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EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, DEPUTADO FEDERAL .

1. MAURO DE AZEVEDO MENEZES, brasileiro, casado, advogado, CPF 546.197.695-68, OAB/DF 19.241, OAB/BA 10.826, OAB/SP 385.589, com endereço profissional no SBS Quadra 1, Bloco K, Edifício Seguradoras, 5º e 14º andares, CEP: 70093-900, e-mail: [email protected], membro da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA – ABJD. 2. TÂNIA MARIA DE OLIVEIRA, brasileira, divorciada, RG 166893, CPF 635.115.681-53, Título de Eleitora 0119.9976.2046, membra da Coordenação Executiva Nacional da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA – ABJD. 3. SÔNIA GUAJAJARA, Divorciada, RG n. 018075982001-6, CPF n. 937.121.626-34, município de Imperatriz, Maranhão, Coordenadora Executiva da ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). 4. INÁCIO LEMKE, Pastor Emérito da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil RG: 901.2831.831 SSP/RS, CPF 209.503.300-00, Presidente do CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL – CONIC. 5. PAULO JERONIMO DE SOUSA, divorciado, RG 2.215.389 - IFPCPF 032.936.967-91, Título de Eleitor 0941.9464.0353, Presidente da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA – ABI. 6. MARCO AURÉLIO DE CARVALHO, brasileiro, solteiro, advogado, OAB / SP 197.538, Coordenador do GRUPO PRERROGATIVAS. 7. RAIMUNDO JOSÉ ARRUDA BASTOS, brasileiro, casado, médico, RG 558.012 SPSP/CE, CPF: 104.630.033-49, residente e domiciliado em Rua Barbosa de Freitas, 560, Apto 800, Meireles, Fortaleza, CEP: 60.170-020, E-mail: [email protected]. Coordenador do ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MÉDICOS E MÉDICAS PELA DEMOCRACIA – ABMMD. 8. IAGO MONTALVÃO OLIVEIRA CAMPOS, Presidente, brasileiro, solteiro, RG 4850207 GO, CPF 01330570111, Título de Eleitor 000221640132, e-mail: [email protected], Presidente da UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES, UNE. 9. ROZANA FONSECA BARROSO DA SILVA, RG: 305735979, CPF: 16553297746, Presidenta da UNIÃO BRASILEIRA DE ESTUDANTES SECUNDARISTAS – UBES. 10. CRISTINA DE FARIA CORDEIRO, brasileira, divorciada, Juíza de Direito RG 07362828-1 Detran RJ, CPF 016.644.617-36, Presidenta da ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD.

11. GABRIEL NAPOLEÃO VELLOSO FILHO, brasileiro, divorciado, Desembargador do Trabalho, portador da Carteira de Identidade nº 357698-SSP/PA, inscrito no CPF/MF sob o nº 212.612.962-49, integrante da ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD. 12. CLAUDIA MARIA DADICO, brasileira, divorciada, juíza federal, RG 16.550.889/SSP/SP, CPF: 076.462.268-40, integrante da ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD. 13. ANA PAULA COSTA BARBOSA, brasileira, divorciada, defensora pública, CPF: 002.239407- 98, Título de eleitora: 072554860302, residente e domiciliada em Rua dos Otis, 58, Apt. 301, Gávea, -RJ, representante do COLETIVO DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS PELA DEMOCRACIA. 14. SHEILA SANTANA DE CARVALHO, advogada, OAB/SP nº 343588, CPF nº 391.246.728-50, RG nº 37.698.544-6 SSP/SP, Título de Eleitora nº 360932180159, da COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS. 15. DOUGLAS ELIAS BELCHIOR, RG 29992976-0, CPF 287101728-07, Título de Eleitor 2272.6608.0116, da COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS. 16. SYMMY LARRAT BRITO DE CARVALHO, RG 62280177-6, CPF 61514055287, Presidenta da ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GAYS, LÉSBICAS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS- ABGLT. 17. VANESSA DA FONSECA, RG 3639432/PE, CPF 772745984-49, Título de Eleitora 03635888080868, membra do Comitê Facilitador do FÓRUM SOCIAL MUNDIAL JUSTIÇA E DEMOCRACIA – FSMJD. 18. MAURI JOSÉ VIEIRA DA CRUZ, membro do Comitê Facilitador, RG 5029158821/RS CPF 378884.470-15, do FÓRUM SOCIAL MUNDIAL JUSTIÇA E DEMOCRACIA – FSMJD.

19. NALU DE FARIA DA SILVA, RG 20.988.997-4, Título de Eleitor 149606150108, CPF 323.303.596-91, Coordenação Nacional da MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES. 20. MARIA ANNA EUGÊNIA DO VALLE PEREIRA STOCKLER, brasileira, viúva, produtora cultural, empresária, RG: 9895828 SSP/SP, CPF: 08192791882, residente e domiciliada em Rua Visconde de Itaúna, 362, CEP: 22460140, representante da 342 ARTES. 21. RAIMUNDO VIEIRA BONFIM, CPF 033235338-95, RG 18247139-9, Título de Eleitor 99681701-41, Coordenador Geral da CENTRAL DE MOVIMENTOS POPULARES – CMP. 22. GUILHERME CASTRO BOULOS, professor, CPF 227.329.968-07, RG nº333922128, título de eleitor nº 195710880167, da FRENTE POVO SEM MEDO. 23. ALEX SANDRO GOMES, CPF 24986231830, RG256887573, Presidente da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS TORCIDAS ORGANIZADAS DO BRASIL – ANATORG. 24. JOÃO PAULO RODRIGUES CHAVES, RG 32575969-8 SSP SP, do MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA – MST.

25. JOSÉ REGINALDO INÁCIO, brasileiro, casado, eletricitário, RG: 3032261 SSP/MG, CPF: 456.066.256/87, E-mail: [email protected], Presidente da NOVA CENTRAL SINDICADL DE TRABALHADORES-NCST. 26. ADILSON GONÇALVES DE ARAÚJO, brasileiro, casado, bancário, RG: 62017.908-9, CPF: 339.839.765-49, Título de Eleitor: 0438 9152 0574, E-mail: [email protected], Presidente Nacional da CENTRAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORES DO BRASIL - CTB. 27. EDSON CARNEIRO DA SILVA, brasileiro, solteiro, bancário, RG n. 19.808.939, CPF: 067.253.248-43, E-mail: [email protected], Presidente da INTERSINDICAL CENTRAL DA CLASSE TRABALHADORA. 28. SÉRGIO NOBRE, brasileiro, bancário, presidente da CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES – CUT. 29. ATNÁGORAS TEIXEIRA LOPES, brasileiro, almoxarife, RG: 56.596.963-8. CPF: 380.046.902- 20, da Secretaria Executiva Nacional, CENTRAL SINDICAL E POPULAR CONLUTAS. 30. MIGUEL EDUARDO TORRES, brasileiro, casado, metalúrgico, RG: 15.301.6019-X, CPF: 032.070.928-02, E-mail: [email protected], Presidente da FORÇA SINDICAL. 31. JOSÉ GOZZE, RG 3857293X, CPF 089.312.408-72, Título de Eleitor 0915 3102 0116, Presidente Nacional da PÚBLICA CENTRAL DO SERVIDOR. 32. EDMILSON SILVA COSTA, brasileiro, professor, RG 37084042-2, CPF 044976433, Secretário- Geral do PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO – PCB. 33. CARLOS ROBERTO SIQUEIRA DE BARROS, brasileiro, solteiro, advogado, RG 2.045.625, CPF: 084.316.204-04, Presidente Nacional do PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO - PSB. 34. GLEISI HELENA HOFFMANN, brasileira, casada, RG 3996866-5 – SSP/PR, CPF 676.770.619- 15, Título de Eleitora 030787430620, Presidenta Nacional do PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT. 35. JOSÉ MARIA DE ALMEIDA, brasileiro, metalúrgico, RG 8.965.633-7, CPF 03325634800, Título de Eleitor 14488880248, Presidente Nacional do PARTIDO SOCIALISTA DOS TRABALHADORES UNIFICADO – PSTU. 36. JULIANO MEDEIROS, professor, solteiro, CPF nº 004.407.270-81, RG nº 8084283972, Título de eleitor nº 080734500426, Presidente Nacional do PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL. 37. CARLOS ROBERTO LUPI, brasileiro, solteiro, administrador, RG 36289023-1 – IFP/RJ, CPF 434.259.097-20, com endereço residencial em Rua Gustavo Sampai, n. 441, Leme, Rio de Janeiro-RJ, CEP: 20030-020, e-mail: [email protected], Presidente Nacional do PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA-PDT.

38. LEONARDO PERICLES VIEIRA ROQUE, brasileiro, em união estável, auxiliar administrativo, RG 11.146.355, CPF: 012415466-22, Título de Eleitor: 1 37526940264, Presidente Nacional da UNIDADE POPULAR – UP. 39. LUCIANA BARBOSA DE OLIVEIRA SANTOS, brasileira, engenheira elétrica, casada, RG 2.070.831 SSP/PE, CPF 809.199.794-91, Título de Eleitor 55165120817, Presidenta Nacional do PCdoB - PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. 40. RUI COSTA PIMENTA, brasileiro, jornalista, casado, portador da Carteira de Identidade RG nº 17.862.646 e inscrito no CPF/MF sob o nº 956.245.898-91, título de eleitor 0992 8685 0183, Presidente da Executiva Nacional do PARTIDO DA CAUSA OPERÁRIA – PCO. 41. HELOÍSA HELENA LIMA DE MORAES, brasileira, casada, professora e enfermeira, inscrita no CPF nº 364.503.164-20, portadora do Título de Eleitor n° 001805041759, Presidente da REDE SUSTENTABILIDADE NACIONAL. 42. WESLEY ELDERSON DIÓGENES NOGUEIRA, brasileiro, solteiro, engenheiro ambiental e sanitarista, RG nº 2006014126567 SSP/CE, inscrito no CPF sob o nº: 036.907.073-90, portador do Título de Eleitor n°: 69086520744, da REDE SUSTENTABILIDADE NACIONAL. 43. ROBERTO JOÃO PEREIRA FREIRE, brasileiro, casado, RG 4119547, CPF 002.353.694-20, Título de Eleitor 005763460809, Presidente Nacional do . 44. JOICE CRISTINA HASSELMANN, Deputada Federal, RG 06814847-2 SSP/PR, CPF 856557.321-49, com endereço profissional em Gabinete 825 - Anexo IV - Câmara dos Deputados, E- mail: [email protected]. 45. KIM PATROCA KATAGUIRI, Deputado Federal, RG 402895484 SSP/SP, CPF 39313495864, com endereço profissional em Gabinete 421 - Anexo IV - Câmara dos Deputados, E-mail: [email protected]. 46. ALEXANDE FROTA DE ANDRADE, Deputado Federal, RG 35.160.000-0 SSP/SP, CPF 751.992.707-53, com endereço profissional em Gabinete 216 - Anexo IV - Câmara dos Deputados, E- mail: [email protected].

vêm, respeitosamente, em conjunto com as entidades e personalidades relacionadas nos anexos, perante a Câmara dos Deputados, à guisa de sistematização de semelhantes petições já endereçadas à Casa, invocando o disposto no art. 14 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 e conforme estipulado no art. 218, caput, do Regimento Interno da Casa (RICD), apresentar denúncia contra o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro pela prática de crimes de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos I, II, III, IV, V e VII da Constituição da República e nos termos das tipificações previstas no art. 5º, incisos 3, 7 e 11; art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; art. 7º, incisos 5,

6, 7, 8 e 9; no art. 8º, incisos 7 e 8; e no art. 9º, incisos 3, 4, 5, 6 e 7; art. 11, inciso 5; art. 12, incisos 1 e 2, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

Na forma estatuída pelo art. 218, § 2º, do RICD, os requerentes postulam o recebimento da denúncia, seguido da autorização pela Câmara dos Deputados para a instauração do processo e subsequente remessa ao Senado Federal, para processar e julgar o Presidente da República, nos termos dos art. 51, inciso I; art. 52, inciso I e art. 86, caput da Constituição da República, visando à suspensão das funções presidenciais e ao julgamento definitivo do , com a prolação de decisão condenatória e consequentes destituição do acusado do cargo de Presidente da República e inabilitação para a função pública, conforme os arts. 52, parágrafo único, e 86 da Constituição da República e os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

I. DA SISTEMATIZAÇÃO DOS PEDIDOS DE IMPEACHMENT APRESENTADOS CONTRA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

1. A presente denúncia resulta da articulação empreendida pelos subscritores da maior parte dos pedidos de impeachment apresentados contra o presidente da República . O texto a seguir desenvolvido traduz um esforço de conjugação de fatos e argumentos de índole jurídica e política, utilizados nas diversas petições ora sob a análise do presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira.

2. Na presente data, já foram protocolizados 122 (cento e vinte e duas) denúncias da prática de crimes de responsabilidade junto à Câmara dos Deputados, conforme levantamento pormenorizado feito pela agência de jornalismo investigativo Pública. 1 Destes, consta que seis pedidos foram arquivados, restando a serem apreciados em sua admissibilidade o quantitativo de 116 (cento e dezesseis) pleitos de abertura de processo de impeachment em face do atual ocupante da presidência da República.

1 https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/

3. Em 23 de abril de 2021, por via telepresencial, ocorreu uma reunião para a qual foram convocados os signatários das denúncias de impeachment em andamento naquela data. O objetivo do encontro consistiu em buscar uma coordenação dos requerimentos, como forma de consolidar as dezenas de condutas configuradoras de crimes de responsabilidades descritas nas petições. Os participantes, pertencentes às mais variadas vertentes das vidas política, social e cultural do país, foram unânimes no propósito comum de promoverem a potencialização de suas iniciativas, mediante a adequada sistematização das matérias versadas em suas demandas. Na ocasião, os presentes compreenderam, de maneira uníssona, que a elaboração de uma única peça, que viesse a sintetizar as suas manifestações específicas, poderia ter o efeito de provocar a resposta há muito aguardada da presidência da Câmara dos Deputados, com a instauração, afinal, do competente processo de impeachment.

4. Dessa comunhão de objetivos decorreu a designação de responsáveis pelo estudo de cada uma das denúncias em tramitação. Tal pesquisa deu margem à estruturação de um relatório detalhado, cujo conteúdo apontou a abrangência torrencial dos crimes de responsabilidade perpetrados pelo presidente da República, assim como dimensionou pontos de contato entre os enquadramentos produzidos nas mais de cem petições sob exame.

5. O planejamento e a implementação dessa providência unificadora, costurada entre os autores das petições de impeachment presidencial, veio a ser amplamente noticiada, conforme a seguinte reportagem, veiculada pelo jornal Folha de S. Paulo2:

Superpedido de impeachment contra Bolsonaro deve listar acusações de mais de 20 crimes Grupo suprapartidário prepara documento para unificar pedidos de afastamento para pressionar Lira e desgastar presidente Thiago Resende BRASÍLIA Em articulação conjunta, partidos de esquerda e ex-aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) elaboram um superpedido de impeachment que deverá apontar mais de 20 tipos de crime contra a lei de responsabilidade.

2 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/superpedido-de-impeachment-deve-listar-acusacoes-de-mais-de-20-crimes- atribuidos-a-bolsonaro.shtml

A versão mais recente do relatório, obtida pela Folha, lista a infração de dispositivos da lei de impeachment (1.079/1950) e deverá ser apresentada a líderes partidários após as manifestações contra o presidente neste sábado (19).

Em abril, legendas de oposição a Bolsonaro deram início ao plano de unificar todos os pedidos de impeachment já protocolados na Câmara. Hoje, são 121 já apresentados. O resultado é chamado de superpedido ou pedidão de impeachment —o termo varia a depender do integrante do grupo.

Desafetos de Bolsonaro, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (que está de saída do PSL), também se uniram ao projeto. Presidentes de PSOL, PT, PC do B, PDT, PSB, Rede, UP, PV e Cidadania têm liderado as discussões.

O discurso oficial é que, por se tratar de iniciativa supraideológica, o pedido tende a ganhar força e elevar a pressão para que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), analise as acusações.

PUBLICIDADE Lira, hoje aliado de Bolsonaro, é o responsável por analisar de forma monocrática se dá ou não sequência aos pedidos de impeachment. Ele não tem prazo para tomar essas decisões.

Caso seja dada sequência, o caso é analisado por uma comissão especial e, depois, pelo plenário da Câmara. Somente com o voto de ao menos 342 dos 513 deputados é autorizado que o Senado abra o processo.

Nesse caso, Bolsonaro seria afastado até a conclusão do julgamento —ele perderia o mandato caso pelo menos 54 dos 81 senadores votassem nesse sentido. O Brasil já teve dois episódios de impeachment: o de Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e o de (2016).

Hoje, nos bastidores, há ceticismo em relação à real chance de o pedido de afastamento de Bolsonaro prosperar. Desde que passou a distribuir cargos políticos e emendas parlamentares, o presidente atraiu o centrão e ampliou sua base de apoio no Congresso.

Caberá ao superpedido de impeachment dar sustentação ao mote "fora, Bolsonaro" nas manifestações de rua contra o governo e prolongar o ciclo de desgaste do presidente até 2022.

Advogados que integram o grupo suprapartidário encadearam atos de Bolsonaro e relacionaram os episódios a diversos supostos crimes, de acordo com a lei de responsabilidade.

Procurado, o Palácio do Planalto não respondeu às acusações levantadas pelo grupo.

Ameaças ao Congresso Nacional e ao STF (Supremo Tribunal Federal) devem fazer parte da sustentação ao pedido de impeachment.

O apoio e a participação em manifestação antidemocrática, "afrontosa à Constituição", segundo o pedido, e em defesa do AI-5 (Ato Institucional nº 5) da ditadura militar também estão na lista.

A peça deve resgatar declarações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro e acusações contra Bolsonaro por tentativas de interferência na Polícia Federal para favorecer familiares. Moro deixou a pasta no ano passado após o episódio.

Outro item é a troca na cúpula das Forças Armadas e do Ministério da Defesa, em março deste ano. Por atrito com Bolsonaro, comandantes de Exército, Aeronautica e Marinha deixaram os cargos.

Omissões e falhas na condução do combate à pandemia da Covid-19 também devem fundamentar a defesa pelo impeachment do presidente.

Responsáveis pela unificação de todos pedidos já protocolados dizem ser possível afirmar que Bolsonaro incorreu em mais de 20 tipos criminais previstos na lei de impeachment e, em alguns casos, agindo de forma reiterada.

De acordo com o planejamento do grupo, a próxima etapa é reunir os principais líderes do movimento, apresentar o relatório e, se aprovado, converter o texto em um documento formal a ser entregue à Câmara.

"A expectativa é que a plenária [para analisar o relatório] seja marcada até uma semana após as manifestações de 19 de junho", disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

Líder da oposição na Câmara, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) afirmou que a mobilização popular deve acelerar a iniciativa do superpedido de impeachment.

"Isso vai aumentar a pressão, porque fica ainda mais claro para o presidente da Câmara que não se trata de uma medida apenas de quem é contra o governo, da oposição, mas de um apelo, de uma exigência da nação", afirmou Molon.

Um dos principais argumentos contra Bolsonaro deve ser o apoio e a participação dele em atos antidemocráticos no ano passado.

Nos primeiros meses da pandemia, o presidente foi pessoalmente a manifestações em Brasília de apoiadores a ele e com críticas ao STF e ao Congresso. Alguns defendiam a intervenção militar.

"Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade. E o mais importante, temos Deus conosco", afirmou Bolsonaro, em maio de 2020.

E depois concluiu: "Peço a Deus que não tenhamos problemas essa semana. Chegamos no limite, não tem mais conversa, daqui pra frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço, e ela tem dupla mão".

A participação de Bolsonaro nessas manifestações geraram críticas de juristas e políticos na época.

Outro importante pilar de sustentação do pedido de impeachment é o ex-ministro Moro.

Em abril de 2020, ele pediu demissão do Ministério da Justiça sob o argumento de que não concordava com a conduta do chefe de interferir no trabalho da Polícia Federal. Moro afirmou ainda que Bolsonaro queria ter acesso a informações e relatórios confidenciais de inteligência da PF.

Em relação à pandemia, o relatório cita uma série de comportamentos do presidente que, segundo os juristas responsáveis pelo documento, configuram crime de responsabilidade.

Entre as atitudes de Bolsonaro está a postura negacionista em relação ao vírus, "descredibilizar as instituições científicas e incentivar a população a se medicar com fármacos sem eficácia comprovada".

Quando a quantidade dos pedidos de impeachment já ultrapassava a marca de cem, Lira afirmou que 100% eram inúteis.

"O tempo é o da Constituição, na conveniência e na oportunidade. Os pedidos de impeachment, em 100%, não 95%, em 100% dos que já analisei são inúteis para o que entraram e para o que solicitaram", afirmou Lira, há cerca de dois meses.

Cabe a ele, que é próximo de Bolsonaro e é líder do centrão, dar início ao processo de afastamento do presidente.

O CAMINHO DO IMPEACHMENT

• O presidente da Câmara dos Deputados é o responsável por analisar pedidos de impeachment do presidente da República e encaminhá-los • O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é aliado de Jair Bolsonaro. Ele pode decidir sozinho o destino dos pedidos e não tem prazo para fazê-lo • Nos casos encaminhados, o mérito da denúncia deve ser analisado por uma comissão especial e depois pelo plenário da Câmara. São necessários os votos de pelo menos 342 dos 513 deputados para autorizar o Senado a abrir o processo • Iniciado o processo pelo Senado, o presidente é afastado do cargo até a conclusão do julgamento e é substituído pelo vice. Se for condenado por pelo menos 54 dos 81 senadores, perde o mandato • Os sete presidentes eleitos após a redemocratização do país foram alvo de pedidos de impeachment. Dois foram processados e afastados: Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e Dilma Rousseff (2016)

LISTA DE SUPOSTOS CRIMES A SEREM CITADOS NO PEDIDO:

1. Crime contra a existência política da União. Ato: fomento ao conflito com outras nações 2. Hostilidade contra nação estrangeira. Ato: declarações xenofóbicas a médicos de Cuba 3. Crime contra o livre exercício dos Poderes. Ato: ameaças ao Congresso e STF, e interferência na PF 4. Tentar dissolver ou impedir o funcionamento do Congresso. Ato: declarações do presidente e participação em manifestações antidemocráticas 5. Ameaça contra algum representante da nação para coagi-lo. Ato: disse de que teria que "sair na porrada" com senador (Rede-AP), membro da CPI da Covid 6. Opor-se ao livre exercício do Poder Judiciário. Ato: interferência na PF 7. Ameaça para constranger juiz. Ato: ataques ao Supremo 8. Crime contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Ato: omissões e erros no combate à pandemia 9. Usar autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder. Ato: trocas nas Forças Armadas e interferência na PF 10. Subverter ou tentar subverter a ordem política e social. Ato: ameaça a instituições 11. Incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina. Ato: ir a manifestação a favor da intervenção militar 12. Provocar animosidade nas classes armadas. Ato: aliados incitaram motim no caso do policial morto por outros policiais em Salvador 13. Violar direitos sociais assegurados na Constituição. Ato: omissões e erros no combate à pandemia 14. Crime contra a segurança interna do país. Ato: omissões e erros no combate à pandemia 15. Decretar o estado de sítio não havendo comoção interna grave. Ato: comparou as medidas de governadores com um estado de sítio 16. Permitir a infração de lei federal de ordem pública. Ato: promover revolta contra o isolamento social na pandemia

17. Crime contra a probidade na administração. Ato: gestão da pandemia e ataques ao processo eleitoral 18. Expedir ordens de forma contrária à Constituição. Ato: trocas nas Forças Armadas 19. Proceder de modo incompatível com o decoro do cargo. Ato: mentiras para obter vantagem política 20. Negligenciar a conservação do patrimônio nacional. Ato: gestão financeira na pandemia e atrasos no atendimento das demandas dos estados e municípios na crise de saúde 21. Crime contra o cumprimento das decisões judiciais. Ato: não criar um plano de proteção a indígenas na pandemia.

6. Como culminância dessa ampla concertação de forças ecléticas, que reuniu signatários de inúmeras denúncias de crimes de responsabilidade, a presente petição expõe organizadamente a tipificação dos respectivos delitos. As condutas do presidente da República adiante descritas configuram de modo inequívoco o seu enquadramento no figurino de 23 (vinte e três) tipos legais descritos na Lei nº 1.079/1950, alguns de modo reiterado.

7. Com efeito, os fatos relatados nesta denúncia demonstram o cometimento, pelo presidente da República, dos crimes de responsabilidade previstos no art. 5º, incisos 3, 7 e 11; art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9; no art. 8º, incisos 7 e 8; e no art. 9º, incisos 3, 4, 5, 6 e 7; art. 11, inciso 5; art. 12, incisos 1 e 2, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

8. Cumpre assinalar que o sistema constitucional brasileiro estipulou a disciplina acerca dos crimes de responsabilidade do Presidente da República a partir da verificação de atos atentatórios contra a própria Constituição da República (art. 85, caput).

9. Sendo esse o elemento central, em seguida deduzido pela enumeração específica das hipóteses de transgressões autorizadoras do processo de impeachment (art. 85, incisos I a VII), a tipificação legal preconizada pelo parágrafo único do mesmo artigo considera-se suprida pela vigência dos artigos 5º a 12 da Lei nº 1.079, de 1950, recepcionada, em grande parte, pela Constituição Federal de 1988 (STF - MS nº 21.564/DF).3

3Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do

10. Não comporta dúvida, portanto, que atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição são, por assim dizer, a pedra de toque da configuração jurídica dos crimes de responsabilidade e, via de consequência, da deflagração objetiva do processo de impeachment presidencial em nosso país. Com efeito, no âmbito de nosso Estado de Direito, o texto constitucional subordina e condiciona os limites da atuação de todas as autoridades públicas, a começar pela mais proeminente no seio do Poder Executivo, que é o Presidente da República.

11. Nesse contexto jurídico-constitucional, a afronta a comandos constitucionais, identificada no elenco de condutas institucionalmente patológicas relacionadas nos incisos do art. 85 da Lei Maior, subverte o delicado e indispensável equilíbrio normativo-administrativo que deve assentar a legitimidade da ação governamental do Presidente da República. Tal construção lógica resulta na operação mediante a qual a apreciação de atos de governo, por conseguinte de índole administrativa, ainda que emanados por autoridade competente, sob o ângulo formal, podem tornar-se viciados à luz de sua desconformidade constitucional, gerando a noção de delito de responsabilidade essencial à deflagração do processo de impeachment.4

12. Fixadas tais sólidas premissas jurídicas, cumpre constatar que o atual Presidente da República, desde o início do seu mandato, vem incidindo, de maneira grave, reiterada e sistemática em ofensas à Constituição da República. Ao adotar esse padrão de desrespeito à supremacia incontrastável do texto constitucional, o mandatário parece apostar na tolerância e naturalização de tais violações, como forma de solapar o caráter cogente da normatividade que o deveria restringir ao império das regras do direito.

Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. 4 “Visando a tornar efetiva a responsabilidade do Poder Executivo, a Constituição adotou um processo parlamentar, fiel ao princípio de que toda autoridade deve ser responsável e responsabilizável” (BROSSARD, Paulo. O impeachment. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 4).

13. Essas condutas, ilícitas e anticonstitucionais, protagonizadas, dirigidas, coordenadas ou induzidas pessoalmente pelo Presidente da República, consubstanciam posturas irrecusavelmente delituosas, à luz da definição legal dos crimes de responsabilidade, hábeis à instauração, processamento e condenação em processo de impeachment.

14. Ao cabo da fundamentação elaborada abaixo em termos específicos e sistematicamente inter-relacionados, não haverá como arredar-se da conclusão de ter havido a perpetração de crimes contra a existência da União, previstos no art. 5º, incisos 3, 7 e 11 da Lei nº 1.079/1950. Essa conclusão emerge das repetidas e desatinadas manifestações de hostilidade promovidas publicamente pelo presidente da República em relação a país estrangeiro, agravadas pelo delicado contexto da pandemia da Covid-19, em que a colaboração internacional se impõe como requisito essencial à obtenção de ajuda científica, aquisição de insumos e acesso à vacinação em massa. Restará, ainda, comprovado por meio das circunstâncias extraídas desta petição e da instrução do processo que o atual Presidente da República atuou em oposição a obrigações relacionadas à integridade da União, especialmente em decorrência da alteração radical da política externa, comprometendo seriamente a soberania nacional. Outro aspecto grave identificado no comportamento do presidente da República decorre da violação da imunidade de representantes diplomáticos acreditados no Brasil, para dar azo a delírios e paranóias de cunho ideológico, utilizadas irresponsavelmente pelo pesidente da República para insuflar a sua base política fanatizada. Ademais, a adoção de diretrizes voluntaristas e erráticas por parte do presidente da República e do governo federal, sob temerária condução, resultam na violação de tratados e compromissos internacionais assumidos pelo país.

15. Tendo em vista o apoio ostensivo e participação direta do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e afrontosas à Constituição, em que foram defendidas gravíssimas transgressões institucionais, tais como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além da reedição do Ato Institucional nº 5, instrumento de exceção emblemático da ditadura militar instaurada em 1964, deflagra-se a configuração de crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados, catalogados no art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. É preciso detacar que, ao estimular pessoalmente tais espúrias agitações, que celebraram símbolos históricos supressão de

liberdades e garantias da cidadania e da perseguição política, o chefe do Poder Executivo fomentou a obstaculização da representação parlamentar democrática, ameaçando a permanência no cargo do então presidente da Câmara dos Deputados. Além disso, os fatos mais adiante mencionados comprovarão que o mandatário praticou oposição ao livre exercício do Poder Judiciário, bem como pretendeu usar de ameaça para constranger magistrados do Supremo Tribunal Federal no livre e regular exercício da sua jurisdição. Por outro lado, tais protestos foram estimulados, acompanhados e reforçados pelo atual mandatário num contexto de desafio aberto à autonomia de estados-membros da Federação, do Distrito Federal e dos municípios em suas respectivas competências, no que o presidente da República incorreu em ato atentatório e afrontoso a outras esferas da Federação.

16. É preciso registrar, a partir do longo e minucioso relato de impiedosas lesões ao exercício de direitos políticos, individuais e sociais, provocadas por atos deploráveis do Presidente da República, que estas constituem, inegavelmente, crimes contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, tipificados no art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Os atos presidenciais expostos em pormenores nesta denúncia, haverão de conduzir à inexorável comprovação da prática de abusos de poder pelo próprio Presidente da República e por seus Ministros de Estado, além de diversos outros subordinados seus, estes agindo sob determinações da autoridade máxima ou fomentados por seus eloquentes e irresponsáveis gestos, desacertadas convocações e infames orientações. Tais reiteradas configurações delituosas, no que se refere às referidas autoridades subordinadas ao chefe de Estado e de Governo, comprovadamente careceram da devida desautorização, sendo, ao reverso, toleradas e até mesmo estimuladas pelo Presidente da República. Por outro lado, ressairá a observação de uma temerária concretização, por parte do Chefe de Governo, do intento criminoso de degradar a ordem social, desarticulando instituições e estruturas estatais voltadas à sua promoção de acordo com os rumos traçados pelo texto constitucional. Haverá, ainda, de modo compreensivo e totalizante, a verificação objetiva da ocorrência de crimes de responsabilidade decorrentes da exibição de fatos que evidenciarão a patente violação de direitos e garantias individuais e sociais assegurados na Constituição da República, notadamente nas searas econômica, social, cultural e ambiental, além da usual e abjeta prática de agressões a profissionais da imprensa no livre exercício de suas atividades. Não bastassem tais transgressões, o chefe de governo enveredou perigosamente para o flerte com a anarquia militar, incitando subordinados integrantes das Forças Armadas à desobediências

dos regulamentos castrenses, tal como ficou notório no caso do comparecimento do ministro da Saúde Eduardo Pazzuelo a manifestação política de apoio a Jair Bolsonaro. No mesmo passo, vale sublinhar a gravidade da invocação constante do açulamento das forças militares a um possível confronto com outras instâncias da Federação ou mesmo à intervenção aberta no processo político institucional.

17. Outro relevante aspecto a ser desenvolvido nos tópicos subsequentes diz respeito aos crimes contra a segurança interna cometidos pelo Presidente da República, ao fazer periclitar, irresponsavelmente, políticas públicas cruciais à defesa da vida e da incolumidade física dos seus concidadãos, ofendendo predicados mínimos da prudência governamental, a ponto de incidir nas previsões arroladas no art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Os elementos a seguir carreados ao exame seguramente projetarão a imagem nítida do mais vil menosprezo do Presidente da República, por meios tácitos ou expressos, a diversas disposições de leis federais de ordem pública, sempre em prejuízo ao interesse geral e ao bem comum. Em semelhante e lastimável comportamento, ficará exposta com clareza a omissão negligente e leviana do chefe de Estado, ao descumprir sua obrigação legal de tomar providências determinadas por leis federais, no condizente à sua inexecução e descumprimento. Nesse capítulo de infrações severas legais, é imprescindível arrolar a reiterada ocorrência de pronunciamentos temerários e irresponsáveis do Presidente da República, de caráter antagônico e contraproducente ao esforço do Ministério da Saúde e de diversas instâncias da Federação vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos serviços de prevenção, atenção e atendimento médico-hospitalar à saúde da população, em meio à grave disseminação em território nacional da pandemia global do novo coronavírus (Sars-Cov-2), causadora da doença denominada COVID-19, que superou, em junho de 2021, a catastrófica marca de mais de 18 milhões de infectados e 500 mil mortos no Brasil.5 Tais posturas revelam caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e brasileiras, em perigoso menosprezo à gravidade da emergência de saúde decretada pelo próprio governo federal, no sentido de perpetrar intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas governamentais indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe

5 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/06/com-500-mil-mortos-numero-de-vitimas-de-covid-19-no-brasil- ja-e-maior-que-8- genocidios.shtml#:~:text=O%20patamar%20de%20500%20mil,estudar%20eventos%20com%20alta%20mortalidade.& text=%E2%80%9CA%20cifra%20de%20500%20mil%20mortos%20chama%20a%20aten%C3%A7%C3%A3o%20pel a%20enormidade.

sanitária em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na escalada do número de diagnósticos e mortes associadas à pandemia no país, que já supera o lúgubre patamar de 500.000 (quinhentas mil) mortes.

18. Incorreu, ademais, o Presidente da República, em figurinos legais que o implicam dramaticamente na prática de crimes contra a probidade na administração, conforme o art. 9º, incisos 3, 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Sua postura em relação aos atos insensatos e desatinados levados a efeito por inúmeros subordinados jamais esteve à altura da responsabilidade do cargo que ocupa. A repetida e progressiva escalada de descuidos e atos contraproducentes dessas autoridades, em desalinho com a Constituição e com a regularidade funcional de seus postos contou não apenas com o beneplácito presidencial, senão também com seu incentivo, o que perfaz com absoluta suficiência o tipo criminal. Não obstante, e a título de agravamento dessa conduta deletéria, o Presidente da República ignorou explicitamente disposições expressa da Constituição da República, ao expedir ordens e fazer requisições em contrariedade aos termos normativos da Lei Maior. Praticou ainda grave violação ao princípio republicano e ao mandamento constitucional da impessoalidade no exercício da administração pública, mediante a utilização de poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais, mediante a determinação anômala de diligências, a exigência de acesso a relatórios de investigações sob sigilo legal e a tentativa de indicação de autoridades da Polícia Federal que estejam submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante da Presidência da República. E não bastassem essas demonstrações inequívocas de afastamento da probidade em seu procedimento como autoridade máxima do Poder Executivo Federal, o mandatário abusa de posturas completamente incompatíveis com a dignidade, a honra e o decoro do cargo presidencial.

19. Prosseguindo na descrição do extenso rol de crimes de responsabilidades cometidos pelo presidente da República, torna-se indispensável apontar a sua negligência ante à conservação do patrimônio nacional, que vem a consubstanciar crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos, cujo tipo emana do art. 11, inciso 5, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Tal

conduta delituosa se afigura perceptível ante a má gestão da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov- 2), causador da doença denominada Covid-19. É notório e reconhecido que no contexto da calamidade pública resultante da pandemia, o presidente da República dedicou recursos públicos a medicamentos sem eficácia comprovada, abstendo-se de executar um plano de comunicação minimamente eficaz que estimulasse a observância de medidas de contenção e prevenção do contágio da doença, tais como o uso de máscaras faciais e o respeito ao distanciamento social, além do esclarecimento quanto à inconveniência de aglomerações.

20. Como derradeira subsunção dos fatos apurados em relação à conduta presidencial nas normas legais referentes ao impeachment, cumpre indicar a existência de crimes contra o cumprimento de decisões judiciárias, previstos no art. 12, incisos 1 e 2 da Lei nº 1.079/1950. A descrição fática a seguir incluirá, por conseguinte, a alusão a atos de impedimento da concretização de decisões judiciais, ou sua frustração, ainda que por meios oblíquos, al´me da recusa do cumprimento de ordens determinadas pelo Poder Judiciário. Tais evidências envolvem a sabotagem de medidas de proteção aos povos originários e ao meio ambiente. No tocante aos povos indígenas, as providências originadas de julgamento do Supremo Tribunal Federal no que concerne ao resguardo contra a disseminação do novo coronavírus foram obstaculizadas deliberadamente pelo governo federal, com a indisfarçável conivência presidencial, situação que se estendeu a outras decisões de tribunais federais e de Corte Internacional.

21. Doravante, uma copiosa narrativa fática concatenada a um preciso enquadramento jurídico de decisões e atitudes do Presidente da República proporcionará uma noção plena das sérias infrações cometidas, cuja caracterização não permite disfarçar o rompimento dos elevados compromissos inerentes ao cargo.

II. RELATÓRIO SISTEMÁTICO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE PRATICADOS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, CONFORME CATÁLOGO DOS PEDIDOS DE IMPEACHMENT JÁ APRESENTADOS.

a) Dos crimes conta a existência da União

22. No que diz respeito aos crimes contra a existência da União, considerando a soberania nacional e relações exteriores, a narrativa demonstrada nas petições faz referência à celebração de acordos “subservientes e prejudiciais ao interesse nacional”; ao fomento de conflitos com outras nações, em “desrespeito à autodeterminação” delas; “violações” a tratados nacionais de direitos humanos e políticas ambientais; e descumprimento de normas jurídicas de acordos internacionais. As condutas estão descritas no art. 85, I e IV da Constituição e no artigo 5º e 8º da Lei do Impeachment.

“Restará, ainda, comprovado por meio das circunstâncias extraídas desta petição e da instrução do processo que o atual Presidente da República atuou em oposição a obrigações relacionadas à integridade da União, especialmente em decorrência da alteração radical da política externa, comprometendo seriamente a soberania nacional e consumando crimes tipificados no art. 5º, incisos 1, 2, 3, 7 e 11, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.” (Pedido 52 – Pedido dos movimentos sociais - Autores: Débora Duprat, Mauro Menezes, Silvio Almeida, e mais de 3 mil pessoas e instituições - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0052/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/07/peticao-de-impeachment-popular-com-nomes-de- representantes-das-entidades-1.pdf)

23. Acusa-se o presidente de oscilar entre o “negacionismo, o menosprezo e a sabotagem assumida das políticas de prevenção e atenção à saúde dos cidadãos brasileiros, diante da mais grave crise de saúde pública da história do país e do planeta”. A peça responsabiliza Bolsonaro pelo agravamento da pandemia, ao cometer “ações criminosas” que, segundo o pedido, se constituem em agressões diretas aos direitos fundamentais, como o direito à saúde – parte constitutiva da base sobre a qual foi construído o Estado Democrático de Direito. Baseando-se nos artigos 5º, 7º, 8º e 9º da Lei de Impeachment, o pedido acusa o presidente de atentar contra a existência da União, contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do país e a probidade administrativa. Concluindo que “a marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República”. Para reforçar essa tese, o documento elenca as infrações de Bolsonaro, como: infringir o direito à saúde, colocar os seus interesses políticos à frente dos interesses da nação, descredibilizar as instituições científicas, represar os recursos destinados ao combate da pandemia, incentivar a população a se medicar com fármacos sem eficácia comprovada, expor povos tradicionais “a própria sorte”, além

de negligenciar a situação do sistema de saúde de Manaus e de travar uma “Guerra da Vacina em pleno século XXI”. (Pedido nº 74 – Autores: 380 líderes e organizações religiosas, entre pastores, padres e outros religiosos de diferentes denominações cristãs. Redigido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido_0074/

24. Quanto à acusação de cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade, constam “declarações xenofóbicas sobre os colegas cubanos que estavam no Brasil pelo Mais Médicos, tendo se referido aos mesmos como membros de “guerrilha”, o que não é somente sobre o decoro, mas também sobre a diplomacia com um país com o qual o Brasil possui relações” (Pedido nº 4 – Autor: Diogo Machado Soares dos Reis, médico - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0004/).

b) Dos crimes contra o livre exercício dos Poderes Constitucionais

25. Em relação aos crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: há citações às manifestações de março e maio de 2020, como exemplos de momentos em que o presidente “irresponsavelmente atentou contra o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário”. (Pedido nº 60 - Deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0060/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/01/gleisi-helena- hoffmann-e-outros-1-1.pdf)

26. As petiçoes tratam sobre as ameaças ao Congresso Nacional, ao STF (Supremo Tribunal Federal) e tentativas de interferência na Polícia Federal para favorecer familiares, que também configurariam crime de responsabilidade do presidente, na interpretação dos signatários. Jair Bolsonaro teria cometido dolo ao ameaçar a liberdade de imprensa, com ataques a jornalistas, e comprometimento do direito ao acesso à informação, pela falta de transparência nos dados da covid-19. Também ao “utilizar recursos públicos para incentivar o uso de um medicamento de eficácia não comprovada” – a hidroxicloriquina – no tratamento da covid-19. (Pedido 53 – Autor: Coalização Negra por Direitos - 150 organizações e coletivos negros brasileiros, o documento tem apoio de mais de 600 entidades e

personalidades, como os músicos Emicida e Chico Buarque, o ator Antônio Pitanga e o cineasta Fernando Meirelles, que são signatários - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0053/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/08/coalizaonegra-pedidoimpeachment-1.pdf)

27. Registre-se o “apoio ostensivo e participação direta do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e afrontosas à Constituição”. A ação representaria crime de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados, e contra o livre exercício dos direitos políticos. Como prova, o pedido cita a participação de Bolsonaro de atos considerados anti-democráticos, nomeadamente nos dias 15 de março, 19 de abril e 3 de maio de 2020. Nos referidos episódios, manifestantes pediram, através de palavras de ordem e faixas, pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, e exaltaram a intervenção militar e o Ai-5. Menciona ainda falas de Bolsonaro e postagem da Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) nas redes sociais a respeito dos atos convocados para o dia 15 de março, como evidência do “envolvimento direto e ativo do Presidente da República na divulgação e realização de manifestações públicas de rematado desapreço pela integridade dos poderes da República e pelas instituições democráticas”. Também lembra dos “ataques praticamente diários à imprensa”, proferidos pelo presidente.

Outras falas do presidente que recebem destaque como provas de crime de responsabilidade são as ofensas a governadores e prefeitos no contexto da epidemia de coronavírus e a afirmação “Eu sou a Constituição”, dita durante entrevista a jornalistas no dia 20 de abril de 2020. “A frase demonstra a pretensão do atual ocupante do posto de Presidente da República de transgredir os limites de suas atribuições e não acatar as limitações decorrentes do equilíbrio harmônico entre os Poderes da República”, acusa o pedido. (Pedido 42 e 47 – Proposta por: PT, PCdoB, PSOL, PSTU, PCB, PCO, UP e outros – Mais de 400 organizações sociais, juristas e personalidades públicas, além dos partidos - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0047/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-042/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido-0029-ocultado.pdf)

Bolsonaro convocou seus contatos (35 milhões de seguidores nas redes sociais) e participou de manifestação contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, e que pediam a reedição do AI-5. + Improbidade art. 9º) Obs: Consta no pedido prova sobre participação de Bolsonaro nesses fatos e sobre as manifestações em si

(financiamento, etc.) (Pedido nº 14 – Autor: Alexandre Frota (PSDB) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-014/ - Link da íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido00101.pdf)

28. Há também no pedido subcrito pelo PDT a acusação de cometimento de crime pelo presidente da República contra a segurança nacional, ao endossar manifestações que conclamavam a intervenção militar, a reedição do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. O documento cita que, em fevereiro de 2020, “o presidente da República difundiu vídeo que convoca a população para ir às ruas no dia 15 de março para defendê-lo e para marchar contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal”. (Pedido nº 26 e 30 – Proposto por: PDT (Ciro Gomes, Carlos Lupi e Walter Agra) – primeiro pedido de Partido Político - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-026/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/04/pedido027- ocultado.pdf)

29. Já na denúncia apresentada pelo PSB, constam crimes contra o livre funcionamento das instituições dizem respeito à tentativa de limitar o funcionamento do Legislativo e do Judiciário – Fundamento detalhados na petição. (Pedido nº 35 – Proposto por: PSB - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-035/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0025.pdf)

30. A interferência indevida do presidente da República na Polícia Federal para a defesa de interesses pessoais e familiares está descrita em minúcias na denúncia oferecida pelo deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP) (Pedido nº 61- proposto por: Dep. Alexandre Frota (PSDB) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0061/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/01/alexandre-frota-3- 1.pdf) Já no pedido de ambientalistas, foi aduzido o seguinte:

“III.b Da Participação em Atos que Atentam Contra o Estado Democrático de Direito e Contra os Demais Poderes Republicanos. [...]

O Presidente da República já demonstrou por diversas vezes em sua carreira política, antes mesmo de sua ascensão ao nobre e importante cargo público que hoje ocupa, seu apreço ao autoritarismo, uma visão manifestamente contrária à democracia e seu claro anseio de que fossem desconstruídas as instituições democráticas. Entretanto, as falas antidemocráticas do então Deputado Federal Jair Bolsonaro, tornaram-se, agora que este se tornou Presidente da República, efetivamente atos antidemocráticos com clara feição autoritária, o que, em nosso ordenamento jurídico é duramente reprovado, tanto pela Constituição da República quanto por nossa legislação infraconstitucional, devendo ser enquadrados como crimes de responsabilidade e serem originadores da destituição do Presidente da República. No mundo todo temos testemunhado a escalada de movimentos antidemocráticos, com a ascensão de líderes políticos que atacam as instituições democráticas com o claro intuito de destruir os avanços civilizatórios e, subvertendo a ordem democrática, estabelecerem em seus países governos autoritários. Infelizmente temos presenciado no Brasil também a escalada desses movimentos antidemocráticos que, sob a falsa alcunha de bandeiras moralmente aceitáveis por toda a população, como o combate a corrupção, atacam os demais Poderes da República e pedem publicamente a intervenção das Forças Armadas para a dissolução do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Não fosse suficiente a gravidade da mera existência de tais movimentos antidemocráticos, temos os gravíssimos e impensáveis atos do Presidente da República de manifesto apoio a estes movimentos. Uma das sucessões de atos, que claramente evidenciam a atuação do Presidente da República fomentando movimentos antidemocráticos que atacam os demais Poderes da República, se deu com o compartilhamento de vídeos que convocavam a população brasileira a comparecer em manifestações que pediam o fechamento do Congresso Nacional, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e intervenção militar liderada pelo Presidente da República, conforme denunciado pela jornalista Vera Magalhães42: [print] Alguns dias após o compartilhamento do referido vídeo, o Presidente da República, em escala feita na cidade de Boa Vista, antes de seguir rumo à Flórida em viagem oficial, convocou44 a população para que participasse das manifestações que seriam realizadas no dia 15 de março de 2020, evidenciando ainda mais o seu apoio e compromisso com os movimentos antidemocráticos acima mencionados. Entretanto, mesmo após duras críticas feitas pela imprensa e pelas instituições democráticas, o Presidente da República não satisfeito com todo o apoio dado às manifestações antidemocráticas e a convocação feita a sociedade para que comparecessem às manifestações, também compareceu4546 a uma das manifestações em frente ao Palácio do Planalto, cumprimentando manifestantes e tirando foto com estes: [print] Conforme se verifica da imagem acima registrada, o Presidente da República tira foto com manifestantes que seguram uma faixa escrita “Fora Maia”, em claro

ataque ao Presidente da Câmara dos Deputados e, por consequência, ao Poder Legislativo. Entretanto, ainda que extremamente grave a sucessão de atos praticados pelo Presidente da República, com grande repercussão na imprensa nacional, este permaneceu a praticar diversas falas de ataque aos demais poderes e, no dia 19 de abril de 2020, voltou a comparecer em mais um movimento antidemocrático de ataque às instituições. Em frente à sede do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília, onde, postado em meio a diversas faixas que pediam intervenção militar, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da República realizou discurso de apoio aos manifestantes, louvando a manifestação antidemocrática que ali ocorria: [print] Não bastassem todos estes atos antidemocráticos praticados pelo Presidente da República, este permaneceu, incansavelmente praticando atos que atentam contra os Poderes da República e contra a democracia, senão vejamos: 1 – 29 de Abril de 2020 - O Presidente da República, após decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes que impediu a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, em virtude dos indícios de que o Presidente da República buscava a interferir na Polícia Federal, atacou publicamente o Ministro Alexandre de Moraes e disse que quase ocorreu uma crise institucional; 2 – 03 de Maio de 2020 - O Presidente da República volta a apoiar ato antidemocrático e disse que não iria mais “admitir interferências” uma vez que havia acabado sua paciência; 3 – 22 de Maio de 2020 - O vídeo da reunião ocorrida no dia 22 de abril de 2020 e divulgado no inquérito que investiga eventual prática de crime pelo Presidente da República, evidenciou mais uma vez o posicionamento de toda a cúpula do governo do atual Presidente da República e mais uma vez demonstrou os ataques aos demais Poderes da República realizados pelo Presidente da República e seus ministros, que atacavam o Supremo Tribunal Federal sem qualquer reprimenda do Presidente da República; 4 – 28 de Maio de 2020 - O Presidente da República, em defesa das falas antidemocráticas dos Ministros da Educação e do Meio Ambiente, ataca o Ministro Celso de Mello, afirmando que sua decisão teria sido abusiva e passível de responsabilidade pela Lei de Abuso de Autoridade; 5 – 28 de Maio de 2020 - O Presidente da República novamente ataca o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, após este autorizar operação da Polícia Federal no inquérito sobre as “Fake News”, que acabou por atingir aliados do Presidente da República. Em mais uma de suas falas indecorosas o Presidente da República afirmou: “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações.”; 6 – 31 de Maio de 2020 - O Presidente da República participa novamente de atos antidemocráticos que atacam o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Desta forma, ante todos estes gravíssimos fatos acima narrados, não remanescem quaisquer dúvidas de que o Presidente da República atentou contra os demais

poderes da república, incorrendo nos crimes de responsabilidade descritos no art. 6º, 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079/1950, uma vez que atentou contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados e praticou os crimes de responsabilidade descritos art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079/1950, uma vez que atentou contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Por fim, nos termos do que estabelece o art. 2º, da Lei nº 1.079/1950, esclarecesse que a mera forma tentada dos crimes descritos na referida lei, são passíveis da perda do cargo, ante a gravidade de tais condutas.” (Pedido 51 – Ambientalistas - Rafael Echeverria Lopes, Enilde Neres Martins, Humberto Adami Santos Junior, André Rodolfo de Lima e outros - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0051/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/06/denuncia-acao-cidada-versao1.pdf)

31. A tentativa de dissolução do Congresso Nacional, para impedir a reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras, foi também objeto de denúncia, no pedido do MBL:

“Em 19 de abril de 2020 – desrespeitando os limites do bom senso, a cátedra presidencial e até mesmo as recomendações de saúde pública – o Representado participou ativamente de manifestação cuja pauta era abertamente a promulgação de um “novo AI-5”, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, instituições de insuperável representação democrática. Bolsonaro discursou no evento realizado em frente ao Quartel-General do Exército. Foram suas palavras as abaixo transcritas: Eu estou aqui, porque acredito em vocês. Vocês estão aqui, porque acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção no Brasil, têm de ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou, acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais do que o direito, vocês têm obrigação de lutar pelo país de vocês. Contem com seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para que nós possamos manter a nossa democracia e garantir aquilo que há de mais sagrado entre nós, que é a nossa liberdade. Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza: todos nós juramos um dia dar a vida pela Pátria e vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil. Chega da velha política! O simples ato de participar de tão abjeta manifestação já seria suficiente para comprovar a anuência do chefe do executivo com as pautas ali defendidas, mas o Chefe do Executivo brasileiro foi além e seu infeliz discurso faz a prova cabal sobre sua mendaz intenção. Ora, ao asseverar que “eu estou aqui porque acredito em vocês” e “todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro”, o representante máximo da República Federativa do Brasil claramente outorga aos infames manifestantes procuração como únicos representantes do povo, tentando fazer crer que aquela insólita pauta estaria legitimada por todos os demais cidadãos brasileiros. Em síntese, o Representado busca aferir que todos os brasileiros deverão sujeitar-se a um “novo AI-

5” proposto por aqueles pouquíssimos incautos que foram às ruas afrontando as instituições democráticas e as boas práticas de higiene em época de pandemia. Nada mais espúrio! Tal fato, de tão repugnante e grave, levou o Procurador Geral da República, Exmo. Dr. Augusto Aras, a requerer ao Supremo Tribunal Federal a abertura de inquérito para apurar a participação de parlamentares no ato em que Bolsonaro discursou. Em decisão que autorizou a abertura do Inquérito, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que o fato, da forma como foi narrado pelo PGR, revela-se “gravíssimo”, pois atenta contra o Estado Democrático de Direito. O Ministro Moraes alegou, ainda, que a Constituição não permite o financiamento e propagação de ideias contrárias à ordem constitucional, nem tampouco a realização de manifestações que visem ao rompimento do Estado de Direito e a extinção de cláusulas pétreas constitucionais, como o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação de poderes, e os direitos e garantias fundamentais.14 O malfadado fato, inclusive, levou o Supremo a fazer publicar a seguinte nota: A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. São inconstitucionais, e não se confundem com a liberdade de expressão, as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático. Também ofendem os princípios constitucionais aquelas que pretendam destruí-lo, juntamente com instituições republicanas, pregando a violência, o arbítrio, o desrespeito aos direitos fundamentais. Em suma, pleiteando a tirania. A participação do Representado no referido ato fez com que Ministros do Supremo Tribunal Federal se manifestassem. Vejamos: [...] Não fosse o bastante, em carta aberta Governadores de 20 Estados manifestaram repúdio à conduta do Representado. Vejamos: O Fórum Nacional de Governadores manifesta apoio ao Presidente do Senado Federal, , e ao Presidente da Câmara dos Deputados, , diante das declarações do Presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre a postura dos dois líderes do parlamento brasileiro, afrontando princípios democráticos que fundamentam nossa nação. Nesse momento em que o mundo vive uma das suas maiores crises, temos testemunhado o empenho com que os presidentes do Senado e da Câmara têm se conduzido, dedicando especial atenção às necessidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios brasileiros. Ambos demonstram estar cientes de que é nessas instancias que se dá́ a mais dura luta contra nosso inimigo comum, o coronavírus, e onde, portanto, precisam ser concentrados os maiores esforços de socorro federativo”. Resta, portanto, cabalmente demonstrada a ilicitude perpetrada na conduta do Presidente da República, que busca uma ruptura no sistema democrático com o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, em total descompasso com a realidade e o respeito as instituições”. A conduta caudilhista de Bolsonaro, manifestando apoio e incentivando outros a apoiarem pautas antidemocráticas, consiste em severa infração com incurso em crime comum – este já em apuração no Supremo Tribunal Federal – e, ainda, em crime de responsabilidade”. [Enquadramento jurídico dos fatos narrados feito no pedido: Art. 85. [...] II e III da CF/88; Art. 6º, 1; e Art. 7º, 7 e 8, da Lei do Impeachment].

(Pedido nº 34 – Proposto por: MBL - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-034/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/04/pedido0024-ocultado.pdf)

32. Houve também, em peça assinada por líderes paridários no Congresso Nacional, imputação de crime por uso de violência ou ameaça contra representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;

“ao tentar impor sua vontade ao Senador Kajuru, em relação à ampliação do objeto da CPI, ao qual será o primeiro dos investigados usa de tática já conhecida de “investigar tudo, para nada se investigar”. Interessante observar que o Presidente da República inova até no já conhecido termo “pizza”. Para ele, a nova “pizza” é a limonada.

Assim, impede o livre funcionamento do Poder Legislativo - Senado Federal - e coage o Senador da República a agir da forma como deseja. O fato do Senador Kajuru não se dobrar aos ímpetos autoritários do Presidente da República não afasta o evidente crime de responsabilidade. Ressalta-se aqui que o problema não é ampliar a CPI, mas o descabimento dessa pressão partir do próprio Presidente da República.

O que sobressai como ainda mais grave é a ameaça direta e a forma com que o representado trata o Senador Randolfe Rodrigues, dizendo que “vou ter que sair na porrada com um bosta desses”. Trata-se de clara ameaça de agressão física contra um membro do Congresso Nacional, o que se subsume perfeitamente à hipótese de “ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato”.

Não apenas isso, o ataque direto contra o Senador, com viés de agressão física, vem com a depreciação de todos os demais senadores que requerem a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar questões relacionadas com a Pandemia, o Presidente da República utiliza o termo “canalhada” para se referir aos demais Senadores, em total falta de respeito e com clara intenção de impedir o funcionamento da citada CPI”.

(Pedido 115 – Aditamento e 107 (31.03.2021) – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-

bolsonaro/pedido-0115/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-115-tarjado.pdf

33. Em outra peça subscrita por parlamentares, a ascensão de Bolsonaro ao cargo “não foi capaz de imprimir ao Sr. Jair Messias Bolsonaro o espírito democrático, de acordo com o decoro, a honra e a dignidade do cargo e o senso de respeito à legalidade” descritos no artigo 9º da Lei nº 1.079/50. A peça lista as ações de Bolsonaro que poderiam ser enquadradas como crimes de responsabilidade de acordo com a Lei nº 1.079/50. São elas: convocação pública e reiterada de manifestações pelo fechamento do Congresso ou qualquer intervenção no funcionamento da instituição (art. 6º, inciso 1); convocação de manifestações contrárias ao STF e seus membros (art. 6º, inciso 5); incentivo à participação em manifestações antidemocráticas em ambiente militar para público militar (art. 7º, inciso 8); falta de repreensão ao General Augusto, seu subordinado imediato, quando ele define como ‘chantagem’ as prerrogativas constitucionais do Poder Legislativo (art. 7º, inciso 5 e art. 9º, inciso 3); elogios à ditadura, violação dos direitos humanos e quebra da ordem constitucional ou permissão que os subordinados o façam sem repreensão (art. 7º, inciso 5 e art. 9º, incisos 3 e 4). Ademais, pontua que quando o presidente se utilizou do perfil da Secretaria de Comunicação (Secom) para convidar e divulgar os atos do dia 15 de março, utilizou estrutura pública e teria cometido ato de improbidade administrativa, nos termos dos arts. 4º e 11 da Lei nº 8.429/92. O crime de responsabilidade contra a probidade na Administração se enquadraria na lei de Responsabilidade (1079/50), inciso 7 do art. 9º. Por fim, sobre a pandemia de COVID-19, a peça atribui a Bolsonaro o cometimento de “crimes comuns de infração de medida sanitária, previstos no art. 268 do Código Penal e, provavelmente, de epidemia, previsto no art. 267 do mesmo dispositivo, age de maneira incompatível com a dignidade, honra e decoro do cargo”. Depois das declarações do ex- ministro Sérgio Moro, um aditamento foi enviado à Câmara denunciando o Presidente por “fazer uso da Polícia Federal para fins pessoais e familiares”. (Pedido 19 e 13 – Proposto por: Fernanda Melchionna, Sâmia Bomfim e David Miranda, deputados federais (PSOL) - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-019/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/03/pedido019.pdf

“A externalização da influência direta no objetivo, composição e especificação de pessoas a serem ouvidas em CPIs, tais como descritas e provadas [diálogo do Presidente com Kajuru], amoldam-se aos incisos 1 e 2 do artigo 6º da Lei 1.079/50, fazendo surgir a responsabilização do Chefe do Executivo [...]”. (Pedido 118 - Augusto Luiz Melaré e Bárbara Gonçalves Teixeira - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0118/; Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/05/pedido-118-augusto-melare-e-barbara-texeira.pdf)

34. No concernente ao crime de opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças, além dos crimes de obstrução da Justiça que dizem respeito à tentativa de interferência na Polícia Federal, troca de diretor (da PF) para evitar o andamento de processos- Fundamento detalhados na petição, há referência no Pedido nº 35 – Proposto por: PSB - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 035/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0025.pdf)

34. Quanto ao uso de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício:

“tais pretensões que demonstram os arroubos autoritários do principal mandatário da República têm como pano de fundo, entre outros motivos, sua pública e manifesta insatisfação com o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal. Foram inúmeras insinuações, em seus 2 anos de mandato, no sentido de fechar o Tribunal ou de tecer críticas infundadas a suas decisões e de distorcer a mens dos julgados. Nessa esteira, é evidente que a pretensão, diga-se, revolucionária do Presidente tem como uma das bases a ameaça à liberdade de julgamento dos juízes Brasil afora, tão somente pelo fato de que proferem decisões contrárias às suas convicções deturpadas. Decerto, trata- se de decisões lastreadas em preceitos fundamentais, razão por que anulam atos administrativos ou decisões, normativas ou não, do Sr. Presidente, que, invariavelmente, não parece muito preocupado em seguir as balizas constitucionais.

E, obviamente, tal proceder no sentido de achincalhar o exercício da função jurisdicional, sobretudo a de índole constitucional, não encontra amparo na Constituição, que

prescreve a existência de poderes independentes e harmônicos entre si. Paradigma existente, no mínimo, desde Montesquieu em suas observações sobre o modelo de organização dos poderes do Reino Unido. Passados tantos anos de experimentalismo com razoável sucesso democrático e republicano, o mandatário pro tempore do Planalto brasileiro pretende mudar a lógica, em pleno século XXI. Ora, tal pretensão é, indubitavelmente, configuradora de infração por crime de responsabilidade”.

(Pedido 114 e 107 (31.03.2021) – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf

“ao querer impor a aceitação de denúncias contra Ministros do STF que julgam contra seus interesses escusos, viola claramente o livre exercício do Poder Judiciário - STF - e constrange Ministro a atuar como deseja. O fato dos Ministros do STF não se dobrarem aos ímpetos autoritários do Presidente da República não afasta o evidente crime de responsabilidade.

Interessante também observar que o Presidente da República não demonstra a mesma vontade de “desengavetar” os pedidos de impeachment contra ele próprio, ou seja, evidentemente, atua em causa própria, contra as Instituições da República”.

(Pedido 115 – Aditamento e 107 (31.03.2021) – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-0115/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-115-tarjado.pdf

“também deve-se considerar os Senadores da República como juízes da Comissão Parlamentar de Inquérito e do processo de impeachment de Ministro do STF, devendo ser aplicada o presente item também ao constrangimento de senadores a atuar conforme a vontade do Presidente da República em tais decisões”.

Pedido 115 – Aditamento e 107 (31.03.2021) – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-

bolsonaro/pedido-0115/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-115-tarjado.pdf

c) Dos crimes contra o exercício dos Direitos Políticos, Individuais e Sociais

35. No capítulo dos crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, acusa-se o presidente de oscilar entre o “negacionismo, o menosprezo e a sabotagem assumida das políticas de prevenção e atenção à saúde dos cidadãos brasileiros, diante da mais grave crise de saúde pública da história do país e do planeta”. A peça responsabiliza Bolsonaro pelo agravamento da pandemia, ao cometer “ações criminosas” que, segundo o pedido, se constituem em agressões diretas aos direitos fundamentais, como o direito à saúde – parte constitutiva da base sobre a qual foi construído o Estado Democrático de Direito. Baseando-se nos artigos 5º, 7º, 8º e 9º da Lei de Impeachment, o pedido acusa o presidente de atentar contra a existência da União, contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do país e a probidade administrativa. Concluindo que “a marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República”. Para reforçar essa tese, o documento elenca as infrações de Bolsonaro, como: infringir o direito à saúde, colocar os seus interesses políticos à frente dos interesses da nação, descredibilizar as instituições científicas, represar os recursos destinados ao combate da pandemia, incentivar a população a se medicar com fármacos sem eficácia comprovada, expor povos tradicionais “a própria sorte”, além de negligenciar a situação do sistema de saúde de Manaus e de travar uma “Guerra da Vacina em pleno século XXI”. (Pedido nº 74 – Autores: 380 líderes e organizações religiosas, entre pastores, padres e outros religiosos de diferentes denominações cristãs. Redigido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido_0074/ - Sem acesso à íntegra no site apublica.org/impeachment-bolsonaro)

36. Também é alvo de estruturada denúncia o genocídio da população negra no Brasil se agravou pela atuação da presidência da República no contexto da pandemia. Esse é o argumento fundamental do primeiro pedido de impeachment de um presidente feito pelo movimento negro

organizado na história brasileira. [...] O pedido de impeachment do presidente, apresentado pela Coalizão Negra por Direitos, afirma que a população negra foi a mais atingida pela covid-19 no Brasil. Afirma que o “Brasil de Bolsonaro já matou o dobro de pessoas por coronavírus do que a guerra do Paraguai” e que está em curso uma “política de morte, que tem como alvo prioritário os corpos negros.” Os autores do pedido de afastamento afirmam que o governo Bolsonaro se mostra racista pelo “desmantelamento de políticas públicas resultantes de lutas históricas do movimento negro”, bem como por seus pronunciamentos preconceituosos. No texto, a participação do movimento negro em defesa da democracia e dos princípios da República recebe destaque. Também há a reprodução do manifesto da Coalizão Negra por Direitos, lançado em junho de 2020, que é categórico ao afirmar: “enquanto houver racismo, não haverá democracia.” Entre os crimes de responsabilidade atribuídos ao presidente Bolsonaro na peça estão ações de extermínio e vulnerabilização da população negra – em especial de comunidades quilombolas. (Pedido 53 – Autor: Coalização Negra por Direitos - 150 organizações e coletivos negros brasileiros, o documento tem apoio de mais de 600 entidades e personalidades, como os músicos Emicida e Chico Buarque, o ator Antônio Pitanga e o cineasta Fernando Meirelles, que são signatários - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0053/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/08/coalizaonegra- pedidoimpeachment-1.pdf)

37. Um dos pedidos desenvolve a tese de haver uma Desconstrução sistemática de direitos políticos, individuais e sociais é “traço constante da atuação do Presidente”. Classifica os crimes de responsabilidade que teriam sido cometidos em: violações específicas a direitos políticos, individuais e sociais; violações à segurança interna; crimes contra a probidade da administração; e crimes contra a existência da União. De acordo com a peça, Jair Bolsonaro cometeu violações ambientais; culturais; aos direitos da população negra e das comunidades quilombolas; aos direitos dos povos indígenas; aos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores; e aos direitos da população LGBTQI. A primeira infração apresentada refere-se à temática ambiental, baseada no aumento excessivo de agrotóxicos liberados nos últimos meses, no desmonte do sistema de fiscalização ambiental e no enfraquecimento de órgãos como ICMBio e Ibama, o que teria resultado no aumento de desmatamentos e incêndios em áreas de preservação. Para corroborar, o pedido cita ainda a fala do ministro do meio ambiente, , na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, onde ficaria

explícita a intenção de “passar a boiada” em reservas ambientais, o que demonstraria a política anti ambientalista do governo. O pedido elenca ainda o desmonte de políticas culturais e o rebaixamento do Ministério da Cultura ao nível de secretaria. De acordo com a peça, Bolsonaro “empreendeu uma verdadeira perseguição às produções que não se alinham às crenças e aos valores dos grupos políticos que dão suporte ao seu governo”, o que teria resultado no direcionamento ideológico do recursos do Fundo Setorial Audiovisual e da direção de editais, assim como a paralisação do financiamento público de iniciativas culturais. Os autores destacam ainda a preservação do patrimônio cultural e histórico nacional, que têm sido “ameaçados com o corte de recursos e a substituição de pessoal técnico por não técnico”. O “desprezo pelos direitos sociais” do Presidente também ficaria explícito nas medidas provisórias 927 e 936, criadas em meio à pandemia para regular o trabalho. O pedido considera que as ações do governo federal tiveram como resultado “reduzir direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores e beneficiar a classe empresarial, sem, contudo, garantir nem gerar empregos”. A peça também indica que a postura discriminatória de Bolsonaro estaria fomentando o aumento da violência contra a população LGBTQI.

“8. Ao cabo da fundamentação elaborada em termos específicos e concatenados, não haverá como arredar-se da conclusão de ter havido lesões ao exercício de direitos políticos, individuais e sociais, provocadas por atos deploráveis do Presidente da República, que constituem, inegavelmente, crimes tipificados no art. 7º, incisos 5, 6 e 9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. 3 Os atos presidenciais expostos em pormenores nesta denúncia, haverão de conduzir à inexorável comprovação da prática de abusos de poder pelo próprio Presidente da República e por seus Ministros de Estado, além de diversos outros subordinados seus, estes agindo sob determinações da autoridade máxima ou fomentados por seus eloquentes e irresponsáveis gestos, desacertadas convocações e infames orientações. Tais reiteradas configurações delituosas, no que se refere às referidas autoridades subordinadas ao chefe de Estado e de Governo, comprovadamente careceram da devida desautorização, sendo, ao reverso, toleradas e até mesmo estimuladas pelo Presidente da República, a demonstrar cabalmente a infringência do inciso 5 do art. 7º, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Por outro lado, ressairá a observação de uma temerária concretização, por parte do Chefe de Governo, do intento criminoso de degradar

a ordem social, desarticulando instituições e estruturas estatais voltadas à sua promoção de acordo com os rumos traçados pelo texto constitucional, o que permite a realização do suposto legal de quebra da responsabilidade segundo o inciso 6 do já citado art. 7º, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Haverá, ainda, de modo compreensivo e totalizante da verificação objetiva da ocorrência de crimes de responsabilidade, a exibição de fatos que evidenciarão a patente violação de direitos e garantias individuais e sociais assegurados na Constituição da República, notadamente nas searas econômica, social, cultural e ambiental, a representar substrato para a aplicação do art. 7º, inciso 9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950”. (Pedido 52 – Pedido dos movimentos sociais - Autores: Débora Duprat, Mauro Menezes, Silvio Almeida, e mais de 3 mil pessoas e instituições - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 0052/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/07/peticao-de-impeachment-popular-com-nomes- de-representantes-das-entidades-1.pdf

38. Ainda quanto à participação direta do Presidente da República em “manifestações de índole antidemocrática e afrontosas à Constituição”. A ação representaria crime de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados, e contra o livre exercício dos direitos políticos. Como prova, o pedido cita a participação de Bolsonaro de atos considerados anti-democráticos, nomeadamente nos dias 15 de março, 19 de abril e 3 de maio de 2020. Nos referidos episódios, manifestantes pediram, através de palavras de ordem e faixas, pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, e exaltaram a intervenção militar e o Ai-5. Menciona ainda falas de Bolsonaro e postagem da Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) nas redes sociais a respeito dos atos convocados para o dia 15 de março, como evidência do “envolvimento direto e ativo do Presidente da República na divulgação e realização de manifestações públicas de rematado desapreço pela integridade dos poderes da República e pelas instituições democráticas.” Também lembra dos “ataques praticamente diários à imprensa”, proferidos pelo presidente. (Pedido 42 e 47 – Proposta por: PT, PCdoB, PSOL, PSTU, PCB, PCO, UP e outros – Mais de 400 organizações sociais, juristas e personalidades públicas, além dos partidos - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0047/ e https://apublica.org/impeachment-

bolsonaro/pedido-042/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido-0029-ocultado.pdf)

39. A acusação de servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua é apresentada e fundamentada nos Pedido de Impeachment apresentados pelos líderes da oposição e da minoria no Congresso, pelos ambientalistas e pelo Movimento Brasil Livre.

