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VICE-GOVERNADOR DO AMAZONAS Omar Aziz

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Reitor Lourenço dos Santos Pereira Braga Vice-Reitor José Dantas Cyrino

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Pró-Reitor Admilton Pinheiro Salazar

COORDENADORIA GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO Coordenadora Maria de Fátima Mendes Acácio Bigi

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL Coordenador Fernando Antonio de Carvalho Dantas

HILÉIA – REVISTA DE DIREITO AMBIENTAL DA AMAZÔNIA

COORDENADORES(AS) Profa. Cristiane Derani Prof. Sérgio Rodrigo Martinez

COORDENAÇÃO EDITORIAL Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas

CONSELHO EDITORIAL Prof. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Prof. Luiz Edson Fachin Prof. David Sánchez Rubio Prof. Ozório José de Menezes Fonseca Profa. Cristiane Derani Prof. Sérgio Rodrigo Martinez Profa. Solange Teles da Silva

PROJETO GRÁFICO (KINTAWDESIGN) Capa: Marcicley Reggo Diagramação: Patrícia Braga

REVISÃO Marcos Sena

FICHA CATALOGRÁFICA Ycaro Verçosa dos Santos– CRB-11 287

Hiléia: Revista de Direito Ambiental da Amazônia. ano. 2, n.º 2. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura / Universidade do Estado do Amazonas, 2004.

336 p. ISSN: 1679-931 (Semestral)

1. Direito Ambiental – Amazônia I. Universidade do Estado do Amazonas CDD: 344.046811 CDU 344 (811)

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental Rua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar, Centro, CEP: 69010-170 Manaus – Amazonas – Brasil Tel./Fax. 55 92 627-2725 E-mail: [email protected] Site: www.uea.edu.br

Solicita-se permuta/Solicitase canje/Exchange desired On demande l’échange/Vogliamo cambio/Wir bitten um Austausch Sumário

INTRODUÇÃO ...... 07

PARTE 01 TRIBUTAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: O ICMS ECOLÓGICO Fernando Facury Scaff - Lise Vieira da Costa Tupiassu ...... 15

CULTURA Y NATURALEZA: LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIO AMBIENTAL BIO(SÓCIO)DIVERSO Joaquín Herrera Flores ...... 37

O TRIPÉ DO DESENVOLVIMENTO INCLUDENTE Ignacy Sachs ...... 105

AMAZÔNIAS: SOCIEDADES DIVERSAS ESPACIALIDADES MÚLTIPLAS José Aldemir de Oliveira ...... 109

SOCIEDAD DEL CONOCIMENTO, BIOTECNOLOGIA Y BIODIVERSIDAD Juan Antonio Senent de Frutos ...... 115

PROJETISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: O CASO DOS PEQUENOS PROJETOS Ana Carolina Cambeses Pareschi ...... 145

PARTE 02

NORMAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL Edson Ricardo Saleme ...... 201

A “ ATIVA” COMO NOVO CONCEITO PARA REGER AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE AS SOCIEDADES INDÍGENAS E O ESTADO MULTICULTURAL BRASILEIRO Fernando Antonio de Carvalho Dantas ...... 215

MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E A GARANTIA DO CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Sandro Nahmias Melo ...... 231

PARTE 03 O RISCO ACERCA DA UTILIZAÇÃO DA TRANSGENIA (ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS) NA AGRICULTURA MODERNA Bruno Gasparini ...... 251

CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO Tiago Fensterseifer ...... 273

O RESGUARDO DO PATRIMÔNIO CULTURAL POR MEIO DA MEMÓRIA COLETIVA Paulo Fernando de Britto Feitoza ...... 299 PARTE 04 DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO SEMESTRE (RESUMOS)

INSTITUTO DO TOMBAMENTO NA PROTEÇÃO DO BEM CULTURAL Robério dos Santos Pereira Braga ...... 321

SOBERANIA NA AMAZÔNIA LEGAL SOB O ENFOQUE DA DOUTRINA JURÍDICA AMBIENTAL BRASILEIRA Raimundo Pereira Pontes Filho ...... 323

RESPONSABILIDADE OBJETIVA NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Paulo Fernando de Brito Feitoza ...... 325 Introdução

egundo número. Segunda voz. Como em uma Ssinfonia, a revista Hiléia traz em seu segundo número uma composição que complementa a publicação inaugural. Concentra-se em alguns temas, mas expande sua abordagem, passando pelo direito interno, internacional e comparado. O foco essencial são os direitos dos seres humanos a existirem em seu espaço peculiar, a Amazônia, num contexto de globalização e internacionalização de direitos. Sócio e biodiversidade, biotecnologia, autodeterminação dos povos para um desenvolvimento compatível com sua cultura e natureza compõem-se com a sempre presente questão de efetivação dos direitos. Todos estes temas estão presentes, amalgamados no desenrolar da vida, mas a abordagem científica exige que se os separe, e esclareça. De fato, apresentar a vida, a natureza e suas relações com os modos de viver e fazer humanos é sempre parcial e imperfeito, que ainda requer um esforço do teórico que, todavia, deve manter-se na humildade de suas limitações. Schönberg nos consola: “Se se nos perguntam porque se mede a música em tempo, só se pode responder: porque não apresentá-la de outra maneira. Medimo-la para fazê- la semelhante a nós mesmos, para limitá-la. Nós apenas conseguimos reproduzir o que está limitado”. (Armonia, Real musical madrid, 1979, p. 238) O Direito permeia de maneira expressa ou subjacente todos os textos desta Hiléia científica, como uma sustentação

Hiléia Revista de Direito Ambiental da Amazônia 7 harmônica constante para o desenvolvimento dos temas plurais e diversos. Assim, questões como o desenvolvimento sustentável de Ignacy Sachs, o espaço na condução do desenvolvimento de José Aldemir de Oliveira e a discussão sobre os projetos de desenvolvimento de Ana Carolina Cambeses Pareschi, são políticas que se constroem sobre bases jurídicas, as quais facilitarão ou reterão a sua efetividade. O tema natureza e cultura, constância necessária ao nosso programa de Pós-graduação em Direito Ambiental, emerge com matizes ricos e variados. Por Joaquin Herrera Flores somos conduzidos ao universo complexo que revela a simplicidade do fato que jamais se afasta: somos matéria forjada nas mãos da natureza e cultura. Neste tom desenvolvem-se as composições de Juan Antonio Senent de Frutos, Fernando Antonio de Carvalho Dantas, Julio Gasparini e Paulo Fernando de Britto Feitoza. Estamos aqui, não seria demasiado afirmar, no realizar da ciência, pelos passos esclarecedores de Mario de Andrade em relação à música erudita no Brasil: trazemos "o universalismo no homem, evidenciando as diferenças existentes entre as raças e legitimando em todos os agrupamentos humanos a consciência racial". (Pequena História da Música, ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1987, p. 155). Cria-se o particular no universal, sem dele se depreender, e ainda, pelo universal valorizado, no que o particular é diverso. Esta é a música da terra para o poeta, esta é a percepção aportada pela Hiléia em sua segunda edição. E o direito continua sua melodia, permeando os referidos textos e ganhando predominância nos textos de Fernando Facury Scaff e Lise Vieira da Costa Tupiassu, assim como nos textos de Sandro Nahmias Melo e de Edson Ricardo Saleme. Honrando a memória de Alexandre Ferreira, o segundo número de Hiléia mostra que conhecimento sobre a Amazônia é polifônico, não se limitando a espaços artificiais de "ramos" do saber. Ainda, como o precursor baiano, nas palavras de Arthur Reis, "sob a paixão e os impulsos de sua vocação" e "vendo com olhos de ver", segue a busca pela compreensão da Amazônia, seu espaço no mundo das relações humanas e a importância do seu reconhecimento para o fazer e sentir.

Hiléia Revista de Direito 8 Ambiental da Amazônia Retenhamos a musicalidade nacional na produção acadêmica e teremos, sem dúvida, o vigor da produção inspirada que revela os tons da melodia do próprio, do local; que se harmoniza com os sons polifônicos das contribuições diversas e resulta na construção de um pensamento atento e revelador. Recebamos esta nova publicação da Hiléia com o entusiasmo de quem sabe as notas musicais e se impressiona com seus arranjos e combinações. Foram muitas as mãos e mentes que dedilharam este segundo número da Hiléia. Devemos agradecer aos autores; ao nosso magnífico reitor professor Lourenço dos Santos Pereira Braga e ao secretario de estado da cultura Robério dos Santos Pereira Braga. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental, em especial a Andréa Borghi Moreira Jacinto que resumiu os textos e as nossas, sempre diligentes, secretárias Silvana e Clarissa. Por fim, aos mestrandos do Programa, estímulo e esperança por um futuro possível.

Profa. Dra. Cristiane Derani Coordenadora da Revista Hiléia

Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Ambiental

Hiléia Revista de Direito Ambiental da Amazônia 9

– PARTE 01 –

TRIBUTAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: ICMS ECOLÓGICO ...... 15 1. Tributação, Globalização e as Futuras Gerações ...... 15 2. O Direito Tributário como implementador de políticas públicas ...... 21 3. Os fundamentos do Federalismo Fiscal Ambiental ...... 23 4. O ICMS Ecológico ...... 25 5. O ICMS Ecológico na experiência de alguns Estados brasileiros ...... 28 6. Análise da Proposta de Implantação do ICMS Ecológico no Pará ...... 31 7. Conclusões ...... 35

CULTURA Y NATURALEZA: LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIO AMBIENTAL BIO(SÓCIO)DIVERSO ...... 37 1. De los vértices a los vórtices: abriendo el camino al imaginario ambiental bio(socio)diverso ...... 37 2. La naturaleza es el lugar desde el que tenemos que elevarnos ...... 43 2.1. La co-implicación entre naturaleza y cultura: mitos cosmogónicos y modificación de los entornos ...... 43 2.2. La exigencia de vivir sintiendo en el Rey Lear y en Ciudadano Kane: O rio comanda a vida y a vida comanda o rio...... 50 3. Contra los dos tipos de reduccionismos: el biologicismo y el aislacionismo cultural . .55 3.1. El reduccionismo biologicista ...... 56 3.2. El aislacionismo culturalista ...... 57 4. El uso político de la naturaleza: la naturaleza como problema histórico (El Capitán Cook, Joseph Conrad y la Carta de la Tierra) ...... 61 5. Lo cultural y lo “extracultural”: el principio cairológico y los derechos humanos . . . .70 6. Hacia la construcción del imaginario ambiental bio(socio)diverso: El Imperativo Ambiental ...... 76 6.1. Bio(socio)diversidad y deberes básicos: procesos naturales y aspectos procedimentales y éticos de las luchas por la dignidad humana en relación con la naturaleza . .76 6.2. Dune de Frank Ebert y el Imperativo Ambiental: los deberes de “sustentabilidad” y de “precaución” ...... 80 6.2.1. El deber de sustentabilidad ambiental ...... 84 6.2.2. El deber de precaución ambiental ...... 89

O TRIPÉ DO DESENVOLVIMENTO INCLUDENTE ...... 105 AMAZÔNIAS: SOCIEDADES DIVERSAS ESPACIALIDADES MÚLTIPLAS ...... 109

SOCIEDAD DEL CONOCIMENTO, BIOTECNOLOGIA Y BIODIVERSIDAD ...... 115

1. Biotecnología, recursos naturales y biodiversidad ...... 115 2. Análisis de los fundamentos culturales de la apropiación de la biodiversidad ...... 119 2.1. De la naturaleza como propiedad común del género humano a su apropiación privativa...... 119 2.2. De la universalidad del “género humano” a los “pueblos civilizados” ...... 127 2.3. La reducción cultural del trabajo humano específico ...... 129 2.4. La reducción mercantilista de la funcionalidad económica de los bienes naturales .133 2.5. Pérdida de la interdependencia o de la racionalidad reproductiva ...... 134 3. El problema de la utopía en la sociedad del conocimiento: el caso de la biotecnología frente a la biodiversidad ...... 136 3.1. El nihilismo de la información frente a la naturaleza ...... 136 3.2. La paradoja de la utilidad y la racionalidad científica ...... 140 3.3. Descubriendo los límites ...... 142

PROJETISMO E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: O CASO DOS PEQUENOS PROJETOS ...... 145 1. Introdução ...... 145 2. PP-G7 e PD/A como espaços de disputas ...... 146 3. Tensões nos pequenos projetos: entre o projetismo e o desenvolvimento sustentável 162 4. A gestão do projeto e a organização do trabalho ...... 162 5. A organização social, política e institucional das comunidades e entidades ...... 169 6. Assessoria técnica e as dificuldades de projetos com fins econômicos: termos da parceria ...... 176 7. A Rede Frutos do Cerrado e o PD/A: do namoro ao projetismo e voltando ...... 181 8. Considerações Finais ...... 187 Anexos ...... 194 Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico

Fernando Facury Scaff 1 Lise Vieira da Costa Tupiassu2

1. TRIBUTAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E AS FUTURAS GERAÇÕES

mundo passa por grandes transformações Oeconômicas, políticas e sociais. No âmbito econômico, a tônica é a intensificação do processo de globalização, fenômeno marcado pela quebra do paradigma socialista, fruto da falência3 do socialismo real,4 que tornou o capitalismo um processo ideologicamente totalitário.5 A revolução tecnológica, especialmente nos meios de comunicação, vem transformando a sociedade, através da intensificação da relação de trocas econômicas. Existem paradoxos neste processo de globalização, pois ao mesmo tempo em que se trata de um fenômeno real, palpável, deve- se registrar a explosão de nacionalismos em várias partes do globo, sendo intensa nos países do leste europeu,6 e também existente na

1 Doutor em Direito pela USP, Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal do Pará e Advogado. 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará, doutoranda em Direito Publico pela Université des Sciences Sociales de Toulouse. 3 A falência do paradigma apenas acelerou o processo de globalização, e não o fez surgir, pois a consolidação e a expansão do capital para além das fronteiras nacionais têm origens remotas. 4 Não do ideal socialista, mas da tentativa de colocá-lo em prática através dos modelos de Estado autodenominados de socialistas. 5 Pois monopoliza todos os poderes componentes da sociedade, mesmo os politicamente mais periféricos; é baseado na educação e massificação de propaganda em seu próprio favor e desconsidera a exposição de idéias divergentes como “fora de padrão”, entre outras características. 6 A questão dos Bálcãs envolvendo a Iugoslávia é um exemplo.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 15 África.7 Outro paradoxo diz respeito ao papel deste processo de globalização quase exclusivamente à livre circulação do capital financeiro, e muito pouco à circulação de pessoas e bens. Neste aspecto, as barreiras alfandegárias e de imigração8 estão presentes e se intensificando. No âmbito político estamos frente a uma transformação do modelo de Estado, que antes era de Bem-Estar e hoje é marcado pelo neoliberalismo. A declarada intenção é reduzir o tamanho do Estado, a fim de que sua participação econômica ocorra muito mais pela atuação sobre o domínio econômico, como agente normatizador de mercados, do que como agente de produção/comercialização de bens ou serviços, ao atuar no domínio econômico.9 O neoliberalismo, portanto, necessita de manutenção do Estado fiscalizador, a fim de que as regras do jogo econômico sejam asseguradas e o “livre mercado”10 possa atuar. Resta saber, atuar em prol de quem? No âmbito social, vemos um processo marcado por amplas transformações, seja pela maior complexidade dos sistemas sociais, seja pela mais ampla participação ativa dos agentes sociais no cenário econômico.11 Novas formas de organização da sociedade como as organizações não-governamentais, estão mudando o perfil da sociedade. Dentro deste prisma é que está em processamento uma alteração dos conceitos de soberania, território e povo. E, por conseguinte, a concepção e o papel do Direito na sociedade. O conceito de povo, por exemplo: de singela massa de manobra nos discursos políticos,12 passa a ser considerado também como um mero e descartável índice econômico, uma simples variável dos grandes movimentos de capital em disparada pela melhor posição econômica global. Daí surge o fenômeno do desemprego estrutural, e a colocação em cheque do modelo anteriormente existente na sociedade. Do pleno emprego passamos ao desemprego estrutural e à

7 As lutas entre as etnias tutsi e hutu é outro exemplo. 8 A grande exceção é a União Européia, apenas para os cidadãos dos países membros. Tal pauta de preocupações não encontra eco nem mesmo na proposta da formação de blocos comunitários, como o Nafta e o Mercosul, e muito menos na Alca. 9 Sobre os úteis e instrumentais conceitos de intervenção sobre e no domínio econômico, ver Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 3.ª ed., 1997, p. 156-8. 10 Não existe mercado livre, mas mercado forjado e conformado pelos interesses humanos envolvidos nas relações de trocas econômicas. Assim, não há uma mão invisível, mas um projeto humano, visibilíssimo, estabelecendo as regras do jogo. 11 Ver o excelente estudo de Jorge Correa Sutil, “Modernización, democratización y sistemas judiciales”, In: La Economia Política de la Reforma Judicial. Washington: Banco Interamericano de Desenvolvimento, 1997, coord. Edmundo Jarquín y Fernando Carrillo, p. 173-187. 12 Ver Friedrich Müller Quem é o Povo: A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998, incluindo um esplêndido prefácio de Fábio Konder Comparato.

Fernando Facury Scaff 16 Lise Vieira da Costa Tupiassu flexibilização do direito do trabalho, que reduz grande parte dos direitos sociais, colocando-os em um patamar de livre negociação, necessária (sob o argumento do capital) para poder permitir que as empresas sobrevivam em um mundo de acirrada concorrência.13 Trata-se de livre negociação entre partes formalmente iguais, porém economicamente em desequilíbrio, o que transforma negociação em imposição. Em suma, é importante recolocar o homem como o centro das preocupações da sociedade. Os operadores jurídicos devem trabalhar para que o estudo das humanidades e a globalização dos direitos humanos sejam o principal foco de atenções nestes tempos que correm.14 Deve-se também reelaborar o conceito de território. Devemos passar a raciocinar com os grandes blocos econômicos, do tipo Nafta e União Européia. No mesmo sentido a embrionária Alca e o quase finado Mercosul. Logo, o Direito de estatal passou a ser gerido nos ambientes multiestatais, com diversos centros de poder instrumentalizando as decisões. No mesmo sentido deve-se analisar as relações de poder privado. Com o incremento das relações de troca, o centro das decisões estratégicas saiu das filiais das empresas localizadas em determinado território para a matriz, onde são gestadas as decisões de investir, consumir e poupar, que afetam os agregados macroeconômicos em todos os países em que aquelas empresas negociam. Não é à toa que se rediscute o papel das atividades diplomáticas tradicionais em todo o mundo, centralizando as atividades dos profissionais ligados a essa área muito mais nas atividades econômicas que propriamente de representação estatal. Inegavelmente, houve uma sensível redução das fronteiras entre os países em razão da revolução tecnológica que vem sendo desenvolvida. Em face dos fatores acima mencionados, que acabaram por gerar mutações no conceito de território e de povo, verificamos que o conceito de soberania também foi particularmente afetado. O centro de decisões de um país encontra-se parcialmente deslocado para outras partes do mundo, por agentes públicos e

13 Ver, sob o aspecto econômico, Viviane Forrester, O Horror Econômico. São Paulo: Unesp, 1997. Sob o aspecto jurídico, Rosita de Nazaré Sidrin Nassar, Flexibilização do Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 1991; Arion Sayão Romita, “A Globalização da Economia e o Poder dos Sindicatos”. In: Ordem Econômica e Social – Estudos em homenagem a Ary Brandão de Oliveira. São Paulo: LTR, 1999, coord. Fernando Facury Scaff. 14 Fundamental sobre este tema é a coletânea Direitos Humanos no Século XXI, organizada por Paulo Sérgio Pinheiro e Samuel Pinheiro Guimarães, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais e Fundação Alexandre de Gusmão, 2 vols., bem como o excelente livro de Fábio Konder Comparato, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 17 privados de outras cidadanias, sem nenhuma responsabilidade social com o que se desenvolve naquele país e, muitas das vezes, afastado da possibilidade de ser alcançado pelas decisões dos Poderes locais. Um país não é mais soberano com antes, cotejado com a época em que Jean Bodin cunhou o conceito. A soberania encontra-se mais relativizada do que nunca. Por conseguinte, a delimitação do Direito como objeto de aplicação de normas estatais (soberania), sobre determinada área geográfica (território), a fim de regular as relações entre as pessoas (povo) encontra- se colocada em cheque, sendo necessário pensarmos o Direito globalmente, como um instrumento de desenvolvimento entre as nações, centrado na dimensão humana global. E daí surge todo um novo âmbito de discussão, uma vez que o Direito que temos utilizado é um Direito pensado e criado para funcionar dentro de uma matriz determinada pelos conceitos de soberania, território e povo que hoje não mais existem como dantes, amplamente modificados pela tecnologia e pelo incremento do sistema de trocas. Tudo que acima foi exposto afeta profundamente o Direito Tributário, que é um Direito centrado fortemente na noção de território. A extraterritorialidade do Direito Tributário é uma excepcionalidade decorrente dos tratados internacionais para evitar a bitributação. Ou ainda, quando inserido no contexto de uma união aduaneira ou mercado comum, sempre visando a equilíbrio tributário dentre os países envolvidos. É ainda um Direito centrado fortemente no formalismo das concepções, onde as relações sempre ocorrem dentro de um prisma que envolve apenas a função de arrecadar, e não visando a obtenção de resultados extrafiscais, que alcançam objetivos para além da singela fórmula de disponibilizar dinheiro privado para a consecução das necessidades públicas, fazendo-o através do Estado. Desta forma, as modificações ocasionadas pela interseção entre o rígido territorialismo do Direito Tributário e o mundo globalizado vem gerando diversas perplexidades que deixam muito mais dúvidas do que certezas dentre os estudiosos do Direito. As respostas para estas perplexidades entre a teoria tradicional e a realidade multifacetada e dinâmica hoje encontrada devem ser buscadas dentro dos grandes pilares do Direito, que são os Princípios Jurídicos, e não nas regras que os implementam. Daí ser necessário falar das distintas dimensões do Direito para se poder pensar em soluções globais para problemas locais.

Fernando Facury Scaff 18 Lise Vieira da Costa Tupiassu Historicamente os direitos fundamentais surgiram como uma defesa do cidadão contra o Estado. Tal concepção estava inserida dentro da análise da luta contra o Absolutismo, combativa da total centralização do Poder. Desta época é o ressurgimento da idéia de liberdade e de igualdade, pois, uma vez conquistadas tais garantias individuais, a ordem natural se encarregaria de fazer com que o bem-estar e a prosperidade adviessem. Acreditava-se que a ordem natural do mercado possibilitaria fazer surgir o desenvolvimento. Ocorre que a ordem natural apenas privilegiou os que possuíam poder econômico, fazendo maior o fosso existente com aqueles que apenas portavam sua força de trabalho como elemento de troca no mercado. As soluções individuais não foram suficientes para resolver as questões sociais. Constatada a insuficiência de implementação desta fórmula de direitos e garantias fundamentais, foi necessário ampliar o espaço de compreensão destes Princípios. Observe-se que não se trata de ultrapassar esta concepção de direitos fundamentais, mas de ampliá-la visando alcançar as prestações positivas que a sociedade necessita que sejam desenvolvidas pelo Estado, ou por ele impostas aos grupos econômicos mais fortes e dominantes. Daí surge uma candente discussão sobre a expressão geração de direitos, que pressupõe o ultrapassamento de um rol de direitos por outro, e a expressão dimensão de direitos que implica na ampliação daquele rol inicial, sem o afastamento do anterior. Nesse momento surge a ampliação daqueles direitos, a fim de alcançar o homem em um grupo determinado, permitindo que direitos referentes a esta sua condição pudessem ser exercidos e garantidos pelo ordenamento jurídico. Surgiram então as conquistas dos direitos sociais em vários ordenamentos jurídicos do planeta, dentre eles o brasileiro, no início do século XX. Não se trata apenas de direitos da pessoa contra o Estado, mas do homem inserido no sistema econômico de produção, com a necessária intervenção do Estado para diminuir as desigualdades sociais e econômicas existentes. Porém a evolução dos estudos jurídicos constatou ser insuficiente a preocupação com o coletivo, sendo também necessário que o Direito se ocupasse dos interesses difusos da sociedade, que são aqueles que atingem um grupo indeterminado, e indeterminável, de pessoas. São tais as lesões causadas por poluição ambiental, congestionamentos de tráfego, problemas de direito do consumidor etc. Não se pode determinar a quantidade de pessoas alcançadas pelo dano.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 19 A solução individual e a coletiva não conseguiram dar solução a este tipo de questão resses difusos o conceito de futuras gerações. E aí surge uma nova compreensão dos direitos fundamentais. Passam a ser considerados também os direitos dos que ainda não nasceram. A dimensão da pessoa humana é projetada no futuro, não mais apenas como a dimensão civilista do nascituro, mas de toda uma futura (e ainda nem mesmo gestada) geração de pessoas humanas. É dentro deste preceito que se encontra o Direito ao Desenvolvimento Econômico, que é “um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidade para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que compõem as nações”.15 O interesse protegido não é o da atual geração, mas sua preservação para as futuras gerações. Não é mais um interesse do indivíduo contra o Estado, ou inerente apenas a certa coletividade, mas um interesse difuso e que abrange não apenas as atuais, mas as futuras gerações, que deve ser interpretado de comum acordo com a idéia de globalização, de forma a abranger toda a espécie humana, atualmente existente e a ser futuramente gerada. É esta nova dimensão dos direitos fundamentais que deve estar presente em nossa mente ao interpretar vários dos Princípios Jurídicos dispostos em nosso ordenamento. É antiga a expressão que enquadrava o mundo como uma aldeia global. Contudo, apenas hoje, com o progresso dos meios de comunicação é que se passa a ter uma pálida idéia do que representa esta afirmação. Qualquer alteração das condições econômicas em uma parte do globo terrestre acarreta influências imediatas em outros países. Verifica-se desta forma que a compreensão jurídico-tributária deve estar inserida em toda a problemática acima exposta, pois é necessário que o Estado exerça sua soberania para arrecadar os recursos gerados pelo povo localizado em um determinado território. Mas não se pode perder de vista que tais conceitos vêm sendo colocados em cheque, como acima exposto. Desta forma, não se deve pensar o Direito Tributário apenas como um instrumento de arrecadação, mas também como um instrumento para a consecução de políticas públicas em diversas outras áreas do conhecimento humano, como, por exemplo, a área ambiental. Por enquanto – e espero que este prazo seja curto –, nos encontraremos frente a um conflito entre o caráter eminentemente

15 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, ONU, 1986, preâmbulo.

Fernando Facury Scaff 20 Lise Vieira da Costa Tupiassu nacional e territorial do direito tributário contemporâneo e sua perspectiva de transformação em um direito tributário das futuras gerações, marcado pela necessária globalização de direitos, devendo fazer frente às atividades econômicas transnacionais que se desenvolvem sem pátria. Os recursos advindos desta arrecadação permitirão a implementação de um sistema jurídico mais efetivo e, quiçá, centrado no homem, como destinatário único e final da existência de uma sociedade organizada, seja em Estados individualmente considerados, seja em constelações pós-nacionais.16 Deste modo, é imprescindível levar em consideração nas análises jurídicas contemporâneas esta cisão entre um direito tributário eminentemente nacional, formal e centrado na arrecadação, e o impacto da globalização, que elimina as fronteiras nacionais na circulação de bens e, especialmente, na circulação de serviços, fazendo com que seja necessário colocar o direito tributário a serviço das demais áreas do conhecimento, no presente caso, da Ecologia, ao tratar da tributação ambiental. Deve-se sempre ter em mente a necessária transformação do direito tributário atual para um direito tributário das futuras gerações, onde se configure que a arrecadação atual servirá para construção de um mundo com fronteiras mais tênues, porém unificado pela efetivação dos direitos humanos.

2. O DIREITO TRIBUTÁRIO COMO IMPLEMENTADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS

O Direito cumpre vários papéis, dentre eles, um dos mais relevantes no mundo contemporâneo é o de implementar políticas públicas, através da ação ordenada e coordenada da intervenção do Estado na atividade econômica. Assim, o Direito deixou de ser a cristalização das realizações sociais para passar a ser um instrumento de transformação da sociedade, visando a realização de suas aspirações.17 Decorre desse fato a estreita conexão entre o Direito e a implementação das políticas públicas, uma vez que estas traduzem os meios necessários para alcançar os valores estabelecidos pelos Princípios Jurídicos que veiculam as finalidades a serem alcançadas pela sociedade. Pode-se exemplificar tais Princípios que traduzem finalidades como aqueles que na Constituição da República brasileira estabelecem como objetivos nacionais à construção de uma

16 Para a compreensão deste conceito ver Jürgen Habermas, A Constelação Pós-Nacional. 17 SCAFF, Fernando Facury. Projeto de Lei do ICMS Ecológico.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 21 sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, e reduzindo as desigualdades sociais e regionais, abolindo qualquer espécie de discriminação (art. 3.º). Ou ainda, entre aqueles que mencionam ser a Ordem Econômica ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, visando assegurar a todos, existência digna, de conformidade com a Justiça social, observados vários princípios, dentre eles, o da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental (art. 170, Constituição). O direito tributário possui destacada atuação nestas atividades, o que permite sua utilização como um instrumento para a consecução daquelas finalidades. Diante deste prisma, a conexão entre a tributação e a questão ambiental assume, a cada momento, uma importância mais destacada em todo o mundo globalizado. Daí ser bastante curioso este entrelaçamento entre uma atividade com forte caráter globalizante, pois uma emissão poluente ocorrida no Peru pode ter influências no Marajó, fruto da via natural do rio Amazonas, e um direito fortemente territorializado, como o tributário. A preservação de um meio ambiente saudável e a manutenção do desenvolvimento sustentável são metas incontestáveis, fundamentos de nossa sobrevivência, que devem ser privilegiadas diuturnamente. Assumindo seu papel de gestor das políticas de interesse coletivo, deve o Estado buscar meios para atender à necessidade de proteção dos recursos naturais para a presente e para as futuras gerações, inscrita no artigo 225 de nossa Constituição Federal e no art. 252 de nossa Carta Constitucional Estadual, aliando o interesse público ao desenvolvimento sustentável, com auxílio dos entes municipais, que também exercem papel fundamental na Federação. A interpretação sistemática da estrutura normativa nacional, partindo-se dos princípios fundamentais da Constituição Federal, obriga-nos a observar todos os mandamentos por ela impostos e, além de compatibilizá-los entre si, assegurar a sua satisfação através das normas infraconstitucionais e das orientações políticas seguida pelos poderes públicos. Em face dessa realidade, não se pode excluir a relevância do Direito Tributário que, como parte do sistema, deve ter explorada sua finalidade social, ressaltando a função extrafiscal dos tributos, que podem ser amplamente utilizados em benefício dos interesses coletivos administrados pelo Estado. De fato, os tributos, em função

Fernando Facury Scaff 22 Lise Vieira da Costa Tupiassu de sua própria natureza, devem exercer uma finalidade eminentemente voltada ao bem comum, devendo ser otimizada sua utilização como instrumento de implementação das políticas de proteção ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. Em razão disto, ponderando os princípios constitucionais tributários e a sua relação com a função ambiental do Estado, bem como tirando proveito de várias experiências e possibilidades econômicas voltadas para a questão ambiental, procurar-se-á examinar a questão do federalismo fiscal em benefício do meio ambiente, especialmente no que diz respeito à questão do ICMS Ecológico, discorrendo rapidamente sobre as experiências nacionais em sua utilização e sobre a proposta apresentada para a sua implementação no Estado do Pará.

3. OS FUNDAMENTOS DO FEDERALISMO FISCAL AMBIENTAL

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 158, determina quais receitas tributárias arrecadadas pelos demais entes da federação pertencem aos municípios. Dentre tais verbas encontra-se o montante de 25% da arrecadação estadual decorrente do Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), cujos critérios de repartição entre os diversos municípios estão definidos no parágrafo único do dispositivo. O mandamento constitucional estabelece expressamente que no mínimo ¾ dos 25% de ICMS pertencentes aos municípios devem ser repassados conforme o valor adicionado fiscal das operações realizadas para cada ente municipal. A Constituição define, então, um critério de medição econômica, simplificadamente decorrente da diferença entre as notas fiscais de venda e as notas fiscais de compra do município.18 Nos termos dispostos pelo mandamento consti- tucional, portanto, a lógica de repartição das receitas do ICMS privilegia os municípios que mais produzem, ou seja, os mais desenvolvidos economicamente, capazes de gerar maiores receitas tributárias provenientes da circulação de mercadorias e serviços. No entanto, deixa o constituinte originário a cargo dos Estados a definição dos critérios de repasse de cerca de ¼ do valor cabível aos municípios. Tal faculdade permite uma interferência direta da

18 Os detalhes sobre o cálculo do Valor Adicionado Fiscal encontram-se nos parágrafos do Art. 3º, da Lei Complementar 63, de 11 de janeiro de 1990.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 23 administração estadual no processo de desenvolvimento municipal,19 tendo em vista que os critérios de repasse de verbas influem fundamentalmente sobre as políticas públicas adotadas, podendo, se bem planejados, constituir-se em um amplo fator de indução econômica. Tradicionalmente, porém, os Estados pouco se utilizam o poder economicamente indutivo contido no permissivo constitucional, repetindo normalmente o mesmo critério adotado para os demais ¾20, utilizando-se de fatores demográficos ou conferindo partes iguais a todos os entes municipais.21 Na realidade atual, entretanto, os municípios mais populosos ou que mais geram circulação de mercadorias são os que têm, em seu território, mais condições de desenvolver atividades economicamente produtivas, que culminam, no mais das vezes, em externalidades negativas através do desenvolvimento de uma estrutura predatória em relação aos bens ambientais. Assim, incluindo este quadro no raciocínio da repartição de receitas do ICMS, verificamos que os municípios que se dedicam ao desenvolvimento econômico em detrimento da preservação ambien- tal, são aquilatados com maior quantidade de repasses financeiros, pois têm mais possibilidade de gerar receitas em função da circulação de mercadorias. Por outro lado, aqueles que arcam com a responsabilidade de preservar o bem natural, trazendo externa- lidades positivas que beneficiam a todos, têm restrições em sua capacidade de desenvolvimento econômico e, conseqüentemente, recebem menos repasses financeiros por contarem com uma menor circulação de mercadorias e serviços. Esta lógica necessariamente deve ser alterada, pois não dá conta da dinâmica da realidade e, principalmente, não se conforma com a proteção constitucional conferida ao meio ambiente, tampouco com o instrumento principiológico do poluidor-pagador. A intervenção do Estado sobre domínio econômico-ambiental surge, então, buscando corrigir as falhas trazidas pelas exter- nalidades ecológicas, por ele também sofridas quando tem de responsabilizar-se perante a sociedade para com políticas de proteção

19 Notadamente daqueles que não são fortemente beneficiados pelo critério do Valor Adicionado Fiscal. 20 Conforme explica WILSON LOUREIRO, “...em 8 Estados o critério do repasse pelo Valor Adicionado Fiscal está acima dos 75% determinados pela Constituição Federal...” (LOUREIRO, Wilson. O ICMS ecológico na biodiversidade, p. 8). Isso demonstra que muitos Estados privilegiam mais ainda os municípios mais ricos, não se utilizando, de forma plena, do permissivo que lhes é constitucionalmente concedido, para a definição de outros critérios de repasse de ICMS. 21 Escapa dos objetivos deste texto a discussão acerca da legitimidade ou não do dispositivo constitucional definidor dos critérios de repartição de receitas, tampouco dos critérios complementares estipulados pelos Estados, os quais, por certo, têm base em fortes razões políticas e econômicas. Assim, não nos preocuparemos em julgar até que ponto são justos, convenientes, ou se estão em harmonia com os demais princípios constitucionais.

Fernando Facury Scaff 24 Lise Vieira da Costa Tupiassu ambiental e despoluidoras, em conseqüência de ações danosas ao meio ambiente toleradas gratuitamente. Dentro dessa perspectiva, inúmeras foram às reivindicações dos municípios detentores de áreas de preservação ambiental, mananciais hídricos, reservas indígenas, etc., tendo em vista que sofrem historicamente uma dupla penalização, seja pela restrição da utilização economicamente produtiva de parte do seu território em face da afetação ambiental, seja pela conseqüência economicamente nefasta de tal restrição, que implica num menor nível de repasse orçamentário, sem que recebam qualquer recompensa pelas externalidades positivas que proporcionam à sociedade. Necessário se fez aos Estados conciliarem os ditames constitucionais de modo a também incentivarem a conservação dos recursos naturais, proporcionando, ao menos, algum meio de compensação financeira aos municípios que sofrem limitações de ordem física para o desenvolvimento produtivo, em razão de seu comprometimento territorial com áreas ambientalmente protegidas. Diante disso, aproveitando a faculdade que lhes foi constitucionalmente conferida, relativa ao estabelecimento de critérios próprios para o repasse de ¼ da parcela de ICMS pertencente aos municípios, vem sendo criada, em alguns Estados, uma nova política, cujos parâmetros estabelecidos para o repasse financeiro são de ordem notadamente ambiental. Percebe-se, neste contexto, o início de uma clara e simples forma de compatibilizar a sistemática financeira com a preservação ambiental, fornecendo incentivos para que os municípios mantenham as áreas de conservação ambiental sem sofrerem demasiadamente as perdas decorrentes do limitado desenvolvimento econômico.

4. O ICMS ECOLÓGICO

O ICMS Ecológico22 tem sua origem relacionada à busca de alternativas para o financiamento público em municípios cujas restrições ao uso do solo são fortes empecilhos ao desenvolvimento de atividades econômicas clássicas. O instituto traz resultados surpreendentes capazes de conferir nova feição a todas as políticas ambientais nacionais.

22 Conforme ficou conhecido este critério de repartição, buscando a divulgação e popularização do termo, embora reconheçamos que é utilizado com certa impropriedade, uma vez que não se trata exatamente de enquadrar a própria figura tributária (ICMS) na questão ambiental, e sim os recursos financeiros dela provenientes através de um mecanismo de federalismo fiscal.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 25 Note-se que a política do ICMS Ecológico representa uma clara in- tervenção positiva do Estado, como um fator de regulação não coercitiva,23 através da utilização de uma forma de subsídio, tal como um incentivo fiscal intergovernamental.24 Tal incentivo representa um instrumento econômico extrafiscal com vistas à consecução de uma finalidade constitucional de preservação, promovendo justiça fiscal, e influenciando na ação voluntária dos municípios que buscam um aumento de receita, e uma melhor qualidade de vida para suas populações. Aliás, mister ressaltar que o intuito inicialmente compensatório conferido ao instituto logo se viu substituído por uma franca conse- qüência incrementadora, tendo em vista que um número crescente de municípios passou a implementar políticas públicas ambientais, almejando receber uma parte dos valores distribuídos segundo tais critérios, conforme se verá a seguir. A política obteve muito sucesso porque redimensiona e valoriza todos os aspectos fundamentais para um meio ambiente saudável, incentivando os municípios a investirem na qualidade de vida de sua população. Pioneiramente o instituto foi concebido no Estado do Paraná, em 1991, e hoje já se encontra efetivamente implantado também em Estados como , Rondônia, São Paulo, do Sul, Mato Grosso, , e . Além disso, inúmeros outros Estados, dentre os quais o Pará, , Goiás, e Ceará têm projetos do gênero em fase de discussão legislativa.25 A concretização do ICMS Ecológico não exige complexas alterações legislativas.26 Esquivando-se das longas discussões no Congresso Nacio- nal, responsáveis por anos de tramitação das propostas que visam alterar a legislação tributária ou emendar a Constituição,27 a implementação do ICMS Ecológico normalmente depende apenas de lei estadual, uma vez que os princípios basilares da repartição financeira já se encontram na Constituição Federal e na maioria das Constituições Estaduais, muitas esperando há mais de 10 anos pela devida regulamentação.28

23 Ribeiro, Maurício Andrés. O ICMS e o Princípio Não Poluidor – Recebedor. 24 Ver a respeito LEITE, Fábio Heuseler Ferreira. O ICMS Ecológico no Rio de Janeiro, p. 33. 25 Para mais detalhes acerca da implementação do ICMS Ecológico, suas experiências e propostas, consultar: TUPIASSU, Lise V. da Costa. Tributação Ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do Direito ao Meio Ambiente saudável, p. 158 e s.s. 26 Embora esteja, antes de tudo, vinculada a acirradas disputas políticas diante dos supostos prejuízos suportados pelos municípios acostumados a explorar predatoriamente o meio ambiente, conforme se verá a seguir. 27 As quais seriam indispensáveis para a implementação da maior parte das demais hipóteses de utilização dos mecanismos econômicos em benefício do meio ambiente. 28 Como é o caso do Art. 225, § 2.º, da Constituição do Estado do Pará, a qual já contém desde a sua origem (1989) mandamento assegurando privilégio de tratamento para os municípios que abrigam unidades de conservação em relação à parcela de repasse de ICMS de que trata o Art. 158, parágrafo único, II da Constituição Federal. Disposição esta que aguarda há 12 anos sua regulamentação.

Fernando Facury Scaff 26 Lise Vieira da Costa Tupiassu Conforme comumente ocorre, através dos debates estaduais são estabelecidos diversos critérios de mensuração do valor a ser recebido a título de repasse financeiro, sempre levando em conta as peculiaridades naturais de cada região. Daí porque cada um dos Estados que se utilizam o sistema estabelece diferentes montantes a serem repartidos segundo a apreciação de diferentes aspectos ecológico-sociais.29 Os valores e critérios legalmente estabelecidos passam então a ser quantificados30 diante dos dados fáticos, proporcionando a definição de um ranking ecológico dos municípios. Deste modo, cada município receberá um montante proporcional ao compromisso ambiental por ele assumido, o qual será incrementado conforme a melhoria da qualidade de vida da população. Um dos pontos chaves da política é, portanto, a não criação de novo tributo, não subsistindo qualquer ônus financeiro para o Estado ou aumento da carga tributária dos contribuintes.31 Trata- se, unicamente, da adoção de critérios ambientalmente relevantes para a repartição das receitas normalmente obtidas.32 Além disso, o ônus operacional é mínimo.33 Normalmente, para a realização do cadastro das unidades de conservação e quantificação dos itens elencados pela legislação – cuja atualização deve ser constante a fim de proporcionar a perfeita consonância dos repasses financeiros com a realidade municipal, a própria estrutura administrativa já existente poderá ser utilizada.

29 Neste sentido é possível observar exemplificativamente que os Estados do Paraná e Rondônia adotam critérios ecológicos para o repasse aos municípios de 5% do valor total do ICMS arrecadado, enquanto que São Paulo afeta 0,5% e Minas Gerais 1%. Embora todos os Estados privilegiem o critério unidades de conservação, outros fatores somam-se a este, como no caso de Minas Gerais, que incentiva também o desenvolvimento de redes de saneamento; ou Paraná, que traz como critério adicional os municípios que dispõem de mananciais de água servindo a municípios vizinhos. Para quadro detalhado dos critérios utilizados por cada um dos municípios ver BACHA, Carlos José Caetano & SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Experiências brasileiras na implementação do ICMS Ecológico, p. 189; Grieg-Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in ; CAMPOS, Léo Pompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e alternativas na Amazônia. 30 Alguns critérios adotados pelos Estados necessitam de uma análise um pouco mais complexa do que a simples quantificação aritmética. No caso do Paraná, por exemplo, realiza-se também uma análise qualitativa das unidades de conservação. Em Minas Gerais, o critério relativo à implementação de sistemas de saneamento toma em consideração a porcentagem da população beneficiada com a estrutura sanitária. 31 “Na verdade não se trata de uma nova modalidade de tributo ou uma espécie de ICMS, parecendo mesmo que a denominação é imprópria a identificar o seu verdadeiro significado, de vez que não há qualquer vinculação do fato gerador do ICMS a atividades de cunho ambiental. Da mesma forma, como não poderia deixar de ser, não há vinculação específica da receita do tributo para financiar atividades ambientais. Não obstante, a expressão já popularizada ICMS ECOLÓGICO está a indicar uma maior destinação de parcela do ICMS aos municípios em razão de sua adequação a níveis legalmente estabelecidos de preservação ambiental e de melhoria da qualidade de vida, observados os limites constitucionais de distribuição de receitas tributárias e os critérios técnicos definidos em lei”. Pires, Éderson. ICMS Ecológico – Aspectos Pontuais – Legislação Comparada. 32 “Na prática, o que aconteceu foi uma reciclagem do dinheiro que antes já era distribuído por outro critério, o valor adicionado”. LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivo econômico à conservação da biodiversidade, uma experiência exitosa no Brasil, p. 56. 33 LOUREIRO comenta a respeito, de acordo com os dados do Paraná, onde “o custo total para a execução do Programa para o IAP, em 1995, foi de aproximadamente R$ 56.000,00 (cinqüenta e seis mil reais), considerando salário de técnicos, encargos sociais, combustível, depreciação de veículos, etc.” LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivo econômico à conservação da biodiversidade, uma experiência exitosa no Brasil, p. 56.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 27 Ao fim, caberá aos Tribunais de Contas (também no exercício de suas funções constitucionalmente definidas), e principalmente, à população – utilizando-se dos inúmeros meios de pressão e controle que lhe são legalmente disponibilizados – o acompanhamento e fiscalização dos repasses financeiros, da utilização dos valores recebidos e da busca pelo seu incremento, bem como o exame da veracidade das informações prestadas, que basearam a distribuição. Ressalte-se que tal atitude pode ser estimulada e otimizada pela própria ação dos Estados, os quais arcam com a tarefa de informar não só as administrações municipais, mas também a população, dando transparência à execução da política fiscal-ecológica. Desta forma, mais facilmente será construída uma consciência ecológico-social que, numa cadeia positiva, incentivará a otimização das ações ambientais realizadas pelos municípios com vista ao aumento do repasse financeiro e também ao bem-estar da sociedade como um todo.

5. O ICMS ECOLÓGICO NA EXPERIÊNCIA DE ALGUNS ESTADOS BRASILEIROS

O Paraná foi o primeiro Estado brasileiro a adotar instrumentos normativos que implementassem novos critérios de repartição de receitas do ICMS, como solução diante de reivindicações das autoridades municipais prejudicadas com as restrições ao desenvolvimento clássico, em função da proteção ao meio ambiente. Assim, foi aprovado um dispositivo na Constituição Estadual e, sucessivamente, adotados a Lei Estadual n.º 9.491, a Lei Complementar n.º 59 e o Decreto Estadual n.º 974/91, que introduziram e regulamentaram critérios ecológicos para repasse das verbas municipais do ICMS. Por conseguinte, o Paraná foi o primeiro Estado a experimentar os resultados extremamente positivos da adoção do ICMS Ecológico. O número de municípios beneficiados eleva-se a cada ano. Em 1992, foram 112; em 1998, o número já havia aumentado para 192 municípios.34 Conseqüentemente, os dados da preservação ambiental no Estado mantém-se em constante crescimento. Estima-se que, desde a aprovação da Lei do ICMS Ecológico, em 1991, as áreas protegidas no Paraná aumentaram 950%,35 e que nos cinco anos de efetivo

34 LOUREIRO, Wilson. Incentivos fiscais para conservação da biodiversidade no Brasil, p. 41. 35 LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico: incentivo econômico à conservação da biodiversidade, uma experiência exitosa no Brasil, p. 56.

Fernando Facury Scaff 28 Lise Vieira da Costa Tupiassu desenvolvimento do projeto, conseguiram-se resultados maiores e melhores do que em 60 anos de políticas públicas em áreas protegidas.36 O segundo Estado a adotar a política do ICMS Ecológico foi São Paulo, com uma Lei Complementar promulgada no fim de 1993.37 Desde lá, muitas áreas já foram beneficiadas, como a região do Vale da Ribeira, onde as possibilidades de desenvolvimento produtivo se mostravam, a princípio, bastante limitadas em função das proibições de pesca e extrativismo. Com o ICMS Ecológico os municípios localizados nesta área de Mata Atlântica já se sentem mais recompensados, buscando alternativas para o seu desenvolvimento aplicando vultuosos recursos em projetos de ecoturismo. Aliás, com a implantação do novo sistema de eco-repartição financeira, verificou-se um sensível aumento de receita em cerca de 23,56% dos municípios de São Paulo,38 muitos dos quais passaram a ter, pelos critérios do ICMS Ecológico, a maior parcela de seus recursos, representando fundamental avanço em seu desenvolvimento. A título de exemplo veja-se o caso de Iporanga, cujo percentual de 77% de todo o repasse de ICMS a que faz jus é proveniente dos critérios ecológicos.39 Seguindo a linha dos bons resultados, o número de municípios beneficiados elevou-se de 104, em 1994, para 152 em 1999, chegando a 169 em 2003.40 Tal crescimento incentivou a adoção de outro sistema que considera, inclusive, a ação ambiental do município em relação às áreas protegidas.41 Experiência vitoriosa e bastante difundida é a da implantação do ICMS Ecológico em Minas Gerais. Com a adoção da Lei Estadual n.º 12.040, de 28 de dezembro de 1995 – conhecida como “Lei Robin Hood” – Minas Gerais revolucionou os critérios de repasse dos 25% de ICMS aos municípios, passando a beneficiar não apenas os municípios que abrigam unidades de conservação, como também aqueles que possuem sistema de tratamento de esgoto ou disposição final de lixo – atendendo a maior parte da população –, introduzindo também critérios de educação, patrimônio histórico e saúde, entre outros.

36 IAP. ICMS Ecológico: o presente do Paraná para o futuro do Brasil. 37 Lei Complementar Estadual n.º 8.510, de 23 de dezembro de 1993. 38 CAMPOS, Léo Pompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e alternativas na Amazônia, p. 15. 39 Ver ICMS Ecológico beneficiou 169 municípios de São Paulo em 2002, p. 1. Ver também BACHA, Carlos José Caetano; SHIKIDA, Pery Francisco Assis. Experiências brasileiras na implementação do ICMS ecológico, p. 202. 40 Ver ICMS Ecológico beneficiou 169 municípios de SP em 2002, p. 1. 41 Embora instituído pela Lei n.º 9.146, de 9.03.95, o sistema ainda aguarda regulamentação, não estando em vigor. CAMPOS, Léo Pompeu de Rezende. ICMS Ecológico: Experiências nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e alternativas na Amazônia, p. 15.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 29 No que tange ao objetivo redistributivo, o resultado do ICMS Ecológico mineiro foi imediato. Logo no primeiro ano – quando ainda não estavam em vigor os índices definitivos – quase 500 municípios obtiveram aumentos de receita maiores que 100%, sendo que em 38 deles, o aumento superou 1.000%. A parcela per capita mínima, que era de R$ 0,88, elevou-se para R$ 15,12, enquanto que a parcela per capita máxima de R$ 684,53, diminuiu para R$ 587,99.42 A introdução do federalismo fiscal ecológico na região amazônica foi realizada pelo Estado de Rondônia,43 através da redução de 5% do valor anteriormente repassado aos municípios de forma igualitária – que somava 19%, e ficou com 14% –, o qual passou a ser redistribuído aos municípios que detém áreas de conservação ambiental. Os resultados obtidos com o novo sistema já são visíveis. A partir de 1997, municípios obtiveram um aumento em seus repasses de ICMS.44 Um exemplo é o município de Jamari, que abriga em seu território um total de 55,31% de áreas ambientalmente protegidas, tendo experimentado um acréscimo de 217,65% em suas quotas de ICMS. Guarajá-Mirim, com 88% da sua área dedicadas a unidades de conservação obteve um aumento médio por habitante no cálculo do ICMS municipal.45 Ao lado dos benefícios trazidos aos municípios, o ICMS Ecológico de Rondônia serve a derrubar o argumento de parte de políticos e empresários da Amazônia que defendem a exploração sem critérios de preservação da floresta como única forma de obtenção de recursos na região.46 A ampliação do debate sobre a utilização de instrumentos econômicos e tributários nas políticas públicas ambientais, o aprimoramento institucional das entidades públicas no que tange ao trato do meio ambiente e a influência no desenvolvimento estadual e nacional de políticas semelhantes, são fatores que, ao lado do incremento da qualidade de vida das populações e das áreas de proteção ambiental, representam de modo especial o sucesso do ICMS Ecológico.47

42 RIANI, Flávio. O novo critério de repartição do ICMS aos municípios mineiros: avaliação dos resultados e sugestões, p. 221. 43 Experiência que, infelizmente, permanece isolada na região. 44 Grieg-Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in Brazil, p. 7. 45 GARCIA, Roseli. Cidades Descobrem Nova Moeda. 46 GARCIA, Roseli. Cidades Descobrem Nova Moeda. 47 Para detalhes específicos sobre os resultados positivos do ICMS Ecológico em todos os âmbitos citados, consultar LOUREIRO, Wilson. Incentivos fiscais para conservação da biodiversidade no Brasil, p. 35 e s.s.

Fernando Facury Scaff 30 Lise Vieira da Costa Tupiassu Seguindo as excelentes experiências demonstradas pelos Estados já adotantes do ICMS Ecológico, com resultados amplamente positivos no que tange às políticas ambientais municipais, considera- se satisfatório o uso deste tipo de intervenção econômica por parte dos poderes públicos, fazendo com que seus méritos ecoem pelo Brasil afora. Vários outros Estados brasileiros já estudam a possibilidade de implementar projetos semelhantes aos aqui discutidos. Diante desta enorme expansão, chega-se, até mesmo a cogitar acerca de uma proposta nacional de ICMS Ecológico. Em junho de 1998 foi apresentado no Senado um projeto de autoria da senadora Marina Silva (PT-AC) que cria uma reserva de 2% do Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal para Estados que abrigarem Unidades de Preservação da Natureza e terras indígenas demarcadas,48 como parte de um conjunto de ações no sentido de fazer uma combinação entre preservação do meio ambiente e desenvolvimento econômico. Segundo a senadora, tal proposta implica pequeno impacto sobre a redução global dos recursos do fundo, mas com grandes resultados em relação ao incentivo à preservação ambiental, na esteira do que ocorre com o ICMS Ecológico. O modelo já foi aprovado no Senado e agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados.49/50

6. ANÁLISE DA PROPOSTA DE IMPLANTAÇÃO DO ICMS ECOLÓGICO NO PARÁ

Espelhando-se nas experiências ocorridas no resto do Brasil, o Estado do Pará iniciou em 1999 as discussões visando à implementação do ICMS Ecológico. O Estado é o segundo maior da região Norte, tendo um território de 1.253.164,5 Km2 – equivalente a mais de duas vezes o território da França –, sendo conhecido como a porta de entrada da Amazônia. No entanto, hoje em dia, é um dos recordistas em desmatamento florestal e sofre incessantemente os problemas deixados pelas diversas políticas de desenvolvimento malogradas.

48 Cf. Ata da Sessão do Plenário do Senado Federal referente a 72.ª Sessão Não Deliberativa de 19/06/1998. 49 A respeito, consultar PLS 00053/2000, no Senado; e PLP 00351/2002, na Câmara dos Deputados. 50 Cumpre ressaltar, contudo, que de tempos em tempos surgem propostas de alteração do sistema tributário que podem vir a modificar a sistemática de federalismo participativo inviabilizando a manutenção da atual sistemática de ICMS Ecológico adotada pelos Estados.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 31 O modelo de crescimento ainda em vigor, acopla-se a uma necessidade de exploração desregrada dos recursos naturais, o que leva muitos administradores à irresistível tentação de relegar o valor estático do meio ambiente preservado, em nome da suposta riqueza dinâmica da sua destruição. No entanto, o ponto mais relevante deste desenvolvimento insustentável na Amazônia é a desvalorização do homem que lá vive. Muito pouco dos resultados econômicos obtidos na região retornam em benefícios à população local. A repartição de receitas estaduais aos municípios paraenses, contudo, ainda não teve condições de considerar esta realidade, mantendo-se substancialmente vinculada a critérios materiais de produtividade, população e território, cujo aspecto formalista não permite ter em conta sua reversão qualitativa em reais benefícios à população. Todavia, de acordo com os mandamentos básicos de nossa Carta Constitucional, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa brasileira e princípio da ordem econômica e social, não havendo desenvolvimento sem que isso seja observado.51 Portanto, o Estado, enquanto idealizador de políticas públicas, deve atuar de modo positivo, visando realizar substancialmente tal princípio, fornecendo meios para a sua concretização. A repartição de receitas tributárias presta-se a este objetivo, sendo o ICMS Ecológico, uma tentativa de estabelecer uma função social e ambiental à arrecadação tributária dos municípios. Tal consciência permeou o texto da Constituição Estadual do Pará, que em seu Art. 225, § 2.º assegurou o privilégio de tratamento para os municípios que abrigam unidades de conservação em relação à parcela de repasse de ICMS de que trata o Art. 158, parágrafo único, II da Constituição Federal. Contudo, tal dispositivo aguarda há 12 anos sua regulamentação. Buscando suprir esta lacuna, estudos realizados pelos autores deste, tendo por base as diferentes experiências nacionais, culminaram pela elaboração de um Anteprojeto de Lei, voltado para o estabelecimento de novos critérios de distribuição da parcela municipal disponível do ICMS.52 A proposta em discussão no Estado do Pará busca adequar-se à realidade da região e inova, estipulando critérios sócio-ambientais de

51 A respeito consultar TUPIASSU, Lise V. da Costa. Tributação Ambiental: a utilização de instrumentos econômicos e fiscais na implementação do Direito ao Meio Ambiente saudável, p. 48 e s.s. 52 O resultado de tal estudo, que sugeria a implementação do ICMS Ecológico no Estado do Pará, foi apresentado à Assembléia Legislativa do Estado pela então deputada Maria do Carmo Martins de Lima – PT (Projeto de Lei n.º 131/2001), sendo objeto de discussão desde o 2.º semestre de 1999.

Fernando Facury Scaff 32 Lise Vieira da Costa Tupiassu distribuição de todo o percentual de repasse deixado à competência legislativa estadual, tendo por fim servir de instrumento amplamente incentivador de iniciativas políticas compatíveis com a preservação dos recursos naturais e da qualidade de vida da população. A forte redistribuição que se visa implementar, tem como justificativa a ampla necessidade de redirecionar as políticas públicas municipais, proporcionando aos administradores a compreensão de que a manutenção do meio ambiente e da dignidade da população não são valores estáticos. Ao contrário, poderão ser percebidos mês a mês, através do aumento nos repasses do município. A definição dos critérios abarcados pelo projeto paraense, a exemplo da legislação mineira, foi feita observando os principais fatores responsáveis pela boa qualidade do meio ambiente, seguindo as definições da Lei Federal n.º 6.938/98 e privilegiando, além dos elementos biológicos, tais como saúde e saneamento, a educação, fundamental para o desenvolvimento de uma consciência cidadã e conhecedora da importância da preservação ecológica. A introdução de critérios sociais é condição essencial para a mitigação das conseqüências redistributivas nefastas, possivelmente resultantes da alteração legal. Tal abertura permite uma ampliada gama de investimentos por parte dos municípios, sendo certo que, embora em pequenas proporções, todos serão agraciados na repartição de verbas. Assim, considerando o montante total da parcela de ICMS que a Constituição Federal e a Estadual permitem normatização estatal, o projeto em tramitação no Pará define que:

• 35% sejam rateados privilegiando os municípios que têm maior parte de seu território coberto por áreas destinadas a Unidades de Conservação Ambiental e Espaços Territoriais Especialmente Protegidos, de acordo com as definições legais; • 25% privilegiem os municípios que tenham, relativamente, maior número de crianças matriculadas no Ensino Fundamental e menor taxa de evasão escolar; • 20% sejam distribuídos para municípios que tenham maior número de pessoas atendidas pelo sistema de saneamento, e; • 20% rateados em observância ao percentual relativo de leitos hospitalares disponíveis à população e conforme o inverso do coeficiente de mortalidade infantil dos municípios.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 33 Desta forma, o montante total de repasse aos municípios segue a seguinte proporção:

GRÁFICO I – Proposta de Repartição da Quota-Parte Municipal do ICMS no Pará

Nestes termos a proposta de instituição do ICMS Ecológico no Pará representa extraordinária contribuição para o desenvolvimento global do Estado, visto que, através da maximização da finalidade social de tributo já existente, estimula a aplicação dos recursos em prol da política ambiental, introduzindo novos valores – em todos os sentidos – ao desenvolvimento sustentável dos municípios, procuran- do trazer a prosperidade econômica e social já verificada em outras regiões do país. A conseqüência imediata desta nova repartição seria a disponibilização de pelo menos R$ 1,65 milhão apenas segundo o critério de Unidades de Conservação.53 Assim, municípios com poucas condições de produtividade, mas detentores de grandes áreas florestais, guardarão muito interesse em sua manutenção.54 Além disso, o grande relevo dado aos critérios sociais, servirá a otimizar os investimentos municipais. Pela lógica, o administrador que melhor investir em educação, saúde e saneamento receberá mais. Com a nova repartição, ao contrário da anterior, mais vale uma pequena população com qualidade de vida, que uma grande população sem dignidade.

53 Cálculo baseado na repartição municipal de outubro/2000, conforme noticiado na Gazeta Mercantil Pará de 22/11/2000. Ver FIJIYOSHI, Silvia. ICMS Ecológico pode ser implantado. 54 Exemplos claros são Belterra, Aveiro – localizados no meio da Floresta Nacional do Tapajós – e Santarém – ocupado pela Reserva Extrativista Arapiuns – Tapajós –, conforme comentário da deputada Maria do Carmo Martins, noticiado em FIJIYOSHI, Silvia. ICMS Ecológico pode ser implantado.

Fernando Facury Scaff 34 Lise Vieira da Costa Tupiassu Entretanto, a implementação do sistema também envolve muitos problemas. Por óbvio, o impacto redistributivo descontenta os municípios “perdedores”,55 o que dificulta sensivelmente a aprovação da proposta.56 Ademais, a extensão territorial do Estado ainda não permitiu uma perfeita visualização dos impactos da alteração financeira, o que exige ainda algum trabalho de pesquisa e cadastro. No entanto, ainda que se admita a necessidade de um longo processo para a efetiva concretização do sistema, importante é o seu prosseguimento e divulgação, como início de uma conscientização que, a exemplo do ocorrido em Pernambuco, pode resultar em melhorias qualitativas antes mesmo de entrar em vigor. Deste modo, esta proposta de instituição do ICMS Ecológico representa extraordinária contribuição para o desenvolvimento global do Estado do Pará e da Amazônia, já que, através da maximização da finalidade social de tributo já existente (sem criar ou majorar a carga tributária), estimula a aplicação dos recursos em prol da política ambiental, induzindo ao desenvolvimento sustentável dos municí- pios, trazendo prosperidade econômica e social.

7. CONCLUSÕES

Através da interpretação aberta e sistemática da Constituição Federal, não se pode fechar os olhos para a realidade do uso do direito tributário para a consecução de políticas públicas necessárias ao desen- volvimento nacional, fazendo com que o Direito cumpra um novo papel diverso daquele tradicional, de instrumento de segurança das relações sociais. Mais do que isso, ele deve ser usado para dirigir a sociedade no alcance de determinados fins prescritos na Carta da República. Uma dessas finalidades é a de obter um meio ambiente equilibrado como elemento da própria dignidade da pessoa humana, direito fundamental dos cidadãos, preocupação global da sociedade moderna, o qual deve necessariamente ser levado em conta na definição dos objetivos das políticas econômico-fiscais, cuja compatibilidade prática se mostra irrefutável na realidade nacional, através da análise do ICMS Ecológico. A transferência, segundo critérios ecológicos, da parcela do ICMS pertencente aos municípios representa um verdadeiro

55 Expressão utilizada por MARYANNE GRIEG-GRAN, que analisa cuidadosamente a questão. A respeito consultar Grieg- Gran, Maryanne. Fiscal Incentives for Biodiversity Conservation: The ICMS Ecológico in Brazil. 56 Aliás, as disputas políticas envolvendo a proposta resultaram no trancamento da tramitação do projeto que, após audiência pública, manteve-se parado e atualmente encontra-se em vias de arquivamento.

Tributação e Políticas Públicas: O ICMS Ecológico 35 redimensionamento de valores, nos dois sentidos que o termo pode adquirir. De um lado, porque tal política realmente altera o montante de verbas orçamentárias a ser recebido pelos municípios, beneficiando os que contribuem com a melhoria da qualidade de vida da população. Por outro lado, e principalmente, porque a implementação de tal política resulta, naturalmente, numa nova forma de compreender os valores que pautam o desenvolvimento local. Doravante, não apenas a implementação de indústrias poluentes traz ganhos financeiros para os municípios; a preservação de áreas verdes, a construção de redes de esgoto, escolas e hospitais também passam a ser sinônimo de aumento da receita e desenvolvimento. Dessa forma, pensa-se contribuir para a imposição de um conteúdo verdadeiramente substancial à tributação, dela fazendo um instrumento forte para a promoção de uma vida mais digna aos brasileiros. Constata-se, então, que a tributação – em seu amplo sentido – pode e deve ser utilizada como instrumento de política pública ambiental. Indo um pouco mais além, verifica-se que, diante do aparato jurídico hoje existente no Brasil, despicienda é a realização de radicais reformas constitucionais e tributárias para o alcance de tal propósito. A tributação ambiental já se encontra albergada pela Constituição Federal. Cabe-nos dar a ela uma nova leitura e, principalmente, colocar em prática os princípios que compõem seu sistema, sem criar necessariamente um novo tributo. Esta é a lição maior a nos ser dada pela prática do ICMS Ecológico.

Fernando Facury Scaff 36 Lise Vieira da Costa Tupiassu Cultura y naturaleza: la construcción del imaginario ambiental bio(socio)diverso

Joaquín Herrera Flores1

A Fernando Dantas, una explosión de sueños y espirales

1. DE LOS VÉRTICES A LOS VÓRTICES: ABRIENDO EL CAMINO AL IMAGINARIO AMBIENTAL BIO(SOCIO)DIVERSO

e nuestra definición de proceso cultural, surge con Dfuerza una convicción: entre lo cultural y lo natural, no sólo hay una estrecha relación, sino que su imbricación es tan fuerte y profunda que lo uno no puede entenderse sin lo otro y viceversa. Citemos la interpretación que el joven Hegel, en sus conversaciones con Hölderlin, hizo de la leyenda de Babel. Al igual que Dante, Hegel añade al texto bíblico del Génesis las tesis de Flavio Josefo acerca de la intervención de “Nemrod”, el símbolo del poder técnico sobre la naturaleza, y lo opone a “Abraham”, el símbolo del desprecio a todo lo natural y la entrega absoluta a la omnipotencia del verbo divino. Hegel comienza su interpretación de Babel mostrando cómo los seres humanos después del Diluvio comenzaron a perder la confianza en la naturaleza y fueron convirtiéndose poco a poco en enemigos de ella. Los seres humanos se consideran, pues, a sí mismos como la diferencia específica con respecto a los procesos naturales: ¡somos humanos, entonces no somos naturaleza!, ya que ésta, a causa del Diluvio Universal, ha destruido todo lo que habíamos construido desde la expulsión del paraíso.

1 Director del Programa de Doctorado en Derechos Humanos y Desarrollo (Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España)

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 37 Dicha enemistad y desconfianza se instaló definitivamente en la conciencia de los seres humanos, instaurando con ello el eterno conflicto entre lo cultural y lo natural que ha contaminado gran parte del pensamiento filosófico y científico originado en el espacio cultural occidental. Ahora bien, esta enemistad y desconfianza siguió dos derroteros: uno el representado por Abraham, el cual, tras negar y abjurar de la naturaleza, se entregó a un Señor todopoderoso, superior a la misma naturaleza, abstracto y eterno, capaz de garantizar al ser humano una participación en su poder por alejado de la realidad empírica que éste pudiera encontrarse. Este es el mecanismo básico de cualquier fundamentalismo trascendental. Otro camino era el representado por Nemrod, el gigante fundador de ciudades y constructor de torres, que, más que entregarse a la divinidad abstracta, dedicó todos sus esfuerzos al dominio y sujeción técnicos de la naturaleza, contraponiéndole toda la potencia humana de explotación y control de los procesos naturales, como única posibilidad de supervivencia en un mundo natural capaz de la mayor de las destrucciones. Félix de Azúa2 resume este doble recorrido: Nemrod, según el texto hegeliano, logró reunir a los supervivientes dispersos y desconfiados que habían conocido el Diluvio y fundó con ellos una tiranía basada en la expansión técnica. Abraham, en cambio, se separa absolutamente de la naturaleza, la desprecia, y ni siquiera se digna trabajarla. La historia del espacio cultural occidental halla mejor sus orígenes en las múltiples interpretaciones de Babel que en las plurales filosofías desarrolladas en la Grecia clásica. Entre esas diferentes interpre- taciones de la construcción de la Torre, construida por los seres humanos con el objetivo de protegerse del próximo y seguro Diluvio, se instaura la dicotomía esencial de nuestro espacio cultural occidental: lo cultural “versus” lo natural. Como es factible ver en los desarrollos posteriores de nuestra forma de percibir y actuar en el mundo, dicha dicotomía ha tenido enormes y, en la mayoría de los casos, funestas consecuencias para nuestra autoconciencia y nuestra forma de construir la sociedad política: sociedad basada en dualismos tales como lo “civilizado” y lo “bárbaro” (aquél considerado como ente de cultura y éste como inculto, como ser natural); lo “público” (lo que se construye a través del pacto social) y lo “privado” (lo que está sometido a las pasiones, a los intereses, a las luchas por la supervivencia concreta y corporal). Queriendo huir de las

2 Azúa, Félix de, “Siempre en Babel”, número monográfico sobre Formas del Exilio, publicado en la revista Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, 26-27, 1996, pp. 30-31. Cfr. también Dragonetti, R.,. “Dante face á Nemrod” en Critique, 387-388, 1979, pp. 690-706; Bourgeois, B., “Hegel á Francfort”, Vrin, Paris, 1970; Steiner, G., Después de Babel, F.C.E., Madrid, 1981; Meschonnic, H., (edit.), Les Tours de Babel, TER, 1985.

38 Joaquín Herrera Flores “amenazas” y, sobre todo, de las “determinaciones” naturales a las que como cuerpos vivientes y sintientes estamos sometidos, todo nuestro espacio cultural se ha construido, de un modo u otro, sobre las diferentes salidas imaginarias ante tal relación, aunque, como vemos, las versiones dominantes coincidan, bien con la figura de Nemrod, la explotación de lo natural dirigida por el fundamentalismo técnicista; o la huida de Abraham de todo lo que signifique cuerpo o naturaleza, para entregarse al mayor de los fundamentalismos trascendentales que han dominado nuestros procesos culturales: el monoteísmo de un dios vengador y amenazante. Esta convicción nos sitúa – sobre todo a quienes consideramos que lo cultural tiene que ver con toda forma de reacción simbólica y significativa ante los entornos de relaciones que mantenemos con los otros, con nosotros mismos y con la naturaleza – en el límite, en la frontera, entre las teorías de la cultura que, como en el caso del Babel de Hegel, niegan cualquier relación con lo natural y se entregan a juegos metafísicos, religiosos o puramente tecnicistas, y las teorías que, como es el caso de los biologicismos que pululan por nuestro mundo, hacen depender absolutamente las producciones culturales de algún gen cultural que albergamos en nuestros circuitos neuronales. Admitiendo, asimismo, que entre los procesos naturales y los seres humanos media la reacción cultural, nos situamos, de nuevo, en otro límite, en la frontera entre aquellas teorías que podríamos denominar como teorías orientadas a lo verde, en las que la naturaleza aparece como todo aquello que nada tiene que ver con la tarea cultural de los seres humanos, y las teorías orientadas a la historia, en las que la cultura se entiende sin su ineludible interrelación con todo lo que es extra-cultural, es decir, con todo lo que sustenta biológicamente las capacidades y posibilidades de actuar culturalmente sobre el mundo. Tanto un grupo de teorías como otras son reduccionismos. El primer grupo, reduce la mirada cultural al paisaje o a la reserva natural, pues defienden que extasiarse contemplando u observando la naturaleza no tiene nada que ver con admirar la catedral de León; obviando que tal posición significa ya una forma, culturalmente determinada de “ver y mirar” la naturaleza. El reduccionismo del segundo grupo de teorías, tiene que ver con la simplificación de admirar la catedral de León sin tener en cuenta sus materiales o los efectos que sobre sus muros ejercen los fenómenos naturales, sean estos producidos por el poder corrosivo de la lluvia, como por el factor, ya puramente humano, de la contaminación ambiental.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 39 Desde que, simbólicamente, fuimos expulsados del paraíso, es decir, desde que, repitámoslo, simbólicamente, comenzamos a sentirnos seres humanos con cuerpo, o, en otros términos, desde que comenzamos a sentirnos como seres humanos naturales, las relaciones entre el hacer cultural y sus ineludibles zonas de contacto con la naturaleza han constituido gran parte de las controversias culturales mantenidas por una humanidad que niega la “justicia” de dicha expulsión. En el paraíso terrenal, éramos todo menos “terrenales”. Fuera del paraíso, adquirimos plenamente la condición de seres humanos naturales que viven en la tierra, que tienen que satisfacer necesidades, que van a morir y que tienen que trabajar para poder sobrevivir. Al haber asumido, simbólicamente, la expulsión como un castigo con su consiguiente sentimiento de culpabilidad, la enemistad entre lo que consideramos humano y los procesos naturales se fundó sobre bases tan sólidas como duraderas. Recordemos el viaje alucinante de Marlowe, el personaje central de El corazón de las tinieblas de Joseph Conrad, hacia el interior de la naturaleza salvaje y selvática del África profunda. El “horror” con que se encuentra Marlowe al encontrar al mítico Kurtz, ese comerciante que abandona la civilización para entregarse al flujo violento de la naturaleza inculta – y que tan magníficamente retrató Coppola en su Apocalipse Now-, no es más que un nuevo grito contra la entrega de la humanidad a los designios de lo natural. La naturaleza es nuestra enemiga. La cultura es nuestro refugio. Construyamos barreras contra la intromisión de lo natural en lo cultural. Levantemos muros de cemento y de filosofías “humanistas” que sólo nos protegerán de las inclemencias de los fenómenos naturales, pero que, al final, nos recordarán que, más allá del asfalto y más allá del humanismo, existen las bases a partir de las cuales el edificio cultural se ha levantado hasta el cielo de Babel: la naturaleza, lo extra-cultural, no lo que niega la relación cultura y naturaleza, sino lo que se sitúa en el límite de ambas categorías, recordándonos constantemente que, de nuevo, estamos ante una relación, no ante un dualismo en el que uno de los polos de la dicotomía acaba dominando al otro. Para nosotros, la cultura hay que verla como el producto de un proceso continuo de reacción simbólica con respecto a las formas específicas de relación que mantenemos no sólo con los otros y con nosotros mismos, sino, de un modo básico y fundamental, con la naturaleza. De ese modo, en dicha definición de proceso cultural comenzaban a darse cita tres imaginarios culturales, o, mejor dicho, la construcción de tres imaginarios culturales que sólo podrán

40 Joaquín Herrera Flores manifestarse cuando entendamos los procesos de reacción cultural, no como algo pasivo, estático o identitario, sino como la propuesta interactiva y colectiva de nuevos procesos de significación y re- significación del mundo. Decíamos, pues, que lo cultural podía definirse genéricamente como el proceso humano de construcción, intercambio y transformación de signos a partir de los cuales los individuos y los grupos orientan sus acciones en los entornos de relaciones sociales, psíquicas y naturales en los que viven. Es decir, lo cultural es aquel conjunto de procesos por los cuales los seres humanos “explicamos” (el factor causal-estructural), “interpretamos” (el factor dinámico-metamórfico), e “intervenimos” (el factor dinámico-interactivo) en la realidad. Realidad que no debe confundirse con estados de hecho: explosión de un volcán o la lluvia torrencial o el paso de un tranvía. La realidad es algo más que la simple suma de estados de hecho; más bien, la realidad se constituye a partir de las diferentes y plurales formas de relacionarnos con los otros (el imaginario social instituyente), con nosotros mismos (el imaginario radical) y con la naturaleza (el imaginario ambiental biodiverso). Entendiendo por “imaginario” el continuo proceso de construcción simbólica de “signos culturales” que relacionan los objetos con que convivimos con las acciones que los crean, los reproducen y transforman. Nuestra idea de proceso cultural tiene, pues, un carácter dinámico y potenciador de eso que hemos designado “la capacidad humana genérica de hacer y des-hacer mundos”, es decir, de asimilar creativa y transformadoramente los entornos de relaciones en que nos ha tocado vivir. En este proceso cultural, el factor interactivo (la intervención colectiva en los entornos de relaciones) tiene una importancia esencial. De ahí, que hayamos propuesto un cambio de racionalidad que se sustente, no tanto en la imposición de una forma previa y pre- determinada y unos contenidos adecuados para tal forma, sino en la consecución de materiales que nos permitan aumentar las fuerzas (las capacidades y las posibilidades) de dichos colectivos que actúan con las vistas puestas en la transformación de las relaciones sociales, psíquicas y naturales. Los otros, la naturaleza y nuestra propia psique están ahí, constituyendo una esfera extra-cultural, es decir, una esfera que delimita un nosotros, un yo y una humanidad con respecto a un ellos, a los instintos y a los procesos naturales. Pero todos estos fenómenos se remiten los unos a los otros, pues es únicamente dejando que irrumpan los otros, las formas radicales de decir y decirnos la verdad y los procesos naturales, es como podremos

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 41 escapar de la jaula de barrotes de hierro (sistemas de coherencia) que nos impide percibir que las puertas de las habitaciones, y, por supuesto, de las cavernas, no sólo están para salir de ellas, sino para dejar entrar a los que –o a lo que- viene de afuera. Por esa razón, no nos sirve la figura interactiva de los “vértices”, la cual, bajo la forma de los no-lugares, nos sirve únicamente para identificar un tipo de relación cultural basada en intersecciones causales y atomizadas, en visiones puntuales y unidireccionales entre las diferentes coordenadas espaciales, y en la aceptación de un orden preestablecido y, por tanto, inmutable entre las mismas (el aeropuerto, el shopping, la consideración puramente “formal” del Estado de derecho, como punto-vértice de encuentro el día de las votaciones de ciudadanos hasta entonces al margen de lo político y lo social, o la naturaleza vista como meramente como paisaje para el turista o como espacio de explotación para la gran multinacional). Para entender nuestro concepto interactivo de proceso cultural, sobre todo cuando vamos a reflexionar sobre las formas relaciones de entender culturalmente la naturaleza y las formas naturales de entender bio(socio)diversamente lo cultural, mejor sería usar la figura de “vórtices”, en la que lo importante no es el punto sino la línea, la pluralidad de vías de enfoque sobre la unidireccionalidad y, en último lugar, el campo de fuerzas que en su interacción aumenta la complejidad del fenómeno a estudiar y, en la misma medida, su conflictividad, y no la ocultación de las relaciones de poder que a fin de cuentas eterniza el orden preestablecido. La zona de síntesis en que confluye la consideración del espacio cultural como “vórtice”, no es una zona pacífica donde se reproduzcan neutralmente las coordenadas espaciales que definen la concepción dominante del espacio. Son zonas de turbulencia, de conflictividad, de interacción y de choque. Esto no dice nada en contra de la interacción-vórtice. Al contrario, lo que se quiere resaltar con traer el conflicto, la turbulencia y el choque, es que nos colocamos, no en zonas de contacto puramente formales e instituidas, sino en zonas de contacto materiales e instituyentes, donde cabe la acción política transformadora de las “normas” (jurídicas, morales, consuetudinarias), las “formas” (científicas, filosóficas, conocimientos tradicionales) y las “hormas” (la plural y diferenciada configuración institucional que se ve más adecuada para los entornos de relaciones en que vivimos). En este espacio interactivo-vórtice es como podemos construir nuestro imaginario ambiental bio(socio)diverso. Pero vayamos por partes.

