Ano I . Edição nº1 . Março/2018

Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia

Direito e Democracia Expediente

Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia - OAB/RN Ano I, Edição nº 1, Março/2018 ISSN...

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EDITORA CHEFE Maura Marjorie Gomes Nogueira

CONSELHO EDITORIAL Djamiro Ferreira Acipreste Sobrinho DIRETORIA DA OAB/RN Fábio Fidelis de Oliveira Marcelo Mauricio da Silva Presidente: Paulo de Souza Coutinho Filho Marco Aurélio de Medeiros Jordão Rebeca Câmara Alves Vice-Presidente: Marisa Rodrigues de Almeida Diógenes Úrsula Bezerra e Silva Lira Secretário-Geral: Kaleb Campos Freire Secretária-Geral Adjunta: Priscila Coelho da Fonseca Barreto COORDENAÇÃO TÉCNICA Marcelo Mauricio da Silva Diretor-Tesoureiro: Carlos Alberto Marques Júnior PROJETO GRÁFICO, CAPA E DIAGRAMAÇÃO Gustavo Ribeiro DIRETORIA DA ESA/-RN Marketing da OAB/RN

Diretora Geral: Marília Almeida Mascena Diretor Tesoureiro: Flaviano da Gama Fernandes Diretor de Ensino: Olavo Fernandes Maia Neto Diretor de Pós-Graduação: Alexandre Alberto da Câmara Silva Diretora da Revista/Editora: Maura Marjorie Gomes Nogueira Diretor de Gestão, Prática Profissional e Residência Jurídica: João Paulo dos Santos Melo Diretora de Cursos Presenciais: Monalissa Dantas Alves da Silva Diretor de Cursos Telepresenciais e pela Internet de Aperfeiçoamento: Cássio Leandro de Queiroz Rodrigues Diretor de Conferências, Congressos e demais eventos: Antonino Pio Cavalcanti de Albuquerque Sobrinho Diretor de Integração: Fabio Luiz Lima Saraiva Rua Barão de Serra Branca, s/n – Diretor de Cursos de Extensão em Direito Digital e PJE: Candelária – CEP 59065-550 Hallrison Souza Dantas Natal, Rio Grande do Norte, Brasil Índice

06. Prefácio Marília Almeida Mascena e Paulo de Souza Coutinho Filho

07. Editorial Conselho Editorial Direitos e Democracia 08. Marcos José de Castro Guerra

20. O Presidencialismo Brasileiro no Contexto 28. Pactuar a Segurança para Redução da Crise Política e a Fragilidade da Democracia da Violência Nacional Marcos Dionísio Medeiros Caldas Mariana de Siqueira

A Abertura Democrática do Supremo Tribunal Federal: A Influência da Audiência Pública no Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 3510 Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave e Daniela Vaz Campos 30.

46. A Democracia Representativa 66. A Evolução da Moralidade Jurídica: e a Revogação dos Mandatos em Curso Da Instituição Como Princípio até a Efetivação Abraão Luiz Filgueira Lopes com as Normas de Compliance Mayara dos Santos da Silva

80. Quem Tem Medo do STF? Estudo Acerca da Racionalização dos Poderes do Pretório Excelso Jodilson Iron Gomes de Medeiros

54. Aspectos da 94. A Responsabilidade Civil do Estado Democracia Segundo Pela Morosidade na Prestação Jurisdicional a Doutrina Social da Priscila Franco Igreja: Um Estudo em Homenagem ao Jurista 102. Poder(?) de Tributar: Otto Guerra Uma Breve Análise Sobre Justiça Tributária Silvério Alves e Estado Democrático de Direito da Silva Filho Jaciel Neto Prefácio

Advogados(as),

A Escola Superior de Advocacia do Rio Grande do Norte, criada através da Resolução nº 003/91, em 14/11/1991, tem a missão de fomentar projetos que promovam a capacitação técnica dos operadores do direito, oportuni- zando o aperfeiçoamento profissional dos advogados inseridos na Seccio- nal Potiguar, através de cursos e capacitações que levam ao aprimoramento e difusão de conhecimentos. Imbuídos desse espírito, a advocacia potiguar conta agora com mais um espaço para sua produção jurídico-literária: Revista Parlatório, cujo nome não poderia ser mais simpático e apropriado. Afinal, um parlatório é um local para conversas, onde podemos trocar ideias, informações, gerar co- nhecimento e travar saudáveis discussões. A advocacia Diante do atual cenário nacional, a temática de Direito e Democracia potiguar conta não poderia ter se mostrado mais acertada, posto que são admiráveis cria- ções humanas cuja efetividade depende de conhecimento e de sua defesa agora com mais intransigente. um espaço para Os artigos que compõem a revista estão sob assinatura de notórios pro- fissionais e diante de sua grande qualidade, enriquecem nosso acervo insti- sua produção tucional, constituindo reconhecido material de exame para a comunidade jurídico-literária: jurídica. Fica o registro de agradecimento e reconhecimento à toda equipe da Revista Parlatório, revista, que através de sua editora chefe, conselho editorial, coordenação cujo nome não técnica e diagramação, suporte digital e gráfico e colaboradores, dedicaram seu tempo e competência para entregar à advocacia potiguar um trabalho poderia ser mais de excelência. simpático e A Escola Superior de Advocacia mantém sua inquietação no propósito de ser um local onde os advogados norte-rio-grandenses possam buscar infor- apropriado. Afinal, mação, habilitação, edificação e socialização. Sendo também agora palco de um parlatório produções jurídicas, que contribuem de forma sólida como uma importante é um local para fonte de pesquisa acadêmica e profissional. Boa leitura! conversas, onde podemos Marília Almeida Mascena Diretora Geral da ESA/RN trocar ideias, informações, gerar Paulo de Souza Coutinho Filho Presidente da OAB/RN conhecimento e travar saudáveis discussões.

4 . Parlatório . MARÇO/2018 Editorial

A Ordem dos Advogados do advogados que aqui comparecem a lição da teoria conjugada à esfera Brasil (OAB) em sua seccional em pontuais contribuições. prática, tão ao gosto da contundente norte-rio-grandense, ciente de A presença dos artigos “A De- defesa da liberdade dos perseguidos seu compromisso com os esforços mocracia Representativa e a revo- políticos exercida pelo Prof. Otto e científicos de aprimoramento do gação dos mandados em curso”, “A da militância na seara dos direitos fazer advocatício também em suas responsabilidade civil do Estado humanos, testemunhada por Dio- progressões acadêmicas e culturais pela morosidade na prestação ju- nísio. Desse último homenageado retoma, através dos esforços em- risdicional”, “A Evolução da mo- ainda juntamos, como memória de preendidos pela Escola Superior de ralidade jurídica: da instituição sua inesquecível atuação, o escri- Advocacia, a produção periódica como princípio até a efetivação to intitulado “Pactuar a segurança com a alvissareira concretização da com as normas de compliance” e para reduzir a violência”. Revista Parlatório. “Poder (?) de tributar: uma breve Felizes pela oportunidade de O nome, na evocação das mais análise sobre a justiça tributária lançarmos mais um elemento bi- caras tradições, relaciona os púlpi- e estado democrático de direito” bliográfico à andaimaria da Escola tos nos quais a oratória de tantos desenvolve, com notável desen- Superior de Advocacia em sua mis- advogados soube dignificar a liber- voltura, a conexão entre o ideal são de fomento aos quadros reno- dade, como em um altar erguido democrático e variados ramos da vadores da reflexão jurídica poti- com a lágrima e o sangue das gera- experiência jurídica. guar, entregamos, esperançosos, a ções que nos antecederam. Noutro ângulo, na apresentação primeira edição de um democrático As lições dos mestres, as expres- de significativas elaborações tex- PARLATÓRIO. sões dos causídicos, a reflexão dos tuais, os doutores Marcos Guerra, Com a palavra, os advogados... doutrinadores, a fala lançada às de- Mariana Siqueira, Ana Beatriz Pres- mocráticas assembleias, como hino, grave e Silvério Alves representam Maura Marjorie Gomes Nogueira ou aos despóticos ouvidos, como as vozes da academia e da militân- Editora Chefe grito: em todos os lances o poder da cia forense no debate sobre o tema palavra, gládio e escudo pelos que da edição inaugural: Direito e De- Djamiro Ferreira Acipreste não tem voz ou vez. mocracia. Sobrinho E assim, tomando a edição inau- Nesse mesmo sentido, em refe- Fábio Fidelis de Oliveira gural sob o signo das esperanças do rência à memória de lutas empreen- Marcelo Mauricio da Silva presente e dos caminhos já trilha- didas na defesa do ideal democrá- Marco Aurélio de Medeiros Jordão dos é que contamos, além dos au- tico, a recordação dos advogados Rebeca Câmara Alves tores selecionados a partir do edital Otto de Brito Guerra e Marcos Dio- Úrsula Bezerra Lira oportunamente lançado, com os nísio Medeiros Caldas completam Membros do Conselho Editorial

O nome, na evocação das mais caras tradições, relaciona os púlpitos nos quais a oratória de tantos advogados soube dignificar a liberdade, como em um altar erguido com a lágrima e o sangue das gerações que nos antecederam.

Parlatório . MARÇO/2018 . 5 Marcos José de Castro Guerra Artigo Advogado. Ex-professor de Direito Internacional. Foi Vice-Presidente da OAB/RN, com múltiplas atuações na área de Educação e Cooperação internacional. Correio eletrônico: [email protected] Direito e democracia

“It is said that no Somente um novo pacto poderia É fruto de um verdadeiro pacto modificar nossa Constituição quanto político-social e econômico, cons- one truly knows aos “Princípios Fundamentais”, aos truído laboriosamente por lideran- a nation until one “Direitos e Garantias fundamentais, ças políticas e partidárias, com atu- individuais e coletivos”, e ao que nela ante participação da sociedade civil has been inside foram denominados “Direitos So- – incluindo militares e entidades re- its jails. A nation c i a i s”. ligiosas. Pretendemos aqui levantar ques- Cabe-nos a tarefa de consolidar e should not be tões quanto à estreita relação entre aperfeiçoar o que na época foi defini- judged by how it DIREITO E DEMOCRACIA, e in- do como fruto da redemocratização. centivar debates que nos permitam Não podemos desfigurá-la, e muito treats its highest uma atuação consequente na defesa menos violentar princípios e objeti- citizens, but its dos Direitos ameaçados na crise po- vos claramente explicitados. lítica e econômica que atravessamos. A Constituição Federal de 1988 lowest ones.” Dentre os que militam em prol da garante com extrema precisão que NELSON ROLIHLAHLA Justiça, cabe-nos, aos Advogados, “todo poder emana do povo, que o MANDELA um papel preponderante. Por dispor exerce por meio de representantes de grande liberdade e capacidade de eleitos, ou diretamente, nos termos iniciativa. Por identificar com clare- desta Constituição” e estabelece ain- za iniciativas que violam Direitos e da que os 3 poderes (independentes ameaçam a própria Democracia. E e harmônicos) atuarão com vistas a por dispor dos conhecimentos pro- construir, garantir e promover ações fissionais que nos permitem e ao claramente definidas. mesmo tempo nos obrigam a atuar Nesta verdadeira crise política, de forma crítica e combativa. dispomos de um sólido referencial.

1. Título I dos Princípios Fundamentais. Artigo 1º. Para Nelson Mandela, conhece- E podemos ter clareza sobre uma ta- Fundamentos da República Federativa, Estado de- mos uma nação identificando como refa comum. Divididos, esquecemos mocrático de direito: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores trata seus prisioneiros. Não a mino- as lições do incansável Betinho, em sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o plura- lismo político… Objetivos Fundamentais -Artigo 3º. ria de privilegiados, mas os que têm um estudo sobre “Democracia e Ci- I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária; II pouco ou nada. dadania”2, e em toda sua militância - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual- Nossa Constituição de 1988 tal- na qual repetia “quem tem fome tem dades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, vez não tenha o melhor formato, pressa!!!”. Como sempre lembrou, idade e quaisquer outras formas de discriminação... mas seguramente representa o me- “só a participação cidadã muda um Direitos Sociais: Artigo 6º. São direitos sociais a edu- cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, lhor consenso, obtido em momento país”. E para cimentar tais mudanças, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência so- cial, a proteção à maternidade e à infância, a assistên- crítico. Ela determina direitos e de- elencou cinco princípios: Igualdade, cia aos desamparados, na forma desta Constituição. veres constitucionais, e nos impõe Diversidade, Participação, Solidarie- 2. Betinho, Herbert José de Souza - Democracia regras democráticas, republicanas e dade e Liberdade. Ao definir cidada- e Cidadania, in Democracia Viva, No. 28, 2006 - 1 IBASE, RJ. federativas . nia, escreve com clareza:

6 . Parlatório . MARÇO/2018 Cidadania é a consciência de di- reitos democráticos, é a prática de quem está ajudando a construir os valores e as práticas democráticas. No Brasil, cidadania é fundamen- talmente a luta contra a exclusão social e a miséria e mobilização concreta pela mudança do cotidia- no e das estruturas que beneficiam uns e ignoram milhões de outros. E querer mudar a realidade a partir da ação com os outros, da elabo- ração de propostas, da crítica, da solidariedade e da indignação com o que ocorre entre nós3.