“ao promover a troca no comando do Ministério da Defesa e de todas as Forças Armadas, o Presidente da República parece pretender se utilizar das autoridades sob sua supervisão imediata (à luz do trecho “autoridade suprema do Presidente da República”, conforme o art. 142 da Constituição, e da hierarquia direta da relação de fidúcia existente entre Presidente e Ministros de Estado) para, literalmente, praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua. Isso porque, na medida em que o Brasil se constitui sob a forma de República (lastreada nos paradigmas de igualdade e de não impunidade) democrática (fincada no paradigma de participação popular nos debates públicos lato sensu) com independência harmônica dos Poderes (arts. 1º e 2º da Constituição), que é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, da Constituição), não pode o Presidente, chefe de um dos Poderes, pretender subverter a ordem constitucional em simples canetadas, no afã de promover seu projeto autoritário de poder com o auxílio eventual de qualquer parcela das Forças Armadas, mesmo que minoritárias”. (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf

“II.a Permissão à Prática de Abuso de Poder pelo Ministro Ricardo Salles

[...]

No início deste ano a revista Carta Capital apontou, de forma objetiva, 26 violações ao meio ambiente praticadas sob a batuta do Presidente da República Jair Bolsonaro: “Torna-se então relevante registrar as principais violações ao meio ambiente deste

período, na expectativa de combatê-las, mitigá-las e, num futuro próximo, reverter as que ainda forem possíveis. Muitos são os exemplos deste desmonte, como:

1- a desestruturação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), com perdas de autonomia de técnicos e de segurança em campo a fiscais ambientais;

2- a transferência do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura;

3- a flexibilização e redução das multas por crimes ambientais, e institucionalização desta prática por meio do projeto de criação do “Núcleo de conciliação”, que poderá mudar o valor ou até mesmo anular multas por crimes ambientais;

4- a contestação dos dados oficiais de desmatamento do sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), criado pelo governo Lula em 2004 e que possibilita o ágil diagnóstico de áreas desmatadas. Além da demissão do diretor do Instituto ao ser confrontado tecnicamente;

5- a interrupção do bilionário Fundo Amazônia, que financiava mais de uma centena de projetos de proteção da Amazônia e seus povos e que teve os recursos suspensos pelas fontes doadoras (Noruega e Alemanha) devido ao aumento do desmatamento e à extinção de Conselhos que faziam a gestão dos recursos;

6- a proposta de revisão das Unidades de Conservação do país, que poderão ter os seus traçados revistos ou até serem extintas;

7- a recriminação de fiscais ambientais que, amparados legalmente, destruíram equipamentos apreendidos usados por madeireiros e garimpeiros criminosos;

8- a proposta de regularização fundiária via autodeclaração, que permitiria a grileiros a legalização de terras apropriadas ilegalmente;

9- as propostas para redução de terras indígenas e áreas remanescentes de quilombos;

10- o aumento da violência no campo e aos indígenas;

11- a visão governamental de que o indígena deve viver da mesma forma que a população não indígena urbana;

12- a liberação excessiva de agrotóxicos, alguns inclusive proibidos em outros lugares do mundo;

13- a revisão de tributos ambientais aplicados a empresas que causam alto e negativo impacto ambiental;

14- a própria escolha de um ministro do Meio Ambiente que, além de já ter sido condenado por crime ambiental, não considera para sua prática de trabalho a temática do aquecimento global, e que defende os interesses do agronegócio em detrimento dos ambientais;

15- O exemplo de impunidade ao exonerar o servidor que multou o atual presidente por pesca ilegal em 2012;

16- a revisão da lista de espécies aquáticas ameaçadas após um pedido do Ministério da Agricultura;

17- a autorização, por parte do presidente do Ibama, do leilão de sete blocos de petróleo localizados em regiões de alta sensibilidade ambiental, como no Arquipélago de Abrolhos, ignorando os relatórios técnicos da própria equipe do Instituto;

18- o possível desalojamento de centenas de famílias quilombolas e de descendentes dos índios Tapuias que já residem há séculos na região do entorno do Centro de Lançamento de Alcântara (MA), devido à expansão e concessão do mesmo aos EUA;

19- a revogação do decreto que proibia o avanço das plantações de cana-de- açúcar sobre os biomas pantaneiro e amazônico;

20- o posicionamento contrário ao Acordo de Paris;

21- a fragilização da reforma agrária e da agricultura familiar;

22- a decisão sobre a privatização da Eletrobras, que acarretará na entrega do controle da energia elétrica do país para empresas estrangeiras, afetando a soberania nacional. Sem considerar que a empresa tanto já passou por um processo de enxugamento de pessoal, como também vem apresentando lucros bilionários desde 2018;

23- a modificação da futura lei de licenciamento ambiental, tornando-a uma exceção ao invés de regra;

24- a privatização do setor de saneamento, algo que já apresentou resultados negativos onde foi implantado, e indo de encontro ao atual movimento de grandes cidades mundiais, que estão reestatizando o setor;

25- a nomeação de um religioso evangelizador para coordenar as ações referentes aos indígenas isolados, sendo que a igreja do mesmo já recebeu acusações de exploração laboral e sexual de indígenas;

26- a regulamentação da exploração de minerais, recursos hídricos para construção de hidrelétricas, e de petróleo e gás em Terras Indígenas.”

Assim, contemplando esses 26 atos criminosos de lesa humanidade em conjunto, explica- se como estão destruindo a imagem internacional ambiental e de direitos humanos do Brasil, com seríssimas e comprometedoras consequências para os interesses comerciais e estratégicos do Brasil. Na mesma linha, a destruição ativa e estimulada de biomas brasileiros fragiliza nossa soberania, já que potencias mundiais e o resto da humanidade começam a se ver ameaçados pelas consequências para as mudanças climáticas já abundantemente demonstradas pela ciência. Ante a grave situação ambiental, no dia 10 de junho de 2020, o Fórum de Ex-ministros do Meio Ambiente, composto por Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, Izabella Teixeira, José Carlos Carvalho, José Goldemberg, Marina Silva, Rubens Ricupero, Sarney Filho, publicou uma carta aberta em defesa da democracia e da sustentabilidade, litteris: [...]

II.b Do Abuso De Poder ao Determinar a Liberação De Maquinários Utilizados Na Prática de Crimes e Infrações Ambientais e ao Punir Fiscais Ambientais por Aplicarem a Lei [...]”

(Pedido 51 – Ambientalistas - Rafael Echeverria Lopes, Enilde Neres Martins, Humberto Adami Santos Junior, André Rodolfo de Lima e outros - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0051/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/06/denuncia-acao-cidada-versao1.pdf)

“DEMISSÃO DO MINISTRO DA JUSTIÇA, SERGIO MORO, E A INTERFERÊNCIA POLÍTICA NA POLÍCIA FEDERAL:

[...]

O Representado insistiu na troca do comando inclusive por conta de investigações em curso no Supremo Tribunal Federal. Segundo Moro, “o Presidente sinalizou que tinha preocupações em curso no Supremo Tribunal Federal e que a troca seria oportuna neste sentido”.

Uma vez evidenciado o animus do Representado, bem como sua pretensão de interferir nos trabalhos da Polícia Federal, resta-nos analisar a motivação de tal conduta.

A conclusão é óbvia e ululante: os filhos do Presidente são investigados pela Polícia Federal.

Vejamos:

- Flávio Bolsonaro (Rachadinha) - Queiroz passou a ser investigado em 2018 depois que o COAF (atual Unidade de Inteligência Financeira) identificou diversas transações suspeitas ligadas ao ex-assessor. Segundo o órgão, Queiroz movimentou R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, valor que seria incompatível com seu patrimônio e ocupação, e recebeu transferências em sua conta de sete servidores que passaram pelo gabinete de Flávio.

- Carlos Bolsonaro (Rachadinha e funcionários fantasmas) - passou a ser investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro após reportagens apontarem que assessores nomeados em seu gabinete nunca exerceram de fato essas funções.21

- Eduardo Bolsonaro (Disseminação de fake news e organização de milícias digitais para divulgação de fake news e assassinatos de reputações) - inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes do STF - A CPMI das Fake News identificou com ajuda da PF participação de assessor do Eduardo Bolsonaro, o computador de Guimarães está vinculado à conta do Instagram “Bolsofeios , que faz vários ataques contra jornalistas e críticos do governo; Depoimentos à comissão apontaram a participação de Carlos e de seu irmão Eduardo Bolsonaro em campanhas na internet para atacar adversários políticos, com uso frequente de notícias falsas.

- Manifestações Pró AI-5 e fechamento do Congresso e do STF: O Min. Alexandre de Moraes determinou à Polícia Federal que prossiga com investigações contra parlamentares ligados ao Presidente da República em atos favoráveis à extinção dos poderes e novo AI-5.

A prova cabal e irrefutável se deu em razão das mensagens via WhatsApp enviadas por Bolsonaro ao Ministro Sérgio Moro, nas quais aquele demonstra preocupação com investigações em curso na Polícia Federal e reitera a necessidade de substituição no comando da instituição.

Nos prints da conversa entre o Ministro e o Presidente da República24, depreende-se que Bolsonaro envia a Moro o link de uma reportagem do portal “O Antagonista”

constando que a Polícia Federal está “na cola” de 10 a 12 deputados aliados do Presidente. Vejamos:

[prints]

Bolsonaro reforça: “mais um motivo para a troca”, referindo-se ao desejo de substituir Maurício Valeixo no comando da PF, uma vez que este não atenderia seu desejo de interferir politicamente na instituição.

[prints]

O Ministro responde a Boslonaro que aquelas investigações não haviam sido solicitadas por Valeixo e faz alusão ao inquérito das fake news instalado de ofício pelo Presidente do STF, Min. , no âmbito do Tribunal: “esse inquérito é conduzido pelo ministro Alexandre [de Moraes], no STF [Supremo Tribunal Federal]”.

[prints]

Moro continua: “diligências por ele determinadas, quebras por ele determinadas, buscas por ele determinadas”. E finaliza: “conversamos em seguida, às 0900”, sinalizando reunião que eles teriam no dia seguinte, 5ª feira, dia 23 de abril de 2020, às 9 horas.

[prints]

Incontestável, portanto, o interesse do Presidente da República em substituir o Diretor da Polícia Federal com o exclusivo intuito de nomear em seu lugar alguém que atendesse caprichosamente aos seus interesses espúrios, que pudesse fornecer informações confidenciais e, até mesmo, alterar a condução de processos de investigação. Insta salientar que a conversa acima colacionada é apenas um trecho cedido pelo ex-Ministro Moro à emissora Rede Globo, deixando clara a existência de mais conversas de mesmo – ou até pior – teor.

[...]

A preocupação em realizar a substituição na PF foi tamanha que Bolsonaro e seus prosélitos chegaram ao absurdo de apostar a assinatura de Sérgio Moro em documento que ele não assinou. Em flagrante falsidade, o documento de exoneração do então direto Aleixo foi publicado com a assinatura do então Ministro, mas o próprio Moro afirmou não ter assinado nada nesse teor.

O fato foi confessado pelo próprio governo, que posteriormente refez o ato de exoneração – fato que não elida a conduta criminosa anterior”.

(Pedido nº 34 – Proposto por: MBL - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-034/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/04/pedido0024-ocultado.pdf)

40. O pedido de impeachment feito pela deputada Joice Hasselman (PSL-SP) toma como base a coletiva de imprensa realizada pelo ex-ministro Sérgio Moro no dia 24 de abril – e inclusive cita diversos trechos entre aspas. Primeiro, argumenta que o ex-diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo, foi demitido pelo presidente, mas no Diário Oficial da União o decreto saiu como “exonerado a pedido”. “O ex-ministro Sérgio Moro classificou a voluntariedade da exoneração, expressamente, como inverídica”, afirma. O objetivo de usar dados “ideologicamente falsos” seria dissolver “eventuais críticas” pela demissão. O que é crime, de acordo com o artigo 299 do código penal, ou seja, omitir declaração que deveria constar em um documento público com o fim de “alterar a verdade sobre fato jurídico relevante”. Embora seja um crime comum, o documento argumenta que a ação viola o artigo 7º da Lei de Crimes de Responsabilidade (1079/50), que determina como motivo possível “permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública”. O segundo fato é “ainda mais grave”, segundo Hasselman. O pedido ressalta que os filhos do presidente são objeto de investigações e que Jair Bolsonaro “gostaria de colocar no comando da Polícia Federal alguém que estivesse em condição de subserviência para com ele, podendo, ao seu mando, repassar essas informações sensíveis, especialmente se englobarem qualquer consideração sobre os seus filhos, para então tomar as medidas cabíveis e manipular tais informações”. Para corroborar, o documento cita textualmente Sérgio Moro, a respeito da troca na PF: “Falei para o presidente que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo”. O crime estaria tipificado no artigo 7º da Lei dos Crimes de Responsabilidade, pois teria tentado “servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua”.(Pedido nº 32 – Proposto por: Joice Hasselmann - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-032/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/04/pedido0022- ocultado.pdf)

41. Já a imputação de subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social é desenvolvida de modo a considerar que “qualquer nefasta pretensão de subverter a

ordem política e social perpassaria, com a utilização das Forças Armadas, por meios violentos ou baseados em graves ameaças institucionais”, conforme fundamentação detalhada no Pedido de Impeachment de autoria dos líderes da oposição e da minoria no Congresso.

“Justamente por ser conduta absolutamente grave, e dado o passado sombrio vivido pelas instituições democráticas brasileiras, tal conduta foi elevada ao patamar de crime de responsabilidade. É claro que, no passado, mesmo a tipificação político-administrativa não impediu a subversão da ordem política e social, provavelmente porque se percebeu a movimentação no subterrâneo dessa parapolítica tarde demais. Agora, felizmente, ainda parece ser cedo o suficiente para que nós, representantes democraticamente eleitos pelo povo e investidos no múnus de adequadamente preservar o texto constitucional, que juramos proteger e resguardar desde os primeiros dias de nossos mandatos, tomemos as rédeas da história e evitemos que a mesma narrativa trágica se repita. Contudo, é premente que se faça isso aqui e agora, pois deixar que arroubos autoritários consigam exalar seus ares pelos seios da sociedade - principalmente daquela parcela que detém a força das armas - pode ser o estopim para que irrompa a temida e combatida subversão da ordem como conhecemos”. (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf

42. O tema da incitação de militares à desobediência à lei ou infração à disciplina mereceu a seguinte abordagem:

“a troca do comando do Ministério da Defesa, anteriormente ocupado por cidadão que gozava de integridade e de respeitabilidade por todos os Poderes constituídos, bem como a consequente troca em todos os comandos das Forças Armadas não pode se prestar a nada senão à mera e vazia incitação dos militares à desobediência à lei ou infração à disciplina. Trata-se do fenômeno de tentativa de cooptação dos quartéis, incitando uma espécie de revolta natural de militares com o status quo, para que almejem à mudança e à ruptura da condução dos rumos da história. Nessa esteira, e aqui afirmamos com supedâneo nos estudos históricos, Sr. Presidente, não há precedentes mundiais de como levantes como o que ora se pretende iniciar tenham acabado bem. Não há, Presidente”. (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf)

“8. No dia 19/04/2020, conforme é notório, o denunciado participou de manifestação pública convocada com o fim de pedir intervenção militar nas instituições republicanas, notadamente nos Órgãos do Poder Legislativo e Poder Judiciário, tendo sido nominado textualmente pelos manifestantes a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o STF.

9. Ao participar de manifestação em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, o Exmo. Sr. Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, incidiu na conduta tipificada no art. 7º, incisos 7 e 8, da Lei 1079/50:

São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

(...)

7 - incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina;

8 - provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis;

10. A Administração Pública é escalonada verticalmente, com regramento legal alusivo ‡ hierarquia e disciplina, poderes/deveres que regem a administração pública e seus funcionários.

11. O Presidente da República é o comandante das Forças Armadas, chefiadas pelo Ministro da Defesa que é seu auxiliar.

12. Ao incitar militares contra os poderes constituídos, o Exmo. Sr. Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, inequivocamente, incitou a desobediência à lei e infração à disciplina, que, em se tratando de servidores públicos militares, é mais exigida nos termos da ordem jurídica”.

Obs: Diferente dos demais pedidos que apontado a manifestação do dia 15 de março para retratar as posturas antidemocráticas de Bolsonaro, o pedido da ABI indica a participação na manifestação de 19 de abril em frente aos quartéis. Segundo o Presidente da ABI, “Escolhemos a da frente do quartel porque essa foi uma ofensa grave às Forças Armadas”, pois “Um Comandante Supremo não podia participar de uma manifestação golpista na frente do Quartel General do Exército. Isso é crime”.

(Pedido nº 38 – Proposto ABI - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 038/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0027-ocultado.pdf)

43. A tipificação pela qual o presidente da República provocou animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis foi assim abordada:

“com a provocação da animosidade entre as classes armadas contra as instituições civis. É o que se viu na manifestação da própria Deputada Federal Bia Kicis, por exemplo, que é nitidamente uma das apoiadoras mais ferrenhas do Presidente da República, quando se manifestou em tom aparentemente golpista e subversivo no tocante ao episódio do policial morto por outros policiais em Salvador. A manifestação da Deputada, que foi acompanhada por familiares do Presidente, dá o tom de como vem sendo conduzida a tentativa de instalação do projeto de quebra da ordem democrática arquitetada pelo Presidente, sempre tendo por base a tentativa de ganhar apoio nos quartéis”. (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf )

44. Por seu turno, a violação patente de direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição foi amplamente cotejada, nos seguintes termos em pedidos de entidades estudantis:

Gestão da pandemia e impacto sobre vida e saúde individual e coletiva da população - Decisão política do Presidente da República de sabotar as principais iniciativas de combate à Covid-19: “Resta plenamente configurado, portanto, que o Sr. Jair Messias Bolsonaro optou de modo consciente, informado e reiterado por apostar com a vida dos brasileiros, levando parcela da população a não aderir a cuidados sanitários elementares – o que foi decisivo para que os esforços empreendidos por outras autoridades públicas, pela comunidade científica e pela imprensa profissional não produzissem os resultados esperados. Por esse crime, que atenta contra os bens jurídicos da vida e da saúde individual e coletiva dos brasileiros, o Sr. Jair Messias Bolsonaro deve ser processado e condenado pelo

Congresso Nacional, na forma do art. 85, III, CRFB c/c art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/50”.

Discursos e maus exemplos de desobediência sanitária que desorientam a população e minam os esforços de combate à pandemia. Retórica e comportamento negacionista. Exortação do Presidente aos seus apoiadores para que invadissem hospitais com o alegado motivo de comprovar os números de pessoas contaminadas e mortas pela Covid- 19. Mentiras sobre a efetividade do lockdown. Recusa em desempenhar as responsabilidades federais no combate ao vírus e o abandono dos entes federativos à própria sorte: “Outra evidência da conduta omissiva do atual ocupante da Presidência da República é que, no lugar de uma Comissão Nacional de Combate à Pandemia ou algum órgão semelhante – que apenas recentemente começou a ser organizado –, vemos sucessivas tentativas do Fórum Nacional de Governadores de agir de maneira coordenada, além de frequentes apelos desse mesmo grupo, através de notas públicas e ofícios, para que o Ministério da Saúde e o Sr. Jair Messias Bolsonaro façam o seu trabalho [...] Mas os prejuízos causados pela recusa da União em assumir seu papel de coordenação do combate à pandemia vão muito além da questão das vacinas, comprometendo aspectos centrais da gestão do sistema de saúde. [...] Mas a falta de compromisso da União Federal com o sistema de saúde brasileiro se fez e faz presente em ainda outros exemplos recentes, cuja gravidade impressiona. O primeiro deles é a escandalosa conduta omissiva do Ministério da Saúde que permitiu a crise de oxigênio no Amazonas em janeiro de 2021, causando a morte de pelo menos 51 pessoas por falta de cilindros de oxigênio. Apesar de alertado a tempo de evitar a falta de insumo hospitalar indispensável e em alta demanda no tratamento da Covid-19, o governo federal nada fez para evitar a tragédia. Muito pelo contrário: seguindo recomendação do Ministério da Saúde, o governo elevou o imposto de importação sobre cilindros de oxigênio semanas antes do colapso do sistema de saúde de Manaus; e voos da Força Aérea Brasileira que abasteceriam a cidade simplesmente deixaram de ocorrer na véspera do desastre. Os últimos alertas sobre o risco de que desabastecimento de remédios cruciais usados no combate contra a covid-19, como os necessários à intubação de pacientes, e a confissão do Ministério da Saúde de que está há quatro meses sem obter dados sobre os estoques de seringas e agulhas para vacinação nos estados60 indicam que o descompromisso da pasta continua e que o povo brasileiro ainda está sujeito a novas crises evitáveis decorrente da falta de insumos. Com efeito, o Conselho Nacional de Saúde tornou público que o Ministério da Saúde cancelou, em agosto de 2020, a aquisição de

medicamentos do “kit intubação”, colocando “em risco toda a estrutura planejada para o atendimento de saúde durante a pandemia do novo coronavírus, pois, mesmo com leitos disponíveis, sem esses medicamentos não é possível realizar o procedimento, podendo levar todo o sistema de saúde ao colapso”. Outro exemplo recente foi a redução dos repasses da União aos estados para o financiamento de leitos de UTIs no início de 2021. Se até dezembro de 2020 o Ministério da Saúde financiava cerca de 60% dos leitos de UTI em todo o país, esse número chegou a cair para cerca de 15% em 2021, forçando os entes federativos a assumir mais essa despesa e a recorrerem ao Poder Judiciário. Tudo isso em um momento no qual o Brasil assiste ao aumento vertiginoso das taxas de ocupação de leitos de UTI, com 25 das 27 capitais brasileiras apresentando taxas de ocupação iguais ou superiores a 80%. A desculpa usada pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro para justificar todos esses crimes e furtar-se a cumprir seus deveres constitucionais e legais é amplamente conhecida: as decisões do Supremo Tribunal Federal que reconheceram a competência e autonomia dos estados e municípios para a adoção de medidas restritivas para o combate à pandemia (ADPF 671, ADPF 672, ADI 6341 e ADI 6364). 65 O Presidente da República espalha, aos quatro ventos, a informação falsa de que o STF teria “atado as suas mãos” e que ele nada mais poderia fazer para conter a Covid-19: O Presidente da República espalha, aos quatro ventos, a informação falsa de que o STF teria “atado as suas mãos” e que ele nada mais poderia fazer para conter a Covid-19: “Tô de mãos atadas por decisão do STF” (05 de abril de 2020) “O Supremo Tribunal Federal decidiu que os governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política, inclusive isolamento. Agora está vindo uma onda de desemprego enorme aí. Informais e o pessoal formal também. Não queiram colocar no meu colo. Compete aos governadores a solução desse problema que está acontecendo quase no Brasil todo.” (07 de junho de 2020) “Eu apelo aqui já que me foi castrada a autoridade, repensem a política do fecha tudo. Venham para o meio do povo. Não fiquem me acusando de fazer aglomeração. Vamos combater o vírus, mas não de forma burra, ignorante, suicida. Como gostaria de ter o poder para definir essa política.” (04 de março de 2021) “Os governadores e prefeitos, por decisão do Supremo Tribunal Federal, tomaram a dianteira para aplicar a política de combate ao coronavírus porque ao governo federal basicamente cabia o envio de recursos” (11 de março de 2021) O esforço em continuar a antagonizar governadores e em os culpabilizar pelos reflexos econômicos da pandemia se materializou, nos últimos dias, através do acionamento do STF em petição assinada pelo próprio Presidente da República postulando a declaração de inconstitucionalidade de decretos dos governos do Distrito Federal, da e do que determinaram restrições de circulação de pessoas diante do aumento expressivo do

número de mortes e transmissão da Covid-19. Quem sabe o Sr. Jair Messias Bolsonaro objetivasse também, com a ação, nova decisão da Suprema Corte que possa usar como cortina de fumaça e como desculpa para o seu comportamento. Ocorre que, em seu esforço de se eximir de um tipo de responsabilidade política, o Presidente da República incorreu em outra infinitamente mais grave: a responsabilidade pelas mortes evitáveis de dezenas de milhares de brasileiros. A politização criminosa das iniciativas federais de combate à Covid-19, objetivando também prejudicar seus adversários políticos nos governos estaduais, constitui inaceitável abuso dos poderes da Presidência da República e atenta contra os direitos fundamentais à vida e à saúde coletiva e individual dos brasileiros (art. 85, III, CRFB c/c art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/50)” Interferência direta sobre o desempenho desastroso do Ministério da Saúde e demissão de Ministros que apresentaram resistência a endossar a empreitada fúnebre do Sr. Jair Bolsonaro “[...] as seguidas mudanças no cargo de Ministro da Saúde – e o hiato no qual a pasta foi comandada por um ministro interino – corroboram os crimes de responsabilidade de atentado contra a saúde pública praticados pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro, pois demonstram que o péssimo desempenho do Ministério no combate à pandemia é resultado de sua interferência direta sobre a pasta. Ao contrário do que se poderia esperar, o envolvimento do Presidente Jair Bolsonaro sobre as políticas desenvolvidas pelo Ministério da Saúde visou não à implementação das medidas sanitárias mais indicadas por médicos e cientistas, mas a obediência aos seus caprichos eleitoreiros e seu negacionismo. [...] A exoneração do Ministro Mandetta ocorreu logo depois, em 16 de abril de 2020, e foi acompanhada de sua substituição pelo Sr. Nelson Teich. Mas a pressão da Presidência da República para que o Ministério da Saúde adotasse orientações no sentido oposto ao das principais autoridades sanitárias continuou e levou o Ministro Teich a renunciar ao cargo menos de um mês depois de tê-lo assumido. [...] Foi, entretanto, a insistência do Presidente da República na edição de uma norma pelo Ministério da Saúde que recomendasse o uso de cloroquina o que levou o Sr. Nelson Teich ao limite. O Brasil ficou por quatro meses sem um Ministro da Saúde efetivo. Mas, ao contrário dos seus antecessores, o General Pazuello aderiu rapidamente às diretrizes fúnebres propostas pelo Presidente Jair Bolsonaro, viabilizando finalmente a entrega do Ministério da Saúde a uma gestão omissa e contrária às medidas recomendadas de saúde pública. O agora ex-Ministro Pazuello é cúmplice e coautor de diversos dos crimes de responsabilidade descritos na presente Denúncia. Sob sua gestão, ficou claro que o verdadeiro Ministro da Saúde brasileiro é o próprio Sr. Jair Messias Bolsonaro, que interveio a torto e a direito para a promoção de políticas que contribuíram diretamente para a situação calamitosa que hoje vivemos. Por tudo isso, reafirma-se que as condutas

narradas na presente Denúncia foram praticadas de forma consciente e deliberada pelo Presidente da República, configurando afronta aos direitos fundamentais à vida e à saúde coletiva e individual da população brasileira (art. 85, III, CRFB c/c art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/50)”

Boicote e atraso na vacinação diretamente imputáveis ao Presidente da República pelos seguintes fundamentos: “[...] O Presidente da República decidiu (i) boicotar iniciativas de aquisição e desenvolvimento de imunizantes; (ii) criar conflitos diplomáticos com países de que dependemos para a obtenção dos insumos necessários à produção de vacinas, atrasando esse processo; e (iii) desestimular a vacinação, promovendo a desconfiança da população nos imunizantes disponíveis. [...] Estima-se que até 127 mil vidas poderiam ser poupadas da Covid-19 até o fim de 2021 se o Brasil tivesse começado a vacinar em massa – algo em torno de 2 milhões de doses aplicadas ao dia – desde o dia 21 de janeiro. De acordo com o Professor da Faculdade de Medicina da USP, Eduardo Massad, “era perfeitamente possível chegar a esse patamar de vacinação no final de janeiro se o governo federal tivesse se planejado corretamente”. O que se viu, entretanto, foi o exato oposto: a vacinação no Brasil começou de forma irregular, após incessante obstrução por parte do Sr. Jair Messias Bolsonaro, e continuará a ser executada de forma irregular pela recusa e atraso do seu governo em garantir à população uma oferta adequada de vacinas. Ninguém esquecerá que a sabotagem à vacinação tomou forma concreta em junho de 2020, quando impacientes com a hesitação do governo do Sr. Jair Messias Bolsonaro em negociar a compra antecipada de imunizantes, os institutos de pesquisa Fiocruz e Butantan tomaram para si essa responsabilidade e iniciaram tratativas, respectivamente, para a compra da Oxford-AstraZeneca e para a transferência de tecnologia para a produção da CoronaVac. Embora o governo federal tenha aceitado a proposta da Fiocruz, ignorou por três vezes e depois se recusou publicamente a adquirir as vacinas do Butantan, produzidas em parceria com a empresa chinesa Sinovac Life Science, atrapalhando, naquilo que pôde, o acordo firmado entre os laboratórios. Recentemente, veio a público também que o Ministério da Saúde ignorou seguidas ofertas da Pfizer, ainda em agosto de 2020, para o fornecimento de imunizantes, sendo agora absolutamente claro que o Presidência da República permitiu que o Brasil figurasse no fim da fila global de aquisição de vacinas. [...] Deve- se recordar que, em 20 de outubro de 2020, após reunião com todos os governadores do Brasil, o Ministro da Saúde tornou pública a intenção de adquirir 46 milhões de doses da CoronaVac, 89 inclusive com o envio de ofício ao Diretor-Geral do Instituto Butantan, Sr. Dimas Covas.90 No dia seguinte, 21 de outubro de 2020, o Sr. Jair

Messias Bolsonaro utilizou o twitter para desautorizar o Ministro da Saúde, declarando que não autorizaria a compra da “vacina chinesa”. [...] A negativa de comprar vacina em fase de testes é absolutamente contraditória, visto que o governo federal já havia editado a Medida Provisória nº 994/2020, que abria crédito extraordinário, em favor do Ministério da Saúde, exatamente para “garantir ações necessárias à produção e disponibilização de possível vacina segura e eficaz na imunização da população brasileira contra o coronavírus (Covid19)”. O governo federal, ademais, não se opôs à aquisição da Oxford- AstraZeneca, que, como a CoronaVac, ainda não tinha obtido a autorização da Anvisa. Dessa forma, a decisão arbitrária de abrir mão de 46 milhões de doses deveu-se, conforme confessado no próprio tweet, a uma disputa política com o Governador do Estado de São Paulo, Sr. João Dória, e a uma opção diplomaticamente lamentável de provocar o maior parceiro comercial do Brasil, apelidando o imunizante do Butantan de “Vachina”. Vejam- se, ainda, os seguintes pronunciamentos: “A da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população. [...]. A China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido por lá. [...]. Eu não tomo a vacina, não interessa se tem uma ordem, seja de quem for, aqui no Brasil para tomar a vacina, eu não vou tomar a vacina". (21 de outubro de 2020) “Toda e qualquer vacina está descartada por enquanto. A vacina precisa de comprovação científica para ser usada, não é como a hidroxicloroquina” (21 de outubro de 2020) “[Dirigindo-se em live a João Doria:] Ninguém vai tomar a sua vacina na marra não, tá ok? Procura outro. E eu, que sou governo, o dinheiro não é meu, é do povo, não vai comprar a vacina também não, tá ok? Procura outro para pagar a tua vacina aí". (29 de outubro de 2020) [...] Com o tempo, entretanto, a realidade se impôs. As vacinas se mostraram eficazes e seguras e a vacinação começou a ocorrer no Reino Unido (com vacina da Pfizer) e, em seguida, em diversos outros países. O Brasil ficou para trás, e o Presidente Jair Bolsonaro continuou a desestimular a vacinação, avisando que não tomaria a dose, propagandeando efeitos colaterais absurdos e inexistentes, e espalhando a desinformação de que quem já fora contaminado pelo Covid-19 não precisaria ser imunizado. Veja-se: “A vacina, uma vez certificada pela Anvisa, vai ser extensiva a todos que queiram tomá-la. Eu não vou tomar! Alguns falam que eu estou dando péssimo exemplo. Ô imbecil, ô idiota, que está dizendo que eu estou dando péssimo exemplo: Eu já tive o vírus, eu já tenho anticorpos. Para que tomar vacina de novo?! [...] Na Pfizer está bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um chipanz… se você virar um jacaré, é problema de você, pô. Não vou falar outro bicho senão eu vou falar besteira aqui. Se você virar o Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem

começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. Ou o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas. Como é que você pode obrigar alguém a tomar uma vacina que não se completou a terceira fase ainda? Que está na experimental?” (17 de dezembro de 2020). [...] É importante registrar que as alegadas “cláusulas abusivas” apresentadas pela Pfizer, foram aceitas por governos de outros países como México, Chile, Peru, Costa Rica e Equador, que deram início às suas campanhas de vacinação antes do Brasil e, com isso, salvaram milhares de vidas a mais. Ademais, a isenção de responsabilidade da empresa por efeitos adversos da vacina, alardeada pelo governo como empecilho à contratação, não impediu que governo fechasse, ainda em 2020, por meio da Fiocruz, contrato com a Oxford-AstraZeneca, que contém a mesma regra. A atual dificuldade do governo federal em conseguir vacinas é, portanto, diretamente imputável a uma série de decisões e omissões desastrosas do Sr. Jair Messias Bolsonaro, que agora tenta recuperar o tempo perdido e as oportunidades desprezadas, apelando à China e à Pfizer por prioridade no envio de insumos e no fornecimento de doses. O ensaio de uma mudança parcial de comportamento não configura qualquer espécie de arrependimento eficaz, mas uma verdadeira confissão de culpa do Sr. Jair Messias Bolsonaro e do seu governo pela morte evitável de dezenas de milhares de brasileiros. O Presidente da República agiu e se omitiu de forma a colocar em risco a vida e a saúde da população, devendo, também por esses fatos, ser processado e condenado pelo Congresso Nacional, na forma do art. 85, III, CRFB c/c art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/50”. (Pedidos 75-104 e 108-113 – Autores: Entidades de direito e entidades estudantis – https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0108-a-0112/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/03/6e4ef0d317134b9186e5b9b92a187424-0001- convertido-mesclado.pdf)

Desperdício de recursos e descompromisso com vidas humanas na promoção de tratamentos ineficazes “Ao mesmo tempo em que rejeitava as medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias mundiais para a contenção da Covid-19 e boicotava os esforços de aquisição de vacinas, o Sr. Jair Messias Bolsonaro decidiu utilizar a Presidência da República para propagar “curas milagrosas”, minando a credibilidade do Poder Público e desperdiçando recursos públicos valiosos nesse processo. Afinal, por que apostar em vacinação, em distanciamento e no uso de máscaras – iniciativas que demandam tempo, investimento e que requerem disciplina e sacrifícios da população – se o Presidente

poderia tentar engabelar parcela dos brasileiros, fazendo-a acreditar que poderia se proteger do vírus através da ingestão de simples comprimidos, sem eficácia comprovada?! O “tratamento precoce” à Covid-19, propagado pelo Presidente da República e seus apoiadores, seria uma forma de diminuir a contaminação ou os óbitos pelo novo coronavírus e inclui o uso de medicamentos que vão de antimaláricos até remédios para verme. Ocorre que não há qualquer comprovação científica da eficácia profilática desses fármacos (como a hidroxicloroquina, azitromicina, nitazoxanida e ivermectina). Muito pelo contrário, alguns desses medicamentos, podem comprometer ou agravar o quadro de saúde daqueles que os utilizam. É o caso da hidroxicloroquina – justamente o medicamento símbolo do tratamento precoce propagandeado pelo Presidente da República – que teve a sua utilização seguidamente desestimulada pela OMS: “A OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou a cloroquina da lista de drogas que seriam testadas para tratamento da Covid-19 (doença provocada pelo novo coronavírus) no programa internacional Solidarity. Na segunda (25), a entidade havia anunciado a suspensão dos testes com hidroxicloroquina, para avaliar a segurança do medicamento. Estudo publicado na revista médica inglesa Lancet com dados de 96 mil pacientes publicado na sexta-feira (22) indicava que as duas drogas, hidroxicloroquina e cloroquina, estavam relacionadas a maior mortalidade”. 111 (27 de março de 2020) [...]

Em 21 março de 2020, o Sr. Jair Messias Bolsonaro seguiu o exemplo do Presidente norte-americano Donald Trump, que defendera o uso da cloroquina, e anunciou que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército iria ampliar a produção do medicamento. [...] Mesmo a Lei nº 13.979/2020, ao tratar especificamente das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública criada pela Covid-19, deixou claro em seu art. 3º, §1º, que o largo elenco de providências sanitárias nela previstas “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”. Dessa forma, todas as ações do Sr. Jair Messias Bolsonaro atinentes à promoção do tratamento precoce com a hidroxicloroquina e seus congêneres são condutas absolutamente ilegais e criminosas, por não contarem com o necessário respaldo

científico. O emprego de recursos públicos e da estrutura do SUS para divulgar e distribuir medicamentos para o tratamento de doenças sem que tal uso tenha sido aprovado pela Anvisa configuraram atentados à saúde pública, praticados por ordens diretas do Sr. Jair Messias Bolsonaro. Em agosto de 2020, o governo federal aumentou o investimento em propagandas de desinformação, orientando a população que exigisse dos médicos o “tratamento precoce” já nas primeiras suspeitas de Covid-19. De acordo com publicação que consta no próprio sítio eletrônico do Ministério da Saúde: [...]

A distorção na orientação sanitária oferecida pelo Ministério da Saúde se agravou, a não mais poder, com o lançamento do aplicativo TrateCOV em 14 de janeiro de 2021. A justificativa oficial para o TrateCOV foi que a plataforma traria “ao médico cadastrado um ponto a ponto da doença, guiado por rigorosos critérios clínicos, que ajudam a diagnosticar os pacientes com mais rapidez. Depois disso, o TrateCOV sugere algumas opções terapêuticas disponíveis na literatura científica atualizada, sugerindo a prescrição de medicamentos. Assim, o diagnóstico sai mais rápido e o tratamento tem início precocemente, contribuindo na redução de internações e óbitos por Covid-19”.

A realidade, entretanto, foi mais um escândalo: o aplicativo do Ministério da Saúde era acessível a todos os cidadãos – não só a médicos – e receitava cloroquina e outros vermífugos e antibióticos sem eficácia comprovada para tratamento de Covid-19 para quase todos os tipos de situações e sintomas, de náusea a dor nas costas. Conforme apurou a agência de checagem Lupa, o resultado do “diagnóstico” oferecido pelo aplicativo sempre incluía integrantes do que ficou conhecido como “Kit Covid”: [...] Todo esse desperdício de esforço, de recursos e de atenção públicas acontecia, é bom frisar, durante a crise de oxigênio que afetou a região norte do Brasil. Como se viu, o governo federal foi omisso diante do colapso sanitário de Manaus, mas pressionou o município pela a administração do “tratamento precoce” nos seus cidadãos. A iniquidade do governo liderado pelo Presidente Jair Bolsonaro mostrou, mais uma vez, não ter qualquer limite. Para além do atentado à saúde pública, resta claro que o comportamento do Sr. Jair Messias Bolsonaro a respeito da propaganda, produção e distribuição de cloroquina e afins configuram improbidade administrativa, causadora de dano ao Erário. A autorização de despesa com medicamentos sem registros e autorização da Anvisa é, simplesmente, autorizar despesa proibida por lei (art. 10, IX, da Lei nº 8.429/92) e que já se encontra sob a investigação do Tribunal de Contas da União.

[...]

No lugar da adoção de providências sérias, o governo federal desperdiça mais uma gama de recursos e atenção com espécie de peregrinação à Israel, em busca de um “novo milagre”: um spray nasal em fase de testes que, muito evidentemente, jamais seria capaz de solucionar a tempo a crise sanitária brasileira, servindo, no máximo, como substituto da hidroxicloroquina nas tentativas de enganar a população.130 116. Por tudo isso, também restam configurados os crimes de responsabilidade de atentado aos direitos fundamentais à vida e à saúde dos brasileiros (art. 85, III, CRFB c/c art. 7º, item 9, da Lei nº 1.079/50) e de atentado à probidade administrativa (art. 85, V, CRFB)”.

(Pedidos 75-104 e 108-113 – Autores: Entidades de direito e entidades estudantis – https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0108-a-0112/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/03/6e4ef0d317134b9186e5b9b92a187424-0001- convertido-mesclado.pdf)

45. Médicos e cientistas ingressaram com denúncia louvada nos seguintes argumentos: Violação ao direito à saúde dos brasileiros e brasileiros em razão da má gestão da pandemia. A denúncia limita-se a fatos ocorridos entre 24 de março de 2020 e 20 de janeiro de 2021 e restritos às ações do Sr. JAIR MESSIAS BOLSONARO na condução do governo brasileiro em resposta à pandemia de Covid- 19. Durante 54 páginas, os proponentes citam e datam as inúmeras ocasiões em que o presidente Jair Bolsonaro “usou seus poderes legais e sua força política para desacreditar medidas sanitárias de eficácia comprovada e desorientar a população cuja saúde deveria proteger”. Apesar de citarem muitas ocasiões, para os autores o auge teria sido a morte de pacientes sem oxigênio em hospitais de Manaus, no Amazonas, e Faro, no Pará. Os acontecimentos nas cidades do norte do país são imputados ao governo federal uma vez que o Planalto teria conhecimento da falta de insumo na região e foi omisso, além de promover o que chamam de “desinformação epidemiológica” ao defender o chamado “tratamento precoce”, comprovadamente ineficaz. A defesa insistente no tratamento através de remédios ineficazes, como a cloroquina e a ivermectina, é destacada no pedido como uma das “muitas formas de desinformação ventiladas pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro”. Também recebem destaque ações do presidente que os autores chamam de “boicote à vacina por questões políticas”, entre elas, o

cancelamento da compra de vacinas do laboratório chinês Sinovac em outubro de 2020 e a omissão na compra de vacinas da Pfizer, oferecida pela farmacêutica ao governo brasileiro ainda em agosto de 2020. Dessa forma, os denunciantes acusam Bolsonaro de violação ao direito à saúde dos brasileiros, garantido pela Constituição Federal. Pelo art. 7º da lei de Impeachment (1079/50), “violar patentemente qualquer direito ou garantia individual”, constitui crime de responsabilidade. (Pedido nº 69 – Autores: Médicos e cientistas – Ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e outras sete autoridades médicas como a epidemiologista, Ethel Maciel e o ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, Daniel Araújo Dourado e outros - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-0069/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido0069.pdf).

46. No mesmo sentido:

A justificativa, desta vez, teve como base a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus (AM) que levou inúmeras pessoas à morte por asfixia. O pedido também levou em consideração a postura do governo durante toda a pandemia de coronavírus desde a sua chegada no Brasil em março de 2020, acusando o presidente de descumprir “diuturnamente” o direito à saúde estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal. Para os autores, Bolsonaro foi negligente e omisso em diversos momentos, desde quando minimizou a pandemia se referindo à doença como “gripezinha”, até quando deixou de preparar o país para a imunização da população, atravancando a compra de vacinas e deixando que faltassem seringas e agulhas nos estoques do Ministério da Saúde. Como provas, citam estudo elaborado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e pela Conectas Direitos Humanos que revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do Coronavírus, promovida pelo governo federal sob a liderança do presidente Jair Bolsonaro.

“Como se verifica, do alto de sua parvoíce, o Representado procurava desconsiderar as medidas sanitárias e incentivava a população a fazer uma resistência armada contra Governadores e Prefeitos que estavam enfrentando com seriedade a pandemia da Covid19, quando o próprio Presidente e seus auxiliares se mantinham flagrantemente omissos ou, quando muito, traziam à baila soluções já rechaçadas por toda a

comunidade científica (Hidroxicloroquina, cloroquina etc.) e que nenhuma contribuição produzem para minorar o sofrimento do povo brasileiro, seja na área sanitária, seja na área econômico-social. [...] Quando a esperança da vacina se fazia florescer no mundo e no País, o Representado passou a atuar de maneira ideológica para sabotar os esforços das autoridades de um Estado da Federação, que tentavam concretizar para os brasileiros, o imunizante de fabricação chinesa, desenvolvido pelo Laboratório chinês Sinovac, em parceria com o Instituto BUTANTAN – entidade paulista centenária e respeitada mundialmente por seus trabalhos na produção de soros e vacinas contra doenças causadas por bactérias e vírus. [...] Com efeito, para além dessa postura negacionista acerca da gravidade da doença, o Presidente da República utilizou-se dessa crise sanitária, para travar uma “guerra ideológica”, com adversários reais ou imaginários, sobre os caminhos técnicos e científicos a serem adotados na Pandemia, politizando, ao fim e ao cabo, a questão das vacinas em desenvolvimento. [...] O começo da vacinação deveria trazer esperanças para um país que já apresenta mais de 219 mil mortos pela Covid-19, entretanto, se transformou em um jogo político, devido à ação criminosa do chefe do Executivo que vem implementando uma verdadeira campanha contra à vacinação e estimulado a epidemia de notícias falsas sobre a vacina. As fake news em circulação têm forte lastro nas manifestações estapafúrdias daquele que deveria ser o líder da nação, como foi o caso da fala proferida em meados de dezembro de 2020 orientando aos brasileiros não tomarem a vacina sob o risco de virarem “jacarés”. [...] A demora na compra de vacinas e insumos pelo governo federal, os acordos com poucos laboratórios, o atraso nos pedidos de autorização das doses no Brasil coloca o país no final da fila do mundo para a vacinação. Em julho, o governo federal chegou a ser pressionado pelo setor de insumos sobre a necessidade de agilizar a compra de seringas e agulhas, mas só abriu uma licitação apenas três dias antes de 2020 acabar. Em agosto, quando foram iniciadas as tratativas para aquisição e produção de vacina, o governo federal apostou equivocadamente todas as suas fichas em um único produtor, um erro fatal que está custando milhares de vida. O Brasil tinha acordo firme apenas com a AstraZeneca/Oxford, que visava ao fornecimento de 100,4 milhões de doses e transferência de tecnologia. 16

A decisão do Ministério da Saúde de incluir a CoronaVac no plano de vacinação ocorre após forte pressão da sociedade, do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e por expressa ausência de alternativas de tratamento. Como dito alhures, em 2020, o presidente não só rejeitou a CoronaVac como impediu sua compra por parte do governo. Em outubro, o ministério chegou a emitir um documento de intenção de compra dos mesmos 46 milhões de doses da CoronaVac mas, no dia seguinte, o presidente desautorizou publicamente o acordo e afirmou que o povo brasileiro não seria "cobaia" da "vacina chinesa.’ Agora, com a aprovação dos lotes das vacinas pela ANVISA e início da imunização o Brasil enfrenta novo problema criado por Bolsonaro: na busca por se aliar aos interesses dos países ricos e de atender demandas de Donald Trump, o governo de Jair Bolsonaro passou os últimos meses atacando a proposta feita pela Índia ainda em 2020 para que patentes (direito de propriedade) sobre vacinas fossem abolidas. Um dos resultados seria permitir que a produção dos imunizantes pudesse ocorrer em laboratórios distribuídos pelo mundo. Nesse momento, Nova Déli diz que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina contra covid-19 que impede o abastecimento global de um imunizante e responsabiliza a posição brasileira. Assim, diante da incompetência administrativa e ideológica do Representado, o País não tem outras alternativas para ampliar, num espaço mais curto, a cobertura vacinal dos brasileiros. Começamos por último e 17 temos doses insuficientes para a vacinação em massa. Segundo o ex-ministro da Saúde, Artur Chioro: ‘’Se o Butantã tiver IFA (ativo importado da China), produzirá 1 milhão de doses dia. Para vacinar a população brasileira (2 doses) precisaríamos de no mínimo 424 dias!” Ademais, o Brasil desdenhou do Fundo Global liderado pela Opas/OMS COVAX – ALIANÇA MUNDIAL DE VACINAS, uma alternativa construída para garantir que os países em desenvolvimento pudessem ter acesso às vacinas e que os produtos não ficassem apenas nas mãos dos países ricos. A iniciativa dava a possibilidade para que governos fizessem uma solicitação de vacinas que poderia atender de 10% a 50% da população dos países. Mas o Brasil optou, de forma negligente e criminosa, por solicitar a menor taxa de cobertura permitida, de 10% dos brasileiros. Em setembro, depois de semanas de indefinição e até uma sinalização de adiamento do processo, Brasília acabou fechando um acordo com a Covax pela qual faria uma opção de compra de 42 milhões de doses, suficientes para apenas 10% da população brasileira. [...]

Toda essa realidade demonstra que o Representado, por ação e omissão, de forma dolosa, sempre agiu contra os esforços sanitários para conter e combater o vírus da Covid-19, conduta que demonstra a total incompatibilidade de manutenção do Representado à frente da Chefia da Presidência da República, tantos e graves são os crimes perpetrados e suas consequências para o país. [...] É de clareza meridiana que o Presidente Jair Bolsonaro e o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, com a negligência reiterada e a insistência em estratégias comprovadamente ineficazes, são diretamente responsáveis pelas mais graves circunstâncias ocasionadas pela falta de oxigênio no Estado do Amazonas. [...] A pedido do ministro , em ação judicial proposta por partidos da oposição com o propósito de impedir o descontrole no atendimento à saúde da população brasileira, a Advocacia Geral da União admitiu, em 17 de janeiro de 2021, que o governo havia sido informado do desabastecimento de oxigênio em Manaus desde 8 de janeiro, oito dias antes de vários hospitais do município entrarem em colapso por falta de estoque do material.” [...] Ademais, o Governo Federal demorou meses para criar alguma espécie de Coordenação da crise sanitária, e quando o fez agiu de forma tímida, sem que tal iniciativa tenha efetivamente produzido algum resultado digno de mensurar. Tal postura, omissões e descasos com a saúde dos brasileiros, foram tecnicamente identificados em Acórdão do Tribunal de Contas da União (Autos da TC 016.708/2020- 2), cujos principais apontamentos destacamos:

- Em virtude da ausência de representantes permanentes de áreas da medicina e da ciência no Comitê de Crise da Covid-19 e da não participação de especialistas dessas áreas em reuniões específicas do Comitê, de que trata o inciso II do § 2º do art. 3º do Decreto 10.277/2020, poderão ser adotadas decisões não baseadas em questões médicas e científicas resultando em baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes. - Devido à ausência de diretrizes claras e objetivos estratégicos estabelecidos pelo Centro de Governo para o enfretamento à Covid-19, poderão ocorrer decisões incoerentes e desarticuladas pelo Comitê e pelo Centro de Operações resultando em

decisões e medidas individualizadas e descoordenadas pelos diversos atores levando a população a questionar as medidas propostas e adotadas. - Devido à ausência de um modelo de gerenciamento integrado de riscos para a gestão da crise da Covid-19 poderão ser adotadas decisões pelo Comitê e pelo Centro de Coordenação ineficientes e ineficazes levando a uma baixa efetividade nas ações de prevenção e combate à doença e desperdício de recursos públicos. - Devido à ausência de liderança e de mecanismos para promover coordenação efetiva e a condução da cooperação entre os ministérios e órgãos de linha poderão ser adotadas ações incoerentes, não integradas e/ou desalinhadas com as prioridades estabelecidas e reais necessidades da população resultando em ineficiência e falta de efetividade das ações governamentais no enfretamento da Covid-19 levando ao desperdício de recursos públicos e ao não atendimento emergencial das necessidades dos entes subnacionais, da população e dos pacientes. - Devido à inexistência de estrutura e mecanismos para orientar e negociar com os entes federativos, setor privado e organismos não-governamentais de modo a prover apoio para a execução de ações coerentes e unificadas de combate à pandemia e atender as demandas dos entes federados poderão ocorrer atrasos no atendimento das demandas dos estados e municípios, adoção de ações desarticuladas e inadequadas pelos entes federados no combate pandemia e nas medidas de distanciamento social ou de relaxamento resultando em aumento descontrolado no número de infectados e de óbitos. - Devido à falta de modelo de dados e de integração entre sistemas de informação que deem suporte às decisões governamentais poderão ocorrer diretrizes e ações de enfrentamento à crise não baseadas em informação qualificada e evidências resultando em ações de alocações de recursos ineficientes, desperdício de recursos e aumento no número de pessoas infectadas. - Devido à ausência de monitoramento da implementação das ações de enfrentamento à pandemia e de avaliação dos resultados alcançados poderá ocorrer prejuízo ao alinhamento de esforços, priorização de compromissos e revisão das evidências que fundamentaram a tomada de decisão do Comitê de Crise resultando em ações intempestivas, incoerentes e ineficientes no enfrentamento à pandemia. - Devido à ausência de padrões de formato e frequência dos relatórios de entrega estabelecidos com a máxima participação de órgãos e entidades envolvidos, bem como de sítio na web e de relatórios periódicos com informações consolidadas, atualizadas e tempestivas acerca das ações governamentais de combate à COVID-19 e de seus impactos pode ocorrer baixa transparência das ações adotadas pelo

governo e dos resultados alcançados levando desconfiança e a questionamentos por 35 parte da sociedade sobre a eficácia da atuação do governo, prejudicando a adesão às medidas propostas. - Devido à ausência de coordenação e alinhamento do conteúdo e da oportunidade da comunicação de governo acerca das estratégias e ações de enfrentamento à COVID-19 pode ocorrer discursos e informações contraditórias acerca do que o governo está fazendo, dos resultados do trabalho e do que pretende fazer podendo levar a ameaças à permanência de autoridades, ações descoordenadas no âmbito do governo federal e medidas isoladas e descoordenadas pelos estados e municípios, trazendo intranquilidade na população e agravando a doença.

Tudo que foi advertido pelo TCU e demonstra, sem sombras de dúvidas, que o País, na pandemia, sob a gestão do Presidente Bolsonaro, está totalmente derrelito. Por fim, para estancar qualquer dúvida sobre a conduta do Presidente da República em relação à ordenação de atos e normas, orientações e exemplos substantivamente enquadrados em crime responsabilidade, a edição nº 10 do “Boletim Direitos na Pandemia”, elaborado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, organização social de atuação na América Latina (ANEXO 1), traz um compilamento do acervo normativo editado no ano de 2020 tratando da pandemia, construído conforme a linha do tempo dos atos oficiais (3049 normas) e manifestações do sr Bolsonaro e conclui que o senhor Presidente da República deu concretização ao um projeto institucional estratégico de propagação do vírus e causador da morte e adoecimento de milhões de brasileiros e brasileiras:

Trata-se de um acervo normativo que resulta do embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo 36 governo federal, e as DIREITO E PANDEMIA: ORDEM JURÍDICA E SISTEMA JUDICIÁRIO NÃO FORAM SUFICIENTES PARA EVITAR GRAVES VIOLAÇÕES tentativas de resistência dos demais Poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade. A linha do tempo que publicamos nesta edição demonstra a relação direta entre os atos normativos federais, a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública promovida pelo governo federal. (https://www.conectas.org/wp/wpcontent/uploads/2021/01/Boletim_Direitos-na- Pandemia_ed_10.pdf)”

(Pedido nº 63 - Primeiro pedido conjunto pelos líderes dos partidos que compõem a Minoria na Câmara (PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e REDE) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0063/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/01/pedido0063-minoria-oposicao-27-01.pdf

47. O terceiro motivo para o pedido de impeachment seriam o “menosprezo e sabotagem de cautelas e medidas de contenção dos efeitos da pandemia de COVID-19” por parte do presidente. O pedido usa declarações de Bolsonaro a respeito da pandemia desde 9 de março de 2020, quando ele minimizava os riscos da doença e culpava a “histeria da mídia”. Também cita a defesa do uso da cloroquina por parte do presidente, a campanha anti-isolamento social “O Brasil Não Pode Parar” – veiculada pela Secretaria de Comunicação do Governo (Secom) e suspendida pelo Supremo Tribunal Federal –, a demissão de Henrique Mandetta do ministério da Saúde, e a participação do presidente de manifestações e aglomerações durante o período de pandemia. Concluem que tais atos foram contrários às recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) e “tiveram caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e brasileiras.” Lembram ainda que a Constituição Federal, em seu artigo 6º, coloca a saúde como direito social e que as atitudes do presidente, portanto, corresponderiam a crime de responsabilidade. (Pedido 42 e 47 – Proposta por: PT, PCdoB, PSOL, PSTU, PCB, PCO, UP e outros – Mais de 400 organizações sociais, juristas e personalidades públicas, além dos partidos - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0047/ e https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-042/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido-0029-ocultado.pdf)

d) Crimes contra a Segurança Interna do País

48. O documento do PDT afirma que o presidente teria cometido crimes de responsabilidade ao violar direitos sociais, como o direito à saúde, e crime contra a segurança nacional ao descumprir determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS) relacionadas a medidas de prevenção ao novo coronavírus. De acordo com o pedido, as atitudes do presidente iriam de encontro a normas do próprio ministério da Saúde e dos atos normativos e legislativos dos entes da Federação,

destacando esforços de estados e municípios no sentido de conter o avanço da pandemia. O texto cita que, em 29 de março, em meio a pandemia do novo coronavírus, o presidente caminhou pelas ruas de Brasília para estimular as pessoas a retornarem ao trabalho. (Pedido nº 26 e 30 – Proposto por: PDT (Ciro Gomes, Carlos Lupi e Walter Agra) – primeiro pedido de Partido Político - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-026/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/04/pedido027- ocultado.pdf)

49. Os crimes contra a saúde pública denunciados pelo PSB têm relação com a exposição da saúde da população à pandemia - Fundamento detalhados na petição. (Pedido nº 35 – Proposto por: PSB - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-035/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0025.pdf)

50. A denúncia da ABJD acusa o presidente de oscilar entre o “negacionismo, o menosprezo e a sabotagem assumida das políticas de prevenção e atenção à saúde dos cidadãos brasileiros, diante da mais grave crise de saúde pública da história do país e do planeta”.A peça responsabiliza Bolsonaro pelo agravamento da pandemia, ao cometer “ações criminosas” que, segundo o pedido, se constituem em agressões diretas aos direitos fundamentais, como o direito à saúde – parte constitutiva da base sobre a qual foi construído o Estado Democrático de Direito. Baseando-se nos artigos 5º, 7º, 8º e 9º da Lei de Impeachment, o pedido acusa o presidente de atentar contra a existência da União, contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do país e a probidade administrativa. Concluindo que “a marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República”. Para reforçar essa tese, o documento elenca as infrações de Bolsonaro, como: infringir o direito à saúde, colocar os seus interesses políticos à frente dos interesses da nação, descredibilizar as instituições científicas, represar os recursos destinados ao combate da pandemia, incentivar a população a se medicar com fármacos sem eficácia comprovada, expor povos tradicionais “a própria sorte”, além de negligenciar a situação do sistema de saúde de Manaus e de travar uma “Guerra da Vacina em pleno século XXI”.(Pedido nº 74 – Autores: 380 líderes e organizações religiosas, entre pastores, padres e outros religiosos de diferentes denominações cristãs. Redigido pela Associação

Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido_0074/ - Sem acesso à íntegra no site apublica.org/impeachment-bolsonaro)

Ao “desrespeitar” diretrizes científicas para o enfrentamento da pandemia, reter orçamento de emergência aprovado pelo Congresso e gerar “conflito” com autoridades, o Presidente estaria cometendo crime contra a segurança interna (art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079).

[...]

“9. Outro relevante aspecto a ser desenvolvido nos tópicos subsequentes diz respeito aos crimes contra a segurança interna cometidos pelo Presidente da República, ao fazer periclitar, irresponsavelmente, políticas públicas cruciais à defesa da vida e da incolumidade física dos seus concidadãos, ofendendo predicados mínimos da prudência governamental, a ponto de incidir nas previsões arroladas no art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.4 Os elementos a seguir carreados ao exame seguramente projetarão a imagem nítida do mais vil menosprezo do Presidente da República, por meios tácitos ou expressos, a diversas disposições de leis federais de ordem pública, sempre em prejuízo ao interesse geral e ao bem comum, o que configura o suprimento da premissa legal existente no art. 8º, inciso 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Em semelhante e lastimável comportamento, ficará exposta com clareza a omissão negligente e leviana do chefe de Estado, ao descumprir sua obrigação legal de tomar providências determinadas por leis federais, no condizente à sua inexecução e descumprimento, nisso mobilizando a invocação contra si do art. 8º, inciso 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950”.

(Pedido 52 – Pedido dos movimentos sociais - Autores: Débora Duprat, Mauro Menezes, Silvio Almeida, e mais de 3 mil pessoas e instituições - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0052/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/07/peticao-de-impeachment-popular-com-nomes-de- representantes-das-entidades-1.pdf

“o Presidente da República já deu diversas declarações públicas no sentido de que pretendia decretar - de ofício e individualmente - estado de sítio no Brasil, sob o argumento de enfrentar a pandemia do coronavírus. A relação entre a gravíssima crise

sanitária e socioeconômica vivida pelo Brasil - infelizmente, potencializada pelo patente fracasso do Presidente como gestor do país, eminentemente por sua postura negacionista - e a decretação de medidas extremas e supressoras de direitos fundamentais realmente escapa a esses requerentes, mesmo num esforço imaginário hercúleo. Supondo, contudo, fosse possível referida decretação, é evidente que o texto constitucional impõe duas balizas formais - para além da material, de relação de causalidade, como já expresso - para o estado de sítio: a precedência de um insucesso no estado de defesa e a autorização pelo Congresso Nacional. Parece, contudo, que nem isso o Presidente da República consegue extrair do texto constitucional - talvez por uma cegueira deliberada face à clareza meridiana da norma. Dessa forma, é evidente que suas pretensões, para além de esbarrarem na norma constitucional nítida, também configuram crime de responsabilidade”.

Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf

51. No contexto da pandemia, exsurge a prática de crime de permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública, por parte do presidente da República, calcado nos seguintes fundamentos:

“a Lei nº 13.979, de 2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, permite aos governadores e prefeitos a adoção de diversas ações para enfrentar a covid-19, incluindo, por exemplo, isolamento, quarentena e uso de máscaras, o que já foi confirmado pelo STF nas ADIs 6341, 6343 e 6625. Como bem decidiu a Corte, trata-se da competência comum e concorrente para administrar e legislar sobre os serviços de saúde, especialmente importante durante o caos sanitário que a pandemia nos impôs. Assim, ao se utilizar das Forças Armadas para impor sua visão autoritária aos demais Entes Federados, o Presidente da República viola diretamente a Lei nº 13.979, de 2020, entre outras, que, na esteira de nosso Federalismo Cooperativo, permite, ou melhor, impõe o dever de atuação dos Governadores e Prefeitos em defesa

da população de seus Estados e Municípios. Contudo, insatisfeito com algumas medidas acertadamente adotadas pelos gestores locais, o Presidente pretende se insurgir contra elas pelos mecanismos que detém. Provoca a revolta na população contra o isolamento social, transferindo todo o ônus da crise a terceiros. Judicializa, via ações constitucionais, contra medidas de isolamento social. E, agora, pretende se utilizar das Forças Armadas para colocar o sentimento de medo e terror em todos os gestores que pretendem adotar caminhos mais solidamente lastreados na ciência para a condução do enfrentamento à pandemia. Não é possível que esse Congresso Nacional aceite esse tipo de comportamento nefasto e afrontoso do Sr. Presidente da República!” (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf

52. As lideranças indígenas se fizeram ouvir ao protocolizarem um pedido com abordagem específica:

“O Presidente Jair Bolsonaro comprometeu a segurança interna do Brasil ao diminuir a capacidade fiscalizatória do Ibama, do Incra e da Funai, permitindo que os povos indígenas estejam submetidos a riscos de conflitos com eventuais ocupantes irregulares de terras, nunca antes cogitados na história. De modo mais específico, também é de se atribuir ao Presidente Bolsonaro a dificuldade no enforcement da Lei nº 14.021/2020, o que tipifica, per se o crime de responsabilidade capitulado no item 7 do art. 8º da Lei nº 1.079/50. Com efeito, embora o art. 5º da referida Lei atribua uma séria de responsabilidade à União (fornecimento de água potável, distribuição de materiais de higiene e afins, acompanhamento de médicos e profissionais de saúde, testagem da população, elaboração e execução do plano de prevenção ao contágio de populações indígenas, provimentos de pontos de internet, dentre outras medidas), nenhuma delas vem sendo efetivamente executada pela União. O que se vê, ao revés, é a patente omissão deliberada da União em tomar os devidos cuidados para que o coronavírus não dizime, efetivamente, as populações indígenas. Embora a lei nº 14.021/20 estabeleça requisitos mínimos claros para a contenção de danos da pandemia nas comunidades indígenas, todos os fundamentos expostos no presente documento demonstram exatamente o contrário: o Presidente nada faz para proteger os povos indígenas, descumprindo melancolicamente a Lei Federal referida.

3.3 Impedindo os agentes públicos de cumprirem a lei e comprometendo a Segurança Interna do País 3.3.1 Enfraquecimento da Fiscalização [...] 3.4 Fim dos Conselhos, espaços de diálogo e perseguição às organizações indígenas e às parceiras dos povos indígenas As organizações da sociedade civil desempenham um papel vital na região amazônica, apoiando, entre outras, coisas, as pessoas que denunciam a extração ilegal de madeira, muitas das quais são pequenos agricultores e indígenas que vivem em locais isolados e sem fácil acesso à autoridades. Esses grupos ajudam essas pessoas a registrarem denúncias de ameaças e ataques e acompanham seus casos. Eles também fornecem as informações mais confiáveis sobre a natureza e a dimensão da violência na região. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) publica relatório anuais sobre conflitos pelo uso da terra e dos recursos naturais com base no trabalho de advogados que atuam em todo o país. Da mesma forma, o Conselho Missionário Indigenista (CIMI) é a única entidade que compila casos de violência contra os povos indígenas em todo o país. Como nem as autoridades federais nem estaduais compilam essas informações, os relatórios da CPT e do CIMI preenchem uma lacuna importante e são utilizados pelas autoridades como indicadores do escopo da violência relacionada ao desmatamento ilegal. O presidente Bolsonaro repetidamente atacou organizações da sociedade civil que defendem os direitos ambientais e indígenas. [...]” Além de: acusações dirigidas às ONGs que elas explorariam os povos indígenas; acusações dirigidas a países europeus de promoverem a “preservação da Amazônia por meio de Organizações Não Governamentais estrangeiras para explorar as riquezas da floresta para esses países no futuro”; desacreditou publicamente o trabalho do INPE sobre índices de desmatamento; autorização para então secretário de governo, Carlos Alberto Santos Cruz, de “ ‘supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades de ONGs locais e internacionais que operam no Brasil”; congelamento em janeiro de 2019 dos novos contratos e parcerias do Ministério do Meio Ambiente com organizações da sociedade civil, dentre os quais “estavam 34 projetos de ONGs que usariam 1 bilhão de reais de multas coletadas pelo Ibama para restaurar ecossistemas degradados nos rios São Francisco e Parnaíba”; extinção em abril de 2019 de todos os conselhos, comitês e grupos de trabalho no âmbito federal (medida restrita àqueles sem previsão legal, conforme determinação posterior do STF), os quais “desempenharam um papel importante na formulação e implementação de política ambientais, bem como na fiscalização do cumprimento da legislação ambiental. Entre os extintos estão: Conselho

Nacional de Política Indigenista e o Comitê para implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas, estabelecido para promover a proteção ambiental em territórios indígenas”.

3.5 Cortando os recursos para os povos indígenas e seus parceiros Outro alvo das políticas do presidente Bolsonaro no sentido de diminuir o papel da sociedade civil no controle social é o Funda Amazônia, um projeto inovador elaborado e gerido pelo Brasil por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que repassa doações estrangeiras quando o Brasil reduz o desmatamento”. Dentre os fatos relacionados ao Fundo estão: sem apresentar evidências, Salles afirma, em maio de 2019, que teria encontrado irregularidade nos contratos com 100% das ONGs, o que foi refutado pelos governos da Noruega e Alemanha ao fundamento de que “o Fundo passa por auditorias anuais, que mostram consistentemente o ‘uso eficiente de recurso e impactos mensuráveis na redução do desmatamento’”, tais governos solicitaram a Salles que apresentasse as evidências de irregularidade o que não foi feito; Salles solicitou ao Fundo que não aprove novos projetos e propôs usar parte dos recursos do Fundos para “compensar fazendeiros por terras em áreas protegidas”, o que é proibido pelas regras do Fundo; em agosto de 2019, “a Alemanha suspendeu uma doação de 35m milhões de euros 9cerca de 159 milhões de reais) para financeira projetos de proteção ambiental no Brasil, depois de questionar o compromisso do governo em reduzir o desmatamento”; dentre outros. 3.6 Das falhas em proteger defensores da floresta. [...] Os povos indígenas e outros moradores locais há muito tempo desempenham um papel importante nos esforços do Brasil para conter o desmatamento, alertando as autoridades sobre as atividades madeireiras ilegais que, de outra forma, poderiam não ser detectadas. [...] O governo Bolsonaro tem agido de forma agressiva para diminuir a capacidade o país de fazer cumprir suas leis ambientais. Entre essas políticas está o desmantelamento do departamento que coordenava as principais operações de combate ao desmatamento, envolvendo várias agências federais e as forças armadas. Outra delas é a exigência – comunicada verbalmente aos agentes, mas não formalizada por escrito – de que os agentes mantenham intactos os veículos e equipamentos utilizados na extração ilegal de madeira encontrados em locais remotos, ao invés de destruí-los como autoriza a legislação brasileira. O governo também adotou medidas para limitar a capacidade das ONGs brasileiras de contribuírem para os esforços de fiscalização. Em vez de confrontar as redes criminosas, o governo Boslonaro atacou as ONGs socioambientais do país, chegando ao ponto de acusá-las sem provas, de terem iniciado incêndios em um esforço para “chamar a atenção contra o governo’”.

Pedido nº 67 - 1º pedido protocolado sob a presidência do Dep. Arthur Lira) – Autores: Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE), lideranças indígenas, mais 19 deputados, 2 senadores e 16 organizações indígenas – Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido-de-impeachment-pelos-povos-indigenas.pdf)

53. Pedido de impeachment de líderes religiosos considera que o presidente oscila entre o “negacionismo, o menosprezo e a sabotagem assumida das políticas de prevenção e atenção à saúde dos cidadãos brasileiros, diante da mais grave crise de saúde pública da história do país e do planeta”. A peça responsabiliza Bolsonaro pelo agravamento da pandemia, ao cometer “ações criminosas” que, segundo o pedido, se constituem em agressões diretas aos direitos fundamentais, como o direito à saúde – parte constitutiva da base sobre a qual foi construído o Estado Democrático de Direito. Baseando-se nos artigos 5º, 7º, 8º e 9º da Lei de Impeachment, o pedido acusa o presidente de atentar contra a existência da União, contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, contra a segurança interna do país e a probidade administrativa. Concluindo que “a marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República”. Para reforçar essa tese, o documento elenca as infrações de Bolsonaro, como: infringir o direito à saúde, colocar os seus interesses políticos à frente dos interesses da nação, descredibilizar as instituições científicas, represar os recursos destinados ao combate da pandemia, incentivar a população a se medicar com fármacos sem eficácia comprovada, expor povos tradicionais “à própria sorte”, além de negligenciar a situação do sistema de saúde de Manaus e de travar uma “Guerra da Vacina em pleno século XXI”. (Pedido nº 74 – Autores: 380 líderes e organizações religiosas, entre pastores, padres e outros religiosos de diferentes denominações cristãs. Redigido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido_0074/)

e) Dos crimes contra a Probidade na Administração Pública

54. A Coalizão Negra por Direitos sustenta que Bolsonaro comete improbidade administrativa “por não impedir a disseminação do ódio racial proferido por Sérgio Camargo, enquanto

presidente da Fundação Cultural Palmares, que é “voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”, como descreve o site da instituição. Camargo já chamou o movimento negro de “escória maldita”. - Fundamentos detalhados no pedido. (Pedido 53 – Autor: Coalização Negra por Direitos - 150 organizações e coletivos negros brasileiros, o documento tem apoio de mais de 600 entidades e personalidades, como os músicos Emicida e Chico Buarque, o ator Antônio Pitanga e o cineasta Fernando Meirelles, que são signatários - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0053/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/08/coalizaonegra-pedidoimpeachment-1.pdf)

55. A falta de um plano federal de contenção da crise sanitária, com “insuficiente, desordenada e atrasada adoção de medidas efetivas”; o incentivo ao uso de medicamento sem eficácia comprovada; além do desmonte do SUS, Previdência Social e direitos dos trabalhadores atentariam contra a probidade da administração (art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei do Impeachment). Tais fundamentos são detalhados no pedido de impeachment de autoria dos movimentos sociais Pedido dos movimentos sociais (nº 52).

