinador que deve ser astuto no falar, pois aproveitará, por vezes, o ponto fraco do espírito comunicante para conduzi-lo ao arrependimento. Este não deve se rebaixar ao nível da fala de seu interlocutor, ou seja, usando de palavras grosseiras (irônicas, agressivas, etc.), entretanto deve fugir à “doçura sistemática” – pois seu papel é de um pai compreensivo, mas firme em suas convicções, e não de uma mãe que perdoa o filho e o faz perder. O estudo sistemático e a experiência neste trabalho conferem ao doutrinador o “tato psicológico”, e mais do que isto, a capacidade de conjugar raciocínio e lógica com conhecimento doutrinário, como se lê abaixo: Cultivar o tato psicológico, evitando atitudes ou palavras violentas, mas fugindo da doçura sistemática que anestesia a mente sem renová-la, na convicção de que é preciso aliar raciocínio e sentimento, compaixão e lógica, a fim de que a aplicação do socorro verbalista alcance o máximo rendimento; (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 100) [Grifos nossos.]

Por três décadas exerci a função de doutrinador em reuniões mediúnicas, em cidades da Grande São Paulo e na Região Metropolitana de Belém-PA. Aprendi o jeito de lidar com as diversas classes de espíritos observando a prática de outros doutrinadores, uns dez, todos homens. Mas recentemente tenho observado a participação ainda tímida das mulheres nesta área, apenas uma como dirigente. Quando elas exerciam esta função, era atender comunicações simultâneas de vários médiuns incorporados. Ou seja, faziam isto em solidadariedade cobrindo a ausência de doutrinador. Por vezes, eram mulheres que por não apresentar a mediunidade de

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incorporação132, mantinham-se em oração (sustentação da espiritualização do ambiente), assim estavam, espontaneamente, disponíveis para cobrir o doutrinador em caso de necessidade. Embora as reuniões mediúnicas possam contam com dois ou três doutrinadores (cf. figura 7) sob a orientação do Dirigente, “a fim de que se lhe assessore em serviço e o substituam nos impedimentos justificados” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 60) a ocorrência de número excessivo de comunicações simultâneas é contraindicada por André Luiz, “Isso, porque, na reunião, é desaconselhável se verifique o esclarecimento simultâneo a mais de duas entidades carecentes de auxílio, para que a ordem seja naturalmente assegurada” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ

[espírito], 1997 [1964], p. 151). Cabe ao dirigente/doutrinador juntamente com os médiuns psicofônicos buscar disciplinar a ordem das comunicações. Em especial cabe aos médiuns educarem-se “devidamente, para só oferecer passividade ou campo de manifestação aos desencarnados inquietos quando o clima da reunião lhes permita o concurso na equipe em atividade” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 151). Figura 7 – Doutrinações simultâneas.

Fonte: Livro “Desobsessão”133

O controle da passividade se dá de forma mais difícil em casos de mediunidade sonambúlica ou inconsciente, aquela em que a pessoa após o transe apresenta não lembrar-se

132 “A oposição mais importante entre os cooperadores adultos é a entre médiuns e não-médiuns. [...] Segundo o Espiritismo, todo homem é [...] um médium, querendo-o ou não, sabendo-o ou não. Todavia, os espíritas distinguem entre o medianeiro, o médium nesse sentido amplo, e o médium ostensivo, aquele capaz de colocar-se explicitamente a serviço do Mundo Invisível.” (CAVALCANTI, 2008, p. 52) 133 Cf. referências: XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito] (1997 [1964]), p. 150.

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do ocorrido com ela durante a manifestação, não se lembra do diálogo travado entre doutrinador-espírito comunicante e nem de qualquer ocorrido em torno de si. Embora a dificuldade de controle dos sentidos seja maior do médium inconsciente do que do médium consciente, mas, diz André Luiz, (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 151) “Ainda quando o sensitivo tenha as suas faculdades assinaladas por avançado sonambulismo, deve e pode exercitar o autodomínio, afeiçoando-se à observação e ao estudo, a fim de colaborar na vigilância precisa”. Castro (2008) explica esta diferença de mediunidade, e justifica a possibilidade de controle do próprio corpo em ambos tipos de transe: O médium de incorporação representa simbolicamente o obsidiado. Sua individualidade parece momentaneamente apagar-se. Mas, como já vimos, se o médium for consciente, seu eu menor permanece presente e, mesmo passivo, controla o Espírito comunicante. Se ele for inconsciente, apenas seu eu menor se apaga, seu eu maior se liberta. Em ambos os casos o Espírito do médium não se ausenta, controlando seu próprio corpo e indiretamente o Espírito manifestante. O transe deve resultar não no domínio do Espírito sobre o homem (obsessão) mas na vitória deste último sobre aquele. Os gestos e a atitude corporal do médium de incorporação durante o transe - ameaçando levantar-se mas sem fazê-lo, fazendo movimentos bruscos para logo a seguir controlá-los, elevando a voz e abaixando-a - expressam concretamente essa realidade imaginária: o conflito entre a vontade do médium e a do Espírito comunicante. Não importa qual seja a vontade do Espírito obsessor, o médium deve permanecer à mesa, controlando seu corpo. (CASTRO, 2008, p. 68-69)

Figura 8 – O doutrinador e o controle do/a médium).

Fonte: Livro “Desobsessão”134

O transe mediúnico no Espiritismo é um transe controlado, pelo tempo que não deve exceder 10 minutos135; pelo mobiliário que limita o espaço de atuação do espírito, entre a

134 Cf. referências: XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito] (1997 [1964]), p. 168. 135 “O esclarecimento não será, todavia, longo em demasia, compreendendo-se que há determinações de horário e que outros casos requisitam atendimento. A palestra reeducativa, ressalvadas as situações excepcionais, não

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cadeira e a mesa, não sendo permitido o levantar-se e nem o caminhar pela sala, que por vezes só dispõe de pouco espaço livre por onde transita o doutrinador, ou seja, o espaço em redor da mesa, por trás das cadeiras, localizado entre estas e as paredes; controle do vocabulário, do tom de voz e tom da conversa136, realizado pelo/a próprio/a médium que filtra a mensagem ou com a ajuda do doutrinador que estabelece as regras do diálogo. O Espírito do médium permanece presente, controlando o seu corpo e indiretamente o Espírito comunicante. O transe afirma não o domínio do Espírito inferior sobre o Espírito encarnado mas a vitória do livre-arbítrio do médium, e por extensão do livre- arbítrio humano, sobre o livre-arbítrio do Espírito inferior desencarnado. (CAVALCANTI, 2008, p. 119)

Como descreve Silva (2006) nas reuniões que assistiu participavam apenas três homens, e todos desempenhavam a função de doutrinador. As outras 19 pessoas eram mulheres, em sua maioria médiuns. A autora conta que em uma reunião mediúnica “coordenada por João Pedro [...] Samanta (ao que parece, braço direito de João Pedro) estava lá e uma outra senhora [...] doutrinadora. [...] umas quatorze ou quinze pessoas. Como sempre, a maioria mulheres. Havia apenas dois homens: João Pedro e o doutrinador Marco” (SILVA, 2006, p. 125). Repara-se que a direção/doutrinação embora esteja associada a um certo ethos masculino, não é proibido às mulheres, mas elas são raridade nesta função. Bernardo Lewgoy, testemunhou em sua pesquisa a ação de uma delas: Ao chegar no centro espírita fui recebido por Ida e por Tina, diretora do trabalho espiritual. Esta explicou-me o trabalho de desobsessão, rogando para eu ficar tranquilo quanto ao que iria acontecer [...] sentei-me numa cadeira atrás da mesa onde se colocaram cerca de nove médiuns. Uma música suave foi colocada. Havia uma série de papéis em cima da mesa, com nomes e endereços de pessoas obsidiadas. Após uma prece (pai-nosso), uma passagem do Evangelho foi lida por Carla e comentada por Maria, diretora do trabalho e doutrinadora da sessão. Pediu que as pessoas fossem se concentrando. Maria dava passes em todo mundo, invocando para que algum Espírito se manifestasse. Primeiro chegou um Espírito através de Regina [médium de psicofonia], que logo foi falando [...] (Diário de campo: Reunião de Desobsessão). (LEWGOY, 2000, p. 324) [Grifos meus.]

Na descrição, que trago abaixo, de Lewgoy (2000) chama a atenção algumas características do perfil de doutrinador que não coadunam com a “natureza feminina” mas sim com as representações de gênero masculinas, consagradas na literatura espírita137.

perdurará, assim, além de dez minutos” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 143). 136 “Na obra da desobsessão, [...] o médium é o responsável pela comunicação que transmite; [...] domínio completo sobre si próprio, para aceitar ou não a influência dos Espíritos desencarnados, inclusive reprimir todas as expressões e palavras obscenas ou injuriosas, que essa ou aquela entidade queira pronunciar por seu intermédio;” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 104). 137 Como apresentarei no terceiro capítulo, principalmente na unidade de análise 3.2.2.1: A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas.

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Ainda que o espírito deva ser convencido pela persuasão racional, a entonação da doutrinadora é de exortação, chamando o espírito a desistir de sua atitude e tomar contato com as causas de seu sofrimento. [...] A fala da doutrinadora é longa e quase constante no ritual de desobsessão, enquanto as dos espíritos são pequenos episódios no fluxo de um discurso cuja autoridade está completamente depositada no protagonista da cura. Nesse sentido, a fala do doutrinador é hierárquica: parte do pressuposto de uma impossibilidade do diálogo com o Outro que se manifesta ser uma interlocução igualitária, sendo a situação assimilada a uma "clínica espiritual pela linguagem". (LEWGOY, 2000, p. 327) [Grifos meus.]

O autor afirma que “a fala do doutrinador é hierárquica” tal como a relação médico- paciente, onde não há a possibilidade de “interlocução igualitária”, daí o tom de “exortação” característico deste intercâmbio terapêutico. Este perfil, aliado à “persuasão racional”, é culturalmente esperado dos elementos masculinos de uma reunião mediúnica. Por isso André Luiz (espírito), afirmar que o dirigente/doutrinador deve exercer a função semelhante à de um pai de família: direção, discernimento, energia, autoridade e firmeza (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 59). O autor espiritual, é bem verdade, associa a tais qualificativos: bondade e brandura, entretanto estes dois qualificativos apenas moderam o tom de exortação, mas não tornam o perfil do doutrinador próprio de um ethos feminino. A conversação será vazada em termos claros e lógicos, mas na base da edificação, sem qualquer toque de impaciência ou desapreço ao comunicante, mesmo que haja motivos de indução ao azedume ou à hilaridade. Se o comunicante perturbado procura fixar-se no braseiro da revolta ou na sombra da queixa, indiferente ou recalcitrante, o diretor ou o auxiliar em serviço solicitará a cooperação dos benfeitores espirituais presentes para que o necessitado rebelde seja confiado à assistência de organizações espirituais adequadas a isso. Nesse caso, a hipnose benéfica será utilizada a fim de que o magnetismo balsamizante asserene o companheiro perturbado, amparando-se lhe o afastamento da cela mediúnica, à maneira do enfermo desesperado da Terra a quem se administra a dose calmante para que se ponha mais facilmente sob o tratamento preciso. (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 143-144)

A pesquisadora Gleide Silva (2006) também encontrou a incidência deste habitus viril característico do dirigente/doutrinador em seu campo: Em relação aos homens, sendo eles uma presença diminuta quanto ao desenvolvimento e exercício da mediunidade – cerca de um a três no máximo por reunião - cabe-lhes, por outro lado, uma presença mais acentuada na condução e controle dos trabalhos, já que eles são os doutrinadores – aqueles que levam a palavra de conforto e esclarecimento e socorrem o espírito sofredor, mas também quem repreendem e tomam, se necessário, atitudes mais drásticas para não deixar a disciplina esvair-se. (SILVA, 2006, p. 161) [Grifos meus.]

Chama a atenção o poder controlador e disciplinador exercido pelo doutrinador, aquele protagonista da reunião que não deixa a disciplina esvair-se, podendo tomar até atitudes mais drásticas. Tais funções e atitudes são esperadas dos homens em uma reunião mediúnica, e não

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das mulheres, pois ali as representações de gênero demarcam espaços, comportamentos e funções. Nas fotos que lustram o livro “Desobsessão” (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964]) percebe-se que naquele grupo retratado os médiuns esclarecedores (doutrinadores) e bem como o dirigente são do sexo masculino (ver figura 9), enquanto que os componentes que incorporam os espíritos (médiuns psicofônicos e psicógrafos) e ainda os passistas são de ambos os sexos. Este livro, que no ano passado (2014) completou 50 anos, por todo este tempo, não só veiculou pela linguagem escrita as representações de gênero, em parte responsáveis por uma hierarquia de gêneros na reunião mediúnica, como igualmente suas imagens reforçaram a mesma ideia. Figura 9 – médiuns esclarecedores (doutrinadores).

Fonte: Livro “Desobsessão”138

2.5.2. Médium de Incorporação

Não pretendo me alongar muito na descrição desta função, até porque já o fiz em parte ao descrever a função de doutrinador, principal protagonista encarnado no cenário mediúnico. Para Cavalcanti (2008, p. 119) “O médium de incorporação toma o lugar do obsidiado, representa-o simbolicamente. Na incorporação expressa-se com clareza o sentido que a mediunidade ostensiva tem para os espíritas. Ela é uma tarefa, uma provação, um testemunho.” No movimento espírita há a crença de que a mediunidade ostensiva (NEVES, 1992, s.p.) “é uma outorga, uma prova que o médium pode elevar à categoria de missão pela forma

138 Cf. referências: XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito] (1997 [1964]), p. 98.

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dedicada e responsável como exerce o seu mediunato. Trata-se de um compromisso assumido com a própria consciência para resgate de faltas ou abertura de novos roteiros evolutivos.” André Luiz assim classifica os médiuns que atuam nas reuniões mediúnicas, em especial: Na obra da desobsessão, os médiuns psicofísicos são aqueles chamados a emprestar recursos fisiológicos aos sofredores desencarnados para que estes sejam socorridos. Deles se pede atitude de fé positiva, baseada na certeza de que a Espiritualidade Superior lhes acompanha o trabalho em moldes de zelo e supervisão. Compreendendo que ninguém é chamado por acaso a tarefa de tamanha envergadura moral, verificarão facilmente que, da passividade construtiva que demonstrem, depende o êxito da empreitada de luz e libertação em que foram admitidos. (XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito], 1997 [1964], p. 103) [Grifos meus.]

Diferente da função de doutrinador, a função de médium – de psicografia, de psicofonia e de passe – guarda uma relação direta com as representações femininas e/ou com os valores socialmente entendidos como femininos (LEWGOY, 2000, p. 77), como passividade, como “falar mais baixo, mais contidas na gesticulação, nunca se levantarem, etc.”, no que a autora denomina “‘feminização’ no cenário mediúnico” (SILVA, 2006, p. 161): Sob esta acepção, as várias mulheres (embora nem todas) ao dar suas comunicações mostravam alguns traços semelhantes entre si, como falar mais baixo, mais contidas na gesticulação, nunca se levantarem, etc. Dessa forma, mediante a quantidade de mulheres médiuns e de uma consequente conformação que, em linhas gerais, imprimem às comunicações nós podemos pensar numa “feminização” no cenário mediúnico, embora, algumas delas também conduzam algumas das reuniões práticas de que participei. (SILVA, 2006, p. 161) [Grifos meus.]

Com base em um “tradicional estoque simbólico do feminino” (LEWGOY, 2000, p. 293), eu pesquisador, levanto a hipótese de que as casas espíritas, para as mulheres, seriam uma extensão de seus próprios domicílios (SOUZA; LEMOS, 2009). Não seria o mediunato uma projeção de seus afazeres domésticos? A mediunidade de cura não seria comparável aos cuidados de uma mãe para com seus filhinhos quando adoecem? A psicofonia e a psicografia não seriam semelhantes à prática de nossas avós ao admoestarmo-nos contando histórias de cunho moral? Quando atuam como trabalhadoras espíritas, é mais na prática mediúnica, como médiuns do que na elaboração e reelaboração da doutrina espírita. Mas na hora de dar bronca, de ralhar com espíritos obsessores, cabe ao médium doutrinador, geralmente um homem, pela sua postura austera e enérgica, conforme o papel tradicional de pai (patriarca), como apresentei anteriormente.

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2. 6. UMA DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA DA DIVISÃO DO TRABALHO ESPÍRITA

Nunes (2005, p. 363), sobre a maior participação das mulheres nas religiões, comenta que, “Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de que as mulheres investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui que elas seriam ‘mais religiosas’ do que eles”. Se os dados do Censo 2010 (IBGE, 2000; 2010) indicaram ser feminino quase 60% do universo espírita, por que a tão tímida participação nas lideranças das casas espíritas (e também das federações espíritas), em muitos departamentos? Mas quais são os atributos/requisitos para ascender às ocupações na hierarquia espírita, que venham a revelar tal assimetria sexual no Espiritismo? Não era de se esperar um número mais representativo de trabalhadoras espíritas? Não era de se esperar uma estatística mais mediana, seguindo a probabilidade “genética” de 50% de homens e de mulheres em todos os cargos e ocupações relacionadas ao Espiritismo? Ou a probabilidade de quase 60% de mulheres, a qual é a proporção censitária? E quanto à mediunidade, se para o Espiritismo, todos somos médiuns, pois define a mediunidade como faculdade humana, sem se considerar o grau de sensibilidade desta faculdade, não era, igualmente, de se esperar uma melhor proporcionalidade entre os sexos? Entretanto como encontrou em sua pesquisa de campo, Gleide Silva (2006) “as mulheres são a esmagadora maioria nas atividades relativas à mediunidade” – uma atividade que historicamente esteve relacionada ao ambiente doméstico e com um “ethos” feminino – os homens se dedicavam apenas ao trabalho intelectual (ensino e pesquisa) do Espiritismo, daí se compreende que “a presença dos homens enquanto médiuns é ainda muito acanhada” (SILVA, 2006, p. 160). Relata a autora: o que verificamos quando analisamos a distribuição de papéis e atividades desenvolvidas pelo grupo na Casa de Oração levando em consideração o gênero, em que os homens ocupam posições centrais e de comando, enquanto algumas mulheres, apesar do nível de conhecimento cosmológico que demonstram ter, por diversos motivos, não ocupam tais posições, embora haja uma tendência para este preenchimento. Paralelamente, as mulheres são predominantes no exercício da mediunidade – um trabalho que envolve diretamente o corpo e contribui para a conformação de um ethos mediúnico específico. Tal estruturação, sem dúvida, para além do próprio centro a hierarquia de cargos e sua divisão por sexo, como diz a autora] reflete, de certa maneira, a divisão de papéis entre homens e mulheres que ainda vigora na sociedade (SILVA, 2006, p. 203)

O Espiritismo, algo dessemelhante da maioria das religiões, não há a figura do sacerdote. Como Weber (2000, p. 295) afirma: “Não há, sacerdócio sem culto, mas sim culto sem sacerdócio especial”. Este último parece ser o caso do Espiritismo.