42 Joaquín Herrera Flores 2. LA NATURALEZA ES EL LUGAR DESDE EL QUE TENEMOS QUE ELEVARNOS 2.1. La co-implicación entre naturaleza y cultura: mitos cosmogónicos y modificación de los entornos

Hemos defendido, pues, que el proceso cultural coincide con el proceso de humanización, tanto de la naturaleza humana (imaginario social instituyente e imaginario radical) como de la naturaleza física y social (imaginario ambiental bio-socio-diverso) en el marco de una consideración relacional del concepto de entorno.3 A través de la construcción cultural nos vamos “humanizando”, es decir, vamos adquiriendo la capacidad de explicación, de interpretación y de transformación/adaptación del conjunto de relaciones que mantenemos con los otros, con nosotros mismos y con la naturaleza. O sea, “culturalmente” vamos construyendo un entorno puramente humano en el marco, claro está, de determinados contextos ambientales y de determinados condicionamientos biológicos y corporales. Como veremos más adelante, este entorno humano estará más o menos influido por dichos condicionamientos ambientales y biológicos en función del desarrollo, por ejemplo, de los instrumentos técnicos o de los avances científicos y sociológicos, pero es contando con ellos como los seres humanos vamos construyendo nuestra naturaleza de animales culturales y no meramente de animales sociales. Esta caracterización del ser humano como “animal cultural” es la que nos permitirá simbolizar culturalmente el esfuerzo humano por elevarse sobre estos condicionamientos, no negándolos ni invisibilizándolos, sino reconociendo su condición de elementos ineludibles en el arduo proceso de construcción de órdenes sociales, comunitarios y naturales de carácter puramente artificial. Por tanto, esa “artificialidad” – o mejor sería decir, artefactualidad – de nuestra

3 Como hemos visto ya, un entorno es el espacio construido por nuestra actividad relacional con respecto a los otros, a nosotros mismos y a la naturaleza. En ese sentido, es una concepción mucho más amplia que la meramente “ecológica” o “medio-ambiental”. De ahí, que hablemos de imaginario ambiental bio(socio)diverso. Un texto muy interesante para discernir entre ambas formas de entender las relaciones cultura-naturaleza es el de Kate Soper What is Nature?. Culture, Politics and the non-Human, Blackwell, Oxford, 1991. Asimismo, puede consultarse la siguiente bibliografía sobre el concepto amplio de entorno: Uexkull, J., von, Ideas para una concepción biológica del mundo, Espasa Calpe, Buenos Aires, 1945; Malpartida, A. R., “La noción de entorno en etología (Una discusión etimo-epistemológica), en Ecognition, 2(1), 1991, p. 39-46; Malpartida, A. R., y Lavanderos, L. “Una aproximación sociedad-naturaleza. El Ecotomo” Revista Chilena de Historia Natural, 68, 1995, p. 419-427; Malpartida A. R., y Lavanderos L. “Ecosystem and Ecotomo: a nature or society-nature relationship”, en Acta Biotheoretica, 48 (2), 2000, p. 85-94. Asimismo, aunque su idea de entorno “enactivo”, que pone en marcha los procesos de diferenciación sistémicos, no sea el elemento teórico que guía estas páginas, es interesante la lectura de Maturana, H. “Reality: The search for objectivity or the quest for a compelling argument”, en Irish Journal of Psychology, 9 (1), 1988, p. 25-82; y el ya clásico texto de 1982 de Maturana, H., y Varela, F. “Teoría de la autopoiesis” publicado en Cuadernos del Grupo de Estudio sobre Sistemas Integrados (GESI), 4, 1982.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 43 condición de animales culturales, no elimina de un plumazo las íntimas relaciones que mantenemos con los procesos naturales. Éstos “sustentan” nuestras habilidades culturales y, sin ellos, ni siquiera podríamos pensar de forma racional. Esta “relación” entre los procesos culturales y naturales es muy compleja y no puede reducirse al determinismo natural o al condicionamiento puramente cultural. Los entornos ambientales y las estructuras biológicas que sostienen nuestra capacidad humana de construcción cultural, influyen decisivamente sobre nuestra naturaleza de animales culturales. Ahora bien, como decíamos más arriba, dicha influencia dependerá, por lo menos, de dos factores: uno, el del grado de desarrollo alcanzado por la técnica – entendida ya, no sólo como conjunto de instrumentos, sino como medio de acción y transformación del entorno en función de las necesidades humanas que tenemos irremediablemente que satisfacer –; y otro, asimismo muy importante, que tiene que ver con las posibilidades de gozar de una información científica y narrativa de calidad que nos capacite tanto para adelantarnos a las posibles consecuencias o carencias de nuestra acción en el mundo, como para comunicar a los otros de los peligros que arrostra dicha praxis. Ambos factores nos permitirán construir un sistema de pensamiento y un conjunto de prácticas sociales que nos facilitarán un conocimiento detallado de las características de los procesos naturales y biológicos con los que no tenemos otro remedio que “relacionarnos” en la ingente tarea de la construcción del orden puramente humano. Por otro lado, no podemos dejar de reconocer que ese marco o entorno natural – en sí mismo, indiferente a nuestra existencia en el mundo –, “sufre” continuamente los efectos de nuestra acción. Sin embargo, por lo menos desde los inicios de la modernidad occidental a partir del siglo XV hasta la actualidad, el clima, la geografía, la misma estructura de la atmósfera o los tipos de plantas y animales que crecen a nuestro alrededor, han sido elementos que parecían no tener mucho que ver con las acciones y depredaciones humanas que a lo largo de los siglos se han llevado a la práctica con el objetivo de dominar a los otros y a la misma naturaleza para convertirlos en factores productivos. Lo natural, por lo menos en el espacio cultural occidental, nunca ha entrado explícitamente en el ámbito de lo político, es decir, en el marco de relaciones en el que interactúan seres “aparentemente” alejados de sus cuerpos, necesidades y contextos vitales. Lo político parecía estar siempre alejado de los procesos naturales. Mientras que lo natural siempre fue lo que había

44 Joaquín Herrera Flores que superar y de lo que había que separarse para poder dominarlo y reconducirlo a los procesos de acumulación y de explotación de todo lo que nos rodea. Aunque el sistema capitalista, como todo contenido económico de la acción social, siempre se ha sostenido, y seguirá sosteniéndose, sobre los recursos naturales necesarios para la obtención de beneficios, lo ha hecho obviando (por supuesto de un modo “explícito”, ya que “implícitamente” todo empresario capitalista sabe que sin los recursos naturales su exigencia de acumulación no podría ser satisfecha), que, en realidad, estamos en continua interacción con la naturaleza, sea para respetarla, sea para destruirla, sea, en última instancia, para construir una vida más humana. Dadas las inevitables interacciones entre lo cultural – véase, por ejemplo, las diferentes formas de entender lo sagrado – y lo natural – el entorno al que respetamos, tememos o con el que “colaboramos” para reproducirlo y reproducirnos –, no hay más remedio que reconocer – quizá a nuestro pesar como seres humanos que se consideran el centro del universo –, que lo que hemos hecho culturalmente, ha tenido su origen en condicionamientos ambientales, y que no puede admitirse la existencia de una naturaleza entendida al margen de lo que hacemos cultural, social, política o económicamente. El árbol, justo después de ser nombrado como tal, deja de ser un manojo de raíces, tronco y hojas, para convertirse en un signo cultural: por ejemplo, el punto que marca un lindero, o el lugar de sombra donde cobijarnos del sol o, por qué no, el objeto mágico/mítico que, como es el caso en la cosmogonía del pueblo Tikuna que habita en las partes altas del Río Negro, permite una relación respetuosa con la tierra, con el sol y con el agua. Pero no por eso el árbol deja de ser “naturaleza”. El árbol, aparte de signo cultural, forma parte de aquellas estructuras y procesos que son, en sí mismas consideradas, indiferentes a nuestra presencia activa en el mundo (en el sentido de que no son un producto humano, y en la mayoría de los casos se reproducirían mejor sin nuestra intervención), pero cuyas energías y poderes causales no podemos dejar de lado, ya que constituyen las condiciones necesarias de toda práctica humana. Esto es evidente cuando analizamos los mitos y narraciones que intentan simbolizar el origen de lo humano. Es decir, las producciones culturales a partir de las cuales se pretende “alegorizar” el paso de una vida inconsciente supeditada a los rigores legales de lo macrocósmico, tal y como diría Spengler, a una vida basada en la

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 45 consciencia de ser un “ser” humano que, al haber sido expulsado del paraíso, se sabe portador de un cuerpo, de una edad y de una capacidad de hacer que le permita, microcósmicamente, vivir con dignidad. Este paso de lo macrocósmico a lo microcósmico, de la inconsciencia a la consciencia, siempre fue temido por los dioses, y así lo demuestran las narraciones de Babel y de los castigos divinos a toda infracción de las reglas y prohibiciones por ellos establecidas, sea una infracción real, como en el caso de Prometeo, sea ficticia, como le ocurrió al ingenuo y sufrido Job. El ser humano pasa culturalmente de “tener conciencia de la vida” a disfrutar, o sufrir – depende de cómo se interprete la “caída” y la expulsión de los diferentes “paraísos” naturales que pululan por los diferentes procesos culturales –, de su autoconciencia. Al tener que trabajar durante una determinada cantidad de tiempo para satisfacer las necesidades de su cuerpo, es decir, al tener que enfrentarse a un mundo que se opone y se resiste al cumplimiento de sus apetitos, la autoconciencia –nos recuerda Fernando Savater4 – comienza a ser más y más capaz de valorar, de elegir, de jerarquizar sus deseos de acuerdo no ya sólo con la supervivencia sino con la afirmación autónoma de su querer. Esta autoconciencia es algo que surge, no a pesar de la interrelación con la naturaleza, sino, precisamente, a causa de la necesidad de actuar junto a -y con- ella para satisfacer las necesidades de un cuerpo ya mortal. Lo humano reside precisamente en el establecimiento de la relación entre las producciones culturales y los condicionamientos naturales. Por el contrario, es el “paraíso” el lugar donde no existe tal interrelación entre lo humano y lo natural, pues el individuo no tiene necesidad de relacionarse con la naturaleza: ambos están ahí dados de una vez para siempre, el uno diferente a la otra y viceversa. Es tras la expulsión del orden “natural” cuando surge “culturalmente” la naturaleza, y es en estrecha interacción con los condicionamientos naturales cuando surge la cultura. El (poco) tiempo de que disponemos y la exigencia de “hacer” para vivir con dignidad, son elementos de lo humano que no nos separan de la naturaleza sino, al contrario, la conciencia que de ellos tenemos es lo que nos induce a interrelacionarnos con ella, pero ya de un modo consciente, valorando, eligiendo y marcando las diferencias/preferencias entre unas cosas y otras, prefiriendo este orden a aquel otro, conservando esto y no aquello...es decir, estableciendo unas relaciones de marcada tendencia cultural. En el

4 Savater, F. Las preguntas de la vida, Ariel, Barcelona, 2002, p. 198.

46 Joaquín Herrera Flores orden mítico/natural los seres, aún no humanos, vivían en medio de los intersticios naturales sin tener necesidad de relacionarse con ellos de un modo activo; en el orden cultural/natural, son los hechos naturales los que se sitúan en los intersticios de la acción humana, la cual va alterando su valor y su significado en función del flujo de necesidades y exigencias que tiene que satisfacer. Así, en las narraciones míticas del origen de lo humano, en las que siempre se da algún tipo de violación contra prohibiciones preestablecidas, nos encontramos con la ingesta, no de algún animal (algo que está ahí), sino de algún tipo de vegetal (algo que hay que producir y transformar para que sirva como alimento) Es lo que ocurre en el mito de la expulsión del Edén cristiano a causa del bocado a la inocente manzana, y la de la pérdida del dilmun (paraíso sumerio) debido, en este último caso, a la atracción que tenían para Enki, el Señor de la Tierra, los diferentes productos vegetales con los que se encontraba a su paso y que lo impulsaban a probar sus diferentes y lujuriosos sabores. La importancia del “vegetal”, es decir, de lo que surge de la naturaleza por la propia intervención humana, es de una relevancia crucial para comprender el inicio de los procesos culturales, marcando la estrecha relación de solidaridad entre la actividad (cultural) de los seres humanos y los procesos naturales que conforman la naturaleza. Ese “trato con el vegetal”, como indicador de construcción de lo humano/cultural no es sólo patrimonio del acervo mítico occidental; también aparece en las tradiciones de algunos pueblos indígenas de la amazonía, mostrándose la continuidad cultural de todas las formas de vida que diferenciadamente reaccionan frente al conjunto de relaciones en el que viven. Es el caso de los Omáguas, pueblo amazónico considerado como colectivo especialmente adelantado con respecto a otros del entorno cultural/natural surgido en los márgenes del río Amazonas. Los nativos de dicho pueblo indígena, a pesar de las dificultades que el terreno selvático plantea para la agricultura, siempre han dedicado gran parte de sus esfuerzos al cultivo de la mandioca, el mijo y el algodón, y tal y como nos cuenta el cronista Cristóbal de Acuña, ha sido tradicionalmente considerado por sus coetáneos y coterráneos como un pueblo más desarrollado culturalmente. Del mismo modo, en el mito cosmogónico del pueblo de los Dessanas, habitantes del Alto Río Negro, la construcción del mundo se llevó a cabo por una mujer “nacida de sí misma” que ya no se alimentaba de los productos de la caza, sino que tomaba ipadu, un arbusto de hojas oblongas pequeñas que ostenta las mismas propiedades de la coca y es

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 47 cultivado por los indios del Alto Amazonas, y fumaba tabaco, de cuyo humo fueron surgiendo todas las cosas que componen el mundo humano.5 El trato y producción de vegetales, por consiguiente, trajo consigo una profunda modificación en los valores del cazador paleolítico, ya que sustituía al animal por el vegetal y transformaba la antigua zoolatría en el culto a la fecundidad. Ahora serán las “diosas- madres” las que, al haber acumulado el conocimiento necesario para la abundancia de vegetales (es decir, al haber sentado las bases de la agricultura y de la preparación “cultural” de los alimentos) las que intentan relegar – no con la suficiente fuerza (así lo demuestra la arraigada tendencia patriarcalista de nuestra forma de concebir y actuar en el mundo), pero sí con un gran poder simbólico- al “dios- padre” a su Olimpo de ociosidad celeste. Perséfone en Grecia, y Dumuzi en Sumeria, son diosas raptadas por las profundidades abismales que luchan para volver de nuevo a la tierra y propiciar así la fecundidad de los terrenos y campos transformados por los humanos para su supervivencia y su vida digna.. Perséfone y Dumuzi, constituyen la representación dramatizada, no ya del poder de la semilla del varón-dios, sino de las “metamorfosis” de la semilla producidas y reproducidas por la necesidad de alimentar cuerpos sometidos a los rigores de la edad, del trabajo y de la supervivencia. “El paraíso perdido por probar una planta – dice Antonio Escohotado6 – stá en los comienzos de la primera mitología escrita. El mundo tal cual es – no el jardín sin dolor y muerte donde, como dice el escriba sumerio, ningún león masacra, ningún lobo se lleva al cordero, ningún enfermo de los ojos repite que le duelen los ojos – comienza con la ingestión de un vegetal...”, y el vegetal no es lo original, es decir, algo dado espontánea e inicialmente, sino el producto de una “transformación”, de una “metamorfosis”, de una producción cultural de la naturaleza impuesta por la propia naturaleza del ser humano expulsado del concreto y específico “edén”. Naturaleza y cultura, pues, se co-implican, aunque nuestra tarea de actores culturales no consista en otra cosa que en intentar elevarnos por encima de esas “estructuras y procesos” para albergar la creencia de que no estamos determinados por nuestros cuerpos y nuestras necesidades. No por negar la dependencia absoluta de la naturaleza, nos convertimos en seres radicalmente artificiales. Construimos artificios para no depender absolutamente de dichos

5 Umusi Parokumu –Firmiano Arantes Lana- y Toramu Kehíri –Luis Gomes Lana, Antes o mundo nao existia; mitología dos antigos Desana-Kehíripora, 2.ª ed., Sao Gabriel da Cachoeira, UNIRT/FOIRN, 1995; Marcos Frederico Krüger, Amazônia. Mito e Literatura, Valer Editora, Manaus, 2003. 6 Escohotado, A. Historia de las drogas, Alianza Edit., Madrid, 1992, Vol. 1, p. 64.

48 Joaquín Herrera Flores condicionamientos; pero ellos están en la base de la lucha establecida culturalmente para construir el mundo humano. Pensar lo contrario, nos conduce a dos consecuencias de importantes resonancias sociales y humanas. En primer lugar, nos dirige al establecimiento del dualismo mente-cuerpo, y su consecuente jerarquización, en la que lo mental ocupa el lugar privilegiado y lo corporal, una posición absolutamente subordinada (e, incluso, para algunas religiones, pecaminosa y despreciable) La principal función de este dualismo jerarquizado radica en negar que nuestras necesidades y sus diferenciadas formas de satisfacción, sean considerados como “derechos humanos” tan fundamentales como la expresión de ideas y el respeto de creencias religiosas. Al partir de este dualismo, llegamos a pensar que lo único que nos hace ser seres humanos completos son los aspectos mentales o la pura actividad simbólica, ajena a, o al menos no influida por, los condicionamientos físicos o naturales. Estamos ante una “escisión” de tremendas consecuencias sociales pues dificulta enormemente la garantía jurídica de aquellas expectativas humanas que se concretan en lo que jurídicamente se denominan “derechos sociales, económicos y culturales” – categoría de derechos muy cercana a las necesidades vitales y básicas de las personas y pueblos: vivienda, salud, educación, trabajo, patrimonio histórico y natural..., y que requieren una intervención económica y social activa para su implementación real y concreta –, los cuales quedan en una posición subordinada con respecto a los “derechos civiles y políticos”, aparentemente ejercitables sin necesidad de intervención social, política o cultural alguna. La segunda consecuencia de no reconocer la interacción entre lo cultural y lo natural, es la de creer que las producciones culturales se dan en una especie de vacío simbólico sin contacto con los entornos donde se producen. Los productos culturales parecen existir en el vacío de los símbolos, o, por lo menos, sin contacto aparente con los contextos sociales y naturales desde, y para los que, surgen. A partir de aquí, se establece socialmente la creencia de que la cultura y sus producciones caminan por sí mismas, condicionan absolutamente nuestra acción en el mundo, y no tienen nada que ver, ni con los procesos sociales, políticos o económicos, ni con las exigencias que nuestra naturaleza de “animales” culturales nos impone a la hora de la satisfacción concreta de las exigencias corporales. Esta concepción “etérea” de lo cultural tiene graves consecuencias en el campo de los “derechos humanos”, ya que en

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 49 multitud de reuniones internacionales en las que se trata, en principio, de establecer deberes de solidaridad con los países empobrecidos por la globalización neoliberal, como ocurrió, por poner un solo ejemplo, en la Convención de Barcelona de mediados de los años noventa7 y en la que se reunieron los países europeos y los del Magreb, se postulan deberes de reconocimiento y apoyo mutuo en los aspectos culturales, como si éstos no estuvieran en relación con los procesos de liberalización y de apertura de mercados de los países del Sur hacia los productos del Norte. Parece que la cultura nada tiene que ver con los aspectos de desarrollo desigual entre el Norte rico y el Sur impotente, ya que trata únicamente de folclore, de espectáculo, y, a lo más, de acercamiento en cuestiones artísticas. La cuestión residiría, pues, en determinar si esa escisión entre los “derechos” sociales, económicos y culturales y los “derechos” civiles y políticos, es decir, esa sareparación dualista entre la mente y el cuerpo, y ese abismo producido entre lo simbólico y lo socio- económico, constituyen escisiones que surgen de la propia naturaleza (lo cual, es negado culturalmente por las diferentes interpretaciones de la caída o expulsión del paraíso), o más bien tiene que ver con intereses ideológicos y estratégicos precisos que parten de una consideración esencialista o metafísica de una naturaleza humana reducida a sus aspectos puramente mentales o culturales.

2.2. La exigencia de vivir sintiendo en el Rey Lear y en Ciudadano Kane: O rio comanda a vida y a vida comanda o rio

Por esas razones, hay que entender la capacidad humana para lo cultural, no como algo que se añada desde afuera a nuestra naturaleza, sino que los procesos de reacción cultural están anclados en su propia raíz. Somos animales culturales, es decir, seres naturalmente culturales y culturalmente naturales. Precisamente, nuestras vidas están atravesadas de tensiones debido al “hecho”de que no somos únicamente seres puramente naturales ni, por supuesto, seres exclusivamente culturales, sino seres que viven en un entorno que sólo es posible en la mutua interrelación, sea tensa o pacífica, entre los diferentes componentes que nos hacen ser “seres humanos”. No nacemos como seres culturales, ni como seres naturales autosuficientes. Nacemos como unas criaturas cuya

7 Para comenzar a entender estos procesos, ver Amicucci, C., “De Rabat a Barcelona. Un largo recorrido para acercar el Mediterráneo” en Mediodía. Desde el Mundo Mediterráneo, Número de presentación, Otoño 2003, [email protected], p. 20.

50 Joaquín Herrera Flores naturaleza física es tan indefensa que necesitan la cultura para sobrevivir. La cultura es el ‘suplemento’ que rellena un vacío dentro de nuestra naturaleza, y nuestras necesidades materiales son reconducidas en sus términos.8 Es el caso, acudiendo a Shakespeare, del “inmoralismo” y la “furia destructiva” de El Rey Lear. En el apogeo de su poder, Lear sólo actúa en función de los valores y los símbolos culturales que le convienen aceptar para ir aumentando su capacidad y sus posibilidades de dominio. Sus necesidades, más que fenómenos naturales, eran órdenes que obtenían cumplimiento inmediato. Esa escisión entre sus necesidades y la forma cultural de satisfacerlas, hace pensar a Lear que su “naturaleza” poco tenía que ver con lo que le rodeaba: todo estaba a su servicio, o, lo que es lo mismo, al servicio de los valores que lo encumbraban y lo reproducían como la cúspide del poder. En cierto sentido, la película Ciudadano Kane de Orson Wells, retoma esa separación absoluta de todo proceso natural. El “ciudadano” Kane puede con todo y con todos, a excepción del recuerdo de un objeto que, en su niñez, lo acercaba al juego y a la naturaleza. “Lear” y “Kane” son dos “símbolos” de esa tendencia humana a considerar el entorno en el que vivimos – incluyendo en él a los otros – como algo prescindible y explotable en función de los intereses de poder propios. “Lear” y “Kane” sólo podrán superar el abismo entre el árbol como signo cultural y como producto natural, es decir, entre sus valores y criterios “culturales” y las necesidades “naturales” de ellos mismos y de los que los rodean, cuando, como sentencia Gloster en la obra de Shakespeare, ambos aprendan a vivir sintiendo, vale decir, cuando comiencen a experimentarse a sí mismos, no como una individualidad absoluta protegida por las relaciones de poder y los valores dominantes que permiten y reproducen su status de dominadores, sino como seres que comparten con el resto de la humanidad la exigencia de satisfacer y recrear culturalmente sus propias necesidades naturales. Los valores en los que Kane y Lear sostienen su dominación sobre el resto del mundo, no surgen por sí mismos ni por el funcionamiento sistémico y ahistórico de alguna entidad cultural separada de la realidad; más bien, responden al hecho de que, por nuestra propia constitución, somos animales sociales materialmente capaces de percibir las necesidades de los demás y que además deben hacerlo para poder sobrevivir.

8 Cfr., Eagleton, T., La idea de cultura. Una mirada política sobre los conflictos culturales, Paidós, Barcelona-Buenos Aires, 2001, esp. p. 155 y 147-148.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 51 Humanizarnos, no significa, pues, negar que seamos seres biológicos y naturales, sino seres que son capaces de explicar, interpretar e intervenir en la naturaleza de la que somos parte y en la que vivimos. En primer lugar, qué duda puede caber acerca de la influencia de la lenta, aunque inexorable, evolución biológica de la que somos una parte infinitesimal; y, en segundo lugar, cómo negar el impacto del espacio geográfico en que vivimos, o de la cantidad y calidad de recursos naturales de que disponemos, tanto para la propia supervivencia como para poder dar origen a los procesos culturales. Veamos separadamente cada una de dichas influencias. Para clarificar el influjo de lo biológico sobre lo humano y la necesidad humana de reaccionar frente a sus propias limitaciones biológicas, nada mejor que acudir al mito de Edipo. Frente a las murallas de Tebas, la Esfinge impide el paso a todo forastero y, bajo amenaza de engullírselo si no sabe la respuesta, le plantea el famoso enigma: ¿quién es ese ser que a veces tiene tres pies, otras veces dos e, incluso, llega a tener cuatro y que a medida que tiene más pies más débil es su naturaleza? Edipo no lo duda, es el ser humano en sus diferentes fases biológicas y, por supuesto, culturales. Un ser que, partiendo de sus propias debilidades – una infancia larga y dependiente, una madurez competitiva y arrogante, y una vejez de nuevo dependiente y sometida a los estragos del tiempo –, le es posible transformar, creativa o destructivamente, el entorno en el que vive, construyendo, por ejemplo, una tercera pata, un bastón, que le permita superar el condicionamiento del paso del tiempo. Está claro que el desarrollo del dedo pulgar, la posición erecta, la visión en perspectiva, el desarrollo del sistema nervioso...son fenómenos biológico-evolutivos que nos han permitido reaccionar frente a las necesidades que ineludible y biológicamente tenemos que satisfacer. Pero sobre, o al lado de, tales caracteres fenotípicos, vamos construyendo una especie de segundo mundo – el cultural – que, poco a poco, nos va “liberando” de las ataduras corporales y genéticas, desplazando a cada momento la primigenia conexión entre los instintos y lo innato, entre lo adquirido y transmitido. En ese proceso, hemos llegado a ser los “animales” que, gracias a la intervención cultural, más hemos influido – unas veces, para bien; la mayor parte de las ocasiones, para mal – sobre el entorno en que vivimos. Pero, querámoslo reconocer o no, somos esos seres que a veces andan a cuatro patas, en algún momento, se sostienen en dos y, con el tiempo, tienen que construir una tercera para poder mantenerse en pie.

52 Joaquín Herrera Flores Ahora bien, no es sólo la debilidad biológica la que nos ha obligado a la construcción de lo cultural. También, la relación que mantenemos con los recursos naturales de que disponemos para poder satisfacer nuestras necesidades, ha influido de un modo muy importante en la construcción del mundo humano. Vivir al lado de un río que se desborda anualmente dejando a nuestro alrededor el lodo necesario para el crecimiento equitativo y sostenido de los procesos naturales que posibilitan nuestra alimentación; o vivir en medio de las infinitas y ondulantes dunas del mar de arena de algún desierto donde el poder se mide por el conocimiento y, consecuente, ocultamiento a otros, de las fuentes de agua necesarias para mantener la vida, ha provocado que, cada una de las hipotéticas comunidades que habitan dichos entornos, por un lado, desarrollen productos culturales absolutamente diferentes, pero, por otro, nos conduce a la constatación de que ambas comunidades, y, generalizando, todas las individualidades y colectivos que componen las diferentes formas de vida que conviven en nuestro planeta, reaccionan culturalmente de un modo diferenciado tanto frente al entorno ambiental como social. Sin contar con las características -o, por lo menos, con algunas de ellas- de nuestra propia biología, tal como nos recordaba la Esfinge con su enigma, o de los entornos en que nacemos, vivimos o nos instalamos, difícilmente podremos explicar, ni, por supuesto, disfrutar de, las riquezas culturales y la diversidad humana de que disponemos. En tanto que “cuerpos” biológicos, los seres humanos vamos procesando culturalmente nuestra realidad en relación estrecha con las necesidades que la “naturaleza” nos impone tanto a los animales sociales como a los animales culturales. Evidentemente se trata de satisfacer las necesidades. Ahora bien, tales necesidades poseen una muy clara definición biológica, determinadas por la conservación del individuo y de la especie. Se traducen, así, en estados fisiológicos de desequilibrio, que -según nos informa Carlos Paris- transmitidos a los centros nerviosos presionan la actividad del sujeto, buscando en el ambiente los objetos que puedan restablecer la homeostasis. Como consecuencia de esa tendencia biológica a restablecer el equilibrio entre las necesidades y la exigencia de su satisfacción, el ser humano puede elevarse sobre ese proceso biológico y construir signos -formas de relación entre las necesidades y sus formas de satisfacción que no se reducen ya a las meramente biológicas- y, descubrir técnicas, entendidas, no como un determinado conjunto de instrumentos, sino como una amplia gama

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 53 de “medios de acción” que el animal, ya “cultural”, “utiliza” para conseguir su objetivo de supervivencia, de organización de la comunidad, o de goce y placer de los sentidos. Así, continúa argumentando Paris, “siendo la técnica un mecanismo de adaptación activa al medio -y de transformación de él-, es inevitable que las distintas ecologías en que los grupos humanos se desenvuelven, desde las zonas árticas a las selvas tropicales, desde las riberas marinas a las altiplanicies, difracten la unidad básica del fenómeno técnico, con arreglo a las necesidades que los distintos medios determinan -más exactamente, la manera en que modulan las necesidades biológicas del ser humano- y los recursos que ponen a disposición de la acción”.9 Desde esta explicación de la técnica como “acción”, se puede ver cómo la diversidad humana, teniendo mucho que ver con la biológica exigencia de satisfacción de necesidades, se “levanta” sobre ésta, dado que satisfaremos dichas necesidades construyendo medios de diferente tipo, no en función de la pura reacción biológica, sino en el marco de espacios culturales distintos y diferenciados. La naturaleza induce a lo cultural gracias a la exigencia de elaboración de técnicas de acción sobre el medio, y lo cultural reinterpreta y transforma lo natural debido a su específica forma de reacción frente a los diferentes sistemas de relaciones que se den en las heladas planicies árticas o en las irrespirables alturas andinas. Como defendió el gran geógrafo brasileño Milton Santos,10 el espacio no puede ser definido únicamente a partir de los objetos que en él se encuentran: ríos, montañas, comarcas..., sino en estrecha relación con las acciones humanas que por ellos transitan. Las dinámicas impuestas por los seres humanos, junto a las desplegadas por la fauna y la flora, constituyen “ejes de relaciones” que tienen que ver con las condiciones naturales de los lugares en las que se desarrollan y, por supuesto, esas condiciones naturales, una vez sometidas a tal eje de relaciones -tela de araña cultural/natural de la que no podemos huir-, quedarán transformadas irremediablemente al convertirse en el marco a partir de las cuales, y no a pesar de las mismas, pretendemos construir y reproducir la vida. O rio comanda a vida, escribió en los años cincuenta el escritor amazonense Leandro Tocantins al referirse al papel crucial que el río Amazonas tiene en la vida de la gente que vive en sus márgenes: e o rio que un dia vai me levar à venturosa cidade...o rio-conduto de ideais

9 Cfr., Paris, C. “De la técnica zoologica a la humana” en El animal cultural. Biología y cultura en la realidad humana, Crítica, Barcelona, 2000, esp. p. 102-113. 10 En este sentido, debe consultarse A Natureza do Espaço, obra de 1997 de Milton Santos (traducción al castellano bajo el título La naturaleza del espacio. Técnica y tiempo. Razón y emoción, Ariel, Barcelona, 2000).

54 Joaquín Herrera Flores generosos, de visoes coerentes com a realidade do homen, da regiao, da natureza, do correto magistério na ordem social o econômica. Pero el río, incluso el enigmático, necesario, profundo e inaccesible Amazonas, ni siquiera tendría nombre si no fuera por la interrelación de sus aguas con las narraciones y desazones humanas que empujaron a los conquistadores hispanos a adentrarse en el “mar interior” amazónico en busca del País de la Canela y de las aguerridas y míticas Amazonas. Así Tocantins sigue afirmando: O homen e o rio sao os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazonia. O rio enchendo a vida do homen de motivaçoes psicológicas, o (homen) imprimendo à sociedade rumos e tendencias, criando tipos característicos na vida regional. Tocantins nos lo recuerda con su metáfora acerca del papel del río en la cultura humana: la naturaleza hay que entenderla en y para la cultura, y la cultura, en y para la naturaleza. Aunque, como le dice Katharine Hepburn a Humphrey Bogart en una de las escenas del hermoso film La Reina de África, “La naturaleza, Mr. Allnut, es el lugar donde nos ponen y desde donde tenemos que elevarnos”.

3. CONTRA LOS DOS TIPOS DE REDUCCIONISMOS: EL BIOLOGICISMO Y EL AISLACIONISMO CULTURAL

Humanizar, por tanto, no significa despreciar los procesos naturales. Pero, tampoco consiste en la inexorable e insuperable constatación de nuestra animalidad y nuestros condicionamientos físicos. Desde el inicio de estas páginas, hemos definido a los seres humanos en su proceso continuo de reacción frente a las diferentes realidades en las que se insertan, como animales culturales; “animales”, es decir, seres que inexorablemente están condicionados por lo biológico; y “culturales”, en tanto que seres que continuamente nos vamos elevando de dichos condicionamientos y vamos transformando, para bien o para mal, el entorno en que “nos ponen”. Por consiguiente, tan absurdo será el llamado “reduccionismo biologicista” que, anula la peculiar novedad de la cultura humana al reducir los fenómenos culturales a términos biológicos, y acaba traduciendo los conceptos culturales al lenguaje científico natural; como el “aislacionismo culturalista”, que hace de la cultura una realidad hermética, carente de raíces, incomunicada con la biología y surgida de un modo casi mágico -por la gracia del simbolismo- en el mundo humano. El aislacionismo culturalista pretende asentar lo cultural sobre fenómenos y conceptos absolutamente propios -como

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 55 el simbolismo, la singularidad del lenguaje humano, incluso la capacidad técnica-, referidos exclusivamente a nuestra especie, fenómenos inéditos, para el mundo científico natural, que condenan a la irrelevancia los análisis basados en la biología. En el desarrollo de la primera tendencia, la peculiaridad de la cultura y de lo humano se disuelve en un monótono paisaje. En la segunda se convierte la cultura en la irrupción de un mundo, racionalmente incomprensible, incomunicado con los estratos subyacentes de lo real y con la evolución, un reino que sólo se explicaría en términos de milagro o de creación. Reduccionismo de una parte, “aislacionismo”, insularismo o hermetismo de la otra.11 Veamos un ejemplo de cada una de las tendencias.

3.1. El reduccionismo biologicista

En primer lugar, destacar el auge mediático que han tenido las afirmaciones de la llamada “Sociobiología”. Este método consiste, a rasgos generales, en un esfuerzo teórico-especulativo desde el que se pretende entender el fenómeno de lo cultural, partiendo, por lo menos en los desarrollos teóricos más recientes, de la coevolución genético- cultural. Para Wilsom y Lunsdem, los dos “sociobiólogos” que más han entrado en los debates culturales, dicha coevolución implicaría tres elementos interrelacionados dialécticamente: Genes-Mente- Cultura; Cultura-Mente-Genes. Ahora bien, y para ser más precisos, las relaciones jerárquicas entre esos tres elementos no son en absoluto simétricas, dado que se parte de una influencia casi dictatorial de los genes sobre los otros dos miembros que compondrían hipotéticamente la coevolución. La gente se suicida, ama, odia, critica o transforma su mundo, “orientados” –nosotros diríamos, “determinados”- por la actividad específica de los genes, que no es otra que la de “prescribir” una serie de procesos biológicos que Wilson y Lunsdem califican como “reglas epigenéticas”, las cuales dirigen el caudal de la mente en estrecha relación con el contexto en el que el ser humano actúa. Estas reglas epigenéticas se transmiten biológicamente a través de lo que estos autores denominan el “culturgen”, algo así, como un gen cultural que determina la acción y que permitiría a los científicos comprender y explicar la conducta humana -que culturalmente es tan diversa y heteromorfa- en los términos más controlados, homogéneos y cerrados de la ciencia natural.

11 Para una mayor profundización en este tema acudir al texto de Carlos Paris “De la ideología a la concepción biocultural del ser humano” en El animal cultural, op. cit., p. 17-31.

56 Joaquín Herrera Flores Estamos, pues, ante un caso de “reduccionismo biologicista”, aunque sus defensores intenten denodadamente defenderse del mismo apelando a la tríada “genes-mente-cultura” y al concepto de coevolución. Las reacciones más feroces contra la socio-biología fueron impulsadas por el conjunto de críticas que sobre sus tesis dirigieron científicos más comprometidos política y socialmente con sus contextos (en concreto, el grupo Science for the People), al mostrar dos consecuencias negativas12 de tales planteamientos: primero, la liquidación de las luchas por la libertad humana, las cuales estarían determinadas por la actividad invisible y cuasi-estática de los genes, y, segundo, el peligro de justificar posiciones racistas de superioridad genética o a eternizar construcciones sociales como el patriarcalismo, como si procedieran, en este último caso, no de la dominación política, económica y simbólica que a lo largo de los siglos el hombre y la sociedad construida según sus valores han mantenido sobre la mujer, sino producto de las reglas epigenéticas que proceden de la actividad química de los genes. ¿Cómo se reacciona culturalmente contra esas “orientaciones” genéticas? ¿Lo cultural se reduce a las actividades puramente físico-mentales de los individuos? ¿Cómo integrar en la tríada de la coevolución “genes-mente-cultura” el conjunto de productos culturales que conforman un espacio cultural concreto y que constituyen un marco de orientación radicalmente distinto del físico-orgánico? En definitiva, ¿cómo comprender y adaptar a nuestras vidas individuales y sociales ideas tales como la tolerancia, el respeto, la solidaridad, entendidas, no como funciones de órganos corporales que necesitan de la interconexión orgánica, sino como valores que construimos socialmente para poder actuar y vivir de un modo emancipador?.

3.2. El aislacionismo culturalista

Como ejemplo más sofisticado de “aislacionismo culturalista”, nos encontramos con la teoría estructural de Talcott Parsons, presentada a mediados del siglo XX como la síntesis de todas las ciencias. Parsons, estaba especialmente interesado en explicar la acción de los individuos en su relación con los objetos externos a su individualidad. Estas relaciones forman sistemas cerrados y excluyentes entre sí –en función del conjunto de objetos de que se trate-, y cuya función es proporcionar reglas que permitan gobernar

12 Ver http://list.uvm.edu/cgi-bin/wa?A0=science-for-the-people&D (consultada el 6 de Julio de 2004); sobre las consecuencias darvinistas de la teoría, consúltese la página http://eonix.8m.com.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 57 y dirigir las elecciones de los actores sociales que “actuan” psíquica, social o culturalmente. De ese modo, Parsons afirma metodológi- camente lo siguiente: en términos de acción, el mundo objetivo se puede clasificar como compuesto por tres clases de objetos, cada una formando un sistema autocentrado e independiente de los demás. En primer lugar, los “objetos sociales”, que forman el llamado “sistema social” (y que debe ser estudiado por la sociología); en segundo lugar, los “objetos físico-psíquicos”, que forman el “sistema biológico” y el “sistema donde se desarrolla la personalidad” (objeto privilegiado de la ciencia natural y de la psicología); y, en tercer lugar, los “objetos culturales”, que forman el “sistema cultural”, es decir, el conjunto de ideas y valores que circulan a través de símbolos (cuyo análisis dependerá de la antropología cultural): los objetos culturales serían, pues, elementos simbólicos, sin alguna otra relación con el entorno social, físico o psicológico. Estos símbolos forman un sistema autónomo que se autorreproduce por sí mismo y que, por lo tanto, pueden ser estudiados al margen de otras consideraciones (objeto, como vemos, de otros sistemas y otras disciplinas) y de otros contextos. Lo cultural se ve, entonces, como un sistema autónomo, compuesto de símbolos y significados, que definen y determinan, para los seres humanos, lo que ha de entenderse por realidad. Como demostró Alvin Gouldner,13 la teoría parsoniana fue un producto cultural perfectamente funcional a la utopía burguesa reaccionaria de construir un mundo de equilibrios y consensos políticos y culturales sin hacer referencia alguna a los conflictos sociales y económicos que estaban en la base de su organización social. Cada “sistema de objetos” (p.e., las relaciones sociales y los productos culturales) constituían mundos distintos que determinan, cada uno a su manera, la naturaleza y los hechos de la vida. Edificar un sistema social basado en relaciones profundas de desigualdad social y económica, tal y como iba consiguiendo el modo de producción capitalista tras la victoria en la II Gran Guerra, es mucho más fácil si separamos las distintas esferas de acción humana que si tenemos una visión holística de los procesos sociales. De ese modo, un conflicto económico o, aún más claro, un conflicto producido en el marco de la expansión imperial europea, era considerado como un conflicto entre diferentes concepciones culturales del mundo, con lo que las verdaderas causas de la confrontación –colonialismo, depredación de recursos naturales, destrucción de tradiciones y formas colectivas de vida en

13 Gouldner, A., “From Plato to Parsons: The Infraestructure of Conservative Social Theory” en The Coming Crisis of Western Sociology, Basic Books, NY, 1970.

58 Joaquín Herrera Flores función de los intereses de los procesos imperialistas de acumulación de capital-, permanecían veladas en el misterio de los símbolos. Así lo cultural flotará, desde Parsons y sus seguidores, en el vacío del conjunto de significados y símbolos que pueden ser estudiados, valorados o criticados desde sí mismos, sin hacer referencia a los contextos sociales y, ¿por qué no? naturales en los que “realmente” vivimos. Un sistema cultural poco tendrá que ver –en términos de Clifford Geertz- con el conjunto de necesidades “naturales” que tenemos que satisfacer en contextos de desigualdad. Al etnógrafo sólo le interesan las ideas, los símbolos y los rituales. No hay nada fuera del “texto” (o tejido) cultural. Todo es textual, nada estará sometido, pues, a las exigencias de la economía, de la política o de la ecología (sistemas de objetos, asimismo, susceptibles de ser estudiados al margen de todos los demás). El “aislacionismo cultural” nos independiza absolutamente de todo lo que nos rodea, construyendo un nuevo determinismo bien distinto de los condicionantes naturales, técnicos y políticos que, como defendíamos más arriba, inducen a los seres humanos a responder y a actuar culturalmente. En una de sus últimas obras, Negara, Clifford Geertz lleva hasta sus extremos la utopía parsoniana de fragmentación del mundo. Analizando el sistema político balinés, Geertz intenta demostrar la superioridad de la explicación social basada en los símbolos y rituales de la corte imperial, sobre los enfoques que enfatizaban la influencia imperial holandesa o los análisis marxistas de la estructura social de aquellas tierras sometidas al depredador proceso colonial, por lo menos, desde los viajes del Capitán Cook. En una conferencia pronunciada en Yale en 1981, Geertz afirmó lo siguiente, desplegando toda la arrogancia del “científico” social que separa lo cultural de todo el resto de procesos sociales, económicos y políticos: “voy a deleitarme en los desarrollos culturalmente específicos, enfrascarme en los procesos de razonamiento y zambullirme de cabeza en el sistema simbólico”. Es decir, –parece decir el gran antropólogo- voy a explicar el mundo desde el conjunto de explicaciones y construcciones conceptuales, sin tomar en consideración los recursos naturales, la orografía, o el sistema social en su conjunto. Bajo el aislacionismo cultural de matriz parsoniana, todo un mundo de condicionantes y de determi- naciones naturales o económicas desaparece bajo el manto de lo simbólico.14 Refiriéndose a Negara, Adam Kuper muestra cómo el

14 Cfr., Geertz, C., “Anti-Anti-Relativism” en American Anthropologist, 86, 1984, pp. 263-278; y Kuper, A., Cultura: la versión de los antropólogos, Paidós Básica, Barcelona, 2001, p. 144.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 59 análisis de Geertz invisibiliza a los políticos y empresarios occidentales ávidos de mantener al pueblo balinés imbuido en sus ritos y símbolos, mientras ellos, acompañados de los soldados indonesios, los agentes de la CIA y los empresarios chinos se iban apoderando de las riquezas de los lugares investigados con tanto detalle, pasión y ceguera por los etnógrafos y antropólogos parsonianos.15 En estos autores -y en otros aún más radicales como David Schneider o Marshall Sahlins-, no sólo los contextos económicos, sino la misma naturaleza aparece como lo “pre-social” o lo “anti- social”. Es vista, pues, como “lo otro”, como la negación de la civilización, una de cuyas bases fundamentales es la separación cada vez más acentuada de todo lo natural16 . La consecuencia inmediata de esa separación de esferas, a la que tendían los parsonianos, radica en darle la espalda a los procesos naturales, y, con ello, como ha sostenido David Chaney, no sólo se ignoran los condicionamientos ambientales, sino que se desprecian absolutamente las diferencias que nos separan de aquellos que viven más apegados a los procesos y recursos naturales. Esto ha permitido prácticas de explotación colonial intensiva, tanto de la naturaleza como de los grupos y etnias que viven en los entornos apetecidos por los intereses de las grandes corporaciones transnacionales. Y que hoy en día, en pleno boom de la llamada “globalización neoliberal”, está conduciendo a todo un proceso de “caza y captura”, ya no sólo de los recursos naturales, sino del mismo conocimiento tradicional de dichas etnias y pueblos a la hora de trabajar la tierra o de organizar la producción. A través de los llamados Acuerdos sobre Patentes (TRIPS),17 el conocimiento de indígenas, campesinos y artesanos, se ha convertido en un nuevo “recurso” natural susceptible de ser explotado por aquellos que

15 Permítasenos una larga cita del texto de Kuper, donde se ve la estrecha relación que existió entre el método parsoniano y las nuevas políticas coloniales ejercidas por Estados Unidos después de quedar como el gran vencedor tras la II Guerra Mundial: “El Comité para las Nuevas Naciones –establecido por Edward Shils, el líder de los parsonianos en la Universidad de Chicago- estaba adaptando el programa de Parsons al estudio de los estados que habían alcanzado recientemente la independencia. Comentando la postura del grupo de Chicago, David Apter explicaba que sus miembros rechazaban el determinismo de la época, tanto en la forma ortodoxa como en la marxista....la meta de la política en los nuevos estados debería ser la de fomentar un orden social e intelectual moderno. Era cosa de los antropólogos especificar los problemas culturales involucrados...que ayudarían a explicar tanto la capacidad o la predisposición al cambio como las inhibiciones que en tal sentido podía mostrar una comunidad”. Nada de contexto económico, nada de imperialismo, nada de condicionantes naturales, “sólo cultura”. Cfr. David A. Apter, Political Change: Collected Essays, Cass, , London, 1973, p. 160, y, sobre todo, A. Kuper Cultura. La visión de los antropólogos, op. cit., p. 104. 16 K. Tester, Animals and Society: The humanity of animal rights, Routledge, London, 1991; K. Thomas, Man and the Natural World: Changing attitudes in England, 1500-1800, Allan Lane, London, 1983. 17 El fenónemo de apropiación del conocimiento ambiental no es algo nuevo, sino que hunde sus profundas raíces en el progresivo despliegue de la institución burguesa de la propiedad privada; cfr, el libro de Murray Raff, Private Property and Environmental Responsibility. A Comparative Study of German Real Property Law, Kluwer Law International, The Hague/London/New York, 2003. tienen el poder de obligar a dichas gentes a entregarles lo único que les ha ido quedando desde los inicios de las políticas depredadoras colonialistas e imperialistas: el conocimiento de su entorno. Todo un entramado institucional-financiero -como es el caso del llamado Orden Económico Global: Fondo Monetario Internacional, Banco Mundial y la Organización Mundial del Comercio-, ha comenzado a funcionar para legitimar esa apropiación de la biodiversidad ecológica y humana, justificando sus prácticas depredadoras desde el presupuesto que el conocimiento tradicional es un recurso natural, no cultural, y, por tanto, susceptible de apropiación por parte de las grandes corporaciones transnacionales. Todo como consecuencia del ancestral desprecio que la civilización occidental ha proyectado secularmente sobre lo que se considera la naturaleza. El abandono de lo natural no es, por tanto, inocente. Tiene y oculta graves consecuencias naturales y humanas que hoy en día, con el avance de la conciencia ambiental, están siendo puestas en evidencia.

4. EL USO POLÍTICO DE LA NATURALEZA: LA NATURALEZA COMO PROBLEMA HISTÓRICO (EL CAPITÁN COOK, JOSEPH CONRAD Y LA CARTA DE LA TIERRA)

Concluyendo desde todo lo dicho anteriormente: no es que no exista “naturaleza” alrededor de nosotros, es que el propio concepto de naturaleza es, por un lado, un concepto “histórico”, es decir, que cambia, que se transforma a medida que cambian los entornos de relaciones sociales; y, por otro, es un concepto “cultural”, es decir, es un concepto que construimos con el objetivo genérico de relacionarnos mutuamente sea con los otros, sea con nosotros mismos o, cómo no, con la naturaleza, y que nos permite, por un lado, reproducir nuestra vida humana sobre la tierra y, por otro, crear y transformar las condiciones que hacen que dicha vida sea una vida digna de ser vivida. En el sentido que estamos aquí defendiendo de “humanización”, nos interesa poco -aun cuando reconozcamos su importancia- una cultura ecológica que se preocupe exclusivamente por la necesidad de no coartar la interrelación entre los diferentes procesos naturales y vitales pero, que al mismo tiempo, no ponga el acento en la inevitable inserción del ser humano en los mismos. Desde nuestra hipótesis, le damos mucha más importancia a una cultura ambiental; es decir, una actitud ante los procesos sociales y naturales preocupada, no sólo por la exigencia, de veras ineludible -aún más en nuestros días-

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 61 de comprender y reproducir las interrelaciones naturales entre plantas, geografía y recursos, sino también, sino, fundamentalmente, en explicar, intervenir e interpretar la interrelación ser humano/mundo físico –lo que en páginas anteriores, hemos denominado “entorno”. O, lo que es lo mismo, un proceso cultural preocupado por entender el “entorno” como un agente influenciador de, e influenciado por, la historia y la evolución humanas. Por eso pensamos que no estamos en el entorno, sino que somos el entorno. Por esta razón, cuando hablamos de la relación cultura- naturaleza no lo hacemos de “estados de hecho”, sino –como defiende David Arnold18-, del conjunto de percepciones, en continuo cambio, del mundo natural y de las relaciones de los seres humanos con él. Arnold, en su texto La naturaleza como problema histórico. El medio, la cultura y la expansión de Europa, afirma que la problemática ambiental y las discusiones ideológicas, políticas y económicas sobre ellas vertidas, han sido, desde hace mucho tiempo, elementos centrales de las complejas relaciones –materiales y culturales- entre Europa –digamos, entre los países centrales y ricos- y el resto del mundo. El ambiente, o el medio, no ha sido sólo un lugar estático y pasivo, siempre disponible para todo tipo de explotación, sino que, en muchísimas ocasiones se ha convertido en el campo de batalla donde han contendido ideologías y culturas. La naturaleza no es simplemente algo que exista ahí afuera, absolutamente indepen- diente de nuestros puntos de vista y nuestras acciones de animales culturales, sino también es algo que está dentro de nuestros mundos mentales y nuestro conocimiento histórico. Ejemplos artísticos de lo que decimos hay muchísimos. Citemos, por ejemplo, el discurso ambientalista que se despliega en la película Dersu Uzala, donde la amistad de dos hombres que comparten espacios culturales diferentes, está mediada por la presencia imponente de la naturaleza salvaje de las estepas siberianas. O, de un modo mucho más sutil, la obsesiva presencia de los diversos entornos naturales que van surgiendo a medida que los motociclistas de la mítica Easy Rider van recorriendo la distancia entre Los Ángeles y Nueva Orleans. La primera impresión que nos llevamos de estas películas es que tratan temas puramente “humanos”: la amistad, la libertad..., pero si las observamos atentamente, en ambos films, los personajes no pueden “dejar de mirar” los diversos entornos naturales por donde caminan, ya que son estos mismos entornos los que los miran a ellos: no están en el

18 Arnold, D., La naturaleza como problema histórico. El medio, la cultura y la expansión de Europa, F.C.E. México, 2000.

62 Joaquín Herrera Flores entorno, son el entorno. No hay, pues, una naturaleza exterior independiente de nuestras percepciones; siendo estas, al fin y al cabo, las que nos inducen a mirar el ambiente desde nuestras anteojeras culturales y a ser mirados por la majestuosidad o por la destrucción de la madre naturaleza. Ésta puede ser la motivación que impulsó a Dennis Hooper -Director de Easy Rider- a filmar el ocaso en las Montañas Rocosas: un ocaso físico-natural que tiene mucho que ver con el ocaso de toda una generación de jóvenes inquietos y rebeldes que intentaron vivir sus vidas en relación amistosa y no violenta con el entorno en que interactuaban y en el que eran. Muy distinta es la concepción del entorno que dimana de la obra maestra de Joseph Conrad, El Corazón de las tinieblas. En este clásico de la literatura decimonónica de “viajes”, se condensan todos los prejuicios, temores y recelos que la cultura occidental había vertido sobre los entornos geográficos y humanos de los Trópicos. En el último tercio del siglo XIX, la sorpresa y la atracción que un siglo antes provocó el descubrimiento de las islas tropicales de los mares del Sur habían pasado a mejor vida. Conrad escribe su libro en los momentos iniciales del imperialismo europeo en África, y lo que era una naturaleza desbordante y repleta de encantos, tal y como la describió Alexander von Humboldt, o un espacio geográfico donde era posible encontrar la historia de nuestra propia especie, en el sentido que Darwin imprimió a los viajes por aquellas lejanas tierras, pasó a ser la confirmación de lo que Hipócrates y Montesquieu escribieron sobre los peligros y bajezas que los climas tórridos imponen a sus habitantes y a los viajeros que por allí se aventuran. En su texto Aires, Aguas, Lugares19, aparte de sus contribuciones al estudio comparado de las enfermedades y a su relación con los ambientes climáticos y geográficos, Hipócrates fundó toda una concepción etnográfica que aún hoy perdura en determinados círculos de intelectuales: los climas estables, tranquilos y los suelos fértiles producen gente floja; mientras que, las tierras desoladas y áridas producen hombres valientes y activos. No es de extrañar, que Hipócrates considerara a la Europa de su tiempo y de su contexto cultural griego como la norma, como el punto de partida de la civilización, e incluyera en sus reflexiones a Asia y África como los extremos aberrantes, dadas sus condiciones ambientales “aparentemente” estáticas y altamente peligrosas para el visitante que procedía de las zonas templadas. Siglos más tarde, tal concepción impregnó la obra de Charles Secondat, Barón de Montesquieu, el cual, partiendo de un conocimiento más adecuado de la orografía y

19 Recopilado en G.E.R. Lloyd, Hippocratic Writings, Harmondsworth, 1983.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 63 condiciones ambientales de Asia, sin embargo, no dudó en afirmar en su obra de 1748 El Espíritu de las Leyes que, dados esos condicionamientos naturales, era “natural” que Asia produjera sistemas de gobierno autocráticos, siendo la región del mundo en donde el despotismo tiene su domicilio más apropiado y la esclavitud el único régimen posible de relación social entre los dominantes y los dominados. Otra era la perspectiva que indujo al hijo de proletarios y aprendiz de confitero James Cook a lanzarse hacia los mares del Sur tres décadas después de la publicación del libro de Montesquieu. Cook, acompañado de excelentes científicos como Joseph Banks y Daniel Solander, recorrió en tres periplos consecutivos toda la Polinesia y, admirado por el talante de sus habitantes y por las paradisíacas condiciones naturales de aquellas islas, se esforzó en impedir lo inevitable: la contaminación de lo que él consideraba el Paraíso por las peores costumbres y hábitos de la civilización occidental: alcoholismo, prostitución, pillaje, ansias de obtener objetos de dudosa utilidad para la vida en los trópicos... A pesar de que sus inquietudes a favor de los aborígenes le condujeron a una muerte injusta y cruel, Cook nunca dudó en que en aquellos lugares podría haber reinado la paz y el equilibrio perdidos por nuestra expulsión del Paraíso. Pero la historia del imperialismo europeo continuó inexorable después de la muerte del Capitán Cook, y, poco a poco, esa naturaleza paradisíaca se fue convirtiendo en el infierno de miasmas, de traiciones, de humedales intransitables, de insectos carnívoros, de antesalas de la locura que Joseph Conrad describió apasionadamente en El Corazón de las Tinieblas. En su afán imperialista, la Europa que se fue construyendo a partir de la era de los “descubrimientos”, consideraba que su triunfo sobre el resto del mundo conocido se sustentaba en la separación que sus pensadores habían hecho entre cultura y naturaleza, abriendo las puertas a la total posibilidad de explotación de todo lo que se considerara natural. Pero, paralelamente a esta consideración, no cesaba de describir y enjuiciar a las formas de vida que iba colonizando en su propio beneficio en términos naturales. Los tahitianos, los balineses, los indonesios, los habitantes de las alturas andinas o de la India, a pesar de demostrar su riqueza histórica, artística e intelectual, eran considerados algo menos que humanos, gente absolutamente apegada a sus condicionamientos ambientales, y, por tanto, susceptibles de ser dominados y explotados por la única potencia que había sabido separarse de las determinaciones naturales. Sin embargo, y como demuestra muy convincentemente

64 Joaquín Herrera Flores Carson I. A. Ritchie en su impresionante texto Comida y civilización, gran parte de las innovaciones políticas, técnicas y sociales de Occidente -de hecho no podía haber sido de otro modo dada la co- implicación entre lo natural y lo cultural- se debieron a sus obsesiones acerca de algo tan “natural” –y, a la vez, tan cultural- como la alimentación. Si no hubiera sido por la exigencia “psicológica” de las especias, el “descubrimiento” y posterior “conquista” de Asia y la actual América, hubiera tardado muchísimo más tiempo del que se necesitó. La ansiedad por obtener especias influyó poderosamente en la configuración del orden colonial dominado por los europeos. La famosa batalla de Diu en 1509, librada en aguas indias entre la flota otomana -que controlaba el paso por tierra de las especias procedentes de Asia- y las naves portuguesas, cuyo objetivo era el control del comercio de estos productos naturales a lo largo de los itinerarios que recorrían África y el Océano Índico, fue incluso más decisiva que la literaria batalla de Lepanto en la que Miguel de Cervantes perdió su brazo luchando por la cristiandad a fines del siglo XVI. A partir de esa batalla, los portugueses consiguieron el dominio comercial y político de gran parte de Asia, posteriormente “asumido” por los holandeses,20 igualmente obsesionados por los productos y recursos naturales de aquella región de nuestro mundo. Es posible preguntarse si Europa ha avanzado únicamente por sus ideas o si ha estado sometida a su dependencia con respecto a la natural y cultural satisfacción del hambre. Tampoco debemos olvidar que el hecho histórico de la esclavitud fue favorecido por la obsesión europea de dulcificar productos tales como el café (procedente de Etiopía), el te (de orígenes milenarios en la cultura china) y el chocolate (venido directamente de las colonias americanas). Como dice Ritchie, “la búsqueda de las especias, que había comenzado como una cruzada contra la dominación musulmana, se había convertido en una gigantesca empresa de piratería, que iba a conseguir que la palabra ‘europeo’ apestase durante siglos. Como dijo Almeida (procónsul portugués en la India), un chatarrero chino sabía más de

20 En su afán por controlar el mercado de especias, los holandeses introdujeron medidas que favorecieron enorme- mente el despliegue del capitalismo por todo el orbe conocido: por un lado, el sistema de propiedad de la empresa por acciones (que desvinculaba la propiedad de la empresa de los actos criminales y depredatorios que se realizaban en su nombre a lo largo de las colonias); por otro, el control de las haciendas locales de los países colonizados, a partir del cual se imponían impuestos a todos los intercambios comerciales que se hacían en las lejanías de Asia y la Polinesia (y que tiene mucho que ver con los actuales procesos de exigencia del pago de la deuda externa a países endeudados gracias a la propia intervención de Occidente en sus economías); y, por último, la tendencia a esterilizar los productos naturales, como fue el caso de la nuez moscada, tratándola con mercurio para impedir que fuera replantada en otro lugar del controlado por las empresas holandesas (nadie –dice Ritchie- podía utilizar esas nueces para plantarlas y obtener nuevos árboles de nuez moscada. Con lo cual, las actuales prácticas de esterilización de las espigas de trigo por las corporaciones multinacionales, con el terrible objetivo de hacer pagar a los campesinos pobres de todo el mundo de royalties a las corporaciones multinacionales no sea algo nuevo en el siglo XXI).

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 65 honor y de gentileza que cualquier caballero del mundo cristiano”. Es relevante escribir algunas palabras sobre la “tropicalización” de la India por parte de los colonizadores ingleses. Aunque, como demuestra David Arnold,21 gran parte de la India no pertenece geográficamente a los trópicos, los ingleses se dedicaron a “tropicalizar” su “joya”, con el objetivo, primero, de encajar a sus habitantes en los estereotipos que ya habían cristalizado en la mente occidental acerca del habitante perezoso y de bajas inclinaciones morales de los trópicos; para, en un segundo momento, facilitar y legitimar “culturalmente” la invasión, el aprovechamiento de los recursos ajenos y la sistemática destrucción de los entornos que los indios habían ido construyendo a lo largo de siglos de una profunda espiritualidad y respeto por la naturaleza. “Conforme crecía el poder imperial, y con éste el sentido británico de superioridad racial y técnica sobre la India, así también se invocaba más y más el entorno para explicar el profundo abismo que separaba una nación de la otra...Desde la perspectiva imperial, era claro el valor de tales modos determinista y reduccionista de razonar. La India estaba sometida a la naturaleza en un grado mucho mayor que Europa: de ahí su atraso, su inferioridad y sus divisiones internas; de ahí también la necesidad de que los británicos gobernaran la India, para introducir en ella ‘mejoras’, ‘orden’ y ‘progreso’, y para liberar a los indios de su sometimiento a la naturaleza”.22 Sin embargo, en las crónicas oficiales no constaban los perjuicios ecológicos y ambientales que produjo la invasión inglesa: los planes de irrigación difundieron la malaria; la inmensa red de ferrocarriles, destrozó la riqueza forestal; y la eliminación de las selvas (con la justificación de la agricultura intensiva), devastó la biodiversidad de unas tierras y de unas gentes que habían luchado -y siguen haciéndolo hoy en día encabezados por la autora y militante eco-feminista Vandana Shiva- denodamente y durante siglos para aprender a vivir en una relación estrecha y respetuosa con su entorno.23 Fue la Kaliguya, la era de la aflicción, el tiempo en que la India retrocedió casi 500 años; pero también, dio paso a la era de la rebeldía y de los esfuerzos por construir un entorno puramente indio. Tanto en la India como en gran parte del mundo colonizado por la Europa “cultural” fueron surgiendo movimientos e intelectuales que lucharon

21 Arnold, D., op. cit. p. 154 y ss. 22 Arnold, D., op. cit., pp. 156 y 158. 23 David Hardiman, “Power in the forests: the Dangs, 1820-1940”, en D.Arnold y D. Hardiman Subaltern Studies VIII: Essays in Honour of Ranajit Guha, Delhi, 1995, pp. 89-147; Elizabeth Whitcombe, “The environmental costs of irrigation in British India: waterlogging, salinity, malaria”, en D. Arnold y Ramachandra Guha, Nature, Culture, Imperialism: Essays on the Environmental History of South Asia, Delhi, 1995, pp. 237-259; Madhar Gadgil y Ramachandra Guha, This Fissured Land: an Ecological History of India, Delhi, 1992; además del texto de Arnold que tengo, D. Arnold, Famine: Social Crisis and Historical Change, Oxford, 1988.

66 Joaquín Herrera Flores por erradicar el peor de los males que se ha infligido a la naturaleza humana a lo largo de toda su historia: el colonialismo y el imperialismo. Las luchas de Gandhi, de Stephen Bico, de Chico Mendes, de Frantz Fanon o de Vandana Shiva no han caído en el vacío del olvido. Para todos ellos, la naturaleza no determina absolutamente lo cultural, puesto que ella misma es un concepto cultural que pertenece a la humanidad en su largo e interminable proceso de humanización, aunque hasta el momento de las luchas se considerara como patrimonio exclusivo de occidente. Permítannos terminar este epígrafe con uno de los documentos internacionales de derechos humanos que refleja de un modo preciso nuestra opinión acerca de la coimplicación no determinista ni reduccionista que necesariamente se da entre la naturaleza y la cultura, y que está abriendo un debate global muy rico en contra de todo tipo de colonialismo e imperialismo. Nos referimos a la llamada Carta de la Tierra, y sus principios básicos. Véamoslos y reflexionemos sobre su enorme y profundo sentido humanizador: La Tierra es nuestro hogar... Somos miembros de una comunidad de vida interdependiente con una magnificente diversidad de formas de vida y culturas. Nos sentimos humildes ante la belleza de la Tierra y compartimos una reverencia por la vida y las fuentes de nuestro ser. Agradecemos por la herencia que hemos recibido de las generaciones pasadas y abrazamos nuestras responsabilidades para con las generaciones presentes y futuras. La comunidad terrestre se encuentra en un momento decisivo. La biosfera está gobernada por leyes que ignoramos a nuestro propio riesgo. Los seres humanos han adquirido la habilidad de alterar radicalmente el medio ambiente y los procesos evolutivos. La falta de visión y prudencia en nuestro accionar y la mala utilización del conocimiento y del poder amenazan el tejido de la vida y los fundamentos de la seguridad local y global. Mucha violencia, pobreza y sufrimiento encontramos en nuestro mundo. Un cambio fundamental es, naturalmente, necesario. La alternativa está frente a nosotros: cuidar de la Tierra o ser partícipes de la destrucción tanto nuestra como de la diversidad de la vida. Debemos reinventar una civilización industrial y tecnológica hallando nuevos caminos para equilibrar al individuo y a la comunidad, al tener y al ser, a la diversidad y a la unidad, al corto y al largo plazo, al uso y al cuidado.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 67 Inmersos en nuestra gran diversidad, somos una humanidad y una familia terrena con un destino compartido. Los desafíos a nuestra frente requieren una visión ética inclusiva. Nuevas asociaciones deben ser forjadas y la cooperación a nivel local, bioregional, nacional e internacional debe promoverse. Solidarios unos con los otros y respecto de comunidad de la vida nosotros, los pueblos del mundo, nos comprometemos para la acción guiados por los siguientes principios entre si relacionados:

1 – Respetar la Tierra y la vida. La Tierra, cada forma de vida y los seres humanos son poseedores de valor intrínseco y gozan de respeto independientemente del valor utilitario que merezcan para la humanidad. 2 – Cuidar de la Tierra, protegiendo y restaurando la diversidad, integridad y belleza de los ecosistemas del planeta. Donde exista el riesgo de serios o irreversibles daños al ambiente, deben tomarse medidas preventivas a fin de evitar el daño. 3 – Vivir sosteniblemente, promoviendo y adoptando modos de consumo, producción y reproducción que respeten y salvaguarden los derechos humanos y las capacidades regenerativas de la Tierra. 4 – Establecer la justicia, y defender sin discriminación el derecho de todas las personas a la vida, la libertad y la seguridad, en un ambiente adecuado para la salud humana y el bienestar espiritual. Los seres humanos gozan del derecho a contar con agua potable, aire puro, suelo libre de contaminaciones, y seguridad alimentaria. 5 – Compartir equitativamente los beneficios de la utilización de los recursos naturales y la protección ambiental entre las naciones, entre ricos y pobres, hombres y mujeres, y generaciones presentes y futuras, e internalizar todos los costos ambientales, sociales y económicos. 6 – Promover el desarrollo social y los sistemas financieros aptos para crear y mantener medios sostenibles de subsistencia, erradicar la pobreza y fortalecer las comunidades locales.

68 Joaquín Herrera Flores 7 – Practicar la no violencia, reconociendo que la paz es la integridad creada por relaciones armoniosas y equilibradas para con uno mismo, con el prójimo, con otras formas de vida y con la Tierra. 8 – Fortalecer los procesos que otorgan poder a las personas para que participen efectivamente en la toma de decisiones y aseguren la transparencia y una actitud responsable en el gobierno y administración de todos los sectores de la sociedad. 9 – Reafirmar que los pueblos indígenas y tribales tienen un papel vital en el cuidado y protección de la Madre Tierra. Ellos gozan del derecho a salvaguardar su espiritualidad, conocimientos, tierras, territorios y recursos. 10 – Afirmar que la igualdad entre los géneros es un requisito previo para el desarrollo sostenible. 11 – Asegurar el derecho a la salud sexual y de reproducción, con especial referencia a las mujeres y a las niñas. 12 – Promover la participación de la juventud como agente responsable del cambio hacia la sostenibilidad local, bioregional y global. 13 – Realizar avances y colocar en práctica el conocimiento tanto científico como proveniente de otras fuentes, las tecnologías que promueven la existencia sostenible y protegen el medio ambiente. 14 – Asegurar a todas las personas el goce de oportunidades durante toda su existencia para adquirir los conocimientos, valores, y habilidades prácticas necesarias para edificar comunidades sostenibles. 15 – Dispensar a todas las criaturas un tratamiento compasivo y protegerlas de la crueldad y del aniquilamiento arbitrario. 16 – No infligir al medio ambiente de otros lo que no deseamos ver infligido al nuestro. 17 – Proteger y restaurar lugares de destacada significación ecológica, cultural, estética, espiritual y científica. 18 – Cultivar y conducirse con responsabilidad compartida respecto del bienestar de la Comunidad de la Tierra. Toda persona, institución y gobierno es responsable por la concreción de los objetivos de justicia indivisible para todos, la sostenibilidad, la paz mundial, y el respeto y cuidado por toda la comunidad de la vida.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 69 5 – LO CULTURAL Y LO “EXTRACULTURAL”: EL PRINCIPIO CAIROLÓGICO Y LOS DERECHOS HUMANOS

Por tanto, ni biologicismo ni aislacionismo cultural. Tomar en consideración lo natural en el proceso cultural no supone, pues, considerarnos únicamente como cuerpos, ni como conjunto de símbolos, sino como “cuerpos” que, reaccionando a partir de las necesidades que compartimos con toda la humanidad, vamos construyendo un mundo de símbolos que nos van a permitir “determinar nuestras propias determinaciones”. “Lo característico de una criatura que produce símbolos es que su propia naturaleza consiste en trascenderse a sí misma. El signo –el producto cultural- abre una distancia operativa entre nosotros y nuestros entornos materiales, y, así, nos permite transfigurarlos en historia”.24 El biologicismo niega la capacidad humana de cambiar sus entornos, todo dependerá de las reglas que dicten los “culturgenes”; por su parte, el aislacionismo cultural niega toda posibilidad de cambio y transformación a la naturaleza, ya que el conjunto de objetos naturales que constituye el sistema físico -y, como consecuencia de tal afirmación, todos aquellos pueblos que, como los indígenas, viven cercanos a la naturaleza- están, y hay que analizarlos de un modo, absolutamente separados de los sistemas políticos y culturales: cada uno tendrá su conjunto de reglas que determinan la acción humana en sus diferentes e incomunicables niveles. Como afirma Eagleton, “resulta curioso que, precisamente en una época en la que la naturaleza resulta un material tan maleable, se conciba... (como algo) intemporal, ineluctable, indeleble...Muchos fenómenos culturales se han mostrado mucho más persistentes e inexorables que un bosque tropical. Ya sabemos que, en nuestro tiempo, la teoría dominante sobre la naturaleza es una teoría sobre cambio, lucha y variación sin fin. Son los apologistas profesionales de la cultura, no los exploradores de la naturaleza, los que caricaturizan la naturaleza como si fuera algo inerte e inmóvil”. Como ha defendido la Escuela de Tartú,25 el problema de lo cultural no puede ser resuelto sin una definición sobre su posición en el espacio extracultural. La peculiaridad del “animal cultural” necesita de su contraposición con el mundo de la naturaleza, pero no como enemiga o como algo sujeto a la posibilidad de explotación, sino como marco o espacio extracultural que define lo propiamente

24 Eagleton, T., op. cit., p. 145. 25 Lotman, I.M., La semiosfera. Semiótica de la cultura, del texto, de la conducta y del espacio, 3 volúmenes, Cátedra (Frónesis), Madrid, 1998.

70 Joaquín Herrera Flores cultural. “Con determinados aspectos de su ser, el ser humano pertenece a la cultura; con otros, en cambio, se liga al mundo extracultural. Del mismo modo, sería poco prudente excluir categóricamente el mundo animal de la esfera de la cultura, ya que el límite entre ambos es incierto, y definir algunos hechos concretos como pertenecientes a la esfera de la cultura o a la extracultural es posible sólo en forma altamente relativa”.26 Esto ocurre porque vivimos, no en ambientes separados, sean puramente culturales o naturales, sino en “entornos”. Un entorno sólo puede existir si existe para algo y para alguien, o, lo que es lo mismo, si permite la relación entre los productos culturales y los procesos naturales: un campo se convierte en “entorno” cuando es usado para la satisfacción de necesidades de la fauna, de la flora y de los seres humanos que en él viven; y una ciudad, deja de ser un infierno de contaminación, de cemento y asfalto, cuando se convierte en un “entorno” urbano dedicado más a la humanización de la vida que a la satisfacción de las exigencias del consumismo y del individualismo.27 La dependencia mutua entre lo cultural y lo extracultural, que se da en los entornos en que vivimos, predica un origen compartido en el cual no se puede concebir “vida sin entorno”, ni un “entorno para nadie”. Según Edgar Morin, el viviente se genera, se organiza y se reorganiza permanentemente en el seno de la eco- organización.28 De ahí que no debamos caer en el dualismo que disocia el organismo de su entorno, ni en el monismo que afirma la absoluta dependencia de uno con respecto al otro. Desde este punto de vista, resultaría inadmisible pretender explicar el desarrollo de la cultura sobre la base de “relaciones” que le son internas, sin referencia a un entorno que no sólo es generado por la cultura, sino que, al mismo tiempo, posibilita la organización de esa cultura. Como vimos más arriba, la conservación, el manejo o aprovechamiento de los recursos naturales se encuentra en directa relación con una determinada configuración de producciones culturales. La historia de las civilizaciones puede ser escrita partiendo de la mutua interrelación entre los diferentes productos culturales de las diferentes y plurales formas de vida y las, asimimo diferenciadas, condiciones ambientales accesibles a cada pueblo. La

26 Lotman, I., Cultura y explosión. Lo previsible y lo imprevisible en los procesos de cambio social, Gedisa, Barcelona, 1999, p. 44. 27 Maturana, H., y Varela, F., El Árbol del Conocimiento: Las bases biológicas del conocer humano. Editorial Universitaria, Santiago de Chile, 1984. 28 Morin, E.,”Por la ciencia” artículos aparecidos en Le Monde durante el mes de Enero de 1982 e incluidos en Ciencia con conciencia, Anthropos, Barcelona, 1984.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 71 utilización de los recursos naturales ha sido un elemento constitutivo y determinante de los modelos de desarrollo y de los modos de existencia de los diversos pueblos29 Por tanto, la idea de que existan ecosistemas o sistemas naturales fuera del proceso cultural es falaz y responde solamente a un énfasis por mantener separados los conceptos de cultura y naturaleza. Es esa misma constatación la que nos empuja, como animales culturales, a elevarnos “culturalmente” de todos los determinismos que intentan imponernos sus dogmas, sean naturales o meramente culturales. Lo que a nosotros nos interesa es que, a partir del reconocimiento del continuo naturaleza-cultura “nos vamos elevando” de los procesos corporales y naturales para ir creando otro marco, ya plenamente humano, desde el que desplegar nuestras potencialidades. Por ello, parafraseando al ensayista brasileño, el río manda sobre la vida y la vida manda sobre el río. Es a partir de ese nuevo marco, de esa nueva “determinación” cultural/natural como podemos enfrentar no sólo los embates de la naturaleza física, sino, lo que es mucho más importante para nuestra argumentación, todo tipo de dinámica cultural “determinista” que “naturalice” o “cosifique” los hechos que construimos, haciéndonos creer que no dependen de nuestra creatividad y nuestra acción, sino de alguna instancia trascendente, tenga el nombre de Dios, de Legislador, de Sujeto abstracto o de Naturaleza. Por todas estas razones, aunque no tengamos otro remedio que reconocer que la reacción cultural ante los entornos de relaciones sociales, psíquicas y, por supuesto, naturales tengan su arranque en los procesos evolutivos biológicos dirigidos a la satisfacción diversificada de nuestras necesidades, también debe admitirse que dichas necesidades son recreadas por el proceso cultural, abriéndolas a nuevas formas de satisfacción y generando nuevas necesidades en función del conjunto de valores que creamos y mantenemos como conjunto de preferencias colectivas que nos permiten organizar y legitimar nuestras acciones. Sin caer en nuevos determinismos naturalistas o mecanicistas, no podemos (ni debemos) olvidar que las necesidades expresadas culturalmente revelan un fondo infraestructural,30 o económico-biológico31 que es, a su vez, modificado por lo que podemos denominar el “principio cairológico”.

29 Freitas, Marcílio de, “Nuanças da sustentabilidades: visoes fantásticas da Amazônia”, en Marcílio de Freitas (org.), Marilene Corrêa da Silva Freitas e Louis Marmoz, A Ilusao da Sustentabilidade, Governo do Estado do Amazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas/UEA, Manaus, 2003. 30 Harris, M., Antropología cultural, Alianza, Madrid, 2002. 31 Arnold, D., op. cit.

72 Joaquín Herrera Flores Este principio procede del término Kairós, es decir, del aprovechamiento de circunstancias favorables para la invención, para la creatividad y para la transformación de lo que nos viene dado, natural o culturalmente. A través del proceso cultural los animales culturales hemos “semiotizado” nuestro entorno. No olvidemos nuestra definición de proceso cultural: La continua construcción, transformación e intercambio de “signos”, es decir, de relaciones entre los conjuntos de objetos y acciones que, en el marco de una determinada situación de poder, permiten a los seres humanos reaccionar colectivamente sobre el entorno en el que viven De este proceso de “semiotización” surgen dos consecuencias: primera, la reacción cultural frente al entorno en el que nos relacionamos supone pasar del conjunto de “señales” -dato estático y espontáneo de la naturaleza: las nubes que pasan por el cielo o el contorno de una pisada de un animal al que intentamos dar alcance-, al conjunto de “signos” -entendido como el punto a partir del cual aprendemos a articular mensajes y a relacionar lo que antes era una mera señal física con lo que ahora es un hecho cultural: los análisis metereológicos o las huellas; y, segunda, sobrepasar las determinaciones meramente “adaptativas” a los entornos, las cuales bloquean nuestra capacidad de articulación cultural de la realidad, para dedicarnos al propio proceso de “transformación” de nuestras vidas con base en el proceso de construcción y prospección de alternativas reales y posibles. Por esa razón, en el ámbito de los procesos culturales no podemos quedarnos únicamente en la reivindicación de la identidad, como si la cultura se redujera a la conciencia de la pertenencia a un lugar y a una sola forma de ver el mundo. Si las acciones humanas tuvieran un solo camino por el que transitar y produjeran un solo y único significado al conjunto de relaciones en el que vivimos, todo quedaría reducido a la “tautología” de la identidad: el yo es el yo, y el otro será reconocido si es comparable o reducible a mi yo. Pero esto, afortunadamente, no es así. No existe un único camino por donde transitar culturalmente y no existe un único sentido intrínseco, inmutable, determinado y determinante del mundo. En realidad, la actividad humana propone siempre nuevos sentidos a su reacción cultural y a los procesos naturales que están en su base. Abrimos nuevas posibilidades, y lo hacemos “en esta vida”, dado que no podemos dejar de reconocer que la naturaleza está ahí, que nos expulsaron del paraíso y que no tenemos otro tiempo que el tiempo de la vida que nos ha tocado vivir. “Cairológicamente” no vivimos para

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 73 la muerte o para la eternidad, sino para alcanzar la plenitud de nuestra vida planteando nuevos sentidos y prospecciones de futuro en la brevedad del tiempo que tenemos. Lo cairológico significa, pues, en un primer momento, antagonismo frente al conjunto de relaciones que nos impiden plantear nuevos sentidos. Toda transformación de la realidad no vendrá por sí misma, ni estará garantizada por alguna instancia trascendental, sea del tipo que sea. Como defendió Norbert Elias,32 todo presupuesto trascendentalista tiende a empequeñecer lo humano frente alguna entidad todopoderosa que lo condiciona y lo determina; y, en vez de afirmar sencillamente el poder constitutivo de los sujetos, se detiene en la conciencia de sus limitaciones, como si éstas fueran infranqueables. El principio cairológico no parte, pues, de metafísicas “debilitadoras” de la capacidad constitutiva de los seres humanos; parte más bien de la acumulación, no de capitales o de recursos, sino de luchas antagonistas contra aquellas formas de relación que obstaculizan el pleno desarrollo de la praxis humana de valorización del mundo, sean estas económicas, sociales, filosóficas o políticas. De ahí que, en un segundo momento, lo cairológico se oponga a la reducción solipsista y homogeneizadora del mundo, reivindicando siempre la apertura a la diversidad de entornos, de formas de vida, de producciones culturales, de luchas sociales, de contextos naturales, sociales, económicos, políticos o culturales. Ni la naturaleza ni la cultura son procesos cerrados, homogéneos y terminados. Al estar abiertos continuamente a las presiones de la diversidad social, biológica y política, son procesos que están permanentemente en situación de desequilibrio, oscilantes, inestables, sometidos a tensiones compensadoras y descompensadoras: son procesos, pues, en movimiento y en continuo conflicto. En definitiva, son procesos sometidos a la historia. Lo cairológico, en fin, supone, en un tercer momento, sentar las bases de la mutua interrelación entre nosotros y los otros, entre lo cultural y lo natural, rota o bloqueada por los sistemas totalitarios de relación social y natural. Lo cairológico, pues, comparte las características de todo conocimiento nómada, tal y como lo formularon Deleuze y Guattari: 33 a) un conocimiento del “afuera”: es decir, una forma de acercamiento al mundo contando con el mundo real, tanto natural como cultural, y no un conocimiento de “gabinete”; b) un conocimiento “no simétrico”, es decir, opuesto, al que domina en los centros culturales,

32 Elias, N., Teoría del símbolo: un ensayo de antropología cultural, Península, Barcelona, 2000. 33 Deleuze, G., y Guattari, F., “Tratado de Nomadología” en Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, Pre-Textos, Valencia, 2002, p. 359-432.

74 Joaquín Herrera Flores es decir, un pensamiento descentrado, procesual, problemático y basado en la existencia de acontecimientos que dinamizan la realidad; c) un conocimiento de las “singularidades/particularidades”. Este tipo de conocimiento no se queda en la mera reivindicación de identidades cerradas e incomunicables, sino que celebra el mestizaje, la interrelación, la mezcla de diferentes percepciones y procesos culturales; d) un conocimiento, en definitiva, que no le pertenece a ningún sujeto trascendental ni a una totalidad social o política cerrada y excluyente, sino un pensamiento “abierto totalmente al devenir y al proceso”, a la historia, al cambio, a la continua transformación de la realidad en función de la búsqueda de una vida digna para todos los seres humanos. Así es como lo cultural se eleva sobre lo natural sin renunciar a sus condicionamientos y a los contextos desde, y para los que, surge. En palabras de Antonio Negri, lo cairológico, no es más que el proceso a partir del cual las formas culturales se proyectan sobre la realidad para comprenderla, organizarla e interpretarla. “En tal sentido -defiende Negri34 – lo que defino como kairós es el punto temporal ejemplar de apertura, de invención del ser en el borde del tiempo” y -añadiriamos nosotros- del espacio natural y cultural en el que se enmarca el proceso de humanización. En ese sentido, los derechos humanos son la clave a partir de la cual concretar ese principio cairológico, pues más que definir hechos, lo que posibilitan es esa invención, esa apertura, de carácter normativo, a la humanización emancipadora del ser humano. Los derechos humanos no son prima facie “derechos”. Son más bien procesos de lucha por la dignidad humana que se materializan en deberes y que, si tenemos suerte y acceso a los procedimientos políticos y legislativos, acabarán siendo garantizados por los sistemas jurídicos. En ese sentido, los derechos humanos “humanizan” el mundo, ya que apelan a la promoción de las capacidades humanas de transformación y de superación constante de las situaciones que bloquean los procesos culturales y con ellos la obstaculización del despliegue proteico de la naturaleza humana, lo cual es siempre el blanco de las políticas y propuestas culturales autoritarias y totalitarias. Los derechos humanos “humanizan”, es decir, proponen la humanización de los seres humanos, pero no porque sean la manifestación de alguna condición humana ancestral que se concreta en un momento espacio/temporal concreto. Si partimos de esa perspectiva acabamos fuera del principio cairológico. Los derechos humanos “humanizan”,

34 Negri, A., Il Ritorno. Quasi un’autobiografia, Rizzoli, Milano, 2003, p. 123.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 75 no en sí mismos o por sí mismos, sino porque son el vehículo que los actores sociales antagonistas al orden existente han creado cairológica y convencionalmente para enfrentarse a todo tipo de cierre de los procesos culturales y a todos los obstáculos que los sistemas autoritarios oponen al libre e igual despliegue de la capacidad humana colectiva de crear y transformar el mundo.

6. HACIA LA CONSTRUCCIÓN DEL IMAGINARIO AMBIENTAL BIO(SOCIO)DIVERSO: EL IMPERATIVO AMBIENTAL 6.1. Bio(socio)diversidad y deberes básicos: procesos naturales y aspectos procedimentales y éticos de las luchas por la dignidad humana en relación con la naturaleza

Si partimos de esta consideración deontológica de los derechos humanos como productos culturales (no facultades innatas), a partir de los cuales nos auto-imponemos deberes con respecto a los otros, a nosotros mismos y a la naturaleza, hablamos, en primer lugar, de “procesos” de construcción de condiciones para el respeto, la reciprocidad, el reconocimiento y la redistribución. No estamos hablando de algo que se da en el vacío de una naturaleza humana idealizada, sino en la constatación de que no estamos solos, de que nada podemos hacer solos, de que nuestras autodefiniciones dependen de las miradas de los otros, y, por último, de que habitamos espacios naturales y sociales en los que somos responsables, no sólo de lo que nos ocurra a nosotros, sino a los otros y, lo más importante en este momento, al Gran Otro u Otra, es decir, a la naturaleza. No se trata de afirmar la existencia de derechos “humanos” de la naturaleza, ya que si así hiciéramos recaeríamos en la consideración individualista y pasiva que rechazamos: desde esta concepción pasiva, cualquier cosa puede tener derechos, ya que éstos están desgajados de las luchas por la vida digna. Nosotros nos separamos de tales premisas y negamos que la naturaleza tenga “derechos”, más bien, entre los deberes que nos imponemos como seres humanos en el momento de relacionarnos con la naturaleza, también asumimos una serie de obligaciones con respecto a ésta, tan importantes y necesarias como las dirigidas a los otros seres humanos o a nosotros mismos. Es decir, en la línea que defendemos

76 Joaquín Herrera Flores a la hora de entender los derechos humanos, no como facultades innatas del ser humano, sino como deberes que nos imponemos en el ámbito del proceso cultural, destacan con especial relevancia, dado el maltrato y la destrucción sistemática que ha padecido y la coimplicación entre naturaleza y cultura que hemos defendido en estas páginas, las obligaciones que asumimos con respecto a la naturaleza. Veamos por qué. 1º – El ser humano y los procesos naturales en los que interviene están sometidos a las mismas leyes naturales que cualquier otra especie. No hay una garantía de seguridad trascendente que proteja indefinida e irrestrictamente a los seres humanos de los destrozos que provocan en el entorno en el que actúan. Ni la biología ni el estudio ecológico más optimista pueden fundamentar esa tendencia ilustrada a encumbrar la razón humana (occidental) a autocomprenderse como superior a los procesos naturales que indiscriminadamente explota. Tanto es así que los sistemas naturales, nos dicen los biólogos, son completamente aptos para persistir en ausencia de la especie humana y, asimismo, siguen, y seguirán, condicionando nuestra percepción del mundo a pesar de estar, podríamos decir, enterrados por millones de años de producción cultural. Tal y como defiende la llamada psicología del aprendizaje, los seres humanos tendemos a olvidar (o a ocultarnos) que los estímulos condicionados culturalmente con los que llenamos nuestras vidas cotidianas (formas culturales de comer, formas culturales de practicar el sexo, formas culturales de beber...) dependen de lo que ellos denominan “estímulos incondicionados” (hambre, reproducción, sed...), por lo que acabamos dando más importancia a aquellos que a éstos, dejando cada vez más de lado nuestra propia naturaleza de seres biológicos condicionados por su entorno. En tanto que nosotros, los animales culturales, como cualquier otro ser vivo, debemos satisfacer incondicionalmente determinadas necesidades naturales para poder vivir, tenemos el deber de respetar el entorno en el que pretendemos seguir viviendo y construyendo formas culturales diferenciadas en lo que respecta a la nutrición, a la sexualidad o a la bebida. 2º – Los recursos naturales son limitados. Las reservas de recursos naturales no son infinitas y, tarde o temprano, acabarán agotándose. El proceso cultural occidental parte de una aceptación dogmática en su capacidad “fáustica” de innovación que le permite albergar la creencia de que los problemas que ahora plantea serán resueltos técnicamente en el futuro. Como seres que nos imponemos

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 77 derechos humanos, es decir, obligaciones de actuar en un determinado sentido, asumimos el deber de interactuar con reciprocidad, es decir, de saber devolver lo que hemos recibido o lo que hemos robado en nuestro afán de progreso y beneficio continuo. Tenemos, pues, el deber de solidarizarnos, primero, con los procesos naturales –colaborando con ellos- ya que ellos son los que nos van a permitir construir los instrumentos necesarios para la supervivencia; y, asimismo, de solidarizarnos con aquellos individuos y grupos que han sufrido procesos coloniales a partir de los cuales se les ha impedido acceder con facilidad a sus propios recursos: individuos y grupos, como es el caso de los pueblos indígenas, que constituyen un impresionante factor de humanización del entorno, debido, sobre todo, a su estrecha relación con los procesos naturales. El deber no consiste, en este caso, sólo en aumentarles su riqueza y sus beneficios económicos, sino en crear las condiciones –entre las que destaca el saber retirarnos de sus territorios y de sus mentalidades-, de tal modo que les permitan a ellos mismos proteger y promover sus propios y diferenciados conocimientos tradicionales, mucho más cercanos a la reciprocidad con la naturaleza y con los otros seres humanos que las formas epistemológicas y productivas occidentales que se les han impuesto a lo largo de los últimos cinco siglos. 3º – El mundo biológico no se comporta de un modo simple y unilineal, sino de un modo complejo y plurilineal. Es decir, todo está en mutua interacción y en mutua dependencia: lo que le ocurra a un bosque o a una selva, repercutirá en lo que le ocurra a un río o a una determinada especie de animales.35 Por un lado, esa mutua interacción y dependencia es, precisa y paradójicamente, lo que asegura la biodiversidad. Si sólo hubiera una especie de animales, un tipo de bosque o una misma concentración de humedad, todo lo natural sería un proceso homogéneo que ni siquiera necesitaría para reproducirse la interacción entre sus componentes. Dado que para la polinización se requiere la intervención de diferentes y plurales entes y condiciones naturales, la necesidad de interacción supone necesariamente la biodiversidad para poder llevarse a la práctica con éxito. Pero, por otro lado, esa interacción y esa biodiversidad se dan en una escala temporal amplísima, que no coincide con los tiempos de la productividad alocada e inconsciente que exigen las sociedades de consumo indiscriminado. El calentamiento de la atmósfera y el consiguiente derretimiento de los círculos polares no van a ser

35 Freitas, Marcílio de, Fragmentos de utopias do século XXI: projeçoes e controvérsias, en Freitas, M., (org.) et. al., op. cit. p. 275 y ss.

78 Joaquín Herrera Flores fenómenos que se den de aquí a unos meses. Tardará su tiempo, pero, dadas las resistencias de los países industrializados a aplicar la Convención de Kyoto que recomienda la reducción del 5% de las emisiones venenosas a la atmósfera, llegará irremisiblemente. El progreso inmediato, rápido y continuamente creciente, no percibe el daño que produce en la naturaleza, dada la amplia escala temporal bajo la que los procesos naturales actúan, tanto en su reproducción como en su destrucción. Debemos, como seres humanos, reconocer la diversidad natural. Y, junto a ella, la importancia de los conocimientos tradicio- nales que los pueblos y formas de vida más cercanos a la naturaleza aplican. No por primitivismo, sino realmente por todo lo contrario. Es decir, por un humanismo aprendido a partir de la continua interacción con esa diversidad natural y con esas escalas temporales amplias que exigen, como decimos, el reconocimiento de nuestra inferioridad y de nuestra peligrosidad a la hora de relacionarnos “ideológicamente” con la naturaleza. Respetar y reconocer la diversidad natural, nos induce a respetar y reconocer la diversidad social y humana.36 No somos los únicos en el conocimiento del medio. Quizá seamos los que menos lo conocemos. Las formas indígenas de vida nos muestran la posibilidad de otra forma de producir, de otra forma de relacionarnos con el medio y de otra forma de respetar a los demás y a nosotros mismos. Por eso, el general brasileño Rondón, decía que al encontrarse con pueblos indígenas, el soldado debería antes dejarse matar que atentar contra la vida de aquellos que aún hoy siguen uniendo lo humano y lo natural en sus formas culturales de relacionarse con el mundo en el que viven. Y 4º– Si dichas interacciones humanas con el entorno respetasen la bio(socio)diversidad, los mecanismos de regulación entre los distintos y diversos componentes de los sistemas naturales estarían asegurados. Sin embargo, la intervención humana homogeneizadora y preocupada únicamente por el beneficio ecomómico inmediato, ha modificado sustancialmente la velocidad y los equilibrios entre tales procesos. Un bosque, en su escala temporal amplia, se “limpia” a sí mismo de elementos rechazables para su supervivencia. Al “ser” limpiados rápida y continuamente por agricultores o comerciantes de madera, esos procesos naturales se quiebran y desaparecen. Ahora bien, ¿Qué hacer? ¿Convertir la naturaleza universal en un inmenso “parque natural” intocable

36 Corrêa da Silva Freitas, M., Fundamentos da cultura solidária e sustentabilidade na Amazônia, en Freitas, M., (org.), et. al., op. cit. pp. 205 y ss. Cfr., asimismo, el trabajo de Marcos Frederico Krüger, Amazônia. Mito e Literatura, Valer Editora, Manaus, 2003.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 79 incluso para los que viven en él y de él? Si así fuera recaeríamos en las visiones esencialistas y pasivas de los derechos humanos. Nada más lejos de las intenciones de estas páginas. Nuestra conclusión reside en constatar la estrecha correlación que se da entre la acción humana y los procesos naturales. Hoy día, un medio natural completamente aislado de la sociedad humana puede considerarse tan artificial como una intervención directa. Lo cultural está tan incluido en la naturaleza, como la naturaleza lo está en lo cultural (aunque por aquel proceso de olvido de los “estímulos incondicionados” nos veamos inducidos a despreciar esta segunda parte de la cuestión) Por ello mismo, estamos obligados, como seres que defienden los derechos humanos, a redistribuir recursos económicos y recursos de conocimiento, tanto tradicionales como modernos, asumiendo deberes en cuanto a la creación y reproducción de condiciones sociales, económicas, políticas y culturales que posibiliten ese respeto, esas reciprocidades y esos reconocimientos.