“10. Incorreu, ademais, o Presidente da República, em figurinos legais que o implicam dramaticamente na prática de crimes de responsabilidade contra a probidade da administração, conforme o art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.5 Sua postura em relação aos atos insensatos e desatinados levados a efeito por inúmeros subordinados jamais esteve à altura da responsabilidade do cargo que ocupa. A repetida e progressiva escalada de descuidos e atos contraproducentes dessas autoridades, em desalinho com a Constituição e com a regularidade funcional de seus postos contou não apenas com o beneplácito presidencial, senão também com seu incentivo, o que perfaz com absoluta suficiência o tipo criminal estampado no texto do art. 9º, incisos 3, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Não obstante, e à guisa de agravamento dessa conduta deletéria, o Presidente da República ignora explicitamente disposições expressa da Constituição da República, ao expedir ordens e fazer requisições em contrariedade aos termos normativos da Lei Maior, em nociva concretização do inciso 4, do art. 9º da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. E não bastassem essas demonstrações inequívocas de afastamento da probidade em seu procedimento como

autoridade máxima do Poder Executivo Federal, o mandatário abusa de posturas completamente incompatíveis com a dignidade, a honra e o decoro do cargo presidencial, agindo em descompasso ante a previsão do art. 9º, inciso 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950”.

(Pedido 52 – Pedido dos movimentos sociais - Autores: Débora Duprat, Mauro Menezes, Silvio Almeida, e mais de 3 mil pessoas e instituições - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0052/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/07/peticao-de-impeachment-popular-com-nomes-de- representantes-das-entidades-1.pdf)

56. A segunda ação do presidente seria a “utilização de poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal”. O pedido usa as acusações do ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro – inclusive trechos de sua entrevista coletiva, trocas de mensagens entre ele e o presidente e vídeo de reunião ministerial – como prova. A atitude seria uma transgressão ao princípio de impessoalidade na administração pública e representaria “crime de responsabilidade contra a probidade na administração”. Fundamentos detalhados no pedido. (Pedido 42 e 47 – Proposta por: PT, PCdoB, PSOL, PSTU, PCB, PCO, UP e outros – Mais de 400 organizações sociais, juristas e personalidades públicas, além dos partidos - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0047/ e https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-042/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido-0029-ocultado.pdf)

57. Começa por citar a denúncia do ex-Ministro da Justiça, Sérgio Moro, de que Bolsonaro teria exonerado o então diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo, por interesses pessoais. Em seguida, enumera “três fatos incontroversos” expostos na fala do ex-Ministro. O primeiro é o fato de o presidente ter afirmado “expressamente que queria trocar o comando da PF para interferir na Instituição”. O segundo é a “contradição evidente” na publicação da exoneração de Valeixo no Diário Oficial em que se lê “a pedido”, e a versão de Moro que diz não ter solicitado a demissão. O terceiro é a não comunicação do Ministro da Saúde sobre a decisão. O documento cita Moro: “O presidente me disse que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse colher informações, relatórios

de inteligência. A interferência política pode levar a relações impróprias entre o diretor da PF e o presidente da República. Não posso concordar.” O pedido ainda responsabiliza Bolsonaro pela queda do delegado Ricardo Saadi e de seu substituto Dr. Carlos Henrique Oliveira, da chefia da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, em agosto de 2019. E acusa o presidente de ter assediado o órgão para alçar ao posto o Sr. Alexandre Silva Saraiva, delegado de sua confiança. Também sugere interferência de Bolsonaro na Receita Federal e no Coaf, linkando reportagem do jornal O Globo. Para reforçar essa tese, o documento elenca motivos pelos quais Bolsonaro estaria tentando interferir nas investigações. Nomeadamente, as investigações em desfavor de seu filho mais velho, Flávio Bolsonaro; o inquérito sobre a disseminação de notícias falsas no STF, que atingem seus outros filhos, Carlos e Eduardo Bolsonaro; e as investigações, também no Supremo, sobre a organização das manifestações favoráveis à ditadura que tiveram seu endosso, seriam as preocupações do presidente. O pedido ainda denuncia Bolsonaro pela violação do artigo 9º, da Lei de Crimes de Responsabilidades, que proíbe “usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder ilegalmente”.“É, pois, rigorosamente o que fizera o Sr. Presidente da República, ao exercer pressão sobre o Sr. Ministro da Justiça e Segurança Pública”, argumentam os proponentes.(Pedido 31 – Proposto por : Joênia Wapichana, deputada federal (REDE), Fabiano Contarato e Randolph Frederich Rodrigues Alves, senadores (REDE) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-031/ - Link da íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/04/pedido0021-ocultado.pdf

58. Mudanças de quadros da administração, como exonerações no Ibama, Inep, ameaça de extinção da Ancine, exoneração do ex-ministro da Saúde, Luiz Mandetta por tentar seguir determinações da OMS, são citados como exemplos improbidades administrativas que teriam sido cometidas pelo presidente, utilizando como argumento o Artigo 9° da Lei do Impeachment, que versa sobre a ameaças contra funcionários públicos. (Pedido nº 26 e 30 – Proposto por: PDT (Ciro Gomes, Carlos Lupi e Walter Agra) – primeiro pedido de Partido Político - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-026/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/04/pedido027-ocultado.pdf)

59. Quanto à acusação de expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição, esta está calcada nos seguintes fundamentos:

“ao promover a troca no comando do Ministério da Defesa e de todas as Forças Armadas, o Presidente da República parece pretender se utilizar das autoridades sob sua supervisão imediata (à luz do trecho “autoridade suprema do Presidente da República”, conforme o art. 142 da Constituição, e da hierarquia direta da relação de fidúcia existente entre Presidente e Ministros de Estado) para, literalmente, praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua. Isso porque, na medida em que o Brasil se constitui sob a forma de República (lastreada nos paradigmas de igualdade e de não impunidade) democrática (fincada no paradigma de participação popular nos debates públicos lato sensu) com independência harmônica dos Poderes (arts. 1º e 2º da Constituição), que é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, da Constituição), não pode o Presidente, chefe de um dos Poderes, pretender subverter a ordem constitucional em simples canetadas, no afã de promover seu projeto autoritário de poder com o auxílio eventual de qualquer parcela das Forças Armadas, mesmo que minoritárias”. (Pedido 114 e 107 – Autores: Líderes da oposição e da minoria no Congresso, Randolph Rodrigues, Jean Paul Prates, Alessandro Molon, Marcelo Freixo e Arlindo Chignalia - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-114/ e https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0107/ - Link para íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/04/pedido-31-03-1.pdf)

Contra a Constituição – Direitos dos Povos Indígenas: “[...] as ordens emanadas pela Presidência da República em relação aos direitos indígenas são claramente afrontosas à Constituição. No caso da pandemia do coronavírus, por exemplo, percebe-se que os povos indígenas não estão sequer tendo a chance de exercerem o seu mais basilar direito fundamental: o se simplesmente sobreviver. Por comportamentos lacunosos gravíssimos das autoridades federais – em estrita obediência ao posicionamento refratário do Sr. Presidente -, membros de populações indígenas vêm sendo dizimados pela pandemia. Ora, se o Presidente atenta, deliberadamente, contra a vida dos povos indígenas, não há como não enxergar manifesto comportamento contraditório com as balizas do texto constitucional. 3.1 Ações do Presidente Contra a Demarcação de Terras Indígenas 3.1.1 Direitos dos povos indígenas sobre seus territórios e a obrigação do Poder Executivo 3.2 A obrigação do

Brasil de proteger [...]” - Fundamentos profundamente detalhados no pedido. (Pedido nº 67 - 1º pedido protocolado sob a presidência do Dep. Arthur Lira) – Autores: Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE), lideranças indígenas, mais 19 deputados, 2 senadores e 16 organizações indígenas – Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/02/pedido-de-impeachment-pelos-povos- indigenas.pdf)

“[...] as ações e omissões do Sr. Presidente da República atentam claramente contra a probidade na Administração. E isso se dá por três pilares: de um lado, o Sr. Presidente incentiva erros e eventuais crimes cometidos por seus subordinados na seara indigenista ao não demarcar e proteger as terras indígenas. Ou será que o Presidente não tem conhecimento dos mandos e desmandos que o Ministro do Meio Ambiente, por exemplo, faz para que os interesses anti-indígenas prevaleçam? Ao revés: certamente como aqui demonstrado amplamente é ele que dá as diretrizes para que assim seja.”

(Pedido nº 67 - 1º pedido protocolado sob a presidência do Dep. Arthur Lira) – Autores: Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE), lideranças indígenas, mais 19 deputados, 2 senadores e 16 organizações indígenas – Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido-de-impeachment-pelos-povos-indigenas.pdf

Além disso, os autores consideram que o atual presidente teria atacado o “processo eleitoral brasileiro de 2018” e feito “ameaças em relação às futuras eleições de 2022” ao se posicionar depois da invasão do Capitólio por eleitores trumpistas. Tal situação desestabilizaria as instituições e colocaria “em xeque a credibilidade, a presunção de legalidade e de moralidade” da justiça eleitoral brasileira. - Fundamentos detalhados no pedido.

(Pedido nº 60 - Deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0060/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/01/gleisi-helena-hoffmann-e-outros-1-1.pdf

Contra a Constituição – Laicidade:

Ainda dentro das denúncias relacionadas aos ataques dos direitos da população negra, o texto relembra o discurso de posse o presidente da República, que disse: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e a nossa tradição judaico-cristã, combatendo a ideologia de gênero, resgatando os nossos valores. O Brasil passará a ser um país livre das amarras ideológicas”. A declaração é interpretada como um ataque à “laicidade do Estado brasileiro”, que garante a liberdade de culto, inclusive das religiões de matriz africana.

(Pedido 53 – Autor: Coalização Negra por Direitos - 150 organizações e coletivos negros brasileiros, o documento tem apoio de mais de 600 entidades e personalidades, como os músicos Emicida e Chico Buarque, o ator Antônio Pitanga e o cineasta Fernando Meirelles, que são signatários - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 0053/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/08/coalizaonegra-pedidoimpeachment-1.pdf)

Violação à Constituição – art. 225:

“No contexto do meio ambiente, o Presidente da República vem, deliberadamente, por inúmeras condutas, afrontando este que é um valor irrecuperável de máxima proteção constitucional, e direito fundamental das atuais e futuras gerações, consoante o que determina a Constituição Federal em seu art. 225: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (...)”

[...]

II.c Da Obstrução do Presidente da República à Fiscalização Ambiental, Atentando Contra a Constituição Federal e Contra Leis Federais

Ao contrário do reforço à fiscalização ambiental para a concretização dos preceitos constitucionais, o Presidente da República editou o Decreto nº 9.760, de 11 de abril de 2019, que prevê entrave à sanção de multa por descumprimento das normas ambientais, na medida em que paralisa o processo administrativo enquanto não houver tentativa de conciliação (art. 97-A), o que se choca com a efetividade da multa e o efeito desestimulante às infrações que a sanção deveria ter. Dificultar o procedimento e a punição por infração ambiental configura nítido abuso do poder regulamentar, e não poderia ser sido feito mediante decreto. Ademais, trata-se de medida desacompanhada

de estudo técnico e de fundamentação, que revela o propósito de abrandar a efetividade da fiscalização, quando, diante do crescimento público e notório do desmatamento e outros crimes e infrações ambientais, é necessário e esperado do administrador o fortalecimento da fiscalização e da prevenção. Em outras palavras, com o ato do Presidente da República o fiscal ambiental não tem respeitabilidade, fica desprovido de autoridade, o cumprimento de sua obrigação e seu ato fiscalizatório ficam enfraquecidos. Diante da carência de estrutura e de pessoal e da falta de investimentos na fiscalização, há verdadeira neutralização do IBAMA e do ICMBio.17 Por determinação do Presidente da República, o governo está focado em coibir ações concretas de fiscalização. Após operação contra o garimpo ilegal e para a prevenção de alastramento do Covid-19 em terras indígenas,18 houve, conforme já narrado no tópico anterior, exoneração de fiscais do IBAMA, em nítida represália à atuação fiscalizatória.

II.d Do Ataque à Constituição e Aos Povos Indígenas

As terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas são bens da União, que deve demarcá-las, proteger e fazer respeitar a proteção a elas atribuída (arts. 21, XI, e 231, caput, da CF). Ao adotar explicitamente uma política anti-indigenista, o Presidente da República contraria a Constituição (os crimes de responsabilidades são todos os atos políticos, julgados politicamente, que atentam contra a Constituição) e comete crime de responsabilidade (art. 8º, 7, da Lei nº 1.079/50), em área sensível à dignidade da pessoa humana e ao meio ambiente (arts. 1º, III, e 225, da CF).

Já em 5 de novembro de 2018, recém eleito, o Presidente da República declarou que “no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”, 27 opondo-se a dezenas de processos de demarcação em andamento no âmbito da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, que tramitavam nos termos da lei.

Em 1º de janeiro de 2019, o presidente desfaz uma estrutura com expertise na demarcação e proteção de terras indígenas ao editar a Medida Provisória nº 870/2019, e posteriormente a MP nº 886/2019, que retira da FUNAI a atribuição de demarcação de terras indígenas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, em um verdadeiro desmonte de políticas socioambientais em formulação e acompanhamento de décadas, independentemente da alternâncias de governo, e 27 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/no-que-depender-de-mim- nao-tem-mais-demarcacao-deterra-indigena-diz-bolsonaro-a-tv.shtml , acesso em: 3 de jun. de 2020. confundindo – inconstitucionalmente – política indigenista e política agropecuária. Tal desconformidade com a Constituição foi obstada pelo Supremo Tribunal Federal.

O presidente chamou de “mentirosos” os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, o que acarretou o ato abusivo de demissão do ex-diretor Ricardo Galvão, pois houve publicação, em 19 de julho de 2019, informando que o desmatamento e a degradação ambiental aumentaram 88% em relação ao mesmo mês do ano anterior, além do aumento no primeiro semestre de alertas de desmatamento em 38% em terras indígenas, e 85% em unidades de conservação.

Os dados demonstram que Bolsonaro não demarcou uma única terra indígena desde o início da sua gestão,30 cumprindo os estritos termos de sua fala logo após ser eleito, apesar dos processos em andamento,31 e apesar de serem essenciais ao direito ao meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Sendo assim, não remanescem dúvidas de que mais uma vez o Presidente da República incorre em condutas, e omissões, que se chocam com a Constituição Federal e enfraquecem os órgãos públicos brasileiros até então com respeitabilidade internacional33 , restando claro que o Presidente da República novamente cometeu o crime de responsabilidade descrito no art. 85, VII, da CF, ao praticar atos contra o cumprimento das leis, e o crime de responsabilidade descrito no art. 8º, 7, da Lei nº 1.079/50, ao permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal e de ordem pública. [...]”

(Pedido 51 – Ambientalistas - Rafael Echeverria Lopes, Enilde Neres Martins, Humberto Adami Santos Junior, André Rodolfo de Lima e outros - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0051/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/06/denuncia-acao-cidada-versao1.pdf)

60. Agressões do presidente a profissionais da imprensa são identificadas no texto como como crimes contra administração pública, outro crime de responsabilidade. (Pedido nº 14 – Autor: Alexandre Frota (PSDB) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-014/ - Link da íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido00101.pdf)

“13. No dia 24/04/2020, o Exmo. Senhor Ex-ministro Sérgio Moro, em pronunciamento à imprensa, imputou ao denunciado haver solicitado acesso aos relatórios reservados da

Polícia Federal, no que foi desatendido. Em consequência, o denunciado promoveu a exoneração do Diretor Geral da Polícia Federal, instituição permanente da Administração Pública Federal, instituída com previsão constitucional contida no art. 144, I da CR. 14. Disse o ex-ministro Sérgio Moro: (...) Mas o grande problema é que não é tanto essa questão de quem colocar. Mas por que trocar? E permitir que seja feita a interferência política no ‚âmbito da polícia federal. O presidente me disse mais de uma vez que queria ter uma pessoa da confiança pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. Seja diretor, seja superintendente. E não é o papel da polícia federal prestar esse tipo de informação. (...) Presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal, em que a troca também seria oportuna, da Polícia Federal, por esse motivo. Também não uma razão que justifique a substituição, até algo que gera uma grande preocupação. 15. Ainda que não tenha atingido seu intento, a conduta do denunciado Jair Messias Bolsonaro, corresponde àquela tipificada no art. 9º, números 4 e 7, da Lei 1079/50: [...] 16. A requisição de acesso aos relatórios sigilosos da PF, além de se constituir em contrariedade a princípio constitucional elencado em disposição da Constituição (art. 37, caput), notadamente da legalidade, impessoalidade e moralidade, tipifica modo de proceder incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo de Presidente da República”. (Pedido nº 38 – Proposto ABI - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 038/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0027-ocultado.pdf)

61. Ao presidente da República se atribui proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Bolsonaro também teria cometido crime passível de impeachment ao cometer a quebra de decoro – regulamentada pelo art. 9º da mesma Lei. Os proponentes argumentam que “a mentira intencional, usada com objetivo de obter vantagem política, é exemplo clássico da quebra de decoro” e citam o caso do Impeachment do presidente em 1992, que foi acusado desse mesmo crime. “Nas palavras da acusação à época, Collor “mentiu, mentiu e mentiu!” sobre suas relações espúrias com Paulo César Farias. Nos dias de hoje, dizer o mesmo: o Sr. JAIR MESSIAS BOLSONARO mentiu, mente e mentirá sobre a gravidade da doença, a importância do respeito a medidas profiláticas, a confiabilidade da vacina e as responsabilidades de seu governo sobre a coordenação nacional do enfrentamento à pandemia”, encerram, pedindo pela abertura do processo de impeachment nas normas da Câmara dos Deputados e

elencando uma série de testemunhas a serem ouvidas no processo. (Pedido nº 69 – Autores: Médicos e cientistas – Ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e outras sete autoridades médicas como a epidemiologista, Ethel Maciel e o ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, Daniel Araújo Dourado e outros - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 0069/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido0069.pdf)

“De outro lado, e aqui nesse mesmo escopo, vê-se claro o comportamento do Sr. Presidente incompatível com a dignidade e o decoro do seu cargo. Utiliza-se de uma posição de mandatário principal da República para vilipendiar a imagem dos povos indígenas perante a sociedade brasileira, associando-se a animais em zoológicos e outros termos aviltantes. E, nesse ponto, frise-se que a Constituição é clara ao atribuir ao Sr. Presidente a posição de precípuo garantidor dos direitos das minorias; afinal, se sequer o Presidente da República dá exemplo de bem tutelar os direitos indígenas – ou, ao menos, de não manifestar recorrentes impropérios aos povos indígenas-, quem poderia fazê-lo? Com a devida vênia, ninguém.”6 (Pedido nº 67 - 1º pedido protocolado sob a presidência do Dep. Arthur Lira) – Autores: Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE), lideranças indígenas, mais 19 deputados, 2 senadores e 16 organizações indígenas – Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido-de-impeachment-pelos-povos-indigenas.pdf)

“II – Do desrespeito à dignidade humana devido à falta de empatia, decoro e do Representado em relação às vítimas, doentes e familiares da Covid- 19.

As diversas manifestações proferidas ao longo da Pandemia, demonstram que o Presidente da República teve diversas oportunidades de reconsiderar sua posição e não o fez. O comportamento têm sido o mesmo ao longo de toda pandemia e têm contribuído para morte de milhares de brasileiros. É o que se vê, resumidamente, em seguida.

“Superdimensionado" Em 9 de março, em evento durante visita aos EUA, Bolsonaro disse que o "poder destruidor" do coronavírus estava sendo "superdimensionado". Até então, a epidemia

6 Esses fundamentos são detalhados no item 3.8 do referido Pedido de Impeachment.

havia matado mais de 3 mil pessoas no mundo. Após o retorno ao Brasil, mais de 20 membros de sua comitiva testaram positivo para covid-19.

“Europa vai ser mais atingida que nós" A declaração foi dada em 15 de março. Precisamente, ele afirmou: "A população da Europa é mais velha do que a nossa. Então mais gente vai ser atingida pelo vírus do que nós." Segundo a OMS, grupos de risco, como idosos, têm a mesma chance de contrair a doença que jovens. A diferença está na gravidade dos sintomas. O Brasil é hoje o segundo país mais atingido pela pandemia.

“Gripezinha” Ao menos duas vezes, Bolsonaro se referiu à covid-19 como "gripezinha". Na primeira, em 24 de março, em pronunciamento em rede nacional, ele afirmou, que, por ter "histórico de atleta", "nada sentiria" se contraísse o novo coronavírus ou teria no máximo uma “gripezinha ou 24 resfriadinho”. Dias depois, disse: "Para 90% da população, é gripezinha ou nada."

"A hidroxicloroquina tá dando certo" Repetidamente, Bolsonaro defendeu a cloroquina para o tratamento de covid-19. Em 26 de março, quando disse que o medicamento para malária "está dando certo", já não havia qualquer embasamento científico para defender a substância. Em junho, a OMS interrompeu testes com a hidroxicloroquina, após evidências apontarem que o fármaco não reduz a mortalidade em pacientes internados com a doença.

“Todos nós vamos morrer um dia" Após visitar o comércio em Brasília, contrariando recomendações deu seu próprio Ministério da Saúde e da OMS, Bolsonaro disse, em 29 de março, que era necessário enfrentar o vírus "como homem". "O emprego é essencial, essa é a realidade. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós vamos morrer um dia."

"Vírus está indo embora" Em 10 de abril, o Brasil ultrapassou a marca de mil mortos por coronavírus. No mundo, já eram 100 mil óbitos. Dois dias depois, Bolsonaro afirmou que "parece que está começando a ir embora essa questão do vírus". O Brasil se tornaria, meses depois, um epicentro global da pandemia, com dezenas de milhares de mortos. "Eu não sou coveiro" Assim o presidente reagiu, em frente ao Planalto, quando um jornalista formulava uma pergunta sobre os números da covid-19 no Brasil, que já registrava mais de 2 mil mortes e 40 mil casos. “Ô, ô, ô, cara. Quem fala de... eu não sou coveiro, tá?”, afirmou Bolsonaro em 20 de abril.

"E daí?" Foi uma das declarações do presidente que mais causaram ultraje. Com mais de 5 mil mortes, o Brasil havia acabado de passar a China 25 em número de óbitos. Era 28 de abril, e o presidente estava sendo novamente indagado sobre os números do vírus. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre...”

“Vou fazer um churrasco" Em 7 de maio, o Brasil já contava mais de 140 mil infectados e 9 mil mortes. Metrópoles como Rio e São Paulo estavam em quarentena. O presidente, então, anunciou que faria uma festinha. "Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha...". Dias depois, voltou atrás, dizendo que a notícia era "fake".

“Tem medo do quê? Enfrenta!"

Em julho, o presidente anunciou que estava com covid-19. Disse que estava "curado" 19 dias depois. Fora do isolamento, passou a viajar. Ao longo da pandemia, ele já havia visitado o comércio e participado de atos pró-governo. Em Bagé (RS), em 31 de julho, sugeriu que a disseminação do vírus é inevitável. "Infelizmente, acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta!”

“Mais uma que Jair Bolsonaro ganha” Bolsonaro tem se colocado há meses contra a vacina da fabricante chinesa Sinovac, que será produzida pelo Butantan caso tenham segurança e eficácia asseguradas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Em outubro, cancelou um acordo de cerca de R$ 2 bilhões do Ministério da Saúde para aquisição das doses. "Da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso", disse Bolsonaro. No mês seguinte, os testes envolvendo essa vacina foram interrompidos para que as autoridades investigassem a relação entre o imunizante e a morte de e a morte de um voluntário que a recebeu — o Butantan nega qualquer ligação entre os dois, mas Bolsonaro comemorou.

“Vacina obrigatória só aqui no (cachorro) Faísca” Desde agosto, Bolsonaro vem se posicionando contra a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19. Naquele mês, afirmou a apoiadores que "ninguém pode ser obrigado a tomar a vacina". Se por um lado a fala de Bolsonaro pode incentivar ainda mais o crescimento do movimento antivacina, dizem médicos, por outro ela está equivocada e seria inconstitucional, segundo constitucionalistas ouvidos pela BBC News Brasil. E uma lei criada neste ano pelo próprio governo federal e sancionada por Bolsonaro dá poder aos Estados e municípios para aplicar uma vacinação compulsória contra a covid-19. Em 24 de outubro, decidiu fazer piada com o tema. "Vacina obrigatória só aqui no Faísca", disse em selfie com seu cachorro em uma postagem em redes sociais.... –

"País de maricas" Em 10 de novembro, ao celebrar como vitória política a suspensão dos estudos, pelo Instituto Butantan, da vacina do laboratório chinês Sinovac após a morte de um voluntário da vacina, Bolsonaro afirmou que o Brasil deveria "deixar de ser um país de maricas" por causa da pandemia.

“Fizemos a nossa parte” Mais uma declaração controversa e mesquinha sobre o avanço da contaminação em Manaus: "A gente está sempre fazendo o que tem que fazer, né? Problema em Manaus: terrível o problema lá, agora nós fizemos a nossa parte, com recursos, meios", declarou o ora Representado falseando, mais uma vez, a realidade dos fatos.

Ao longo de quase um ano, Bolsonaro usando termos como "gripezinha", disse que não morreriam nem 800 pessoas por Covid-19, chamou o Brasil de "país de maricas", ignorou recomendações científicas e mostrou um apego inabalável à hidroxicloroquina. A ponto de recomendar o uso desta em Manaus, quando todos sabiam que o problema era a falta de oxigênio.

Até a data de hoje o Brasil já contabiliza mais de 213 mil mortes e mais de 8,5 milhões de casos confirmados na pandemia. Não podemos assistir, a este verdadeiro genocídio, como se fosse algo normal. A História julgará a todos e a única atitude possível é o imediato afastamento do presidente da República, Jair Bolsonaro.

Durante toda a pandemia o presidente Jair Bolsonaro alterna entre a negligência criminosa e o sarcasmo doentio. Este comportamento é nocivo pois acaba contaminando as instituições e aos agentes políticos. Veja o caso da taxação dos cilindros de oxigênio

sem que ninguém do governo se desse conta do absurdo e das consequências da medida. AGONIA E MORTE NADA SIGNIFICAM. O afastamento se reveste de um caráter protetor, de defesa da sociedade. Bolsonaro não cumpriu o seu dever.”

(Pedido nº 63 - Primeiro pedido conjunto pelos líderes dos partidos que compõem a Minoria na Câmara (PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e REDE) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0063/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/01/pedido0063-minoria-oposicao-27-01.pdf

62. Ao fazer apologia da tortura, da ditadura, o Presidente da República manifesta um total desrespeito pela função que ele exerce, o que ele jamais poderia [fazer] no cargo em que está. A tortura e a apologia da tortura são crimes para qualquer cidadão, está configurado na Constituição, mas isso por si só não daria para configurar crime de responsabilidade. Mas o tratamento desrespeitoso, sim, está previsto como crime de responsabilidade. A perda da própria função presidencial, a perda de decoro, justificam um pedido de impeachment: “[Bolsonaro] tem sido pródigo em demonstrar que a democracia é um valor menor”, consideram os proponentes, que argumentam que a apologia à tortura se configuraria como “violação dos princípios da administração”, como a honra e decoro do cargo, punível com impeachment pela Lei 1.079/1950. Para eles, Bolsonaro expressa “desrespeito às vítimas da Ditadura Civil-Militar”. De acordo com o pedido, a fala de Bolsonaro é “criminosa” e “não pode se confundir com o exercício da liberdade de expressão”. “Não se trata de liberdade quando se põe em risco as garantias constitucionais”, conclui a peça. (Pedido nº 60 - Deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0060/ - Íntegra do pedido: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/01/gleisi-helena- hoffmann-e-outros-1-1.pdf)

“Os lamentáveis fatos protagonizados por Bolsonaro são diametralmente opostos a qualquer postura honrosa que respeite o decoro do cargo. Na verdade, o que vimos não é a figura de um Presidente da República, mas sim um homem vaidoso, presunçoso e descontrolado discursando na caçamba de uma caminhonete em meio a incautos manifestantes durante um surto pandêmico A cena é triste, chocante e preocupante, porém infelizmente real: manifestantes clamando pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal enquanto Bolsonaro, apoiando tal conduta antidemocrática, entremeia brados e tossidos virulentos. Não fosse absurdo o bastante, os fatos expostos pelo Ministro da Justiça demonstram a pequeneza do Representado, que se vale da função presidencial para atender a interesses

familiares espúrios, para interferir em investigações da Polícia Federal e para obter vantagens indevidas. Por mais abstrata que possa ser a conceituação da norma exposta no item 7, do artigo 9º, da lei 1.079/50, sua conceituação se torna simples quando analisamos os fatos perpetrados pelo Representado, ora narrados. Não há como admitir que qualquer indivíduo, por menos honroso que seja, convirja com a postura de Bolsonaro, que protagoniza um dos episódios mais infelizes da história recente do país.” (Pedido nº 34 – Proposto por: MBL - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido- 034/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/04/pedido0024-ocultado.pdf)

[IV - COVID-19, INCOMPATIBILIDADE COM A DIGNIDADE, HONRA E DECORO DO CARGO DE PRESIENTE DA REP⁄BLICA] “20. Ao ignorar os efeitos da pandemia que assola o mundo, e propagar a difusão da doença para que apenas os mais fortes sobrevivam e a economia volte a ter seu curso normal, o denunciado Jair Messias Bolsonaro, demonstra procedimento incompatível com a dignidade do cargo de presidente da República, uma vez que lhe compete, como Chefe do Estado e do Governo, atuar para o atingimento 5 dos fundamentos da República e dos seus objetivos fundamentais, esculpidos nos incisos dos arts. 1º e 3º, da CR”. (Pedido nº 38 – Proposto ABI - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-038/ - Link para a íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2020/05/pedido0027-ocultado.pdf)

[Interferência na Polícia Federal – afronta às instituições e quebra de decoro]

(Pedido nº 61- proposto por: Dep. Alexandre Frota (PSDB) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0061/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/01/alexandre-frota-3-1.pdf)

(Pedido nº 61- proposto por: Dep. Alexandre Frota (PSDB) - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0061/ - Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/01/alexandre-frota-3-1.pdf)

f) Dos crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos

63. Dentre os crimes contra a guarda e emprego de dinheiro público, apontou-se a negligência com a conservação do patrimônio nacional em razão da má gestão da pandemia e do emprego dos recursos públicos no combate ao Covid-19. Segundo as razões constantes no Pedido nº “a ausência de diretrizes estratégicas claras de enfrentamento ao Covid-19, com a respectiva gestão de

riscos, bem como a ausência de um plano de comunicação coordenado e abrangente, pode comprometer os gastos e os resultados do enfrentamento à pandemia”; atrasos no atendimento das demandas dos estados e municípios na crise de saúde, como também ações desarticuladas e inadequadas em relação ao distanciamento social e ao emprego do dinheiro público. (Pedido 118 - Augusto Luiz Melaré e Bárbara Gonçalves Teixeira - https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/pedido-0118/; Link para íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp-content/uploads/sites/38/2021/05/pedido-118- augusto-melare-e-barbara-texeira.pdf)

64. Por sua vez, outro pedido de impeachment questionou a “gestão do atualmente extinto Fundo Amazônia”, a qual resultou, inclusive, em situações absurdas nas relações internacionais, bem como na falta de transparência do ministério do Meio Ambiente. Segundo o autor, “a ingerência verificada sobre o patrimônio nacional é, textualmente, crime de responsabilidade”. (Pedido nº 4 – Autor: Diogo Machado Soares dos Reis, médico - https://apublica.org/impeachment- bolsonaro/pedido-0004/)

g) Dos crimes contra o cumprimento de decisões judiciais

65. Constituem crimes de responsabilidade o descumprimento de decisões judiciais relativas à proteção dos direitos dos povos indígenas no contexto da pandemia de Covid-19, conforme detalhado no pedido de autoria de lideranças indígenas e diversos parlamentes (Pedido nº 67):

“[...] é também necessário salientar, como aqui já descrito, que o comportamento do Sr. Presidente da República é manifestamente incompatível com ordem judicial prolatada pelo Exmo. Sr. Ministro Luis Roberto Barroso, do Eg. STF, no âmbito da ADPF nº 709, posteriormente referendada pelo Plenário da Corte. Com efeito, Sua Excelência bem afirmou na decisão inicial, de 8/7/2020, os povos indígenas são especialmente vulneráveis a doenças infectocontagiosas, para as quais apresentam baixa imunidade e taxa de mortalidade superior à média nacional. Há indícios de expansão acelerada do contágio da Covid-19 entre seus membros e alegação de insuficiência das ações promovidas pela União para sua contenção. Após decisão inicial que determina a apresentação e o cumprimento de Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19 para Povos Indígenas, o Ministro Barroso teve três oportunidades para rejeitar o documento

apresentado pela União, sendo a mais recente no dia 18/12/2020, em que rejeitou a 3ª versão do Plano. Tal fato, per se, demonstra a inteira desídia do Sr. Presidente da República em cumprir a ordem judicial inicial, mesmo após mais de 6 meses. Ora, se tivesse apreço ao Poder Judiciário, teria cumprido satisfatoriamente a decisão judicial inicial desde o momento de sua prolação, sem pretender se utilizar de subterfúgios processuais referentes à dialética necessária. E sem gastar, também, a boa vontade do Ministro Barroso em sempre cuidadosamente analisar os documentos e apontar todos os enormes defeitos dos planos de controle da pandemia nos povos indígenas. Não é possível aceitar que o Sr. Presidente simplesmente opte por, deliberadamente, ignorar a decisão judicial da Eg. Corte Suprema, não a cumprindo por seu simples prazer pessoal de, ideologicamente, não ver qualquer motivo para a boa tutela da saúde dos povos indígenas. Do descumprimento de decisões judiciais e Sistema Interamericano e Direitos Humanos 3.7.1. O Governo Bolsonaro não elaborou um Plano de Proteção da TI Yanomami, conforme decisão judicial proferida pelo TRF 1ª. Região, descrita no item 1.21 desta petição, dentre os quais destaco: - Equipes fixas para combate dos ilícitos em pontos estratégicos onde há garimpo na Terra Yanomami; - Efetivo adequado para ações de repressão e investigações; - Disponibilização alimentos, insumos, serviços e equipamentos; - Relatórios a cada 15 dias para comprovar que a determinação judicial está sendo cumprida; - Garantia de imediata retirada de todos os garimpeiros não indígenas; - Medidas para não agravar o risco de contaminação na região, as equipes de atuação devem adotar as medidas sanitárias necessárias. 3.7.2. O Governo Bolsonaro não efetivou as Medidas Cautelares expedidas pela CIDH da OEA para retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami. [...]A CIDH listou três medidas a serem tomadas pelo governo brasileiro tendo em vista a presença “dos requisitos de gravidade, urgência e irreparabilidade”: Adote as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros dos povos indígenas Yanomami e Ye´kwana, implementando, de uma perspectiva culturalmente apropriada, medidas preventivas contra a disseminação da COvid-19, além de lhes fornecer atendimento médico adequado em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros internacionais aplicáveis; Acordar as medidas a serem adotadas com os beneficiários e seus representantes; e Relatar as ações adotadas para investigar os fatos que levaram à adoção dessa medida cautelar e, assim, evitar sua repetição” (Pedido nº 67 - Autores: Deputada Federal Joênia Wapichana (REDE), lideranças indígenas, mais 19 deputados, 2 senadores e 16 organizações indígenas – Link para

íntegra: https://apublica.org/impeachment-bolsonaro/wp- content/uploads/sites/38/2021/02/pedido-de-impeachment-pelos-povos-indigenas.pdf)

III. EXPOSIÇÃO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE PRATICADOS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA.

66. Nesse tópico, serão estruturados os elementos descritivos da prática de atos e omissões pelo Presidente da República, suficientes a configurar seu enquadramento em condutas legalmente típicas do cometimento de crimes de responsabilidade.

67. Os fatos narrados em pormenores abaixo, acompanhados de sua dedução lógico- jurídica, em estrita formulação lastreada na disciplina legal acerca dos crimes de responsabilidade, conduziram centenas de cidadãos, partidos políticos, parlamentares, intelectuais, artistas e entidades dos movimentos populares e da sociedade civil a se mobilizarem, por intermédio de seus representantes, para a formalização de pedidos de impeachment.

68. A seguir serão relacionados fatos que configuram diversos crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente da República desde o início do atual governo, com a desconstrução em marcha batida do projeto democrático-constitucional vigente desde 1988, ocasionando graves violações institucionais e aos direitos humanos em diversos matizes, pondo em marcha severas ameaças à vida, à saúde, á integridade física, à higidez ambiental e à segurança alimentar de milhões de brasileiros.

69. O governo do atual Presidente da República tem correspondido à antítese do programa constitucional em vigor, mediante a grosseira e brutal desconstituição de políticas de promoção econômica de contingentes desfavorecidos socialmente, de frustração da inclusão e da integração de grupos vulneráveis ou vitimados por discriminações históricas ou morais, de aniquilação das esperanças de conservação de legados importantes para as gerações futuras, no que concerne ao meio ambiente, aos recursos naturais, à soberania nacional, ao progresso dos níveis educacionais e às boas condições de saúde da população.

70. Essas condutas representam graves crimes de responsabilidade, na medida em que ficam claras as condutas do Presidente que atentam contra a existência da União, o livre exercício dos poderes da República, os direitos políticos, individuais e sociais, além da segurança interna do país e a probidade da administração.

71. As entidades e os cidadãos que, em articulação nacional, decidiram denunciar Jair Bolsonaro por seus delitos acreditam que somente o seu afastamento e a responsabilização jurídico- política de todos os representantes de seu governo que levam adiante as políticas destrutivas representadas pelo seu projeto político, são capazes de recolocar o país nos trilhos da observância e do predomínio da Constituição da República.

a) Fatos e condutas relacionados à desastrosa condução do governo federal diante da pandemia da Covid-19, que resultou, até o momento, na morte de mais de 500 mil brasileiros.

72. As políticas de saúde também foram severamente afetadas pela atuação criminosa de Jair Bolsonaro. Além da desarticulação do Sistema Único de Saúde (SUS), que já vinha sendo posta em prática no primeiro ano de gestão, a pandemia da COVID-19 escancarou o desprezo do atual governo pela proteção à saúde da população.

73. O presidente da República menosprezou o problema desde que chegou ao país o Sars-Cov-2 (novo coronavírus), causador da doença conhecida como Covid-19, ora mencionando tratar- se de uma “gripezinha”, ora buscando realizar campanhas contra o distanciamento social preconizado pela Organização Mundial da Saúde como modo mais eficaz de conter o avanço da doença. Ou seja, diante da mais grave crise de saúde pública da história do país, o Presidente da República, irresponsavelmente, oscilou entre o negacionismo, o desprezo e a sabotagem assumida das políticas de prevenção e atenção à saúde dos cidadãos brasileiros.

74. Jair Bolsonaro buscou, ainda, descredibilizar instituições científicas nacionais de renome e represou os recursos destinados à finalidade de combater o vírus, além de incentivar a população a medicar-se com fármacos sem eficácia comprovada no enfrentamento da doença, como a hidroxicloroquina, buscando omitir dados que demonstram a gravidade da pandemia que agora assola o Brasil, principal epicentro atual da contaminação. E, pior, buscou afrontar a autoridade de prefeitos e governadores, interferindo sucessivamente nas escolhas administrativas locais, para impedir que fossem adotadas medidas de proteção à população.

75. Em sentido contrário às orientações de caráter sanitário, especialmente no âmbito da Organização Mundial da Saúde7, o presidente da República, em pronunciamento veiculado na noite de 24.3.2020, em cadeia nacional, refutou a necessidade de isolamento social em face da pandemia, criticando o fechamento de escolas e do comércio, minimizando as consequências da enfermidade e, com isso, transmitindo à população brasileira sinais de desautorização das medidas sanitárias em curso, adotadas e estimuladas pelo próprio governo federal. Posteriormente, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República publicou em sua conta do Instagram8 uma matéria, seguida de um vídeo divulgado nas redes sociais que seria a campanha do governo federal para o enfrentamento da pandemia, com os seguintes conteúdos9:

No mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do coronavírus entre jovens e adultos". A quase totalidade dos óbitos se deu com idosos. Portanto, é preciso proteger estas pessoas e todos os integrantes dos grupos de risco, com todo cuidado, carinho e respeito. Para estes, o isolamento. Para todos os demais, distanciamento, atenção redobrada e muita responsabilidade. Vamos, com cuidado e consciência, voltar à normalidade" #oBrasilNãoPodeParar

Para os quase 40 milhões de trabalhadores autônomos, #oBrasilNãoPodeParar. Para os ambulantes, engenheiros, feirantes, arquitetos, pedreiros, advogados, professores particulares e prestadores de serviço em geral, #oBrasilNãoPodeParar. Para os comerciantes do bairro, para os lojistas do centro, para os empregados domésticos, para milhões de brasileiros, #oBrasilNãoPodeParar. Para todas as empresas que estão paradas e que acabarão tendo de fechar as portas ou demitir

7https://news.un.org/pt/story/2020/03/1708272) 8Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-JwjLeHSWy/?igshid=12plbgxy42p5x 9Link do vídeo divulgado por Flávio Bolsonaro, onde ao final aparece a logomarca do governo federal: https://www.facebook.com/flaviobolsonaro/videos/198469951450285/

funcionários, #oBrasilNãoPodeParar. Para dezenas de milhões de brasileiros assalariados e suas famílias, seus filhos e seus netos, seus pais e seus avós, #oBrasilNãoPodeParar. Para os milhões de pacientes das mais diversas doenças e os heroicos profissionais de saúde que deles cuidam, para os brasileiros contaminados pelo Coronavírus, para todos que dependem de atendimento e da chegada de remédios e equipamentos, #oBrasilNãoPodeParar. Para quem defende a vida dos brasileiros e as condições para que todos vivam com qualidade, saúde e dignidade, o Brasil definitivamente não pode parar”.

76. Segundo matéria do jornal Folha de S. Paulo de 26 de março de 2020 10 , o presidente da República não possuía qualquer estudo técnico para embasar a sua defesa do chamado “isolamento vertical”, ou seja, aquele restrito aos grupos de maior risco de morte por conta da doença. Contrariava ainda a experiência dos demais países que tinham enfrentado com mais antecedência a pandemia11 e publicações, como a elaborada pelo segundo o time de resposta ao Covid-19 do Imperial College (Imperial College COVID-19 Response Team), do Reino Unido, em trabalho denominado “The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression”,12 de 26 de março de 2020. Segundo o estudo, numa projeção para os próximos 250 dias (contados na ocasião), a diferença entre uma política de não-mitigação ou supressão social (normalidade de vida econômico-social) para uma política de quarentena horizontal precoce e ampla podia ser de mais de 1 milhão e cem mil vidas no Brasil. O presidente da República, portanto, sem base empírica, resolveu assumir o risco dessas mortes ao veicular expressamente o desprezo aos alertas lançados pela comunidade científica em relação às perspectivas de agravamento severo da mortalidade causada pela pandemia no país.

77. Numa outra vertente, é preciso pontuar que o enfrentamento às pandemias depende de um esforço do conjunto das nações, tendo em vista que a grande circulação humana, ultrapassando as fronteiras nacionais, é um dado irrecusável dos dias atuais. Com esse propósito, o Brasil aderiu ao Regulamento Sanitário Internacional, aprovado na 58º Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 23 de maio de 2005, e, recentemente, por meio do Decreto 10.212, de 30 de janeiro de 2020, promulgou o texto revisado do regulamento. O Regulamento Sanitário Internacional (RSI) tem por objetivos, conforme está expresso na Portaria do Ministério da Saúde MS nº 1.865,

10https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/governo-bolsonaro-admite-a-estados-nao-ter-estudo-que-embase- isolamento-vertical.shtml 11 https://oglobo.globo.com/mundo/isolamento-maior-gasto-publico-conheca-as-medidas-tomadas-pelos-20-paises-com- mais-casos-da-covid-19-24332153 12Disponível em https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College- COVID19-Global-Impact-26-03-2020.pdf. Acesso nesta data.

“oferecer a máxima proteção em relação à propagação de doenças em escala mundial, mediante o aprimoramento dos instrumentos de detecção, prevenção e controle de riscos de saúde pública” e avaliar e aperfeiçoar as “capacidades dos serviços de saúde pública para detectar e oferecer resposta apropriada aos eventos que possam se constituir em emergência de saúde pública de importância internacional”. Para isso; a RSI prevê, em seu art. 4.1, que “cada Estado parte deverá designar ou estabelecer um Ponto Focal Nacional para o RSI e as autoridades responsáveis em suas respectivas áreas de jurisdição pela implementação de medidas de saúde em conformidade com este regulamento”. No Brasil, a Portaria MS nº 1.865, de 10 de agosto de 2006, estabeleceu a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde como Ponto Focal Nacional, informação que foi encaminhada à Organização Mundial da Saúde no mesmo ano.

78. Em 6 de fevereiro de 2020, veio a ser editada a Lei nº 13.979, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2109”. O § 1º de seu art. 3º estipulou que “as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde”. Assim, seja no plano interno, seja no plano internacional, o Brasil estava comprometido a enfrentar a pandemia conferindo centralidade ao Ministério da Saúde, o qual, por sua vez, deveria guiar-se exclusivamente por evidências científicas. O presidente da República, no entanto, ao seu talante, numa atitude inteiramente estranha à responsabilidade do cargo, deu início à recomendação de medicamentos cuja eficácia ainda não havia sido convenientemente testada para a Covid-19 e conclamou a população, repetidamente, a sair às ruas e retomar as suas atividades cotidianas, desafiando o protocolo de distanciamento social que passaram a constituir, em todo o planeta, a chave para provocar a redução da propagação avassaladora do vírus. Em meio à pandemia, foram exonerados dois Ministros da Saúde, não em razão de suas fragilidades ou erros (ainda que os tivessem), mas paradoxalmente em virtude de seus acertos: Henrique Mandetta13, demitido, por não concordar com o afrouxamento do isolamento social, e Nelson Teich14, que saiu por discordar do Presidente nesse mesmo aspecto e também quanto ao fomento governamental do uso indiscriminado da cloroquina. No dia 25 de

13https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/16/mandetta-anuncia-em-rede-social-que-foi-demitido-do-ministerio-da- saude.ghtml 14 https://oglobo.globo.com/sociedade/saida-de-nelson-teich-do-ministerio-da-saude-repercute-negativamente-na- comunidade-medica-24429464

maio de 2020, saiu do governo o Secretário Nacional de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde15, ponto focal do Brasil na OMS e responsável, desde o início da pandemia, pelo seu acompanhamento e pela avaliação das estratégias de seu enfrentamento. Mais uma vez, a razão foi a discordância de Bolsonaro em relação a condutas prudentes, implementadas com base científica.

79. Essa gestão errática e irresponsável, a olhos vistos, contribuiu decisivamente para que o Brasil rapidamente se tornasse o país com mais contaminações e mortes em escala diária, alcançando o segundo maior contingente em adoecimentos e perdas de vidas humanas, de cerca de 18.000.000 de infectados e mais 500 mil mortos na presente data.16 A estratégia do presidente da República, voltada a fomentar a chamada imunidade de rebanho como método de superação da pandemia revelou-se um retumbante fracasso, cujos custos foram cobrados em muilhares de vidas humanas.17 Com efeito, declarações destinadas a convencer a população de que “pegar a doença é a melhor vacina” provocaram um total descontrole da pandemia em nosso país.

80. A constatação profundamente dramática da análise desses dados e da escalada da pandemia em nosso país decorre do efeito evitável retardado da disseminação da doença em território brasileiro, em comparação com países que experimentaram semanas antes os efeitos do desprezo ao imperativo do isolamento social, a exemplo de Itália, Espanha e EUA.

81. A marcha acelerada e muitíssimo mais letal da pandemia da Covid-19 no Brasil, escandalosamente, foi uma fria e criminosa escolha política do Presidente da República, que ignorou orientações e compromissos com a ciência e com o engajamento em diretrizes de organismos internacionais formalmente internalizadas no Ordenamento Jurídico brasileiro.

15 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/24/secretario-de-vigilancia-do-ministerio-da-saude-diz-que- deixara-o-cargo-na-segunda 16 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2021/06/20/500-mil-mortos-por-covid-de-cada-425-brasileiros-um-foi-levado- pela-pandemia.ghtml 17 https://diplomatique.org.br/genocidio-pandemia-e-o-horror-de-500-mil-vidas-interrompidas/

82. O Presidente da República, em sua aterradora linha de atuação, reagiu com indescritível falta de responsabilidade diante da grave desordem na saúde e na economia nacionais. Passou a atacar autoridades, esferas do poder e entes da federação por sua correta implementação de políticas de prevenção e respostas fundamentadas em bases científicas. Agiu o mandatário para subtrair deliberadamente os mecanismos de intervenção eficaz do Estado na pandemia. A estratégia foi retornar à sua militância mais fiel, mais raivosa e mais anti-institucional, aumentando, de forma intensificada, a permanentemente auto-exaltação. E, em especial, precisava fazer uso do seu maior capital: uma tropa virtual de características milicianas, produtoras de veementes e exaustivos discursos de ódio e inverdades. Seus apoiadores não falharam e atacaram os governadores e prefeitos que adotaram políticas de distanciamento social, propalando uma atitude delirante originada da conduta pessoal do próprio Presidente da República18.

b) Fatos e condutas relacionados à aquisição de vacinas e insumos para enfrentamento da pandemia da Covid-19

83. Desde meados de 2020, pesquisas científicas submetidas a rigorosos critérios metológicos têm indicado que a ferramenta mais eficaz para conter o rápido avanço da pandemia da Covid-19 seria a adequada adoção de estratégias de distanciamento social, com uso de equipamentos de proteção e rápidas campanhas de vacinação, tão logo os imunizantes se fizessem disponíveis.

84. Nada obstante, desde o primeiro momento, o ora Denunciado buscou estimular um comportamento cético diante das vacinas, suscitando dúvidas infundadas a respeito de sua eficácia e tornando a incentivar a adoção da comprovadamente infrutífera estratégia de “imunidade de rebanho”. Chegou, inclusive, ao ponto de ameaçar não custear a aquisição de doses da vacina Coronavac, produzida em parceria técnica entre o Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac.

85. Com o único intuito de levar a cabo uma disputa partidária com adversários políticos, o presidente da República proferiu declarações que desestimularam publicamente a necessária

18 https://oglobo.globo.com/brasil/nas-redes-sociais-crescem-ataques-de-bolsonaristas-governadores-24384581

campanha de vacinação, que podem ser enquadradas no art. 9º, 7, da Lei nº 1.079/1950 (proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo). Vejam-se:

Referindo-se à aquisição da Coronavac pelo Ministério da Saúde: “se ele assinou, já mandei cancelar, porque quem manda sou eu, não abro mão da minha autoridade. Nada será despendido agora para comprarmos uma vacina chinesa que eu desconheço, mas nenhum país está interessado nela” – outubro de 202019. Referindo-se à aquisição da Coronavac pelo Ministério da Saúde: “e outra coisa: ninguém vai tomar tua vacina na marra, não, tá ok? Procura outro. Eu que sou governo, o dinheiro não é meu, é do povo, não vai comprar tua vacina. Procura outro pra comprar tua vacina” – outubro de 202020. Referindo-se à aquisição da vacina da Pfizer pelo Ministério da Saúde: “O idiota que está dizendo que eu sou um péssimo exemplo... eu já tive o vírus, eu já tenho anticorpos, para quê tomar vacina de novo? (...) Na Pfizer, tá bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você” – dezembro de 202021.

“Todos que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma mais eficaz que a própria vacina, porque você pegou o vírus pra valer” – junho de 202122.

86. A má-gestão das políticas de saúde em meio à crise sanitária da Covid-19 é, ainda, agravada com indícios consistentes de tolerância do governo federal com atos de dilapidação do patrimônio público, a respeito dos quais se mostra necessária dilação probatória a ser levada a cabo no curso do processo de impeachment.

87. No que se refere à Covid-19, após se notabilizar por uma atitude avessa à aquisição de vacinas e ao estímulo à sua aplicação, o presidente da República passou a ser envolvido em denúncias de conivência com negociações lesivas ao interesse público para a compra da vacina indiana Covaxin. Tais suposições devem ser objeto de apuração instrutória uma vez admitida e processada a presente denúncia sob a forma de processo de impeachment perante o Congresso Nacional.

19 https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2020/10/21/ja-mandei-cancelar-diz-bolsonaro-sobre-protocolo-de- intencoes-de-vacina-do-instituto-butantan-em-parceria-com-farmaceutica-chinesa.ghtml. 20 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/10/29/interna_politica,1199606/procura-outro-para-pagar-a-tua-vacina- diz-presidente-bolsonaro-doria.shtml. 21 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/12/4895582-bolsonaro-o-imbecil-eu-ja-tive-o-virus-para-que-tomar- vacina.html. 22 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/06/17/interna_politica,1277931/bolsonaro-volta-a-pedir-a-queiroga- estudo-para-desobrigar-uso-de-mascara.shtml.

88. Com efeito, ao longo do ano de 2020, época estratégica para que fossem celebrados pré-contratos e contratos voltados a garantir o suprimento de vacinas à população brasileira, o presidente Jair Bolsonaro reiteradamente esquivou-se de adotar medidas concretas e tempestivas em resposta às ofertas de fabricantes de vacinas contra a doença, sobretudo as sucessivas mensagens emitidas pela laboratório Pfizer, 23 que quedaram prolongadamente não respondidas, inclusive pelo gabinete presidencial.24

89. Enquanto isso, em postura delirante e absolutamente temerária, o presidente da República priorizou, sem qualquer respaldo científico, o investimento na utilização de hidroxicloroquina, mediante propaganda pessoal,25 aliada ao irresponsável estímulo à determinação de uso e a distribuição de kits inadequados do chamado tratamento precoce,26 divulgada em site oficial,27 com efeitos desastrosos para os pacientes.28

90. Não há dúvida acerca dos severos prejuízos sofridos pela população brasileira em decorrência da demora e da omissão na aquisição de vacinas e insumos para sua aplicação, mesmo após a oferta por indústrias farmacêuticas reconhecidas.

91. Ademais, o presidente da República dedicou-se à tentativa de desacreditar as vacinas fabricada por centros de referência nacionais, tais o Instituto Butantã29 e a Fiocruz.30 Por outro lado, numa desatinada ofensiva político-ideológica sem a menor lógica ou proveito, Jair Bolsonaro passou a atacar os esforços para a aquisição de vacinas produzidas na China.31

23 https://www.dw.com/pt-br/os-principais-pontos-do-depoimento-do-executivo-da-pfizer/a-57523824 24 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/governo-ignorou-10-emails-da-pfizer-sobre-vacinas-em-1-mes-mostram- documentos-da-cpi.shtml https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/01/08/pfizer-diz-que-ofereceu-proposta-para-brasil-comprar-vacinas-em-agosto 25 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/incentivada-por-bolsonaro-principal-fabricante-de-cloroquina-diz-a-cpi- da-covid-que-vendas-subiram-30.shtml 26 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/03/31/interna_politica,1252411/governo-bolsonaro-paga- influenciadores-para-defender-uso-do-kit-covid.shtml 27 https://www.metro1.com.br/noticias/saude/100861,ministerio-da-saude-planeja-investir-r-250-milhoes-em-kit-covid- sem-eficacia-comprovada 28 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/03/29/uso-de-medicamentos-do-kit-covid-pode-ter-provocado-a-morte- de-tres-pessoas-em-sp-outro-paciente-fez-transplante-de-figado.ghtml 29 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/02/05/interna_politica,1235414/bolsonaro-recusou-tres-ofertas-de- vacina-do-butantan-em-2020.shtml 30 https://piaui.folha.uol.com.br/fiocruz-na-mira-do-bolsonarismo/ 31 https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/10/21/nao-compraremos-a-vacina-da-china-diz-bolsonaro-em-rede- social.ghtml

92. No ano de 2021, contudo, diante do agravamento dos efeitos da pandemia, sobretudo a partir da chamada segunda onda, 32 o presidente da República alterou em parte seus posicionamentos, oscilando entre críticas à vacinação e autoglorificação do seu governo pela aquisição da vacinas, 33 não obstante fossem frequentes a partir de então os cancelamentos de entregas e retardamento de entregas, motivadas, lógico, pelo atraso das iniciativas governamentais.34

93. Nesse contexto, em meio aos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada no Senado da República para investigar a gestão governamental da pandemia, 35 emergiu uma grave denúncia formulada por um deputado federal integrante até então da base de apoio do presidente da República (deputado Luis Miranda – DEM/DF). Segundo o parlamentar, teria havido sérias irregularidades no processo administrativo de compra da vacina indiana Covaxin, com o conhecimento e a complacência do presidente da República, que embora conhecedor dos fatos, a ele levados por servidor do Ministério da Saúde irmão de deputado, nada teria concretizado para apurar a denúncia, conquanto houvesse declarado intenção de fazê-lo, dizendo-se consciente de que o próprio líder do governo (deputado federal Ricardo Barros – PP-PR) seria o agente das negociações espúrias em questão.36

Líder do governo é citado em caso Covaxin, e CPI avalia acionar STF por crime de prevaricação de Bolsonaro 25.jun.2021 às 21h06Atualizado: 26.jun.2021 às 16h53 O deputado Luis Miranda (DEM-DF) disse à CPI da Covid nesta sexta-feira (25) que o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), foi o nome atribuído pelo presidente Jair Bolsonaro às supostas irregularidades na compra da vacina indiana Covaxin.

“A senhora também sabe que foi o Ricardo Barros que o presidente falou. Eu não me sinto pressionado para falar, eu queria falar desde o primeiro momento, mas é porque

32 https://oglobo.globo.com/sociedade/pela-primeira-vez-na-segunda-onda-brasil-supera-eua-em-media-de-mortes-por- covid-19-1-24918265 33 https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/bolsonaro-anuncia-recorde-mensal-de- distribui%C3%A7%C3%A3o-de-vacinas-contra-covid-19-1.624059 34 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,atraso-de-vacinas-por-falta-de-insumos-eleva-risco-de-terceira-onda-da- covid-19-no-brasil,70003715860 35 https://www.migalhas.com.br/quentes/343613/rodrigo-pacheco-oficializa-instauracao-da-cpi-da-covid 36 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/servidor-reafirma-a-cpi-alerta-a-bolsonaro-sobre-pressao-por-vacina-e- diz-que-colega-citou-pedido-de-propina.shtml

vocês não sabem o que vou passar", disse Miranda, após ser questionado diversas vezes sobre qual parlamentar teria sido citado pelo mandatário.

O deputado e seu irmão, o servidor Luis Ricardo (Ministério da Saúde), prestaram depoimento durante quase oito horas à comissão no Senado. Eles reafirmaram que Bolsonaro foi alertado sobre as supeitas que cercam a negociação da Covaxin.

A existência de denúncias de irregularidades em torno da compra da vacina indiana foi revelada pela Folha no dia 18, com a divulgação do depoimento sigiloso ao Ministério Público Federal do servidor, que é chefe da divisão de importação da Saúde.

O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), afirmou na noite desta sexta que há fortes indícios de que Bolsonaro cometeu crime de prevaricação e que a comissão avalia enviar notícia-crime ao STF (Supremo Tribunal Federal). "Estão dados todos os elementos do crime de prevaricação", disse.

O senador disse que vai averiguar se o comando do colegiado pode enviar o documento diretamente ao Supremo ou se há necessidade de ser deliberado pelos demais parlamentares.

Após revelar o nome de Barros, o deputado Miranda sugeriu inércia de Bolsonaro para impedir as supostas irregularidades. "Que presidente é esse que tem medo de pressão de quem está fazendo algo errado, desvia dinheiro público das pessoas morrendo da porra dessa Covid?", disse Miranda.

Em nota publicada nas redes sociais, Barros afirmou que não participou de nenhuma negociação para a compra da Covaxin. “Não sou esse parlamentar citado. A investigação provará isso”, escreveu o deputado.

As declarações sobre a Covaxin arrastaram Bolsonaro ao centro das investigações da CPI da Covid. O presidente pediu agora para a Polícia Federal investigar o deputado e o servidor, mas ainda não explicou se encaminhou os alertas de irregularidades à época da conversa com o deputado Miranda.

O governo fechou contrato para compra de 20 milhões de doses da Covaxin em 25 de fevereiro, por R$ 1,6 bilhão, no momento em que tentava aumentar o portfólio de imunizantes e reduzir a dependência da Coronavac, que chegou a ser chamada por Bolsonaro de “vacina chinesa do João Doria”.

Fabricada pela Bharat Biotech, a vacina é negociada no Brasil pela Precisa Medicamentos, empresa que tem no quadro societário a Global Gestão em Saúde S. A.

Ricardo Barros e a Global respondem a uma ação de improbidade por contrato de R$ 20 milhões assinado em 2017 pela empresa com o Ministério da Saúde, para importação de medicamentos para doenças raras. À época, o deputado era o chefe da pasta, e produtos não foram entregues.

Barros afirmava que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o suposto lobby da indústria travaram as importações. Os senadores da CPI da Covid, agora, querem saber ligação entre Barros, a Global e a Precisa.

Nesta sexta-feira, após o depoimento do deputado Miranda, membros da CPI pediram a convocação do líder do governo na Câmara.

Em 2021, o deputado Barros apresentou emenda a uma medida provisória para flexibilizar a análise da agência de vacinas registradas na Índia, o que beneficiou diretamente a Covaxin. O deputado nega atuar pela vacina, e afirma que parlamentares da oposição apresentaram proposta de mesmo teor.

Nesta sexta, o deputado Miranda disse inicialmente à CPI que não lembrava o nome do parlamentar citado por Bolsonaro e que o presidente parecia não ter forças para "combater" as supostas irregularidades.

"Vocês sabem quem é, né? Sabem que ali é foda. Se eu mexo nisso aí, você já viu a merda que vai dar, né. Isso é fulano. Vocês sabem que é fulano", disse Bolsonaro, segundo Miranda.

A revelação do nome de Barros ocorreu após questionamentos da senadora (MDB-MS) e foi comemorado pelos senadores críticos das ações do governo na pandemia.

O deputado e o servidor ainda reafirmaram à CPI que havia erros na documentação usada para pedir a importação das doses da Covaxin e, sem dar detalhes, mencionaram cobrança de propina durante a negociação por um imunizante.

Segundo Luis Ricardo, a ofensiva de chefes da pasta pela importação das doses ocorreu mesmo após técnicos perceberem, na documentação, dados diferentes daqueles registrados no contrato.

"Toda a equipe do setor não se sentiu confortável com essa pressão e a falta de documentos. Como meus dois superiores estavam pressionando, eu acionei e conversei com o meu irmão. Que passou [o caso] ao presidente", disse o servidor.

O servidor Luis Ricardo citou à CPI relato de que a negociação por uma vacina havia travado por cobrança de propina de gestores da pasta.

"O ministério estava sem vacina e um colega de trabalho, Rodrigo, servidor, me disse que tinha um rapaz que vendia vacina e que esse rapaz disse que os seus, alguns gestores, estavam pedindo propina", afirmou o servidor. O diálogo teria ocorrido com um servidor terceirizado da Saúde chamado Rodrigo de Lima.

A Folha revelou que o servidor Luis Ricardo já havia dito ao MPF, em 31 de março, que recebeu uma “pressão atípica” para agilizar a importação da vacina. Dias antes, em 20 de março, o servidor e o deputado foram até o presidente Bolsonaro para alertar sobre as supostas irregularidades.

O deputado Miranda disse que avisou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello sobre a denúncia levada a Bolsonaro.

“Expliquei para Pazuello de forma resumida... Aí ele olhou pra minha cara com uma cara de descontentamento e falou assim: 'Luis, no duro, mas nessa semana, é certeza, eu vou ser exonerado. Eu tenho conhecimento de algumas coisas, tento coibir, mas, exatamente por eu não compactuar com determinadas situações, é que, assim, eu vou ser exonerado'."

O parlamentar também mostrou à CPI uma imagem de conversa com o irmão pelo celular, que menciona o suposto pedido de propina na Saúde. O diálogo ocorreu em 20 de março deste ano.

"Aquele rapaz que me procurou dizendo que tem vacina. Disse que não assinaram porque os caras cobraram dele propinas para assinar o contrato. Vou perguntar se ele tem provas", disse o servidor público ao deputado.

A imagem mostra que, em seguida, Luís Ricardo relatou ter recebido "mais uma ligação" pedindo para acelerar o trâmite de importação da vacina. O telefonema partiu do coordenador dele, segundo o print da tela.

O deputado e o servidor disseram à CPI que Bolsonaro prometeu encaminhar os indícios de irregularidades à direção da PF. Miranda ainda afirmou que o presidente especulou ligação de um parlamentar com o caso —que apenas horas mais tarde seria nominado.

"O presidente entendeu a gravidade. Olhando os meus olhos, ele falou: 'Isso é grave'. Não me recordo do nome do parlamentar, mas ele até citou um nome pra mim, dizendo: 'Isso é coisa de fulano'", relatou Miranda, sem mencionar o nome do parlamentar.

Luis Ricardo disse aos senadores que havia erros na documentação apresentada pela Precisa Medicamentos, representante da fabricante Bharat Biotech no Brasil.

Segundo o servidor, a invoice (fatura) exigida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para liberar a importação estava no nome da Madison, uma empresa de Singapura, ligada à Bharat.

O documento ainda citava pagamento antecipado de US$ 45 milhões pelas doses, que estariam próximas do fim da validade. Estes dados eram diferentes do que havia sido registrado no contrato do governo federal com a Precisa, disse o servidor.

O documento com supostas falhas foi levada ao presidente Bolsonaro no dia 20, segundo os depoentes. Entre 23 e 24 de março, o papel foi retificado duas vezes pela Precisa, a pedido dos técnicos do ministério, e passou a registrar que o desembolso só ocorreria após a chegada das doses.

Luis Ricardo disse que não quis assinar os papeis exigidos para a importação por causa das falhas. Segundo o servidor, a fiscal do contrato Regina Célia Silva Oliveira, servidora da Saúde, deu aval para o processo seguir, mesmo com dados ainda divergentes.

O papel ainda estava no nome da Madison e tinha erro no volume de doses que embarcaria ao Brasil, segundo Luis Miranda.

O presidente da CPI, (PSD-AM), então, disse que a fiscal do contrato será convocada para depor.

A Anvisa negou este pedido de importação. O embarque das doses só foi liberado no último dia 4, sob restrições. As doses, porém, ainda não chegaram, e o governo avalia anular o contrato da Covaxin.

O servidor disse que relatou ao presidente Bolsonaro que três de seus superiores na Saúde o haviam pressionado para agilizar os trâmites de importação da vacina.

Luis Ricardo citou os nomes de Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde; do tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde e do coronel Marcelo Bento Pires, ex- diretor de Programa do Ministério da Saúde.

O servidor explicou que não recebeu pedidos para antecipar o pagamento pelas doses, pois não trata da área que faz os desembolsos. A pressão era para encaminhar os documentos exigidos na importação. Luis Ricardo também não relatou à CPI ter recebido propostas de propina.

Já o deputado apresentou à comissão um documento de 6 de abril que mostra um pedido de reunião com o mininstro da Saúde, , para tratar de "assuntos referentes a ilegalidades", além de "outros temas relacionados com as vacinas", mas não chegou a explicar se a reunião ocorreu.

O governo federal nega irregularidades, alega que o documento foi retificado para retirar a exigência do pagamento antecipado, e minimiza que a fatura esteja em nome da Madison.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), afirmou na reunião da CPI que não há sobrepreço nas doses ou falhas no processo de compra. "Os preços promovidos pela Bharat Biotech são uniformes", disse.

Miranda disse que já havia alertado o governo, em outras ocasiões, sobre possíveis irregularidades em contratos do Ministério da Saúde.

O deputado afirmou que até encaminhou o telefone do irmão ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), quando relatou "outros problemas" em 2020.

Ele ainda teria repassado dois "dossiês" ao ministro (DEM) com dados também levantados por Luis Ricardo.

Ex-youtuber e defensor da reforma tributária —projeto que esperava ser relator—, Miranda precisou dedicar parte do mandato para responder às acusações de estelionato e crimes eleitorais. O governo cita o currículo do deputado para tentar minimizar as declarações sobre a compra da Covaxin.

O deputado chegou à CPI usando colete à prova de balas e segurando uma Bíblia. Ele retirou a proteção na sala da CPI. Durante um intervalo da comissão, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) chegou a empurrar Luis Miranda. Os dois foram separados pelo senador (PT-PE). A cena foi gravada pela câmera de segurança do Senado Federal.

Quando a sessão voltou, o senador governista Marcos do Val acusou Luis Miranda de ameaça: "O deputado federal chegou e fez uma ameaça à minha pessoa." Miranda rebateu: "Ah, prova..." "Ele me desrespeitou como pessoa e como senador da República. E eu disse: 'Você está na casa do Senado'", insistiu o senador.

O senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) disse na audiência que não é próximo de Francisco Emerson Maximiano, sócio da Precisa.

Ele reconheceu que participou de uma videoconferência com o empresário e representantes do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas disse que reunião não tratou de vacinas.

"Eu o conheço por pessoas em comum aqui, em Brasília. Eu não tenho absolutamente nada, nenhum vínculo com ele", disse o filho do presidente.

Maximiano também é sócio da Global Gestão em Saúde S. A., empresa que recebeu R$ 20 milhões antecipados em 2017 do Ministério da Saúde para uma entrega de medicamentos que nunca ocorreu.

Tanto a Global como o empresário estão no quadro societário da Precisa.

Luis Ricardo disse que as duas empresas têm má fama no Ministério da Saúde, e que a relação entre elas foi descoberta por técnicos da pasta por notícias veiculadas na imprensa.

Atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR) era ministro da Saúde à época do contrato. Barros, a Global, além de técnicos que atuaram no contrato de 2017 respondem a uma ação de improbidade por causa do descumprimento do contrato.

Maximiano deve prestar depoimento à CPI da Covid na próxima semana. A comissão também pediu a quebra dos sigilos do empresário.

Luis Ricardo afirma que recebeu ligações do empresário. Ele também mostrou imagens de superiores repassando o contato de Maximiano, para que o servidor público o procurasse.

94. O servidor público Luis Ricardo Miranda relatou à CPI, portanto, que alertou o presidente Bolsonaro sobre a existência de pressões pela compra da vacina Covaxin, no âmbito do ministério da Saúde, citando ter tido conhecimento de pedido de propina associado a tal negociação.

95. Em depoimento complementar, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) atribuiu ao presidente da República a menção específica do nome do líder do governo, Ricardo Barros (PP/PR), como responsável pelo esquema irregular de compra de vacinas em operação no ministério da Saúde, inclusive aludindo a outros problemas da mesma natureza vinculados à atuação do mesmo parlamentar citado.

96. De acordo com o depoimento do deputado Luis Miranda, o presidente da República absteve-se de tomar qualquer providência apuratória ou no sentido de inibir tais práticas irregulares relaciondas ao desvio de verbas públicas, sugerindo haver superfaturamento em favor de interesses protegidos pelo chefe de governo.

97. Cumpre ressaltar que a narrativa do parlamentar denunciante acrescenta que Bolsonaro teria sinalizado a intenção (não convretizada) de acionar a Direção Geral da Polícia Federal

para proceder às devidas investigações, o que sugere conhecimento dos fatos, da autoria e da via apropriada de apuração de tais desvios.

98. Tendo em vista os indícios de abstenção de providências do presidente da República, ao ser informado de potenciais delitos administrativos, possivelmente configuradores de práticas criminais comuns, a macular contrato de compra de 20 milhões de doses de vacinas da Covaxin, ao preço de 1,6 bilhão de reais, é imperativo que o processo de impeachment a ser instaurado aprofunde a investigação em torno da prática potencial de crime de responsabilidade catalogado no art. 9º, inciso 3 da Lei nº 1.079/1950, porquanto há indícios da incorrência do mandatário denunciado em conduta de “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrparios à Constituição”.