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Assim descreve Incontri (2012) sobre a institucionalização do movimento espírita no Brasil: se comparada à de outras religiões, que se constituem em Igrejas – é mais democrática, pela ausência de sacerdócio e hierarquias e pela eleição de seus membros, que ocupam cargos administrativos e constitui-se mais um apelo de unificação, que obrigatoriedade doutrinária. (INCONTRI, 2012, p. 168)

Como não há um sacerdócio institucionalizado, não há hierarquia sacerdotal e nem qualquer pagamento para aqueles que atuem em funções correlatas. Desta feita, dois fatores são decisivos na colocação de pessoal nas funções de liderança de um centro espírita: primeiro, a hierarquia administrativa exigida pelo Código Civil, Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que em seu Art. 54 e inciso V139, reza que “Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá [...] o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos” o que pressupõe uma constituição mínima dos cargos de diretoria eleita por alguma forma de escrutínio; e segundo, uma forma de seleção e indicação de candidatos/as critérios de meritocracia que oscilam entre uma “liderança carismática”, como a capacidade de doação aliada ou não há mediunidade, e a “liderança burocrática”, onde importa os fatores: antiguidade, “respeito hierárquico” e competência técnica. Cavalcanti, assim descreve a organização e o funcionamento de um centro espírita no Rio de Janeiro-RJ: O centro compõe-se formalmente de uma diretoria, conselho fiscal e consultivo, tesouraria e secretaria-geral e um corpo de sócios. Mantém-se através de contribuições voluntárias e fundos levantados em campanhas, bazares e lanches. Organiza-se em quatro departamentos: programação doutrinária e orientação mediúnica, serviços assistenciais, divulgação, e infância e mocidade, sendo seus responsáveis nomeados pela diretoria. Cada departamento é um núcleo de tarefas, suas diretoras têm uma reunião mensal com a presidente e reuniões com os dirigentes dos subgrupos do setor. Os dirigentes dos subgrupos, por sua vez, têm reuniões com os colaboradores de tarefas específicas. Em todos esses níveis, num grau crescente de poder e responsabilidade, quem ocupa um cargo de direção deve supervisionar todas as tarefas coordenadas por seu núcleo. (CAVALCANTI, 2008, p. 47).

Nesta realidade organizacional, homens e mulheres espíritas se distribuem diferentemente nas funções ou cargos nas casas espíritas, conforme procuro demonstrar através da figura de uma pirâmide social (Figura 10). De início, é bom lembrar que há mobilidade das pessoas entre as diferentes estratificações sociais da casa espírita, ou seja, há a possiblidade e certa facilidade de ascensão a cargos e funções mais superiores na administração e divulgação doutrinária espírita, para ambos os sexos, embora, de forma diferenciada.

139 Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 05 jan. 2015.

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Figura 10 – Pirâmide da distribuição sexual na hierarquia espírita

Fonte: Autor (2014).140

Estrato 1. Neste primeiro estrato, estão os/as beneficiários/as, sendo que a grande maioria são mulheres que frequentam os estudos sequenciados de doutrina espírita (evangelho, mediunidade, e outros), ou esporadicamente assistem palestras temáticas; aqui, também estão aquelas pessoas que se declaram espíritas, mas não necessariamente, frequentam reuniões de cunho doutrinário ou mediúnico, em alguma casa específica, são denominadas pelo movimento espírita de simpatizantes, estas tomam passes, recebem benefícios assistenciais, leem a bibliografia espírita (em especial os romances mediúnicos) e creem nos postulados espíritas (da sobrevivência do espírito após a morte física, na reencarnação e comunicação dos espíritos). Neste estrato, os homens se concentram mais nos estudos sistematizados, o que lhes favorece a rápida ascensão na hierarquia de trabalhadores. Ainda neste estrato, homens e mulheres de baixa renda e com baixo nível de escolaridade e de autoestima que se percebem impossibilitados de doar, e quando doam é na forma de trabalhos voluntários de recepção, limpeza e cozinha, ascendendo ao estrato 2. Estrato 2. Nesta estratificação estão as primeiras funções de trabalho voluntário nas casas espíritas, aqui se encontram os/as trabalhadores/as da limpeza, recepção (acolhimento) e entrevista de visitantes e frequentadores, médiuns passistas, evangelizadoras de infância e juventude; e que participaram (ou não) de cursos intensivos de trabalhadores (curso de passe, por exemplo). Aqui ainda se demora a grande maioria feminina em detrimento de uns poucos e raros elementos masculinos, os quais tendem a progredirem rapidamente para os próximos estratos.

140 Ilustração minha.

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Estrato 3. Aqui estão aqueles/as que por mérito ou por reconhecimento, por indicação, aclamação e/ou por vontade própria ascenderam dos estratos 1 e 2, devido apresentarem certa experiência inata (as mulheres mais ligado à sensibilidade mediúnica e os homens, à liderança e à autoridade) ou adquirida, ter concluído os cursos doutrinários gerais (evangelho e doutrina espírita) e específicos (mediunidade, passe, doutrinação, evangelização infantil, entre outros) caso a função exija. Pode-se situar aqui aquelas poucas mulheres que dirigem as reuniões mediúnicas ou as muitas mulheres que chefiam os departamentos de infância e juventude, tendo ao seu comando certo números de evangelizadores/as; dirigem estudos e trabalhos regulares da casa espírita, geralmente distintos de acordo com os dias da semana; ministram cursos e palestras; coordenam atividades de assistência social e assistência espiritual, também com certo número de cooperadores/as. Os homens costumam se concentrar na atividade de divulgação da Doutrina Espírita por palestras com temas livres, conforme uma escala de revezamento mensal ou através de estudos sistematizados, com programação geralmente anual. Estrato 4. E por fim, esta última estratificação, como procurei comprovar historicamente, no capítulo anterior, e pela etnografia, neste capítulo, é um campo majoritariamente masculino. Aqui estão aquelas poucas mulheres que respondem legal e administrativamente pelos centros espíritas, ocupam os cargos estatutariamente determinados como presidência, secretaria e tesouraria, além do conselho fiscal; e ainda as diretorias de setor ou departamento. Estas ocupações de cargo em geral são eletivas, quer seja por escrutínio ou por aclamação, e duram por volta de dois anos, podendo haver recondução por igual período, e depois, há alternância de nomes, isto quando há pessoas dispostas a ascenderem a tais funções. A imagem da pirâmide feminina é bem adequada à estrutura social e funcional das casas espíritas, onde: a grande maioria das mulheres – como já o dissemos - está na primeira categoria, a qual podemos dizer é a mais “passiva”, ou seja, são mulheres que buscam no Espiritismo (na literatura ou nos centros espíritas) receber conhecimentos; passes; remédios (alopáticos, homeopáticos ou fitoterápicos, quando dispõem de médicos para prescreverem receitas médicas); alimentos (cestas básicas e/ou sopa); enxovais de bebê; assistência espiritual e; outros... enquanto que a pirâmide masculina é invertida, os poucos homens – quase 40%, segundo o Censo (IBGE, 2000; 2010) – se concentram nos estratos mais altos. Em pesquisa realizada com o público pentecostal (MACHADO, 2005), descobriu-se que diferentemente dos homens, as mulheres buscam uma instituição religiosa para a solução de problemas familiares, materiais e espirituais. Possivelmente sejam essas as mesmas razões

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que conduzem as mulheres, espíritas ou simpatizantes, a acessar e permanecer nas casas espíritas. Devido a esta atitude submissa, quer por comodismo (conformação), quer por vontade própria, ou quer por descrença na sua própria capacidade, poucas destas mulheres da categoria 1 ascendem aos níveis de trabalhadores da casa espírita. A despeito disto, há uma prática constante de captação e capacitação de novos/as trabalhadores/as. Ao contrário deste primeiro nível de estrato social, as pessoas que compõem os três seguintes são progressivamente mais ativas na produção e distribuição de bens simbólicos e materiais oferecidos pelas casas espíritas. Nos estratos de 2 a 4 é que se encontram aquelas pessoas que tem maior renda e maior escolaridade, como destaca o último censo: Os resultados do Censo 2010 indicam importante diferença dos espíritas para os demais grupos religiosos no que se refere ao nível de instrução. Este grupo religioso possui a maior proporção de pessoas com nível superior completo (31,5%) e as menores percentagens de indivíduos sem instrução (1,8%) e com ensino fundamental incompleto (15,0%). (IBGE, 2010).

Pode-se com isto se inferir que – mas é necessário que se investigue melhor – os conhecimentos considerados inatos pelos espíritas e também aqueles revelados (pela mediunidade) daquelas mulheres que estão no primeiro nível tendem a não superar o conhecimento escolarizado e o doutrinário, mais facilmente acessados pelos homens, em relação à ascensão de tarefas e cargos na administração espírita. Embora isto pareça em contradição com a pesquisa de Cavalcanti (2008, p. 53), onde identificou que as mulheres por serem as “médiuns mais qualificados do centro” exerciam cargos de liderança em determinado centro espírita. Entretanto isto é verdadeiro para a Federação Espírita Brasileira, pois com mais de um século de existência, e 20 gestões, nenhuma mulher exercera o cargo máximo de presidente. Nos estratos 2 e 3 é que se encontram as funções mais próximas ou paralelas com o sacerdócio eclesiástico das demais denominações religiosas: estes/as espíritas, à semelhança das/os benzedeiras/ores do Catolicismo popular, ou da unção de enfermos das correntes evangélicas, os/as espíritas impõem suas mãos sobre os enfermos na prática do passe; dirigem sentidas preces espontâneas como fazem seus/ suas correspondentes durante as rezas e orações; ministram cursos e palestras à semelhança da pregação de sermões evangélicos e católicos; fazem uso da xenoglossia141 quando da comunicação de espíritos de pessoas estrangeiras, tal

141 É a faculdade de falar línguas estrangeiras sem as ter estudado.

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como nas manifestações de dons de línguas estranhas (glossolalia), comuns no pentecostalismo; e também fazem revelações pela mediunidade de vidência ou clarividência de forma semelhante às profecias de profetas e profetizas de todos os tempos e lugares. Como apresentei no subtítulo anterior (2.5), nas reuniões mediúnicas, como descreve Gleide Silva: “Traço característico de todos os rituais fechados que tenho assistido, a presença dos homens é bastante reduzida. Neste mesmo, tinham apenas três, todos doutrinadores. As outras 19 pessoas eram mulheres.” (SILVA, 2006, p. 128). Ou seja, há muitas médiuns e quando há homens este tendem a ser doutrinadores. No quarto e último estrato social da pirâmide social espírita, estão aquelas pessoas com maior “tempo de casa”, por vezes são membros fundadores (as) da instituição, que ocupam as funções mais administrativas, e como tal mais próximas da administração empresarial, com o diferencial de que neste estrato, legalmente por ser uma organização sem fins lucrativos, não há remuneração142. Estas lideranças são majoritariamente masculinas, como se pode deduzir da descrição de Silva: Enquanto para as mulheres novamente se apresenta como característica constante a mediunidade, para os homens é a doutrinação que os liga. Entretanto, em quase todos aparece o desempenho de papéis relacionado à coordenação de alguma atividade e a cargos administrativos [exercidos por homens]. O que nos leva a pensar em um maior grau de envolvimento com os assuntos interno-burocráticos e responsabilidades para com o bom andamento das atividades rotineiras do centro. (SILVA, 2006, p. 157-158)

Em quase 150 anos de Espiritismo, tanto no Brasil quanto no exterior143, pouquíssimas mulheres espíritas e/ou mulheres-médiuns desenvolveram funções de liderança no movimento, como divulgadoras, pois a fala autorizada ou é de um espírito que assina um nome masculino ou de um encarnado do sexo masculino. O Espiritismo tem sido marcado144 por um fenômeno de masculinização paralelo àquele descrito por Nilza Menezes (2012) em relação ao do Candomblé, onde, na atualidade, “a

142 Se nos níveis 3 e 4 não há remuneração, eventualmente nos níveis 1 e 2 podem haver, eventualmente, algumas atividades remuneradas, regidas por contratos de trabalho regulares, ligadas funções de limpeza, vendas na livraria e lanchonete. 143 Embora a pesquisa tenha se limitado a autores consagrados (Kardec e Chico Xavier) e ao gênero doutrinário, tive somente uma rápida percepção de que o movimento espírita no Brasil e no mundo não se destacaram mulheres, quer como liderança, quer como divulgadoras, quer como escritoras de textos doutrinários, apenas se destacando, estas, na psicografia de romances mediúnicos, tal como atualmente Zíbia Gasparetto. Futuras pesquisas em perspectiva de gênero poderão não só esclarecer a respeito da participação feminina no movimento espírita, mas, também trazer a lume muitas militantes esquecidas devido aos “silêncios da história”. 144 Embora já se perceba uma tendência atual de certa homogeneização de ambos os sexos em todas as atividades do movimento espírita, creio que resultado da liberalização da mulher do espaço doméstico para estudos seculares e religiosos, profissionalização e outras atividades relacionadas ao espaço público, ligadas às representações masculinas. E bem como a entrada de homens em nichos exclusivamente femininos como a evangelização infantil e a assistência social nos centros espíritas.

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maioria das lideranças religiosas encontra-se na mão dos homens numa religião estabelecida, geralmente, em espaços domésticos” (MENEZES, 2012, p. 17). Pois, se o movimento espírita nasce acéfalo, ou seja, sem qualquer liderança, entretanto a maioria dos médiuns, portadores de carisma (WEBER, 2000), era constituída de mulheres e não de homens. Estes, despossuídos de carisma, ao se associaram às médiuns, foram acumulando capital simbólico (BOURDIEU, 1989) e se tornando liderança ao controlar e sistematizar a prática mediúnica. Tal como ocorreu entre as médiuns sonâmbulas e seus magnetizadores. Assim, nos vários momentos de institucionalização e de resistência do movimento, a demarcação da divisão sexual do trabalho sempre se deu a partir das representações de gênero da sociedade na qual determinado grupamento espírita está inserido, e seguiu uma “dinâmica social mais ampla” (SILVA, 2006, p. 160). Assim ocorre também no Espiritismo, que sempre manteve um discurso de igualdade dos sexos, embora, na prática acabe reproduzindo, na distribuição de cargos e ocupações, antigos padrões sexistas e, pior, androcêntricos, que limitam a atuação das mulheres a funções que nada mais são do que uma extensão dos afazeres domésticos na instituição religiosa; e também limitam o exercício da sensibilidade dos homens, os quais também saem perdendo no computo geral das habilidades e competências aprendidas e desenvolvidas. (BRADBURY, 2013-b, p. 1147)

Quer em uma simples residência, quer num grande centro espírita, às mulheres está reservado o exercício da mediunidade145, devido à pretensa sensibilidade e passividade femininas, enquanto aos homens está reservado o controle, administração e doutrinação nas práticas espíritas e bem como sua sistematização, isto devido à crença em características intrínsecas aos homens, a racionalidade e austeridade. E por que esta postura sexista, androcêntrica e misógina, persiste? Por que as mulheres espíritas não enxergam a violência de gênero que estão expostas? E que tende a prejudicar a todos, homens, mulheres e sua prole (SAFFIOTI, 1987). Tal como na pesquisa de Menezes (2012, p. 167), também no Espiritismo existe uma “aparente falta de consciência das mulheres sobre os discursos que permeiam a violência [de gênero] sofrida e [...] que elas próprias reproduzem essa violência – por acreditarem nos discursos sobre os papéis sociais sem questionar as relações de poder que se estabelecem” ali146.

145 Lembro-me das vezes que minha mãe, médium psicógrafa e psicofônica, reclamava-me, contrafeita, de ser insistentemente convidada a receber espíritos, quando visitava algum centro espírita, em dia de reunião mediúnica. 146 Os/as poucos/as espíritas, todos/as com nível superior completo, com quem reparti os questionamentos desta pesquisa bibliográfica, afirmaram não haver relações de gênero desiguais no Espiritismo.

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Para Bourdieu (2012, p. 5) esta aparente “falta de consciência das mulheres” é resultado de uma dominação masculina, no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. (BOURDIEU 2012, p. 5)

No próximo e último capítulo, a partir do método de Análise de Conteúdo, apresento o outro lado das relações de gênero no Espiritismo que apresentei nos capítulos um e dois: as representações de homem e mulher repassadas pela Doutrina Espírita a seus/suas adeptos/as, influenciando na divisão sexual do trabalho nas famílias espíritas e também na colocação de pessoal no quadro de trabalhadores/as dos centros espíritas.