6.2. Dune de Frank Ebert y el Imperativo Ambiental: los deberes de “sustentabilidad” y de “precaución”

Teniendo en cuenta las tesis del sociólogo Charles Perrow37 las relaciones entre los avanzados procesos tecnológicos y científicos y los procesos naturales pueden ser entendidas desde dos características singulares que conforman las interacciones conflictivas que entre ciencia, política y naturaleza han predominado en la modernidad occidental capitalista: 1) la creación y reproducción de una complejidad interactiva, por un lado, externa: entre los componentes de esa interrelación; y, por otro, interna: entre los componentes de cada uno de los factores (humanos y naturales) que en ella están implicados. Esta “trabazón” interactiva ha provocado tal complejidad que se nos escapan las hipotéticas, pero probabilísimas, consecuencias desastrosas para los sistemas ambientales cuando ocurre un accidente como el de Bhopal en la India, el de Chernobil en Ucrania, o el rompimiento del Prestige en las costas gallegas. Y 2) por lo general, las interrelaciones entre lo humano y lo natural tienden, en el marco del proceso cultural occidental capitalista, a establecerse, o, mejor dicho, a acoplarse rígidamente a los presupuestos teóricos y axiológicos dominantes.

37 Perrow, Ch., Normal Accidents: Living with High-Risk Technologies, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1999

80 Joaquín Herrera Flores Por un lado, tal y como afirma Perrow, la rigidez de acoplamiento provoca que cuando ocurra un fallo en el sistema, dicho error o disfunción no pueden separarse del resto del sistema, impidiendo la desconexión de lo que funciona mal de la totalidad de los procesos implicados en el mismo. Es la posibilidad del efecto cascada de reacciones que pueden desembocar en alguna catástrofe como las más arriba mencionadas; y nos coloca también en lo que Jorge Riechmann denomina el efecto Hidra, es decir, es tal la simbiosis estrechísima que se da entre los problemas y las soluciones, que “el crecimiento de los primeros deja atrás sistemáticamente a las segundas...la información y la tecnología de control no resuelven tanto los problemas de complejidad cuanto aumentan su dominio mediante la generación de nuevos problemas de complejidad”38. Y, por otro lado, ese “acoplamiento rígido”, según nuestra interpretación, nos da la respuesta a las dificultades de la ciencia y la economía capitalistas para llevar adelante cualquier forma de sustentabilidad en el marco del desarrollo de los países empobrecidos, ahora absolutamente condicionados y contaminados gracias a la exportación al Sur de las industrias más ecológicamente peligrosas. Curiosamente, uno de los textos más importantes para plantear una reflexión medioambiental desde las luchas por conseguir y reproducir una vida digna, es la novela Dune. La acción de la novela está situada en el marco de Arrakis, un planeta que ha sufrido las consecuencias de esa complejidad interactiva tratada rígidamente por la ciencia y la política. En Arrakis existe una total falta de agua, pero, para su desgracia, está provisto de una inmensa cantidad de riqueza natural (la “especia”), la cual es ansiada por todo el universo. Una de las autoridades más importantes de Arrakis es Kynes, el Ecólogo. Encargado de crear y mantener el equilibrio en un entorno peligrosamente abocado a la muerte, y después de una serie de peripecias, Kynes se halla en trance de morir atrapado por las fuerzas negativas del planeta que él mismo había tratado de “humanizar”. En esos momentos, Kynes contacta espiritualmente con su padre y antecesor en el cargo de Ecólogo y entre ambos van formulando los contenidos precisos para construir una cultura de derechos/deberes humanos con respecto a la naturaleza.

38 Riechmann, J., “Bromas Aparte: lo sencillo es hermoso” en Riechmann, J., y Tickner, J., (edit.), El principio de precaución. En medio ambiente y salud pública: de las definiciones a la práctica, Icaria, Barcelona, 2002, p. 150; “el caso del insecticida DDT llama fuertemente la atención sobre el hecho de que para cada solución, a menudo, hay un problema (lo cual debería refrenar nuestro optimismo). Esto no tendría que detener la búsqueda de mejoras, pero sí que debería reforzar la humildad en lo que se refiere a certidumbres científicas, sociales y económicas” en Green, R., y Kohler, B., “Judging the danger – Citizens and control Risk assessment and the Precautionary Principle”, manuscrito citado por Riechman y Tickner, op. cit, p. 151.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 81 1º – “cuantas más vidas existen en un sistema, mayor es la cantidad de posibilidades de preservarla” 2º – “la vida aumenta la capacidad de un ambiente para sustentar la vida “ 3º – “a una mayor cantidad y calidad de vida, habrá una mayor diversidad ambiental y, al contrario, a una gran cantidad de diversidad ambiental, mayores son las posibilidades de crear y reproducir la vida. 4º – “dado el grado de desarrollo de las formas de vida humanas y naturales que se dieron en el planeta, ya no hay vida ni diversidad “naturales”:la vida “natural” y la diversidad ambiental no se dan solas, sino que se requiere la interacción entre ser humano y naturaleza. 5º – “por tanto, un deber básico con respecto a la naturaleza consiste en reconstruir la acción humana, no como una forma de destrucción, sino de construcción y reproducción ambiental”. 6º – “la más alta función de un proceso cultural ambiental es la comprensión y prevención de las consecuencias que surjan en el marco de la interacción naturaleza-cultura” 7º – “las peculiaridades físicas de un mundo acaban por quedarse inscritas en su historia económica y política”

Los tres primeros elementos de estos siete mandamientos eco- ambientales tratan sobre el tema de la vida como algo que propicia la vida y la relación dialéctica establecida “naturalmente” entre vida y diversidad. Los puntos 5 al 7, giran sobre los deberes humanos de reconocimiento, respeto, reciprocidad y redistribución, englobados en tres aspectos: la acción humana ambientalizada, la prevención de las consecuencias y la estrecha conexión entre los mecanismos políticos y económicos y los procesos naturales (siendo el punto 4, un elemento de transición entre la vida y la cultura) De estos siete mandamientos eco-ambientales, se puede deducir un principio que nos sirva de guía general para formular deberes con respecto a la relación ser humano-naturaleza y, si fuera posible, positivizar dichos valores en normas a partir de las cuales podamos exigir a los poderes públicos y privados el cumplimiento de tales deberes. Es lo que Hans Jonas denominó, parafraseando el imperativo categórico kantiano, el “imperativo ecológico”, al cual nosotros preferimos denominar, después de algunos cambios sustanciales, el imperativo ambiental.

82 Joaquín Herrera Flores Jonas formulaba su principio ecológico de la siguiente manera: actúa de tal modo que los efectos de tu acción sean compatibles con el mantenimiento de una auténtica vida humana sobre la tierra.39 Aunque la formulación del principio es de una importancia crucial al pasar del campo de las motivaciones morales (consideradas a priori por gran parte de la filosofía occidental que sigue a Kant) al de los efectos de las acciones reales de los seres humanos en su “inevitable” interacción con la naturaleza, sin embargo, se centra demasiado en los aspectos antropocéntricos y culturales: la acción humana debe ir dirigida al mantenimiento de una auténtica vida humana, dejando al margen la necesaria interrelación entre procesos culturales y naturales. Nosotros preferimos reformular dicho principio de la siguiente manera: actúa de tal modo que las consecuencias de tus acciones sobre la naturaleza y la sociedad sean compatibles con la producción y mantenimiento de la diversidad biológica, social y política, fines genéricos que constituyen el eje sobre el que pivota una cultura de derechos humanos basada en las luchas particulares por la dignidad humana. Como Hans Jonas y Frank Ebert, priorizamos la exigencia de interrelacionar las acciones, no sólo con las causas de los fenómenos, sino, fundamentalmente con las consecuencias sociales y naturales de la acción. En segundo lugar, defendemos que los objetivos de toda acción humana deben ser la creación y reproducción de las diversidades ambientales, es decir, naturales, sociales y políticas. Y, en tercer lugar, relacionamos tales fines de pluralidad y diversidad con la construcción de una cultura de derechos humanos no reducidos a una sola de sus formas de implementación: la jurídica. Dicha cultura de derechos humanos tiene más que ver con la materialización en forma de deberes de las continuas y diferenciadas luchas por la dignidad humana, las cuales tienden siempre, como decimos, a la producción y mantenimiento de las diversidades ambientales. Todo ello en aras de un tratamiento flexible, plural, diferenciado y consciente de las consecuencias de esa complejidad interactiva bajo la que se dan las relaciones entre cultura y naturaleza.

39 Jonas, H., El principio de responsabilidad: Ensayo de una ética para la civilización tecnológica, Herder, Barcelona, 1975 (para Jonas, “la ética hoy debe tener en cuenta las condiciones globales de la vida humana y de la misma supervivencia de la especie”, con lo que su famoso principio de responsabilidad podría denominarse como “principio Anti-Nemrod”) En 1985, Hans Jonas publicó la segunda parte de El principio de responsabilidad, bajo el título Técnica, medicina y ética. La práctica del principio de responsabilidad (publicado en castellano por Paidós, Barcelona, 1997) y en cuyo desarrollo aparecen tres elementos básicos de la teoría de Jonas: las virtudes de la cautela, de la moderación en la acción y el pensar en las consecuencias. A partir de estos elementos, Jonas define la “heurística del temor” como el medio por el cual podremos adquirir una mayor “conciencia del peligro y, así, tener el deber de actuar siguiendo una ética de la responsabilidad. Nuestro deber –afirma Jonas- es saber que hemos ido demasiado lejos, y aprender nuevamente que existe un demasiado lejos, en Técnica, medicina y ética, op. cit., p. 143.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 83 Así, para la creación y reproducción de la bio(socio)diversidad, somos capaces de auto-imponernos, en las luchas por el acceso igualitario y digno a los bienes materiales e inmateriales, dos deberes importantísimos para llevar adelante ese “imperativo ambiental”, cada uno de los cuales impondrá, por su propia dinámica, un conjunto de (sub)deberes que irán dotando de contenido a nuestro imperativo: 1) el deber de proteger y promover la “sustentabilidad” ambiental y social en nuestras relaciones con el medio. Y 2) el deber de “precaución” ante las incertidumbres y falta de previsión de las consecuencias sociales y naturales de las políticas económicas y ambientales del modo capitalista de producción, hoy en día a punto de convertirse en la forma globalizada de explicar, interpretar e intervenir en el mundo.

6.2.1- El deber de sustentabilidad ambiental

Nuestra concepción de los “derechos humanos” como la materialización cultural de los deberes que surgen de las luchas por la dignidad humana, le otorga especial importancia al conjunto de Convenciones y Cumbres mundiales, autodenominadas, de de “derechos humanos”. Para nosotros, los derechos humanos son el conjunto de prácticas y procesos sociales que concretan en un momento determinado la lucha por la dignidad humana (tal y como la hemos expuesto con anterioridad) En ese conjunto de procesos y prácticas sociales lo primero que surge es el reconocimiento del deber, es decir, de la auto-imposición de compromisos que materialicen y concreten las luchas sociales. Por ello, el objetivo básico de toda Cumbre o Convención Internacional de derechos humanos no es otro que el de formular los deberes que, en relación con la temática de que se trate, los gobiernos, entidades privadas y organizaciones sociales deben implementar. Estas Convenciones, pues, no tratan de formular derechos, ya que ni siquiera tendrían la legitimidad y la capacidad jurídica necesarias para crear normas. En estas Convenciones, lo que se intenta es formular, de un modo más imperativo que la mera reivindicación sentimental o literario-estética, los deberes que la comunidad se autoimpone para tratar con determinadas materias que han sido llevadas a la discusión pública a causa de las continuas luchas por la consecución de una vida digna. Hay países y entidades públicas y privadas que firman los resultados de tales deliberaciones y otros países y entidades que ni

84 Joaquín Herrera Flores siquiera están presentes en las mismas: los que las firmas se comprometen a llevar a cabo políticas públicas en beneficio de tales conclusiones: entre dichas políticas públicas, está la tarea importantísima de llevar esos “compromisos” a derechos. Los cuales servirán como instrumento privilegiado, no para “reconocer” derechos preexistentes, sino para poder exigir judicialmente, a un nivel nacional como internacional, los deberes asumidos previamente, de ahí la importancia de las reuniones internacionales. Hay otros países, fundamentalmente los países ricos y desarrollados, que firman para después incumplir sistemática los deberes asumidos. Y, en fin, hay otros, básicamente los Estados Unidos de Norteamérica, que ni siquiera firman las conclusiones finales y, por tanto, se consideran fuera de la comunidad que se autoobliga a cumplir con las propuestas de tales Convenciones y Cumbres. En el caso del tema ambiental, destacan aquellas Convenciones que han llevado la reivindicación de la sustentabilidad, de mero ejercicio académico o reivindicativo a la categoría de deber, es decir de auto-imposición de trabas e impulsos a la acción siguiendo una determinada línea lo más compatible posible con las luchas por la dignidad. Concretamente, nos referimos a la Cumbre Mundial de Rio de Janeiro celebrada en 1992 y la Cumbre Mundial de Johannesburgo de 2002, en donde se han intentado establecer las bases de los deberes a cumplir en relación con el medio ambiente. De los resultados de tales Cumbres, deducimos que para hacer sustentable nuestra relación con el entorno, no basta con el mantenimiento “sostenido” de políticas de desarrollo basadas en el crecimiento continuo del producto interior bruto. Cuando hablamos de sustentabilidad en el marco de una cultura de derechos humanos implicada en las luchas por la dignidad humana (y no meramente como aumento de los productos interiores brutos de empresas o países), lo hacemos de la asunción de los cuatro deberes básicos de respeto, reconocimiento, reciprocidad y redistribución necesaria para la reproducción de la bio(socio)diversidad, desde donde surgen un conjunto de 8 auto-imposiciones absolutamente necesarias para que el desarrollo económico pueda “sostenerse” sin atentar contra la “bio(socio)diversidad”:

1) El deber de conocer y divulgar la existencia del desarrollo desigual que se da entre los países y sociedades “enrriquecidas” y los países y sociedades “empobrecidos” por su posición geoestrátegica en el orden global. Este desarrollo injusto ha conducido, en estos

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 85 tiempos de globalización, a que todas las industrias contaminantes y de bajo rendimiento productivo económico se trasladen a estos últimos países, ampliando, si cabe, el abismo entre ricos y pobres. 2) El deber de conocer y divulgar la exigencia de que el conocimiento no puede ni debe ser apropiado por parte de entidades privadas, sean individuos o grandes corporaciones. El conocimiento debe ser entendido como patrimonio de la humanidad, cumpliendo con ello la función social que le corresponde en el sentido de mejorar las condiciones que permitan a los pueblos e individuos luchar por una vida más diga. 3) el deber de oponerse tajantemente a las políticas colonialistas que han esquilmado sistemáticamente a las sociedades colonizadas de sus recursos naturales en beneficio propio. Desde el colonialismo se han exportado a los países pobres y/o periféricos las industrias más contaminantes; consecuentemente, se ha evitado que en estos países existan regulaciones ambientales adecuadas que impidan la rapiña de los colonizadores y neocolonizadores; y, como colofón, se ha generalizado toda una tendencia colonial a la intervención “humanitaria” –primero creamos el problema y después ofrecemos la solución “humana”- en enormes áreas naturales de los países subdesarrollados.40 4) el deber de afinar más en lo que respecta al concepto de pobreza y a los indicadores que intentan definirla. No se trata de “cuantificar” la necesidad de dólares para la supervivencia cotidiana, sino de desentrañar los obstáculos y las condiciones que permitan dos cosas íntimamente unidas al concepto de sustentabilidad: la creación de capacidades (sistemas educativos) y la creación de condiciones de accesibilidad de los considerados “pobres” a los mecanismos públicos de decisión acerca de sus vidas. A menor posibilidad de accesibilidad a dichos mecanismos, mayor índice de pobreza, por supuesto, no sólo de elementos materiales sino también, y especialmente, de posibilidades políticas de intervención sobre sus entornos sociales y naturales. 5) un desarrollo sustentable debe cumplir con lo que Milton Santos nos recordaba páginas más atrás: una acción homóloga y complementaria entre los diferentes componentes que conforman la bio(socio)diversidad, dejando de lado los aspectos puramente jerárquicos que sitúan las decisiones en centros alejados de y despreocupados por las consecuencias de sus decisiones. Es decir, un desarrollo sustentable tiene que partir de políticas de desarrollo

40 Freitas, M., (org.) et. al., op. cit. p. 179.

86 Joaquín Herrera Flores local. Es desde el conocimiento y las políticas públicas locales como puede plantearse un aprovechamiento “sustentable” de los recursos de un territorio, implicando en él, no sólo a los preocupados por el medioambiente, sino a entidades y organizaciones sociales y políticas responsables de lo que vamos a dejarles a las generaciones futuras. 6) un desarrollo sustentable tiene que partir de los deberes de respeto, reciprocidad, reconocimiento y redistribución en relación con los pueblos y formas de vida que viven sus vidas en los territorios objetos de políticas de desarrollo. No se puede llegar a la sustentabilidad midiendo únicamente factores ecológicos estructurales. Hay que complementar tales estudios con los impactos humanos en el entorno, los cuales estarán influidos, no sólo por aspectos cuantitativos o tangibles, sino, sobre todo, por aspectos culturales, míticos o religiosos de naturaleza intangible, pero de una fuerza arrolladora si es que pretendemos una sustentabilidad real y enriquecedora. 7) la necesidad de respetar, reconocer y promover derechos territoriales a aquellas comunidades que hayan interactuado ancestralmente con el entorno objeto de políticas de desarrollo. No se trata de extender títulos de propiedad a los indígenas, con lo que generalizaríamos la concepción innatista y pasiva de la concepción liberal individualista de los derechos humanos, que ve a éstos como una extensión de la propiedad privada. Se trata de reconocerles su participación activa, física y espiritual, en la construcción de los territorios en los que han vivido ancestralmente y, por tal razón, permitirles ejercer y toma decisiones con respecto a los mismos. 8) reconocer que todo lo anterior no es una concesión a los pueblos empobrecidos por las políticas coloniales de los países enriquecidos con la rapiña colonial, sino el resultado de proceso de luchas sociales concretas en busca de la dignidad humana colectiva.41 El deber de sustentabilidad, nos está impulsando, pues, a pensar en modos distintos de actuar y comprender el mundo en que vivimos. Todo ello por la conciencia cada vez más creciente de tres elementos: 1) la insustentabilidad de nuestras sociedades y del modo de vida capitalista/consumista en general, el cual en los tiempos de la globalización neoliberal está hundiendo a la mayoría de las poblaciones del mundo en una miseria y en una violencia estructurales de las cuales es imposible salir con los remedios

41 Luchas sociales contra los procesos de apropiación de los conocimientos tradicionales y contra la explotación de los recursos naturales autóctonos por parte de las grandes transnacionales. Cfr. Freitas, M., (org.), op. cit, p. 181.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 87 propuestos por los que crean la enfermedad; 2) la convicción genérica de que hay que cambiar un sistema de creencias y unas actitudes científicas y políticas que tratan “rígidamente” (especialización, descontextualización, apego a intereses de acumulación de capital) la complejidad interactiva que se da entre la naturaleza y la cultura: casi nos va la vida en la asunción de esta conciencia; y 3) construir sociedades sustentables necesita por lo menos de cinco sustentabilidades: la sustentabilidad “social”,42 basada genérica- mente en las ideas de inclusión y equidad social; y, de un modo más concreto, en acciones sociales que favorezcan la emergencia y desarrollo de nuevos actores y movimientos sociales, entendiendo que una sociedad se enriquece y se hace más sustentable mientras mejor exprese las distintas miradas y aproximaciones frente a la realidad. La pregunta sería la siguiente: ¿existen límites naturales a la diversidad social y cultural que puede contener una comunidad humana?. La sustentabilidad “política”, la cual está relacionada con cuestiones como la cantidad de Estado necesaria para armonizar las complejas relaciones entre las necesidades y expectativas sociales y las políticas públicas, con la omnipresencia de relaciones de poder en el marco de situaciones formales de igualdad ante la ley, de legitimidad, gobernabilidad, etc. En definitiva, una “sustentabilidad” dirigida a crear las condiciones para el empoderamiento de los ciudadanos; la pregunta sería la siguiente: ¿cuánto Estado seguirá siendo necesario para continuar persiguiendo el bien común, que va poco a poco transformándose en el menos común de los bienes?. La sustentabilidad “cultural”, que tiene que ver con la elección entre un modelo identitario de espacio cultural, en el que se cierran las posibilidades de acceso a formas alternativas de acercamiento a los recursos naturales; y un modelo significativo de espacio cultural, en el que las identidades se vean como procesos de identificación (atribución de rasgos culturales en función del reconocimiento y la reciprocidad de los otros) que tienden a la constante re-significación de los entornos de relaciones en los que nos movemos; la pregunta sería: ¿podrán coexistir procesos de identificación plurales y significativos en un mundo que se globaliza crecientemente y que comienza a configurar, bajo presupuestos puramente economicistas y geo-estratégicos, una única identidad planetaria?. La sustentabilidad “económica”, que tiene que ver con las siempre tensas relaciones entre el mercado, el crecimiento, la producción de bienes y

42 Cfr. Antonio Elizalde Hevia, “Desde el ‘Desarrollo Sustentable’ hacia Sociedades Sustentables” en Polis. Revista de la Universidad Bolivariana,4, 2003, (monográfico dedicado a Sustentabilidad y Sociedades Sustentables) pp. 290 y ss.

88 Joaquín Herrera Flores servicios y los procesos de división social, sexual y étnica del hacer humano, los cuales colocan a las personas en situaciones jerárquicas y desiguales a la hora de acceder a los bienes que, en cada proceso cultural, se entienden como necesarios para alcanzar niveles dignos de vida. La sustentabilidad económica, no tiene, pues, únicamente que ver con la mayor o menor cantidad de mercado en las diferentes sociedades, sino, fundamentalmente, en la demanda de una mejor “redistribución” de los recursos que suponen beneficios o cargas para el bienestar general de la población; la pregunta sería: ¿puede, y debe, el mercado regular todo tipo de actividades humanas? ¿es posible democratizarlo? ¿caben acciones de mercado con la lucha contra los procesos de división social, sexual y étnica del hacer humano?. Y, por último –no en primer lugar, aunque no por ello menos importante- la sustentabilidad “eco-ambiental”, que tiene que ver con la intervención humana en los entornos naturales. Las preguntas que surgen de este tipo de sutentabilidad son múltiples; resumiendo nos quedamos con las siguientes: ¿es posible generalizar la conciencia de los límites de la biosfera en un sentido complementario al de la satisfacción de las necesidades y expectativas humanas? ¿Cómo reproducir continuamente la biosfera teniendo siempre presente la exigencia de preservar, al mismo nivel, la diversidad social y natural?.43

6.2.2. El deber de precaución ambiental

En la noche del 2 de Diciembre de 1984, cuarenta toneladas de gases letales fueron liberadas al ambiente debido a un accidente en la fábrica de pesticidas de la empresa norteamericana Union Carbide en Bhopal, India. Este accidente ha sido calificado como el peor desastre químico de la historia del mundo. Se estima que 3 días después del accidente, 8000 personas ya habían muerto a causa de la exposición directa al gas, aunque la cantidad exacta de víctimas se desconoce. En los informes de Greenpeace se afirma que la noche del desastre significó el comienzo de una tragedia que aún hoy continúa. Unión Carbide, nos informa Greenpeace, abandonó al poco tiempo la planta dejando sin control una gran “legado” tóxico y destructor, hasta el punto que los habitantes de Bhopal aún hoy, casi 20 años

43 Colocar en último lugar la “sustentabilidad eco-ambiental” no es algo gratuito, pues tiene que ver con la superación de un ecologismo de reserva natural y un paisajismo orientado hacia el turismo. Lo eco-ambiental supone el reconocimiento de la necesidad de las otras “sustentabilidades”. Es recomendable la lectura del trabajo de Enrique Leff, “Racionalidad ambiental y diálogo de saberes: significancia y sentido en la construcción de un futuro sustentable” publicado en Polis. Revista de la Universidad Bolivariana, 7, 2004 (cuyo monográfico está dedicado al interesantísimo tema Saber(es). Ciencia(s) y Tecnología(s)

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 89 después de la tragedia, no pueden beber el agua de sus fuentes naturales debido a la contaminación de las mismas.Decenas de miles de personas siguen muriendo, o sufriendo enfermedades gravísimas e incurables, debido a la continua exposición a gases tóxicos. Union Carbide se fusionó con la multinacional Dow Chemicals con sede matriz en los Estados Unidos; y esta compañía se ha resistido desde entonces a asumir las responsabilidades provocadas por la tragedia. Amanece en Estocolmo. Es la mañana del 28 de Abril de 1986. Cien kilómetros al norte de la capital, unos trabajadores de una central nuclear detectan una extraña y anormal subida de los niveles de radiación, la cual fue inmediatamente registrada y confirmada por otras estaciones nucleares de los países escandinavos. Durante los primeros momentos, nadie pudo determinar la fuente de estas radiaciones. Sólo pudo decirse que “algo, en algún lugar, estaba expulsando gigantescas cantidades de radioactividad a la atmósfera”.44 No fue hasta el día siguiente que Moscú ofreció un comunicado informando de un “pequeño” accidente en la central nuclear de Chernobyl y que ya se estaban tomando las medidas requeridas para evitar mayores males. En realidad, el “pequeño” accidente consistió en la explosión del reactor número 4, enviando grandes cantidades de radiactividad a más de mil quinientos metros dentro de la atmósfera. Los campesinos y consumidores de vegetales de Europa Central, los ganaderos de los países escandinavos y de gran parte de Gran Bretaña, el círculo polar ártico y ¡quién sabe cuántos lugares más!, acabaron contaminados por las radiaciones y aún hoy se siguen ignorando sus consecuencias. El caso es que a principios del siglo XXI 20 granjas del País de Gales aún siguen en cuarentena debido al descubrimiento de flecos de radiaciones provocadas por el accidente ocurrido a miles de kilómetros de su entorno geográfico. En 1994, civiles hutus mataron a más de 800.000 tutsis en un período de tres meses, por lo general a machetazos. A inicios de los años noventa, las alambradas y construcciones de los campos de concentración serbios eran testigos mudos de la aplicación generalizada de las formas más brutales de tortura que una mente “normal” pueda imaginar. En 1998, en Yakarta, turbas de indonesios vociferantes incendiaron, destrozaron y saquearon cientos de tiendas y hogares chinos, con un balance de más de dos mil víctimas mortales. Durante el mes de Marzo de 1999, Colombia asistió a una

44 Cfr., Adam, B., “Radiated Identities: In Pursuit of the Temporal of Conceptual Cultural Practices” en Featherstone, M., and Lash, S., Spaces of Culture. City, Nation, World, Sage, London, 1999.

90 Joaquín Herrera Flores nueva matanza, esta vez de líderes indígenas que formaban parte de la Coalición Amazónica. Entre ellos destacan Terry Freitas, Ingrid Washinawatok y Lehe’ena’e, los tres responsables del programa de educación bilingüe y preservación cultural de la comunidad indígena U’wa opuestos al cultivo de coca y favorables a la diversificación agrícola de la zona. Año tras año, los informes detallados del Programa de Naciones Unidas para el desarrollo nos “asustan” al comprobar que aumenta sin parar la diferencia de ingresos y consumo entre los países ricos y pobres. Y año tras año, peruanos, ecuatorianos, colombianos, zaireños, thailandeses y, en general, los países antaño colonizados por las potencias occidentales se hunden más en el abatimiento que provoca la continua ineficacia de sus “estados de derecho”. ¿Qué decir de aquellos europeos que ven como, poco a poco, los discursos xenófobos y excluyentes van copando los escaños de sus parlamentos y las comisiones ministeriales de sus gobiernos “arrogantemente” democráticos frente al resto del mundo?... Vivimos, como se desprende del magnífico libro de Amy Chua - World on Fire45-, en un mundo en llamas. Llamas e incendios materiales y simbólicos que están cambiando la faz de la tierra gracias a la exportación indiscriminada de las formas organizativas occidentales: el libre mercado, la democracia formal, los capitales financieros, las formas productivas intensivas... Llamas e incendios inducidos por un sistema económico que, sin tener en cuenta las consecuencias sociales, humanas y ambientales, provoca radiaciones nucleares incontroladas, derrames de petróleo en los mares, contaminaciones químicas tóxicas, hambrunas, sequías, matanzas de pretendido origen étnico pero de marcado carácter económico y político, apropiaciones de conocimientos tradicionales que dejan indefensas a las comunidades de gran parte del mundo, o por cegueras obsesas y “obesas” de los gobiernos “democráticos” occidentales ante los genocidios que se están dando en las múltiples fronteras de cristal blindado que proliferan en los márgenes del Imperio. Tal y como nos informan en los diferentes medios de comunicación, todos estos “accidentes” tienen un origen local y “afortunadamente” ocurren alejados de los cómodos salones de la burguesía consumista occidental que mira horrorizada lo que les

45 Chua, A., World on Fire: How exporting Free Market Democracy Breeds Ethnic Hatred and Global Instability, Random House, Inc., NY, 2002 (hay traducción castellana bajo el título El mundo en llamas. Los males de la globallización, Ediciones B, Barcelona, 2003 ; asimismo, Zakaria, F., The Future of Freedom Illiberal Democracy at Home and Abroad, Norton & Co., 2003; y Mandelbaum, M., The Ideas that conquered the World: Peace, Democracy, and Free Markets in the Twenty-first Century, PublicAffairs Edit., 2004

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 91 ocurre a los “salvajes”. Parece que los que vivimos en el marco de los privilegios “conquistados” a causa del colonialismo capitalista de siglos anteriores, no tenemos responsabilidad de tales sucesos. En nuestro fuero interior, albergamos la ilusión de que están demasiado lejos para que nos afecten. Sin embargo, debido a la cada vez mayor complejidad interactiva de los fenómenos que acaecen en nuestra aldea global, poco a poco nos vamos a ver como esos granjeros galeses que viven cercados por las consecuencias de la desidia de sus semejantes ucranianos. ¿Habrá alguna oportunidad de enfrentarnos a tales hechos desde los acoplamientos rígidos y jerárquicos que predominan en nuestras reflexiones científicas, económicas y políticas? ¿No tendremos que flexibilizar nuestras disciplinas académicas y nuestras opciones políticas y sociales para poder enfrentarnos a “accidentes” y acontecimientos que no respetan fronteras, que producen efectos imprevisibles y que no pueden ser estudiados ni enfocados políticamente sin una concepción interdisciplinar e interactiva de lo que ocurre en el mundo? Una posible vía de enfoque abierto y flexible es la que se está desarrollando alrededor de lo que se denomina el principio de precaución aplicable, fundamentalmente, a las posibles conse- cuencias perversas de la ignorancia y la incertidumbre que provocan los nuevos desarrollos tecnológicos y agrogenéticos, aún no controlados científicamente. Nadie, a excepción de los grupos multinaciones que se abrogan el derecho de contaminar y de dañar la salud humana a causa de la falta de prohibición expresa de sus actividades, podrá negar la importancia de un principio como el de precaución, sobre todo, cuando asistimos impotentes a la generalización de las nuevas formas transgénicas de producir los alimentos que ingerimos diariamente sin saber cuáles serán sus efectos a medio y largo plazo. Pero, dado que nosotros vamos trabajando en la estela del imperativo ambiental (que proyecta su sombra sobre los aspectos biológicos, sociales y políticos de nuestro planeta, comprometiéndonos a mantener siempre abierta la comunicación entre lo natural y lo cultural en el marco de las luchas por la bio(socio)diversidad y la demodiversidad), preferimos denominar tal principio como el deber de precaución ambiental, ya que en él no se recoge únicamente la necesidad de prevención para la salud humana, sino que se extiende a la diversidad ambiental: natural, social y política. El llamado “principio de precaución” surgió durante la década de los setenta en la antigua Alemania Federal, época en la que la

92 Joaquín Herrera Flores planificación de, y la intervención pública en, la economía constituían procesos cotidianos y públicos garantizados por una completa lista de derechos fundamentales y de instituciones judiciales expresamente dedicadas al control de constitucionalidad de las acciones públicas.46 El concepto en alemán es vorsorge, que literalmente puede traducirse por “previsión” o “custodia”, pero que también incorpora nociones de manejo prudente y “mejor práctica” en la gestión ambiental incluso ante la ausencia de un riesgo inminente. De hecho fue puesto en práctica por el gobierno alemán, entre otras finalidades, con el objetivo de afrontar las consecuencias ecológicas que podía traer consigo la lluvia ácida y el calentamiento de la atmósfera. En el núcleo de dicho principio se halla la idea intuitivamente sencilla de que frente a la posibilidad de incurrir en daños a la salud humana, producibles por la aplicación de técnicas y procedimientos aún no controlados totalmente por la ciencia, las decisiones políticas deberían tomarse: a)adelantándose a las certidumbres e incertidum- bres científicas, b) ampliando críticamente los principios de la elección racional que reducen lo social, lo económico y lo político al análisis centrado en la oposición coste-beneficio, y c) y flexibilizando principios jurídicos como el de que todo está permitido si no existe una prohibición expresa que lo limite.47 De este modo, y tomando conjuntamente los textos de la Wingspread Conference on Implementing the Precautionary Principle,48 y la Lowell International Summit on Science and the Precautionary Principle,49 el “principio de precaución” (podríamos añadir ecológico, para distinguirlo de lo ambiental), se define de la siguiente manera: “cuando una actividad se plantea como una amenaza para la salud humana o el medio ambiente, deben tomarse medidas precautorias aun cuando algunas relaciones de causa y efecto no se hayan establecido de manera científica en su totalidad”. Asimismo, en ambas “reuniones internacionales” se establecían cuatro deberes que dotaban de contenido al principio: 1) el deber de adoptar acciones preventivas (en aleman el Vorsorgeprinzip puede ser traducido

46 A. Weale, The New Politics of Pollution, Manchester Univ. Press, London, 1992-, y A. Weale, “Ecological Modernisation and the Integrarion of European Environmental Policy”, Weale, A., Liefferink (eds.) European Integration and Environmental Policy, Belhaven Press, London, 1993; Pearce, D., Economics Values and the Natural World, Earthscan, London, 1993; Pearce D., “The precautionary principle in economic analysis” en O’Riordan, T., et. al .,(Eds.) Interpreting the precautionary principle, Earthscan, London, 1994; Wynne, B., “Uncertainty and Environmental Learning: Reconceiving Science in the Preventive Principle” Gloval Environmental Change, 2 (Junio de 1992), pp. 111-127. 47 Timothy O’Riordan “El principio de precaución en la política ambiental contemporánea”, publicado originalmente en Environmental Values, Vol. 4, N.º 3, 1995; asimismo consultable en WWW.ISTAS.NET/MA/AREAS/RESIDUOS/ ESCORIAL/ APORTA/APORTA10.PDF. 48 Celebrada en Racine, Wisconsin, del 23 al 25 de Enero de 1998. 49 Celebrada en Lowell, Massachusetts, del 20 al 22 de Septiembre de 2001.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 93 también como “principio de previsión” (versión más cercana a lo que añadiremos después nosotros), aplicable cuando exista una evidencia creíble de que está ocurriendo o puede ocurrir un daño, aun cuando la naturaleza exacta y la magnitud de dicho daño no sea comprendida totalmente; 2) el deber de asumir la carga de la prueba por parte de quienes proponen las actividades “dudosas”, y, del mismo modo, el deber de identificar, evaluar y poner en práctica los caminos más seguros entre los que sean viables para satisfacer las necesidades sociales; 3) el deber de analizar el mayor espectro posible de alternativas ante la posibilidad de actividades perjudiciales, así como el deber de estudiar los riesgos a fondo para minimizarlos, evaluando y eligiendo las alternativas más seguras para satisfacer una necesidad particular, bajo la tutela de organismos de revisión continua; y 4) el deber de incrementar la participación pública en la toma de decisiones, esto es, el deber de aplicar procesos de toma de decisiones transparentes e inclusivos que aumenten la participación de todos los involucrados y sus comunidades, en especial los potencialmente afectados por una decisión sobre políticas de alcance sanitario o medioambiental.50 El crecimiento de los movimientos ecologistas unidos a las reivindicaciones de consumidores, de asociaciones sobre la necesidad de una salud equilibrada, o de una mayor y mejor información acerca de lo que ingerimos, ha propiciado un interés creciente por las alteraciones ambientales, por los elementos que se usan en los tratamientos industriales de los productos, por la extensión de los recursos renovables y no renovables, por los niveles excesivos de consumo, etc. La esencia, pues, del “principio de precaución” es que la sociedad civil, articulada ecológicamente, no puede esperar hasta que se conozcan todas las respuestas frente a los problemas que suscitan las innovaciones tecnológicas en los temas antes citados; es preciso, pues, tomar medidas que protejan la salud humana o el medio ambiente de los daños potenciales que pueden estar implícitamente unidos a dichas innovaciones y hacerlo con la mayor rapidez y efectividad posibles. Todo muy bien, especialmente para la protección de la salud y de los espacios protegidos en el Occidente desarrollado. Pero, cuando somos conscientes de los problemas a los que se enfrenta, por

50 En este sentido, destaca el importante estudio de la AEMA (Agencia Europea de Medio Ambiente) titulado Late Lessons from Early Warnings: the Precautionary Principle 1896-2000, en European Environment Agency, Environmental Issue Report 22, Copenhague, 2001. (http://reports.eea.eu.int/environmental_issue_report_2001_22/en -cfr. Riechmann y Tickner (coords.), El principio de precaución. En medio ambiente y salud pública: de las definiciones a la práctica, op. cit., p. 20.

94 Joaquín Herrera Flores ejemplo, la cuenca del Amazonas, los habitantes de los barrios marginales de Lima, o las contiendas “tribales” en África o las actividades de patentar el conocimiento tradicional de nativos y pueblos indígenas por parte de las multinacionales, o, por poner un punto final, la deforestación de gran parte de los espacios selváticos de la India, nos surgen una serie de preguntas:: ¿entra dentro del principio de precaución la obligación de no exportar la contaminación a otras partes del mundo o esto añadiría una mayor inseguridad a una población preocupada intensamente por el grado de colesterol que se acumula en su sangre? ¿hay que extender la precaución a todo tipo de innovaciones que afecte el conjunto de certezas y creencias de la población? Es decir ¿es posible infringir tal principio cuando se trata de innovaciones políticas, no del todo fundamentadas científicamente por la filosofía y la ciencia políticas dominantes? ¿o el principio de precaución únicamente se aplica a la entrada de nuevos procedimientos tecnológicos en el tratamiento de lo que en el futuro ingeriremos como alimentos? ¿tiene algo que ver el principio de precaución con el mantenimiento de la diversidad ambiental cuando ésta se opone al crecimiento continuo de la explotación de la naturaleza, sea esta explotación contaminante o no? ¿cómo complementar el principio de precaución con la exigencia cultural de sociodiversidad? ¿entra dentro del principio la conservación y promoción de los conocimientos tradicionales empleados por pueblos y etnias estrechamente interrelacionadas con la naturaleza? ¿no es el principio de precaución un principio de cautela científica que está provocando el despliegue de nuevas formas especializadas de conocimiento científico, al estilo de las “sociedades del riesgo”? ¿puede servir el principio de precaución para poner coto a las experiencias alternativas de grupos opuestos a las formas neoliberales de la globalización capitalista o, al contrario, las impulsa? Impulsados por la asunción del Imperativo Ambiental (no meramente “ecológico”) y reconociendo las ventajas que aporta el principio de precaución (ecológico), creemos que habría que extender sus presupuestos a los tres niveles que están incluidos en nuestro imperativo:

1) la diversidad ambiental.- aparte de las referencias concretas a la salud humana y de las más ambiguas al concepto de “medio ambiente”, desde el “imperativo ambiental” habría que complementar el principio de precaución con políticas concretas de preservación de la biodiversidad y extirpar, se conozcan o no los resultados

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 95 posteriores o se necesiten o no determinados recursos naturales para el modo de vida occidental (como, por ejemplo, el gas o el petróleo que hay debajo de la floresta amazónica), todas las actividades que vayan en contra de la reproducción biodiversa de la vida. Si, por poner un caso relevante, la región del Amazonas contiene un tercio de las reservas mundiales florestales, un quinto del agua dulce del mundo, produce un 70% de los genéricos naturales que se usan para medicinas anticancerígenas y antibióticos, además de ser una entidad física relevante en las estabilidades mecánica, termodinámica y química de los procesos atmosféricos en dimensión planetaria, ¿habría que permitir la continua construcción de presas en las zonas tropicales que alimentan a fábricas de automóviles, que después se venderán masivamente en los países occidentales?, ¿habría que admitir la venta de productos químicos no necesariamente innovadores, como es el caso del mercurio para la actividad de los garimpeiros o buscadores de oro amazónicos, aunque con ello se restrinja la cuenta de beneficios de empresas transnacionales europeas? Cuando la Unión Europea se compromete en la Convención sobre Cambio Climático de Kyoto a reducir la cantidad, por sí misma irrisoria del 0’5% de sus emanaciones tóxicas a la atmósfera, y sólo lo cumple en el 0’1 y, como es el caso de Rusia, China o Estados Unidos, se niegan a firmar la Convención alegando una mayor “seguridad” para sus respectivos productos interiores brutos pero, al mismo tiempo, se reconoce el principio de precaución que evite daños a los genes de los que comemos dia tras dia alimentos transgénicos ¿no estamos sentenciando a muerte esa diversidad ambiental amazónica que tan necesaria es para la producción de medicinas y para el equilibrio ecológico de nuestro planeta? 2) la diversidad social.- El deber de precaución ambiental también debería dirigirse al mantenimiento y reproducción de la pluralidad de voces, de conocimientos, de formas de producir y de divertirse...en fin, de la diversidad social que enriquece el acervo patrimonial de la humanidad. Situándonos de nuevo en los márgenes del gran río Amazonas, hallamos una diversidad humana tan sorprendente como dinámica: grupos sociales urbanos y rurales heterogéneos desde el punto de vista de su situación económica; sociedades y comunidades indígenas que se han adaptado de distintos y diversos modos al espacio geográfico de la floresta y que mantienen articulaciones históricas, culturales y políticas muy diferentes, tanto entre ellas mismas como entre ellas y las comunidades urbanas y rurales antes mencionadas; grupos de

96 Joaquín Herrera Flores inmigrantes y desplazados por causas económicas o políticas... grupos sociales que mantienen patrones diferentes en cuanto a la realización de su existencia y formas desiguales de apropiación y usufructo de los recursos naturales, siempre en tensión latente con las exigencias uniformadoras del mercado. Todos estos grupos han sido afectados por los procesos de urbanización necesarios para el despliegue de la economía de mercado y la inserción de los recursos productivos y sociales en el mercado mundial impuesto por la globalización. Los indicadores de las condiciones de salud, educación, empleo, relaciones formales e informales de trabajo, etc., nos muestran un panorama desolador de desprotección, de inseguridad social y de pérdida de las tradicionales y más respetuosas relaciones con la naturaleza. De ahí, la necesidad de “prevenir” todo tipo de políticas que propicien desplazamientos de las zonas rurales a las urbanas, todo tipo de políticas, por supuesto, basadas en estudios sociológicos de tinte modernizador, que sustituyan las formas tradicionales de producir y de tratar con el entorno por los modos más apreciados por los economistas de la elección racional en el marco del mercado. Asimismo, habría que aplicar el deber de precaución ambiental ante las innovaciones legales que las mayorías parlamentarias de países con fuerte componente étnico promulgan constante y continuadamente con el objetivo de homogeneizar la estructura social de sus países. Pongamos un ejemplo: el proceso de promulgación de la ley llamada “Ley Indígena: Bartlet Cevallos Ortega” en México ¿o es que acaso una ley no puede suponer un caso paradigmático para comprender la necesidad de la precaución?. Ante la “amenaza” de dicha Ley, en Junio de 2001 se reunieron representantes de los pueblos indígenas de la Sierra Juárez de Oaxaca y proclamaron lo siguiente: tal ley no debería de promulgarse porque producirá efectos contraproducentes a la diversidad social mexicana. Primero, al subsumir el derecho colectivo de los indígenas a sus territorios en el marco de acceso a la propiedad privada previsto en la Constitución mexicana, se sentarían las bases para la culminación de los procesos de privatización de los ejidos (campos de producción colectiva y comunitaria) a favor de los que puedan “pagar” por acabar con las formas tradicionales de organización, convivencia y producción. Segundo, al relacionar los derechos indígenas con las políticas de desarrollo nacionales con el objetivo de crear empleos, se producirán los efectos nocivos de la migración hacia los “polos de desarrollo” no construidos por y para los indígenas y sus formas de vida; se

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 97 inducirán monocultivos para poder competir con los campesinos de los otros socios del Tratado de Libre Comercio de América del Norte. Y, Tercero, al no separar las cuestiones de los pueblos indígenas de los acuerdos comerciales con multinacionales foráneas, se puede producir, como de hecho así ha sido, un saqueo del conocimiento tradicional y de los recursos biológicos que las comunidades indígenas han sabido conservar ancestralmente. Tales ideas fueron asumidas como “deberes” en el Congreso Internacional sobre Diversidad Cultural y Biológica51 y que se conoce como la Iniciativa de Yunnan. Dicha Iniciativa llama la atención mundial sobre las grandes incertidumbres que enfrentan las culturas locales e indígenas en su esfuerzo por utilizar, mantener y reproducir los paisajes y territorios, en nuestros términos, los ejes de coexistencia, en los que viven y de los cuales dependen. “Ejes de coexistencias” que están bajo amenaza debido, tanto a políticas gubernamentales de “inclusión” en los procesos de globalización, como de la expansión irrestricta, y protegida por los acuerdos de la OMC, de los mercados regionales, nacionales e internacionales. La Iniciativa de Yunnan apoya el fuerte vínculo existente entre la diversidad cultural y la biodiversidad y asume los deberes auto-impuestos por la Comunidad Internacional y que se hallan expresados en la Declaración de Belem, en el Plan de Acción de Kunming y en el Código de Ética de la Sociedad Internacional de Etnobiología, todos ellos textos importantísimos para entender los derechos humanos como materialización de deberes que surgen de las luchas por la dignidad humana. Además, la Iniciativa de Yunnan, asumiendo la diversidad social como un elemento inescindible de la biodiversidad, respalda el reconocimiento que la Convención sobre la Diversidad Biológica hace en relación a la importancia de las comunidades locales en la conservación de la biodiversidad y la necesidad de respetar los valores culturales y espirituales que induzcan a lograr el desarrollo realmente sustentable en los lugares en los que las comunidades locales viven y trabajan. Como afirman los defensores del importante principio de precaución, la sociedad no puede esperar a que los legisladores legislen a su favor: son precisas medidas “precautorias” como, por ejemplo, la potenciación de los movimientos sociales que estén implicados en tales procesos de incertidumbre legal con el objetivo genérico de controlar las cegueras, no sólo de los científicos del

51 celebrado en la provincia de Yunnan, República Popular de China, del 20 al 30 de Junio del año 2000.

98 Joaquín Herrera Flores derecho, sino de los políticos que pueblan por decenas las “sagradas”, por separadas de sus ciudadanos y ciudadanas, sedes parlamentarias. 3) la diversidad política.- Asimismo, el deber de precaución ambiental nos induce a tomar medidas precautorias contra los experimentos e innovaciones que los centros de poder del capitalismo globalizado vienen realizando en el mundo entero desde mediados de los años setenta y principios de los ochenta. ¿O es que acaso no constituyen un experimento, sin aval científico ni empírico, los llamados “planes de ajuste estructural” que obligaron a países tan ricos en recursos como Argentina o Nigeria a privatizar todos sus espacios públicos productivos con el objetivo de garantizar el pago de la deuda a los bancos privados del Occidente desarrollado y cavar, al mismo tiempo, tumbas para sus propios habitantes? Cuando en 1989 se celebró el tristemente famoso –triste sobre todo para los pueblos del Sur- Consenso de Washington, uno de sus más impactantes principios era el de la extensión global del sistema democrático unido al sistema de mercado. Todo científico de la política sabe con certeza que un sistema democrático, con toda su división de poderes y sus costosísimos procesos electorales, necesita de una fuerte capitalización económica para funcionar correctamente. ¿Cómo no reconocer tal evidencia? ¿Cómo extender, pues, los procesos democráticos sin aplicar políticas reales de desarrollo económico, social y cultural reales y efectivas? ¿No estaremos recayendo en riesgos humanos que pueden ser evitados aplicando la prevención y la precaución?. La evidencia de que sin una economía sana no puede haber democracia se ha intentado solucionar con la exportación del sistema de mercado, ocurra lo que ocurra con las poblaciones a las que se les envían y se les imponen tales procedimientos. Y esto conduce a varios callejones sin salida. El primero es que estamos ante un círculo vicioso, si la democracia requiere mercado y el mercado requiere democracia ¿cuál de los dos aplicar primero? Como afirma el cínico ensayista norteamericano Robert D. Kaplan en su texto La Anarquía que viene, en los países a los que exportamos las democracias y el mercado, hay que mantener -¿militarmente?- la democracia hasta que los mercados libres produzcan suficiente desarrollo económico y social para que las propias democracias importadas puedan sostenerse por sí mismas. Es decir, la exportación de democracias a los países empobrecidos va a dividir el mundo en una nueva polarización: las democracias fuertes con capacidad

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 99 económica para financiar los carísimos procesos democráticos y las “democracias” débiles incapaces de sostener por sí mismas tales procedimientos hasta que el mercado libre se lo permita.52 El propio Bill Clinton se jactaba de presidir la democracia más fuerte en un mundo compuesto de democracias más débiles. Y aún más. Dado que en los países que surgieron de la descolonización de la postguerra y de la neo-descolonización de la postguerra fría no existía las mismas condiciones sociales que se dieron para facilitar la extensión y expansión de las democracias occidentales, entre ellas, la existencia de una clase media uniformizada y abastecida para el consumo de bienes tanto materiales como “electorales”, esa exportación de las democracias de mercado a los países descolonizados se llevó a cabo fortaleciendo a determinadas minorías, las cuales se han ido enriqueciendo gracias a la protección occidental de sus intereses a costa de las mayorías, bastante más difíciles de convencer de las conveniencias de esperar los efectos benéficos de la aplicación del mercado libre. Así, asistimos no sólo a la brecha Norte-Sur, sino en el mismo Sur, a la proliferación de “minorías dominantes del mercado” para las que las instituciones democráticas sólo son legítimas si favorecen sus intereses de acumulación salvaje de capital. En Filipinas, el 1% de “chinos” controlan el 60% de la economía privada. Los indonesios de etnia china, con sólo el 3% de la población, controlan aproximadamente el 70% de la economía indonesia. Los blancos son una minoria dominante del mercado en Suráfrica, y, en un sentido más complejo, ocurre lo mismo en Brasil, Ecuador, Guatemala y gran parte de América Latina. Los ibos son una minoría dominante del mercado en Nigeria. Los croatas eran una minoría dominante del mercado en la antigua Yugoeslavia. Y, sin duda, tal y como afirma Amy Chua, los judíos son una minoría dominante del mercado en la Rusia post- comunista.53 Aparte de los estallidos de violencia “étnica” que surgen esporádicamente en los países contra esas minorías dominantes del mercado (no olvidemos las masacres ruandesas a causa de la división en clases propiciada por los holandeses durante el siglo XIX y gran parte del XX), la antigua división geográfica y política Norte-Sur, ha pasado a ser sociológica54 Las élites del Sur, que antes reclamaban

52 R.D.Kaplan The Coming Anarchy, Random House, NY, 2000, pp. 63-78 (Ed. Esp. Ediciones B, Barcelona, 2000; argumentos defendidos también en los años cincuenta y sesenta por Seymour M. Lipset “Some Social Requisites of Democracy: Economic Development and Political Legitimacy”, American Political Science Review, 53, 1959, pp. 69- 77; y por Samuel Huntington en Political Order in Changing Societies, Yale University Press, New Haven and London, 1968 (version castellana, El orden politico en las sociedades en cambio, Paidós, Barcelona, 1997); cfr., asimismo, Chua, A., El mundo en llamas. Los males de la globalización, op. cit. p. 280. 53 Chua, A., op. cit. p. 16. 54 Nair, S., El Imperio frente a la diversidad del mundo, Areté, Barcelona, 2003, p. 231.

100 Joaquín Herrera Flores formas de movilización socialistas o populistas para lograr un autodesarrollo industrial y una modernización rápida, chocaron con la intolerancia con modelos alternativos de desarrollo económico y la revolución de las estructuras políticas y de decisión económicas globales que llevó a cabo el neoliberalismo de los años ochenta y noventa. Esos intentos de lucha contra la dependencia económica fueron inducidos a fracasar financieramente (la deuda se traga casi la mitad de muchos productos interiores brutos, estando la subida de los intereses en manos de los acreedores), tecnológicamente (se les impidió favorecerse de los inventos tecnológicos a causa de la protección de las patentes) y sociológicamente (pues la invasión urbana, provocada por el éxodo rural, ha creado monstruos de cemento y de miseria absolutamente inabarcables) Por poner un ejemplo, uno de los países más comprometidos con el continente africano, ha reducido su ayuda del 0’62% del PIB al 0’32% a inicios del siglo XXI, a pesar de haberse agravado la situación económica, social y política de los pueblos del “continente abandonado”. De la división Norte-Sur, hemos pasado a la división entre países y clases sociales dominantes y países y clases sociales impotentes. El deber de precaución ambiental nos obliga a defender la diversidad política: primero, intentando prever y, por supuesto, detener e impedir las consecuencias de esas innovaciones y revoluciones sociales neoliberales que han llevado a las cuatro quintas partes del planeta a situaciones de miseria y violencia estructurales. Segundo, la demostración de los males de esta revolución neoliberal no debe recaer en las sociedades y pueblos que sufren la “democracia de mercado”: la carga de la prueba debe recaer en aquellas instituciones que se encargan de mantener un mundo mísero y violento, en beneficio de unas pocas centenas de grandes empresas que se enriquecen gracias a la explotación de lo que no está expresamente prohibido. En tercer lugar, el deber de precaución ambiental nos obliga a pensar continuamente en las alternativas políticas y sociales que no beneficien a minorías de mercado, sino que sean las más seguras para las mayorías populares. Y, en cuarto lugar, a través de la aplicación y garantía de tal deber de precaución ambiental habría que propiciar no un tipo de democracia orientada únicamente a las minorías favorecidas por el mercado, sino a la consecución de procedimientos que permitan, tanto una mayor participación política, como una mayor posibilidad y capacidad de toma de decisiones por parte de esas mayorías populares ahora instaladas en la impotencia, la miseria y la autodestrucción.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 101 Ampliando a lo “ambiental” el principio de precaución, tal y como lo formulan Riechmann y Tickner, cinco serían, pues, las condiciones que habría que asumir para poder implementar el deber de precaución ambiental: 1) la responsabilidad: al iniciar una actividad nueva –sea científica, tecnológica o política- recae sobre el iniciador la carga de la prueba de demostrar que no hay vía alternativa más segura para conseguir beneficios y garantías lo más generalizados posibles. 2) el respeto: en condiciones de riesgo grave –tanto para la salud como para la capacidad humana de decidir sobre su propio destino- se impone la actuación preventiva para evitar daños, incluso si no existe una certidumbre científica –natural o social- total de las relaciones causa-efecto. 3) la prevención: surge el deber de ingeniar medios –sociales, científicos y políticos- que eviten los daños potenciales –a la salud física, cultural y política-, más que buscar controlarlos y “gestionarlos” a posteriori. 4) la información y el saber: existe el deber de comprender, investigar, informar (sobre todo a los potencialmente expuestos al riesgo) y actuar sobre los potenciales impactos; no cabe escudarse en la ignorancia, ni en los pretendidos “fines de la historia” 5) compartir el poder: extensión de una democracia participativa y “decisoria”, que comprenda tanto a los elementos científicos y técnicos como a los procedimientos de decisión ciudadanos.

Ejemplo de esta asunción colectiva del deber de precaución ambiental ha sido laPrimera Reunión de Activistas (grassroots) sobre la Devastación Ambiental.55 En esa Reunión Internacional se presentó la Declaración de Biodevastación y Destrucción Ambiental, en el marco del Global Organizing for Citizen Empowerment (Organizando Globalmente el Fortalecimiento de los Ciudadanos) En esa Declaración (de asunción de deberes) se formularon una serie de obligaciones que, interpretadas ampliamente, nos pueden servir de caracterización de lo que aquí hemos designado como “imaginario ambiental bio(socio)diverso:: 1ª – cuando exista una amenaza para la diversidad ambiental (natural, social o política), esté o no fundamentada teórica o científicamente por los académicos y juristas, debe ser pospuesta hasta que se conozcan sus consecuencias (naturales, sociales o políticas).

55 celebrada durante los días 17 al 19 de Julio de 1998 en St. Louis, Missouri, EEUU.

102 Joaquín Herrera Flores 2ª – obligación de aplicar el principio de responsabilidad inversa (“Reverse Onus Principle”): cuando exista una estimación razonable que un proceso (natural, social o político) o un producto pueden presentar una amenaza a la diversidad ambiental, la responsabilidad, tanto en lo que concierne a su demostración de inicuidad como con respecto a sus consecuencias, es para el que propone el proceso o el producto. 3ª – el principio de evitación de los desastres (“Prevention of Disasters Principle”): evitar que, a causa de las políticas de “mano invisible” y generalización de los mercados a todas las actividades humanas, se creen las condiciones que sean dañinas para la salud y para la misma supervivencia de los afectados. 4ª – el deber de impedir la transferencia de substancias y de procesos sociales, culturales o políticos a otras regiones del mundo. 5ª – el deber de impedir actividades que no estén culturalmente controladas por las poblaciones nativas y los pueblos indígenas. 6ª – el deber de aplicar el principio de equidad entre las generaciones (“Intergenerational Equity Principle”): garantizando la asunción y garantía jurídica de deberes con respecto a las generaciones futuras y a los procesos naturales en su evolución biodiversa. 7ª – el principio de Nüremberg (“Nüremberg Principle”): los ciudadanos y los pueblos nativos e indígenas tienen el deber de oponerse a prácticas políticas, sociales o naturales que afecten a la diversidad ambiental.

Como se concluía al final de la ya citada Iniciativa de Yunnan, es un deber humano encontrar un punto común entre diferentes visiones del mundo: científica, social, local, global y política, considerando cuidadosamente los importantes vínculos entre la cultura, la naturaleza y el ambiente sociopolítico externo. Ello significa reorientar la ciencia, y la política, hacia el reconocimiento de formas alternativas válidas de conocimiento, de acción y de organización. No hay mejor definición de lo que en estas páginas hemos querido designar por “imaginario ambiental bio(socio)diverso.

Cultura y Naturaleza: La Construcción Del Imaginario Ambiental Bio(Socio)Diverso 103 104 Joaquín Herrera Flores O Tripé do Desenvolvimento Includente

Ignacy Sachs1

este começo do século, marcado por relações cada vez Nmais esquizofrênicas entre os mercados financeiros e a economia real, é no bojo desta última que se dará à prova de fogo para o governo. É lá que se geram oportunidades de trabalho decente. Quarenta anos de crescimento rápido, porém socialmente perverso, excludente e fortemente concentrador de renda, seguidos de mais de duas décadas de desaceleração, em grande parte perdidas, tornaram o Brasil um dos países mais desiguais do mundo com fortes índices de desemprego e subemprego. Para reverter esta situação e começar a saldar a dívida social acumulada não basta voltar a crescer. É essencial que o Brasil ingresse na trajetória virtuosa de desenvolvimento includente sustentado por um crescimento com alta densidade de empregos. Para tanto é necessário elaborar uma estratégia voltada, simultaneamente, à busca de alta produtividade no núcleo modernizador da economia nacional, à promoção de crescimento puxado pelo emprego nos setores produtivos onde é ainda possível avançar por meio de métodos intensivos em mão-de-obra e, finalmente, à expansão dos instrumentos de ação direta sobre o bem- estar da população sob a forma de redes públicas de serviços de base (educação, saúde, saneamento e habitação).

1 Diretor de Pesquisa Emérito da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales e co-diretor da CRBC – Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, Paris-França.

O Tripé do Desenvolvimento Includente 105 Por razões óbvias, o Brasil deverá concentrar a maior parte da sua capacidade de investimento na implementação de uma estratégia voltada à consolidação e expansão do núcleo modernizador da economia nacional. Este é constituído por indústrias de alta tecnologia e pela agricultura mecanizada de grãos, ambos capazes de competir nos mercados mundiais, produzir a preços acessíveis artigos de consumo de massa e gerar elevado valor agregado; porém pouquíssimos empregos diretos. É verdade que elas têm um impacto no mercado de trabalho, induzindo empregos indiretos, tanto na produção de insumos como de bens e serviços consumidos pelos trabalhadores e funcionários do núcleo modernizador. A política de empregos deve explorar ao máximo este efeito multiplicador nos outros setores da economia. Em particular naqueles que produzem bens e serviços não submetidos à concorrência estran- geira (os assim chamados não comerciáveis) onde existem, portanto, maiores margens de liberdade na seleção das tecnologias: serviços sociais, técnicos e pessoais, construção civil e obras públicas. Convém ainda expandir ao máximo o “crescimento puxado pelo emprego” na agricultura familiar, no artesanato e nas indústrias naturalmente intensivas em mão-de-obra, velando para que a sua competitividade nos mercados internacionais não seja baseada, unicamente, em fatores espúrios (salários baixos, longas jornadas de trabalho, falta de acesso à previdência social, sonegação fiscal). O Brasil é um país abençoado com a maior biodiversidade e a maior floresta tropical do mundo, amplas reservas de terras cultiváveis, boa disponibilidade de recursos hídricos na maior parte do território, climas favoráveis à produção vegetal (o sol é e será sempre nosso), gente disposta para trabalhar a terra em vez de reclamar empregos no asfalto e excelentes agrônomos e biólogos. Está, assim, em condições de partir para um novo ciclo de desenvolvimento rural, liderando o processo mundial de criação de uma civilização moderna e sustentável baseada na utilização dos recursos renováveis, com o complexo bioindustrial como carro-chefe. A produção de biomassa pode gerar um grande número de empregos agrícolas e florestais, a começar pela produção de alimentos. O Brasil ainda não cumpriu a meta da segurança alimentar e não eliminou a fome. Outrossim, uma oferta elástica de bens de salário, a começar pelos alimentos, condiciona a aceleração do crescimento puxado pelo emprego em condições não inflacionárias. Por outro lado, a transformação das biomassas em alimentos, rações animais e um leque crescente de produtos, tais como

106 Ignacy Sachs bioenergia, adubos, materiais de construção, fibras, plásticos, fármacos e cosméticos cria oportunidades de empregos secundários nas indústrias, e, terciários nos serviços técnicos e comerciais. Acrescente-se a isto os empregos relacionados com a redução de desperdício no uso dos recursos naturais (conservação de energia e de água, reciclagem) e com uma manutenção mais cuidadosa do patrimônio existente de infra-estruturas, equipamentos e parque imobiliário, uma maneira de prorrogar a sua vida útil, e reduzir, desta forma, a demanda pelo capital de reposição. Em ambos os casos, trata-se de fatores que contribuem ao crescimento sem exigir novos investimentos. Como o terceiro pé do tripé, destacam-se os já mencionados serviços que atuam diretamente sobre o bem-estar das populações. Normalmente ministrados através de redes públicas de acesso universal, a educação e a saúde também podem ser fontes de numerosos empregos. A sua importância deve-se ao fato de que estes serviços permitem a efetivação de direitos humanos fundamentais. Não esqueçamos que o desenvolvimento, em última instância, consiste precisamente na universalização do conjunto dos direitos humanos das três gerações: civis, cívicos e políticos; econômicos – a começar pelo direito ao trabalho decente –, sociais e culturais; por fim, os direitos coletivos ao meio ambiente, à infância, à cidade, ao desenvolvimento.

O Tripé do Desenvolvimento Includente 107

Amazônias: Sociedades Diversas Espacialidades Múltiplas1

José Aldemir de Oliveira2

enhoras e senhores do Direito, o que um geógrafo, Sainda por cima um geógrafo da periferia pode lhes dizer num encontro como esse? Ficarei na minha canoa e buscarei discutir a globalização e em seguida apontar alguns fragmentos de como ocorre a inserção da Amazônia, nesse processo, a partir das espacialidades, conforme o título do meu texto espacialidades múltiplas. Em primeiro lugar, qual o meu entendimento de globalização. O tempo em que vivemos é único. Compõe-se de vários tempos e só é rigorosamente semelhante a si mesmo: jamais o homem teve oportunidade de desenvolver tantas técnicas. Entretanto, como anteviu Euclides da Cunha no início do já passado século XX, temos tudo e nada, porque nos falta os desdobramentos dos aconteceres. No início de século, milênio em que vivemos, há um ritmo que aniquila o tempo e os espaços, colocando em xeque as verdades e as dúvidas. Chegamos a não ter certeza do que sabemos, mas também a duvidar do que não sabemos. Duvidar das certezas da ciência tem sido um passo importante para grandes descobertas, pois, como nos afiança Kafka, há um destino, mas não há um caminho que nos leve até ele. Muitas vezes o que chamamos de caminho é apenas indecisão. No nosso agora, temas como o deste encontro que discute o direito das populações locais, são asfixiados pela globalização, como um processo que tendência a homogeneizar o modo de vida e se

1 Palestra proferida na mesa-redonda Direito Sócio-Ambiental, Globalização e o Espaço Amazônico, no I Ciclo Internacional de Conferências: Pensando o Direito na Amazônia / PPGDA-UEA. 2 Professor Titular da Universidade Federal do Amazonas e Diretor-Presidente da Fapeam.

Amazônias: Sociedades Diversas Espacialidades Múltiplas 109 caracteriza pelas transformações de espaços nacionais em espaços econômicos internacionais, que acelera a circulação voltada quase que exclusivamente para a reprodução ampliada do capital. Por outro lado, contraditoriamente, o nosso agora é assinalado pelo avanço excepcional da ciência, da técnica e da informação – a unimídia3 – estabelecendo a informatização da paisagem e das relações humanas. Esse processo só foi possível graças ao desenvolvimento da técnica que possibilitou a todos os lugares serem atingidos por certas dimensões da globalização, a despeito das inumeráveis dificuldades socioculturais. Cabe, ainda, destacar o papel da mídia na reconfiguração desse processo, quase sempre considerando a globalização como fábula fundada na economização da vida social e da vida pessoal. “É o mundo tal como nos fazem ver e crer”. Alavancada pela midiamorfose4 incute a idéia de que a difusão instantânea da notícia nos torna mais informados. O mercado é apresentado como acessível para todos, sendo capaz de homogeneizar tudo. O Estado é apresentado como não tendo mais capacidade de investimentos sociais, pois está em crise. Como resultado, configura-se a degradação da qualidade de vida e dos valores. A adesão desenfreada aos comportamentos competitivos, que caracterizam as ações hegemônicas presentes no processo de globalização aparece como perversidade que deixa de ser uma manifestação isolada atribuída a distorções da personalidade, para se estabelecer como um sistema. No entanto, é preciso também discutir a globalização enquanto possibilidades, considerando o fato de que a articulação que tende à sociedade global é dinâmica e contraditória. Esta dinamicidade é dada pelos lugares que contêm especificidades e peculiaridades, as quais muitas vezes escapam às determinações mais gerais da História, à medida que a história do lugar não é necessariamente o espelho da história de um país ou de uma sociedade. A partir desse entendimento, que está à possibilidade de produção, daquilo que o geógrafo Milton Santos denominou de outra globalização. O homem não mora no mundo, ele mora num lugar. Este lugar pode escapar das tendências à homogeneização colocadas pelo mundo globalizado, pois as forças que a criam podem também criar o seu contrário. O lugar tem um tempo e um espaço que são pouco globais e estão prenhes de significados. No lugar emerge a diferença e brota a luta que aparece como possibilidade de produzir uma nova 3 Campo criado pela convergência da mídia digital. Nova escrita eletrônica para a comunicação do amanhã. 4 Revolução da comunicação devido à potência dos computadores multimídia e às redes de comunicação.

110 José Aldemir de Oliveira história, de onde podem brotar reações que nos levam para outra percepção da história e encorajam a superação da práxis tradicional, abrindo lugar para a utopia e a esperança. Então a “história e os lugares seriam da nossa humanidade comum e não mais apenas dos dominantes”. Dito isto, entro na segunda parte da minha intervenção e quero-lhes falar de um desses lugares enquanto possibilidades, a Amazônia. No nível da informação predomina o entendimento da Amazônia como exuberante, grandiosa, folclórica, fotogênica, concebendo apenas a paisagem natural, não considerando as relações sociais. O espaço aparece como uma instância inumana (o homem é um intruso). Sem captar o essencial separam-se as pessoas de seu espaço, como se fosse possível compreender o espaço sem as relações humanas. Neste sentido, a Amazônia é veiculada como espaço fragmentado em glebas, lotes, reservas, áreas de preservação, unidades de conservação, áreas de assentamento, quase sempre superpondo territórios, cujos limites não necessariamente coincidem com o espaço vivido. Se quisermos efetivamente compreender a Amazônia teremos que revelar um filme no qual aparecem retratos de pessoas identificadas no processo que fragmentou espaços, ao mesmo tempo em que vem à tona o passado por meio de coisas e sentimentos que mudaram ou se refizeram em outro patamar. Ou seja, é preciso compreender e considerar o homem da Amazônia como sujeito de um processo que, se de um lado dilacera espaços, de outro contém a possibilidade e a capacidade de embalar novos sonhos e novas ilusões sem melancolias nem saudosismos, mas com “ódio sossegado e com paciência”. Na Amazônia, índios, posseiros, peões, ribeirinhos, seringueiros e caboclos são sujeitos e construtores do espaço e da história, o que não significa deixar de reconhecer a sua condição de excluídos. Ao mesmo tempo deixo claro que não se trata de devaneio, pois como adverte Foot Hardmam “todos nós sabemos a barra de viver sem chão, o peso de cada minuto nesses tristes trópicos, a desolação que é ver a cidade virada pelo avesso; todos nós sentimos, um dia qualquer, a vertigem do vazio, num cenário em que já não cabem mais maravilhas mecânicas”. Isto não é apenas uma visão, é o que caracteriza as relações impostas para Amazônia. O avanço das relações sociais de produção na Amazônia estabelece novas formas e conteúdos espaciais, impondo o

Amazônias: Sociedades Diversas Espacialidades Múltiplas 111 novo e destruindo a natureza, as culturas e os modos de vida. Esse processo, se não é específico para a Amazônia, tem aqui maior dimensão em decorrência da predominância da natureza e de culturas ainda não adaptadas a uma tendência de homogeneização que ocorre com o avanço do capital. Esse processo tem como base não a história ou a cultura, mas a natureza. Em decorrência desse fator, mudanças significativas são estabelecidas na espacialidade do lugar, desterritorializando sujeitos que se reterritorializam a partir de novas dimensões. A desterritorialização não deixa de ser uma violência e tem ocorrido com mais agudeza, visto que há o predomínio da natureza sobre a cultura. A violência se distingue, segundo Hannah Arendt, por seu caráter instrumental, pois a violência é utilizada com o propósito de revigorar o poder, até que no último estágio possa substituí-lo. Aqui a interiorização do Estado é tênue e quando isso ocorre não se dá na perspectiva da mediação, mas na defesa dos interesses quase sempre contrários aos da sociedade local. No processo de criação de novas territorialidades na Amazônia, o Estado fixa sua “racionalidade”, explode as relações sociais preexistentes, reorganizando-as em função das novas necessidades e de novos paradigmas, que propiciam no espaço um elemento privilegiado. Na Amazônia, em diferentes épocas, o Estado produz um espaço revelador de sua natureza imanente, assinalado pelo signo da violência. A violência se configura na determinação das fronteiras, que podem corroborar e mesmo criar, recriar ou redimensionar a identidade cultural, pois nem toda fronteira, no sentido da apropriação, coincide com a fronteira política concreta. Rogério Haesbaest denomina-a de “apropriação simbólico-cultural”. Na conjuntura atual, a construção de autonomia no contexto de uma sociedade tendente à homogeneização é cada vez mais difícil, pois sendo estruturas articuladas a redes globais controlam e oprimem a vida cotidiana. A reterritorialização, neste contexto, é um processo ligado à funcionalidade do território – zoneamento econômico-ecológico, preservação, biotecnologia, bionegócio – que visa influir em ações a partir do controle do território, determinado por dois fatores: a revolução das técnicas que se configuram em qualidade total do território e a questão ambiental que, mais do que um princípio, significa transformar a natureza em mercadoria. Isso determina uma revalorização da Amazônia segundo um novo modelo de exploração - o desenvolvimento sustentável – no qual perpassam interesses de organizações governamentais ou não, forças armadas, grandes empresas e grupos locais.

112 José Aldemir de Oliveira Por outro lado, é necessário assinalar que o processo de destruição contém a possibilidade da reconstrução, que ocorre a partir da resistência. Por isso, apesar de tudo, há resistência e por isso estamos aqui, para discutir alternativas. E nesse sentido, a discussão sobre o direito das populações locais deve levar em conta a Amazônia como uma formação econômico-social e cultural produzida a partir da dinâmica histórica, territorial e cultural. As territorialidades são produzidas socialmente, são produtos de uma cultura datada num determinado tempo e lugar. Concomitantemente, refletem as condições específicas do lugar e dos conflitos que não podem ser considerados exclusivamente do ponto de vista econômico e jurídico, pois têm dimensões que retratam o vivido de quem as constrói. É preciso compreender a territorialidade que resulta das duras condições de vida, mas também da resistência, da força inquebran- tável para a construção de uma nova vida que não é necessariamente melhor ou pior, mas é uma outra vida. Estas ações que se concretizam em territorialidades, quase sempre são desconsideradas, pois estão eivadas de coisas simples, transmutadas numa sensação de extrema obviedade pela freqüência do estar sempre por aí e porque quase sempre a nossa preocupação é com as carências e com as perdas, concebendo e percebendo o espaço como inumano. Essa é a questão de fundo sem a qual a nossa intervenção continuará sendo inócua. Essa nova visão deve compreender, além das macro-estruturas, as coisas simples à vivência do dia-a-dia nos trópicos. Portanto, para além do direito à biodiversidade, é preciso buscar o direito enquanto apropriação da sociodiversidade da Amazônia. Outro aspecto que quero enfatizar, já encerrando, não se pode partir da premissa de que o homem da Amazônia é apenas vítima. A expansão da fronteira é a reatualização da exclusão, produzindo novos e velhos pobres da terra, mas é também onde emergem novos agentes produtores do espaço. Para essa gente, o processo de produção do espaço tem perdas e ganhos, mais perdas é verdade. Há especificidades que decorrem do fato de os eventos que os atingem terem dinâmicas próprias, o que dificulta, senão impossibilita estabelecer generalizações para uma área tão diferenciada como a Amazônia. O mais correto é considerarmos as Amazônias, pois elas são várias e múltiplas. Por fim, os amazônidas conhecem os atalhos e as trilhas, nas quais são traçadas a caminhada que é a história. Muitas vezes não se sabe de onde vêm, mas sempre sabem para onde vão. Por instantes

Amazônias: Sociedades Diversas Espacialidades Múltiplas 113 se perdem nos caminhos, na floresta, nos rios, nas estradas de terra batida, nas ruas, nos becos, nos igarapés, nas pontes, enfim, no espaço vivido do campo e das cidades que são espacialidades das vidas. No entanto, vai-se em frente, pois o importante é se perder, porque ao perder descobre-se com mais profundidade o caminho que levam aos destinos e, nessa busca, descobrem-se armadilhas que aniquilam porque matam, mas aprimoram porque ensinam a resistir.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannaah. Da violência. Brasília: Editora da UnB, 1985. BECKER, Bertha K. “Novos rumos da política regional: por um desenvolvimento sustentável da fronteira amazônica”. In: A Geografia Política do desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997, p. 421-443. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986. HAESBAERT, Rogério. “Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão”. In: Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 165-206. LEFEBVRE, Henri. De L'État: Les contraditions de l'État moderne dialectíque et de l'État. Paris: União Générale D'éditions, 1978. MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão. 2.ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1988. SEEGER, Anthony & CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Terras e territórios indígenas”. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 12: p. 101-14, 1979. SILVA, Marilene Corrêa da. Processos de Globalização na Amazônia. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 1996. SOUZA, Marcelo José Lopes de. “O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento”. In: Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 77-116.

114 José Aldemir de Oliveira Sociedad del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad

Juan Antonio Senent de Frutos1

1. BIOTECNOLOGÍA, RECURSOS NATURALES Y BIODIVERSIDAD

esde el origen de la era moderna, se desarrolla Djunto a otros procesos, el proceso de colonización de otras tierras, otros pueblos y otras culturas. Hoy existen otras formas más complejas y más sutiles de colonización. Durante siglos se han menospreciado las formas de conocimiento y de acción sobre el medio ambiente de los pueblos colonizados por occidente. En cambio, aunque la actitud cultural de fondo no ha cambiado, hoy se considera un valioso recurso económico para la explotación comercial la “biodiversidad”2 que albergan los territorios tradicionales de los pueblos atrasados, las llamadas reservas naturales de la humanidad. En un mundo cada vez más uniformado, monocultural y donde los productos disponibles para el consumo están estandarizados, resulta atractivo para las empresas transnacionales acudir a las fuentes de la diversidad para la obtención y comercialización de nuevos produc- tos para el consumo, nuevas medicinas, o incluso para la ampliación del mercado de procesos industriales con la exportación de tecnologías y recursos para producción de bienes a esos pueblos que secularmente han sido autónomos y que originariamente no han necesitado la transferencia de tecnología para su sostenimiento.

1 Profesor de Filosofía del derecho de la Universidad de Sevilla-España. 2 Uno de los exponentes de ese interés es el Convenio sobre la Diversidad Biológica, hecho en Río de Janeiro en junio de 1992.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 115 Estos pueblos han sabido reconocer, utilizar y desarrollar los recursos que su medio natural les ofrecía, y sobre los cuales han desarrollado el llamado “conocimiento tradicional”3 lo cual les ha permitido alcanzar un proceso acumulativo de conocimiento sobre el medio y de técnicas de producción propias. Sin embargo, esto parece que no es suficiente para reconocerlos como verdaderos titulares de los descubrimientos de los recursos biológicos o del desarrollo y manipulación de especies o variedades para la producción agrícola a lo largo de siglos. Sobre estos recursos y conocimientos se despliega la llamada “biopiratería”4 (Vandana Shiva) o el “saqueo del cono- cimiento”5 (Martin Khor) por medio fundamentalmente de las empresas transnacionales dedicadas a la biotecnología, que por tanto, representan una nueva fase de colonización6 sobre recursos naturales y culturales de otros pueblos. Sin embargo, estas actividades muchas veces amparadas en instrumentos normativos y otras en la propia lógica de las prácticas empresariales, no son consideradas por sus autores como actos ilícitos ni ilegítimos, no son ni “robos” ni “saqueos”; antes bien, están respaldadas por la buena conciencia de quienes se dicen servidores del desarrollo de la humanidad. De lo que en el fondo se trata es que para construir un sistema jurídico de propiedad intelectual y de patentes en relación con los recursos y saberes tradicionales de los pueblos “en vías de desarrollo”, hay que partir de algunas concepciones culturales y de racionalidades implícitas en esas prácticas y en esas disposiciones normativas. Esto es lo que trataremos de explicitar en este trabajo desvelando los que consideramos como supuestos fundamentales para justificar ese orden de cosas. Para ello realizaremos un examen de la obra de John Locke. No se trata de ningún anacronismo, sino de examinar críticamente las raíces culturales de estas prácticas que pueden ser reconocidas a través de la obra de

3 En el preámbulo del Convenio sobre la Diversidad Biológica se reconoce “la estrecha y tradicional dependencia de muchas comunidades locales y poblaciones indígenas que tienen de sistemas de vida tradicionales basados en los recursos biológicos, y la conveniencia de compartir equitativamente los beneficios que se derivan de la utilización de los conocimientos tradicionales” (par. 12º). 4 Biopiratería. El saqueo de la naturaleza y del conocimiento, Icaria, Barcelona, 2001 (traducción del original inglés Biopiracy). También sobre esta cuestión de Vandana Shiva, ¿Proteger o expoliar? Los derechos de propiedad intelectual, Intermon Oxfam, Barcelona, 2003. 5 El saqueo del conocimiento. Propiedad intelectual, biodiversidad, tecnología y desarrollo sostenible, Icaria-Intermon Oxfam, Barcelona, 2003 (traducción del original inglés Intellectual property, biodiversity and sustainable development). 6 “La biotecnología, doncella del capital en la era postindustrial, hace posible la colonización de lo autónomo, lo libre, y lo autorregenerativo. Mediante la ciencia reduccionista el capital puede alcanzar espacios a los nunca había accedido”, Biopiratería, op. cit., p. 67.

116 Juan Antonio Senent de Frutos alguien que expone con absoluta maestría la relación que deben tener los pueblos occidentales con otros pueblos y sus recursos naturales, y que por tanto refleja el patrón normativo para realizar la colonización del mundo por los que él llamaba la “civilización de pueblos europeos”. Al igual que hoy, Locke no tenía ninguna mala conciencia, antes bien realiza una cuidada fundamentación de la dominación de otros mundos en nombre de la defensa del propio “género humano”. Cuando no existía un régimen de derecho positivo que regulara esas relaciones entre pueblos él desarrolla una visión del derecho natural que ampara lo que críticamente entendemos como dominación.7 Hoy, cuando todavía no existe un régimen jurídico que ampare suficientemente los conocimientos tradicionales en sus países de origen, o están discutiéndose y revisándose las reglas internacionales o multilaterales sobre los mismos, se proyecta la sombra de un patrón normativo que bebe en las mismas fuentes culturales de ese “derecho natural” descrito por Locke, y desde el que se justificó la primera colonización en la era moderna, y que hoy prosigue con nuevas formas en la era postmoderna8 pero bajo presupuestos semejantes. Lo cual muestra que nuestra era, dicho en el lenguaje de la música, no es sino una variación sobre un mismo tema. Entendemos que cambian las formas y se renuevan los contextos pero siguen presentes los mismos supuestos justificadores de estas prácticas. Se ha pasado de la era industrial, cuyos albores conoció el propio Locke a la era postindustrial, que según algunos se define por la llamada sociedad del conocimiento o de la información.9 Ello implica una nueva fase de desarrollo de las fuerzas de

7 A pesar de que la literatura habitual presenta a John Locke como un defensor de la libertad y de una racionalidad humana universalista que fundamentaría el paradigma moderno de los derechos humanos universales, no se debe pasar por alto que para él, este planteamiento era perfectamente compatible con prácticas que hoy entendemos que violan la dignidad humana. De este modo, su defensa de la libertad y de la igualdad básica entre los seres humanos, implicará igualmente la defensa y justificación de la ejecución capital (§8, 11, 18, 19, 20), los trabajos forzados o la esclavitud (§11, 22-24). Esto es algo que no es marginal en su obra, sino que ocupa un lugar central, y que atraviesa toda la obra de su Segundo Tratado sobre el gobierno Civil. En el comienzo de la misma, intitula su capítulo 4: De la esclavitud. La legalidad y legitimidad de esta práctica es absoluta para Locke, quien en el capítulo 7 (De la sociedad política o civil), considera compatible la existencia de una sociedad política constituida con la esclavitud: “(...) hay otra clase de siervos a los que damos el nombre de esclavos. Estos, al haber sido capturados en una guerra justa, están por derecho de naturaleza sometidos al dominio absoluto y arbitrario de sus amos. Como digo, estos hombres, habiendo renunciado a sus vidas y, junto con ellas, a sus libertades; y habiendo perdido sus posesiones al pasar a un estado de esclavitud que no los capacita para tener propiedad alguna, no pueden ser considerados como parte de la sociedad civil del país, cuyo fin es la preservación de la propiedad” (§85). De este modo, un estado de derecho “civilizado” es compatible con la exclusión legalizada que despoja de los derechos fundamentales de las personas como la vida, la libertad o la integridad física a quienes ha situado fuera del “género humano”. Sobre estas cuestiones, resulta muy esclarecedor el trabajo de F. Hinkelammert, “La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke”, en El vuelo de Anteo. Derechos Humanos y crítica de la razón liberal, J. Herrera, ed., Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, pp. 79-113. 8 Sobre la continuidad geoestratégica entre la era moderna y la postmoderna, puede verse entre otros, E. Dussel, Hacia una filosofía política crítica, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2001, pp. 403-407; 423-433. 9 Sobre esto un clásico de nuestro tiempo es la trilogía de Manuel Castells La era de la información (Alianza editorial, Madrid, 3ª edición, 2001).