99. Recente entrevista do servidor público denunciante, que teria resistido a envolver- se com o esquema de superfaturamento e desvio de recursos públicos confirma os desdobramentos que implicam o presidente da República na conduta leniente com tais irregularidades.37

EXCLUSIVO: Em entrevista, servidor da Saúde relata que avisou Bolsonaro sobre suspeitas na importação da vacina Covaxin

NONE JUNE 23, 2021

BRASÍLIA - Após se recusar a assinar um recibo que previa um pagamento antecipado pela importação da vacina indiana Covaxin, o servidor concursado do Ministério da Saúde Luis Ricardo Fernandes Miranda diz em entrevista ao GLOBO ter se encontrado pessoalmente com o presidente Jair Bolsonaro no dia 20 de março para denunciar as suspeitas sobre a importação do imunizante. Segundo ele, o presidente teria se comprometido a encaminhar o caso para a Polícia Federal.

37

O contato entre Luis Ricardo e Bolsonaro foi feito por meio do irmão do servidor, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF). Ambos estiveram no Palácio da Alvorada num encontro registrado com fotos e mensagens que serão apresentadas à CPI da Covid na próxima sexta-feira.

Ao GLOBO, Luis Ricardo diz ter denunciado ao presidente as suspeitas envolvendo a Covaxin e apresentado um material que comprovaria que houve um pedido de pagamento fora do contrato para importar três lotes com data próxima do vencimento.

Caso esse documento tivesse sido assinado pelo servidor, a empresa poderia cobrar um pagamento que considerava indevido no valor de US$ 45 milhões (R$ 222,6 milhões). O contrato para a compra da Covaxin com o Ministério da Saúde não prevê pagamento antecipado.

Em entrevista, o servidor relatou também uma "pressão anormal" no processo para agilizar o envio da documentação à Anvisa e pedir a importação da vacina Covaxin. A agência reguladora negou o pedido, já que a farmacêutica indiana não tinha cumprido os requisitos necessários para conseguir a emissão de um certificado de boas práticas.

O Palácio do Planalto foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.

Leia abaixo a entrevista.

Qual é o seu trabalho no ministério?

Eu trabalho no ministério como servidor público, concursado desde 2011. Sempre lotado no departamento de logística. Estou à frente da importação do ministério desde 2016. Somos responsáveis por toda a importação de insumos estratégicos para a Saúde. Vacina, medicamentos, enfim. Somos a ponta do processo. Após a construção de assinaturas de contrato, de todo o processo, somos a parte final, a ponta para que o medicamento, a vacina chegue ao Brasil e seja distribuída a toda a população.

O senhor relatou ao Ministério Público Federal (MPF) que houve pressão no caso da Covaxin. Como se deu essa pressão?

A gente executou primeiro o embarque internacional de vacina do consórcio Covax (Facility, da OMS). A OPAS, devido à dificuldade de todos os países quererem adquirir as vacinas do consórcio, a OPAS conseguiu algumas doses para o Brasil. A documentação ficou pronta só vinte e quatro horas, se eu não me engano, antes do voo chegar no Brasil. A gente fez todo o processo de importação, junto com a Anvisa, a Receita Federal e o aeroporto. Conseguimos realizar o desembaraço. Não teve nenhuma pressão, ligação, reunião, algo muito intenso, por parte dos gestores para a realização desse processo. No caso máximo, se eu não me engano, foi quando chegou essa vacina, o primeiro embarque.

No caso da Covaxin, houve muito questionamento, como estava a documentação, muita reunião e faltava documentação técnica. A documentação apresentada estava muito divergente do que estava estipulado no contrato. A equipe por parte nossa, da importação, não se sentiu segura e confortável para a execução daquele processo, daquela importação.

Veio ordens superiores para que fosse solicitada a autorização pela Anvisa, mesmo não tendo toda a documentação completa. Eu me isentei como chefe de assinar esse processo. É um ofício que solicita uma excepcionalidade, que chama. Foi assinado por um outro gestor e a gente fez a solicitação para a Anvisa, a qual foi negada.

Quando o senhor diz que recebeu ordens, essas ordens partiram de quem?

No relato ao Ministério Público, eu (disse) que sou subordinado a um coordenador geral, o qual eu citei no meu depoimento, que é o Alex Lial Marinho, era o coordenador da CGLOG, coordenação logística de insumos estratégicos da Saúde, que cuida da distribuição e recebimento de vacinas. O diretor do departamento de logística, Roberto Ferreira Dias. E tive contato também com um assessor da Secretaria Executiva. Coronel Pires.

Como foi essa ligação do coronel Pires fora do horário de trabalho?

Eu recebi esse contato, né? Da Secretaria Executiva, desse coronel Pires. “Precisamos fazer tudo para ajudar, o representante da empresa veio agora à noite falar. Com o secretário executivo, Élcio, para agilizar as licenças de importação para embarcar as vacinas ainda esta semana.” (Essa ligação ocorreu em 19 de março, segundo o servidor, às 23h de sexta-feira.)

Como foi o contato com o seu irmão naquele momento? Qual a informação que o senhor queria levar adiante?

Devido à falha de documentação, a inconsistência com o contrato e também as pressões, a equipe se sentiu desconfortável. Eu como tenho um irmão, Luis Miranda, ao qual eu confio muito, né, por ser meu irmão de sangue, relatei toda a situação pra ele. E passamos a situação para a autoridade superior. Ele me convidou se eu estava disposto a levar isso ao presidente Bolsonaro.

Como foi esse encontro com o presidente Jair Bolsonaro?

Eu apresentei toda a documentação, o contrato assinado, as pressões que estavam acontecendo internamente no Ministério, e a gente levou até a casa do presidente, conversamos com ele, mostramos todas as documentações, as pressões, e ele ficou de, após a reunião, falar com o chefe da Polícia Federal para investigar. Isso foi no dia 20 de março.

Como foi a reação de Bolsonaro?

Ele disse que realmente estava muito estranha a situação. Ele ficou, posso dizer, não sei, surpreso. Disse que confia no pessoal do Ministério e não tinha conhecimento de tudo, de detalhe, e que ia investigar.

Por que decidiram levar esse caso ao presidente?

Ele é o chefe do Poder Executivo, ao qual detém conhecimento de todas as situações que estão passando no governo, e ao qual cabe a sua responsabilidade verificar todas as inconsistências, às vezes que não chegam até ele.

Depois do encontro com o presidente Bolsonaro, mudou alguma coisa no Ministério?

Como teve a negação da autorização pela Anvisa, ficou um desgaste entre o Ministério e a Anvisa. Então, eles evitaram de ter que acontecer isso novamente e se reuniram, o ministério com a empresa, para ver toda documentação completa e depois dar entrada.

O que você explicou exatamente ao presidente sobre possíveis irregularidades?

Toda a documentação é fornecida pela empresa, são documentos à respeito da carga, documentos técnicos, de certificados, estudos da vacina, a gente recebe esse documento pela empresa. A invoice é similar a uma nota fiscal no Brasil, um documento que demonstra aos órgãos responsáveis que foi feita uma compra, uma venda ou qualquer tipo de transação internacional importada. O que foi apresentada pela empresa foi essa invoice.

O que te chamou atenção nesse recibo?

A gente não faz parte de licitação, somos área de execução, somos a ponta para que a vacina chegue ao país. É passado o contrato para a nossa área para execução. O que a gente faz é verificar o que diz o contrato e a documentação que a empresa apresentou para a gente seguir o contrato. Esses levantamentos que a gente fez, questão de pagamento, quantidade de doses, a questão da empresa que estava divergente, a gente verificou essas inconsistências.

Essa terceira empresa que apareceu no processo, divergindo do contrato, traria prejuízo ao país?

Sim, há questão de prejuízo por envolver o recebimento de uma quantidade menor, num valor altíssimo, fora do acordado, essa empresa é totalmente divergente do contrato, algo que não é legal, porque se você tem um contrato assinado com um fornecedor quem tem que te fornecer é aquele fornecedor, não uma empresa terceira que você desconhece, que não assinou.

E a forma como tudo isso aconteceu diverge totalmente de processos que você lidou antes?

Sim. Acontecem erros pontuais na invoice que não são tão discrepantes em relação ao contrato.

O que foi mais estranho no processo todo para você?

Achei estranho a questão da pressão, porque a gente é uma área que é a ponta final. A gente está acostumado a lidar com urgências, com pressões, mas elas foram muito fora do comum. Fora essa questão da documentação não estar completa, tudo isso. A gente está acostumado a ter pressão, mas isso foi muito além.

Como era essa pressão?

Acontecia muita reunião, muita ligação, inclusive na sexta-feira à noite e final de semana para perguntar ‘e aí, a empresa mandou documentação?’, ‘como é que tá?’, ‘cobra a empresa’.

O coronel Alex Lial, coordenador da área, também pressionava?

Ele sempre perguntava, como está a Covaxin, como está a importação, tem mensagem de texto dizendo que era prioridade máxima. Ele sempre questionava a gente para saber se está tudo ok. Era constante.

Qual foi a sua preocupação como servidor que te levou a sentir desconfortável para levar isso até o presidente?

Como havia muita inconsistência, bastante pressão, isso gerou suspeita, né, insegurança. Nosso baseado é o contrato, que é a lei, e ele estava divergente. Então falei com meu irmão para verificar se estava legal. Acesso em 29/06/2021. Disponível em:

100. Destaque-se que a consistência dos fatos apresentados na denúncia sobre a compra irregular de vacinas veio a ser corroborada por documentos obtidos junto ao próprio ministério da Saúde.38

Covaxin: e-mails da Saúde indicam que é autêntica fatura de compra apontada como falsa pelo governo

Ministério pediu correção em compra da vacina indiana três dias depois da data em que servidor, junto com deputado federal irmão dele, disse ter apresentado suspeitas ao presidente Bolsonaro.

38 Acesso em 29/06/2021. Disponível em: < Covaxin: e-mails da Saúde indicam que é autêntica fatura de compra apontada como falsa pelo governo | CPI da Covid | G1 (globo.com) >

Por Sara Resende, Paloma Rodrigues e Marcelo Parreira, TV Globo — Brasília 24/06/2021 17h14 - Atualizado há 3 dias

E-mails trocados entre o Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos — recebidos pela CPI da Covid aos quais a TV Globo teve acesso — indicam a veracidade da "invoice" (fatura) de compra da vacina indiana Covaxin tratada como possivelmente falsa pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República.

A Precisa é a empresa brasileira que intermediou a negociação para aquisição pelo governo da Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. A compra pelo governo de doses da Covaxin se tornou o principal tema da CPI nesta semana. Um servidor do Ministério da Saúde afirmou ter encontrado indícios de corrupção na compra e disse que informou o presidente Jair Bolsonaro sobre essas suspeita (vídeo abaixo).

No último dia 19 de março, a fatura entregue pela empresa ao Ministério da Saúde aponta a compra de 300 mil caixas de vacinas por US$ 150 a unidade.

Quatro dias depois, em 23 de março, um funcionário do Ministério pediu a correção da fatura, pedindo mais especificações. No novo documento, o produto passa a ser detalhado por dose, de 3 milhões de vacinas, além de apontar detalhes da entrega, como peso e validade do produto.

O deputado Luiz Miranda (DEM-DF) e o irmão dele, Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor do Ministério da Saúde, disseram que, em 20 de março, apontaram ao presidente Jair Bolsonaro o erro no documento inicial (com data de 19 de março). Eles afirmaram ter alertado o presidente de que havia indício de corrupção no processo.

Primeira versão da "invoice" (fatura) da aquisição das vacinas da Covaxin — Foto: Reprodução

"Documento com erro (e, ao que tudo indica, falso)", publicou o perfil oficial da secretaria.

Mas e-mail trocado entre o ministério e a empresa indica a autenticidade do documento enviado.

Em 23 de março, o funcionário William Amorim Santana, do Ministério da Saúde, pediu à empresa uma correção da fatura.

"Prezado Fornecedor, após análise de nosso despachante na INVOICE apresentada, faz-se necessário a adequação da documentação bem como prestar, na INVOIVE, os dados listados abaixo", entre os quais, o quantitativo que seria enviado em cada caixa, peso e validade do produto.

As correções

As correções foram realizadas. Entre essas correções, constava a informação de que as vacinas seriam enviadas em 300 mil caixas com 16 frascos cada. Também indica a validade de 24 meses.

Assim, a nova fatura (imagem abaixo) aponta detalhes que antes estavam ausentes na "invoice" original entregue pela empresa e agora apontada como falsa pelo governo.

Segunda versão da "invoice" (fatura) de aquisição da Covaxin, corrigida — Foto: Reprodução

Mais tarde, no mesmo dia, o funcionário voltou a pedir correções.

"Após observar a documentação, observei que está com a informação "100% advanced payment" (pagamento antecipado). Informo que o contrato 29/2021 não prevê pagamento antecipado. A modalidade é “Póstecipado”. Também foi observado que os valores de frete e seguro divergem do contrato", disse em e-mail divulgado pelo governo.

"Peço a gentileza que observe o valor unitário de 15.00 US$ do produto, bem como o valor do frete e seguro. Esse valor não pode ser alterado. Feitas as ponderações, solicito a gentileza de providenciar a correção dos apontados acima", continuou.

A Precisa Medicamentos respondeu a solicitação do funcionário no mesmo dia: "William, Já havia pedido essa retificação, e me enviaram."

Empenho para aprovação

Os documentos também mostram o empenho do Ministério da Saúde em acelerar a aprovação da vacina indiana Covaxin no Brasil com a resolução de impasses na documentação exigida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O ministério optou pela modalidade de aprovação de importação de doses junto à Anvisa, com o importador sendo o responsável legal pela adoção das estratégias de monitoramento e cumprimento das diretrizes de farmacovigilância.

A opção por essa modalidade foi possível graças à aprovação de uma lei pelo Congresso Nacional e sancionada em 10 março pelo presidente Jair Bolsonaro. Logo depois, em 23 de março, o ministério pediu a importação das 20 milhões de doses da Covaxin. Essas doses haviam sido contratadas em 25 de fevereiro pelo governo.

O funcionário William Amorim Santana tratou do tema junto à empresa.

"Recebemos comunicado da ANVISA, no qual esta solicita complementação de documentos para continuidade do processo. Faço uma observação quanto aos itens abaixo, com destaque para os em negrito", apontou o ministério em e-mail à Precisa.

Em ao menos 20 emails, o ministério apontou problemas e buscou soluções para a Precisa Medicamentos na documentação apresentada pela empresa.

As correspondências também mostram que o processo foi tumultuado junto à Anvisa.

"Encarecemos que as manifestações no âmbito desse processo sejam centralizadas por esse ministério", pediu a Anvisa. "O motivo de tal solicitação se deve ao fato de que a interveniente, Precisa Medicamentos, tem, por intermédio de mensagens eletrônicas (e-mail), copiado setores e diretorias da Anvisa com informações alusivas ao processo, o que pode causar tumulto à instrução processual."

Mesmo após a atuação do Ministério da Saúde, a Covaxin não conseguiu liberação pela Anvisa — a importação foi negada pela agência em 31 de março.

Desde então, o ministério solicitou reuniões com a Anvisa a fim de tratar da importação. As reuniões de pré-submissão devem ser, por regra, pedidas pelo importador.

Foram realizadas ao menos quatro reuniões com a Anvisa durante o mês de abril para tratar das pendências da vacina Covaxin.

A TV Globo teve acesso às atas dos encontros, nos quais foram apresentadas pendências identificadas pela área técnica da Anvisa sobre o processo de fabricação do imunizante.

"O representante do Ministério da Saúde destacou que o referido processo de importação é um processo novo e que o novo pedido será instruído pelo Ministério", apontou ata da primeira reunião com a Anvisa, em 9 de abril.

Um novo pedido de importação foi apresentado em 25 de maio e aprovado pela Anvisa em 4 de junho com restrições, entre as quais, o número de doses limitado.

Acesso em 29/06/2021. Disponível em: < Covaxin: e-mails da Saúde indicam que é autêntica fatura de compra apontada como falsa pelo governo | CPI da Covid | G1 (globo.com) >

101. Convém destacar, ainda, outra recente denúncia de corrupção na negociação de vacinas fornecidas pela empresa AstraZeneca, consoante informações fornecidas por executivos dos entes privados envolvidos na negociação. Veja-se matéria jornalística veiculada pela Folha de S. Paulo em 30.6.2021.39

EXCLUSIVO: Governo Bolsonaro pediu propina de US$ 1 por dose, diz vendedor de vacina O representante de uma vendedora de vacinas afirmou em entrevista à Folha que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde. Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply, disse que o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, cobrou a propina em um jantar no restaurante Vasto, no Brasília Shopping, região central da capital federal, no dia 25 de fevereiro. Roberto Dias foi indicado ao cargo pelo líder do governo de Jair Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Sua nomeação ocorreu em 8 de janeiro de 2019, na gestão do ex-ministro Luiz

39 Acesso em 29.6.2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/exclusivo-governo-bolsonaro- pediu-propina-de-us-1-por-dose-diz-vendedor-de- vacina.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha.

Henrique Mandetta (DEM). A Folha buscou, sem sucesso, contato com Dias na noite desta terça. Ele não atendeu as ligações. A empresa Davati buscou a pasta para negociar 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca com uma proposta feita de US$ 3,5 por cada (depois disso passou a US$ 15,5). "O caminho do que aconteceu nesses bastidores com o Roberto Dias foi uma coisa muito tenebrosa, muito asquerosa", disse Dominguetti. A Folha chegou a Dominguetti por meio de Cristiano Alberto Hossri Carvalho, que se apresenta como procurador da empresa no Brasil e também aparece nas negociações com o ministério. Segundo Cristiano, Dominguetti representa a empresa desde janeiro. "Eu falei que nós tínhamos a vacina, que a empresa era uma empresa forte, a Davati. E aí ele falou: 'Olha, para trabalhar dentro do ministério, tem que compor com o grupo'. E eu falei: 'Mas como compor com o grupo? Que composição que seria essa?'", contou. "Aí ele me disse que não avançava dentro do ministério se a gente não composse com o grupo, que existe um grupo que só trabalhava dentro do ministério, se a gente conseguisse algo a mais tinha que majorar o valor da vacina, que a vacina teria que ter um valor diferente do que a proposta que a gente estava propondo", afirmou à Folha o representante da empresa. Dominguetti deu mais detalhes: "A eu falei que não tinha como, não fazia, mesmo porque a vacina vinha lá de fora e que eles não faziam, não operavam daquela forma. Ele me disse: 'Pensa direitinho, se você quiser vender vacina no ministério tem que ser dessa forma". A Folha perguntou então qual seria essa 'forma'. "Acrescentar 1 dólar", respondeu. Segundo ele, US$ 1 por dose. "E, olha, foi uma coisa estranha porque não estava só eu, estavam ele [Dias] e mais dois. Era um militar do Exército e um empresário lá de Brasília", ressaltou Dominguetti. Questionado se teria certeza que o encontro foi com o diretor de Logística do ministério, Dominguetti respondeu: "Claro, tenho certeza. Se pegar a telemetria do meu celular, as câmeras do shopping, do restaurante, qualquer coisa, vai ver que eu estava lá com ele e era ele mesmo". "Ele [Dias] ainda pegou uma taça de chope e falou: 'Vamos aos negócios'. Desse jeito. Aí eu olhei aquilo, era surreal, né, o que estava acontecendo." "Eu estive no ministério, com Élcio [Franco Filho, ex-secretário-executivo do ministério], com o Roberto, ofertando uma oferta legítima de vacinas, não comprou porque não quis. Eles validaram que a vacina estava disponível." Segundo Dominguetti, o jantar ocorreu na noite do dia 25 de fevereiro, na véspera de uma agenda oficial com Roberto Dias no Ministério da Saúde e um dia após o país ter atingido a marca de 250 mil mortos pela pandemia do coronavírus. "Fui levado com a proposta para o ministério e chegando lá, faltando um dia antes de eu vir embora, recebi o contato de que o Roberto Dias tinha interesse em conversar comigo sobre aquisição de vacinas", disse. "Quando foi umas 17h, 18h [do dia 25], meu telefone tocou. Me surpreendi que a gente ia jantar. Fui surpreendido com a ligação de que iríamos encontrar no Vasto, no shopping. Cheguei lá, foi onde conheci pessoalmente o Roberto Dias", afirmou. Dominguetti disse que recusou o pedido de propina feito pelo diretor da Saúde. "Aí eu falei que não fazia, que não tinha como, que a vacina teria que ser daquela forma mesmo, pelo preço que estava sendo ofertado, que era aquele e que a gente não fazia, que não tinha como. Aí ele falou que era para pensar direitinho e que ia colocar meu nome na agenda do ministério, que naquela noite que eu pensasse e que no outro dia iria me chamar".

Dominguetti continuou então o relato daqueles dois dias. "Aí eu cheguei no ministério para encontrar com ele [Dias], ele me pediu as documentações. Eu disse para ele que teriam que colocar uma proposta de compra do ministério para enviar as documentações, as certificações da vacina, mas que algumas documentações da vacina eu conseguiria adiantar", afirmou. Segundo ele, o encontro na Saúde não evoluiu. "Aí ele [Dias] me disse: 'Fica numa sala ali'. E me colocou numa sala do lado ali. Ele me falou que tinha uma reunião. Disso, eu recebi uma ligação perguntando se ia ter o acerto. Aí eu falei que não, que não tinha como." "Isso, dentro do ministério. Aí me chamaram, disseram que ia entrar em contato com a Davati para tentar fazer a vacina e depois nunca mais. Aí depois nós tentamos por outras vias, tentamos conversar com o Élcio Franco, explicamos para ele a situação também, não adiantou nada. Ninguém queria vacina", afirmou. Segundo ele, Roberto Dias afirmou que "tinha um grupo, que tinha que atender a um grupo, que esse grupo operava dentro do ministério, e que se não agradasse esse grupo a gente não conseguiria vender". Questionado pela Folha sobre que "grupo" seria esse, ele respondeu: "Não sei. Não sei quem que eram os personagens. Quando ele começou com essa conversa, eu já não dei mais seguimento porque eu já sabia que o trem não era bom". A suspeita sobre a compra de vacinas veio à tona em torno da compra da vacina indiana Covaxin, quando a Folha revelou no último dia 18 o teor do depoimento sigiloso do servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda ao Ministério Público Federal, que relatou pressão "atípica" para liberar a importação da Covaxin. Desde então, o caso virou prioridade da CPI no Senado. A comissão suspeita do contrato para a aquisição da imunização, por ter sido fechado em tempo recorde, em um momento em que o imunizante ainda não tinha tido todos os dados divulgados, e prever o maior valor por dose, em torno de R$ 80 (ou US$ 15 a dose). Meses antes, o ministério já tinha negado propostas de vacinas mais baratas do que a Covaxin e já aprovadas em outros países, como a Pfizer (que custava US$ 10). A crise chegou ao Palácio do Planalto após o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), irmão do servidor da Saúde, relatar que o presidente havia sido alertado por eles em março sobre as irregularidades. Bolsonaro teria respondido, segundo o parlamentar, que iria acionar a Polícia Federal para que abrisse uma investigação. A CPI da Covid, no entanto, averiguou e constatou que não houve solicitações nesse sentido para a PF. Ao se manifestar sobre o assunto, Bolsonaro primeiro disse que a Polícia Federal agora vai abrir inquérito para apurar as suspeitas e depois afirmou que não tem “como saber o que acontece nos ministérios”. Nesta terça, o Ministério da Saúde decidiu suspender o contrato com a Precisa Medicamentos para obter 20 milhões de doses da Covaxin. Segundo membros da pasta, a decisão atual é pela suspensão até que haja novo parecer sobre o caso. A pasta, porém, já avalia a possibilidade de cancelar o contrato. Já nesta segunda-feira (28) a Folha também revelou que o advogado do deputado Ricardo Barros atuou como representante legal da vacina chinesa Convidecia no Brasil, participando inclusive de reunião com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Sócio do genro de Barros até março deste ano, o advogado Flávio Pansieri participou de reunião com a Anvisa no último dia 30 de abril. Segundo o site da agência, a pauta da reunião referia-se às “atualizações sobre a desenvolvimento da vacina do IVB [Instituto Vital ] & Belcher & CanSinoBio a ser submetida a uso emergencial para a Anvisa”.

Integrantes da CPI da Covid querem apurar a negociação da Convidecia com o Ministério da Saúde. A empresa Belcher Farmacêutica, com sede em Maringá (PR), atuou como representante no país do laboratório CanSino Biologics no Brasil, responsável pelo imunizante. No último domingo (27), Barros divulgou nota por ter sido citado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) em depoimento à CPI da Covid como parlamentar que atuou em favor da aquisição de vacinas superfaturadas. Para se defender, o líder do governo apresentou a íntegra da defesa preliminar enviada à Justiça Federal. O documento é assinado por Pansieri. O advogado também assumiu a defesa de Barros no STF (Supremo Tribunal Federal), após o deputado ter sido delatado por executivos da construtora Galvão Engenharia. Além de atuar na defesa de Barros, Pansieri acompanhou o líder do governo durante encontro com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto no dia 24 de fevereiro, durante a posse do deputado do centrão João Roma (Republicanos-BA) como ministro da Cidadania.

102. Embora as revelações acima não digam respeito diretamente ao favorecimento pessoal do presidente da República, é certo que, diante de sua conhecida ingerência sobre as políticas de saúde, associada à sua tolerância com atos praticados por seu líder parlamentar Ricardo Barros, conforme alegações trazidas à CPI do Senado pelo deputado Luis Miranda, deve tal denúncia merecer especial atenção por parte da instância processante que se requer seja instaurada, mormente para que se apure eventual conduta ímproba capaz de imputar ao chefe do Poder Executivo o cometimento de maisum grave crime de responsabilidade previsto no art. 9º, incso 3 da Lei de Impeachment.

103. É preciso sublinhar que o processo de impeachment permite a produção de provas, inclusive mediante a oitiva de testemunhas. E diante do alcance dos danos inerentes aos desvios denunciados consoante a matéria jornalística acima, torna-se pertinente incluir o protesto para a avaliação do envolvimento do presidente da República em tais fatos, por eventuais ações ou omissões que tenham favoreido a ocorrência das irregularidades, nas quais seu líder de governo estaria implicado.

104. Por tal razão, incluem-se no rol de testemunhas ora indicado os Senhores Luiz Paulo Dominguetti Pereira, representante da empresa Davati Medical Supply, e Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, a fim de que esclareçam a respeito de eventual participação e/ou tolerância do Denunciado diante dos fatos narrados na matéria jornalística.

c) Fatos e condutas relacionados ao descumprimento de medidas de prevenção à disseminação da Covid-19. 105. Em uma outra perspectiva, mostra-se necessário analisar a responsabilidade do Presidente da República à luz do enfrentamento do atual contexto de pandemia da doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), causador da doença denominada COVID-19.

106. Os fatos que serão a seguir mencionados, no contexto da profunda crise sanitária decorrente da disseminação do novo coronavírus em território nacional agregam fatores consideráveis ao panorama de violações das obrigações do Presidente da República em relação ao exercício do cargo.

107. Desde a eclosão da emergência de saúde em escala mundial, o Presidente da República assumiu uma postura absolutamente temerária e irresponsável em seus atos e pronunciamentos versando sobre o tema. A descrição das atitudes do chefe do Poder Executivo frente à crise sanitária sem precedentes expõe de modo cabal absoluta ausência de responsabilidade governamental e capacidade de liderança da nação, à míngua da necessária exação ante as elevadas exigências do período, no qual as incumbências presidenciais deveriam resguardar a assistência aos cidadãos nos quesitos fundamentais relacionados à conservação da saúde e da vida.

108. Com efeito, o Presidente da República adotou comportamento de viés antagônico e contraproducente ao esforço do Ministério da Saúde e de diversas instâncias da Federação vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) e aos serviços de prevenção, atenção e atendimento médico-hospitalar à população.

109. Como se poderá conformar pela narrativa a seguir, as atitudes do Presidente da República tiveram caráter substancialmente atentatório ao bem-estar e à proteção da vida e da saúde de brasileiros e brasileiras, em reiterado e perigoso menosprezo à gravidade da emergência de saúde decretada pelo próprio governo federal, no sentido de perpetrar intencional sabotagem das cautelas sociais e medidas governamentais indispensáveis à contenção dos efeitos devastadores de uma catástrofe

sanitária em pleno estágio de avanço, sem considerar sequer as evidências traduzidas na escalada do número de diagnósticos e mortes associadas à pandemia no país.

110. Desde 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou os países para o surgimento de uma nova enfermidade descoberta na província de Hubei, na China. Em 30 de janeiro de 2020, a OMS reconheceu a existência de emergência de saúde pública de importância internacional (ESPII)40. A partir de então, autoridades de distintas nações têm adotado medidas para conter o avanço da doença, que, no entanto, já atingiu todos os continentes, contaminando um total de cerca de 5 milhões de indivíduos.

111. Em razão da orientação geral de distanciamento e isolamento social, em 6 de fevereiro foi promulgada a Lei nº 13.979 que estabeleceu as “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus pelo surto de 2019” e as primeiras disposições sobre os serviços públicos e atividades essenciais.41

112. Após edição da referida Lei, houve um agravamento do quadro de disseminação da doença no País, ao passo que, em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia.42 Posteriormente, em 20 de março, o Ministério da Saúde do Brasil declarou a existência de transmissão comunitária da COVID-19 em todo o território nacional e determinou que todos os gestores nacionais adotassem medidas para “promover o distanciamento social e evitar aglomerações, conhecidas como medidas não farmacológicas, ou seja, que não envolvem o uso de medicamentos ou vacinas”.43 113. No Brasil, o primeiro caso de contaminação pela doença foi registrado em 26 de fevereiro na cidade de São Paulo. Atualmente, o país é segundo com maior número de pessoas infectadas

40 https://nacoesunidas.org/oms-declara-coronavirus-emergencia-de-saude-publica-internacional/. 41 Essa Lei estabeleceu que fica assegurado às pessoas afetadas pelas medidas previstas no referido artigo “o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional”. Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. 42 OPAS Brasil. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora- caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em: 25 mar. 2020. 43 BRASIL. Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-ministerio-da- saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional. Acesso em: 25 mar 2020.

e mortes no mundo. Segundo dados coletados em 13 de julho de 2020, o Brasil atingiu a marca de 1.864.681 casos da doença e o total de mortes chegou a 72.100. Os Estados com mais mortes acumuladas no Brasil são: São Paulo (17.848), Rio de Janeiro (11.415), Ceará (6.868), (5.595) e Pará (5.289)44. O país possui, atualmente, o segundo maior número de casos e mortes confirmados entre todos os países do planeta e é um dos poucos com curva em franca ascensão, como se verifica do comparativo a seguir:

114. Em que pese a adoção inicial de diretrizes de distanciamento social e o anúncio, por parte do governo federal, de que seriam adotadas medidas de proteção dos direitos da população à luz do Regulamento Sanitário Internacional, no Brasil as medidas de enfrentamento à pandemia esbarraram e continuam esbarrando no negacionismo, ou na minimização da gravidade do problema,

44 Os dados são do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A entidade criou uma plataforma para registrar os dados sobre o novo coronavírus no país após o Ministério da Saúde excluir de seu boletim epidemiológico diário o número total de pessoas infectadas pelo Sars-Cov-2, assim como o total de mortes e a curva de evolução da doença no país. Os dados atualizados estão disponíveis em: http://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.

por parte do Presidente da República, o que impacta de modo muito negativo e determinante na forma como o problema vem sendo tratado no país. Com isso, a crise não apenas se agravou, como também durou mais tempo, causando ainda maiores danos sanitários e econômicos.

115. Em 24 de março, em pronunciamento oficial, Jair Bolsonaro referiu-se à doença causada pelo novo coronavírus como uma “gripezinha” e criticou governados e prefeitos que têm determinado quarentena com fechamento de escolas, comércio e fronteiras.45 No final do mês de abril, quando o país contabilizava 2.575 mortes e 40.581 casos confirmados, ao ser indagado sobre o número de mortos, o Presidente voltou a menosprezar a gravidade da situação e sua responsabilidade nesse contexto. Na ocasião, afirmou “todos nós iremos morrer um dia” e agregou, em tom jocoso, “não sou coveiro, tá?”.46

116. O menosprezo retórico e o negacionismo por parte da mais alta autoridade pública do Estado brasileiro é, por si só, extremamente grave, pois retardou o reconhecimento da gravidade da situação no país e a adoção de medidas de prevenção e cuidado, por parte de autoridades públicas e, também, da sociedade.

117. Estudo científico elaborado por pesquisadores da Universidade Federal do ABC “Ideologia, isolamento e morte: uma análise dos efeitos do bolsonarismo na pandemia de COVID-19” indica que em praticamente todas as ocasiões em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia isso acarretou quedas significativas nas taxa de isolamento social em todos os Estados da Federação, sem exceção. O estudo indica, ainda, que “mais pessoas morreram, proporcionalmente, nos municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018”47.

45 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-bolsonaro-na- integra.htm 46 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por- coronavirus.ghtml 47 O estudo ainda não foi publicado, mas os dados foram amplamente noticiados pela imprensa nacional e internacional. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/falas-de-bolsonaro-contra-isolamento-podem-ter-matado- mais-seus-eleitores-aponta-estudo.shtml

118. A postura negacionista do governo federal brasileiro foi expressamente registrada pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, durante a 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Na ocasião, a Alta Comissária alertou que essa postura está ampliando os impactos da crise sanitária e colocou o país ao lado de outros negacionistas, como Burundi, Nicarágua, Tanzânia e Estados Unidos. Bachelet afirmou: “Preocupa-me que declarações que negam a realidade do contágio viral, e a crescente polarização sobre questões-chave, possam intensificar a gravidade da pandemia, minando os esforços para conter sua propagação e fortalecer os sistemas de saúde”. E alertou para a situação especialmente grave dos indígenas e da população afrodescendente no país.48

119. Além disso, o Presidente da República segue rejeitando a orientação de isolamento social, em flagrante contrariedade a consensos científicos e diretrizes dos Organismos Internacionais. No final do mês de maio, o Presidente voltou a se manifestar publicamente em defesa da retomada das atividades comerciais.49

120. O desrespeito do Presidente brasileiro às diretrizes científicas para o enfrentamento da pandemia vai desde a inobservância da medida sanitária mais basilar, como o uso de máscara50, até o protocolo médico relativo à administração de medicamentos. Em que pese a inexistência de comprovação por estudos científicos da eficácia destes medicamentos no tratamento da covid-19, o Governo Federal publicou em maio uma recomendação para que o sistema público de saúde passe a prescrever cloroquina e a hidroxicloroquina a pacientes com sintomas leves da doença.51

48 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/02/itamaraty-omite-na-onu-dimensao-da-pandemia-e-diz-que- protege-indigenas.htm?cmpid=copiaecola 49 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/26/bolsonaro-volta-a-criticar-isolamento-social-nao- da-para-continuar-assim.htm 50 Apesar da existência de norma legal que determina a obrigatoriedade do uso de máscara em todo o Distrito Federal, o Presidente não tem utilizado o equipamento. A situação foi levada à Justiça que, em decisão de 22 de junho de 2020, determinou “ao réu Jair Messias Bolsonaro a obrigatoriedade de utilizar máscara facial de proteção, em todos os espaços públicos, vias públicas, equipamentos de transporte público coletivo e estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços do Distrito Federal, sob pena de cominação de multa diária, que desde já fixo em R$2.000,00 (dois mil reais)”. Decisão proferida no Processo n. 1032760-04.2020.4.01.3400. https://www.dn.pt/mundo/bolsonaro-obrigado- pelos-tribunais-a-usar-mascara-12343368.html 51 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/20/novo-protocolo-nao-autoriza-a-compra-de- cloroquina-na-farmacia-o-que-muda.htm

121. Outro grave problema é a baixa execução por parte da União do orçamento aprovado para combate à pandemia. Segundo especialistas do Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Governo Federal retém 60% do orçamento de emergência aprovado pelo Congresso contra pandemia, provocando falta do auxílio emergencial até recursos para hospitais. Alertam que: “após quatro meses de declaração de emergência nacional, apenas 40,1% do valor planejado no orçamento do governo federal para combater a pandemia do novo coronavírus foi de fato gasto: dos R$ 274 bilhões autorizados, somente R$ 110 bilhões foram pagos” e “a baixa execução dos valores orçamentários é sentida pela população, que, em grande parte, está sem acesso às políticas de enfrentamento à Covid-19”. 52 Essas omissões agravam a situação de vulnerabilidade de segmentos historicamente bastante impactados pela falta de acesso a políticas públicas e direitos.

122. Além disso, a postura negacionista do Presidente tem levado a um grande conflito entre este, de /um lado, e os governadores e prefeitos, de outro. Essa disputa constitui um dos problemas centrais da luta brasileira contra o novo coronavírus.

123. Desde o início da pandemia, o Governo Federal tentou centralizar a definição das medidas de enfrentamento à emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, especialmente a definição do funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais. A União pretendia centralizar a definição das medidas de distanciamento social, pautada na postura negacionista do Presidente da República. 124. A matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal que reconheceu que a União pode legislar sobre a essencialidade de atividades, mas que o exercício desta competência deve também resguardar a autonomia dos Estados e Municípios53.

125. A judicialização da questão não encerrou o conflito, o qual pode ser observado, especialmente, nos problemas de repasse de verbas da União para os outros entes da Federação. Bolsonaro já afirmou que irá suspender repasses para os Estados e, a partir da barganha orçamentária,

52 https://diplomatique.org.br/as-despesas-da-uniao-com-a-covid-19/. Aceso em: 29 jun 2020. 53 Julgamento ocorrido em 15 de abril de 2020. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341.

tem pressionado os Estados e Municípios para que flexibilizem o isolamento social e promovam a reabertura da economia.

126. Na reunião ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020 e à qual foi dada ampla visibilidade, o Presidente, em referência à postura dos outros entes da Federação no combate à pandemia, afirmou: “Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua”.54 É gravíssima a postura do Presidente de incitar que a população se arme para “se defender” ou “se insurgir” em face de medidas de distanciamento que venham a ser estabelecidas por Governadores e Prefeitos, chegando a proferir declarações mais recentes no seguinte sentido:

“Muitos governadores e prefeitos simplesmente ignoraram a grande maioria da população brasileira e sem qualquer comprovação científica, decretaram lockdowns, confinamentos e toque de recolher” – maio de 202155. “O povo não consegue mais ficar dentro de casa. O povo quer trabalhar. Esses que fecham tudo e destroem empregos estão na contramão daquilo que seu povo quer” – fevereiro de 202156. “E daqui pra frente, o governador que fechar o seu estado, o governador que destrói emprego, ele é que deve bancar o auxílio emergencial” – fevereiro de 202157. 127. Ademais, as políticas de reabertura econômica incentivadas pelo Presidente, em meio à curva ascendente de casos e mortes por Covid-19, repete erros já verificados em outros países, como os Estados Unidos da América, tais como: não respeitar a taxa de contágio, não avaliar a janela epidemiológica, não realizar coordenação nacional das ações de combate à pandemia e, sobretudo, manter o negacionismo em relação à gravidade da emergência sanitária58.

54 Transcrição da reunião ministerial disponível em: https://asmetro.org.br/portalsn/wp-content/uploads/2020/05/Leia- a-%C3%ADntegra-da-transcri%C3%A7%C3%A3o-da-reuni%C3%A3o-ministerial-com-Bolsonaro-_-CNN-Brasil.pdf 55 https://www.frontliner.com.br/em-ato-publico-no-rio-bolsonaro-mantem-posicao-contraria-ao-lockdown-e-defende- cidadania-e-renda/. 56 https://oglobo.globo.com/sociedade/com-mortes-por-covid-batendo-recorde-bolsonaro-diz-que-povo-nao-consegue- mais-ficar-dentro-de-casa-24901139. 57 https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/governadores-que-fecharem-estado-devem-pagar-auxilio-diz- bolsonaro. 58 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/12/que-erros-cometidos-pelos-eua-na-reabertura- foram-repetidos-no-brasil.htm.

128. Como consequência dos fatos acima narrados, de extrema gravidade institucional, constata-se a incorrência em crimes contra a segurança interna pelo Presidente da República, ao fazer periclitar, irresponsavelmente, políticas públicas cruciais à defesa da vida e da incolumidade física dos seus concidadãos, ofendendo predicados mínimos da prudência governamental, a ponto de incidir nas previsões arroladas no art. 8º, incisos 7 e 8 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.59

129. Em idêntico sentido e com igual enquadramento, vejam-se as seguintes declarações recentes do Denunciado:

“vocês não entraram naquela conversinha mole de ‘fica em casa’ e a economia a gente vê depois. Isso é para os fracos” – setembro de 202060. “Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Aqui todo mundo vai morrer (...) Tem que deixar de ser um país de maricas” – novembro de 202061. “Nós temos que voltar a viver, pessoal, sorrir, fazer piada, brincar, voltar aos estádios de futebol o mais cedo possível” – janeiro de 202162. “Tem-se aí um tratamento inicial, porque se falar outra palavra é crime. (...) Se tu começar a sentir um negócio esquisito lá, tu segue a receita do Ministro Mandetta. Cê vai pra casa, Quanto você tiver (imita uma pessoa com falta de ar) com falta de ar, tu vai no hospital” – março de 202163. “Chega de frescura, de mimimi, vão ficar chorando até quando?” – março de 202164. “Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é, nosso ministro da Saúde. E ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscaras por parte daqueles que já estejam vacinados ou já foram contaminados pra tirar esse símbolo” – junho de 202165.

59 Art. 8º São crimes contra a segurança interna do país: (...) 7- permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública; 8- deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado federal e necessário a sua execução e cumprimento. 60 https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-ficar-em-casa-e-conversinha-mole-para-os-fracos/. 61 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/10/29/interna_politica,1199606/procura-outro-para-pagar-a-tua-vacina- diz-presidente-bolsonaro-doria.shtml. 62 https://www.metropoles.com/sem-categoria/bolsonaro-diz-que-esta-na-hora-de-o-brasil-voltar-a-sorrir-e-fazer-piada. 63 https://www.poder360.com.br/coronavirus/bolsonaro-imita-pessoa-com-falta-de-ar-e-critica-mandetta/. 64 https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/chega-de-frescura-de-mimimi-vao-ficar-chorando-ate-quando-diz- bolsonaro-sobre-pandemia-1-24909333. 65 https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/10/bolsonaro-anuncia-parecer-que-desobriga-uso-de- mascara-por-vacinados.htm.

d) Fatos e condutas relacionados à desestruturação do sistema constitucional de proteção de direitos humanos individuais e sociais da Constituição de 1988.

130. No campo social, foi profundamente operada pelo Presidente da República e pelo seu governo a deterioração das relações trabalhistas, em desacordo flagrante com princípios e normas constitucionais de índole material ou institucional, mediante a adoção de medidas que favorecem demasiadamente empresas e conglomerados empresariais engajados politicamente na eleição e no suporte ao governo, em detrimento das condições de vida dos trabalhadores. Entre essas medidas, destacaram-se a extinção do Ministério do Trabalho, com o consequente enfraquecimento do sistema de fiscalização das condições de trabalho no Brasil; a obstaculização sistemática da eficácia das atividades de controle, fiscalização e autuação de auditores trabalhistas, com reflexos crescentes nos índices de sonegação de direitos dos trabalhadores e de incidência de trabalho em condições degradantes, forçadas ou análogas à escravidão, além da ocorrência de trabalho infantil.

131. Nessa mesma área, foi encerrada a política de valorização do salário mínimo (que permitia reajustes superiores à inflação para aqueles trabalhadores com menor remuneração), que vigorava há cerca de quinze anos. Registre-se, ainda, a tentativa despudorada de asfixia financeira dos sindicatos representativos de trabalhadores, por meio da burocratização excessiva e insuperável do pagamento das mensalidades sindicais. Merece crítica, ademais, o embaraço à ao funcionamento das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes de Trabalho nas Empresas. Não se deve desprezar a vigorosa debilitação de diversos direitos trabalhistas no contexto da pandemia da Sars-Cov-2 (COVID- 19), com a permissão para jornadas de trabalho extenuantes, redução de salários e suspensão de contratos, deixando trabalhadores desamparados durante período crítico da crise de saúde pública no país. As medidas implantadas pelo governo federal no mundo do trabalho terminam por ocasionar severos prejuízos aos trabalhadores, parte mais fraca da relação de emprego, e ainda ameaçam gravemente direitos sociais consagrados pela Constituição de 1988.

132. Quanto à temática ambiental, diversas condutas do Presidente e seu governo têm gerado severos riscos ao país. Além de priorizar interesses particulares de grandes violadores de normas ambientais, tem-se promovido verdadeiro assédio institucional aos servidores responsáveis pela fiscalização do cumprimento de normas protetivas do meio ambiente. A liberação de agrotóxicos avançou em ritmo inédito e o país notabilizou-se pelo desmatamento e pelos incêndios em áreas de preservação, em níveis nunca registrados. Como resultado dessa política, o Brasil tem perdido o financiamento externo de ações de proteção ambiental (tal como ocorrido com o fim do custeio do Fundo Amazônia pela Alemanha e pela Noruega) e investimentos externos em segmentos econômicos diversos, diante das preocupações com a condução do setor.

133. Em meio à pandemia da COVID-19, por outro lado, veio a público a intenção do governo de fazer “passar a boiada” em matéria de flexibilização das normas ambientais, em prol de empreendimento destruidores da natureza e de recursos naturais, ou seja, valer-se da distração da opinião pública com a emergência de saúde, conforme enunciado pelo próprio Ministro do Meio Ambiente em reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril de 2020, nas presença complacente do Presidente da República.

134. Relativamente às políticas públicas de acesso e justa distribuição da terra no país, o governo capitaneado por Bolsonaro paralisou por completo a reforma agrária no país e buscou legalizar a grilagem (ocupação irregular, direta ou indireta, pelo poder econômico) de terras públicas por meio da edição da Medida Provisória nº 910, bastando, para isso, a autodeclaração daqueles que já estejam ocupando essas terras.

135. Por outro lado, o governo federal também interrompeu o programa de compra antecipada de alimentos (PAA), que, além de favorecer os trabalhadores do campo, produtores da maior parte dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros, permitia o acesso à comida saudável por parte significativa da população mais pobre. Cessaram, ainda, os programas que dizem respeito à capacitação profissional, assistência técnica e fomento dos agricultores familiares e assentados da reforma agrária,

construção de cisternas no semiárido e aquisição de máquinas agrícolas por trabalhadores rurais. Os esforços dedicados à agroecologia e à redução do uso de agrotóxicos foram interrompidos e a violência no campo ganhou novos incentivos, por meio da liberação de armas de qualquer calibre em toda a extensão de fazendas.

136. No concernente às populações tradicionais, tais como povos indígenas e quilombolas, a postura criminosa do Presidente da república dirige-se, sem rodeios, à implantação de uma política genocida. Além de não demarcar novos territórios nem respeitar as demarcações de territórios que a Constituição de 1988 estabeleceu como pertencentes a esses grupos, o governo Bolsonaro desmontou a estrutura institucional de proteção a essas populações. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) teve suas competências esvaziadas e entregues aos interesses ruralistas. Os povos em isolamento voluntário, a seu turno, têm sido submetidos a contatos com missões proselitistas e diversas comunidades têm sido afetadas pela exploração ilegal de minérios e pelo desmatamento que se expandiu especialmente na Amazônia e nos Cerrados.

137. A seu turno, as populações quilombolas têm sofrido semelhantes investidas. O INCRA, responsável pela demarcação de territórios, e a Fundação Cultural Palmares, a quem compete a guarda do patrimônio cultural das comunidades, foram esvaziados e, no caso desta última, verificou- se a nomeação de dirigente que contraria todas as políticas que levaram à sua concepção.

138. Durante a pandemia da COVID-19, milhares de indígenas e quilombolas foram infectados e muitos deles vieram a falecer à míngua de atendimento médico-hospitalar adequado, sem que fosse implantada qualquer política específica de assistência ou fornecidos materiais ou equipamentos individuais de proteção, tampouco designadas equipes de saúde com insumos e medicamentos capazes de reduzir os efeitos nefastos da contaminação.

139. Impossível não referir, ainda, às políticas abertamente racistas incentivadas pelo discurso e pela prática institucional do atual presidente. O discurso oficial, permeado de declarações com viés discriminatório, tem acarretado um incremento do discurso do ódio no Brasil, o que se afere pela quantidade de novos grupos fascistas e neonazistas disseminados desde que Bolsonaro chegou ao poder.

140. A promoção da igualdade racial foi sistematicamente substituída pela absurda negação do racismo, processo que vem acompanhado de uma violência cada vez maior contra a população negra, levado a cabo, principalmente, pelas forças do Estado. Tais fatos, associados à falta de políticas de inclusão e realização de direitos sociais das pessoas negras, têm conduzido a sucessivas denúncias do genocídio em marcha junto a organismos internacionais e deve implicar a responsabilização político-jurídica do Presidente da República.

141. Essencial assinalar que as circunstâncias de privação da maioria dos brasileiros à igualdade de oportunidades, à dignidade e aos direitos encontra a sua matriz estruturante justamente no racismo mantido por uma elite que sempre nutriu ojeriza à população negra, impondo severas e intransponíveis barreiras à sua ascensão social. A gênese dos desenganos que afetam as esperanças de transformação social e superação de desigualdades e injustiças em nosso país reside precisamente na estigmatização da gente negra, cuja condenação a mecanismos opressivos transparece, simboliza e padroniza o tratamento desumano e excludente que é imposto às classes desfavorecidas do país.

142. A Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 3º, IV, a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” como um dos objetivos fundamentais da República. Em seu art. 5º, XLII, enuncia que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

143. A consagração do combate à discriminação racial e a criminalização do racismo no texto constitucional estão fundadas no reconhecimento de que o racismo estrutural repercute na

desigualdade de acesso a direitos e no elevado índice de violência que atingem de maneira desproporcional a população negra no Brasil. E refletem a escolha do constituinte originário no sentido de enfrentar e eliminar as práticas e discursos racistas da sociedade e das instituições brasileiras.

144. Não se trata, portanto, de matéria passível de alteração a depender do programa eleitoral de cada governo ou sujeita à adesão discricionária por parte dos gestores públicos. Combater o racismo e promover o acesso a direitos em condições de igualdade são comandos constitucionais, aos quais as autoridades públicas estão vinculadas. Essa determinação constitucional é reforçada pela legislação ordinária, como a Lei nº 7716/198966, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e a Lei nº 7668/1988, que cria a Fundação Cultural Palmares com a finalidade de “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Ademais, referidas disposições constitucionais confirmam o compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional, anos antes, a partir da ratificação da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada pelo Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969. E reiterada, posteriormente, através da assinatura de Tratados Internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto nº 5051, de 19 de abril de 2004 (alterado pelo Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019).

145. Apesar disso, atualmente no Brasil a desigualdade no acesso a direitos, discriminação e violência em desfavor da população negra tem sido potencializada pelo enfraquecimento das políticas públicas destinadas à proteção dessa população, associado ao aumento de discursos públicos que naturalizam o racismo e fomentam o ódio67. E esse cenário tem se agravado ainda mais no contexto da pandemia de covid-19.

66 Alterada pela Lei 9459, de 13 de maio de 1997. 67 Essa é a leitura externada por um grupo de organizações de direitos humanos recentemente enviado para a Relatora Especial sobre formas contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Religiosa, Tendayi Achiume. https://www.terradedireitos.org.br/noticias/noticias/com-negacao-do-racismo-governo-se-abstem-da- obrigacao-de-garantir-direitos-fundamentais-a-populacao-negra/23413

146. Ainda no ano de 2017, ganhou ampla repercussão a declaração do então deputado federal Jair Bolsonaro em evento realizado no Clube Hebraica em que se referiu de modo discriminatório a quilombolas, indígenas, mulheres, LBGTQIA+ e refugiados, utilizando, para se referir aos primeiros, termos como “arrobas” e “procriar”, igualando-os a bichos.68 Esse grave episódio foi o prenúncio do discurso que seria adotado pelo candidato Bolsonaro nas eleições de 2018 e, posteriormente, em pronunciamentos públicos como Presidente da República. A partir das eleições de 2018, as práticas e os discursos racistas foram intensificadas até alcançar o discurso oficial da Presidência da República e ser adotado como critério para definir a ocupação de cargos do governo e para orientar políticas públicas.

147. Em 2 de janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o governo pretende “integrar” indígenas e quilombolas. Segundo ele, 15% do território nacional seria destinado a essa população, que não chega a um milhão de pessoas.69 Em 8 de maio do mesmo ano, Bolsonaro afirmou, em entrevista para a Rede TV, que "essa coisa do racismo, no Brasil, é coisa rara. O tempo todo jogar negro contra branco, homo contra hétero, desculpa a linguagem, mas já encheu o saco esse assunto".70

148. Em novembro de 2019, foi nomeado como Presidente da Fundação Cultural Palmares Sérgio Nascimento de Camargo71, conhecido por suas manifestações racistas nas redes sociais e em pronunciamentos públicos. Sérgio Camargo sustenta que “não existe racismo real”, que a escravidão foi “benéfica para os descendentes”, porque esta teria proporcionado aos negros melhores condições de vida no Brasil do que no continente africano. Ele critica a existência de cotas raciais e é

68 Afirmou Bolsonaro na ocasião: “"Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas, que é outra brincadeira. Eu fui em um quilombola em El Dourado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais. Mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles. Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em El Dourado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada”. Degravação da fala do Denunciado constante no acórdão proferido nos autos do Inquérito nº 4694/DF que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750302384 69 Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/apos-colocar-demarcacoes-na-agricultura-bolsonaro-fala-em-integrar- indigenas-quilombolas-23340520 70 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/05/08/interna_internacional,1052188/bolsonaro- afirma-que-racismo-e-algo-raro-no-brasil.shtml 71 Portaria 2.377/2019, do Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República.

contrário ao dia da Consciência Negra. A nomeação foi suspensa por decisão judicial proferida pela 18ª Vara Federal de Sobral (CE)72, que, após analisar algumas das declarações de Sérgio Camargo73, concluiu que a sua nomeação para o cargo de Presidente da Fundação Palmares “contraria frontalmente os motivos determinantes para a criação daquela instituição e a põe em sério risco, uma vez que é possível supor que a nova Presidência, diante dos pensamento expostos em redes sociais pelo gestor nomeado, possa atuar em perene rota de colisão com os princípios constitucional da equidade, da valorização do negro e da proteção da cultura afro-brasileira”74.

149. Posteriormente, a nomeação foi restabelecida e, em 20.2.2020, Sérgio Camargo tomou posse no cargo75. Entre os meses de março e maio, a página oficial da Fundação Cultural Palmares na internet publicou textos que ofendem a lembrança, a ancestralidade e as tradições da população negra, as quais foram suprimidas do site em 29.5.2020 por determinação da 9ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal que considerou a prática “explícita desconsideração da raça, cultura e consciência negras”76.

72 Portaria 2.400/2019, do Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República. 73 Veja-se: “Menciono, a título ilustrativo, declarações do senhor Sérgio Nascimento de Camargo em que se refere a Angela Davis como "comunista e mocreia assustadora", em que diz nada ter a ver com "a África, seus costumes e religião", que sugere medalha a "branco que meter um preto militante na cadeia por crime de racismo", que diz que "é preciso que Mariele morra. Só assim ela deixará de encher o saco", ou que entende que "Se você é africano e acha que o Brasil é racista, a porta da rua é serventia da casa". Além das acima mencionadas existem diversas outras publicações que tem o condão de ofender justamente o público que deve ser protegido pela Fundação Palmares, que não serão mencionadas por desnecessário, ante a suficiência das anteriormente citadas”. Decisão proferida nos autos da Ação Popular nº 0802019-41.2019.4.05.8103. Disponível em: https://pje.jfce.jus.br/pjeconsulta/Processo/ConsultaDocumento/popupProcessoDocumento.seam?idBin=17016562&cid =88503 74 Decisão proferida nos autos da Ação Popular nº 0802019-41.2019.4.05.8103. Disponível em: https://pje.jfce.jus.br/pjeconsulta/Processo/ConsultaDocumento/popupProcessoDocumento.seam?idBin=17016562&cid =88503 75 Portaria 41/2020, do Presidente da Fundação Cultural Palmares, disponível em http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria- n-41-de-20-de-fevereiro-de-2020245207310. 76 Decisão de 29.5/2020 na ação popular 1028357-89.2020.4.01.3400, disponível em https://pje1g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/docu mentoSemLoginHTML.seam?ca=e21da6bd311c345bae6f0b5c9b1aaa5dcc33fad007ad339e329 142ee539dd177ddf0c9729df1cead3cc405f0bf67cde626af86090af13e9b&idProcessoDoc=2365 93418.

150. Ainda em maio do ano corrente, Sérgio Camargo anunciou a preparação de um selo em que a Fundação Cultural Palmares “certifica que uma pessoa não é racista” a ser conferido à “vítima de campanha de difamação e execração pública da esquerda”.77

151. As ações recentes da Fundação Cultural Palmares foram alvo de veemente repúdio por parte da CONAQ, que registrou: “A Fundação Cultural Palmares era patrimônio de toda sociedade brasileira, mas sobretudo dos quilombos, posto que traduzia, ainda que de forma precária, compromissos com mais igualdade, direitos e dignidade para a população negra quilombola”. E denunciou que a instituição “foi usurpada da população para a qual foi criada, desvia e se afasta das importantes e fundamentais atribuições que assumiu desde a sua criação no ano de 1988, logo após o processo constituinte formal”. A CONAQ bem sintetizou a realidade da instituição: “Verificamos agora o afastamento da FCP em relação aos interesses dos quilombos, o que demonstra o nível de racismo e de assalto ao patrimônio do povo perpetuado pelo governo de Jair Bolsonaro”.78 A entidade, que articula as comunidades quilombolas do Brasil, relembrou, ainda, que o combate ao racismo, assim como o fortalecimento e consolidação de políticas públicas para os quilombolas constituem compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a Assembleia Geral, por meio da Resolução nº 68/237, de 2 de dezembro de 2013, por meio da qual “proclamou-se a Década Internacional de Afrodescendentes, com início em 1º de janeiro de 2015 e fim em 31 de dezembro de 2024”.79

152. No início de junho de 2020, o jornal Estadão revelou áudios de Camargo nos quais ele afirma, em reunião com auxiliares, que “Não vai ter nada para terreiro na Palmares, enquanto eu estiver aqui dentro. Nada. Zero. Macumbeiro não vai ter nem um centavo” Na mesma oportunidade, classificou o movimento negro como "escória maldita", que abriga "vagabundos", e chamou Zumbi de Palmares de "filho da puta que escravizava pretos"80. Nova ordem judicial determinou que a Fundação retirasse da página da instituição artigos com críticas e repúdio a Zumbi. Segundo juíza, a “instituição federal cuja finalidade é a preservação dos valores resultantes da influência negra, ao fechar os olhos às diferenças

77 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/05/29/fundacao-palmares-lanca-selo-para-quem-for-injustamente- acusado-de-racismo-entidades-reagem.ghtml 78 http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-5/ 79 http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-5/ 80 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/06/03/educafro-entra-com-representacao-contra-sergio- camargo-no-mpf.htm?cmpid=copiaecola.

raciais, descumpre seus deveres institucionais e sobretudo seu dever – como ente estatal – de respeitar o direito à identidade dos cidadãos".81 153. Dias depois, a Fundação Palmares censurou biografias de lideranças negras históricas em seu site, conforme amplamente noticiado pelo imprensa nacional82. Em sua conta no twitter, Sérgio Camargo afirmou: “Determinei, quando tomei posse, a retirada de lista de personalidades q (sic) homenageia, entre outros, Benedita da Silva e Marielle, ícones da esquerda vitimista. A lista retornará após revisão. “Personalidades negras” destituídas de mérito e nobreza não serão homenageadas na minhas gestão”83. 154. Em diferentes oportunidades, desde a primeira nomeação, o presidente Jair Bolsonaro veio a público manifestar sua concordância com a nomeação de Sérgio Camargo para a Fundação Palmares. Em 13 de dezembro de 2019, Bolsonaro postou em sua conta de twitter “O afastamento de Sérgio Camargo da Fundação Cultural Palmares de seu por causa de decisão judicial. Caso nosso recurso seja vitorioso, EU O RECONDUZIREI à Presidência da Fundação”. Abaixo da postagem, reproduziu vídeo de Sérgio Camargo no qual ele afirma “Claro que tem que acabar o dia da Consciência Negra do qual a esquerda se apropriou para propagar vitimismo e ressentimento racial. [...] No que depender de mim a Fundação Palmares não dará suporte algum a essa data”.84

155. As falas e práticas descritas incorrem no crime tipificado no art. 20, caput, da Lei nº 7.716/1989: “praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, além de violar outros dispositivos legais. A referência de modo pejorativo aos praticantes de religião de matriz africana, assim como afirmação de que serão negados expressamente qualquer tipo de acesso e benefício futuramente requerido configura flagrante violação ao art. 215, § 1º, da Constituição Federal, que consagra o dever do Estado de proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

81 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/29/justica-manda-fundacao-palmares-apagar-artigos-com-criticas-a- zumbi.ghtml 82 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/fundacao-palmares-censura-biografias-de-liderancas-negras-historicas- em-seu-site.shtml. 83 https://twitter.com/sergiodireita1 84 https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1205553080948985856 Publicado em 13 de dezembro de 2019.

156. Em flagrante desrespeito às previsões legais e constitucional referidas, institui-se no âmbito da Fundação Cultural Palmares, com expresso apoio e concordância do Presidente da República, uma política pública que pretende privar de recursos e apoio públicos exatamente a população que, por força do texto constitucional, deveria ser por ela protegida. De igual modo, “a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais” e definição das personalidades negras não depende da concordância de qualquer autoridade pública. Trata-se de previsão expressa da Constituição Federal no §2º, do art. 215. No caso específico do reconhecimento de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, o seu reconhecimento decorre do teor da Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, que institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

157. Em suma, os episódios mencionados revelam o desvio de finalidade na nomeação e sua incompatibilidade com a missão institucional da Fundação Palmares, expressa nos art. 1º e 2º, da Lei nº 7.668/198885. Afinal, nos termos da lei, a atuação da Fundação deve estar voltada à promoção e preservação da cultura afro-brasileira, além do combate ao racismo e fortalecimento de políticas públicas voltadas à população negra. Por expressa determinação legal, a Fundação deve promover ações afirmativas voltada a retirar da invisibilidade a cultura negra, formadora da identidade nacional, e eliminar as desigualdades históricas e as discriminações raciais, étnicas, culturais e religiosas do povo.

85 “Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Fundação Cultural Palmares - FCP, vinculada ao Ministério da Cultura, com sede e foro no distrito Federal, com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. Art. 2º A Fundação Cultural Palmares - FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe: I - promover e apoiar eventos relacionados com os seus objetivos, inclusive visando à interação cultural, social, econômica e política do negro no contexto social do país; II - promover e apoiar o intercâmbio com outros países e com entidades internacionais, através do Ministério das Relações Exteriores, para a realização de pesquisas, estudos e eventos relativos à história e à cultura dos povos negros. III - realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.216-37, de 31.8.2001) Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares - FCP é também parte legítima para promover o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários”.

158. Dentro do desenho institucional do Estado brasileiro, a Fundação Palmares é um órgão fundamental para a população negra, especialmente as que residem em comunidades remanescentes de quilombos. Prevista na Constituição de 1988, a Fundação é, desde 2004, responsável por emitir certidões às comunidades quilombolas no Brasil e, assim, cumpre importante papel na identificação e reconhecimento dessas comunidades e na titulação de seus territórios tradicionais, condição essencial para garantir o acesso dessas comunidades a políticas públicas. A adoção de discurso e práticas racistas no âmbito da Fundação, com manifesta concordância do Presidente, compromete a efetivação do mandamento contido no art. 215, § 1º do texto constitucional e do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

144. Além de violar a legislação nacional, referidas condutas constituem flagrante descumprimento de obrigações assumidas pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional. Isso porque a Fundação Palmares é um dos principais órgãos responsáveis pela efetividade da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho86, no que se refere ao dever de titular os territórios ocupados por remanescentes de quilombos, e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial que preveem a obrigação de eliminar o racismo. Desse modo, os episódios narrados acima contrariam princípios que regem a administração pública e revelam a institucionalização do discurso racista no âmbito do Poder Executivo Federal, seja por manifestação direta do Presidente da República, seja através do seu respaldo público à conduta de outras autoridades públicas.

145. Além de constituir prática criminosa, nos termos do art. 20, da Lei nº 7.716/1989, as falas e práticas racistas do chefe do Poder Executivo Federal promovem o aumento de declarações racistas e discriminatórias por parte de outras autoridades públicas no Brasil e tem forte repercussão na sociedade, perceptível no aumento dos discursos ódio no país, assim como das ideologias nacionalistas violentas e as ideologias da superioridade racial que incitam à violência contra os afro descendentes.

146. A institucionalização do racismo no discurso oficial do Presidente e na formulação de políticas públicas tem como consequência a desobrigação do Estado em relação ao dever de implementar os direitos fundamentais da população negra. Tem como consequência direta o

86 Promulgada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de julho de 2002, alterado, sucessivamente, pelo Decreto nº 5.501 de 19 de abril de 2004 e Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019.

enfraquecimento das políticas públicas de proteção à população negra associado ao incremento dos discursos públicos que contestam a garantia de direitos a essa população, “desqualificando suas lutas, afirmação de identidades e posicionalidades”87.

147. Nesse contexto, a população negra é forte e diretamente impactada pela subversão do programa constitucional de combate ao racismo, através do aumento da discriminação, deslegitimação das políticas públicas, dificuldade no acesso a direitos e incremento da violência contra a população negra. Segundo dados atualizado, estima-se que “quase três mil pessoas foram mortas por intervenção da Política Militar em 2019 apenas nesses dois estados (719, em SP, e 1810, no RJ)”, ao mesmo tempo em que “aumentou o número de pessoas desaparecidas, corpos que nunca foram encontrados”88, a maioria pessoas negras.

148. Diante dessa realidade alarmante, em 2020 a Coalizão Negra por Direitos 89 denunciou o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas pelo genocídio da população negra. Segundo a entidade, “o genocídio negro não se trata, portanto, apenas das balas diretas projetas por agentes do Estado contra o povo negro”, mas, “também se sustenta em uma ausência de políticas públicas que “nos deixam morrer””. A denúncia de genocídio está fundada, portanto, na “sistêmica exclusão econômica e social que priva negras e negros do devido acesso à saúde, educação, trabalho, representatividades e outros aspectos básico que impedem a vida, plena e sadia” 90.

149. A política pública constitucional quilombola está prevista no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que estabelece: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. O Decreto nº 4.887/2003, por sua vez, “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

87 https://www.terradedireitos.org.br/noticias/noticias/com-negacao-do-racismo-governo-se-abstem-da-obrigacao-de- garantir-direitos-fundamentais-a-populacao-negra/23413 88 https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/04/coalizao-negra-por-direitos-e-a-denuncia- internacional-ao-genocidio-negro.htm 89 Articulação nacional que envolve mais de 100 organizações e coletivos negros de todos o país. 90 https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/03/04/coalizao-negra-por-direitos-e-a-denuncia- internacional-ao-genocidio-negro.htm

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68”, inserido no arco de competências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

150. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal estabelecem o dever do Estado de garantir as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”, compreendidas como patrimônio cultural brasileiro.91 A Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, impõe ao Estado a obrigação de realizar ações e políticas voltadas para a manutenção e reprodução física, social, cultural, étnica e territorial das comunidades quilombolas.

151. Dentre os direitos constitucionais e as políticas públicas destinadas às comunidades quilombolas, o reconhecimento e titulação dos seus territórios possui especial importância, porquanto o território constitui “fator fundamental de identidade cultural e coesão social” (MALCHER, 2016, p. 7) e constitui aspecto central para garantia de acesso a diversos outros direitos, como saúde, educação, cultura, vida e tantos outros. Por outro lado, a “não regularização dos territórios tem um impacto severo no gozo e exercício de direitos pelas comunidades e perpetuam os conflitos fundiários que constituem o cenário em que acontecem grande parte das violências sofridas por essas comunidades”.92

152. Segundo dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)93, existem cerca de 5.000 (cinco mil) comunidades, enquanto a Fundação Cultural Palmares registra cerca de 3.500 (três mil e quinhentas) comunidades quilombolas certificadas em todo o território nacional, revelando um grande número de comunidades que aguardam a titulação de seus territórios.

91 Atualmente, a política quilombola tem o procedimento previsto no Decreto nº 4.887/2003, delineado pela IN 57, de 20 de outubro de 2009, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). 92 Relatório do Coletivo RPU – Meio Período, com dados da CONAQ e Terra de Direitos. 93 A CONAQ) fundada em 1995, englobando 25 estados, é movimento social de abrangência nacional que tem por objetivo atuar em defesa dos direitos fundamentais da população negra quilombola. Uma das principais razões de ser da CONAQ é o combate ao racismo secularmente incrustrado na sociedade e nas instituições brasileira.

153. Em 2017, o déficit histórico no processo de titulação e regularização desses territórios foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos94, que vem monitorando a situação desde então. Nas observações preliminares à vista oficial ao estado brasileiro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, em recomendou que o Brasil se desenvolvesse “um plano nacional de titulação dos territórios quilombolas por meio de consulta livre, prévia e informada às comunidades, incluindo metas para a estruturação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e contribuição orçamental progressiva, em adequação às normas interamericanas e a ordem constitucional interna”95.

154. Além da omissão do Estado na efetivação dos comandos constitucionais, a situação tem se agravado no último período, em decorrência das limitações estabelecidas pela Emenda Constitucional nº 95. Conforme estudos técnicos do IPEA (2019) constantes nos autos da Ação Direta de inconstitucionalidade nº 5658 que analisa a Emenda Constitucional nº 95, “os valores orçamentários executados entre 2014 e 2017 representaram uma redução de 87%, e a ação orçamentária voltado ao reconhecimento e indenização de territórios quilombolas destinado para o ano de 2019 foi o menor em toda a história recente da política”.

155. Além da morosidade do poder público e da falta de destinação de recursos para a titulação, centenas de comunidades negras rurais encontram-se ameaçadas de expulsão de suas terras devido a projetos econômicos por todo o país, especialmente na Amazônia brasileira.96

156. A situação das comunidades quilombolas, que já era de extrema vulnerabilidade, foi agravada no Governo Bolsonaro, em razão da declaração do Presidente de que não fará demarcação de terras indígenas ou quilombolas ou ampliação de áreas de proteção ambiental durante o seu governo. A esse respeito, Jair Bolsonaro, em flagrante contrariedade à previsão constitucional – art. 215, § 1ºe art. 68 do ADCT – e às obrigações contraídas a partir da ratificação da Convenção 169/OIT, afirmou que: “Enquanto eu for presidente não tem demarcação de terra indígena”. E agregou: “Não pode continuar assim, [em] 61% do Brasil não pode fazer nada. Tem locais que, para produzir, você não vai produzir,

94 Informe de Carta 41, de junho de 2017, e a realização da audiência temática sobre “Direito de Acesso à Terra de Pessoas Afrodescendentes Quilombolas no Brasil”, no 165º Período de Sessões desta E. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Montevidéu, no Uruguai. 95 https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf 96 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/18/movimento-negro-denuncia-bolsonaro-na-onu-e-defende- inquerito.htm?cmpid=copiaecola

porque não pode ir numa linha reta para exportar ou para vender, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígenas, uma área de proteção ambiental. Estão acabando com o Brasil”.97

157. Desde o início de 2019, o governo federal tem promovido o enfraquecimento e desmonte da estrutura administrativa responsável pela política de regularização fundiária, fomentado a grilagem e desrespeito aos territórios tradicionais. Nesse sentido, “em seu primeiro dia de mandato, através da Medida Provisória n° 870, o atual Presidente da República realocou, no organograma institucional, o INCRA da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura”. E a Secretaria de Assuntos Fundiários, do referido Ministério, responsável por coordenar os trabalhos do INCRA, “passou a ser comandada pelo presidente da União Democrática Ruralista, Nabhan Garcia, notório opositor da política pública de titulação quilombola”. Dessa forma, “a reorganização administrativa realizada vincula a política pública de titulação de territórios quilombolas a um ministério que é hegemonizado politicamente por setores do agronegócio que historicamente se opões à efetivação da política de titulação de territórios quilombolas”.98

158. Além de contradizer o projeto constitucional de 1988, essas alterações administrativas foram feitas sem a realização de consulta livre, prévia e informada, em flagrante violação ao art. 6° da Convenção 169 da OIT. 99

159. Durante o Governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro, intensificou-se a militarização dos territórios, tendo como consequência direta o aumento da violência sofrida pelas comunidades. Destaca-se, nesse sentido, “a grande presença de pessoas ligadas às forças armadas brasileiras em Ministérios do Governo Federal, e em outras posições políticas de comando do governo civil, apontam para o incremento da violação de direitos humanos em comunidades que apresentam situações de vulnerabilidade, como o Quilombo Rio dos Macacos (Bahia), Quilombo de Alcântara (Maranhão) e Quilombo de Marambaia (Rio de Janeiro)”.100

97 https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-indigenas 98 Relatório do Coletivo RPU – Meio Período, com dados da CONAQ e Terra de Direitos. Pág. 20 e seguintes. Disponível em: https://iddh.org.br/wp-content/uploads/2019/10/VERS%C3%83O-WEB.pdf Acesso em: 11 jul 2020. 99 Ibidem. 100 Ibidem.