Divididos e manipulados, não po- todo o possível para dividir aqueles nenhum risco pessoal. demos cooperar para “democratizar que se unidos estivessem poderiam Ao manipular seus drones, alguns a democracia”, no sentido estudado ameaça-las. Em detrimento da gran- de nossos políticos e gestores, esque- pelo cientista Boaventura de Sousa de maioria, forjam uma “democracia cem as promessas feitas nas campa- Santos4. Vivemos numa democracia de baixa intensidade”, sequestrada nhas eleitorais. A partir das quais sequestrada, o que gera descrença de por forças econômicas poderosas analistas chegaram a identificar al- uma grande maioria desmobilizada. imunes a qualquer transparência e gumas vezes o que ficou conhecido Descrença resultante da exclusão sem passar pelo crivo de uma avalia- como estelionato eleitoral. política e social, da trivialização da ção democrática. Governantes e parlamentares participação em atividades de facha- Constatamos um divórcio entre o agem como se não estivessem vincu- da que chamavam a decidir sobre parlamento e a sociedade, e que os 3 lados pela Constituição, e pelos com- coisas cada vez menos importantes. poderes tentam reduzir a participa- promissos assumidos em campanha. Descobrem que não participavam ção cidadã exclusivamente ao voto – Hoje vemos que ações consi- do poder efetivo, mas de “Missas limitado a cada 4 anos. Atuam muitas deradas prioritárias não tiveram a Republicanas” segundo consagra- vezes como se estivessem a exercer dimensão e o alcance necessários, da expressão de Mitterrand, como um “poder drone” – como militares nem resultados concretos e irrever- grandes Conferencias Nacionais, As- de grandes potências que manipu- síveis. Entre outros fatores pela falta sembleias, Congressos, Manifestos, lam controles eletrônicos a milhares de vontade política e de coragem de Notas Públicas. E que as decisões de quilômetros de suas vítimas, para enfrentar reformas estruturais. Im- principais, que têm efetivamente bombardear indiscriminadamente portantes Programas de Governo consequência na vida da maioria seus adversários. Pouco lhes impor- puderam ser facilmente esvaziados, eram tomadas em outras instancias. tam os custos paralelos que atingem já que não foram constituídos como Descobrem ainda quem são os gran- populações civis, principalmente Políticas Públicas de Estado, que ti- des beneficiários. crianças e mulheres. Atuam como vessem sua continuidade garantida. De forma consciente e maquia- se ignorassem as consequências de vélica, minorias que se apoderaram decisões que trazem graves prejuízos 3. Betinho – Poder do Cidadão –www.conversas- do poder em nome da proteção dos para a grande maioria, principalmen- combetinho.org.br/com_a_palavra/cidadania_fome.htm interesses de poucos privilegiados, te para os mais frágeis. Agem protegi- 4. Boaventura de Sousa Santos, org - Democratizar a de- mocracia - os caminhos da democracia participativa - Rio ou de uma pseudohegemonia, fazem dos por uma falsa impunidade e sem de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.

Parlatório . MARÇO/2018 . 7 As principais 2. UM NOVO CONTRATO SOCIAL

características Ao invés de aperfeiçoar o Contra- (de 2003 a 2010). Vale salientar que do modernismo to Social vigente, e de executar polí- na época exigiu e obteve o “status” ticas que finalmente atendam plena- de Ministro de Estado, que lhe dava liberal não se mente ao dispositivo Constitucional, maior liberdade e preponderância. coadunam com vemos ao contrário nos últimos me- As principais características do ses uma tentativa não dissimulada de modernismo liberal não se coadu- nosso pacto tentar impor um novo modelo, agora nam com nosso pacto vigente sob vigente sob a obedecendo ao que ficou conhecido a Constituição Cidadã. De início, em 1989 como “Consenso de Wa- deve obedecer “ao mercado” (sic), Constituição shington”, que reintroduz opções po- reduzir drasticamente gastos sociais Cidadã. De início, líticas da antiga “comissão trilateral” e subsídios governamentais – sob a deve obedecer criada por Rockfeller em 1973. Do alegação de “saúde fiscal”, desregula- famoso “Consenso” ficaram medidas mentar o mercado de trabalho, pe- “ao mercado” de ajuste macroeconômico impostas nalizar trabalhadores e aposentados (sic), reduzir pelo FMI e pelo Banco Mundial, que com arrocho salarial, romper uma aplicadas recentemente na Europa aliança histórica com sindicatos de drasticamente resultaram em grave crise econômi- trabalhadores e incentivar privatiza- gastos sociais ca e política com prejuízos para paí- ções, entre outras medidas. São itens ses concretos, e principalmente para que poderiam até vir a ser discutidos e subsídios a maioria da população de gregos, para integrar um novo Pacto. Mas governamentais, portugueses, italianos, e até de paí- não podem ser impostos de forma ses com economia mais sólida como unilateral e apressada. Algumas me- desregulamentar a Inglaterra, a França e a Alemanha. didas são forçadas literalmente “por o mercado Medidas comprovadamente inefica- decreto”, forma antidemocrática que zes e impopulares, que para serem a sociedade critica há tempo. de trabalho, implantadas muitas vezes exigiram Entre outros, por duas vezes o penalizar divulgar como verdadeiras informa- Planalto tentou entregar a Reserva ções falsas ou incompletas. Fato que Nacional do Cobre (RENCA), igno- trabalhadores e mais uma vez enseja denúncia sobre rando direitos da população local e aposentados com a sua ilegitimidade diante das garan- riscos ambientais, e decidindo uni- arrocho salarial, tias constitucionais. lateralmente sobre minerais estraté- Já presentes nas últimas décadas, gicos, em contradição com dispositi- romper uma acentuam-se mais particularmente a vos constitucionais, como o Art. 225 aliança histórica partir do início de 2015 as pressões E o fez novamente através de malo- para introduzir o conhecido “neoli- grados Decretos (9.142 e 9.147, agos- com sindicatos beralismo”, também chamado de mo- to de 2017) sobre os quais foi preciso de trabalhadores dernismo ou conservantismo liberal, recuar, o último tendo seus efeitos defendido entre outros pelo Ministro suspensos por um curto período. e incentivar Meirelles. O qual continua coerente Vejamos a seguir algumas das privatizações, em sua missão confiada pelos Ban- propostas que merecem análise so- cos, desde quando deixou a direção bre sua constitucionalidade, e que entre outras mundial do BankBoston e aceitou o podem ser objeto de luta pelos Direi- medidas. convite para dirigir o Banco Central tos e pela Democracia.

8 . Parlatório . MARÇO/2018 3. A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

A propaganda governamental di- tada pela então Presidente Dilma em A propaganda vulga insistentemente que a Seguri- 2015, a auditoria prevista na LDO de dade Social é deficitária, e gasta mais 2018, acaba de ser novamente vetada governamental que arrecada. Com a ajuda da grande pelo Presidente Temer. esconde também, imprensa o Planalto esconde que se A propaganda governamental apropria de 30% das somas arrecada- esconde também, por razões incon- por razões das e vinculadas constitucionalmen- fessáveis, uma dívida de sonegado- inconfessáveis, te para Previdência Social, Saúde e res que supera R$ 426 Bilhões. E o uma dívida de Educação. E que obteve recentemen- Governo continua a contratar deve- te no Congresso aprovação para au- dores, desrespeitando clara determi- sonegadores que mentar o desvio de 20% para 30%, e nação Constitucional do § 3º do Art. supera R$ 426 garantir sua prorrogação até 2023. 1957 de nossa Constituição. Se fosse deficitária, como abocanhar Ainda, estudos da Procuradoria Bilhões. e desviar 30%? Conforme notícia o Geral da Fazenda Nacional vinculam próprio Senado, “a principal fonte de a 115 Deputados e 14 Senadores dí- recursos da DRU são as contribui- vidas em aberto num total de R$ 946 ções sociais, que respondem a cerca milhões, sem que os devedores se de- de 90% do montante desvinculado”. clarem impedidos de votar a MP 783, Naturalmente algumas decisões que tramita igualmente em regime de impostas à sociedade enfrentam difi- urgência. Ela foi apelidada de “Pacote culdades no Congresso, com formas de Bondades”, ao criar um novo pro- de pressão que violam a autonomia grama de refinanciamento das dívi- dos 3 poderes. É exemplar o que se das que serão parceladas em 14 anos, passa em relação à Previdência, que “inclusive objeto de parcelamentos 5. Art. 194. A seguridade social compreende um conjun- tem clara previsão Constitucional, anteriores rescindidos ou ativos, em to integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relati- 5 quanto à sua abrangência (Art. 194) e discussão administrativa ou judicial, vos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo 6 único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, or- seu financiamento (Art. 195) , em Ca- ou ainda provenientes de lançamento ganizar a seguridade social, com base nos seguintes obje- pitulo sobre a Seguridade Social, no de ofício efetuados após a publicação tivos: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade E equivalência dos benefícios e serviços Título VIII – sobre a Ordem Social. da Medida Provisória” (Sic). às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distri- butividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - ir- Ou seja, a Constituição vincula, Uma Carta Aberta sobre a Re- redutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na mas Governantes atropelam a Cons- forma da Previdência8 publicada em forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentra- tituição com o beneplácito do Parla- janeiro de 2017 pela OAB e mais de lizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, mento e o silêncio da Justiça. 200 entidades “exige a devida trans- dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

Através de um desvio legalizado, parência” sobre os dados da Seguri- 6. Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a DRU (Desvinculação de Receitas dade Social, e “a suspensão da tra- a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da da União), maneja recursos que são mitação da PEC 287/2016, até que União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais... § 3º A pessoa jurí- reorientados para o pagamento de se discuta democraticamente com a dica em débito com o sistema de seguridade social, como juros da dívida pública, que nunca foi sociedade no sentido de construir al- estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais auditada, contrariando mais uma vez ternativas... impedindo o retrocesso ou creditícios. o que manda a Constituição. Já ve- de direitos sociais”. 7. § 3º. – A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social como estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder publico nem dele receber benefí- cios ou incentivos fiscais ou creditícios.

8. http://s.oab.org.br/arquivos/2017/02/carta‐aberta‐so- bre‐a‐reforma‐da‐previdencia‐5.PDF

Parlatório . MARÇO/2018 . 9 4. REFORMA TRABALHISTA

Decisões tomadas Além da pressa em implantar sem tias sociais, especialmente quando maior diálogo suas reformas, como a a sociedade sofre os efeitos da crise sem as devidas do sistema educativo, encontramos a econômica, com o avanço do de- ponderações mesma metodologia aplicada no que semprego. Modernizar a legislação ficou conhecido como Reforma Tra- trabalhista não pode, sob hipótese sobre seus balhista. alguma, ser pretexto para que se impactos na A OAB marcou posição contra o imponham prejuízos irreparáveis modo como esta Reforma vinha sen- aos trabalhadores e trabalhadoras sociedade do feita. Em nota do 1º de Maio deste de nosso país. podem vir a ano, denuncia o ritmo forçado, que assimilamos mais acima ao bombar- Pressa e desacertos que justifica- causar danos deamento dos drones. ram ações no STF9. Há um MS de irreparáveis Em Regime de Tramitação de Ur- Senadores contra a tramitação da gência, o projeto enviado pelo Exe- reforma, recusado pela Presidente sobre aqueles que cutivo em fins de Dezembro de 2016 do Tribunal, conforme Jurispru- são o principal teve sua Redação Final aprovada pela dência da Corte, por ser “incabível motivo de Câmara de Deputados em Abril de a judicialização de atos de natureza 2017. Encaminhada ao Senado, foi interna corporis praticados nas Casas existência de aprovada em 11 de Julho, e sanciona- Parlamentares”. E uma ADI da PGR nosso Estado da pelo Presidente da República em em defesa dos direitos, e da própria 13 de Julho. Vale retomar trechos da Constituição, incluindo medida cau- Democrático de Nota de 1º de Maio de 2017: telar – a partir da qual o Ministro Direito, o cidadão. Luis Roberto Barroso já pediu escla- A OAB reafirma seu compromisso recimentos sobre a possibilidade de de atuar com empenho e destemor violação de garantias constitucionais na defesa da Constituição Federal, de amplo acesso à jurisdição e a as- do Estado Democrático de Direito sistência judiciaria integral aos ne- e da sociedade... As propostas de al- cessitados. terações na legislação trabalhista e Por sua vez, a ANAMATRA – As- na Previdência Social, hoje em an- sociação Nacional dos Magistrados damento no Congresso Nacional, da Justiça do Trabalho, decidiu que: não podem ser debatidas de forma açodada... Decisões tomadas sem o questionamento à aberração im- as devidas ponderações sobre seus posta deva ser feito ponto a ponto impactos na sociedade podem vir no STF, e não por meio de uma a causar danos irreparáveis sobre ADIN”. E ainda, “atacar pontos de aqueles que são o principal motivo inconstitucionalidade no STF mais de existência de nosso Estado De- patentes e permitir que a jurispru- mocrático de Direito, o cidadão... dência dos tribunais da justiça do Num momento em que são tantos trabalho construa a melhor in- os percalços enfrentados pelas ins- terpretação desse texto, de acordo tituições, cabe ao Congresso Na- com os princípios constitucionais e 9. ADI 5.766, da PGR, MS 34989. cional preservar direitos e garan- que regem o direito do trabalho.