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 117 producción capitalistas10. Hoy ya parece que no cuenta tanto en los procesos económicos y en la producción de valor los recursos materiales, las “materias primas”, como la obtención de un conocimiento a partir del cual se pueden desarrollar los procesos industriales. La nueva materia prima ya no es tanto los recursos físicos que sustentan el proceso económico como el propio conocimiento acerca de los recursos, a partir del cual podrían en principio reproducir, por ejemplo, las diversas formas de materia viva para su mercantilización11. Por ello, el desarrollo de la biotecnología12, es fundamental en la sociedad del conocimiento. Sin embargo, sostenemos que el planteamiento lockeano no es extraño a este tipo de desarrollo sino que su lógica está implicada en este proceso. La llamada “biopiratería” no se sustenta sobre el expolio y acumulación de los bienes de otros, sino en la apropiación del conocimiento tradicional sobre diversas formas de materia viva identificadas o producidas por los “pueblos atrasados”, para su reproducción y explotación en el llamado libre mercado.13 En esta nueva fase de reordenación de las fuerzas productivas, ese conocimiento sobre la biodiversidad que era patrimonio de esos pueblos es un nuevo objeto de interés y de acción depredadora so capa de servicio a la humanidad. Por ello, vamos a centrarnos en un tema de discusión que no es únicamente jurídico, ni económico, sino que requiere de un análisis filosófico sobre los fundamentos de esas prácticas. Se trata de ver el problema del tipo de racionalidad, los presupuestos epistemológicos, tecnológicos y sociales que subyacen a la dinámica de la apropiación privativa de los “recursos naturales” y los saberes tradicionales de las sociedades tradicionales, por medio especialmente del mecanismo del

10 Castells en este sentido habla de un “capitalismo informacional”: “la globalización avanza de forma selectiva, incluyendo y excluyendo a segmentos de economías y sociedades dentro y fuera de las redes de información, riqueza y poder que caracteriza al nuevo sistema dominante (...) Pero en este proceso de reestructuración social hay más que desigualdad y pobreza. También hay exclusión de pueblos y territorios que, desde la perspectiva de los intereses dominantes en el capitalismo informacional global, pasan a una posición de irrelevancia estructural”, La era de la información, Vol. 3, Fin de milenio, op. cit., p. 195. 11 Cf. “Biotecnología: negocio del futuro” de Rubén Urtuzuástegui: “El biólogo Crade Benson descubrió hace poco la forma de codificar electrónicamente archivos genéticos. Con este avance la biología pasará de la era experimental a la digital. Por eso, en el futuro cercano el lenguaje biotecnológico representará la nueva manera de visualizar los negocios”. En este sentido, como señala este autor, “se puede considerar al ser vivo como un programa ejecutable, como pieza de software. Algunos científicos aceptan que se pueden manipular las células del maíz o de una persona como si fueran programas ejecutables. Por lo pronto, se trata tan sólo de un nuevo lenguaje, falta entender su gramática y sintaxis para manipular al ser vivo a nuestro antojo.” (http://www.istmoenlinea.com.mx/ articulos/25906.html) 12 Como señala Castells, con el desarrollo de las tecnologías de la vida sobre todo a partir de mediados de los años setenta, se inició una carrera para fundar firmas comerciales, la mayoría surgidas de las principales universidades y centros de investigación hospitalarios ante las posibilidades que inauguraba la capacidad de desarrollar la ingeniería de la vida, incluida la humana. Desde las empresas biomédicas a las empresas agrícolas se lanzaron a desarrollar y aplicar esos recursos a sus campos productivos (La era de la información. Vol 1. La sociedad red, op. cit., p. 85 y ss.). 13 Al que sólo tendrán acceso los que tengan capacidad de pago (demanda solvente), y por ello, aun siendo “formalmente” todos iguales, no todos podrán operar en el mercado.

118 Juan Antonio Senent de Frutos derecho de patente en el marco de los derechos de propiedad intelectual. La existencia de estos mecanismos jurídico-positivos, y de instrumentos legales multilaterales como el Acuerdo sobre los Aspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual relacionados con el Comercio (ADPIC14), y sus consecuencias económicas y sociales están muy relacionadas con algunos supuestos que hay que tener presente para poder ir al fondo de estos mecanismos. ¿Por qué los saberes tradicionales no se conceptúan como conocimiento? ¿Por qué el trabajo humano de las comunidades tradicionales no es considerado como tal, sino que se lo considera simplemente como “recurso natural” que se puede apropiar privativamente? ¿Cómo se justifica esa apropiación del “patrimonio común”? Para ello, como hemos indicado, el análisis del pensamiento de John Locke nos servirá de guía dialéctica.

2. ANÁLISIS DE LOS FUNDAMENTOS CULTURALES DE LA APROPIACIÓN DE LA BIODIVERSIDAD

2.1. De la naturaleza como propiedad común del género humano a su apropiación privativa

Locke desarrolla esta cuestión fundamentalmente en el capítulo 5 (“De la propiedad”) de su obra Segundo Tratado sobre el Gobierno Civil15. El punto de partida formal es el derecho de propiedad como derecho natural que será básico en el desarrollo del resto de relaciones jurídicas, sociales y políticas. En la escolástica cristiana medieval se consideraba que existía una propiedad natural del género humano sobre todas las cosas de la creación. En sentido análogo, en la moderna doctrina social de la iglesia se postula “el destino universal de los bienes”.16 Locke, situándose supuestamente de la misma cosmovisión cristiana (cf. §25), plantea, en cambio, este derecho natural de modo que le permita desentenderse de cualquier dependencia

14 También conocidos como Acuerdo TRIPS (TRIPS Agreement) por sus siglas en inglés (Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights. 15 Citaré esta obra por la traducción de Carlos Mellizo para la edición de Alianza editorial, Madrid, 1990, del original inglés The Second Treatise of Civil Goverment. An Essay Concerning the Original, Extend and End of Civil Goverment (1690). 16 Cf. Ildefoso Camacho Laraña, Doctrina Social de la Iglesia. Quince claves para su comprensión, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2000, p. 73-95.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 119 respecto al bien común o de cualquier “hipoteca social” del derecho de propiedad individual. Desde esta opción inicial se restringe este destino universal de los bienes a una estrategia de apropiación privada.17 Inicialmente él mismo nos presenta su objetivo: “mostraré cómo los hombres pueden llegar a tener en propiedad varias parcelas de lo que Dios entregó en común al género humano; y ello, sin necesidad de que haya un acuerdo expreso entre los miembros de la comunidad” (§25). En su planteamiento arranca de un “estado natural” que está más allá de cualquier acuerdo y de cualquier sociedad o individuo. Sobre una hipotética situación originaria Locke comienza su argumentación: “Dios, que ha dado en común el mundo a los hombres, también les ha dado también la razón, a fin de que hagan uso de ella para conseguir mayor beneficio de la vida, y mayores ventajas. La tierra y todo lo que hay en ella le fue dada al hombre para soporte y comodidad de su existencia. Y aunque todos los frutos que la tierra produce naturalmente, así como las bestias que de ellos se alimentan, pertenecen a la humanidad comunitariamente, al ser productos espontáneos de la naturaleza; y aunque nadie tiene originalmente un exclusivo dominio privado sobre ninguna de estas cosas tal y como son dadas en el estado natural, ocurre, sin embargo, que como dichos bienes están ahí para uso de los hombres, tiene que haber necesariamente algún medio de apropiárselos antes de que puedan ser utilizados de algún modo o resulten beneficiosos para algún hombre en particular” (§26). Dado que hay una disposición en favor del género humano de los bienes naturales, es necesario que esos bienes rindan, y para ello deben ser apropiados individualmente. Se puede decir que cualquier sujeto humano podría apropiarse privativamente de esos bienes, de

17 Como muestra Ignacio Ellacuría, hay una profunda divergencia en la concepción sobre la relación debida entre bien común y bien personal en el esquema liberal y en la tradición escolástica cristiana, por ejemplo, con Santo Tomás. De este punto de vista, señala Ellacuría que no hay “bien particular sin referencia al bien común y sin la existencia real de un bien común no puede hablarse de un bien particular, sino tan sólo de una ventaja interesada e injusta. Por lo pronto es imposible que ningún individuo alcance su bien, si no es aprovechándose de lo que ofrece el bien común; tal como se da en una sociedad política; se requiere, en efecto, algo que el particular no produce para que pueda llegar a ser lo que tiene que ser y pueda hacer lo que necesita hacer. Pero ese algo es, en sí mismo, supraindividual y, por su propia naturaleza, niega aquella apropiación privada que fuerce al bien común a dejar de ser común; el pecado fundamental consistiría aquí en la apropiación privada de lo que es común, la negación de lo común en beneficio de lo que es particular, la anulación del todo estructural en beneficio de algunas partes disgregadoras de ese todo. La apropiación privada de lo que es por su naturaleza social y, por consiguiente, común, es una injusticia fundamental, que hace injustos todos sus efectos. No hay, por lo tanto, posibilidad ética de apropiación privada de un bien común con menoscabo de la comunidad de ese bien. Cuando predomina lo privado y los intereses privados o de grupo en la distribución del bien común y, antes, en la producción explotada de lo que es el bien común, cuando unos pocos se apropian de aquello que no puede ser suyo más que haciendo que no sea de los otros e impidiendo que los otros puedan servirse de lo que tienen derecho, estamos ante la negación misma del bien común y ante la ruptura del orden social justo” (“Historización del bien común y de los derechos humanos” [1978] en Escritos filosóficos, III, Uca editores, San Salvador, 2001).

120 Juan Antonio Senent de Frutos quienes en principio se predica una igualdad formal18. Cualquiera podría extraer los “productos espontáneos” de la naturaleza. Por tanto de la propiedad común de la humanidad (“se ha dado en común a toda la humanidad para que esta participe en común de ella” §25), se deriva la existencia de una res communis, que en realidad se interpreta como res nullius, como cosa de nadie y que por tanto está esperando para ser apropiada por cualquiera, cuya apropiación privativa se interpreta como no lesiva para la humanidad. Algo “común”, por tanto, significa en la situación originaria para Locke “apropiable por cualquiera”. ¿Cuál es el ámbito de este “patrimonio común”? Aquel donde la huella de la propiedad privada exclusiva y del sistema legal no haya sacado a la res communis de su estado natural, y por tanto donde todo continúa en estado comunal originario. Este derecho natural previo y fundante de los sistemas de derecho positivo explica para nuestro autor el tránsito del estado natural a la sociedad constituida,19 pero siempre subsiste en los ámbitos que exceden a la regulación de los sistemas legales: “entre aquellos que se cuentan entre la parte civilizada de la humanidad y que han hecho y multiplicado una serie de leyes positivas para determinar la propiedad, esta ley originaria de la naturaleza que se aplicaba antes a los bienes comunes para establecer los orígenes de la apropiación, sigue siendo vigente” (§30).20 Por tanto, al interior de la parte civilizada de la humanidad, apenas quedarían bienes en condición comunal originaria que puedan ser objetos de acción predatoria por cualquiera,21 pero hacia fuera de los límites geográficos de las mismas, el resto de la tierra22 se presenta como un gran bien comunal sobre el que desplegar su acción: “Todavía se encuentran hoy grandes porciones de tierra que, al no haberse unido sus habitantes con el resto de la humanidad en el

18 Para explicitar esta igualdad formal, aunque como después veremos no haya una igualdad en la racionalidad, señala: “El fruto o la carne del venado que alimentan al indio salvaje, el cual no ha oído hablar de cotos de caza y es todavía un usuario de la tierra en común con los demás, tienen que ser suyos; y tan suyos, es decir, tan parte de sí mismo, que ningún otro tendrá derecho a ellos antes que su propietario haya derivado algún beneficio que dé sustento a su vida” (§26). 19 La cual surge, como no deja de recalcar a lo largo de su Segundo Tratado, para preservar la propiedad como derecho natural central. 20 Lo cual también se proyecta frente a los recursos biológicos de los mares, dado que este espacio constituye “un gran bien comunal” (cf. §30). Sobre las leyes consuetudinarias y los orígenes de la apropiabilidad, puede verse de José Manuel Pureza El patrimonio común de la humanidad ¿Hacia un Derecho internacional de la solidaridad? (traducción de J. Alcaide Fernández), Trotta, Madrid, 2002, p. 169 y ss. 21 Sólo queda algún reducto ya meramente anecdótico: “entre nosotros, la liebre que alguien está cazando, se considera propiedad de aquél que la persigue durante la caza” (§30). 22 Como destaca Vandana Shiva, para este proyecto colonizador europeo la tierra se presentaba como terra nullius, a pesar de que estuviera habitada por pueblos indígenas, en ¿Proteger o expoliar? Los derechos de propiedad intelectual, op. cit., .18-19.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 121 acuerdo de utilizar dinero común, permanece sin cultivar; y como estas tierras proporcionalmente son mucho mayores que el número de personas que viven en ellas, continúan en estado comunal. Mas esto difícilmente podría darse entre esa parte de la humanidad que ha consentido en la utilización del dinero” (§45). Si no se ha adoptado el sistema de relaciones mercantiles propio de las sociedades capitalistas no hay ninguna acción económica ni ninguna acción social y culturalmente integrada; por ello, los individuos “aislados” solo toman los frutos espontáneos de ahí que no constituya ningún robo a la parte civilizada de la humanidad, ni a los otros habitantes de esas tierras. Esos habitantes son los “indios salvajes” (§26), que como va ejemplificando a lo largo de sus obras viene a corresponder a los otros pueblos que no sean los europeos (vid. infra) y por tanto los territorios objeto de expansión colonial en la era moderna. Donde no haya por tanto un sistema de leyes positivas o de pactos23 al modo europeo, cualquiera se puede apropiar de todo cuanto sea para su utilidad, y ello sin depender del consentimiento de nadie. La acción de sustracción de algo de su condición comunal frente al resto del mundo no lo considera ningún robo, ni depende del consentimiento de quienes habiten las tierras, ni estos poseen ninguna forma de propiedad común sobre los bienes naturales, ni tienen ningún pacto explícito o implícito sobre la forma de aprovechamiento de los recursos naturales que emplean para el sustento de sus vidas. Si Locke reconociera alguna institucionalización social o jurídica sobre el uso de estos bienes por parte de esos habitantes toda su justificación de la acción colonial en la era moderna sobre los recursos de otros pueblos perdería su justificación, y tendría que reconocer su ilicitud: “Ciertamente, quien se ha alimentado (...) de las manzanas que ha cosechado de los árboles del bosque, puede decirse que se ha apropiado de ellas. Nadie podrá negar que ese alimento es suyo (...) ¿Podrá decir alguno que este hombre no tenía derecho a las manzanas que él se apropió de este modo, alegando que no tenía consentimiento de todo el género humano para tomarlas en pertenencia? ¿Fue un robo el apropiarse de lo que pertenecía comunitariamente a todos? Si el consentimiento de todo el género

23 “Es cierto que en las tierras comunales de Inglaterra o de cualquier otro país en el que mucha gente con dinero y con comercio vive bajo un gobierno, nadie puede cercar o apropiarse parcela alguna sin el consentimiento de todos los co-propietarios. Pues esas tierras llegaron a ser comunales mediante pacto, es decir, por la ley de la tierra, la cual no debe ser violada. Y aunque estos terrenos sean comunales con respecto a algunos hombres, no lo son respecto de la humanidad; sólo son propiedad común dentro de un país determinado, o de una parroquia” (§35).

122 Juan Antonio Senent de Frutos humano hubiera sido necesario, este hombre se habría muerto de hambre” (§28). Con una razón humanitaria se desentiende a partir de ahí de cualquier exigencia en favor del bien común de la humanidad, y por supuesto de cualquier respeto a los territorios de los pueblos en los que se despliega su acción. En Inglaterra, el régimen de los comuneros debe ser respetado (cf. §35), de ninguna manera en otros pueblos no civilizados, pues si en el primer caso hay una costumbre jurídica no así en el segundo caso ya que sobre estas posesiones comunales únicamente rige la ley natural,24 y por tanto está liberado del consentimiento de los comuneros, encontrándose ante una res nullius y no ante bienes protegidos por ningún sistema de derecho positivo. Lo que en Inglaterra es robo (y en las otras sociedades civilizadas), no lo es fuera de sus fronteras legales porque no hay restricciones más allá del régimen de derecho natural. Los bienes que emplean para su sustento otros pueblos sí están sometidos a un régimen abierto de apropiación para “toda la humanidad”, no así los bienes de los primeros, ni siquiera los que permanecen en condición comunal. Esta misma lógica jurídica es la que se aplica hoy para la regulación de la biodiversidad, como ha señalado José Manuel Pureza, si anteriormente se basaba su regulación en el principio consuetudinario de libre acceso gratuito,25 hoy se ha propuesto la consideración de los recursos genéticos como patrimonio común de la humanidad. Sin embargo, ello no ha supuesto ningún aumento en el disfrute social de los mismos ni una mejor protección y conservación. Ya en el “Compromiso internacional sobre los recursos fito-genéticos” adoptado en la Conferencia General de la FAO, en 1983, se utilizó ese concepto jurídico de patrimonio común, bajo la óptica “liberal”, afirmando el derecho de libre acceso a los recursos y olvidando la regulación protectora de los mismos; los beneficiarios de la utilización de estos recursos, no tienen el deber de preservarlos.26 Con la revolución biotecnológica ese proceso se ha agudizado. El principio de libre acceso es un presupuesto para la actuación de los procesos biotecnológicos en las zonas ricas en biodiversidad. Los intereses económicos de las compañías farmacéuticas o agro- químicas se garantizan articulando el libre acceso al germoplasma con la apropiación privada de los productos genéticamente

24 Por tanto se realiza una reducción etnocéntrica de los mecanismos de regulación jurídica, que justifica todo su planteamiento de regulación a partir de la “Ley natural”. 25 Lo cual ha propiciado en los últimos siglos una importación “erosión ecológica”, El patrimonio común de la humanidad, op. cit., p. 361. 26 Cf. El patrimonio común de la humanidad, op. cit., p. 361.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 123 modificados protegida por el derecho de patente. Por ello, la estrategia jurídica de los países desarrollados se basa en atribuir a la biodiversidad el estatuto de res communis, siendo libremente susceptibles de apropiación, como res nullius, los recursos extraídos por el primer utilizador27 reconocido.28 Como señala Vandana Shiva, así como ocurrió con la transformación de la terra mater en terra nullius,29 se da un proceso análogo mediante las nuevas biotecnologías que convierten la riqueza ecológica, como el caso de las semillas de los agricultores tradicionales, en nuevo objeto de apropiación privada. En otros instrumentos internacionales, como el Convenio de Río sobre Diversidad Biológica, en clave supuestamente de reivindicación de un interés general no reducible únicamente al interés iusprivatista, también se afirma esta idea de patrimonio común de la humanidad. Así, en su preámbulo se postula que “la conservación de la diversidad biológica es interés común de toda la humanidad” (par. 3º). Ese “interés común de la humanidad” implicado en la diversidad biológica, se concreta no sólo en la conservación, sino principalmente en la necesidad de su utilización equitativa en beneficio de todos de esa riqueza: “Reconociendo la estrecha y tradicional dependencia de muchas comunidad locales y poblaciones indígenas que tienen sistemas de vida tradicionales basados en los recursos biológicos, y la conveniencia de compartir equitativamente los beneficios que se derivan de la utilización de los conocimientos tradicionales, las innovaciones y las prácticas pertinentes para conservación de la diversidad biológica y la utilización sostenible de sus componentes” (par. 12º). Por tanto, esos recursos biológicos, aunque estén relacionados con las comunidades locales y poblaciones indígenas, deben ser “compartidos equitativamente” en aras de un sujeto social universal, como se enuncia en párrafo 3º. Ahora bien, ese supuesto reconocimiento de un “patrimonio común de la humanidad” ha de ser interpretado a la luz del juego de otros principios que dotan de concreción esas exigencias de la equidad. Por un lado, se afirma el principio de apropiación nacional de los recursos biológicos, lo cual mantiene el régimen dentro de la óptica liberal. Como se declara en el preámbulo: “Reafirmando que los estados tienen derechos soberanos sobre sus propios recursos

27 Ib., p. 363. 28 Como después veremos, aunque esos recursos genéticos se han empleado y desarrollado antes por comunidades tradicionales en sus propios procesos de producción, ello no dejará “ninguna huella de propiedad”. 29 Biopiratería, op. cit., pp. 68 y ss.

124 Juan Antonio Senent de Frutos biológicos” (par. 4º), lo que después se concreta en el art. 15.1.30 De este modo, formalmente se está sacando esos bienes del régimen originario, como res nullius. Con lo cual para su apropiación, hay que estar al régimen de titularidad nacional, lo que supone que depende del “consentimiento” de los comuneros, que en este caso sería el propio estado mediante su regulación y actos de voluntad. Si eso es así, se ha nacionalizado lo que era propio de las “comunidades tradicionales y pueblos indígenas” (cf. par. 12º), que muchas veces se hallan en conflicto con el estado en el que se encuentran por el no reconocimiento de derechos territoriales y culturales específicos.31 Ahora bien, tanto la propia regulación del Convenio, y más en juego con el sistema del Acuerdo ADPIC, dejará prácticamente de nuevo los recursos biológicos de los países en desarrollo en régimen comunal originario. Así, el art. 15. 2 del Convenio establece tras el reconocimiento de los derechos soberanos de los estados, que cada Parte Contratante “procurará crear las condiciones para facilitar a otras Partes Contratantes el acceso a los recursos genéticos para utilizaciones ambientalmente adecuadas, y no imponer restricciones contrarias a los objetivos del presente Convenio”. Por tanto, la “soberanía” no debe impedir el acceso a las otras partes de esos recursos en las condiciones que se convengan.32 Por ello, el libre juego del principio del consentimiento, hay que situarlo sistemáticamente junto al respeto del principio de utilización universal de la diversidad biológica. Y a su vez, esta “utilización” que permite mecanismos de apropiación privativa y por tanto con exclusión de terceros, ya que debe de respetar “la protección adecuada y eficaz de los derechos de propiedad intelectual” (art. 16.2). Si el camino no estaba ya suficientemente allanado para las empresas biotecnológicas33 tras el Convenio de Río, con el Acuerdo ADPIC, los estados miembros de la OMC,34 tienen que aceptar

30 “En reconocimiento de los derechos soberanos de los Estados sobre sus recursos naturales, la facultad de regular el acceso a los recursos genéticos incumbe a los gobiernos nacionales y está sometida a la legislación nacional”. 31 Se da así una nacionalización, siendo los estados los únicos con personalidad jurídica reconocida para dar el consentimiento, que con ello tiene una dimensión nacional-estatal pero no local, pudiendo por ello perfectamente prescindir de las comunidad locales en el “consentimiento de los comuneros” locales o de “la parroquia”, como señalaba Locke. 32 Art. 15. 4. Cuando se conceda acceso, éste será en condiciones mutuamente convenidas y estará sometido a lo dispuesto en el presente artículo. 15.5. El acceso a los recursos genéticos estará sometido al consentimiento fundamentado previo de la Parte Contratante que proporciona los recursos, a menos que esa Parte decida otra cosa. 33 Después de haber reconocido la legitimidad y las condiciones de legalidad para acceder a los recursos genéticos de los países atrasados por el juego del mecanismo expresado, se indica en el artículo 16. 4. que frente al “sector privado” (art. 16.4.) podrán tomarse medidas públicas para que se facilite la transferencia de tecnología prevista en el art. 15.1., pero no se les puede obligar a compartir “la tecnología sujeta a patentes y otros derechos de propiedad intelectual” (cf. art. 15.2). 34 Organización Mundial del Comercio.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 125 obligatoriamente esta regla de libre acceso,35 con lo que vuelve al régimen jurídico de la condición comunal originaria, esta vez, ope legis positiva, y no ope legis naturae, de donde lo apropiado por la mano del hombre desarrollado, debe ser ahora protegido por un sistema legal de patentes vía Acuerdo ADPIC, incluso allí donde las leyes nacionales no lo prevean (art. 27). El apartado 27.3, con una formulación que puede ser confusa y aparentemente vergonzante,36 parte de una permisión de exclusión (“Los Miembros podrán excluir asimismo la patentabilidad:”), para después imponer en su caso la exclusión de la exclusión primera, con lo que finalmente se impone lo que al principio parecía excluible: 27.3.b) “las plantas y los animales excepto los microorganismos, y los procedimientos esencialmente biológicos para la producción de plantas o animales, que no sean procedimientos no biológicos o microbiológicos. Sin embargo, los Miembros otorgarán protección a todas las obtenciones vegetales mediante patentes, mediante un sistema eficaz sui generis o mediante una combinación de aquéllas y éste”. Tras ello, la regulación de patentes sobre formas de vida y procesos productivos de formas de vida quedaría del siguiente modo: primero, se debe permitir la patentabilidad de microorganismos; segundo, se debe permitir la patentabilidad de plantas y animales producidos mediante procesos no biológicos o microbiológicos, es decir, de plantas y animales modificados genéticamente; tercero, está permitido, salvo exclusión de un Miembro, patentar procesos biológicos o microbiológicos para la producción de plantas o animales. Ahora bien, frente a estas posiciones, y tratando de recuperar la dimensión común y colectiva del uso humano de los recursos naturales, hay que señalar que del hecho de que se adopte una perspectiva que defienda la relevancia de la óptica del patrimonio común de la humanidad; no significa que el punto de partida de la tradición liberal no sirva desde el punto de vista crítico o emancipador, sino que el problema está en sacar una consecuencia ilegítima de ese supuesto. La consecuencia ilegítima es la pretensión reduccionista de que solamente hay un aprovechamiento, una

35 Antes de la Ronda Uruguay, el GATT no cubría los derechos de propiedad intelectual que cada país regulaba según sus condiciones culturales y económicas. 36 Pues llegará a permitir patentar formas de vida que tradicionalmente siempre se han excluido de los sistemas de patentes conocidos. Este camino se inició la década anterior, a comienzos de los 80 en Estados Unidos cuando se autorizó por primera vez la patente de un microorganismo. Después se ha ido ampliando el campo de la patentabilidad a otras formas de vida. En buena medida, el modelo normativo que se pretende implantar con el Acuerdo ADPIC, tiene su antecedente en el sistema de patentes norteamericano.

126 Juan Antonio Senent de Frutos funcionalidad real de lo que es el patrimonio común de la humanidad cuando se lo apropia privativamente, cuando se le pone el sello de propiedad exclusiva frente a terceros.37 En esta línea, es necesaria una reconceptualización del “patrimonio común” de los bienes naturales, más allá de una regulación en clave iusprivatista, lo que exige un estatuto no apropiativo de estos bienes, desarrollando instituciones de res communis y de public trust, en el marco de una relación social de participación intra-generacional y transmisión inter-generacional.38

2.2. De la universalidad del “género humano” a los “pueblos civilizados”

La obra de Locke nos muestra cómo en la tradición liberal, en la que él se sitúa y en buena medida ayuda a fundamentar, tras el discurso universalista, que arranca formalmente de un punto de partida general,39 y por tanto compartible por cualquiera; sin embargo, desde ahí, consigue derivar y llegar a lo críticamente podríamos denominar como una reducción social y cultural de lo humano. Con esta reducción o asimilación de un único patrón cultural como exponente de la auténtica racionalidad humana consigue desentenderse de buena parte de la humanidad, y por ello, la eventual explotación de los recursos naturales de los que no practiquen su lógica cultural de utilización de estos recursos no será imposición ni exclusión de parte de la humanidad, sino servicio a la verdadera humanidad. Dice Locke: “Dios ha dado a los hombres el mundo en común; pero como se lo dio para su beneficio y para que sacaran de él lo que más les conviniera para su vida, no podemos suponer que fuese intención de Dios dejar que el mundo permaneciese en terreno comunal y sin cultivar. Ha dado el mundo para que el hombre trabajador y racional lo use; y es el trabajo lo que da derecho a la propiedad, y no los delirios y la avaricia de los revoltosos y los pendencieros” (§34). ¿Quién es el hombre trabajador y racional y quiénes son esos individuos avariciosos y pendencieros? Los primeros, los pertenecientes a las sociedades burguesas (cf. §35) o la “parte civilizada

37 Se argumenta en la tradición liberal la “inutilidad” de la naturaleza mientras esta permanezca siendo patrimonio común, e igualmente las formas comunales de propiedad que eran propias de las formas “premodernas” de propiedad y persistentes todavía en otras culturas jurídicas. Se niega la utilidad para la vida individual, cuando precisamente estas formas de aprovechamiento han permitido una utilidad para las sociedades y sus miembros, lo que no sólo ha producido el “sustento de la vida” de otros pueblos, sino un enriquecimiento del patrimonio genético de los recursos disponibles para la humanidad. 38 El patrimonio común de la humanidad, op. cit., p. 352-354. 39 Ello basándose en referencias tales como humanidad, género humano, naturaleza humana, o racionalidad humana.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 127 de la humanidad” (§30); y por la otra parte, está hablando de los indios de Norteamérica (cf. §30), y en general de las sociedades tradicionales;40 por tanto, ese destino universal de los bienes no es para el género humano en sentido realmente universal, es para aquellos hombres trabajadores y racionales que se encuentran entre los primeros y no para los segundos, que son avariciosos, peleadores y disputadores. Locke en su Ensayo sobre el entendimiento humano41 nos dice que conocimiento y abundancia están en pugna. En el “vasto continente de América”, donde abunda toda clase de riquezas naturales, están en situación de “ignorancia los antiguos salvajes americanos”.42 Y ello, no por falta de “talento natural” de éstos,43 sino por falta de aplicación del conocimiento verdadero o “las investigaciones de los hombres racionales en pos de los verdaderos avances de la ciencia”,44 que se da en las naciones florecientes o parte civilizada de la humanidad. Esta capacidad de trabajo racional, que emplea la creciente tecnología, es para Locke una conquista progresiva de la humanidad, que en realidad sólo se halla cultivada por la civilización a la que él pertenece. Tanto las “selvas de América como las escuelas de Atenas producen hombres de capacidades diversas dentro de la misma especie”.45 Y ello por la diversa capacitación que permiten los diversos contextos. Las diferencias “entre los entendimientos no proceden tanto de sus facultades naturales como de los hábitos adquiridos”.46 En este sentido, señala que “no todos los americanos [aborígenes] han nacido con entendimiento peores que los europeos, aunque vemos que ninguno de ellos hace tales investigaciones en las humanidades y en las ciencias”.47 Por ello, la naturaleza sólo nos da semillas, “hemos nacido para ser, si queremos, seres racionales, pero sólo el hábito y el

40 Las cuales “viven alejados de las nociones, discursos y avances del resto de la humanidad; (...) esos pueden muy bien compararse a los habitantes de las Islas Marianas, quienes (al estar separados por una gran extensión de mar de todo contacto con las partes habitadas de la Tierra), se creyeron las únicas personas del mundo. Y, aunque las escasas comodidades de vida entre ellos no llegaban al uso del fuego hasta que los españoles, no muchos años después, en sus viajes de Acapulco a Manila, se lo mostraron; todavía, en la necesidad y en la ignorancia de la mayoría de las cosas, se miraban a sí mismos, aun después de que los españoles les trajeran información de una variedad de naciones ricas en ciencias, artes y comodidades de vida, de las que ellos no sabían nada; se miraban a sí mismos, decía, como las personas más felices y más sabias del universo. Pero, a pesar de todo, creo que nadie se los imaginará como profundos físicos y sólidos metafísicos. Nadie estimará que el más avispado de ellos tenga opiniones muy amplias en ética o política; ni puede nadie conceder que el más brillante de ellos progrese tanto en su entendimiento como para tener ningún otro conocimiento más que unas cuantas pequeñas cosas sobre su isla (...) pero siempre bastante lejos de ese amplio desarrollo de la mente que embellece a un alma dedicada a la verdad, ayudada por la cultura y por las distintas opiniones de los pensadores de todas clases”, Sobre la conducta del entendimiento y otros ensayos póstumos (Of the Conduct of the Understanding, en Posthumos Works, 1706), ed. bilingüe de A. M. Lorenzo, Anthropos, Barcelona, 1992, p. 16-17. 41 An Essay concerning Humane Understanding (1690). Citaré por la edición y traducción de S. Rabade y E. García, Editora Nacional, Madrid, 1980. 42 Ensayo sobre el conocimiento humano, op. cit., p. 961. 43 Pues “en nada se quedan cortos sobre las naciones más florecientes y políticas”, op. cit., p. 962. 44 Op. cit., p. 963. 45 Sobre la conducta del entendimiento, op. cit., p. 9. 46 Sobre la conducta del entendimiento, op. cit., p. 25. 47 Op. cit., p. 43.

128 Juan Antonio Senent de Frutos ejercicio nos hacen serlo (y de hecho, somos así nada más que porque la industria y la aplicación nos ha llevado a serlo)”.48 Dado que ciertos seres humanos no cultivan la ciencia y la técnica al modo europeo, no tienen posibilidad de desarrollar comportamientos racionales y un trabajo que permita optimizar la abundancia de la naturaleza, lo que hoy llamaríamos, la riqueza de la biodiversidad. Al no representar y cultivar la verdadera racionalidad humana, el uso y apropiación de los recursos naturales debe privilegiar a los sujetos que culturalmente están capacitados para obtener utilidades de ellos, y así beneficiar al “género humano”. Quiénes son entonces los que deben disfrutar de las prerrogativas del género humano: la parte civilizada de humanidad.

2.3. La reducción cultural del trabajo humano específico

Lo anterior, es decir, la reducción interesada de lo que debe corresponder a la humanidad a una parte de la misma, trae causa, de otra reducción, como ya se ha podido entrever. Se trata de una reducción cultural de la capacidad tecnológica del trabajo humano,49 que desde una perspectiva no etnocéntrica, al contrario de Locke, sí sería común a toda la especie humana. El trabajo humano como actividad humana específica es una actividad que supone la transformación y el control del medio en función de las necesidades de producción y reproducción de la vida humana de cualquier sujeto humano, ya sea que esté inserto en sociedades tradicionales o en sociedades tecnológicamente avanzadas, y sin el cual ninguna sociedad sobrevive. Este trabajo humano opera a través de la técnica, que podemos conceptuar como “manejo de realidades”;50 pues bien, ese trabajo humano como transformación y

48 Op. cit., p. 39. 49 Sobre una visión sobre el trabajo humano, como la que adoptamos aquí, radicalmente diversa a la lockeana o liberal, véase Ellacuría, Ignacio (1990), Filosofía de la realidad histórica, Trotta, Madrid, 1991, pp.78 y ss. 50 Como destaca Ellacuría, siguiendo el análisis de la praxis humana de X. Zubiri, que entiendo supera el reduccionismo etnocéntrico de asimilar toda posibilidad de técnica humana como “técnica avanzada”; cualquier comportamiento humano tiene habérselas con el medio para que siga siendo biológicamente viable, en esa relación el ser humano “va arbitrando modos de sobrevivir, haciendo lo que en cada momento su grado de inteligencia le permite hacer. Inteligencia de la realidad e instrumentalización desde la realidad y para la realidad se dan así la mano. Desde esa primaria necesidad el hombre se lanza a modificar las cosas; las modifica para seguir viviendo, para poseerse a sí mismo en la modificación misma de las cosas” (“El trabajo humano como técnica”, texto del libro inédito Persona y Comunidad [1975], edición de J. A. Senent y J. J. Castellón, publicado en revista Isidorianum, nº 19, 2001, p. 75). El hacer técnico, nace para que la propia vida siga siendo viable. En este sentido, la técnica es el modo específico del trabajo humano: el trabajo es formalmente técnico. Por ello, “trabajo y humanidad son, en principio, dos realidades correlativas; no en vano el descubrimiento arqueológico de instrumentos de trabajo es prueba inequívoca de la presencia del hombre. El trabajo es verdaderamente trabajo cuando es ación transformadora por parte del animal de realidades, que lleva a la dominación del medio y con ello a la liberación de la vida humana” (Ib., p. 78). Ahora bien, la “dominación” o control del medio para asegurar la sobrevivencia biológica, como motor del trabajo técnico de cualquier sociedad humana, se puede operar de diversas formas en cada contexto cultural. Hay dos polos extremos para ello, como señalamos en este trabajo, el control “autocentrado”, que tendecialmente propone al ser humano no sólo como “ser superior”, sino como un ser que está más allá de las condiciones de sobrevivencia que le permite el medio, y que por ello, puede desplegar su actividad incluso destruyendo el medio natural en el opera; o el control “descentrado” que, más allá de la conceptuación que se tenga de sí mismo, entiende que no puede hacer compatible la subsistencia humana con el irrespeto del medio natural, en última instancia, con su aniquilación.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 129 control del medio en función de las necesidades de sobrevivencia, a través de la técnica humana como manejo de las realidades con las que nos enfrentamos en el medio, es circunscrito o reducido, dentro de la sociedad burguesa, a la acción tecnológica propia de su formación cultural, como nos indican los anteriores pasajes. A partir de ahí, podemos entender porqué, por ejemplo, un tipo particular de arroz que se cultiva en una región de la India, que ha sido generado mediante la selección y control de semillas a lo largo de siglos, en un proceso histórico-social muy complejo y largo, no es considerado como “producto humano”, sino solo como “recurso natural”, por cuanto se argumenta que no ha sido sacado de su condición natural, por ende, pertenece a todos hasta que no sea descifrado genéticamente y patentada su secuencia. Cuando se descifra y manipula genéticamente desarrollando con ello una acción tecnológicamente avanzada sobre ese producto; entonces, ello da derecho a su explotación comercial privativa, en manos de los titulares legales que tendrían la licencia de uso y explotación comercial de ese producto, con el derecho de excluir de ese uso a quien no pague el canon correspondiente, incluidas aquellas comunidades que secularmente ha utilizado y producido ese producto. Pero esto no es considerado legalmente ningún robo. ¿Por qué no es un robo? Porque es un “recurso natural” y las empresas biotecnológicas no hacen sino -en sentido lockeano- servirse de lo que la naturaleza da gratuitamente. Por tanto, hay una invisibilización de la acción tecnológica propia de las sociedades tradicionales y del trabajo humano de esas sociedades. En este sentido, lo que importa no es el trabajo socialmente aplicado a un producto ni la técnica tradicional empleada para su obtención, pues ésta no se considera una actividad humana específica porque no deja ninguna huella de propiedad sobre ella. En cambio, ¿cómo se apropia el hombre de estos bienes en el esquema liberal clásico, en el esquema lockeano? Mediante el trabajo es la actividad por la cual lo saca del estado común de naturaleza, pero no vale cualquier trabajo para poner la huella de propiedad sobre la tierra y sacar las utilidades exigibles. Es interesante lo que dice Locke, hablando de la sociedad inglesa y de los pueblos europeos: - ”un de tierra que aquí produce veinte bushels de trigo, y otro que, en América, con la misma labranza, produjese lo mismo, son sin duda alguna de un intrínseco valor natural idéntico. Y, sin embargo, el beneficio que recibe la humanidad del primero tiene un valor de 5 libras anuales, mientras que el segundo ni siquiera valdría un

130 Juan Antonio Senent de Frutos penique si todo el beneficio que un indio recibiese de él fuese valorado y vendido aquí; podría decirse con verdad que no valdría ni una milésima parte” (§ 43). Y ello, porque es el trabajo lo que pone en la tierra gran parte de su valor. Pero es la tecnología aplicada lo que da valor y no el simple trabajo, que no se considera una transformación material sino como creación técnica aplicada, y los portadores de la técnica son únicamente los europeos. Por ello, señala que hay muchos trabajos, pero sobretodo hay que considerar el de quienes fabricaron el arado, el de quienes construyeron cualquiera de los numerosísimos utensilios aplicados a la producción (cf. §43); por tanto, no importa el valor natural de las cosas, ni ciertas intervenciones humanas sobre las mismas, sino la tecnología, aplicada o implementada en ellas. Ahora bien, todo se debe al “avance individual”, no hay ningún proceso de enriquecimiento social a partir del cual se generan y posibilitan ciertas innovaciones, que en realidad se plantean como absolutas novedades y no se entienden a partir de un cierto estado del conocimiento sino como una suerte de genialidad aislada, que no se explica cultural ni socialmente por eso, no hay “innovación social” sino “inventores”: “Aquel que inventó el primero la imprenta, el que descubrió el uso del compás, o hizo público las virtudes y el uso adecuado de la quinina, han contribuido más a la propagación del conocimiento, a la provisión y aumento de útiles, y a la salvación de los hombres que quienes construyeron colegios, casas de labor y hospitales”.51 A partir de ese reconocimiento, la humanidad debe tanto a los “inventores”, aunque éstos no le deban nada a la humanidad, que ese trabajo supremo debe ser recompensado, como por ejemplo, asegura el derecho de propiedad sobre las invenciones, es decir, las patentes.52 Este prejuicio etnocéntrico late también Convenio de Río, reconociendo que la “tecnología incluye la biotecnología” (según las definiciones legales que establece el art. 2 del Convenio): Pero en realidad, entiende toda “tecnología” sub especie de biotecnología.53

51 Ensayo sobre el entendimiento humano, op. cit., p. 962. 52 Así por ejemplo, como analiza Germán Velásquez, la propia lógica jurídica del sistema ADPIC, fuerza que las patentes con una duración mínima de 20 años se aplique sobre los productos de las industrias farmacéuticas privadas para que sigan investigando. Se argumenta el coste de la investigación, que será financiada por las patentes, que al garantizar a las empresas un monopolio, les permite mantener precios elevados. Ahora bien “estos precios impiden que la mayoría de las personas que necesitan estos nuevos productos puedan procurárselos. Si bien hay que preservar la investigación y el desarrollo de nuevos medicamentos, también es esencial que éstos puedan salvar vidas a partir del momento de su descubrimiento y no veinte años después... excepto que se perpetúe la absurda situación actual, en la cual millones de personas mueren por falta de medicamentos, que sin embargo existen y que la sociedad podría poner al alcance de todos” (“El medicamento como bien público mundial”, Le monde diplomatique, ed. española, n.º 93, julio de 2003, p. 25). 53 La definición legal que da de la misma es “toda aplicación tecnológica que utilice sistemas biológicos y organismos vivos o sus derivados para la creación o modificación de productos o procesos para usos específicos” (art. 2).

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 131 Que, aunque esta en realidad es una actividad técnica que tiene miles de años de historia humana detrás54, sólo una parte de la humanidad, la parte desarrollada (“biotecnología moderna”), según la división social de la humanidad, es la que practica auténtica tecnología55. Por ello, incluso en el propio Convenio de Río se mantiene ese desequilibrio cultural de partida. Aunque se enuncia esa exigencia de equidad en términos de aparente reciprocidad de todas las partes sociales implicadas, tanto los que poseen los “conocimientos tradicionales” (que según la división social de la humanidad propia de los instrumentos internacionales de las últimas décadas, se hallarían en los países atrasados), como los que producen las “innovaciones” sobre los recursos biológicos (que provendrían de los países desarrollados), sin embargo, no hay ninguna equidad aplicable a las dos partes. Dada la superioridad de la segunda, de la innovación sobre lo tradicional, no se puede aplicar el mismo régimen jurídico. Sobre los recursos de genéticos que son reconocidos y empleados por el conocimiento tradicional, se aplica el principio de la libre apropiación, mientras que sobre las innovaciones, debe regir un régimen de protección de la propiedad como es el sistema de patentes. Si lo tradicional versa sobre lo natural, la innovación es un artificio sobre lo natural56 y por tanto es un “producto humano”, de donde nace su carácter distintivo. Por eso se hablará después en el convenio de la transferencia de tecnología de los segundos sobre los primeros; lo cual es altamente cínico, o en el mejor de los casos,

54 Hay muchas definiciones para describir la biotecnología. Como se señala en artículo sobre “biotecnología moderna” (http//:www.infoagro.com/semillas_vivero/semillas/biotecnología.asp, 2003). En términos generales biotecnología es el uso de organismos vivos o de compuestos obtenidos de organismos vivos para obtener productos de valor para el hombre. Como tal, la biotecnología ha sido utilizada por desde los comienzos de la historia en actividades tales como la preparación del pan y de bebidas alcohólicas o el mejoramiento de cultivos y de animales domésticos. Históricamente, biotecnología implicaba el uso de organismos para realizar una tarea o función. Si se acepta esta definición, la biotecnología ha estado presente por mucho tiempo. Procesos como la producción de cerveza, vino, queso y yogurt implican el uso de bacterias o levaduras con el fin de convertir un producto natural como leche o jugo de uvas, en un producto de fermentación más apetecible como el yogurt o el vino. Tradicionalmente la biotecnología tiene muchas aplicaciones. Un ejemplo sencillo es el compostaje, el cual aumenta la fertilidad del suelo permitiendo que microorganismos del suelo descompongan residuos orgánicos. La biotecnología moderna está compuesta por una variedad de técnicas derivadas de la investigación en biología celular y molecular, las cuales pueden ser utilizadas en cualquier industria que utilice microorganismos o células vegetales y animales. Una definición más exacta y específica de la biotecnología “moderna” es “la aplicación comercial de organismos vivos o sus productos, la cual involucra la manipulación deliberada de sus moléculas de DNA. Esta definición implica una serie de desarrollos en técnicas de laboratorio que, durante las últimas décadas, han sido responsables del tremendo interés científico y comercial en biotecnología, la creación de nuevas empresas y la reorientación de investigaciones y de inversiones en compañías ya establecidas y en Universidades (cf. ib.) 55 Cf. V. Shiva, Biopitarería, p. 74-75. 56 David Hume también se hace cuestión de la distinción entre lo natural y lo artificial, lo cual se diferencia para Hume en que aunque la especie humana es de suyo es inventiva, aún relativos a productos o hallazgos humanos, no siempre esa actividad está diferencia del mero hallazgo de lo obvio, que por ello sigue siendo “natural”: “utilizo la palabra natural en cuanto exclusivamente opuesta a artificial. Pero en otro sentido de la palabra, así como no hay principio de la mente humana que sea más natural que el sentimiento de la virtud, del mismo modo no hay virtud más natural que la justicia. La humanidad es una especie inventiva; y cuando una invención es obvia y absolutamente necesaria puede decirse con propiedad que es natural, igual que lo es cualquier cosa procedente directamente de principios originarios, sin intervención de pensamiento o reflexión” (Tratado de la naturaleza humana, Editora Nacional, Madrid, 1977, p. 708).

132 Juan Antonio Senent de Frutos ideológico. Los primeros no tienen “tecnología”, después de que se le está expropiando sus recursos biológicos con la excusa de las “innovaciones” sobre los mismos; los segundos deben ser solidarios con los primeros y ayudarles con la trasferencia de tecnología. Pero como es propiamente un deber de solidaridad más de naturaleza ética que jurídica, este no obsta a que lo que realmente se esté transfiriendo sobre los primeros es la carga jurídica del sistema de patentes sobre esos recursos (cf. art. 16.2)57, que les devuelve “patentados” los recursos que ellos venían libremente utilizando en sus sistemas de economía tradicional. Sin intervención del pensamiento y la reflexión no hay artificio, y donde no lo hay, todo es simplemente “natural”. Podría aplicarse esta distinción al problema de la técnica y la división de la humanidad. Los hallazgos o “invenciones” de las sociedades tradicionales, desde un punto de vista etnocéntrico, por obvias e irreflexivas, no dejan de recaer sobre productos naturales que no “sacados de su condición natural”, y no ello no ponen en ellos “ninguna huella de propiedad”. En cambio, los “numerosísimos utensilios” que el desarrollo tecnológico de la parte civilizada de la humanidad aplica sobre los recursos naturales deja en ellos la huella de la propiedad.

2.4. La reducción mercantilista de la funcionalidad económica de los bienes naturales

La satisfacción de necesidades mediante la utilización de los bienes naturales, vinculada con el llamado valor de uso de los bienes, es algo que Locke al comienzo de su planteamiento reconoce, sin embargo, de ese reconocimiento consigue llegar a un punto en que toda la funcionalidad económica para la vida humana en sociedad de los bienes naturales queda subsumida únicamente en el precio como valor de cambio. Reducida la función social de un bien a su precio, y con ello a la carestía que alcance, se olvida la lógica del sustento de la vida que estaba en el origen de la apropiación originaria. En este sentido, hablamos de una reducción mercantilista. En el esquema lockeano, para que los bienes naturales sean socialmente útiles, no expuestos o dejados para la avaricia de las sociedades tradicionales, tienen que ser apropiados privativamente y

57 El art. 16 intitulado Acceso a la tecnología y transferencia de tecnología, establece en su párrafo 2: El acceso de los países en desarrollo a la tecnología y la transferencia de tecnología a esos países, a que se refiere el párrafo 1, se asegurará y/o facilitará en condiciones justas y en los términos más favorables, incluidas las condiciones preferenciales y concesionarias que se establezcan de común acuerdo (...). En el caso de tecnología sujeta a patentes y otros derechos de propiedad intelectual, el acceso a esa tecnología y su transferencia se asegurarán en condiciones que tengan en cuenta la protección adecuada y eficaz de los derechos de propiedad intelectual y sean compatibles con ella (...).

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 133 rentabilizados, o “puestos en valor”, mediante el uso del dinero; así se logra, según él, disponerlos para el beneficio común. Porque el uso del dinero en la gestión de estos “recursos naturales” y en la apropiación privativa es lo que permite la “utilidad” para el género humano. Dice Locke: -”Al principio la mayoría de los hombres se contentaban con lo que la desnuda naturaleza les ofrecía para satisfacer sus necesidades, sin embargo, en algunas partes del mundo, donde mediante el uso del dinero habían hecho que la tierra escaseara y que por lo tanto, tuviese algún valor, regularon las propiedades de los individuos de su sociedad” (§45). Entonces, hasta que no se regulan las propiedades de los individuos en la sociedad, y hasta que no se mercantilizan esas propiedades y se vuelven intercambiables por dinero, no hay una utilidad para el género humano. Por eso se habla de una reducción mercantilista. Esta reducción opera mediante una invisibilización y pérdida del sentido de la función natural de la tierra, y por ende, de los recursos. En el fondo, se trata de que la tierra y los recursos naturales son casi prescindibles en función del trabajo abstracto. El trabajo abstracto, es decir, el trabajo tecnológicamente avanzado, pretende reemplazar las fuentes naturales, por eso llega a decir Locke, ya en el siglo XVII, que “la tierra que proporciona las materias primas es de escaso valor, si es que tiene alguno” (§42). En consecuencia, hay una desconexión y una pérdida del sentido del valor de uso y de satisfacción de necesidades a través de esos “recursos naturales”, que resultan ser los menos valiosos, y a su vez, de la función que tiene toda la naturaleza en el sustento de la vida. Cuando se reduce toda la relación con la naturaleza a un puro cálculo de utilidad, se invisibiliza cualquier otra funcionalidad de la misma, y se entiende que si no se instrumentaliza mediante la mercantilización; por ello, nos dirá que si ese no es el modo de actuar, “el beneficio que de ella se deriva es prácticamente nulo” (cf §42).

2.5. Pérdida de la interdependencia o de la racionalidad reproductiva

Hay otro supuesto, en todo este esquema, que es la pérdida de la racionalidad reproductiva.58 La racionalidad reproductiva es aquella por la cual se mantiene unida, en relación de interdependencia, la acción humana con el medio natural. Es algo

58 Sobre la racionalidad reproductiva, véase F. Hinkelammert, Crítica de la razón utópica, Desclée de Brouwer, Bilbao, 2ª ed. ampliada y revisada, 2002; F. Hinkelammert y H. Mora, Coordinación social de trabajo, mercado y reproducción de la vida humana, DEI, San José, 2002.

134 Juan Antonio Senent de Frutos que las sociedades tradicionales saben bien y que expresan en su propia sabiduría popular. Hay un discurso famoso del jefe Seatle, el indio norteamericano que decía: “Nosotros sabemos esto: la tierra no pertenece al hombre, el hombre pertenece a la tierra, nosotros sabemos esto: todas las cosas están relacionadas, como la sangre que une a la familia, todo lo que suceda a la tierra sucede a los hijos de ésta, lo que él hace a este tejido se lo hace a sí mismo”. Pero una posición de este tipo está fuera de la visión de esta apropiación tecnológica de los “recursos naturales”, conforme a la cual se pretende que podemos destruir la naturaleza puesto que ya hemos conseguido descifrar la información genética que contenía. Con esta información, teóricamente, podremos reproducir el mundo tecnológicamente y la vida natural. Asimismo, se puede agredir a la naturaleza porque el ser humano está más allá de la naturaleza, y cree que si destruye este tejido no se destruye a sí mismo, lo que es propio de una racionalidad que prescinde de las condiciones de sobrevivencia. Esto ayuda a explicar porque cuesta tanto trabajo a las sociedades tradicionales asumir o adoptar la mercantilización de sus recursos biológicos y la lógica de la inscripción registral de estos, porque en el fondo es una lógica que desvincula las cosas de su valor de uso y abusando de ellas solo las considera en tanto que mercancía intercambiable. El derecho de propiedad, lo sabemos desde el derecho romano, es el derecho de disfrute, uso y abuso de las cosas poseídas (ius fruendi, utendi et abutendi); entonces, si se destruyen las cosas poseídas, supuestamente no destruimos al poseedor. En cambio, las sociedades tradicionales, en virtud de su visión de una racionalidad que nos prescinde de la interdependencia, saben que si no respetamos las cosas poseídas no respetamos tampoco al poseedor. Son todas estas reducciones y escisiones examinadas las que justifican los mecanismos legales de patentes dentro de las sociedades tecnológicamente avanzadas, las cuales tienen una matriz cultural que justifica y “dota de sentido” a las acciones; aunque desde un contexto de racionalidad más complejo, que pretende enterder la racionalidad humana desde un punto intercultural y no únicamente etnocéntrico, esos supuestos elevados a único criterio de actuación y regulación resultan disfuncionales e insostenibles para el conjunto de la humanidad.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 135 3. EL PROBLEMA DE LA UTOPÍA EN LA SOCIEDAD DEL CONOCIMIENTO: EL CASO DE LA BIOTECNOLOGÍA FRENTE A LA BIODIVERSIDAD

La dimensión utópica de la acción tecnológica moderna suele pasar desapercibida tanto para sus actores como la sociedad en general. El desarrollo del creciente poder de la técnica moderna sobre el mundo parece no reconocer límites. Esto se presenta como un hecho y no como una proyección ideal. La esencia de la misma podría decirse que radica en su continua aspiración a superar los obstáculos físico-naturales. El control del cuerpo, del espacio y recursos naturales, de los propios desastres sociales59 y ambientales que genera el propio desarrollo moderno se confía al progresivo avance tecnocientífico que permita corregir las propias disfunciones que va generando y superar los límites que se van encontrando. En este sentido, la técnica moderna parece, por fin, que es la escalera que nos permitirá llegar al cielo de los anhelos de perfección humana. Sin embargo, a partir de la imagen de cuasiomnipotencia que se desprende hoy de la tecnología, y particularmente de la biotecnología, pueden generarse prácticas que no parecen conducirnos a ningún cielo sino que pueden poner en peligro tanto la biodiversidad en el planeta como la diversidad cultural de la humanidad.

3.1. El nihilismo de la información frente a la naturaleza

Hemos señalado antes el interés de las empresas de biotecnología en emplear los conocimientos tradicionales y recursos biológicos de otros pueblos tanto para la producción agroindustrial como para la producción farmacéutica. Quizá sea este el último asalto del colonialismo occidental sobre estos pueblos, pues tras la obtención de

59 Es la provocadora propuesta de Peter Sloterdijk, frente al para él, stablishmen conservador y bienpensante de la academia anclada en posiciones humanistas superables (de ahí su polémica con J. Habermas). Dada la incapacidad de la educación, del “pastoreo”, para la evitación de fenómenos socialmente indeseables, se plantea el reto progresista de acudir al potencial tecnológico para reconfigurar la naturaleza humana, indomable por medios tradicionales. “También en la cultura actual está teniendo lugar la lucha de titanes entre los impulsos domesticadores y los embrutecedores y entre sus medios respectivos. Y ya serían sorprendentes unos éxitos domesticadores grandes, a la vista de este proceso civilizador en el que está avanzando, de forma según parece imparable, una ola de desenfreno sin igual (Remito en este punto a la ola de violencia que irrumpe estos momentos en las escuelas de todo el mundo occidental, y especialmente en EE. UU, donde los profesores empiezan a instalar sistemas de protección contra los alumnos)”. Frente a ese escenario, “el desarrollo a largo plazo también conducirá a una reforma genética de las propiedades del género; si se abre paso a una futura antropotécnica orientada a la planificación explícita de las características; o si se podrá realizar y extender por todo el género humano el paso del fatalismo natal al nacimiento opcional y a la selección prenatal” (Normas para el parque humano. Una respuesta a la Carta sobre el humanismo de Heidegger, trad. de T. Rocha, Siruela, Madrid, 2000, p. 72-73). La posición correcta ante las opciones tecnológicas, ya está prefigurada por el autor, o elegimos entre “fatalismo” o “planificación explícita”: Lo “verdaderamente” humano sería superar ese supuesto “fatalismo”.

136 Juan Antonio Senent de Frutos sus conocimientos ya no parece quedar ninguna razón pragmática para respetarlos. Ni siquiera parece haber buenas razones para conservar la naturaleza, una vez que se hayan descodificado sus secretos por la biotecnología. Es el nuevo utopismo de la sociedad del conocimiento que promete la superación de los límites físicos y naturales de la condición humana. El conocimiento puede llegar a sustituir a la naturaleza como parecen indicarnos los avances de la biotecnología, y el siguiente paso podría ser la sustitución de las propias poblaciones una vez identificadas sus diferencias biológicas por la propia disponibilidad de su información genética. Entiendo que la cuestión de fondo a enfrentar es una ilusión utópica60, que se puede derivar de la creciente capacidad de la técnica frente a la naturaleza, y consiste en que se puede reemplazar técnicamente la naturaleza por su conocimiento. Descifradas genéticamente las diversas especies de flora y fauna, éstas pueden ser destruidas o eliminadas de su medio natural, de suerte que, por ejemplo, como en el caso del lobo de Tasmania (lobo marsupial, que desapareció a principios del siglo XX y que se ha intentado reproducir), desaparece la razón por la que las especies y los hábitats deber ser conservados. Habiendo obtenido algunas muestras biológicas, con esa base podría conservarse la información biológica suficiente, y con ello, llegar incluso a reproducirlas. Por tanto, no es necesario conservar ni el lobo de Tasmania, ni las plantas ni ninguna especie natural, puesto que si podemos descifrar su información genética, podremos después hipotéticamente, llegar a reproducirlas. Es decir, se puede pretender que para producir vida, en sentido biológico, no se necesita partir de una vida previa, como hasta ahora. Ese progresivo poder tecnológico, puede generar una ilusión utópica suicida, en el sentido de creer que las fuentes naturales sobre las cuales se sostiene la vida en la tierra pueden ser sustituidas por la técnica avanzada. En este sentido, desde la ilusión de que la naturaleza puede ser desplazada por el conocimiento, y consiguiente pérdida del sentido de interdependencia natural; también se puede generar la misma ilusión respecto de lo específicamente humano. Dentro de esta lógica, hay un hecho que tiene a mi juicio su propio valor simbólico. Las empresas biotecnológicas cuando patentan la información biológica obtenida (por diversos medios) no lo hacen

60 Entiendo por esta ilusión, una pretensión no justificada que distorsiona la capacidad del ser humano de actuar sobre el medio, incluso sobre sí mismo, y que pone en peligro la supervivencia del actor, o en su caso extremo, de la humanidad; y que surge de la confianza ciega en ciertas estrategias para alcanzar ideales de perfección postulados por la mente humana.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 137 como “descubrimientos” sino como “invenciones” y más allá de la mera utilidad jurídica de esa diversa denominación está el hecho de que sus autores no se sienten “descubridores”, como quienes señalan algo nunca visto por el ojo humano. Aquí estos descubridores se encuentran o se topan con algo preexistente de lo que dan cuenta a la sociedad humana, y por tanto no crean aquello que encuentran. Por el contrario, la “invención” remite míticamente a la idea de la creación ex nihilo, de algo nuevo para el ser humano, y que como tal no preexistía, y existe en el momento en que sus inventores le dan vida.61 El inventor es Señor de su criatura, y por tanto está más allá de su existencia y de los condicionantes de su existencia, no así el descubridor. El despliegue de la acción biotecnológica frente a la biodiversidad implica lo que podríamos denominar un utopismo de la utilidad, que maximizado puede llegar a la disolución de la propia realidad62. Por ello, tras la reducción de la realidad biológica y humana por medio de su transposición a códigos de información disponibles por el progresivo desarrollo de la biotecnología, se esconde lo que podríamos llamar un nihilismo de la información (que Nietzsche no identificó, aunque es una forma suprema de “voluntad de poder”) tras el cual la realidad material y concreta de cada uno de los miembros de cualquier especie sería pura pobreza una vez disponible el conocimiento sobre las fuentes de la vida. A partir de la progresiva capacidad tecnológica, en sí mismas, esas formas vivas no serían sino simples ejemplos de seres que, “en principio”,63 podrían reproducirse indefinidamente, y por tanto no imprescindibles científicamente.64 Retomando la cita del físico Rutherford, lo cualitativo no sería sino algo reducible65 a lo cuantitativo (Qualitative is nothing but poor quantitative),66 lo cual expresa la guía de acción de las ciencias empíricas, que también se proyecta en la acción 61 Aunque sea realmente esa “invención” fruto de los generado por la naturaleza o de lo generado por la intervención humana sobre la misma a los largo de siglos; y ello, mediante formas “transgénicas” que lo que hacen es modificar o recombinar los materiales existentes, para poner la huella de su “innovación”. Como señala V. Shiva, se ha inventado una nueva terminología, la “invenciones biotecnológicas”, para redefinir la biodiversidad y que las patentes sobre la vida no resulten controvertidas, en realidad, los científicos pueden recombinar desordenadamente “genes de diferentes especies en los laboratorios de la universidades y de lsa compañías, no “crean” el organismo que a continuación patentan” (Biopiratería, op. cit., p. 40) Sin embargo, como indica Ron James, como modo de proceder de esta tecnología “Dejamos en el gen algunos trozos de este ADN al azar, más o menos como Dios lo había dispuesto, con lo que conseguimos un buen rendimiento”. A la hora de reclamar derechos de patentes, sin embargo, el científico se convierte en Dios, el creador del organismo patentado (cf. V. Shiva, Ibid., p. 41). 62 Cf. Hinkelammert, F., Determinismo, caos, sujeto. El mapa del emperador, DEI, San José, 1996, pp. 77-79. 63 Ese es el lenguaje que se suele emplear en la actividad tecnocientífica, y que en realidad no expresa ningún juicio de hecho, sino una proyección utópica (ver CRU). 64 Biopiracy p. 45-47. 65 Como ha señalado P. Davies “el motor principal del pensamiento científico del mundo occidental en los últimos 350 años ha sido el reduccionismo. La misma palabra “análisis” ilustra adecuadamente el hábito científico de descomponer un problema para resolverlo. Sin embargo, existen algunos problemas que sólo pueden ser resueltos juntando sus distintas piezas (son de naturaleza holística o sintética)” (Dios y la nueva física, Salvat, Barcelona, 1998, pp. 72-73). 66 Otro gran científico empírico, Max Planck señalaba: “Wirklich ist, was messbar ist” (lo real es lo que se puede medir) (citas tomadas de Hinkelammert, F., Determinismo, caos, sujeto. Op. cit., p. 37).

138 Juan Antonio Senent de Frutos biotecnológica que podemos definir como el conocimiento de las estructuras cuantitativas por medio de las cuales podrían reproducirse o utilizarse las diversas formas “cualitativas” de vida. Por ello el afán, por ejemplo, de las empresas biotecnológicas por identificar y secuenciar nuevas especies de plantas exóticas antes de la destrucción final de los bosques tropicales, que según avanzan las fechas se esperaría para las próximas décadas del siglo XXI. La acción depredadora sobre estas fuentes de la vida en el planeta, se acompaña del intento “desesperado” de descubrir y retener la información suficiente sobre esas especies antes de su desaparición. Esta acción biotecnológica es perfectamente funcional a la destrucción de las fuentes naturales de la vida, y además “salvaría” ese patrimonio de la humanidad con lo que hace irrelevante la conservación de esos recursos. Para este utopismo científico, esta conservación parece fruto de nostálgicos del pasado y de formas culturales atrasadas que dependen de la conservación del medio ambiente para su sostenimiento. Frente a ellos se alzaría por fin la omnipotencia de la técnica humana más elevada que escapa a los condicionantes físico- naturales que ha sujetado a la humanidad en toda su historia, y que finalmente colocaría al género humano como Señor del medio. Tras esta ilusión utópica señalada que está detrás de muchas prácticas actuales, se esconde una lógica que podemos denominar como “despotismo67 tecnocientífico”. Si la ley del déspota es tal que no reconoce límites a su propio poder, sino su propia voluntad como única referencia, no puede reconocer ninguna frontera “insuperable”, ningún límite que trascienda su propia acción. Mientras más se proyecta el fantasma de la omnisciencia68 y de la omnipotencia humana sobre el medio y sobre la propia condición humana, con más valor y decisión se pueden aniquilar las fuentes de la vida natural y humana sobre nuestro planeta dada su radical irrelevancia frente al propio poder sobre ellas. Esta actividad, descrita en términos de aproximación al ideal utópico señalado, es fácilmente criticable en su debilidad. Una de las

67 En la formulación lockeana el despota es el poder absoluto que gobierna “sin leyes establecidas” (cf. Segundo Tratado del Gobierno Civil, op. cit, §137 ). 68 Sydney Brenner, premio nobel de medicina de 1992, expresa esta ilusión de omnisciencia a propósito del Proyecto Genoma Humano: “Todo el mundo creyó que una vez que conociéramos la secuencia completa del genoma entenderíamos todo, pero no entendemos básicamente nada. El problema principal sigue ahí” (entrevista en el diario El País, 18 de Septiembre, p. 30). Esa ilusión por tener un conocimiento perfecto, y por consiguiente un dominio perfecto está implícita en el propio proyecto científico. Ahora bien, el científico, en este caso, no es ingenuo respecto a esta utopía del conocimiento perfecto y control perfecto del cuerpo humano. A la pregunta siguiente a esta respuesta contesta (P: ¿Usted sabía que esto iba a pasar?): “Claro que sí, claro que sí. Cada movimiento tiene que tener sus publicistas para venderlo(...) Lo que pasa es que ahora hay una conciencia mayor en los países desarrollados sobre la salud y la posibilidad de vivir más años. Hay una gran preocupación por la calidad de vida y la gente es más consciente de las repercusiones de las ciencias de la vida en su salud individual” (Ib.). Sin embargo, no es sólo cuestión de “marketing”, de presentación social o de la forma de vender el proyecto, sino que es algo implícito en su propio desarrollo el alcanzar ese conocimiento perfecto, y que por ello, permite tal presentación. Cuando habla de que “todo el mundo creyó”, también están implicados los propios científicos, y no sólo el público ansioso de nuevas promesas.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 139 críticas más comunes es que, ante la pérdida masiva de biodiversidad, apenas da tiempo a que unas pocas especies sean analizadas, identificadas, y en su caso, secuenciadas. Muchas otras caen, o han caído en los últimos años en un proceso de irreversible pérdida. Ni siquiera se puede cuantificar lo perdido. Ahora bien, esta crítica, a pesar de su aparente realismo, también se inscribe en la misma ilusión utópica. ¿Acaso si fueran secuenciadas todas las especies antes de su destrucción, estarían con ello “salvadas”? ¿la variabilidad y la individualidad genética es reconducible a un patrón único de genoma por especie?, ¿podríamos permitirnos destruir sus hábitats en el que pueden vivir y reproducirse?, ¿son separables las especies de sus hábitats, y los hábitats de sus especies?, en última instancia, ¿el conocimiento de las estructuras del mundo, puede sustituir al mundo?

3.2. La paradoja de la utilidad y la racionalidad científica

Desde la ilusión de la dominación del mundo por el conocimiento, nos encontramos con la paradoja de la utilidad. El conocimiento socialmente aplicado puede tratar de controlar el medio en función de la utilidad para la vida humana en sociedad. Si se maximiza este criterio de utilidad frente al medio y frente a la propia condición humana; estos aparecen como res extensa frente al que se alza el sujeto de los procesos tecnocientíficos como algo contradistinto de lo material, la res cogitans que ve al mundo, y a su propia corporeidad, y lo cuantifica y manipula en función de sus cálculos de utilidad como si estuviera más allá de su subjetividad.69 Si desapareciera el mundo, “no pasaría nada”. El biólogo Santiago Castroviejo, nos 69 Esta lógica dualista, reduccionista y manipuladora, atraviesa tanto la filosofía como la ciencia moderna. Tras ella está el desencatamiento del mundo, la pérdida del sentido de valor intrínseco de lo natural y material en función de la utilidad relativa para el sujeto, y que permite tratar toda la naturaleza como un gran laboratorio sobre el que experimentar, incluso viviseccionar, para obtener algún conocimiento, y en su caso, alguna utilidad. Frente al mundo, se alza un sujeto, que en el fondo no puede saber si realmente pertenece al mundo. Puede dudar de todo, incluso de la existencia del mundo que observa sus sentidos. Separada la subjetividad interior (el alma), de la objetividad exterior (los cuerpos, su cuerpo), ya no podrá ser parte del mundo. El maestro de la duda metódica, Descartes, quien expone magistralmente la lógica cultural de la ciencia empírica moderna, explica en qué consiste este sujeto: “¿qué soy entonces? Una cosa que piensa. Y ¿qué es una que piensa? Es una cosa que duda, que entiende, que afirma, que niega, que quiere, que no quiere, que imagina, y que también siente” (Meditaciones). Este sujeto de las operaciones, carece de suyo de materialidad: “el alma, en virtud de la cual yo soy lo que soy, es enteramente distinta del cuerpo” (Discurso del método); “puesto que por una parte tengo una idea clara y distinta de mí mismo, según la cual soy algo que piensa y no extenso y por otra parte, tengo una idea distinta del cuerpo, según la cual éste es una cosa extensa, que no piensa, resulta cierto que yo, es decir, mi alma, por la cual soy lo que soy, es entera y verdaderamente distinta de mi cuerpo, pudiendo ser y existir sin el cuerpo” (Meditaciones, VI). El cuerpo humano, como el de los animales y el resto de cuerpos físicos, es una suerte de máquina cuyo funcionamiento mecánico podrá ser descrito por la ciencia. Pero el sujeto de la ciencia que es el ser humano, “puede ser y existir sin el cuerpo”. Por ello, puede tratar de conocerlo y manipularlo, incluso hasta su destrucción porque está más allá del mundo. Con ello, se producirá una fuga mundi, que trae causa de la misma antropología helenizante que iluminaba a San Agustín cuando identifica la verdadera naturaleza humana con el cuerpo espiritual que se opone esencialmente al cuerpo carnal, reinterpretando con ello, todo el lugar central que el cuerpo y la atención a sus necesidades tenía para la vida humana en la tradición cristiana originaria. La pérdida de sentido de lo corporal material, de sus necesidades y exigencias; de su centralidad y relevancia para la vida, genera la ilusión de un sujeto que puede existir sin el cuerpo; y por tanto que, radicalmente, no conoce límites naturales. Es un alma pura por encima y más allá de sus determinaciones materiales.

140 Juan Antonio Senent de Frutos recuerda recientemente esta misma lógica científica inscrita en su propia actividad como taxonomista o clasificador de especies: “Muchos hábitats se están deteriorando rápidamente (...). Los índices de biodiversidad han bajado. Pero hay algo que me gustaría decir sobre esto de la conservación. Todo el mundo está muy preocupado por la extinción de las especies, pero en la historia de la Tierra han ocurrido catástrofes mucho mayores de las que pueda provocar el hombre, y no pasó nada. (...) Al mundo no le pasará nada. Si ahora hubiera una catástrofe nuclear y desapareciéramos, se iniciaría posiblemente un nuevo ciclo evolutivo a partir de la vida bacteriana. La vida es evolución permanente. Sin embargo ahora se nos ofrece una foto fija de la naturaleza, que debe permanecer estática... Como si la naturaleza fuera algo sagrado e inmutable. No lo es”.70 Como la naturaleza no se considera como algo “sagrado”, algo que posee análogamente una “dignidad” (por decirlo con Kant) sino que es sólo medio de nuestras acciones, no se ven las razones de su conservación. Se invisibiliza el criterio para discernir racionalmente la acción. Como “no lo es”, entonces el nihilismo destructor de la actividad humana avanzada (la que permite tanto la construcción de bombas atómicas como el desarrollo de la biotecnología moderna) es perfectamente racional y contempla impasible la aniquilación del mundo ante la promesa de una nueva creación sobre sus cenizas. En el fondo, se nos está diciendo, sin quererlo, el máximo exponente del ecologismo lo representarían quienes destruyeran atómicamente nuestro planeta pues, gracias a ellos, podría comenzar una nueva la evolución de la biodiversidad a partir de las bacterias. Como señala Castroviejo “cuando se extinguieron los dinosaurios no pasó nada, solo que ellos y otras muchas especies desaparecieron, pero en su lugar se desarrollaron los mamíferos y llegamos nosotros. ¿Fue malo que llegáramos nosotros?”.71 Desde ahí puede entenderse que no pase nada, pues se abre un futuro cósmico, sin seres humanos, que quizá dé lugar a formas de vida aún superiores a la nuestra. Aquí podemos ver la sobrecogedora capacidad de destructividad y de indiferencia de este sujeto del conocimiento que contempla al universo, su destrucción y recreación, el paso de las especies, inclusive del propio sujeto que contempla su desaparición física y de la propia especie humana a la que se dice pertenecer, completamente impasible. Este sujeto no es más que un ente fantasmagórico que pretende recorrer fuera del tiempo y del

70 Entrevista en diario El País, 24 de Septiembre de 2003, p. 36. 71 Op. cit.

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 141 espacio, el dinamismo vivo del universo más allá de cualquier limitación de índole físico-natural; y que desde ahí pretende establecer un juicio de irracionalidad de quienes sostienen los límites de la condición humana. Desde esta ilusión utópica, el mundo está lleno de dinosaurios, en sentido biológico, de especies que están esperando desaparecer,72 y cuya destrucción abre el camino de la creación para dar paso a nuevas formas de vida; en sentido cultural, de pueblos que entorpecen el camino brillante de la ciencia; y en sentido ético- político, de quienes pretender discernir la racionalidad y los límites científicos y humanos de las prácticas biotecnológicas y se atreven a sospechar de uno de los ídolos de nuestro tiempo. Ahora bien, este camino de “destrucción creadora” al que la aproximación al ideal utópico de la tecnología moderna parece conducirnos, revela una crisis de utilidad si se maximiza este criterio de utilidad frente al medio y frente a la propia condición humana. Lo que parecía ser un acercamiento razonable a la realidad, cuando se erige en único criterio de actuación se revela perfectamente nihilista, y con ello, surge la paradoja de que lo útil, conduce a la inutilidad cuando no hay otros criterios de juicio sobre la realidad.73 Llegados al punto en el que la entrega a la imaginación utópica nos ha conducido, y en el que la conservación de la biodiversidad es perfectamente irrelevante para el futuro de la vida en el universo, y en última instancia para la propia conservación de la naturaleza como fuente de vida humana y no humana (vid. supra), surge la conciencia del límite que reorienta la acción.

3.3. Descubriendo los límites

A la pregunta de si la biodiversidad sirve para algo desde un punto de vista egoísta, Castroviejo parece despertar del sueño fantasmagórico al que en última instancia el dualismo excluyente sujeto-objeto inscrito en la ciencia empírica moderna nos conduce: “Ahí voy. ¿Por qué no debemos perder biodiversidad? Porque es un indicador de que vamos en el mal camino para nuestro propio futuro.

72 Ante cuya extinción, como el probable fin del lince ibérico, el alma del sujeto del conocimiento (res cogitans) solo puede exclamar: “me entristeceré” (cf. ib.). 73 Como señala lúcidamente Franz Hinkelammert, “Que algo sea útil, no implica que un cálculo de utilidad mostrar su utilidad. Por eso hay una utilidad que se opone al cálculo de utilidad. Es útil limitar el cálculo de utilidad. También es útil que determinados valores sean respetados, sin ser derivables de un cálculo de utilidad. Una ética que no sea útil, sería inútil. Ese es el terreno de la ética. En consecuencia, no se pueden tratar la ética y la utilidad como contrarios. La ética no es inútil. La contradicción se da entre el cálculo de utilidad y la ética. Luego, hay una ética que nace de argumentos de utilidad sin ser “utilitarismo”. Por ser útil puede ser objeto de las ciencias empíricas. Respetar la naturaleza, fomentar la paz, luchar en contra de la explotación es útil para todos, pero se halla siempre en conflicto con una acción que se orienta por el cálculo de utilidad.”; Determinismo, caos, sujeto. El mapa del emperador, op. cit.,p. 119.

142 Juan Antonio Senent de Frutos La naturaleza nos es necesaria”.74 Desde el planteamiento anterior, el sujeto podía prescindir de la suerte del objeto, pues consistía en un observador externo que contemplaba el mundo desde fuera. Aquí, si el ser humano quiere seguir siendo Señor del medio, tiene que renunciar a su trono, a su despotismo (estar más allá de cualquier límite) para conservar su poder.75 Entregado a la voluntad de poder, disuelve la posibilidad de “seguir siendo”. Tiene que comprender los límites antes de entrar en un punto de no retorno. El ser humano existe si la naturaleza existe. No puede reemplazar a la naturaleza por el conocimiento de la naturaleza. Tampoco puede ir más allá de su condición humana como estructura psico-orgánica por el conocimiento de las estructuras de la condición humana. Al reconocer la naturaleza (y el cuerpo) como “necesario” trascendemos la lógica cultural de la ciencia moderna avanzada y nos situamos en la lógica cultural de los pueblos tecnológicamente atrasados que se saben inscritos en el circuito de la vida, y que por tanto deben respetarla si se quieren respetar a ellos mismos. Como sabiamente nos recuerda el jefe indio Seatle: “nosotros sabemos esto: la tierra no pertenece al hombre. El hombre pertenece a la tierra. Nosotros sabemos esto: todas las cosas están interrelacionadas, como la sangre que une a la familia. Todas las cosas están relacionadas entre sí. Todo lo que le sucede a la tierra, sucede a los hijos de la tierra, sucede a los hijos de ella. El hombre no trama el tejido de la vida. Él es, sencillamente, una pausa en ella. Lo que él hace a ese tejido se lo hace a sí mismo”. Si la naturaleza pierde biodiversidad, estamos en el mal camino para nuestro propio futuro. La reflexión sobre los límites de una acción biotecnológica que no quiere reconocer límites (“en ciencia, todo lo que se puede hacer se hace”)76 es algo que supera el marco de la praxis científica moderna. Si la ciencia es el reino de lo cuantitativo, necesitamos criterios cualitativos frente a la reducción cuantitativa del mundo. Los propios científicos atisban esos criterios como los podemos atisbar desde cualquier sociedad que quiera despertar de su ingenuidad cientifista,77 por ello, “los científicos sí deben entrar en el

74 Ib. 75 Es el problema radical del antropocentrismo vid. CRU. Sin embargo este problema pasa completamente desapercibido por Pureza, aun cuando muestra los límites de tal posición. 76 Ib. 77 Entre los diversos ejemplos que se pueden ofrecer de esta ingenuidad, se presenta hoy la inmortalidad como un objetivo alcanzable. Como indica Hille Haker, la American Academy of Anti-Aging Medicine, lanza en su propaganda la idea de “una `nueva´ sociedad, a saber, una sociedad sin senectud, con una duración de vida de hasta 150 años y con el clon reproductivo como un sillar para conseguir la inmortalidad”, en “El cuerpo perfecto: utopías de la biomedicina”, Concilium, n.º 295, 2002, p. 167. En este mismo sentido, Rubén Urtuzuástegui señala que las promesas de la biotecnología se enfocan hacia el “perfeccionamiento del ser humano, garantizando su salud y prolongando su juventud, incluso se habla ya de inmortalidad” (“Biotecnología: negocio del futuro”, op.cit.).

Sociedad Del Conocimento, Biotecnologia y Biodiversidad 143 debate de si se debe o no hacer algo”.78 Ello supone trascender el punto de vista científico e integrarlo en una diversa forma de relacionarse con el mundo. Con ello, no se trata de “abolirlo” si no de situarlo en un contexto mayor de racionalidad humana que no permita desconocer la radical dependencia natural del ser humano con el medio biótico, y de su propia corporalidad. Supone introducir “juicios de valor” como forma de controlar los “juicios de hecho”, que en última instancia conducen a que “todo lo que se puede hacer, se hace”. Es la voluntad de poder que está tras el fantasma de omnisciencia de la ciencia empírica moderna. La actividad tecnocientífica más allá de los juicios de valor deviene irracional e inútil para la vida humana en sociedad. Por ello, una crítica de esta actividad implica no solamente establecer juicios y límites “externos” de carácter social, cultural o legal, sino la necesidad reconocer en las propias condiciones de racionalidad de la actividad científica estos límites como límites “internos” de la propia actividad.

78 Castroviejo, op. cit.

144 Juan Antonio Senent de Frutos Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos1

Ana Carolina Cambeses Pareschi 2

1. INTRODUÇÃO

ste seminário tem como base a tese de doutorado por mim Edefendida neste mesmo departamento em maio de 2002, intitulada Desenvolvimento Sustentável e Pequenos Projetos: entre o Projetismo, a Ideologia e as Dinâmicas Sociais. Na tese, procurei observar e analisar os processos sociais que ocorriam antes e durante a implementação de um dos componentes do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PP-G7), o Subprograma Projetos Demonstrativos A (PD/A), desde o nível internacional até o nível local, com relação especialmente às disputas e negociações entre agentes sociais diversos do campo do ambientalismo quanto aos significados do conceito de “sustentabilidade” do desenvolvimento e das práticas “adequadas” à sua implementação. Agregadas a estas disputas e negociações que ocorriam mais visivelmente nos níveis internacional, nacional e regional, estavam outras relacionadas à diversidade dos contextos locais e de seus atores, dentre os quais sociedades indígenas e camponesas. Foram escolhidos alguns dos pequenos projetos de desenvolvimento sustentável financiados pelo PD/A, chamados Frutos do Cerrado. O Frutos do Cerrado era na verdade um conjunto de doze pequenos projetos espa-

1 Seminário apresentado em 5 de novembro de 2003 no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. 2 Departamento de Antropologia-UnB. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 145 lhados pelo norte do Tocantins e sul do Maranhão, agregando numa rede associações e cooperativas de pequenos produtores rurais, uma associação de povos indígenas Timbira com cinco povos representados e duas ONG’s assessoras, o Centro de Educação e Cultura do Traba- lhador Rural – Centru e o Centro de Trabalho Indigenista – CTI, totali- zando quatorze entidades. Os objetivos destes pequenos projetos eram conservar o cerrado, garantir uma alternativa econômica sustentável aos povos indígenas e camponeses e ao mesmo tempo proteger as Terras Indígenas através de uma aliança entre “vizinhos de pequeno porte” – camponeses e índios. Isso se daria por meio do plantio, coleta, beneficiamento e comercialização dos frutos do cerrado através principalmente do seu processamento em forma de polpas congeladas. É possível perceber nesta breve apresentação que o número e o tipo de atores com os quais tivemos contato foi bastante diverso e extenso, sendo necessário um recorte. Assim, nesta exposição, nos deteremos nos conceitos primordiais elaborados e utilizados na tese com relação às situações etnográficas mais gerais observadas no interior da Rede Frutos do Cerrado e na relação desta com o PD/A. A apresentação está dividida em três partes. Na primeira apresento o PP-G7 e o PD/A e sua importância no quadro do ambien- talismo para ressaltar especialmente a ideologia e a linguagem presente nestes programas, dentre as quais a do projetismo e a do desenvolvimento sustentável. Desenvolvo o arcabouço conceitual antropológico que utilizei para analisar os conflitos de interpretação, de poder e de metodologia na implementação do PP-G7, do PD/A e que se estende, em certa medida, para os pequenos projetos de desenvolvimento sustentável em geral. Na segunda, exponho de forma mais detida os termos do projetismo do PD/A e as tensões com os princípios do desenvolvimento sustentável no interior da Rede Frutos do Cerrado. Na terceira, exploro estes mesmos aspectos, porém a partir da relação da Rede Frutos do Cerrado com o PD/A. Finalizo com uma breve conclusão.

2. PP-G7 E PD/A COMO ESPAÇOS DE DISPUTAS

O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PP-G7) foi anunciado em 1992 durante a conhecida Conferência Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO-92. Foi resultado de um longo processo de pressões que os movimentos ambientalistas e de defesa

146 Ana Carolina Cambeses Pareschi dos direitos indígenas, nacional e internacional, vinham sustentando contra os impactos negativos das políticas desenvolvimentistas levadas a cabo no Brasil e nos demais países do Terceiro Mundo. Os objetivos específicos do PP-G7 são: i) demonstrar que o desenvolvimento econômico sustentável e a conservação do meio ambiente podem ser perseguidos ao mesmo tempo nas florestas tropicais; ii) preservar a biodiversidade das florestas tropicais; iii) reduzir a contribuição das florestas tropicais na emissão mundial de gases provocadores do efeito estufa; iv) prover um exemplo de cooperação entre os países industrializados e os em desenvolvimento quanto aos problemas ambientais globais (MMA/SCA/PPG-7, s/d.: 1, itálico meu).

Vê-se claramente, por estes objetivos, que a “sustentabilidade” se refere mais ao “desenvolvimento econômico” do que à conservação ambiental. As “florestas tropicais” são tomadas como ícones da biodiversidade e as queimadas como uma das contribuições importantes na emissão dos gases produtores do efeito estufa, uma verdade parcial, já que a atividade industrial e a queima de combustíveis fósseis por automóveis contribuem muito mais. A Resolução de criação do Rain Forest Trust Fund,3 de 3 de março de 1992, no âmbito do Banco Mundial, diz que o PP-G7 tem um caráter “experimental” que procura “testar a aplicação de uma abordagem ampla para a proteção da maior floresta tropical do mundo” (BIRD, 1992: 8). Leia-se, Amazônia. Somente no processo de negociação do Programa, a Mata Atlântica encontrou um diminuto espaço em sua pomposa estrutura, para apenas na segunda fase do PP-G7 a ser iniciada em 2004, constituir-se como uma região que merecesse um subprograma específico. O PP-G7 constituiu-se num programa sui generis de doações do Grupo dos Sete países mais ricos do mundo – o G7 – para um único país no sentido de financiar ações diversas de conservação ambiental e de implementação de um desenvolvimento dito “sustentável”.4 O PP-G7 recebeu inicialmente cerca de US$ 350 milhões, destacando-se a Alemanha como o maior doador, com 42,8% dos recursos (ver Tabela 1).