160. Com a chegada da pandemia o quadro de violações a direitos da população negra tem se agravado, potencializadas por condutas comissivas e omissas do Governo Federal. Segundo a representante do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil, Astrid Bant, “a pandemia, unida ao racismo e à dificuldade de a população negra exercer seus direitos, tem resultado no agravamento de doenças, na maior letalidade frente à COVID-19 e em mais desemprego e pobreza”. Pesquisadores reunidos em evento sobre os impactos da pandemia de COVID-19 sobre a população negra no Brasil, realizado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP) e (UNFPA), indicaram que “os obstáculos que as iniquidades, o racismo e a discriminação impõem à população negra brasileira, a tornando mais vulnerável aos impactos de saúde, econômicos e sociais da pandemia”.101

1. Taxa de letalidade da COVID-19 por raça/cor. Fonte: PUC-RJ102

161. Levantamento realizado pela Agência Pública, a partir de dados referentes ao mês de abril, revela uma situação alarmante sobre a desigualdade racial no que tange à letalidade de Covid- 19. No Brasil, “há uma morte a cada três internações de pessoas negras por síndrome respiratório

101 Disponível em: https://bit.ly/2XMc257 102 https://nacoesunidas.org/covid-19-deve-agravar-situacao-de-saude-pobreza-e-capacidade-de-recuperacao-da-populacao- negra-no-brasil/

aguda grave, causada pelo novo coronavírus”, ao passo que, “entre brancos, essa média é de uma morte a cada 4.4 hospitalizações”.103

162. Tais constatações têm chamado a atenção de analistas e de meios de imprensa internacionais, os quais destacam as políticas implantadas pelo governo de Jair Bolsonaro e as condutas pessoais do presidente como dois dos principais agentes promotores da precariedade das condições de vida da população negra durante a crise da Covid-19104.

163. Apesar do quadro de extrema vulnerabilidade pré-existente, o Governo Federal não tem oferecido atenção específica às comunidades quilombolas. Segundo o “Observatório da COVID-19 nos Quilombolos”105, o descaso da União e a ausência de adoção imediata de medidas de proteção e enfrentamento ao Covid-19 nos territórios quilombolas, associado à falta de acesso a bens e serviços básicos, têm agravado a situação dessas comunidades. Assim, “a invisibilidade da doença em territórios quilombolas revela uma situação dramática, que não tem recebido a atenção devida das autoridades públicas e dos meios de comunicação dominantes”106.

164. Devido à falência estrutural da política de assistência às comunidades e dinâmicas de racismo institucional, os quilombolas não contam com um sistema de saúde estruturado. Ao contrário, os sistemas de saúde nos municípios em que há presença de quilombos não conseguem prestar assistência específicas às comunidades. Para ter acesso a centros de saúde melhor estruturados, os quilombolas precisam se deslocar até os grandes centros urbanos, se expondo ainda mais ao risco de contaminação. Some-se a isso o fato de que, em razão da discriminação racial, quando logram acessar o sistema de saúde, comumente recebem assistência precária e dissociada dos protocolos de assistência sanitária. Em relação aos quilombolas, por exemplo, não tem sido observados os protocolos de testagem para Covid-19.107

103 A análise foi feita com base em dados do Ministério da Saúde divulgados até 26 de abril. Disponível em: https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no- brasil/ Acesso em: 11 jul 2020. 104 https://www.newyorker.com/news/news-desk/how-jair-bolsonaro-and-the-coronavirus-put-brazils-systemic-racism-on- display. 105 O Observatório é uma realização da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o Instituto Socioambiental e a informação sobre os casos quilombolas advém do monitoramento autônomo desenvolvido pela Conaq junto aos territórios em que atua. 106 https://quilombosemcovid19.org/ 107 https://apublica.org/2020/06/nos-quilombos-coronavirus-mata-um-por-dia/

165. As condições de acesso à água em muitos territórios é motivo de preocupação, pois dificulta as adoção das medidas de higiene básicas e necessárias para evitar a propagação do vírus. Além disso, as comunidades quilombolas possuem maior dificuldade para ter acesso ao auxílio emergencial, o que potencializa a situação de vulnerabilidade, que tende a se agravar exponencialmente com as consequências sociais e econômicas da crise da Covid-19 na vida das famílias quilombolas. Buscando minimizar o impacto da pandemia nesse territórios, foi aprovado o PL nº 1142 que estabelecia medidas emergências para povos indígenas, quilombolas e tradicionais, e previa a possibilidade de fornecimento de agua potável a essa população. No entanto, o texto que trazia essas garantias, entre outros, foi vetado pelo Presidente da República.

166. Segundo dados do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, e os casos de transmissão da doença em territórios quilombolas são “subnotificados, pois muitas secretarias municipais deixam de informar quando a transmissão da doença e a morte ocorrem entre pessoas quilombolas”. Além disso, “tanto as secretarias de saúde como o próprio Ministério da Saúde têm negligenciado uma atenção específica em relação às comunidades negras. Parte do problema é a ausência de dados epidemiológicos para populações quilombolas”. Além da subnotificação de casos, “situações de dificuldades no acesso a exames e denegação de exames a pessoas com sintomas têm sido relatadas pelas pessoas dos quilombos”108.

167. Desde o início da pandemia a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) vem alertando o governo federal e demais autoridades públicas para as consequências alarmantes da disseminação da Covid-19 nos territórios quilombolas. Diante da ausência de registro nacional oficial da situação epidemiológica da doença entre a população remanescente de quilombos, as comunidades têm realizado o monitoramento autônomo, fazendo o trabalho que deveria ser feito pelo Ministério da Saúde. Vale ressaltar que a ausência de dados oficiais desagregados invisibiliza o impacto da doença sobre os quilombolas e impede a formulação de qualquer medida de atenção e cuidado específicos.

108 Fonte: https://quilombosemcovid19.org/

168. Segundo dados do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, a partir do monitoramento juntamente com as entidades quilombolas estaduais e em parceria com o Instituto Socio Ambiental, revelam o avanço da Covid-19 nos territórios quilombolas. Mesmo com a subnotificação, esse monitoramento revela a alta taxa de letalidade da Covid-19 entre a população quilombola. Segundo dados atualizados em 9 de julho de 2020109, já se chegava ao alarmante número de 3.034 infectados confirmados, com mais de 131 óbitos, 04 óbitos suspeitos sem confirmação e 675 casos em observação. Segundo a CONAQ, a pandemia expõe o estado de abandono com os quilombos110 e evidencia o racismo estrutural existente no país.

169. A Comissão Interamericana, na Resolução nº 1/2020, alerta que a pandemia não poderia ser utilizada como pretexto para violar direitos da população. Em flagrante desrespeito a essa recomendação, o governo federal editou a Resolução nº 11, de 26 de março de 2020, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República do Brasil, através da qual determinou a remoção de 800 famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, para consolidação do Centro Especial de Alcântara. Para além do desrespeito às diretrizes estabelecidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, essa medida contraria, de modo flagrante e direto, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre instalação e impactos de projetos em territórios tradicionalmente ocupados.

170. Em meio à pandemia da Codiv-19, “onde todas as atenções e esforços da sociedade estão voltados para a gestão da maior crise de saúde pública enfrentada pelo Brasil neste século” 111, a resolução não apenas viola os direitos territoriais dos quilombolas de Alcântara, mas, também, os coloca em risco em meio à pandemia. Não houvesse sido suspensa por determinação judicial,

109 Fonte: CONAQ. https://quilombosemcovid19.org/ 110 https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pandemia-de-covid-19-expoe-abandono-do-estado-com- quilombos 111 http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-a-resolucao-do-governo-que-ataca- quilombolas-de-alcantara/

a ordem de remoção exarada pelo Governo Federal poderia te acarretado “um verdadeiro etnocídio em território brasileiro em meio a uma pandemia global”.112

171. O Estado brasileiro possui uma riqueza pluriétnica que se traduz em mais de 900 mil indígenas, representando 305 povos, falantes de 274 línguas indígenas e ainda 114 registros de grupos isolados ou de recente contato. Desde 1500 até a década de 1970, a população indígena brasileira decresceu acentuadamente e muitos povos foram extintos. A partir da década de 1990, o contingente de brasileiros que se consideravam indígenas cresceu 150%, resultado concreto dos valores reconhecidos em nossa Carta Constitucional.

172. O contexto atual da política indigenista no Brasil é extremamente desfavorável aos povos indígenas. Pela primeira vez, no período pós-redemocratização há um Presidente da República declaradamente anti-indígena. Jair Bolsonaro foi eleito mesmo lançando a ameaça de “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena e quilombola”. Ao tomar posse, no dia 1º de janeiro de 2019, assinou a Medida Provisória n. 870, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Dentre as principais alterações, transferiu a atribuição de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pasta ministerial chefiada pela fazendeira Teresa Cristina, cuja família tem um histórico conflito de terra com os Terena no do Sul113. A mesma medida provisória transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta esta chefiada pela pastora .

112 http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-a-resolucao-do-governo-que-ataca- quilombolas-de-alcantara/ 113 REVISTA FÓRUM. Bolsonaro dá poder aos ruralistas para demarcação de terras indígenas e quilombolas. Disponível em https://www.revistaforum.com.br/bolsonaro-da-poder-aos-ruralistas-para-demarcacao-de- terras-indigenas-e-quilombolas/?fbclid=IwAR0gnb87qTQWLYpat6- oI6a_BMCtdhe3c7Pv0nG9dTSB4wgM8VjBU2PKiNI . Acesso em 10.jun.2020.

173. Neste caso, ficou flagrante o desvio de finalidade ao transferir para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a atribuição para decidir o que será ou não terra de ocupação tradicional. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que tal transferência visou nitidamente a acatar reivindicação da classe ruralistas, mas sobretudo, colocar os interesses privados acima dos interesses coletivos de toda a sociedade brasileira, visto que terra indígena é bem da União (Art. 20, inciso XI, da Constituição da República). A situação é corroborada, tendo em vista que é público e notório que a ministra Teresa Cristina é notadamente contra a demarcação de terras indígenas, sendo assídua militante e representante do agronegócio. Logo, os processos demarcatórios estariam comprometidos, em flagrante violação aos princípios da impessoalidade e finalidade, fundamentos da administração pública de acordo com o disposto no art. 37 do texto constitucional.

174. In casu, pelo conceito alhures mencionado – desvio de poder -, percebe-se como ardilosa a tarefa de identificação do instituto em comento haja vista que, como bem frisou o professor Adilson Dallari de Abreu114, “o desvio de poder nunca é confessado, somente se identifica por meio de um feixe de indícios convergentes, dado que é um ilícito caracterizado por um disfarce, pelo embuste, pela aparência da legalidade, para encobrir o propósito de atingir a um fim contrário ao direito, exigindo um especial cuidado por parte do Judiciário”.

175. Como já se manifestou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário n. 183.188, “a disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil”. E no mesmo sentido caminhou o ministro Menezes Direito, durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Pet. 3388), ao afirmar que “não há índio sem terra”. Pois a relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. Assim, de

114 DALLARI, Adilson Abreu. Desvio do Poder na Anulação do Ato Administrativo. Instituto de Direito Público da Bahia. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Numero 7 – julho/agosto/setembro, 2006. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-7-JULHODESVIO%20DE%20PODER-ADILSON%20DALLARI.pdf

nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando- as115.

176. Pois bem, desde quando assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro vem implementando uma política indigenista extremamente nociva aos povos indígenas, nomeando pessoas para ocupar cargos na Fundação Nacional do Índio (Funai) publicamente contrárias aos direitos e interesses dos povos indígenas. Uma preocupação importante diz respeito à proteção aos povos em isolamento voluntário, tendo em vista a recente nomeação de um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), missão proselitista que busca o contato com povos isolados, para a coordenação da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), departamento da FUNAI responsável pelas políticas para os povos isolados e de recente contato. Sua nomeação foi indicada pela bancada evangélica116 que apoia o governo de Jair Bolsonaro, com o claro interesse de que sejam alteradas as diretrizes de não-contato e o respeito ao isolamento voluntário desses povos atualmente em vigência no órgão117e a abertura de contato evangelizador impositivo e homogeneizador, caracterizando mais um ato de violência contra a identidade étnica das comunidades visando sobretudo a sua colocação numa posição subordinada de “selvagens”, à espera do cristianismo civilizador no cenário geral branco e supremacista que defendem para o país.

177. Paralelamente aos ataques no âmbito institucional da Funai, tem havido assédio de missionários nas TI’s com presença de isolados, como no Vale do Javari. Desde setembro de 2019 a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) vem denunciando a atuação de missionários proselitistas. Naquela ocasião, três missionários, dentre eles Andrew Tonkin – que já havia tentando

115 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Pleno. Petição n.º 3.388/ED/RR. Voto-Vista: Ministro Menezes Direito. DJ 25.09.2009. 116 REPORTER BRASIL. Ex-missionário nomeado para Funai é acusado de manipular indígenas e dividir aldeias. Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2020/02/ex-missionario-nomeado-para-funai-e-acusado- de-manipular-indigenas-e-dividir-aldeias%EF%BB%BF/. Acesso em 15.jun.2020. 117INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). O que está em jogo com a nomeação de um missionário para a coordenação de isolados da Funai. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o- que-esta-em-jogo-com-a-nomeacao-de-um-missionario-para-a-coordenacao-de-isolados-da-funai. Acesso em 15.jun.2020.

invadir a TI em outras ocasiões - realizaram uma expedição em um igarapé onde vive um povo em isolamento voluntário118. Em um novo comunicado do início de março de 2020, a UNIVAJA novamente denunciou o aumento do assédio de missionários e a preocupação com a nomeação de Dias para a CGIIRC, além da compra de um helicóptero pela missão Ethnos360 (novo nome da MNTB) para atuar no contato com povos isolados da TI Vale do Javari119. No final de março de 2020, lideranças relataram que Andrew Tonkin e Josiah Mcintyre estavam realizando reuniões na cidade de Atalaia do Norte, aliciando jovens indígenas e comprando equipamentos para invadirem a TI Vale do Javari em busca de isolados120. Ante a recusa da UNIVAJA em permitir a entrada dos missionários no território, o pastor Josiash Mcintyre invadiu a associação e ameaçou colocar fogo na sede121.

178. No que tange à política de demarcação de terra indígena, o Presidente Bolsonaro tem adotado uma postura inconstitucional, ao paralisar os procedimentos demarcatórios em trâmite e criar obstáculos para inviabilizar a homologação de processos que estão “maduros” do ponto de vista administrativo. A esse respeito, vale registrar que Jair Bolsonaro afirmou pública e expressamente que não fará demarcação de terras indígenas ou quilombolas durante o seu governo.122

118CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Univaja divulga nota denunciando invasões, assassinato, ameaças e proselitismo evangélico no Vale do Javari. Disponível em https://cimi.org.br/2019/09/univaja- divulga-nota-denunciando-invasoes-assassinato-ameacas-e-proselitismo-evangelico-no- vale-do-javari/. Acesso em 15.jun.2020. 119 UNIVAJA. Aumento do assédio de grupos missionários fundamentalistas no Vale do Javari. Disponível em https://trabalhoindigenista.org.br/wp- content/uploads/2020/03/Nota_a%CC%80_Imprensa_Univaja_03._03.2020_asse%CC%81dio _missiona%CC%81rio-1.pdf. Acesso em 15.jun.2020.

120 O GLOBO. Missionário americano prepara invasão a terras indígenas com povos isolados na Amazônia, dizem lideranças. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/missionario-americano-prepara-invasao- terras-indigenas-com-povos-isolados-na-amazonia-dizem-liderancas-24325032. Acesso em 15.jun.2020. 121INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Em meio a pandemia, indígenas do Javari denunciam ameaça de missionários a isolados. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/em-meio-a- pandemia-indigenas-do-javari-denunciam-ameaca-de-missionarios-a-isolados. Acesso em 15.jun.2020. 122 Afirmou Bolsonaro: “Enquanto eu for presidente não tem demarcação de terra indígena. [...] Não pode continuar assim, [em] 61% do Brasil não pode fazer nada. Tem locais que, para produzir, você não vai produzir, porque não pode ir numa linha reta para exportar ou para vender, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígenas, uma área de proteção ambiental. Estão acabando com o Brasil”. https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-diz-que-nao-fara-demarcacao-de-terras-indigenas

179. Importante consignar que demarcar terra indígena é imperativo constitucional, pois ao tempo que a Carta Constitucional reconheceu o direito originário dos povos indígenas as terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF), impôs prazo de 5 (cinco) anos para a conclusão de todas as demarcações (art. 67, ADCT). A Constituição de 1988 atribuiu à União a obrigação expressa de demarcar as terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Trata-se de poder-dever outorgado ao Estado brasileiro, a ser implementado mediante o exercício da competência administrativa, atividade típica do Poder Executivo Federal. Note-se que a demarcação das terras indígenas, nos termos impostos pelo texto constitucional, possui conteúdo declaratório, vez que corresponde ao reconhecimento de direitos originários dos povos indígenas, imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis, que precedem a própria fundação do Estado brasileiro.

180. Nesse sentido, demarcação de terra indígena ostenta caráter indubitavelmente administrativo e vinculado, insuscetível a discricionariedades políticas. Nesse sentido, é firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), in verbis: “os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como ‘nulos e extintos’ (§ 6º do art. 231 da CF)”123.

181. A conduta de não demarcar terras indígenas ficou clarividente em atos do Ministro da Justiça e do Presidente da Funai. Na última semana do mês de janeiro de 2020, o então Ministro Sérgio Moro, determinou a devolução à Funai dos 17 processos administrativos de demarcação que há muito aguardam a assinatura da Portaria Declaratória, segundo respectivamente o Jornal do Brasil e a coluna do jornalista Rubens Valente, em matéria no jornal Folha de S. Paulo:

“Nos ofícios de devolução enviados à Funai, Moro argumenta que a consultoria jurídica do ministério "sugeriu a devolução" dos processos para a Fundação Nacional do Índio "avaliar, ponto a ponto, o cumprimento das diretrizes fixadas no parecer" adotado por Temer em 2017 a partir de uma manifestação da AGU (Advocacia-

123 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Pet 3388, Rel.: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, publicado no DJe-181 em 25/09/2009 e republicado no DJe-120 em 01/07/2010.

Geral da União).

O parecer de Temer impõe a aplicação administrativa do chamado "marco temporal", uma interpretação jurídica não prevista na Constituição.

Segundo essa tese jurídica, os indígenas que não estavam em suas terras em outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição) ou que não lutaram judicialmente por ela não teriam mais direito algum sobre as terras, ainda que sobre elas existam pareceres antropológicos demonstrando que pertenceram a seus antepassados.

A então advogada-geral da União, Grace Mendonça, emitiu um parecer para concordar com o "marco temporal", decisão tomada a partir de votos e decisões isoladas de alguns ministros ou de turmas —o assunto ainda não passou pelo plenário do STF (Supremo Tribunal Federal).

Com isso, uma série de adiamentos e entraves passou a ocorrer com os processos de demarcação de terras indígenas tanto na Funai quanto no Ministério da Justiça.

A tese é atacada por advogados especializados em direitos indígenas.

Líderes indigenistas ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato afirmam que alguns dos mesmos processos devolvidos por Moro já haviam sido restituídos anteriormente e analisados, inclusive sob a ótica do parecer de Temer e com participação da consultoria jurídica do ministério.”124

"Os processos estão fisicamente na Funai e foram devolvidos visando avaliar, ponto a ponto, o cumprimento das diretrizes fixadas no parecer GMF nº 005/2017, aprovado pelo presidente da República [Temer], referentes à demarcação de terras indígenas, conforme sugestão apresentada pela consultoria jurídica junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública."

182. Os 17 processos, segundo a matéria de jornal, devolvidos à FUNAI para adequar ao Parecer nº 01 da AGU, são os seguintes: Vista Alegre (AM); Tuwa Apekuokawera (PA); Sambaqui (PR); Marú (PA); Pindory/Araçá-Mirim (SP); Guaviraty (SP); Kanela Memortumré (MA); Cobra Grande (PA); Barra Velha do Monte Pascoal (BA); Tupinambá de Olivença (BA); Wassú-Cocal (AL); e, Paukalirajausu (MT).

183. Ainda, nas redes sociais é possível perceber a agitação. São frequentes, pelo que se percebe do perfil de dirigentes e líderes de associações vinculadas ao agronegócio, as reuniões de pessoas para fazer frente à demarcação das terras indígenas, o que pode culminar em violências de toda

124 JORNAL DO BRASIL. Moro usa parecer de Temer e trava demarcação de 17 terras indígenas no país. Disponível em https://www.jb.com.br/pais/politica/2020/01/1021896-moro-usa-parecer-de-temer-e-trava-demarcacao-de-17-terras- indigenas-no-pais.html. Acesso em 04.02.2020.

ordem. Essa agitação está se dando em função da decisão do Ministro da Justiça em determinar que a Funai reveja os casos acima apontados. Veja-se o ofício encaminhado à Funai:

OFÍCIO Nº 2740/2019/SE/MJ

Brasília, 30 de dezembro de 2019.

Ao Senhor MARCELO AUGUSTO XAVIER DA SILVA Presidente da Fundação Nacional do Índio SCS Quadra 9, Torre B, Edifício Parque Cidade Corporate - Asa Sul 70308-200 – Brasília/DF

Assunto: Processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença/BA. Referência: Processo nº 08620.001523/2008-43.

(...)

Sobre o assunto, esclarece-se que à Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública sugeriu a restituição dos autos a esta Fundação Nacional do Índio (10635195), visando avaliar, ponto a ponto, o cumprimento das diretrizes fixadas no Parecer GMF nº 005/2017 (10635190), aprovado pelo Presidente da República, referentes à demarcação de terras indígenas.

184. Além disso, Funai vem tomando posição pela desistência de ações de sua titularidade e abandonando a defesa das comunidades indígenas em várias ações judiciais; e isso é apenas mais um ato pernicioso, num conjunto maior de atos, que, embasados em orientação da Advocacia Geral da União (AGU), por meio do Parecer 001/2017/AGU. Assim decidiu o presidente da Funai quanto a desistência da defesa técnica em autos de ação rescisória com liminar deferida (autos nº 5037051- 44.2019.4.04.0000; Rel. Des. Rogério Favreto, TRF4):

185. Veja-se também, a FUNAI desistiu da defesa em ação que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), com data de 21 de novembro de 2019, deixando à míngua os interesses dos povos indígenas e, sobretudo, se omitindo da defesa do patrimônio público federal (art. 20, da Constituição da República).

186. Note-se que chegamos ao extremo da irracionalidade, pois o Brasil é o único país do mundo que possui uma agência oficial indigenista do porte institucional da Funai, criada para a defesa dos direitos indígenas e agora está se negando a defender a sua razão de ser.

187. Ainda no campo da política fundiária, alguns expedientes merecem atenção, tal como a Medida Provisória n. 910/2019, agora transformada no Projeto de Lei (PL) n. 2633/2020, em trâmite na Câmara dos Deputados e a Instrução Normativa (IN) n. 9 da Funai.

188. No dia 22 de abril de 2020, foi publicada a Instrução Normativa n. 09/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), que disciplina o requerimento, análise e emissão da “Declaração de Reconhecimento de limites em relação a imóveis privados”. Essa normativa revogou a Instrução Normativa n. 03, datada de 20 de abril de 2012, promovendo significativa mudança administrativa e atingindo os direitos e interesses dos povos indígenas do Brasil. A citada normativa foi comemorada por representantes do setor ruralista.

189. O parágrafo primeiro do art. 1º, da Instrução Normativa n. 09, preceitua que a “Declaração de Reconhecimento de Limites” (DRL) se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas. Na prática, a Funai mais uma vez fechará seus olhos para as grilagens que ocorrem em relação as terras indígenas, bastando lembrar que temos pelo menos 246 terras indígenas ainda pendentes de homologação. Os invasores de TI poderão pedir regularização à Funai e, munidos desse documento, requerer junto ao Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas áreas invadidas.

190. Neste contexto, preocupa a situação vulnerável dos povos indígenas isolados. Atualmente existem 114 registros de povos isolados considerados pela Funai. Destes, apenas 28 são confirmados, de acordo com a metodologia do órgão, em 17 Terras Indígenas e 3 áreas com Restrição de Uso. O restante, 86 registros, estão em fase de qualificação. Os registros ainda não estão confirmados e principalmente aqueles localizados fora de áreas protegidas, configuram assim um grande passivo de estudos e pesquisas do órgão indigenista oficial (Funai) e um entrave para a efetivação da política de proteção aos isolados no Brasil. Esse passivo no reconhecimento da plena existência desses povos, principalmente em áreas não demarcadas, leva ao risco de genocídio desses povos, uma vez que seus territórios ficam à mercê de invasores e empreendimentos que causam tanto violência direta quanto risco de contágio por doenças infecciosas.

191. Assim, na medida que a Funai passa a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (documento que atesta que a propriedade não incide em Terra

Indígena) toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre terra indígena homologada, reserva indígena, terras indígenas dominiais, passa a liberar para a compra, venda e ocupação todas as terras em estudo, as delimitadas pela Funai, as terras declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso, inclusive permitindo a emissão da DRL em áreas interditadas para estudo sobre a presença de isolados.

192. A citada IN nº 9 da FUNAI, veio na mesma guinada da Medida Provisória n. 910, de 10 de dezembro de 2019, que dispunha sobre a regularização fundiária de ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Esta medida “caducou” durante sua tramitação no parlamento brasileiro e foi apresentada em forma de projeto de lei. O deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), então relator da Medida Provisória 910, apresentou no dia 14 de maio de 2020, o PL 2633/2020, que repete o mesmo conteúdo da MP.

193. Vale lembrar que a MP entrou em vigor em dezembro de 2019, ano marcado pela alta do desmatamento em terras públicas federais não concedidas. Segundo o do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), de agosto de 2018 a julho de 2019, o desmatamento nessas áreas foi 61% maior em relação ao mesmo período do ano anterior e atingiu cerca de 2,5 mil km². No mesmo período, terras públicas representaram 36% do desmatamento total do país, segundo análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Em 2020, quase 800 km2 de floresta foram derrubados nos três primeiros meses, um aumento de 51% em relação ao mesmo período em 2019. Um terço da devastação ocorreu em terras públicas, alvo preferencial dos grileiros.

194. A análise da MP 910/2019 feita pelo Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas, do Climate Policy Initiative, da PUC-Rio (CPI/ NAPC PUC-Rio)125, indica que estas mudanças geram graves impactos ambientais e sociais. Em especial, estas alterações: (i) legitimam a prática de grilagem e desmatamento ilegal, (ii) promovem o desalinhamento das políticas fundiária e ambiental; e (iii)

125 CLIMATE POLICY INITIATIVE. Medida provisória recompensa atividades criminosas. Análises da MP 910/2019 que altera o marco legal da regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais. Disponível em https://climatepolicyinitiative.org/wp-content/uploads/2020/02/NT-MP-910.pdf. Acesso em 15.jun.2020.

beneficiam médios e grandes produtores rurais em detrimento de agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais.

195. De Acordo com o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON)126, a MP visava a alterar as regras de regularização fundiária apenas dois anos após a última modificação, promovida em 2017. Uma nova mudança na lei fundiária estimula a continuidade de um ciclo de ocupação de terras públicas e desmatamento. Isso porque criará a expectativa de que haverá mudanças posteriores na lei permitindo anistiar novos casos de invasão. Esse ciclo ameaça pelo menos 19,6 milhões de hectares de áreas federais não destinadas na Amazônia, que podem ser ocupados na expectativa de regularização. Se isso ocorrer, haverá dois grandes prejuízos para a sociedade brasileira: i) desmatamento adicional entre 11 mil km2 e 16 mil km2 até 2027 e ii) perda de arrecadação entre R$ 62 milhões e R$ 88 milhões pela venda de terra pública abaixo do valor de mercado (conforme determina a lei)

196. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC) enviou duas notas técnicas aos parlamentares, uma delas citou o Acórdão nº 727/2020 do Tribunal de Contas da União (TCU) que mostra os graves prejuízos ao patrimônio público e ao meio ambiente provocados pelo programa de regularização fundiária, o Terra Legal. De acordo com o TCU, não existe uma fiscalização efetiva da ocupação de áreas na Amazônia Legal, o que acarreta, na prática, perda de receitas públicas, grilagem e desmatamento. Ou seja, a questão da regularização fundiária, não se deve à lei, e sim, a problemas operacionais, capacidade, gestão e orçamentária do INCRA.127

126 IMAZON. Nota Técnica sobre o segundo relatório do Senador Irajá Abreu referente à Medida Provisória (MP) n.º 910/2019. Disponível em https://k6f2r3a6.stackpathcdn.com/wp- content/uploads/2020/03/Nota_Tecnica_MP910_2019_Imazon.pdf Acesso em 15.jun.2020.

127 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Nota Técnica n. 8/2020/PFDC/MPF, de 13 de abril de 2020. Tema: Medida Provisória nº 910, de 10 de dezembro de 2019 (Regularização fundiária deocupações incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonziaçãoe Reforma Agrária). Disponível e http://www.mpf.mp.br/pfdc/manifestacoes-pfdc/notas-tecnicas/nota-tecnica-8-2020-pfdc-mpf. Acesso em 17.jun.2020.

197. Segundo a Terra de Direitos 128 , a proposição também pode inviabilizar a homologação de terras indígenas, já que, após a instrução Normativa nº 09/2020 da Fundação Nacional do Índio (Funai), as Terras Indígenas não homologadas via decreto presidencial - ou seja, aquelas que ainda não têm limites geográficos definidos no processo de demarcação administrativo - estão abertas para regularização por terceiros.

198. Ao incluir o Cadastro Ambiental Rural (CAR) na instrução do processo de regularização fundiária, um imóvel poderia ser regularizado de acordo com os limites de terras declarados no CAR. O problema é que já foram registradas diversas situações em que propriedades particulares foram cadastradas dentro de territórios quilombolas, indígenas e de povos e comunidades tradicionais. Se um desses imóveis for regularizado seguindo o CAR, a tendência é que haja maior dificuldade para a titulação do território quilombola em área sobreposta, uma vez que aumentaria o custo para a desapropriação para fins de titulação. De acordo com a Coordenação da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), existem no Brasil mais de 5 mil territórios quilombolas, destes, menos de 200 são titulados.

199. Por fim, no contexto de pandemia do Covid-19, os povos indígenas estão entregues à própria sorte – o genocídio já está ocorrendo. Nos últimos meses, temos acompanhado com preocupação o avanço da pandemia sobre as comunidades indígenas. Segundo dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena129, atualizados em 11 de julho de 2020, o país registrava 469 indígenas falecidos, 13.683 infectados e 128 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, , Pernambuco e Ceará.

128 TERRA DE DIREITOS. 7 razões para não aprovar a MP da Grilagem. Disponível em https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/7-razoes-para-nao-aprovar-a-mp-da- grilagem/23306. Acesso em 15.jun.2020.

129 O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena foi criado pela APIB ao final da Assembleia Nacional da Resistência Indígena, realizado entre os dias 08 e 09 de maio de 2020. O grupo reúne ativistas e comunicadores indígenas que coletam diariamente dados das organizações locais e comunidades indígenas sobre o avanço da pandemia nas terras indígenas e indígenas que estão fora de seus territórios.

200. Nota-se que o vírus se alastrou de forma rápida entre os indígenas. Com base nos dados da APIB, denota-se que o índice de letalidade entre os povos indígenas é de 9,6%, enquanto entre a população brasileira geral é de 5,6%.

201. Diversos estudos confirmam que os “povos indígenas são mais vulneráveis a epidemias em função de condições sociais, econômicas e de saúde piores do que as dos não indígenas, o que amplifica o potencial de disseminação de doenças”.130 E a experiência histórica confirma a baixa imunidade dos povos indígenas a doenças dos brancos, é o caso dos efeitos da “gripe espanhola” sobre os indígenas da Amazônia no início do século XX ou das doenças disseminadas pelos brancos durante a ditadura militar instalada no país em 1964.131

202. Vale ressaltar que a transmissão de doenças foi uma estratégia usada, em diferentes momentos da história, para dizimar etnias. Segundo a pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha, “as cruéis estratégias coloniais de dominação aliadas à baixa imunidade dos povos indígenas a doenças como varíola, sarampo, tuberculose e gripe, custaram a vida de milhões de indígenas, com a dizimação de inúmeros grupos”132

130 https://covid19.socioambiental.org/ 131 Cf. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final. Vol. II. Texto 5. Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas.

132 Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Editora Claro Enigma, 2012, p. 14-15. In: Petição Inicial da ADP 709 proposta pela Apib.

203. Especificamente no contexto da pandemia, pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto, da Universidade Federal de e do Instituto Socioambiental elaboraram um estudo sobre a vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil ao covid-19133. De plano o estudo registra que:

A perspectiva da Covid-19 entrar em comunidades indígenas pode representar um cenário devastador. Uma alta porcentagem da população indígena pode ser impactada devido à alta transmissibilidade da doença, vulnerabilidade social de populações isoladas e limitações relacionadas com a assistência médica e logística de transporte de enfermos. A possibilidade de subnotificação das populações indígenas e a falta de vigilância dos vetores de dispersão da doença podem impactar seriamente a capacidade de controlar a transmissão da Covid-19. Além da mortalidade populacional, a diminuição da integridade socioeconômica pode reduzir ainda mais a capacidade dos povos indígenas em lidar com a crescente fragilização das políticas públicas de saúde e proteção territorial.

204. Desse modo, a Nota Técnica integra “dados de vulnerabilidade social, disponibilidade de leitos hospitalares, números de casos por município, número de óbitos, perfil etário da população indígena, vias de acesso e outros fatores relacionados com a estrutura de atendimento da saúde indígena e mobilidade territorial”.

205. Nesse sentido, a pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e, mais intensamente, as do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) enfrentam cotidianamente há anos, como: falta de infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração com a rede de saúde; e a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Saúde do Índio (CASAI).

206. A realidade das áreas remotas e dos DSEI mais interiorizados conta ainda com outras dificuldades como: restrições de comunicação (algumas áreas têm comunicação exclusivamente via rádio); dificuldade de acesso e dificuldades logísticas decorrente do isolamento geográfico (alguns

133 Nota Técnica disponível em: https://drive.google.com/file/d/1H596_oDmOGf4mOTziHGIrbYM17PdycVj/view Acesso em 09 jun 2020.

DSEI têm acesso apenas por via fluvial ou aérea); além da complexidade do cuidado de populações indígenas no contexto intercultural.

207. A mesma Nota Técnica registra, a título de conclusão, que “o desmatamento e garimpo ilegal, bem como invasões e assentamento ilegais são percebidos pelos povos indígenas como questões de saúde pública também, principalmente sobre como essas ameaças impactam as comunidades indígenas em termos de segurança alimentar e medicina preventiva”. E indica que essas “variáveis de pressão e ameaça” devem ser incorporadas para avaliar o impacto diferencial da Covid- 19 sobre os povos indígenas.

208. A presença de invasores nas terras indígenas com presença de indígenas isolados aponta para o risco concreto de genocídio neste contexto de pandemia. No atual governo, várias situações colocam em risco a política do não-contato. Desde a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país, houve o aumento acelerado do desmatamento na Amazônia brasileira, inclusive nas terras indígenas. Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)134, o desmatamento na Amazônia Legal em 2019 aumentou 30% em relação a 2018. O levantamento do INPE apontou as terras mais desmatadas, sendo: Ituna/Itatá (Pará), Apyterewa (Pará), Cachoeira Seca (Pará), Trincheira Bacajá (Pará), Kayapó (Pará), Munduruku (Amazonas e Pará), Karipuna (Rondônia), Uru-Eu-Wau-Wau (Rondônia), Manoki (Mato Grosso), Yanomami (Roraima e Amazonas), Menkü (Mato Grosso), Zoró (Mato Grosso) e Sete de Setembro (Rondônia e Mato Grosso).

209. Nota-se que dentre essas, Ituna/Itatá (restrição de uso), Munduruku (homologada), Kayapó (homologada) e Zoró (homologada) possuem referências de povos em isolamento voluntário em estudo pela Funai, enquanto Uru-Eu-Wau-Wau (homologada) e Yanomami (homologada) possuem povos isolados confirmados, totalizando 10 registros135. O movimento indígena tem sistematicamente denunciando a situação da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau que vem sofrendo

134 INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPECIAIS (INPE). A estimativa da taxa de desmatamento por corte raso para a Amazônia Legal em 2019 é de 9.762 km². Disponível em http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5294, acesso em 15.jun.2020. 135 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Relatório do ISA denuncia na ONU risco elevado de genocídio de povos indígenas isolados. Disponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias- socioambientais/relatorio-do-isa-denuncia-na-onu-risco-elevado-de-genocidio-de-povos- indigenas-isolados. Acesso em 15.jun.2020.

com invasões por grileiros e madeireiros ilegais, assim como a TI Araribóia, no Maranhão, que abriga o povo isolado Awá-Guajá. Em ambas, os próprios indígenas se organizaram para fazer a vigilância proteção do território e denunciar a invasão e extração de madeira nas Terras Indígenas, o que acirrou os conflitos com os invasores. Essas tensões resultaram, somente nos últimos seis meses, no assassinato de três membros dos grupos de proteção indígenas e lideranças: Ari Uru-Eu-Wau-Wau, em 18 de abril de 2020, Paulinho Guajarara, em 1º de novembro de 2019 e Zezico Guajajara, em 31 de março de 2020136.

210. Em relação as TI’s Yanomami e Munduruku, os indígenas vêm relatando há anos a escalada da atividade garimpeira ilegal de ouro. Somente na TI Yanomami são estimados mais de 20 mil garimpeiros em atividade dentro do território e em plena expansão. Em 2020 foi identificada uma nova área de garimpo distante apenas 5km de um roçado dos isolados Moxihatetea 137 . Além da preocupação com a violência dos invasores e o risco de contaminação pelo Covid-19 que trazem no contexto da pandemia, estudos tem mostrado alta contaminação por mercúrio nas zonas invadidas138.

211. Na TI Munduruku, os indígenas também vêm se organizando para coibir o garimpo e a mineração ilegal (realizada com máquinas pesadas, como retroescavadeiras) e denunciam em uma série de comunicados o aumento paulatino da invasão e destruição causada no território. Em 2019 a região das cabeceiras do rio Cabitutu foi invadida e destruída pelas máquinas de garimpo em uma região reconhecida como de presença de um povo em isolamento voluntário pelos Munduruku.

212. A TI Ituna/Itatá está sob Restrição de Uso para o estudo da presença de indígenas isolados. Em 2019 registrou aumento de 656% no desmatamento em relação a 2018 pela invasão sistemática de posseiros e grileiros. A TI é hoje alvo de um forte lobby de políticos locais e do senador pelo estado do Pará, . Desde o ano passado, quando a área teve sua portaria de

136 EL PAÍS. Assassinato de líder Guajajara abala comunidade indígena e Moro garante que PF vai investigar. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/02/politica/1572726281_632337.html. Acesso em 15.jun.2020. 137 BBC NEWS BRASIL. Em meio à covid-19, garimpo avança e se aproxima de índios isolados em Roraima. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52225713. Acesso em 15.jun.2020. 138 FIOCRUZ. Contaminação por mercúrio se alastra na população Yanomami. Disponível em http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/46979. Acesso em 15.jun.2020.

interdição renovada, o senador vem tentando deslegitimar a presença de indígenas isolados na TI e liberar a exploração da área por particulares, tendo chegado inclusive a propor um projeto de decreto legislativo propondo o fim da interdição139. Em uma fiscalização do Ibama, realizada em agosto de 2019, com apoio da Polícia Federal e Força Nacional, realizada em um garimpo nas proximidades da TI, os agentes foram recebidos a tiros140 e houve a queima de máquinas dos garimpeiros ilegais.

213. Em operação de fiscalização realizada em janeiro de 2020, o Ibama encontrou cerca de cinco mil litros de combustível que seriam usados para queimadas ilegais nos municípios próximas à TI Ituna/Itata. As equipes do Ibama foram hostilizadas pela população local e pelo senador Marinho, que os chamou de “bandidos”141. Em outra operação do Ibama, desta vez dentro da TI Ituna/Itata em fevereiro de 2020, o senador tentou articular a paralização da fiscalização no Ministério do Meio Ambiente142.

214. No início de março de 2020, o IBAMA lançou outra série de ações de fiscalização em terras indígenas nas proximidades da TI Ituna/Itata. A ação visou reprimir a invasão das TIs Apyterewa, Trincheira-Bacaja e Arawaté por garimpeiros e posseiros para impedir o contágio dos indígenas pelo Covid-19. A operação, que novamente queimou e inutilizou maquinários dos invasores, teve grande cobertura midiática e, na semana seguinte, o diretor de Proteção Ambiental do órgão, em Brasília, Olivaldi Borges Azevedo, foi exonerado do cargo e outros servidores em cargos de chefia

139SENADO FEDERAL. Zequinha Marinho nega existência de índios isolados em área protegida no Pará. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/03/zequinha-marinho-nega-existencia- de-indios-isolados-em-area-protegida-no-para. Acesso em 15.jun.2020. 140 TERRA. Equipe do Ibama é alvo de tiros em operação perto de área indígena no Pará. Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/brasil/equipe-do-ibama-e-alvo-de-tiros-em-operacao-perto- de-area-indigena-no-para,3692e3c2f218d2ae9513007d3074d8d2vsxrj125.html. Acesso em 15.jun.2020. 141 G1 NOTÍCIAS. Agentes do Ibama conseguem retornar de operação no PA, após serem bloqueados por população. Disponível em https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/01/16/agentes-do-ibama-conseguem- retornar-de-operacao-no-pa-apos-serem-bloqueados-por-populacao.ghtml. Acesso em 15.jun.2020. 142 G1 NOTÍCIAS. Antropólogo tenta impedir ação do Ibama em terra indígena e é detido. Disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/02/17/antropologo-tenta-impedir-acao-do- ibama-em-terra-indigena-e-e-detido.ghtml. Acesso em 15.jun.2020.

também estão sendo pressionados143. Tal posicionamento do governo federal, de coibir as ações de fiscalização e as constantes declarações de Jair Bolsonaro contrárias às demarcações de terras indígenas, vem criando uma enorme pressão nestes territórios pela grilagem e ocupação de posseiros que esperam legalizar as áreas invadidas144.

215. Desde início da pandemia, o elevado risco que o novo coronavírus representa para os povos indígenas, assim como o severo impacto sobre a saúde dos povos, vem sendo Denunciado pela comunidades indígenas, entidades indigenistas e por algumas instituições.

216. A omissão da União Federal levou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil a ajuizar, com apoio de seis partidos políticos, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, sob o fundamento de que “o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da COVID-19, gerando o risco de extermínio de muitos grupos étnicos”. e de que “o Estado vem se omitindo intencionalmente no seu dever de proteger esses territórios indígenas – inclusive aqueles em que vivem povos isolados ou de recente contato –, abstendo- se de impedir e de reprimir invasões, que tantos riscos ocasionam”. Além das omissões, indica a APIB que, “muitas vezes, é o Estado que causa ativamente a disseminação do vírus entre povos indígenas”.145

217. Como fundamento da ADPF nº 709, são enumeradas uma série de manifestações de instituições nacionais e de organismos internacionais que corroboram o descumprimento por parte do Estado brasileiro de suas obrigações para com os povos indígenas. Colaciona-se excerto da petição:

13. Em nota pública, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal também alertou para o descaso com a saúde indígena durante a pandemia. A falta de transparência do Estado, a subnotificação de casos e a ausência de uma política

143 UOL NOTÍCIAS. Diretor do Ibama é exonerado após operação contra garimpos ilegais. Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/14/ibama-conoravirus- crise.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 15.jun.2020. 144G1 NOTÍCIAS. Áudios e vídeos revelam detalhes de esquema de grilagem dentro de terras indígenas. Disponível em https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/04/19/audios-e-videos-revelam-detalhes-de- esquema-de-grilagem-dentro-de-terras-indigenas.ghtml. Acesso em 15.jun.2020. 145 Petição inicial da ADPF nº 709. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoinci dente=5952986 Acesso em: 9 jun 2020.

coordenada e integral dos órgãos de responsáveis pela política de saúde são algumas das constatações. O órgão ressalta que as instituições públicas, sobretudo a FUNAI e a SESAI, devem atuar “para que o contexto da pandemia da covid-19 não se transforme em um episódio de “genocídio consentido das populações indígenas pelo Estado brasileiro”.

14. Diversos órgãos internacionais vêm também advertindo para a necessidade de proteção especial para os povos indígenas no contexto da pandemia do coronavírus. Nessa linha, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos expediu diretrizes para o enfrentamento da COVID-19, destacando medidas que devem ser adotadas em relação aos povos indígenas:

“Os Estados devem levar em conta que os povos indígenas utilizam um conceito diferente de saúde, que compreende a medicina tradicional, e devem consultar e considerar o consentimento prévio e informado destes povos com vistas à elaboração de medidas preventivas para impedir o COVID-19.

Os Estados devem impor medidas que regulem o acesso de pessoas ao território indígena, em consulta e colaboração com os povos interessados, especialmente com suas instituições representativas.

Em relação aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário ou na fase inicial de contato, os Estados e outros agentes devem considerá-los como grupos populacionais especialmente vulneráveis. As barreiras que forem implantadas para impedir o acesso de pessoas de fora de seus territórios devem ser gerenciadas rigorosamente, a fim de evitar qualquer contato.”

15. A Secretaria Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), por sua vez, emitiu comunicado aos Estados-membros, instando-os a prestarem especial atenção às populações indígenas durante a crise de saúde causada pelo COVID-19. Devido à dupla situação de vulnerabilidade das comunidades indígenas, resultantes de sua marginalização histórica e do seu isolamento geográfico, “as autoridades locais, regionais e nacionais de cada Estado Membro a trabalhar em coordenação com protocolos específicos que visam garantir a saúde e o bem-estar de sua população indígena desde uma perspectiva intercultural, conforme contemplado na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 2007, e na Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estados Americanos, aprovado em 2016”.

16. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao seu turno, expediu a Resolução n° 01/2020 sobre ‘Pandemia e Direitos Humanos nas Américas’,14 reconhecendo que grupos em situação de especial vulnerabilidade, como os povos indígenas, sentem mais fortemente os impactos do vírus, dada a realidade desigual e de violência generalizada a que estão submetidos. Por isso, a CIDH recomenda aos Estados as seguintes medidas:

“54. Proporcionar informação sobre a pandemia em seu idioma tradicional, estabelecendo, quando for possível, facilitadores interculturais que lhes permitam compreender de maneira clara as medidas adotadas pelo Estado e os efeitos da pandemia.

55. Respeitar de forma irrestrita o não contato com os povos e segmentos de povos indígenas em isolamento voluntário, dados os gravíssimos impactos que o contágio do vírus poderia representar para sua subsistência e sobrevivência como povo.

56. Extremar as medidas de proteção dos direitos humanos dos povos indígenas no contexto da pandemia da COVID-19, levando em consideração que estes coletivos têm direito a receber uma atenção à saúde com pertinência cultural, que leve em conta os cuidados preventivos, as práticas curativas e as medicinas tradicionais.

57. Abster-se de promover iniciativas legislativas e/ou avanços na implementação de projetos produtivos e/ou extrativos nos territórios dos povos indígenas durante o tempo que durar a pandemia, em virtude da impossibilidade de levar adiante os processos de consulta prévia, livre e informada (devido à recomendação da OMS de adotar medidas de distanciamento social) dispostos na Convenção 169 da OIT e outros instrumentos internacionais e nacionais relevantes na matéria.”

17. Por constatarem o crescimento exponencial da pandemia entre os povos indígenas da Amazônia, a ONU e a Comissão Interamericana divulgaram comunicado conjunto, em que advertiram que os Estados “devem aumentar as medidas para proteger os povos indígenas contra o COVID-19, tanto no nível de contágio quanto nos impactos sobre seus direitos associados à pandemia”. Como bem destacou a declaração conjunta:

“Enquanto os sistemas nacionais de saúde enfrentam sérias dificuldades em dar uma resposta efetiva, o coronavírus tornou mais evidente a ausência histórica ou presença limitada do estado em muitos territórios e sua capacidade insuficiente para atender às necessidades desses povos, levando também em consideração seus conhecimentos ancestrais, práticas de cura e medicamentos tradicionais, a partir de uma abordagem intercultural.

A pandemia também destacou a importância de garantir que os povos indígenas possam exercer seu autogoverno e autodeterminação. Portanto, é essencial que os Estados garantam a participação dos povos indígenas por meio de suas entidades representativas, líderes e autoridades tradicionais na formulação e implementação de políticas públicas para enfrentar o alto risco de extinção física e cultural dos povos indígenas amazônicos.

Nesse sentido, exortamos os Estados a respeitarem as medidas de autoisolamento adotadas pelos povos indígenas - sejam elas tradicionais ou resultantes da pandemia, como os cordões sanitários -, bem como a fornecer-lhes material de proteção individual de maneira segura. Também é de extrema importância compartilhar com os povos indígenas informações culturalmente apropriadas e em seus próprios idiomas ou dialetos, que sejam verdadeiras e oportunas em relação à contingência.

[...]

Numa etapa seguinte, as medidas de mitigação e recuperação de danos devem valorizar em seu projeto, implementação e avaliação as prioridades de desenvolvimento dos povos indígenas [...]. É especialmente importante que os Estados garantam processos de consulta prévia, livre e informada, culturalmente apropriados e de boa fé para os povos e comunidades indígenas sobre qualquer nova política de recuperação que possa afetar seus direitos e interesses legítimos” 18.

18. Todos esses atos e recomendações internacionais apontam claramente as obrigações dos governos nacionais de garantir os direitos dos povos indígenas durante a pandemia. Elas se baseiam no Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas são plenamente convergentes com a Constituição de 1988, que além de proteger os direitos fundamentais à vida (art. 5°, caput) e à saúde (arts. 6º e 196), consagra o direito dos povos

indígenas a viver em seus territórios, de acordo com os seus costumes e tradições (art. 231).

218. Demonstrando o risco de genocídio, foi requerido, em caráter cautelar, a adoção de uma série de medidas de cuidado e proteção em favor dos povos indígenas. As medidas foram parcialmente deferidas para impor à União Federal a obrigação de, em relação aos povos em isolamento e de contato recente, criar de barreiras sanitárias em proteção, instalar Sala de Situação, retirar invasores de suas terras, garantia acesso aos serviços de saúde. Em relação aos demais povos, determinou-se, dentre outras, a “elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros pela União”146, no prazo de 30 dias, com participação dos representantes das comunidades indígenas e outras instituições.

219. Em decisão monocrática, o Exmo. Ministro Relator reconheceu a “grande resistência no governo quanto à concretização dos direitos dos povos indígenas” e aludiu a falas atribuídas pela imprensa ao Presidente da República, como:

“Não entro nessa balela de defender terra pra índio”; “[reservas indígenas] sufocam o agronegócio” (Campo Grande News, 22.04.2015)[4]; “Em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros” (No Congresso, 21.01.2016)[5]; “Se eu assumir [a Presidência do Brasil] não terá mais um centímetro quadrado para terra indígena” (Dourados, , 08.02.2018)[6]; “Reservas indígenas inviabilizam a Amazônia” (Revista Exame, 13.02.2020)[7].

220. O Ministro registra ser esse o contexto “em que se insere a presente discussão e que reforça o dever de cuidado por parte do Tribunal quanto a tais povos”. O recurso ao poder judiciário se dá em um cenário em que o Presidente da República se pronuncia pública e expressamente aos direitos dos povos indígenas, consagrados na Constituição Federal e em Tratados Internacionais de proteção dos Direitos Humanos.

221. A postura do governo brasileiro também tem acarretado sentidos prejuízos à política exterior e às relações internacionais do país. Além de abdicar da soberania nacional em nome de interesses, em especial, do governo estadunidense, Jair Bolsonaro vem sendo considerado uma ameaça global por diversas lideranças responsáveis de países que alimentam paradigmas de convivência

146 Decisão monocrática proferida em 8 de julho de 2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoinci dente=5952986

civilizada. O presidente não apenas atua com agressividade e descaso contra atores, países, líderes e povos, como também descredibiliza instituições internacionais, tal como ocorrido com a Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia da COVID-19. Em consequência, o Brasil vem enfrentando entraves na consecução de acordos bilaterais e multilaterais, além de sofrer com a suspensão de compras de produtos nacionais por outros países.

222. Não bastasse isso, também têm se tornado comuns os posicionamentos que contrariam o mandamento constitucional de cooperação para a paz entre as nações, como ocorrido no caso das ameaças públicas de conflitos com países soberanos (tal qual ocorrido com a Venezuela) e do desrespeito à autodeterminação dos povos (como no dramático caso da Palestina).

223. Em matéria de política cultural, o Presidente da República empreendeu uma verdadeira perseguição às produções que não se alinham às crenças e aos valores dos grupos políticos que dão suporte ao seu governo. Após rebaixar o Ministério da Cultura ao nível de secretaria, o governo federal paralisou o financiamento público de espetáculos e iniciativas culturais. Determinou, ainda, expressamente, o direcionamento ideológico dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e passou a controlar os projetos que poderiam ser contemplados com recursos provenientes de editais.

224. Quanto ao patrimônio cultural e histórico nacional, sua preservação tem sido ameaçada com o corte de recursos e a substituição de pessoal técnico por indicações pouco relacionadas às temáticas das instituições de referência, caso, por exemplo, da presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que não preenche qualquer das credenciais indispensáveis ao posto.

225. Desde 1988, as manifestações culturais gozam de proteção constitucional no Brasil. O art. 215 da Constituição preconiza que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. E, em seu parágrafo primeiro, reserva especial guarida às “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

226. Não por outra razão, na forma do art. 23, III e IV, da Constituição, há competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” e “impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”. Contudo, o que se observa desde a posse do Denunciado na Presidência da República é uma sistemática desarticulação dos fundamentos constitucionais da política cultural brasileira.

227. Como primeiro ato do atual governo, o Ministério da Cultura (MinC) foi extinto por meio da Medida Provisória nº 870/2019, passando a compor, inicialmente, a estrutura do Ministério da Cidadania para, a partir de novembro de 2019, integrar o Ministério do Turismo. Em seguida ao fim do MinC, iniciou-se uma verdadeira marcha ideológica de perseguição a projetos culturais que pudessem representar críticas ao Poder Executivo ou transmitir valores diversos daqueles defendidos pela base de apoio do ora Denunciado.

228. Em agosto de 2019, o Presidente veio a público para criticar o financiamento público de produções com temática relacionada à diversidade de gênero 147 , ameaçando a própria existência da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em caso de liberação de recursos para essa modalidade de produções148. Ato contínuo, o Ministro da Cidadania, ao qual ainda se vinculava a Secretaria Especial da Cultura, suspendeu o edital que contemplaria as obras criticadas por Bolsonaro149 e demitiu o então Secretário, Henrique Medeiros Pires150. Após sua demissão, Pires apontou o ato do governo federal como censura:

— Eu não vou fazer apologia a filtros culturais — diz Pires. — Para mim, isso tem nome: é censura. Se eu estiver nesse cargo e me calar, vou consentir com a censura. Não vou bater palma para este tipo de coisa. Eu estou desempregado. Para ficar e bater palma pra censura, eu prefiro cair fora.

147 https://oglobo.globo.com/cultura/projetos-de-serie-que-bolsonaro-quer-abortar-sao-finalistas-na-linha-diversidade-de- genero-de-edital-publico-23882963. 148 https://oglobo.globo.com/cultura/bolsonaro-sobre-ancine-se-pessoal-se-adequar-da-para-mante-la-23877823. 149 https://oglobo.globo.com/cultura/governo-bolsonaro-suspende-edital-com-series-lgbt-para-tvs-publicas-23891805. 150 https://oglobo.globo.com/cultura/governo-bolsonaro-suspende-edital-com-series-lgbt-para-tvs-publicas-23891805.

229. Após escancarados esses fatos, foi necessária intervenção do Poder Judiciário para determinar a retomada do mencionado edital. A decisão judicial destacou que houve “discriminação contra projetos com temática relacionada a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis”151.

230. Em novembro de 2019, o Presidente da República nomeou para presidir a Fundação Cultural Palmares, vinculada à Secretaria Especial da Cultura, um notório opositor das políticas de valorização da cultura afro-brasileira 152 , contrastando com os objetivos institucionais daquele órgão. A incompatibilidade com o cargo era tão expressiva que decisão judicial chegou a suspender a nomeação153.

231. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também não teve melhor sorte. Como se verifica na transcrição de reunião ministerial datada de 22 de abril de 2020, tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da República desconhece as políticas do órgão e busca, mediante interferência em suas atividades, favorecer interesses privados em detrimento do interesse da coletividade priorizado pela Constituição de 1988.154

232. Ressalte-se que, consoante enunciado pela ex-presidente do instituto, o Iphan teve alterações recentes em sua estrutura administrativa por pressão de um dos filhos do Presidente da República, o que demonstra o caráter corrupto, autoritário e personalista do ora Denunciado155. As práticas não republicanas e o descaso com a atuação daquele importante órgão de preservação do patrimônio cultural ganharam ainda mais vulto com a nomeação de nova presidente, sem qualquer vinculação com a área156, mas com proximidade pessoal à família do ora Denunciado157.

151 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/justica-determina-que-ancine-retome-edital-censurado-por-conter- conteudo-lgbts.shtml. 152 https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/11/27/novo-presidente-da-fundacao-palmares-nega-racismo-e- ataca-negros-famosos.htm. 153 https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/12/governo-suspende-nomeacoes-dos-presidentes-da-fundacao-palmares- e-iphan.ghtml.

154 “E assim nós devemos agir. Como tava discutindo agora. O IPHAN, não é? Tá la vinculado a Cultura. (...) Mas tinha que ter um outro perfil também. O IPHAN para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder.” 155 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/25/interna_politica,1150497/ex-chefe-do-iphan-diz-que-perdeu-o- cargo-por-pressao-de-flavio-bolsona.shtml. 156 https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/12/interna_gerais,1146419/nomeacao-da-nova-presidente-do-iphan- gera-polemica-e-muitas-criticas.shtml. 157 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/justica-suspende-nomeacao-de-presidente-do-iphan.shtml.

233. O ataque ao setor também tem sido levado a cabo por sucessivos cortes do custeio estatal às iniciativas culturais, bem como pela revisão dos critérios de incentivo ao custeio privado dessas mesmas iniciativas. Em 2020, por exemplo, o orçamento do Poder Executivo Federal prevê uma redução de 78% na verba destinada ao patrimônio cultural de cidades históricas158. Por outro lado, a implantação da Lei de Incentivo à Cultura sofreu severas restrições a partir da publicação da Instrução Normativa nº 2, de 23 de abril de 2019, que limitou os projetos incentivados ao teto de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), reduzindo o teto do valor anterior, de R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais)159.

234. Toda a cadeia da cultura, que congrega 5,7% dos trabalhadores brasileiros160, termina por ser vulnerabilizada diante desse cenário de baixo custeio, o qual oferece grave risco para a divulgação de projetos que não contem com forte apelo econômico e financeiro.

235. A direção destruidora das iniciativas culturais brasileiras ganhou forma ainda mais alarmante com a nomeação de Roberto Alvim para o cargo de Secretário Especial da Cultura. Em 17 de janeiro de 2020, o então Secretário efetuou discurso transmitido em redes oficiais, reproduzindo frases do Ministro da Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels161, evidenciando a pretensão de conferir viés político-ideológico à atuação do Ministério, de forma a fazê-lo aderir exclusivamente aos valores defendidos pelo atual mandatário, ora Denunciado. Após a divulgação do vídeo, o Presidente da República não efetuou qualquer censura pública ao Secretário, que chegou até mesmo a reportar a compreensão do Denunciado no sentido de que “não houve má intencionalidade”162.

236. A gravidade das condutas do Presidente da República no setor cultural traduz inegáveis crimes de responsabilidade. Ao adotar conduta persecutória às iniciativas culturais que divirjam das suas expectativas, o Denunciado promove verdadeira censura, vedada pelo art. 5º, IX, e pelo art. 220, §2º, da Constituição. Ao fazê-lo, incorre na conduta criminosa prescrita no art. 85, III, da Constituição c/c art. 7º, inciso 9, da Lei nº 1.079/1950.

158 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/bolsonaro-faz-cortes-nas-areas-social-cultural-e-trabalhista.shtml. 159 https://static.poder360.com.br/2019/04/dou-LeiRouanet.pdf. 160 https://biblioo.cartacapital.com.br/setor-cultural-emprega-57-dos-trabalhadores-brasileiros/. 161 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/17/secretario-nacional-da-cultura-roberto-alvim-faz-discurso-sobre-artes- semelhante-ao-de-ministro-da-propaganda-de-hitler.ghtml. 162 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/01/17/interna_politica,1115027/roberto-alvim-diz-que-bolsonaro-nao- viu-ma-intencao-em-citacao-de-nazi.shtml.

237. De igual modo, ao contrariar os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa (art. 37, caput, da Constituição), promovendo interesses particulares mediante a gestão das instituições culturais, tolerando atos ilegais de seus subordinados, bem como expedindo ordens flagrantemente contrárias aos mandamentos constitucionais, Jair Bolsonaro comete o crime constantes no art. 85, V, da Constituição c/c art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079/1950.

238. Em matéria de liberdade de expressão e de imprensa, o governo tem se notabilizado por impor ataques diários à comunicação social, incentivando agressões a jornalistas e profissionais de imprensa e manifestando a intenção de privilegiar meios de comunicação alinhados ideologicamente com o governo federal.

239. O Presidente da República, ao longo de seu governo, em associação com a nova linha adotada pelo Ministério dos Direitos Humanos, vem defendendo o fim da chamada “ideologia de gênero”, buscando frear iniciativas que incentivem a igualdade, a inclusão e a diversidade por meio da educação e da cultura. O governo tem agido diretamente para interromper as políticas de saúde sexual e reprodutiva. Nesse sentido, substituiu as políticas cientificamente respaldadas de prevenção da violência de gênero por campanhas públicas sem efeito concreto e as iniciativas de educação sexual por questionáveis campanhas de abstinência na juventude. Por outro lado, as redes públicas de apoio a mulheres em situação de vulnerabilidade têm visto seu orçamento minguar, frustrando os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil ao longo das últimas décadas.

240. Essas condutas representam graves crimes de responsabilidade, na medida em que ficam claras as condutas do Presidente que atentam contra a existência da União, o livre exercício dos poderes da República, os direitos políticos, individuais e sociais, além da segurança interna do país, a probidade da administração.

241. As entidades e os cidadãos que, em articulação nacional, decidiram denunciar Jair Bolsonaro por seus delitos acreditam que somente o seu afastamento e a responsabilização jurídico- política de todos os representantes de seu governo que levam adiante as políticas destrutivas

representadas pelo seu projeto político, são capazes de recolocar o país nos trilhos da observância e do predomínio da Constituição da República.

242. Ao tomar posse na Presidência da República e iniciar o seu governo, Jair Bolsonaro encarregou-se de frustrar as apostas de que conteria daí em diante os seus excessos ante as responsabilidades do cargo. Já em 26 de março de 2019, o porta-voz da Presidência da República informava que Bolsonaro determinara ao Ministério da Defesa que fizesse as comemorações devidas com relação ao golpe militar de 31 de março de 1964, incluindo uma ordem do dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa. Convém recordar que a Comissão Nacional da Verdade fez constar de sua Recomendação nº 4 a proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964, em virtude de investigações realizadas terem comprovado que o regime autoritário que se seguiu foi responsável pela ocorrência de graves violações de direitos humanos, perpetradas de forma sistemática e em função de decisões que envolveram a cúpula dos sucessivos governos do período. Também àquela altura, as condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos “Gomes Lund e outros” e “Vladimir Herzog”, reconheceram que o período que se seguiu a 1964 no país foi marcado politicamente por mortes, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e torturas.

243. Em 29/7/2019, declarou que “um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele”. E completou: “Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar a essas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”163. Além da perversidade em si da fala, que tripudia sobre a dor de alguém que não pode fazer o luto do próprio pai, ela é mentirosa.

163 O Globo, 29/07/2019: “Bolsonaro: 'Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu, eu conto pra ele'”. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-se-presidente-da-oab-quiser-saber-como-que-pai- dele-desapareceu-eu-conto-pra-ele-23839835; e Folha de S. Paulo, 29/07/2019. “Se presidente da OAB quiser saber como pai dele desapareceu na ditadura, eu conto, diz Bolsonaro”. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/se-presidente-da-oab-quiser-saber-como-pai-dele-desapareceu-na- ditadura-eu-conto-diz-bolsonaro.shtml; O Estado de São Paulo, 29/07/2019: “'Se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto'”. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,se-o-presidente-da-oab-quiser-saber-como-o-pai-dele-desapareceu-no- periodo-militar-eu-conto,70002945253?utm_source=estadao:whatsapp&utm_medium=link

O desaparecimento forçado de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi investigado pela Comissão Nacional da Verdade e, anteriormente, pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia. Fernando Santa Cruz era funcionário público, com emprego fixo e integrava a Ação Popular (AP). Ao contrário de outros militantes da época, não estava na clandestinidade. Não consta registro nessas comissões de que tivesse tido participação em algum ato da luta armada. Ele foi visto pela última vez quando deixou a casa de seu irmão, no Rio de Janeiro, em 23 de fevereiro de 1974. Provavelmente, foi preso junto com Eduardo Collier Filho, por agentes do DOI-CODI do I Exército e, em momento incerto, transferido para o DOI-CODI do II Exército, São Paulo, à época dirigido por Carlos Alberto Brilhante Ustra. Cogita-se, ainda, de que tenha sido assassinado na Casa da Morte, em Petrópolis – RJ. A Comissão Nacional da Verdade concluiu que Fernando Santa Cruz “foi preso e morto por agentes do Estado brasileiro e permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família. Essa ação foi cometida em um contexto de sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar instaurada no Brasil em abril de 1964164.”

244. Também sem apego ao que foi produzido pela Comissão Nacional da Verdade, e na ânsia permanente de reescrever a história da ditadura militar, em café da manhã com a imprensa estrangeira, Bolsonaro afirmou que a jornalista Miriam Leitão integrou a luta armada de resistência e dirigia-se à guerrilha do Araguaia quando foi presa, na década de 1970. A jornalista, em verdade, foi vítima de prisão ilícita e tortura durante o regime militar. Estava grávida à época e foi submetida a sevícias diversas, durante dois meses. Processada na Justiça Militar, veio a ser absolvida165.

245. Em sucessivas atitudes diversionistas, embora no exercício da enormemente relevante e trabalhosa função de Presidente da República, Jair Bolsonaro prosseguiu dando vazão ao seu desequilíbrio e à sua obsessão em disseminar mentiras, ódio e preconceitos, ao rejeitar a credibilidade de dados técnicos apresentados por órgãos oficiais166 ; afirmar ainda que o país não

164 Comissão Nacional da Verdade, Volume III, p. 1603/1609. 165 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/07/19/globo-repudia-em-nota-ataques-de-bolsonaro-a-miriam- leitao.ghtml 166 https://noticias.uol.com.br/ultis-noticias/agencia-estado/2019/07/31/bolsonaro-diz-que-pediu-a-ministerios-avaliacao- de-dados-do-inpe.htmma

poderia ser lugar de turismo gay porque aqui existem famílias167; que o trabalho infantil “não prejudica as crianças”168; que ninguém passa fome no Brasil169; que a questão ambiental importa apenas “aos veganos, que comem só vegetais”170 ; e que o programa Mais Médicos, implementado por Dilma Rousseff, tinha como objetivo formar “núcleos de guerrilha”171. Somam-se aqui o discurso do ódio e a inverdade, ambos sem lugar na democracia, como se desenvolverá adiante.

246. As intimidações a veículos da imprensa críticos à sua gestão tornaram-se rotina. Declarações de agentes públicos e notícias dão conta de possível direcionamento da publicidade oficial do Governo Federal favorecendo veículos a ele simpáticos e punindo os mais críticos 172 . Foi fartamente noticiado que a resistência ao desejo de parte do governo de financiar blogs e sites simpáticos ao presidente Jair Bolsonaro teria sido a causa da demissão do ministro Santos Cruz da Secretaria de Comunicação da Presidência da República173. Recentemente, indícios de que o Banco do Brasil gastou 119 milhões de reais com publicidade em um site famoso pela propagação de “fake news” fez com o que TCU determinasse a suspensão imediata de qualquer veiculação de anúncios do banco em sites, blogs, portais e redes sociais174. Em outras oportunidades, o presidente da República ameaçou cancelar assinaturas do jornal Folha de São Paulo, que chegou a ser excluído de licitação, em retaliação à sua linha editorial175. Também defendeu boicote a anunciantes do jornal176, como forma de pressionar empresas privadas a não divulgarem publicidade em veículos de imprensa críticos a seu governo. Ameaçou ainda não renovar a concessão de emissora de televisão177, por discordar da linha editorial.

167 https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-nao-pode-ser-pais-do-mundo-gay-temos-familias-diz-bolsonaro/ 168 https://exame.abril.com.br/brasil/em-live-bolsonaro-afirma-que-trabalho-nao-atrapalha-criancas/ 169 https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/politica/1563547685_513257.html 170 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/questao-ambiental-e-para-veganos-que-so-comem-vegetais-diz- bolsonaro.shtml 171 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-mais-medicos-tinha-objetivo-de-formar-nucleos-de- guerrilha,70002950683 172https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/chefe-da-secom-sugere-boicote-publicitario-apos-reportagem-da- folha.shtml 173https://oglobo.globo.com/brasil/demissao-de-santos-cruz-sucedeu-divergencia-sobre-financiamento-blogs-pro-governo- 23740161 174 https://veja.abril.com.br/blog/radar/tcu-manda-banco-do-brasil-suspender-publicidade- digital/amp/?__twitter_impression=true 175https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bolsonaro-cumpre-ameaca-e-exclui-folha-de-licitacao-da-presidencia- para-assinatura-de-jornais.shtml 176https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bolsonaro-amplia-ameaca-a-folha-e-diz-que-boicota-produtos-de- anunciantes-do-jornal.shtml 177https://istoe.com.br/bolsonaro-ameaca-nao-renovar-concessao-da-rede-globo-vai-ter-dificuldade

247. Num dos episódios mais bizarros dessa batalha contra a imprensa, o governo pediu a um humorista que entregasse bananas a jornalistas178. Antes, Bolsonaro, em ato machista e misógino, insinuou que Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha de São Paulo, estaria disposta a oferecer favores sexuais em troca de um furo de reportagem contra ele179. Logo após, a Folha publicou editorial em que acertadamente afirmava que o presidente “atiça as falanges governistas contra o jornal e seus profissionais, mas seu alvo final não é um veículo nem tampouco a imprensa profissional. Ele faz carga contra o edifício constitucional da democracia brasileira”180.

248. O avanço sobre os pilares da democracia prosseguiu com mais intensidade com a chegada ao Brasil da pandemia da Covid-19. Ciente de antemão da incapacidade de seu governo gerir essa enorme crise sanitária e, igualmente, os impactos econômicos imediatamente projetados, Bolsonaro deu início a um festival de desinformação, de desorganização administrativa e de renovação de ataques aos entes subnacionais, ao Parlamento e ao Supremo Tribunal Federal.

249. Para além dessa face mais ostensiva do autoritarismo do atual Presidente da República, é preciso avaliar o impacto de sua atuação no conjunto dos demais direitos fundamentais.