10 . Parlatório . MARÇO/2018 5. DESPESAS REPRESADAS X DÍVIDA PÚBLICA Em 2005, houve

Problema crônico no Brasil, a dí- te Emenda Constitucional do Teto um resgate vida pública gera controvérsias, por de Gastos Públicos (PEC 55/2016 antecipado ao FMI, sua dimensão e pelo fato de ser man- e 241/2016, Emenda 95/2016) que tida como uma verdadeira caixa pre- autoriza limitar o gasto público pri- a quem se pagava ta sobre a qual não há transparência, mário e praticamente congelar por juros inferiores a já que os últimos Presidentes veta- 20 anos os recursos de setores pro- ram uma auditoria com participação tegidos constitucionalmente como 4% ao ano. Desde da sociedade civil. saúde e educação. então o Governo Vale lembrar que em 2005, hou- Tudo beneficiando ainda do si- ve um resgate antecipado ao FMI, a lêncio da Justiça, apesar de ajui- paga juros de quem se pagava juros inferiores a 4% zamento de ações pela AJUFE, a mercado, e os ao ano. Desde então o Governo paga ANAMATRA e a DPU, além do PT, juros de mercado, e os bancos se tor- do PSOL, Federações e Confede- bancos se tornam nam mais ricos. A dívida representa rações de trabalhadores11. Trata-se mais ricos. A dívida em Dezembro de 2016 nada menos de emenda controvertida também representa em que 69,5 % do PIB10. E 45% do or- porque retira do Parlamento suas çamento são reservados aos juros e atribuições relacionadas com o or- Dezembro de 2016 amortização da dívida, graças aos çamento. Como resultado, ficaram nada menos que desvios acima mencionados, através limitadas “as aplicações em ações e do artifício legal chamado DRU. serviços públicos de saúde e em ma- 69,5 % do PIB. Enquanto isto o Planalto e alguns nutenção e desenvolvimento do en- parlamentares apressam-se a im- sino”. Confirmando a subserviência, por medidas sem negociar um novo as restrições não se aplicam a “gastos 10. Dívida pública brasileira – mensuração, composição, evolução e sustentabilidade – josué alfredo pellegrini – se- Pacto Social. Quase sempre em tem- com a dívida pública e despesas com nado federal – Fev. po recorde. Dentre outras, a recen- aumento de capital de empresas”. 11. ADIs 5.715, 5.734, 5.633, 5.643, 5.658 e 5.680.

Parlatório . MARÇO/2018 . 11 6. DESIGUALDADE, CONCENTRAÇÃO DE RENDA E “NOVOS PO- BRES”

Para 2017 o Embora tenha se acentuado a de- lésimo mais rico chega a um décimo sigualdade, não é de hoje que a con- (10,6 %) de toda a renda, índices que Banco Mundial centração de renda tem sido favore- ultrapassam os limites considerados estima um cida, assim como os extraordinários toleráveis para as sociedades demo- e inexplicáveis ganhos do sistema cráticas, segundo Piketty12. A linha aumento da financeiro. Sabe-se que o Brasil é o de pobreza foi estipulada em R$ população grande paraíso dos Bancos, segmen- 140,00 per capita e por mês, e soma- to que se apropria dos maiores lu- ria 20, 8 milhões de brasileiros, além vivendo na cros. Conforme noticia a revista Exa- dos 9,30 milhões classificados como miséria. me, considerando “apenas o lucro de pobreza extrema. atribuído a acionistas controladores, Enquanto isto, 23,4 % da popu- Teríamos entre os bancos são os campeões entre as lação ativa vive com menos de 1 sa- 2,5 milhões e empresas com maiores lucros no pri- lário mínimo. Fatos que nos levam meiro trimestre de 2017”. a refletir sobre as disposições cons- 3,6 milhões de O fato é que 0,5 % da população titucionais relativas à dignidade e à “novos pobres” ativa, com renda acima de 40 SM igualdade. vítimas da mensais (R$ 325.000 anuais) concen- Para 2017 o Banco Mundial es- tra 30% da renda total e 43 % de toda tima um aumento da população ruptura do a riqueza declarada em bens e ativos vivendo na miséria. Teríamos en- Contrato Social financeiros, como revela recente es- tre 2,5 milhões e 3,6 milhões de tudo do IPEA, de autoria de Sergio “novos pobres”13 vítimas da ruptu- – político e W. Gobetti e Rodrigo Otavio Orair. ra do Contrato Social – político e econômico. A concentração de renda brasilei- econômico acima referido. Segundo ra “supera qualquer outro país com o estudo, “em média, esses brasilei- informações disponíveis...” O déci- ros têm menos de 40 anos, moram mo mais rico apropria-se de metade nas zonas urbanas, concluíram pelo da renda das famílias brasileiras (52 menos o Ensino Médio e estavam %), o centésimo mais rico algo pró- empregados em 2015, sobretudo no ximo a um quarto (23,2 %), e o mi- setor de serviços”.

12. Tributação e distribuição de renda no Brasil – Sergio Wulff Gobetti e Rodrigo Orair www.ipcundp. org/pub/port/WP136PT_tributacao_e_distribui- cao_de_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_par- tir_das_declaracoes_tribut arias_das_pessoas.pdf

13. https://nacoesunidas.org/wp‐content/uplo- ads/2017/02/NovosPobresBrasil_Portuguese.pdf

12 . Parlatório . MARÇO/2018 7. POLÍTICAS PÚBLICAS: DIREITOS SONEGADOS, EDUCAÇÃO BÁSICA E CONSCIENTIZAÇÃO

Voltando à afirmação do Mande- ção entre as migalhas doadas à po- Aqui cabe aos Advogados em pri- la, falham as políticas públicas não pulação marginalizada e as fortunas meira linha, juntamente com Promo- somente nas prisões, uma das maio- entregues ao sistema financeiro e tores e Juízes, pelas razões indicadas res vergonhas nacionais. Aos despri- bancário, numa espiral de endivida- no início do artigo, uma participação vilegiados cabem precários serviços mento desde o início dos anos 2000. efetiva ao lado de todos os brasileiros essenciais, negam-se direitos sociais A mesma espiral que sistematizou e que desejam lutar para aperfeiçoar e e políticos assegurados na consti- ampliou o assalto aos cofres públi- consolidar nossa Democracia. Com tuição. E aponta-se a privatização cos, desviando somas fabulosas, que diálogo aberto, corrigindo eventuais como solução mágica. Ultimamente, resultam na precariedade de servi- desacertos da Constituição em vigor, retiram-se garantias e proteção nas ços acima mencionada. Desvios sem mas sem perder o principal, todo o relações laborais, na oferta de em- precedentes, em sua maioria ainda conjunto de direitos por ela assegu- pregos e oportunidades de inclusão sem punição nem transparência, que rados e elencados de forma explícita. efetiva. Alguns poucos acumulam na origem revelam escárnio e falta de privilégios, e a grande maioria se vê pudor, na tentativa de manter-se no OUTROS TANTOS DIREITOS A afastada dos resultados concretos da poder, ou manter seus partidos, num PRESERVAR atividade econômica, assim como da sistema político-partidário cada vez Múltiplos outros direitos garanti- participação política. mais insatisfatório. dos pela nossa Constituição de 1988 Neste artigo não nos cabe fazer Estamos diante de uma debacle, restam a preservar, aperfeiçoar, con- mais uma lista dos direitos sonega- termo pouco conhecido, mas dicio- solidar, tornar mais acessíveis, garan- dos. Ao contrário, falta publicidade narizado. Com partidos esvaziados, tir. Já mencionamos que de forma a uma lista dos direitos garantidos sem programas consistentes, e com deliberada, desde a redemocratiza- em nossa Constituição, e aqueles grande número de políticos do execu- ção, não se retomou o trabalho de assegurados por tratados interna- tivo e do legislativo sob suspeita. As educação popular interrompido cionais dos quais o Brasil é signa- eleições de 2018 parecem comprome- brutalmente pela Ditadura em 1964. tário. Para que sejam conhecidos e tidas. Executivo e parte do Legislativo Não houve – e parece não haver ain- reivindicados, necessitaríamos de parecem conspirar para criminalizar da interesse em implantar políticas transparência, facilidade de acesso à os políticos, e a política. Um vácuo públicas que estimulem conhecer administração e à Justiça, e isto não lhes ajudaria a manter-se no poder, seus direitos, viabilizar o potencial de é desejado efetivamente, fica no dis- prorrogar seus mandatos. Uma des- crianças, jovens e adultos marginali- curso político da maioria dos candi- crença e desinteresse contribuiriam zados pela democracia incompleta na datos e dos partidos, assim como de para que possam impunemente fazer qual vivemos, que é magnânima com administradores e gestores. as reformas que desejam (política, uma minoria e avarenta com a gran- Para que não sejam conhecidos tributária, trabalhista, liberdade da de maioria – em particular aqueles todos estes direitos, ações educativas imprensa, e toda a agenda acima in- das camadas mais pobres. que já foram chamadas de conscien- dicada) em detrimento do nosso atual A conscientização e a educação tização, foram criminalizadas como Pacto social-político e econômico. política, conforme Paulo Freire, pa- “politização”, e não foram retomadas Impressiona a pressa e a abran- recem ser percebidos pelos podero- desde a chamada “redemocratização”. gência da pauta. Em poucos meses, sos como algo que ameaça sua con- Assim, uma forma de paternalismo tenta-se fazer apressadamente, sem tinuidade no poder. Fica mais fácil conseguiu impedir um nível deseja- consulta à sociedade, o que normal- implantar políticas assistencialistas, do de consciência política. Discur- mente exige tempo, clareza, transpa- provisórias, dependendo do Gover- sos políticos e uma mídia invasora rência, consultas, debates, concerta- no. E não política de Estado, com e anestesiante escondem a compara- ção e procura de consenso. continuidade assegurada.

Parlatório . MARÇO/2018 . 13 Nas últimas décadas a prioridade Uma primorosa Lei da Migração, foi criar programas e políticas assis- foi finalmente aprovada pelo Con- tencialistas, programas compensa- gresso em Abril de 2017 e enviada à tórios. Que geram dependência, e Presidência, no mês seguinte. O pro- gratidão, muitas vezes superficial e jeto que teve origem no Senado e foi inconsciente. A qual não permite aprovado também na Câmara de De- identificar a precariedade da ajuda, putados, foi contemplado com 30 ve- as ameaças aos seus próprios direitos. tos. Um inestimável desperdício. Os E sobretudo evita estimular níveis de vetos desfiguraram a laboriosa cons- consciência crítica – no sentido defi- trução parlamentar, amplamente dis- nido pelo saudoso educador. Nem o cutida com a sociedade, cuja coerên- fato concreto de que os mesmos Go- cia e alcance a transformaram numa vernos que os assistem com migalhas, das mais avançadas leis hoje dispo- direcionam somas fabulosas para o níveis sobre o assunto. Sem os vetos, sistema financeiro, além da corrup- poderia ter sido sancionada perante ção agora mais visível e que começa a o corpo diplomático, e comunidades ser quantificada. de estrangeiros aqui residentes, com Vejamos alguns direitos consti- participação direta do novo Secretá- Na maior parte tucionais ameaçados, que poderiam rio Geral da ONU. Com os vetos, não dos países fazer parte de uma agenda. De uma houve maiores menções. Evidenciou lista de prioridades que seria assumi- vergonhosa e imerecida discrição. o chamado da por grupos e pessoas com maior leque salarial é sensibilidade e maior qualificação 2. Quanto aos Salários, desde o Salá- para cada área, numa ação coletiva rio Mínimo até os mais altos salários naturalmente de e multidisciplinar. Atividades que na função pública, muito resta a fa- 1 a 7, o topo da permitiriam uma ação transforma- zer, e muito temos a temer. De um dora na qual podem destacar-se Ad- lado o risco de achatar ainda mais a Administração vogados, dos mais antigos aos mais base da pirâmide, vista a lógica im- percebendo jovens, e estudantes de Direito, em placável do novo modelo econômico parceria com associações e entidades que tenta impor-se sem ouvir a so- remunerações 7 da sociedade civil. A listagem não é ciedade. Do outro a impune elevação vezes superior à exaustiva, nem a ordem de sua apre- de salários nababescos, e vantagens sentação significa prioridades. cumulativas, que lembram a antiga base. No Brasil expressão “O céu é o limite”. temos um leque 1. Desde a redemocratização cobra- Estudos, análise, transparência, que ultrapassa -se uma reforma do antigo Estatuto poderão nos conduzir a aperfeiço- do Estrangeiro, elaborado em 1980, ar esta questão, numa democracia o inimaginável: na vigência do AI-5 e inspirado na que recomenda solidariedade e mais remunerações conhecida “Doutrina da Segurança igualdade. Na maior parte dos países Nacional”. Assunto que representa o chamado leque salarial é natural- que representam uma das lacunas da própria Consti- mente de 1 a 7, o topo da Adminis- mais de 50 vezes tuição de 1988. tração percebendo remunerações Desde o Governo de Sarney, não 7 vezes superior à base. No Brasil a remuneração se deu prioridade, apesar de múlti- temos um leque que ultrapassa o básica. plos projetos de reforma. inimaginável: remunerações que re-