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CAPÍTULO 3. O HOMEM É O CÉREBRO, A MULHER, CORAÇÃO

3.1. SOBRE A APLICAÇÃO DO MÉTODO: Análise de Conteúdo

Como pesquisa bibliográfica, esta foi iniciada por um levantamento bibliográfico amplo da extensa e diversificada literatura espírita e da produção científica, envolvendo os conceitos- chave “Espiritismo” – principalmente no que tange à sua história como livros biográficos espíritas; teses, dissertações e artigos científicos; e outras fontes não-espíritas como as obras de Ubiratan Machado e Marcel Souto Maior – e “Espiritismo e mulher”, em especial os textos doutrinários espíritas e as pesquisas científicas que relacionavam “mediunidade e psiquiatria”147. Após este levantamento bibliográfico mais amplo, a próxima etapa foi a delimitação do objeto de pesquisa. Num esforço conjunto com minha orientadora, a Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, delimitamos, num primeiro recorte, o objeto desta pesquisa em tão somente: a produção lítero- doutrinária espírita – deixando de fora os romances, contos, poesias, literatura infanto-juvenil e similares – centrando o foco em autores/as (médium e espíritos) que tiveram e ainda têm maior destaque para o movimento espírita brasileiro, como o sistematizador do Espiritismo francês, Allan Kardec e o médium brasileiro Francisco Candido Xavier (Chico Xavier); embora também utilizamos autores/as de menor repercussão no mercado literário, como contraponto e assim possamos entender como são assimiladas as representações de gênero destes referenciais, Kardec e Chico, na reprodução lítero-doutrinária do movimento espírita, inclusive na Internet. Em um segundo recorte, selecionamos apenas textos doutrinários que trouxessem explícitas as representações de gênero, ou seja, como o Espiritismo constrói e legitima suas representações simbólicas do feminino e do masculino, no espaço profano e no espaço sagrado, a partir de sua cosmologia que tende a sacralizar as diferenças sexuais formatando papéis sexuais diferenciados, colocando-os em consonância com uma tradicional e hierárquica divisão

147 Dois textos que lemos em 2010 como bibliografia obrigatória do exame de seleção do Programa de Pós- graduação (mestrado) da UFPA nos levaram por este caminho: Mauss, (2003) e Maués (2005) os quais retratavam o senso comum (representações sociais) de que as mulheres eram mais propícias à magia dada sua pretensa condição de fragilidade orgânica e psicológica – trataremos mais adiante estas representações. Em 2013, o aprofundamento da pesquisa desta temática resultou em um artigo apresentado no 26º Congresso Internacional da Soter, em Belo Horizonte, com o título: “MEDIUNIDADE, FACULDADE OU DOENÇA? Uma análise de gênero entre os saberes secular, o religioso e o popular”.

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sexual do trabalho: os homens, em situação de dominância, com o trabalho extra doméstico e as mulheres, em situação de subalternidade, com o trabalho doméstico. Após a delimitação do objeto, parti para um inventário bibliográfico148 específico envolvendo apenas a temática “Espiritismo e gênero”, sendo que esta etapa foi um árduo trabalho de “garimpagem” dada a vastidão da literatura espírita e a quase inexistência de trabalhos acadêmicos e também de fontes espíritas sobre a temática de gênero, isto principalmente em relação às representações de gênero específica de “homens”, em sentido específico (masculino) e não genérico representando ambos os sexos, sinônimo de ser humano, pois neste caso parece ser uso comum de todos/as autores/as espíritas, encarnados ou desencarnados. E para analisar as representações de gênero espíritas contidas nos textos selecionados, escolhemos o método de análise de conteúdo de Laurence Bardin (1977), que assim o descreve: Um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a “discursos” (conteúdos e continentes) extremamente diversificados. O fator comum destas técnicas múltiplas e multiplicadas desde o cálculo de frequências que fornece dados cifrados, até a extração de estruturas traduzíveis em modelos – é uma hermenêutica controlada, baseada na dedução a inferência. Enquanto esforço de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre os dois polos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não-aparente, o potencial do inédito (do não-dito), retido por qualquer mensagem. (BARDIN, 1977, p. 9)

Assim, de posse dos dados deste inventário bibliográfico, passei a seguir os procedimentos metodológicos do método de investigação (análise de conteúdo) elaborado pela autora (BARDIN, 1977). Foram várias leituras do material selecionado, orientadas pela perspectiva de gênero, onde se estabeleceu “um contato com os documentos a analisar e conhecer todo o material deixando-se invadir por impressões e orientações. Esta fase é chamada de leitura “flutuante”, por analogia com a atitude do psicanalista” (FONTELES, 2007, p. 9) Num próximo passo, foi realizado um processo de categorização utilizando-se o agrupamento de ideias-chave sobre um mesmo tema (categoria), conforme nem tanto pela frequência que aparecem nos textos selecionados, mas principalmente pela forma como tais temas se estruturaram na argumentação dos /as autores /as e na cosmovisão espírita. A categorização é definida por Bardin (1977, p. 117) como “sendo uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com critérios previamente definidos.”

148 Esta etapa da pesquisa realizei por ocasião da “revisão bibliográfica” na elaboração do projeto de qualificação.

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E por fim a “análise das comunicações”, propriamente dita, “visando obter [...] indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.” (BARDIN, 1977, p. 42). Ou seja, o objetivo foi investigar a compreensão dos/as autores/as espíritas, no contexto sociocultural em que foram e são produzidas as representações de gênero, enfim, verificar a influência desse contexto na produção lítero-doutrinária espírita e qual seu sentido. Minha intenção com esta pesquisa não foi esgotar as representações de gênero contidas, de forma explícitas ou não, nos textos analisados. Mas buscar me aproximar das origens das representações e relações de gênero que figuram tanto na literatura doutrinária espírita, objeto da pesquisa, quanto na práxis espírita, que me serviu de “grupo de controle”, na fase de interpretação dos dados. Esta opção de centrar o foco em determinadas categorias de análise, e deixar outras de fora, fiz com base na afirmação de Roque Moraes (1999): A análise de conteúdo, em sua vertente qualitativa, parte de uma série de pressupostos, os quais, no exame de um texto, servem de suporte para captar seu sentido simbólico. Este sentido nem sempre é manifesto e o seu significado não é único. Poderá ser enfocado em função de diferentes perspectivas. Por isso, um texto contém muitos significados [...] (MORAES, 1999, p. 2)

Ainda com base em Moraes (1999, p. 2), é preciso estar ciente que o sentido simbólico (as representações de gênero) que os autores espíritas pretenderam expressar pode ou não coincidir com o sentido percebido pelo leitorado – de ambos os sexos – ou com a incorporação deste sentido simbólico no ethos espírita, pois como o leitorado espírita não é um todo homogêneo, uma mesma mensagem pode ser captada com sentidos diferentes por diferentes leitores/as; e por fim, os textos doutrinários aqui analisados foram escritos num tempo em que as teorias feministas estavam ainda germinando e, portanto tais textos provavelmente expressavam sentidos que os próprios autores não estavam conscientes. Daí a necessidade de se fazer recortes na pesquisa. De certo modo a análise de conteúdo, é uma interpretação pessoal por parte do pesquisador com relação à percepção que tem dos dados. Não é possível uma leitura neutra. Toda leitura se constitui numa interpretação. (MORAES, 1999, p. 3)

E não só o leitorado espírita está sujeito à polissemia na interpretação da literatura espírita, pois igualmente a academia, utilizando-se de diferentes perspectivas metodológica já produziu alguns sentidos para as representações de gênero espíritas diferentes das quais explorarei a seguir.

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Também é necessário se afirmar a impossibilidade de esgotamento do contexto no qual foram produzidos os textos e suas representações de gênero. Pois conforme Roque Moraes (1999): O contexto dentro do qual se analisam os dados deve ser explicitado em qualquer análise de conteúdo. Embora os dados estejam expressos diretamente no texto, o contexto precisa ser reconstruído pelo pesquisador. Isto estabelece certos limites. Não é possível incluir, nessa reconstrução, todas as condições que coexistem, precedem ou sucedem a mensagem, no tempo e no espaço. Não existem limites lógicos para delimitar o contexto da análise. Isto vai depender do pesquisador, da disciplina e dos objetivos propostos para a investigação, além da natureza dos materiais sob análise. (MORAES, 1999, p. 3)

3.2. CATEGORIAS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO

No processo de categorização cheguei a 10 categorias149 ligadas às representações de gênero do Espiritismo150: 1. O “sexo dos anjos”: da teoria metafísica às representações de gênero 2. A divisão sexual do trabalho na perspectiva espírita: 2.1. A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas; 2.2. A mulher-mãe e o pai-provedor; 2.3. Feminismo e a inversão de papéis sexuais; 2.4. Direitos iguais sim, funções (papéis sexuais) não; 2.5. O modelo mariano; 2.6. A maternidade de Eva e as dores de parto. 2.7. A educação feminina diversificada versos educação igualitária de gênero 2.8. Feminista, médium e louca; 2.9. A mulher-médium, o homem-intelectual. Como já abordei de forma preliminar as três últimas categorias, nos capítulos anteriores, não as abordarei novamente, por acreditar que elas estão suficientemente analisadas.151. Mas antes da análise de conteúdo propriamente dita, cabe uma advertência: um importante aspecto da Doutrina Espírita que devemos levar em conta logo de início é a complexidade de suas proposições.

149 Sendo que destaquei em um bloco o ideário fundante das representações de gênero espíritas e noutro bloco se encontram as representações desdobradas deste ideário. 150 Os nomes das categorias foram criados por mim, apenas como forma de referenciação, não existem necessariamente no movimento nem na literatura espírita. 151Sobre a educação feminina, conferir: BRADBURY, 2013-b; CHRISTO e LODI, 2012; sobre mulheres-médiuns e loucas, conferir: BRADBURY, 2013-a; VILELA e MESSIAS, 2011.

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A Doutrina Espírita afirma ser composta de três aspectos: “filosofia, ciência e religião”, pois “associou razão e sentimento, ciência e fé, sistematizada como doutrina filosófica de base científica, afirmando que esse saber implica consequências morais” (DIAS, 2011, p. 15). Esta complexidade pode ser constatada a partir da análise comparativa que fazem Letícia da Silva Gondim e Thiago Linhares Weber (2011, p. 1) do Espiritismo do Ecletismo, que conforme os autores assemelham muito, e pode o Espiritismo ter recebido influência deste. Para Artur Cesar Isaia, o Espiritismo: como qualquer outra religião encarada como discurso, não pode ser enfocado de forma reducionista. Temos que nos ater aos claros-escuros, às nuances, às múltiplas possibilidades de mimetiza [sic.], de afirmar contradizendo, [...]. Assim vamos ver que o espiritismo surge interagindo com uma rede bastante complexa de significados, guardando, um parentesco com uma constelação desigual de ideias que vão do liberalismo às utopias socialistas, passando pelo positivismo comtista e com os próprios valores do catolicismo, acrescido de uma reafirmação de valores que longe estavam de referendar a modernidade. (Isaia apud GONDIM; WEBER, 2011, p. 6)

Se a análise de gênero em contextos religiosos já é polêmica, nestas condições de complexidade, as representações de gênero se tornam ambíguas ou polissêmicas, dando margem a dupla ou múltipla interpretação por parte dos/as pesquisadores/as152 e também por parte dos/as adeptos/as e simpatizantes. A seguir, apresento uma descrição, embora sumária, da ideia fundante das representações de gênero espíritas, ou seja, os pressupostos metafísicos que legitimam a divisão sexual do trabalho espírita.

3.2.1. O “Sexo dos Anjos”: da Teoria Metafísica às Representações de Gênero

Muito embora a perspectiva desta pesquisa seja socioantropológica, faz-se necessário iniciar com esta categoria metafísica ou filosófica – a cosmovisão teológico-naturalista do Espiritismo sobre as diferenças sexuais – por dois motivos: primeiro, pelo alto índice de repetição destes fundamentos metafísicos nos textos que analisarei nessa amostragem e, segundo, porque é sobre esta categoria que se constroem as representações de gênero e se estabelecem os padrões comportamentais das relações de gênero no Espiritismo. Cândido Procópio Ferreira de José Camargo (1973) organizou uma obra clássica sobre as principais religiões, no Brasil, a qual informa que “Há no Espiritismo toda uma compreensão

152 Como de fato encontrei pesquisas acadêmicas (BUENO, 2009; SILVA; SGARBI, 2007) que ao se utilizarem o método da Teologia Comparada, isto lhes conferiu uma visão da Doutrina Espírita pouco crítica em relação a si mesma, no que tange a sua proposta de divisão sexual do trabalho.

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sacral do mundo, tornando-se desse modo a religião extremamente significativa, para o fiel, em termos de orientação de vida” (CAMARGO, 1973, p. 162). Esta “compreensão sacral do mundo”, a qual está relacionada a uma crença teísta fortemente marcada por uma ética cristã e justificada pela doutrina da reencarnação, confere aos adeptos/as espíritas certa “orientação de vida”, a qual é reproduzida pela vasta literatura espírita – em especial a produção lítero-doutrinária, mais objetiva em termos de orientações – e na recente produção cinematográfica e televisiva. Toda esta produção está repleta de representações de gênero que reafirmam uma divisão sexual androcêntrica do trabalho, vigente na sociedade ocidental dos séculos XIX e XX, marcadas pelo modus vivendi vitoriano.153 Esta relação entre estilo de vida e uma metafísica religiosa está também presente no pensamento de Clifford Geertz (2008, p. 67), pois para o autor, os sistemas simbólicos religiosos apresentam “uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica específica [...] e, ao fazê-lo, sustentam cada uma delas com a autoridade emprestada do outro”, e esta dualidade (cosmovisão-ethos religioso) fica bem clara em sua síntese de que uma religião é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas. (GEERTZ, 2008, p. 67)

É assim também no Espiritismo154, os pressupostos metafísicos e religiosos espíritas – veiculados pela produção literária e reproduzidos verbalmente nos centros espíritas e bem como pela mídia em geral – reforçam e norteiam o comportamento de adeptos/as conforme as representações de gênero que expressam. A cosmovisão espírita pode ser sintetizada em cinco pontos básicos: a) os seres humanos, homens e mulheres, encontraram-se em processo de evolução através de sucessivas reencarnações; b) o Espiritismo inspira-se nos Evangelhos e na ética cristã; (c) a teoria da mediunidade é a possibilidade de comunicação com os espíritos desencarnados através dos médiuns, que agem como intermediários nesse processo; d) a Doutrina Espírita não contrapõe o sacral ao científico, procurando antes integrá-los. (CAMARGO, 1973, p. 161-162)

153 Para se entender a sexualidade da sociedade ocidental neste entresséculos, conferir em: FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 154 Embora eu tenha tratado no capítulo anterior de alguns sinais das representações de gênero no campo espírita, que despontaram em minha revisão bibliográfica, deixarei em aberto algumas hipóteses relacionadas à pesquisa de campo, de modo que possam ser respondidas a posteriori, no doutorado, assim, por hora, me limito em analisar o conteúdo da produção literária.

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Com base nos pressupostos acima, Allan Kardec (1995 [1857]; 2004 [1866]) sistematizou o fundamento que deve pautar as representações e as relações de gênero do Espiritismo. Kardec, utilizando-se de uma argumentação da filosofia naturalista, inferiu como premissa principal que os sexos (macho e fêmea) só existiam no organismo corpóreo, pois os sexos seriam necessários, primeiro, para a reprodução de novos corpos (novas gerações), e segundo, para delimitarem as funções sexualmente diferenciadas, e não a reprodução dos espíritos, os quais seriam criação apenas de Deus, ou seja, os espíritos não teriam a capacidade de auto reproduzirem-se (KARDEC, 1995 [1857], p. 381; 2004 [1866], p. 16); e, como o objetivo principal da reencarnação é atingir a perfeição, assim os espíritos renasceriam com o propósito de progredir em todos os aspectos e adquirirem todos os conhecimentos ao se sujeitarem aos diversos trabalhos e aos diferentes gêneros de provas, vivenciando tais experiências ora como homem, ora como mulher (KARDEC, 1995 [1857], p. 381; 2004 [1866], p. 16), pois aquele que só como homem encarnasse só saberia o que sabem os homens (KARDEC, 1995 [1857], p. 135; 2004 [1866], p. 16); Deus (a natureza) criou as diferenças sexuais (sexo feminino mais fraco e mais sensível que o outro) porque os deveres (funções) que atribuídos a cada sexo, não exigem igual força muscular e alguns deveres atribuídos às mulheres seriam até incompatíveis com a rudeza masculina, pois a delicadeza das formas e a finura das sensações, nas mulheres, são admiravelmente apropriadas aos cuidados da maternidade; no campo social, os sexos são dois elementos que se completam um pelo outro, (KARDEC, 1995 [1857], p. 381; 2004 [1866], p. 16). Esta compreensão sacral da ordem natural e social, repleta de representações de gênero, como procurei demonstrar nos capítulos anteriores, foi resultado de um sistema binário de forças, por um lado, buscou a racionalização de conteúdos religiosos e elaboração de princípios doutrinários espíritas conforme determinados preceitos filosóficos e científicos e, por outro lado, igualmente resultou da disputa pelo campo religioso entre espíritas e cristãos – principalmente católicos (ALMEIDA, 2000, p. 25; COSTA, 2001, p. 59-60 e 160; DIAS, 2011, p. 12; LEWGOY, 2000, p. 10 e ss.) – onde se confrontavam os sistemas: única encarnação/ressureição versus reencarnação/alternação de encarnações entre os sexos. O confronto de relações e representações de gênero espíritas e católicas fica claro no pensamento de Costa (2001) ao afirmar que: “Sobre a mulher, o discurso espírita se opõem ao católico por considerá-la como um ser com direitos iguais e não culpada pela desgraça da humanidade por ter sido a primeira pecadora” (COSTA, 2001, p. 117).