3 Este Fundo foi criado pelo Banco Mundial para abrigar os recursos doados pelos países integrantes do Grupo dos Sete (G7) – Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Japão, Itália e Reino Unido – destinados ao PP-G7. O Banco Mundial foi eleito pelo G7 como fiel depositário destes recursos e, portanto, era ele que os administrava. 4 Um Fundo parecido ao PP-G7 se constituiu em 1990 chamado Fundo para o Meio Ambiente Mundial, ou Global Environmental Facility (GEF). Porém, diferentemente do PP-G7, o GEF conta com o financiamento de mais de 25 países, não só do Primeiro Mundo, e destina-se ao financiamento projetos de conservação e desenvolvimento sustentável em quatro áreas principais (biodiversidade, aquecimento global, águas internacionais e camada de ozônio) em todos os continentes.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 147 Tabela 1 – Orçamento do PP-G7, por fonte, junho de 2000 Em US$ milhões

Fonte: Adaptado de MMA/SCA/PP-G7/BIRD, Pilot Program Annual Report 1999-2000, 2000: 26. Obs. 1: A tabela não inclui a renda de investimento não desembolsada pelo RFT que está disponível ao Programa e somava US$ 18,06 milhões em 30 de junho de 2000. Obs. 2: Os recursos para projetos incluem o valor estimado das cooperações técnicas dos doadores informadas por estes.

Entre junho de 1992 e novembro de 1993, desenrolou-se um complicado processo de negociação entre o governo brasileiro, o Banco Mundial – eleito pelo G7 como seu representante no Programa, a Comissão das Comunidades Européias e um conjunto de ONG’s sócio-ambientais que passou a ser denominado Grupo de Trabalho Amazônico – GTA. O GTA, embora questionado inicialmente por outros coletivos de ONG’s preexistentes, transformou-se gradativamente em uma das redes de ONG’s expressivas na “representação da sociedade civil” no PP-G7. Em função mesmo desta participação é que o Subprograma Projetos Demonstrativos tipo A, o PD/A, foi um dos primeiros subprogramas aprovados no PP-G7, em novembro de 1993, e o único até aquele momento que previa a participação de

148 Ana Carolina Cambeses Pareschi ONG’s, justamente naquilo que seria uma de suas especialidades: a elaboração, execução e acompanhamento de pequenos projetos. Segundo um dos documentos do PD/A, este subprograma foi construído para abrigar as “diversas categorias de projetos de ONG’s, grupos comunitários e governos locais (...) visando à redução dos impactos sociais e econômicos decorrentes da degradação ambiental” (MMA/SCA/PPG-7, 1998: 12 e 16). Conforme este último documento,

a maioria dessas iniciativas são de interesse e, realmente, contribuem para a resolução dos problemas locais. Contudo, sofrem restrições orçamentárias e seus canais de financiamento são limitados. Somente as ONG’s mais proeminentes têm conseguido acesso a ajuda financeira externa (idem: 16).

Assim, a cooperação internacional, associada ao governo brasileiro, dava início a um processo de abertura para os pequenos projetos historicamente desenvolvidos e financiados pelas ONG’s e suas redes. Os objetivos específicos do PD/A são:

a) gerar conhecimentos sobre a conservação, a preservação e o manejo sustentável dos recursos naturais, por meio de atividades demonstrativas e com o envolvimento e a participação das populações locais;

b) transferir o conhecimento resultante das experiências para outras comunidades, outras ONG’s, tomadores de decisão e técnicos de governo;

c) fortalecer a capacidade de organização e articulação das populações locais, bem como a sua capacidade de elaborar e implementar subprojetos (PD/A, Manual de Operações, 1998: 6).

Interessante ver que um dos objetivos do PD/A é capacitar as entidades a elaborar e implementar projetos. Parece estar implícito que elaborar e implementar projetos seria a solução para a “independência financeira” destas entidades e para a resolução de seus problemas tidos como locais. Sutil e inconscientemente, o PD/A acaba atribuindo aos grupos marginalizados a responsabilidade por sua situação, pois se fossem organizados e articulados estariam realizando seus pequenos projetos. Ou ainda, os pequenos projetos

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 149 são considerados, de certo modo, uma forma de solucionar os problemas da pobreza e da degradação ambiental. Enfim, a idéia central do PD/A é

reforçar a capacidade da sociedade para que ela própria, em associação com o governo, desenvolva soluções factíveis para a conservação e o desenvolvimento da região amazônica e regiões de domínio da Mata Atlântica, testando, aplicando, desenvolvendo e disseminando métodos alternativos de gerenciamento e conservação dos recursos naturais, que sejam econômica, social e ecologicamente sustentáveis (MMA/SCA/ PPG-7, 1998: 14-15). Isto é, testar e ampliar modelos de desenvolvimento sustentável que possuam um alto potencial multiplicativo, estruturados com base na experiência existente no nível da população (idem: 15).

Os “pequenos projetos de desenvolvimento sustentável” que o PD/A financiou na sua primeira fase5 distribuíram-se em quatro áreas temáticas: sistemas de preservação ambiental; sistemas de manejo florestal; sistemas de manejo de recursos aquáticos e sistemas agroflorestais e recuperação de áreas degradadas. Entre o final de 1993 e 1995 foram sendo concluídas as versões finais e os contratos de doação de cinco projetos que se iniciaram em 1995: o PD/A; o Subprograma de Recursos Naturais (SPRN); o Projeto Integrado de Proteção a Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL); o Subprograma de Ciência e Tecnologia; e o Projeto de Reservas Extrativistas. Outros programas foram sendo negociados, elaborados ou mesmo descartados ao longo de sua duração, totalizando em 2001, doze Subprogramas ou Projetos, dentre os quais três ainda estavam sendo negociados. Assim, o PP-G7 constitui-se numa extensa estrutura tecnoburocrática que, apesar de vários esforços, não logrou articular-se nem internamente e nem às políticas públicas não contempladas no PP-G7, cuja articulação era fundamental importância na modificação do quadro geral do desenvolvimento e da conservação ambiental local e regional (ver Figuras 1, abaixo, e 2, em Anexo)

5 De 1995 a 2001. Entre 2002 e 2003 houve renegociação para a Segunda Fase que terá início em 2004.

150 Ana Carolina Cambeses Pareschi Figura 01 Organização Temática do PP-G7

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 151 Este processo revelou a complexificação do campo ambienta- lista na medida em que “novos”, ou melhor, “velhos” atores nele adentraram, tais como as agências e os bancos bi e multilaterais de desenvolvimento. Os tradicionais agentes do “desenvolvimento” agora estariam também no financiamento não só da conservação ambiental como também no suporte às ONG’s e movimentos sociais, seus tradicionais opositores. Digo “campo” no sentido dado por Bourdieu (1983). Isto é, um espaço estruturado de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços. O campo se constitui de lutas entre o novo que está entrando e tenta forçar seu direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência. Neste caso, poderíamos dizer que tanto os agentes do desenvolvimento procuram adentrar ao campo do ambientalismo como o inverso, utilizando-se de seus respectivos capitais simbólicos seja para modificar a relação de forças no interior do campo seja para modificar os seus próprios campos de origem. Para que um campo se defina e funcione “é preciso que haja objetos de disputa e pessoas prontas a disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputa etc.” (BOURDIEU, 1983: 89). Disputa-se não só o significado das noções de desenvolvimento e de sustentabilidade, ou seja, regimes de verdade diversos (FOUCAULT, 1988), mas também formas e metodologias de implementação de projetos consideradas adequadas para se alcançar os objetivos genéricos do “desenvolvimento sustentável”. É neste sentido que nos utilizamos do conceito de projetismo como um modus operandi predominante neste contexto e que será tratado mais adiante. Para Foucault, um regime de verdade seria um conjunto de regras e enunciados que distingue o verdadeiro do falso, se atribuindo ao verdadeiro efeitos de poder que são também efeitos de verdade (1988: 13). Se, para o autor, a cada sociedade corresponde um “regime de verdade”, podemos também dizer, seguindo a sua análise, que a cada grupo político-ideológico corresponderia um regime de verdade que procura se tornar hegemônico pelo debate político e pelo confronto social informado por ideologias distintas. Nas sociedades ocidentais uma das características da economia política da “verdade” é que esta é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem. Outra característica é que ela é produzida e transmitida sob controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidades, Exército, meios de comunicação, escritura) (idem: 13). O ambienta-

152 Ana Carolina Cambeses Pareschi lismo disseminou-se globalmente a partir da década de 1970 como uma ideologia-utopia de caráter totalizante, como mostramos em outro trabalho (PARESCHI, 1997), cujo caráter inicial procurava romper de forma radical e contestatória com o regime de verdade estabelecido, plasmado, especialmente no discurso e nas instituições tachadas de “desenvolvimentistas”.6 Neste confronto, ambos os lados abriram brechas para negociações. Fazemos aqui uma pequena digressão no sentido de aprofundar as idéias de desenvolvimento sustentável e de pequenos projetos para depois voltar ao PD/A e ao PP-G7 como espaços de disputas e seus modus operandi. Inicialmente fatalista, apocalíptica e radical – balizada internamente entre as tendências conservacionistas e preservacionistas e externamente na luta política contra os governos e as empresas a partir de denúncias e protestos – a ideologia-utopia ambientalista e os seus movimentos sociais foram ganhando contornos menos radicais para poder dialogar com os agentes do desenvolvimento e com a sociedade em geral, propondo soluções que fossem factíveis e negociadas no campo político. Foi neste processo que o ambientalismo brasileiro, por exemplo, foi ganhando novos aliados representados por tendências mais ligadas aos movimentos populares e sociais de um modo geral. No plano internacional, esta “ame- nização” do ambientalismo manifestou-se pela produção de conceitos que refletiram a diversidade de interesses em torno da incorporação das considerações ambientais no processo de desenvolvimento. Dentre eles o mais eficaz foi o de “desenvolvimento sustentável”, que embora tenha surgido já na década de 1970, ganhou notoriedade internacional apenas na de 90, especialmente em função da ECO-92. As agências de desenvolvimento, e os economistas, por sua vez, foram obrigados a reformular seus discursos para adaptá-lo a um novo regime de verdade que procurava se impor. Esta reformulação deu-se rapidamente já que freqüentemente ouve-se falar em

6 Utilizamos a noção de ideologia-utopia com base em duas concepções teóricas distintas mas não excludentes entre si. Quanto à idéia de utopia e mesmo de ideologia, Mannheim (1968) foi nossa inspiração. Para ele, tanto ideologia quanto utopia são idéias transcendentes em relação à ordem existente. Porém, as idéias utópicas tenderiam a abalar, mesmo que parcialmente, a realidade, se se transformarem em conduta. Já as ideologias jamais conseguiriam de fato a realização de seus conteúdos pretendidos porque quando incorporados à prática seus significados são, na maior parte dos casos, deformados. Mannheim classificou três tipos históricos de mentalidade utópica: a quiliástica (ou milenarista), a liberal-humanitária e a socialista-comunista. Assim, em geral aquilo que chamamos de ideologia é para Mannheim, utopia, tendo assim um significado oposto àquele que comumente se utiliza: o de não realização de ideais na prática. Dumont (1982 e 1993) nos forneceu um outro significado para o termo ideologia: um conjunto de idéias e valores próprios de uma sociedade (ou conjunto de sociedades), ou ainda, um conjunto social de representações, que têm caráter englobante. Isto é, o ambientalismo, e posteriormente a idéia de desenvolvimento sustentável, são variantes de uma ideologia ocidental englobante – a do Individualismo moderno – que incorpora vários aspectos das mentalidades utópicas históricas colocadas por Mannheim, podendo ser classificada como mais um tipo de mentalidade utópica. Devido a esta inter-relação dos dois conceitos e também à diversidade no interior do ambientalismo, é mais coerente utilizar os dois termos – ideologia e utopia – para se referir a este movimento social e ideário (Sobre o uso deste termo ‘ideologia-utopia’ para se referir ao conceito de desenvolvimento sustentável conferir também Ribeiro, 1991).

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 153 “desenvolvimento sustentável” sem que a “sustentabilidade” esteja referida à conservação ambiental proposta pelo ambientalismo. Já as práticas têm sido muito pouco diversas daquelas de outrora. Mas o que vem a ser, afinal, “desenvolvimento sustentável”? Para responder a esta pergunta, é necessário responder a outras, como por exemplo, “sustentar o quê?”, “para quem?” e “em que contexto?” O conceito de desenvolvimento vem sendo adjetivado sucessivas vezes ao longo destes últimos 50 anos devido à sua “dinâmica adaptativa” (ESCOBAR, 1995: 42) permitindo assim, conforme a disposição dos processos econômicos, socioculturais e políticos e seus elementos, a incorporação de novos objetos, modos de operação e a modificação de numerosas variáveis. Contudo, na visão de Escobar com a qual concordamos, não tem havido modificação na forma como estes elementos se inter-relacionam, ou seja, no princípio organizador desta estrutura que se reproduz sistematicamente a partir de instituições, ações e discursos consertados. O excelente estudo de Gilbert Rist (1997) sobre a história do desenvolvimento corrobora tal visão e, para ambos, o desenvolvimento sustentável levado a cabo pelos agentes do desenvolvimento não é outro senão mais uma versão da dinâmica adaptativa do conceito de desenvolvimento, onde a “sustentabilidade” em nada tem a ver com as preocupações ecológicas ou sociais. Se, por um lado, concordamos com as interpretações de Escobar e de Rist, por outro, acreditamos que estas não apresentam “toda a verdade”, ou melhor, a complexidade semântica e política deste conceito que, por isso mesmo, serve tanto aos agentes tradicionais do desenvolvimento não sustentável, no sentido ecológico, quanto aos agentes interessados na mudança do modelo geral, problematiza o campo de relações em que é acionado bem como os seus agentes. Seguindo uma visão mais à la Sahlins (1990, 1997a; 1997b), a postura antropológica deve levar em consideração que a cultura não é um “objeto” em vias de extinção e que por isso, mesmo a noção de desenvolvimento, associada que está à expansão do capitalismo sobre os mais diversos povos do mundo, não implicou numa homogeneidade de interpretações e processos sociais. Como aponta Sahlins em Ilhas de História (1990), a história é ordenada culturalmente de diversas formas nas diferentes sociedades assim como a cultura é resignificada pela história no curso dos acontecimentos. A síntese disto desdobraria-se em ações criativas dos sujeitos históricos. Assim, para os nativos da neomelanésia, por exemplo, o termo “desenvolvimento”

154 Ana Carolina Cambeses Pareschi refere-se a um processo (...) no qual os impulsos comerciais suscitados por um capitalismo evasivo são revertidos para o fortalecimento das noções indígenas da boa vida. Assim, bens europeus não tornam simplesmente as pessoas mais semelhantes a nós, e sim mais semelhantes a elas próprias (SAHLINS, 1997a: 60).

Da mesma forma, a idéia de um desenvolvimento sustentável não pode ser resumida exclusivamente à visão e à posição que alguns agentes deste “campo polinucleado” (BARROS, 1996) têm. Neste sentido, abre-se para a Antropologia a interpretação dos diferentes significados do termo referidos a contextos etnográficos e atores específicos. O PP-G7, o PD/A e o Frutos do Cerrado apresentaram-se assim como um locus privilegiado para tal interpretação. A noção de sustentabilidade veio sendo construída desde os anos 20 do século XX pelas noções alternativas de agricultura (biodinâmica, orgânica, biológica, natural) que a partir dos anos 1960 ganharam maior publicidade com a divulgação de estudos e livros que mostravam os impactos da “agricultura moderna”, apontando assim para o caráter “não- sustentável” deste modelo (EHLERS, 1996). Contribuiu para esta visão crítica a publicação do livro de E. F. Schumacher, Small is Beatiful, de 1973, onde o autor discorre sobre a “insustentabilidade” do modelo produtivo da sociedade industrial baseado que está em pressupostos destrutivos de sua própria base de “recursos” (não só materiais, mas humanos – intelectuais, morais, éticos, criativos, belos etc.) e sugere uma série de reflexões e sugestões que possibilitem a transformação deste modelo de sociedade.7 Entre estas reflexões, a escala de intervenção das sociedades ocidentais sobre o meio ambiente natural é questionada por pautar-se por um “gigantismo”. Schumacher propõe, então, que um modelo de sustentabilidade deve ser aquele da “pequena escala”. Estava então colocado um dos pressupostos fundamentais dos pequenos projetos de desenvolvimento, ou “projetos de desenvolvimento comunitário”, que posteriormente se transformarão nos “pequenos projetos de desenvol- vimento sustentável” (PPDS’s). O paradigma de desenvolvimento sustentável procurou abranger todas as outras noções de “desenvolvimento alternativo” que se elaboravam entre o final das décadas de 1960 e a década de 70. Formulou-se um conhecido slogan pelo qual a sustentabilidade das ações seriam aquelas marcadas pelo equilíbrio ecológico e pela justiça social. Este desenvolvimento deveria levar em conta não

7 É interessante lembrar o subtítulo do livro: “Um estudo de economia que leva em conta as pessoas”.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 155 somente aspectos econômicos, mas as múltiplas dimensões da vida social, incluindo-se a qualidade ambiental. Apesar da variedade de definições de desenvolvimento sustentável a maior parte delas se refere à manutenção dos estoques de recursos (renováveis) e da qualidade ambiental para a satisfação das necessidades das gerações presentes e futuras. Obviamente, o conceito de “necessidade” não tem o mesmo significado para todos. Esta ideologia-utopia inaugura, assim, uma solidariedade diacrônica com as gerações futuras pautada no uso “racional” de recursos. Resumidamente, são valorizados os princípios da diversidade, da conservação ambiental, da pequena escala, da tecnologia racional e eficiente, da democracia e da educação, todos interligados entre si. Para os nossos propósitos, cabe ressaltar os princípios da diversidade, da democracia e da educação, visto que são primordiais para flagrar a complexidade das relações e processos que se estabelecem no planejamento e implementação dos PPDS’s. O princípio da diversidade inclui a valorização da sociodiversidade, isto é, das especificidades culturais, sociais e históricas; da biodiversi- dade; e dos múltiplos caminhos possíveis para o desenvolvimento. Este princípio está contido na noção de “desenvolvimento endógeno” e, portan- to, contrapõe-se ao princípio de uniformidade. O princípio da democracia fundamenta a defesa de direitos (humanos e civis), a esfera da cidadania que valoriza a participação igualitária e a autodeterminação dos povos e setores sociais excluídos, isto é, procura criar, fortalecer e/ou consolidar a sua capacidade de agência. Neste caso, as ONG’s teriam um papel de assessoria, apoio, coordenação e/ou estímulo aos grupos de reflexão e às ações para a participação destas populações, valorizando o saber popular e/ou étnico. Para tanto educação torna-se um fator central. O princípio da educação sempre foi importante nas ideologias como forma de conscientizar e libertar as pessoas de situações sociais onde elas ocupariam o lugar de “oprimidas”, “dominadas” ou “subalternas” (de classe, de gênero, de raça ou étnica). A emancipação ocorreria fundamentalmente a partir da possibilidade das pessoas, grupos ou sociedades terem acesso à informação, à capacitação, ao aprendizado, enfim, a uma “consciência” que neste momento não é mais “de classe” (ou exclusivamente de classe), mas é também “ambiental”. Este acesso abriria as possibilidades para se ensinar novos valores ou reafirmar os tradicionais, para uma reflexão crítica, criativa e libertária que consubstanciaria uma ação política no sentido da transformação

156 Ana Carolina Cambeses Pareschi social. Assim, o foco da ideologia dos pequenos projetos é a “comunidade”, o “povo”, as “bases”, tomados como sujeitos da sua própria história e não mais como vítimas do desenvolvimento econômico concentrador de renda, procurando assim inverter prioridades e o sentido das tomadas de decisão. Finalmente, estamos chamando de “pequenos projetos de desenvolvimento sustentável” os projetos que seguem os princípios da diversidade, da conservação ambiental, da pequena escala, da tecnologia racional e eficiente, da democracia e da educação, objetivando atividades produtivas que gerem renda com um mínimo de degradação ambiental, o fortalecimento e/ou consolidação da capacidade de agência de grupos e/ou populações subordinados.8 Estão geralmente voltados para populações de baixa renda ou para grupos étnicos e são pequenos tanto pelos recursos envolvidos, quanto pela circunscrição de seus objetivos e pela limitação de seu alcance. O seu “valor” fundamental seria a “experimentação” de novas abordagens metodológicas, organizacionais e produtivas, com sentido de aprendizagem e acumulação de conhecimento para a transformação social. Chamamos atenção, porém, para o fato de que esta “definição” é antes de tudo uma caracterização idealizada, que faz parte do discurso dos atores sociais do campo do ambientalismo e que não significa necessariamente a realização destes ideais e princípios nas práticas correspondentes. Tais atores situam-se predominantemente no setor não-governamental, mas também nos campos científicos e em um reduzido contingente da tecnoburocracia governamental. São estes os portadores fundamentais deste novo regime de verdade que procura se estabelecer. Quanto a análise da interpretação destas verdades ao nível local desenvolveremos no item subseqüente. Voltemos aos atores e aos procedimentos necessários colocados pelo embate destes regimes de verdade. Enquanto no cenário geral das iniciativas desenvolvimentistas os atores sociais principais são as agências bilaterais e multilaterais de desenvolvimento e os governos, no cenário do ambientalismo e dos pequenos projetos as organizações não-governamentais – e os cientistas sociais, educadores, religiosos, agrônomos, assistentes sociais, entre outros – se destacam como atores sociais privilegiados. A ideologia e as práticas dos atuais pequenos projetos de desenvolvimento sustentável estão vinculadas às relações esta-

8 Inspiro-me aqui na definição de “microprojetos de desenvolvimento social” de Martinez Nogueira (1991a: 6).

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 157 belecidas entre estes grupos de atores no cenário político nacional e internacional, também se conformando num campo. A eficácia das estratégias elaboradas pelos diferentes participantes deste “jogo” depende, entre outras coisas, do capital simbólico e da capacidade de articulação política de seus integrantes de modo que estes sejam adequados aos níveis em que tais disputas se dão. Assim, apenas algumas organizações e pessoas se destacam não só na participação do processo de negociação e implementação do PP-G7, do PD/A e do Projeto Frutos do Cerrado, como também o jogo, precisa, para funcionar, de atores que circulem não só nos seus níveis específicos mas em outros, situados em níveis diferentes. A estes denominei “intermediários”, ou brokers, tal como Wolf (1974) e Adams (1974). São pessoas ou instituições que fazem a mediação entre níveis (desde o local até o global ou inversamente, mas não necessariamente em todos os níveis), articulando interesses e regimes de verdade de um nível em outro. Podem ser líderes sindicais, representantes do Banco Mundial, cientistas, agricultores, índios, funcionários públicos, técnicos, integrantes de ONG’s ou as próprias instituições ou coletivos que representam. Este conjunto de noções articuladas formariam o que estou chamando de um “espaço de disputas”. O ambientalismo é, antes de tudo um campo político e por isso, ao estudá-lo, torna-se imprescindível situar este campo, bem como seus atores e estratégias em questão. O PD/A foi discutido não só pelo GTA, mas também pelo Fórum Brasileiro de ONG’s e Movimentos Sociais, surgido dois anos antes da ECO-92. Estabeleceu-se um processo tenso de estranhamento e aproximação mútuos entre ONG’s oriundas de temáticas e abordagens diversas bem como destas com o Estado brasileiro. Este processo engendrou duas tendências em sentidos opostos: uma fragmentadora e outra integradora. Por um lado, ao mesmo tempo em que ocorria a cristalização de identidades sociais relacionadas àquelas ONG’s que historicamente definiam-se como de “assessoria e apoio aos movimentos sociais” ou simplesmente “sociais”, ocorria à aglutinação entre aquelas que se definiam como “ecológicas”, resultando, assim num campo polarizado entre “sociais” e “eco- lógicas”. As diferenças mútuas percebidas foram formuladas inclusive em termos de exclusividade ou legitimidade de utilização do termo “ONG” por parte das entidades de cunho “social”, categoria esta que também se construía, além do questionamento, por parte destas, da idéia de “desenvolvimento sustentável”. Assim, marcavam- se posições e fronteiras em um novo campo que se configurava: o

158 Ana Carolina Cambeses Pareschi sócio-ambiental. Por outro lado, a necessidade de estabelecimento de diálogo entre estes pólos se colocava na medida em que se discutia modelos alternativos de desenvolvimento nos quais a conservação ambiental fosse parte integrante dos objetivos sociais, postulando-se idéias como “qualidade de vida”. Assim, estes pólos passaram lentamente a se mesclar mutuamente, criando uma nova leva de ONG’s definidas ou redefinidas como “sócio-ambientais”. A integração, não necessariamente harmônica, do campo das ONG’s e dos movimentos sociais se colocava como estratégica devido aos embates e negociações com o Estado e as agências de desenvolvimento na elaboração de um amplo programa de desenvolvimento sustentável, como era o caso do PP-G7, e mais especificamente do PD/A. Estas divisões e articulações entre as ONG’s estiveram presentes também na implementação do PD/A. O Subprograma estava dividido em três componentes: 1) um fundo de financiamento de pequenos projetos para duas grandes regiões (Amazônia Legal e Mata Atlântica); 2) o fortalecimento institucional das duas redes de ONG’s representantes da sociedade civil no PD/A, uma de cada grande região (o Grupo de Trabalho Amazônico – GTA e a Rede da Mata Atlântica – RMA); e 3) a disseminação das experiências. Ao primeiro componente foram destinados cerca de 90% dos US$ 30 milhões do PD/A, já que o principal. As relações das ONG’s entre si e com a tecnoburocracia do PP-G7 e do PD/A mostraram-se nos componentes “um” e “dois”. A seleção de projetos a serem financiados passava, após análises técnicas, pela aprovação ou rejeição de uma Comissão Executiva composta por onze pessoas, das quais três eram representantes das ONG’s da Amazônia Legal e dois da Mata Atlântica. O restante dos membros eram das diversas instâncias do governo relacionadas ao PP- G7, sendo um deles representante do Banco do Brasil, o agente financeiro do PD/A nos locais dos projetos. Na medida em que o desenvolvimento do movimento ambientalista deu-se principalmente nas regiões mais urbanizadas e densas do país, especialmente nas regiões sudeste e sul, as ONG’s da região da Mata Atlântica tendem a ser mais antigas, mais articuladas e predominantemente ligadas ao conservacionismo. Portanto, as ONG’s da Mata Atlântica na Comissão Executiva apresentaram uma abordagem do desenvolvimento e critérios de seleção que passavam especialmente por considerações ecológicas, técnicas e científicas. Já as ONG’s da Amazônia Legal eram principalmente associações de base, movimentos sociais ou ONG’s ainda

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 159 muito novas, com pouca articulação regional ou nacional, sendo ligadas primordialmente ao campo “social” ou ainda “produtivo”, cuja discussão do desenvolvimento dava-se a partir da ótica da desigualdade e da exclusão social. Tendiam assim a privilegiar mais o conhecimento que tinham das instituições que pleiteavam e os seus respectivos contextos do que os aspectos estritamente técnicos dos projetos. Isso não significa dizer que as ONG’s da Mata Atlântica seriam isentas em seus respectivos julgamentos, já que também a ciência e a técnica são em certa medida posturas ideológicas, e nem que as organizações da Amazônia Legal fossem “personalistas”, incapazes de julgamentos por critérios ditos “técnicos”. A capacidade de articulação, o domínio de um regime de verdade e o capital simbólico acumulado pelas organizações que submetiam suas propostas ao PD/A permitiram que determinados projetos fossem aprovados em detrimento de outros. A aprovação dos doze projetos Frutos do Cerrado significou uma combinação bem-sucedida destes aspectos mais do que dos critérios “técnicos”, como os de “viabilidade” e “replicabilidade” econômica, social, política e ambiental. Entretanto, durante o período de execução, as relações internas à Rede Frutos do Cerrado bem como com a Secretaria Técnica do PD/A foram se modificando não apenas em função de interpretações conflitantes da “viabilidade” do projeto e das ações necessárias para um resultado favorável aos proponentes do mesmo, mas também pelo relativo fracasso no âmbito da “sustentabilidade econômica”. As ações do desenvolvimento traduzem-se em termos de “projetos”. Um projeto, em termos gerais, refere-se a um planejamento de ações articuladas em função de algum objetivo. Em termos mais restritos, seria a materialização via escrita ou gráfica deste planejamento. Tanto as ações de governos, quanto de empresas, agências de desenvolvimento ou organizações não-governamentais materializam-se via elaboração e execução de projetos. Os projetos de desenvolvimento sustentável visam especialmente a modificação de uma situação desfavorável em termos sociais, econômicos, políticos e ambientais em direção ao equacionamento destes problemas. Começam aqui os desencontros entre, por um lado, a racionalidade e a limitação dos pequenos projetos e, por outro, do cumprimento dos princípios do desenvolvimento sustentável, necessariamente inter- relacionados, complexos e de longo prazo. As tensões entre “resultados” e “processos”. O termo projetismo já foi utilizado por Fayerweather (1959 apud PITT, 1976: 11) para designar uma situação em que o plano é a única

160 Ana Carolina Cambeses Pareschi sagrada e inviolável realidade. Os projetos são construídos sob uma ideologia de sucesso inevitável, mesmo antes de qualquer implementação. As agências de desenvolvimento forneceriam o exemplo deste projetismo devido a sua tradicional inflexibilidade burocrática. Nosso uso do termo procura mostrar o que estaria implícito neste “planejamento rígido” e quais as suas conseqüências sobre propostas de desenvolvimento sustentável. Isto é, como as exigências em termos de ordenação do tempo e das atividades, do gerenciamento dos recursos, das prestações de contas, dos relatórios de atividades, da logística, das avaliações e monitoramentos típicos dos projetos se relacionou com o fluxo da vida cotidiana de camponeses, índios e ONG’s, e como tais procedimentos foram compreendidos.9 Verificamos na pesquisa que a participação do Banco Mundial e de outras agências de cooperação internacional no PP-G7 e no PD/A, assim como a existência de um certo consenso entre os seus gestores a respeito da necessidade de planejamento que envolve a realização de projetos em geral, contribuíram para que os subprojetos financiados pelo PD/A sofressem uma pressão com relação à formulação e execução de projetos como um condicionante fundamental do “sucesso” ou do “fracasso” destas ações (expressos no potencial “multiplicador” e “demonstrativo”). O foco de avaliação permaneceu nos projetos em si e não em seu contexto mais amplo, seja o modo de vida dos grupos sociais ou entidades que o apresentaram, seja o das estruturas que condicionam e moldam de alguma forma a situação em que estes grupos e entidades se encontram. A ênfase na “mudança” implícita na noção de “projeto” – especialmente aqueles projetos que visam a transformação da sociedade a longo prazo – contrasta com as limitações operacionais e estruturais (inclusive das relações de poder) destes mesmos projetos, trazendo à luz sua natureza paradoxal. Em suma, as organizações não-governamentais, que vivem de projetos geralmente financiados por outras ONG’s, também são obrigadas a incorrer no projetismo que dita uma temporalidade e uma organização de atividades particular, delimitando o campo de resultados possíveis das ações.

9 Queremos aqui esclarecer que o projetismo – as regras para a elaboração dos projetos financiados e de suas prestações de contas – não foi necessariamente encarado como algo negativo por parte dos proponentes dos pequenos projetos. Ao contrário, muitos declararam que embora as exigências do PD/A fossem em um primeiro momento consideradas “rígidas” porque a maioria dos camponeses e dos índios não tinha grau de instrução elevado e experiência neste tipo de “crédito”, elas eram necessárias porque moralmente certas. As regras foram sendo “aprendidas” e compreendidas ao longo da execução dos projetos, não sem conflitos internos e externos. Da mesma forma, o PD/A foi considerado pelas ONG’s, especialmente as mais experientes e articuladas, um modelo de fundo muito mais acessível do que o Fundo Nacional de Meio Ambiente, cujas regras invariavelmente dificultavam com que projetos de ONG’s fossem aprovados. Assim, o projetismo do PD/A teria sido mais flexível do que aquele comumente encontrado nos projetos financiados pelas agências de desenvolvimento bi e multilaterais.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 161 3. TENSÕES NOS PEQUENOS PROJETOS: ENTRE O PROJETISMO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Discorreremos aqui sobre alguns pontos relevantes da implementação dos pequenos projetos Frutos do Cerrado para discutir as tensões inerentes aos mesmos: a gestão do projeto e a organização do trabalho; organização social-política-institucional das comunidades e suas entidades; a assessoria técnica e as dificuldades de um projeto com objetivos econômicos. Dissemos na Introdução que o Projeto Frutos do Cerrado era um conjunto de doze PPDS’s que conformaram uma Rede – a Rede Frutos do Cerrado – quatorze entidades diferentes. Pois bem. Neste item os exemplos etnográficos se referem a três destes doze projetos: o da Associação Agroextrativista dos Pequenos Produtores de Carolina (AAPPC), no Maranhão, o das duas associações de pequenos agricultores de Santa Maria do Tocantins (São José e Soninho), no Tocantins e o projeto de Monitoramento e Acompanhamento proposto pelas duas ONG’s assessoras – Centru e CTI.10 O projeto da AAPPC foi, em certa medida, considerado mal-sucedido pelo PD/A, pelos próprios proponentes e pelas ONG’s assessoras. O de Santa Maria do Tocantins, ao contrário, foi considerado como um dos mais bem-sucedidos dos projetos da Rede Frutos do Cerrado. O projeto das ONG’s assessoras era de fundamental importância para a articulação da Rede como um todo e expressou as dificuldades freqüentes que a ONG’s enfrentam no campo dos PPDS’s. Estes foram três casos exemplares de situações que têm um grau bastante amplo de generalização, seja para os Projetos Frutos do Cerrado, seja para os projetos parecidos financiados pelo PD/A, ou ainda, para os PPDS’s propostos e executados por ONG’s e entidades de base.

4. A GESTÃO DO PROJETO E A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

Os pequenos projetos de desenvolvimento sustentável são, via de regra, a tradução de objetivos qualitativos, geralmente de longo prazo, em uma quantia de recursos, atividades e tempo sempre limitados. No caso do PD/A, as entidades formulavam suas propostas em um formulário ao qual um Manual de Operações acompanhava

10 Os outros municípios envolvidos eram Imperatriz, Montes Altos, Estreito, Loreto, São Raimundo das Mangabeiras, Amarante do Maranhão e João Lisboa, todos no Maranhão. No município de Carolina havia também o projeto dos índios Timbira, executado pela Associação Vyty-Cati das Comunidades Indígenas Timbira do Maranhão e Tocantins.

162 Ana Carolina Cambeses Pareschi explicando como deveria ser preenchido. Eram financiados projetos de um a três anos de duração, de valores que podiam ir de US$ 20 mil a US$ 210 mil, com contrapartidas mínimas variáveis das entidades proponentes de 10% a 30% do valor pedido ao PD/A. Os projetos da Rede Frutos do Cerrado foram apresentados todos juntos, exceção ao projeto dos índios Timbira que foi encaminhado um ano depois dos outros.11 Havia um projeto para cada entidade, exceto o de Santa Maria do Tocantins que agregava duas associações de pequenos produtores e o projeto de Acompanhamento e Monitoramento das ONG’s assessoras – CTI e Centru. Totalizaram cerca de US$ 1,2 milhão, com valores individuais médios de US$ 80 mil pedidos ao PD/A e contrapartidas médias de cerca de US$ 20 mil (ver Tabela 2 no Anexo). A noção de “contrapartida” do PD/A, oriunda do modelo de projeto de desenvolvimento do Banco Mundial que exige contrapartidas governamentais em seus empréstimos como meio de responsabilização do tomador, tem implícita a necessidade de uma troca: recursos vultosos oriundos dos países mais ricos do mundo, por um lado, trabalho e recursos (ou bens) em uma porcentagem menor, por outro. O Projeto Frutos do Cerrado estabeleceu na maior parte dos casos uma contrapartida traduzida na mão-de-obra dos camponeses e índios nos “tratos culturais” dos plantios de frutíferas e outros que seriam feitos pelo projeto.12 Entretanto, esta “contraprestação” foi bastante questionada pelos integrantes do Frutos do Cerrado, especialmente os camponeses. Os termos desta troca são vistos como desiguais na medida que a doação de trabalho, a única contrapartida aparentemente viável às populações camponesas e às indígenas, representa na verdade uma sobrecarga extenuante de atividade. Os agentes sociais que estariam “trocando” estão situados em lugares bastante díspares em termos de poder e distantes estruturalmente das relações sociais às quais estão familiarizados. Isto cria para os camponeses uma certa incom- preensão sobre o porquê deles, que se consideram “fracos” (sem capital econômico, simbólico – incluindo aqui o educacional – ou político), terem que dar algo que não seja um voto, que não custa nada, para agentes poderosos. O trabalho, para eles, é um recurso altamente precioso. Ao que parece, os projetos não são encarados como passíveis de relações de reciprocidade, tais como as relações políticas, de parentesco, de vizinhança e compadrio são. Para os

11 Foram aprovados em 1995 e começaram de fato em 1996. 12 Os chamados “tratos culturais” são os cuidados necessários ao bom desenvolvimento das plantas, tais como podas, adubação, cuidado com pragas, entre outros.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 163 códigos sociais vigentes, são os “projetos” que devem dar alguma coisa para eles e não o contrário. A única forma de retribuição seria a prestação de contas aos financiadores e a execução do projeto, mesmo que não integralmente em todas suas formalidades. Os projetos devem apresentar coerência entre os seus objetivos, atividades e meios arrolados para atingir os resultados esperados. Assim, procura-se planejar e, portanto, prever, a organização lógica de atividades e seus respectivos gastos. No PD/A, exigia-se a apresentação de um cronograma de desembolsos semestral de todo o período do projeto, organizados entre recursos do PD/A e recursos de contrapartida. Os desembolsos eram efetuados quando constatada a regularidade e a correção nas prestações de contas e dos relatórios de atividades enviados pelos executores. Inicialmente, as prestações de contas eram mensais e os relatórios de atividades semestrais. Entretanto, o numeroso e freqüente atraso de entidades executoras na prestação de contas mensal obrigou ao PD/A estender este prazo para trimestral. Praticamente todas as entidades do Projeto Frutos do Cerrado sofreram bloqueio de recursos pelo PD/A em função de atrasos e irregularidades nas prestações de conta. O caso da AAPPC ilustra bem este drama. Todos os projetos Frutos do Cerrado contavam com um Fundo Fixo, isto é, um recurso utilizado como capital de giro para compra das frutas coletadas, geralmente em área de terceiros, e enviadas a uma unidade de processamento em Carolina (MA). A idéia era que este capital fosse sendo reposto na medida em que a “fábrica” lograsse na venda das polpas de fruta congeladas. Isso não aconteceu, pois a fábrica e a comercialização de polpas enfrentaram sucessivos problemas. Porém, os sócios da AAPPC, entusiasmados com um capital nunca antes obtido, aplicaram-no em itens não previstos no projeto: na compra de farinha seca de sócios para futuramente revender. Quando obtivessem o dinheiro da venda, reporiam ao fundo. Além disso, tal como todos os outros Projeto Frutos do Cerrado, atrasaram a entrega dos relatórios mensais de prestações de contas. Isto estava relacionado à falta de condições dos associados de elaborar relatórios sem a ajuda da assessoria no tempo previsto pelo PD/A. Estes relatórios exigiam muito tempo dos coordenadores da AAPPC que, com pouco estudo e sem experiência de projetos anteriores, tinham dificuldades de compreensão e confecção dos mesmos. Os bloqueios iniciais se estenderam por cinco meses (de abril a agosto de 1997), depois houve uma normalização do fluxo de recursos por três meses para novamente serem bloqueados entre dezembro de 1997 e abril de 1998. Estes bloqueios

164 Ana Carolina Cambeses Pareschi desorganizaram completamente as atividades do projeto e fizeram com que um dos viveiristas deixasse a ocupação devido ao atraso excessivo em seu salário, pago pelo projeto. Além disso, os coordenadores também contavam com o salário para poder pagar alguém para trabalhar em suas roças ou comprar os gêneros alimentícios necessários enquanto estavam ocupados com o projeto. Estes relatórios apontam para diversos tópicos importantes nas nossas discussões, desde o rigor tecnoburocrático das prestações de contas ao PD/A (mensais e semestrais) e as dificuldades dos agricultores em cumprir e compreender os prazos exigidos, até os problemas internos de organização da associação, as dificuldades de obtenção de sucesso do empreendimento da fábrica e a falta de assessoria constante.13 Todas estas questões remetem às formas de conceber e de organizar o trabalho vinculadas a expectativas, visões de mundo e temporalidades diferenciadas entre o planejamento tecnoburocrático do desen- volvimento sustentável, os agricultores e o ritmo próprio da fábrica, administrada pela assessoria indigenista.14 Enquanto as regras do PD/A supõem uma racionalização e um planejamento ótimo de atividades, em que tudo deve dar certo ou, caso contrário, ser justificado, os agricultores estão inseridos em um contexto em que o projeto é apenas um componente de suas vidas, cujas atividades serão alocadas conforme suas conveniências, ânimos e relações entre si. O tempo dos camponeses é muito mais ligado aos ciclos naturais, ao trabalho de roça e à ida à cidade em casos de necessidade (religiosa, escolar, de mercado, partidária etc.) do que ao tempo marcado pelo relógio, pelo horário de expediente de uma repartição pública, pelo dia do mês ou da semana. Também por isso descuidaram várias vezes dos prazos estipulados pelo PD/A para entrega de relatórios. Estão implícitos nestes projetos, portanto, não somente o pressuposto de que os proponentes são alfabetizados, ou utilizam-se de alguma assessoria que seja, mas também, para vê-los aprovados por entidades financiadoras, demonstrem um domínio dos “códigos de acesso”, isto é, saber como pedir, o quê pedir e quanto pedir. Dentre os

13 Quanto ao problema da falta de assessoria constante entraremos em mais detalhes a seguir. 14 Utilizamos o conceito de tecnoburocracia fundamentada em Gouldner (1976) e Herzfeld (1992) para os quais a burocracia pensada por Weber (1991) como um tipo ideal pressupõe uma “racionalidade plena” que não se verifica na prática social. Ao contrário, diz Herzfeld, a burocracia como uma convenção social, está sujeita às interpretações e manipulações dos burocratas. Mais ainda, quando os “burocratas” são substituídos ou subordinados aos “tecnoburocratas” associa-se os ideais da racionalidade (com respeito a fins, a valores ou aos dois, nos termos de Weber, 1991), da hierarquia, da impessoalidade e da meritocracia (profissional com o saber adequado para a função exercida), com os valores e saber técnicos e científicos necessários para qualificar esta suposta “impessoalidade racionalizada”. Isto é, o saber técnico só se legitima em função de valores, idéias, objetivos e interesses daqueles de quem se pretende obter legitimidade (GOULDNER, 1976: 270).

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 165 itens que mais custam caro nos orçamentos dos projetos estão a manutenção da instituição proponente e, dentro dela, seu quadro de pessoal, e a aquisição de bens duráveis. O PD/A seguiu, sob certos aspectos, uma tendência dos financiamentos não-governamentais do Norte às entidades do Sul: a de não enxergar com bons olhos gastos excessivos com pessoal e infra-estrutura em detrimento dos objetivos do projeto. Assim, neste contexto, é comum que o orçamento do projeto seja pressionado para baixo nestes itens. Com isso, não só o quadro de pessoal das entidades ganha pouco como também é bastante limitado em termos numéricos, obrigando os poucos “técnicos” ou coorde- nadores a se desdobrarem em uma multiplicidade de atividades. Em última instância, a sobreposição de tarefas implica em prejuízos gerais não só ao cumprimento de atividades programas, mas principalmente à qualidade e a eficácia das mesmas. Embora os orçamentos do Projeto Frutos do Cerrado aparentemente parecessem altos, cerca de 72,8% deles foi compro- metido com a compra de um veículo Toyota, para o transporte de frutas, mudas e pessoas, além do material permanente para os trabalhos de coleta, armazenamento, plantio etc. Sobrando assim poucos recursos para outros itens, entre os quais, o pagamento do trabalho dos coordenadores locais e dos viveiristas de cada projeto, resumindo-se a um salário mínimo. Foi comum nos Projeto Frutos do Cerrado a divisão deste salário por duas pessoas na medida em que se considerou haver muito trabalho para uma só pessoa. A relação que os camponeses estabeleceram com as pessoas que recebiam este salário demonstrou como o projeto era encarado no contexto local. Tanto em Carolina quanto em Santa Maria houve problemas com relação à gestão dos recursos do projeto, especialmente o veículo, cristalizando conflitos internos. Alguns custos operacionais da utilização do veículo não foram totalmente orçados nos projetos, como por exemplo, o emplacamento dos mesmos. O óleo diesel programado era limitado, obrigando aos camponeses e índios estabelecer critérios para a sua utilização. É importante levar em conta as distâncias que alguns sócios estão da cidade de Carolina ou de Santa Maria e as dificuldades de acesso às mesmas, somadas ao dispêndio de tempo e também recursos para tal locomoção. A chegada de bens “preciosos”, tais como uma caminhonete, bem ao qual nunca têm acesso e do qual necessitam muito, e o pagamento (mesmo que pequeno) de um salário para os coordenadores, aparente segurança financeira que é rara entre os camponeses, causaram tensões e acusações. Conforme seu Marcelo,

166 Ana Carolina Cambeses Pareschi ex-integrante da direção executiva da AAPPC, “estes que mais ficam fora do projeto, que menos participam, que estão menos junto com o grupo, são os mais criticadores do trabalho, que mais desacreditam, que mais ficam jogando pesado com os companheiros”. Para ele, muitos sócios queriam usar o carro em seu próprio benefício sem contribuir com o óleo diesel. Queriam que esse dinheiro saísse do bolso dos coordenadores já que recebiam um salário mínimo pela função exercida. A introdução de recursos e de bens controlados por determinadas pessoas, mesmo que eleitas pelos seus pares, aliada à falta de sucesso das atividades organizadas e à “quebra de solidariedade” representada pela negação do uso do carro (coletivo) para fins pessoais, no caso de Carolina, abalaram as relações pessoais entre os integrantes da entidade. Isso aponta, em parte, para a diferença entre a racionalidade camponesa e a racionalidade do planejamento de atividades e usos de bens, característica dos projetos de desenvolvimento e de organizações “burocráticas”, como deveria ser uma associação de pequenos produtores uma vez inserida em um campo onde as relações não seriam caracterizadas pelo personalismo. Enquanto as relações entre os pequenos produtores estão fortemente ligadas a redes familiares, de vizinhança e compadrio, as relações estabelecidas pelas regras de projetos como o PD/A e por organizações burocráticas exigem impessoalidade e cumprimento efetivo e eficaz das atividades previstas, não podendo haver “desvirtuamento” dos objetivos iniciais para os quais foi elaborado o projeto. Em Santa Maria contratou-se um motorista e decidiu-se, num primeiro momento, cobrir os custos de emplacamento, manutenção e de óleo diesel (além do previsto no orçamento) com a prestação de serviços pagos de frete para terceiros (inclusive a Prefeitura) e sócios das duas associações. Entretanto, a prestação de contas apresentada pelo coordenador do uso do veículo era deficitária e acarretou numa deterioração das condições do veículo. Agravou-se o problema quando se descobriu que o motorista contratado havia batido o caminhão em função de embriaguez. Do meio para o final do projeto contratou-se outro motorista que, desta vez, revelou-se bastante positivo não somente quanto ao zelo necessário com o veículo, mas também com relação às atividades logísticas e de produção do projeto. É preciso dizer que em Santa Maria conflitos internos foram gerados em função do desempenho do primeiro coordenador e desentendimentos pessoais entre este e outro sócio, resultando na sua substituição por duas mulheres, professoras primárias e esposas de

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 167 sócios. Inicialmente vistas com reservas pela maioria masculina, ganharam a aprovação de todos pelo mérito de suas gestões. Transformaram o projeto de Santa Maria num dos mais bem- sucedidos da Rede. O fato das coordenadoras receberem um salário (mínimo, dividido por dois) para desempenhar suas funções com maior disponibilidade fazia com que quase todo o trabalho logístico e produtivo do projeto fosse considerado pela grande maioria dos sócios como de sua responsabilidade exclusiva. Assim, as duas mulheres, ajudadas pelo novo motorista e eventualmente por algum dos maridos, vizinhos ou sócios, buscavam as frutas nas fazendas e chácaras,15 levavam para a sede do projeto, selecionavam, carregavam o caminhão, viajavam para Carolina – onde ficava a fábrica que processava as frutas –, traziam de volta as polpas pasteurizadas e embalas e guardavam nos freezers do galpão do Projeto. Não bastando isso, elas também passaram a processar localmente a cajá, fruta abundante da região, ao invés de levar para Carolina. Novamente eram quase sempre os três que faziam tudo. Os sócios das duas entidades participantes do projeto colocavam-se à disposição do trabalho – que seria supostamente de todos – somente mediante pagamento de diária. Por outro lado, todos se mobilizaram em mutirão quando, no início do Projeto, foi necessária a construção do galpão do Projeto Frutos do Cerrado, do poço do viveiro e do envasamento de sacos de mudas para o viveiro. Depreende-se disto que para aquelas atividades extraordinárias e duráveis a solidariedade grupal é ativada na medida em que todos poderão tirar proveito de seu trabalho posteriormente. Já aquelas atividades cotidianas do projeto, seriam vistas como obrigação exclusiva das coordenadoras e motorista, não mobilizando a solidariedade coletiva já que cada um tem seus afazeres e tempo de trabalho é precioso, as coordenadoras eram pagas e os ganhos não são imediatos (a não ser com pagamento de diária). O cálculo camponês é direcionado pelas vantagens e desvantagens a curto e médio prazo de se dedicar energia, tempo de trabalho familiar e terra para uma atividade ou outra. No caso de Santa Maria, como de resto em todas as outras entidades participantes do Projeto Frutos do Cerrado, inclusive a indígena, o tempo dedicado às atividades de roça continuou sendo muito maior do que aquele relacionado aos plantios e outras atividades do projeto, mesmo com a obrigatoriedade formal de uma contrapartida em mão- de-obra gratuita da parte deles no que se referia aos “tratos culturais”.

15 Em Santa Maria do Tocantins o termo fazenda aplica-se a terra de qualquer tamanho que fique distante da sede municipal. O termo chácara, em oposição, refere-se a terras localizadas nas proximidades da cidade.

168 Ana Carolina Cambeses Pareschi 5. A ORGANIZAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E INSTITUCIONAL DAS COMUNIDADES E ENTIDADES

A maior parte das comunidades envolvidas na Rede Frutos do Cerrado já tinha um longo caminho de participação em atividades coletivas institucionalizadas, políticas ou de cunho religioso – Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), sindicatos rurais (STR’s), associações e/ou cooperativas, conselhos municipais, partidos políticos de esquerda, entre outros. Este não era exatamente o caso da AAPPC e das associações de Santa Maria do Tocantins, embora a primeira já tivesse longa tradição com CEB’s, STR e partido político, mas não com associação de produtores. A AAPPC foi criada em 1995 pelo incentivo que o próprio CTI deu aos integrantes do STR de Carolina, visando a implementação de um pequeno projeto de produção de doces e cajuína financiado pelo GEF/ PPP.16 Este projeto não parece ter sido bem-sucedido, pois foi deixado de lado em função de alguns desentendimentos internos.17 As associações São José e Soninho tinham perfis um pouco diferenciados, sendo a primeira mais politizada e envolvida com o STR e um partido político. Ambas, porém, foram criadas em 1993 com o auxílio da então prefeita do município, no sentido delas receberem recursos de um projeto financiado pela extinta Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Uma parte dos sócios da São José já tinham tido sucesso com a atividade apicultora, introduzida por uma parceria entre o sindicato e a Comissão Pastoral da Terra.18 Mas nenhuma das associações tinham tido experiência com um projeto como o Frutos do Cerrado, com uma proposta produtiva e ambiental alternativa aos plantios e criações conhecidas por eles. Ao que parece, houve intensa participação dos envolvidos, tanto em Carolina quanto em Santa Maria, na confecção dos pequenos

16 Trata-se do Programa de Pequenos Projetos do Fundo Global para o Meio Ambiente (Global Environmental Facility), fundo multilateral de doações de diversos países criado em novembro de 1990, administrado pelos Programas de Desenvolvimento e de Meio Ambiente das Nações Unidas, respectivamente, PNUD e PNUMA, e pelo Banco Mundial. O Programa de Pequenos Projetos é administrado por ONG’s nacionais (Cf. ROS FILHO, 1994). 17 Segundo relatos colhidos, três foram os problemas do pequeno projeto. Primeiro, não houve consulta às mulheres – que fariam os doces e a cajuína – quanto às especificações técnicas dos tachos necessários à confecção dos doces, resultando em tachos muito grandes e difíceis de serem operados. Em segundo lugar, as mulheres não se entendiam quanto à melhor receita de doce a ser feita, cada uma tendo as sua e havendo muita diferença na qualidade da produção. Por fim, um dos principais produtos – o doce de caju e a cajuína – eram facilmente feitos de forma artesanal em Carolina por quaisquer pessoas, dada a abundância desta fruta e a tradição de sua utilização. Assim, o mercado teria que ser regional, o que ainda não era possível de se alcançar. 18 Inicialmente a CPT cedia todo o material necessário para a criação de abelhas e a assessoria técnica permanente, totalizando um custo de R$ 94,00 que podia ser pago em litros de mel em três anos. Todos que se aventuraram pela apicultura conseguiram pagar todo o material e ter lucro com a venda dos litros de mel. Em função desta atividade bem-sucedida, o Projeto Frutos do Cerrado era complementar, pois ao propor a manutenção de áreas de mata e o consorciamento de culturas agrícolas com espécies frutíferas nativas do cerrado além de outras ornamentais ou simplesmente adubadeiras, possibilitava também a manutenção das floradas necessárias à produção de mel.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 169 projetos, junto com o CTI e o CENTRU. A proposta do projeto era sedutora na medida que incentivava objetivos “comunitários” e porque não dizer “utópicos”, no sentido de mudar o futuro daqueles camponeses e indígenas para uma maior autonomia e segurança (alimentar, de vida, fundiária), proporcionando com isso melhor auto- estima e algum poder. Lembramos que a religiosidade cristã, no caso dos camponeses, é bastante importante a ser levada em conta devido aos seus aspectos integrativos e, conseqüentemente, organizacionais e valorativos. A ideologia/utopia ambientalista incorpora algo do discurso milenarista e social (marxista) presente na cosmologia cristã, articulada especialmente pelas CEB’s. Além disso, o projeto inovava também na parceria entre índios e camponeses, ampliando o conhecimento que ambos grupos tinham de si e do outro, possibilitando igualmente a interação entre camponeses e entre cinco sociedades indígenas Timbira, aparentados lingüisticamente e culturalmente entre si. Tudo isso possibilitava que a comunicação entre as ONG’s assessoras e as entidades de camponeses, especialmente, fosse fluida e relativamente constante, havendo uma mudança no comporta- mento da maioria dos agricultores destas duas entidades quanto aos cuidados ambientais em suas respectivas propriedades. E mesmo com os “erros de gestão” dos projetos e alguns problemas de relacio- namentos, houve um aprendizado quanto às necessidades organiza- cionais, inclusive as produtivas. Mais ainda, uma abertura de horizontes possíveis para o modo de vida camponês. Por outro lado, a gestão do projeto e das respectivas entidades fazia emergir conflitos, problemas e soluções que revelavam maior ou menor habilidade em lidar com questões produtivas, relativas a um sistema de produção capitalista, juntamente com lealdades políticas, parentais, de vizinhança ou outras afinidades. As clivagens sociais, tais como instrução/não instrução; posse de terra/propriedade de terra; homens/mulheres, poder simbólico e/ou político/ausência de poder, iam aflorando conforme as situações sociais assim o exigiam, delimitando os encaminhamentos e resultados possíveis. A comparação dos projetos de Santa Maria do Tocantins e de Carolina permite observar o quanto as características locais das organizações e, por conseguinte, de seus participantes, são importantes, mas não exclusivas, na qualidade destes pequenos projetos. Em Carolina, apesar de uma longa experiência dos sócios da AAPPC com o STR local e com as CEB’s, houve uma certa reticência nas tomadas de iniciativas dos líderes em função de uma espera de

170 Ana Carolina Cambeses Pareschi auxílio dos assessores do CTI, localizados na mesma cidade, em função mesmo de não terem experiência de como agir enquanto associação e enquanto executores do projeto PD/A. O CTI também precisou do auxílio, sempre pronto, dos associados e de seu viveiro para estabelecer as parcerias com as aldeias indígenas e mesmo para o funcionamento da “fábrica” de polpas. Talvez mesmo em função da proximidade das duas entidades, as relações econômicas e sociais mais formais tenham dado lugar às expectativas de reciprocidade de parte a parte nem sempre correspondidas. O fornecimento de frutas para a fábrica e o pagamento por estas foi um ponto de estrangulamento da relação entre a AAPPC e o CTI (que na prática acabava representando a fábrica e os índios). Embora esta questão seja tratada no item subseqüente, queremos ressaltar aqui que tais problemas não foram resolvidos a contento antes do fim do projeto pela AAPPC e pelo CTI, criando não só um certo mal-estar na relação entre ambas entidades, mas também um certo descrédito por parte dos agricultores na capacidade de sua associação de dar prosseguimento ao projeto após o término do financiamento pelo PD/A. A AAPPC estava aguardando o pagamento, por parte da “fábrica”, de uma série de pendências, inclusive a devolução de bens materiais emprestados, mas também de pagamentos por serviços prestados à Associação Atlética Banco do Brasil de Carolina já há muito tempo postergados. Não contava com nenhum centavo em caixa ao final do projeto. Por conseguinte, o projeto de Carolina terminou com uma crise interna na organização dos agricultores e poucas chances de continuidade das atividades relativas à proposta do Frutos do Cerrado. O caso de Santa Maria do Tocantins foi oposto. Foi o único projeto que terminou com dinheiro em caixa, refletindo uma boa administração “das mulheres”, como diziam os camponeses. Diferentemente da entidade de Carolina que esperou a fábrica vender os produtos para depois receber o que lhe era devido, a coordenação de Santa Maria levava suas frutas para a fábrica e as trazia de volta processadas, prontas para vender, fazendo também a própria divulgação municipal e regional. As associações de Santa Maria conseguiram estabelecer relações de comercialização estáveis com duas escolas de municípios vizinhos. A cada ano, as entidades da Rede Frutos do Cerrado tentaram novas estratégias de produção e comercialização já que a fábrica não tinha condições de receber a quantidade de frutas que chegavam. No primeiro ano de projeto (1996/97), as entidades de Santa Maria, assim como as outras da

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 171 Rede, levaram tudo que colheram de cajá e caju para a fábrica. Perderam muito caju, mas cajá nem tanto. No segundo ano (1997/98), levaram caju para a fábrica, que já contava com um container para armazená-lo e uma despolpadeira nova, mas não levaram o bacuri processando-o localmente. No terceiro ano (1998/99) repetiram a estratégia do segundo ano. Em 2000, quando já estava oficialmente finalizado o projeto, não colheram caju porque estavam esperando o resultado do pedido de refinanciamento ao PD/A, mas colheram cajá e processaram-na localmente com uma pequena máquina emprestada da fábrica. Com estas estratégias, venderam seus produtos e foram cobrindo lentamente os prejuízos iniciais com o uso do fundo fixo. No viveiro, houve a produção de mais de vinte mil mudas durante os três anos de projeto tendo sido distribuídas para os sócios gratuitamente e também vendidas para pessoas do município. Assim, demonstraram capacidade empresarial e conseguiram ganhar a aprovação tanto internamente quanto da Rede e do PD/A. As entidades de Santa Maria foram então procurando se adaptar aos padrões exigidos pelo PD/A para não perder o financiamento e a chance de fazer algo diferente que eles sentiam ser importante para dar “algum futuro”. Mas isso não quer dizer que seus integrantes tivessem uma visão homogênea do projeto ou das pessoas que o geriam, ou mesmo que um suposto “senso comunitário” ou de solidariedade prevalecesse sem que houvesse por trás dele conflitos de interesse. Já dissemos antes da racionalidade camponesa quanto à divisão do trabalho em relação ao projeto e em relação às suas atividades tradicionais. Soma-se a isso os desempenhos diferenciados das duas associações de agricultores de Santa Maria. Enquanto a associação denominada Soninho, das duas coordenadoras, terminou o projeto angariando novos sócios e credibilidade, a São José, terminou enfraquecida, perdendo sócios e não atraindo a atenção de futuros interessados. O fortalecimento da Soninho e o enfraquecimento da São José tem várias razões. No caso da primeira, a avaliação positiva tanto dos sócios quanto da Rede e do PD/A em relação à coordenação do projeto foi o ponto principal. Boa em termos de gestão dos recursos, organização do trabalho, distribuição de informações e comer- cialização dos produtos. Em segundo lugar, porque o viveiro foi apontado como um dos melhores da Rede Frutos do Cerrado pela avaliação final do projeto feita pelos consultores Leroy e Toledo (2000: 61) sendo a viveirista mais envolvida também da Soninho. Em terceiro, a fruta principal existente nas áreas dos sócios da Soninho

172 Ana Carolina Cambeses Pareschi (a cajá) pôde ser processada pela fábrica desde o começo do projeto, embora houvesse muita perda no transporte. Já a Associação São José, foi progressivamente perdendo sócios em função de seus conflitos internos e da relação negativa que alguns de seus integrantes estabeleceram com o técnico agrícola do CTI e em parte com a coordenação “das mulheres”.19 Além disso, a fruta principal de ocorrência da área deles era o buriti, processado pela fábrica somente mais ao final do projeto. Houve também mais dificuldade de seus integrantes assumirem as atividade de coordenação e participarem de cursos (grau de instrução muito baixo e prioridades políticas). Embora o seu então presidente alegasse que as desistências estavam relacionadas ao pagamento de mensalidades, esta parece não ter sido a única razão. Por um lado, a Associação São José se assemelhou à Associação de Carolina, mas por outro, como estava ligada à Associação Soninho, pôde contar com ela como agente intermediário na relação com o PD/A e com a Rede Frutos do Cerrado como um todo. Mesmo assim havia uma certa tensão entre os líderes da São José e os da Soninho em função das desconfianças levantadas pelos primeiros quanto à gestão dos recursos do projeto.20 Por um lado, alguns integrantes da Associação São José se sentiam em desvantagem em relação à Soninho por não assumir a coordenação do projeto mesmo quando a pessoa que eles condenavam saiu e o posto ficou vago. Por outro lado, parecem ter compensado este sentimento com as críticas que faziam, como uma tática, talvez inconsciente, de recuperar um poder que de certa forma se acumulava na outra entidade em função do capital simbólico adquirido. Segundo Bourdieu (1996), a distribuição dos diferentes tipos de capital determina a posição dos agentes na estrutura do espaço social. A acumulação deste capital pela outra entidade teria então desequilibrado as relações entre elas. Esta tensão também foi percebida pelos avaliadores finais do projeto (LEROY e TOLEDO, 2000: 60) que recomendaram a entrada de outras entidades de pequenos produtores de Santa Maria no projeto para neutralizar “as dificuldades em se entender” das suas associações. Vale lembrar também que a associação Soninho era formada basicamente por uma família extensa e vizinhos, com propriedade da terra de tamanho médio de 80 hectares, sendo a maior parte natural

19 Com o técnico agrícola do CTI houve desentendimentos quanto à concepção ecológica do projeto. Alguns integrantes da São José achavam necessário a utilização de adubo (químico) nos plantios das frutíferas feitos no cerrado, além da utilização de tratores para “gradiar” as terras. O técnico agrícola foi contra, pois isso contrariava a proposta de agricultura alternativa presente no Frutos do Cerrado. 20 Houve acusações e desconfianças dos integrantes da São José quanto à transparência de uso dos recursos coletivos do projeto pelas coordenadoras. Estas, por sua vez, respondiam dizendo que as contas eram transparentes e que eram os seus acusadores destituídos de instrução para avaliar as contas do projeto, disponíveis nos arquivos do galpão.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 173 da região de Santa Maria e de Pedro Afonso. A associação São José, por sua vez, era formada por vizinhos, majoritariamente vindos de outros Estados, especialmente Piauí e Maranhão, nas décadas de 1950 e 60, comprando direitos de posse. Estas estavam sendo tituladas gradualmente, com extensão média do lote igual a dos agricultores da Soninho. Entretanto, a qualidade das terras dos integrantes das duas associações era diferente. As da Soninho eram mais férteis, predominando solo argiloso e úmido, enquanto que as da São José predominavam solos secos e arenosos. Esta característica influiu também nas diferentes participações das entidades no projeto, especialmente quanto ao tipo de fruta nativa que ocorria e ao desenvolvimento dos plantios. A solidariedade familiar também parece ter feito diferença no desempenho da Soninho, em oposição à São José. Embora “as mulheres” tenham sofrido com algumas tensões familiares pelo fato de ao assumir as atividades do projeto deixarem em segundo plano as atividades “domésticas”, a divisão do trabalho do projeto e doméstica foi sendo ajeitada, sendo os seus maridos os sócios da Soninho e responsáveis pelas atividades tradicionais dos agricultores: roça, criação e comercialização da produção. Como elas eram professoras, já estava definido um lugar social “fora” do ambiente doméstico que as permitiu flexibilizar papéis de gênero camponês, sendo elas que estabeleciam os contatos das entidades de Santa Maria com o CTI, o PD/A, a Rede Frutos do Cerrado, entre outros. No caso da São José, não havia ninguém que pudesse assumir integralmente a coordenação das atividades do projeto sem deixar de levar à diante os próprios afazeres. Para finalizar, apontamos para a questão do acúmulo ou não de capital simbólico e poder político dos executores dos projetos. Tomando de empréstimo as categorias locais – e camponesas – de forte/fraco para atribuir mais ou menos capital simbólico e poder político aos atores sociais participantes do Frutos do Cerrado, sugerimos que os camponeses associados ao projeto de Santa Maria saíram fortes do projeto, muito embora os da associação São José tenham saído relativamente fracos. Em Carolina, os camponeses saíram fracos, com poucas perspectivas de continuidade, pelo menos em 2000. Mas estas “qualidades” não foram necessariamente assim ao longo de todo o projeto. Um dos pontos que chama atenção é que o projeto de Santa Maria foi o único da Rede Frutos do Cerrado foi proposto pela Prefeitura local, em função da exigência legal do PD/A de que as entidades proponentes teriam que ter pelo menos um ano de

174 Ana Carolina Cambeses Pareschi existência para pleitear recursos. Assim, a Prefeitura era responsável formalmente pela assinatura de papéis e alguns encaminhamentos, embora na prática eram os executores (no caso as associações São José e Soninho) que faziam tudo.21 Este fato deu margem à Prefeitura de se utilizar indevidamente não só de recursos do projeto como de alguns de seus bens duráveis (o caminhão) causando tanto atrasos nas atividades previstas, quanto a depreciação do caminhão e problemas financeiros ao projeto. Na mais longa tradição clientelista local, houve dificuldade das entidades, durante o primeiro ano de projeto, de exigir a resolução da questão inclusive porque a prefeita era uma personalidade carismática, fundadora do município e apoiadora das associações desde o início. Foi necessário que o CTI e o Centru intervissem, em outubro de 1996, através da formalização de repasse dos bens para o Projeto e do comprometimento de devolução dos recursos indevidamente utilizados pela aprovação de um Projeto de Lei municipal, sancionado pela prefeita. Entretanto, os reparos necessários no caminhão e a devolução dos recursos ao projeto ainda estavam pendentes em fevereiro de 1997, quando o CTI renovava seu pedido ao novo prefeito, recém-empossado. Para que esse procedimento fosse concluído ainda foram necessárias outras insistências até que, por fim, a prefeitura sanou seus compromissos. Em função desta dificuldade inicial, alguns sócios se afastaram do projeto. Isso demonstra o quanto pequenos projetos em localidades diminutas estão sujeitos aos sabores das alianças políticas estabelecidas entre atores sociais locais e da correlação de forças entre os mesmos.22 Em muitos projetos financiados pelo PD/A, os recursos a ele destinados eram bastante significativos se comparados ao orçamento municipal, sendo então objeto de grande interesse tanto por parte dos políticos locais, quanto dos coordenadores e entidades proponentes dos projetos. Tendemos a sugerir que sem a intervenção insistente da assessoria das ONG’s e mesmo do PD/A – agentes externos ao local – esta situação poderia ter se prolongado, levando o projeto de Santa Maria a tomar um rumo diverso daquele que tomou. De qualquer forma, a resolução deste impasse, entre tantos outros, possibilitou às associações de pequenos agricultores de Santa Maria uma virada nos destinos do projeto e um fortalecimento das mesmas ao final, frente ao PD/A e à Rede Frutos do Cerrado como um todo.

21 A existência das categorias “proponente” e “executor” foi uma estratégia do PD/A para possibilitar que as entidades que realmente fossem executar o projeto, mas que não tivessem no mínimo um ano de existência, pudessem também apresentar projetos através da figura de um “proponente”, outra entidade, que cumpria tais exigências e que repassaria todos os recursos e bens para a “executora”. 22 Ressaltamos aqui que Santa Maria do Tocantins foi emancipada como município em 1992 e segundo o Censo de 2000 do IBGE, continha uma população de 2.226 habitantes, sendo 1.034 na “zona urbana” e 1.192 na “zona rural”.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 175 6. ASSESSORIA TÉCNICA E AS DIFICULDADES DE PROJETOS COM FINS ECONÔMICOS: TERMOS DA PARCERIA

Os baixos orçamentos para pagamento de pessoal e para os demais custos de manutenção institucional afetam sobremaneira o trabalho das ONG’s. Um projeto como o Frutos do Cerrado previa muitas e complexas atividades: a manutenção de uma fábrica de polpas e a comercialização das mesmas que exigiam um articulado trabalho de logística, marketing, qualidade, quantidade e regularidade de produção; a assessoria aos plantios e entidades no campo; as prestações de contas do projeto como um todo e do projeto de Acompanhamento e Monitoramento; as reuniões da Rede toda; a instalação de viveiros; o plantio das mudas nas propriedades dos sócios e nas aldeias; a procura de outras fontes de financiamento que cobrissem atividades e itens não contemplados no PD/A; e finalmente, a articulação política e ideológica da Rede como um todo. Para além do Projeto Frutos do Cerrado, as ONG’s, associações e cooperativas estavam envolvidas com outros assuntos, sendo o Projeto Frutos do Cerrado uma parte da ocupação de seus respectivos tempos de trabalho. O número de pessoas que se encarregam de coordenar atividades é sempre diminuto frente ao conjunto de tarefas. O Centru, por exemplo, contou na maior parte do tempo com apenas três ou quatro pessoas, sendo um educador, uma advogada e assistente social e um ou dois engenheiros agrônomos. O CTI contou com dois antropólogos, um técnico agrícola e um engenheiro agrônomo que não ficou todo o período do projeto embora tenha participado desde o início do Projeto Frutos do Cerrado, antes mesmo de ser aprovado pelo PD/A. Portanto, oito pessoas no total para lidar com 11 associações e cooperativas situadas geograficamente distantes, sendo uma das associações, a indígena, congregava dez aldeias diferentes dos povos Krahó, Krikati, Apinayé, Gavião-Pykobyê e Kanela-Apãniekra. Como é possível de prever havia muito trabalho para pouca gente. O resultado foi o atropelamento de atividades, especialmente quando umas atrasavam ou inviabilizavam outras. Um exemplo era o dos plantios feitos pelos agricultores e índios, nem sempre acompanhados pelos técnicos, acabavam por perecer em grandes quantidades. A Rede Frutos do Cerrado experimentou uma série de arranjos organizacionais para dar conta do volume de trabalho, dentre os quais a separação de atribuições em duas Secretarias

176 Ana Carolina Cambeses Pareschi Executivas, uma em Carolina, onde se situava o CTI, e outra em Imperatriz, onde estava o Centru. Cada Secretaria, em função de sua localização geográfica e de suas relações históricas com os grupos envolvidos, tinha a responsabilidade de acompanhamento dos projetos de cerca de metade das associações e cooperativas da Rede (ver Figura 3 e Croqui 1 no Anexo).23 Tais Secretarias executavam as decisões tomadas num órgão superior do qual todas as entidades da Rede participavam: o chamado “Conselhão”. Este “Conselhão” se constituiu num fórum importante para os integrantes da Rede se relacionarem, se conhecerem e discutirem posições e abordagem. Entretanto, as dinâmicas das reuniões, a freqüente desarticulação entre aquilo que se decidia e aquilo que se fazia e especialmente os termos da parceria entre os índios Timbira e os pequenos produtores, traduzida na relação entre Centru e CTI, foram de certa forma minando a coesão da Rede durante do Projeto. O projeto começou, com este nome, efetivamente no CTI em 1993, portanto, antes de agregar o Centru e as cooperativas de pequenos produtores a ele associadas e antes de ser apresentado ao PD/A. Era um projeto de diagnóstico da oferta de fruta nativa do cerrado dos municípios circunvizinhos das áreas indígenas Timbira para um posterior beneficiamento. Neste processo, o antropólogo e o engenheiro agrônomo do CTI tomaram conhecimento do Centru e das cooperativas que acabavam de ser criadas, além de incentivarem a criação da Associação de Carolina. Para o Centru, o trabalho com frutas e sistemas agroflorestais já vinha ocorrendo, embora não tivessem pensado em frutos variados do cerrado mas sim em caju, apenas. A proposta de parceria com o CTI e os índios foi muito bem- aceita, vista como uma possibilidade de ampliação de perspectivas, como a proteção do cerrado, e o fortalecimento de alternativas econômicas e sociais aos camponeses do sul do Maranhão. Todavia, os termos desta parceria foram mal colocados e interpretados de parte a parte. Inicialmente, os índios entravam com a máquina de processamento de frutas, já instalada em Carolina, e os camponeses entravam com as frutas, obtendo parte do eventual lucro da “fábrica” com a venda das polpas. A expectativa dos camponeses e do Centru é que eles seriam também sócios da fábrica, compartilhando da marca criada, Fruta Sã. Dado um ano de projeto, os Timbira reclamaram que sua participação no projeto era

23 A Secretaria Executiva de Carolina ficou encarregada de assessorar a Associação Vyty-Cati das Comunidades Indígenas do Maranhão e Tocantins e suas dez aldeias associadas, além das associações de Carolina (MA), Santa Maria do Tocantins (TO) e das cooperativas de Loreto, Riachão e São Raimundo das Mangabeiras (todas no MA). O Centru, por sua vez, assessorava as cooperativas de Imperatriz, Amarante, Montes Altos, João Lisboa e Estreito, todas no Maranhão.

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 177 praticamente inexistente, alegando que “só os kupen (brancos, não- índios) tinham ganhado carro, e eles nada”. O CTI se mobilizou para elaborar um projeto para a Associação Vyty-Cati, aprovado pelo PD/A para dois anos de duração. As reuniões do “Conselhão” tinham estilo sindical, fruto da experiência da maioria dos seus participantes, o que dificultava a manifestação dos representantes indígenas. Isso resultou numa freqüente representação dos índios exercida pelo CTI e um certo afastamento das lideranças indígenas das reuniões. Houve difi- culdade de programar atividades, fora do âmbito do “Conselhão”, que permitissem uma maior convivência entre índios e não-índios, fazendo com que o grosso os camponeses e dos índios não se conhecessem mutuamente. Apenas aqueles que exerceram papéis de viveiristas e coordenadores, os “intermediários”, tiveram a oportuni- dade de conhecer pessoalmente e conversar com os outros integran- tes da Rede. Assim, as poucas tentativas de relacionamento local entre índios e camponeses resultaram mal-sucedidas na medida mesmo em que o contato inter-étnico tem sido pautado por uma situação histórica destas relações, “definidas pelos modelos e esquemas de distribuição de poder entre os diversos atores sociais” envolvidos (OLIVEIRA FILHO, 1988: 57). Nesta situação histórica, os índios ocupam não só o local de “selvagens” como também de facilmente enganados e explorados. Um caso que ilustra bem tais fatos foi o dos Krikati e a cooperativa de Montes Altos. A Terra Indígena Krikati é a única dos Timbira até o momento não demarcada, embora já reconhecida como área indígena pelo governo desde 1992, depois de um longo processo de invasão do território. Os Krikati estão situados na área de influência da Companhia Vale do Rio Doce e também da Eletronorte que mantém linhas de transmissão de energia da Hidroelétrica de Tucuruí (PA) para outras regiões dentro do seu território, também cortado ao meio por uma estrada estadual. As diversas tentativas de demarcação da área se arrastam desde 1992 sempre sendo interrompidas pela pressão de políticos e de liminares da justiça articuladas aos interesses de posseiros, fazendeiros e deputados estaduais maranhenses. Numa das várias tentativas de demarcação da área, durante o início do Projeto Frutos do Cerrado, a cooperativa de Montes Altos se predispôs a criar uma “cantina” dentro da área para facilitar o acesso dos índios aos bens industrializados que eles costumavam comprar na cidade, evitando que estes corressem o risco de sair da área e serem alvo de violência física. No entanto, a

178 Ana Carolina Cambeses Pareschi cooperativa não só usou parte do dinheiro do PD/A para investir nisto, como também vendia os produtos a preços abusivos. Os índios, por sua vez, começaram a se valer das relações de parentesco para pegar alguns produtos em nome deste ou daquele e pediam fiado. No fim, a cantina ficou sem receber um bom dinheiro e a cooperativa de Montes Altos culpou os índios publicamente por várias vezes em eventos com a Secretaria Técnica do PD/A pela sua situação financeira abalada. Em função disso, a cooperativa se desestruturou. O não pagamento pelos Krikati, neste caso, foi uma forma de fazer valer seus interesses próprios e mesmo a sua visão do papel que os kupen ocupam em sua mitologia.24 A expectativa do Centru e dos pequenos produtores de se tornarem sócios da “fábrica” da Fruta Sã frustrou-se definitivamente quando ao final do período do projeto os índios decidiram que a fábrica e a utilização da marca era de sua exclusividade. Esta frustração foi de certa forma percebida pelos camponeses como “traição”. Tinham investido tudo na fábrica esperando um retorno expresso pela constituição de uma “sociedade”. A resposta a esta “traição” veio quando, em março de 2000, foi criada a Central de Cooperativas Agroextrativistas do Maranhão – CCAMA, pelo Centru e as cooperativas de Amarante, Imperatriz, João Lisboa, Montes Altos, São Raimundo das Mangabeiras, Estreito e mais uma de Balsas, que não tinha participado do Projeto Frutos do Cerrado. O estatuto desta Central excluía a possibilidade de “associações” integrarem-na. Assim, tanto as associações de Santa Maria do Tocantins, de Carolina como a Vyty-Cati, não tinham como dela fazer parte. Cristalizava-se aquilo que os representantes das ONG’s afirmavam sobre a “parceria” da Rede Frutos do Cerrado: separados economicamente e administrativamente, mas ainda aliados politicamente. A Rede Frutos do Cerrado procurou assim criar um “denominador comum” (middle ground) (CONCKLIN e GRAHAM, 1995) entre os interesses de cada ator social envolvido na aliança. Conforme White (1991 apud CONCKLIN e GRAHAM, 1995: 695), o

24 Entre os Timbira há um mito que justifica a posição dos brancos (kupen) como eternos devedores dos índios (mehin), tendo que lhes presentear periodicamente com seus bens. É o mito do Aukê, uma espécie de demiurgo das relações interétnicas. Há várias versões deste mito, mas todas elas enfatizam que Aukê seria uma figura intermediária – meio homem e meio animal ou meio indígena e meio não-indígena. De qualquer forma, este ser tinha propriedades mágicas, dentre as quais, a de se transformar. Aukê teria dado a possibilidade dos mehin e dos “cristãos” (kupen) escolherem entre o arco ou a espingarda. Como os mehin escolheram o arco, permaneceram mehin com toda a cultura material e simbólica dos mehin. Já os “cristãos”, escolheram a espingarda e, portanto, ficaram com toda a cultura material do kupen. Como isso foi considerado injusto pelos mehin, os kupen são obrigados a compensá-los com alguns de seus próprios bens. Nas relações sociais reais entre os Timbira e a sociedade envolvente, tal ideologia transparece, inclusive através da ocorrência de mais de um movimento messiânico, entre os Krahó (por volta de 1951) e entre os Kanela-Ramkókamekra (por volta de 1963), para corrigir tal “injustiça”. Os profetas de tais movimentos messiânicos anunciavam que os mehin iam se transformar em kupen e, assim, ter acesso a todo tipo de bens da sociedade industrial que passaram a desejar com o contato (Cf. MELATTI, 1972; CROCKER, 1976; CUNHA, 1973).

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 179 middle ground é “a construção de mundos mutuamente compreensíveis caracterizados por novos sistemas de significado e trocas”. Concklin e Graham usaram o termo para interpretar as alianças que o ambientalismo internacional e o “movimento étnico” brasileiro fizeram especialmente nos anos 80 e 90 do século XX.25 Segundo as autoras, o middle ground seria forjado com base em pressuposições a respeito do Outro e naquilo que este Outro poderia contribuir para objetivos específicos (1995: 696). A idéia de comunalidade entre os índios e os ambientalistas do Primeiro Mundo apelaria às audiências transnacionais em parte porque ressoaria por meio de múltiplas tendências culturais ocidentais, entre elas a da figura do “nobre selvagem ecológico” (idem). Entre os pontos de tensão e precariedade desta “aliança”, as autoras colocam o fato dela estar baseada em representações simbólicas de uma autêntica indianidade que não corresponde à realidade. Isto é, atitudes como a venda de mogno, a permissão de mineração no interior das áreas e outras ações tomadas por índios de carne e osso, chocam-se com este ideário e podem fazer com que críticas generalizantes recaíam sobre as sociedades indígenas fundamentadas por um imaginário que não corresponde à realidade (idem: 702). Se a aliança foi “costurada por cima”, com base em ideais de solidariedade e parceria, na prática, a complexidade de interesses, códigos e demandas minou esta tentativa de união. Após este processo de aprendizagem, para muitas lideranças da Rede Frutos do Cerrado, as alianças poderiam ser construídas com base nos interesses econômicos – nos negócios – ou políticos, relativos à defesa ou ao apoio genérico de uns pelos outros em casos específicos. A aliança entre pequenos produtores e índios, até onde se saiba é inédita do ponto de vista de um projeto comum, e a proposta da Rede Frutos do Cerrado era bastante ambiciosa e complexa, encaixando-se perfeitamente nos ideais do desenvolvimento sustentável: enfatizava a autodeterminação indígena a partir de uma “autonomia econômica”, atendia aos pequenos produtores marginalizados historicamente por todas as políticas públicas, conservava o meio ambiente pelo “aproveitamento racional dos recursos naturais”, da implantação de sistemas agroflorestais e manejo de capoeiras. Era enfim, uma proposta legítima e de certa forma original de entidades “de base”, organizadas, experientes, que merecia a atenção e o apoio do PD/A. Tal

25 As autoras se referem especificamente a casos de personalidades indígenas que ganharam espaço na mídia nacional e internacional em função sua atuação em defesa da Amazônia ou dos direitos indígenas, tais como o Xavante Mário Juruna no final dos anos 70 e vários Kayapó nos anos 80 e 90 do século XX: Paulo Payakan, Raoni e Cube-i.

180 Ana Carolina Cambeses Pareschi imagem foi fundamental para a aprovação, pelo PD/A, dos vários projetos Frutos do Cerrado. Mas ao longo da execução dos projetos a “realidade” foi fazendo o PD/A insistir nos parâmetros do projetismo (aspectos técnicos de planejamento e organização de atividades) e da eficiência econômica e logística.

7. A REDE FRUTOS DO CERRADO E O PD/A: DO NAMORO AO PROJETISMO

Os problemas não somente técnicos ou econômicos do Projeto Frutos do Cerrado procuraram ser equacionados de diversas formas pela própria Rede, com um auxílio do PD/A na contratação de consultorias diversas e no monitoramento atento. Em função da importância ideológica do Projeto Frutos do Cerrado, do volume de recursos doados pelo PD/A e do fato do Projeto ter sido um dos primeiros aprovados pelo Subprograma, a Secretaria Técnica dispensou muita atenção à Rede inicialmente. Como as próprias regras de funcionamento e os contratos de doação do PD/A ainda não estavam muito claros e definidos, permitiram a existência de “capital de giro” para o Frutos do Cerrado sob o nome de “fundo fixo”, o que não parece ter ocorrido em outros projetos financiados pelo PD/A. Além disso, ao longo de sua duração receberam uma gama extensa de monitorias e visitas dos técnicos do PD/A, de consultores, de representantes do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Grupo Consultivo Internacional (IAG), da Secretaria de Coordenação da Amazônia (SCA), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, além de várias outras ONG’s. Este “sucesso de público” diz alguma coisa sobre o status da proposta tanto para os agentes econômicos do PP-G7 quanto para os agentes governamentais e sócio-ambientais. O “excesso de visitas”, como colocaram vários integrantes da Rede, tornou-se algo bem desagradável porque pressionava o projeto a apresentar resultados e formas de organização voltados prioritariamente para a configuração de uma empresa, seu ponto mais frágil. A questão da avaliação das diferentes sustentabilidades dos projetos PD/A revelou as diferentes expectativas tanto dos profissionais da Secretaria Técnica do Subprograma e do PP-G7, quanto daqueles que receberam o financiamento. Se, teoricamente, a noção de desenvolvimento sustentável pretende se mostrar como algo integral, ou seja, que procura equilibrar demandas sociais,

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 181 ambientais e econômicas, a ênfase dada às avaliações dos subprojetos foi freqüentemente econômica, residualmente ambiental e quase nada social, já que os fatores econômicos e ambientais seriam mais facilmente observáveis e quantificáveis no espaço curto de tempo disponível para tanto. O Projeto Frutos do Cerrado foi um dos poucos do PD/A que recebeu uma quantidade considerável de consultorias de avaliação e redesenho (oito ao todo), sendo quatro delas focalizadas eminentemente nos aspectos econômicos e comerciais, duas mesclando os aspectos econômicos e sociais e a última mais preocupada com os aspectos sociais (organizacionais e educativos) e ambientais, embora também considerasse os econômicos.26 Como o projeto envolvia uma iniciativa “empresarial” mas não se restringia a ela, as avaliações acabaram focalizando naquilo que consideravam os entraves para o sucesso, comercial do empreen- dimento, sugerindo um plano de negócios, estratégia de marketing, descentralização das unidades processadoras, infra-estrutura adequada, enfim, uma gerência eficiente segundo os critérios da racionalidade capitalista (mesmo que em pequena escala), colocando em segundo plano relações de afinidade entre pessoas e entidades conectadas por redes sociais múltiplas e as próprias condições concretas e históricas daqueles grupos envolvidos. Restava saber, no entanto, se camponeses e índios (e mesmo as ONG’s) estavam dispostos, queriam ou tinham condições de se transformarem em pequenos empresários em termos capitalistas e, se isso fosse possível, em quanto tempo e de que forma ocorreria. Enquanto as avaliações fazem parte da lógica do planejamento e execução de projetos sendo justificadas para melhorar a eficiência alocativa de recursos e esforços, os camponeses e mesmo as ONG’s do Projeto Frutos do Cerrado reclamaram que a quantidade de dinheiro empregada nas mesmas poderia ter sido muito bem utilizada para suprir as carências orçamentárias dos diferentes projetos (pagamento de tratos culturais, das despesas com o veículo, de mais pessoas envolvidas etc.) e desta forma melhorar o desempenho econômico, esperado pelo PD/A. No entanto, uma vez aprovado o projeto com determinado orçamento, ele não poderia ser modificado com o aumento dos recursos pedidos, já que isso não faz parte desta

26 Não tive acesso a dois relatórios de consultoria, mas soube de sua existência pela citação deles em outros relatórios. Pelo título é possível classificar uma delas como econômica (GIORDANO, Samuel R. Estudo de Viabilidade Econômica, janeiro de 1997) mas a outra não é possível dizer (CARVALHO, Valter. Análise da Situação Atual e Proposta de Medidas de Aperfeiçoamento, junho de 1997). Por isso, esta última não pode ser “classificada” por mim em nenhuma das categorias que me interessavam.