14 . Parlatório . MARÇO/2018 presentam mais de 50 vezes a remu- neração básica. a) Aqui teríamos uma primeira prio- ridade, um primeiro item para um novo Pacto Social. Propostas devem ser criadas, e já circula uma delas: a renúncia, por uns 10 anos, quando dos aumentos salariais que tentam corrigir a inflação ou remunerar produtividade. Os do topo aceita- riam que se aplique a totalidade do novo índice para os salários da base, e “apenas um décimo” aos salários do topo da pirâmide. Por exemplo, num improvável aumento de 10% mas obrigações trabalhistas que que construímos, pela qual lutamos. para o próximo salário mínimo, comparativamente favorecem as este passaria de R$ 937,00 para R$ empresas brasileiras e as distanciam 4. Privatizar as políticas sociais, des- 1.370,00. Uma diferença de R$ 93,70 dos custos da concorrência. Onde a conhecendo a dignidade e os Direi- Já os que recebem R$ 50.000,00, real competitividade de nossas em- tos Humanos, deveria estar fora do aceitariam “apenas um décimo”. Na presas, que vendem quase sempre programa. Mas é um dos itens sobre mesma proporção, o novo salário mais caro seus produtos similares os quais teremos provavelmente as seria R$ 50.550,00, e a diferença de aos europeus ou norte-americanos, maiores dificuldades. R$ 550,00. Ao longo de um certo pe- os quais pagam salários, bens e ser- ríodo, progressivamente, se chegaria viços num outro nível de custos e 5. Visto o anuncio das 57 privatiza- a um leque salarial menos desigual. remuneração? Não duvidemos que ções anunciadas, inclusive da Casa o novo modelo de pacto originado da Moeda e da Eletrobrás, temos uma b) Uma outra prioridade, que parece no Consenso de Washington, que longa lista que necessita aprofunda- inadiável. Respeitar o chamado “teto se pretende importar e impor, fará o mento. Começando por identificar a constitucional”, constantemente des- impossível para esconder números e natureza de cada uma delas, e como moralizado por práticas criativas, fatos, e apresentar versões que não aplicar os princípios constitucionais e recurso a privilégios, visão corpo- correspondem a toda a verdade. do Pacto social-econômico e político rativa, e até decisões judiciais. Seria vigente, sabendo que não é impossível necessário novamente um Pacto? 3. As políticas fiscais podem vir a ser que um rolo compressor venha mais Uma renúncia de direitos, para evitar um outro ponto de debate e constru- uma vez com imposições de prazo e insegurança jurídica e pesadas ações ção laboriosa. O novo modelo pre- de forma. Podemos esperar, entre- futuras contra o Estado? Ou simples- tende implantar os mesmos arrochos tanto que não haverá mais clima para mente, um Pacto moral para fazer que geraram crises profundas entre difundir dados enganosos, e também valer efetivamente o disposto no Art. “gregos e troianos”, já mencionados para tentar novamente fazer de cada 37, XI, da Constituição Federal? no início. Respeitando a Constitui- privatização uma forma já manjada ção, cabe sim ao Estado um papel de de enriquecimento ilícito, de trans- c) No setor privado, um esforço par- solidariedade para com os mais ne- ferência de recursos públicos para ticular parece necessário. Em plena cessitados. É o sentido do Pacto em apadrinhados. Ou de recursos sub- economia globalizada, aplicamos vigor, que se traduz em nossa Cons- vencionados oriundos do BNDES, do salários básicos e até mesmo algu- tituição. É o sentido da democracia FAT ou outras fontes conhecidas.

Parlatório . MARÇO/2018 . 15 Existem 6. Finalmente a chamada Reforma campanha eleitoral, sem artificialis- Política é um dos maiores desafios. mos e custos elevados. Sem recurso propostas E será necessário debater sobre o às possibilidades cruzadas de desvios renovadoras, financiamento das campanhas elei- de dinheiro, com verdadeira trans- torais, a necessária renovação dos parência na origem dos financia- até mesmo a partidos e dos seus candidatos, a mentos, e em seus montantes – entre possibilidade limitação do número de mandatos, outros itens. e uma longa lista que responda aos Existem propostas renovadoras, de aceitar anseios da sociedade e às exigências até mesmo a possibilidade de acei- “candidatos da democracia. tar “candidatos sem partido”14 – que Sem criminalizar a política, nem seriam asseguradas pelo Art. 23 e 29 sem partido”. os partidos, parece evidente que exis- do Pacto de San José da Costa Rica, tem rejeições, tentativas de queimar dentre todas as formas que devem candidaturas por antecipação, divi- ser implantadas para renovar e iden- sões artificiais do eleitorado para fide- tificar candidatos mais próximos dos lizar sem discutir o essencial, e outras anseios e necessidades do povo e da artimanhas de experientes marque- sociedade. teiros, publicitários, dirigentes de Felizmente temos políticos expe- partidos e outras “cobras criadas”. rientes e comprometidos que pode- Se impõe um novo formato de rão oxigenar as alternativas a propor.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 5633/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2016. Disponível em: .

14. ARE 1.054.490. Acesso em: 21 set. 2017.

16 . Parlatório . MARÇO/2018 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in- jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci- constitucionalidade nº 5643/DF. Relator: Ministra Rosa dente=5208032> Acesso em: 21 set. 2017. Weber, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2017. da renda no Brasil: novas evidências a partir das decla- rações tributárias das pessoas físicas. Working Paper, BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in- Brasília, n. 136, fev. 2016. Disponível em: . te=5132872>. Acesso em: 21 set. 2017. Acesso em: 20 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in- OAB e entidades divulgam carta aberta sobre a reforma constitucionalidade nº 5680/DF. Relator: Ministra Rosa da previdência. OAB, Brasília, fev. 2017. Disponível em: Weber, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2017. cia>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in- PELLEGRINI, J. A. Dívida Pública Brasileira: Mensura- constitucionalidade nº 5715/DF. Relator: Ministra Rosa ção, composição, evolução e sustentabilidade. Senado Weber, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2017. em: . Acesso em: 19 set. 2017. constitucionalidade nº 5734/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2017. Civilização Brasileira, 2002.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in- SOUZA, Herbert José de (BETINHO) - Democracia e constitucionalidade nº 5766/DF. Relator: Ministro Ro- Cidadania. Democracia Viva, Rio de Janeiro, n. 28, ago/ berto Barroso, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2017. Continuada/Direitos%20Humanos/dv28_especial_iba- senet.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segu- rança nº 34989/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. SOUZA, Herbert José de (BETINHO) - Poder do cida- Disponível em: Aces- comsociologia.com/2010/06/poder-do-cidadao-texto- so em: 21 set. 2017. -de-herbet-de.html>. Acesso em: 19 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraor- WORLD BANK GROUP. Salvaguardas contra a rever- dinário com agravo nº 1054490/RJ. Relator: Ministro são dos ganhos sociais durante a crise econômica no Roberto Barroso, 2017. Disponível em:

Parlatório . MARÇO/2018 . 17 Mariana de Siqueira Artigo Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Direito Público pela UFPE. Correio eletrônico: [email protected] O Presidencialismo Brasileiro no Contexto da Crise Política e a Fragilidade da Democracia Nacional

INTRODUÇÃO Como resultado dessa desespe- tende a prometer fazeres com foco rança compartilhada, a participação nos interesses do país que irá gerir Nos últimos anos tem sido política dos cidadãos nas eleições e, uma vez eleito, dificilmente cum- usual a menção à existência de tem caído, bem como tem sido in- prirá com o prometido, pois admi- uma crise política ou democrática crementada a ideia de antipolítica nistrará um país que deve satisfação nacional. Os sentimentos coleti- (o que é político é visto como algo não só aos seus sujeitos internos, vos dominantes são o da descren- ruim, como errado e como elemento mas também ao mercado financeiro ça nas atuações do Legislativo e que para nada serve). internacional. Como resultado des- do Executivo e o da incapacidade Há uma demanda por novos no- sa soma, os problemas perduram, de seus membros em resolverem mes capazes de solucionar a conjun- assim como a descrença da popu- os problemas institucionais e so- tura posta. Nomes, de preferência, lação nas habilidades dos instru- ciais brasileiros. não ligados historicamente ao que se mentos tradicionais de exercício do rotula como político. Nos dizeres de poder para resolução de seus pro- Bauman, a sociedade parece esperar blemas mais basilares. por “homens de pulso” aptos a rea- No caso brasileiro, a crise do Es- lizarem o que os políticos, o Estado tado é acentuada pelas peculiarida- Nação e os instrumentos democrá- des de seu presidencialismo. É jus- ticos tradicionais são incapazes de tamente esse o ponto de análise do fazer1. presente artigo. Observando a crise A crise democrática atual é, nos democrática atual, o texto se propõe dizeres de Bauman, a crise do Es- a analisar o presidencialismo nacio- tado Nação, cuja criação e ideias nal e seus principais dilemas. Para basilares não foram estruturadas a isso, faz descrição de trechos do di- 1. BAUMAN, Zigmunt. Bauman examina crise da internet e da política. Disponível em: https://ou- partir de um mundo interconectado reito constitucional positivo ligados traspalavras.net/posts/bauman-examina-crise-da- e globalizado. Um candidato à che- ao assunto, bem como abordagem -internet-e-da-politica/ Acesso em 18 de setembro de 2017. fia de Executivo, em sua campanha, crítica interdisciplinar do tema.

18 . Parlatório . MARÇO/2018 2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O ATUAL PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO

O texto original da Constituição rismo. Inspirados na experiência de fim do Império e a adoção da Repú- da República Federativa do Brasil alguns países europeus, alguns dos blica, o país entrou no universo presi- de 1988 adotou o presidencialismo constituintes, especialmente no iní- dencialista e dele não mais se afastou4. como sistema de governo, de modo cio dos trabalhos da Assembléia, ten- De todo modo, diante das dis- a concentrar na chefia do executivo taram aprovar o parlamentarismo no cussões iniciais realizadas na Cons- as funções de chefia do estado e de Brasil. Há quem diga, inclusive, que tituinte e da ausência de consenso chefia de governo. A inspiração es- a atual existência de medidas pro- quanto à adoção do presidencialis- tadunidense vivida pelos autores da visórias no texto da Constituição é mo, o texto do Ato das Disposições Constituição republicana de 1891 foi verdadeiro reflexo remanescente das Constitucionais Transitórias trou- mantida décadas depois pelo consti- lutas travadas pelo bloco constituinte xe em seu art. 2º a previsão de um tuinte de 1988. defensor do parlamentarismo2. plebiscito popular futuro para a O presidencialismo é habitual- O parlamentarismo é tradicio- confirmação das escolhas constitu- mente definido como modelo de sis- nalmente conceituado como sistema cionais realizadas quanto à forma tema de governo que reúne nas mãos político que se opõe ao presidencia- de governo e ao sistema de governo. de um só sujeito as funções de chefiar lismo, derivando essa oposição pre- Tal plebiscito foi executado no dia 7 o Estado e de governar, a ele compe- cipuamente do fato de o parlamenta- de setembro de 1993 e confirmou a tirá, por exemplo, a representação da rismo não viabilizar a concentração escolha realizada anos antes pela As- unidade estatal, o dever de proteger a das funções de chefia de estado e de sembléia Constituinte. continuidade do Estado, a estrutura- chefia de governo nas mãos de um Dados disponibilizados no sítio ção das políticas do Estado e a execu- só indivíduo. No parlamentarismo é eletrônico da justiça eleitoral de- ção de sua administração cotidiana. usual que a chefia de governo fique a monstram a vitória numérica maciça É importante mencionar, espe- cargo do primeiro ministro ou de um da força da tradição. No âmbito da cialmente no atual contexto de crise membro do parlamento e que a chefia forma de governo, a República ven- e de reflexão sobre mudanças na es- de estado seja exercida pelo monarca ceu com o percentual de 66,26% dos trutura política nacional, que a ado- ou presidente, as variações existirão votos e, no que tange ao sistema de ção do presidencialismo pelos mem- conforme o exato modelo de parla- governo, o presidencialismo saiu vi- bros componentes da Assembleia mentarismo adotado pelo país3. torioso com o percentual de 55,67% Constituinte brasileira de 1988 não O Brasil, a despeito da polêmica dos votos5. foi palco de unanimidade. Relatos travada na constituinte de 1988, não históricos apontam a existência de viveu em sua história constitucional um forte bloco defensor da positi- reiteradas experiências parlamenta- 2. Neste sentido: “Além da criação do PSDB e do plebis- ristas, muito pelo contrário, com o cito de 1993, outro fruto do debate em torno do parla- vação constitucional do parlamenta- mentarismo na Constituinte teria sido a instituição das medidas provisórias . É o que observa o senador Pedro Simon (PMDB-RS), que, à época, governava o estado do Rio Grande do Sul.” Disponível em: http://www12.senado. leg.br/noticias/materias/2008/09/25/na-constituinte-ten- tativa-de-adocao-do-parlamentarismo-fracassou Acesso “A atual existência de medidas em 18 de setembro de 2017. 3. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Pau- provisórias no texto da Constituição é lo: Método, 2011. p. 699

4. É oportuno mencionar a existência do Parlamentaris- verdadeiro reflexo remanescente das mo às avessas no período imperial. O modelo é de tal ma- neira rotulado pela existência do poder moderador que lutas travadas pelo bloco constituinte mitigava sobremaneira o poder do parlamento. Para saber mais ler: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitu- defensor do parlamentarismo” cional. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 362 - 364 5. Disponível em:www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/ SENADOR PEDRO SIMON (PMDB-RS) plebiscito-de-1993. Acesso em 18 de setembro de 2017.