250. A Constituição brasileira, em seu artigo 3º, transmite e assume a ideia de uma sociedade mais justa e voltada à eliminação das desigualdades, livre de discriminações de todos os tipos. Tratava-se de uma diretriz que, para avançar, requer investimento perseverante e ininterrupto.181 Em breve retrospectiva, é possível verificar o avanço substancial na implementação de direitos no período de 1990-2016.

178 https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-ignora-resultado-do-pib-posta-video-em-que-humorista-da-banana-para- jornalistas-no-alvorada-24285268 179 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/bolsonaro-insulta-reporter-da-folha-com-insinuacao-sexual.shtml 180 https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/sob-ataque-aos-99.shtml?origin=folha 181 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

251. Em 1992, foi homologada a Terra Indígena Yanomami, com mais de 9 milhões de hectares (Decreto de 25 de maio de 1992). Logo após a promulgação da Constituição de 1988 foram editados ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos (Lei 8.112/90) e a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), que instituiu o SUS e garantiu a universalidade do acesso à saúde. É também desse período a chamada “Lei Rouanet” (Lei nº 8.313/91), de valorização da diversidade das expressões e manifestações culturais.

252. Mais adiante, o governo federal abraçou a campanha contra a fome e a miséria que vinha sendo desenvolvida pelo sociólogo Betinho e, pelo Decreto nº 807, de 22 de abril de 1993, criou o CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar, com multiplicidade e articulação de instituições, órgãos e atores sociais, nos diferentes níveis de governo. Também nesse período surgiu a Política Nacional do Idoso e a criação do Conselho Nacional do Idoso (Lei 8.842/94).

253. Já em 1996 foi lançado o 1º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH)182, cujo prefácio consignou logo de início: “não há como conciliar democracia com as sérias injustiças sociais, as formas variadas de exclusão e as violações aos direitos humanos que ocorrem em nosso país”. Esse documento inaugurou o modelo de conferências locais, regionais e nacional, com ampla participação de segmentos da sociedade civil. Seu principal enfoque veio ser a cidadania e a redução das desigualdades sociais, econômicas, sociais e culturais. Há nele uma preocupação com a não-violência e com a cultura do desarmamento; com o reconhecimento da especial vulnerabilidade de “crianças e adolescentes, idosos, mulheres, negros, indígenas, migrantes, trabalhadores sem terra e homossexuais”.

254. Em 2002, foi lançado o 2º PNDH183, com maior enfoque nos direitos econômicos, sociais e culturais. Está ali expresso que o “PNDH II incorpora ações específicas no campo da garantia do direito à educação, à saúde, à previdência e assistência social, ao trabalho, à moradia, a um meio ambiente saudável, à alimentação, à cultura e ao lazer, assim como propostas voltadas para a educação e sensibilização de toda a sociedade brasileira com vistas à construção e consolidação de uma cultura de

182 http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-no-Brasil/i-programa-nacional-de-direitos-humanos- pndh-1996.html 183 http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-no-Brasil/ii-programa-nacional-de-direitos-humanos- pndh-2002.html#:~:tex

respeito aos direitos humanos.” Compreende o documento que, para alcançar essas metas, é necessário fortalecer os órgãos da administração pública, como Funai, Ibama, Incra e Fundação Cultural Palmares, entre outros, bem como os espaços de participação social nos vários conselhos de direitos humanos já existentes.

255. Nessa época, também foram criadas a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei 9.140/95) e a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça (Lei 10.559/2002). Também é desse período o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) e a Lei da Saúde Mental (Lei 10.216/2001), que veio a redirecionar toda a política no sentido principalmente do fim dos manicômios e das internações de longa duração de todos os tipos.

256. Em 2009, o governo federal lançou o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto 7.037/2009), com seis eixos orientadores (Eixo Orientador I: Interação democrática entre Estado e sociedade civil; Eixo Orientador II: Desenvolvimento e Direitos Humanos; Eixo Orientador III: Universalizar direitos em um contexto de desigualdades; Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; Eixo Orientador V: Educação e Cultura em Direitos Humanos; Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade). Isso significou que direitos humanos se tornaram o tema transversal de todas as políticas públicas e o artigo 4º do Decreto veio a instituir um comitê para acompanhamento da implementação do PNDH III. Nesse período, foram criados, entre outros, o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), o ICMBio (Lei 11.516/2007), a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/2007), a Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto 7.053/2009), o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), o decreto de demarcação de áreas quilombolas (Decreto 4.887/2003). São dessa época, a “Reforma do Judiciário” (EC 45/2004) e importantes políticas de enfrentamento à desigualdade (Bolsa Família, Fome Zero, Minha Casa Minha Vida e Primeiro Emprego).

257. Vale ressaltar a iniciativa capital traduzida na edição do estatuto da Igualdade Racial (2010), associada à criação em 2003 da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, centradas no enfrentamento do racismo como elemento central e articulador da exclusão social e da opressão a grandes contingentes populacionais e culturais de nosso país.

258. Em 2011, foi instituída a Comissão Nacional da Verdade (Lei 12.528/2011), orientada a resgatar a memória e promover a reparação das violações praticadas pela ditadura militar contra os direitos humanos. Foram mais adiante também criados o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 8.750/2016), o Conselho Nacional de Política Indigenista (Decreto 8.593/2015) e o Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013). Nesse período surgiu a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), instrumento essencial à concretização da transperência de governo e da administração pública, assim como a chamada Lei do MROSC – Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014), além da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), do Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e da lei que destinou 75% dos royalties da exploração do petróleo para a saúde e 25% para a educação (Lei 12.858/2013).

259. Houve, portanto, desde 1988, o fortalecimento considerável das políticas tendentes à ampliação de direitos, na linha do compromisso estabelecido na Constituição de 1988. Todo esse arcabouço, seja legislativo, seja administrativo, implicou necessariamente o reforço dos recursos e das estruturas institucionais públicas, orientadas ao cumprimento das citadas diretrizes constitucionais.

260. O atual Presidente da República, apesar disso, dedicou-se obstinadamente a desconstruir sistematicamente e de modo grotesco as políticas públicas associadas ao cumprimento do programa constitucional.184. Só não avançou quando foi contido, ou pelo sistema de Justiça, ou pelas Casas Parlamentares.

261. A Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, foi o primeiro ato do governo, editado para estabelecer a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Alguns sinais antecipavam a demolição da política de direitos humanos que se avizinhava. Foi extinto, sem que outro órgão ocupasse o seu lugar, o CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e com isso ficou desorganizado todo o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, instituído pela Lei 11.346/2006. Convém lembrar que o CONSEA nasceu inspirado pelo movimento “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, sob a liderança do sociólogo

184 https://oglobo.globo.com/mundo/antes-de-construir-preciso-desconstruir-muita-coisa-no-brasil-diz-bolsonaro-nos-eua- 23530792

Herbert de Souza, o Betinho,185 e foi reconhecido pela FAO186 como ferramenta central para que o país saísse do Mapa Mundial da Fome em 2014, reduzindo em 82,1% o número de pessoas subalimentadas. Quando a MP 870 foi editada, o Brasil estava numa curva ascendente de pessoas em retorno à situação de extrema pobreza187.

262. A questão indígena, na MP 870, também sofreu enorme desorganização. A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, historicamente vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), teve a sua supervisão transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Também a atribuição que sempre esteve na Funai, de realizar a identificação e delimitação das terras indígenas passou para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), também ficando nesse Ministério, e não mais no MJ, a competência para expedir portarias declaratórias das terras indígenas. Coube, por fim, ao MAPA, e não mais à Funai, a atribuição para se manifestar como interveniente em processos de licenciamento ambiental que afetem povos indígenas. Embora o Congresso Nacional não tenha aprovado a MP nesse ponto, restou evidente o propósito de Bolsonaro de colocar nas mãos do agronegócio os interesses indígenas.

263. As organizações da sociedade civil, até então parceiras importantes na execução de inúmeras políticas públicas, contaram com uma disciplina inédita na MP 870. Em seu artigo 5º, ao fixar as atribuições da Secretaria de Governo da Presidência da República, a ela foi atribuída, no inciso II, a função de: “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. O absurdo em relação aos organismos internacionais é patente, pela razão singela de que a sua presença em território nacional e a respectiva imunidade é resultado de tratados firmados e ratificados pelo Brasil. Mas também quanto às ONGs, a norma violava, direta e expressamente, o disposto no inciso XVIII do artigo 5º da Constituição, segundo o qual “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”. Também afastada tal norma

185SILVA, Sandro Pereira. A trajetória histórica da segurança alimentar e nutricional na agenda política nacional: projetos, descontinuidades e consolidação. 2014. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3019/1/TD_1953.pdf. 186BOJANIC, Alan Jorge; FRANÇA, Caio Galvão de; MARQUES, Vicente Penteado Meirelles de Azevedo; e DEL GROSSI, Mauro Eduardo. Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras. FAO: Brasília, 2016. Disponível em: http://www.fao.org/3/a-i5335o.pdf. Acesso em 12 fev 2019. 187 Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2018/08/13/aumenta-a-pobreza-e-a-extrema-pobreza-no-brasil-artigo-de- jose-eustaquio-diniz-alves/. Acesso em 12 fev. 2019.

pelo Parlamento, ficou a evidência do pouco apreço de Jair Bolsonaro pela liberdade de associação e pela gestão participativa.

264. Na sequência, o governo federal editou, em 23 de janeiro de 2019, o Decreto nº 9.690, promovendo alterações no regulamento da Lei nº 12.527, de 18/11/2011, a Lei de Acesso à Informação (LAI). Por esse decreto, aumentou a dispersão e o número de pessoas habilitadas a classificar documentos como secretos e ultrassecretos. Tratava-se de uma ampliação que permitiria delegação para um universo de até 1.100 autoridades para o primeiro caso, e um grupo superior a 200 pessoas poderia realizar a classificação no nível mais alto, o de ultrassecreto, eliminando do acesso público documentos por até 25 anos. Houve posteriormente recuo, mas não deixa de ser significativo que um governo que pautou sua campanha pelo combate à corrupção tenha como marco inaugural a fragilidade do instrumento mais importante para tanto: a transparência. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção188 é expressa nesse sentido em inúmeros dispositivos.

265. Mais recentemente, aproveitando no mau sentido a pandemia da Covid-19, houve nova tentativa de fragilizar a LAI, imediatamente impedida pelo Supremo Tribunal Federal. Pela MP 928/2020, ficava limitado o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública. A liminar que suspendeu a vigência dessa norma foi concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes do STF, nos autos da ADI 6351 e, posteriormente, confirmada pelo Plenário da Corte. Agregue-se a isso a decisão governamental pela não divulgação dos dados de adoecimentos e mortes pela Covid-19, seguida por uma apresentação bastante confusa dos números189.

266. Outro episódio revelador da política sistemática do atual Presidente da República de desconstrução de políticas públicas originárias da Constituição e enraizadas na ação do Estado brasileiro veio a com extinção de inúmeros conselhos representativos da participação da sociedade junto às ações governamentais, pelo Decreto 9.759/2019, ensejando a propositura de ação direta de inconstitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal deliberou pela suspensão dessa medida, em acórdão assim ementado:

188Promulgada e internalizada no Brasil pelo Decreto 5.687, de 31/1/2006. 189 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/apos-ameacar-sonegar-dados-governo-promove-confusao-com- numeros-a-covid-19.shtml

PROCESSO OBJETIVO – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE – LIMINAR – DEFERIMENTO PARCIAL. Surgindo a plausibilidade jurídica parcial da pretensão e o risco de manter-se com plena eficácia o quadro normativo atacado, impõe-se o deferimento de medida acauteladora, suspendendo-o. COMPETÊNCIA NORMATIVA – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – ÓRGÃOS COLEGIADOS – PREVISÃO LEGAL – EXTINÇÃO – CHANCELA PARLAMENTAR. Considerado o princípio da separação dos poderes, conflita com a Constituição Federal a extinção, por ato unilateralmente editado pelo Chefe do Executivo, de órgãos colegiados que, contando com menção em lei em sentido formal, viabilizem a participação popular na condução das políticas públicas – mesmo quando ausente expressa “indicação de suas competências ou dos membros que o compõem”.

(ADI 6121 MC, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-260 DIVULG 27-11-2019 PUBLIC 28- 11-2019)

267. Mantidos os conselhos criados por lei, os ataques a eles foram permanentes. Tome-se como exemplo o Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.242/9. No dia 4 de setembro de 2019, foi promulgado o Decreto 10.003, em que o Presidente da República alterou o seu regulamento, o Decreto 9.579/2018, reduzindo o número de seus componentes, esvaziando o seu caráter multissetorial e transversal e ainda retirando o apoio técnico- administrativo-financeiro do MMFDH necessário ao seu funcionamento. Em dezembro de 2019, o ministro Roberto Barroso concedeu liminar na ADPF 622, para restabelecer os mandatos dos conselheiros até seu termo final e determinar a eleição dos representantes das entidades da sociedade civil em assembleia específica, a realização de reuniões mensais com o custeio do deslocamento dos conselheiros que não moram no Distrito Federal e que o presidente do órgão fosse eleito por seus pares, tudo nos termos do regimento interno. Como a decisão ocorreu no final de 2019, o Conanda se viu impossibilitado, naquele ano, de fazer a gestão do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), com prejuízo ao financiamento de inúmeros projetos destinados à promoção, proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

268. Já o Conselho Nacional do Idoso, criado pela Lei 8.842/94, é outro exemplo do descumprimento dissimulado da decisão do STF na ADI 6.121. Toda a sua estrutura, composição e funcionamento, tal como previstas no Decreto 5.109/2004, foram alteradas pelo Decreto 9.893/2109, que, de resto, cassou os mandatos da presidente e dos conselheiros e conselheiras eleitos para a gestão

2018-2020190.

269. Outro caso absurdo é o do CIAMP-RUA, Conselho Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua, criado pelo Decreto 7.053/2009, com composição paritária de nove membros do governo e nove, da sociedade civil. Extinto pelo decreto de Bolsonaro, foi recriado pelo Decreto 9.894/2019, cujo § 7º do art. 5º concebeu o absurdo: “os membros do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua que se encontrarem no Distrito Federal se reunirão presencialmente e os membros que se encontrem em outros entes federativos participarão da reunião por meio de videoconferência”. Foi assim estipulado que a reunião de população de rua seria realizada por videoconferência, quando os recursos para a assistência social e respectivos repasses para os entes subnacionais estavam seriamente comprometidos, sem condições de atender às necessidades mais básicas desse segmento191. O fato é que a videoconferência foi a chave para dar a aparência de que os conselhos seguiam funcionando. Sem o fornecimento de qualquer equipamento de informática, os conselhos de participação social, quase que em sua totalidade, não realizaram atividade alguma ao longo do ano de 2019.

270. O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura só sobrevive graças à intervenção judicial, ainda assim de forma muito debilitada. Logo no início do governo, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) desautorizou uma missão do o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) ao Ceará192 . Convém lembrar que a preocupação em impedir e prevenir a prática de tortura e de outros tratamentos desumanos ou degradantes traduziu-se, além da Constituição, na adesão do Brasil a inúmeros atos no âmbito do direito internacional dos direitos humanos: a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, assinada em Assembleia Geral das Nações Unidas na data de 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991; a Convenção Interamericana para Prevenir

190https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=44C4BBF8E9A2C654A79B951433C41F80 .proposicoesWebExterno1?codteor=1774969&filename=Avulso+-PDL+454/2019 191 http://www.congemas.org.br/Publicacao.aspx?id=115474 192 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/todas-as-noticias/2019/fevereiro/cndh-manifesta-preocupacao-frente-ao- cancelamento-da-missao-do-

e Punir a Tortura, promulgada pelo Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989; a adesão ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgada pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002; e a promulgação do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Esse último documento, já em seu artigo 1, é suficientemente elucidativo: “o objetivo do presente Protocolo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. E a Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, em seu artigo 8º, § 2º, estabeleceu que os membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura terão independência na sua atuação.

271. Na sequência, veio o Decreto 9.831, de 10 de junho de 2019, prevendo que a participação no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura “será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada”. Era o desmonte do combate à tortura no Brasil193, que só não se completou por conta de decisão liminar da Justiça Federal no Rio de Janeiro, mantida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região194. A situação foi de tamanha gravidade que a Associação para a Prevenção da Tortura, com sede em Genebra, pediu ingresso, na condição de amicus curiae, na ADPF 607, cujo objeto era esse “serviço voluntário” dos peritos do Mecanismo195.

272. A área de memória e verdade foi totalmente destruída. É preciso lembrar que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund, a assumir obrigações de instituir políticas de reparação integral às vítimas e familiares da ditadura inaugurada em 1964. Em 2015, o Brasil apresentou relatório à CIDH, onde justifica a sua aderência àquela decisão mediante as seguintes iniciativas, todas a cargo da Comissão de Anistia: (i) implantação do Memorial da Anistia; (ii) projeto Clínicas do Testemunho, com a realização de 4.000 atendimentos, 450 horas de capacitação e conversas públicas com 1.900 pessoas; (iii) Caravanas de Anistia, por “romper com o silêncio e o medo de discutir publicamente o passado”; (iv) Marcas da Memória, enfatizando que, ao

193 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-desmonta-orgao-de-combate-a-tortura,70002866264 194 https://www10.trf2.jus.br/portal/trf2-mantem-liminar-garantindo-cargos-de-peritos-do-mecanismo-nacional-de- prevencao-e-combate-tortura/ 195 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750859776&prcID=5741167#

final do projeto, “os acervos de fontes orais e audiovisuais organizados serão disponibilizados para consulta pública e pesquisa no Centro de Documentação e Pesquisa do Memorial da Anistia Política do Brasil”; (v) publicações em conformidade com os ideais de preservação da memória histórica e da verdade; e (vi) mais de 50 atividades realizadas ao longo de 2014 por ocasião dos 50 anos do golpe, dentre tantas outras ações de reparação. Nada disso existe mais. Ao contrário, pela Portaria nº 378, de 27 de março de 2019, a composição do Conselho da Comissão de Anistia passou a contar com pelo menos cinco militares de carreira, além de pessoas com atuação judicial contrária à concessão de reparação, a atos da Comissão de Anistia e do Ministro da Justiça e à instauração da Comissão Nacional da Verdade196.

273. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos sofreu igual destino: composição por pessoas que negam a ditadura militar. A declaração do presidente a respeito das nomeações feitas pelo decreto presidencial de julho de 2019 fala por si só: "O motivo é que mudou o presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Ponto final. Quando eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o presidente. Igual mudou a questão ambiental também"197.

274. Um dos membros recém designados, Weslei Antônio Maretti, assim se manifestou em redes sociais, ao elogiar um notório torturador do período da ditadura militar: “O comportamento e a coragem do coronel Ustra servem de exemplo para todos os que um dia se comprometeram a dedicar- se inteiramente ao serviço da pátria. Apesar de travar uma luta de Davi contra Golias, a sua vitória é certa porque no final o bem prevalece sobre o mal”.198

275. O Presidente da República ao longo de seu governo, vem defendendo o fim da suposta “ideologia de gênero”, principalmente nas escolas199 . Além de o termo não corresponder a qualquer categoria analítica, e tampouco a alguma área do conhecimento, o Supremo Tribunal Federal

196 https://oglobo.globo.com/brasil/damares-muda-perfil-da-comissao-de-anistia-rejeita-265-pedidos-23554015 ; https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/para-presidir-comissao-de-anistia-damares-nomeia-ex-assessor-debolsonaro- que-ja-atuou-contra-anistiados/ 197 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/bolsonaro-muda-comissao-de-mortos-e-desaparecidos-em-meio-a- ataques-sobre-o-tema.shtml 198 https://jornalggn.com.br/politica/novo-integrante-da-comissao-de-mortos-e-desaparecidos-politicos-exalta-torturador-e- ex-chefe-do-doi-codi/ 199 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-defende-familia-tradicional-e-chama-ideologia-de-genero-de- coisa-do-capeta,70002962393

tem decisão recente sobre o tema, em acórdão assim ementado:

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI 1.516/2015 DO MUNICÍPIO DE NOVO GAMA – GO. PROIBIÇÃO DE DIVULGAÇÃO DE MATERIAL COM INFORMAÇÃO DE IDEOLOGIA DE GÊNERO EM ESCOLAS MUNICIPAIS. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA LEGISLATIVA DA UNIÃO. DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (ART. 22, XXIV, CF). VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS ATINENTES À LIBERDADE DE APREENDER, ENSINAR, PESQUISAR E DIVULGAR O PENSAMENTO A ARTE E O SABER (ART. 206, II, CF), E AO PLURALISMO DE IDEIAS E DE CONCEPÇÕES PEDAGOGICAS (ART. 206, III, CF). PROIBIÇÃO DA CENSURA EM ATIVIDADES CULTURAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO (ART. 5º, IX, CF). DIREITO À IGUALDADE (ART. 5º, CAPUT, CF). DEVER ESTATAL NA PROMOÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À DESIGUALDADE E À DISCRIMINAÇÃO DE MINORIAS. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL RECONHECIDAS. PROCEDÊNCIA. 1. Compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV), de modo que os Municípios não têm competência legislativa para a edição de normas que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente. A eventual necessidade de suplementação da legislação federal, com vistas a` regulamentação de interesse local (art. 30, I e II, CF), não justifica a proibição de conteúdo pedagógico, não correspondente às diretrizes fixadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996). Inconstitucionalidade formal. 2. O exercício da jurisdição constitucional baseia-se na necessidade de respeito absoluto à Constituição Federal, havendo, na evolução das Democracias modernas, a imprescindível necessidade de proteger a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, em especial das minorias. 3. Regentes da ministração do ensino no País, os princípios atinentes à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF) e ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF), amplamente reconduzíveis à proibição da censura em atividades culturais em geral e, consequentemente, à liberdade de expressão (art. 5º, IX, CF), não se direcionam apenas a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas eventualmente não compartilhada pelas maiorias. 4. Ao aderir à imposição do silêncio, da censura e, de modo mais abrangente, do obscurantismo como estratégias discursivas dominantes, de modo a enfraquecer ainda mais a fronteira entre heteronormatividade e homofobia, a Lei municipal impugnada contrariou um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, relacionado à promoção do bem de todos (art. 3º, IV, CF), e, por consequência, o princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput, CF). 5. A Lei 1.516/2015 do Município de Novo Gama – GO, ao proibir a divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais, não cumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero. Inconstitucionalidade material reconhecida. 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente.

(ADPF 457, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-137 DIVULG 02-06-2020 PUBLIC 03-06-2020)

276. Está suficientemente claro no acórdão que leis tendentes a abolir a discussão, em sala de aula, de temática relativa à identidade de gênero e à orientação sexual ferem os princípios fundamentais da igualdade e do pluralismo. De modo que o seu conteúdo não pode ser veiculado sequer por emenda constitucional. De resto, o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, promulgada pelo Decreto 4.377/2002. Em seu artigo 5.a, estabelece que os Estados partes tomarão todas as medidas para “modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.” Convém ainda lembrar que o Brasil, como Estado membro da ONU, aderiu à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – ODS200, que contém 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas associadas. São todos integrados e indivisíveis, equilibrando as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. O ODS 5 dispõe: “Igualdade de gênero. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.

277. A despeito desses compromissos internacionais, a ministra Damares Alves, por ocasião de seu discurso de posse no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, em 2 de janeiro de 2019, afirmou que “menina será princesa e menino será príncipe”. No mesmo dia, circulou na internet vídeo onde Damares dizia que o país ingressava em uma “nova era”, em que “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”201. Mais recentemente, Damares lançou uma campanha no contexto da Semana Nacional de Prevenção à Gravidez Precoce202 , pregando a abstinência sexual como estratégia para reduzir a taxa de gestações na adolescência. No entanto, de acordo com os documentos internacionais assinalados, essa é uma estratégia inadequada para enfrentamento da questão, porque a gravidez precoce é resultado, na maior parte dos casos, de meninas não conseguirem dizer “não”, tamanha a força masculina em sociedades patriarcais. Daí por que a educação sexual nas escolas, como forma de superar os padrões de dominação, é imprescindível. A Agenda 2030, em seu ODS 5.6, estabelece que os Estados devem “assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e

200https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/ 201 https://oglobo.globo.com/sociedade/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024 202 https://veja.abril.com.br/politica/tudo-tem-seu-tempo-prega-campanha-de-damares-por-abstinencia-sexual/

Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão. Em relação ao primeiro, consta:

6.15 O jovem deve ser ativamente envolvido no planejamento, na implementação e avaliação de atividades de desenvolvimento que afetem diretamente sua vida diária. Isso é especialmente importante com relação atividades e serviços de informação, educação e comunicação concernentes à saúde reprodutiva e sexual, inclusive prevenção da gravidez prematura, educação sexual e prevenção do HIV/AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis. O acesso a esses serviços deve ser assegurado, bem como sua confidencialidade e privacidade, com o apoio e orientação dos pais e de conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Criança. Além disso, há necessidade de programas de educação que favoreçam habilidades de planejamento de vida, sistemas de vida saudável e efetivo desestímulo de abuso de drogas.

278. Já o Relatório sobre a Situação da População Mundial 2016 do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em contraposição às iniciativas contraproducentes adotadas pelo atual governo brasileiro, consigna203:

A educação integral para a sexualidade é uma fonte essencial de informação apropriada à idade para milhões de meninas no mundo todo. Há claras evidências de que a educação integral para a sexualidade tem um impacto positivo sobre a saúde sexual e reprodutiva, além de ajudar a reduzir infecções sexualmente transmissíveis, inclusive o HIV, bem como gravidez não planejada (UNESCO, 2015a). A educação integral para a sexualidade também tem um impacto comprovado na melhoria do conhecimento e da autoestima, mudando atitudes e normas sociais e de gênero, além de desenvolver a capacidade de influência e decisão. Esses fatores são críticos durante a adolescência, quando as pessoas fazem a transição para a vida adulta. As evidências confirmam que a educação integral para a sexualidade não incentiva a atividade sexual, mas tem um impacto positivo sobre comportamentos sexuais mais seguros e pode postergar a iniciação sexual.

279. Além da destruição de espaços que foram projetados como órgãos de Estado, e não de governo, e do encolhimento de todas as políticas de enfrentamento à desigualdade e à exclusão, a administração pública, em sua generalidade, passou a ser moldada pela vontade pessoal de Jair Bolsonaro. O laudo pericial da reunião ministerial do último dia 22 de abril de 2020 não permite dúvida. Bolsonaro diz: “eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”. Mais adiante revela que tem que alterar a presidência do Iphan: “O IPHAN, não é? Tá la vinculado a Cultura. (...) Mas tinha que ter um outro perfil também. O IPHAN para qualquer obra do Brasil, como para a do

203 http://www.unfpa.org.br/swop2016/BOOK-SWOP-2016-24-10-WEB.pdf

Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né? E assim nós temos que proceder. E assim, cada órgão, como eu falei da Teresa Cristina, que mudou uma Instrução Normativa, revogou uma Instrução Normativa, ajudou quatrocentos mil pessoas no Vale do Ribeira - parabéns a ela - assim são outras decisões.”204

280. Essa tétrica reunião ministerial, além de revelar o despreparo, a falta de compromisso com o bem comum, a volúpia dos participantes em agradar o chefe, comprova o propósito do Presidente da República de destruir as políticas públicas emanadas do texto constitucional. Houve confissões explícitas nesse sentido, fomentadas e toleradas pelo Presidente da República, por exemplo na ocasião em que Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente afirmou: “estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo”. Em igual sentido, Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, dirigindo-se ao então Ministro da Saúde que “o seu ministério, ministro, tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto”; “nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro”; “a pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos”. Numa culminância do espetáculo de desfaçatez que foi esse encontro de altas autoridades federais, presidido de modo canhestro pelo Presidente da República, o então Ministro da Educação, , investiu contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal, ao verberar: “eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”; e acrescentou, em desrespeito patente ao disposto na Constituição, produzindo ato discriminatório impensável para uma autoridade da área educacional: “odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O "povo cigano". Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios”. ,

204 https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/06/20/bolsonaro-visita-a-familia-em-eldorado-no-vale-do-ribeira.ghtml

identificado como um “anarcocapitalista” 205 , evidenciou a sua incapacidade de elaborar qualquer política pós-pandemia ancorada no Estado, enquanto o mundo todo se dá conta de que haverá uma grande crise econômica e que a intervenção estatal será inevitável.

281. A Secretaria de Comunicação da Presidência da República é o eco das vontades de Bolsonaro. Como referido acima, publica matérias sobre a pandemia em desacordo com as orientações sanitárias da OMS e do próprio Ministério da Saúde206, usa lema associado ao nazismo em suas divulgações 207 , e exalta o encontro de Bolsonaro com o torturador Sebastião Curió, assim reconhecido em diversos relatórios do Estado brasileiro (p. ex., da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). Sebastião Curió, então conhecido pela alcunha de Doutor Lucchini, foi um dos mais brutais oficiais do Exército brasileiro em ação na Guerrilha do Araguaia, tendo sido processado pelo desaparecimento forçado, qualificado como crime contra a humanidade, de cidadãos brasileiros como Hélio Luiz Navarro de Magalhães, Maria Célia Corrêa, Daniel Ribeiro Callado, Antônio de Pádua, Telma Regina Cordeiro Corrêa, Divino Ferreira de Souza, André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antonio Alfredo de Lima.

282. Relatório produzido a pedido da CPMI das Fake News identificou mais de 2 milhões de anúncios pagos com verba da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) em sites, aplicativos de telefone celular e canais de YouTube que veiculam conteúdo considerado inadequado. Entre eles estão sites que divulgam notícias falsas, oferecem investimentos ilegais e até aplicativos com conteúdo pornográfico208.

283. Em 17 de janeiro de 2020, o então Secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim, postou um vídeo para divulgar o Prêmio Nacional das Artes, lançado no dia anterior . No vídeo, além de reproduzir quase que literalmente pronunciamento de Joseph Goebbels para diretores de teatro em 1933, o ex-secretário o faz em ambiente estético muito similar àquele constante de uma foto do ministro

205 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/quem-sao-os-libertarios-e-anarcocapitalistas-que-pregam-o-fim-do- estado.shtml 206 Ver nota 34 207 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/10/secom-usa-lema-associado-ao-nazismo-para-divulgar- acoes-contra-a-covid-19.htm 208 https://blogs.oglobo.globo.com/sonar-a-escuta-das-redes/post/cpmi-das-fake-news-identifica-2-milhoes-de-anuncios-da- secom-em-canais-de-conteudo-inadequado-em-so-38-dias.html

da propaganda de Hitler209. A sua sucessora, a atriz Regina Duarte, em entrevista à rádio CNN Brasil do último dia 4 de maio, minimizou a tortura ocorrida no período da ditadura210.

284. O presidente da Funai é contra a demarcação de áreas indígenas. Assessorou a bancada ruralista na CPI contra o Incra e a Funai211 e discute gestão fundiária com Nabhan Garcia, conhecido fundador da UDR212, criada em 1985 contra os avanços do Movimento dos Sem Terra (MST). Na sequência, o presidente da Funai baixou a Instrução Normativa 09, determinando que só ingressem no SIGEF – Sistema de Gestão Fundiária as terras indígenas homologadas, deixando sem nenhuma proteção aquelas já identificadas, com relatório publicado, além daquelas com portaria declaratória. A ausência delas no SIGEF permite que passem para o domínio privado, como é o objetivo da MP 910, a “MP da grilagem”, agora convertida no PL 2633/2020. O Conselho Diretor do Incra tem editado resoluções que implicam a renúncia de processos de desapropriação ou o cancelamento de títulos da dívida agrária após longo período de tramitação213.

285. O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, a pretexto de comemorar o aniversário da Lei Áurea, de 1888, publicou, no site oficial da Fundação, artigos que põem em dúvida a figura de Zumbi dos Palmares, símbolo da luta negra contra a escravidão e, por isso, razão da designação do primeiro espaço institucional criado para enfrentar o racismo estrutural da sociedade brasileira. Também, ao longo do dia, fez uso de suas redes sociais insistindo em que Zumbi não era um “herói autêntico”, mas sim a princesa Isabel 214, que assinou a Lei Áurea. Algumas de suas postagens são: “Zumbi é herói imposto pela ideologia que a grande maioria dos brasileiros repudia. Negros, questionem, critiquem e não o aceitem passivamente!"; "Herói da esquerda racialista; não do povo brasileiro. Repudiamos Zumbi!". Em reunião do dia 30 de abril, chamou o movimento negro de “escória racista” e “vagabundos”, e ainda conclamou seus subordinados a entregarem os servidores esquerdistas

209 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aNqAiyMxYRw. 210 Disponível em: https://youtu.be/v9gLHrP7RNw 211 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49107737 212 http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/6053-funai-e-ministerio-da-agricultura-discutem-gestao- fundiaria 213 http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pfdc-recomenda-ao-incra-revogacao-de-resolucoes-usadas-para-desistencia-em- processos-de-desa 214 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-da-fundacao-palmares-repudia-zumbi-que-da-nome-a-entidade- e-e-simbolo-do-movimento-negro,70003302274

da Fundação, para que fossem demitidos215.

286. Aliás, o assédio sobre os servidores que tentaram prosseguir atuando de acordo com as atribuições do cargo é enorme. O diretor do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, foi exonerado porque criticou o presidente Jair Bolsonaro, que acusou o órgão de mentir sobre os dados do desmatamento216. O fiscal responsável pela multa contra Bolsonaro, José Augusto Morelli, flagrado pescando ilegalmente numa reserva protegida no Rio de Janeiro, em 2012, foi exonerado em março do ano passado do cargo de chefe do Centro de Operações Aéreas da Divisão de Proteção do Ibama. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, exoneraram no dia 30 de abril os dois chefes do setor do Ibama responsável pelas grandes operações de repressão a crimes ambientais no país. Duas semanas depois da operação que ambos coordenaram a fim de fechar garimpos ilegais e impedir a disseminação do novo coronavírus em terras indígenas no sul do Pará217.

287. O ICMBio foi reestruturado, com a transformação de 11 coordenações em 5 gerências regionais, cujos titulares são cargo DAS 4 e majoritariamente policiais militares. Para o presidente da Associação Nacional de Servidores de Meio Ambiente (Ascema), Denis Rivas, a reestruturação do ICMBio "prioriza a centralização das decisões através da ocupação de cargos por poucas pessoas com salários mais altos". De acordo com ele, ao reduzir o número de cargos de chefia, a medida "precarizou a gestão de inúmeras unidades de conservação". E acrescentou: "Enquanto cargos de poder estão sendo ocupados por PMs, a Coordenação de Fiscalização está vaga há meses, por exemplo. A diminuição do número de servidores que se aposentaram nos últimos anos agrava as dificuldades de gestão das unidades de conservação, que seria revertido por um novo concurso para o ICMBio"218.

288. A Constituição de 1988 reservou especial proteção ao meio ambiente. O art. 23 da carta de direitos atribuiu competência comum da União, dos Estados do Distrito Federal e dos

215 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/06/presidente-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de- escoria-maldita.shtml 216 https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/07/exoneracao-de-diretor-do-inpe-e-publicada-no-diario-oficial.ghtml 217 https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/30/ibama-exoneracoes-amazonia.htm 218 https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/05/12/governo-oficializa-mudancas-no-icmbio-associacao-critica-troca-de- 11-coordenadores-por-5-gerentes.ghtml

Municípios para “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”. Também assegurou, no caput do art. 225, como direito de todos, o “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

289. Referidos dispositivos traduziram uma preocupação que, em nível global, vem ocupando a comunidade internacional ao menos desde 1972, quando a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, enunciou, entre seus princípios que “Os recursos naturais da terra incluídos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenamento”.

290. Ao longo das últimas décadas, as prescrições contidas na Constituição foram complementadas por diversos compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil, tais como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento 219 , a Convenção sobre Diversidade Biológica220, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima221 e o Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima222.

291. No entanto, desde o início da gestão do ora Denunciado, este tem dirigido um processo de desarticulação dos principais mecanismos de defesa ambiental e incentivado uma destruição sem precedentes do patrimônio ecológico brasileiro.

292. Já nos primeiros meses de governo, ficou clara a priorização de interesses particulares em detrimento do bem comum na gestão do Ministério do Meio Ambiente. Sem anunciar substitutos, o Ministro Ricardo Salles exonerou 21 dos 27 superintendentes regionais do Instituto

219 Documento de encerramento da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, entre 3 e 14 de junho de 1992. 220 Internalizada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. 221 Internalizada pelo Decreto nº 2.652, de 1º de julho de 1998. 222 Internalizado pelo Decreto nº 9.073, de 5 de junho de 2017.

Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA)223, o que inevitavelmente implicou descontinuidade das políticas ambientais levadas a cabo até então.

293. Em março de 2019, os servidores da área ambiental do governo, inclusive os do IBAMA e do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), foram orientados a não oferecer declarações públicas a respeito de sua área de atuação 224 . Também têm relatado, inclusive em depoimentos ao Ministério Público Federal, a adoção de medidas pelo governo federal para prejudicar a fiscalização ambiental e favorecer interesses de criminosos ambientais. Segundo o MPF, em ação de improbidade ajuizada perante a 8ª Vara Federal de Brasília, destacam-se as seguintes medidas do governo federal que contribuíram para o enfraquecimento da fiscalização225: • mudanças de chefia por pessoas com pouco conhecimento das atividades fiscalizatórias ou demora na definição dos cargos;

• diminuição do número de fiscais;

• reduções orçamentárias;

• inviabilização de atividades estratégicas essenciais, como a destruição de maquinário;

• processos conciliatórios em vez da imposição de multas;

• limitação de horas em campo;

• discursos das autoridades;

utilização de remoções com desvio de finalidade.

294. Sob Bolsonaro, a liberação de agrotóxicos avançou em ritmo inédito. De acordo com o Ministério da Agricultura, no primeiro ano do governo liderado por Jair Bolsonaro, o país atingiu o recorde histórico de pesticidas liberados. Foram 503 registros, um aumento de quase 12% em relação a 2018. Desses, 110 são classificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária como “extremamente tóxicos”226.

223 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/02/ricardo-salles-exonera-21-dos-27-superintendentes-regionais-do- ib.shtml. 224 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-do-meio-ambiente-impoe-lei-da-mordaca-a-ibama-e- icmbio,70002753849. 225 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/08/servidores-dizem-em-depoimento-que-governo-toma-medidas-para- prejudicar-fiscalizacao-ambiental.ghtml. 226 https://reporterbrasil.org.br/2020/01/20-agrotoxicos-liberados-em-2019-sao-extremamente-toxicos/.

295. O levantamento da ONG Repórter Brasil demonstra o incremento substancial de pesticidas autorizados no último ano:

296. Ao mesmo tempo, o trabalho da fiscalização ambiental foi severamente prejudicado pelas políticas levadas a cabo pelo Denunciado, que desde o princípio do seu mandato tem insistido na existência de uma suposta “farra das multas ambientas”, que, segundo ele, deve acabar227. A autonomia das autarquias que se encontram sob a alçada do Ministério do Meio Ambiente também tem sido minada. Em abril de 2019, por exemplo, o IBAMA recebeu uma determinação proveniente da Secretaria-Executiva do MMA (Ofício nº 2070/2019/MMA) para que fosse liberada a exploração de petróleo no Parque Nacional de Abrolhos pela “relevância estratégica do tema”228.

297. Posteriormente, em 15 de abril de 2019, o Presidente da República desautorizou operação do IBAMA no Estado de Rondônia, demonstrando, uma vez mais, a prevalência de interesses particulares sobre o interesse público levada a cabo pelo atual mandatário229. As declarações públicas do Presidente vieram acompanhadas da ameaça de abertura de procedimento administrativo disciplinar

227 https://noticias.r7.com/brasil/bolsonaro-afirma-que-farra-das-multas-ambientais-vai-acabar-01122018. 228 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-mandou-ibama-liberar-petroleo-em-abrolhos-por-relevancia- estrategica,70002787439. 229 https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/04/14/bolsonaro-desautoriza-operacao-do-ibama-em-rondonia.ghtml.

contra os servidores envolvidos na ação, por terem aplicado o mandamento legal previsto no art. 111 do Decreto nº 6.514/2008.

298. O IBAMA teve, ainda, 24% do seu orçamento reduzido por iniciativa do Poder Executivo, o que inevitavelmente afeta a capacidade de fiscalização e manutenção das atividades do órgão230. No mês seguinte, em maio de 2019, o ICMBio perdeu 26% do seu orçamento, implicando redução de 95% dos valores destinados à pasta da agenda climática e 38% do montante destinado à prevenção e ao controle de incêndios florestais231.

299. Como resultado dessa conjunção de fatores, mesmo em período com acentuado volume de agressões ao meio ambiente, as sanções impostas pela fiscalização ambiental caíram 60% em um ano, levando especialistas a vislumbrarem um “apagão ambiental” no país, decorrente da intensa pressão para que os servidores responsáveis não apliquem sanções aos transgressores da legislação ambiental232.

300. As condições precárias de atuação e a descredibilização promovida pelo Presidente da República geraram efeito imediato. Em 2019, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o país aumentou em 34% o desmatamento registrado no ano anterior na Amazônia Legal 233 . E, em 2020, os dados já consolidados apontam para um crescimento de ainda maiores proporções. A dois meses do final do período de medição do desmatamento oficial na Amazônia, os alertas do Sistema DETER aumentaram em 78% em relação ao período anterior234. Em junho de 2020, o país atingiu 14 meses seguidos de elevação do desmatamento na região, consoante gráfico produzido pela Folha de S. Paulo:

230 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-ricardo-salles-manda-cortar-24-do-orcamento-do- ibama,70002806082. 231 https://www.oeco.org.br/noticias/governo-corta-r-187-milhoes-do-mma-saiba-como-o-corte-foi-dividido/. 232 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/07/sancoes-impostas-pelo-ibama-caem-60-em-um-ano-e-especialistas- alertam-para-apagao-ambiental.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa. 233 http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates. 234 https://g1.globo.com/natureza/noticia/2020/06/12/mesmo-com-queda-em-maio-alertas-de-desmatamento-na-amazonia- indicam-que-temporada-pode-ter-devastacao-maior-que-a-anterior.ghtml.

301. Nem mesmo a atuação do INPE escapou à atuação irresponsável do atual mandatário. Em lugar de adotar medidas para contenção do desmatamento, no mês de julho de 2019, o Presidente da República criticou publicamente o diretor do INPE pela divulgação de dados que, na sua

compreensão, prejudicaram “o nome do Brasil”235. Poucos dias depois, Ricardo Galvão foi exonerado de suas funções236.

302. A situação na região foi agravada com o aumento registrado no número de incêndios florestais, diretamente relacionados ao aumento do desmatamento237. Segundo o INPE, a Amazônia registrou incremento de 30% na quantidade de focos de incêndio, em relação ao ano de 2018 238 . Paradoxalmente, ao longo de 2019, as autuações do IBAMA relacionadas às infrações ambientais reduziram em 29,4%239. O governo federal, em verdade, editou Medida Provisória (Medida Provisória nº 900/2019), permitindo o desconto de até sessenta por cento no pagamento de multas ambientais, sem qualquer outra contrapartida dos infratores240. O Presidente, em lugar de adotar políticas públicas capazes de fazer frente à questão, acusou falsamente organizações não-governamentais de incendiarem áreas de floresta241.

303. O conjunto de atos comissivos e omissivos do Denunciado tem levado a um incremento da destruição ambiental no Brasil e possui o condão de configurar crimes de responsabilidade do Presidente da República, mormente naquilo que tange: (i) à tolerância e ao incentivo a ilícitos cometidos por particulares, frustrando o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado; (ii) à ausência de providências necessárias à consecução da legislação federal (em especial as disposições contidas na Lei nº 9.605/1998 – Lei de Crimes Ambientais – e na Lei nº 12.651/2012 – Código Florestal); e (iii) à expedição de determinações contrárias aos objetivos de preservação da fauna e da flora (art. 225, §1º, da Constituição; art. 7º da Convenção sobre Diversidade Biológica; art. 4º, inciso 8, da Convenção- Quarto das Nações Unidas sobre Mudança do Clima; art. 5º do Acordo de Paris). Mencionadas condutas

235 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/07/bolsonaro-critica-diretor-do-inpe-por-dados-sobre-desmatamento-que- prejudicam-nome-do-brasil.shtml. 236 https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/diretor-do-inpe-e-demitido-apos-desafiar-bolsonaro/. 237 https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/23/cientista-da-nasa-relaciona-queimadas-na-amazonia-com-maior- desmatamento.ghtml. 238 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/01/08/focos-de-queimadas-na-amazonia-aumentam-em-2019- informa-o-inpe.ghtml. 239 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/08/queimadas-disparam-mas-multas-do-ibama-despencam-sob- bolsonaro.shtml. 240 https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,medida-provisoria-transforma-conversao-de-multas-ambientais- em-pagamento-com-desconto,70003055274. 241 https://veja.abril.com.br/politica/sem-apresentar-qualquer-prova-bolsonaro-tenta-ligar-ongs-a-queimadas/.

enquadram-se como crimes de responsabilidade, a teor do que enunciam o art. 85, III, IV e V, da Constituição e o art. 7º, inciso 9; o art. 8º, incisos 7 e 8; e o art. 9º, inciso 4; todos da Lei nº 1.079/1950.

304. As atitudes do governo, permissivas em relação a condutas criminosas de desmatadores, têm ocasionado prejuízos inclusive financeiros ao país. Em agosto de 2019, Alemanha e Noruega, os dois maiores financiadores do Fundo Amazônia – concebido para realizar investimentos em proteção ambiental na região –, bloquearam seus repasses a ações ambientais242.

305. A política ambiental predatória tem causado, ainda, outros significativos impactos em nível internacional. Os Parlamentos de Holanda243 e Áustria244 já rejeitaram oficialmente o acordo de comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Outros países europeus, como a França245 e a Alemanha246, devem caminhar no mesmo sentido.

306. Por outro lado, mais de duzentos fundos financeiros, que controlam um total de 16 trilhões de dólares, já alertaram empresas atuantes no país para que “redobrem seus esforços e demonstrem um claro compromisso de eliminar o desmatamento em suas operações e cadeias de abastecimento”247. É clara a tendência do país de tornar-se, na expressão do economista Pérsio Arida, um “pária do investimento internacional”248 por conta da política da área ambiental. As condutas do denunciado e sua tolerância com as ações ilegais de seus subordinados já prejudicam o mercado exportador brasileiro249 e mesmo entidades empresariais já apontaram os riscos à atividade econômica decorrente da atual gestão ambiental promovida pelo governo federal, que, no entanto, insiste em sua

242 https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/15/politica/1565898219_277747.html. Também: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/15/bolsonaro-sugere-a-noruega-usar-verba-do-fundo-amazonia-para- reflorestar-alemanha.ghtml. E ainda: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/08/apos-fundo-amazonia-pais- pode-perder-bilhoes-sem-acao-ambiental.shtml 243 https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/parlamento-holandes-rejeita-acordo-com-mercosul-por- desmatamento-na-amazonia/. 244 https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/09/19/parlamento-da-austria-rejeita-acordo-ue-mercosul.ghtml. 245 https://veja.abril.com.br/economia/franca-diz-que-nao-assina-tratado-com-mercosul-na-atual-condicao-ambiental/. 246 https://br.sputniknews.com/brasil/2020061115689441-embaixador-alemao-alerta-que-sem-queda-na-destruicao-da- amazonia-acordo-ue-mercosul-nao-deve-sair/. 247 https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/18/economia/1568838133_361572.html. 248 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-virou-paria-do-investimento-internacional,70003361083. 249 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/antiambientalismo-de-bolsonaro-ja-prejudica-empresas- brasileiras.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa.

agenda de desconstrução da agenda de preservação dos ecossistemas250.

307. Inegável, portanto, o efeito econômico e orçamentário ocasionado pela gestão ambiental promovida pelo Denunciado, revelando-se evidente o cometimento do crime de responsabilidade constante no art. 85, IV, da Constituição e no art. 11, inciso 5, da Lei nº 1.079/1950 (“negligenciar a arrecadação das rendas, impostos e taxas, bem como a conservação do patrimônio nacional”).

308. A atuação do Denunciado na temática ambiental também se notabilizou negativamente diante dos fatos ligados ao derramamento de óleo no litoral nordestino durante o segundo semestre de 2019. As primeiras manchas em praias da região apareceram ainda no final do mês de agosto251. O governo federal, no entanto, apenas acionou o plano de contingência previsto na Lei nº 9.966/2000 quase dois meses depois, em outubro, quando todos os estados nordestinos já tinham sido atingidos252.

309. Cumpre observar que, por ato do próprio governo federal, o comitê criado em 2013 para elaborar plano de ação em caso de crises decorrentes de desastres desse gênero havia sido extinto253. Em lugar de adotar ações que reduzissem o impacto para o ambiente e para os cidadãos brasileiros cuja subsistência depende da fauna marinha, o governo federal preferiu dedicar-se a novamente enunciar acusações falsas contra entidade de proteção ambiental254. A inexistência de um efetivo e tempestivo plano de contingência agravou o problema e contribuiu sobremaneira para que a mancha se espalhasse por mais de 1000km da costa brasileira, atingindo onze unidades da federação.

250 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/empresarios-do-agronegocio-aumentam-pressao-por-demissao-de- salles-mas-bolsonaro-resiste.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa. 251 https://www.portalt5.com.br/noticias/paraiba/2019/9/249401-oleo-encontrado-em-praia-da-paraiba-nao-veio-do- vazamento-em-abreu-e-lima-pe-diz-. 252 https://oglobo.globo.com/sociedade/mpf-pede-que-justica-obrigue-governo-acionar-plano-para-conter-oleo-no-nordeste- 1-24026808. E ainda: https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,salles-so-formalizou-plano-41-dias-apos- manchas-aparecerem-no-nordeste,70003059406. 253 https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/governo-bolsonaro-extinguiu-comites-do-plano-de-acao-de- incidentes-com-oleo.shtml. 254 https://oglobo.globo.com/sociedade/salles-insinua-que-greenpeace-pode-ter-derramado-oleo-mas-volta-atras-24039726.

310. Tão relevante omissão amolda-se ao crime de responsabilidade contido no art. 85, IV, da Constituição c/c art. 8º, inciso 8, da Lei nº 1.079/1950, dado que é vedado ao Presidente da República deixar de tomar as providências determinadas por lei, necessárias à sua execução e ao seu cumprimento.

311. E não foi só. A perplexidade diante das ações ambientais do Presidente e seus subordinados foi ainda mais expressiva quando, no âmbito do Inquérito nº 4.831/STF, tornou-se público o conteúdo de reunião ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020. Naquela ocasião, em meio à pandemia da COVID-19, o Ministro Ricardo Salles enunciou255:

E que são muito difíceis, e nesse aspecto eu acho que o Meio Ambiente é o mais difícil, de passar qualquer mudança infralegal em termos de infraestru ... e ... é ... instrução normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação regulam ... é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos.

312. Como se vê, o ministro sugeriu aproveitar-se o foco da cobertura midiática na pandemia para que o governo, sem a publicidade necessária “passasse a boiada” da modificação de regras vigentes em matéria ambiental. Tal conduta não mereceu nenhuma admoestação por parte do Presidente da República.

313. É dever das autoridades brasileiras, diante de flagrante cometimento de ato ilícito de seus subordinados, exigir pronta retratação e responsabilização dos responsáveis. A omissão presidencial diante de tão grave afirmação do seu Ministro do Meio Ambiente torna o Denunciado incurso na conduta constante no art. 85, V, da Constituição c/c art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079/1950.

255 Transcrição disponível em: https://static.poder360.com.br/2020/05/transcricao-video-reuniao22abr.pdf.

314. Essa galopante desestruturação de toda a governança pública, tanto em termos de equipamento, como em relação ao conhecimento técnico acumulado, explicam a incapacidade de respostas ágeis e eficientes ao combate do novo coronavírus. Quando havia condições de deter o avanço do vírus, o Ministério da Saúde limitou sua capacidade de investimento em prevenção e executou, até 27 de maio de 2020, segundo informações do próprio ministério, apenas 6,8% dos recursos destinados diretamente para a emergência sanitária provocada pela pandemia. Conforme os dados, somente 804,68 milhões de reais, de um total de 11,74 bilhões de reais, foram usados para a ação "Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus" 256 . Esse Ministério demorou três meses após a chegada da pandemia ao Brasil para adotar alguma medida em relação às favelas, que não contam, via de regra, com saneamento básico, sofrem permanente falta de água, seus habitantes não têm condições econômicas de adquirir álcool gel e outros equipamentos de proteção individual, e o adensamento populacional das habitações nesses regiões torna impossível a adoção da recomendação do distanciamento social. Não é por acaso que o bairro campeão de morte por Covid-19 em São Paulo é Brasilândia. A imprensa internacional vem se preocupando com o aumento de militares no Ministério da Saúde e, no dia 3 de junho de 2020, após 19 dias de cargo vago, foi oficializado o general Pazuello como Ministro interino da saúde257. De resto, a imprensa nacional noticia que o novo secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde foi uma indicação do chamado “Centrão”, na negociação para impedir o impeachment de Bolsonaro258.

315. Também as respostas para aliviar as perdas econômicas, principalmente dos grupos mais fragilizados, foram insuficientes e desorganizadas. A proposta inicial do governo para o auxílio emergencial era de R$ 200,00. Apenas no Parlamento é que ele chegou a R$ 600,00259 . A desorganização no pagamento gerou filas enormes, em contrariedade à orientação do distanciamento

256 economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/06/02/mpf-abre-inquerito-para-apurar-execucao-orcamentaria-do-ministerio- da-saude-na-pandemia.htm 257 https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-response-sp-idUSKBN2321DU e https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-oficializa-general-pazuello-como-ministro-interino-da-saude-1-24459898 258 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governo-nomeia-novo-secretario-de-vigilancia-do-ministerio-da- saude,70003325632; https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/05/governo-nomeia-novo-secretario- de-vigilancia-em-saude-do-ministerio-da-saude.ghtml 259 https://catracalivre.com.br/cidadania/senado-aprova-auxilio-emergencial-de-r-600-a-trabalhadores-informais/

social260. Familiares de presos tiveram seus pedidos retidos, sem qualquer razão legal ou regulamentar261, aparentemente porque Bolsonaro não deve considerá-los merecedores de qualquer respeito. E, recentemente, o que parecia improvável aconteceu: parte dos recursos do Bolsa Família destinados ao Nordeste foi transferida para a publicidade oficial262

316. Jair Bolsonaro nunca negou o seu desprezo pelos direitos sociais, bem como pelo sistema protetivo do trabalho constitucionalmente estabelecido e garantido. Desde a época da campanha eleitoral, Jair Bolsonaro defende o voto dado na qualidade de deputado federal a favor da Reforma Trabalhista de 2017, apesar das consequências de agravamento da desigualdade social e perda da dignidade de quem trabalha. Em matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, o então candidato à Presidência da República justificava sua posição referindo-se a frase que, segundo ele, ouvia de empresários brasileiros: “um dia o trabalhador vai ter que decidir: menos direito e emprego ou todos os direitos e desemprego”.263

317. Ao longo de quase dois anos de governo, essa visão do mundo do trabalho não só é repetida pela Presidência da República e seus ministros264, como também é posta em prática por meio de medidas provisórias de constitucionalidade duvidosa. E essa racionalidade que norteia as ações do atual governo é perseguida, e muitas vezes implementada, inclusive durante a pandemia, conforme explicitaremos a seguir.

318. Na primeira entrevista concedida após a posse presidencial, em 4 de janeiro de 2019, Bolsonaro repetiu a máxima de que a falta de emprego é causada pelo excesso de direitos, culpando a burocratização pela baixa atividade empresarial:

260 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/caixa-promete-cadeiras-e-controle-de-distancia-em-fila-para-saque-de- auxilio-emergencial.shtml 261 https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/14/governo-nega-auxilio-emergencial-para-parentes-de- presos.htm 262 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/governo-tira-dinheiro-do-bolsa-familia-no-nordeste-para-bancar- publicidade-oficial.shtml; https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/estados-do-nordeste-pedem-que-stf- restabeleca-recursos-transferidos-do-bolsa-familia.ghtml 263 Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/10/candidatos-a-presidencia-querem-alterar-reforma- trabalhista-de-temer.shtml>. 264 Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/politica/os-trabalhadores-querem-menos-direitos-e-mais-trabalho-diz- bolsonaro/>.

"O Brasil é um país de direitos em excesso, agora, falta emprego. Porque, quando você pensa em produzir alguma coisa, quando você vê a questão dos encargos trabalhistas, o que atrapalha a todo mundo no Brasil, aquela pessoa desiste de empreender.

Não adianta você ter direito e não ter emprego, não ter trabalho."265

"Qual país do mundo que tem (a Justiça do Trabalho)? Ela tem que ser a justiça comum. Poderíamos fazer, está sendo estudado. Havendo o clima, nós podemos discutir essa proposta e mandar para frente."

319. Tal perspectiva de natureza ultraliberal selvagem e extremada passou a conduzir iniciativas governamentais que, além de aprofundar em demasia a linha desconstrutiva de direito e de acesso à Justiça, deflagrada com a Lei nº 13.467/2017, editada ainda sob o governo chefiado por , trouxe um elemento novo e corrosivo para o equilíbrio das relações trabalhistas e para o respeito ao Direito Constitucional do Trabalho: o esvaziamento e a implosão de instituições responsáveis pela fiscalização de condições de trabalho e promoção do cumprimento dos direitos sociais.

320. Como primeira medida governamental, por meio da Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, o Presidente da República Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho266, transformado em mero departamento do Ministério da Economia (art. 83 da MP nº 870/2019), ao lado de competências díspares, tais como Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e da Indústria, Comércio e Serviços. Ou seja, um único ministro com atribuição de tratar assuntos tão amplos e diferentes quanto moeda, administração financeira, dívidas públicas, preços em geral, comércio exterior, planejamento estratégico nacional de longo prazo, plano plurianual de investimentos e de orçamentos, administração patrimonial, governança corporativa das empresas estatais federais, previdência, geração de emprego, política salarial, fiscalização do trabalho, para citar apenas alguns itens de sua competência. E não é só, as competências do extinto Ministério do Trabalho foram transferidas para mais outros quatro ministérios: Secretaria de Governo da Presidência da República, Ministério da Cidadania, Ministério do Desenvolvimento Regional e Ministério da Justiça e Segurança Pública. 321. Esta foi a primeira vez, desde sua criação em 1930, que deixou de existir a pasta

265 Disponível em: < https://www.sbt.com.br/jornalismo/sbt-noticias/noticia/119459-bolsonaro-afirma-que-pode-acabar- com-justica-do-trabalho-e-propoe-idade-minima-para-aposentadoria>. 266 Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2020/01/14/extincao-do-ministerio-do-trabalho-o-que-mudou-apos- um-ano>.

específica para cuidar das relações de trabalho. A simbologia desta Medida Provisória é reforçada por outras circunstâncias da época: atribuição da competência relativa ao registro sindical para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, remetendo ao tempo em que as questões sociais eram “caso de polícia”; e nomeação do relator da Reforma Trabalhista, Rogério Marinho, como Secretário Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.

322. O fim do Ministério do Trabalho importa, dentre outras medidas, um gravíssimo enfraquecimento do sistema de fiscalização do trabalho, inaugurando uma série de cerceios e restrições às competências e aos recursos da carreira auditoria fiscal do trabalho, debilitando sobremaneira as ações de combate às piores formas de exploração trabalhista, inclusive no que diz respeito ao trabalho análogo à escravidão e ao trabalho infantil. Operou-se um retrocesso bastante significativo, que incluiu medidas legislativas provisórias que intentaram estabelecer o conceito de aviso prévio aos empregadores fiscalizados, com a regra da dupla visita antes de qualquer autuação e a tentativa de conversão do trabalho dos fiscais do trabalho em atividade meramente orientadora, sem poder sancionador (Medidas Provisórias 905 e 927).

323. Também de 1º de janeiro de 2019 é o Decreto nº 9.661, que determinou o reajuste do salário-mínimo para R$ 998,00, valor abaixo do aprovado em votação orçamentária pelo Congresso Nacional em dezembro de 2018, fixado em R$ 1.006,00 para o exercício financeiro de 2019. Com isso, Jair Bolsonaro afrontou diretamente o art. 157, inciso I, da Constituição da República, que estabelece a capacidade de satisfazer, conforme as condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de sua família como balizas para a fixação do salário-mínimo.

324. O DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – divulga a cada mês uma estimativa do valor monetário para atender as necessidades mais básicas de um trabalhador e sua família, levando em consideração os fatores elencados na Constituição, como alimentação, moradia, educação, lazer, saúde, higiene, vestuário, previdência social e transporte. Na época do Decreto, o DIEESE considerava como o mínimo necessário o valor de R$ 3.959,98 (três mil, novecentos e cinquenta e nove reais e noventa e oito centavos) para uma família

com quatro pessoas.267 O reajuste abaixo do esperado representou o fim da política de valorização do salário-mínimo e movimento oposto à recuperação da economia nacional, já que, com menos recursos, consome-se menos, produz-se menos e, portanto, não são gerados tantos postos de trabalho.

325. No mês seguinte, em fevereiro de 2019, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, ao falar a empresários268, voltou a apresentar o raciocínio do governo quanto às relações de trabalho: “Porta da esquerda: Carta del Lavoro, Justiça Trabalhista, sindicato, você tem proteção, você tem tudo, as empresas têm que pagar, mas quase não tem emprego. É o sistema atual. Porta da direita: novo regime trabalhista e previdenciário, não tem nada disso, se seu patrão fizer alguma besteira como você e te tratar mal, vai pra justiça comum, é privado, privado, privado.”

326. Tal raciocínio, depois, será plasmado na Medida Provisória nº 905, de novembro de 2019, quando o governo criou o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo para, supostamente, fomentar o primeiro emprego.

327. Em 1º de março de 2019, o governo editou a Medida Provisória nº 873, que modificou imediatamente dispositivos relativos às contribuições sindicais, asfixiando ainda mais as contas das entidades sindicais, que já haviam sido restringidas pela “Reforma Trabalhista”.

328. A Medida dificultou o procedimento existente de desconto das mensalidades associativas em folha de pagamento; burocratizou a cobrança da contribuição sindical (autorização prévia, voluntária, individual, expressa das pessoas que trabalham); e alterou o recebimento da contribuição sindical dos empregados não associados para boleto bancário ou equivalente eletrônico, encaminhado obrigatoriamente à residência do empregado, dentre outras regras.

329. As modificações trazidas pela MP implicaram clara interferência na autonomia sindical, em confronto ao art. 8º, em especial incisos I e IV da Constituição, e convenções da Organização Internacional do Trabalho das quais o Brasil é signatário ou está obrigado a observar em razão de sua qualidade de membro da Organização.

267 Disponível em 268 Disponível em

330. A excessiva tentativa de pautar o Congresso Nacional, via medidas provisórias, com o rebaixamento dos direitos sociais em clara precarização, exige esforços redobrados de contenção permanente dos atos do Presidente.

331. Em relação ao trabalho infantil, Bolsonaro afrontou o inciso IX do art. 157 da Constituição, que trata da proibição de trabalho a menores de quatorze anos. Vejamos algumas declarações compiladas em matéria veiculada pelo jornal O Globo:269 "Trabalhei desde os 8 anos de idade plantando milho, colhendo banana, com caixa de banana nas costas com 10 anos de idade e estudava. E hoje sou quem sou. Isso não é demagogia. Isso é verdade."

“No dia anterior, durante uma ‘live’ em uma rede social, o presidente havia falado do assunto espontaneamente. ‘O trabalho dignifica o homem, a mulher, não importa a idade’, afirmou na transmissão ao vivo.

Tanto na entrevista desta sexta quanto na ‘live’ de quinta, o presidente disse não defender o trabalho infantil e afirmou que não enviará nenhuma proposta ao Congresso com essa finalidade. Ele afirmou na ‘live’ que, se fizesse isso, ‘seria massacrado’.

‘Trabalhar enobrece, tá? Não estou defendendo o trabalho infantil, muito menos escravo. Mas me fez muito bem trabalhar e me transformou até fisicamente muito bem."

332. Em 30 de abril de 2019, Jair Bolsonaro edita a Medida Provisória nº 881, a denominada MP da Liberdade Econômica. Do texto da MP, destacam-se a criação de mecanismos que dificultam a fiscalização e autuação fiscal e retiram os sindicatos do sistema; criação de sistema de recursos contra multas decorrentes de fiscalização do trabalho, desobrigando o empregador do depósito recursal e tentativa de acabar com a obrigatoridade das CIPAs, para micro e pequenas empresas e estabelecimentos ou locais de obra com menos de 20 trabalhadores.

333. O enfraquecimento da inspeção do trabalho constitui política de governo orientada para destruição do sistema protetivo do direito social ao trabalho, que remonta à reestruturação

269 Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/05/bolsonaro-diz-nao-defender-trabalho-infantil-mas- ressalva-que-trabalho-enobrece-todo-mundo.ghtml>.

ministerial (MP nº 870 acima mencionada) e continua a ser aperfeiçoada inclusive no contexto da crise sanitária do coronavírus. Estudo detalhado a respeito da simbologia e dos efeitos prejudiciais desta ação política foi realizado e divulgado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho270.

334. Outra Medida Provisória desestruturante foi a de nº 889, de 24 de julho de 2019, que tratou de hipótese excepcional de saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço sob o argumento de reaquecimento da economia. O resultado concreto, porém, é o desvirtuamento do instituto jurídico e o desamparo de trabalhadoras e trabalhadores no momento crucial de desemprego. Ou seja, a Medida divulgada como favorável à classe trabalhadora serve, na verdade, apenas e tão somente para aquecer os negócios pela via do consumo, deixando quem perde o emprego à própria sorte. Novo saque é permitido apenas após o lapso de um ano e nem mesmo a emergência sanitária da Covid-19 autoriza a movimentação da conta. A MP nº 889, em resumo, vai de encontro ao estabelecido pelo inciso XV do artigo 157 da Constituição, que estabelece que a legislação trabalhista deve ter em conta a assistência aos desempregados.

335. Em 11 de novembro de 2019, concretizando a ideia de “trabalhadoras e trabalhadores com menos direitos, mas com emprego”, Bolsonaro editou a MP nº 905, denominada MP do Contrato de Trabalho Verde e Amarelo. A Medida Provisória nº 905 promoveu brutal alteração da legislação trabalhista brasileira, avançando para outros temas além do “fomento do primeiro emprego” e causando novos prejuízo à classe trabalhadora. Dentre as principais alterações, há de se destacar: a) precarização do trabalho dos mais jovens, que terão menos direitos trabalhistas; b) liberação do trabalho aos domingos no comércio e na indústria e aumento da jornada de trabalho e liberação de trabalho aos sábados de bancários e bancárias; c) transformação da gorjeta em salário; d) redução dos juros referentes a condenações trabalhistas; e) modificações na PLR, com a exclusão dos sindicatos da comissão de empregados e possibilidade de acordo individual com empregados que ganhem mais do que o dobro do teto do INSS; f) multa de R$ 1 mil a R$ 100 mil para os associados de sindicatos que deixarem de votar nas eleições sindicais sem justificativa; g) cobrança de 7,5% de alíquota para o INSS do valor do seguro-

270 Disponível em: < https://sinait.org.br/mobile/default/noticia- view?id=17687%2Fsinait+apresenta+estudo+dos+impactos+da+configuracao+ministerial+atual+sobre+a+fiscalizacao +do+trabalho >

desemprego; h) redução do adicional de periculosidade, de 30% para 5%; i) revogação de mais de 30 dispositivos da CLT, dentre outros.

336. Com a MP, a discriminação entre os trabalhadores foi incentivada, pois as novas condições somente se aplicavam aos que possuíam entre 18 e 29 anos, algo vedado no art. 7º da Constituição federal, que, no inciso XXX, proíbe que haja diferença de salário ou no critério de admissão por idade. Contratados pela nova modalidade teriam seus salários limitados a salário-mínimo e meio, o recolhimento do FGTS no percentual de 2% (hoje 8%) e a indenização na dispensa reduzida de 40% para 20%. A MP nº 905 ofendia, assim, e de uma só vez, vários incisos do art. 157 da Constituição.271

337. Com a chegada da pandemia ao Brasil, Jair Bolsonaro intensificou a edição de medidas provisórias tratando de matéria trabalhista, com o mesmo norte de sempre: reduzir direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores e beneficiar a classe empresarial, sem, contudo, garantir nem gerar empregos.

338. No dia 23 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 927, que dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Embora a conjuntura de crise sanitária recomendasse a adoção de medidas protetivas do emprego, da renda e dos negócios, para criar condições de combate ao vírus e estabelecer patamares mínimos necessários ao crescimento econômico pós-pandemia, a linha de conduta da Presidência da República permaneceu intocada. Menos direitos para quem trabalha, mais facilidade e benefícios econômicos para empregadores. Aliás, a essa visão, somou-se a negação da própria Covid-19 e conclamação do povo às ruas com o slogan “o Brasil não pode parar”272.

271 “Art. 157 - A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a melhoria da condição dos trabalhadores: II - proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; (...) IV - participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, nos termos e pela forma que a lei determinar; (...) VI - repouso semanal remunerado, preferentemente aos domingos e, no limite das exigências técnicas das empresas, nos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local; (...) XVII - obrigatoriedade da instituição do seguro pelo empregador contra os acidentes do trabalho.”

272 Disponível em: < https://istoe.com.br/em-meio-a-pandemia-governo-cria-acao-brasil-nao-pode-parar/>. .

339. Além de ser totalmente incongruente com a pandemia e seus efeitos complexos, a medida revelou-se insuficiente para afrontar o agravamento da crise econômica que assola o país, oferecendo alternativas e alento apenas e tão somente aos empregadores. E, pior, jogou o peso do resultado das escolhas nos ombros dos trabalhadores e trabalhadoras, cuja vontade individual está completamente maculada diante da ameaça concreta de desemprego e miséria. Assim, o Presidente da República pauta o Congresso Nacional com medidas provisórias que retiram direitos dos trabalhadores, deixando muitas vezes o sistema político refém de uma estratégia de governo que não apresenta solução que esteja de acordo com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro perante a Organização Internacional do Trabalho e Organização dos Estados Americanos. Vejamos, a título de exemplo, alguns dos pontos mais graves dessa medida:

- Não estabelece qualquer tipo de garantia de emprego, permitindo dispensas individuais e coletivas. - Autoriza a celebração de acordo individual escrito entre trabalhador e empregador para regular a matéria, com eficácia sobre qualquer outro direito, inclusive aqueles oriundos de acordo coletivo, ressalvados os previstos na Constituição. - Desprestigia as negociações coletivas ao permitir a celebração de acordos individuais e estabelecer sua prevalência sobre qualquer outra norma, deixando de observar recomendações expressas da OIT que atribui ao diálogo social o poder de conferir legitimidade às respostas encontradas para a crise sanitária e econômica que assolam o mundo do trabalho273. - Flexibiliza a fiscalização do cumprimento de normas de medicina e segurança, deixando os trabalhadores mais vulneráveis pela ausência de treinamentos previstos nas Normas Regulamentadoras – NRs. - Exclui do âmbito de aplicação da norma trabalhadores informais, autônomos ou de aplicativo como se não fizessem parte do mundo do trabalho brasileiro e não fossem o grupo mais afetado pela crise sanitária e econômica. - Não concede nenhuma garantia, seja de proteção à saúde (a mais importante), seja pecuniária, aos trabalhadores do serviço de saúde, instituindo somente regras para intensificar suas jornadas de trabalho e ampliar as hipóteses de posterior compensação ou pagamento.

340. O texto original da MP, publicado em 23 de março, previa, no art. 18, que o empregador também poderia suspender o contrato de trabalho, sem pagamento de salários, por até 4 meses, para o empregado participar de curso de qualificação não presencial, por acordo individual. A medida flexibilizava a previsão do art. 476 da CLT, possibilitando o empregador conceder ajuda compensatória com valor definido livremente entre as partes. O artigo foi revogado na noite do

273 Disponível em: .

dia 23, pela MP nº 928/2020, de tão absurdo e prejudicial às trabalhadoras e aos trabalhadores neste momento de crise sanitária.

341. Vale ressaltar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, em 29 de abril de 2020, declarou inconstitucionais dois artigos da MP nº 927, os arts. 29 e 31.