182 Ana Carolina Cambeses Pareschi lógica projetista. Era possível, no entanto, haver remanejamentos, justificados, entre rubricas diferentes. A dificuldade de modificação de um projeto durante a sua execução está relacionada também à possibilidade de modificação de alianças e poderes (de diversas naturezas) já estabelecidos. Isso ficou bem demonstrado pela impossibilidade de redesenho da Rede Frutos do Cerrado, discutidas desde o início do projeto até o final sem grandes resultados práticos, porque, entre outras coisas, do ponto de vista da eficiência produtiva e comercial de uma atividade “empresarial”, seria preciso a transformação de relações políticas e redes sociais fortemente estabelecidas entre determinados agentes (especial- mente as cooperativas vinculadas ao Centru) em relações eco- nômicas, devendo haver uma desestruturação das mesmas em favor de determinadas entidades que teriam vantagens comparativas em relação a outras. Ao longo dos mais de três anos de projeto, houve um período de cerca de um ano em que as relações entre o Projeto Frutos do Cerrado e a Secretaria Técnica do PD/A estavam profundamente abaladas, havendo descrédito por parte do PD/A dos resultados do Projeto Frutos do Cerrado. A entrada de novos quadros da ST-PD/A possibilitou uma nova tentativa de aproximação e, conseqüen- temente, da formulação de atividades conjuntas que revigoraram as relações, tal como a capacitação de membros da Rede Frutos do Cerrado em Diagnóstico Rápido Participativo (DRP). Resultou também na contratação de uma consultoria de avaliação final do projeto afinada com o mesmo, concluindo seus trabalhos com uma visão positiva. O relatório de Leroy e Toledo (2000) foi bem-aceito pela Rede Frutos do Cerrado de maneira geral porque não se fixou apenas nos aspectos econômicos do projeto, mas especialmente no caráter inovador e positivo que o Frutos do Cerrado possibilitou em termos de criação para as bases de uma futura sustentabilidade. Segundo os autores

um modelo de desenvolvimento é fruto do jogo de forças técnicas, sociais e culturais e não o produto de uma racionalidade econômica supostamente científica. Nessa linha, entendemos a sustentabilidade como o processo pelo qual as sociedades administram as condições materiais de sua reprodução, redefinindo os princípios éticos e sociopolíticos que orientam a distribuição de seus recursos ambientais (LEROY e TOLEDO, 2000: 51).

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 183 Um projeto como o Projeto Frutos do Cerrado, seguem eles,

não chegou lá e não podia, pois o sucesso real depende de um conjunto de fatores: educação, assistência técnica e crédito adequados, sistema e vias de comunicação e transporte capilares, políticas ambientais efetivas, etc., que por sua vez dependem de uma reorientação das políticas nacionais (idem).

Ressaltam ainda que “se os desdobramentos do Projeto Frutos do Cerrado fracassarem, a ‘solução’, imediatista, mas a única que sobra para uma família [camponesa] à beira do colapso, será voltar à exploração predatória, (...) sobreviver em piores condições ou tomar o caminho das periferias urbanas” (idem: 26). Esta observação constitui-se em um estímulo para a apresentação, por parte da Rede, dos projetos de refinanciamento de Santa Maria do Tocantins, da Associação Vyty-Cati, de São Raimundo das Mangabeiras e o de Acompanhamento e Monitoramento. Entretanto, somente os dois primeiros lograram. Este Relatório foi a base necessária para a equipe do PD/A refletir sobre seus procedimentos e objetivos, embora representantes dos bancos envolvidos não estivessem muito satisfeitos com os resultados.

O PD/A, como já falamos, teve muitos esforços bem- intencionados e entusiásticos das comunidades. Falta em 99% dos casos o sentido de ‘negócios’, business, saber como, know- how, preparar um bom business plan, treinar o teu pessoal em tecnologias para mercados exigentes, pesquisar os mercados, tecer as parcerias com o setor privado, procurar financiamento, porque o PD/A é de doação agora, mas isso não pode continuar. É de doação porque estamos experimentando, caso falhe algum projeto do PD/A, pelo menos a comunidade não perdeu dinheiro emprestado. No futuro, as coisas, ao nosso ver, devem ser financiadas com créditos (representante do Banco Mundial).

Num outro trecho da mesma entrevista esta pessoa declara, ao avaliar o Projeto Frutos do Cerrado:

Poucos projetos [financiados pelo PD/A] estavam preparados para se inserir numa economia de mercado, com

184 Ana Carolina Cambeses Pareschi exigências de qualidade, quantidade e pontualidade (...). Aí eu posso admitir que no início do Programa deveria ter insistido mais na avaliação do caráter econômico. Isso não foi feito. Mas o fato de que alguma comunidade se organizou já foi festejado como um grande sucesso e em certo sentido é um sucesso. Mas organização para quê? Se depois a coisa falha, é pior (...). Eles [do Projeto Frutos do Cerrado] precisam de uma consultoria muito maior para serem uma empresa. Se não querem ser empresa, então esquece. Podem comer os seus próprios frutos (idem).

Um dos representantes do PD/A tinha uma opinião um pouco diversa, enfatizando mais o caráter experimental do PD/A:

[Qual você acha que era o objetivo maior do PD/A?] Arriscar. Arriscar. A grande diferença do PD/A dos demais programas é que a gente (...) tinha por missão assumir um risco muito grande. Você acreditar num projeto como o Frutos do Cerrado, que bota os Krahó, os Gavião, o Centru para trabalhar e achar que isso vai dar certo é um risco muito grande. (...) Eu acho que a missão do PD/A era acreditar realmente nas comunidades, inovar nisto aí e tentar tirar alguma lição. Nunca tive ilusão de que o PD/A fosse resolver a questão ambiental. Que pelo menos apontasse caminhos e eu acho que isso o PD/A conseguiu fazer (...), testar alguns modelos ainda que numa escala micro, micro mesmo. Você dizer que um projeto PD/A deu certo é muito difícil. Porque a gente trabalha com uma coisa de maturação longa (representante da Secretaria Técnica do PD/A).

Este mesmo representante foi o que afirmou que o Projeto Frutos do Cerrado tinha que se despolitizar e virar empreendimento porque senão não iria a nenhum lugar. Outro representante da Secretaria Técnica ressaltou que quanto aos aspectos ambientais e de segurança alimentar, o Projeto Frutos do Cerrado tinha sido muito importante:

(...) Só que eu não me lembro de nenhum outro projeto na Amazônia que tenha sido tão bem-sucedido na questão ambiental como o Frutos do Cerrado. Eu acho que eles realmente conseguiram fazer educação ambiental. (...) Eu acho que este é maior ganho da Rede, (...) além do aspecto de segurança alimentar, que eu acho que é super-importante também. (...) O

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 185 Projeto Frutos do Cerrado é muito mais do que só polpa de fruta, tem outras atividades extrativistas, tem a castanha de caju, tem uma série de outras linhas que eles podem seguir (representante da ST-PD/A).

Mas em outros trechos da mesma entrevista, este representante lembra da necessidade de planejamento e critérios técnicos para utilização do dinheiro, além de mostrar uma certa hesitação quanto ao objetivo final dos financiamentos do PD/A e das consultorias dadas ao Projeto Frutos do Cerrado:

a consultoria que a AACC fez para o Projeto Frutos do Cerrado tinha um Termo de Referência muito amplo e pouco factível, gerando grandes expectativas nas pessoas da Rede que foram frustradas de alguma forma. Como se a partir da entrega do relatório da consultoria se resolveriam todos os problemas e aí eles sairiam já tendo lucro. E não é assim, em tão pouco tempo. Essas coisas são processuais. Você não pega um agricultor e transforma ele num empresário de uma hora para outra. Ou talvez nem tenha que transformá-lo. Às vezes a saída para eles é estar na ponta. É eliminar alguns níveis de atravessadores, chegar mais perto lá na ponta (idem, grifos meus).

Um dos representantes da cooperação técnica apresenta uma visão bem ampla das avaliações dos projetos pelo PD/A, apontando para a tensão entre “processos” e “resultados”, entre a lógica econômica e as sociais e ambientais.

As avaliações do ‘sucesso’ ou do ‘fracasso’ dos projetos são muito relativas. Depende do que o projeto se propõe a fazer e de qual ênfase é dada pela avaliação. Para avaliar processos sociais é preciso descrever bem a sua complexidade. Esses projetos são complexos. Deve haver relatos de experiências e não resumos que dão notas para os projetos. Esta é a dificuldade das avaliações. Os bancos tipo KfW querem resultados palpáveis. Claro, eles são banco! Eles investem um dinheiro e querem retorno. Mas o que tem que ser sustentável não é o projeto. É o produtor. É saber se ele aprendeu a utilizar melhor a propriedade dele. É difícil medir este tipo de impacto. É preciso olhar o projeto dentro da unidade produtiva familiar. De repente os sistemas agroflorestais foram um fracasso mas eles vão melhorar seu

186 Ana Carolina Cambeses Pareschi sistema de quintal. Há impactos que não se percebe. A gente ainda não tem instrumentos para medir estes impactos mais complexos. Tem até uma certa crença de que o que a gente está fazendo é um acompanhamento de processos, que está na cooperação técnica, frisar processos. Mas também já tem certa cobrança de que quando a coisa não funciona se vem com esse papo de processos. Então tem uma certa tensão entre estas duas coisas: mostrar resultados e realmente frisar esta visão de processos. É uma tensão interessante porque você está sempre sendo questionado, tem que responder. Mas tem o perigo de ser vítima de cobranças indevidas. Num projeto de três anos de SAF’s como é que você vai pedir um impacto econômico se as plantas dão fruto daqui a cinco anos? É difícil (representante da cooperação técnica alemã).

Como vemos, entre os representantes da Secretaria Técnica e mesmo da cooperação técnica (alguns ligados em algum momento às ONG’s sócio-ambientais) prevaleceu uma avaliação de “processos”, cujos impactos sociais e ambientais seriam ainda desconhecidos e os econômicos inviáveis em tão pouco tempo. Mas percebe-se também uma oscilação em algumas destas declarações entre os objetivos sócio-ambientais e os econômicos, sendo a transformação dos produtores (e índios, embora não citados) em microempresários um objetivo a ser alcançado a longo prazo. Há uma tensão entre os ideais do desenvolvimento sustentável e as práticas cotidianas engendradas pelo projetismo e pela pressão dos financiadores. Na afirmação do representante do Banco Mundial percebe-se um forte viés econômico e uma expectativa que as “entusiásticas” experiências saíssem do plano utópico para o plano “sustentável” dos negócios, que exigem resultados a curto prazo. Se os integrantes do projeto quisessem ser empresa, deveriam seguir as recomendações dos especialistas em mercado e em desenvolvimento econômico.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como as alternativas à racionalidade dominante, isto é, a da sustentabilidade frente à desenvolvimentista, ainda não se esta- beleceram em termos de políticas públicas ou práticas disseminadas, sendo o PD/A um reflexo parcial destas demandas, é muito mais fácil introduzir os elementos da racionalidade capitalista hegemônica em

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 187 modos de vida ou de produção não-capitalistas do que transformar o sistema nos termos da diversidade ecológica, sociocultural, política e econômica. Para Foucault (1988) é muito difícil mudar um regime discursivo que está ancorado em uma produção simultânea de verdades e poderes, pois o poder funciona e se exerce em rede (idem: 183), sendo os indivíduos seus centros de transmissão. Assim, tanto os técnicos quanto os consultores do PD/A e do Frutos de Cerrado situavam-se em posições de poder, ora reforçando as debilidades do projeto ora ressaltando as suas conquistas e aprendizado. É preciso deixar claro que quem estabelece as regras do jogo, em última instância, são aqueles que financiam a “mudança”, neste caso, as agências governamentais e multilaterais de cooperação internacional dos países do Primeiro Mundo, materializadas nas exigências tecno-burocráticas do Subprograma e de seu tempo limitado, por mais democrático que pareça ser o PD/A e o PP-G7. Mesmo que o discurso do desenvolvimento sustentável afirme ser possível e necessário conciliar interesses desenvolvimentistas e sustentabilistas, a direção que as ações práticas tomaram, no caso do Projeto Frutos do Cerrado, tenderam mais para uma lógica dos agentes hegemônicos internamente ao campo recoberto por aquele discurso. Mesmo assim, as iniciativas de ONG’s e entidades de base na tentativa de trilhar novos caminhos e estratégias para a transformação social não deixam de ser importantes. Este é um campo de embates políticos, composto por várias frentes, não só pequenos projetos. Nele vários atores procuram estabelecer canais de comunicação, por intermediários, entre o local e o global, universalizando demandas e entabulando diálogos com o Estado e outras agências. Este não é um processo rápido, nem unilinear. No campo das lutas políticas e da sobrevivência institucional, as estratégias de articulação entre diferentes agentes nem sempre são bem-sucedidas devido à diversidade de interesses e de condições destes mesmos atores. O projetismo contribui para dinamizar organizações, mas também disciplinar as dinâmicas sociais e políticas que procuram transcender a ordem planejada. Fica para a Antropologia o desafio de acompanhar as tensões constitutivas destes espaços de disputa e suas eventuais transformações. Fica para o antropólogo o desafio de se situar no processo, inevitavelmente contraditório e tenso, como ator político, cidadão e cientista.

188 Ana Carolina Cambeses Pareschi REFERÊNCIAS

FONTES PRIMÁRIAS Documentos

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Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 193 A N E X O S

194 Ana Carolina Cambeses Pareschi Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 195 196 Ana Carolina Cambeses Pareschi Figura 2 – Organograma do PP-G7

Projetismo e Desenvolvimento Sustentável: O Caso dos Pequenos Projetos 197

– PARTE 02 –

NORMAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL . . . .201

1. O Direito Ambiental Internacional como questão de alta relevância internacional . . .201 2. Os instrumentos em matéria de Direito Ambiental Internacional ...... 204 3. A Agenda 21 ...... 207 4. A questão das normas ambientais ...... 207 5. Conclusões ...... 210 REFERÊNCIAS ...... 211

A “CIDADANIA ATIVA” COMO NOVO CONCEITO PARA REGER AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE AS SOCIEDADES INDÍGENAS E O ESTADO MULTICULTURAL BRASILEIRO ...... 215

REFERÊNCIAS ...... 228

MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO E A GARANTIA DO CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...... 231

1. Considerações iniciais ...... 231 2. Direito ao meio ambiente e os direitos humanos ...... 232 3. A relativização dos direitos fundamentais ...... 237 4. Conteúdo Essencial. Conceito e características ...... 240 5. O Conteúdo Essencial no Direito Comparado ...... 243 6. Considerações de ordem prática ...... 244 7. Conclusão ...... 245 REFERÊNCIAS ...... 246

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional

Edson Ricardo Saleme1

1. O DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL COMO QUESTÃO DE ALTA RELEVÂNCIA INTERNACIONAL

meio ambiente sempre foi assunto amplamente debatido Ono universo jurídico que fazemos parte. Os recursos são escassos e a preocupação dos mais conscientes recrudesce a cada dia diante de atos e fatos que se verificam como sendo originários, muitas vezes, do próprio governo. Muita teoria há a esse respeito e a humanidade rumaria, talvez, na direção correta se, de fato , os “direitos humanos” fossem não apenas uma teoria, mas também um objeto de meditação, mormente diante de tantas transgressões aos preciosos recursos que a natureza colocou à disposição da humanidade. A presença do Estado como ente que dá a proteção ao indivíduo foi tema de amplo debate entre filósofos e juristas envolvidos no processo de democratização dos autoritários estados do passado. No entanto, quando a civilização iniciou seu processo de descaso ao meio ambiente, pouco se falou da ingerência do Estado para proteger esses recursos escassos e finitos. A atuação e presença do Estado, no estágio da civilização que nos encontramos, ainda é necessário, assim como foi no passado. Os economistas e juristas marcam três fases estatais, que serão abaixo verificadas. Atravessa-se, neste momento, a controvertida fase

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e da Universidade Católica de Santos.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 201 neoliberal. Percebe-se que a atuação do Estado ruma para algum lado, sem saber decerto qual é. Entretanto, parece que existe, por parte de setores significativos da sociedade, um substancial número de pessoas preocupadas com o destino dos recursos naturais esgotáveis do nosso planeta. Esta fase ainda não apresentou traços definidos que possam ser considerados indeléveis em matéria ambiental. Nota-se que a ordem do dia do neoliberalismo é “normatização”, como sendo o elixir perfeito para a cura de todos os males. O Liberalismo, cujo período mais marcante foi entre 1815 e 1914, confiante nas idéias de Adam Smith, consagrava o adágio de que “governa melhor o governo que governa menos”. A abstenção de ações governamentais marcou essa fase estatal, também conhecida como État gendarme, cuja preocupação nuclear era a proteção à propriedade privada e do próprio Estado. O Liberalismo emoldurou o Estado racional normativo ocidental, o constitucionalismo e as garantias dos direitos individuais; teve doutrinadores como Locke, Montesquieu, Stuart Mill, Jefferson, entre outros. Na opinião Adriano Moreira, o núcleo dos valores característicos do liberalismo é, porém, claramente identificável; e, entre eles, destacam-se o valor da pessoa, os direitos naturais do Homem, o valor supremo da liberdade, uma visão antropocêntrica da vida, a perspectiva universalista dos direitos e dos deveres, a tolerância moral e religiosa.2 Nesse período de inação estatal surgiram as primeiras declarações de direito e constituições francesas do final do século XVIII. São os famosos direitos de primeira geração que já urgia serem defendidos diante de violações de ordem predominantemente patrimonial. No Brasil, a Constituição imperial deixou consignada a mesma tendência que se alastrava na Europa continental, consagrando, no âmbito interno, o que se expunha nas declarações e conferiam como garantias constitucionais, em matéria de direitos humanos. Ao contrário do que supunham os defensores do liberalismo, no sentido de que o afastamento do Estado traria um comércio mais “saudável”, logo no final do século XIX e início do século XX, o Liberalismo não logrou esconder suas fraquezas, resultando na sua inevitável decadência. O surgimento da doutrina socialista e outra, com tendência à intervenção estatal fortemente sugerida como solução aos problemas, cujo principal expoente foi Keynnes, inaugurou uma nova fase. A Encíclica de Leão XIII também criticou a inércia estatal e a culpava pela excessiva concentração de rendas e a

2 MOREIRA, Adriano. Teoria das relações internacionais. Coimbra: Livraria Almedina, 1997, p. 339-394.

202 Edson Ricardo Saleme ausência de ingerência estatal em setores de primeira necessidade. Passaram a existir novos modelos de planejamento econômico e político, passando o Estado a assumir posturas mais ativas e repressivas, tendentes a propiciar uma vida com melhor qualidade, sobretudo por meio de sua ação interventiva, normativa e repressiva. Denominou-se Estado-providência ou Welfare State, a assunção, pelo Estado, de seu papel protetivo e intervencionista. Diante desse quadro singular, as Constituições modernas passaram a garantir os chamados direitos de segunda geração, cujo objetivo foi reafirmar os de primeira geração e estendê-los aos menos favorecidos. Dispositivos de ordem econômica e trabalhista passaram a integrar o texto constitucional. Aponta-se a Constituição de Weimar, de 1919, como o primeiro texto constitucional a consignar direitos de tais magnitudes reafirmando sua importância em matéria de reconhecimento e garantia desses novos direitos.3 Essa necessidade imposta pelo Estado em que se atingiu o desenvolvimento humano e a observância do que o futuro reservava exigiu uma postura mais cuidadosa dos poderes públicos e da própria sociedade diante da possibilidade de escassez dos recursos naturais. Esse foi o gérmen de uma série de medidas propostas pelos mais diversos organismos internacionais que formam as bases do que se denominou, mais tarde, Direito Ambiental Internacional. O Direito Internacional, ao contrário, é um ramo consideravelmente mais antigo que aquele com princípios, institutos e objeto próprios. Sua importância, em nosso país, foi sublinhada a partir da Convenção de Estocolmo, em 1972. Pode-se afirmar, outrossim, que o direito aqui analisado é recente e surgiu, como veremos a seguir, a partir da pressão de inúmeros grupos que observaram que os valores econômicos estavam predominando diante dos recursos naturais esgotáveis. A degradação do meio ambiente passou a ser tema que não saía das pautas de diversas reuniões internacionais; várias entidades foram cometidas de novas responsabilidades no âmbito ambiental, como a elaboração de legislação própria, entre outras ações necessárias à contenção de atos de violação do equilíbrio ambiental. Nesse contexto, surgiram os chamados direitos de terceira geração, concebidos a partir do que se presenciava diante de determinadas situações e segmentos da atividade humana, fosse ela econômica, da saúde e, principalmente, do meio ambiente. A iniciativa de se

3 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto, in apresentação à obra Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, de PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 20.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 203 introduzir direitos capazes de assegurar um ambiente saudável, sob todos os pontos de vista, surgiu do temor do futuro reservado às gerações vindouras. Cançado Trindade, ao referir-se a essa cadência de direitos humanos, afirmou que os diversos direitos não se sucedem; ao contrário, são cumulados e fortalecidos. Ainda infere que “Contra as tentações dos poderosos de fragmentar os direitos humanos em categorias, postergando sob pretextos diversos a realização de algum destes (e.g., os direitos econômicos e sociais) para um amanhã indefinido, se insurge o Direito dos Direitos Humanos, afirmando a unidade fundamental de concepção, a indivisibilidade e a justiciabilidade de todos os direitos humanos”. Os direitos humanos que se sucedem e se reafirmam marcam o desenvolvimento da humanidade rumo ao reconhecimento de institutos que passam a integrar ramos específicos do Direito. A inserção desses novos valores na órbita jurídica lhes outorga proteção até então inexistente ou frágil. Fato ainda mais importante é a observância desses fatores por órgãos de âmbito internacional, que eleva a questão a patamares superiores, por tratar-se da preservação da existência humana, fato que por vezes parece subjugado pela avidez capitalista. A seguir será examinado como se conceberam os diversos dispositivos que existem em matéria de direito internacional ambiental e a adequação do Brasil aos novos ditames, de maneira a inseri-lo no contexto nacional protegendo também os recursos aqui existentes.

2. OS INSTRUMENTOS EM MATÉRIA DE DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

A razão de ter-se afirmado que o Direito Internacional Ambiental é ramo recente do eixo central Direito, considerando o fato de que a repartição de um ramo ocorre por motivos simplesmente didáticos ou sistemáticos, nunca extraindo seus elementos jurídicos de unicidade e harmonia da ordem, é que a Corte Internacional de Justiça, órgão máximo das Nações Unidas foi solicitada a pronunciar-se somente em 1973, quando os governos da Austrália e da Nova Zelândia contestaram a legalidade dos testes nucleares atmosféricos realizados pelo governo francês. O direito internacional público baseia-se, sobretudo, nos diferentes casos internacionais julgados pela referida Corte. O caso mencionado, denominado, Nuclear Tests Case foi um

204 Edson Ricardo Saleme dos primeiros, senão o primeiro, a ser aventado um caso de dano ao meio ambiente por um Estado a outros. Apesar do Órgão internacional não ter votado por apego a aspectos processuais, o caso tornou-se relevante, passando a ser considerado um dos casos que inauguraram ou deram chance ao nascimento do Direito Ambiental Internacional, mencionado nos diversos compêndios que tratam do tema.4 Mesmo havendo sérios problemas na implementação das sanções, a Corte Internacional de Justiça é instada várias vezes a pronunciar-se acerca de questões envolvendo dois ou mais Estados estrangeiros que não lograram, per si, chegar a uma conclusão final. Porém, as decisões da Corte não foram o primeiro passo para a existência efetiva do Direito Ambiental Internacional. O primeiro e mais importante passo para a formação de um ato internacional em torno do tema foi a Confederação de Estocolmo de 1972, reunindo cerca de 113 Estados, a partir de uma recomendação da Ecosoc – Conselho Econômico e Social da ONU. A proposta, aceita pela Resolução n.º 2.398, de 3 de dezembro de 1968, estabeleceu que o ano de 1972 seria o da realização do evento. Dois anos depois, a Suécia aceitou sediar a Conferência. A Convenção foi efetivada e foram estabelecidas metas a serem cumpridas pelos países integrantes, que obtiveram total apoio dos órgãos internacionais envolvidos. A Recomendação n.º 96, da Conferência reconheceu que a educação ambiental, com a introdução de educação elementar para o cidadão comum seria de fundamental importância para a garantia de um futuro saudável e harmonia do homem com o meio ambiente onde vive. Apesar da relevância da mencionada Recomendação, que determinava a obrigação dos Estados em manter sistema educacional e informativo sobre a ação do homo no meio ambiente, as Resoluções que deram maior relevância ao Direito Internacional Ambiental, na Conferência de Estocolmo, foram as que tomaram os números 21 e 22, institucionalizadoras da responsabilidade dos Estados em face dos atos de sua autoria prejudiciais ao meio ambiente e que tenham repercussão fora de sua área territorial, melhor dizendo, em outros territórios. Ainda que reconhecidamente um passo importante na proteção ao meio ambiente, o Direito Internacional Ambiental tem, ao que se observa pela leitura mais acurada das Resoluções citadas, um sério obstáculo a transpor: a questão da coexistência pacífica das soberanias. Na Conferência foi amplamente reforçada a necessidade de

4 PECK, Connie; LEE Roy .in Increasing the effectiveness of The International Court of Justice., Nederlands: Martin Nijhoff Publishers/Unitar, 1997, p. 404.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 205 uma flexibilização na legislação dos diversos Estados presentes, diante de eventuais problemas que possam surgir em matéria de defesa dos recursos ambientais. Talvez essa seja uma das complexas tarefas a cargo do novo ramo que tomou maior impulso após a Conferência. A idéia de uma possível “flexibilização da soberania” não foi algo bem- aceito por países em fase de desenvolvimento, como o nosso e tantos outros na América Latina, em meados dos anos 70 do século XX. Ainda que pareça algo recente, observe-se que o conceito de soberania esculpido nos ensinamentos de Hegel, Hobbes e Rousseau foi descartado desde o século XVI, quando se traçaram as primeiras linhas do Direito Internacional Público, mesmo sem as características que hoje possui. A soberania, com os traços rígidos que se depreendia de sua significação, auxiliou alguns Estados a se firmarem economicamente, mormente pela unificação do poder, redução das guerras intestinas de ordem civil ou religiosa e centralização do poder geralmente nas mãos de um soberano. Para os estudiosos tradicionais, a nação soberana seria aquela governada por um governo, representantes do povo ou de alguma classe que mantinha algum vínculo jurídico com outros Estados. Pelo que concebia Jellinek, houve uma evolução histórica da soberania estatal. A soberania seria antes um traço inconfundível de um Estado que não reconhecia nenhum outro poder soberano superior a si. Assim, seria independente, supremo com todas as características de potestade.5 A questão da soberania foi amplamente debatida em foros internacionais e, atualmente, fala-se em uma soberania limitada aos chamados Estados-nação, reconhecendo-se que existem interesses maiores e de maior significação do que a própria afirmação do Estado como ente soberano: a humanidade e os recursos limitados que existem em nosso planeta. Muito se avançou com a realização da Conferência de Estocolmo para o surgimento de um novo jus, preocupado com a manutenção da vida no planeta e outros aspectos de relevante importância relegados, até então, em segundo plano, sob o ponto de vista governamental. Sua principal função seria criar mecanismos, por meio do direito positivo ou não, que possam auxiliar os Estados na defesa do meio ambiente, bem como outros que auxiliem nações prejudicadas por atos de infração ambiental cometidas por seus vizinhos. A dificuldade de se firmar o Direito Ambiental Internacional é a mesma do Direito Internacional, qual seja, a de conter dispositivos denominados soft law, ou seja, sem poder

5 JELLINEK, Georg. Teoría general del estado. Buenos Aires: Albatroz, 1954, 356.

206 Edson Ricardo Saleme vinculante (non-binding). Trata-se mais especificamente de uma orientação que propriamente uma imposição, revestida de forma jurídica que se afasta do tradicional binômio infração-sanção e da necessidade de convertê-lo em conjunto de normas a serem revestidas de penas sancionadores pelo Estados. Aqui cito Derani, que bem expressou essa nova forma de “impor” das normas jurídicas: “O Direito – também o direito internacional – é fundamentalmente uma orientação do comportamento coletivo, aonde vão nutrir-se as relações contratuais privadas. Seu caráter, organizador – despido aqui da conotação da polícia e coerção, porém investido de um poder muito mais sutil e não pontual – traz a possibilidade de implementar atos e valores que, embora presentes difusamente nos interesses da sociedade em que se insere, não atingiram sua completa manifestação... O Direito é um todo e, quando se trata da relação entre o Direito Internacional e o Direito Interno, a lógica kelseniana deve ser deixada, porque não é capaz de responder satisfatoriamente a suas imbricações... Numa lógica mais sutil, admitindo a existência de hierarquias... é possível admitir a precedência do Direito Internacional”.6 A dinâmica do novo jus consiste em mecanismos sutis, reconhecidos como soft law, que não devem ser relegados a instâncias inferiores, mas sim reforçados pela legislação positiva. Supõe-se que um avanço na consciência da humanidade implicaria na retirada, gradativa, de normas cogentes, com conteúdo sancionatório. Isso quer dizer que o próprio ser, perceberia a gravidade de seu ato e por ele teria maior responsabilidade, sem transgredir preceitos. O Direito Ambiental tem essa tendência avançada. Contudo, ainda faz-se necessária a existência de normas cogentes e obrigatórias a coibir ações e prever sanções. Destarte, há de se conviver com todos os meios que o direito disponibiliza em termos normativos e dispositivos. Isso reafirma que não se prescinde da positivação, nos dias atuais, do maior número de regras possíveis para a defesa do meio ambiente.

3. A AGENDA 21

Como foi sublinhado acima, o Direito Internacional Ambiental tem também uma forma diversa de imposição e, mesmo se tratando de um ato com natureza jurídica ímpar, que toma a forma de uma simples convenção ou resolução, passa e existir de forma concreta

6 DERANI, Cristiane. “Aspectos jurídicos da Agenda 21”. In Direito Ambiental Internacional. Santos: Leopoldianum, 2001, p. 71 e 72.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 207 para os Estados signatários. A formação e assinatura de tais atos nada mais são do que o reconhecimento, pelos Estados signatários, de que existe algo crucial, cuja importância é de interesse transnacional. O ato deve contar com a aquiescência dos Estados envolvidos, seja com a presença das costumeiras normas sancionatórias ou mesmo com o soft law que caracteriza os atos internacionais. A Agenda 21, uma das mais importantes reuniões de meio ambiente ocorridas após a de Estocolmo, foi reconhecida como sendo um programa a ser implementado neste milênio; foi o resultado da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Esse documento, conforme indica o próprio Ministério do Meio Ambiente “é um processo de planejamento estratégico participativo. Este processo está sendo conduzido pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional – CPDS. A metodologia de elaboração da Agenda privilegia uma abordagem multissetorial da realidade brasileira, procurando focalizar a interdependência das dimensões ambiental, econômica, social e institucional, teria outra característica que a tornaria também única diante da precedente donde se originou a Declaração sobre o Ambiente Humano: a idéia de uma parceria entre governo, setor produtivo e sociedade civil”.7 Esse evento, conhecido também como “Rio–92”, contou com a participação de 170 países. A etapa mais importante para a implementação das medidas indicadas foi a imediata internalização das proposições que a Agenda indicou, mormente no que se refere às políticas públicas brasileiras, o que repercute nos planos plurianuais, que as diversas pessoas jurídicas de Direito Público Interno são obrigadas a apresentar a cada início de gestão, no qual se indicam onde serão aplicados os recursos públicos obtidos por meios de receitas. Nessas políticas e alocações de recursos governamentais devem estar expressos todos os mecanismos que o ente federativo acionará em caso de desequilíbrio no meio ambiente e, sobretudo, medidas preventivas para evitar práticas depredatórias ao mesmo. Não serão mencionados os mecanismos de ordem interna para a prevenção e repressão de infrações ao meio ambiente. Porém, deve- se deixar registrado que os diversos níveis de legislação interna absorveram as inúmeras normas de orientação ambiental de âmbito internacional. Vários códigos e leis ambientais foram criados e novas

7 MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. http//www.mma.gov.br.

208 Edson Ricardo Saleme normas e dispositivos foram implementados pelo Legislativo com o fito de não transgredi-las. Não há uma passividade em termos de legiferacão constitucional ou infra-constitucional. Tanto nossa Carta Maior disciplina alguns dispositivos de ordem ambiental, como também nossa legislação civil, penal e administrativa. Todas, se regularmente cumpridas, podem proteger o meio ambiente. Interessante mencionar os mecanismos de proteção ambiental criados a partir da elaboração da Agenda 21. Foram eleitos cinco elementos como capazes de abranger a heterogeneidade das regiões brasileiras inseridas em um contexto de sustentabilidade ampliada. A plêiade de eixos temáticos desenvolvidos durante a jornada foram: 1) Cidades Sustentáveis; 2) Agricultura sustentável; 3) Infra- estrutura e Integração Regional; 4) Gestão dos Recursos Naturais; 5) Redução das Desigualdades Sociais; e 6) Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Sustentável. Um dos fatores que também foram importantes na eleição de tais eixos temáticos foi o fato de que tiveram como princípio para sua definição, além da análise das potencialidades, a observância das fragilidades historicamente reconhecidas em nosso processo de desenvolvimento. Entre as principais ocorrências que depredam o meio ambiente em nosso território foi a urgente necessidade de diminuição das desigualdades sociais. Constatou-se que a pobreza é um dos principais agravantes da depredação da natureza e isso já está afetando gravemente os recursos naturais. A Agenda 21 é, em suma, um instrumento dinâmico capaz de abarcar as áreas em que os recursos naturais existentes poderiam ser preservados. Se as políticas públicas e tudo o que está nela consignado forem, de fato, levados a cabo, será suficiente para inibir ou mesmo coibir práticas que possam prejudicar os recursos naturais. Não pairam dúvidas de que seu conteúdo é sério e que a reunião contou com membros de significante relevo da área ambiental. Na verdade, quem irá definir ou mesmo reafirmar o que foi consignado nesses instrumentos será a política ambiental adotada pelo Estado, que deve contar com estrutura capaz de proteger o meio ambiente. Isso, certamente, leva em consideração a forma econômica adotada pelo Estado e as metas estabelecidas por seu governo. O que se observa, inobstante, é a transformação do capitalismo puro por um capitalismo cego e despido de preocupações futuras: o capitalismo financeiro. Neste, por vezes, as normas nada mais são do que instrumentos que dão legitimidade a atos espúrios e corporativos, contrários ao interesse coletivo.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 209 4. A QUESTÃO DAS NORMAS AMBIENTAIS

Foram louváveis os esforços estabelecidos até aqui pelas diversas conferências e seus resultados podem ser notados nas legislações dos mais diversos países do globo. Com os atuais instrumentos que atualmente existem não deveria passar despercebido qualquer ato atentatório ao meio ambiente. Isso foi obtido por meio dos incessantes esforços das organizações intergovernamentais e das organizações não-governamentais que passaram a ter papel de relevo na defesa do meio ambiente. Antes de mencionar aspectos peculiares de nossa legislação nacional diante de tantas resoluções e atos internacionais que alteraram profundamente a legislação ambiental, faz-se importante sublinhar que depois da Conferência de Estocolmo e antes do que ocorreu na “Rio–92”, outros dois eventos de primeira grandeza ocorreram em matéria de meio ambiente: a Terceira Conferência sobre Direito do Mar, resultou na Convenção de Montego Bay, Jamaica, em 10 de dezembro de 1982 e os três anos de estudos levados a cabo para a confecção da Comissão Brutland, cujo principal objetivo foi a criação do conceito síntese sobre desenvolvimento sustentável. A Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1987 recebeu o completo relatório que contou com a participação de inúmeros segmentos interessados em seu resultado. Uma de suas mais primorosas conclusões, que a Convenção de Estocolmo já havia tocado no ponto, foi o de que o desenvolvimento sustentável está intimamente ligado às políticas públicas e decisões governamentais. Certamente uma política bem direcionada conduziria a uma educação adequada e consciente, uma distribuição razoável de renda e infra-estrutura capaz de manter o meio ambiente satisfatoriamente protegido e estável. Todos esses instrumentos possuem estudos aprofundados e chegaram a conclusões extremamente exatas, que podemos comprovar por meio de nossa experiência como cidadãos de um país em vias de desenvolvimento. Louváveis foram suas conclusões e esforços no sentido de se chegar a um momento em que a humanidade reconheça que os recursos que hoje lhe servem não são perenes, mas sim frágeis e merecedores de alta consideração por parte de todos, mormente daqueles que detém o poder governamental e econômico do país. O pouco caso dado às questões ambientais pelas autoridades governamentais são questões que vemos diante de

210 Edson Ricardo Saleme nossos próprios olhos e, ao contrário do que os relatórios geralmente apontam, não somente a pobreza afeta severamente ambiente. As ações e omissões governamentais afetam severamente o ambiente quando “não percebem” que sua aprovação está lesando a natureza: quanto a isso pode-se citar o exemplo da aprovação de um loteamento de alto padrão em área de mananciais ou de reserva ambiental. De igual forma deve repudiar invasões a áreas de reserva e não dotá-las de infra-estrutura para que os indivíduos continuem lá habitando. Diante de tudo o que foi exposto pode-se concluir que não faltam normas ou mesmo qualquer outro elemento formal para que se possa pôr em prática os mecanismos de defesa ambiental. O que deveria realmente ocorrer seria uma punição mais rápida e efetiva, por parte do Ministério Público, dos agentes públicos responsáveis pela guarda do meio ambiente e que venham a sugerir medidas adequadas para determinadas situações, cujo dano ao meio ambiente é inevitável. Há suficiente número de normas. Há, incontes- tavelmente, por parte de agentes e órgãos públicos transgressão de preceitos legais e maior agilidade na tramitação de processos que versem sobre crimes ambientais.

5. CONCLUSÕES

Os direitos humanos são longamente defendidos e reverenciados. Contudo, na prática, vê-se, cada vez mais o econômico surgindo como fator de primeira grandeza em detrimento dos já depauperados recursos que a natureza brindou o ser humano. Um mecanismo protetivo desses recursos deve originar-se como obrigação transnacional e que venha a amparar a humanidade e as gerações futuras. O Estado surge como defensor dos interesses maiores da sociedade que habita seu território, em face da irracional exploração humana dos recursos naturais. A formação do Estado moderno, como hoje conhecemos, surgiu a partir da Revolução Francesa. As primeiras constituições modernas e as declarações sempre enalteceram aspectos relevantes para a sobrevivência humana; contudo, elevaram também o valor da propriedade e soberania, o que se contrapõe, de alguma forma, com uma política de proteção ao meio ambiente daqueles que desrespeitam normas ambientais. O Estado Liberal, surgido logo após a Revolução Francesa sempre apegou-se ao laissez faire et laisser passer et le monde va par lui même. Essa consagrada afirmação de Du Pont, foi um dos cruciais

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 211 elementos que comprovam a inação estatal, mesmo diante das mais diversas atrocidades que o econômico pôde chegar em relação ao ser humano. Diante dos inúmeros movimentos sociais e das crises originadas pela passividade do Estado, surgiu a necessidade de sua intervenção ativa, seja por meio de normas ou atos, ou mesmo medidas que possam ser necessárias à defesa dos interesses coletivos. Daí surgiu o Estado Intervencionista, o Welfare State, consagrado por Franklin Roosvelt. Como sucessão das ações estatais, surgiram os entes internacionais, o Direito Internacional Público, como defensor dos interesses maiores da humanidade, defesa da paz e do equilíbrio entre os Estados. Esse ramo jurídico, conhecido igualmente como direito das gentes, tem como objeto as mais diversas áreas que possam afetar o equilíbrio da humanidade. Uma delas áreas foi a ambiental, o que consagrou a existência de um novo ramo jurídico o Direito Ambiental Internacional. Reafirmado seu valor na Conferência de Estocolmo de 1972, surgiu, especificamente pela aprovação das Resoluções 21 e 22, como um direito supra-estatal, cujo núcleo central nada mais seria do que as necessidades vitais para a manutenção da vida sobre os Estados do planeta versus a coexistência pacífica das soberanias. A Conferência de Estocolmo de 1972 foi o marco inicial que propiciou a ocorrência de outras Conferências como a de Montego Bay, de 1982 e o relatório da investigação internacional levada a cabo pela Comissão Brutland, até 31 de dezembro de 1987, quando entregou seu relatório à Assembléia Geral das Nações Unidas. Esse relatório confirmou que os Estados em geral devem manter estrutura democrática e as decisões políticas governamentais devem, como condição sine qua non para a validade de seus atos, considerar os aspectos frágeis do meio ambiente não só de seu território como de seus vizinhos. Ainda que se possa alegar que as diversas normas contidas nas Resoluções e convenções seja o que se denomina soft law, a legislação nacional, encabeçada pela Constituição Federal de 1988 e suas respectivas emendas, já possui grande número de elementos necessários à manutenção dos ambientes naturais e renováveis. O papel do Estado aqui é fundamental e neste ponto a opinião da Comissão Brutland traduz o anseio da humanidade sadia sobre o globo e deve existir conscientização de que são imprescindíveis políticas públicas democráticas e condignas capazes de oferecer aos governados condições adequadas para realizar suas aspirações de uma vida

212 Edson Ricardo Saleme melhor, assim evitando a pobreza e conseqüências nefastas paralelas. O Estado passou por fases distintas que marcam uma maior ou menor intervenção estatal. Normas ambientais são criadas, cada vez, em maior número. O que deve existir, de maneira patente é uma política que venha a abranger União, Estados, Distrito Federal e Municípios com transparência, moral e simplesmente de respeito às normas. Para efetivação desses atos deve-se munir o Ministério Público e o Judiciário de elementos capazes de dar maior agilidade à realização desse controle, sem o que, mais uma vez, o meio ambiente sairá definitivamente prejudicado para esta e futuras gerações.

REFERÊNCIAS

DERANI, Cristiane e COSTA, José Augusto Fontoura (organizadores). “Aspectos jurídicos da Agenda 21”. In: Direito Ambiental Internacional. Santos: Leopoldianum, 2001. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. http//www.mma.gov.br. MOREIRA, Adriano. Teoria das relações internacionais. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996, p. XVIII. PECK, Connie; LEE Roy. In: Increasing the effectiveness of The International Court of Justice. Nederlands: Martin Nijhoff Publishers/Unitar, 1997, p. 404. ROUSSEAU, Ch. Droit international public. Pris: Sirey, 1953. WOOD, Ellen Meiksins. Democracy against capitalism. Cambridge: Cambidge University Press, 1999.

Normas e Políticas Públicas no Direito Ambiental Internacional 213

A “cidadania ativa” como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro

1 Fernando Antonio de Carvalho Dantas

cidadania, tradicionalmente concebida como sinô- Animo de nacionalidade, decorrente do título legal concedido pelos Estados aos indivíduos que integram seu corpo social com igualdade, homogeneidade, identidade e aspirações comuns, reduzida ao espaço nacional, requer transformações no atual contexto mundial.2 Esse contexto é caracterizado externamente pela construção política de espaços transnacionais com evidente predomínio do interesse econômico e, no âmbito interno dos Estados, pela diversidade sociocultural e étnica historicamente invisibilizada pelo violento processo de homogeneização social e cultural. Pugnar por uma nova cidadania significa romper limites. Os clássicos limites conceituais à própria cidadania, ao Estado e ao direito. Os limites do Estado monocultural, assim como do direito monístico, provocou a exclusão das diferenças étnicas e culturais, de modo velado pela suposta universalidade do princípio da igualdade e pelo difundido conceito de cidadania legal, igualitária e indiferenciada, baseada na dialética interno/externo e, em termos

1 Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha. Membro do Conselho Diretor da Fundação Ibero-Americana de Direitos Humanos. 2 Não é propósito do presente trabalho, discorrer detalhadamente sobre a evolução histórica do instituto da cidadania, o que implicaria apresentar, de modo contextual e consistente, as diferentes teorias formuladas desde os seus primórdios atenienses, passando pelo civis romanus e citoyen francês e finalmente chegando à idéia moderna ocidental consagrada a partir de diferentes formas de Estado e de sistemas políticos. Portanto, optou-se pela discussão a partir da contemporaneidade com algumas incursões históricas e teóricas, quando pertinentes ao tema específico dos povos indígenas.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 215 identitários, nós e os outros. Assim, no intento de romper com a exclusão que marcou a história dos povos indígenas brasileiros, propõe-se para estes uma cidadania nova e resignificada baseada no alargamento da idéia de vínculos sociais, culturais, jurídicos e políticos de pertença concomitante às suas sociedades e culturas particulares e ao Estado. Esta questão tem estimulado intensos debates provocados pelo processo de globalização econômica, cultural e política e pelas reivindicações de reconhecimento das diferenças. FARIÑAS DULCE, baseada no novo contexto mundial de descentralização jurídica, da pluralidade cultural e normativa e, principalmente, das exigências de reconhecimento jurídico e político das diferenças e das heterogêneas identidades étnico-culturais, bem como na insuficiência conceitual da noção clássica de cidadania, propõe um repensar desta a partir de dois espaços reguladores e interdependentes. O espaço particular, interno aos Estados nacionais que deve gerar a noção de “cidadania fragmentada ou diferenciada” e o espaço externo, transnacional, global, não vinculado à regulação do Estado nacional e a sua territorialidade, 3 gerador da noção de “cidadania cosmopolita ou global”. A cidadania diferenciada, segundo a autora, deve ser fundada no reconhecimento do direito à diferença como valor jurídico e político que propicie – calcada em princípios democráticos – a preservação e manifestação da identidade, assim como a participação pública nos âmbitos político, social, cultural e econômico, desde e com suas diferenças. Isto equivale dizer que é a participação do sujeito diferenciado, duplamente contextualizado e relacionado no seu universo particular e comunitário bem como no âmbito do Estado. Já a cidadania cosmopolita ou global seria aquela que transcende as fronteiras e a soberania do Estado-nação, se transnacionaliza, uma categoria de cidadania globalizada.4 Para os contornos da cidadania indígena que se pretende oferecer no presente trabalho, a conjugação das duas formas de cidadania acima descritas pode oferecer uma ampla possibilidade emancipatória dos povos indígenas, tanto no contexto local como no global. Em primeiro lugar, porque historicamente foi negado aos índios o direito de expressar suas identidades e diferenças tendo em vista a violência dos processos de morte lenta, física e cultural, ou seja, da “idéia de inevitabilidade de seu desaparecimento como experiência coletiva viva, capaz de repor suas instituições a cada ato,

3 FARIÑAS DULCE, Maria José. Globalización, ciudananía y derechos humanos. Madrid: Dinkinson/Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas/Universidad Carlos III de Madrid, 2000, p. 35-36. 4 FARIÑAS DULCE, M. J., op. cit., p. 36-44.

216 Fernando Antonio de Carvalho Dantas capaz de manter, no tempo, uma cultura própria”.5 Em segundo, porque, na atualidade, a inefetividade das normas constitucionais de reconhecimento impedem seu exercício pleno, portanto, é tímida a participação política dos índios nos âmbitos do Estado,6 assim, se constitui em um vir a ser realidade e, por último, os movimentos sociais indígenas reivindicam direitos e constroem espaços de luta que extrapolam o contexto do Estado nacional. A tarefa não é simples. Basta o dado depopulacional comparativo entre o que foram, em números, os povos indígenas no início do processo de colonização e a população indígena atual. De aproximadamente 3 milhões foram reduzidos a 350 mil,7 para constatar que as relações históricas dos povos indígenas com a sociedade nacional resultaram em situações violentas de extermínio físico, o que as caracteriza como processos genocidas, e, por conseguinte, extermínio cultural que configura “epistemicídios”, na expressão de SOUSA SANTOS.8 Por outro lado, pode-se dizer, também, que a política assimilacionista levada a cabo pelo Estado, por meio dos programas institucionais de integração dos povos indígenas à comunhão nacional, visando a emancipação individual e integração no sistema produtivo capitalista9 e conseqüente descaracterização ou desapare- cimento das respectivas sociedades, em nome da civilização, da liberdade e da igualdade, consistiu em “epistemicídio”. Assim, em contextos histórico e político tão adversos aos povos indígenas, a igualdade de direitos na perspectiva assimilacionista

5 PAOLI, Maria Célia Pinheiro Machado. O sentido histórico da noção de cidadania no Brasil: onde ficam os índios? In: COMISSÃO PRÓ-INDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 21. 6 Atualmente, apenas três representantes indígenas ocupam assento em órgãos consultivos federais da administração pública: Francisca Novantino-Paresi no Conselho Nacional de Educação, Escrawen Sompré-Xerente no Conselho Nacional do Meio Ambiente e Azelene Kring Inácio-Kaingang no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e no Conselho Nacional de Combate à Discriminação. A Comissão intersetorial da saúde indígena do Conselho Nacional de Saúde tem, entre seus membros, os seguintes indígenas: Euclides Pereira, Clovis Ambrózio, Francisco Avelino Batista e Wilson Jesus de Souza. Participa, como convidado para assistência das reuniões do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, Edilson Martins Melgueiro-Baniwa. 7 RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global Editora, 1987. 8 Para o autor, “O privilégio epistemológico que a ciência moderna se concede a si própria é, pois, o resultado da destruição de todos os conhecimentos alternativos que poderiam vir a pôr em causa esse privilégio. Por outras palavras, o privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicídio. A destruição de conhecimento não é um artefato epistemológico sem conseqüências, antes implica a destruição de práticas sociais e a desqualificação de agentes sociais que operam de acordo com o conhecimento em causa”. SOUSA SANTOS, B., op. cit., p. 242. 9 Através de projetos institucionais no âmbito do “Programa de Desenvolvimento de Comunidades Indígenas”, administrativamente conhecidos como “Programas de Desenvolvimento Comunitário”. Na prática, esses programas desenvolveram uma desastrosa sistemática de substituição dos sistemas de produção de subsistência baseados na policultura tradicional dos povos indígenas, pelo sistema de agricultura capitalista intensiva e monocultora, principalmente, no sul do país. Segundo o discurso oficial “Estes programas de desenvolvimento comunitário são elaborados de acordo com as aspirações das comunidades indígenas, e têm como objetivo a estruturação dos setores da economia de subsistência e de comercialização, desenhando ações concretas para o engajamento das comunidades indígenas com grau de aculturação mais elevado, no processo de desenvolvimento econômico e social”. Funai – Fundação Nacional do Índio. Legislação, Jurisprudência Indígenas. [s.l.]: 1983, p. 3.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 217 significa morte, porque representa um diluir-se no conjunto social homogêneo da sociedade nacional. Morte, quando não física, cultural. A cidadania clássica, portanto, como instituto fundado na igualdade e na liberdade, segue no significado, o mesmo destino. O conteúdo do conceito de cidadania, para MARSHAL envolve três categorias de direitos: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais.10 Os direitos civis e políticos constituem uma gama de direitos fundamentais relacionados ao indivíduo como sujeito de direitos e obrigações e, de um modo geral, tratam da liberdade, da igualdade formal e da dignidade da pessoa; já os direitos sociais, de natureza coletiva, referem-se às condições de manutenção e reprodução da vida em sociedade. Como libertar tem o sentido de igualar no âmbito conceitual da cidadania clássica, os índios com liberdade e igualdade seriam os índios emancipados que deixariam de ser índios, abandonariam a diferença cultural e organizativa. Seriam os índios cidadãos, iguais, em direitos, aos cidadãos nacionais. Essa perspectiva que orientou ideologicamente a legislação brasileira referente a estes povos constituiu, como já foi visto, a noção de pessoa em transição da barbárie à civilização. A mesma dialética campo/cidade e interno/externo que orienta a definição do instituto da cidadania. Deste modo, as desastrosas evidências empíricas dos processos institucionalizados de transformação do índio em não-índio – depopulação, descaracterização cultural, exclusão, marginalização, entre outros – para atingir o estatuto de cidadão, provocam uma necessidade de questionamento sobre os “custos” dessa transfor- mação como assinala SOUZA, para quem:

A possibilidade de se antepor à inevitabilidade das leis do desenvolvimento capitalista nos remete à questão fundamental: como impedir a destruição dos povos indígenas? Como garantir a sua liberdade de existência? É no interior desse quadro que cumpre verificar se a extensão da cidadania às populações indígenas significará a sua sobrevivência e sua liberdade. Ou se, ao contrário, longe de implicar a condição de sua preservação, seria um golpe de morte na sua liberdade de viver e sobreviver e a implantação violenta de uma igualdade. Igualdade essa que, ao tudo ‘igualar’, termina com as diferenças e, portanto, com a liberdade.11

10 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1963, p. 67. 11 SOUZA, Maria Tereza Sadek R. de. Os índios e os “custos” da cidadania. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 41-42.

218 Fernando Antonio de Carvalho Dantas Do ponto de vista estritamente jurídico, salienta SOUZA FILHO, o conceito de cidadania se vincula ao conceito de Estado implicando em direitos e obrigações com uma ordem política e jurídica em cuja elaboração e sentido os povos indígenas não contribuíram nem comungam, porque são sociedades sem Estado e, também, por possuírem valores, sistemas simbólicos e organização social diferenciados dos da modernidade ocidental. Portanto a inexistência de vínculos sociais, culturais e políticos, poderia levar a conclusão de que os índios não são cidadãos brasileiros. Entretanto, conclui o autor, em razão do critério de determinação da cidadania adotado pelo direito brasileiro, baseado no jus solis, por nascerem no território nacional, os índios, individualmente, adquirem a cidadania brasileira. São, paradoxalmente, cidadãos brasileiros e possuem identidades culturais conflitantes com a identidade homogênea na- cional, portanto a cidadania indígena é uma ficção.12 Uma ficção jurídica tensionada, atualmente, pela necessidade de conjugar, harmonizar, os valores individuais da igualdade com os coletivos das diferenças.13 Portanto, a cidadania diferenciada indígena deve expressar um repensar das noções clássicas de sociedade, de Estado e do direito, e 14 conseqüentemente, do próprio conceito de cidadania, buscando, dialogicamente, a inserção pela participação democrática da pluralidade de sujeitos diferenciados indígenas desde seus contextos e identidades particulares, no contexto maior do Estado. Para que ocorra sem descaracterização cultural, esta inserção deve ser acompanhada das garantias da sobrevivência física e cultural dos povos indígenas nos seus espaços territoriais e com igualdade complexa baseada na diferença reconhecida constitucio- nalmente e no respeito à diversidade humana, social e cultural que representam. Um ponto de partida para a construção conceitual de uma nova cidadania diferenciada, que atenda a composição pluriétnica dos Estados contemporâneos, tanto intrínseca na realidade ibero-

12 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A cidadania e os índios. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 44-51. Muito embora a publicação do artigo tenha ocorrido em momento anterior ao do atual regime constitucional, tanto do ponto de vista do critério legal de aquisição da cidadania, como em relação ao problema da cidadania indígena, o pensamento do autor continua atual. No mesmo sentido, DALLARI, Dalmo de Abreu. Índios, cidadania e direitos. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 52-58. 13 FARIÑAS DULCE, M. J., op. cit., p. 39. 14 A “reformulação” da idéia de cidadania. Esse o entendimento de Antonio Enrique Pérez Luño, ao analisar o atual contexto político de integração dos Estados nacionais da Europa à União Européia. Propõe, para tanto, a noção de “cidadania multilateral”. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Diez tesis sobre la titularidad de los derechos humanos. In: ROIG, Francisco Javier Ansuátegui (org.). Una discusión sobre derechos colectivos. Madrid: Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas/Universidad Carlos III, 2002, p. 267.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 219 americana, como provocada pela imigração nos países do primeiro mundo, é oferecido por HERRERA FLORES e RODRÍGUEZ PRIETO. Para estes autores, a cidadania não constitui um status, portanto, um sujeito não é cidadão, ele “tem” cidadania; sendo assim, a concebem como uma técnica para o exercício da democracia pelos pressupostos de que:

Em primeiro lugar, a cidadania tem haver com algo mais além da pertença a um Estado-nação e sua correspondente legalidade. No mundo contemporâneo existem múltiplos espaços e legalidades que fazem da cidadania algo mais complexo do que a simples nacionalidade. Em segundo lugar, a cidadania não outorga algum estado ontológico. Não se é cidadão. Se tem ou não se tem cidadania. [...] Em terceiro lugar, que a cidadania não é um status, é uma técnica, um instrumento que usado corretamente pode nos permitir exercer a busca e a consolidação de outros instrumentos ou meios que nos aproximem do objetivo/projeto de auto-governo.15

A cidadania indígena, em atenção ao conjunto de direitos diferenciados reconhecidos constitucionalmente, exige o exercício desses direitos pela participação democrática dos índios nos processos institucionais estatais referentes a assuntos e âmbitos que lhes digam respeito e, também, à criação dos meios institucionais ou a heterogeneização das instituições estatais,16 o que permitirá o desenvolvimento e a construção simétrica de relações sociais indígenas entre eles mesmos, ou seja, entre os diversos povos que compõem a diversidade étnico-cultural, relações com a sociedade envolvente e com o Estado.

15 HERRERA FLORES, Joaquín e RODRÍGUEZ PRIETO, Rafael. Hacía la nueva ciudadanía: consecuencias del uso de una metodología relacional en la reflexión sobre la democracia. Crítica Jurídica: Revista Latinoamericana de Política, filosofia e direito, n.º 17, agosto/ 2000, p. 302-303. Texto original: En primer lugar la ciudadanía tiene que ver con algo más que la pertenencia a un Estado Nación y su legalidad correspondiente, En el mundo contemporáneo existen múltiples espacios y legalidades que hacen de la ciudadanía algo más complejo que la simple nacionalidad. En segundo lugar, la ciudadanía no otorga algún tipo de status ontológico. No se es ciudadano. Se tiene ciudadanía. Nadie puede, al estilo de Kane de Orson Welles, arrogar-se el título de Ciudadano frente a los que no los poseen. Por ello y en tercer lugar, afirmamos que la ciudadanía no es un status. Es una técnica, un instrumento que usado correctamente puede permitirnos ejercer la búsqueda y la consolidación de otros instrumentos o medios que acerquen al objetivo/proyecto del autogobierno (tradução livre). 16 A autora propõe como princípio, que o âmbito público democrático deveria prover de mecanismos para o efetivo reconhecimento e representação das vozes e perspectivas particulares daqueles grupos constitutivos do ambiente público que estão oprimidos e em desvantagem. Tal representação de grupo implica a existência de mecanismos institucionais e recursos públicos que apóiem: a) a auto-organização dos membros do grupo de modo que estes alcancem uma autoridade coletiva e um entendimento reflexivo de suas experiências e interesses coletivos no contexto social; b) a análise de grupo e as iniciativas grupais para a proposta de políticas em contextos institucionalizados, nos quais os que tomam decisões estão obrigados a mostrar que suas deliberações levaram em conta as perspectivas de grupo; e c) o poder de veto para os grupos a políticas específicas que afetem diretamente a um grupo, tais como, política sobre direitos reprodutivos para as mulheres e política sobre o uso da terra para os povos indígenas. YOUNG, Iris Marion. La justicia y la política de la diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000, p. 310.

220 Fernando Antonio de Carvalho Dantas Impõe-se a este espaço democrático de relações sociais, a não subordinação dos povos indígenas em razão das suas identidades diferenciadas,17 nem o conflito dialético contínuo. Impõe-se, sim, a mediação pelo diálogo intercultural. Nos dizeres de PANIKKAR, transformar o conflito dialético em “tensão dialógica” e buscar, através do diálogo, situações de equilíbrio baseadas na abertura mútua e recíproca para o reconhecimento, respeito e exercício dos direitos das identidades e dos valores diferenciados.18 O diálogo intercultural, portanto, se configura como um “espaço e um instrumento” da nova cidadania indígena, diferenciada, multicultural, dinâmica, criativa e participativa no sentido de construir os direitos diferenciados indígenas e, como conseqüência, criar, também, contextos plurais e heterogêneos onde a convivência democrática possibilite o desenvolver das ações da vida sem opressão, sem exclusão. As condições da possibilidade de diálogo entre as sociedades indígenas e o Estado brasileiro é um tema que ocupa na atualidade grandes espaços de discussão e reflexão. Para OLIVEIRA, ancorado na ética da libertação de Enrique Dussel, essa possibilidade somente é factível a partir da institucionalização de uma nova normatividade discursiva “capaz de substituir o discurso hegemônico exercitado pelo pólo dominante do sistema interétnico”.19 O discurso dominante, um discurso universalista e competente que excluiu as sociedades indígenas ao longo da história, ideologizou e naturalizou as diferenças culturais ora como bárbaras e selvagens, ora românticas e folclóricas, mas, sempre, e principalmente, como óbices à integração, unificação e desenvolvimento do Estado. Os povos indígenas compõem o mosaico social e cultural brasileiro, como sociedades culturalmente diferenciadas da nacional hegemônica. A diversidade sociocultural que esses povos configuram, ocultada no longo processo de colonização e de construção do Estado Nacional, teve

17 Sobre os múltiplos níveis das relações de subordinação, ver: MOUFFE, Chantal. The return of the political. Londres: Verso, 1993. 18 PANIKKAR, Raimundo. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban, 1990, p. 50-53. Sobre o modo dialógico de tratar as posições conflitivas o autor faz as seguintes considerações: uma sociedade pluralista somente pode subsistir se reconhece, em um momento dado, um centro que transcende a compreensão dela mesma por qualquer membro ou pela sua totalidade; o reconhecimento desse centro é algo dado que implica um certo grau de consciência que difere segundo o espaço e o tempo; o modo de manejar um conflito pluralista não é uma das partes tentando discursivamente convencer a outra, nem pelo procedimento dialético, senão pelo diálogo dialógico; discussão, oração, palavras, silêncio, decisões, acomodações, autoridade, obediência, exegese de regras e constituições, liberdade de iniciativa, rupturas, são atitudes próprias de tratar o conflito pluralista; há um contínuo entre multiformidade e pluralismo e a linha divisória situa-se em função do tempo, lugar, cultura, sociedade, resistência espiritual e flexibilidade; o problema do pluralismo não pode ser resolvido pela manutenção de uma postura unitária; o trânsito da pluralidade para a multiformidade e, desta ao pluralismo pertence às dores crescentes da criação e ao verdadeiro dinamismo do universo. 19 OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o diálogo intolerante. In: GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Povos indígenas e tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001, p. 252.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 221 no direito positivado, um dos mais poderosos mecanismos de exclusão que, sendo fundamento da política indigenista levada a cabo, primeiro pela Coroa portuguesa e, em seguida, pelo Estado brasileiro, promoveram genocídios e etnocídios responsáveis pela depopulação e pelo desaparecimento de numerosas culturas e povos indígenas. A apreensão parcial que o direito positivado faz da realidade social, por meio de mecanismos de poder que valoram e privilegiam uma determinada forma de vida e práticas sociais como boas, com a conseqüente juridicidade amparada pelo Estado, institucionalizou, ao longo da história do direito no Brasil, a exclusão do espaço jurídico- político nacional, das pessoas indígenas e suas sociedades, suas vidas, seus valores e suas formas diferenciadas de construção social da realidade. Nesse sentido, os colonizadores portugueses desconsideraram a existência de povos autóctones, com organizações sociais e domínio territorial altamente diversificados e complexos, negando aos seus membros a qualidade de pessoas humanas ou de uma humanidade viável,20 motivo pelo qual justificavam a invasão e tomada violenta do território, a escravização, as guerras, os mas- sacres e o ocultamento jurídico. O direito colonial, e posteriormente o nacional seguiram o mesmo caminho. A formulação jurídica moderna do conceito de pessoa enquanto sujeito de direito, fundado nos princípios liberais da igualdade e liberdade que configuram o individualismo, modelo adotado pela juridicidade estatal brasileira e estampado no Código Civil de 1916, gerou o sujeito abstrato, descontextualizado, individual e formalmente igual, e classificou as pessoas indígenas, não como sujeitos diferenciados, mas, diminutivamente, entre as pessoas de relativa incapacidade, ou pessoas em transição da barbárie à civilização. Esta depreciação justificava a tutela especial exercida pelo Estado, os processos e ações públicas voltados para a integração dos índios à comunhão nacional, o que equivale dizer, transformar os índios em não índios. Com a promulgação da Constituição de 1988 reconhecendo expressamente as diferenças étnico-culturais que as pessoas indígenas e suas sociedades configuram, pelo reconhecimento dos índios, suas organizações sociais, usos, costumes, tradições, direito ao território e capacidade postulatória, um novo tempo de direitos se abre aos povos indígenas. Um novo tempo, não mais marcado pela

20 Conforme SOUZA, comentando o imaginário europeu sobre o Brasil, a partir dos relatos de Fernão Cardim. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Sta. Cruz. Feitiçaria e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 30/33.

222 Fernando Antonio de Carvalho Dantas exclusão jurídica e sim pela inclusão constitucional das pessoas e povos indígenas em suas diferenças, valores, realidades e práticas sociais, com permanentes e plurais possibilidades instituintes. Evidentemente, o reconhecimento constitucional dos índios, e suas organizações sociais de modo relacionado, configuram, no âmbito do direito, um novo sujeito indígena, diferenciado, contextualizado, concreto, coletivo, ou seja, sujeito em relação com suas múltiplas realidades socioculturais, o que permite expressar a igualdade a partir da diferença. O marco legal desse reconhecimento, em razão da dificuldade de espelhar exaustivamente a grandiosa complexidade e diversidade que as sociedades indígenas representam, está aberto para a confluência das diferentes e permanentemente atualizadas maneiras indígenas de conceber a vida com seus costumes, línguas, crenças e tradições, aliadas sempre ao domínio coletivo de um espaço territorial. O novo paradigma constitucional do sujeito diferenciado indígena e suas sociedades inserem-se conflituosamente, tanto no âmbito interno dos Estados nacionais quanto em nível mais amplo, no contexto atual dos Estados e mundo globalizados, confrontando- se com a ideologia homogeneizante da globalização, que não reconhece realidades e valores diferenciados, pois preconiza pensamento e sentido únicos para o destino da humanidade, voltados para o mercado.21 Entretanto, as lutas de resistência contra esse processo 22 apontam para novos caminhos de regulação e emancipação, exigindo conformações plurais e multiculturais para os Estados, e, especificamente, mudanças nas Constituições, situadas atualmente em perspectiva com o direito internacional dos direitos humanos.23 Assim sendo, os direitos constitucionais indígenas devem ser interpretados em reunião com os princípios fundamentais do Estado brasileiro, que valorizam e buscam promover a vida humana sem nenhuma distinção, aliados aos direitos fundamentais e com o conjunto integrado e indivisível dos direitos humanos, civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, bem assim às convenções e documentos internacionais.

21 HERRERA FLORES, Joaquín. Las lagunas de la ideología liberal. In: HERRERA FLORES, Joaquín (org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 158. 22 Conforme problematização sobre as tensões dialéticas da modernidade ocidental, identificadas por Boaventura de Sousa Santos: tensão entre a regulação social e a emancipação social e a tensão entre Estado e sociedade civil. SOUSA SANTOS, Boaventura de. “Una concepción multicultural de los Derechos Humanos”. Revista Memória, Bogota, n.º 101, julio de 1997, p. 42. 23 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5.ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 253-273.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 223 Para que isto ocorra, torna-se imperativo efetivar os direitos constitucionais indígenas, o que significa dar vida às normas constitucionais pelo caminho jurídico-hermenêutico da prevalência e expansão destas normas sobre todo o ordenamento jurídico; politicamente, pela participação democrática dos índios e de suas organizações, tanto nas esferas de poder federal, federado e municipal, quanto nas ações públicas institucionalizadas que lhes interessem. Este se constitui um dos caminhos para a construção de uma sociedade plural, em que o espaço para todos seja garantido e, conseqüentemente, o dissenso possibilite o exercício cotidiano da democracia participativa e do seu poder instituinte sempre renovado. Como se percebe, para a existência do diálogo, é preciso, em primeiro lugar, a superação de erros históricos e a tomada das rédeas na construção do presente em patamares plurais de valores. O reconhecimento e o efetivo exercício dos direitos reconhecidos requer um lugar, um contexto plural, heterogêneo e igualitário complexo, de onde se possa falar e, acima de tudo, que o sujeito da fala exerça poder. Portanto, é necessária, também, a superação do universalismo, como valores particulares da cultura européia ocidental, elevados à categoria de universal, e dos respectivos conceitos transcendentais que o acompanham: homogeneização cultural, nação única, língua única, direito único, sujeito abstrato. É preciso abrir novos espaços que possibilitam uma nova construção e configuração participativa, “interativa”,24 do universal. Como afirma Ernesto LACLAU, o universal é um horizonte incompleto, um lugar “vazio” que precisa ser preenchido.25 Nesse mesmo sentido, SÁNCHEZ RUBIO ao propor a superação do pensamento universalista ocidental excludente, o faz a partir da idéia de que – justificado por razões históricas –, somente é possível um pensamento universalista, se este se configurar como um “universalismo de confluência”. A lógica da exclusão do discurso hegemônico ocidental, cujas causas são apontadas pelo autor, com antecedência através dos seguintes paradoxos: “poder e duplo interesse” em que identifica o discurso ambíguo do ocidente sobre a imigração em diferentes momentos históricos, baseados em interesses econômicos capitalistas, que desprezam a justiça e a dignidade humana; “globalização e universalidade” onde apresenta o globalismo cultural e econômico como um meio eficaz de expandir

24 BENHABIB, Seyla. Situating the self: gender, community and postmodernism in contemporary Ethics. London/New York: Routledge, 1992. 25 Para o autor, o universal somente pode emergir a partir do particular uma vez que somente a negação de um conteúdo particular, permite a transformação desse conteúdo no símbolo que o transcende. LACLAU, Ernesto. Emacipación y diferencia. Barcelona: Ariel, 1996, p. 9; 30-34.

224 Fernando Antonio de Carvalho Dantas idéias locais generalizantes, no caso, idéias ocidentais elevadas à categoria de universais, através da polarização e fragmentação sociais e pela imposição de modelos de desenvolvimento; por último, a “inversão ideológica e negação de direitos” consistente na negação do reconhecimento de práticas sociais que questionam os limites do sistema dominante, bem assim a negação da capacidade de reivindicar novos ou universais direitos. Assim, como não há reconhecimento de práticas sociais, coletividades e direitos diferenciados, as pessoas e comunidades culturais que compartem essas práticas, que perseguem condições mais dignas de vida, não merecem importância, podem ser sacrificadas.26 Contrariamente, o universalismo de confluência deve partir do conhecimento e da valoração de outras formas de vida, desde o nosso próprio pensamento, considerando a presença de múltiplas culturas e seus respectivos grupos humanos em um mesmo contexto e, também, as diferentes visões e pretensões de unidade a que aspiram, 27 que podem ser distintas e eqüidistantes umas das outras. Assim, o espaço do diálogo e da participação política no âmbito da sociedade maior, do Estado, deve ser construído e precedido pelas garantias de sobrevivência, de manutenção da vida e da dignidade humana. Para os povos indígenas, cuja compreensão dos direitos e de qualquer atividade política se vincula ao contexto, ao espaço da vida e aos modos de viver, conforme exposto anteriormente, a dignidade vincula-se ao espaço territorial da sobrevivência. A terra é para os povos indígenas espaço de vida e liberdade.28 O espaço entendido enquanto lugar de realização da cultura. Para TOMASINO, “cada sociedade elabora a sua concepção de tempo e de espaço conforme sua visão de mundo, a qual também orienta as suas práticas e relações sociais e simbólicas com a natureza e entre si”.29 Isto significa que a construção dos modos de vida, da cultura, das pessoas e sociedades relaciona-se em um complexo de significados produzido social e coletivamente. A Constituição Federal brasileira define a categoria jurídica das terras indígenas, como aquelas tradicionalmente ocupadas pelos índios, habitadas em caráter permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos

26 SÁNCHEZ RUBIO, David. Universalismo de confluencia, derechos humanos y inversión. In: HERRERA FLORES, Joaquín. (org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 216- 219. 27 Id. Ibid., p. 235. 28 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, p. 130. 29 TOMASINO, Kimiye. Os Kaingang da Bacia do Tibagi e suas relações com as terras baixas. Relatório parcial de pesquisa sem maiores dados. Londrina: [s. n.] 1998, p. 6.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 225 ambientais necessários a seu bem-estar, necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições.30 Assim, a dignidade humana dos povos indígenas está condicionada ao respeito aos seus territórios, aos seus modos de vida e às suas instituições, como garantia prévia e imprescindível à satisfação das necessidades básicas. Portanto, o espaço31 e as formas de vida enquanto direitos consuetudinários,32 devem ser protegidos, sendo esse o comando constitucional. O amparo dos direitos das minorias étnicas e culturais pelos Estados nacionais, segundo HERRERA FLORES, constituiu uma espécie de estratégia de homogeneização. Para o autor – baseado na constatação de W. Kymlicka de que não existem nações monoétnicas e monoculturais – “durante muitas décadas as reivindicações culturais das minorias estiveram absorvidas por estruturas mais gerais que, à medida que as protegiam, também, as homogeneizavam”.33 No mesmo sentido e, do ponto de vista da teoria constitucional, afirma HÄBERLE que a proteção das minorias étnicas representa uma das formas próprias de diferenciação interna dos Estados constitucionais, “para relativizar e ‘docificar ou aplacar’ o ímpeto do nacional”. Entretanto, apesar de reconhecer a imposição homoge- neizadora do modelo constitucional europeu, o jurista alemão, cir- cunscrito ao seu contexto espacial e teórico, preconiza que dita proteção deve cingir-se à implementação de práticas educacionais tolerantes e respeitosas para com a dignidade do “outro”, a criação de ouvidores das minorias e a inclusão de cláusulas formais de proteção 34 das minorias nas corporações. Este não é o sentido das reivindicações por mudanças e, conseqüentemente, garantias dos direitos diferenciados que levam a cabo

30 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto integral: “Art. 231 [...] § 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. 31 A Constituição de 1988 reconhece a ocupação tradicional, ou seja, as formas de uso que cada cultura indígena emprega ao definir o território como construção social, base física para a realização da cultura, da maneira como, para citar um exemplo, o povo Guarani-M’byá, habitante de vasta região do Brasil meridional o concebe: espaço, lugar, possibilitador da vida social, com características ecológicas, históricas e míticas, relacionadas ao modo de ser guarani. DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Relatório de Identificação da terra indígena Guarani-Mbyá da Ilha da Cotinga. Curitiba: Funai, 1989. 32 Pode-se dizer, a partir da exegese dos pressupostos constitucionais, que terras indígenas são aquelas habitadas pelos povos indígenas, enquanto espaço de vida, adequado às suas peculiaridades culturais e imprescindíveis para sua reprodução física e cultural. Simbolizadas pela cultura, essas terras constituem verdadeiros territórios indígenas, porque orientados pelo evidente princípio que encerra a disposição constitucional, qual seja: a ocupação indígena é definida a partir dos usos costumes e tradições de cada povo. Nesse sentido, afirma SOUZA FILHO que usos, costumes e tradições “quer dizer direito, e, mais, direito consuetudinário indígena”. SOUZA FILHO, C. F. M., op. cit., p. 134. 33 HERRERA FLORES, J., op. cit., p. 158. Texto original: “[...] durante décadas las reivindicaciones culturales de las minorías estuvieron absorbidas por estructuras más generales que a medida que las protegían las homogeneizaban” (Tradução livre). 34 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Tecnos, 2002, p. 123.

226 Fernando Antonio de Carvalho Dantas os povos indígenas em suas lutas por emancipação. As modificações estruturais pelas quais lutam e anseiam não se limitam a posturas “politicamente corretas”, portanto, tolerantes, balcões oficiais de lamento ou políticas de discriminação positiva a serem praticadas pelo Estado. As transformações emancipatórias dizem respeito ao reconhecimento e efetividade de direitos, o que significa uma nova 35 racionalidade não excludente, criadora de pensamentos e espaços de garantia do pluralismo social, cultural e jurídico. Por isso mesmo, o reconhecimento sem a efetividade das normas e as transformações políticas e jurídicas que isto implica, não acabará com a opressão dos povos indígenas. A construção do espaço institucional plural, não pode quedar-se no plano puramente formal; portanto, da regulação aos processos de emancipação, para que haja simetria na institucionalização, esses procedimentos devem orientar-se pela participação democrática dos povos indígenas, por meio do diálogo. O diálogo intercultural como proposta cognitiva, metodológica, hermenêutica, política e jurídica funda-se no pressuposto do pluralismo e da complexidade. Para se ter diálogo a condição básica é o reconhecimento das diferenças culturais dos sujeitos dialogantes,36 portanto, exige-se a superação das posturas universalistas. A transição resulta conflituosa, assim como conflituosa é a sociedade multicultural, a sociedade complexa. Partindo do questionamento sobre a possibilidade de manter uma identidade plural sem romper a coesão social, DE LUCAS aponta duas saídas para evitar os equívocos que caracterizam a proposta multicultural: a primeira relacionada com o preconceito “quase” maniqueísta que o uso ideológico do termo provoca, ao imputar-lhe o caráter de desestabilizador da democracia; por outro lado, a ingenuidade de que o multiculturalismo é um fato presente que não ocasiona conflitos e, por isso mesmo, se constitui em modelo ideal para as sociedades contemporâneas, não deixa de ser uma postura simplista.37 Deste modo, a proposição do multiculturalismo como paradigma para reger uma nova configuração do Estado e da

35 No sentido de transformação e renovação da filosofia que propõe Raúl Fornet-Betancourt, por meio da mudança de perspectiva, provocada pela necessidade de substituir os métodos de análise monoculturais, característicos da filosofia ocidental que geram problemas de relacionamento com outras formas culturais de pensar, no caso, as culturas das sociedades indígenas. O autor chama a atenção para a necessidade de a filosofia refletir o “desafio do imaginário indígena” como ponto básico de discussão sobre uma mudança de racionalidade, fundada na interculturalidade. FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la filosofía. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001, p. 235-236. 36 No sentido gadameriano de compreensão da alteridade, reconhecimento e aceitação do “outro”. GADAMER, Hans George. Verdad y Método. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1977, p. 476. 37 DE LUCAS, Javier. La sociedad multicultural: problemas jurídicos y políticos. In: AÑON, María José et al. Derecho y sociedad. Valencia: Tirant de Blanch, 1998, p. 19-20. Veja-se, na nota 37 deste mesmo capítulo, a posição de HERRERA FLORES, para quem as reivindicações das minorias étnicas e culturais, durante muito tempo, estiveram represadas em função da absorção homogeneizadora dos Estados nacionais.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 227 sociedade brasileiros e a trama de relações sociais complexas decorrentes da presença dos povos indígenas como sujeitos ativos e participativos – ainda que muitas vozes se levantem contra a incompatibilidade normativa de pluralização em decorrência da falta de unidade cultural38 – a entendemos como fator imprescindível para uma mudança nos atuais modelos normativos de Estado, nação e direito únicos. Estes, enquanto conceitos absolutos fundados na racionalidade moderna ocidental excludente das diferenças, podem e devem ser relativizados. É o desafio do futuro.

REFERÊNCIAS

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38 Como, por exemplo, Giovanni Sartori. Para este autor, há uma incompatibilidade entre pluralismo democrático e multiculturalismo porque entende que as diferenças culturais configuram comunidades fechadas e homogêneas. SARTORI, Giovanni. La sociedad multiétnica. Pluralismo, multiculturalismo e extranjeros. Madrid: Taurus, 2001.

228 Fernando Antonio de Carvalho Dantas ______. Las lagunas de la ideología liberal. In: HERRERA FLORES, Joaquín (org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000. LACLAU, Ernesto. Emacipación y diferencia. Barcelona: Ariel, 1996. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. MOUFFE, Chantal. The return of the political. Londres: Verso, 1993. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o diálogo intolerante. In: GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Povos indígenas e tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001. PANIKKAR, Raimundo. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban, 1990. PAOLI, Maria Célia Pinheiro Machado. O sentido histórico da noção de cidadania no Brasil: onde ficam os índios? In: COMISSÃO PRÓ-INDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Diez tesis sobre la titularidad de los derechos humanos. In: ROIG, Francisco Javier Ansuátegui (org.). Una discusión sobre derechos colectivos. Madrid: Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas/Universidad Carlos III, 2002. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5.ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global Editora, 1987. SÁNCHEZ RUBIO, David. Universalismo de confluencia, derechos humanos y inversión. In: HERRERA FLORES, Joaquín (org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000. SARTORI, Giovanni. La sociedad multiétnica. Pluralismo, multiculturalismo e extranjeros. Madrid: Taurus, 2001. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Una concepción multicultural de los Derechos Humanos. Revista Memória, Bogota, n.º 101, julio de 1997. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A cidadania e os índios. In: COMISSÃO PRÓ- ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983. ______. O renascer dos povos para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Sta. Cruz. Feitiçaria e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo Companhia das Letras, 1986. SOUZA, Maria Tereza Sadek R. de. Os índios e os “custos” da cidadania. In: COMISSÃO PRÓ- ÍNDIO. O índio e a cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1983. TOMASINO, Kimiye. Os Kaingang da Bacia do Tibagi e suas relações com as terras baixas. Relatório parcial de pesquisa sem maiores dados. Londrina: [s. n.]. YOUNG, Iris Marion. La justicia y la política de la diferencia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2000.

A "cidadania ativa" como novo conceito para reger as relações dialógicas entre as sociedades indígenas e o Estado Multicultural Brasileiro 229

Meio ambiente equilibrado e a garantia do conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais

Sandro Nahmias Melo1

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

omo observa Brandão Cavalcanti, “a idéia de que o Cser humano, como tal tem direitos elementares à vida e àquilo que é indispensável, no campo material, físico e espiritual, constitui, assim, uma conquista da civilização e que aos poucos se foi firmando na filosofia política no século XVIII”.2 Fruto da chamada multiplicação dos direitos, como menciona Norberto Bobbio,3 surgem, após a Segunda Guerra Mundial, duas tendências marcantes que, cada vez mais, ganham espaço no mundo atual:4 a preocupação com o meio ambiente e a busca de uma melhor qualidade de vida. Bobbio, ao analisar a evolução histórica dos direitos fundamentais, especificamente os de terceira geração,5 é peremptório ao

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas. Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Juiz do Trabalho. 2 Themistocles Brandão Cavalcanti, Manual da Constituição, p. 193. 3 A era dos direitos, p. 67 ss. O autor ressalta, em sua instigante obra – p. 5 – que os direitos, notadamente os “direitos do homem” (fundamentais), são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. Assevera, ainda, que esses direitos nasceram de modo gradual, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. 4 Um mundo marcado pela globalização, cuja tendência é a “universalização dos direitos fundamentais”, como ressalta Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional, p. 524. 5 Segundo Norberto Bobbio. Op. cit., p. 11-12 – a figura dos direitos de terceira geração foi introduzida na literatura cada vez mais ampla sobre os “novos direitos”, destacando ainda que, no artigo “Sobre la evolución conteporánea de la teoría de los derechos del hombre”, Jean Rivera inclui entre esses direitos os direitos de solidariedade, o direito ao desenvolvimento, à paz internacional, a um ambiente protegido e à comunicação. Sobre o mesmo tema, Celso Lafer. A reconstrução dos direitos humanos, p. 131 – fala dos direitos de terceira geração, considerando-os, sobretudo, como direitos cujos sujeitos não são indivíduos, mas grupos humanos, como família, o povo, a nação e a própria humanidade. O processo de evolução do reconhecimento dos direitos fundamentais, entre eles os de terceira geração, é analisado, de forma detida, no Capítulo II da presente dissertação.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 231 declarar que: “o mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído”.6 No Brasil, o art. 225, caput, da Constituição da República de 1988 captou esse movimento e estabeleceu: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (grifo nosso). O legislador constituinte, no caput do Art. 225, ao usar a expressão sadia qualidade de vida, optou por estabelecer dois sujeitos de tutela ambiental: “um imediato, que é a qualidade do meio ambiente, e outro mediato, que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população, que se vêm sintetizando na expressão da qualidade de vida”7 (grifamos). Neste sentido, toma corpo a idéia de que o ambiente é a expressão das alterações das relações dos seres vivos, incluído o homem, entre eles e o seu meio, sem surpreender que o direito do ambiente seja, assim, um direito de interações, que tende a penetrar em todos os setores do direito, para aí introduzir a idéia de ambiente.8 Assim sendo, se o meio ambiente que a Constituição Federal quer ver preservado é aquele ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225, caput), então o homem, a natureza que o cerca, a localidade em que vive, o local onde trabalha, não podem ser considerados como compartimentos fechados, senão como “átomos de vida”, integrados na grande molécula que se pode denominar de “existência digna”. Neste sentido, fica evidente o anacronismo da idéia que encara o meio ambiente, em especial o seu aspecto natural, como bem intocável, não passível de relativização mesmo se considerados os interesses do maior destinatário do direito ao seu equilíbrio: o homem.

2. DIREITO AO MEIO AMBIENTE E OS DIREITOS HUMANOS

A preocupação com a questão ambiental é relativamente recente. Seu surgimento não poderia ter ocorrido de outra maneira: o contexto de vida do homem a partir da segunda metade do século XX – industrialização desenfreada, os processos migratórios geradores de

6 Norberto Bobbio, op. cit., p. 6. 7 , p. 54. 8 Prier, Michel. Droit de l’environnement. Dalloz, 1991, p. 13 e ss., apud Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues. Manual de Direito Ambiental e legislação aplicável, p. 26.