Parlatório . MARÇO/2018 . 19 O impeachment 3. BREVE PANORAMA DO EXECUTIVO FEDERAL A PARTIR DO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUAS VIVÊNCIAS é a mais emblemática Confirmada em plebiscito a ado- resultado possível de afastamento ção do presidencialismo, passados definitivo do cargo daquele que foi forma de aproximados 29 anos da publicação eleito para ocupá-lo por lapso tem- responsabilização do texto de 1988, é possível reunir de poral definido na Constituição. modo breve algumas características Ainda no que diz respeito ao di- presidencial, basilares do presidencialismo brasi- reito constitucional positivo, con- especialmente leiro positivado. vém mencionar a possibilidade de No Brasil, a chefia do Executivo reeleição presidencial. Tal hipótese diante do federal é exercida pelo Presidente da não foi prevista no texto original resultado República com o auxílio dos Minis- constituinte, sendo fruto de emenda tros de Estado, as suas competências constitucional posterior. No mês de possível de constitucionais são múltiplas e va- junho de 2017, foram completados afastamento riadas, cabendo ao Presidente, por 20 anos da aprovação dessa emenda. definitivo do exemplo, propor projeto de emenda Hoje, portanto, é possível a reeleição à Constituição, editar medidas pro- presidencial para mais um mandato cargo daquele visórias, propor iniciativa de leis or- subsequente. que foi eleito dinárias e complementares, indicar Saindo do direito positivo e os nomes de ministros para cargos adentrando em análise crítica de para ocupá-lo por em tribunais superiores, indicar os ordem interdisciplinar, é possível lapso temporal nomes de dirigentes de agências re- dizer que o Brasil, seguindo a linha guladoras, exercer a direção superior de muitos dos países latino-america- definido na da administração federal, manter nos, personifica e pessoaliza a gestão Constituição. relações com estados estrangeiros, pública de modo bastante forte. O celebrar tratados internacionais, Presidente da República é a própria dentre outras inúmeras atividades, personificação do poder. Nesse sen- estando as suas atribuições privati- tido, o modo de exercício das atri- vas escritas de modo claro no art. 84 buições do Executivo brasileiro é da Constituição Federal. rotulado criticamente por alguns de Diante do que se encontra redi- seus estudiosos como “presidencia- gido no texto constitucional, o Pre- lismo imperial”6. Como consequên- sidente, recebedor de múltiplas tare- cia do exposto, a agenda política do fas, é devedor também de satisfações Congresso é fortemente influencia- sobre os seus fazeres e abstenções. da pela pauta presidencial7. As inúmeras atuações presidenciais Em contrapartida à adoção de se sujeitam à controle e fiscalização, um “presidencialismo imperial” tipi- podendo ser efetuada a responsa- camente estadunidense, o Brasil pos- 6. FERNANDES, Florestan. O presidencialismo im- bilização do Presidente em caso de sui um modelo legislativo pluriparti- perial. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/ bdsf/bitstream/handle/id/118975/20_31OUT88%20 descumprimento dos deveres cons- dário e um sistema de representação -%200013.pdf?sequence=3 Acesso em 18 de setem- bro de 2017. titucionais que lhe são direcionados. proporcional para a composição da

7. BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. O impeachment é a mais emblemá- Câmara dos Deputados. Tais fatos, Relações executivo-legislativo no presidencialismo tica forma de responsabilização pre- em conjunto, geram uma dependên- de coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. Senado: 2012. p. 14-15. sidencial, especialmente diante do cia da Chefia do Executivo com rela-

20 . Parlatório . MARÇO/2018 ção ao Legislativo. Para a implemen- disse Sérgio Abranches há alguns “A formação tação de muitas das suas promessas anos8. A conjugação de tais fatores e de campanha, o Executivo depende a não adoção do parlamentarismo é do governo, a da obtenção de maioria no Legisla- peculiaridade Tupiniquim. Sobre ela elaboração de seu tivo. Aí está a “jabuticaba” presiden- e suas consequências discorre o tópi- cial ou o dilema institucional, como co a seguir. programa de ação e do calendário

4. O PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO É DE COALIZÃO? O QUE negociado de ISSO SIGNIFICA? eventos têm

Sérgio Abranches, em artigo pu- dições de sua implementação. É o impacto direto blicado em 1988 e denominado “Pre- trânsito entre o segundo e o ter- sobre a estabilidade sidencialismo de Coalizão: O Dilema ceiro momentos que está no ca- Institucional Brasileiro”9, realizou minho crítico da consolidação da futura.” cuidadosa análise da realidade na- coalizão e que determina as con- SÉRGIO ABRANCHES cional e fez conjecturas sobre o por- dições fundamentais de sua conti- vir no contexto da redemocratização nuidade. A formação do governo, brasileira. Em suas palavras, a conju- a elaboração de seu programa de gação dos itens peculiares nacionais ação e do calendário negociado de produz um tipo ímpar de práticas eventos têm impacto direto sobre a políticas realizadas para a produção estabilidade futura10. de maiorias (coalizões). No que diz respeito às coalizões, ele explica: Sobre as peculiaridades de nosso presidencialismo, diz Abranches: A formação de coalizões envolve três momentos típicos. Primeiro, É nas combinações mais frequentes a constituição da aliança eleitoral, entre características institucionais, que requer negociação em torno e não em sua presença isolada, que de diretivas programáticas míni- a lógica e a especificidade de cada mas, usualmente amplas e pouco modelo emergem. É também aí específicas, e de princípios a se- que se revela a natureza do regi- rem obedecidos na formação do me até agora praticado no Brasil. governo, após a vitória eleitoral. Não existe, nas liberais-democra- Segundo, a constituição do gover- cias mais estáveis, um só exemplo 8. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden- cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. no, no qual predomina a disputa de associação entre representação Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. por cargos e compromissos rela- proporcional, multipartidarismo e 1988. p. 5 - 34. tivos a um programa mínimo de presidencialismo11. 9. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden- cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. governo, ainda bastante genérico. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 5 - 34. Finalmente, a transformação da Com a coalizão para a obtenção 10. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi- aliança em coalizão efetivamente das maiorias no Congresso, o go- dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. governante, quando emerge, com verno objetiva garantir estabilidade 1988. p. 27-28.

toda força, o problema da formu- para realizar as reformas que consi- 11. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi- lação da agenda real de políticas, dera necessárias e impedir aquelas dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. positiva e substantiva, e das con- que sejam contrárias ao seu projeto 1988. p. 19.

Parlatório . MARÇO/2018 . 21 De 1926 até político. As práticas políticas para a gislativo, ressalte-se, é algo positivo, a conquista dessas maiorias acabam dependência do Executivo para com hoje, dentre por envolver a oferta de cargos po- o Legislativo não é sinônimo neces- 25 presidentes líticos, cargos em comissão, verbas sário de crise. O controle visa produ- para os entes federados de origem zir equilíbrio e, em tese, é visto como da República, dos parlamentares, além de ilícitos algo positivo para a democracia. Os apenas 5 foram penais, atos de improbidade e outras problemas em tal contexto nascem formas de corrupção12. não do controle lícito e coerente com eleitos pelo Como tal modalidade de acor- o direito positivado, mas sim a partir voto popular e do não é formal, como a pauta a ele das práticas cotidianas efetivadas em inerente oscila, este modelo fomen- desrespeito a preceitos éticos basila- permaneceram ta, de tempos em tempos, as tensões res e ao próprio direito positivo. Há, no posto até entre Legislativo e Executivo, espe- portanto, uma notável fragilidade nas cialmente num contexto de reelei- democracias que assentam as suas o fim. ções. Considerando as reeleições, a bases na pessoa do chefe do executi- dependência do Executivo para com vo. Em tais realidades, a perspectiva o Legislativo aumenta e o “preço” do democrática tende a se fragilizar du- apoio político também. rante os processos de divergência en- Diante da personificação do po- tre o Executivo e o Legislativo13. der na figura forte do Presidente, é A história presidencial (ou vice- 12. BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Relações executivo-legislativo no presidencialismo para ele que se direcionam as ten- -presidencial) do Brasil reforça bem de coalizão: um quadro de referência para estudos sões do modelo e suas consequên- as ideias expostas. De 1926 até hoje, de orçamento e controle. Senado: 2012. p. 17. cias. O recente processo de Impea- dentre 25 presidentes da República, 13. GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma chment deixou clara a conformação apenas 5 foram eleitos pelo voto po- reforma política. RIBAS, Luiz Otávio (org.) Consti- tuinte exclusiva. Um outro sistema político é possí- do presidencialismo de coalizão no pular e permaneceram no posto até o vel. São Paulo: Expressão Popular, 2014. p. 13 – 26. Brasil e o modo de operacionaliza- fim: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino 14. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/ ção prática dos acordos. Kubitschek, Lula, FHC e Dilma em so-5-presidentes-eleitos-completaram-o-mandato- 14 -em-90-anos/ Acesso em 18 de setembro de 2017. O controle do Executivo pelo Le- seu primeiro mandato .

22 . Parlatório . MARÇO/2018 5. O CONTROLE POLÍTICO DA COALISÃO E O JUDICIÁRIO

Sérgio Abranches, no texto aqui lizão, no entanto, não parece ter sido moderador da atualidade por igno- já mencionado, expôs a necessidade dado ao Judiciário pelo constituinte rar os mecanismos típicos dos freios de ser criado, na Constituição que o papel explícito e habitual de deci- e contrapesos16. viria a ser publicada, órgão capaz de dir politicamente os conflitos entre O Judiciário acaba aparecendo controlar essas distorções, essas in- Legislativo e Executivo. como o Hércules contemporâneo terferências indevidas, para além dos De todo modo, as polêmicas e com “doze trabalhos” árduos a rea- checks and balances tradicionais. A dúvidas estruturadas ao redor das re- lizar. Esse panorama foi previsto pe- ideia era de algo diferente. Ele falava lações entre Legislativo e Executivo los estudiosos da conjuntura, porém em um controle político de tal con- acabam batendo às portas do Supre- não é tido como desejável de modo juntura, a exemplo do que acontece mo Tribunal Federal e é nessa seara permanente, especialmente pelo de- no exterior15. que se vê fortalecido o atual debate sequilíbrio que representa. O texto constitucional, todavia, sobre a “crise institucional” entre o O que se nota diante do quadro não adotou expressamente tal dire- Judiciário e o Legislativo. brasileiro é que o Judiciário sozinho, triz. Sem dúvidas, o Judiciário pos- a despeito das eventuais decisões que Como resultado disso, hoje é pos- sui papel fundamental para garan- profere, não é capaz de controlar o sível notar um protagonismo do Ju- tir o funcionamento das democra- dilema institucional nacional. Fica diciário no controle do Legislativo e cias contemporâneas, no entanto, o pendente, portanto, o questiona- Executivo. No caso brasileiro, diante modo como tem executado as suas mento: O que fazer para solucionar o da inafastabilidade da jurisdição pre- atribuições fomenta críticas das mais que hoje já constatamos como inde- vista na Constituição, esse papel se diversas, havendo quem diga que sejável numa perspectiva de demo- reforça. No âmbito do tema da coa- o Judiciário corresponde ao poder cracia equilibrada?

6. COMO RESOLVER ESSE DILEMA DEMOCRÁTICO?

Atentando para as crises políticas Constituinte, expõe: que se revelam periodicamente no país, são inúmeras as ideias de mu- Se a crise tiver como um de suas dança sugeridas, há os que desejam causas a inadequação da Cons- a volta da monarquia, os que defen- tituição, nem assim se deve abrir dem o retorno da ditadura, os que mão da prática constitucional. querem o parlamentarismo como A solução, caso não possa ser en- caminho da salvação e os que susten- contrada na Constituição vigente, tam a necessidade de manutenção do será a revisão desta ou então a 15. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi- dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. presidencialismo, porém com modi- convocação de uma Assembleia Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 31. ficações estruturais profundas. Constituinte para elaborar uma 16. Nesse sentido ver: PINTO, Luís Costa. Judiciário quer Aqui, pela contemporaneidade nova Constituição. É indispensá- ser Poder Moderador; STF já ignora freios e contrapesos. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/ do debate, irei me ater ao tema da vel, entretanto, que não se admi- justica/judiciario-quer-ser-poder-moderador-stf-ja-ig- mudança através da realização de ta um vazio constitucional, um nora-freios-e-contrapesos/ Acesso em 18 de setembro de 2017. uma “constituinte soberana, parcial intervalo em constituição durante 17. A expressão aparece entre aspas por corresponder em 17 e exclusiva” . o qual o povo fique sujeito a um exatidão ao termo utilizado pelo movimento que defende Dalmo de Abreu Dallari, em livro poder arbitrário e absoluto18. tal procedimento. 18. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Consti- destinado ao tema Constituição e tuinte. São Paulo: Saraiva, 2010. p.70.