342. O art. 29 previa que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal. Ou seja, a vítima de moléstia nessas condições teria que, paradoxal e absurdamente, fazer a desafiadora comprovação do nexo de causalidade entre a atividade desenvolvida e a contaminação pelo coronavírus. Nem mesmo as pessoas que trabalham na área da saúde e são responsáveis pelo combate efetivo do coronavírus e pelo cuidado de quem adoeceu foram poupadas. A caracterização da Covid-19 como doença profissional ou do trabalho é de fundamental importância para trabalhadores e trabalhadoras, já que garante a obtenção do auxílio-doença acidentário e a garantia de emprego por 12 meses, assim como possibilita que o trabalhador possa ser indenizado pela empresa em caso de lesão permanente ou morte decorrente da doença adquirida no ambiente de trabalho.

343. Já o art. 31 da MP impossibilitava a fiscalização do trabalho pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, que passaria a ter caráter apenas de orientação no período dos próximos 180 dias. Restava claro que a limitação inconstitucional imposta à Auditoria colocaria em risco a vida de milhões de trabalhadores que permanecem laborando durante a pandemia, momento no qual a fiscalização de empresas, especialmente em matéria de saúde e segurança no trabalho, deve ser intensificada para minimizar os riscos à vida de quem não pode fazer isolamento social.

344. Quanto à Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública, os seus dois eixos centrais da MP são a redução proporcional de jornada e salário e a suspensão dos contratos de trabalho que, conforme critérios intrincados, resultam no pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda, de responsabilidade do governo, e da “ajuda compensatória mensal” de natureza indenizatória facultada e a cargo do empregador.

345. A redução salarial por acordo individual é inconstitucional por ofender o previsto no art. 7º, VI, da Constituição federal, que exige a negociação coletiva. A MP mostra, novamente, a insistência do governo em eliminar um dos polos do mundo do trabalho, as entidades sindicais.

346. A crise sanitária implicará prejuízos em toda a cadeia econômica: trabalhadores, empresas e governo. Porém, a MP não resguarda efetivamente os empregos, nem os trabalhadores; a preocupação principal é com as empresas, sendo pífia a participação financeira do Estado para enfrentar o período crítico de combate à Covid-19. O próprio Secretário do Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Dalcolmo, deixou bem clara essa intenção, ao explicar a MP: “Tudo para que elas (as empresas) possam demitir menos nesse momento”.

347. Ainda em relação ao momento de pandemia pelo qual passa o Brasil, há de se destacar outra ação de Jair Bolsonaro contra a classe trabalhadora. Trata-se do veto, em 15 de maio de 2020, a trechos da Lei nº 13.998, que ampliava o rol de pessoas elegíveis para o recebimento da renda básica transitória. Com esse veto, Jair Bolsonaro excluiu extrativistas, pescadores, agricultores, assentados de reforma agrária, quilombolas, ambulantes, artesãos, atletas, artistas, diaristas, garçons, taxistas, motoristas de aplicativos e de vans e caminhoneiros do recebimento do benefício, prejudicando a sobrevivência de grande contingente vulnerável neste momento histórico.

348. Com postura insensata, o governo invocou a isonomia para justificar a rejeição ao Projeto de Lei, fazendo interpretação desvirtuada do texto que claramente traz um rol exemplificativo, e não taxativo, daqueles contemplados pelo auxílio. Além disso, alegou ausência de indicação de fonte de custeio, ignorando o crédito extraordinário instituído pela MP nº 936/2020 para atender à necessidade da adoção de medidas emergenciais. Pior do que medidas insuficientes é o silêncio de Jair Bolsonaro em relação ao grupo de trabalhadores dos mais vulneráveis, as empregadas domésticas. Ele e seu governo sempre demonstraram desprezo a essa categoria.

349. Em diversas entrevistas, Bolsonaro declarou ser contrário a estender os direitos trabalhistas às domésticas, porque, para ele, não seria possível bancar os mesmos direitos como na

iniciativa privada. Quando deputado federal, votou contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 66/2012, também conhecida como PEC das Domésticas, a Emenda Constitucional nº 72.274

350. A posição do presidente é a tônica de seu governo neste tema. Em recente entrevista, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou, sobre o valor baixo do dólar: “Empregada doméstica estava indo pra Disney, uma festa danada”.275 O governo, assim, ignora contingente enorme de brasileiros. Em 2018, 6,2 milhões de pessoas tinham como ocupação o serviço doméstico, sendo que destes, 97% eram mulheres, das quais 3,9 milhões negras.276 Chama a atenção, ainda, que, durante a pandemia, a primeira pessoa a morrer no país foi uma empregada doméstica no Rio de Janeiro, contaminada pela empregadora que voltara da Itália.277 Mesmo assim, nenhuma ação de governo foi tomada para garantir a saúde e renda dessas trabalhadoras.

351. Por fim, mas não menos importante, no campo trabalhista, é imprescindível chamar a atenção para o desrespeito de Jair Bolsonaro a órgão por ele mesmo criado, em 4 de outubro de 2019, o denominado Conselho Nacional do Trabalho.278 Depois de sua criação, o Conselho Nacional do Trabalho não foi consultado sobre nenhuma das propostas e medidas provisórias do governo sobre relações do trabalho. O Conselho foi criado exatamente para estimular os debates tripartites entre governo, representantes dos trabalhadores e representantes dos empregadores em assuntos relacionados ao trabalho. O diálogo tripartite, inclusive, é compromisso assumido pelo Brasil ao ratificar a Convenção nº 144 da Organização Internacional do Trabalho279. Ou de fato o Conselho serve como órgão consultivo, ou não tem nenhuma função. A MP nº 905, de novembro de 2019, e as MPs nºs 927 e 936, de 2020, não foram discutidas no âmbito do CNT e, assim, constituem exemplos práticos de um governo que não realiza efetivo diálogo social. Mais de uma vez as Centrais Sindicais reivindicaram uma participação efetiva na elaboração de medidas relativas ao mundo do trabalho, especialmente no contexto da pandemia. O governo, porém, limita-se a utilizá-las para forjar um arremedo de diálogo. Em

274 Disponível em: < https://www.camara.leg.br/radio/programas/401222-jair-bolsonaro-e-contra-aprovacao-da-pec-das- domesticas/> . 275 Disponível em: 276 Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-12/ipea-trabalho-domestico-e-exercido-por- mulheres-mais-velhas >. 277 Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51982465> . 278 Portaria nº 1.097/19. 279 “Art. 2 — 1. Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente Convenção compromete- se a pôr em prática procedimentos que assegurem consultas efetivas, entre os representantes do Governo, dos empregadores e dos trabalhadores (...).”

contrapartida, Jair Bolsonaro reúne-se com empresários e chega até mesmo a visitar o Supremo Tribunal Federal para pressionar para a retomada das atividades nas empresas e flexibilização na reabertura do comércio.280

352. Nessa mesma linha, aliás, pode-se mencionar o Decreto nº 9.759/2019, que extinguiu todos os colegiados da Administração Pública federal, entre conselhos, comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns e salas, organizações que foram criadas por decreto ou ato normativo inferior e que faziam parte das estruturas de participação social na gestão estatal e, em sua maioria, com natureza consultiva. O Decreto desconsiderou e ignorou que os conselhos são forma de efetivação da democracia brasileira, pela qual se possibilitava o diálogo permanente entre o governo e os diversos grupos organizados da sociedade civil, onde era desenvolvido um trabalho relevante na melhoria, fiscalização e gestão de políticas públicas. O Supremo Tribunal Federal, não obstante, instado a analisar a constitucionalidade da norma, suspendeu trecho do Decreto referente à extinção dos colegiados previstos em lei. Essa medida segue o tom do projeto político de Jair Bolsonaro, que desconsidera por completo o diálogo social.

353. Nenhum ato do governo ou medida provisória pode contrariar a Constituição federal, como já elencado anteriormente, nem os Tratados Internacionais em matéria de direitos humanos ao qual o Estado Brasileiro se vinculou, neles inseridos os que versam de matéria trabalhista. Seguramente, é possível dizer que a MP nº 927 e a MP nº 936, editadas em razão da pandemia, esbarram no controle de convencionalidade entre suas disposições e as matérias regulamentadas pelas convenções da Organização Internacional do Trabalho.

354. De início, o processo de edição das MPs não promoveu a consulta tripartite para as normas do trabalho, violando, dessa maneira, o princípio do tripartismo disposto na Convenção nº 144 da OIT (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 6, de 01/06/89, e promulgada pelo Decreto nº 2.518, de 12/03/98, substituído pelo Decreto nº 10.088/19), que versa sobre a necessidade do diálogo entre as “organizações representativas”, compreendidas como sendo o governo, os representantes dos

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empregadores e dos trabalhadores, com o objetivo de se alcançar justiça social em prol do trabalho digno para todas as pessoas, objetivo este que é central em um Estado Democrático de Direito.

355. As MPs foram editadas de forma unilateral pelo Poder Executivo brasileiro, sem que tenha havido qualquer participação dos demais atores, o que reforça ainda a sua fragilidade e insuficiência para lidar com a situação de urgência. Fato que ilustra bem a situação foi a revogação do art. 18 do texto original da MP, que regulamentava a suspenção para qualificação, sem salários, por meio de outra medida provisória, a MP nº 928/2020, no mesmo dia de sua publicação, como citado acima.

356. A OIT dispõe sobre a necessidade de observância do princípio do tripartismo para que haja equilíbrio nas relações de trabalho e limitação do poder diretivo do empregador. O empregado, especialmente nesta situação de crise, de urgência, para além da indisponibilidade do próprio trabalho em si, não têm poder de interferência na atividade do empregador que seja capaz de exigir qualquer forma de permanência sem que lhe reste um prejuízo efetivo, daí porque esta MP só cumpriria a sua finalidade (e gozaria de validade) se determinasse a manutenção de direitos já existentes no contrato de trabalho, assegurasse a permanência do contrato de trabalho e de salário, inclusive por um período posterior à pandemia. Destaquemos trechos da Convenção nº 144 da OIT:

“CONVENÇÃO Nº 144 SOBRE CONSULTAS TRIPARTITES PARA PROMOVER A APLICAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS DO TRABALHO

ARTIGO 1º Na presente Convenção, a expressão "organizações representativas" significa as organizações mais representativas de empregadores e trabalhadores, que gozem do direito de liberdade sindical.

ARTIGO 2º 1. Todo Membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente Convenção compromete-se a pôr em prática procedimentos que assegurem consultas efetivas, entre os representantes do Governo, dos Empregadores e dos trabalhadores, sobre os assuntos relacionados com as atividades da Organização Internacional do Trabalho a que se refere o Artigo 5, parágrafo 1, adiante. 2. A natureza e a forma dos procedimentos a que se refere o parágrafo 1 deste artigo deverão ser determinados em cada país de acordo com a prática nacional, depois de ter consultado as organizações representativas, sempre que tais organizações existam e onde tais procedimentos ainda não tenham sido estabelecidos.

ARTIGO 3º 1. Os representantes dos empregadores e dos trabalhadores, para efeito dos procedimentos previsto na presente Convenção, serão eleitos livremente por suas

organizações representativas, sempre que tias organizações existam. 2. Os empregadores e os trabalhadores estarão representados em pé de igualdade em qualquer organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas.

ARTIGO 5º 1. O objetivo dos procedimentos previstos na presente Convenção será o de celebrar consultas sobre: a) as respostas dos Governos aos questionários relativos aos pontos incluídos na ordem do dia da Conferência Internacional do Trabalho e os comentários dos Governos sobre os projetos de texto a serem discutidos na Conferência. b) a propostas que devam ser apresentadas à autoridades competentes relativas à obediência às convenções e recomendações, em conformidade com o artigo 19 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho. c) o reexame, dentro de intervalos apropriados, de convenções não ratificadas e de recomendações que ainda não tenha efeito, para estudar que medidas poderiam tomar-se para colocá-las em prática e promover sua ratificação eventual; d) as questões que possam levantar as memórias que forem comunicadas à Secretaria Internacional do Trabalho em virtude do artigo 22 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho. e) as propostas de denúncia de convenções ratificadas.”

357. Ligadas intimamente ao desrespeito ao tripartismo, há violações graves à Convenção nº 98 da OIT sobre Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 49, de 27/08/52; ratificada em 18/11/52; promulgada pelo Decreto nº 33.196, de 29/06/53) e à Convenção nº 154 da OIT sobre Fomento à Negociação Coletiva (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 22, de 12/05/92, e promulgada pelo Decreto nº 1.256, de 29/09/94, substituído pelo Decreto nº 10.088/19), que dispõe sobre a obrigação solene de a OIT e os Estados-Membro de estimularem mecanismos para se alcançar o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva.

358. A Convenção nº 154, em seu art. 7º, consagra expressamente o tripartismo ao prever que “as medidas adotadas pelas autoridades públicas para estimular o desenvolvimento da negociação coletiva deverão ser objeto de consultas prévias e, quando possível, de acordos entre as autoridades públicas e as organizações patronais e as de trabalhadores”. Desse modo, todas as alterações legislativas referentes à negociação coletiva devem ser precedidas de consultas e, se possível, de consenso, entre o governo e os entes de representação dos trabalhadores e dos empregadores.

359. As MPs, ao contrário, alijaram as entidades sindicais, não garantindo nem mesmo que sejam comunicadas pelos empregadores das medidas urgentes tomadas durante a pandemia.Vejamos alguns dispositivos da Convenção nº 98 e da Convenção nº 154:

“CONVENÇÃO Nº 98 SOBRE DIREITO DE SINDICALIZAÇÃO E DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA

Art. 4 — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.

CONVENÇÃO Nº 154 SOBRE FOMENTO À NEGOCIAÇÃO COLETIVA

Art. 1 — 1. A presente Convenção aplica-se a todos os ramos da atividade econômica. 2. A legislação ou a prática nacionais poderá determinar até que ponto as garantias previstas na presente Convenção são aplicáveis às forças armadas e à polícia. 3. No que se refere à administração pública, a legislação ou a prática nacionais poderão fixar modalidades particulares de aplicação desta Convenção.

Art. 2 — Para efeito da presente Convenção, a expressão ‘negociação coletiva’ compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com fim de: a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.”

360. Sobre este ponto, vale lembrar que o Brasil segue Denunciado na OIT em relação à Reforma Trabalhista exatamente pela ausência de diálogo tripartite e enfraquecimento das negociações coletivas. No Informe da Comissão de Expertos em Aplicação de Convenções e Recomendações (Informe III – Parte A), divulgado em fevereiro deste ano281, a OIT levou em conta as informações prestadas por entidades representativas de trabalhadores e de empregadores, bem como do próprio governo sobre as medidas tomadas em relação a violações a convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, em razão da Lei nº 13.467/2017.

361. No caso da Convenção nº 98, o relatório solicita que o governo brasileiro tome medidas que coíbam atos antissindicais; que revise os artigos da CLT alterados pela reforma que

281 Disponível em: .

permitem a negociação coletiva ampla, inclusive contrariando a lei (arts. 611-A e 611-B, CLT) e a negociação direta entre empregados e empregadores sem a participação dos sindicados (art. 444, CLT); bem como que tome medidas para facilitar a negociação coletiva dos “trabalhadores autônomos” (art. 442-B, CLT). Todos estes pontos, como se vê, estão também presentes nas MP nºs 927 e 936/2020. Por fim, cite-se a Convenção nº 155 da OIT sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores (aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 17/03/92; retificada em 18/05/92; e promulgada pelo Decreto nº 1.254, de 29/09/94):

“Art. 8 — Todo Membro deverá adotar, por via legislativo ou regulamentar ou por qualquer outro método de acordo com as condições e a prática nacionais, e em consulta com as organizações representativas de empregadores e de trabalhadores interessadas, as medidas necessárias para tornar efetivo o artigo 4 da presente Convenção.

Art. 13 — Em conformidade com a prática e as condições nacionais deverá ser protegido, de consequências injustificadas, todo trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde.

Art. 16 — 1. Deverá ser exigido dos empregadores que, na medida que for razoável e possível, garantam que os locais de trabalho, o maquinário, os equipamentos e as operações e processos que estiverem sob seu controle são seguros e não envolvem risco algum para a segurança e a saúde dos trabalhadores.”

362. A MP nº 927, por exemplo, ao suspender a obrigatoriedade de todos os exames ocupacionais, com exceção do demissional, viola a proteção à saúde dos trabalhadores estabelecida na Convenção. A saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras deveria ser amplamente assegurada considerando o momento de pandemia mundial, e não o contrário. Suspender os exames ocupacionais para os trabalhadores em situação de riscos a agentes químico e biológico é colocar em risco a vida deles. O exame ocupacional pode indicar, inclusive, a Covid-19, indo na contramão das medidas sanitárias indicadas atualmente.

363. Sob a justificativa de estado de calamidade, as medidas limitam-se à restrição de direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras, com o aprofundamento da precarização de sua condição socioeconômica, sem qualquer diálogo com os sujeitos políticos que lhe dão voz, contrariando todas as

recomendações da Organização Internacional do Trabalho e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos frente à pandemia.

364. No segundo comunicado da OIT sobre a Covid-19282, a Organização orientou algumas ações políticas: a) normas internacionais do trabalho fornecem uma base sólida para atuar no nível político; b) a resposta no nível político deve enfatizar dois objetivos de curto prazo: a proteção de saúde e apoio financeiro, tanto no que diz respeito à demanda quanto à oferta; c) é necessário adotar medidas efetivas e integradas em larga escala em todas as esferas políticas para alcançar resultados favoráveis e sustentáveis; d) criar confiança por meio do diálogo é essencial para que a ação política seja bem-sucedida eficaz.

365. Assim, as respostas no nível político, para a OIT, precisam contemplar quatro pilares: Pilar 1: estimular a economia e o emprego; Pilar 2: dar apoio às empresas, emprego e renda; Pilar 3: proteger os trabalhadores no local de trabalho; Pilar 4: encontrar soluções por meio do diálogo social. E o que faz o governo de Jair Bolsonaro? Contraria todas essas recomendações.Não estimula o emprego, já que suas medidas para enfrentamento da crise não garantem emprego e não proíbem as demissões; dá apoio a apenas um dos atores da relação de trabalho – o empregador; não protege os trabalhadores no ambiente de trabalho, propondo até mesmo que a Covid-19 não se considerada doença laboral; e não promove nenhum diálogo social, pois consulta e beneficia apenas a única parte que considera na relação de trabalho: o empregador.

366. Jair Bolsonaro também vai de encontro às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos frente à pandemia da Covid-19. Na Resolução nº 1/2020 – Pandemia e Direitos Humanos na América283, a CIDH considera que as Américas são a região mais desigual do planeta, caracterizada por profundas lacunas sociais, agravadas pelas altas taxas de informalidade do trabalho e trabalho e renda precária que afeta grande número de pessoas na região e que a torna ainda mais preocupante o impacto socioeconômico da crise sanitária. Dessa forma, proteger os direitos humanos particularmente dos trabalhadores é essencial. É importante levar medidas para garantir renda econômica e meios de subsistência para todos os trabalhadores, para que tenham

282 Disponível em: 283 Disponível em: < http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf>

condições iguais para cumprir as medidas de contenção e proteção durante a pandemia, bem como condições de acesso a alimentos e outros direitos essenciais.

367. Para a CDHI, pessoas que continuam a realizar suas atividades laborais devem ser protegidas dos riscos de contágio dos vírus e, em geral, deve ser dada proteção adequada a empregos, salários, liberdade de negociação sindical e coletiva, garantia de auxílios e outros direitos sociais relacionados com o ambiente trabalhista e sindical. E o que faz o governo de Jair Bolsonaro? Contraria todas essas recomendações. Estimula a volta ao trabalho e a reabertura do comércio; não protege empregos e não proíbe demissões, individuais ou coletivas; não garante liberdade de negociação sindical, ao alijar os sindicatos dos acordos com os empregados; e veta auxílio a vasta gama de trabalhadores informais, extrativistas, pescadores, agricultores, ambulantes, artesãos, atletas, artistas, diaristas, garçons, taxistas, motoristas de aplicativos e de vans e caminhoneiros.

368. Como se vê, por todo o exposto, Jair Bolsonaro comete crime de responsabilidade, conforme item 9 do art. 7º da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, já que viola patentemente direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição, que devem sempre visar à melhoria da condição social das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros.

369. O Governo de Jair Bolsonaro não gerava quaisquer expectativas positivas para a população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos), posto que a trajetória política do Denunciado sempre foi marcada pelo discurso e atitudes abertamente lgbtifóbicas, inclusive com manifestações em favor de "violência corretiva" contra esta população284.

370. Ao assumir a Presidência da República, Bolsonaro manteve seu discurso lgbtifóbico, em flagrante afronta ao artigo 1º, III, da Constituição Federal. Alguns episódios especialmente graves foram registrados no Relatório da Human Rights Watch sobre a situação dos direitos humanos no Brasil: “Em abril, o presidente Bolsonaro disse que o Brasil não deveria se tornar

284 Em entrevista concedida quando ainda era parlamente, Bolsonaro afirmou incentivando a “violência corretiva” que: “O filho começa a ficar assim meio gayzinh, leva um coro, ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QJNy08VoLZs . Acesso em: 11 jul 2020.

um "paraíso do turismo gay" e, em agosto, disse que as famílias são apenas aquelas constituídas por um homem e uma mulher”.285

371. Ademais, desde o início de seu governo, conferiu concretude ao discurso discriminatório, através de alterações legislativas e administrativas voltadas a restringir os direitos dessa população. Assim, no bojo do decreto que acabou com a participação social no governo federal e no mês em que se celebra o Dia do Orgulho LGBTI, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT286. Em seguida, acabou com área de atuação LGBT no Ministério dos Direitos Humanos, agora denominado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, reduzindo a Coordenação Nacional LGBT a um papel meramente figurativo. Trata-se de flagrante afronta ao artigo 1º, III, da Constituição Federal e a todas as normas nacionais e internacionais que vedam a discriminação.

372. Os ataques de Bolsonaro aos direitos da população LGBTI não se limitaram aos desmontes no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, alcançando as políticas públicas de cultura. Ao anunciar a posse de uma nova Secretária da Cultura, o Presidente afirmou que uma das determinações a ser cumprida pela nova titular daquela pasta seria a absoluta vedação de financiamento de projetos, em quaisquer editais da ANCINE ou de outros organismos, que abordassem a temática LGBTI, numa aberta censura à liberdade de manifestação artística prevista no artigo 5º, IX, da mesma Carta Magna.287

373. Historicamente, o Brasil é o país no mundo com os mais elevados índices de violência e assassinatos de pessoas LGBTI, especialmente as trans. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, “a cada 26 horas um LGBT+ é assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13

285 https://www.hrw.org/pt/world-report/2020/country-chapters/336671 286 https://revistaforum.com.br/colunistas/julianrodrigues/bolsonaro-extingue-conselho-lgbti/. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9883.htm 287 Esses fatos foram detalhadas no item “b) violações na área cultural” da presente denúncia e constam, também, no Relatório Anual da Human Rights Watcha sobre o Brasil em que se registra: “O governo Bolsonaro suspendeu o financiamento público de quatro filmes que tratavam de questões LGBT”. “https://www.hrw.org/pt/world- report/2020/country-chapters/336671. Acesso em: 11 jul 2020.

países do Oriente e África onde persiste a pena de morte contra tal segumento. Mais da metade dos LGBT assassinados no mundo ocorrem no Brasil (WAREHAM, 2020)”.288

374. No governo Bolsonaro, o problema tem se agravado. Sua postura discriminatória tem fomentado o aumento da violência e dos assassinatos contra essa população. Segundo o relatório sobre “Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil”, elaborado pelo Grupo Gay da Bahia, em 2019 “329 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%)”289.

375. Vale ressaltar que o Denunciado é o primeiro Presidente da República, depois da ditadura militar, que tem um discurso - e uma prática – contrária aos Direitos Humanos em geral e antagônica da população LGBTI em especial.

376. Lamentavelmente, a pandemia do Covid-19 não impõe tréguas a estas violações e à realidade de violência vivenciada pela população LGBTI. Com efeito, a pandemia tem “agravando ainda mais as desigualdades já existentes”, levando à piora nas condições de vida desta população, especialmente para as trans. Vale ressaltar que a maioria das trans, principalmente as travestis e mulheres transexuais trabalhadoras sexuais, “não conseguiu acesso as políticas emergenciais do estado devido a precarização histórica de suas vidas e não possui outra opção a não ser continuar o trabalho nas ruas, se expondo ao vírus” 290.

377. Não bastassem as atitudes de desmonte das políticas para a população LGBTI, o Governo Bolsonaro, através da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, divulgou dados falsos sobre uma pretensa redução de mortes das pessoas trans em nosso País. Essa informação foi desmentida pelo reconhecido e legitimado levantamento feito pela ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o qual evidenciou o aumento do número de mortes violentas. Segundo o Boletim n 03/2020 sobre assassinatos contra Travestis e Transexuais “o Brasil chega a 89 assassinatos de pessoas trans no primeiro semestre de 2020, com aumento de 39% em relação ao mesmo período do ano passado”291. Segundo análise dos estudiosos constante no Boletim, o aumento da violência contra essa população

288 https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/ 289 https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/ 290 https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf 291 https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf

possui relação direta tanto com as práticas discriminatórias levadas a cabo pelo atual chefe do Poder Executivo Federal, como em razão das omissões de medidas de proteção dessa população, “mesmo depois da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a LGBTIfobia como uma forma do crime de racismo”.292

378. Enfim, o que parece inquestionável é que toda a administração pública obedece aos desejos e devaneios de Jair Bolsonaro. Aliás, seria covarde da parte dele isentar-se de responsabilidade por todos os desmandos acima arrolados, quando é do conhecimento geral que quem atua contra as suas convicções é imediatamente exonerado. E ele próprio, na reunião do dia 22 de abril de 2020, afirma que intervém, sim, em todos os ministérios. Por isso é possível imputar a ele ato de improbidade administrativa, porque sua gestão se dá em desconformidade com os princípios que norteiam a administração pública, inscritos no artigo 37 da Constituição da República. Todos esses princípios (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), foram seriamente ofendidos nas várias condutas acima enunciadas. Em relação à publicidade oficial, há dispositivo específico, no parágrafo 1º do artigo 37, segundo o qual “a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”.

379. Ainda no campo da improbidade, Jair Bolsonaro tenta desestruturar toda a máquina administrativa, especialmente a que vem sendo construída desde 1988 para cumprir os objetivos constitucionais de promoção de direitos. Todo o investimento com equipamentos públicos, conferências, seminários, reuniões de colegiados, concursos públicos e capacitação de servidores está se perdendo. Servidores que se apresentaram para áreas com as quais se identificavam como ideal profissional são perseguidos e, por isso, buscam, quando possível, aposentadoria, licença capacitação ou algum outro meio para se tornarem invisíveis. Policiais militares que também tiveram um grande investimento em sua formação estão sendo desviados de sua função para outras a respeito das quais nada conhecem.

292 Ibidem.

380. O desenho da administração pública na Constituição de 1988 é no sentido da sua pouca permeabilidade às mudanças de governo. Ela é uma administração técnica, cujo recrutamento de seu pessoal se dá mediante concurso público (art. 37, II), e só excepcionalmente se permite a livre nomeação (art. 37, V). União, Estados e Distrito Federal têm que manter escolas para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, e a participação nos cursos é um dos requisitos para a promoção em carreira (art. 39, parágrafo 2º). Os serviços da administração se dão com a participação dos usuários e estão sujeitos à avaliação periódica, externa e interna (parágrafo 3º, I e II). A Constituição, em seu artigo 85, V, estabelece ser crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra “a probidade na administração”. Idêntica previsão consta da Lei 1079/50 (art. 4º, inciso V). A Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), em seu art. 11, diz que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.

381. Em arremate dessa pormenorizada narrativa, é certa a demonstração conclusiva de ter havido profundas lesões ao exercício de direitos políticos, individuais e sociais, provocadas por atos do Presidente da República, que constituem, inegavelmente, crimes tipificados no art. 7º, incisos 5, 6 e 9, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.293

e) Fatos e condutas relacionados a atos formais e declarações públicas que conduzem à desestabilização das instituições democráticas

382. O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, decidiu, ainda em 2019, instaurar um inquérito para apurar atos de violência e de distorções da verdade contra os seus ministros, especialmente nas redes sociais. Mandados de busca e apreensão expedidos com respaldo legal e determinados recentemente no bojo desse inquérito, abrangendo apoiadores do Presidente da República

293 Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (...) 5- servir- se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua; 6- subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social; (...) 9- violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

geraram reações ainda mais violentas do Presidente de República294 , que não hesitou em recorrer a ameaças e palavras de baixo calão, ao sugerir que “ordens absurdas não se cumprem”295.

383. E para piorar o que já era em si muito preocupante, os atos transpuseram as fronteiras do virtual e expuseram todo a repulsa de Jair Bolsonaro pela democracia e pelo Estado de Direito. Ele próprio foi às ruas, em ostensiva demonstração de que estava desobedecendo as orientações de autoridades sanitárias e de gestores locais, inclusive sem fazer uso da máscara, quando a pandemia já contabilizava 27 mil mortes entre os brasileiros296. Em 31 de maio de 2020, mais manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, inclusive com alusão ao retorno do AI-5, o mais violento instrumento jurídico de perseguições e violações de direitos da ditadura militar 297. Apoiadores do Bolsonaro admitiram ter armas em seu poder, consubstanciando nitidamente a organização de uma milícia paramilitar atentatória à Constituição da República (art. 5º, incisos XVII e XLIV), com o estímulo do próprio Presidente da República, sendo que alguns deles saíram em manifestação contra o ministro do STF Alexandre de Moraes, com uma performance evocando a Ku Klux Klan, com os rostos cobertos e as tochas acesas298.

384. O discurso do ódio tem efeitos extremamente perversos na vida coletiva. Um é o silenciamento de muitas vozes, pelo receio dos ataques. Outro é o impacto na percepção de si próprio e em sua dignidade, na medida em que as pessoas se orientam pelo reconhecimento das demais. Admitir que um Presidente da República se dirija de forma odiosa a indígenas, mulheres e quilombolas, entre outros grupos, é naturalizar o patológico.

385. A falsa informação, por sua vez, é a antítese da democracia, porque ela distorce a verdade e falsifica a discussão, levando a decisões que não se amparam em dados da realidade. A pandemia fez ver a insegurança gerada por esse ambiente em que verdade e mentira são manipuladas

294 https://www.otempo.com.br/politica/investigados-por-fake-news-e-ataques-ao-stf-reagem-a-corte-e-miram-ministro- 1.2342592 295 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/05/29/bolsonaro-ameaca-nao-cumprir-decisoes-do- stf.htm 296https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/05/30/bolsonaro-volta-a-passear-sem-mascara-e-provocar-aglomeracoes- durante-pandemia 297 https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/ato-contra-o-stf-tem-bolsonaro-sem-mascara-e-alusao-ao-golpe-de-1964/ 298 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/31/grupo-300-protesto-supremo.htm

dolosamente pela mais alta autoridade do Poder Executivo do país.

386. A Constituição da República, desde o seu preâmbulo, institui um Estado Democrático de Direito, a pressupor a integridade dos poderes e das instituições estatais, além da garantia do exercício dos direitos fundamentais da cidadania. A conservação dos predicados desse modelo de organização constitucional impõe aos representantes dos diversos poderes que integram a estrutura federativa um comportamento minimamente zeloso em relação aos pressupostos de estabilidade do regime democrático. Isso significa que mesmo a atuação de autoridades eleitas, até mesmo do Presidente da República, encontra limites voltados a impedir a exorbitância e os abusos, sobretudo quando estes sinalizam ofensas aos pilares do texto constitucional, em especial no que concerne ao equilíbrio harmônico entre os poderes, preconizado pelo art. 2º e ao respeito em relação às competências dos entes da federação, assegurado pelo art. 18.

387. A narrativa a seguir revela ter havido uma atuação constitucionalmente inescrupulosa por parte do Presidente da República, em contrariedade às elevadas obrigações imprescindíveis ao exercício do cargo. Cumpre recordar que dentre as incumbências presidenciais, assume precedência absoluta, nos termos da Constituição, o “compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição” (art. 78).

388. As circunstâncias suscitadas na presente denúncia ajustam-se com exatidão à previsão doutrinária que preconiza a instauração do processo de apuração de crimes de responsabilidade quando houver, por parte do Presidente da República, gestos de infidelidade ao compromisso de respeito à Constituição, segundo a lição clássica de Paulo Brossard:

389. Pode suceder, todavia, que os agentes de cada um desses Poderes, como criaturas revoltadas contra o criador, venham a desviar-se de seus deveres e, apostatando das suas atribuições, cheguem a agredir a Constituição.

390. Quando do Presidente da República parte o agravo, a Constituição estabelece processo parlamentar da apuração dessa responsabilidade. Ao fazê-lo, mais do que à flagelação da pessoa é à integridade constitucional que ela visa com o afastamento da autoridade infiel. Através do mecanismo que engendrou, a Lei Magna busca sua conservação, com a sobrevivência dos valores nela cristalizados. Se ela é a medida dos poderes outorgados a cada Poder do Estado, o trateá-la impunemente,

por aqueles que ela investe de autoridade, importaria em substituir o governo das leis, que ela proclama, pelo governo dos homens, que ela proscreve.299

391. Uma sucessão de fatos, adiante pormenorizados, oferecem a dimensão do envolvimento direto e ativo do Presidente da República na divulgação e realização de manifestações públicas de rematado desapreço pela integridade dos poderes da República e pelas instituições democráticas. Não bastasse isso, tais eventos converteram-se em reiteradas oportunidades de ameaça escancarada ao livre funcionamento dos poderes Legislativo e Judiciário federais, com agressiva estigmatização pessoal de representantes desses poderes.

392. Tais manifestações adotaram, por conseguinte, um inflamado tom de protesto contra supostas perturbações ou restrições à implementação de medidas e decisões pelo Presidente da República, atribuídas aos demais poderes, cujo regular desempenho passou a ser objeto de repúdio público nessas ocasiões.

393. O mais grave resulta da invocação fervorosa, mesmo na presença do Presidente da República, de palavras de ordem em faixas e coros dos manifestantes pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, ao lado da subversiva exaltação perversamente saudosista de medidas de exceção impostas no passado por governos autoritários, tais como a intervenção militar e o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de modo a sugerir que, em apoio ao Presidente da República, tais anomalias traumáticas de triste memória sejam ressuscitadas, à maneira de uma espécie de autogolpe.

394. É imperativo consignar que a ordem constitucional não contempla brecha alguma que viabilize semelhante modalidade de intervenção militar à margem da obediência fiel à supremacia do poder civil entronizado pela Carta Política de 1988. Tampouco se admite qualquer hipótese de resgate violento de rompimento da prevalência constitucional por meio do instrumento grotesco e ditatorial consubstanciado nos atos institucionais.

395. Consoante será demonstrado adiante, também podendo ser provado pelo depoimento das testemunhas arroladas ao final, tais protestos foram incitados pelo atual mandatário, que

299 BROSSARD, Paulo. O impeachment. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 126.

deles participou, inclusive, de modo a fomentar um contexto de contestação veemente à autonomia de estados-membros da Federação, do Distrito Federal e dos municípios, em suas respectivas competências concorrentes de preservação da vida e da saúde dos seus respectivos habitantes diante da grave emergência sanitária gerada pela chegada da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) ao Brasil, causando vasto contingente de adoecimentos e mortes.

396. O ambiente de hostilidade aos elementos básicos da democracia e das liberdades, predominante em tais atos, paradoxalmente estimulados pelo próprio Presidente da República, chegou a extremos com o cometimento de atos de agressões físicas e morais aos profissionais de imprensa que compareceram às manifestações com a missão de promover o registro jornalístico de tais eventos.

397. O elemento intencional da conduta do Presidente da República ao convocar, apoiar e participar de tais manifestações, com desenganado endosso pessoal às suas pautas espúrias e ilícitas, não admite dúvida, uma vez que, apesar da ampla e detalhada divulgação do caráter de tais protestos e mesmo após ter havido larga publicidade e veiculação de notícias sobre o conteúdo subversivo e atentatório ao sistema constitucional, além de ameaçador à subsistência dos poderes Legislativo e Judiciário, ainda assim o chefe do Poder Executivo Federal se fez presente seguidas vezes como protagonista desses lúgubres acontecimentos.

398. Tampouco convencem as evasivas desajeitadas do Presidente da República, ao ser confrontado com a sua responsabilidade por tais atos de subversão institucional, no sentido de que deve ser respeitada a liberdade de expressão dos defensores da quebra da normalidade democrática. Sabe-se que, embora constitua garantia fundamental da cidadania, prevista constitucionalmente, até mesmo a liberdade de expressão deve ser contida sob fronteiras demarcadas pela verificação de abusos. Afinal, é inegável que a ordem constitucional democrática não se coaduna com a fruição das prerrogativas da liberdade de expressão que seja destinada de maneira patológica a apregoar o extermínio da própria democracia, o atentado contra a integridade do funcionamento do Parlamento ou da Justiça ou ainda o esvaziamento das competências de entes da Federação.

399. Uma retrospectiva dos fatos vinculados às citadas manifestações tem sua gênese em fevereiro de 2020, a partir de uma declaração ultrajante do ministro-chefe do Gabinete de Segurança

Institucional (GSI), General , dirigida contra os membros do Congresso Nacional300. Ato contínuo, em uma concertação visível, as redes sociais ligadas ao grupo político de do Presidente da República iniciaram a difusão de convocações para protestos, anunciando pautas abertamente antidemocráticas. Rapidamente, os chamamentos ganharam a adesão pessoal do chefe do Poder Executivo Federal.

400. A desatinada conduta presidencial veio a repetir-se em 19 de abril de 2020, quando uma vez mais o Denunciado participou de ato público a favor de seu governo e em favor da quebra da institucionalidade democrática, em frente à sede do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, em Brasília, onde, mesmo diante de faixas com nítido cunho autoritário, agradeceu a presença dos apoiadores e estimulou a sua conduta ao pronunciar que “Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza que todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. Vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil”301. Eis alguns registros fotográficos do evento, cuja localização agravou sobremaneira o tensionamento institucional, haja vista a inconveniente confusão provocada pelo fato de as atrevidas alusões à pretensão golpista terem sido hospedadas em área militar.

300 El País – “General Heleno diz que parlamentares ‘chantageiam’ governo e abre novo embate com o Congresso”, 19 fev.2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-19/general-heleno-diz-que-parlamentares- chantageiam-governo-e-abre-novo-embate-com-o-congresso.html. 301 Exame – “Bolsonaro discursa para manifestação com faixa ‘Fora Maia’ e apoio ao AI-5”, 19 abr. 2020. Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-discursa-para-manifestacao-com-faixa-fora-maia-e-apoio-ao-ai-5/.

Faixa em Brasília/DF pede intervenção militar nos protestos de 19 de abril de 2020

Faixa em Brasília/DF pede intervenção militar nos protestos de 19 de abril de 2020

Faixa em Brasília/DF pede intervenção militar nos protestos de 19 de abril, aos olhos do Presidente da República

401. O portal de notícias G1 noticiou à época o tom belicoso dos protestos realizados em 19 de abril de 2020, que contaram com a participação do Presidente da República 302:

Bolsonaro discursa em Brasília para manifestantes que pediam intervenção militar O presidente Jair Bolsonaro discursou neste domingo (19) durante um ato em Brasília que defendia uma intervenção militar, o que não está previsto na Constituição. Dezenas de simpatizantes se aglomeraram para ouvir o presidente, contrariando as orientações da de isolamento social da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar a propagação do coronavírus. Durante o discurso, Bolsonaro tossiu algumas vezes, sem usar a parte interna do cotovelo, conforme orientação das autoridades sanitárias. Do alto de uma caminhonete, Bolsonaro disse que ele e seus apoiadores não querem negociar nada e voltou a criticar o que chamou de "velha política".

302 G1 – “Bolsonaro discursa em Brasília para manifestantes que pediam intervenção militar”, 19 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/19/bolsonaro-discursa-em-manifestacao-em-brasilia-que-defendeu- intervencao-militar.ghtml.

"Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas e acreditar e fazer a sua parte para que nós possamos colocar o Brasil no lugar de destaque que ele merece. Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder." Foi a maior aglomeração provocada por Bolsonaro desde o início da adoção de medidas contra a pandemia no Brasil. Na véspera, ele já havia falado para manifestantes que se concentraram em frente ao Palácio do Planalto. Antes da fala de Bolsonaro, manifestantes gritavam "Fora, Maia", "AI-5", "Fecha o Congresso", "Fecha o STF", palavras de ordem ilegais, inconstitucionais e contrárias à democracia. O Ato Institucional número 5 (AI-5) vigorou durante dez anos (de 1968 a 1978), no período da ditadura militar, e foi usado para punir opositores ao regime e cassar parlamentares. O presidente fez o discurso em frente ao Quartel-General do Exército e na data em que é celebrado o Dia do Exército. Os manifestantes também pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Pouco depois, ele postou em uma rede social um trecho do discurso em que diz aos manifestantes: "Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil." Alguns apoiadores do presidente carregavam faixas pedindo "intervenção militar já com Bolsonaro". As faixas tinham o mesmo padrão e pareciam ter sido feitas em série. Até as 15h50, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) não haviam se manifestado sobre o discurso. Bolsonaro afirmou aos simpatizantes que todos os políticos e autoridades "têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro". "Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do povo brasileiro. Tenho certeza, todos nós juramos um dia dar a vida pela pátria. E vamos fazer o que for possível para mudar o destino do Brasil. Chega da velha política", afirmou. Bolsonaro disse aos manifestantes que podem contar com ele "para fazer tudo aquilo que for necessário para que nós possamos manter a nossa democracia e garantir aquilo que há de mais sagrado entre nós, que é a nossa liberdade". Mais cedo, os apoiadores de Bolsonaro fizeram uma carreata por Brasília e passaram na Esplanada dos Ministérios, onde também fica o prédio do Congresso. Governadores e demissão de ministro Na semana passada, Bolsonaro demitiu o então ministro da Saúde, , depois de embate público envolvendo medidas de restrição social para combate à pandemia do novo coronavírus. Contrariado pela defesa de Mandetta das medidas de isolamento pregadas pela OMS, nas últimas semanas Bolsonaro fez passeios por Brasília, que geraram aglomeração de pessoas. O presidente também tem criticado governadores que adotaram medidas de restrição de movimentação de pessoas como forma de conter a disseminação do coronavírus, entre eles o de São Paulo, João Doria, e o do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.

Bolsonaro chegou a editar uma medida provisória para concentrar o poder de aplicar medidas de restrição durante a pandemia. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados também têm poder para aplicar regras de isolamento. Bolsonaro faz críticas à postura dos governadores no combate ao coronavírus Também na semana passada, Bolsonaro criticou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a quem acusou de estar conduzindo "o Brasil para o caos". A crítica de Bolsonaro a Maia se deu em meio à discussão pelo Congresso de medidas econômicas para enfrentamento da crise gerada pela pandemia do novo coronavírus. Uma dessas medidas, já aprovada pela Câmara mas que ainda aguarda análise do Senado, obriga o governo federal a compensar os estados e municípios por perdas de arrecadação nos próximos meses. Bolsonaro e sua equipe são contra essa medida, defendida por Maia.

402. Já em 29 de abril de 2020, após a divulgação de decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar fundamentadamente pedido de liminar no Mandado de Segurança nº 37.097, no sentido de impedir a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal, o Presidente da República passou a atacar publicamente o prolator da decisão, sugerindo a iminência de uma “crise institucional”.

Agora, tirar numa canetada, desautorizar o presidente da República com uma canetada dizendo em impessoalidade. Ontem quase tivemos uma crise institucional. Quase. Faltou pouco. Eu apelo a todos que respeitem a Constituição. Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes. Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo303.

403. Posteriormente, em 3 de maio de 2020, o Denunciado voltou a participar de uma manifestação pública com nítidos propósitos antidemocráticos e de afronta à ordem constitucional, nela proferindo um canhestro discurso, no qual ameaçou e constrangeu publicamente o Supremo Tribunal Federal.

Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade. (...) Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência. Acabou a paciência. Vamos levar esse Brasil para frente (...) Peço

303 G1 – “Bolsonaro diz que decisão de Moraes foi 'política' e que vai recorrer da suspensão de Ramagem no comando da PF”, 30 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/30/bolsonaro-diz-que-decisao-de- moraes-foi-politica-e-que-vai-recorrer-da-suspensao-da-nomeacao-de-ramagem-no-comando-da-pf.ghtml.

a Deus que não tenhamos problemas nessa semana. Porque chegamos no limite, não tem mais conversa304.

404. Naquela oportunidade, os ataques e ameaças não se restringiram apenas aos integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário federais. O Presidente da República e seus fanáticos apoiadores não hesitaram também em admoestar de maneira rude e irresponsável os governadores e prefeitos que contrariassem as convicções anticientíficas esposadas pelo mandatário em desfavor das precauções de distanciamento social recomendáveis durante a pandemia do novo coronavírus.

405. Em 24 de março de 2020, durante pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, o Presidente da República já insuflara a população contra governadores e prefeitos305. Uma semana depois, em 1º de abril de 2020, poucas horas após falar em um pacto com Estados e Municípios para melhor gerenciar a crise decorrente da pandemia do novo coronavírus, o Denunciado dera entrevistas em que voltou a desferir ofensas aos gestores locais306.

406. Mais recentemente, em 14 de maio de 2020, durante reunião com grupo de empresários, o ora Denunciado dirigiu ofensas ao governador de São Paulo e pediu ao público presente para “chamar o governador e jogar pesado, (...) porque a questão é séria, é guerra”307.

407. As agressões promovidas pelo Presidente, porém, não se restringem aos integrantes dos demais Poderes, governadores e prefeitos. Desde o início do mandato presidencial, o Denunciado tem se dedicado a realizar ataques praticamente diários à imprensa.

408. Em levantamento publicado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), até 30 de abril de 2020, o Presidente já havia proferido 179 (cento e setenta e nove) agressões a

304 G1 – “Bolsonaro volta a apoiar ato antidemocrático e diz que não vai mais 'admitir interferência'”, 3 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/03/manifestantes-fazem-carreata-pro- bolsonaro-na-esplanada-dos-ministerios-em-brasilia.ghtml. 305 Folha de S. Paulo – “Em pronunciamento, Bolsonaro critica fechamento de escolas, ataca governadores e culpa mídia”, 24 mar. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/em-pronunciamento-bolsonaro-critica- fechamento-de-escolas-ataca-governadores-e-culpa-midia.shtml. 306 Folha de S. Paulo – “Horas após falar em pacto, Bolsonaro volta a criticar governadores e medidas de isolamento”, 1º abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/horas-apos-falar-em-pacto-bolsonaro-volta-a- atacar-governadores-e-medidas-de-isolamento.shtml. 307 Valor Econômico – “Bolsonaro diz a empresários para ‘jogar pesado’ com governadores porque ‘é guerra’”, 14 mai. 2020. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/05/14/bolsonaro-diz-a-empresrios-que-preciso- partir-para-cima-de-governadores-porque-guerra.ghtml.

jornalistas, o que equivale a 1,48 ataques por dia308. As ocorrências se intensificam sempre que os meios de comunicação noticiam fatos contrários aos interesses pessoais do Presidente da República.

409. A título ilustrativo, são elencados alguns dos impropérios lançados pelo Presidente em 2020:

• Em 18 de fevereiro de 2020, no Palácio da Alvorada, o Presidente comentou matéria jornalística de profissional da Folha de S. Paulo a respeito de disparos em massa por Whatsapp, e ofendeu a repórter com palavras de cunho sexual: “Ela queria dar o furo (...) a qualquer preço contra mim”309.

• Em 4 de março de 2020, o Denunciado colocou um humorista para distribuir bananas a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada310. Algumas semanas antes, o próprio Presidente fizera gesto de banana para profissionais da imprensa que o aguardavam na saída do palácio presidencial311.

• Em 30 de abril de 2020, o Presidente dirigiu-se à imprensa como “lixo” e ameaçou não renovar as concessões de redes de televisão logo após manifestar contrariedade com matérias jornalísticas que entendia que lhes eram desfavoráveis312.

• Em 5 maio de 2020, indagado sobre investigações em curso a respeito da troca do Superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro, gritou aos repórteres presentes: “Cala a boca, não perguntei nada!”313.

410. Tais acusações, além das referências laudatórias ao regime ditatorial instalado entre 1964 e 1985, levaram a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados a emitir, em 19 de maio de 2020, comunicação oficial à Comissária das Nações Unidas para os Direitos

308 https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2020/05/LINHA-DO-TEMPO-2020.pdf. 309 Correio Braziliense – “Bolsonaro, sobre repórter da Folha: 'Ela queria dar um furo'; jornal reage”, 18 fev. 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/02/18/interna_politica,828834/bolsonaro-sobre- reporter-da-folha-ela-queria-dar-um-furo-jornal-reage.shtml 310 Metro1 – “Bolsonaro põe humorista 'Carioca' para distribuir bananas para jornalistas; veja vídeo”, disponível em 4 mar. 2020. Disponível em: https://www.metro1.com.br/noticias/politica/88382,bolsonaro-poe-humorista-carioca-para- distribuir-bananas-para-jornalistas-veja-video. 311 HuffPost - “Jair Bolsonaro dá 'banana' a jornalistas em resposta a reportagem sobre biblioteca”, 15 fev. 2020. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-banana-jornalistas_br_5e483178c5b64433c6172e81. 312 Poder360 – “Bolsonaro chama Globo de ‘lixo’ e ameaça não renovar concessão em 2022”, 20 mai. 2020. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/bolsonaro-chama-globo-de-lixo-e-ameaca-nao-renovar-concessao-em-2022/. 313G1 – “Bolsonaro nega agressões em atos pró-governo e grita 'cala a boca' para repórteres”, 5 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/05/bolsonaro-diz-que-nao-houve-agressao-nenhuma-zero-em- manifestacao-e-grita-cala-a-boca-para-reporteres.ghtml.

Humanos, Michele Bachelet, denunciando atos de ruptura democrática no país e requerendo a adoção de medidas para coibir o comportamento autoritário do ora Denunciado314.

411. O comportamento pessoal do Presidente da República, diga-se, tem estimulado episódios de agressões promovidas pelos grupos por ele insuflados, inclusive mediante insultos verbais proferidos por apoiadores na presença do próprio Presidente315.

412. Em 20 de abril de 2020, jornalistas e fotógrafo foram agredidos em manifestações a favor do Presidente em Brasília e em Porto Alegre316. O mesmo ocorreu em 3 de maio de 2020, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na Capital Federal, quando um repórter de O Estado de São Paulo sofreu chutes, socos, empurrões e rasteiras durante evento com a presença do Presidente317.

413. Não por outra razão, pelo segundo ano seguido a organização Repórteres Sem Fronteiras rebaixou o país no ranking da liberdade de imprensa. O país se encontra atualmente na 107ª posição, caindo cinco posições desde 2018318. Segundo a organização, foi decisivo para a queda o “clima de ódio e desconfiança alimentado por Bolsonaro”319.

414. Os arroubos autoritários do Denunciado chegam a tal ponto que, quando confrontado com questionamentos de jornalistas a respeito de sua participação em atos que defendiam abertamente um golpe militar, proferiu frase de nítido viés absolutista: “"O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República (...) Eu sou, realmente, a Constituição”320. A frase demonstra a pretensão do atual ocupante do posto de Presidente da República

314 https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2020/05/OFPRES_ONU_ameaca-de-ruptura-autoritaria.pdf. 315 https://fenaj.org.br/nota-oficial-jornalistas-sao-agredidos-em-pleno-dia-de-luta-dos-trabalhadores/. 316 O Globo – “Jornalistas e fotógrafo são agredidos em manifestações a favor de intervenção militar em Brasília e Porto Alegre”, 20 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/jornalistas-fotografo-sao-agredidos-em- manifestacoes-favor-de-intervencao-militar-em-brasilia-porto-alegre-24383527. 317 G1 – “Profissionais de imprensa são agredidos durante manifestação antidemocrática com a presença de Bolsonaro”, 3 mai. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/03/profissionais-de-imprensa-sao-agredidos- durante-manifestacao-antidemocratica-com-a-presenca-de-bolsonaro.ghtml. 318 REPORTERS WITHOUT BORDERS. 2020 World Press Freedom Index. Disponível em: https://rsf.org/en/ranking/2020. Acesso em 20 mai. 2020. 319 REPORTERS WITHOUT BORDERS. 2020 World Press Freedom Index. Disponível em: https://rsf.org/en/brazil. Acesso em 20 mai. 2020. 320 FOLHA DE S. PAULO – “Eu sou a Constituição, diz Bolsonaro ao defender democracia e liberdade um dia após ato pró-golpe militar”, 20 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/democracia-e-liberdade- acima-de-tudo-diz-bolsonaro-apos-participar-de-ato-pro-golpe.shtml.

de transgredir os limites de suas atribuições e não acatar as limitações decorrentes do equilíbrio harmônico entre os Poderes da República321.

415. Os fatos narrados anteriormente demonstram a evidente incompatibilidade entre as condutas adotadas pelo atual ocupante do cargo de Presidente da República e a dignidade, o decoro e a honradez esperadas de uma autoridade dessa envergadura. Daí a pertinência do enquadramento normativo dos episódios já narrados, com o objetivo de demonstrar o efetivo cometimento de crimes de responsabilidade, aptos a autorizarem a marcha do processo de impeachment presidencial.

416. A Constituição da República, como marco essencial de uma ordem jurídico- política democrática e republicana, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, passou a sofrer sucessivos atentados praticados pessoalmente pelo próprio Presidente da República, não obstante tais atos sejam expressamente proscritos pelo caput do seu art. 85.

417. O Estado de Direito não prescinde de limites ao exercício do poder. Pelo contrário, são as ditaduras que se caracterizam pela inexistência de limites jurídicos. A função de uma Constituição nos Estados modernos é a de estabelecer o controle e a demarcação do poder aos que governam.

418. Lastimavelmente, o Presidente da República tem agido, diuturnamente, de maneira ostensiva e escandalosa, para corroer a democracia brasileira, atacando os poderes da República, desconhecendo as decisões do Poder Judiciário, desafiando a separação dos poderes, estimulando irresponsavelmente a guerra entre entes da Federação, incitando irresponsavelmente as Forças Armadas contra a sociedade civil, tudo isso em total desobediência à Constituição que jurou solenemente cumprir.

419. Em declarações recentes, o Denunciado tornou a incitar semelhantes animosidades, ameaçando o uso de forças militares para debelar ordens de outros poderes e entes federados. Veja-se:

• “vou só dar um recado aqui: alguns querem que eu decrete lockdown. Não vou decretar. E pode ter certeza de uma coisa: o meu Exército não vai para a rua para obrigar o povo a ficar em casa. O meu Exército, que é o Exército de vocês. Então, fiquem tranquilos no tocante a isso daí” – março de 2021322.

321 MARQUES, Carlos José. “O arroubo autoritário”, ISTOÉ, 24 abr. 2020. Disponível em: https://istoe.com.br/o-arroubo- autoritario/. 322 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/nao-vou-decretar-lockdown-e-meu-exercito-nao-vai-obrigar-o-povo-a- ficar-em-casa-diz-bolsonaro.shtml.

• "O pessoal fala do artigo 142 [da Constituição], que é pela manutenção da lei e da ordem. Não é para a gente intervir. O que eu me preparo? Não vou entrar em detalhes, [mas é em caso de] um caos no Brasil. O que eu tenho falado: essa política, lockdown, quarentena, fica em casa, toque de recolher, é um absurdo isso aí" – abril de 2021323.

420. Os freios e contrapesos do constitucionalismo brasileiro, característicos de um projeto civilizacional democrático, têm sido sabotados na exata medida em que o Presidente da República Bolsonaro ignora limites e desdenha dos Poderes – do Legislativo, do Judiciário e, inclusive, do próprio Executivo.

421. Com efeito, tendo em vista os atos praticados o Presidente da República acima relatados permitem a constatação da ocorrência de crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados (art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950) e crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950) de sua autoria. Convém referir, adicionalmente, que, de acordo com o art. 2º, da Lei nº 1.079/1950, “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo”. Tais hipóteses legais típicas se originam da previsão do próprio texto da Constituição da República, que dimensiona nos incisos II e II do art. 85 tais modalidades de atos do Presidente da República como crimes de responsabilidade:

SEÇÃO III DA RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração;

323 https://www.gazetadopovo.com.br/republica/bolsonaro-afirma-que-exercito-pode-ir-para-a-rua-acabar-com-covardia-de- toque-de-recolher/.

VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

422. Emergem do figurino legal, portanto, em decorrência dos fatos articulados no presente tópico, a incursão do Presidente da República nos dispositivos contidos no art. 6º, incisos 1, 2, 5, 6 e 7; e art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Confira-se:

DOS CRIMES CONTRA O LIVRE EXERCÍCIO DOS PODERES CONSTITUCIONAIS

Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados:

1 - tentar dissolver o Congresso Nacional, impedir a reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras;

2 - usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;

3 - violar as imunidades asseguradas aos membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas dos Estados, da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal e das Câmaras Municipais;

4 - permitir que força estrangeira transite pelo território do país ou nele permaneça quando a isso se oponha o Congresso Nacional;

5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças;

6 - usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;

7 - praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo;

8 - intervir em negócios peculiares aos Estados ou aos Municípios com desobediência às normas constitucionais.

CAPÍTULO III

DOS CRIMES CONTRA O EXERCÍCIO DOS DIREITOS POLÍTICOS, INDIVIDUAIS E SOCIAIS

Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

1- impedir por violência, ameaça ou corrupção, o livre exercício do voto;

2 - obstar ao livre exercício das funções dos mesários eleitorais;

3 - violar o escrutínio de seção eleitoral ou inquinar de nulidade o seu resultado pela subtração, desvio ou inutilização do respectivo material;

4 - utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral;

5 - servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua;

6 - subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social;

7 - incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina;

8 - provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as instituições civis;

9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

10 - tomar ou autorizar durante o estado de sítio, medidas de repressão que excedam os limites estabelecidos na Constituição.

423. Tais conclusões derivam da patente circunstância demonstrada, na qual o discurso público e a mobilização política desencadeadas pela conduta presidencial põem em risco a própria sobrevivência das instituições democráticas. Em tais hipóteses, a Constituição brasileira prevê o remédio do impeachment, formulado originariamente no direito constitucional norte-americano, cuja essência pode ser bem sintetizada na doutrina de Laurence Tribe e Joshua Martz:

Dito de forma simples, o impeachment é o nosso último recurso para evitar uma catástrofe genuína pelas mãos do presidente. Esse poder é pensado para momentos em que a nação encara perigo claro e o aparato constitucional não oferece outra saída plausível. O impeachment deve ocorrer quando os delitos anteriores do presidente são tão terríveis por si sós, e são um sinal tão perturbador da sua conduta futura, que permitir a continuidade

do presidente em sua função impõe um claro perigo de dano grave à ordem constitucional324.

424. O pedido de impeachment no caso concreto ora trazido ao exame da Câmara dos Deputados se inscreve dentre aqueles imperativos determinados pela defesa dos valores democráticos incolumidade das instituições do Estado de Direito.

425. Nessa linha, a obra clássica de Paulo Brossard sobre o tema assinala que “A idéia de responsabilidade é inseparável do conceito de democracia. E o impeachment constituiu eficaz instrumento de apuração de responsabilidade e, por conseguinte, de aprimoramento da democracia”325.

426. Vale dizer, o procedimento de impedimento do Presidente da República deve importar uma preocupação primordial com a manutenção do Estado Democrático de Direito, como também indicado na reflexão de Rafael Mafei Queiroz:

Crimes de responsabilidade preocupam-se sobretudo com as condutas de governantes: eles nos armam contra presidentes cujo padrão de comportamento sugira risco a instituições básicas do Estado de Direito. A luz amarela do impeachment deve acender quanto topamos com líderes que minam espaços de legítima negociação política, intervém de modo suspeito em órgãos de controle e fiscalização, intimidam a sociedade civil que os critica e agridem sem pudor valores constitucionais inegociáveis, tudo isso para fazer prevalecer, a qualquer custo, seus objetivos políticos e pessoais — sejam eles nobres ou mesquinhos, de esquerda ou de direita, ou conservadores, pouco importa326.

427. Dos extratos anteriormente delineados, pode-se inferir com clareza que o impeachment não foi concebido unicamente para coibir situações já concretizadas de subversão da ordem jurídico-política. Sua missão precípua consiste em estancar tentativas, e impedir movimentos que demonstrem a tendência de iminente ruptura institucional provocada pela conduta do Presidente da República.

324 TRIBE, Laurence; MARTZ, Joshua. To end a presidency: the power of impeachment. Nova Iorque: Basic Books (e- book), 2019, p. 21-22. 325 BROSSARD, Paulo. O impeachment. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 7. 326 QUEIROZ, Rafael Mafei R. Indignidade, desonra e quebra de decoro presidencial na era Jair Bolsonaro. In: JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/indignidade-desonra-e-quebra-de-decoro-presidencial- na-era-jair-bolsonaro-13092019. Acesso em: 16 maio 2020.

428. Da narrativa dos fatos já realizada, por conseguinte, em síntese, verifica-se que o Presidente da República incorreu nas condutas tipificadas no art. 6º, itens 1, 2, 5, 6 e 7 e no art. 7º, itens 5, 6, 7, 8 e 9 da Lei nº 1.079/1950.

429. A tentativa de dissolução do Congresso Nacional (art. 6º, inciso 1) é patente no explícito apoio a manifestações de rua que, conforme demonstrado, têm como pauta uma “intervenção militar” nos Poderes Constituídos, com “fechamento do Congresso Nacional", que ultrapassa e subverte os limites da alçada constitucional das Forças Armadas. Estas, na forma do art. 142 da Constituição, embora sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se exclusivamente “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, ou seja, nos marcos da preponderância do poder civil, de a cordo com a Constituição da República.

430. A previsão de crime de responsabilidade decorrente da previsão segundo a qual constitui o tipo respectivo “usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato” (art. 6º, inciso 2) afigura-se resultante da participação ativa do Presidente da República em manifestações de matiz claramente hostil à permanência dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em suas funções constitucionalmente asseguradas.

431. Outro elemento constitutivo de crime de responsabilidade perceptível à luz da narrativa acima comprovada, consiste na identificação da premissa “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário” (art. 6º, inciso 5), uma vez que o Presidente da República afirmou textualmente e de maneira pública não assimilar uma decisão emanada no exercício regular da competência por ministro do Supremo Tribunal Federal, e que a sua prolação teria gerado a iminência de uma crise institucional.

432. Por outro lado, a tentativa de impor a prevalência dos interesses pessoais do mandatário em decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal, inclusive mediante o uso de ameaça, importa incursão na conduta tipificada no art. 6º, inciso 6, da Lei nº 1.079/1950, de acordo com o qual

configura crime de responsabilidade “usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício”.

433. O que se verifica, no caso dos autos, é uma tentativa constante do Presidente da República de utilizar mobilizações populares com o objetivo marcado de obter resultados que lhe sejam favoráveis na apreciação de processos de seu interesse em curso no Supremo Tribunal Federal, tal qual ocorrido no episódio da nomeação do novo Diretor-Geral da Polícia Federal, que também será abordado, pelas suas peculiaridades, em tópico subsequente.

434. Ainda, os fatos já descritos amoldam-se à fattispecie contida no art. 6º, item, 7, da Lei nº 1.079/1950, na medida em que os constrangimentos públicos, as ameaças e a indicação de que empresários levem a cabo uma “guerra” contra os governadores de Estados e prefeitos municipais também constituem delitos imputáveis ao exercente do cargo de chefe do Poder Executivo Federal.

435. De igual maneira, também incidem no caso concreto prescrições específicas da Lei do Impeachment relacionadas à proteção dos direitos políticos, individuais e sociais. Com efeito, o estímulo à conflagração popular contra as instituições da república, mediante o incentivo à subversão violenta da ordem social, assim como a incitação aos militares à desobediência à lei e a provocação de animosidade entre as classes armadas e as instituições civis enquadram-se nas hipóteses normativas do art. 85, III, da Constituição e no art. 7º, itens 5, 6, 7 e 8 da Lei nº 1.079/1950. Assim, a convocação das Forças Armadas – ou o estímulo à sua utilização – para que os Poderes Constitucionais sejam submetidos aos interesses do Executivo Federal tem o condão de configurar o crime de responsabilidade descrito nos dispositivos referidos.

436. Por fim, os atentados à liberdade de imprensa, promovidos e incentivados pelo Presidente da República, conformam violação explícita ao direito fundamental à liberdade de expressão e de comunicação, constante no art. 5º, IX, da Constituição da República. Observe-se que a própria Constituição reserva todo o Capítulo V do Título VIII para preservar a comunicação social das ingerências e lesões promovidas pelo Poder Público.

437. Assim, o art. 220, caput, aponta que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,

observado o disposto nesta constituição”. Dessa maneira, salvo para evitar monopólios e oligopólios, o que garante a liberdade de expressão de todas as formas de pensamento, o dispositivo tem o condão de resguardar os meios de imprensa da ingerência dos agentes de Estado, prerrogativa continuamente violada pelo ora Denunciado. Este não apenas promove ataques diretos e diários aos meios de comunicação e seus trabalhadores, como também incentiva a prática de atos criminosos como agressões verbais e físicas contra os mesmos profissionais.

438. Veja-se que tais circunstâncias, parágrafo 2º do mesmo artigo veda “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Tal disposição, porém, vem sendo continuamente frustrada pelos sucessivos incentivos a agressões promovidas contra integrantes da imprensa profissional.

439. Com efeito, importa referir ao julgamento da ADPF nº130/DF, pelo Supremo Tribunal Federal, em que aquela Corte consignou que a liberdade de imprensa constitui categoria jurídica proibitiva de qualquer forma de restrição, por guardar íntima relação com a própria substância da democracia consagrada pela Carta de 1988:

(...) 2. REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome "Da Comunicação Social" (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de "atividades" ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de

civilização. 3. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. A expressão constitucional "observado o disposto nesta Constituição" (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da "plena liberdade de informação jornalística" (§ 1º do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação. (...) 6. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a

Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado "poder social da imprensa". 7. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e "real alternativa à versão oficial dos fatos" (Deputado Federal Miro Teixeira).

(ADPF 130, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001 RTJ VOL-00213-01 PP-00020)

440. Ao tentar frustrar o regime constitucional de liberdades, o Presidente da República comete crime contra o exercício de direito político, individual e social, na forma do art. 85, III, da Constituição e do art. 7º, inciso 9, da Lei nº 1.079/1950. Também atenta contra a honra, o decoro e a dignidade do cargo, ao proferir ofensas de baixo calão contra trabalhadores

dos meios de comunicação, infringindo disposições constitucionais que permitem a aplicação ao caso do art. 85, V, da Constituição e ao art. 9º, item 7, da Lei nº 1.079/1950.

441. A conjugação de evidências fáticas e elementos de amparo jurídico, acima criteriosamente descrita, indicam que os atos viciados de apoio pernicioso e participação deletéria do Presidente da República em manifestações de índole antidemocrática e atentatórias às instituições e garantias da Constituição da República configuram, inexoravelmente, graves crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados e contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, a ensejar o recebimento, processamento e procedência da presente denúncia.

442. Também constitui objeto da presente denúncia o conjunto de episódios envolvendo sucessivas tentativas de interferência do Presidente da República no âmbito de inquéritos da Polícia Federal, mediante a utilização de poderes inerentes ao cargo com o propósito confessado publicamente de concretizar espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais, mediante a determinação anômala de diligências, a exigência de acesso a relatórios de apurações sob sigilo legal e a tentativa de indicação de autoridades da Polícia Federal que estivessem submetidas aos desígnios de natureza privada do ocupante da Presidência da República.

443. Tais elementos repercutem nitidamente em afronta manifesta ao texto da Constituição da república, uma vez que traduzem desprezo aos paradigmas concernentes ao regime republicano, numa perspectiva nociva de apropriação da estrutura do estado a partir de interesses particulares da autoridade máxima do Poder Executivo.

444. Por outro lado, a apreciação desses excessos praticados pelo Presidente da República conforma uma severa transgressão ao princípio da impessoalidade, imponível no âmbito da administração pública, tendo em vista a carência de escrúpulos da autoridade no que se refere ao imperativo de discernimento pleno da dicotomia entre público e privado. Ademais, cumpre referir à

ofensa patente ao princípio da razoabilidade, como instrumento implícito e qualificador de ato de improbidade administrativa, previsto no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 9.429/1992), cuja aplicação enseja caracterização adicional ao enquadramento do Presidente da República em crime de responsabilidade.

445. O somatório de tais reflexões, lançadas sobre os fatos objetivos adiante pormenorizados em específico, conduz à advertência de Pomeroy, escritor estadunidense que, no dizer de Ruy Barbosa, mais proficientemente ventilou a teoria do impeachment. Para o autor citado, a discricionariedade do exercício do cargo presidencial, conquanto admissível, em tese, para respaldar determinadas decisões, encontra limite nas hipóteses de violação deliberada dos termos expressos na Constituição, sobretudo quando o mandatário se desincumba de suas funções de forma “caprichosa, perversa, leviana ou obcecadamente, impassível ante as circunstâncias desastrosas desse proceder”, cabendo nesses casos o julgamento político inerente ao processo de impeachment327.