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Neste sentido Cléria Bittar Bueno (2009), comparando a teoria e a práxis espírita com as demais religiões de tradição judaico-cristã, a autora afirma que o Espiritismo é “muito mais liberal em relação às mulheres” por não atribuir às mulheres espíritas somente o “papel de submissão”, permitindo-lhes a mobilidade na hierarquia administrativo-doutrinária e por não “relegá-las ao silêncio” dentro dos centros espíritas (BUENO, 2009, p. 156). Este posicionamento de Bueno se explica, na prática, pela inexistência de sacerdócio exclusivamente masculino e, na teoria, porque um dos pilares de sustentação da Doutrina Espírita é “crença na palingenesia, ou a lei do eterno retorno (reencarnação)”, que garante oportunidade iguais de encarnar num ou noutro sexo (BUENO, 2009, p. 156). Além disto, os espíritas alegam que no passado das religiões foi negado às mulheres a existência de uma alma, pois reclama Kardec (2004 [1866], p. 13): a afirmação da existência de uma alma feminina “nem sempre foi tida por certa, pois, ao que se diz, foi posta em deliberação num concílio.” O que é respaldado por Jacis Régis (2001, s.p.) e confirmado por Lúcia Loureiro (2008 [1995]) “A Igreja Católica chegou ao cúmulo de pregar que a Mulher não possuía alma e a realizar concílios para que seus representantes decidissem sobre tão ridícula questão”.155 Kardec entendia que o Espiritismo uma vez tendo postulado que as “almas ou Espíritos não têm sexo”, estabelecia-se a igualdade entre os sexos como “um direito natural [...] imprescritível” (KARDEC, 2004 [1866], p. 15), e abria-se a era da emancipação legal feminina inaugurada pelo Espiritismo (2005 [1862], p. 42; 2004 [1866], p. 18). Kardec pensava que com isto estava descontruindo o principal fundamento da discriminação das mulheres no espaço sagrado – e bem como no espaço profano. O que ele não contava era que esta desconstrução não fosse suficiente para estabelecer uma simetria entre os sexos, inclusive no meio espírita. A “igualdade entre os sexos”, conferida pela ideia de um princípio inteligente único (espírito) para ambos os sexos, como demonstro a seguir, torna-se, primeiro, contraditória ao conceber uma dualidade da natureza humana criada por Deus com o propósito de distinguir sexualmente funções sociais e, segundo, em razão disto, torna-se quase nula em seu propósito de emancipação feminina. A seguir, com base nesta cosmovisão fundante das representações de gênero espíritas, analiso as seis categorias de análise selecionadas.

155 No século V, durante o Concílio de Macon (São Gregório de Tours, “História Francorum”), e no Concilio de Trento, no século XVI discutiu-se se a mulher era um corpo provido ou desprovido de alma. Disponível em: http://joseboy.spaceblog.com.br/1649287/MULHER-NAO-TEM-ALMA/ Acesso em: 11 de setembro de 2014;

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3.2.2. A Divisão Sexual do Trabalho na Perspectiva Espírita, uma Introdução Crítica

Esta pesquisa buscou superar a categoria “sexo” comumente usada pelos/as espíritas, a qual parte de uma conotação meramente biológica156 para se justificar não só as diferenças sexuais da anatomia e da psicologia humana, como também as diferenças psicossociais e/ou psicomotoras. Estas diferenças sexuais (herdadas geneticamente ou adquiridas no contexto sociocultural) foram e continuam sacralizadas na literatura doutrinária espírita; são o resultado de um longo processo naturalização e divinização, onde se eclipsam as razões históricas (socioculturais) que condicionam e legitimam a proposta espírita de divisão sexual do trabalho, e são justamente as razões socioculturais que esta pesquisa buscou ressaltar. E como pretendi realizar uma análise antropológica e crítica, para não cair nas armadilhas de análises “românticas” ou pouco críticas, optei em utilizar a categoria de análise “gênero”, pois como Ivone Gebara (2010) afirma: Gênero não é o sexo genital, mas o conjunto de atribuições simbólicas dadas ao sexo das pessoas. Estas atribuições são aprendidas, ensinadas e transmitidas culturalmente de geração em geração. A noção de Gênero nos leva para além do sexo. Não nos fecha no sexo como condicionante absoluto, mas mostra que a partir da biologia fizemos cultura, e cultura sexista. (GEBARA, 2010, p. 18):

Assim, esta pesquisa pretendeu fazer, portanto, o caminho inverso da proposta sacralizante e naturalizante do Espiritismo: explicitar as razões históricas (socioculturais) das representações de gênero, que conforme Pierre Bourdieu (2012, p. 5) “é preciso realmente perguntar-se quais são os mecanismos históricos que são responsáveis pela des-historicização e pela eternização das estruturas da divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes”. Assim, para esta pesquisa, como para Joan Scott (1995), a opção pelo uso da categoria “gênero”, tem o duplo objetivo: primeiro, determinar o “caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” e, segundo, rejeitar o “determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual’” (SCOTT, 1995, p. 72). Como procurei demonstrar nos dois primeiros capítulos, as diferenças socioculturais (escolaridade, classe social, etnia, etc.) são aquelas que mais determinavam a assimetria entre

156 “Sexo biológico é definido a partir da percepção dos órgãos reprodutores que o indivíduo possui.” (BASTOS, 2012, p. 20)

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homens e mulheres, no movimento espírita, bem mais do que pretensas diferenças psicobiológicas ou psicomotoras (sensibilidade ou força física). Parafraseando Bourdieu (2012) posso dizer que aquilo que, na cosmovisão espírita, “aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização [do arbitrário]” (BOURDIEU, 2012, p. 5), ou seja, a proposta espírita de divisão sexual do trabalho, onde “homem se ocupe do exterior e a mulher do interior” (Kardec, 1995, p. 381) não é decorrência direta de um princípio universal (por ser homogêneo) e natural (por ser psicobiológico) mas, contraditoriamente, como Kardec afirma (1995 [1857], p. 380) é “resultado das instituições sociais”, família, a igreja, a escola, no dizer de Bourdieu, “instituições interligadas” com a competência de cristalizar e perpetuar (eternizar) algo relativo a determinado espaço-tempo- cultura, uma convenção social, como se fosse desde o princípio (eterno). E neste objeto de pesquisa, estas instituições estão realmente interligadas, pois o elemento “igreja” (centro espírita) entendido como concretização (institucionalização) de uma religião, no caso, o Espiritismo, foi sistematizado por um educador que baseou seu discurso pedagógico numa divisão sexual do trabalho tendo em vista um modelo de família burguesa do século XIX157. As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino. (BOURDIEU, 2012, p. 41)

Como, acima, Pierre Bourdieu afirma, existem “princípios de visão e de divisão” que buscam justificar as relações de gênero na sociedade, e é com o intuito de explicitar tais representações de gênero do Espiritismo que analisaremos as categorias a seguir.

3.2.2.1. A divinização das diferenças orgânicas e psicológicas

“- Dei o mundo ao homem, mas confiei a vida ao teu coração [mulher]”. (MEIMEI158 [Espírito]; XAVIER, [médium], 1971-a, p. 13).

O Espiritismo é uma doutrina teísta, e como tal, idealista por crer na pré-existência de um modelo ideal para toda a criação material. A origem deste modelo ideal é a sabedoria divina,

157 E não uma típica família da classe operária em que as mulheres vendem sua mão de obra para o sustento da família, muito embora Kardec tenha palestrado para famílias operárias em Lyon e Brotteaux, mantinha-se o mesmo modelo burguês de família: “A mulher sinceramente espírita só poderá ser uma boa filha, boa esposa e boa mãe de família” (Kardec, 2005 [1862], p. 41). 158 Ressalto que Bernardo Lewgoy (2001, p. 139) assim caracteriza a autora espiritual Meimei: “é o espírito feminino, bondosa e ligada ao lar, etc.”

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donde partem “todas as leis da Natureza”, as quais são “leis divinas, porque Deus é autor de todas as cosias” (KARDEC, 1995 [1857], p. 306). E em relação à dicotomia sexual da natureza humana, conforme explicam os espíritos a Kardec159, que Deus determinou funções especiais a cada sexo ao criar a dualidade sexual humana: “Ao homem, por ser o mais forte, os trabalhos rudes; à mulher, os trabalhos leves” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380) A afirmativa, acima, de Kardec não só justifica um passado de “abuso da força” 160 e de “rudeza” (caráter truculento, bruto e desajeitado) por parte dos homens, mas igualmente legitima seu o papel sexual na família e na sociedade em geral, referendando sua posição na divisão sexual do trabalho vigente, perpetuando tais “papéis naturalizados” (GONDIM; WEBER, 2011, p. 5) ou seja, posições em uma hierarquia sexual “pré-definidas para serem ocupadas por cada gênero” (SOUZA, 2013, p. 2). Em relação às mulheres, a assertiva parece ser conformadora por propor uma compensação: a falta de força física é compensada pela sensibilidade e delicadeza do caráter feminino, como se lê abaixo: Deus apropriou a organização de cada ser [sexo] às funções que deve realizar. Se deu à mulher menos força física, dotou-a, ao mesmo tempo, de uma maior sensibilidade em relação à delicadeza das funções maternais e a fraqueza dos seres confiados aos seus cuidados. (KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381)

Bem analisadas, as caraterísticas femininas elencadas por Kardec são antes de origem psicomotora e psicossocial, ou seja, são mais características condicionadas ou aprendidas culturalmente, do que psicobiológicas genéticas, herdadas ou inatas. Lembrando famosa afirmação de Simone de Beauvoir (1980), as mulheres não nascem mulheres, tornam-se mulheres, assim também os homens não nascem fortes, mais racionais ou líderes natos, mas são assim condicionados. Assim como Berger (1985, p. 48) afirma em relação às religiões em geral, o Espiritismo ao atribuir a Deus a causa da divisão sexual do trabalho legitima um fenômeno humano “em um quadro cósmico de referência”. Parece proposital na literatura doutrinária espírita, como retratei na unidade de análise anterior, a falta de clareza sobre até que ponto e o quanto é de origem natural ou divina esta divisão sexual do trabalho e quanto é humano, arbitrário e cultural.

159 “Obra que organiza uma coleta de dados, O Livro dos Espíritos não foi, como se afirmou, ditado pelos Espíritos - pois Kardec nunca foi médium – mas foi elaborado em colaboração com eles; dois especialmente o ajudaram: Z, e sobretudo, o Espírito da Verdade. É o resultado de uma enquete sobre o Além, ou mais exatamente sobre o Além francês, em 1855”. (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 44). 160 Para o espírito comunicante os homens estabeleceram um predomínio injusto e cruel que sobre as mulheres, constituindo-se em “abuso da força sobre a fraqueza”, contrariando a vontade de Deus que dera aos homens a força para protegerem o lado fraco, as mulheres, e não para o escravizarem (KARDEC, 1995 [1857], p. 380).

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Para o autor, a legitimação religiosa trabalha por preservar uma realidade socialmente objetivada ao “relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada” (BERGER, 1985, p. 48), como pode-se ler abaixo: A religião legitima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico. As construções históricas da atividade humana são olhadas de um ponto privilegiado que, na sua própria auto definição, transcende a história e o homem. [...] Provavelmente a mais antiga forma dessa legitimação consista em conceber a ordem institucional como refletindo diretamente ou manifestando a estrutura divina do cosmos, isto é, conceber a relação entre a sociedade e o cosmos como uma relação entre o microcosmo e o macrocosmo. (BERGER, 1985, p. 46)

Assim, o Espiritismo ao supervalorizar alguns caracteres psicobiológicos inatos161, e ao silenciar em relação às “atribuições simbólicas dadas ao sexo” (GEBARA 2010, p. 18) inculcadas durante os processos de socialização e formação das novas gerações, acaba por potencializar culturalmente as diferenças socioculturais entre os sexos. E assim, o Espiritismo naturaliza e diviniza a divisão de papéis sexuais entre homens e mulheres. Este é um ponto de convergência entre Peter Berger (1985) e Pierre Bourdieu (2012): o processo de naturalização e divinização de determinados aspectos socioculturais – a divisão sexual do trabalho, no caso em questão – é resultado de um processo de “legitimação cognoscitiva” (BERGER, 1985, p. 56) onde há a “transformação da história em natureza, do arbitrário cultural em natural” (BOURDIEU, 2012, p. 5). Para Clara Rodrigues Albuquerque Sousa (2013), o texto “Igualdade dos direitos do homem e da mulher” contido em “O Livro dos Espíritos” (KARDEC 1995 [1857], p. 380-381), quanto à igualdade de gênero “vai além, expressando um posicionamento altamente discriminatório, corroborando a ideia machista de posições pré-definidas para serem ocupadas por cada gênero” (SOUSA, 2013, p. 2). Da afirmação da autora, se depreende que o Espiritismo ao buscar justificar (legitimar) uma proposta de divisão sexual do trabalho onde as posições ou papéis sexuais estão pré- definidas por Deus, acabe corroborando na naturalização e divinização de uma “ideia machista”, ou seja, o Espiritismo finda reforçando certo arbitrário cultural, uma lógica androcêntrica que prioriza a força e a razão (atributos pretensamente masculinos) e, ao mesmo tempo, desvaloriza a sensibilidade e a delicadeza (considerados atributos femininos). Saffioti afirma que é próprio do senso comum acreditar que “originariamente, o homem tenha dominado a mulher pela força física”, e ela conclui: “Em sociedades de tecnologia

161 Sobre a força física, Saffioti (1987, p. 12) afirma: “Via de regra, esta é maior nos elementos masculinos do que nos femininos”.

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rudimentar, ser detentor de grande força física constitui, inegavelmente, uma vantagem.” (SAFFIOTI, 1987, p. 12). Os registros de Kardec (1995 [1857], p. 380) parecem se enquadrar nesta crença popular, pois denunciam que as diferenças sociais – assim como a ideologia que consagrava “a inferioridade moral da mulher” – era “resultado” não só das elaborações e práticas das instituições sociais, mas também “do abuso da força sobre a fraqueza”162. Assim, observa o codificador que a desvalorização feminina é resultante do domínio injusto e cruel que o homem impôs sobre a mulher, chegando ao ponto de escravizá-la. Parece Kardec conceber que uma imensa desigualdade separava os sexos; demonstra estar sensível com a condição feminina e incomodado em relação a “homens pouco avançados, do ponto de vista moral” e bem como com as sociedades que mantém práticas sexistas extremadas de “subjugação” das mulheres, classificando-as de bárbaras, mas reconhece163que “a força faz o direito” (KARDEC, 1995 [1857], p. 380-381). Ao contrário das sociedades que Kardec criticava, este esperava que o Espiritismo “dando a conhecer essas leis”164, desse sua contribuição para abrir a era da emancipação legal da mulher e bem como da igualdade e da fraternidade, a qual, conforme ele acreditava, seguiria o progresso da civilização (KARDEC, 1995 [1857], p. 380). Neste sentido, Jaci Regis (2001, s.p.) questiona o descompasso entre o pioneirismo e inovação de Kardec e o movimento espírita que o sucedeu: “Das duas uma: ou Kardec estava delirando, pensando num Espiritismo atuante, progressista e revolucionário ou os dirigentes espíritas não têm capacidade, disposição ou cultura para entender o que ele pretendeu para a Doutrina.”165

162 Jaci Régis (19??), sobre a origem da família, afirma ser curioso como se caracterizou, desde muito cedo na história da humanidade, “a posição do homem e da mulher na formação da família. A divisão do trabalho determinou posições específicas para cada um, estabelecendo a dependência da mulher em relação ao homem, devido, certamente, aos fatores da força física e do relacionamento sexual” (RÉGIS, 19??, p. 24). Aqui Régis correlaciona a força diferencial entre os sexos e divisão sexual do trabalho, e também Marco Aurélio Dias da Silva (2000) afirma não ter dúvidas sobre o “importante papel das causa da dominação masculina: a desproporcional diferença de porte e força física entre os gêneros e o fato de a criança humana [...] incapaz, por vários anos, de sobreviver sem a proteção e os cuidados da mãe [...] Com o início do bipedalismo, passaram as fêmeas da espécie a ter necessidade de alguém que as protegesse e fornecesse alimento suplementar a elas e aos filhos. Surgiu então o homem caçador [provedor] e protetor das mulheres.” (SILVA, 2000, p. 46-47) 163 Como na fábula de Esopo, “O Lobo e o cordeiro”, cuja moral é “contra a força, não há argumentos”. 164 Kardec se refere à cosmovisão espírita sobre a igualdade dos sexos, exposta na unidade de análise 3.2.1: O “sexo dos anjos”: da teoria metafísica às representações de gênero. 165 Na Argentina, Manoel S. Porteiro, de forma semelhante a Jacis Régis, defendia o “Espiritismo como doutrina revolucionária, querendo dizer com esta palavra que propõe ao homem [e à mulher] mudanças radicais na maneira de pensar e de atuar [...] Opunha-se a uma interpretação distorcida do Espiritismo, apresentando como uma religião, ou como uma ideologia conservadora, alienante [...]” (AIZPÚRUA, 1999, p. 153).