Parlatório . MARÇO/2018 . 23 Os políticos Para o autor, portanto, em tem- povo dificilmente será respeitado e pos de crise, é sim possível cogitar escutado. são vistos mudança constituinte, mesmo dian- Sem mudanças na organização como vilões, o te da insegurança que isso possa vir básica do poder a promoção de a representar. reformas sociais através da consa- Estado como o Analisando a história de reformas gração de novos direitos termina responsável pelas constitucionais do texto de 1988, é por não funcionar20. possível concluir que o redesenho desigualdades, o institucional nacional não é novida- O hiperpresidencialismo, como sentimento é o de de de 2017. O argumento da ingover- afirma Gargarella, afoga o empo- nabilidade motivou (e ainda motiva) deramento popular prometido pe- que a corrupção mudanças textuais substanciais no las novas constituições (ROBERTO compensa e de passado. Tivemos uma sutil revisão GARGARELLA, p. 24). do texto constitucional que acabou As crises estruturadas acabam que o voto não por motivar o nada sutil movimento por fomentar o sentimento de an- faz diferença. posterior de reformas. No Governo tipolítica e com esse sentimento as FHC foram 35 emendas constitucio- perdas democráticas se fazem enor- nais, no Governo Lula 28 emendas, mes. Os políticos são vistos como no Governo Dilma 24 e no Governo vilões, o Estado como o responsável Temer, até a data de finalização deste pelas desigualdades, o sentimento é texto, 3 emendas. o de que a corrupção compensa e de Sem sombra de dúvidas, o cal- que o voto não faz diferença. canhar de Aquiles da CF de 1988 Sobre o futuro, diante da dimi- reside na previsão de um presiden- nuição global do índice de participa- cialismo imperial e de coalizão. As ção popular nas eleições, começam crises dele advindas e o argumento a nascer teorias pós democráticas da “ingovernabilidade” são os cons- que refletem sobre a democracia sem tantes motivadores de mudanças povo. textuais constitucionais. Analisando No geral, os analistas da conjun- o caso argentino, Sampay expõe que tura tendem a ver esse vácuo demo- o calcanhar de Aquiles da reforma crático como transitório. O que dele constitucional de Perón foi a manu- virá não se sabe. O resultado certa- tenção de um presidencialismo forte, mente será consequência das esco- centralizado e personalizado no Exe- lhas do presente e, como de costume, cutivo. Ele só se manteve no poder tal revelado pela história, as oligar- enquanto foi conveniente para as quias tradicionais não farão as esco- oligarquias. “A Constituição morreu lhas necessárias para a reformulação 19. SAMPAY apud GARGARELLA, Roberto. Cons- igual a Aquiles, em uma idade preco- das estruturas. titucionalismo latino-americano: a necessidade 19 prioritária de uma reforma política. RIBAS, Luiz ce, em mãos de seu inimigo” . Como operacionalizar reformas? Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um outro sis- Justamente por isso, aponta forte Como assegurar as mudanças que tema político é possível. São Paulo: Expressão Popu- lar, 2014. p. 26. na atualidade o argumento da refor- são demandadas em nome da esta- 20. SAMPAY apud GARGARELLA, Roberto. Cons- ma política. bilidade democrática, do fim da cor- titucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. RIBAS, Luiz rupção e do término do desequilíbrio Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um outro sis- Onde o poder presidencial é o úni- entre os poderes? Como garantir que tema político é possível. São Paulo: Expressão Popu- lar, 2014. p. 26. co guardião do poder popular, o isso ocorra quando se sabe do mo-

24 . Parlatório . MARÇO/2018 dus operandi habitual do legislativo? gislativo e que fiquem impedidos por brasileiros são focos de crises, vistos Ele fará essas reformas via emenda determinado lapso temporal à novas como insuficientes e como necessá- constitucional? E os retrocessos que candidaturas políticas. rios objetos de mudanças e aperfei- podem vir daí? Será a constituinte feita? Caso re- çoamentos. Estamos no espeço entre É exatamente no contexto de tais alizada, será efetuada com segurança o reconhecimento da possível morte temores, que alguns defendem a e em defesa real das instituições de- do tradicional e das incertezas quan- “constituinte soberana, parcial e ex- mocráticas? Essas são perguntas que to ao novo que virá. É preciso conter clusiva”. Ela seria parcial por prote- subsistem sem respostas precisas e os fenômenos trágicos que queira se ger o núcleo essencial da atual cons- que acabam por gerar temores e opo- estruturar por hora e racionalizar as tituição, exclusiva por ser destinada sições à ideia em si. mudanças do agora. apenas às modificações pontuais do Não é possível prever o futuro texto constitucional apontadas como PARA ONDE IRÁ O LEVIATÃ? absolutamente, há espaços para re- essenciais e soberana por ser formada BREVES CONCLUSÕES formulações sábias, populares, efi- por sujeitos eleitos pelo voto popular A partir dos dizeres de Gramsci, cientes. Minimizar os poderes das com capacidade de instituir regras é possível dizer que estamos numa oligarquias tradicionais, equilibrar as novas. Quem seria esses sujeitos? Na fase de interregno. Quando o velho competências, reduzir privilégios his- proposta defendida pelo movimento, morre e o novo não nasce, segundo tóricos. O que sabe, ainda que pen- visando impedir mais do mesmo, se Gramsci, neste interregno ocorrem dentes dúvidas a respeito de como defende que os candidatos a mem- os fenômenos mórbidos mais di- proceder, é que é preciso retirar da bros constituinte sejam novos nomes versos. A democracia representativa República a ser moldada os resquí- não ocupantes de mandatos no Le- tradicional e o modelo presidencial cios de Império que nela subsistem.

REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden- FERNANDES, Florestan. O presidencialismo imperial. cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstre- Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. am/handle/id/118975/20_31OUT88%20-%200013.pdf?- 1. 1988. p. 5 – 34. sequence=3 Acesso em 18 de setembro de 2017.

BAUMAN, Zigmunt. Bauman examina crise da inter- NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Pau- net e da política. Disponível em: https://outraspalavras. lo: Método, 2011. net/posts/bauman-examina-crise-da-internet-e-da-poli- tica/ Acesso em 18 de setembro de 2017. PINTO, Luís Costa. Judiciário quer ser Poder Modera- dor; STF já ignora freios e contrapesos. Disponível em: BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Rela- https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/judicia- ções executivo-legislativo no presidencialismo de coa- rio-quer-ser-poder-moderador-stf-ja-ignora-freios-e- lizão: um quadro de referência para estudos de orçamen- -contrapesos/ Acesso em 18 de setembro de 2017. to e controle. Senado: 2012. RIBAS, Luiz Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. outro sistema político é possível. São Paulo: Expressão São Paulo: Malheiros, 2006. Popular, 2014.

Parlatório . MARÇO/2018 . 25 Marcos Dionísio Medeiros Caldas Artigo Foi advogado e assessor jurídico do Estado. Defensor dos Direitos Humanos e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos. Dedicou a sua existência a construção de uma sociedade mais equitativa e justa. Pactuar a Segurança para Redução da Violência1

…e a Promoção dos Direitos Neste pacto, poderia vir embuti- Desarmamento teria que ser mais Humanos em Territórios Comu- do a criação dos Conselhos Estadu- arrojada, com a inteligência debelan- nitários. ais de Segurança Pública, fortaleci- do o fluxo de armas de fogo para as Sem desmerecer os temas pro- mento das Ouvidorias de Polícia e mãos de jovens e demais delinquen- postos, o grande tema ausente no criação de uma carreira de Investiga- tes, inclusive, gratificando o policial pacto levantado pela Presidenta ção Interna para proteger o policial por cada Arma de Fogo apreendida. Dilma foi a Segurança Pública. lotado nas Corregedorias que tam- Forçosamente teria que cons- Nenhuma Democracia se sus- bém seriam aperfeiçoadas. tar deste pacto, a recomposição dos tenta com mais de 53000 homicí- Também deveria constar um am- plantéis das polícias e instituições o dios por ano, em sua maioria es- plo exercício de qualificação e requa- que passaria pela imediata convoca- magadora, condenados também lificação contínua dos policiais, so- ção dos policiais civis já formados, a mais absoluta impunidade. bretudo, para a defesa da Cidadania. convocação de PMs e Agentes Peni- Claro que também notei a au- A partir das discussões no Con- tenciários para cursarem a Academia sência da regulação da Mídia. selho Estadual de Segurança e De- e a realização de concursos para os No tocante a Segurança, sem fesa Social, poder-se-ia subdividir o Bombeiros e ITEP maiores atropelos, bastava dar estado em núcleos territórios comu- Para termos uma ideia do tama- continuidade à I CONSEG (Con- nitários com a participação de repre- nho do problema na Insegurança Pú- ferência Nacional de Segurança sentantes do Judiciário, Ministério blica no RN, hoje, nos aproximamos Pública), depurar as polícias, abrir Público, Universidades e Serviços de rapidamente de 800 homicídios e já caminho para o fim da desmilita- Saúde, Educação, Limpeza e Ilumi- em julho, estaremos perigosamente rização e criar um arrojado pro- nação Pública e Cultura, dentre ou- próximos do número de homicídios grama de redução de homicídios tras, que fixariam metas para redu- de 2012 que foi 940. que vai criando fossos demográ- ção da violência, atenção às vítimas No meio do caminho da Copa do ficos na população e serial killers da violência, combate aos preconcei- Mundo em Natal, além dos buracos por estímulo da ausência estatal. tos e demais ações de promoção dos literais e figurados que querem fazer Direitos Humanos, avaliadas e corri- na Av. Roberto Freire, há um cor- gidas periodicamente. redor da morte de São Gonçalo até Igualmente deveria contemplar Ponta Negra, passando por Igapó, política de Seguro para a família dos Bom Pastor, Quintas, Cidade da Es- policiais mortos em função ou em perança, D. Rosado e Lagoa Nova. 1. Texto publicado em homenagem póstuma ao au- decorrências desta. Apesar de não está elencado nos te- tor que faleceu precocemente no dia 11 de fevereiro de 2017. Penso também que a proposta de mas do pacto, pode e deve ser incluído.

26 . Parlatório . MARÇO/2018 Parlatório . MARÇO/2018 . 27 Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave Artigo Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Daniela Vaz Campos Graduada em Direito pela UFRN. Advogada. A Abertura Democrática do STF: A Influência da Audiência Pública no Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510

INTRODUÇÃO

O Supremo Tribunal Federal economia, entre outros. (STF), no desempenho de sua função, A ADI 3510 questiona a consti- depara-se com grandes julgamentos, tucionalidade em bloco do art. 5º e envolvendo preceitos constitucionais parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de que repercutem diretamente na vida março de 2005 (Lei de Biosseguran- dos cidadãos brasileiros. ça), que permite a utilização de cé- Neste sentido, sob uma pers- lulas-tronco embrionárias obtidas de pectiva democrática, destaca-se a embriões humanos produzidos por importância de o Poder Judiciário fertilização in vitro e não utilizados brasileiro se abrir para uma maior no respectivo procedimento para deliberação e participação da socie- fins de pesquisa e terapia. dade civil, estimulando a comunica- Diante de matéria tão comple- ção entre estes dois atores sociais, de xa, que envolve outros segmentos modo a direcionar o STF para uma que não o jurídico, dos quais os maior abertura do processo de inter- ministros do STF não detêm os co- pretação constitucional. nhecimentos técnicos necessários, A escolha da Ação Direta de In- mostrou-se necessária a realização constitucionalidade (ADI) 3510 para da primeira audiência pública da análise se deu em razão de o tema história da Suprema Corte brasilei- discutido em seu bojo envolver ele- ra. Em abril de 2007 se deu a oitiva mentos que extrapolam o âmbito de especialistas e experts no assun- do direito, dizendo respeito a outras to, uma vez que seria indispensável áreas do conhecimento humano, tais a reunião do maior número possível como: religião, biologia, filosofia, de elementos técnicos, visando uma

28 . Parlatório . MARÇO/2018 decisão que levasse em conta os di- dos por cada ministro. A ADI 3510 versos aspectos envolvidos. O presente trabalho tem caráter Dessa forma, pretende-se de- descritivo, não possuindo a intenção questiona a monstrar o aproveitamento da au- de determinar como falsos ou verda- constitucionalidade diência pública e sua influência no deiros os dados expostos pelos espe- voto dos ministros, fazendo uso das cialistas e levados ao conhecimento em bloco do art. 5º informações veiculadas na audiência, geral por meio do evento realizado. e parágrafos da Lei bem como da sua transcrição oficial O objetivo é averiguar o uso da au- na sessão relativa a ADI 35101. Além diência pública na fundamentação nº 11.105, de 24 de disso, utiliza-se dos votos dos minis- da decisão, bem como a compatibi- março de 2005 (Lei tros no julgamento da citada ação, to- lidade entre o posicionamento dos dos obtidos no site do Tribunal. magistrados sobre o tema e os ar- de Biossegurança). Assim, foram selecionados den- gumentos sustentados no evento, na tre os argumentos defendidos pelos tentativa de demonstrar até que pon- ministros aqueles que teriam um to os ministros foram influenciados mínimo de correspondência com o em seu julgamento. discurso desenvolvido pelos especia- A análise descritiva de cada um listas na audiência pública e os que dos votos e das falas realizadas na au- se mostraram mais relevantes em diência pública não será explicitada, relação à definição do início da vida dada a impossibilidade decorrente humana, seja de modo a adotá-los, do tamanho do presente trabalho. contrariá-los ou mesmo ignorá-los. Assim, será feito apenas o cotejamen- 1. Todas as referências aos votos dos Ministros e às falas Neste sentido, salienta-se a presença to das ideias lançadas nos votos e nas da audiência pública foram extraídas do site do STF, in- cluindo a transcrição da audiência pública. Brasília, DF. de citações de períodos integrais das falas da audiência pública, de modo a Disponível em: . Acesso em como dos posicionamentos defendi- lização da audiência pública. 03 de abril de 2014 e em 01 de junho de 2017.