232 Sandro Nahmias Melo uma urbanização desestruturada e desmatamento, aumento do número de veículos automotores e outros fatores que contribuíram para o aumento da poluição do ar, da destruição da camada de ozônio, escassez de recursos naturais não renováveis – fez manifestar-se à consciência da necessidade de uma tutela jurídica do meio ambiente. Verificou o homem a necessidade premente de harmonizar o desenvolvimento econômico-industrial com a preservação e proteção do meio ambiente (o hoje denominado desenvolvimento sustentado ou sustentável). Na questão vertente, Cristiane Derani ressalta que: “o Direito econômico e ambiental não só se interceptam, como comportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam: buscar a melhoria do bem-estar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo. O que os distingue é uma diferença de perspectiva adotada pela abordagem dos diferentes textos normativos”.9 Segundo Paulo Bessa Antunes, “o primeiro e mais importante princípio do Direito Ambiental é que: O Direito ao Ambiente é um Direito Humano Fundamental”.10 Não é sem-razão, portanto, o reconhecimento da estreita ligação entre os direitos humanos e o meio ambiente, na medida em que, indubitavelmente, existe uma relação indissociável entre Direitos Humanos e Meio Ambiente. Em síntese, o respeito ao direito do meio ambiente equilibrado implica, necessariamente, na defesa do direito

9 Cristiane Derani. Direito Ambiental Econômico, p. 76. 10 Direito Ambiental, p. 25. Ainda neste sentido, o professor de Direito Constitucional da PUC-RJ, Carlos Roberto de Siqueira Castro, publicou excelente artigo a respeito do novo humanismo ecológico no qual discrimina, com argúcia, as etapas evolutivas dos Direitos Humanos. Transcrevemos parte do citado estudo: “Provou-se, assim, que a obsessão pela prosperidade, que serviu de catapulta para a geração dos confortos e demais conquistas da modernidade, volta-se agora contra o homem pós-moderno, impondo-se o abandono irreversível da cultura utilitarista e materialista, típica do over night existencialista, que impulsionou a histeria do consumo e depravou o meio ambiente deste século, cuja irresponsabilidade maior é ignorar que o relógio do tempo tem curso contínuo e que alcança todas as gerações do porvir, quiçá a própria existência dos perdulários do presente. É sentimento geral, por tudo isso, que só o desenvolvimento sustentável poderá tornar realidade os direitos fundamentais do homem, como proclamados nos sucessivos Bills of Rights de dimensão universalista, que através dos tempos documentaram os avanços espirituais da humanidade. A não ser assim, os primários direitos à vida, à existência digna, à saúde, à educação e à cultura, que as Constituições democráticas contemplam e exortam, estarão reduzidos a enunciados puramente retóricos e inalcançáveis, pois não há como falar-se em direitos humanos ou em liberdades básicas onde a água não é potável, o solo incultivável e o ar, irrespirável. Em verdade, estamos diante da novíssima terceira geração dos direitos humanos, sabido que esses, desde a sua articulação legalista com a eclosão das revoluções americana e francesa do século XVIII, têm experimentado uma dinâmica transformação. Reconhece-se que a primeira fase dos direitos do homem corresponde à enunciação dos direitos civis e políticos, equivalentes às liberdades públicas incorporadas à generalidade das constituições democráticas, também chamados de blue rights. A segunda fase corporifica os direitos sociais, econômicos e culturais, designados red rights, cujas raízes fincam-se no humanismo socialista e que, sob o influxo das revoluções antiburguesas deste século em ocaso, e muito especialmente, da Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela ONU em 1948 (art. 23 a 28), por igual inscreveram-se na agenda das democracias constitucionais. Por fim, a terceira geração dos direitos humanos, que mais de perto ora nos interessa, aflorou nos últimos 20 anos com crescente repercussão no pensamento humanístico. Esses direitos, conhecidos como green rights, são metaindividuais e só podem ser desfrutados coletivamente, como é o caso do meio ambiente equilibrado, ao desenvolvimento sustentado, ao patrimônio cultural da humanidade e o direito à paz social” (O direito ambiental e o novo humanismo ecológico. Revista Forense, v. 317, 1992, p. 69, apud Sebastião de Oliveira, op. cit., p. 78-79).

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 233 à vida, que é o mais básico dos direitos fundamentais, nele se inserindo por visar diretamente à qualidade de vida (Art. 225, caput, CF/88) como meio de atingir a finalidade de preservação e proteção à existência, em qualquer forma que esta se manifeste, bem como condições dignas de existência à presente e às futuras gerações.11 Neste sentido preleciona, com fineza de pensamento, José Afonso da Silva:

A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, visa tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como uma forma de direito fundamental da pessoa humana. (...) Esse novo direito fundamental foi reconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em junho de 1972, cujos vinte e seis princípios constituem prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem.12

De fato, o reconhecimento internacional do direito ao meio ambiente pode ser verificado nos princípios 1 e 2 da Declaração de Estocolmo, de 1972.13 Tais princípios, proclamados em Estocolmo, foram, inclusive, reafirmados, no Brasil, pela Declaração do Rio, proferida na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio-92, cujo princípio 1 afirma:

Princípio 1 – Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio ambiente.

A festejada Conferência de Estocolmo deixa claro ainda, em sua Resolução Final, a relação entre o homem e meio ambiente e a necessidade de vida harmônica entre os mesmos:

11 Karina Houat Harb, Direitos Humanos e Meio Ambiente, p. 78. 12 José Afonso da Silva, Direito Ambiental Constitucional, p. 36. 13 Princípio 1 – “O homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar, e é portador solene de obrigação de melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras (...). Princípio 2 – Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservadas em benefício das gerações atuais e futuras (...)”.

234 Sandro Nahmias Melo O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente que lhe dá sustento físico e lhe oferece oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça humana no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso da ciência e da tecnologia conquistou o poder de transformar em inúmeras maneiras e em escalas sem precedentes o meio ambiente natural ou criado pelo homem, é o meio ambiente essencial para o bem- estar e gozo dos direitos humanos (grifamos).

No Brasil, o Seminário Interamericano sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, realizado em Brasília (4 a 7 de março de 1992), buscou refletir esta relação existente entre Direitos Humanos e Meio Ambiente, fornecendo ainda subsídios para a formulação de um programa de educação a respeito do tema. Apresentou, por fim, entre outras, as seguintes conclusões:

I – There is a close relationship betweem development and environment, development and human rigths, and environment and human rights. Possible linkages can be found, e. g., in the rights to life and to health in their wide dimension, wich require negative as well as positive measures on the part of States. In fact, this close relationship is demonstrated by most economic, social and cultural rights and by the most basic civil and political rights. After all, there is a parallel betweem the evolutions of human rights protection and environmental protection, having both undergone a process of internationalization and globalization. II – The link betweem environment and human rights is further clearly demonstrated by the fact that environmental degradation can aggravate human rights violations, and, in turn, human rights violations, can like wise lead to environmental degradation or make it more difficult to protect the environment.14

14 “I – Há uma íntima relação entre desenvolvimento e meio ambiente, desenvolvimento e direitos humanos. Possíveis ligações podem ser encontradas, por exemplo, nos direitos à vida e à saúde em suas largas dimensões, as quais requerem tanto medidas negativas quanto positivas da parte dos Estados. De fato, esta relação íntima é demonstrada pela maioria dos direitos, econômicos, sociais e culturais e pela maioria dos direitos civis e políticos. Além de tudo, há um paralelo entre as evoluções da proteção dos direitos humanos e proteção ambiental, tendo ambos passado por um processo de internacionalização e globalização. II – A ligação entre meio ambiente e direitos humanos é mais claramente demonstrada pelo fato que degradação ambiental pode agravar as violações dos direitos humanos, e, por outro lado, as violações dos direitos humanos podem conduzir a grande degradação ambiental ou dificultar a proteção do meio ambiente”. In: “Conclusions of the Inter-American Seminar on Humam Rights and Environment, Human Rights, Sustainable Development and the Environment”, Seminário de Brasília, 1992, p. 293, Apud Karina Houat Harb. Direitos Humanos e Meio Ambiente, p. 78-79.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 235 Cada vez mais, no mundo contemporâneo – industrializado e globalizado – o direito à vida vem recebendo tratamento amplo e detalhado, advindo daí a concepção do direito ao meio ambiente como extensão do direito à vida, pois este no seu sentido mais preciso não se restringe à idéia de sobrevivência – não morrer – mas sim viver com qualidade e com dignidade, aspectos estes inerentes ao direito ao meio ambiente saudável. O alargamento do sentido da expressão “qualidade de vida”, além de acrescentar a idéia de bem-estar relacionado à saúde física e mental, referindo-se inclusive ao direito de o homem fruir de ar puro e de uma bela paisagem, finca o fato de que o meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, sendo imperiosa a integração da mesma à vida do homem social nos aspectos relacionados à produção, ao trabalho, especificamente ao seu meio ambiente de trabalho. Neste sentido, obtempera Cristiane Derani:

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito à vida e à manutenção das bases que a sustentam. Destaca- se da garantia fundamental à vida exposta nos primórdios da construção dos direitos fundamentais, porque não é simples garantia à vida, mas este direito fundamental é uma conquista prática pela conformação das atividades sociais, que devem garantir a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, abster-se da sua deterioração, e construir a melhoria integral das condições de vida da sociedade15 (grifado no original).

Note-se, portanto, a absoluta simetria entre o direito ao meio ambiente e o direito à vida, como bem observado por José Afonso da Silva, ao declarar que “o problema da tutela jurídica do meio ambiente se manifesta a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar, não só o bem-estar, mas a qualidade de vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano”.16 Ante todo o exposto é inafastável a conclusão no sentido de que o direito ao meio ambiente equilibrado é, sim, direito fundamental, materialmente considerado, uma vez está que inexoravelmente ligado ao direito à vida. Destaque-se, no mais, que qualquer argumento expendido no sentido de que o direito ao meio ambiente saudável não é fundamental, mormente porque não encontra guarida no “catálogo” da Constituição de

15 Cristiane Derani. Meio Ambiente ecologicamente equilibrado: Direito Fundamental e Princípio da Atividade Econômica. In: “Temas de Direito Ambiental e Urbanístico”, p. 97. 16 Direito Ambiental Constitucional, p. 8.

236 Sandro Nahmias Melo 1988, ou seja, entre os dispositivos discriminados no Título II (DOS DIREITOS E DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS) da Constituição, é de todo permeado de fragilidade, devendo, de pronto, ser rechaçado. Ora, como já foi demonstrado, os direitos podem ser considerados como formalmente fundamentais e materialmente fundamentais. Com relação a estes, encontramos a autorização expressa do § 2.º, do Art. 5.º, da Constituição Federal, ao declarar que os direitos fundamentais expressos na Carta Magna “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (...)”. Este é o caso do direito ao meio ambiente hígido (Art. 225, caput) que, por seu conteúdo, ligado ao direito à vida, é indiscutivelmente fundamental. Na mesma linha esposada nestas considerações, pondera Cristiane Derani que: “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado presente do Art. 225, caput da Constituição Brasileira de 1988 é um direito fundamental. Esta premissa está fundada numa compreensão material – e não formal – do direito fundamental” (grifamos). Destaca ainda, a autora, que os “direitos fundamentais não são simplesmente aqueles que a Constituição explicita no seu Art. 5.º. Um direito é fundamental quando seu conteúdo invoca a construção da liberdade do ser humano”.17

3. A RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Definido o meio ambiente como direito fundamental, ou seja, como elemento imprescindível para o alcance do direito à vida, com qualidade e dignidade, emerge, de pronto, uma questão: o direito ao meio ambiente, como direito fundamental, deve prevalecer sobre outros interesses ou direitos, inclusive sobre aqueles igualmente fundamentais? A resposta se nos afigura como negativa. Desde logo, há que se reconhecer que, na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, constatamos o enfrentamento de dois direitos igualmente fundamentais, não sendo possível proteger um deles sem tornar o outro flexibilizado, como observa Norberto Bobbio:

Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipen-

17 Cristiane Derani, op. cit., p. 91.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 237 diado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar em direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles se encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente funda- mental, mas concorrente. E dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.18

Canotilho, por sua vez, sublinha a importância de “as regras do direito constitucional de conflitos deverem-se construir com base na harmonização dos direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação ao outro”.19 Sobre as limitações ao exercício de direitos fundamentais, Jean Rivero Savatier, aponta, com clareza, que:

L’exercice d’un droit, même s’il s’agit d’un droit fondamental, doit se concilier avec les nécessités de la vie sociale; c’est pourquoi les textes, et éventuellement la jurisprudence, l’ensserent dans un certain nombre de conditions, qui en marquent les limites.20

Diante do exposto, dada a necessidade de harmonização entre direitos fundamentais, torna-se imperiosa a relativização dos mesmos. O mundo jurídico não pode estar apartado da realidade, e as exigências dos fatos informam as condições de realização da norma. Tendo como verdade o fato de que uma ampla discussão ambiental é mais profícua numa sociedade que seja capaz de resolver as necessidades básicas de fome, moradia e saúde, é óbvia a impossibilidade do afastamento entre as normas de incremento de práticas econômicas socialmente justas – destinadas à realização de uma justa distribuição de riquezas – e as normas destinadas à proteção do meio ambiente. Ao alcance da qualidade de vida, no meio ambiente, corresponde tanto um objetivo do processo econômico como uma preocupação da política ambiental, afastando-se a idéia de que as

18 A era dos direitos, p. 42. 19 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional, p. 646-647. 20 “O exercício de um direito, mesmo em se tratando de um direito fundamental, deve se harmonizar com as necessidades da vida social, isto porque os textos legais, e eventualmente a Jurisprudência, o cercam dentro de um certo número de condições, que marcam os seus limites”. Jean Rivero Savatier. Manuel de Droit du Travail, p. 346/7.

238 Sandro Nahmias Melo normas de proteção do meio ambiente, no enfoque do meio ambiente do trabalho, seriam servas da obstrução de processos econômicos e tecnológicos. A partir desta análise, é forçosa a conclusão pela necessidade de uma compatibilização entre os processos de produção e as sempre crescentes exigências do meio ambiente. Exatamente neste sentido, bem colocam Celso Fiorillo e Marcelo Abelha ao asseverar que a degradação ambiental é, em última análise, “uma obstrução do exercício dos demais direitos humanos, ou ainda, de que proteger o meio ambiente pode, muitas vezes, representar limitações a estes direitos individuais (...)”. Os autores citam ainda, como reforço ao argumento, a lição de Canotilho e Vital Moreira que defendem justamente que a preservação do meio ambiente possa gerar restrições a outros direitos constitucionalmente protegidos, exemplificando que “a liberdade de construção, que muitas vezes se considera inerente ao direito de propriedade, é hoje configurada como liberdade de construção potencial, nas quais se incluem as normas de proteção ao ambiente”.21 Não há que se confundir, contudo, no que concerne ao meio ambiente, o conceito de direito fundamental com o de direito absoluto. Neste particular, abstraída a questão, já pacificada na melhor doutrina quanto à inexistência de direito absoluto, caso assim fosse reconhecido o exercício do direito ao meio ambiente hígido – como absoluto – estaríamos diante de situações insólitas, entretanto legítimas. Não seria possível qualquer crescimento econômico que oferecesse risco, por menor que fosse, à fauna e à flora. Muitas das necessidades básicas do homem (alimentação, moradia, saúde) sequer poderiam ser satisfeitas, necessidades estas sintonizadas com o direito ao desenvolvimento previsto no Art. 170, da CF/88. Como ensina Cristiane Derani a “escolha de um princípio em detrimento de algum outro, o seu conteúdo teleológico delimitado na interpretação, nada mais é que a opção por determinada ordem. (...) A descrição normativa do texto constitucional brasileiro identifica uma série de relações e aspirações inerentes a esta sociedade num determinado tempo histórico, aportando à economia capitalista, que reafirma, novos matizes. Assim, um fator fundamental da produção econômica, a natureza, submete-se aos efeitos da normatização dos meios de sua apropriação. Ajusta-se, portanto, a exigências de razões econômicas, estéticas, culturais, ontológicas reguladas pelo ordenamento jurídico peculiar a cada formação social”.22

21 Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, p. 29. 22 Direito Ambiental Econômico, p. 32-34.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 239 Em suma, todo homem tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Todavia, o exercício deste direito deve ser analisado, sistematicamente, com outros princípios e direitos contidos na Constituição Federal, reguladores das necessidades da vida em sociedade, justamente para que não haja supressão destes em nome da proteção daquele. Mas, ainda que clara esta idéia de relativização, haveria um limite para que este direito fosse relativizado sem que o mesmo não fosse obliterado? Considerando-se que, ao longo da experiência histórica, são fartos os exemplos nos quais sociedades sofreram abuso do poder institucionalizado – escudado nas vestes da lei formal – o tema ora proposto desponta com significativa importância, notadamente com relação à manutenção de direitos e garantias fundamentais.23 Neste particular, Retortillo, com base na doutrina alemã, aponta o chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais “como garantia dos direitos e liberdades frente a atividade legislativa de limitação dos mesmos”.24 Para Retortillo, a regulamentação do exercício de um direito se concebe como uma atividade que engloba também a limitação do mesmo. Neste sentido, o chamado conteúdo essencial do direito desponta como limite para a atividade legislativa limitadora dos direitos, configurando, em síntese, “o limite dos limites”.25 Como resta evidente após estas considerações, a questão ora pro- posta é complexa, tornando, inclusive, difícil o alcance de uma definição, conclusiva, do chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

4 – CONTEÚDO ESSENCIAL. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Segundo esclarece Martin-Retortillo, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais assinala uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimitando um terreno que a Lei que pretende limitar-regulamentar um direito não pode invadir sem incorrer em inconstitucionalidade.26

23 O tema proposto, inclusive, é marcado pela relevância na medida em que vez ou outra, no Brasil, vivencia-se uma crise institucional entre os Poderes Judiciário e Legislativo, na qual este ameaça aquele com a limitação de poderes. Neste sentido temos a declaração do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, em entrevista ao Jornal Folha de S. Paulo (18, junho, 99), no qual comenta decisão do Supremo que restringia a atuação das CPI’s: “É de se esperar que esse assunto vá logo para o plenário do Supremo e que seja reformado, para que nós não tenhamos que fazer uma legislação tirando até algumas das atribuições do Supremo” (Grifamos). Em resposta a referida declaração, o presidente do STF, Carlos Velloso, em entrevista ao mesmo Jornal (18, jun., 99), asseverou que: “O presidente do Senado, tenho certeza, há de refletir que ele deve cumprir uma Constituição que é democrática e uma Constituição que impõe limites” (Grifamos). 24 Martin-Retortillo Baquer, op. cit., p. 125. 25 Idem, ibidem, p. 125-135. 26 Martin-Retortillo Baquer, op. cit, p. 126.

240 Sandro Nahmias Melo Vieira de Andrade, por sua vez, com base na teoria alemã absoluta, assevera que: “o conteúdo essencial consistiria em um núcleo fundamental, determinável em abstrato, próprio de cada direito e que seria, por isso, intocável. Referir-se-ia a um espaço de maior intensidade valorativa (o coração do direito) que não poderia ser afetado sob pena de o direito deixar de realmente existir”.27 Como já exposto, há que se enfrentar “o problema da lei arbitrária, que reúne formalmente todos os elementos da lei, mas fere a consciência jurídica pelo tratamento absurdo ou caprichoso que impõe a certos casos, determinados em gênero ou em espécie, tem constituído, em todos os sistemas de direito constitucional, um problema de grande dificuldade teórica e de relevante interesse prático”.28 Neste sentido, a problemática sobre a necessidade de estipulação de um limite ao poder limitador do Legislativo, no que concerne a regulamentação dos direitos fundamentais, é enfeixada, com clareza ímpar, por Gilmar Ferreira Mendes:

É possível que o vício de inconstitucionalidade substancial decorrente do excesso do poder legislativo constitua um dos mais tormentosos temas de controle de constitucionalidade hodierno. (...) O excesso de poder como manifestação de inconstitu- cionalidade configura afirmação da censura judicial no âmbito da discricionariedade legislativa ou, como assente na doutrina alemã, na esfera de liberdade de conformação do legislador (Gesetzgeberische Gestaltungsfreiheit), permitindo aferir a compatibilidade das opções políticas com os princípios consagrados na Constituição. Nega-se, assim, à providência legislativa o atributo de um ato livre no fim, consagrando-se a vinculação do ato legislativo a uma finalidade.29

Ressalte-se, por oportuno, que, ao defender-se a necessidade de limitação ao poder de regulamentação do Poder Legislativo, não está se propondo, como adverte Suzana Barros, “reduzir a esfera de liberdade do legislador democraticamente legitimado para regulamentar a Constituição, pela ampliação dos poderes do juiz,

27 Vieira de Andrade, José Carlos Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 233. 28 Dantas, San Tiago, “Igualdade perante a lei e due process of law” (contribuição ao estudo da limitação constitucional do Poder Legislativo), Revista Forense, vol. 116, 1948, p. 357, apud Barros, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 21. 29 Mendes. Controle de Constitucionalidade (Aspectos jurídicos e políticos). São Paulo: Saraiva, 1990, p. 38-39.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 241 mas evitar que aquele poder político chegue ao excesso de produzir lei desnecessária, casuística ou desarrazoada, realidade assente mesmo nas democracias consolidadas e que precisa ser considerada para merecer o devido controle”.30 Ao partir-se da premissa que os direitos, ainda que fundamentais, não são absolutos, é que temos que admitir a limitação dos mesmos, até para possibilitar o seu exercício na medida em que: “É preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas”.31 Neste sentido é o conteúdo essencial dos direitos atua como limite dos limites, impondo ao Legislativo uma ação arrazoada, justificada, sem o que incorrerá na inconstitucionalidade. De maneira simplista, poderíamos comparar o efeito do chamado limite dos limites com a “eficácia negativa” emanada das normas constitucionais programáticas. Ora, a doutrina alemã classifica as normas programáticas como “normas de promessa”32 (Versprechungsnormen), uma vez que contêm uma promessa de legislação, de regulamentação. Assim sendo, inicialmente os doutrinadores atribuíram às normas programáticas frágil consistência jurídica, na medida em que esvaziavam sua força vinculante, convertendo-as em meras exortações morais. Entendendo alguns que as normas programáticas eram preceitos desprovidos de qualquer eficácia, que poderiam ser violados, inclusive por norma infraconstitucional, sem que isso resultasse em inconstitucionalidade. Retirada estava a própria juridicidade da norma programática. Não se sustenta a teoria de falta de eficácia das normas constitucionais programáticas, pois seria o mesmo que defender a inutilidade de parte da Constituição. E, neste particular, como sustenta Meirelles Teixeira: nada de inútil existe na Constituição.33 Rechaçando a citada teoria, vem a doutrina defendida pelo italiano Crisafulli,34 dividindo as normas constitucionais em normas de eficácia plena, dotadas de imediata aplicação, e de normas eficácia limitada, que abrangeriam as normas programáticas.

30 Barros. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 21. 31 Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, 8.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42. 32 Teixeira, José Horácio Meirelles, [texto revisto e atualizado por Maria Garcia]. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 324. 33 Teixeira. Op. cit., p. 324. 34 Vezio Crizafulli, “La constituzione e le sue disposizione de principio” Cf. Maria Helena Diniz, op. cit., p. 93.

242 Sandro Nahmias Melo Para esta teoria as normas programáticas constituem verdadeiras normas jurídicas que detêm “eficácia negativa”, posto que obstam atividade legislativa que lhe seja contrária. Neste momento, avanço significativo é registrado, já que ineditamente se confere às normas programáticas certa eficácia, embora em sentido negativo. Tomemos o exemplo da norma insculpida no inc. VII, do Art. 37, da CF/88. Nela fica garantido o exercício do direito de greve, nos termos e nos limites da lei, ao servidor público civil. Ora, como já decidido pelo C. STF (Mandado de Injunção n.º 438-2-GO), trata-se de uma norma programática. Todavia, apesar de limitada, é evidente a eficácia do referido dispositivo na medida em que retira a eficácia as normas que configurem a greve como preceito negativo, afastando, inclusive, a possibilidade de legislar-se, ordinariamente, contra o exercício do direito de greve. Temos aí um limite ao Poder Legislativo, que não pode ultrapassar o conteúdo essencial na norma insculpida no inciso VII, Art. 37, da CF/88. Por fim, demonstrada a similitude entre os efeitos do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a “eficácia negativa” das normas programáticas, uma vez que ambos limitam, de alguma forma, a atividade do legislador, cumpre destacar que a garantia do conteúdo essencial, entendida como limite dos limites, não é privativa dos direitos fundamentais, sendo comum a qualquer norma constitucional.

5. O CONTEÚDO ESSENCIAL NO DIREITO COMPARADO

Encontra guarida, de maneira expressa, o princípio de proteção do núcleo essencial (Wesensgehalt) dos direitos fundamentais no ordenamento constitucional de alguns países:

– O Art. 19.2, da Constituição alemã dispõe que: “em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência” (Grifamos); – A Constituição portuguesa refere-se à garantia do núcleo essencial em seu Art. 18.3, segundo o qual “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” (Grifo nosso);

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 243 – O Art. 53.1, da Constituição espanhola também alude à referida garantia, ao estabelecer que “os direitos e liberdades reconhecidos no Capítulo II do presente Título vinculam todos os poderes públicos. Somente por lei, que em todos os casos deve respeitar seu conteúdo essencial, poderão ser regulados esses direitos e liberdades (...)” (Grifamos).

No Brasil, apesar do princípio da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais não ter sido contemplado pelo constituinte de 1988 de forma expressa, não se sustenta o argumento no sentido de que o mesmo não existe em nosso ordenamento jurídico. Ora, considerando a própria natureza protetora dos direitos fundamentais seria ilógica a intervenção do legislador ordinário no âmbito do direito fundamental para destruí-lo. Ressalte-se, todavia, que previsão, na esfera constitucional, do princípio da garantia de proteção ao conteúdo essencial não deve ser encarada como um círculo extra ou supra-estatal, no qual o legislador esteja proibido, em hipótese alguma, de intervir.

6. CONSIDERAÇÕES DE ORDEM PRÁTICA

Considerando o conteúdo essencial como o núcleo de um direito fundamental e, portanto, figurando como limite dos limites, nos deparamos com a idéia de o conteúdo essencial impedir qualquer tentativa reguladora do legislador, como uma verdadeira muralha frente ao mesmo. Todavia, há que se reconhecer que, na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, constatamos o enfrentamento de dois direitos igualmente fundamentais, não sendo possível proteger um deles sem tornar o outro flexibilizado ou inoperante, como observa Norberto Bobbio:

Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado difamado, vilipen- diado, por outro. Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar em direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles se encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E dado que é sempre uma

244 Sandro Nahmias Melo questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas.35

É Suzana Barros, entretanto, que enfeixa com perfeição linha limítrofe de ação do Legislativo, ao asseverar que: “A toda a evidência, o limite de restrição de qualquer coisa é tudo aquilo que conceitualmente a pode destruir. Todo o bem ou valor jurídico tem, por isso, uma essência a respeito da qual há um certo consenso, ainda que se trate de algo fluido ou ambíguo, a exemplo da boa-fé, conceito que recebeu inúmeros tratados técnicos”.36 Assim também o é com o direito ao meio ambiente. Se a limitação do mesmo é tal a ponto de destruí-lo, o seu conteúdo essencial não foi respeitado. Não há como se definir, entretanto, uma regra matemática capaz de identificar se relativização de um direito, especificamente o direito ao meio ambiente (considerados todos os seus aspectos – natural, artificial, cultural e do trabalho), quando harmonizada com outro direito fundamental, afeta ou não o seu conteúdo essencial. Cada caso deve ser analisado in concreto com base em suas peculiaridades.

7. CONCLUSÃO

De tudo quanto se expôs, parece autorizado concluir que:

É inafastável a conclusão no sentido de que o direito ao meio ambiente equilibrado é, sim, direito fundamental, materialmente considerado, uma vez está que inexoravelmente ligado ao direito à vida; Definido o meio ambiente como direito fundamental, ou seja, como elemento imprescindível para o alcance do direito à vida, com qualidade e dignidade, emerge, de pronto, uma constatação: o direito ao meio ambiente, como direito fundamental, não deve prevalecer, de forma absoluta, sobre outros interesses ou direitos, inclusive sobre aqueles igualmente fundamentais; Há que se reconhecer que, na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, constatamos o enfrentamento

35 Bobbio. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho, 8.ª ed. Rio de Janeiro, Campus, 1992. 36 Barros, op. cit., p. 96.

Meio Ambiente Equilibrado e a Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais 245 de dois direitos igualmente fundamentais, não sendo possível proteger um deles sem relativizar o outro; O conteúdo essencial dos direitos e garantias fundamentais constitui uma garantia dos direitos e liberdades frente a atividade legislativa de limitação dos mesmos. Tal conteúdo assinala uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar, delimitando um terreno que a Lei que pretende limitar-regulamentar um direito não pode invadir sem incorrer em inconstitucionalidade; A toda a evidência, o limite de restrição de qualquer coisa é tudo aquilo que conceitualmente a pode destruir. Todo o bem ou valor jurídico tem, por isso, uma essência a respeito da qual há um certo consenso, ainda que se trate de algo fluido ou ambíguo, a exemplo da boa-fé, conceito que recebeu inúmeros tratados técnicos; O texto do Art. 225, da Constituição Federal deve ser interpretado em consonância com o direito fundamental ao desenvolvimento e à luz dos objetivos e preceitos fundamentais da República; O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado deve ser visto, enquanto direito humano, como elemento integralizador da esfera individual de cada ser ao seu campo político-jurídico, o qual qualifica os termos cidadãos, indivíduos e coletivo, respectivamente, como social, sujeitos de direitos e nação, bases para um futuro contrato social, idealizado na vigência e plenitude dos direitos humanos.

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248 Sandro Nahmias Melo – PARTE 03 –

O RISCO ACERCA DA UTILIZAÇÃO DA TRANSGENIA (ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS) NA AGRICULTURA MODERNA ...... 251 1. Introdução ...... 251 2. A tematização do risco na sociedade moderna segundo a ótica de Raffaele de Giorgi . .254 3. Os Organismos Geneticamente Modificados ...... 260 4. Transgênicos – Aspectos controversos da polêmica ...... 264 5. Conclusão ...... 269 Referências ...... 271

CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO ...... 273 1. Introdução – O quadro da indolência humana ...... 273 2. Sociedade de Risco Mundial – admirável mundo tecnológico ...... 274 3. Globalização, Estado-Nação e Cidadania ...... 281 4. Cidadania Ambiental Cosmopolita – Sociedade Civil Mundial ...... 286 5. Conclusões articuladas ...... 294 Referências ...... 296

O RESGUARDO DO PATRIMÔNIO CULTURAL POR MEIO DA MEMÓRIA COLETIVA .299

1. Introdução ...... 299 2. A memória entre a Lenda e a Mitologia ...... 301 3. As fases da memória coletiva ...... 302 3.1 Memória Étnica ...... 302 3.2 Entre a Pré-História e a Antigüidade ...... 303 3.3 A Fase Medieval ...... 304 3.4 O avanço do século XVI até o presente ...... 304 3.5 A memória na atualidade ...... 305 4. A cultura e a memória ...... 306 5. A importância dos bens culturais ...... 307 6. O patrimônio histórico e artístico na ordem constitucional ...... 308 7. O desenvolvimento da proteção jurídica das lembranças culturais ...... 310 7.1 A proteção da memória do patrimônio cultural ...... 310 7.2 O patrimônio cultural brasileiro ...... 312 7.3 Do patrimônio material ao imaterial ...... 314 8. Conclusão ...... 316 Referências ...... 317

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna

Bruno Gasparini1

1. INTRODUÇÃO

sociedade moderna sustenta-se sobre os princípios Ada globalização e do neoliberalismo, primando por um viés econômico para solucionar os problemas a ela inerentes. O desenvolvimento tecnológico e o conhecimento científico inabalável, marcado pela racionalidade, proporcionou a criação da sociedade de risco, firmada na globalização e marcada pelo utilitarismo. Sob estes parâmetros, visualizamos ser o risco fruto da modernidade, sendo conseqüência da globalização e do progresso da ciência, tendo-se desenvolvido sem a sustentabilidade necessária. O autor português Boaventura de Sousa Santos explicita essa situação:

(...) sendo um novo modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautem pelos princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma com os que o precedem.2

1 Mestrando em Direito. Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. 2 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000, p. 58.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 251 O contexto globalizado, que têm como características a ordem cosmopolita e transformadora, foi fundamental para a modificação da forma de pensamento e de enfrentamento da realidade que caracterizam a sociedade moderna. O progresso tecnológico possibilitou à humanidade romper as barreiras dos limites naturais, proporcionando um crescimento populacional exacerbado e modificando as relações sociais, mas também trazendo comodidade, conforto, bem-estar, agilidade, fluidez, praticidade, enfim, todas as benesses características deste mundo globalizado. Entretanto, embora a evolução seja inegável, ela traz consigo inúmeros problemas nunca dantes imaginados, cuja previsibilidade se torna parca em virtude dos desequilíbrios causados pelo sistema. A aculturação dos povos subdesenvolvidos, a mudança do modo de vida, a alteração dos costumes e tradições, os problemas ecológicos, o esgotamento dos recursos, são temas característicos deste período. Desta forma, percebemos que a globalização traz consigo paradoxos de difícil contemporização, pois ao mesmo tempo em que nos oferece benefícios, através da tecnologia, nos apresenta problemas que nos parecem insolúveis, causados pelo desequilíbrio. A única certeza plausível é a de que nada é seguro, mas, ao mesmo tempo, nada é impossível para a sociedade moderna. Este contexto e as práticas acima descritas ilustram a situação dos Estados subdesenvolvidos e dos agricultores tradicionais frente às indústrias transnacionais que controlam o agronegócio mundial, monopolizando a cadeia produtiva (sementes, fertilizantes e herbicidas), e impondo a aceitação mundial de novas tecnologias agrícolas, fragmentando o campo de acordo com seus próprios interesses e dividindo os mercados consumidores em fatias rentáveis a todos os integrantes do conglomerado financeiro internacional, gerando uma dependência financeira e tecnológica, que inibe o desenvolvimento de tecnologias locais que não sejam financiadas por estes grupos, das quais não possam garantir royalties através de patentes, e colocam os países subdesenvolvidos e os agricultores tradicionais numa ciranda de dependência, na qual o único interesse é mantê-los na mesma situação, reféns do conglomerado financeiro internacional. Os agricultores são encorajados e convencidos a utilizarem-se de técnicas de produção cujo rendimento está diretamente relacionado a um ciclo produtivo concebido através do encadeamento seqüencial e ordenado das fases do cultivo de determinada variedade agrícola. As transnacionais sementeiras fornecem os fertilizantes, as

252 Bruno Gasparini sementes, os herbicidas, toda uma técnica de produção que só dará bons resultados se encadeadas e metodicamente utilizadas. A decisão do agricultor em utilizar a nova técnica, implicará num comprometimento deste com a empresa. O agricultor se comprometerá pelo pagamento destes insumos através de sua produção, podendo ser o pagamento em “soja verde”, ou no valor da soja no mercado no vencimento das obrigações. Os preços da soja no mercado futuro já estão sendo largamente contratados. A transnacional paga pelo risco, mas percebe, monopoliza e influencia os rumores do mercado que podem influenciar o peço do grão, cotado em Bolsa. A partir desta premissa, percebe-se que os Estados subdesenvolvidos, que atrelam suas políticas públicas ao interesse do conglomerado financeiro internacional, acentuam os riscos de suas sociedades ao atrelarem suas decisões políticas aos desígnios externos, sem considerar que estas decisões humanas podem imputar danos irreparáveis ao entorno (humano e natural), gerando causas que se tornam alheias ao seu próprio controle. A polêmica adoção da transgenia está envolta num conturbado debate, que apresenta controvérsias de caráter ético, científico, político, econômico, cultural e ecológico, que ao invés de apresentar soluções plausíveis para a sociedade, apenas aumentam o grau de incerteza quanto à utilização desta nova biotecnologia. Em cada um desses conflituosos campos do debate, encontraremos posições contrárias e posições favoráveis, que obscurecem ainda mais o tema, tornando-nos reféns das imposições dos conglomerados financeiros internacionais, que apenas se preocupam com as cifras relacionadas a este empreendimento. Existem aqueles que pregam, entre eles cientistas e estudiosos, que os Organismos Geneticamente Modificados não representam nenhum risco extra para a sociedade; paralelamente, existem advertências contundes e comprovadas cientificamente, alertando sobre os problemas irreversíveis que estes podem causar aos seres humanos e ao meio ambiente. A sociedade, por sua vez, sempre mal informada e alheia ao debate, recebe informações tendenciosas, veiculadas em meios de comunicação de massa, que são patrocinadas pelas grandes indústrias sementeiras transnacionais (como as propagandas da Monsanto que estão sendo exibidas na televisão, que ridicularizam os debates e minimizam os riscos, sem ter um aporte científico para tanto). A única certeza é que estes grupos almejam apenas aumentar o seu mercado consumidor e conseqüentemente, seus lucros,

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 253 disseminando suas tecnologias sem maiores critérios, pretendendo que os riscos sejam avaliados posteriormente, negligenciando o princípio da precaução, desrespeitando consumidores e agricultores. Assim, no presente trabalho, o intuito é estabelecer uma conexão entre a utilização da transgenia na agricultura e a teoria do risco na sociedade moderna, apontando as tendências favoráveis e contrárias a esta tecnologia, relacionando-as com a problematização formulada por Raffaele de Giorgi acerca do risco na sociedade pós- industrial.

2. A TEMATIZAÇÃO DO RISCO NA SOCIEDADE MODERNA SEGUNDO A ÓTICA DE RAFFAELE DE GIORGI

A formulação de De Giorgi parte da constatação de que a metafísica das grandes descrições está esgotada, os grandes acontecimentos mundiais das últimas décadas transformaram não somente a “ordem do mundo”, mas também a “ordem dos conceitos” ou distinções, utilizadas para descrever a ordem vigente àquela época. Tais distinções indicavam diferenças de contexto, de sentido, consideradas como potenciais evolutivos da sociedade contem- porânea. Uma parte das distinções eram isoladas e apresentadas como uma condensação de sentido da própria distinção, esta operação legitimava outras operações, que produziam ulteriores condensações de sentido ou a passagem às outras partes da própria distinção. Eram operações que impunham uma representação do futuro, pois demandavam tempo na sua elaboração. Assim, a certeza do futuro era produzida no presente, pois havia a certeza da existência de um futuro cuja atualização dependeria de nossa atuação. Na hipótese desta certeza não se realizar, restaria a afirmação de que tal fato poderia ser imputado à oposição previsível de forças contrárias, mas, de qualquer forma, conhecidas ou previsíveis. A racionalidade estava inculcada nestas formulações. As ações do presente eram pautadas na representação do futuro, baseado em esquemas de simplificação da sociedade possível, que davam plausibilidade às decisões, visto que permitiam tratar com previsibilidade ou como expectativas partilhadas, o dano ocasionado daquela atuação. O potencial descritivo destas distinções havia sedimentado uma semântica que estabilizava estruturas de expectativas e fornecia segurança. Estas distinções se caracterizavam por valores positivos

254 Bruno Gasparini ou negativos, sempre contrastantes, mas que tinham sua própria plausibilidade, visto que mesmo as resistências que se opunham a determinadas estratégias, tendiam a conservar a distinção, convalidando a possibilidade de autodescrição da sociedade. O próprio De Giorgi elucida a questão: “De outra parte, os países subdesenvolvidos só eram assim considerados sob a perspectiva de desenvolvimento dos países desenvolvidos, os quais, enquanto impunham suas políticas em virtude de sua potência econômica, podiam legitimamente ter como objetivo de seu desenvolvimento a 3 manutenção do subdesenvolvimento nos outros países”. A diferença entre os valores que caracterizam cada uma das partes da distinção criava situações de equilíbrio no sentido de que, também quando se verificava a transposição da linha demarcatória, a diferença entre os dois valores subsistia. A igualdade de todos os cidadãos perante a lei forçava a redistribuição, em âmbitos diversos, dos problemas que dali derivavam e levava, desta forma, à produção de novas diferenças. A situação é cíclica e irremediável. As contraposições do sistema são diametralmente opostas, mas com caráter complementar. É a manutenção das distinções e as estratégias de equilíbrio que garante segurança do sistema. Na afirmação de De Giorgi: “Mais Estado significava menos mercado; mais riqueza; menos pobreza; mesmo guerra, mais paz. Diante do risco, podia-se oportunamente pensar em mais segurança. A guerra fria, o equilíbrio do terror, a política de dissuasão, as intervenções para o desenvolvimento, são todas configurações destas estratégias 4 de equilíbrio e de manutenção das distinções”. Nas autodescrições da sociedade contemporânea, o paradigma era baseado num princípio de racionalidade que representava a tensão face ao equilíbrio das distinções e que reforçava a expectativa da normalidade. A indicação da normalidade permitia assinalar, distintamente, o limite além do qual os acontecimentos apresentavam o caráter de desvio. Os acontecimentos assumem o caráter de normalidade, quando o seu “acontecer” é sustentado pelo consenso de regularidade, pelo fortalecimento daquelas estruturas de controle do desvio que são constituídas de expectativas. A regularidade permite construir conexões entre os acontecimentos, imputar causalidade e elaborar descrições que tornam manifestas as conexões entre os acontecimentos. A calculabilidade das imputações na construção de conexões confere a estas caráter de razoabilidade. As

3 DE GIORGI, Raffaele. “O risco na sociedade contemporânea”, in Revista Seqüência. Revista do Curso de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, jun., 1994, n.º 28, p. 47. 4 Op. cit, p. 47.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 255 anotações de De Giorgi explicitam a situação: “A regularidade que opera na estrutura seletiva dos acontecimentos, fornece segurança à ação e, ao mesmo tempo, possibilita o tratamento do desvio, ou seja, 5 torna possível a normatização”. Através das autodescrições, a dimensão temporal do agir harmoniza-se com a dimensão social em acontecimentos, utilizando-se, para tanto, da calculabilidade. Tal sintonia possibilita as combinações entre os aconteci- mentos. O espaço no qual isto ocorre delimita a normalidade. Tudo o que não está disposto, o que está fora, não pertence à normalidade. Na sociedade moderna, o direito e a economia são (sub)sistemas sociais que tratam a contingência de maneira a não permitir que esta adquira valor de estrutura, na concepção marxista do termo. Estes sistemas produzem segurança através do tratamento de expectativas com base em decisões ou também com base no controle da escassez dos recursos, planejando políticas e assumindo riscos calculáveis, segundo os partidários desta teoria. Atualmente, a autodescrição da sociedade está fragmentada, sendo que o potencial descritivo das distinções que a haviam tornado possível, também está esgotado. A autodescrição foi privada de seu fundamento, qual seja, o pressuposto da estabilidade da relação entre racionalidade e tempo. Esta relação era precária, sendo a normalidade, portanto, uma construção contingente, capaz de duvidar de si própria, visto que constituída por indeterminações infinitas, pois o que nunca houvera acontecido ou tenha sido verificado, pode acontecer de súbito. Na medida em que se percebe que toda decisão também poderia ter sido tomada de maneira diversa, percebe-se que esta é contingente, que o evento, ao qual ela se refere, é contingente e que o momento, no qual o acontecimento e a decisão se fundam, também é contingente. A normalidade, por sua vez, é o resultado encontro destas contingências. Nesse caso, se não é possível determinar as indeterminações de maneira a maquiar a normalidade, será possível tentar observar e descrever a sua natureza. O controle das indeterminações sempre foi objeto de preocupação das diversas sociedades ao longo da história da humanidade. São exemplos dessa prática, as adivinhações, o tabu e até mesmo o pecado. Mais recentes são as invenções do acaso e da probabilidade. Apenas no século passado tivemos o desenvolvimento do conceito de incidente, que foi amplamente utilizado como técnica descritiva de acontecimentos caracterizados por indeterminação até o

5 Op. cit., p. 47.

256 Bruno Gasparini advento de sua ocorrência, além do fato da decisão que dá origem a estes acontecimentos estar sempre orientada para evitar a ocorrência dos mesmos. Neste contexto, todos esses eventos que tentam ser determinados pela racionalidade, são considerados danosos. Se estas indeterminações pudessem verdadeiramente ser evitadas, embora tenhamos consciência que o método cartesiano utilizado pela estatística não pode antever ou delimitar todas as eventuais indeterminações; se fosse possível evitá-las, teríamos que tornar possíveis outras indeterminações, as quais somos efetivamente impossibilitados de conhecer. Mesmo que os cálculos e os testes comprovem a eficácia e eficiência de determinados materiais, que o tempo de vida útil de um empreendimento seja delimitado, não conseguiremos antever todas as situações, e muito menos normatizar o que não podemos delimitar. Raffaele de Giorgi, elucida a questão: “Medidas ulteriores de segurança não são completamente capazes de controlar as indeterminações que nascem em virtude da sua própria ativação e, portanto, não dão qualquer segurança complementar: estas podem, somente, deslocar o problema ou no tempo ou no espaço de produção destes eventos”.6 Nunca poderemos responder seguramente, ao menos que racionalizemos completamente uma indeterminação, qual é o nível de segurança da segurança? No mundo moderno, a sociedade caracteriza-se pela sua suposta capacidade de controlar as incertezas, acabando, muitas vezes, por produzi-las. Há um paradoxo insolúvel, que acrescenta a necessidade de proteção e segurança. A ação é conduzida desta forma visando evitar que as indeterminações possam adquirir valor de estrutura, ou seja, que o desvio se estabilize. Nunca teremos a certeza sobre quais decisões podem ser capazes de evitar situações que não se sabe se ocorrerão. Desta forma, podemos concluir que a estrutura da sociedade moderna é paradoxal, pois as considerações que desenvolvemos são plausíveis, e esta paradoxalidade tornou-se tema da comunicação, visto que a sociedade contemporânea reforça simultaneamente as proposições da segurança e da insegurança, determinação e indeterminação, estabilidade e instabilidade. Nas palavras de De Giorgi: “(...) nesta sociedade, há simultaneamente mais igualdade e mais desigualdade, mais participação e menos participação; mais riqueza e, ao mesmo tempo, mais pobreza”.7

6 Op. cit., p. 49. 7 Op. cit., p. 50.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 257 Neste contexto, podemos afirmar que o futuro está mais próximo porque as possibilidades do agir e a sua complexidade desenvolveram-se simultaneamente; entretanto, este futuro segue ignorado e sempre mais incerto e preocupante, porque o desvio da normalidade é, ao mesmo tempo, mais estável e mais contingente. Na atual sociedade mundial, há mais exclusões e também mais inclusões. Assim, como ponto de chegada, no qual se estabiliza uma normalidade construída em virtude de uma projetualidade racional relativa à finalidade, o futuro está mais longe e improvável, fato que exclui a possibilidade de se utilizar representações unilineares do futuro, baseados na razão ou no espírito. Segundo De Giorgi: “(...) a alta complexidade, autoproduzida pela sociedade moderna, fez da precariedade da relação da razão com o tempo um pressuposto 8 estável do agir, que pode ser imputado a homens ou organizações”. De acordo com estas condições estruturais, a sociedade utiliza- se de uma forma de constituição de formas para a representação do futuro e para produzir vínculos com o futuro. A forma dessa representação e a modalidade da produção destes vínculos com o futuro está representada pelo “risco”, que atua através da racionalidade para construir outras formas, baseadas no binômio probabilidade/improbabilidade. A análise do risco realizada pela sociedade contemporânea pode ter a função de racionalizar o medo, sendo um substituto para a angústia provocada pela própria observação da realidade e a constatação de que o homem influi negativamente em seu meio. O tema do risco tornou-se objeto de interesse e preocupação da opinião pública, quando o problema da ameaça ambiental permitiu a compreensão de que a sociedade produz tecnologias que podem gerar danos irreversíveis, não só para a natureza, mas conseqüentemente, para a própria espécie humana. Raffaele de Giorgi explica como a sociedade reagiu a essa constatação:

Neste ponto, o risco foi tratado, considerando-se a segurança como sua alternativa e, portanto, também possível. Apelou-se para o uso de tecnologias seguras e invocou-se a intervenção de uma racionalidade linear capaz de controlar as conseqüências das decisões. Depois, constatou-se que a alternativa para o risco não era a segurança, mas um risco de outro gênero, e tematizou-se a normalidade do risco.9

8 Op. cit., p. 50. 9 Op. cit., p. 51.

258 Bruno Gasparini Assim, com a banalização do risco, a sociedade moderna passou a tratar como uma normalidade a iminência das catástrofes. Verificou- se que o Homem é incapaz de promover uma segurança total, diante da corrida tecnológica contemporânea, onde o avanço da ciência chega a patamares inimagináveis, e a imprevisibilidade impera. Verificou-se que a segurança é um artefato em que não se pode confiar. Quando o Homem se dá conta de que o modelo de racionalidade utilizado e que nos dava segurança, não funciona, recorre-se à moral, que funciona em relação aos princípios, mas não leva ao consenso nas decisões individuais, produzindo conflito sobre a avaliação dos riscos e sua aceitabilidade. Sem o auxílio prestado pela moral, o que resta é o pânico, síndrome costumeira da modernidade. A partir desta certeza, vislumbrou-se dois possíveis caminhos: ou a sociedade aceita o risco como uma condição existencial (solução que traz a rejeição do saber do mundo e que não estimula a ação); ou a sociedade aceita o fato de que o processo de modernização não seria mais capaz de controlar a si mesmo, o que impeliria a racionalidade para um patamar onde mais fosse possível detê-la (sociedade de risco ou contra-modernidade). Segundo De Giorgi, a sociedade de risco é caracterizada da seguinte forma:

Nasce assim uma Segunda modernidade que é a sociedade de risco. Esta sociedade começa ali onde falham os sistemas de normas sociais que haviam prometido segurança. Estes sistemas falham pela sua incapacidade de controlar as ameaças que provêm de suas decisões. Tais ameaças são de natureza ecológica, tecnológica, política, e as decisões são resultado de uma coação que derivam da racionalidade econômica que impõe o modelo de racionalidade universal.10

Sob este prisma, o risco é uma modalidade de relação com o futuro, é uma forma de determinação das indeterminações segundo a diferença probabilidade/improbabilidade. Na sociedade moderna, o risco é condição estrutural da auto-reprodução, pois o fechamento operativo dos sistemas singulares determinados pela estrutura e unidos estreitamente, torna possível o controle do ambiente, tornando improvável a racionalidade, constrangendo os sistemas a operar sob as condições da incerteza. Esta estreita união estrutural, impõe um acordo temporal da seqüência, assegurando tanto a

10 Op. cit., p. 52.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 259 possibilidade do perfeito funcionamento dos sistemas, quanto a iminente possibilidade de uma catástrofe, o liame é estreito, o sistema opera sob os auspícios do risco. Nesta situação, a razão clássica, baseada na calculabilidade e na regularidade, no sistema binário, é desestruturada pela incerteza presente no tempo. Assim, a precariedade da razão é tida como certa. O risco, torna-se, então, modalidade secularizada de construção do futuro. Portanto, ainda que seja vivido como fatalidade, o risco é uma aquisição evolutiva do tratamento das contingências, que exclui toda segurança e também todo destino. De Giorgi faz uma aproximação entre o risco, o direito e a economia, afirmando que:

O risco baseia-se na suportabilidade, na aceitabilidade e não, na certeza das próprias expectativas: por isso, os riscos não podem ser transformados em direito, ainda que possam ser monetarizados. O risco sobrecarrega o direito: trata-se, no entanto, de estratégias de retardamento do risco, não de estratégias que evitam o risco. O sistema mais diretamente interessado é a economia: isto ocorre seja porque os riscos podem ser monetarizados, seja porque as possibilidades de dívida são infinitas.11

A partir destas constatações, de como o risco se relaciona com a economia e com o direito, os sistemas sociais singulares, para tratar as situações em que o risco está presente, são obrigados a reestruturar os dispositivos comumente utilizados, adequando a legislação às diversas possibilidades, sempre com o cuidado de imputar um dano a determinada decisão, de maneira a monetarizar os riscos. Com isso, podemos afirmar que a perspectiva do risco constitui referência fundamental na descrição da sociedade moderna, mas esta, não é capaz de estabelecer e delimitar seus compormentos nas situações nas quais o risco está presente.

3. OS ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS

Nos últimos 40 anos a agricultura passou por um processo de modificação em seus métodos e técnicas em virtude dos vários problemas ambientais que vinha ocasionando; a erosão, o desmatamento, a alteração do ciclo hidrológico, são frutos de uma

11 Op. cit., p. 53.

260 Bruno Gasparini modernização desenfreada que apenas visionava economizar trabalho humano, com a utilização de variedades com alta produtividade, maquinário, herbicidas e fungicidas, que acabaram por dar origem a desastres ambientais e sociais. Fruto da chamada “Revolução Verde”, conhecida corrente iniciada na década de 60 do século XX, baseada na genética convencional (mendeliana), na qual os agrônomos se utilizam de todas as técnicas que a biotecnologia lhes oferecem para o melhoramento das técnicas de engenharia genética,12 que consiste na “transformação da composição genética de um organismo resultante da introdução direta de material genético de um outro organismo, ou construído em laboratório”,13 e posterior incremento da produção, a utilização de OGM (Organismos Geneticamente Modificados),14 por meio da fusão de genes adicionais (vírus, bactérias, palantas ou animais), foi intensificada em meados da década de 80, tendo qualificativo aumento tecnológico na década de 90, com o mapeamento das moléculas de ADN/ARN recombinante, tanto dos animais, quanto dos humanos e vegetais, o que iniciou a denominada biorevolução. Nas palavras dos pesquisadores Gonzalo G. Mateos, R. Lázaro e M. I. Gracia, em palestra realizada na Conferência Apinco 2000 de Ciência e Tecnologia Avícolas, verbis:

Dentro do campo da agricultura, a biotecnologia pode ser utilizada em diversos processos e com diferentes finalidades. Assim, graças a ela, se desenvolvem novas variedades de plantas resistentes ao meio (salinidade do solo, estiagem, vírus, insetos, fungos, etc.), a diversos herbicidas (round up ready), ou diversos tipos de frutas e verduras com maior capacidade de conservação, melhorando assim a produtividade real e o valor econômico dos cultivos. Processos industriais tais como café descafeinado, ervilha e milho doces de alta produtividade, plantas que acumulem plásticos biodegradáveis no lugar de amido ou açúcares como material de reservas, e em fibras de algodão coloridas, serão produtos usuais no futuro.

12 A engenharia genética é conhecida também como “biotecnologia moderna”, “manipulação genética”, “modificação genética” e, com sentido mais restrito e específico, de “tecnologia do DNA recombinante”. 13 REISS, M. J.; STRAUGHAN, R. Improving nature? The science and ethics of genetic engineering. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1996. 14 Alimentos transgênicos são aqueles que sofreram alterações na sua dotação genética, para acrescentar alguma característica considerada positiva. Têm sido concebidos como uma forma de melhorar a agricultura e pecuárias tradicionais, através de melhoramento genético. Não existe prova alguma, aceitável para a maioria da comunidade científica, de que estes produtos transgênicos sejam nocivos para a saúde humana das pessoas nem para o meio ambiente, embora não possa ser descartado que no futuro apareçam efeitos prejudiciais (GARCÍA OLMEDO, 1998).

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 261 Dentro do campo da saúde humana ou animal, a biotecnologia permite a criação de novas variedades vegetais, ricas em oligofrutanos (substância que melhora os ecossistemas microbianos do intestino) que resultarão num menor uso de antibióticos, o desenvolvimento de plantas produtoras de fitasas e diversos hormônios e medicamentos, e a modificação da composição do óleo de sementes, permitindo o enriquecimento em AGPI ou em ácido linoléico conjugado, que melhora a imunidade e reduz a incidência de distintos tipos de câncer. As novas tecnologias podem inclusive, permitir a criação de variedades ricas em anticorpos contra coliformes, salmonellas e outros microorganismos patogênicos. Dentro do campo da alimentação animal, o uso das novas tecnologias permitirá a obtenção de um leque de novos produtos de interesse comercial. Assim, poderemos modificar ou enriquecer, as diversas matérias-primas com vitaminas, aminoácidos essenciais e ácidos graxos de interesse, bem como reduzir seu conteúdo em ácido fíticom fibra bruta e oligossacarídeos não digeríveis (estaquiose, verbascose, rafinose e outros).15

Os adeptos dessa doutrina, apenas se preocupam com a utilização das técnicas que a moderna ciência lhes oferece, para utilizar-se dos métodos nas diversas formas de cultivo e plantio, sempre visando um aumento da capacidade produtiva relativa à área, a redução dos insumos e conseqüente diminuição dos custos, sem, no entanto, ater-se a conteúdos éticos, morais e até mesmo sociais, na difusão de seus meios de trabalho, é o que HANS JONAS sintetizou na expressão “vazio ético”, ethical vacuum, resultante do fato da ciência contemporânea ser essencialmente reducionista, mecanicista e despreocupada com os anseios atuais acerca do futuro da vida sobre a Terra.16 Em reportagem veiculada no site da Revista Globo Rural, intitulada “Nova Fronteira”, sob a responsabilidade do jornalista Ernesto de Souza, a tematização, verbis:

É o caso da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, um vegetal que recebeu genes de uma bactéria para tolerar a aplicação de determinado tipo de herbicida. Hoje são

15 APINCO 2000, Conferência de Ciência e Tecnologia Avícolas, Anais, v. 2, p. 199. 16 JONAS H. The imperative of responsability. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

262 Bruno Gasparini vários os métodos utilizados para fazer essa transferência de genes de um organismo para o DNA de outro. Além do bombardeio de micropartículas (biobalística), da microinjeção e da transformação direta para protoplastos (células sem parede celular), o método que tem se mostrado mais eficiente é o que usa as Agrobacterium (A. tumefaciens ou A. rhizogenes), bactérias de solo que funcionam como vetores para transportar o gene selecionado até o interior do código genético da planta. O processo tecnológico que identifica a seqüência de genes que constituem um organismo é conhecido como seqüenciamento do genoma. Do genoma humano ao genoma de uma bactéria patogênica em laranjais, a ciência vem descobrindo cada letra do alfabeto de que são feitos os seres vivos. O desafio daqui para frente é chegar às palavras que essas letras formam e o que significam. Essa próxima etapa, que vai adiante da descoberta genômica, concentra-se no estudo do ‘proteoma’, quer dizer, das proteínas que os genes produzem e de suas funções – é a genômica aplicada ou pesquisa do genoma funcional. Como diz o professor Paulo Arruda, todo mundo quer saber agora para que serve o seqüenciamento dos genes. Quem vai ajudar muito nesse passo são os experimentos de campo. O melhoramento genético convencional, que parecia superado ante a manipulação genética, é que vai dar sentido aos seqüenciamentos de genes e mapeamento molecular. ‘O simples fato de anotar genes e gerar bancos de dados de seqüências não resultará em saltos qualitativos e quantitativos esperados de projetos genoma. A capacidade de seqüenciamento de DNA tornou-se hoje secundária. A questão-chave agora é o que fazer com aquelas dezenas de milhares de seqüências geradas. E uma das ferramentas mais poderosas é o trabalho nos campos experimentais’, defende Dario Grattapaglia, especialista em genoma funcional do eucalipto e professor da Universidade Católica de Brasília. Na argumentação de muitos cientistas e algumas empresas, os benefícios apontados na adoção de todas essas biotécnicas são inumeráveis e promissores. Na agricultura, a pesquisa já chegou a plantas modificadas geneticamente para ter resistência a pragas e a doenças. Com isso, a produtividade aumenta, e a aplicação de defensivos diminui. Grãos, tubérculos, verduras e frutas passarão por modificações genéticas para resistir ao frio, à seca, à salinização

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 263 ou à umidade dos terrenos, incorporando fronteiras agrícolas até então improdutivas. As plantas crescerão mais rápido e darão alimentos mais ricos em proteínas e possíveis de serem armazenados por muito mais tempo. Os agricultores terão lavouras não mais para colher apenas alimentos, mas também remédios, pois as plantas receberão genes exógenos que as tornarão capazes de diminuir os riscos de vários tipos de câncer ou de atuar como vacinas para combater inúmeras doenças.17

É inegável que a biotecnologia, no caso em análise a transgenia, solucionará diversos problemas da humanidade, proporcionando soluções para a saúde humana e o meio ambiente, mas isso ocorrerá apenas se a ditadura tecnológica do conglomerado internacional do agronegócio não condicionar o encaminhamento das pesquisas visando contemplar apenas a economia de mercado. O desenvol- vimento de cada variedade é extremamente dispendioso, podendo chegar a 200 milhões de dólares em 10 anos de pesquisa. Até o presente momento, as pesquisas financiadas pelas transnacionais são apenas para as variedades cujo potencial mercadológico é expressivo, sendo que apenas as cultivares interessantes ao agronegócio mundial estão sendo desenvolvidas. O Brasil, particularmente, tem, na Embrapa, um reconhecido instituto de pesquisas, conseguindo, desde que mantenha uma agenda positiva de incentivo e fomento, manter sua soberania econômica e tecno- lógica, impulsionando o agronegócio brasileiro dentro de perspectivas que gerem emprego e renda também para as pequenas propriedades e não só para os grandes latifúndios, pouco numerosos, nas mãos de algumas famílias e que respondem por pequena parcela na geração de empregos no campo. A cadeia produtiva do agronegócio gera muitos postos de trabalho, mas as extensas monoculturas mecanizadas, não.

4. TRANSGÊNICOS – ASPECTOS CONTROVERSOS DA POLÊMICA

De um lado, estão os que defendem a produção e comercialização de OGM, alegando que sua utilização acabaria com os prejuízos econômicos causados pelos insetos, fungos ou perecibilidade dos cultivares, que atinge 40% das safras mundiais

17 In: http:globorural.globo.com/mensal/materias/repvio2.htm. Acesso em 30.10.2002.

264 Bruno Gasparini atualmente. Em matéria veiculada no periódico Seed News, de setembro de 1997, a tematização:

Em 1995 uma empresa do Alabama, EUA, gastou US$ 414,6 mil com inseticidas. No ano passado, para tratar da mesma área plantada, investiu apenas US$ 239,2 mil, ou seja, reduziu seus custos em 42%. O segredo foi à utilização de sementes transgênicas. Essas notícias, por um lado, preocupam as empresas que fabricam defensivos agrícolas, e por outro explicam as profundas alterações em suas estruturas. Grandes grupos mundiais estão vendendo suas empresas de produtos químicos e investindo pesado em áreas diversas. Algumas dirigiram seus investi- mentos para a indústria farmacêutica, enquanto outras passaram a comprar produtoras de sementes, por exemplo. Os produtos agroquímicos movimentam cerca de US$ 30 bilhões anualmente. Em contraste, já se espera que o mercado de produtos geneticamente modificados, como o milho e o algodão resistentes a insetos, e a soja que resiste aos herbicidas, dispare para algo em torno de US$ 20 bilhões em 2010.18

Em entrevista ao periódico Biotecnologia, Ciência & Desenvolvimento, de dezembro de 2000, o professor inglês da Universidade de Reading, David Beever,19 ao ser perguntado se o cultivo de plantas geneticamentes modificadas com tolerância a herbicidas pode aumentar o uso de produtos químicos na agricultura, respondeu:

Não. O cultivo dessas plantas tem demonstrado exatamente o contrário, ou seja, elas reduzem o uso de herbicidas na lavoura. Os grupos ativistas é que tentam ‘plantar’ a informação de que as plantas tolerantes a herbicidas podem aumentar o uso de produtos químicos na agricultura. É melhor ter o gene de resistência a herbicidas no genoma da planta do que aplicar maciçamente produtos químicos para combater as ervas daninhas, já que o impacto ambiental dos transgênicos,

18 SEED NEWS, n.º 1, set., 1997, p. 39, Biotecnologia cria a nova agricultura, com a colaboração de Roberto Rissi, da Cargill; Jorge de Souza, da Zêneca; Alberto Leonardo, da Josapar; Lineu Rodrigues, da Agroceres;e Rodrigo L. Almeida, da Monsanto. 19 David Beever é bacharel pela Universidade de Durnelm desde 1966, e PhD pela Universidade de Newcastle–upon- Tyne, Inglaterra, em 1969. Atualmente é professor de ciências animais e produção, do Departamento de Agricultura da Universidade de Reading, e diretor do Centro de Pesquisas de Laticínios (Cedar). Além disso, é membro da Sociedade de Nutrição; da Sociedade Britânica de Ciências Animais e da “American Dairy Science Association”, entre outras instituições, e autor de mais de 350 publicações científicas.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 265 neste caso, é expressivamente menor. Na minha opinião, essa tecnologia de engenharia genética é extremamente positiva na produção de alimentos e deveria ser utilizada por todos os países em desenvolvimento, em especial devido às altas taxas de crescimento da população.20

Também quanto a esta questão, as palavras de Aluízio Borém e Marcos Paiva Del Giúdice:

Outra preocupação às vezes levantada por ambientalistas, é a de que variedades transgênicas tolerantes a herbicidas poderiam resultar em plantas daninhas tolerantes aos herbicidas, ou seja, superplantas daninhas. Vargas et al. (1999) discorreram sobre a resistência de plantas daninhas a herbicidas e concluem que uma população delas pode ter, naturalmente, diferentes níveis de tolerância a diferentes herbicidas. O risco de um febe específico de um OGM tolerante à herbicida ser transferido para uma planta daninha é extremamente remoto, em muitos casos, como já foi observado por Conner & Dayle (1996). O fluxo gênico entre diferentes espécies é extremamente complexo e requer a quebra de várias barreiras de isolamento produtivo (KLINGER et al. 1991).21

Argumento análogo é de acabar com a fome do Terceiro Mundo, pois com o aumento da produção, e corte nas perdas, poder-se-ia distribuir melhor a produção. No periódico Financial Times, de 28/05/1999, o filósofo Alan Ryan da Universidade de Oxford, membro do Conselho Nuffield, órgão diretivo de Ética nas Ciências Biológicas do Reino Unido, em seu relatório, afirmava: “…o desenvolvimento de cultivares geneticamente modificadas para combater a pobreza contém um imperativo moral obrigatório…”, concluindo, após 18 meses de estudos, que não há fundamentos para a proibição no Reino Unido de cultivares e alimentos OGM. Nesta mesma linha de argumentação, em artigo publicado no site do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, intitulado “As Promessas das Plantas da Biotecnologia”, no tópico O Potencial da Biotecnologia Vegetal, verbis:

20 BIOTECNOLOGIA CIÊNCIA & DESENVOLVIMENTO, 12/2000, p. 4-8, entrevista concedida a Maria Fernanda Diniz Avidos e Lucas Tadeu Ferreira, veiculada na matéria Os transgênicos e o futuro da agricultura. 21 INFORME AGROPECUÁRIO, v. 21, n.º 204, maio/junho de 2000, p. 14-19, Empresa de Pesquisa Agropecuária de MG.

266 Bruno Gasparini A população mundial está crescendo vertiginosamente, enquanto a área de solo arável disponível para a produção de alimentos está cada vez mais reduzida. Nunca foi tão necessário o emprego de uma nova tecnologia agrícola como agora. A Organização Mundial de Saúde prevê que para o ano 2025: A população global deverá aumentar em 38%, de 5,8 bilhões em 1998 para 8 bilhões. O solo de primeira qualidade disponível para a agricultura deverá permanecer em aproximadamente 1% do volume de terra no mundo. A expectativa de vida em todo o mundo deverá passar da média atual de 68 anos para 73 anos. Além disso, à medida que melhora o padrão de vida, o consumo de carne e, portanto, a demanda por ração animal aumentam. O que os agricultores podem fazer? Para produzir alimentos em quantidade suficiente para alimentar o número crescente de pessoas, os produtores necessitarão de plantas que produzam mais e que necessitem de menor quantidade de insumos, tais como solo, água, combustíveis fósseis, inseticidas, fungicidas e herbicidas. Muito embora os métodos tradicionais de reprodução de plantas e a química agrícola tenham aumentado os rendimentos consideravelmente a partir dos anos 60, novas tecnologias que conservem o meio ambiente e que gerem mais alimentos nutritivos se farão necessárias. E aí surge a biotecnologia, que permite aos pesquisadores desenvolverem plantas com caracte- rísticas benéficas, aumentando a variedade de plantas produzidas e, ao mesmo tempo, reduzindo o custo de produção e protegendo o solo.22

Em informativo produzido e veiculado pela empresa Monsanto, no qual se respondem às questões mais usuais em matéria de transgênicos e biotecnologia, a resposta à pergunta sobre se os alimentos originários da biotecnologia podem causar alergias e/ou potencializar o efeito de substâncias tóxicas existentes em quantidades inofensivas nos alimentos:

22 In: http:www.nal.usda.gov/bic site do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Acesso em 22.08.2002.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 267 A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) desenvolveu o critério de equivalência substancial, o qual tem orientado a análise da segurança alimentar dos alimentos provenientes da biotecnologia. Ele se baseia em análises químicas e nutricionais para identificação de semelhanças e diferenças entre cultivos geneticamente modificados e seus pares convencionais, cuja segurança já é conhecida. Conclusão: os cultivos geneticamente modificados desenvolvidos até o momento têm composição igual a das variedades convencionais. Em outras palavras, tomando- se a soja geneticamente modificada como exemplo, não existe um único caso documentado de reação adversa que não tenha ocorrido igualmente nas duas variedades porque ela é equivalente à soja tradicional. Ou seja, quem tem alergia à soja comum tem alergia a qualquer soja. A modificação genética não interfere no potencial alergênico dos alimentos. Pelo mesmo motivo – porque há equivalência substancial entre os cultivos geneticamente modificados e as variedades convencionais correspondentes – não há possibilidade de que substâncias tóxicas existentes em quantidades inofensivas nos alimentos possam ter sua ação potencializada ou, ao contrário, que a ação de substâncias benéficas possa ser diminuída.23

Nas palavras de Jorge Alberto Quadros Carvalho e Silva:

O site da Monsanto informa que a empresa, em colaboração com a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos, está trabalhando com cientistas do Quênia, um país com 26 milhões de pessoas, 96% passando fome, para o desenvolvimento da batata-doce com resistência ao vírus FMV através da biotecnologia. Essas lavouras, protegidas contra viroses e outras doenças, decerto viabilizariam a produção sustentável de alimentos pelo agricultor africano.24

É justamente este o ponto que combatem os posicionados contra esta inovação, alegando que o problema se encontra na distribuição da renda e dos produtos, pois estes existem e são suficientes a todos, mas só chegam aos governos que podem adquiri-

23 In: http:www.monsanto.com.br; site da Empresa Monsanto do Brasil. Acesso em 15.02.2002. 24 CARVALHO SILVA, Jorge Alberto Quadros. “Alimentos Transgênicos: Aspectos Ideológicos, Ambientais, Econômicos, Políticos e Jurídicos”, In: Revista Biodireito, p. 328.

268 Bruno Gasparini los e mesmo assim, continuam sendo mal distribuídos, o problema é estrutural. Ademais, os riscos para a saúde humana e o meio ambiente ainda são incalculáveis, imprevisíveis, mas presentes e não descartados por pesquisa alguma. As palavras de Rubens Onofre Nodari, presidente da Sociedade Brasileira de Genética – Regional de Santa Catarina, corroboram esse posicionamento:

O fato de que esta mesma soja tenha sido liberada em outros países não é garantia que ela é segura e não causa danos à saúde. Esta opinião é compartilhada por inúmeros cientistas, políticos e organizações não- governamentais. Recentemente, o Secretário de Meio Ambiente do Estado Scheleswig-Holstein, Alemanha, afirmou que os padrões dos testes atuais não são rigorosos o suficiente. Experiências anteriores com agrotóxicos comprovam isto. A morte de 37 pessoas e seqüelas em outras 1.500 causada pelo consumo do triptofano fabricado por um organismo transgênico, oficialmente testado e liberado nos Estados Unidos, também ilustra que os testes não são eficientes para assegurar o nível de risco para a saúde humana. Atualmente, poucos países liberaram plantas transgênicas para cultivo. Além disso, nem todos os testes necessários para garantir uma decisão segura foram feitos com a soja transgênica, mesmo nos países onde foi desregulamentada.25

Diante das assertivas anteriores, acreditamos ser impossível posicionar-se contra ou a favor de determinada inovação tecnológica, em particular os transgênicos, pois a especulação e interesses financeiros que envolvem a questão, pode tornar as opiniões parciais e as pesquisas encomendadas, sem o verdadeiro compromisso com o efetivo esclarecimento de determinada situação. Portanto, os riscos para a saúde e meio ambiente não podem ser visionados, mas muito menos descartados, sendo que a grande solução é a precaução, insculpida em princípio basilar do direito ambiental.

5. CONCLUSÃO

Na sociedade moderna, podemos visualizar que os avanços tecnológicos proporcionados pelo desenvolvimento nos causam cada vez mais problemas, ao invés de nos apresentar soluções. Como não podemos racionalizar as incertezas através da probalidade e da esta-

25 In: http:www.monsanto.com.br; site da empresa Monsanto do Brasil. Acesso em 15.02.2002.

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 269 tística, as indeterminações tomam lugar comum no contexto contemporâneo, e somos obrigados a conviver com o risco e a iminência da catástrofe, somos abalroados por uma crise existencial e tomados por um estado de pânico, devido à impossibilidade de controlar os efeitos advindos de nossas próprias decisões, calcadas, na maioria das vezes, em interesses econômicos, que não salvaguardam o homem, os animais ou os ecossistemas. Os interessados na adoção de novas tecnologias, no caso em análise, a transgenia, argumentam a inexistência do risco, e são completamente irresponsáveis quanto às suas afirmações. É um direito inerente à sociedade e ao consumidor conhecer as dimensões do problema, as características e a natureza do risco deste novo empreendimento. Se possuidora das informações corretas, não apenas as que são institucionais, ou financiadas pelas transnacionais sementeiras, a sociedade poderá debater a problemática, tomando conhecimento do que pode ocorrer e decidindo, por si própria, qual política será adotada, dentre as diversas alternativas apresentadas. Mesmo que decida pela utilização da transgenia, a sociedade terá a consciência do porquê escolheu este caminho, pois terá sido informada dos acontecimentos de forma imparcial, e não de maneira manipulada, como atualmente vêm ocorrendo. Quem decidirá o futuro dos Organismos Geneticamente Modificados é o consumidor, pois não existem produtos melhores ou piores, se estes não são aceitos pelo mercado, e não se convertem em lucros para os detentores das patentes. Ademais, pelo que visualisamos no atual ordenamento jurídico relativo à biossegurança, a gestão dos riscos ambientais está sendo negligenciada, pois os instrumentos que estão sendo ofertados, não são capazes de abarcar todas as inúmeras situações que podem ocorrer, tanto nos aspectos ecológicos, quanto políticos, como culturais. Até mesmo a responsabilização e as obrigações ainda não estão definidas, visto que os agricultores não podem arcar sozinhos com os riscos de uma tecnologia que não foi por eles criada, mas apenas utilizada; empresas sementeiras e governo tentam eximir-se de sua parcela de responsabilidade, obrigando os agricultores que se utilizarem da nova tecnologia a assinarem termos de ajustamento de conduta, se comprometendo a arcar com os prejuízos porventura advindos de sua escolha. Tal conduta governamental não é condizente com os regramentos constitucionais, pois cabe ao Poder Público preservar a

270 Bruno Gasparini diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, além de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético (art. 225, § 1.º, I, CF). Assim, não é lícito admitir a utilização dos Organismos Geneticamente Modificados no país, até que haja a comprovação científica de que estes não causarão danos à integridade do nosso patrimônio genético. Transferir essa responsabilidade aos agricultores é impossível, pois a fiscalização compete ao Poder Público. Assim, até que esta contenda esteja dirimida e seja definida uma orientação única quanto à problemática, pautada num ordenamento jurídico com caráter definitivo em relação à biossegurança, o governo deveria orientar-se pelo princípio basilar do direito ambiental, o princípio da precaução, com o intuito de diminuir ao máximo a possibilidade de eventos danosos irreparáveis.

REFERÊNCIAS

APINCO’2000, Conferência de Ciência e Tecnologia Avícolas, Anais, volume 2, p. 198-200. BIOTECNOLOGIA, CI NCIA & DESENVOLVIMENTO, 12/2000, p. 4-8, entrevista concedida a Maria Fernanda Diniz Avidos e Lucas Tadeu Ferreira, veiculada na matéria Os transgênicos e o futuro da agricultura. CARVALHO SILVA, Jorge Alberto Quadros. “Alimentos Transgênicos: Aspectos Ideológicos, Ambientais, Econômicos, Políticos e Jurídicos”, In: Revista Biodireito, p. 326-346. DE GIORGI, Raffaele. “O risco na sociedade contemporânea”. In: Revista Seqüência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, jun., 1994, n.º 28. INFORME AGROPECUÁRIO, v. 21, n.º 204, maio/junho de 2000, p. 14-19, Empresa de Pesquisa Agropecuária de MG. JONAS H. The imperative of responsability. Chicago: University of Chicago Press, 1984. REISS, M. J.; STRAUGHAN R. Improving nature? The science and ethics of genetic engineering. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1996. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000. SEED NEWS, n.º 1, set., 1997, p. 30-39, Biotecnologia cria a nova agricultura, com a colaboração de Roberto Rissi, da Cargill; Jorge de Souza, da Zêneca; Alberto Leonardo, da Josapar; Lineu Rodrigues, da Agroceres; e Rodrigo L. Almeida, da Monsanto. SOUZA, Ernesto de. “A Nova Fronteira Agrícola”. Revista Globo Rural. [Internet] http://globorural.globo.com/mensal/materias/repvio2.htm [Acesso em 15.Abr.2002].

O Risco Acerca da Utilização da Transgenia (Organismos Geneticamente Modificados) na Agricultura Moderna 271

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção

Tiago Fensterseifer1

There are one hundred and ninety-three living species of monkeys and apes. One hundred and ninety-two of them are covered with hair. The exception is a naked ape self- named Homo sapiens. This unusual and highly successful species spends a great deal of time examining his higher motives and an equal amount of time studiously ignoring his fundamental ones. He is proud that he has the biggest brain of all the primates… I am a zoologist and the naked ape is an animal.2

1. INTRODUÇÃO – O QUADRO DA INDOLÊNCIA HUMANA

ser humano, enquanto espécie animal, vive uma Ocrise existencial. A natureza animal (selvagem) é abstraída por completa da identidade humana e sobre ela consolidada a compreensão antropocêntrica do mundo. Além de romper com a sua gênese e identidade animal (e os ecossistemas em si), tal concepção de mundo afirma de modo absoluto a separação cartesiana entre homem e natureza. Chegamos ao absurdo da condição (des)humana! O que se verifica, em verdade, é a face(ta) da compreensão filosófica antropocêntrica, que guia a razão humana desde a modernidade, empurrando o ser humano rumo a um penhasco existencial. O afastamento do ser humano da sua matriz natural rompe de forma definitiva com a teia da vida, como preconizada Fritjof Capra,3 colocando em risco todas as espécies que habitam a casa planetária (incluindo o próprio ser humano).

1 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. Membro do NEPAD – Núcleo de Estudos e Pesquisa “Ambiente e Direito” da PUCRS. 2 MORRIS, Desmond. The naked ape. New York: Dell, 1969, p. 9. “Existem cento e noventa e três espécies de macacos. Cento e noventa e duas delas são cobertas de pêlo. A exceção é um macaco pelado autodenominado Homo sapiens. Esta espécie incomum e extremamente bem-sucedida passa grande parte do seu tempo examinando suas motivações superiores e um igual tempo diligentemente ignorando as que lhe são fundamentais. Ela se orgulha de ter o maior cérebro entre todos os primatas... Eu sou um zoólogo e o Homo sapiens é um animal” (tradução livre do autor). 3 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 273 Num quadro de catástrofes e destruição ambiental sem precedentes na História,4 a dimensão global da problemática ambiental impõe uma reorganização política dos Estados nacionais rumo à estruturação de uma nova ordem jurídica e política internacional, no intuito dar respostas concretas às referidas aporias contemporâneas. Para tanto, é necessário que os mesmos valores e princípios que fundamentam os Estados de Direito Democráticos Constitucionais sejam garantidos e efetivados também no plano internacional. Entre eles, destacam-se o princípio democrático e a cidadania ambiental como elementos fundamentais para a construção geopolítica e jurídica da nova ordem mundial. A atuação participativa e deliberativa da sociedade civil e dos movimentos sociais no processo de formulação das decisões e vontade política é elemento fundamental para a superação do momento de risco ambiental vivenciado pela civilização pós-moderna. Nesse contexto, projeta-se a figura da cidadania ambiental cosmopolita, enquanto condição política supraterritorial que reconhece a dimensão planetária da crise ambiental, bem como afirma o princípio democrático para além das fronteiras nacionais.

2. SOCIEDADE DE RISCO MUNDIAL – ADMIRÁVEL MUNDO TECNOLÓGICO

Os livros e o barulho intenso, as flores e os choques elétricos – já na mente infantil essas parelhas estavam ligadas de forma comprometedora; e, ao cabo de duzentas repetições da mesma lição, ou de outra parecida, estariam casadas indissoluvelmente. O que o homem uniu, a natureza é incapaz de separar. Elas crescerão com o que os psicólogos chamavam um ódio ‘instintivo’ aos livros e às flores. Reflexos inalteravelmente condicionados. Ficarão protegidas contra os livros e a botânica por toda a vida.5

A máxima de Hobbes6 elaborada no século XVIII, ao afirmar que “o

4 “Sob o pretexto de ‘progresso industrial’, sucederam-se, nos últimos anos, catástrofes ecológicas em todo o planeta, tais como as de Three Miles Island (200.000 pessoas evacuadas), Seveso (37.000 pessoas contaminadas), Bophal (2.800 mortos, 20.000 feridos), Tchernobil (300 mortos, 50.000 expostos à radioatividade), Guadalajara (200 mortos, 20.000 sem-teto), a do sangue contaminado, do hormônio do crescimento, do amianto, da ‘vaca louca’, do tabaco, do diesel...” RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 4.ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 81. 5 Na passagem citada, Huxley descreve o condicionamento sofrido pelos personagens do seu livro para despertarem indiferença e repúdio ao meio natural e ao conhecimento, retratando a separação cartesiana entre homem e natureza. HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 18.ª ed. São Paulo: Globo, 1992, p. 24.

274 Tiago Fensterseifer homem é o lobo do homem”, ajusta-se perfeitamente ao comportamento do ser humano contemporâneo. Porém, hoje, o homem não é apenas o lobo do homem, mas de todo o planeta Terra. A sua voracidade é amparada em um arsenal de instrumentos tecnológicos sem precedentes na história, bem como sua capacidade de destruição em massa do meio natural e da própria espécie humana não encontra limites planetários, colocando a sociedade mundial em risco de extinção.

Os sociólogos descrevem a sociedade atual, já obviamente pós-industrial, como uma ‘sociedade de risco’ (Beck) ou uma ‘sociedade do desaparecimento’ (Breuer), na medida em que corre ‘perigos ecológicos’ (e perigos genéticos) ou, segundo alguns, caminha mesmo, por força do seu próprio movimento, para a destruição das condições de vida naturais e sociais (e da própria pessoa) – é dizer, na medida em que ocorre o perigo de passar, ou transita efetivamente, da auto-referência (autopoiesis) para a autodestruição. 7

8 Os avanços científicos e tecnológicos operados pela ciência 9 moderna, a partir da revolução científica dos séculos XVI e XVII – pelas mãos de Copérnico, Descartes, Bacon, Galileu e Newton – serviram, e ainda servem, de instrumento de dominação e degradação dos recursos naturais. O conhecimento tecnológico e científico, que deveria ter o desenvolvimento, o bem-estar social e a qualidade e a dignidade da vida humana como suas finalidades maiores, passa a ser, com todo o seu poder de criação e destruição, a principal ameaça à manutenção e à sobrevivência da espécie humana, assim como de todo ecossistema planetário.10

6 HOBBES, Thomas. Leviatã – ou, Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 7 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 61. 8 O geógrafo brasileiro Milton Santos leciona que “o desenvolvimento da história vai de par com o desenvolvimento das técnicas. Kant dizia que a história é um progresso sem fim das técnicas. A cada evolução técnica, uma nova etapa histórica se torna possível”. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 24. 9 “Nos séculos XVI e XVII, a visão de mundo medieval, baseada na filosofia aristotélica e na teologia cristã, mudou radicalmente. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como uma máquina, e a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era moderna. Essa mudança radical foi realizada pelas novas descobertas em física, astronomia e matemática, conhecidas como Revolução Científica e associadas aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton”. CAPRA, op. cit., p. 34. 10 “O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. Para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. Depois de cerca de quatro séculos, desde que surgiu com seus fundadores, curiosamente a ciência está apresentando sérias ameaças à nossa sobrevivência”. ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 3.ª ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 21.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 275 O método científico cartesiano, que orientou nos últimos séculos a pesquisa em praticamente todas as áreas do conhecimento, mostra- se indiferente à vida, porquanto compartimenta e disseca a realidade do objeto estudado a tal ponto que não é mais permitido ao cientista visualizá-lo em relação ao contexto onde está inserido, não acompanhando a sua dinâmica. Estruturada na máxima da verdade universal e em uma metodologia rígida, a ciência moderna acreditava na neutralidade do cientista. Será possível tal neutralidade? Com certeza, a resposta é negativa. O que se conhece é o olhar do cientista sobre o seu objeto de pesquisa e não a coisa em si. A complexidade do mundo contemporâneo não contempla mais o pensamento científico que, ao retirar o objeto do seu contexto social e ambiental para estudá- lo, não considere tais dimensões no momento de instrumentalizá-lo.11 A compreensão de um pensamento complexo e crítico constitui- se de pressuposto indispensável ao estudo da realidade contem- porânea. Longe dos maniqueísmos e todos os demais “ismos” que circulam no universo científico, os problemas enfrentados pela humanidade não comportam olhares simplistas e superficiais. Cada vez mais os elementos que compõem a realidade do mundo são mais diversificados e complexos, demandando por um estudioso atento a tal contexto científico e real. Talvez no topo dos desafios mais complexos a que se defronta a Humanidade desponte a questão ambiental.

Devemos pensar em termos planetários a política, a economia, a demografia, a ecologia, a salvaguarda dos tesouros biológicos, ecológicos e culturais regionais – por exemplo, na Amazônia, ao mesmo tempo as culturas indígenas e a floresta –, das diversidades animais e vegetais, das diversidades culturais – frutos de experiências multimilenares que são inseparáveis das diversidades ecológicas, etc. Mas não basta inscrever todas as coisas e os acontecimentos num ‘quadro’ ou ‘horizonte’ planetário. Trata-se de buscar sempre a relação de inseparabilidade e de inter-retro-ação entre todo fenômeno e seu contexto, e de todo contexto com o contexto planetário.12

A partir da constatação do perigo e da ameaça que ora se contrapõem à existência humana e à vida em todas as suas formas,

11 Para uma melhor compreensão crítica do método científico cartesiano, ver CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1996; CREMA, Roberto. Introdução à Visão Holística. São Paulo: Summus, 1989; ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2001; SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001. 12 MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 3.ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 158.