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Para o autor, a proposta kardequiana de emancipação da mulher deveria ser reconhecida, necessariamente, como direito adquirido, permanente e universal, uma vez que o codificador afirmara ser a “emancipação da mulher” um sinal de progresso e civilização (REGIS, 2001, s.p.). Tenho a forte impressão que no movimento espírita a contradição entre a emancipação feminina e a divisão sexual do trabalho, esta última sempre prevaleceu sobre a primeira. Kardec abrira, sim, a “era da emancipação legal da mulher”, buscando “a igualdade e a fraternidade”166, excluindo o sacerdócio exclusivamente masculino e desconstruindo ideologias sexistas que ou negavam à mulher uma alma ou era uma alma de segunda classe. Entretanto, continuadores da obra kardequiana, escritores como Léon Denis e Chico Xavier e o movimento espírita em geral, de forma conservadora, se apegaram mais na divisão sexual do trabalho, deixando que a emancipação feminina fosse consequência exclusiva do “progresso da civilização”. Kardec (1995 [1857], p. 380) ao buscar a conciliação de duas teorias um tanto antagônicas “a igualdade imanente entre os sexos” e “a desigualdade no exercício de papéis naturalizados no espaço público e privado” (GONDIM; WEBER, 2011, p. 5) acabou postulando uma teoria essencialista que referendava a ordem sexista vigente, e o movimento espírita sentindo se pressionado por forças sociais (por parte da política, religião oficial e da acadêmica, em especial a medicina) não ousara no sentido da emancipação feminina tanto quanto o movimento feminista, o qual lhe era contemporâneo, mas muito pelo contrário – como apresento na unidade de análise 3.2.2.3 – quando pode criticou dura e publicamente suas proposições. Esta contradição ou ambiguidade entre a defesa progressista da “igualdade de direitos” (daí a propositura da emancipação feminina) e a defesa conservadora de papéis sexuais (ou “funções”) naturalizados e sacralizados forjou e ainda fomenta na produção literária e no movimento espírita posturas contraditórias. Sobre tais contradições Luiza Zelesco (2013) critica: Tá certo, Kardec defende a igualdade de direitos e a emancipação da mulher, combate a violência praticada contra ela, além de incentivar que ambos se ajudem mutuamente - uma ideia de reciprocidade e de igualdade entre os sexos. Mas e essa história de funções? Trabalhos pesados pro homem e leves para a mulher, como assim?? Existem mulheres mais fortes que certos homens... como ficam elas? E essa história de exterior pro homem e interior pra mulher, então? O homem trabalha fora e a mulher fica em casa, é isso? Mas cuidar da casa é um trabalho muito mais pesado que muito serviço de escritório, que muito trabalho burocrático... Como resolver essas contradições? (ZELESCO, 2013, s.p.)

166 Importante lembrar que Kardec vivenciara os efeitos imediatos da Revolução Francesa, em seu pais natal, pode- se perceber isto quando cita parte do lema revolucionário “igualdade e fraternidade”.

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Percebe-se que Kardec (1995 [1857], p. 380) não estava atento para a heterogeneidade da espécie humana em termos de biótipos (estrutura orgânica) e nem para a diversidade cultural, a qual, de formas variadas potencializa as diferenças psicobiológicas entre os sexos, com alimentação167, experiências e exercícios168 diferenciados por sexo. Para Bourdieu (2012, p. 9), até as aparências psicobiológicas sofreram “um longo trabalho coletivo de socialização do biológico e ideologização do social” cujas consequências, bem reais, produziu nos corpos e nas mentes os efeitos de uma arbitrária divisão, “verdadeira construção social naturalizada (os "gêneros" como habitus sexuados)”. O escritor Rodolfo Calligaris é um exemplo de como o longo trabalho coletivo de “socialização do biológico e ideologização do social” produziu, não só, nos corpos e nas mentes, mas também nas relações sociais e institucionais, interna e externamente ao Espiritismo. Calligaris (2001 [1973], p. 47-48) como muitos/as espíritas, internalizaram “construção social naturalizada” de que a essência masculina é diferenciada da feminina. O autor confirma este posicionamento, ao alegar que as diferenças “não existem apenas no plano fisiológico, mas também do ponto de vista psicológico”, o que determina uma vocação profissional sexualmente diferenciada. Saffioti (1987, p. 12), ao contrário dos clássicos escritores espíritas, conhecedora das armadilhas ideológicas que separa homens e mulheres em naturezas diferenciada, adverte: “há exceções a esta regra. Variando a força em função da altura, do peso, da estrutura física da pessoa, há mulheres detentoras de maior força física que certos homens”. Se esta heterogeneidade dinâmica, flutuante e histórica das coletividades humanas dificulta a afirmação de uma natureza humana, que dirá de duas naturezas distintas? Para Marilena Chaui (2010, p. 223), para se afirmar que a existência de uma natureza (humana) ou que tal atributo (humano) é natural, deve antes passar pelos critérios de necessidade (necessariamente existe, ou seja, não pode deixar de existir e nem pode ser diferente do que é) e universalidade (está presente em todas as sociedades e em todos os

167 Saffioti (1987, p. 68) reclama que num contexto ideológico androcêntrico se “prescreve que os homens devem comer bastante e, as mulheres, pouco, pois os primeiros devem ser fortes e, as segundas, frágeis [...] induz as mães a alimentarem, seja através do aleitamento ao seio, seja com outros alimentos, mais os bebês homens que os bebês mulheres”. 168 Saffioti (1987, p. 14) afirma ainda que “as maiores probabilidades de se desenvolver a inteligência de uma pessoa que frequenta muitos ambientes, o que caracteriza a vida de homem, em relação a pessoas encerradas em casa durante grande parte do tempo, especificidade da vida de mulher. [...] Em ficando em casa todo ou quase todo o tempo, a mulher tem menor número de possibilidades de ser estimulada a desenvolver suas potencialidades. E dentre estas encontra-se a inteligência”.

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tempos). E conclui: “a ideia de natureza humana como algo universal, intemporal e existente em si e por si mesma não se sustenta [...] Porque os seres humanos são culturais e históricos”. Os/as autores/as espíritas sempre acreditaram que esta “igualdade” não seria absoluta ou incondicional, mas seria uma igualdade relativa, pretensamente pré-determinada por uma programação divina de reencarnar alternadamente em ambos os sexos e até atingir a perfeição, ou seja, o sexo biológico, a cada nova encarnação, é que seria determinante das novas características comportamentais dos indivíduos, não se levando em desconsideração os aspectos socioculturais, ou seja, históricos. Tendo o Espiritismo surgido no auge da Revolução Industrial, onde as máquinas (primeiro a vapor, depois movidas por energia elétrica e motores a combustão) desempenhavam os trabalhos mais pesados, não se poderia, senão ideologicamente, alegar que a relativa incapacidade de levantar pesos atribuída às mulheres e assim legitimar seu isolamento do mundo do trabalho, no recesso do lar. E há ainda é preciso que se leve em conta a existência de condições temporárias ou permanentes, como doenças ou deficiências que podem tornar os homens mais fracos ou inaptos para certos trabalhos, e que podem bem ser substituídos por mulheres. E bem como relegar aos homens o permanente exílio no mundo do trabalho, cada vez mais leve, cada vez mais intelectual (burocrático) do que braçal. A pretensa menor “sensibilidade em relação à delicadeza das funções maternais” atribuída aos homens por Kardec (1995 [1857], p. 380) justificaria tal exílio das funções paternas ou do trabalho doméstico? Ou apenas reforça uma cultura machista que traz privilégios aos homens e prejuízos às mulheres? Certamente é ideológico e, portanto sociocultural a crença de que o trabalho doméstico é mais leve do que aquele desempenhado pelos homens, em determinadas funções no comércio e na prestação de serviços por exemplo, como Luiza Zelesco (2013, s.p.) denuncia ser o cuidado com casa, um trabalho muito mais pesado que muitos ocupações burocráticas, comumente masculinas. Para Saffioti (1987, p. 12), “a menor força física da mulher em relação ao homem não deveria ser motivo de discriminação. Todavia, recorre-se, com frequência, a este tipo de argumento, a fim de se justificarem as discriminações praticadas contra as mulheres”. Daí o caráter androcêntrico da naturalização dos papéis sexuais proposto pelo Espiritismo, que ao contrário do que previa Kardec (1995 [1857], p. 381): “Todo privilégio a um ou a outro [sexo] concedido é contrário à justiça”, o movimento espírita parece haver privilegiado os homens na hierarquia de funções em detrimento das mulheres.

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Marcia Rodrigues (2011), embora ainda mantenha um pensamento dicotômico em relação a finalidades diferenciadas sexualmente, critica o posicionamento dos/as espíritas, pois segundo ela, nem sempre as mulheres são mais suaves, como nem sempre os homens são mais racionais: podendo um executar a tarefa do outro, sem que se invertam as finalidades da vida de cada qual. [...] Que cada um faça aquilo que melhor sabe fazer, sem problema. Evidentemente isto exige evolução: esquecer os papéis sociais, tão distorcidos nesta civilização, e assumir com o coração que nem sempre o princípio feminino, mais suave, está exatamente na fêmea... assim como nem sempre a atitude mais ativa e racional será do macho. Neste momento do planeta as coisas se misturam e só parecem confusas devido à nossa relutância em deixar de parecer e apenas ser. (RODRIGUES, 2011, s.p.) [Grifos meus.]

A atualização que faz Marcia Rodrigues (2011) em torno da discussão de gênero em “O Livro dos Espíritos”, é fundamental até porque este continua sendo um grande best seller, devido ser a obra fundante do Espiritismo, é largamente presenteado por espíritas a simpatizantes ou estudado sistematicamente nos centros espíritas, embora sua proposta de divisão sexual do trabalho pareça um tanto anacrônica com os valores e as práticas atuais da sociedade. Está bastante evidente no pensamento espírita uma visão antropológica que estabelece e delimita os papéis masculinos e femininos. Assim, isto coloca o Espiritismo no bojo comum das religiões, que conforme Nunes (2005, p. 363) afirma, “definem 'a natureza humana' como resultado de uma determinação divina intocável”. E é “intocável” porque é uma revelação (sagrada) feita por espíritos superiores junto ao codificador e médiuns consagrados/as, e ao final de contas, foi Deus quem criou a humanidade polarizada sexualmente, não há como se opor a isto. Para alguns/mas adeptos/as não há como questionar, então toma-se essa visão antropológica como um dogma169. São ambos um corpo só, Em doce consagração. Se o homem é a cabeça, A mulher é o coração. [...] Se a mulher é sentimento, Se o homem é luta e ação, Devem ambos ser unidos No plano da educação. (CASIMIRO CUNHA [Espírito]; XAVIER, [médium], 1971, p. 132-133)

169 Questionar “nos faz necessariamente heréticos aos olhares mais ortodoxos, também em relação ao Espiritismo o mesmo ocorre, como duvidar da credibilidade nacional e internacionalmente conferida a Chico Xavier e seu mentor espiritual Emmanuel” (BRADBURY, 2010, p. 21).

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3.2.2.2. A mulher-mãe e o pai-provedor

Em 1981, Deolindo Amorim (p. 122) perguntava: “Estaria a Doutrina querendo restringir o campo da ação da mulher ao âmbito exclusivamente doméstico, como se entendia antigamente?” A resposta deste autor espírita é que Não devemos interpretar o pensamento da Doutrina no sentido terra-a-terra. A expressão cuidar das “coisas internas” não quer dizer que a mulher deva ser exclusivamente dona-de-casa, o que seria um despropósito nos dias presentes, pois os campos de atividade estão igualmente abertos ao homem e à mulher. Todavia, cabe à mulher umas tantas responsabilidades [...] pela sua condição de esposa, filha ou mãe. (AMORIM, 1981, p. 122)

Deolindo Amorim como muitos autores e autoras espíritas deixa de expor as responsabilidades dos homens como pais, esposos e filhos. A dupla jornada de trabalho, quando permitida e explicitada nos textos doutrinários, por vezes, é tão somente para elas. Divaldo Pereira Franco, numa entrevista sobre as “Atividades Familiares, Espíritas e Profissionais da Mulher”, respondendo à pergunta: “como conciliar a atividade profissional da mulher com os deveres de esposa, mãe e espírita?”, foge ao essencialismo das tradicionais representações de gênero e denomina de machistas tais posicionamentos que limitam a esfera de atuação da mulher ao lar e do homem ao papel de provedor: Estamos habituados a achar que os deveres da família são da mulher e que ela deve estar sempre presente em casa para atender os filhos. Certamente essa é uma imposição machista. Os pais são responsáveis, na mesma condição de igualdade pela educação dos filhos. [...] É necessário que o homem compreenda que, para a preservação da família, não somente a questão financeira é importante. (FRANCO, 1994, p. 39)

Parece ser Divaldo P. Franco, quem foi realmente o pioneiro da emancipação da mulher na literatura espírita – enquanto tantos autores espíritas reproduziam e reforçavam em seus textos a ordem social vigente, em relação às questões de gênero, e apenas protelavam para um futuro indefinido tal emancipação feminina – pois é o primeiro a reconhecer que a antiga divisão sexual do trabalho camuflava relações de opressão da mulher, a qual segundo ele, é “uma imposição machista”. Assim, é também quem mais se aproxima de uma proposta de “mesma condição de igualdade” entre os sexos. Divaldo P. Franco não se utiliza dos critérios deterministas: biológico e/ou sagrado, mas propõe outro parâmetro, o “equilíbrio”, ou seja, “Quando a mulher programa uma família com o seu companheiro ideal, com o seu esposo” (FRANCO, 1994, p. 38), usando da conciliação e o diálogo, busca uma divisão sexual do trabalho mais personalizada para o casal. Em seu texto, desaparecem as estereotipias que enquadravam todos, mas deixavam muitos de fora. E que mais faziam limitar homens e mulheres no exercício e no desenvolvimento integral

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do ser. Deduz-se, assim de sua proposta, que nem todas as mulheres precisam se restringir às tarefas domésticas – só aquelas que chegarem a este consenso com seus maridos – e, assim como nem todos os homens devem se restringir ao trabalho fora e ausentar-se do lar. Também desaparece o tom exagerado de que só as mulheres são as redentoras da família, de que só elas devem renunciar ao espaço externo. Divaldo P. Franco também destoa da maioria dos/as autores/as espíritas ao responsabilizar igualmente o homem pelo sucesso ou fracasso do lar, assim, já não é só a mulher a culpada. Então vemos a mulher competindo... a competição é valiosíssima. A mulher nasceu para o lar... Quem foi que disse que a mulher nasceu para o lar? Ela nasceu para a vida. Então ficar em casa lavando roupa, quando tem lavadeiras elétricas? Joga na máquina e vai trabalhar [...] Jesus é o grande impulsionador dessa realidade que é o coração feminino. (FRANCO, [201?])170

Diferente da proposta de Divaldo P. Franco, a ambiguidade e a contradição dominam a literatura espírita, pois se por um lado, condenam todo privilégio (KARDEC, 1995[1857], p. 381) por outro lado, privilegiam distintamente os sexos com papéis diferenciados. A manutenção de uma divisão sexual do trabalho, onde só é cobrado das mulheres as responsabilidades do lar, que se arrasta até os dias atuais, constitui-se um privilégio do elemento masculino em detrimento do elemento feminino. Esta concepção está bem definida na expressão: “É preciso que cada um esteja no seu devido lugar; que o homem se ocupe do exterior e a mulher do interior, cada um de acordo com sua aptidão.” Kardec (1995 [1857], p. 380) Sobre esta tradicional divisão sexual do trabalho, descreve Bourdieu: Cabe aos homens, situados do lado do exterior, do oficial, do público, [...] realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, [...] que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, [...] veem ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela razão mítica, [...] os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes. (BOURDIEU, 2012, p. 41)

Em alguns momentos o movimento espírita foi muito conservador e juntou-se a pressões sociais da Igreja e da classe médica na manutenção da divisão sexual do trabalho. Tal como Carlos Eduardo Marotta Peters afirma: Assim como o controle da conduta dos homens, que buscava preservar seu papel de provedor do lar, a vigilância e normalização da conduta feminina objetivava preservar a família, mantendo a mulher em sua função de reprodutora e perpetuadora. (PETERS, 2012, p. 4)

Sobre a inversão de papéis, Kardec neste sentido foi igualmente conservador ao não recomendá-la, pois afirmava que as mulheres “não podem senão perder na troca”, pois “a

170 Transcrição de palestra publicada no site: “You tube”. Cf. em Referências.

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mulher com maneiras muito viris”, e “que se faz homem”, para ele, abdica do “encanto que fazem o poder daquela que sabe permanecer mulher” (KARDEC, 2004 [1867] p. 4). Mais explícito e conservador de que Kardec, Rodolfo Calligaris (2001 [1973]) considera que o sucesso do matrimônio seja o cumprimento de uma bem definida e tradicional divisão sexual do trabalho, onde Ao marido, como chefe da família, incumbe: 1. O governo da casa, compreendido como tal a fixação de normas disciplinares [...] 2. A administração do patrimônio familial [...] 3. Apoio e proteção mulher, reconhecendo-a como igual em dignidade e direitos. A mulher, por sua vez, cabe: 1. Cooperar com o marido e prestigiá-lo em tudo quanto diga respeito à direção e ao bem-estar da casa. 2. Criar um ambiente acolhedor, não só pelo asseio e bom gosto dos arranjos caseiros, como principalmente pela atmosfera de afetividade com que envolverá o companheiro e a futura prole. 3. Submissão e deferência ao marido, já que a família, sendo um grupo societário, não pode prescindir de uma autoridade que por ele responda, e esta pertence ao homem, naturalmente mais apto para exercê-la. (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 43-44)

Para o autor, cabe ainda ao marido a “manutenção condigna”, de “prover os meios por seu trabalho”, enquanto à mulher cabe, “se não puder contribuir para o aumento da receita” – aqui, a concepção do trabalho feminino é tão somente complementar, não podendo ser de outra forma – deverá “saber economizar na despesa, suprimindo gastos supérfluos”171 (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 44). O trabalho feminino, aqui, não se constitui como regra, mas como simples concessão: “se esposas, conquanto continuem a ser mães e donas de casa”, daí poderão ter “uma participação mais ativa e consciente nos acontecimentos da vida comunitária, nacional ou mesmo internacional.” (CALLIGARIS, 2001 [1973], p. 45) Para Pierre Bourdieu (2012) A divisão entre os sexos parece estar "na ordem das coisas", como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas"), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU, 2012, p. 17)

Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade, sob forma de divisória, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados segui-o essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas. (BOURDIEU, 2012, p. 20)

171 Quanto a esta função feminina (a economia doméstica), a educação das meninas dada pela sociedade por vezes insistiu no oferecimento desta disciplina no sistema de ensino.