Parlatório . MARÇO/2018 . 29 A tese sustentada na ação proposta pelo então Procurador Geral da República (PGR) foi alicerçada sob a ótica da teoria concepcionista, ou seja, “vida humana acontece na, e a partir da fecundação”.

2. A ADI 3510 E A LEI DE BIOSSEGURANÇA (LEI N. 11.105/2005)

Na ADI 3510 foi discutida pelo principal discussão se dá em relação STF a constitucionalidade da Lei n. à natureza do embrião: seria ele ob- 11.105/2005, que tem como ponto jeto ou sujeito de direito. fulcral a pesquisa com células-tron- A tese sustentada na ação pro- co envolvendo embriões humanos. posta pelo então Procurador Geral Para tanto, foram abordados temas da República (PGR) foi alicerçada como a conceituação jurídica das sob a ótica da teoria concepcionista, células-tronco embrionárias, a legi- ou seja, “vida humana acontece na, e timidade das pesquisas com células- a partir da fecundação”. Partindo de -tronco embrionárias para fins tera- tal premissa, alegou que a legislação pêuticos, a proteção constitucional em tela, ao permitir a realização de do direito à vida, a descaracterização pesquisas com os embriões supranu- do aborto em caso de pesquisa com merários, violaria os preceitos cons- células-tronco, dentre outros. titucionais que consagram o direito à A referida legislação, ao autorizar vida (art. 5°, caput) e o princípio da o uso de células-tronco de embriões dignidade da pessoa humana (art. 1°, humanos, possibilitou aos cientistas III)2. Dessa maneira, sob uma ótica brasileiros equipararem suas pesqui- puramente biológica, tal pesquisa se sas àquelas já desenvolvidas em pa- tornaria impossível, visto ser inequí- íses estrangeiros, tornando o estudo voca a condição de seres vivos desses da cura de doenças degenerativas embriões. ainda mais promissor em nosso país. O ministro relator da ADI 3510, O art. 5º e parágrafos da Lei de Carlos Ayres Britto, designou a re- Biossegurança, todavia, foi criticado alização de audiência pública, so- e se tornou fonte de questionamentos bretudo pela obscuridade do tema nos aspectos bioético, moral, jurídi- envolvido no dispositivo que teve co e até religioso. As pesquisas com sua constitucionalidade impugna- células-tronco embrionárias geraram da, tendo como escopo elucidar o muita polêmica à época, de forma conceito de vida, e, especialmente, o que diversos setores da sociedade ci- momento em que ocorre seu início, 2. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada vil se mobilizaram e se manifestaram trazendo a conhecimento geral o po- pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Demo- sobre o tema. sicionamento sobre o tema de diver- crático de Direito e tem como fundamentos: III - a Do ponto de vista jurídico, a sos especialistas. dignidade da pessoa humana.

30 . Parlatório . MARÇO/2018 3. A DEMOCRACIA DELIBERATIVA, A JURISDIÇÃO CONSTITUCIO- NAL E A AUDIÊNCIA PÚBLICA

O modelo de democracia repre- existência de um processo comuni- sentativa consiste, em síntese, no cativo exercido por cidadãos na esfe- exercício do poder político por parte ra pública, de modo a conferir legiti- 3. “Essa forma especial de governo constitui-se como um modelo ou ideal de justificação do exercício do poder da população através dos seus repre- midade às discussões políticas, como político pautado no debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação. Diferente da de- sentantes eleitos. Neste modelo de um novo modelo de justificação de mocracia representativa, caracterizada por conferir a le- democracia, aos representantes, legi- poder e tomada de decisão política4. gitimidade do processo decisório ao resultado eleitoral, onde a participação do cidadão se encerraria no voto, a timados pela soberania popular atra- Assim, os órgãos jurisdicionais democracia deliberativa propugna que a legitimidade das decisões políticas deriva de processos de discussão que, vés do voto, são delegados poderes de que fazem parte do discurso argu- orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da atuar e tomar decisões em nome de mentativo com os cidadãos se veem tolerância, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, conferem um reordenamento na lógica de seus eleitores. obrigados a considerar o produto des- poder tradicional.” (QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Ju- risdição constitucional, 2011, p. 12) Ocorre que o modelo de demo- ta argumentação nas razões que fun- 4. Deslocando esta concepção para o âmbito do Poder Ju- cracia representativa vem passando damentam suas decisões, pois são elas diciário, Ricardo Tinoco de Góes afirma que “deve-se sim institucionalizar espaços de participação para a discussão por uma crise generalizada. Além o verdadeiro resultado de um proces- tematizada de situações conflitivas e dissensos sobre valo- do descontentamento da população so de construção de uma democracia res, mas de modo a manter a espontaneidade e o autono- mismo que se põem na base de toda e qualquer tentativa 5 com os políticos, constata-se que deliberativa frente à jurisdição . legitima de alcançar o consenso. A institucionalização que vem à tona é a que viabiliza concretamente a atuação da não há real participação da socieda- No sistema brasileiro, o STF é o cidadania já durante os processos decisórios de tomada de de civil na administração e tomada órgão máximo do Poder Judiciário e decisão, tornando-a como quer Habermas, ativa, dinâmi- ca, mobilizada e vigilante sem, contudo, substituir do po- de decisão de seus governantes, figu- responsável por realizar – em último der decisório os órgãos jurisdicionais a tanto competentes. (...) O que pela interlocução se adiciona é a obrigatória rando como mera espectadora frente ou único grau - o controle de consti- observância do debate antes da decisão, mas não aquele a seus atos. Assim, percebe-se que a tucionalidade das normas. Esse con- debate endoprocessual, filiado aos supostos interesses da cidadania, hipoteticamente ideados na toada de uma existência de uma ordem política de- trole visa garantir a supremacia e a representação processual ditada pela legalidade. A tônica agora é outra, pois o debate se dá sob a égide dos princí- mocrática não garante aos cidadãos defesa das normas constitucionais pios do discurso e da democracia e, por isso, tem que ser que eles se mantenham sempre sob o frente a possíveis usurpações, deven- amplo, isto é, acessível a todos e participativo, no sentido de dispor sobre iguais condições de atuação da universa- amparo da democracia. do ser compreendido como a verifi- lidade dos interessados e concernidos. (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legi- Neste contexto, surge um novo cação de compatibilidade de leis ou timidade da decisão judicial a partir e para além da teoria modelo de democracia, que não tem atos normativos em relação a uma de J. Habermas. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 223). seu papel reduzido à simples figura Constituição6. 5. GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir e do voto. Chamada de democracia Partindo desse pressuposto, na para além da teoria de J. Habermas. Curitiba: Juruá Edi- participativa ou deliberativa3, busca democracia deliberativa harbema- tora, 2013, p. 231. 6. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito trazer a sociedade civil para o deba- siana, legitima-se a existência de um constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodium, 2013, p. 1065. te político, construindo um espaço tribunal constitucional que irá atuar 7. “Somente as condições processuais da gênese democrá- público de deliberação, no qual os como guardião da Constituição e da tica das leis asseguram a legitimidade do direito. Partindo dessa compreensão democrática, é possível encontrar um cidadãos têm a possibilidade de par- vontade soberana do povo, levando sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão de poderes no in- ticipar de decisões relevantes para em consideração as possíveis detur- terior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve toda sociedade. Dessa forma, a par- pações que podem vir a ocorrer na proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. (...) Por isso, o tribunal ticipação dos cidadãos no processo elaboração de normas pelo Poder constitucional precisa examinar os conteúdos de normas 7 controvertidas especialmente no contexto dos pressupos- de tomada de decisão legitimaria o Legislativo . tos comunicativos e condições procedimentais do proces- processo democrático participativo. A ministra Ellen Gracie destaca so da legislação democrático.” (HABERMAS, Jurgen. Te- oria de la acción comunicativa: racionalidad de La acción A democracia participativa, sob a relevância da audiência pública no y racionalización social. Madrid: Taurus Humanidades, 2003, p. 326 apud BUZINGNANI, Ana Carolina Silveira. a perspectiva de Jürgen Habermas, que diz respeito à abertura do Tri- A ética do discurso e a audiência pública: Legitimação surge como alternativa ao modelo bunal à comunidade científica, que da norma jurisdicional. 2011. 147 f. Dissertação (Mestra- do) - Curso de Direito Negocial, Universidade Estadual de representativo, tendo como escopo a possibilita a angariação de conhe- Londrina, Londrina, 2011, p. 92).

Parlatório . MARÇO/2018 . 31 No Brasil, a cimento na tentativa de resolução blica da história da Suprema Corte de um caso que envolve matéria tão brasileira, faz referência à democra- audiência pública complexa8, acreditando que a reali- cia participativa em seu discurso de também objetiva zação deste evento ofereceria ganho abertura do evento10. de legitimidade técnica à decisão da No Brasil, a audiência pública, em o fornecimento Suprema Corte. sede de controle de constitucionali- de informações e Por sua vez, o ministro Gilmar dade concentrado, também objetiva Mendes entende que a realização da o fornecimento de informações e esclarecimentos audiência se justifica por ser uma esclarecimentos relativos a temas de relativos a temas maneira de outorgar ao STF o cará- extrema complexidade, nos quais os ter democrático que se faz essencial membros de nosso Tribunal Cons- de extrema na consumação das tarefas que ultra- titucional não têm o conhecimento complexidade, passam o âmbito jurídico, engloban- técnico para julgá-los adequadamen- do outros segmentos como a moral, te. Como instrumento de democrati- nos quais os a política e a religião, que há muito zação deliberativa, a audiência abre membros de tempo vêm sendo discutidas sem as portas para que a sociedade civil nosso Tribunal que se chegue a um consenso. Acre- possa participar do julgamento de dita que esta abertura faz do Tribunal ações de relevância social, além de Constitucional um espaço democrático, auferindo possibilitar o acesso dos magistrados não têm o legitimidade democrática a suas de- a convicções e opiniões diversas acer- cisões. Segundo seu entendimento, ca do tema em destaque, conferindo conhecimento este evento se configura como “um maior legitimidade às suas decisões, técnico para espaço aberto à reflexão e à argu- aproximando-as da vontade popular. mentação jurídica e moral, com am- Dessa forma, salienta-se que ape- julgá-los pla repercussão na coletividade e nas sar de a audiência pública não ter o adequadamente. instituições democráticas”9. poder de vincular suas decisões, mui- O ministro Carlos Ayres Britto, tas vezes observa-se a possibilidade relator desta ação e precursor da re- de quem venham a influenciar no jul- alização da primeira audiência pú- gamento dos membros do Tribunal.