276 Tiago Fensterseifer impõe-se ao ser humano, como único ser consciente do momento de risco13 que vivenciamos, a assunção de suas responsabilidades na árdua tarefa de reverter esta situação em favor da vida. Nesse contexto, tomando por base os perigos tecnológicos que expõem a própria sobrevivência planetária, construiu-se a partir das ciências sociais a teoria da sociedade de risco.

A noção de sociedade de risco foi elaborada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, através da obra Risikogeselshaft, lançada em 1986, na Alemanha, onde coloca as origens e as conseqüências da degradação ambiental no centro da sociedade moderna – é a ameaça de autodestruição que caracteriza a sociedade da última metade do século XX. Embora Beck utilize a idéia de riscos e perigos para se referir a muitas áreas da vida social, estas idéias são analisadas mais minuciosamente na equação dos riscos e perigos relativamente à degradação do meio ambiente. No entanto, a idéia central da sociedade de risco é a complexidade técnica das novas sociedades.14

A instrumentalização do arsenal científico e tecnológico pós- moderno, na grande maioria das vezes a serviço do interesse econômico, coloca o ser humano como, dentre todas as espécies que já habitaram o planeta Terra, a mais destrutiva e ameaçadora.

Solamente con la supremacía del pensamiento y con el poder de la civilización técnica posibilitada por él, una forma de vida, ‘el hombre’, se ha colocado en situación de poner en peligro a todas las demás formas de vida y, con ellas, a sí mismo. No pudo ‘la naturaleza’ incurrir en mayor riesgo que el de hacer surgir al hombre.15

O cenário de constantes degradações ambientais que se registra cotidianamente nas realidades local e global, provocadas pela ação antrópica no meio natural, coloca homens e mulheres contem-

13 LEITE e AYALA apontam para a teoria da sociedade de risco, sob a ótica do direito ambiental. “A sociedade capitalista e o modelo de exploração capitalista dos recursos economicamente apreciáveis se organizam em torno das práticas e comportamentos potencialmente produtores de situações de risco. Esse modelo de organização econômica, política e social submete e expõe o ambiente, progressiva e constantemente, ao risco”. LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 103. 14 ALBUQUERQUE, Letícia. Os dilemas da sociedade biotecnológica: o impacto da biotecnologia na condição humana. Anais do 3.º Congresso Brasileiro do Ministério Público de Meio Ambiente e do 2.º Seminário Regional do Instituto “O Direito por um Planeta Verde”. Porto Alegre: Corag, 2003, p. 65. 15 JONAS, Hans. El Principio de Responsabilidad: ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995, p. 229.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 277 porâneos diante de um desafio sem precedentes na história. O Preâmbulo da Agenda 21 descreve e alerta para esta realidade, ao referir que “vivemos um momento de definição histórica”.

A humanidade encontra-se em um momento de definição histórica. Defrontamo-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas, o agravamento da pobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com a deteriorização contínua dos ecossistemas de que depende nosso bem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas ao meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às necessidades básicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construir um futuro mais próspero e seguro. São metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porem, podemos – em uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável.16

O Relatório “O Nosso Futuro Comum”17 da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, publicado no ano de 1987, já apontava para a importância de uma compreensão comum da responsabilidade de todos, Estados e cidadãos, na reconstrução geopolítica do nosso mundo dividido. O relatório prega um apelo a que as pessoas, mas também os Estados, se voltem para a compreensão de que o futuro de todos, em todos os cantos do planeta Terra, é comum. Ou ele existirá para todos, ou ele não existirá para ninguém. O princípio da precaução,18 também compreendido aqui o princípio da prevenção,19 declara o compromisso que todos temos para

16 Preâmbulo da Agenda 21, Capítulo 1, Subitem 1.1. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 3.ª ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001, p. 9. 17 NOSSO FUTURO COMUM (Brundtland Report) – Relatório da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, 1987. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1991. 18 O princípio da precaução está expresso no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (RIO DE JANEIRO: 1992). Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001. No direito brasileiro, o princípio da prevenção pode ser verificado no art. 225, § 1.°, V, da Constituição Federal de 1988, bem como através do Art. 54, § 3.°, da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais). 19 É importante frisar a autonomia conceitual que guardam entre si os princípios da precaução e da prevenção. “O traço essencial que afasta e delimita os dois conceitos é o da identificação ou não de um dado risco. A prevenção exige claramente a adoção de medidas contra riscos já identificados. Já o vorsorgeprinzip alerta para a necessidade de agir contra a emergência de riscos cuja existência ou dimensão ainda não foi demonstrada, ou mesmo a necessidade de agir na ausência de riscos, designadamente postulando a não perturbação de um dado recurso ambiental como forma de gestão cautelosa do futuro”. MARTINS, Ana Gouveia e Freitas. O princípio da precaução no direito do ambiente. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2002, p. 25.

278 Tiago Fensterseifer com as futuras gerações, num âmbito de justiça e eqüidade intergeracional, ademais de firmar as responsabilidades éticas que temos na utilização de tecnologias que alterem o estado natural dos ecossistemas e da vida em geral.20 Entre outras coisas, o referido princípio condiciona uma ação responsável e cautelosa do homem/mulher na aplicação de tecnologias que possam – mesmo que remotamente – comprometer a vida e a qualidade ambiental. A expressão latina in dubio pro utilizada comumente no Direito Penal para determinar quem deve ser favorecido com o juízo de dúvida, no Direito Ambiental é aplicada invariavelmente como in dubio pro “ambiente”.

O princípio da precaução, como estrutura indispensável ao Estado de justiça ambiental, busca verificar a necessidade de uma atividade de desenvolvimento e os potenciais de risco ou perigo desta. Parte-se dos pressupostos que os recursos ambientais são finitos e os desejos e a criatividade do homem infinitos, exigindo uma reflexão através da precaução, se a atividade pretendida, ou em execução, tem como escopo a manutenção dos processos ecológicos e de qualidade de vida.21

O princípio da precaução,22 que deve necessariamente orientar as políticas públicas, é constantemente acusado de anti-desenvol- vimentista ou mesmo anti-progressista, principalmente por empreen- dedores de novas tecnologias ou conhecimentos como as indústrias química e biotecnológica. No entanto, para a sua implementação, deve- se buscar no princípio da proporcionalidade a ponderação dos valores e princípios, geralmente de natureza econômica, que conflitam com a proteção ambiental, a fim de extrair desse contexto a decisão política e a solução para o caso concreto mais apropriadas. Em obra sobre a globalização, Milton Santos sugere o mundo como uma grande fábula, onde “a promessa de que as técnicas

20 Nesse sentido, a evidenciar o princípio da precaução no cenário jurídico brasileiro, a paradigmática decisão do Juiz Federal Antônio Souza Prudente verificada na ação civil pública ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC contra a UNIÃO FEDERAL, a MONSANTO DO BRASIL LTDA. e a MONSOY LTDA., que condenou a União Federal a exigir a realização de prévio Estudo de Impacto Ambiental da MONSANTO DO BRASIL LTDA. para liberação de espécies geneticamente modificadas e de todos os outros pedidos formulados à CTNBio, declarando a inconstitucionalidade do inciso XIV do Art. 2, do Decreto n.º 1.752/95, bem assim das Instruções Normativas n.OS 03 e 10 – CTNBio, no que possibilitam a dispensa do EIA/RIMA (PROCESSO N.º 1998.34.00.027682-0, CLASSE 7100, 6.ª Vara da Justiça Federal, DF). 21 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 50-51. 22 “No Art. 5.º do projeto de Código ambiental alemão, o princípio da precaução vem definido nos seguintes termos: 1. Os riscos para o ambiente e para os seres humanos devem, na medida do possível, ser excluídos ou minimizados, em particular, através do planejamento em longo prazo e da adoção das precauções técnicas adequadas; 2. A abordagem assente na precaução visa igualmente a proteção de grupos sensíveis e de elementos sensíveis dos ecossistemas. Deve ser preservada uma margem para usos futuros e ecologicamente apropriados; 3. A qualidade do ambiente deve ser melhorada em áreas afetadas e preservada em áreas não afetadas”. MARTINS, op. cit., p. 26-27.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 279 contemporâneas pudessem melhorar a existência de todos cai por terra e o que se observa é a expansão acelerada do reino da escassez, atingindo as classes médias e criando mais pobres”.23 Não obstante as promessas fascinantes do avanço científico, o que se verifica no contexto mundial é um constante agravamento das desigualdades entre os países detentores das tecnologias, e conseqüentemente do poder econômico, e os países pobres, reféns dos seus desideratos políticos e econômicos.

Como conejos se reproducen los nuevos tecnócratas del medio ambiente. Es la tasa de natalidad más alta del mundo: los expertos generan expertos y más expertos que se ocupan de envolver el tema en el papel celofán de la ambigüedad. Ellos fabrican el brumoso lenguaje de las exhorbitaciones al ‘sacrificio de todos’ en las declaraciones de los gobiernos y en los solemnes acuerdos internacionales que nadie cumple. Estas cataratas de palabras, inundación que amenaza convertirse en una catástrofe ecológica comparable al agujero de ozono, no se desencadenan gratuitamente. El lenguaje oficial ahoga la realidad para otorgar impunidad a la sociedad de consumo, a quienes la imponen por modelo en nombre del desarrollo y a las grandes empresas que le sacan el jugo.24

O comércio internacional, característico por sua vocação para a dominação e busca incansável por recursos naturais em todos os cantos do globo terrestre desde as Cruzadas, apresenta-se em constante metamorfose de atuação. Aponta-se hoje a biotecnologia como a sua obra- prima mais audaz, e ao mesmo tempo mais letal, capaz de transformar em capital todas as formas vivas, assim como pôr o ser humano à venda nos mercados mundiais. Os elementos sociais, humanos e ambientais não integram a fórmula do comércio internacional.

A entropia acelera-se, porque o mundo, apesar de notáveis esforços retóricos, continua acentuando suas características e relações reais: continua sendo financeiramente total, econo- micamente global, politicamente tribal e ecologicamente letal. Continua subordinando as questões éticas, políticas e sócio- ambientais, ao imperativo absoluto e constantemente,

23 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 118. 24 GALEANO, Eduardo. Úselo y tírelo: el mundo del fin del milenio visto desde una ecología latinoamericana. 5.ª ed. Buenos Aires: Planeta, 2001, p. 9-10.

280 Tiago Fensterseifer obstinadamente reforçado, das exigências do comércio internacional.25

Como Aldous Huxley previu em seu “Admirável Mundo Novo”,26 a biotecnologia está próxima de comandar os rumos da própria existência humana e, conseqüentemente, do planeta Terra. Os riscos à saúde humana e ao meio ambiente, ou seja, à própria vida em si, não parecem argumentos fortes o bastante para combater o interesse econômico que fundamenta o discurso das empresas de biotecnologia e dos seus prepostos comercias e políticos (oficiais e não-oficiais). Enquanto isso, segue-se sonhando que um desenvolvimento sustentável é possível.

3. GLOBALIZAÇÃO, ESTADO-NAÇÃO E CIDADANIA

A globalização ou mundialização, como a doutrina francesa prefere referir, apresenta um espectro quase ilimitado de elementos na sua composição (culturais, ambientais, sociais, humanos, políticos, econômicos, etc.). Enquanto um processo em curso e até certo ponto imprevisível, vai, ao passo que avança, instaurando nova face geopolítica na composição mundial e provocando mudanças internas e externas na concepção política moderna dos Estados nacionais. A vontade econômica, como o carro-chefe a impulsionar os movimentos da globalização para todos os espaços planetários, dita, em grande medida, a forma e as regras deste novo “Novo Mundo” em formação.

A partir de uma determinada definição de globalização (em termos de transformação da organização espacial das relações sociais e privilegiamento das relações e exercício de poder ‘à distância’ entre, dentro e para além dos Estados nacionais, numa complexa e contraditória desterritorialização e reterri- torialização do poder econômico, político e social), analisam-se os processos de mudança estrutural da política mundial e da própria figura do Estado-nação, assim como seus desdobramentos diretos sobre as noções de soberania, comunidade política e democracia, histórica e conceptualmente atreladas a essa última.27

25 CAUBET, Christian Guy. A irresistível ascensão do comércio internacional: o meio ambiente fora da lei? Revista de Direito Ambiental, n.º 22, abril-junho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 81. 26 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 18.ª ed. São Paulo: Globo, 1992. 27 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 9.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 281 Nesse contexto, impõe-se uma releitura política da ordem mundial. Os valores ambientais, latentes desde a década de 70 do século XX nas novas construções sociais emergentes, passam, ou ao menos assim deveriam, a compor o centro gravitacional da ordem política contemporânea. A vida, diante do atual contexto de risco ambiental, enquanto o valor maior da Humanidade, impõe tal “Virada de Copérnico” à política mundial. Nesse processo em curso, as primeiras transformações políticas são perceptíveis na estrutura soberana dos Estados nacionais, que, na medida em que não encontram respostas nacionais para os desafios contemporâneos, demonstram a sua fragilidade política para a solução de questões ambientais e sociais.

Hoje percebe-se claramente que o sistema político internacional baseado em Estados soberanos é cada vez menos eficiente na manutenção da ordem. A crise sócio-ambiental global e a erosão dos Estados-nação obrigam a repensar as bases da política e o destino da humanidade. A emergência de um ambientalismo global e multissetorial (com grande amplitude teórica e prática) nos comunica com o passado e com o futuro, apostando em gerar uma nova phylia que derrube os muros nacionais da política e estenda seus alcances até os limites da humanidade e do planeta.28

O Estado-nação, na sua concepção moderna, característico por um modelo absoluto de soberania, não encontra mais corres- pondência e possibilidade diante dos desafios contemporâneos, principalmente naqueles tocantes ao meio ambiente e à ordem social. É preciso que a soberania seja relativizada no plano externo. Ferrajoli,29 ao afirmar a antijuridicidade e crise do conceito moderno de soberania, aponta sua crítica para o absolutismo ainda exercido pelos Estados nacionais ocidentais no que tange às suas relações internacionais. Em outras palavras, apesar de fundarem-se sob a égide dos direitos humanos fundamentais no plano interno dos seus Estados de Direito, o mesmo não é verificado no âmbito externo, ou seja, nas suas relações com os demais Estados, organizações e seres humanos do planeta.

28 LEIS, Héctor Ricardo. A modernidade insustentável: as críticas do ambientalismo à sociedade contemporânea. Petrópolis, RJ/Florianópolis, SC: Vozes/Editora da UFSC, 1999, p. 38. 29 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 46.

282 Tiago Fensterseifer Repensar o Estado em suas relações externas à luz do atual direito internacional não é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso quer dizer analisar as condutas dos Estados em suas relações entre si e com seus cidadãos – as guerras, os massacres, as torturas, as opressões das liberdades, as ameaças ao meio ambiente, as condições de miséria e fome nas quais vivem enormes multidões de seres humanos –, interpretando-as não como males naturais e tampouco como simples ‘injustiças’, quando comparadas com uma obrigação utópica de ser moral ou política, mas sim como violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado em seus princípios fundamentais. Isso quer dizer, em poucas palavras, conforme a bela fórmula de Ronald Dworkin, ‘levar a sério’ o direito internacional: e, portanto, assumir seus princípios como vinculadores e seu projeto normativo como perspectiva alternativa àquilo que de fato acontece; validá-los como chaves de interpretação e fontes de crítica e deslegitimação do existente; enfim, planejar as formas institucionais, as garantias jurídicas e as estratégias políticas necessárias para realizá-los.30

O Estado de Direito, conforme lição de Canotilho,31 apresenta as seguintes dimensões fundamentais: juridicidade, democracia, sociabilidade e sustentabilidade ambiental. A seqüência das dimensões apresentada pelo constitucionalista português traça a evolução civilizatória na conquista e reconhecimento dos seus valores e princípios fundamentais. Desde a sua forma primitiva, o Estado de Direito vem passando por um processo evolutivo contínuo, reconhecendo e agregando novas dimensões jurídicas: o Estado Constitucional, o Estado Democrático, o Estado Social e o Estado Ambiental. Da mesma forma que ocorre com a evolução dos direitos fundamentais, as dimensões do Estado de Direito se agregam e se somam para formar o arcabouço de princípios e valores consagrados pela Humanidade em seu processo histórico contínuo. Para tanto, na proposição de uma democracia radical, a configuração do Estado de Direito pressupõe uma sociedade civil politizada, criativa e protagonista do cenário político estatal, reclamando um indivíduo/cidadão autônomo, participativo, e não

30 FERRAJOLI, op. cit., p. 46. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos n.º 7. Fundação Mário Soares. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 23.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 283 submisso à máquina estatal. Em outras palavras, o Estado de Direito constrói-se de cima para baixo e não de baixo para cima, a partir da sua base democrática, em oposição ao Estado de Não-Direito. Bobbio, sob a ótica dos Estado de Direito e dos Estado de Não-Direito, tece as suas críticas ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos.

Chamamos de ‘Estados de direito’ os Estados onde funciona regularmente um sistema de garantias dos direitos do homem: no mundo, existem Estados de direito e Estados não de direito. Não há dúvida de que os cidadãos que têm mais necessidade da proteção internacional são os cidadãos dos Estados não de direito. Mas tais Estados são, precisamente, os menos inclinados a aceitar as transformações da comunidade internacional que deveriam abrir caminho para a instituição e o bom funcionamento de uma plena proteção jurídica dos direitos do homem. Dito de modo drástico: encontramo-nos hoje numa fase em que, com relação à tutela internacional dos direitos do homem, onde essa é possível talvez não seja necessária, e onde é necessária é bem menos possível.32

A relativização da soberania é imposta pela nova organização política mundial em blocos econômicos, bem como pela inaptidão dos Estados nacionais para lidar com interesses que ultrapassem as suas fronteiras domésticas. Nesse quadro internacional, projetam-se novas relações políticas, jurídicas e econômicas entre os protagonistas da nova ordem política mundial em formação (organizações internacionais, empresas transnacionais, organizações não-governamentais, movi- mentos sociais mundiais, Estados nacionais, etc.). A estes será incumbida a missão atuar no horizonte internacional e salvaguardar os valores humanos e ambientais hoje ameaçados.

Fora do horizonte do direito internacional, de fato, nenhum dos problemas que dizem respeito ao futuro da humanidade pode ser resolvido, e nenhum dos valores do nosso tempo pode ser realizado: não apenas a paz, mas tampouco a igualdade, a tutela dos direitos de liberdade e sobrevivência, a segurança contra a criminalidade, a defesa do meio ambiente concebido como patrimônio da humanidade, conceito que também inclui as

32 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 41.

284 Tiago Fensterseifer gerações futuras. E isso depende não apenas do caráter já global do tamanho desses problemas, pois uma integração do mundo já se realizou em todos os planos e em todas as esferas de vida em relação às quais tais problemas se colocam: na economia, na produção, na exploração e no aproveitamento dos recursos, nos equilíbrios ecológicos, na grande criminalidade organizada, no sistema de comunicações.33

É chegado o momento histórico destes valores já consagrados no plano interno dos Estados e até certo ponto já idealizados para o plano mundial,34 diante do esforço político necessário para lidar com as questões ambientais e sociais, projetarem-se e institucionalizarem-se para além das fronteiras domésticas dos países. Na reconstrução da estrutura política mundial, os referidos valores e princípios que fundamentam hoje os Estados nacionais, como as construções huma- nas mais próximas do ideal humanitário, devem servir como o alicerce dessa nova realidade política e jurídica global. Nesse sentido, Vieira de Andrade aponta para o conceito de dignidade humana como patrimônio espiritual comum da humanidade:

Há um conjunto de direitos fundamentais, do qual decorrem todos os outros: o conjunto dos direitos que estão mais intimamente ligados à dignidade e ao valor da pessoa humana e sem os quais os indivíduos perdem a sua qualidade de homens. E, esses direitos (pelo menos, esses) devem ser considerados ‘patrimônio espiritual comum da humanidade’ e não admitem, hoje, nem mais de uma leitura, nem pretextos econômicos ou políticos para a violação do seu conteúdo essencial.35

Nesse contexto, a dignidade humana deve ser a chave a abrir as muralhas dos Estados nacionais e possibilitar o trânsito livre dos seres humanos por todos os cantos do planeta, bem como o elemento a restabelecer o elo perdido desde a modernidade entre homem e natureza. No entanto, não menos importante que o reconhecimento e respeito à dignidade humana pelas instituições supra-estatais e Estados nacionais, é a tomada de consciência dos indivíduos acerca da participação social na construção dessa nova ordem política mundial.

33 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 51. 34 Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. 35 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 34.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 285 4. CIDADANIA AMBIENTAL COSMOPOLITA – SOCIEDADE CIVIL MUNDIAL

O problema crucial é: como passar de uma situação crítica a uma visão crítica – e, em seguida, alcançar uma tomada de consciência.36

A sociedade civil coloca-se hoje como a consciência política do mundo. Na medida em que se verifica a inaptidão e incapacidade dos Estados nacionais para lidar com diversas temáticas sociais relevantes, a sociedade civil, geralmente em sua forma organizada, passa a ocupar espaços políticos cada vez mais importantes. Registra-se hoje a articulação de diversos movimentos sociais e Organizações Não-Governamentais (ONG) em forma de rede e coalizão, possibilitando a atuação conjunta de diversos atores sociais regionais e internacionais na defesa de uma causa comum. Tal articulação, que talvez tenha a sua representação máxima no Fórum Social Mundial,37 possibilita unidade de atuação e força política para a sociedade civil, vivenciando o local e o universal simultaneamente.

Em consonância com o que hoje se passa na vida e funcionamento da Administração Pública, em geral, também ao nível do direito do ambiente se defende com uma intensidade acrescida a necessidade de não apenas os órgãos e agentes administrativos, mas igualmente os diversos grupos sociais existentes na comunidade, intervirem – não só de forma consultiva, senão que também um papel ativo – nas tomadas de decisão relevantes para o ambiente.38

Nessa teia social mundial, o elo de ligação é a informação. Através das redes de informação, possibilitadas principalmente pela Internet, as ONG’s e movimentos sociais trocam informações e articulam com muito mais eficiência as suas ações políticas de forma conjunta. A democratização e o acesso à informação configuram-se como as principais armas à disposição da sociedade civil para cobrar ações e responsabilidades de Estados e empresas privadas.39 Nesse

36 , SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 116. 37 CATTANI. Antonia David (Org.). Fórum Social Mundial: a construção de um mundo melhor. Porto Alegre/Petrópolis: Editora da Universidade/UFRGS/Vozes/Unitrabalho/Corag/Veraz Comunicação, 2001. 38 DIAS, José Eduardo Figueiredo. Direito constitucional e administrativo do ambiente. Cadernos do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 20. 39 No Brasil, há o exemplo da Lei de Informação Ambiental, enquanto espaço aberto para o exercício democrático.

286 Tiago Fensterseifer contexto, a velocidade com a que a informação circula possibilita a articulação política quase que imediata dos grupos sociais mobilizados na ação política.

Pode-se dizer que já há um início de materialização de uma cidadania ativa global na emergência e na expansão de redes de atividades transnacionais, concebidas como projetos e realidades preliminares, abrangendo uma diversidade de movimentos sociais transnacionais, associações ou grupos de cidadãos, organizações internacionais não governamentais, etc. (por exemplo, Anistia Internacional, Greenpeace, Médecins sans Frontéres, movimentos de mulheres, ambientalistas, de defesa dos direitos humanos). Tal ativismo transnacional, ao construir espaços institucionais rudimentares de ação e lealdade desenvolvidos em e através dos Estados, produz novas orientações com relação à identidade e à comunidade política que estão na base de uma ‘sociedade civil global’ em gestação.40

No cenário internacional, destacam-se algumas ONG’s ambientalistas com alcance e representatividade mundial: Amigos da Terra, Greenpeace, WWF, entre outras. No exemplo do Greenpeace,41 suas campanhas ultrapassam fronteiras locais e nacionais, buscando uma ação política integrada no plano internacional. A projeção mundial das ONG’s reflete a necessidade de uma ação conjunta e integrada de diversas sociedades mundiais na proteção ambiental.

Esse tema do meio ambiente, percebido outrora como uma questão à parte, é cada vez mais apreendido como transversal a todos os campos. A proteção do meio ambiente impõe-se como um imperativo comum ao conjunto das sociedades. A convicção de que o planeta está em perigo aparece como uma das mais importantes tomadas de consciência política deste final de século.42

O conceito de democracia se recria a cada nova tomada de consciência política e avanço civilizatório. Não se pode aceitar a fórmula democrática vendida pela modernidade como a sua possibilidade última. A democracia vai ser sempre a bandeira na luta

40 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis/RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO; Rio de Janeiro: LPP – Laboratório de Políticas Públicas, 2000, p. 72. 41 Ver sites: www.greenpeace.org, www.greenpeace.org.br. 42 RAMONET, Ignácio. Geopolítica do caos. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 4.ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 32.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 287 contra a dominação e espoliação dos mais favorecidos economica- mente para com os desprovidos de poder econômico. E, na medida em que enfrenta novas realidades políticas e sociais, a democracia vai se adaptando e transformando, mas sem nunca perder o seu ideal emancipatório e libertário.

Certamente, não se deduz do anterior que o potencial democrático das sociedades contemporâneas foi esgotado e que o projeto e as forças da globalização dominante reinam com absoluta hegemonia. Nesse sentido, basta lembrar o surgimento de várias tendências de claro perfil contra-hegemônico, tanto no Norte quanto no Sul, que abrangem desde os sinais de recomposição da sociedade civil (movimentos sociais de base local e transnacional que buscam uma visão de mundo alternativa, combinando eqüidade social, sustentabilidade da biosfera e democracia participativa substantiva; crescimento de comunidades de auto- ajuda sobre bases locais), até as ostensivas manifestações de oposição política e social (revoltas sociais, inúmeras greves – sendo emblemática a da França em novembro/dezembro de 1995 –, recentes triunfos eleitorais de oposição na França e na Grã- Bretanha, conformação de alianças aglutinantes das forças de oposição, etc.). Mas, para reverter as tendências dominantes, dada a complexidade dos problemas e dos dilemas que geram, parece evidente que se precisa bem mais do que a criação de condições sociopolíticas favoráveis: é indispensável repensar as perspectivas e as possibilidades da democracia e da cidadania à luz da problemática ambivalente da globalização quando entendida em um sentido mais amplo e diferente do dominante.43

Na nova fórmula democrática, evidenciado o seu caráter supranacional e extraterritorial, a defesa do meio ambiente projeta-se como um dos seus elementos mais importantes. A composição que se extrai entre política e meio ambiente diz respeito diretamente com o princípio democrático, pois está em contraposição à postura opressora e dominante que o poder econômico impõe à grande maioria dos habitantes mundiais.

El proyecto democrático y emancipatorio está en el centro, tanto del ideario ecológico con en el de los movimientos sociales populares. De este modo, es parte importante de la inspiración

43 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis/RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO; Rio de Janeiro: LPP – Laboratório de Políticas Públicas, 2000, p. 43-44.

288 Tiago Fensterseifer política de un proyecto de sustentabilidad fuerte. Como en la navegación de cabotaje, este proyecto se arriesga en la frontera de los paradigmas de sustentabilidad. En este sentido, los actores sociales que se organizan en torno a la idea de una sustentabilidad fuerte podrían ser pensados como ‘viajantes paradigmáticos’, en el sentido que Boaventura les confiere, siendo estos actores aquellos que están entre las márgenes del continente y de alta mar, del peligro y de la oportunidad, en aguas y rutas poco previsibles, en la crisis de la esfera política actual. Esto reinstala la discusión sobre las condiciones necesarias para la articulación entre naturaleza y política – Bios y Polis -; entre los territorios de lo público y lo privado, particularmente transformados por las cuestiones de género, y, finalmente, entre la sustentabilidad, la ciudadanía y la democracia, como una aventura en curso que penetra y sobrepasa los continentes exclusivamente ecológicos o de las relaciones de género, insertándose entre los grandes dilemas políticos de la sociedad contemporánea.44

O conceito de cidadania emerge com uma nova roupagem no universo político e jurídico contemporâneo. As novas realidades enfrentadas pelos cidadãos atingem cada vez mais uma dimensão global, colocando os cidadãos de diferentes e longínquos países diante dos mesmos problemas. Nesse contexto, a questão ambiental coloca-se como a pedra fundamental da construção política hodierna, impondo às nações e cidadãos mundiais uma aliança planetária na formulação e ação política internacional.

A cidadania é um conceito conquistado historicamente. Ela é uma superação da posição do súdito das decisões do poder. O cidadão é o sujeito das normas e ações do poder. Se o Estado dispõe de instrumentos para controlar os cidadãos, estes têm em suas mãos os instrumentos de sobrevivência ou não desse Estado. (...) Assim, a cidadania é um exercício tenso de seres humanos que não dispõe nem das armas, nem da burocracia para fazer valer seus desígnios. Seu campo de ação está na luta política no campo dos direitos, dentro de uma ordem minimamente estável. Nas ordens instáveis e exasperadamente desiguais, as alternativas serão outras. (...) O exercício

44 CARVALHO, Isabel. Sustentabilidad democrática y ciudadanía. In: Mujeres y Sustentabilidad – Intercambio y debates entre el movimiento de mujeres y el movimiento ecologista. Santiago de Chile: Fundación Heinrich Böell, 2001, p. 86.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 289 democrático da cidadania é fundamentalmente ético. É uma opção valorativa no sentido de entendimento e práticas de transformação em busca de uma sociedade mais justa, mais livre e mais feliz. Essas pautas éticas são o inverso do conformismo e estabelecem bases para a constituição de novos direitos.45

No que diz respeito às questões ambientais, o processo democrático deve estar sempre presente, tendo em vista a repercussão e a natureza coletiva da degradação ambiental para todo o conjunto da sociedade. Toda e qualquer atividade lesiva ao meio ambiente, antes de ser efetivada, deve ser subordinada a um processo decisório democrático, dando-se voz e vez a todos os representantes dos grupos sociais interessados na questão. O Princípio 1046 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento47 declara de forma explícita a importância de se assegurar a participação de todos os cidadãos, locais ou globais, nos processos decisórios relativos a questões ambientais. O livre acesso às informações ambientais que as autoridades públicas dispõem é indispensável para a conscientização e participação cidadã na política ambiental.48 Princípio 10. A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos. A cidadania ambiental volta-se cada vez mais para uma dimensão planetária. É preciso a ação local do cidadão ambiental, mas sempre com uma visão voltada para os reflexos que a degradação ambiental traz para todo o ecossistema planetário. Como exemplo, a poluição atmosférica gerada pelos países desenvolvidos tem reflexos diretos na qualidade ambiental e condições de vida dos países em

45 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do Meio Ambiente e participação popular. Brasília: Edições Ibama, 1998, p. 42-43. 46 CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. 3.ª ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001, p. 595. 47 Elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de Janeiro. 48 Nesse sentido, destaca-se a promulgação recente da Lei 10.650, de 16 de abril de 2003, que dispõe sobre o acesso à informação ambiental.

290 Tiago Fensterseifer desenvolvimento. Dessa forma, é necessária uma nova concepção de cidadania, reconhecendo-se o papel e a importância que todos têm na defesa do planeta Terra. O grande número de tratados internacionais sobre meio ambiente firmados desde a Rio-92 reflete, em parte, o consenso universal sobre a necessidade vital de protegerem-se os recursos naturais do planeta. No entanto, tal iniciativa não alcança um plano de eficácia na realidade jurídica e política internacional, mas presta- se mais a evidenciar o quadro de negligência da grande maioria dos países para com a proteção ambiental.

...novas concepções e práticas de cidadania democrática para além das fronteiras (regionais, cosmopolita). Afinal, o principal desafio que enfrenta a política democrática nesta época de transformação consiste, precisamente, em criar condições e capacidades efetivas, por um lado, para cobrar responsabilidades das forças transnacionais e internacionais da globalização ‘pelo alto’ que vêm se beneficiando de uma espantosa concentração de recursos de poder econômico e político em escala planetária (e que operam, portanto, para além do único e cada vez mais impotente controle democrático existente – o territorial); e, pelo outro, para legitimar instâncias de governança supranacional através de uma ampla participação – não exclusivamente interestatal – no processo de deliberação e tomada de decisão política sobre problemas globais (ambientais, direitos humanos, pobreza e desenvolvimento, etc.) que dizem respeito ao conjunto da humanidade.49

Canotilho afirma a superação da concepção moderna do Estado-nação e sua inaptidão para lidar com a problemática ambiental global, sugerindo a estruturação de uma espécie de República Ambiental Planetária, impulsionando o princípio democrático para a ordem jurídica internacional. Na sua construção republicana do mundo, os Estados Ambientais devem incorporar a postura democrática como sua pedra fundamental.50

49 GÓMEZ, José Maria. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 10-11. 50 “A qualificação de um Estado como Estado Ambiental aponta para duas dimensões jurídicas-políticas particularmente relevantes. A primeira é a obrigação de o Estado em cooperação com outros Estados e cidadãos ou grupos da sociedade civil, promover políticas públicas (econômicas, educativas, de ordenamento) pautadas pelas exigências da sustentabilidade ecológica. A segunda relaciona-se com o dever de adoção de comportamentos públicos e provados amigos do ambiente de forma a dar expressão concreta à Assumpção da responsabilidade dos poderes públicos perante as gerações futuras”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos, nº. 7. Fundação Mário Soares. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 44.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 291 O postulado globalista pode resumir-se assim: a proteção do ambiente não deve ser feita ao nível de sistemas jurídicos isolados (estatais ou não), mas sim ao nível dos sistemas jurídico-políticos internacionais e supranacionais, de forma a que se alcance um standard ecológico ambiental razoável a nível planetário e, ao mesmo tempo, se estruture uma responsabilidade global (de Estados, organizações, grupos) quanto às exigências de sustentabilidade ambiental. Por outras palavras: o globalismo ambiental visa ou procura formatar uma espécie de Welt- Umwelrrecht (direito de ambiente mundial). Isto não significa que se desprezem as estruturas estatais e as instituições locais. Lá onde as instâncias nacionais e locais consigam densificações positivas dos standards ecológicos, impõe-se a autocontenção da “República- Ambiental Planetária”. O globalismo aponta também para um direito de cidadania ambiental em termos intergeracionais.51

Nesse sentido, o atual momento histórico não permite a inércia e a neutralidade de outros tempos, mas exige cidadãos e cidadãs planetários conscientes da realidade que os permeia e capazes de agir em defesa da vida. O direito, nesse contexto, nas suas dimensões nacional e internacional, insurge-se como um instrumento de luta e de resistência contra uma realidade que violenta os valores máximos do Estado Democrático de Direito e da humanidade.

Hoje, a cidadania apresenta outra dimensão. A questão de seu exercício transcende a internacionalização e invade a planetarização. Isso se dá pelo fato de a produção apresentar efeitos destrutivos em todo o planeta, não mais se circunscrevendo aos parâmetros geopolíticos do internacio- nalismo, mas avançando para a questão da própria sobrevivência do planeta e da espécie humana. O que leva à necessidade do ser humano conceituar-se de modo diferente. Não mais um cidadão que domina a natureza para criar seu mundo, mas um ser da natureza que cria seu mundo convivendo com ela. Esse cidadão planetário tem na questão ambiental um dos problemas políticos e humanos mais sérios da contem- poraneidade. O ser humano chegou a ponto de poder se destruir enquanto espécie.52

51 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e Democracia Sustentada. In: Direitos Fundamentais Sociais. Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. (No prelo) 52 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito do Meio Ambiente e participação popular. Brasília: Edições Ibama, 1998, p. 46.

292 Tiago Fensterseifer No intuito de reconstruir os conceitos políticos e jurídicos à luz da realidade contemporânea e do atual estágio das construções humanas, cabe destacar a citação de Fernando Pessoa, na figura do seu heterônimo Alberto Caeiro, em Poemas: “É preciso esquecer a fim de lembrar, é preciso desaprender a fim de aprender de novo”. Dessa forma, sugere-se a reconstrução de toda a leitura política e jurídica a partir dos novos valores sociais e ambientais emergentes no universo contemporâneo, os quais devem gravitar a partir dos seres humanos que os compõem e legitimam. A cidadania ambiental, na sua dimensão planetária e cosmopolita, apresenta-se como a nova “cara pintada” da democracia contemporânea, na medida em que agrega consigo os valores mais elementares da humanidade. Propõe-se uma reconciliação do homem natural com o espaço político.

Algumas questões que estão presentes no pensamento ecológico mais profundo oferecem elementos significativos para uma reconciliação do espaço político – no sentido mais amplo do espaço da convivência humana – com o Cosmos, ou com a Natureza. A busca desta reconciliação constitui uma força motriz de algumas das grandes utopias da história ocidental. Esta força, que é uma energia reestruturadora do cultural e do político, brota sempre e novamente quando o homem se interroga a respeito daquilo que constitui a sua autêntica humanidade. Quando ele procura uma relação mais profunda com a sua medida. Quando ele reencontra a sua morada.53

Na abertura deste novo século, cada vez mais marcado pelo comprometimento dos valores ambientais em escala planetária, insurgem-se novas demandas no seio da sociedade civil pós- moderna, a qual chama para si a responsabilidade que os Estados- nação não foram capazes de assumir para com a destruição do meio ambiente e a redução da qualidade ambiental no planeta. Dessa forma, como bem refere Enrique Leff, a democracia aparece como “o projeto civilizador mais ambicioso da Humanidade” na atualidade.

No horizonte deste fim de século, a Democracia aparece como o projeto civilizador mais ambicioso da Humanidade na reconfiguração das forças políticas de um mundo marcado pela desigualdade social, o empobrecimento das maiorias e a

53 UNGER, Nancy Mangabeira. O encantamento do humano – ecologia e espiritualidade. 2.ª ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 63.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 293 degradação ambiental em escala planetária. A partir das raízes da Terra e das bases da sociedade, surge a reclamação popular pela participação na tomada de decisões e na gestão direta de suas condições de existência.54

Até que o homem tecnológico crie mundos artificiais em outros planetas, o que hoje só é possível na ficção, a vida só irá se concretizar e se desenvolver se houver condições ambientais favoráveis. Nesse contexto, tendo em vista a sua natureza difusa, a proteção ambiental passa a ser uma das bases-éticas principais da sociedade pós-moderna na sua caminhada civilizatória, exigindo-se, para o convívio harmonioso entre todos os integrantes da sociedade brasileira e mundial, a firmação de um pacto ambiental com a Terra, onde todos os atores sociais e estatais assumam as suas responsabilidades e papéis na construção de uma sociedade mundial ambientalmente sustentável.

5. CONCLUSÕES ARTICULADAS

A compreensão de um pensamento complexo e crítico constitui- se de pressuposto indispensável ao estudo da realidade ambiental contemporânea. Os problemas ambientais enfrentados pela huma- nidade não comportam olhares científicos simplistas e superficiais, devendo-se restabelecer o elo perdido desde a modernidade entre homem e natureza. A concepção moderna de Estado-nação, característico por um conceito absoluto de soberania, não encontra mais correspondência e possibilidade diante dos desafios contemporâneos, principalmente naqueles tocantes ao meio ambiente, aos direitos humanos e à ordem social. É imperativa a relativização da soberania no plano externo, orientando-se pelos direitos humanos fundamentais nas relações com os demais Estados, organizações, empresas multinacionais e seres humanos do planeta. A sociedade civil coloca-se hoje como a consciência política do mundo. Na medida em que se verifica a inaptidão e incapacidade dos Estados nacionais para lidar com diversas temáticas sociais e ambientais relevantes, a sociedade civil, geralmente em sua forma organizada, passa a ocupar espaços políticos cada vez mais

54 LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau: Editora da Furb, 2000, p. 359.

294 Tiago Fensterseifer importantes. Destaca-se a importância da articulação de diversos movimentos sociais e Organizações Não-Governamentais (ONG) em forma de rede e coalizão, possibilitando a atuação conjunta de diversos atores sociais regionais e internacionais na defesa de uma causa comum, vivenciando o local e o universal simultaneamente. Toda atividade ou empreendimento potencialmente lesivo ao meio ambiente, antes de ser efetivado, deve ser obrigatoriamente subordinado a um processo decisório democrático, com a participação ampla e efetiva de todos os grupos sociais (nacionais e internacionais) interessados na questão. O livre acesso às informações ambientais que as autoridades públicas dispõem é indispensável para a conscientização e participação cidadã “qualificada” na política ambiental. A democratização e o acesso à informação configuram-se como os principais instrumentos à disposição da sociedade civil para cobrar ações e responsabilidades de Estados e empresas privadas. O conceito de cidadania emerge com uma nova roupagem no universo político e jurídico contemporâneo. Não se pode aceitar a fórmula democrática vendida pela modernidade como a sua possibilidade última. As novas realidades enfrentadas contemporaneamente atingem cada vez mais uma dimensão global, colocando os cidadãos de diferentes e longínquos países diante dos mesmos problemas. Nesse contexto, a questão ambiental coloca-se como a pedra fundamental na construção política contemporânea, impondo às nações e aos cidadãos mundiais uma aliança planetária na formulação e ação política internacional. A cidadania ambiental cosmopolita afirma o princípio democrático para além das fronteiras nacionais, recriando-se a cada nova tomada de consciência política e avanço civilizatório. A defesa do meio ambiente constitui-se de uma das bases- éticas fundamentais da sociedade contemporânea, exigindo-se, para o convívio harmonioso entre todos os integrantes da sociedade brasileira e mundial, a firmação de um pacto ambiental comum com a Terra, onde todos os atores sociais e estatais assumam as suas responsabilidades e papéis na construção de uma sociedade mundial ambientalmente sustentável.

Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 295 6. REFERÊNCIAS

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Cidadania ambiental cosmopolita – Um conceito em construção 297

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva

Paulo Fernando de Britto Feitoza1

1. INTRODUÇÃO

ser humano é memorialista, tanto que a visão que Ose faça de qualquer cidade mostrará o quanto o homem produz lembranças. Os nomes das ruas evocam antepassados ilustres; os monumentos, acontecimentos históricos; as praças lembram eventos significativos e as construções reproduzem a época marcante que passou ou o presente que transcorre. Afora estas evocações, existem os museus, outrora dedicados às musas, que na atualidade apresentam coleções sobre raridades e de interesse geral, como, por exemplo, as pinacotecas, as numismáticas, os sacros, de história natural, além das exposições temporárias de arte e de peças antigas que movem multidões para visitá-las. Em tudo pontua a memória, pois ir a uma exposição de raridades ou visitar um museu é estimular lembranças passadas. Na sua individualidade, o homem também se volve para o passado, documentando sempre no presente as recordações de amanhã. A memória biológica sempre desempenhou esta função de preservar o passado para ser lembrado no presente. Na atualidade, outros meios modernos, fabricados com a melhor eletrônica, auxiliam na tarefa de registrar acontecimentos pessoais, familiares e até

1 Juiz de Direito. Professor de Direito Processual Civil. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Especialista em Direito Público e Privado pela Fundação Getulio Vargas – Amazonas.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 299 mesmo sociais, para servir de suporte às lembranças futuras. Mesmo assim, a memória, como atributo do homem, ainda é imbatível na sua importância e significado. Oportuno que se tenha esta consciência de que, mesmo involuntariamente, o homem está em continuado processo de memorizar e lembrar, sendo este acontecimento vital para a garantia da individualidade, favorável às práticas de convívio social, e promissor para o progresso da humanidade. Neste começo, já se pode assegurar que a falta de memória invalida o homem. É, sem dúvida, uma enfermidade grave, porque compromete a individualidade da pessoa. Quem não tem memória não tem a possibilidade de expressar o seu eu – a sua identidade maior. Aliás, a perda da memória compromete a própria sobrevivência da pessoa privada desta faculdade. Igualmente, a falta de memória compromete o convívio social. Este pode ser pensado a partir da solidariedade, que justifica a proximidade de uma pessoa a outra, sendo que cada uma contribui com suas vivências e adquire outras experiências. As experiências da vida são conhecimentos que a memória guarda e na falta desta, não serão preservados, muito menos partilhados com outros. O progresso da humanidade é fundado, sobretudo no conhecimento. No saber que o cotidiano possibilitou e a memória acumulou. Mas, se faltar a memória ou, se a cada dia, as experiências anteriores bem-sucedidas tiverem que ser repetidas, não haverá avanço e a humanidade estará sem a possibilidade de uma evolução. Verdadeiramente estagnada. Desse modo, a humanidade não prescinde da memória, tanto no sentido pessoal como na dimensão coletiva, por ser o veículo da individualidade e do progresso, respectivamente. Conclusivamente, a memória é uma garantia da identidade. Nela, pode ser sistematizado o eu, o indivíduo, a pessoa, nos três tempos – passado, presente e futuro. Mais ainda, desta memória que individualiza o eu, é possível chegar a uma memória social ou coletiva, simbolizada pelos monumentos, documentos, lendas, mitos, ritos e outros fatos pertinentes à história de um grupo social.2 Coletivo, ressalta-se, é tudo aquilo que não pertence a um único indivíduo, mas é comum a muitas pessoas simultaneamente; é algo peculiar a uma sociedade. Estas noções fazem-se necessárias para facilitar a compreensão da memória e do discurso que se desenvolve ao seu redor, bem como da associação que dela se faz com o patrimônio cultural.

2 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

300 Paulo Fernando de Britto Feitoza 2. A MEMÓRIA ENTRE A LENDA E A MITOLOGIA

Como a memória pode estimular a própria imaginação, introduz- se, neste começo, a lenda da própria memória desenvolvida com a fantasia de Simônides de Céos (556/467 a. C.), poeta lírico grego, que dedicou um poema ao rei de Céos e aos deuses Cástor e Pólux, recitado-o durante um banquete ao monarca e seus convidados. Após a declamação, o poeta solicitou o pagamento pela obra literária, tendo o monarca se prontificado a pagar metade do solicitado, porquanto o poema homenageara igualmente os deuses, que deveriam ser responsabilizados pela outra metade do pagamento, haja vista que todos tinham sido homenageados igualmente. Nesse ínterim, o poeta grego Simônides foi avisado de que fora do recinto do palácio, lá nos jardins, duas pessoas o procuravam. Apressou-se a ir vê-las e quando deixou o palácio este desabou, matando a todos. Estavam os deuses Pólux e Cástor quites com o poeta, pois a narrativa popular afirma que foram os deuses, encarnados em dois jovens, que vieram evitar a morte dele. Os familiares dos convidados não conseguiam reconhecer seus parentes mortos e recorreram ao poeta Simônides, que se recordava do local onde teria sentado e das roupas que usava cada um dos comensais. Parte daí a relação que se fez na Antigüidade entre a memória e um palácio. Passeando-se pelo recinto desse palácio, seria possível recordar todos os fatos pretéritos e trazê-los ao momento presente. Presumivelmente, a lenda tem relação com o texto de Santo Agostinho, extraído da sua obra Confissões, que pensa na memória como a sede de um palácio, conforme a seguinte transcrição: “Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os objetos que os sentidos atingem”.3 Posto nestes termos, a memória seria a sede das lembranças e o palácio um estímulo favorável ao processo de recordar, desempenhado pela própria memória. Sua característica maior consiste em guardar os acontecimentos, preservando-os do esquecimento, porquanto o tempo o faria desaparecer, não fosse o recurso da memória com o seu continuado sistema de registrar e lembrar.

3 AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultura, 1996, p. 266/268 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo, Ática, 1994, p. 126.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 301 A memória também tem o seu mito. Para os gregos, era a divindade Mnemósine,4 que, juntamente com Zeus, gerou as musas Clio (história), Euterpe (música), Talia (comédia), Meupômine (tragédia), Terpsícore (dança), Erato (elegia), Polínia (poesia lírica), Urânia (astronomia) e Calíope (eloqüência), as quais representavam em conjunto a proteção das artes em geral. Era atribuição da deusa Memória conceder aos poetas e adivinhos a faculdade de uma viagem ao passado com a possibilidade de revelá-lo no presente à coletividade. Sua função ia além, posto que outorgava a imortalidade aos artistas, uma vez que todos eles, ao registrarem os acontecimentos pretéritos e presentes, tornavam-se inesquecíveis e, portanto, imortais.5 Por sua vez, se a memória tinha a função de proteger a lembrança, as musas tinham o encargo de inspirar os artistas a criarem suas obras, materializando as idéias e imaginações que tivessem. Ademais, havia a crença de que estas mesmas musas motivavam os autores à sinceridade, de tal sorte que, ao buscarem nas musas suas inspirações, procuravam eles, do mesmo modo, a graça de não faltarem com a verdade.

3. AS FASES DA MEMÓRIA COLETIVA

A memória social ou coletiva, por causa da sua relação com o processo de coletivização, tem uma correlação com a própria vida e a evolução das sociedades. O percurso desta memória coletiva desenvolve-se da oralidade até a fase escrita, conforme classificação desenvolvida por Le Goff, que lhe atribuiu os estágios seguintes: a) a étnica, dos povos ágrafos; b) da Pré-História à Antigüidade; c) medieval (oral-escrita); d) escrita, do século XVI até o presente; e) a memória na atualidade.6

3.1 Memória Étnica

Relativamente à fase da memória étnica, deve-se realçar os valores seguintes, típicos dessa ocasião: a) os mitos, que representam um fator de congregação do grupo; b) a genealogia ou a política da

4 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994; DUARTE, Luiz Fernando Dias. Memória e reflexividade na cultura ocidental. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 5 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. 6 LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. [S.l.]: Edição Portuguesa Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, v. 1.

302 Paulo Fernando de Britto Feitoza dominação de uns, pela submissão da maioria; c) o conhecimento vinculado a uma prática religiosa, sob uma liderança. Aqui, a memória não se processa, como é obvio, por palavras, com a precisão que se vê na atualidade. As lembranças dos povos ágrafos são confiadas a determinadas pessoas que funcionam como depositárias dos acontecimentos daquela sociedade. São indivíduos destacados nestas etnias, como os chefes de famílias, sacerdotes, anciãos, os quais, com a sua função de preservar a memória-história, desenvolvem outro encargo relativo à unidade do grupo, em reverência ao conhecimento do qual estão investidos.

3.2 Entre a Pré-História e a Antigüidade

Entre a Pré-História e a Antigüidade, a própria evolução social, gradualmente, chegou à escrita. A fase é muito pontuada de lendas e mitos, destacando-se a divindade da Memória como a fonte da lembrança, e a do esquecimento representada por um dos rios do inferno, denominado de Letes. Sucedem nesse ínterim os debates filosóficos, dos quais participam Platão e Aristóteles, dentre outros, para afirmar que a memória faz parte da alma. Efetivamente, surgem os monumentos, em alusão aos acontecimentos; as inscrições; multiplicam-se no Oriente antigo as estelas e obeliscos. Além desta forma de memória – a monumental – surge também a documental, pela qual, projeta-se o fato escrevendo- o sobre um suporte físico, que pode ser: osso, estofo, pele, folhas de palmeira, carapaça de tartaruga, papiro, pergaminho, papel.7 São duas as funções básicas do documento: o armazenamento de informações e a criação de um estilo de escrita, por meio da retificação, reexame, correção; enfim, o aprimoramento do que foi registrado. A partir de então, sucedem, por parte dos reis, atenções para com o registro dos seus feitos, arquivos de dados, bibliotecas etc. Em resumo, a vida e a morte são documentadas. Há uma memória urbana; sucede, do mesmo modo, um registro da memória funerária, lembrado pelas estelas gregas e os sarcófagos romanos.8

7 Op. cit. p. 17. 8 Op. cit. p.18.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 303 3.3 A Fase Medieval

Na época medieval, o judaísmo e o cristianismo são os propulsores do processo da memória. Estas duas religiões estão permanentemente sugestionando o processo de recordação dos feitos cristãos. São inúmeras as passagens que traduzem a memória como elemento da devoção cristã ou evocam lembranças da reverência à divindade de santos e Deus, tanto que a memória é entremeada de eventos religiosos como a Quaresma, a Páscoa, o Natal. Além destes, celebram-se os santos, até mesmo com dias tidos como santificados e a um determinado santo dedicam-se duas datas, como a data do nascimento e a outra da sua imolação. Afora as datas registradas e celebradas, há também os túmulos, que são lugares sagrados. Tudo se desenvolvendo por uma ação da memória social, das lembranças que todos têm da sua crença. Além de todo este processo memorialista, havia o hábito de orar pelos mortos, tanto nas comunidades judaicas quanto nas cristãs. O processo de memória dos mortos é tão amplo que os falecidos memoráveis passam a fazer parte da liturgia da missa e, no século IX, é instituído o dia 2 de novembro como data dedicada aos falecidos. No século XII, com a instituição do purgatório, um lugar que mediava o céu e o inferno, intensificou-se a lembrança dos mortos pelos vivos em favor da rápida ascensão do ente querido morto ao paraíso. Tudo evoca uma lembrança; todo o conjunto promove uma recordação entre o passado e o presente. Porém, deixando o lado religioso da memória coletiva, veja-se que na vida social também sucederam mudanças com o advento da escrita. Os arquivos dos monarcas eram modestos, no entanto se desenvolveram, sendo exemplo a França com os registros reais e do parlamento, a partir do século XIII. Igualmente, por esta época e pelo século XIV, na Itália e em outros países, houve uma difusão dos arquivos notariais.

3.4 O AVANÇO DO SÉCULO XVI ATÉ O PRESENTE

Do século XVI até o presente podem ser assinalados alguns eventos representativos dessa época, como a imprensa, que favorece a publicação de obras, difunde informações e populariza o saber; igualmente, muitas datas compõem o calendário; monumentos são erguidos e fotografias passam a ter uso corrente, de tal sorte que todas estas causas realçam a memória social.

304 Paulo Fernando de Britto Feitoza Sendo assim, a marca primeira desta fase é a imprensa, que embora descoberta no século IX na China (xilografia), somente teve aplicação efetiva com o invento dos tipos por Gutemberg. Assim, a China ficou com a difusão dos seus impressos bem restrita e sem o largo alcance popular, a não ser para a elite. Já no Ocidente, a utilização dos tipos revolucionou a memória pela divulgação que a imprensa propiciava dos fatos e acontecimentos. Com a imprensa, surgem os livros, dicionários e as enciclopédias, com ideários que podem ter fomentado as grandes aspirações dos povos pelos direitos individuais da pessoa humana. Por aí se vê o quanto este novo paradigma que a imprensa trouxe, com a divulgação de tantos valores, terá revolucionado as estruturas sociais e levantado as massas a uma reivindicação de direitos tão próprios, quanto até então postergados. As festas ou celebrações também têm espaço e compõem o calendário. Os arquivos vindos da fase anterior passam a ser utilizados como registro documental franqueado ao público, como é o caso do Arquivo secreto do Vaticano e o da Revolução Francesa. Não são fatos isolados, mas acontecimentos efetivos que se espalham por toda a Europa, numa típica proliferação da memória coletiva. Bibliotecas são inauguradas e monumentos são edificados, notadamente para homenagear os mortos na Primeira Grande Guerra Mundial e, por este mesmo acontecimento, em preito ao soldado desconhecido. Logo, a memória de um ser não identificado, mas que teve um feito heróico, é cultuada. Os eventos continuam sendo documentados para posterior recordação. Assim sucede com a fotografia, muito utilizada para o fim de registrar e recordar. Primeiramente, fotos esparsas, programadas em ateliês, depois o pai ou a mãe são os fotógrafos que vão registrar a ocasião comemorativa familiar e preservar para o futuro um acontecimento social da família. Esta fase da memória, praticamente, oferece sólidas bases para que se possa fundamentar ou estruturar a importância da memória coletiva.

3.5 A MEMÓRIA NA ATUALIDADE

Do ponto de vista material, a eletrônica introduziu o computador, que é um forte auxiliar da memória, na medida em que faz operações precisas e armazena dados com a segurança que ultrapassa o cérebro humano. Contudo, não pode ser olvidado que este

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 305 engenho – útil e moderno – é submetido ao homem, pelo programa que ele desenvolveu, como pelos comandos que o mesmo determina. Logo, a memória eletrônica é um equipamento auxiliar a serviço do homem. Por sua vez, quanto à memória coletiva, observa-se consideráveis transformações neste setor, sobretudo pelo advento das ciências sociais, que produziram novos conceitos e deram outra visão à concepção de história. Anteriormente, tinha-se como histórico aquilo que estava registrado documentalmente e materialmente, que eram produtos de acontecimentos memoráveis. Na atualidade, a memória social tende a ser um acervo de fatos e bens que representem a trajetória do homem, independentemente de serem objetos ou acontecimentos de elevado valor histórico, porque a história é representativa dos feitos, como produção coletiva da humanidade. Não mais estão em voga os excepcionais ou notáveis valores de um homem ilustre, mas sim as ações de um grupo social por meio da sua produção cultural. Esta é a nova fase da história, que melhor dimensiona a memória coletiva.

4. A CULTURA E A MEMÓRIA

O delineamento da memória coletiva mostra que o homem, observada a premissa inicial deste trabalho, é avezado a produzir lembranças, bem como a evitar os esquecimentos. Assim, individualmente, tem suas recordações gravadas na memória, como igualmente documentadas em papéis e coisas. Coletivamente, a sociedade também resguarda sua história anterior e acompanha, sempre com muito interesse, o desenrolar dos acontecimentos que vive. Preserva lembranças do seu passado e evita, a todo custo, qualquer ato que possa turvar as recordações ou destruir o suporte desses registros sociais significativos. O direito, então, é invocado como tutor das relações sociais e protetor da cultura que a sociedade edificou. Decorrem destas situações as normas que amparam o patrimônio cultural e a memória que ele suscita. Ilustra-se a tutela legal com a Lei dos Crimes Ambientais (9.605/1998), que tipifica como crime a destruição, inutilização ou deterioração de arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, sendo compatível a sanção com o zelo que a sociedade tem por suas lembranças. Os arquivos, os registros, os museus, as bibliotecas e as pinacotecas são todos bens representativos de uma cultura,

306 Paulo Fernando de Britto Feitoza sustentados na documentação escrita ou nas artes plásticas. Por isso mesmo, a proteção jurídica a esses bens, que, da mesma forma, são tutelados civilmente, até por imperativo constitucional. Na verdade, quando se protege os vestígios do passado, resguardam-se selecionadas lembranças que sintetizam um momento, um fato, uma comunidade, um fazer, ou um saber, dentre muitas outras atividades culturais que antepassados fomentaram. É uma forma de se ter no presente o que terá ocorrido no passado e, quem sabe, até mesmo colher os ensinamentos existentes nos legados. A cultura é a intervenção do homem nos processos naturais; as manifestações do espírito e os processos de criação que a pessoa exprime. Por sua vez, para a humanidade é importante e de bom augúrio obter no presente os acontecimentos anteriores, ou melhor, receber a cultura anterior, através das coisas preservadas ou confiadas oralmente a pessoas, que se encarregaram de transmiti-las às gerações vindouras. Delimitando bem a questão, observa-se que a cada dia o homem intervém na natureza e a modifica. Cultiva-a, pois. Transforma o que o rodeia para a satisfação das suas necessidades ou deleite pessoal. A sua intervenção cultural vai demarcar suas ações com obras e conhecimentos, que ficam materializados nas construções e nos saberes que circulam nos dias de hoje, precedidos de incontáveis gerações que os aplicou e os repassou adiante. Tudo isto é cultura, que a memória social busca preservar. Se não houver uma memória, se não existir uma lembrança, a produção cultural anterior e, sobretudo o patrimônio cultural estarão inutilizados, na função de trazer ao presente vivências e a história dos ancestrais. Decorre desta circunstância o valor da memória estimulada pela preservação do patrimônio cultural.

5. A IMPORTÂNCIA DOS BENS CULTURAIS

Ana Lúcia G. Meira, ao prefaciar a obra Bens culturais e proteção jurídica, realçou que “o tema dos bens culturais cada vez se torna significativo nesses tempos de globalização. Sua preservação passa a significar a valorização das diferenças que constituem as nossas identidades – base da nossa capacidade transformadora e de nossa resistência”.9

9 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e Proteção Jurídica. 2.ª ed. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1999, p. 11.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 307 Em abono à assertiva, considere-se que no mundo globalizado, onde todos podem estar em toda parte ao mesmo tempo, unidos pelo sistema on-line, o patrimônio cultural é um referencial identificador da história dos homens e das sociedades em um determinado quadrante do planeta. Este é o valor da cultura. A história do homem no planeta Terra. Suas referências e laços com o passado. Este elo unindo o presente ao passado está representado pelo patrimônio cultural, que estimula as recordações. O valor que ele tem pode ser deduzido a partir da reflexão que se faz do que seria o presente sem o registro pretérito, que tanto pudesse justificar a trajetória humana. Por outro lado, a cidadania pressupõe uma identidade com a cultura. O cidadão, para sê-lo, deve ser constituído com os valores e as peculiaridades da sociedade que o originou. Por isso mesmo, a cultura reporta-se à cidadania como o veículo que mantém o cidadão jungido à sua história cultural. Quadra dizer que a cultura é um direito social, informado pelo princípio da universalidade, porque a norma é voltada em favor de todos. Trata-se de uma extensão dos direitos fundamentais do homem. Por direitos sociais deve-se compreender aquelas prestações positivas estatais que colimam reduzir as desigualdades e avivar o exercício da liberdade. Como se vê, uma associação de preceitos instituídos para diminuir as desigualdades, favorecer o exercício da liberdade e consolidar o conceito de cidadão.

6. O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NA ORDEM CONSTITUCIONAL

Deflui do conceito de meio ambiente a noção de que o representa o conjunto de elementos naturais e as criações humanas indispensáveis à sadia qualidade de vida, como um preceito de caráter fundamental, outorgado indistintamente a todos e proclamado constitucionalmente no Art. 225. Sendo assim, as manifestações do espírito humano e os processos de criação, representativos da ação cultural do homem, integram o meio ambiente e ensejam a devida proteção legal. Na atualidade, pode-se pensar que as Constituições anteriores consignaram normas de amparo à cultura e seu respectivo patrimônio. Não foi bem assim e o que se vivencia no presente é

308 Paulo Fernando de Britto Feitoza resultante de uma trajetória que rompeu com a tradicional postura jurídica, relativa à intocabilidade da propriedade. Vivia-se uma época de predominância civilista, de tal sorte que a propriedade era um direito considerado individual e absoluto. Houve uma evolução, inclusive estatal, abdicando-se do Estado Liberal para o Estado de Bem-Estar Social, que trouxe como resultado a identificação da propriedade com encargos próprios do seu uso. Conseqüentemente, a utilização de um bem apresentava ônus ao seu titular, de tal sorte que o caráter absoluto já não era acatado como outrora. Ocorre, por outro lado, a oportunidade do Estado intervir na ordem econômica e, portanto, nos meios de produção e em tudo o mais que com estes estava relacionado, sendo básico o aspecto do novo tratamento dado à propriedade. Como uma situação atrai a outra, a Constituição de 1934 foi a primeira a dedicar um título à ordem econômica e social, inspirada na Constituição de Weimar. Conseqüentemente, tratou da intervenção na ordem econômica, o que permitiu proteger os bens culturais mesmo que estivessem em mãos de particulares, uma vez que o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. Assim, à União e aos Estados foi atribuída competência para proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte (inc. III, Art. 10, CF). Além do mais, foi imposta à União, aos Estados e Municípios a obrigação de favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual (Art. 148). Cumpre anotar que a terminologia patrimônio artístico foi utilizada pela primeira vez nesta Constituição, tanto que remetida ao Decreto-Lei n.º 25/37. A Constituição de 1937, 1946, 1967, a Emenda de 1969 consignam, todas elas, normas relativas à proteção do patrimônio histórico, artístico e paisagístico. Tanto que a Constituição de 1937 reporta-se, em seu Art. 134, aos monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, os quais gozam de proteção e cuidados especiais da nação, dos Estados e dos municípios. A Constituição de 1946 institui entre os Arts. 174 e 175 o dever do Estado de amparar a cultura, estando sob sua proteção as obras, os monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 309 como os monumentos naturais, as paisagens, os locais dotados de particular beleza. Já a Constituição de 1967, nos Arts. 172 e 180, repete em termos idênticos o que tratou a anterior. No entanto, acrescentou como bem sob a proteção estatal a jazida arqueológica, que resulta em fator significativo para a identificação da ancestralidade nacional. Suprindo a lacuna deixada pelas Cartas Federais anteriores, a Constituição de 1988 tratou em seção exclusiva a respeito do patrimônio cultural, em substituição ao combalido patrimônio histórico, artístico e paisagístico.

7. O DESENVOLVIMENTO DA PROTEÇÃO JURÍDICA DAS LEMBRANÇAS CULTURAIS 7.1 A proteção da memória do patrimônio cultural

A diretriz deste trabalho é a memória de todos em favor do patrimônio cultural. O contributo que as lembranças dão para preservar o passado, em paralelo com o aspecto constitucional da proteção dos bens e fatos significativos à nacionalidade brasileira. Por esta premissa, e evocando as constituições anteriores, deduz-se que até a Carta Federal de 1967 tinha-se unicamente o Poder Público com o encargo de proteger monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como as paisagens naturais notáveis. Muito vagamente falava-se em cultura como sendo um dever do Estado (CF, 1946, Art. 174). Afora estas disposições constitucionais de natureza restritiva quanto à cultura, o bem para integrar a seleta categoria de patrimônio cultural tinha que ter valores sublimes, que o levassem a compor o selecionado conjunto histórico e artístico da nação. Veja-se que o Art. 1.º, do Decreto-Lei n.º 25/37, dispôs que “constituía o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. O parágrafo 2.º do mesmo artigo referia-se aos monumentos naturais, sítios e paisagens notáveis, produzidos pela natureza ou engenho humano. Pode-se deduzir pela transcrição da norma que o conceito de patrimônio histórico, artístico e paisagístico tinha que sugestionar

310 Paulo Fernando de Britto Feitoza um excepcional valor, notável beleza e ser digno de permanecer na memória. Portanto, o valor da cultura até o advento da Constituição Federal de 1988 era elitista e voltado, sobretudo, para as manifestações do espírito humano ou para a consagração de vultos nacionais que teriam promovido feitos heróicos. Por esses tempos desdenhava-se do popular, com a eleição do erudito, do memorável, do notável e do excepcional. Afora este conceito limitativo da cultura pátria, havia a obrigato- riedade do tombamento para que o bem de excepcional valor passasse a integrar o patrimônio nacional, posto que a Lei de Tombamento (DL 25/37), somente considerava parte integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro os bens inscritos no livro do tombo. São aspectos manifestados com o fim de elucidar que a cultura de outrora era representada pelos memoráveis fatos históricos, produções artísticas excepcionais e de paisagens notáveis, bem como submetida a um processo de tombamento, que demandava tempo e ritos legais para a sua consecução. Sem o tombamento não havia proteção ao bem, por mais significação que tivesse para a história nacional. A Lei de Tombamento era bastante enfática ao dizer que “só” eram considerados do patrimônio cultural os inscritos nos livros próprios. Associava-se à notabilidade dos bens do patrimônio histórico e artístico a necessidade do tombamento, de sorte que havia uma limitação às lembranças do povo. Não era a memória coletiva quem elegia o patrimônio histórico e artístico da nação. A escolha desses bens era remetida ao Poder Público, que baniu as manifestações populares de participarem da cultura nacional. Por isso que a história nacional tem como vultos os militares, os políticos e outros destaques mais, como intelectuais e profissionais liberais, que podem ter dedicado suas vidas a uma causa social ou científica, mas nunca serão suficientemente os únicos representantes da extensa cultura brasileira. Não se ouvia falar na proteção jurídica ao sincretismo religioso, no resguardo à lembrança dos quilombos, na proteção ao trabalho dos mestres das artes populares e assim sucessivamente. A justificativa presumível é que estas ocorrências revelavam a presença popular na história, sem o apoio dos grupos elitizados, que viam, nessas manifestações ou recordações sociais, hábitos muito singelos para comporem o elenco de notáveis trabalhos artísticos e as ações de ilustres personagens da história oficial.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 311 Por isso a temática desenvolvida acerca da memória como precursora do patrimônio cultural, que deve conter lembranças dos processos de fazer, maneiras de ser e viver, bem como das manifestações artísticas de um grupo social. São as lembranças sociais que elegem o patrimônio cultural e este será sempre um suporte às recordações, sendo procedente dizer que, quando se resguarda a cultura, protege-se igualmente a memória coletiva. Não foi sempre assim, como bem se elucidou. Tanto que muitas seções da história brasileira estão sendo reescritas e outras ainda não foram sequer escritas, em razão do conflito existente entre o erudito e o popular, o notável e o singelo, o excelso e o comum. O povo é o agente da sua história e dela não pode ser apartado, nem suas características podem ser desconsideradas dentro desta visão atual de cultura, como um direito social de origem fundamental para a existência humana.

7.2 O patrimônio cultural brasileiro

A nova ordem cultural, que alçou a cultura à condição de direito social, produziu mudanças na questão do patrimônio histórico e artístico nacional. Por isso que a vigente Constituição Federal dedicou uma seção à cultura, de maneira que os Arts. 215 e 216 detalharam e renovaram o processo cultural do país. Desse modo, a Carta Federal garantiu a todos o exercício dos direitos culturais, franqueou as fontes de cultura e impôs ao Estado apoiar, incentivar e valorizar a difusão das manifestações culturais. Nessa mesma seção, foi imposto ao Estado proteger as representações da cultura popular, indígena, afro-brasileira e de outros grupos formadores da sociedade brasileira. Reservaram-se datas que tivessem significado com as diversas etnias que compõem o povo brasileiro, favorecendo este preceito com dias especiais dedicados aos negros, aos aborígines e outros grupos mais. Doravante passam a ser respeitadas as datas cívicas e as datas sociais, ao lado de outros eventos religiosos reverenciados pelos diferentes integrantes da sociedade brasileira. Veja-se que a memória pode ser efetivamente exercida em razão de todos estes registros, que sugerem inclusive comemorações, como de fato acontecem. O Art. 216, da Constituição Federal consagra a grande mudança entre o passado e o presente. Neste dispositivo o patrimônio deixa de ser artístico e histórico e passa a ser denominado de patrimônio cultural. Como realça José Afonso da Silva, “sai-se também do limite

312 Paulo Fernando de Britto Feitoza estreito da terminologia tradicional, para utilizarem-se técnicas mais adequadas, ao falar-se em patrimônio cultural, em vez de patrimônio histórico, artístico e paisagístico, pois há outros valores culturais que não se subsumem nessa terminologia antiga”.10 Por conseguinte, o termo patrimônio cultural retrata a mudança ocorrida entre o modelo existente até a Constituição de 1988 e o que passa a viger a partir de então. Pelo modelo anterior, a representação cultural da nação era os feitos históricos e as produções artísticas, que são ocorrências bem restritas para a representação das manifestações peculiares de um país. Por isso, o passado limitava as lembranças que povo poderia ter dos fatos desenvolvidos anteriormente por seus antepassados. Verdadeira- mente, desconsideravam-se as recordações. Por meio da Constituição vigente, o conceito de patrimônio cultural foi ampliado. Aliás, consideravelmente distendido, tanto que passaram a constituir o patrimônio cultural os bens de natureza material e imaterial, em conjunto ou individualmente, que tivessem referência com a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: a) as formas de expressão; b) os modos de criar, fazer e viver; c) as criações científicas, artísticas e tecnológicas; d) as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifes- tações artístico-culturais; e) os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Como se constata, a referência para a formação do patrimônio cultural é étnica. Funda-se o patrimônio cultural doravante no valor dos grupos sociais, dos integrantes desses grupos, de suas ações e produções. Foi abolido o aspecto notável e memorável de outrora, em homenagem às manifestações populares, o que não elimina a arte clássica, nem a erudição, mas remete à igualdade todas as expressões de um povo. Este é o novo sentido do patrimônio cultural, que tem bens de natureza material e imaterial, como garantia de que todas as manifestações, mesmo as orais, tenham espaço e importância no processo cultural brasileiro, diante de uma nova ordem cultural. Por sua vez, não mais se impõe que o bem seja tombado para integrar o patrimônio cultural brasileiro. A exigência de outrora foi abolida, de tal sorte que, apresentando o bem, características que o

10 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 7.ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 313 induzam à condição de cultural, estará resguardado do extravio e, naturalmente, comporá o patrimônio cultural. Entretanto, na iminência da perda do bem, é possível obstar o acontecimento por meio de ações judiciais postas à disposição do particular ou do Poder Público para a proteção do patrimônio cultural, conforme os termos do art. 216, § 1.º, da Constituição Federal. Além das ações judiciais, outras providências mais podem ser tomadas para a salvaguarda desse patrimônio, como o inventário, registro, vigilância, o próprio tombamento e a desapropriação.

7.3 Do patrimônio material ao imaterial

Possivelmente, uma dos maiores avanços que a cultura brasileira teve foi a proteção constitucional concedida ao patrimônio imaterial. Ampliou-se a memória nacional e valorizou-se a cidadania, com o espaço dado à população para que visse respeitadas as práticas populares cotidianas, que vão do saber ao fazer do povo. A trajetória, para que se tenha chegado a este grau de reconhecimento jurídico de uma das vertentes da cultura brasileira, é longa. No âmbito nacional, o poeta Mário de Andrade já preconizava o valor dos bens intangíveis, por volta dos anos 30 do século anterior, tanto que via na cultura uma produção humana que transcendia o material. O poeta fazia altaneiras as expressões culturais que traduzissem festas, danças, lendas, mitos e tudo o mais que fosse representativo da cultura popular. Oportuno ressaltar que o conceito de patrimônio esteve voltado para coisas físicas, de maneira que a preservação fosse desenvolvida por atos que mantivesse o bem nas suas condições originais. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, sobreveio uma mudança de concepção. Engenhos ou práticas culturais, sem que fossem representadas por um determinado objeto, passaram à condição de bens culturais, livres de quaisquer representações materiais. Este valor atribuído às práticas culturais imateriais não terá sido fruto de uma concepção européia ou Ocidental de cultura. Decorreu a idéia de um patrimônio incorpóreo de países asiáticos e de outros denominados de terceiro mundo, que têm nas criações populares anônimas, independentemente de qualquer materialidade, um grande patrimônio.11

11 SANT’ANNA, Márcia. A face imperial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 49.

314 Paulo Fernando de Britto Feitoza A questão patrimonial no mundo oriental difere daquilo que comumente ocorre no Ocidente. Aqui, a história constrói-se pelos monumentos, ao passo que, na cultura oriental, os objetos não são indispensáveis para a perpetuação da tradição cultural. Dá-se mais valor ao conhecimento das tradições e à forma de reproduzi-las. Por conseguinte, são importantes no processo cultural oriental aquelas pessoas que transmitem as tradições, porquanto fica assegurada a preservação da identidade do povo. Até porque o que é corporificado, mesmo com toda a preservação, poderá estiolar-se. As assertivas são procedentes, pois no Japão, ao redor dos anos 50, quando instituída a primeira legislação de preservação do seu patrimônio cultural, o objetivo maior foi incentivar e apoiar pessoas e grupos encarregados das tradições daquele país. Conseqüentemente, são conceitos distintos os que compõem a relação patrimonial no Ocidente e no Oriente. Como se pode deduzir, o conceito ocidental de patrimônio cultural, fundamentado na conservação e autenticidade do objeto, além da limitação imposta ao direito de propriedade, não é suficiente para acolher a amplitude do significado do patrimônio cultural. Por este motivo, a partir de 1970, foram incorporados ao conceito aspectos imateriais. Em 16 de novembro de 1972, após a aprovação da Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco, os países do Terceiro Mundo reclamaram contra a falta de proteção às expressões populares culturais. Desenhou-se aí uma idéia consolidada em 15 de novembro de 1989, também pela Unesco, sob o título de Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. Esta tutela instituía instrumentos que protegessem e preservassem as manifestações populares que tivessem característica cultural. Quase quinze anos após a vigência da recomendação a respeito da proteção à cultura tradicional e popular, poucos são os países ocidentais que instituíram políticas e instrumentos efetivos para a salvaguarda do patrimônio intangível. A França surge como um desses países, que, repetindo a experiência dos países orientais e a proposta da Unesco, instituiu uma política de incentivo aos “mestres de ofícios tradicionais”, estimulando-os a transmitirem suas vivências e saberes aos que irão sucedê-los.12 Como a França, que se destaca, o Brasil também muito evoluiu no campo do patrimônio imaterial, tanto que, por meio do Decreto

12 Op. cit., p. 50.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 315 3.551, de 4 de agosto de 2000, implantou o registro do patrimônio imaterial. Desde então, valorizou-se a cultura imaterial, em contraposição à cultura materializada pelos bens de pedra e cal, tais como “igrejas, fortes, pontes, chafarizes, prédios e conjuntos urbanos representativos de estilos arquitetônicos específicos”.13 Ao mesmo tempo, diga-se que foi retomado um tema destacado por Mário de Andrade, representado pela valorização do patrimônio cultural imaterial. O fato, pode-se dizer recente, da edição do Decreto n.º 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, realça o raciocínio que motivou a produção deste trabalho. Enfatizou-se, desde o começo, a proteção que a memória recebeu a partir do momento em que foi constitucionalizado o patrimônio cultural, tanto com a apresentação material quanto imaterial. Agora, reforçado o valor do patrimônio imaterial , está ratificada a proposição da importância das lembranças que os bens sugerem, que de tão necessárias e grandiosas resultam em ser – as lembranças, ou memórias, como se queira designar, – as destinatárias da proteção constitucional, ao lado do próprio bem cultural tutelado. Se não houver a lenda, o imaginário popular empobrecerá pela falta de registros da criação do sobrenatural. A proteção é dada à narrativa para que a memória não perca a fantasia que uma história estimula. Por isso mesmo, memória e patrimônio cultural estão juntos, lado a lado.

8. CONCLUSÃO

Como tem sido realçado, a tutela do patrimônio cultural e a sua constitucionalização são proteções diretas à memória social. Por isso, a referência feita de que a memória coletiva estaria constitucionalizada, como de fato está. O patrimônio, seja material ou imaterial, é um veículo que estimula a recordação, que traz lembranças. Esta é a função maior de todo o bem culturalmente identificado: não permitir que seja esquecida a lembrança produzida por aquela coisa. São os semióforos, que não estão avaliados pela materialidade com que se apresentam, mas pelo simbolismo que contêm e pela

13 ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 11.

316 Paulo Fernando de Britto Feitoza evocação que suscitam. A bandeira de um país é um semióforo, pela representação que traz daquela nação; um crucifixo, do mesmo modo, pela fé que pode suscitar ou até por uma história religiosa que pode lembrar e assim sucessivamente temos incontáveis objetos que povoam lembranças e sugerem reverências, em preito à lembrança que traduzem. Tudo isso é cultural. É a sociedade que escolhe os seus semióforos e a lei promove a proteção deles, para resguardar que as lembranças sugestionadas venham a desaparecer, deixando aquele grupo social desprovido de memória. Este é certamente o maior valor do patrimônio cultural brasileiro, porquanto na medida em que se preservam os bens materiais e são resguardados do extravio os imateriais, mantém-se na memória as recordações de tantos acontecimentos significativos para a nacionalidade, sejam eles populares ou eruditos, clássicos ou usuais. Por isso que o constituinte de 1988 atualizou o conceito de patrimônio cultural e constitucionalizou a importância da memória coletiva, como um direito social influente no exercício da cidadania.

REFERÊNCIAS

ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Introdução. In: ______. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos; S. J.; A. Ambrósio de Pina S. J. São Paulo: Nova Cultural Ltda., 1996. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Memória e reflexividade na cultura ocidental. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. [S.l.]: Edição Portuguesa Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, v. 1. SANT’ANNA, Márcia. A face imperial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 7.ª ed. rev. e ampl. de acordo com a nova Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e proteção jurídica. 2.ª ed. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1999.

O Resguardo do Patrimônio Cultural por Meio da Memória Coletiva 317

– PARTE 04 –

DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO SEMESTRE (RESUMOS)

INSTITUTO DO TOMBAMENTO NA PROTEÇÃO DO BEM CULTURAL Robério dos Santos Pereira Braga ...... 321

SOBERANIA NA AMAZÔNIA LEGAL SOB O ENFOQUE DA DOUTRINA JURÍDICA AMBIENTAL BRASILEIRA Raimundo Pereira Pontes Filho ...... 323

RESPONSABILIDADE OBJETIVA NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Paulo Fernando de Brito Feitoza ...... 325

“O Instituto do Tombamento na Proteção do Bem Cultural”

Mestrando: Robério dos Santos Pereira Braga

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Cristiane Derani (Orientadora) Prof. Dr. David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha-Espanha) Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas (UEA)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO

estudo sobre o patrimônio cultural especialmente Oprotegido nos centros urbanos objetiva rever as implicações com o direito de propriedade, as relações de vizinhança e as repercussões para o Poder Público e o proprietário privado. Cuida- se do direito de propriedade, sua evolução histórica e a relação com o bem cultural, bem como do que se constituiu em direito de vizinhança, da propriedade urbana e a função social que lhe é própria, do uso nocivo e suas repercussões na vizinhança comum e naquela em que se insira o bem protegido e do papel que o Estudo de Impacto de Vizinhança pode representar na prevenção de questões de meio ambiente urbano. Estudando o bem como propriedade individual e social e de caráter ambiental, ficou evidenciado que o bem cultural se insere no rol dos bens ambientais. A descrição dos processos de preservação e de tombamento, a indicação dos meios de sua efetivação e controle, as restrições gerais decorrentes e as que são específicas do tombamento, assinalam que o bem tombado comporta proteção especial inclusive do planejamento com a valoração que lhe foi conferida pelo Estatuto da Cidade. O estudo centrou-se nas imposições constitucionais e legais, mas considerou as resoluções de cunho internacional, recomen-

O Instituto do Tombamento na Proteção do Bem Cultural 321 dações técnicas e de política cultural dos fóruns de nações e de seus organismos científicos e sociais, de maneira recorrente no apoio aos conceitos da doutrina expedida. Considerou que o bem protegido se insere também nas cidades e que estas, conforme a evolução assinalada, se configuram sem pré-ordenamento espacial, sendo objetivo da contemporaneidade que passem a cumprir função social, de bem-estar social, inclusive nos centros ou sítios antigos nos quais o uso do bem tombado pode representar papel preponderante na valorização urbana e expressão da cultura das populações.

322 Robério dos Santos Pereira Braga “Soberania na Amazônia Legal sob o enfoque da Doutrina Jurídica Ambiental Brasileira”

Mestrando: Raimundo Pereira Pontes Filho

Banca Examinadora: Prof. Dr. José Augusto Fontoura Costa (Orientador) Profa. Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM) Prof. Dr. David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha-Espanha)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO:

dissertação trata do princípio da Soberania ANacional na Amazônia Legal, sob o enfoque da doutrina jurídica ambiental brasileira, considerando o contexto contemporâneo de globalização do capitalismo neoliberal, da crescente escassez dos recursos naturais do planeta e das peculiaridades ambientais da Amazônia Legal, que a tornam alvo direto de interesses e pressões, oriundas geralmente de Estados mais influentes junto às forças hegemônicas internacionais, constituem-se quase sempre em manifestações questionadoras da soberania nacional brasileira sobre a referida região, inclusive sob a forma de propostas de constituição de um ordenamento jurídico mundial, que alcançaria os diversos ramos de direito, sobrepondo-se aos ordenamentos normativos internos e, portanto, desconstituindo a primazia da soberania do direito nacional em favor de um direito global. Analisou-se que esse movimento tendente à globalização jurídica quando não ignora os efeitos sobre certos valores consagrados como direitos no Ocidente, considerados conquistas irrenunciáveis, tais como os direitos humanos e sociais, a democracia, o respeito à diversidade étnica e à pluralidade cultural,

Soberania na Amazônia Legal sob o enfoque da Doutrina Jurídica Ambiental Brasileira 323 não sabe como lhes dar garantias ou evitar que os mesmos sejam eliminados. Conclui-se, enfim, que essa orientação para uma globalização jurídica ambiental pátria, que adota como fundamento básico, em suas diversas vertentes do Direito Ambiental, desde as que o entendem como público às que o compreendem o difuso, a primazia do princípio da soberania nacional sobre os recursos e espaços do território brasileiro, nele incluído a Amazônia Legal.

324 Raimundo Pereira Pontes Filho “Responsabilidade Objetiva na Proteção Do Patrimônio Cultural”

Mestrando: Paulo Fernando de Britto Feitoza

Banca Examinadora: Profa. Dra. Cristiane Derani (Orientadora) Prof. Dr. José dos Santos Pereira Braga (UFAM) Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas (UEA)

RESUMO DA DISSERTAÇÃO

patrimônio ambiental cultural, outrora, já Odependeu do tombamento como exclusiva forma de proteção. No entanto, pela Carta vigente e nos termos do § 1.o do Art. 216, outras formas de tutela existem. Mas, verdadeiramente, o problema a ser enfrentado é impor a responsabilidade objetiva a quem degrada o patrimônio cultural ou se omite da sua preservação, seja ente físico ou jurídico, público ou privado. Diariamente, notícias são veiculadas informando o estado de deterioração de um bem cultural, público ou privado. Mesmo assim, e apesar de serem seguidas as denúncias de descaso com o patrimônio cultural, poucas medidas judiciais são adotadas. Continua-se, neste particular, a justificar a ausência de tombamento ou mesmo silenciar, enquanto o bem se degrada, sem que ocorra uma efetiva providência para salvaguardar o acervo. Desse modo, a aplicação da responsabilidade objetiva, com o prático resultado de obrigar o proprietário do bem ao seu devido zelo, apresenta-se plausível, embora seja pouco difundida, para pôr cobro ao descaso generalizado com o patrimônio cultural brasileiro. Com esta consciência, o meio ambiente cultural, devido à responsabilidade que todos devem ter por ele, merecerá a devida

Responsabilidade Objetiva na Proteção o Patrimônio Cultural 325 atenção na dissertação elaborada. Para o fim determinado, o texto principia com uma análise da memória (individual e coletiva), seguida de um estudo particularizado do patrimônio cultural. Depois, são abordados o Direito, a sociedade e o Estado, porquanto representam elementos culturais. Na segunda parte, trata-se da proteção jurídica do patrimônio cultural, oportunidade em que se discorre sobre o percurso que o patrimônio histórico trilhou até receber a devida proteção estatal. Do mesmo modo, faz-se uma retrospectiva da responsabilidade civil, com início na Antigüidade romana e o seu desenvolvimento até dias atuais. Na terceira parte, mostra-se a responsabilidade de todos – Estado e sociedade – na proteção do patrimônio cultural, bem como o aprimoramento desta mesma proteção com a aplicação da responsabilidade objetiva.

326 Paulo Fernando de Brito Feitoza

Esta obra foi composta em Manaus pela KintawDesign, em Bookman Old Style 10/14 e impressa em outubro de 2004, pela Grafisa.