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Com as contribuições de Bourdieu pode-se concluir que também as representações de gênero no Espiritismo vieram legitimar a “divisão entre os sexos” – que já existia na sociedade mais ampla, alicerçada em outras cosmovisões – a partir de outro paradigma metafísico, de que o espírito não tem sexo, que reafirmou o espaço masculino como externo (público), o macrocosmo do trabalho e circunvizinhanças, e o espaço feminino como interno (privado), o microcosmo doméstico. Esta ideologia sexista, como construção social é “estruturada”, mas ao cumprir a função de reprodução social, torna-se “estruturante”, e como Bourdieu afirma, cria-se uma “relação circular” (BOURDIEU, 2012, p. 20) que mutila os corpos e desperdiça potenciais (SAFFIOTI, 1987; ALTHUS-REID, 2005; FINE, 2012) ao limitar e desestimular, por exemplo, a sensibilidade nos homens e a liderança e o raciocínio matemático nas mulheres.

3.2.2.3. Feminismo e a inversão de papéis sexuais

Com Jesus, começou o legítimo feminismo. Não aquele que enche as mãos de suas expositoras com estandartes coloridos das ideologias políticas do mundo, mas que lhes traça nos corações diretrizes superiores e santificantes. (EMMANUEL [Espírito]; XAVIER, [médium], 1971-a, p. 181)

Ana Blume (s.d., s.p.) afirma que apesar dos inúmeros benefícios conquistados pelo movimento feminista, “muitos [autores espíritas] o consideram «extremista», «agressivo», «desnecessário». Porém, como espíritas e estudiosos, devemos ter outra abordagem porque [somos] melhor esclarecidos.” O que reclama a autora é que alguns textos espíritas, franceses e brasileiros, não só foram conservadores em relação à divisão sexual do trabalho vigente como também combateram a inversão de papéis sexuais, representada pela ameaça do movimento feminista nascente. Para Dalva Silva Souza (2007, p. 30), possivelmente, tais textos ou “interpretações originem no meio espírita um discurso de defesa da família organizada nos moldes tradicionais, com investidas contra os movimentos [feministas] que defendem os direitos da mulher” [Grifo meu]. A postura ética da autora, a conduz no sentido de respeitar esta opinião, entretanto afirma: “mas o Movimento Espírita não pode ser dogmático. A Doutrina propõe liberdade e conscientização, não apoia generalizações extremistas e inflexíveis.” (SOUZA, 2007, p. 30) Semelhante ao posicionamento de autores/as espíritas, Jane Soares de Almeida (1998) afirma que nas revistas femininas do início do século XX,

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se combatia o feminismo, que era considerado uma loucura de algumas mais afoitas, e o contrapunham à feminilidade, “qualidade que deveriam ter todas as mulheres”, classificando o movimento feminista europeu e norte-americano como um fator de desequilíbrio social. (ALMEIDA, 1998, p. 34)

A Revista Espírita, fundada e publicada sob a direção de Kardec172 também muito contribuiu para reforçar o modelo de feminilidade vigente em contraposição a uma pretensa “masculinização” das mulheres, o que pode ser comprovado em textos que usam argumentos que naturalizavam e sacralizavam um ideal de feminilidade, determinado no tempo e no espaço, e destaco este: A mulher, sobretudo, sabe-se fazer notar pela delicadeza de seus pensamentos, a graça de seus gestos, a pureza de suas palavras; tudo o que vem dela deve-se harmonizar com a sua pessoa, que Deus criou bela. Seus longos cabelos, que ondeiam sobre seu pescoço, são a imagem da doçura, e da facilidade com a qual sua cabeça se dobra sem romper sob as provas. Refletem a luz dos sóis, como a alma da mulher deve refletir a mais pura luz de Deus. Jovens, deixai vossos cabelos flutuarem; Deus os criou para isso: parecereis, ao mesmo tempo, mais naturais e mais ornadas. (KARDEC, 2004 [1858], p. 512)

50 anos mais tarde, Leon Denis (1995 [1903]), aplicado continuador das ideias de Kardec, ainda na França, reafirmaria a crítica espírita ao feminismo, que segundo ele, exagerava em suas metas, desnaturalizando as mulheres e assim tornando-as não mais do que simples cópia, mera paródia do homem: Uma reação, porém, já se vai operando. Sob a denominação de feminismo, um certo movimento se acentua legítimo em seu princípio, exagerado, entretanto, em seus intuitos; porque ao lado de justas reivindicações, enuncia propósitos que fariam da mulher, não mais mulher, mas cópia, paródia do homem. O movimento feminista desconhece o verdadeiro papel da mulher e tende a transviá-la do destino que lhe está natural e normalmente traçado. (DENIS, 1995 [1903], p. 78)

Já no Brasil, em 1935, em entrevista concedida para “O Globo”, Chico Xavier transmite a opinião173 do espírito Emmanuel sobre o feminismo: “A mulher não precisa masculinizar-se. Precisa educar-se, dentro da sua feminilidade” (XAVIER [médium]; EMMANUEL [espírito], 1982 [1935], p. 92). E na mesma entrevista, frisa o autor espiritual que o papel sexual da mulher não pode ser invertido, pois deve corresponder à sua natureza divina (na “forma admissível ao seu sexo”):

172 A presente pesquisa ficou restrita às edições da Revista Espírita de 1858 a 1869, pois tive acesso somente às edições impressas em língua portuguesa pela Federação Espírita Brasileira (FEB) em 2004, e disponíveis no site da mesma. Faço, também, menção à edição de 1896 e de 1910, na próxima unidade de análise (3.2.2.3) ao citar a pesquisa de Marion Aubrée e François Laplatine (2009). 173 No que tange a abrangência e autoridade das representações de gênero espíritas, é interessante destacar seguinte ressalva, atribuída ao espírito de Humberto de Campos (?): “Na resposta [do espírito Emmanuel], não está explícito propriamente um pronunciamento geral dos “Espíritos”, como pede a pergunta [— Qual a opinião dos Espíritos sobre o feminismo?]. Como, porém, o guia não faz restrição alguma às suas palavras, parece-nos que pode aceitá-las como um ponto de vista coletivo. E este, como se verá, não é de todo favorável ao sentido tomado pelas chamadas conquistas feministas no panorama contemporâneo.” (XAVIER, médium; EMMANUEL, espírito, 1982 [1935], p. 92).

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— A mulher deve colaborar com o homem, de forma admissível ao seu sexo, nas variadas esferas de sua atividade. Mas não compreendemos como legítimo esse movimento de masculinização espetaculosa, preconizada por inúmeros orientadores do mau feminismo, os quais iludem a mulher quanto às suas obrigações no seio da coletividade. (XAVIER, [médium]; EMMANUEL [espírito], 1982 [1935], p. 92).

Cinco anos depois, o mesmo autor espiritual volta a defender a tradicional divisão sexual do trabalho - sendo que às mulheres caberiam as ações restritas ao lar, entendidas como “feminismo legítimo” - e contra o ideário de um “mau feminismo” que propunha ações contraproducentes fora do lar, tal como entendiam os espíritos comunicantes e também alguns/mas adeptos/as espíritas: Se existe um feminismo legítimo, esse deve ser o da reeducação da mulher para o lar, nunca para uma ação contraproducente fora dele. É que os problemas femininos não poderão ser solucionados pelos códigos do homem, mas somente à luz generosa e divina do Evangelho. (EMMANUEL [Espírito] e XAVIER, [médium], 1945 [1940], p. 48)

Tal como na bibliografia espírita, as revistas femininas, no início do século passado dirigidas às senhoras ricas e elegantes – cuja maioria de artigos era escrito pela “lavra masculina”, ou seja, “as revistas e jornais estavam em poder dos homens” (ALMEIDA, 1998, p. 36), daí serem “mundanas, leves e veiculavam valores burgueses” (ALMEIDA, 1998, p. 34) combatiam o movimento feminista e rejeitavam suas teses, pois eram consideradas como um fator de desintegração da família e degeneração da sociedade. Também para Jaci Régis (RÉGIS; NOBRE; GIROLAMO, 1989 [1975], 25) o “excesso de muitas feministas” representa uma ameaça à instituição “família”, pois, segundo ele, muitas feministas “chegam a repudiar as relações sexuais, entendendo-as como forma de dominação masculina e rechaçam o casamento e os filhos”. Igualmente Marlene S. Nobre (1989 [1975]), coautora da obra “A Mulher na Dimensão Espírita” com Jacis Régis e Nancy Girolamo, adverte sobre os exageros danosos do mau feminismo: Certamente, não podemos nos escravizar ao feminismo que enverga bandeiras políticas e sociais para defender princípios, [...] que se chocam com os ensinamentos básicos da Doutrina. [...] Nos movimentos feministas existem as exageradas, aquelas que empunham estandartes, realizando comícios, com dizeres pouco lisonjeiros "Abaixo o soutien"; 'Homens na cozinha", etc., etc. (RÉGIS; NOBRE; GIROLAMO, 1989 [1975], p. 66; 79; 83-84)

Rodolfo Calligaris (2008 [1967])174, como afirmei anteriormente, é um exemplo do conservadorismo espírita em relação à emancipação feminina, pois, passados 110 anos da publicação de “O Livro dos Espíritos” continuava reforçando que a mulher não pode subverter as funções que Deus lhe destinou, “masculinizando-se”:

174 Sua obra, “A vida em família”, em 2008 atingia mais de 190.000 exemplares vendidos.

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Querendo, talvez, compensar-se do longo período de escravização a que foi submetida, a mulher moderna está agora cometendo um grave erro: o de subestimar ou mesmo rejeitar a sublimidade das funções que lhe foram destinadas pela Providência, masculinizando-se no pior sentido. (CALLIGARIS, 2008 [1967], p. 146)

Digno de nota é que espíritos que assinam nomes femininos também reclamem do “mau feminismo”, aquele que tira a mulher de sua função doméstica, de sua função materna, como pode-se verificar na mensagem do espírito de Eugênia Braga: As ilusões políticas, a concorrência profissional, os venenos filosóficos invadiram os lares. [...] O mau feminismo é aquele que promete conquistas mentirosas, perdido em pregações brilhantes para esbarrar, mais tarde, em realidades dolorosas. Reconhecemos, porém, que o feminismo, esse que integra a mulher no conhecimento próprio, é o movimento de Jesus, em favor do lar, para o lar e dentro do lar. (BRAGA[espírito]; XAVIER [médium], 1971, p. 185-186.)

3.2.2.4. Direitos iguais, sim, funções (papéis sexuais), não.

Em termos de direitos políticos o Espiritismo, sim, deu algum incentivo para a discussão do sufrágio universal, assim contemplando a outra metade da humanidade que estava à margem dos processos democráticos, as mulheres. Em 1857, o texto kardequiano marcava a igualdade de direitos (políticos) para homens e mulheres, ao prescrever: “A lei humana, para ser equitativa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e da mulher.” (KARDEC, 1995 [1857], p. 381). Em 1867, dez anos após o lançamento de “O Livro dos Espíritos” – e bem próximo de seu desencarne (31 de março de 1869) – Kardec escreve um artigo que apresenta duas experiências políticas que, naquele ano, chamavam atenção para o voto feminino: nos Estados Unidos, um dos estados do Oeste, “o Wisconsin, deu o direito de sufrágio às mulheres de mais de vinte e um anos” (2004 [1867], p. 1) e na Inglaterra, onde o congressista Stuart Mill defendia “a liberdade eleitoral a uma parte muito grande da população, atualmente excluída do seio da constituição, isto é, as mulheres.”, verdadeira contradição, pois os parlamentares “acham monstruoso que as mulheres votem, mas muito natural e perfeitamente simples que elas reinem!” (apud Kardec 2004 [1867], p. 117 ) Marion Aubrée e François Laplatine afirmam que o Espiritismo – ao menos teoricamente – esteve engajado, como pioneiro, no movimento de emancipação legal da mulher. Para comprovar tal fato citam as publicações de 1896 e 1910 da Revista Espirita, onde se “propõe que as mulheres participem das eleições (‘o sufrágio político, dito universal, só o será realmente quando admitir o voto feminino’)” (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 96).

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Também no Brasil o movimento espírita demonstrou “grande preocupação com o voto e participação dos espíritas” e das mulheres espíritas durante a Era Vargas, “podendo-se identificar em vários números, de 1933 e 1934 do jornal Mundo Espírita, onde se encontram publicadas orientações de como proceder para alistar-se” (COSTA, 2001, p. 120). Na disputa do campo religioso – pela liberdade de culto – e, naquele momento, também pelo campo da medicina – pelo direito de exercer práticas de saúde alternativa: homeopatia, desobsessão, passes, água fluidificada, etc. – o Espiritismo enxergava no voto a possibilidade de maior representatividade junto ao governo, desfazendo a hegemonia católica: O discurso espírita mais comum sobre política aborda as tentativas de ingerência dos membros da hierarquia católica junto aos governantes. Identificam isso quando nas reuniões das Assembleias Constituintes e, a partir da década de 1930, nas eleições, que tomam outro significado pelas alterações feitas pelo governo provisório, como voto secreto, voto feminino entre outras. (COSTA, 2001, p. 116) [Grifos meus].

Assim pode-se afirmar que o “voto feminino” estava no bojo das reivindicações espíritas de modo que evitasse os “Destinos da Nação”, caíssem “sob o domínio do clero retrógado e ambicioso” e por isso a imprensa espírita, em 1934 e 1947, fazia “propaganda política com fotografias de candidatos espíritas, alertando os eleitores que espírita deve votar em espírita” (COSTA, 2001, p. 121). Assim, o Espiritismo que defendia o voto feminino, mantinha um posicionamento bem diferente de algumas correntes teóricas “positivistas e higienistas” que fortemente influenciavam a sociedade republicana brasileira: Porém, a implantação do regime no País, em que pesem algumas mudanças sociais, não alterou o papel de subordinação feminina e as mulheres tiveram, inclusive, negado o direito ao voto pelo governo republicano. O principal argumento era que a inserção na vida política contaminaria a sua pureza e esta era necessária para manter o lar brasileiro longe das torpezas públicas. (ALMEIDA 1998, p. 32)

Conforme Maria Luzia Miranda Álvares (2012), que defendera sua dissertação de mestrado sobre as mulheres paraenses e o voto feminino: em 1931, foi criado o Núcleo Paraense pelo Progresso Feminino, integrado à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Muitas sufragistas dessa época foram criticadas pela imprensa, os escritos dos jornais dessa época são terríveis o que demonstra que a luta não fora pacífica” (ÁLVARES, 2012, s.p.)175

A autora informa que embora composto majoritariamente de líderes espíritas, este núcleo feminista não pertencia ao movimento espírita, e contava também com uma líder católica “à frente da associação feminista” onde se identificam “mulheres com expressão no meio das letradas”:

175 DIARIOONLINE. O direito ao voto feminino comemora 80 anos. 12/08/2012. Disponível em: < http://www.diarioonline.com.br/noticia-214689-o-direito-ao-voto-feminino-comemora-80-anos.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.

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Do registro dos nomes das sufragistas paraenses à frente da associação feminista, identificam-se mulheres com expressão no meio das letradas: Elmira Ribeiro Lima, jornalista, militante e conferencista espírita, (tia de Orminda Ribeiro Bastos); Feliz Benoliel de Cavaco, espírita, descendente de judeus, professora de piano (casara-se com o jornalista gaúcho Carlos Cavaco, contrariando a orientação familiar e étnica); Corina Pegado, filha do sindicalista Luiz Martins e Silva (solicitante, em 1929, do seu alistamento eleitoral, indeferido pelo Juiz Federal paraense). Desse grupo, pode- se identificar, ainda, Cloris Silva, espírita (ligada à Confederação Espírita "Caminheiros do Bem" dirigida por Elmira Lima), professora primária, exercendo atividades no Instituto Vieira (das professoras Joventina e Hilda Vieira); Helena Souza, professora de piano, do Instituto Carlos Gomes, jornalista, líder católica. (ÁLVARES, s.d., s.p.) [grifos meus].

Quantas destas mulheres seriam realmente espíritas? E quantas não? Quantas perfaziam dupla pertença religiosa? Pois conforme as autoras Messias e Vilela: muitas mulheres, ao mesmo tempo em que se envolviam com o Espiritismo/espiritualismo, também se envolveram em movimentos sociais contestadores: socialismo, sufragismo, reivindicações trabalhistas, entre outros, passando a representar uma ameaça ao status quo. (MESSIAS e VILELA, 2011, s.p.)

O certo é que, no meio paraense pairavam “dúvidas de uma provável ‘dissolução familiar’ permearam as opiniões dos anti-sufragistas, acompanhando os comentários gerais da sociedade brasileira” (ALVARES, s.d., s.p.). E quantos destes varões do Pará contrários à causa emancipacionista eram espíritas ou simpatizantes? Que o Espiritismo defendia o direito ao sufrágio universal é fato, ponto. Entretanto, para Kardec (1995 [1857]; 2004 [1867]) a emancipação da mulher não era ilimitada, considera Kardec: “Mas da igualdade dos direitos [políticos] seria abusivo concluir a igualdade das atribuições” (2004 [1867], p. 118). O que Kardec está considerando como “atribuições” são os papéis sociais, e isto está ligado a direitos civis, o que torna a mulher como uma cidadã de segunda classe... Ou seja, a emancipação feminina ou a concessão de igualdade de direitos proposta pela Doutrina Espírita não deve ultrapassar as atribuições da “posição social que lhe cabe”, a de irmã, esposa e mãe. Para entender melhor isto transcrevo a questão de número 822-a, onde Kardec indaga aos espíritos sobre a igualdade de direitos: Assim, uma legislação, para ser perfeitamente justa, deve consagrar a igualdade dos direitos entre o homem e a mulher? – De direitos, sim; de funções, não. [...] A lei humana, para ser justa, deve consagrar a igualdade dos direitos entre o homem e a mulher; todo privilégio concedido a um ou a outro é contrário à justiça. [...] os Espíritos podem encarnar em um ou outro, não há diferença entre eles nesse aspecto e, consequentemente, devem desfrutar dos mesmos direitos. (KARDEC 1995 [1857], p. 381) [Grifos meus].