446. Os fatos relativos ao presente tópico vieram à tona por ocasião do anúncio do pedido de demissão do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, em entrevista coletiva de imprensa ocorrida no dia 24 de abril de 2020, ocasião em que o demissionário acusou o Presidente da República da prática de crimes comuns e de responsabilidade, ao tempo em que, num exercício de sinceridade pouco habitual a tais circunstâncias, admitiu ter tolerado pressões ilícitas sem levá-las a público, a tempo e modo, e expôs as vísceras dos entendimento incomuns que precederam a sua assunção ao cargo de ministro, deixando uma nuvem de obscuridade em torno de supostas contrapartidas que teriam sido negociadas de parte a parte, entre Presidente da República e ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, enquanto permanecera à frente da pasta. Eis trechos das afirmações do ex-ministro Sérgio Moro, em sua entrevista de despedida do cargo, naquilo que interessa à configuração de crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República:

327 BROSSARD, Paulo. O impeachment. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 46-47.

[...] Desde 2014, sempre tive uma preocupação constante de uma interferência do Executivo na investigação, e isso poderia ser feito de diversas formas, como na troca de diretor-geral sem justa causa, troca de superintendente. Tivemos no início da Lava Jato o superintendente Rosalvo Ferreira, que convidei pro Ministério. Depois foi sucedido pelo superintendente Valeixo. Houve a substituição mas ela foi pela aposentadoria do doutor Rosalvo e foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante as investigações. O governo da época (Dilma Roussef, PT) tinha inúmeros defeitos, crimes de corrupção, mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse possível realizar este trabalho. Seja de bom grado ou seja pela pressão da sociedade essa autonomia foi mantida e isso permitiu que os resultados fossem alcançados. Isso até é um ilustrativo da importância de garantir estado de direito, o rule of law, a autonomia das instituições de controle e de investigação. Lembrando até um episódio que num domingo qualquer, lembro que Valeixo recebeu uma ordem de soltura ilegal do ex-presidente Lula, condenado por corrupção e preso, emitida por um juiz incompetente. Foi graças a autonomia de Valeixo que ele comunicou as autoridades e foi possível rever essa ordem de prisão ilegal, antes que ela fosse executada, a demonstrar o empenho dessas autoridades e a importância da autonomia das organizações de controle. [...] Inclusive foi-me prometido carta branca para nomear todos os assessores como a PRF e a PF. Na ocasião, foi divulgado equivocadamente que eu teria estabelecido como condição uma nomeação ao STF. Isso nunca aconteceu. [...] Tem uma única condição que coloquei, que revelo agora, eu disse que como eu estava abandonando minha carreira de 22 anos da magistratura e contribui 22 para a Previdência e pedi que se algo me acontecesse, que minha família não ficasse desamparada sem uma pensão. Foi a única condição que coloquei para assumir a posição no Ministério. O Presidente concordou com todos os compromissos. Falou que me daria carta branca. [...] Em todo esse período tive apoio o presidente em vários desses projetos, outros nem tanto, mas a partir do segundo semestre do ano passado passou a haver uma insistência do presidente da troca do comando da Polícia Federal. Isso inclusive foi declarado publicamente. Houve primeiro o desejo de trocar o superintendente do Rio. Sinceramente não havia nenhum motivo para essa mudança. Mas conversando com o superintendente, ele queria sair do cargo por questões pessoais. Então nesse cenário concordamos eu e o diretor geral em promover essa troca com uma substituição técnica, de um indicado da polícia. É preciso fazer uma referência, eu não indico superintendentes. A única pessoa que indiquei foi o diretor Maurício Valeixo. Não é meu papel fazer a minha indicação de superintendentes. Sempre tenho dado autonomia a minha equipe para que eles façam as melhores escolhas, assim se valoriza a equipe e as escolhas técnicas. Eu tinha notícia quando assumi de que pelo menos havia rumores de que a PRF tinha algumas superintendências por indicações políticas. Escolhi o diretor geral, ele pode testemunhar o que eu disse pra ele. Foi ‘escolha tecnicamente, o que não é aceitável são essas indicações políticas’. Claro que existem indicações positivas, mas quando se começam a preencher esses cargos técnicos principalmente de polícia, com questões político-partidárias, realmente o resultado não é bom para a corporação inclusive. O presidente no entanto também passou a insistir na troca do diretor geral. Eu sempre disse, ‘presidente não tem nenhum problema em trocar o diretor-geral, mas preciso de uma causa’ e uma causa normalmente relacionada a insuficiência de desempenho, um erro grave. No entanto o que eu vi durante esse período e até pelo histórico do diretor que é um trabalho bem feito. Várias operações importantes, combate ao crime organizado e corrupção [...]. Não é uma questão do nome. Tem outros bons nomes para assumir o cargo de diretor da PF. Há outros delegados igualmente competentes. O grande problema de realizar essa troca é que haveria uma violação de uma promessa que me foi feita, de que eu teria carta branca. Em segundo lugar não haveria causa para essa substituição e estaria claro que estaria havendo ali uma interferência política na polícia federal, o que gera um abalo da credibilidade não minha,

mas minha também, mas do governo e do compromisso maior que temos que ter com a lei. E tem um impacto também na própria efetividade da polícia federal, ia gerar uma desorganização. Não aconteceu durante a Lava Jato, a despeito de todos os problemas de corrupção dos governos anteriores. Houve até um episódio que foi nomeado um diretor no passado, com intuito de interferência política e não deu certo ficou pouco mais de três meses a própria instituição rejeitou essa possibilidade. O problema é que nas conversas com o presidente e isso ele me disse expressamente, que o problema não é só a troca do diretor-geral. Haveria intenção de trocar superintendentes, novamente o do Rio, outros provavelmente viriam em seguida como o de Pernambuco, sem que fosse me apresentado uma razão para realizar esses tipos de substituições que fossem aceitáveis. Dialoguei muito tempo, busquei postergar essa decisão, às vezes até sinalizando que poderia concordar no futuro. Até num primeiro momento pensando que poderia ser feito, mas cada vez mais me veio a sinalização de que seria um grande equívoco realizar essa substituição. Ontem conversei com o presidente houve essa insistência. Falei que seria uma interferência política. Ele disse que seria mesmo. Falei que isso teria um impacto pra todos que seria negativo. mas para evitar uma crise durante uma pandemia, não tenho vocação para carbonário, muito pelo contrário acho que o momento é inapropriado para isso eu sinalizei então vamos substituir o Valeixo por alguém que represente a continuidade dos trabalhos, alguém com perfil absolutamente técnico e que fosse uma sugestão minha também, mas na verdade nem minha, da polícia federal. Eu sinalizei com o nome do atual diretor executivo, Disney Rosseti. Nem tenho uma grande familiaridade, mas é uma pessoa de carreira de confiança. E como falei essas questões não são pessoais, têm que ser decididas tecnicamente. Fiz essa sinalização, mas não obtive resposta. O presidente tem preferência por alguns nomes que seriam da indicação dele, não sei qual vai ser a escolha. Foi ventilado o nome de um delegado que passou mais tempo no congresso do que na ativa. Foi indicado o nome do atual diretor da Abin que é até um bom nome dentro da Polícia Federal. Mas o grande problema é que não são tanto essa questão de quem colocar, mas sim por que trocar e permitir que seja feita a interferência política na PF. O presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele que ele pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência, seja diretor-geral, superintendente e realmente não é o papel da polícia federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas. Imaginem se durante a própria Lava Jato, o ministro, diretor-geral ou a então presidente Dilma ficassem ligando para o superintendente em Curitiba para colher informações sobre as investigações em andamento. A autonomia da PF como um respeito a aplicação a lei seja a quem for isso é um valor fundamental que temos que preservar dentro de um Estado de Direito. O presidente me disse isso expressamente, ele pode ou não confirmar, mas é algo que realmente não entendi apropriado. Então o grande problema não é quem entra mas por que alguém entra. E se esse alguém, a corporação aceitando substituição do atual diretor, com o impacto que isso vai ter na corporação, não consegue dizer não pro Presidente a uma proposta dessa espécie, fico na dúvida se vai conseguir dizer não em relação a outros temas. Há uma possibilidade que Valeixo gostaria de sair, mas isso não é totalmente verdadeiro. O ápice de qualquer delegado da PF é a direção geral. E ele entrou com uma missão. Claro que depois de tantas pressões para que saísse, ele de fato manifestou a mim ‘olha talvez seja melhor eu sair para diminuir essa cisma e nós conseguimos realizar uma substituição adequada’, mas nunca isso voluntariamente, mas decorrente dessa pressão que não é apropriada. O Presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF e que a troca também seria oportuna da Polícia Federal por esse motivo. Também não é uma razão que justifique a substituição e é até algo que gera uma grande preocupação. [...]. A exoneração fiquei sabendo pelo DOU. Não assinei esse decreto. Em nenhum momento isso foi trazido ou o diretor geral apresentou um pedido formal de exoneração. Depois me comunicou que ontem a noite recebeu uma ligação dizendo que ia sair a exoneração a pedido, e se ele concordava. Ele disse ‘como é que vou concordar com alguma coisa, vou fazer o que’. O fato é que não

existe nenhum pedido que foi feito de maneira formal. Sinceramente fui surpreendido, achei que foi ofensivo a via que depois a Secom informou que houve essa exoneração a pedido mas isso de fato não é verdadeiro. Para mim esse último ato é uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo porque essa precipitação na exoneração não vejo muita justificativa. De todo modo, meu entendimento foi que não tinha como aceitar essa substituição. Há uma questão envolvida da minha biografia como juiz, de respeito à lei, ao estado de direito, à impessoalidade no trato das coisas do governo. Seria um tiro na Lava Jato se houvesse substituição de delegados, superintendentes naquela ocasião. Então eu não me senti confortável. Tenho que preservar minha biografa, mas também o compromisso que assumi inicialmente, de que seríamos firmes no combate à corrupção, ao crime organizado e à criminalidade violenta. E o pressuposto a isso é que nós temos que garantir o respeito à lei e à própria autonomia da Polícia Federal contra interferências políticas. O presidente indica o diretor-geral, ele tem essa competência, mas assumiu um compromisso comigo de que seria uma escolha técnica que eu faria. O trabalho vem sendo realizado, e o diretor-geral poderia ser alterado desde que houvesse uma causa consistente. Não tendo essa causa consistente e percebendo que essa interferência política pode levar a relações impróprias entre o diretor-geral, o superintendente para com o Presidente da República é aí que não posso concordar. De todo modo agradeço ao presidente, fui fiel ao compromisso que tivemos e acho que estou sendo fiel no atual momento. No futuro, vou começar a empacotar minhas coisas e providenciar o encaminhamento da minha carta de demissão. Eu infelizmente não tenho como persistir com o compromisso que assumi sem que eu tenha condições de trabalho, de preservar a autonomia da Polícia Federal para realizar seu trabalhos ou sendo forçado a sinalizar uma concordância com uma interferência política na Polícia Federal cujos resultados são imprevisíveis. Espero que independentemente da minha saída seja feita a escolha – quem sabe até a própria manutenção do diretor sendo que não existe pedido de exoneração, mas não havendo essa possibilidade que seja feita uma escolha técnica sem preferências pessoais que seja indicado alguém que possa realizar um trabalho autônomo e independente também a instituição vai também resistir a qualquer espécie de interferência política e alguém que não concorde em trocar superintendente delegados por motivos não justificados. [...].

447. Dos trechos destacados, verifica-se a imputação ao Denunciado, pelo ex-ministro da Justiça, de crimes comuns e de responsabilidade. Segundo o que afirmou o ex-ministro, o Denunciado teria atuado para obstruir e embaraçar investigações e processos judiciais que seriam de interesse direto de seus filhos e deputados aliados, inclusive inquéritos que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal328.

448. No dia 24/4/2020, o ex-ministro exibiu ao Jornal Nacional, da Rede Globo, troca de mensagens com o Denunciado que denotam a intenção deste último de interferir na Polícia Federal,

328 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/ao-anunciar-demissao-moro-critica-interferencia-de- bolsonaro-na-pf-e-destaca-autonomia-em-gestoes-do-pt.shtml. Acessado em: 24 de abril de 2020.

de modo a proteger deputados federais de sua base de apoio. No dia 14/5/2020, a Advocacia-Geral da União (AGU) entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) transcrição parcial de vídeo de reunião ministerial ocorrida no dia 22/4/2020. Embora o Denunciado tenha negado, a princípio, que teria mencionado a Polícia Federal na referida reunião, constam, na transcrição, diversas alusões à intenção de interferência no referido órgão, extraídas dos trechos da manifestação da AGU:

Pô, eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forçar Armadas que não têm informações, a ABIN tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente… temos problemas… aparcelamento, etc. A gente não pode viver sem informação. Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta ouvindo o que o seu filho ou a sua filha tá comentando? Tem que ver pra depois… depois que ela engravida não adiante falar com ela mais. Tem que ver antes. Depois que o moleque encheu os cornos de droga, não adianta mais falar com ele: já era. E informação é assim. (...) Então essa é a preocupação que temos que ter: a questão estratégia. E não estamos tendo. E, me desculpe, o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade. (...) Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f* minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira.329

449. Das afirmações transcritas acima, deduz-se a intenção do Denunciado de: a) Obter informações da Polícia Federal além daquelas a que legalmente o Presidente da República tem acesso, a teor da Lei nº 9.883/99 (Sistema Brasileiro de Inteligência), como forma de subsidiar a tomada de decisões estratégicas, isto é, interferir nas atividades policiais para atender a interesses particulares; b) Espionar a atividade da Polícia Federal (“Quem é que nunca ficou atrás da… da… da… porta”); c) Interferir diretamente nas investigações da Polícia Federal (“Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça. Não é extrapolação da minha parte. É uma verdade”); d) Interferir na troca de comando da Polícia Federal no estado do Rio de Janeiro (“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou”). Após a divulgação da manifestação da AGU pela imprensa, em 15/5/2020, o Denunciado admitiu, ainda, ter mencionado a Polícia Federal na reunião ocorrida no

329 https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-admite-ter-citado-policia-federeal-em-reuniao-ministerial-apos-negar- mencao-por-uma-semana-24428509

dia 22/4/2020330, embora tenha tentado afirmar que a sigla utilizada (“PF”) diria respeito à segurança familiar – o que é inconcebível, tendo em vista que a segurança do Presidente da República e de seus familiares é de responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não da Polícia Federal.

450. Essas intenções de uso do aparato policial judiciário como se fosse a Polícia Federal um tipo de polícia particular, polícia política, polícia de governo ou polícia do Presidente, haviam sido confessadas pelo Denunciado em pronunciamento ocorrido no dia 24/4/2020. Na ocasião, o Denunciado, confirmando parte das acusações do ex-Ministro Sérgio Moro, confessa que, em inúmeras ocasiões, procurou interferir e influenciar a condução de investigações da Polícia Federal, como nos casos do atentado que sofrera em Juiz de Fora, ainda na campanha presidencial, e no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco: “Falava-se em interferência minha na Polícia Federal. Oras bolas: se eu posso trocar um ministro, por que eu não posso, de acordo com a lei, trocar o diretor da Polícia Federal? Eu não tenho que pedir autorização para ninguém para trocar o diretor ou qualquer um outro que esteja na pirâmide hierárquica do Poder Executivo. Será que é interferir na Polícia Federal quase que exigir, implorar a Sergio Moro, que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro? A PF de Sergio Moro mais se preocupou com Marielle do que com seu chefe supremo. Cobrei muito deles isso daí. Não interferi. Eu acho que todas as pessoas de bem no Brasil querem saber. Entendo, me desculpe senhor ex-ministro: entre meu caso e o da Marielle, o meu está muito menos difícil de solucionar. Afinal de contas, o autor foi preso em flagrante de delito, mais pessoas testemunharam, telefones foram apreendidos. Três renomados advogados, em menos de 24 horas, estavam lá para defender o assassino. Isso é interferir na Polícia Federal? Será que pedir à Policia Federal, quase implorar, via ministros, que fosse apurado o caso Marielle, no caso porteiro da minha casa 58, na avenida Lúcio Costa, 3.100? Quase que por acaso descobrimos. Se não pedisse para meu filho ir à portaria e filmar a secretária eletrônica, talvez ficasse a dúvida para todos que eu poderia estar envolvido nisso. Isso foi numa quarta-feira de março de 2018, onde entre a ligação do porteiro para a minha casa e as minhas digitais nos painéis de presença da Câmara tinha um espaço de menos de uma hora. Eu não estava lá. Depois, a perícia da Policia Civil do Rio ainda chega à conclusão que aquela voz não é a voz do porteiro em questão. Será

330 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/15/bolsonaro-admite-que-falou-pf-na-reuniao-ministerial-mas-que-a- interferencia-nao-e-na-inteligencia-mas-na-seguranca-familiar.ghtml

que é interferir na Polícia Federal exigir uma investigação sobre esse porteiro, o que aconteceu com ele? Ele foi subornado? Ele foi ameaçado? Ele sofre das faculdades mentais? O que aconteceu para ele falar com tanta propriedade um fato que existiu há praticamente um ano atrás? É exigir da Polícia Federal muito, via senhor ministro, para que esse porteiro fosse investigado? Com todo o respeito a todas as vidas do Brasil, acredito que a vida do presidente da República tem um significado. Afinal de contas, é um chefe de Estado. Isso é interferir na Policia Federal? Cobrar isso da sua Polícia Federal? Confesso que, ao longo do tempo, como bem vos lhes disse, uma coisa é ter uma imagem, conhecer uma pessoa. A outra é conviver com ela. Nunca pedi para ele para que a PF me blindasse onde quer que fosse. […] E outra coisa: é desmoralizante para o presidente ouvir isso. Mais ainda externar. Ou não trocar, porque não foi trocado, sugerir a troca de dois superintendentes entre 27. O do Rio, (pela) questão do porteiro, a questão do meu filho 04, Renan, que agora tem 20, 21 anos de idade. Quando, no clamor da questão do porteiro, do caso Adélio, que os dois ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu filho 04 teria namorado a filha desse ex-sargento. Eu comecei a correr atrás. Primeiro chamei meu filho (e falei): "abre o jogo". "Pai, eu saí com metade do condomínio, nem lembro quem é essa menina, se é que eu estive com ela". Hoje a vida é assim. A intenção de dizer que meu filho namorava a filha do ex-sargento era que nós tínhamos relacionamento familiar. Eu não me lembro dele. Pode ser até que tenha tirado foto com ele — durante pré-campanha, campanha, era comum eu tirar em media 500 fotografias por dia, porque essa era minha imprensa. E daí eu fiz um pedido para a Polícia Federal, quase como por favor: chegue em Mossoró (RN) e interrogue o ex-sargento. Foram lá, a PF fez o seu trabalho, interrogou e está comigo a cópia do interrogatório onde ele diz simplesmente o seguinte: "A minha filha nunca namorou o filho do presidente Jair Bolsonaro porque minha filha sempre morou nos Estados Unidos". Mas eu é que tenho que correr atrás disso? Ou é o ministro, a Polícia Federal que têm que se interessar? Não é para me blindar porque eu não estou incurso em nenhum crime. [...]331”.

451. Os fatos aludidos levaram o Supremo Tribunal Federal a instaurar, por provocação do Procurador-Geral da República, o Inquérito nº 4.831332 . Dos elementos colhidos a partir do discurso do próprio Denunciado, sobressai a constatação de que as condutas por si assumidas

331 https://www.youtube.com/watch?v=McN7xWdV4Rs 332 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442502

demonstram a ocorrência de crimes de responsabilidade, a teor do artigo 85, III e V, da Constituição, e dos artigos 7º, item 5, 9º, itens 4, 5, 6 e 7, da Lei nº 1.079/50. Destaca-se, por fim, que é irrelevante que o Denunciado tenha ou não alcançado êxito na intenção de interferência na Polícia Federal, vez que a Lei nº 1.079/50 também alcança os crimes tentados.

f) Fatos e condutas relacionados às ameaças à soberania nacional, ao respeito à autodeterminação dos povos, à defesa da paz e à cooperação entre os povos para progresso da humanidade.

452. A análise da responsabilidade jurídica do atual mandatário da Presidência da República demanda, ainda, a apreciação de suas condutas à luz dos imperativos decorrentes do Direito Internacional Público.

453. A relação dos Estados com a comunidade internacional pressupõe o pleno respeito às normas decorrentes de tratados e convenções firmados em âmbito supranacional. O avanço recente desse campo específico da normatividade jurídica tem implicado o reconhecimento de que eventual transgressão a tais ditames impõe a submissão das nações aos princípios de responsabilidade internacional dos Estados.

454. Do ponto de vista histórico, o momento posterior à Segunda Guerra Mundial costuma ser fixado como o marco principal de desenvolvimento dos principais pactos e entendimentos que puseram em atividade uma rede universal de direitos humanos para a promoção da paz e da segurança internacional e, mesmo com a imposição da Guerra Fria e de modelos de Estado que priorizavam elencos específicos de direitos, foi possível avançar nos consensos contra a tortura, contra as odiosas práticas de violação de direitos experimentada em contextos de guerra, bem como a violação direcionada à população civil e sujeitos mais vulneráveis, como mulheres, crianças e população autóctone.

455. Durante parte relevante do período de emergência de referidas normas jurídicas, o Brasil experimentava um momento de descompasso com as tendências democratizantes e vivia os anos de chumbo da ditadura civil-militar. Somente com a Constituição de 1988, que enumerou os princípios regentes de atuação do país no campo das relações exteriores, o Brasil passou a assegurar amplo respaldo às normas decorrentes do direito internacional, consoante se extrai do art. 4º:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino- americana de nações.

456. Desde então, nos sucessivos governos a partir da redemocratização, os princípios fundamentais das relações internacionais passam a ser parâmetro inafastável de relações com países independentes e restabeleceram a vocação histórica da diplomacia altiva e pacifista, agregando a essa trajetória a missão de promover e priorizar a integração com os povos latino-americanos.

457. No entanto, durante o governo do ora Denunciado, tem-se ignorado a trajetória anterior da diplomacia brasileira e subvertido os comandos constitucionais nesse segmento, promovendo-se uma guinada sem precedentes que destrói o trabalho de acúmulo sucessivo em matéria

de soft power e desqualifica a diplomacia pautada pelo entendimento progressivo e coordenado entre os povos. 458. Significativo observar que, em recente debate promovido pela Universidade de Harvard, durante a prestigiada Brazil Conference, os ex-chanceleres Celso Amorim, Celso Lafer e Aloysio Nunes Ferreira, bem como ex-Ministro da Fazenda e ex-embaixador em Washington, Rubens Ricupero, além do ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, Hussein Kalout, foram unanimes em condenar a condução da política externa de Jair Bolsonaro, concluindo que “o Brasil está contra o mundo, impondo um autoisolamento”333.

459. Tal constatação decorre de posturas concretas de Jair Bolsonaro no curso de seu mandato como Presidente da República, as quais põem em xeque a prevalência dos interesses nacionais, a soberania brasileira, a reciprocidade entre as nações e a política de paz e respeito à autodeterminação dos povos.

460. Veja-se que, já no seu primeiro ato como chefe de Estado em missão internacional, o Denunciado empreendeu intensa agenda de desarticulação de atributos da soberania brasileira. Em março de 2019, poucos meses após a sua posse, Bolsonaro compareceu em visita oficial aos Estados Unidos da América, durante a qual anunciou que o Brasil abdicaria de suas vantagens competitivas junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) em troca de uma ilusória promessa de apoio norte- americano ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)334.

461. Observe-se que o tratamento diferenciado do Brasil perante a OMC garantia-lhe condição mais benéfica nas negociações com países de economia mais desenvolvida, favorecendo as exportações e as contas externas nacionais, bem como as políticas de incentivo à produção interna. Por outro lado, o apoio ao ingresso na OCDE, até o presente momento, não se traduziu em medidas concretas que favoreçam a economia nacional ou as condições sociais e políticas dos cidadãos brasileiros perante a comunidade internacional.

333 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brazil-conference-debate-politica-externa-com-ex-chanceleres- siga,70003286305. 334 https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-03/brasil-abrira-mao-de-direitos-na-omc-para-ingressar-na- ocde.

462. O relacionamento do atual governo com os Estados Unidos da América, diga-se, denota a absoluta inobservância aos preceitos da reciprocidade nas relações bilaterais com as nações e a completa subserviência a interesses estranhos ao desenvolvimento nacional. Prova disso é a isenção de exigência de visto para que cidadãos estado-unidenses ingressem em território brasileiro em um contexto no qual resta cada vez mais restrito o ingresso de cidadãos brasileiros em território norte-americano335. Tal conduta rompe com o paradigma da reciprocidade e igualdade entre os Estados e se assenta sobre premissas discriminatórias a respeito dos cidadãos brasileiros, consoante se extrai do discurso do próprio Denunciado336.

463. A aproximação subserviente em relação aos interesses norte-americanos contrasta, por outro lado, com um isolamento cada vez maior em relação às demais nações. A posição brasileira em fóruns internacionais tem conduzido o país a se deslocar da sua posição de solidariedade e cooperação em direção a comportamentos divisionistas, que vêm sendo percebidos pela cúpula dos organismos multilaterais como movimentos no sentido de esvaziar os espaços de construção de políticas globais337.

464. Como resultado da violação de compromissos previamente firmados pelo Estado Brasileiro, bem assim em virtude dos posicionamentos exarados em comitês temáticos e organizações internacionais, o país tem sido alvo de sanções difusas, tais como recuos em acordos de comércio (tal como aquele entabulado entre o Mercosul e a União Europeia, fortemente atingido pela política ambiental interna descomprometida com os pactos internacionais de proteção aos ecossistemas338) e distanciamento de posições estratégicas em organismos multilaterais (vide, por exemplo, a cada vez mais improvável admissão na OCDE, decorrente da ingerência presidencial em órgãos anticorrupção e na proteção da Amazônia339).

335 https://exame.com/brasil/bolsonaro-publica-decreto-que-cancela-visto-dos-eua-e-mais-tres-paises/. 336 https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/03/19/bolsonaro-diz-que-liberou-visto-porque-turistas-americanos-nao-vao- ao-brasil-em-busca-de-emprego.ghtml. 337 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/26/aos-75-anos-onu-e-alvo-de-campanha-inedita-do-brasil- para-esvazia-la.htm. 338 https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-25/desmatamento-sob-bolsonaro-afasta-investidores-e-ameaca-acordo- mercosul-uniao-europeia.html. 339 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/30/ocde-critica-interferencia-de-bolsonaro-em-luta-anti- corrupcao-e-amazonia.htm

465. As condutas da diplomacia brasileira têm causado, ainda, ameaças ao comércio exterior, como aquelas provenientes da China – maior compradora de produtos agrícolas brasileiros340. Ameaçam, por outro lado, a estabilidade e paz internas, ao promoverem abertamente o fomento de conflitos com nações como a Venezuela341 e a Palestina342, em franco desrespeito à autodeterminação daquelas nações e em oposição à postura negocial priorizada historicamente pela diplomacia brasileira.

466. Relativamente à Venezuela, veja-se que o Presidente da República, em meio à pandemia da COVID-19, tentou expulsar do território brasileiro – sem que existissem até mesmo meios de transporte para tal – o corpo diplomático daquele país, investida que somente não foi levada às últimas consequências em razão da intervenção do Supremo Tribunal Federal343.

467. O governo Bolsonaro também tem se distanciado do cumprimento das determinações provenientes do sistema interamericano de direitos humanos no que tange aos processos de preservação da memória e da verdade históricas. Marca registrada dos processos de redemocratização na América Latina foi a revisão da herança autoritária em cada país e a revogação dos pactos normativos de anistia, consideradas leis do silêncio ou do esquecimento. Mesmo que, no Brasil, a Lei de Anistia nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, não tenha sido revogada, é de se valorizar o acúmulo de anos de consciência histórica e luta pelos direitos à verdade, justiça e reparação, processo que representou um valoroso marco de revisão para que os tristes eventos históricos que marcaram o país antes da Constituição de 1988 não sejam esquecidos ou repetidos.

468. O governo Jair Bolsonaro, bem assim o comportamento individual do Presidente, fizeram do combate à memória histórica uma das mais importantes plataformas do seu governo. Passou- se a combater todo o acúmulo de políticas da justiça de transição e consensos que são fruto da luta pela vida e pela sobrevivência de milhares de pessoas durante a ditadura militar, defendendo-se abertamente o regime autoritário que perdurou entre 1964 e 1985344 e seus agentes345. Essa responsabilidade é interna – desmonte de políticas públicas e legado de redemocratização – e internacional, pois os consensos

340 https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/politica/2018/10/655095-china-faz-alerta-a-bolsonaro-e-diz-que-custo- pode-ser-grande-ao-brasil.html. 341 https://www.correiodobrasil.com.br/bolsonaro-fala-guerra-contra-venezuela-irrita-militares-brasileiros/ 342 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47751065. 343 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/barroso-suspende-ordem-do-governo-bolsonaro-de-expulsao-de- diplomatas-venezuelanos.shtml. 344 https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/bolsonaro-comemora-golpe-militar-de-1964-dia-da-liberdade. 345 https://veja.abril.com.br/politica/em-israel-bolsonaro-defende-homenagem-a-torturador-da-ditadura-militar/.

sólidos a respeito das ditaduras latino-americanas estão plasmados nas cartas convencionais e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

469. Não por acaso, em apenas um ano, o ora Denunciado foi alvo de 37 acusações perante instâncias internacionais346, fato que, por si, traduz o desmonte dos mecanismos de proteção aos direitos humanos por intermédio da desinstitucionalização das políticas públicas em amplo espectro, sendo especialmente alarmantes a questão indígena347 e a destruição das políticas ambientais348.

470. A questão da proteção à Amazônia, em particular, tem representado sérios prejuízos para a diplomacia brasileira, uma vez que o intenso desmatamento verificado desde o início da gestão Bolsonaro é estimulado por pronunciamentos pessoais do Presidente da República e ministros em exercício, tal como já demonstrado no tópico específico dirigido à temática ambiental. Tal postura submete o país a ameaças de sanções internacionais e pode ocasionar sérios prejuízos diplomáticos, econômicos e sociais.

471. A partir do mês de abril de 2020, as denúncias contra o Brasil passaram a contemplar a condução inadequada diante da crise pandêmica da COVID-19. Relatores da ONU pronunciaram-se imediatamente diante dos primeiros passos da estratégia no combate à doença, denunciando o governo brasileiro diante do que chamam de “políticas irresponsáveis” durante a pandemia da Sars-CoV-2. Em um comunicado, eles apontaram que o Brasil deveria abandonar imediatamente “políticas de austeridade mal orientadas que estão colocando vidas em risco” e “aumentar os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia”, uma vez que “As políticas econômicas e sociais irresponsáveis do Brasil colocam milhões de vidas em risco”349.

472. Se as denúncias dizem respeito ao governo como um todo, é importante destacar que a conduta individual do Presidente da República também tem merecido destaque entre as denúncias internacionais. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia acionou o Tribunal Penal Internacional para denunciar pessoalmente a conduta do Presidente em analogia ao crime de epidemia,

346 https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/certas-palavras/bolsonaro-denuncias/. 347 https://cimi.org.br/2020/06/indigenas-amazonicos-estao-em-grave-risco-frente-ao-covid-19-alertam-onu-direitos- humanos-e-cidh/. 348 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/12/02/deputados-denunciam-brasil-na-onu-por-desmantelamento- de-politica-ambiental.htm. 349 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/29/relatores-da-onu-denunciam-governo-por-colocar-milhoes- de-vidas-em-risco.htm.

agravado para pandemia, e fazendo uso do sentido ampliado de crimes de lesa humanidade previsto no artigo 7º do Estatuto de Roma350. É importante compreender que a conduta de Jair Bolsonaro como representante máximo de acordo com o mandato constitucionalmente estabelecido gera imediatas consequências de mando, de comando governamental e de exemplo como autoridade maior, para além do comportamento pessoal que, com tal displicência, com ou sem dolo, poderá atingir diretamente um grupo expressivo de pessoas.

473. Tais circunstâncias apontam para uma crescente tendência de responsabilização internacional do Estado Brasileiro e colocam em risco os preceitos determinantes das relações internacionais, preconizados pela Constituição de 1988, bem como a soberania nacional e a segurança interna do país.

474. Patentes, pois, as condutas descritas no art. 85, I e IV, da Constituição, no artigo 5º, incisos 6 (pelos acordos subservientes e prejudiciais ao interesse nacional entabulados pelo Presidente da República), 7 (pela tentativa de expulsão de diplomatas venezuelanos) e 11 (pelas violações a tratados internacionais em matéria de direitos humanos e proteção ambiental), e no artigo 8º, inciso 8 (também pelo descumprimento de normas jurídicas extraídas de acordos e tratados internacionais), da Lei nº 1.079/1950.

g) Fatos e condutas relacionados à improbidade na Administração Pública e à apropriação das instituições públicas por interesses particulares

475. Desde o início da pandemia, a sociedade civil e outras autoridades públicas no país tem alertado para a necessidade de criação de um plano nacional e da importância do alinhamento com as diretrizes estipuladas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, passados mais de cem dias do início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, “o governo federal não apresentou até o momento nenhum plano integrado de contenção do vírus e defesa das vidas, em especial as da

350 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/04/03/coronavirus-bolsonaro-e-Denunciado-no-tpi-por-crime- contra-a-humanidade.htm.

população mais vulnerável à pandemia e à crise”351, como denuncia o Observatório dos Direitos Humanos na Crise da Covid-19352.

476. Segundo o Observatório, “com respostas governamentais que priorizam “salvar a economia”, em detrimento de salvar vidas (veja abaixo), o Estado Brasileiro tem gerado um custo sobre a vida e a saúde de uma parcela da população, já vulnerável e marginalizada do acesso a bens, serviços e direitos”. Assim, “a manifestação da pandemia se mostra ainda mais intensa e mais grave para os grupos sociais e população que já são violentados ou ignorados pelo Estado Brasileiro. Com alta densidade populacional, casas muito próximas, falta de saneamento e de oferta de água regularizada, e menos providas de demais serviços públicos – condições essenciais para proteção ao coronavírus, as favelas e cortiços apresentam maior letalidade do que em bairros ricos das grandes cidades”.353

477. A inércia do Governo Federal no Brasil tem um impacto imediato sobre os direitos da população, em flagrante dissonância em relação às diretrizes do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, segundo as quais, no contexto da pandemia, é preciso reforçar a proteção, tanto médica quanto econômica, dos grupos mais vulneráveis e negligenciados da sociedade. 354

478. Merece destaque, ainda, o fato de que, em meio a uma crise sanitária da maior gravidade, o Brasil encontra-se sem Ministro da Saúde desde 15 de maio, ou seja, há mais de 50 dias.355

351 https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Observatorio-DH-covid-junho.pdf Aceso em: 29 jun 2020. 352 O Observatório dos Direitos Humanos na Crise da Covid-19 é uma ação de um conjunto de organizações sociais e movimentos populares, de um espectro diverso dos direitos humanos, para monitorar, formular e sistematizar informações relativas aos direitos humanos no contexto da pandemia de coronavírus. Integram o Observatório a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos(ABGLT); Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB); Associação Juízes para a Democracia (AJD); Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); Anistia Internacional; ARTIGO 19; Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea); Coalizão Negra por Direitos; Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq); Criola; GeledésInstituto da Mulher Negra; Instituto de Estudos Socioeconômicos(Inesc); Justiça Global; Movimento de Mulheres Camponesas(MMC); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Plataforma DHESCA; SOS Corpo; e Terra de Direitos. Disponível em: https://www.facebook.com/ObservaDHeCovid19/ 353 https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Observatorio-DH-covid-junho.pdf Aceso em: 29 jun 2020. 354 United Nations Human Rights. Coronavirus: Human rights need to be front and centre in response, says Bachelet. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25668&LangID=E. 355 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/15/teich-deixa-o-ministerio-da-saude-antes-de-completar-um-mes-no- cargo.ghtml

E as sucessivas trocas no Ministério, vale ressaltar, decorrem da discordância das equipes técnicas com o Presidente da Repúblicas sobre as medidas para combater a covid-19, notadamente, o descompasso com as orientações internacionais para enfrentamento da crise.

479. Tem se observado, a partir da experiência de outros países, que a capacidade dos Estados de enfrentar a pandemia está relacionada com as estruturas de proteção social e garantia de direitos já existentes e aquelas desenvolvidas no contexto da pandemia 356. Como bem aponta o estudo elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), o Brasil, sétimo país mais desigual do mundo (PNUD, 2019), antes mesmo da pandemia, já se encontrava com a “imunidade baixa”. Isso porque a Emenda Constitucional nº 95 e outras medidas de austeridade fiscal reduziram recursos de programas sociais importantes para o combate a pandemia de COVID-19, comprometendo a capacidade do país de enfrentar seus graves efeitos durante e após a crise sanitária.

480. Dezenas de organizações de direitos humanos brasileiras, articuladas na Coalizão Direitos Valem Mais357, têm Denunciado perante a Suprema Corte o “imenso sofrimento gerado à população em decorrência da terrível combinação no país do desmantelamento das políticas sociais e da profunda crise econômica com a chegada da pandemia”.

481. No mês de abril, dois Relatores Especiais das Nações Unidas - Juan Pablo Bohoslavsky, o especialista independente em direitos humanos e dívida externa, e Philip Alston, o Relator Especial sobre pobreza extrema – afirmaram em nota à imprensa que “o Brasil deveria abandonar imediatamente políticas de austeridade mal orientadas que estão colocando vidas em risco e aumentar os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbada pela pandemia da COVID- 19”. 358

482. Diante desse cenário, a Coalizão Direitos Valem mais lançou Alerta Público sobre a insustentabilidade do Teto do Gastos e sobre a execução orçamentária baixa, lenta e desigual regionalmente nas operações de enfrentamento à pandemia. Informam e repudiam o fato de que

356 Disponível em: https://www.inesc.org.br/obrasilcombaixaimunidade/ 357 https://direitosvalemmais.org.br/ 358 https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25842&LangID= E

“apenas 25% da já baixa dotação orçamentária para saúde e somente 12% dos recursos do orçamento para repasse da União aos Fundos de Participação de estados, municípios e distrito federal tenham sido executados”. 359

483. A baixa execução do orçamento destinado ao combate à pandemia é objeto de inquérito instaurado pelo Ministério Público Federal para apurar “irregularidades na execução dos recursos federais destinados ao enfrentamento da COVID-19”, vez que “foram disponibilizados R$ 11,74 bilhões pelo Ministério da Saúde, mas somente foram usados R$ 2,59 bilhões” e “apenas R$ 804,68 milhões foram efetivamente pagos até 27 de maio, o que equivale a 6,8% dos recursos disponíveis para o enfrentamento da pandemia”.360

484. O desrespeito do governo Bolsonaro às medidas adequadas de enfrentamento da pandemia é evidente em falas e comportamentos públicos noticiados pela imprensa. De fato, chega a causar muito espanto ver o Presidente da República, de forma irresponsável e inconsequente, dar declarações, minimizando a gravidade da pandemia pela covid-19. Dentre os absurdos proferidos pelo Presidente podem ser citados os de chamar o COVID-19 de “gripezinha”, “fantasia”, “histeria.

485. Além disto, o Presidente criticou publicamente ações acertadas que governadores adotaram em seus estados. Infelizmente, as medidas propostas pelos estados para reduzir o fluxo de pessoas entre os estados, que poderia circunscrever a maioria dos casos em poucas regiões e não no País como um todo, foram revogadas pelo Governo Federal através da MP 926/2020 em mais uma atitude irresponsável e totalmente injustificada.361

486. O desrespeito do governo ao povo se expressa ainda em documentos oficiais que deveriam ser pautados pelo conhecimento técnico-científico. Um exemplo é o Boletim Epidemiológico nº 7 do Ministério da Saúde (MS), publicado no dia 6/4/2020, que recomenda que “...municípios, Distrito Federal e Estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o

359 https://direitosvalemmais.org.br/wp- content/uploads/2020/06/AlertaPublico_BaixaExecucaoOrcamentaria_junho2020.pdf.pdf. P. 1. 360 Ibdem. P. 2. 361 https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1231-nota-cns-lamenta-as-50-667- mortes-por-covid-19-no-brasil-um-marco-evitavel-causado-pelo-descaso-do-estado

número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS)”.

487. Registre-se que o Conselho Nacional de Saúde se insurgiu contra essa recomendação, defendendo a manutenção das medidas de DSA e avaliando que a transição para o DSS poderia trazer agravos à situação emergência no país362.

488. Em linha semelhante, estão as “Orientações do Ministério da Saúde para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”, publicadas no dia 20 de maio de 2020. Essas orientações oficiais, mesmo reconhecendo a inexistência de benefício comprovado do tratamento, autorizam o uso de Cloroquina e Hidroxicloroquina para tratar sintomas leves da doença e ampliam seu uso para todos os pacientes infectados. Além do CNS, a Sociedade Brasileira de Infectologia 363 e a Sociedade Brasileira de Bioética 364 manifestaram-se publicamente contra essas orientações.

489. Além de não existir evidência científica que comprove o benefício do uso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina no tratamento dos pacientes acometidos pela covid-19, são medicamentos que têm conhecidos efeitos colaterais e potenciais riscos. Outros efeitos deletérios da recomendação foram estimular a automedicação da população e passar a falsa crença da efetividade da medicação, fazendo com que as pessoas reduzam os cuidados de proteção e o distanciamento social. No caso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina, vale acrescentar que o governo tem investido vultosas somas na produção desses medicamentos em laboratórios militares, conforme amplamente noticiado.

362 Nota pública: CNS defende manutenção de distanciamento social conforme define OMS https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1102-nota-publica-cns-defende-manutencao-de-distanciamento- social-conforme-define-oms 363 Sociedade Brasileira de Infectologia. Informe sobre o novo coronavírus n° 13: esclarecimentos científicos sobre orientações que propõem o uso universal da cloroquina ou hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 https://www.infectologia.org.br/admin/zcloud/137/2020/05/d4826f984f26ea5dc55119e087716868e8e62dc3a4dc5f31349b2 844aeaeafd6.pdf 364 NOTA PÚBLICA: SBB solicita revogação imediata da orientação do Ministério da Saúde sobre uso da cloroquina em pacientes com COVID-19. http://www.sbbioetica.org.br/Noticia/777/NOTA-PUBLICA-SBB-solicita-revogacao-imediata- da-orientacao-do-Ministerio-da-Saude-sobre-uso-da-cloroquina-em-pacientes-com-COVID-19

490. A difusão de notícias falsas relativas à pandemia, diga-se, tem sido uma constante do atual governo e da conduta do Denunciado, em particular, como se extrai das seguintes declarações:

“Quem esperava, depois de meses difíceis, chegarmos a uma situação de quase normalidade, ainda em 2020?” – dezembro de 2020365.

“O idiota que está dizendo que eu sou um péssimo exemplo... eu já tive o vírus, eu já tenho anticorpos, para quê tomar vacina de novo? (...) Na Pfizer, tá bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você” – dezembro de 2020366.

“A pandemia, realmente, ela tá chegando ao fim, os números têm mostrado isso aí. Estamos com uma pequena ascensão agora, mas a pressa da vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas, vai inocular algo em você” – dezembro de 2020367.

“Não faz mal a hidroxicloroquina, não faz mal a ivermectina, Annita a mesma coisa, é um ‘lombrigueiro’, toma um ‘lombrigueiro’” – janeiro de 2021368.

“Começam a aparecer estudos, não vou entrar em detalhes, sobre o uso de máscaras, com irritabilidade, dor de cabeça, dificuldade de concentração, diminuição da percepção de felicidade” – fevereiro de 2021369.

“A Coronavac... o prazo de validade dela parece que é de em torno de 6 meses, e muita gente tem tomado e não tem anticorpo nenhum, então essa vacina não tem comprovação científica ainda” – junho de 2021370.

“Não é conclusivo, mas em torno de 50% dos óbitos por COVID no ano passado não foram por COVID, segundo o Tribunal de Contas da União” – junho de 2021371.

491. A conduta pode ser enquadrada no art. 9º, 7, da Lei nº 1.079/1950 (proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo) e gera implicações deletérias para a credibilidade das informações de saúde em momento crucial do enfrentamento do coronavírus, além de difundir desinformação a respeito da conduta de profissionais de saúde e cientistas dedicados à questão.

492. O desrespeito é patente ainda em ofensas do presidente da República aos profissionais de saúde e na incitação a ações que comprometem o funcionamento dos serviços e põem

365 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/12/16/interna_politica,1221189/bolsonaro-quem-esperava-chegarmos- a-uma-quase-normalidade-em-2020.shtml. 366 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/12/4895582-bolsonaro-o-imbecil-eu-ja-tive-o-virus-para-que- tomar-vacina.html. 367 https://www.poder360.com.br/governo/a-pressa-da-vacina-nao-se-justifica-diz-jair-bolsonaro/. 368 https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/01/05/interna_politica,1226054/ivermectina-bolsonaro-volta-a- defender-remedio-para-parasitas-contra-covid.shtml. 369 https://extra.globo.com/noticias/estudo-alemao-sobre-mascaras-citado-por-bolsonaro-enquete-on-line-questionada-por- cientistas-24901349.html. 370 https://www.metropoles.com/brasil/bolsonaro-desacredita-a-coronavac-validade-parece-que-e-de-6-meses. 371 https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-diz-que-tcu-questiona-50-das-mortes-por-covid-em-2020/.

em risco a segurança e a vida de pacientes e trabalhadores de saúde. Em claro exemplo dessas ofensas e incitações, no dia 11 de junho de 2020, o presidente insuflou a população a invadir hospitais e serviços de saúde para fotografar e filmar os atendimentos de profissionais, acusando-os de estarem negligenciando o cuidado para salvar as vidas dos pacientes.

493. À agressão aos profissionais, se soma à falta de alocação de profissionais de saúde para o enfrentamento da pandemia. Efetivamente, não tem havido a contratação de novos profissionais, mesmo onde houve ampliação do número de leitos hospitalares e de UTI. Mesmo programa Brasil Conta Comigo, lançado para emergência da covid-19 tem sido negligenciado, com profissionais deixados sem salários.372

494. A falta de medidas para suprir a necessidade de profissionais não se limita aos hospitais. Também atinge a Atenção Básica que, pela carência de uma orientação nacional tem atuado de forma heterogênea na pandemia, sem aproveitar o seu potencial na execução de ações contundentes de contenção da doença, sobretudo nos municípios que têm boa cobertura para a Estratégia Saúde da Família. A capilaridade da distribuição dos agentes de saúde, por exemplo, não tem sido suficientemente aproveitada para fazer chegar à população das áreas cobertas uma mensagem clara de como proteger da covid-19 a comunidade em geral e, em particular, os idosos e as pessoas com condições crônicas, no interior dos seus domicílios.

495. Uma das estratégias para suprir a necessidade de médicos na Atenção Básica é o Programa Mais Médicos que foi duramente criticado por Bolsonaro desde o início do seu governo, chegando a lançar em agosto de 2019 o Programa Médicos pelo Brasil, mas que não chegou a fazer contratações.

496. Diante da pressão da sociedade civil e dos parlamentares, em março de 2020, o governo admitiu que precisaria retomar o Mais Médicos para o enfrentamento da covid-19. Foram lançados editais de convocação de médicos, com muitas vagas não preenchidas e o governo insiste em descumprir a legislação deixando de convocar os médicos brasileiros formados no exterior, que estão

372 https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/06/25/profissionais-enviados-ao-am-para-combate-a-covid-19- cobram-salario-atrasado.ghtml

em segundo lugar na ordem de chamada para participar do Mais Médicos, quando as vagas não são preenchidas pelos médicos brasileiros formados no Brasil.

497. Ao desrespeito se soma o descaso com as medidas de enfrentamento da pandemia demonstrado, em primeiro lugar, pelo fato de o Ministério da Saúde estar desde 15/5/2020 com um dirigente interino de notória incompetência técnica para assumir a função. Em segundo lugar, o descaso se evidencia na baixa execução orçamentária dos recursos financeiros alocados ao SUS, em geral, e ao enfrentamento da pandemia, em particular. Saliente-se que a falta de uso dos recursos financeiros tem sido repetidamente denunciada.

498. Com efeito, no dia 18 de junho de 2020, o CNS e mais 23 Conselhos Estaduais de Saúde lançaram o Manifesto “Repassa Já”, cobrando do Ministério da Saúde o repasse e a utilização de R$ 8,489 bilhões que ainda não foram empenhados. Ressalte-se que se tratam de recursos específicos para enfrentamento à pandemia, oriundos de Medidas Provisórias de crédito extraordinário373.

499. Uma semana depois do lançamento do Manifesto, no dia 25 de junho de 2020, a Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS publica boletim374 em que informa que estão parados, sem uso, no orçamento do Ministério da Saúde, R$ 25,7 bilhões destinados ao combate à pandemia de covid-19, o que corresponde a 66% de um total de R$ 39 bilhões.

500. Na verdade, desde o início da pandemia, a Cofin vem chamando a atenção dos dirigentes do Ministério da Saúde (MS) para a morosidade do uso das verbas. Essa morosidade é fruto da indefinição da direção do MS quanto à aplicação dos recursos em transferências para estados e municípios ou em compras centralizadas de equipamentos e insumos para o combate à Covid-19. Em consequência, os recursos não foram ainda empenhados, nos termos da Lei nº 4.320/1964, e se encontram sem uso, ao tempo em que pacientes e profissionais de saúde sofrem com a escassez dos insumos e equipamentos necessários à realização das ações de cuidado à saúde.

373 . https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1186-cns-e-conselhos-estaduais-se-unem-para-exigir-do-ms- financiamento-integral-do-sus-frente-a-pandemia 374 https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1241-dinheiro-para-enfrentamento-a-covid-19-que-esta-parado-no- ms-daria-para-comprar-428-mil-respiradores-mostra-boletim-do-cns

501. Em alerta ao Governo divulgado amplamente na imprensa em 24/06/2020 o Tribunal de Contas da União - TCU referiu a falta de diretrizes estratégicas para combater a pandemia do novo coronavírus, "como denota a saída de dois ministros da Saúde num intervalo de um mês, durante a maior pandemia deste século”. O alerta apontou ainda que há falta de gerenciamento de risco e ausência de profissionais da área da saúde atuando para mitigar a disseminação da doença.

502. Esse descaso se agrava com a iniciativa de limitar o repasse de recursos ao enfrentamento da pandemia, configurada no veto do presidente da República ao Projeto de Lei de Conversão (PLV) referente à Medida Provisória nº 909, aprovado pelo Congresso Nacional, que estabelecia a destinação de R$ 8,6 bilhões integralmente aos Estados, Distrito Federal e Municípios “para a aquisição de materiais de prevenção à propagação da covid-19”. Os argumentos do governo para justificar o veto - violação aos princípios da reserva legal e do poder geral de emenda e criação de despesa obrigatória ao Poder Público - estão claramente em desacordo com a flexibilização estabelecida tanto pela decretação de estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional, quanto pela Emenda Constitucional 106/2020375, o que permite caracterizar esse veto como um boicote às ações de combate ao novo coronavírus.

503. Também passível de caracterização como boicote ao enfrentamento da pandemia, tem sido a atuação do governo no sentido de impedir a transparência e a disponibilização atualizada dos dados estatísticos relacionados a morbimortalidade relativa à covid-19, parcialmente barrada pela intervenção do Poder Judiciário.

504. O boicote se revela ainda nos vetos a artigos da Lei 14.019/2020 que disciplina o uso de máscara facial em espaços públicos em todo o território nacional, sancionada no dia 02/07/2020. De acordo com a Agência Senado “o presidente Jair Bolsonaro, vetou a obrigatoriedade do uso da máscara de proteção individual em órgãos e entidades públicas e em estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos, instituições de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de

375https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1214-recomendacao-n-043-de-05-de- junho-de-2020

pessoas. Ao justificar os vetos, o Planalto alega, entre outras razões, que a obrigatoriedade “incorre em possível violação de domicílio".

505. Isto é mais um absurdo. A Constituição protege a inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI). O bem jurídico tutelado é a intimidade e vida privada do indivíduo. Mas a lei trata de uso de máscaras para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público. Ou seja, não invade a intimidade, mas ainda que se considerasse que haja alguma intervenção na vida privada, o veto está errado, pois as liberdades individuais estão condicionadas na origem pelo interesse público, que se sobrepõe.

506. O distanciamento social e o uso de máscaras são medidas eficazes para reduzir o número de casos de infectados pelo coronavírus. No mundo todo, os dirigentes incentivam o distanciamento social e obrigam o uso de máscaras, No Brasil, Bolsonaro descumpre as regras de distanciamento e de etiqueta respiratória, desestimula o uso da máscara e expõe o povo brasileiro à morte.

507. Devido à recusa de Bolsonaro a usar a máscara a 9ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, em ação popular movida por um advogado obrigou o seu uso. Por mais incrível que pareça, a AGU (Advocacia-Geral da União) recorreu da decisão ao TRF-1, tendo sido derrubada a decisão liminar provisória. Estamos numa guerra de enfrentamento da pandemia. Em junho, houve vários dias que registraram mais de mil mortes. A negligência no provimento de pessoal, a falta dos insumos e de equipamentos e a falta de coordenação das ações têm levado a milhares de mortes que poderiam ser evitadas.

508. O Brasil está em segundo lugar no número de casos de covid-19 no mundo, perdendo apenas para os EUA. Sozinho, o Brasil já respondia em 5/7/2020 por mais de 1,6 milhão de casos confirmados, correspondentes a 14% de todos os casos registrados no mundo e 64,9 mil mortes, equivalente a 12% das mortes mundiais pela covid-19.

509. Para que se possa ter uma ideia melhor do significado destes números, é importante verificar a taxa de incidência, calculada dividindo-se o número de casos pela população e assim permitindo a comparação dos resultados de diferentes locais. De acordo com os dados atualizados até 07/07/2020 a incidência de covid-19 no Brasil era de 7.924 casos a cada um milhão de habitantes.

Comparando-se com outros países do Mercosul que estão tendo um desempenho mais adequado na condução da pandemia, observa-se, por exemplo que na Argentina a incidência é de 1.856 e no Uruguai, 274 casos a cada um milhão de habitantes. A comparação das taxas de incidência se faz dividindo-se uma pela outra para calcular o risco relativo. Desta forma, o risco de um brasileiro contrair covid-19 é 4,3 vezes maior do que o risco de um argentino e 28,9 vezes maior do que a de um uruguaio!

510. Estes números refletem o total desacerto do governo brasileiro na condução do combate à pandemia. Se estivéssemos numa situação semelhante à da Argentina, por exemplo, estaríamos totalizando agora cerca de 400 mil casos e 15 mil mortes, que ainda seriam muitos, mas bem menos grave do que a atual tragédia que se verifica no Brasil. Muitos casos e muitas mortes teriam sido evitados.

511. Infelizmente a realidade do número de casos e de mortes no Brasil é ainda pior do que os números acima que são os oficialmente registrados. Na comparação com outros países somos um dos que menos fazem testes, em torno de apenas 4,2 mil testes para cada milhão de habitantes, comparado com os EUA e Espanha, por exemplo 50 mil e 76 mil testes para cada milhão de habitantes, respectivamente. Outro indicador que aponta para um subregistro é a quantidade de mortes por síndrome aguda respiratória grave (SRAG) que só nos primeiros meses de 2020 já foi muito superior à quantidade de óbitos por este motivo nos anos anteriores. Certamente muitas destas mortes devem ter sido decorrentes da covid-19 mas não foram confirmadas como tal porque não foi feito o teste de RT-PCR.

512. Outro aspecto da tragédia da covid-19 é que o Brasil é o País onde mais profissionais de saúde perderam a vida na linha de frente de combate à doença. Além do desrespeito, do descaso e do boicote às ações de enfrentamento da covid-19, o governo Bolsonaro vem tomando várias medidas de enfraquecimento de diferentes programas do SUS, das quais quatro exemplos são citados a seguir.

513. O governo excluiu do site eletrônico do Ministério da Saúde e exonerou os técnicos responsáveis pela redação da Nota Técnica nº 016/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS que recomendava a os gestores do SUS a garantia de “serviços essenciais de Saúde para mulheres e meninas, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva, sobretudo acesso a contraceptivo e ao aborto seguro nas Unidades Básicas de Saúde e Centros de Referência em IST/AIDS”. Em um momento em

que o confinamento necessário à redução da transmissão da doença aumenta o risco de violência sexual contra as mulheres, a fragilização dos serviços de saúde sexual e reprodutiva retira das mulheres um importante apoio à preservação e à recuperação da sua saúde376.

514. Vale salientar que, ao contrário do Poder Executivo, o Congresso Nacional discute projetos de lei (por exemplo: nº 1267/2020, nº 1291/2020 e nº 1444/2020), que estabelecem medidas emergenciais de proteção à mulher vítima de violência doméstica durante a emergência de saúde pública decorrente da pandemia de covid-19.

515. A Portaria GM/MS nº 1325, de 18 de maio de 2020, extinguiu o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei, se descomprometendo com o custeio das equipes constituídas e devidamente habilitadas e com o apoio à implementação de novas equipes. As justificativas apresentadas – de que as equipes não têm atribuições exclusivas de saúde e de que poucas foram implantadas até o momento – são tecnicamente inconsistentes, dado que as ações de proteção à saúde dessas pessoas requerem, necessariamente, a articulação das ações de saúde com as de outros setores e que mais equipes precisam ser implantadas377.

516. A pandemia tem, claramente, comprometido o acompanhamento médico das Pessoas com Doenças Crônicas e Patologias. Apesar disso, o Ministério da Saúde tem se omitido de tomar qualquer medida visando a assegurar o devido acompanhamento dessas pessoas, o que motivou o Conselho Nacional de Saúde a aprovar a recomendação nº 30, de 27 de abril de 2020, instando o MS a apresentar medidas de proteção à saúde e planos de apoio às Pessoas com Doenças Crônicas e Patologias durante a epidemia da SARS-COV-2, com vistas a reduzir o risco de desenvolvimento de co-morbidades e óbito, incluindo fluxos e alternativas ao acesso de medicamentos e protocolos específicos de atendimento, especificamente na manutenção de formas remotas de contato dos pacientes com seus respectivos médicos especialistas11.

376 https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1223-nota-cns-repudia-retirada-de-documento-tecnico-sobre-saude- sexual-e-reprodutiva-das-mulheres-durante-pandemia-do-site-do-ministerio-da-saude 377 https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1225-recomendac-a-o-n-044-de-15-de-junho-de-2020

517. Como consequência do seu modo malévolo de pensar e agir, o governo cuidou ainda do “rebaixamento do Departamento de IST, AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde para parte de um setor mais amplo chamado Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”. Isto, obviamente, levou a diversas manifestações de desapreço e revolta de ativistas pelo País. Como é o caso do pronunciamento do ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP). Para o deputado federal “a mudança é muito grave, pois o setor perde em autonomia para a execução de políticas. E a retirada do termo AIDS do nome é uma forma de tentar colocar no esquecimento algo grave, que é a epidemia do vírus, existente no Brasil e no mundo”.

518. Além do SUS, o Sistema de Previdência Social e de proteção dos trabalhadores também têm sido alvo de ações de desmonte que, no contexto da pandemia, enfraquecem a capacidade de resposta ao coronavírus.

519. Têm sido observados concentração de casos de covid-19 em locais de trabalho em função das características que estas atividades são desenvolvidas, como por exemplo nos setores de frigoríficos e de teleatendimento o que reforça a necessidade da Inspeção do Trabalho para fiscalizar os ambientes de trabalho para a adoção de medidas de controle como o distanciamento dos postos de trabalho, uso de máscaras, afastamento precoce dos trabalhadores sintomáticos e a adoção das medidas de etiqueta respiratória.

520. O Presidente Bolsonaro em direção oposta na edição da MP 927/2020 incluiu o artigo 31, que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho apenas à atividade de orientação, sem poder autuar os empregadores caso constatassem irregularidades. Houve reação da sociedade e entidades a esta medida e no julgamento de medida liminar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a eficácia deste dispositivo, restabelecendo o poder de polícia da Inspeção do Trabalho, importante ferramenta de proteção da saúde e da segurança dos trabalhadores e trabalhadoras.

521. Sob o manto de uma alegada modernização e redução dos “custos absurdos em função de uma normatização absolutamente bizantina, anacrônica e hostil”, o então Secretário Especial de Trabalho e Previdência afirmou a intenção de reduzir em até 90% as obrigações contidas nas normas

regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, conhecidas sob a sigla NR. Leis e regulamentações isoladamente não mudam uma sociedade, mas a sua inexistência ou fragilidade promovem a agudização da injustiça e podem se constituir, no caso das NR em um país que apresenta indicadores alarmantes de acidentalidade no trabalho, um retrocesso evidente. Nenhuma economia é sustentável tendo um dos pilares baseado no adoecimento e morte de parcela significativa de sua força de trabalho. Esta opção governamental pela naturalização das iniquidades fica ainda mais evidente com a edição das Portarias Conjuntas nº 19 e 20, de 18 de junho de 2020, que disciplinam as “medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19”, respectivamente nas atividades desenvolvidas na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano e laticínios e de uso geral. Seus conteúdos e obrigações constrangem a boa técnica e o consenso científico mundial por sua insuficiência e fragilidade, em meio a uma pandemia que no início de julho já tinha atingido mais de 1,5 milhão de brasileiros e produzido mais de quase 64 mil óbitos. Mantidas intenções e objetivos, nos esperarão, em um futuro próximo, legiões de trabalhadores e trabalhadoras adoecidos, mutilados, mortos em nome do luxo e fastio de uma falsa modernização.

522. Os povos originários são outro alvo preferencial dos ataques do governo federal à saúde do povo brasileiro. Com mais um Projeto de Lei de iniciativa do executivo (PL 1911/2020) de natureza necropolítica, busca o governo atual “regulamentar o § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição para estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas”.

523. Ora, os ataques aos povos nativos já se expressam nas investiduras do Congresso Nacional em larga escala, não fosse a PEC 187 que, em defesa do agronegócio e da bancada ruralista, busca suavizar a exploração do meio ambiente, atentando para o fato que “originalmente, pretende alterar a Constituição para que ela permita, explicitamente, que os povos indígenas possam produzir em suas terras e comercializar a sua produção”, como se isso já não acontecesse nas terras indígenas, onde nada obsta que os povos indígenas produzam e comercializem seus produtos;

524. As investidas desastrosas do governo Bolsonaro contra os povos originários têm sido em diversas frentes, mesmo em situação de estado de emergência porque passa a esmagadora

maioria do povo brasileiro em razão do enfrentamento da pandemia do Covid-19. Nesse sentido, as medidas emergenciais como parte de política pública do Estado redutora e miniminizadora das necessidades básicas de quem está em isolamento social e em situação de quarentena, com base e vetos do presidente da república, o Projeto de Lei (PL 873/2020) foi aprovado pelo Senado que ampliou os beneficiários do auxílio emergencial de R$ 600,00.

525. Não obstante, a aplicação da Lei de n. 13.998/2020 causou, e vem causando, embaraços aos que dela buscam o auxílio emergencial, o que levou Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União a impetrar Ação Civil Pública contra a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – CEF e o INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS “objetivando provimento jurisdicional que determine aos réus a adoção de medidas diferenciadas em favor dos povos indígenas do Estado do , especificamente a prorrogação dos prazos para saques dos benefícios de auxílio emergencial e previdenciários, com o fito de impedir o deslocamento das populações indígenas aos municípios, em conformidade com as orientações de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS)”.

526. Como consequência do deliberado desmonte do SUS do Brasil se tem o descaso com o calendário de coberturas vacinais da população e consequente recrudescimento de enfermidades cujo controle se dá através da vacinação de suscetíveis, e que agora salienta-se a elevada piora da situação em razão da ausência de política emergencial pelo governo federal do enfrentamento da pandemia do Covid-19.

527. E, ainda mais, com o agravante que dadas às mudanças no Plano Nacional de Atenção Básica (PNAB) que estabeleceu “que os municípios tenham autonomia para o direcionamento dos recursos federais que recebem. Isso significa que parte da verba destinadas a programas como o Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) possam ser destinadas a outras iniciativas”, ou seja, o que se posta como temerário e vem trazendo graves problemas de assistência e atenção básicas à saúde dos munícipes.

528. Agindo desta forma, o Presidente demonstra sua incapacidade para o cargo, devendo ser responsabilizado pela insuficiente, descoordenada e atrasada adoção de medidas efetivas, o que tem implicado em maior número de casos e em mais mortes pela covid-19. Não se trata apenas de

“destempero verbal”. Ao descumprir a quarentena obrigatória, após voltar de viagem internacional, onde mais de duas dezenas de seus assessores e ministros apresentaram testes positivos para a covid-19, participar de manifestação pelo fechamento do Congresso e do STF e afirmar que iria comemorar seu aniversário no dia 21/03, o Presidente passa à população a mensagem de que o distanciamento físico e a quarentena de sintomáticos e seus contatos não são necessários, o que favorece a transmissão acelerada do coronavírus. Em pronunciamento à Nação na noite do dia 24/03/2020, o Presidente questionou o porquê de fechar escolas, repassou informações equivocadas sobre a covid-19, criticou o distanciamento social e mais uma vez, desrespeitando as milhares de vítimas fatais no mundo e também seus familiares, classificou a doença como uma “gripezinha ou resfriadinho”. O pronunciamento gerou imediatamente forte reação contrária de várias entidades de saúde, como da ABRASCO que chamou o pronunciamento de “manifestação incoerente e criminosa” e do Conselho Nacional de Saúde – CNS que considerou o pronunciamento, “uma afronta grave à Saúde e à vida da população”.

529. Ao proferir pronunciamentos absurdos, questionando a decisão dos estados ao adotarem ações protetivas, estimulando a ajuntamento populacional em cultos religiosos e insuflando os ânimos contra o isolamento populacional ao destacar o impacto na economia, o Presidente dá um péssimo exemplo e demonstra um desprezo pela vida dos brasileiros e brasileiras, principalmente dos mais pobres, que sofrerão as maiores consequências.

530. Num episódio recente Bolsonaro estava sendo entrevistado por alguns repórteres quando retirou a máscara justamente para informar que estava com covid-19, o que certamente representa uma violação aos artigos 131 e 132 do Código Penal. Ademais, no dia seguinte, o Presidente disse que tinha tomado a hidroxicloroquina e estava se sentindo muito bem. Chegou a mostrar-se em suas redes sociais num vídeo engolindo um comprimido que seria de hidroxicloroquina. A aparência era de uma propaganda comercial o que é totalmente de equivocado e inapropriado, principalmente considerando o cargo que ocupa e a indução a automedicação da população e do relaxamento com os cuidados, ao acreditar que existiria um tratamento eficaz.

531. Deve-se ressaltar que a prescrição de medicamentos é ato profissional exclusivo do(a) médico(a) e que até o momento não existe evidência científica que comprove o benefício do uso da cloroquina e nem da hidroxicloroquina no tratamento dos pacientes acometidos pela covid-19. Além

disto, são medicamentos que têm conhecidos efeitos colaterais, potenciais riscos e contraindicação de uso para determinados pacientes.

532. Questionada, a Secretaria Geral da Presidência da República disse que vem tomando medidas para tornar o ambiente de trabalho "o mais seguro possível" para os servidores e informou que 108 funcionários da Presidência da República testaram positivo para a nova doença desde o início da pandemia. Certamente as medidas de controle não estão sendo adotadas, considerando o elevado número de servidores contaminados.

533. Ainda estamos com um número elevado de casos não justificando as medidas de flexibilização do distanciamento social que vem sendo estimuladas pelo governo federal. Se tivessem sido adotadas no Brasil medidas adequadas de controle, com restrições de deslocamento, bloqueio de locais (lockdown) certamente poderíamos ter chegado numa fase consistente de redução do número de casos novos e estar fazendo a flexibilização das medidas de controle, de forma gradual e segura. O que se está se observando no Brasil é a que pressionados pelo falso discurso de “salvar a economia” prefeitos e governadores estão fazendo a abertura do comércio e de outros setores, sem critérios técnicos, observando-se em seguida o aumento descontrolado de casos.

534. Conforme publicado na Revista Veja, o jornal americano The Washington Post publicou em 14/04/2020, um editorial que apontou o presidente Jair Bolsonaro como o pior líder mundial a comandar uma reação contra a pandemia do novo coronavírus. Segundo a publicação, o chefe de Estado brasileiro coloca vidas em risco ao minimizar a força da Covid-19.

535. Em abril a ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e em junho, o PDT, denunciaram o presidente Jair Bolsonaro por crime contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional (TPI) por sua postura no combate ao avanço da Covid-19 no país.

536. Enfim, são muitos os ataques do governo Bolsonaro ao SUS e à saúde dos brasileiros, o que permite que seja caracterizado como inimigo da saúde do povo, conforme

identificaram as entidades da área da Saúde Coletiva, desde o discurso presidencial transmitido em cadeia nacional de rádio e TV no dia 24 de março de 2020.378

537. As entidades que compõem a Frente pela Vida lançaram em 03/07/2020 o Plano de Enfrentamento à Covid-19. O Plano é muito claro em dizer que “a Presidência da República é, de ofício, diretamente responsável pelo reconhecimento do potencial danoso da pandemia da COVID-19, tendo como competência irrecorrível propor e coordenar ações e políticas emergenciais, necessárias e adequadas para controlá-la e reduzir seus impactos econômicos e sociais sobre a nação. Assim, além das estratégias sanitárias e epidemiológicas, frente à crise, muitas medidas são necessárias, notadamente de natureza política e econômica, que somente o Governo Federal pode executar. Não é demais enfatizar que, como a economia, impactada pela pandemia, não pode garantir a renda do trabalho, devem ser urgentemente concretizadas a implementação, manutenção e expansão de políticas de proteção social”. O que se vê, por tudo o exposto aqui, é que o governo federal caminha na direção oposta. Muitas mortes pela covid-19 poderiam ter sido evitadas. Muitas mortes ainda podem ser evitadas, é imperiosa a tomada de medidas urgentes para reversão desta tragédia.

538. Tal descrição minuciosa de fatos assevera que o Presidente da República, lastimavelmente, incorreu na prática de crimes de responsabilidade contra a probidade da administração, conforme o art. 9º, incisos 3, 4 e 7, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.379 Sua postura em relação aos atos insensatos e desatinados levados a efeito por inúmeros subordinados jamais esteve à altura da responsabilidade do cargo que ocupa. A repetida e progressiva escalada de descuidos e atos contraproducentes dessas autoridades, em desalinho com a Constituição e com a regularidade funcional de seus postos contou não apenas com o beneplácito presidencial, senão também com seu incentivo, o que perfaz com absoluta suficiência o tipo criminal estampado no texto citado.

378 https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1143-recomendacao-n-030-de-27-de-abril-de-2020

379 Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: (...) 3- não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; 4- expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; (...) 7- proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

IV. DOS PEDIDOS.

539. Por todo o exposto, apresentam os seguintes requerimentos:

a) Que seja recebida, processada e julgada procedente a denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, com fundamento no art. 85, caput e incisos I, II, III, IV, V e VII da Constituição da República e nos termos das tipificações previstas no art. 5º, incisos 3, 7 e 11; art. 6º, incisos 1, 2, 3, 5, 6 e 7; art. 7º, incisos 5, 6, 7, 8 e 9; no art. 8º, incisos 7 e 8; e no art. 9º, incisos 3, 4, 5, 6 e 7; art. 11, inciso 5; art. 12, incisos 1 e 2, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, aptos a amparar o seu respectivo recebimento, na forma estatuída pelo art. 218, § 2º, do RICD, seguida da autorização pela Câmara dos Deputados para a instauração do processo e subsequente remessa ao Senado Federal, para processar e julgar o Presidente da República, nos termos dos art. 51, inciso I; art. 52, inciso I e art. 86, caput da Constituição da República, visando à suspensão das funções presidenciais e ao julgamento definitivo do impeachment, com a prolação de decisão condenatória e consequentes destituição do acusado do cargo de Presidente da República e inabilitação para a função pública pelo prazo de oito anos, conforme os arts. 52, parágrafo único, e 86 da Constituição da República e os artigos 15 a 38 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.

b) Uma vez que os Autores e as Autoras da presente denúncia procedem ao seu respectivo protocolo em formato virtual, com assinaturas de apenas parte dos Denunciantes certificadas eletronicamente, na forma da Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e, assim reconhecida sua autenticidade para a finalidade constante no art. 218, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados; e considerando as excepcionais circunstâncias atualmente vivenciadas em face da pandemia da COVID-19, que não permitem deslocamentos para certificação digital, reconhecimentos de firma em cartórios nem mesmo a autenticação presencial de documentos

(conforme Ato da Mesa Diretora nº 118/2020, a impossibilitar o comparecimento individual às dependências da Câmara dos Deputados), requerem a validação presencial ou eletrônica posterior das assinaturas restantes, sem que haja prejuízo ao andamento da denúncia, tampouco impugnação da autoria daqueles que suprirão os requisitos formais tão logo seja restabelecida a normalidade dos serviços cartoriais e de secretarias referenciados;

c) que, em caso de defeito na apresentação dos documentos pessoais e de representação dos Denunciantes perante a Câmara dos Deputados, seja conferido prazo para suprimento posterior;

d) a juntada dos documentos anexos como elementos de comprovação da prática dos crimes de responsabilidade narrados na presente denúncia; e) a produção de prova testemunhal, mediante a oitiva das pessoas indicadas a seguir, as quais deverão ser intimadas para tal finalidade em conformidade ao que dispõe o artigo 18 da Lei n. 1.079/50, sem prejuízo da produção de outras provas de qualquer natureza, visando à comprovação dos fatos ora apontados como ensejadores de crimes de responsabilidade, conforme o art. 16 da mesma lei;

ROL DE TESTEMUNHAS

1. LUÍS CLAUDIO FERNANDES MIRANDA, deputado federal. 2. LUÍS RICARDO FERNANDES MIRANDA, chefe de importação do Departamento de Logística e Saúde do Ministério da Saúde. 3. LUIZ PAULO DOMINGUETTI PEREIRA, representante da empresa Davati Medical Supply. 4. ROBERTO FERREIRA DIAS, diretor de Logística do Ministério da Saúde. 5. GULNAR AZEVEDO E SILVA, professora da UERJ e Presidente da ABRASCO. 6. ARTHUR CHIORO, professor da UNIFESP e ex-ministro da Saúde.

7. JUREMA PINTO WERNECK, médica e Diretora Executiva da Anistia Internacional – Brasil. 8. JÚLIO RENATO LANCELLOTTI, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo (São Paulo-SP). 9. LUIZ HENRIQUE ELOY AMADO – ELOY TERENA, advogado. 10. RICARDO MAGNUS OSÓRIO GALVÃO, professor do Instituto de Física da USP e ex-diretor do INPE. 11. PEDRO ESTEVAM ALVES PINTO SERRANO, professora da PUC-SP e advogado.

Pedem deferimento. Brasília, 30 de junho de 2021.

Mauro de Azevedo Menezes Marcelise de Miranda Azevedo OAB/DF 19.241 OAB/DF 13.811

Deborah Duprat Marco Aurélio de Carvalho OAB/DF 65.698 OAB/SP 197.538

João Gabriel Lopes Camila Gomes de Lima OAB/DF 40.637 OAB/DF 35.185

Gustavo Teixeira Ramos Monya Ribeiro Tavares OAB/DF 17.725 OAB/DF 16.564

Mirian Gonçalves Antônio Carlos de Almeida Castro OAB/PR 11.994 OAB/DF 4.107