Para Nancy Puhlman di Girolamo (RÉGIS; NOBRE; GIROLAMO, 1989 [1975], p. 104), direitos e funções são frequentemente confundidas. Para a autora direitos “são

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reconhecimentos oficiais, conquistas socioculturais” e funções “são exteriorizações qualitativas advindas do biopsiquismo”; sendo que a igualdade de direitos entre os sexos “é meta inarredável”, mas a igualdade de funções é “impossível”, pois para ela, “os homens não podem ser mães inapelavelmente.” (1989 [1975], p. 106), sendo função básica atribuída só à mulher. No pensamento da autora “todas as projeções da mulher na vida social, direta ou indiretamente, são projeções ‘maternais’” mesmo que a mulher nunca “conceba ou desenvolva um filho em seu próprio corpo.” (RÉGIS; NOBRE; GIROLAMO, 1989 [1975], p. 106).

3.2.2.5. Um duplo modelo mariano: Kardec ou Roustaing

Como tratei no capítulo primeiro, a Doutrina Espírita em parte é resultado de sincretismos religiosos que, por sua vez, foram o resultado de revisões constantes de religiões vivas e outras já extintas. Dado o esforço de Kardec e outros pensadores espíritas em fazer releituras das tradições cristãs conforme a perspectiva espírita, isto acabou possibilitando a criação de duas versões da concepção de Maria, uma pelas vias naturais de reprodução sexual (entre José e Maria), defendida por Allan Kardec, e outra muito próxima da original (cristã), a concepção milagrosa pelo espírito santo, só que a gravidez de Maria teria sido apenas psicológica, e Jesus não teria tido um corpo material, tese defendida por Jean-Baptiste Roustaing (1805 - 1879), tal como descreve Arribas: O ponto mais candente das teses de J.-B. Roustaing asseverava que Jesus não nascera pela carne, mas que viera desempenhar sua missão revestido de um "corpo fluídico", porém tangível. Segundo essa teoria, a gravidez e o parto de Maria fugiram às leis que regulam tais fatos. Em sua mensagem, o anjo Gabriel lhe explicara sua incumbência extraordinária sem esclarecer detalhes. A partir de então, o ventre de Maria começou a estufar e ela se acreditou fecundada. Mas tudo não passava de uma encenação montada pelos espíritos para manter as aparências. Durante nove meses Maria sentiu os sintomas de uma gravidez qualquer. Na hora do parto encontrava-se sozinha. "Magnetizada" pelos espíritos, ela teve uma vertigem e perdeu os sentidos. Ao despertar, encontrou ao seu lado um recém-nascido. (ARRIBAS 2008, p. 113)

J. Herculano Pires (apud RIZZINI176, s.d., s.p.) critica a obra de Roustaing onde Jesus e Maria são transformados em mistificadores (embusteiros) que tramaram uma falsa gravidez; um falso parto; falsa alimentação, pois “Jesus-menino fingindo que sugava o seio da mãe e devolvendo-lhe magicamente o leite aos vasos sanguíneos em forma de sangue”; falsas morte

176 Disponível em: < http://www.herculanopires.org.br/apostolo-abertura/343-verbocarne.>. Acesso em: 20 fev. 2014.

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e ressurreição, pois, para Roustaing, Jesus era um agênere, uma criatura não gerada, uma simples aparição tangível. Esta versão coadunava-se à imagem feminina – que muito se tinha em voga no século XIX e princípio do século XX – como pessoas predispostas à loucura, reforçando uma cultura androcêntrica milenar que caracterizava as mulheres como enfermiças mentalmente e débeis fisicamente (MESSIAS e VILELA, 2011; PETERS, 2012). Os evangelhos de Roustaing obtiveram maior repercussão entre os/as espíritas do Brasil do que na França e foram aqui, mais do que lá, motivo de cisões no movimento espírita. Era consenso na Sociedade de Estudos Espíritas de Paris que não se devia dar ênfase a controvérsias religiosas (KARDEC, 2005 [1862], p. 44) como aquelas criadas por Roustaing a partir de dogmas católicos (BRANDÃO, 2002 p. 67). Kardec, em relação às controvérsias de Roustaing, explicou aos assinantes da Revista Espírita: “não daremos às suas teorias nem aprovação, nem desaprovação, deixando ao tempo o cuidado de as sancionar ou as contraditar” (KARDEC, 2004 [1866], p. 258). Kardec, na quinta obra da codificação “A GÊNESE”, mantem sua opinião de que o nascimento de Jesus não foi milagroso, pois “como homem, tinha a organização dos seres carnais”, sendo que a superioridade com relação a outras pessoas não derivava de qualquer particularidade do seu corpo (KARDEC, 200 [1868], p. 270). Fazendo uma leitura pela teologia feminista (ALTHUS-REID 2005) a Virgem Maria de Roustaing, bem mais do que a versão cristã-católica, não é uma mulher completa que tem vontades e opinião, é um modelo feminino mais fragmentado, mais manipulável e que sofre calada. A Virgem Maria de Roustaing como tantas outras castradas, mutiladas e clitoridectomizadas representações de mulher, são casos de “teologias feminicidas”. Jaci Regis (2011, s.p.) em seu artigo: “A Emancipação da Mulher e o Espiritismo” reclama que A figura da Virgem Maria foi tomada pela Igreja como símbolo de perfeição, de virtudes excelsas, enfim, como o exemplo maior a seguir, sexual e mundanamente. Esse modelo infelicitou as mulheres e foi usado machistamente pelos poderes da religião católica para sufocá-las, tanto quanto o Alcorão tem sido usado para mantê- las à margem da sociedade, sob o tacão do homem. (REGIS, 2011, s.p.)

Definitivamente este não é o modelo ideal de mulher que favoreça as mulheres consumidoras de bens de salvação espíritas, muitas vitimadas pela violência doméstica (simbólica ou não) que buscam um consolo na Doutrina Espírita, quer seja material ou espiritual para seus filhos, maridos ou pais obsedados (endemoniados, como dizem os evangélicos), violentos, alcoólatras e/ou drogados.

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E tristemente, tais mulheres, já tão vitimizadas, mesmo assim ainda encontram conforto em instituições espíritas (ou não) que reelaboram antiga ideologia patriarcal, androcêntrico e alienante de que devem sofrer resignadas, pois devem estar resgatando algum débito de vidas passadas, entendido como inevitável passaporte para a evolução espiritual. Já no livro “Memórias de um Suicida”, da médium Yvonne A. Pereira, há uma representação de gênero mariana que vai além daquela defendida por Kardec, ali, Maria de Nazaré é descrita como uma grande líder – este cargo e competência de liderança é comumente relacionado pelos/as espíritas como masculino – “grande Espírito Maria de Nazaré, ser angélico e sublime”, chefe de uma das mais importantes agremiações do Vale dos Suicidas177 (p. 26), a Legião de Maria, instituto correcional que acolhe os “réprobos que se arrojaram aos temerosos abismos da morte voluntária” (1982, p. 106). Nesta obra, Maria é designada de “Excelsa Diretora” (1982, p. 106) e “Majestade a governar” (1982, p. 44). Mas esta representações de gênero mariana, nesta obra, não está desassociada do exercício de maternidade – este bem feminino – “como Mãe Modelar que é” Maria de Nazaré (1982, p. 92). Tal como Emmanuel afirma (1945, p. 105-106), a mãe terrestre para cumprir sua missão materna, “buscará na piedosa Mãe de Jesus o símbolo das virtudes cristãs, transmitindo aos que a cercam os dons sublimes da humildade e da perseverança, sem qualquer preocupação pelas glórias efêmeras da vida material.” Para Sylvia F. Damazio (1994), no que se refere à importância da participação feminina no processo de formação das novas gerações, quer em casa com seus/suas próprios/as filhos/as, quer nos centros espíritas, o Espiritismo apresenta como característica comum com o culto positivista à mulher, consubstanciado na figura de Clotilde de Vaux, uma aproximação da veneração da Virgem Maria pelos católicos e espíritas místicos. (DAMAZIO, 1994, p. 140).

3.2.2.6. A maternidade de Eva e as dores de parto

Tua esposa mantém-se em nível inferior à tua expectativa? Lembra-te de que ela é mãe de teus filhinhos e serva de tuas necessidades. Teu esposo é ignorante e cruel? Não olvides que ele é o companheiro que Deus te concedeu... (XAVIER, [médium]; EMMANUEL [Espírito], 1971-b, p. 190)

Em pesquisa realizada com o público pentecostal, Maria das Dores Campos Machado (2005) concluiu que diferentemente dos homens, estes mais centrados nos próprios

177 Vale dos Suicidas é uma “região do Mundo Invisível cujo desolador panorama era composto por vales profundos, a que as sombras presidiam: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das quais uivavam, quais maltas de demônios enfurecidos, Espíritos que foram homens, dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizavam”. (PEREIRA, 1982, p. 106). p. 6)

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problemas178, as mulheres buscam uma instituição religiosa para a solução de problemas familiares, materiais e espirituais. Ou seja, são elas as “guardiãs das almas de todos que integram a família” (MACHADO, 2005, p. 389). Com base no Censo IBGE 2000, Regina Novaes (2003, p. 11-12.) afirma que as mulheres são mais religiosas do que os homens, mesmo aquelas que são provedoras de recursos para a família, paralelamente, conseguem ser bem ativas dentro da igreja: “É a mulher que socorre quando alguém está doente. Ela é uma medidora ativa que provê recursos simbólicos, afetivos e religiosos para a família que tem problema”179. Com base no que apresentei até agora, a principal representação da mulher na Doutrina Espírita é a de “mãe”. Neste sentido, na literatura espírita, exacerbam-se as virtudes maternais até o limite de um amor incondicional, que “Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (I Coríntios 13:7). Isto corrobora os dados e informações que as autoras supracitadas trazem sobre o perfil e as motivações das mulheres pela busca religiosa. As razões que conduzem a maioria das mulheres a acessar e permanecer nas casas espíritas possivelmente sejam essas as mesmas. A pesquisa de Flamarion Laba da Costa (2001) confirma esta função social do Espiritismo ligada ao atendimento do sofrimento humano. O sofrimento físico e espiritual sempre foi a porta de entrada180 – uma via de acesso sem restrições de classe social, de etnia, de gênero ou grau de instrução – para as mulheres-mães acessarem o Espiritismo. Entre outros bens e serviços religiosos e caritativos, as mães espíritas ou simpatizantes buscam tratamento espiritual – como a desobsessão – e uma medicina alternativa para seus entes queridos: passes; cromoterapia; preces e irradiações; água fluidificada; diagnósticos e prescrições de remédios homeopáticos e fitoterápicos proferidos por médiuns receitistas ou por médicos espíritas voluntários; cirurgias espirituais. Conforme Clifford Geertz (2008, p. 75-76) expõe, em sua “Interpretação das Culturas”, o desafio da experiência humana é o problema do sofrimento, o qual constitui, talvez, os dois loci principais: a doença e o luto. Estes dois principais condicionantes do sofrimento sempre

178 Segundo a autora (MACHADO, 2005, p. 389) a conversão masculina ao pentecostalismo está mais ligada a situações que ameacem sua “identidade masculina”, como desemprego, dificuldades financeiras e problemas pessoais de saúde. 179 Para Regina Novaes (2003, p. 11) “quando as mulheres se convertem, elas ficam mais livres e saem mais de casa. [...] após a conversão do casal as relações de gênero ficam menos opressivas [...] a religião passa a funcionar como um lugar de agregação social [...] frequentar uma igreja a pessoa passa a fazer parte de uma rede de apoio”. 180 É preciso lembrar que o Espiritismo, como apresentei no primeiro capítulo, também nasce das práticas curativas ligadas ao mesmerismo, à homeopatia e à prática receitista desenvolvida pelas médiuns sonâmbulas e seus magnetizadores.

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foram pauta do Espiritismo brasileiro, e uma das fortes motivações para adesão ao Espiritismo ainda hoje, conforme aparece na Tabela 1 da pesquisa de Rodrigues (2012, p. 287), onde participaram 770 homens (33,95%) e 1498 mulheres (66,05%), onde destaco as motivações ligadas ao sofrimento:

Tabela 1 - Motivação para se tornar espírita. MOTIVAÇÃO PARA SE TORNAR ESPÍRITA Q % PARA ALCANÇAR CERTA PAZ INTERIOR 484 21,22% ESTAVA SOFRENDO E PROCURAVA UMA CONSOLAÇÃO 447 19,60% TINHA MEDIUNIDADE E PRECISAVA DESENVOLVER 352 15,43% ESTAVA DOENTE E ME CUREI NO ESPIRITISMO 86 3,77% COSTUMAVA TOMAR PASSE NO CENTRO ESPÍRITA 75 3,29% O ESPIRITISMO CUROU UMA PESSOA DA FAMÍLIA 40 1,75% Fonte: RODRIGUES (2012)

E como Alice Beatriz da Silva Gordo Lang (2008) retrata sobre o imaginário espírita, muitos/as espíritas Dizem que 90% das pessoas chegam ao espiritismo pela dor e 10% pelo amor. O caminho pela dor é configurado, por exemplo, pela perda de uma pessoa querida, por uma doença grave ou incurável. O caminho do amor passa pelo desejo de melhor conhecer o espiritismo e os caminhos por ele abertos. (LANG, 2008, p. 178)

Este último caminho, o caminho do amor, parece ser aquele trilhado por homens. Este foi o meu caso e da maioria das adesões masculinas que acompanhei ao longo de minha experiência religiosa. Homens de classe média, com nível superior de escolaridade que buscavam uma explicação mais convincente para as contradições da vida, que suas religiões de origem não lhes davam. Neste sentido Costa (2001, p. 27) partindo do princípio weberiano, afirma ser a partir da explicação e da intermediação com o plano espiritual181 que se pode identificar a função consoladora e reconfortadora das religiões em geral, e bem como do Espiritismo. O Espiritismo afirma ser resultado do ensino do consolador prometido por Jesus, no evangelho de João (JO 14:15 a 17 e 26). Segundo Kardec (2010 [1864], p. 132 ss.), este é o Espírito de Verdade, o consolador que o Pai enviou, há seu tempo, para relembrar todas as coisas ditas e para ensinar as coisas não ditas pelo Cristo, porque o mundo ainda não estava maduro o suficiente para compreender todo seu ensino. Assim, o Espiritismo proporciona o que Jesus disse sobre o consolador prometido: conhecimento dos fatos, que faz com que o homem saiba de onde veio,

181 Segundo Lewgoy (2000, p. 172), a intervenção de entidades espirituais intercessoras a pedir pelos sofredores – a exemplo da mãe desencarnada de Chico Xavier – evidencia o sincretismo de duas posições do Espiritismo no Brasil com Catolicismo brasileiro, com seus anjos e santos intercessores.

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para onde vai e por que está na Terra; retorno aos verdadeiros princípios da lei de Deus, e consolação pela fé e pela esperança. (KARDEC, 2010 [1864], p. 133)

Assim, conforme Geertz (2008, p. 76), citando Malinowski, as religiões ajudam as pessoas a suportarem situações de pressão emocional abrindo fugas a tais situações e tais impasses que nenhum outro caminho empírico abriria. E, aqui, pode-se fazer uma relação com a concepção espírita que na “parte doutrinária, encontram-se as explicações sobre os sofrimentos que, na visão espírita, são as provas pelas quais as pessoas passam, e que foram escolhidas por cada um antes de reencarnar para mais uma estada no planeta Terra, realizando assim seu papel de Consolador” (COSTA, 2001, p. 166). Não digo que o Espiritismo, como também as religiões em geral, tenham a solução de como se evitar o sofrimento ou de extingui-lo. Não, o que as religiões fazem é ensinar como bem sofrer, elas tornam a agonia alheia algo tolerável, suportável, numa palavra, “sofrível” (GEERTZ, 2008, p. 76). Não é diferente no Espiritismo, onde as tantas “mães de Chico” vem buscar consolo para o sofrimento pela perda de um/a filho/o através de uma mensagem psicografada e de alguma explicação para aquela perda182. Assim a práxis espírita tende a tornar o sofrimento mais racional e aceitável, ao revelar os mistérios do plano espiritual, daí passa-se a conviver com a perda e a dor de forma menos conflituosa, pois, como diz Costa (2001, p. 27), a expiação resignada é o caminho traçado pela Doutrina Espírita para a redenção humana, a reforma íntima, o progresso espiritual, o resgate de dívidas de vidas passadas e outras tantas interpretações. Retomando o quadro apresentado por Alice B. S. G. Lang (2008, p. 178), se o caminho do amor (ao conhecimento) parece ser aquele trilhado mais pelos homens espíritas, o caminho da dor deve ser majoritariamente aquele que leva as mulheres, em especial as mães, a acessarem as instituições espíritas, como aquelas retratadas no documentário: “As mães de Chico”183. Mas nem só de mensagens mediúnicas se pode acessar o consolo para os revezes de um “mundo de provas e expiações”, qual é o momento que estagia o planeta Terra. Ao lado das recomendações explicitas e diretas da literatura doutrinária – parte do objeto desta pesquisa – também os romances espíritas estão repletos de personagens femininas virtuosas, porém sofredoras que bem representam o modelo ideal da espiritualidade espírita (STOLL, 2003, p.

182 Geertz (2008, p. 76) exemplifica esta busca, creio, predominantemente feminina, ao citar um caso retratado por Malinowski, um caso que muito bem se encaixa no perfil de mulheres-mães que acessavam o Chico em busca de notícias e consolo de seus “entes perdidos”: Era uma velha de uma família extensa, mas que o mal personificado em Leza, “o Assediado”, “estendera sua mão contra a família. Ele chacinara seu pai e sua mãe enquanto ela era ainda uma criança e, no decurso dos anos, tudo em torno dela perecia” e inclusive filhos e netos foram-lhe arrancados. 183 Cf. em Referências.

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103), e cumprem sua função consoladora. Para Sandra STOLL (2003, p. 102) a resignação destas personagens diante do sofrimento tem caráter exemplar para o movimento espírita. Tal postura diante destes fatos é encarada como instrumento de ensino, de “edificação”, ao reiterar a vida exemplar de Cristo, a qual supera a função de expiação para ressaltar a função de exemplaridade. E também na poesia mediúnica, se reforçam as representações femininas de mulheres que mesmo sofridas devem se resignar em papéis tipicamente femininos, mães, educadoras, esposas e enfermeiras184. Na poesia abaixo temos um exemplo de como na poesia, à semelhança do que ocorre na literatura doutrinária espírita, o caráter sacrificial (somente) do papel feminino, exercido no lar ou em algumas extensões deste (o hospital, a escola, o centro espírita): Mãe, sê o anjo do lar. Esposa, auxilia sempre. Companheira, acende o lume da esperança. Irmã, sacrifica-te e ajuda. Mestra, orienta o caminho. Enfermeira, compadece-te. (MEIMEI [Espírito]; XAVIER, F. C. [médium], 1971-b, p. 118)

184 Digno de nota é afirmar que embora a grande maioria de escritores/as espíritas recomendem renúncia e sacrifícios femininos, de forma diferente é o ponto de vista de Divaldo P. Franco ([201?]), que em uma palestra postado no site “You Tube”, assim critica o exagero destas representações de gênero femininas que legitimam o sofrimento das mulheres como única forma de evolução espiritual: “Qual é o Jesus que a doutrina espírita Jesus nos apresenta. Não é o aquele crucificado das tradições. Este é um sadomasoquista. E que vendo sua dor nós o amamos. Que é um desequilíbrio sadista. O que nos leva a sofrer. Eu tenho que sofrer para encontrar o reino dos céus. Eu não sei onde está escrito isso. Sofrer é acidente de percurso. Só toma topada quem anda. Mas quem olha para o chão não tropeça. A proposta do espiritismo é otimista. Ame e não sofra”.

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CONCLUSÃO

A atitude dogmática ou natural se rompe quando somos capazes de uma atitude de estranhamento diante das coisas que nos pareciam familiares. (CHAUI, 2010, p. 111.)

Esta pesquisa surgiu de um “estranhamento” que tive após a leitura de alguns textos doutrinários, embora estes aparentemente progressistas, mas em flagrante conflito com a trajetória da mulher espírita ao longo dos últimos 150 anos de história do Espiritismo. O descompasso entre o texto doutrinário e a práxis espírita despertou-me esse desejo de conhecer mais profundamente o assunto. Que as religiões em geral eram misóginas, eu tinha uma noção, a qual elaborei inclusive a partir da própria literatura espírita e também, do artigo de Cléria Bittar Bueno (2009). Mas o movimento espírita, fruto da dessacralização e desencantamento do mundo pela ciência positivista, não deveria acompanhar pari passu o progresso das ciências (KARDEC, 2003 [1868], p. 40) – inclusive das ciências sociais, rejeitando ideias preconceituosas (no sentido de preconcebidas ou princípios absolutos)? Contraditoriamente, o Espiritismo, no computo geral, acabou tomando de empréstimo as mesmas atitudes misóginas das religiões sempre criticou. Agora, concluída esta pesquisa bibliográfica, fazendo uma reconstrução sintética, em uma ordenação lógica dos resultados desta, destaco, a seguir, como principais condicionantes que caracterizaram as representações de gênero que figuraram na literatura doutrinária espírita. No primeiro capítulo, onde descrevi a história do movimento espírita, em perspectiva de gênero, sobressaem dois condicionantes dentre uma enorme gama de outros micropoderes (FOUCAULT, 2007) que determinaram as relações e representações de gênero no Espiritismo: o primeiro fator deve-se à plasticidade da doutrina espírita em amoldar-se à sociedade a qual está sendo implantado, com o menor conflito social possível, assim – no tangente às questões de gênero – a Doutrina Espírita mais cedeu às pressões das instituições sociais (especialmente da Igreja, da Medicina e da Educação) do que conseguiu implementar sua proposta de “emancipação legal da mulher”; o segundo fator está relacionado à distância social, segundo os valores eurocêntricos e patriarcais vigentes no entresséculos em questão, que separavam os dois tipos ideais, homens-intelectuais e mulheres-médiuns. Estes valores e representações androcêntricos que classificavam os sexos com naturezas distintas, supervalorizando os homens pela crença que estes eram dotados de razão, liderança e força para o trabalho extra-doméstico e desvalorizava a natureza feminina, esta entendida como um ser potencialmente enfermiço e que degradava-se moral e mentalmente caso não se casasse e nem se conformasse com a maternidade e os afazeres da vida doméstica.

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Por este motivo muitas mulheres militantes da doutrina espírita, médiuns ou potenciais lideranças femininas - como as jornalistas Anália Franco e Amalia Domingo - sofreram violência de gênero ao se colocarem como oposição aos valores e à ordem vigentes na sociedade mais ampla e por não receberem o apoio do movimento espírita, expressamente androcêntrico e antifeminista, sendo que muitas destas foram silenciadas ao serem internadas como loucas (VILELA; MESSIAS, 2011) em manicômio/s público/s (CUNHA, 1989) e também espírita/s (PETERS, 2012). A situação feminina no princípio do Espiritismo era muito degradante, além da violência física que sofriam as médiuns ao terem seus corpos amarrados a cadeiras e encarcerados em jaulas, sofriam também a constante violência moral e psíquica de terem que provar a sua idoneidade e veracidade dos fenômenos mediúnicos que produziam. Não foi possível avaliar a resistência e a oposição/aceitação por parte das mulheres espíritas a esta violência e à discriminação de gênero por dois motivos, pela dificuldade em se encontrar textos de autoria feminina ou depoimentos femininos registrados pela lavra masculina e, porque tal avaliação fugiria ao objetivo e ao objeto delimitados nesta pesquisa. No segundo capítulo, onde procurei descrever a práxis espírita in locu, de modo a buscar explicar o caráter conservador das relações e representações espíritas, compondo um sistema dialético de condicionantes: uma divisão sexual do trabalho das casas espíritas, onde os homens ficam a liderança e a produção doutrinária, e as mulheres ficam com as funções de médium e reprodutoras da memória do grupo junto às novas gerações, esta divisão tende a ser legitimada e legitimar as representações de gênero contidas na literatura espírita. Busquei analisar também, em perspectiva de gênero, como os “caminhos” dos homens, que os conduzem à liderança, é mais fácil em um modelo de burocrático (LEWGOY, 2000) do que em um modelo carismático (CAVALCANTI, 2008), pois este último, em tese, privilegiaria as mulheres por estarem relacionadas ao comportamento (ethos) e ao espaço (locus) mediúnico, entendidos como mais femininos. No terceiro capítulo, onde fiz a análise de conteúdo de textos doutrinários de dez importantes determinantes e/ou componentes das representações de gênero no Espiritismo: 1. a cosmovisão espírita que naturaliza e diviniza “o arbitrário” (BOURDIEU, 2012), uma divisão sexual do trabalho baseada na crença em uma dualidade da natureza humana (masculina e feminina), caracterizada por uma pretensa dicotomia biológica entre força física e sensibilidade; 2. esta divisão sexual, um tanto questionada pelos/as próprios/as espíritas atualmente, sustenta uma estruturação social “ideal” (os homens no espaço público, no trabalho e em

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questões extra-domésticas; e as mulheres no espaço privado e em atividades correlatas ao trabalho doméstico e aos cuidados com a prole) que sempre se distanciou de uma estrutura familiar “real”, ou seja, desde Kardec (2005 [1862]) e Leon Denis (1987), já se sabia da necessidade de mulheres espíritas das camadas populares trabalharem para garantir a subsistência da família, e hoje, com a democratização do ensino, muitas mulheres espíritas da classes médias (grande lócus do público espírita) mantem certa independência econômica de seus provedores masculinos; 3. a manutenção desta divisão “ideal” precisou combater modelos antagônicos que propunham a possibilidade de papéis sexuais mais igualitários ou a inversão destes, tais quais as reivindicações do feminismo. O Espiritismo, sob influência do Positivismo comtista, centrou na maternidade sua principal representação feminina, idealizando as mulheres como mães e redentoras da nação (humanidade). 4. Esta maternidade foi defendida e proclamada – principalmente em forma de versos, como aqueles que figuram o título desta dissertação – mesmo em casos de contradição com a proposta progressista de divórcio, já presente em 1857, na questão 697, de “O Livro dos Espíritos” (KARDEC 1995 [1857], p. 335), como em textos espíritas que recomendam renúncia e resignação às mulheres-mães no sofrimento frente a companheiros violentos, de forma a resguardar a coesão familiar e a infância, justificando ser tal situação consequência de débitos de vidas anteriores (karma) que devem ser saldados o mais rápido possível... Os resultados da presente pesquisa parecem confirmar a suspeita de Letícia da Silva Gondim e Thiago Linhares Weber (2011) de que o Espiritismo pode ter incorporado características do Ecletismo e, portanto se compreende como a Doutrina Espírita conseguiu conciliar ideias antagônicas de imenso matiz que vai do idealismo de Platão ao naturalismo de Rosseau, passando pelas ideias progressistas do socialismo utópico e do positivismo comtista, e amalgamando-se com valores conservadores do catolicismo. Pois se, por um lado, existe a defesa de Kardec (1995 [1857], p. 381) por papéis sexuais naturalizados e uma educação feminina inferior à masculina, por outro lado, igualmente há uma proposta explícita emancipação da mulher, a qual foi referendada por Leon Denis (1988 [1903], p. 79-80), ao alegar que o Espiritismo subtrairia “a mulher ao vértice dos sentidos e ascende à vida superior”, firmando a igualdade dos sexos, o que asseguraria a ambos sexos igualdade de direitos nas agremiações de estudo espíritas. Neste sentido, um espírito anônimo respondendo à pergunta: “Que influência deve ter o Espiritismo sobre a condição da mulher?”, prescreve aos espíritas que se deveria admitir

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igualmente as mulheres “no banquete da inteligência, abrindo-lhe de par em par todas as portas da Ciência” (MORIN [Médium], 2004 [1867-b], p. 120). Desta dicotomia, entre o conservador e o progressista, o resultado que encontrei, na pesquisa histórica dos 150 anos de Espiritismo, foi que poucas mulheres se destacaram no movimento espírita, quer seja como intelectuais, quer como ativistas (LARA, 2001, p. 1). Isto entra em contradição com o que é esperado de uma religião onde não há um sacerdócio exclusivamente masculino, tal como nas outras religiões, pois neste sentido o Espiritismo seria mais liberal (BUENO, 2009; INCONTRI, 2012). Semelhante a algumas denominações pentecostais, as mulheres espíritas, quase sempre, estão situadas num plano bem subalterno, à sombra do marido (LARA, 2001, p. 1). As mulheres espíritas estão ausentes dos espaços de liderança organizacional (SILVA, 2006) sendo que seu investimento dá-se no campo da prática religiosa, na prática mediúnica, e na transmissão, como “guardiãs da memória”185, na evangelização infantil e nas atividades da juventude espírita. A hipótese principal desta pesquisa era que as representações sociais de gênero do contexto histórico em que o Espiritismo foi gestado e também daquele contexto em que a Doutrina Espírita encontrou no Brasil, ao ser transladado para cá, teriam sido determinantes na elaboração das representações de gênero espíritas, e que por sua vez estariam produzindo uma assimetria sexual na hierarquia espírita, que se mantém, em parte, até hoje, alimentada pela vasta literatura espírita e por posturas mais conservadoras de seus líderes (SOUSA, 2013). Pela análise de conteúdo aliada à pesquisa histórica e também à pesquisa bibliográfica, pode-se, em parte, confirmar esta hipótese, pois no embate e disputa pelo campo religioso no Brasil entre intelectuais espíritas e clérigos católicos, o Espiritismo à brasileira (STOLL, 2003) incorporou elementos (concepções e valores) católicos como forma de trampolinagem (ARRIBAS, 2008) e assim poder driblar as perseguições religiosas, políticas e acadêmicas. Digo que em parte se confirmou a hipótese principal desta pesquisa, pois como o campo de pesquisa sobre gênero no Espiritismo ainda é quase inexistente, contendo só alguns poucos fragmentos de pesquisas etnográficas – como aqueles usados aqui: Lewgoy (2000), Stoll (2003), Silva (2006), Arribas (2008), Cavalcanti (2008) e Rodrigues (2012) – não me permitiram fazer conclusões mais seguras e universais. Assim, só uma boa pesquisa de campo e de amplo alcance, a ser empreendida no doutorado, poderá esclarecer melhor sobre as representações de gênero no movimento espírita

185 Tal como Nunes (2005, p. 363) afirma, em termos gerais, envolvendo a maioria das instituições religiosas.

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em geral – pois o recorte desta dissertação envolveu tão somente analisar a literatura doutrinária espírita.

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STOLL, Sandra Jacqueline. Religião, Ciência ou Auto-Ajuda? Revista de Antropologia. [online]. São Paulo, v. 45 n. 2., p. 361-402, set./nov. 2002.

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163

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XAVIER, F. C. [médium]; EMMANUEL [espírito]. Vida e sexo. FEB, 1986 [1970].

XAVIER, F. C. [médium]; MEMEI [espírito]-a. Mãe. In: XAVIER, F. C. Mãe. Antologia mediúnica. Matão: O Clarim, 1971, p. 12-13.

XAVIER, F. C. [médium]; MEMEI [espírito]-b;. Oração à Mulher. In: XAVIER, F. C. Mãe. Antologia mediúnica. Matão: O Clarim, 1971, p. 118-119.

XAVIER, F. C.; J. Herculano Pires [médiuns]; Espíritos Diversos. Sobre o Feminismo. In: Astronautas do Além. São Bernardo do Campo: GEEM, 2012 [1973].

XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. [médiuns]; ANDRÉ LUIZ [espírito]. DESOBSESSÃO. 16 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1997 [1964].

XAVIER, Francisco Cândido [médium]; EMMANUEL [espírito]. O Consolador. 2 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1945 [1940].

ZELESCO, Luiza. Feminismo e Espiritismo: parte 2 [2013]. Disponível em: < http://iebmdij.blogspot.com.br/2013/06/feminismo-e-espiritismo-parte-2.html >. Acesso em: 03 nov 2013.

164

ANEXO A – RELAÇÃO DE CURSOS (RINO CURTI)

Livros das Escolas conforme livro “Espiritismo e Evolução” de Rino Curti, de 1998.186

CURSO BÁSICO Vol. 1 — Espiritismo e Reforma Íntima Vol. 2 — Espiritismo e Evolução

CURSO DE EDUCAÇÃO MEDIÚNICA ESPIRITA 1º Ano — Tomo I Vol. 1 — Cristianismo Vol. 2 — Mediunato 2 º Ano — Tomo II Vol. 1 — Dor e Destino Vol. 2 — Desenvolvimento Mediúnica 3 º Ano — Tomo III Vol. 1 — Mediunidade em Ação Vol. 2 — Mediunidade: Instrumentação da Vida 3 º Ano — Tomo IV Vol. 1. — O Passe imposição de mãos Vol. 2 — Espiritismo e Obsessão

CURSO DE EDUCAÇÃO EVANGÉLICA ESPIRITA 1 º Ano — Tomo I Vol. 1 — Monoteísmo e Jesus Vol. 2 — Homem Novo 2 º Ano — Tomo II Vol. 1 — Do Calvário ao Consolador Vol. 2 — Bem-aventuranças e Parábolas 3 º Ano — Tomo III Vol. 1 — As Epístolas de Paulo e o Apocalipse de Joao (Segundo o Espiritismo) Vol. 2 — Espiritismo e Questão Social 4 º Ano — Tomo IV Vol. 1 — Espiritismo e Sexualidade Vol. 2 — Espiritismo e Liberdade

CURSO DO DIVULGADOR E EXPOSITOR ESPÍRITA 1 º Ano — Tomo I Vol. I — O Surgimento da Doutrina e o Estudo do Evangelho I Vol. II — O Surgimento da Doutrina e o Estudo do Evangelho II 2 º Ano — Tomo II Vol. 1 — Espiritismo e Religião – 1ª Parte Vol. 2 — Espiritismo e Religião – 2ª Parte (A formação das Religiões como ciências morais: dos primórdios ao limiar da Era Cristã) 3 º Ano — Tomo III Vol. 1 — Espiritismo e Filosofia – 1ª Parte Vol. 2 — Espiritismo e Filosofia – 2ª Parte 4 º Ano — Tomo IV (Em preparação)

186 CURTI, Rino. Espiritismo e Evolução. 6 ed. São Paulo: Editora Panorama, 1998.

165

ANEXO B - RELAÇÃO DE CURSOS (FEESP)

Livros/cursos disponíveis na Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP)187

Curso O que é o Espiritismo Curso Básico de Espiritismo 1º ano Curso Básico de Espiritismo 2º ano Curso de Educação Mediúnica 1º ano Curso de Educação Mediúnica 2º ano Curso de Aprendizes do Evangelho 1º ano Curso de Aprendizes do Evangelho 2º ano Curso para Dirigentes e Monitores da Prática Mediúnica Curso de Expositores

187 Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2015.