32 . Parlatório . MARÇO/2018 4. AUDIÊNCIA PÚBLICA NA ADI 3510

O Supremo Tribunal Federal re- doria Geral da República, Mesa do A Conferência alizou a primeira Audiência Públi- Congresso Nacional, Presidência da ca de sua história em 24 de abril de República, e pelos interessados. Nacional dos 2007, com o objetivo de esclarecer o Além disso, a Conferência Nacio- Bispos do Brasil conceito do início da vida. Devido à nal dos Bispos do Brasil (CNBB), o grande complexidade do tema, que Conectas Direitos Humanos e Cen- (CNBB), o Conectas envolve a delimitação do âmbito de tro de Direitos Humanos (CDH), o Direitos Humanos e proteção do direito à vida, conceito Movimento em Prol da Vida (MO- extremamente técnico, juntamente VITAE) e o Instituto de Bioética, Centro de Direitos ao fato de as informações contidas Direitos Humanos e Gênero (ANIS) Humanos (CDH), nos autos não serem suficientes para atuaram na audiência pública como motivar uma decisão, a primeira amici curiae. o Movimento consulta pública da história do STF No que diz respeito à exposição em Prol da Vida reuniu variados especialistas, convi- dos palestrantes, a audiência foi di- dados a apresentar suas convicções vida em dois blocos, com o intuito (MOVITAE) e em relação ao tema em destaque. de possibilitar uma maior qualida- o Instituto de Momento histórico que, entre- de na exposição das opiniões, ten- Bioética, Direitos tanto, não contou com o compareci- do como propósito ouvir dois gru- mento da maioria dos ministros do pos distintos, cada um com onze Humanos e Gênero Tribunal, estando presentes na aber- integrantes. Com base científica e (ANIS) atuaram na tura da sessão apenas o ministro re- grande autonomia para definir o lator, Carlos Ayres Britto, a Presiden- conteúdo de cada apresentação, os audiência pública te do STF à época, Ellen Gracie, e os especialistas evidenciaram posições como amici curiae. ministros e Gilmar contrárias sobre o uso de embriões Mendes. Porém, somente o relator humanos congelados e pesquisas da ação e o ministro Joaquim Barbo- com células-tronco embrionárias, sa se mantiveram presentes durante além de seus entendimentos sobre o toda a audiência. início da vida humana. Além dos quatro ministros cita- No turno da manhã, cada um dos, , segundo dos blocos desfrutou de metade do informação dada pelo ministro rela- tempo disponível. Sendo assim, um tor, acompanhou de São Paulo a au- sorteio definiu qual seria a ordem de diência pública por transmissões ao apresentação, determinando que o vivo de rádio e televisão11. grupo a favor das pesquisas com cé- Ao todo, vinte e dois especialistas lulas-tronco embrionárias iniciasse as trouxeram ao evento suas contribui- exposições. Ao final da apresentação ções técnicas relacionadas às suas deste grupo, aquele que se opunha às áreas de atuação acadêmica e profis- pesquisas pôde também tecer suas sional. Ambos os blocos, mesmo que considerações sobre o tema. O turno com ideias antagônicas, contaram da tarde foi divido da mesma forma, com a presença de geneticistas, pes- contudo, quem ficou por último para quisadores, professores e médicos, os exposição do turno matutino, iniciou 11. Transcrição da audiência pública, p. 137. 12 quais foram indicados pela Procura- a exposição no turno vespertino . 12. Transcrição da audiência pública, p. 3-4.

Parlatório . MARÇO/2018 . 33 13. Transcrição da audiência pública, p. 3.

14. Pós-doutora em biologia genética pela USP, pre- sidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscu- lar e coordenadora do Centro de Estudos do Geno- ma Humano.

15. Farmacêutica, doutora pelo Centro de Genoma de Nova Iorque, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da PUC-RS E presidente do Instituto de Pesquisa com Célula-Tronco.

16. Neurocientista e pesquisadora-chefe da Rede Sa- rah de Hospitais de Reabilitação e diretora da socie- dade mundial de neurologia.

17. PhD, professor da UFRJ, pesquisador do Scripps Research Institute (Califórnia - EUA) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências.

18. Professora titular de Biofísica e Fisiologia da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

19. Coordenador da Divisão de Medicina Óssea da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), e Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea da USP. Destaca-se que o ministro relator, humanas, os seguintes especialistas: 20. Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz/Bahia e que presidiu a audiência, deixou cla- Mayana Zatz14, Patrícia Pranke15, Lú- coordenador científico do Hospital São Rafael. ro que a alternância entre os blocos cia Braga16, Stevens Rehen17, Rosália 21. Professora associada do Departamento de Gené- tica e Biologia Evolutiva da USP. de expositores não teve como objeti- Mendes Otero18, Júlio César Volta- 22. Vice-presidente da Federação das Sociedades de vo desencadear um debate ou oposi- relli19, Ricardo Ribeiro dos Santos20, Biologia Experimental e professor de fisiologia da 13 21 Unifesp. ção de ideias . Com o fim de evitar Lygia Pereira , Luiz Eugênio de Mo- 22 23. Médico, doutor em Ciências Biológicas pela que se estabelecesse um confronto raes Mello , Antonio Carlos Cam- UFRJ. Coordenador de pesquisa do Instituto Nacio- entre os expositores, o ministro teve pos de Carvalho23 e Débora Diniz24. nal de Cardiologia Laranjeiras e professor visitante do Albert Einstein College of Medicine, EUA. que ser categórico em alguns mo- Fizeram parte do outro bloco, 24. Antropóloga pela UnB, diretora da ANIS. mentos, intervindo nas exposições, aquele que pugnava pela procedên- 25. Professora-adjunta do Departamento de Biologia por entender que alguns especialis- cia da ADI 3510, e consequentemen- Celular da Universidade de Brasília (UnB). tas estariam contrapondo argumen- te, pela declaração de inconstitucio- 26. Professora-adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). tos e ideias de seus colegas. Ademais, nalidade da Lei de Biossegurança, os 27. Pesquisadora em biologia molecular da Univer- estabeleceu que os palestrantes não especialistas a seguir: Lenise Apare- sidade de Bauru e presidente do Instituto de Pesquisa 25 com células-tronco (IPCTRON). adentrassem na seara jurídica que cida Martins Garcia , Claudia Maria 26 28. Médica e professora da Universidade Federal de envolve o tema, pois os debates jurí- de Castro Batista , Lílian Piñero-E- São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESPE/ dicos iriam acontecer em outro mo- ça27, Alice Teixeira Ferreira28, Mar- EPM). mento do julgamento. celo Vaccari Mazetti29, Antônio José 29. Médico cirurgião-plástico, pesquisador e mestre 30 31 em cirurgia pela UFSP, colaborador de pesquisa com Integravam o bloco a favor da Eça , Elisabeth Kipman Cerqueira , células-tronco pela USC de Baurú. constitucionalidade da Lei de Bios- Rodolfo Nunes32, Herbert Praxe- 30. Médico psiquiatra, mestre em psicologia e pro- 33 34 fessor de psicopatologia forense, medicina legal e segurança, isto é, a favor das pesqui- des , Dalton Luiz de Paula Ramos criminologia. sas com células-tronco embrionárias e Rogério Pazzeti35. 31. Médica especialista em ginecologia e obstretrícia.

32. Mestre e doutor em cirurgia geral pela Universi- dade Federal do Rio de Janeiro. “O ministro relator, que presidiu a 33. Professor emérito da Faculdade Federal Flumi- nense (UFF) e coordenador do comitê de ética em audiência, deixou claro que a alternância pesquisa – UFF. 34. Professor de bioética da Universidade de São entre os blocos de expositores não teve Paulo.

35. Graduado em Biologia pela Universidade Ma- como objetivo desencadear um debate ou ckenzie e doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP. oposição de ideias”

34 . Parlatório . MARÇO/2018 Salienta-se que destes vinte e vidados, que fundamentaram suas dois especialistas, quatro não cons- opiniões em argumentos técnicos e tavam da lista de convidados, da re- científicos, dentro do limite de tem- lação apresentada pela Procurado- po estabelecido para cada um. ria da República na petição inicial, Muito embora tenham os espe- nem do requerimento apresentado cialistas apresentado seus conheci- pela CNBB. São eles: Lúcia Willa- mentos acerca das células-tronco e dino Braga e Júlio Voltarelli, favorá- das terapias que podem decorrer de veis às pesquisas e Marcelo Vaccari pesquisas as envolvendo, além de e Antonio José Eça, contrários às outros temas originados desta ques- pesquisas36. tão, serão expostas aqui apenas suas Depois de feita a divisão dos opiniões em relação ao conceito de expositores em dois blocos anta- vida e ao momento de seu início, gônicos, deu-se a fase da oitiva dos uma vez que esse é o tema central do depoimentos dos especialistas con- presente trabalho.

5. JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDA- DE Nº 3510

Após a exposição dos especialis- curiae Movimento em Prol da Vida tas na audiência pública realizada (MOVITAE) e Instituto de Bioética, em 24 de abril de 2007, o Supremo Direitos Humanos e Gênero (ANIS), Tribunal Federal agendou para o dia o professor Luís Roberto Barroso. 5 de março de 2008 o julgamento da Após as sustentações orais, nesta Ação Direta de Inconstitucionalida- mesma data, o processo foi suspenso. de n. 3510, a qual, conforme já ex- Todavia, votaram o ministro relator posto acima, pugna pela declaração Carlos Britto e a ministra Ellen Gra- de inconstitucionalidade do art. 5º e cie, os quais julgaram a ação impro- parágrafos da Lei de Biossegurança, cedente. objetivando a não permissão da uti- No dia 28 de maio de 2008, reto- lização de células-tronco embrioná- mou-se o julgamento da ADI 3510 rias para fins de pesquisa e terapia. com os votos do ministro Joaquim Falaram pelo Ministério Público Barbosa e da Ministra Cármem Lú- Federal, o Procurador-Geral da Re- cia, que também votaram pela im- pública; pelo amicus curiae Confe- procedência da ação. Os ministros rência Nacional dos Bispos do Brasil Menezes Direito e Ricardo Lewa- (CNBB), o professor Ives Gandra da ndowski, por sua vez, julgaram-na Silva Martins; pela Advocacia-Geral parcialmente procedente. Já os mi- da União, o Ministro José Antônio nistros Eros Grau e ; pelo requerido Con- optaram pela improcedência da ação gresso Nacional, o Dr. Leonardo com ressalvas. 36. LIMA, Rafael Scavone Bellem de. A Audiência Pú- Mundim; pelo amicus curiae Co- Prosseguindo o julgamento, no blica realizada na ADI 3510-0: A organização e o apro- veitamento da primeira audiência pública da história do nectas Direitos Humanos e Centro dia 29 de maio de 2008, os minis- Supremo Tribunal Federal. 2008. 79 f. Monografia (Espe- de Direitos Humanos (CDH), o Dr. tros Marco Aurélio e Celso de Mello cialização) - Trabalho de conclusão do curso da Escola de Formação apresentado a Sociedade Brasileira de Direito Oscar Vilhena Vieira; e, pelo amicus proferiram seus votos, ambos consi- Público, São Paulo, 2008, p. 22.

Parlatório . MARÇO/2018 . 35 derando improcedente a ação. O mi- onze ministros que compõem o ple- nistro se posicionou no do Tribunal optaram pela total de forma favorável às pesquisas, po- improcedência da ADI 3510, decisão rém com restrições. que permitiu o uso de embriões hu- Por fim, o STF, por maioria e nos manos para pesquisas e terapias com termos do relator, julgou improce- células-tronco embrionárias. dente a referida ação, vencidos, par- Contrariando a tese defendida cialmente, em diferentes extensões, pela Procuradoria-Geral da Repúbli- os ministros Menezes Direito, Ricar- ca, o STF entendeu que tais pesquisas do Lewandowski, Eros Graus, Cezar não violam os direitos à vida e à dig- Peluso e Gilmar Mendes. nidade da pessoa humana, preceitos Destarte, em síntese, seis dos garantidos pela Constituição Federal.

6. ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE O CONTEÚDO EXPOSTO DA AU- DIÊNCIA PÚBLICA E OS ARGUMENTOS UTILIZADOS NOS VOTOS DOS MINISTROS

Analisando-se os votos dos mi- pelos especialistas no conteúdo de nistros e o conteúdo das falas na seus votos. audiência pública, constata-se que Eros Grau parece ter sido o mais por muitas vezes os ministros do radical dentre os ministros que opta- STF lançam mão de argumentos si- ram por não usar os argumentos dos milares àqueles apresentados pelos especialistas para fundamentação de especialistas na audiência pública re- seus votos, aparentando reduzir a re- alizada por ocasião do julgamento da levância dos argumentos científicos Ação Direta de Inconstitucionalida- expostos pelos especialistas convo- de n. 3510 para justificar seus votos, cados. Em determinado momento indicando uma conexão real entre de seu voto, o ministro afirma que os estes discursos. cientistas muitas vezes se portam de Ressalta-se que a despeito de al- forma arrogante, dando a entender guns ministros entenderem pela im- que consideram ignorantes aqueles portância da realização deste evento, que não são da área, afirmando que outros optaram por não referencia- “alguns dos que assumem o lugar de 37. Voto do Min. Eros Grau, p. 2. rem em seus votos as considerações quem fala e diz pela Ciência são por- 38. “É necessário sopitarmos as expansões de infali- bilidade de quem substitui a razão científica por ines- tecidas na audiência pública, de for- tadores de mais certezas do que os gotável fé na Ciência, transformando-a em expressão 37 de fanatismo religioso. Nem seria preciso, no exer- ma que alguns deles não recorreram líderes religiosos mais conspícuos” . cício da prudência que nos cabe, levantarmos o véu explicitamente aos argumentos apre- Além disso, alega que muitos que algo oculta sob o discurso que se diz ser cientí- fico. Quais interesses aí se manifestam, na escala que sentados pelos especialistas como for- cientistas teriam mais interesses vai das patentes até o biopoder? Há um tom críptico nessas expansões [e faço uso aqui do vocábulo com ma de fundamentar seu julgamento. econômicos em relação às pesquisas toda a sua carga de ambiguidade] que cumpre afas- Conforme se analisou, os minis- com células-tronco embrionárias, do tarmos. A amplitude do mercado no âmbito do qual tais interesses predominam referiu-se há pouco o tros Eros Grau, Marco Aurélio, Gil- que propriamente intenções de pro- Ministro Ricardo Lewandowski. Não nos iludamos: 38 levantado o véu, o que há sob ele --- não obstante, mar Mendes e Joaquim Barbosa não teger a vida humana . é verdade, as melhores intenções de grande número se utilizaram de forma expressa de Todavia, a despeito de alguns dos que acompanham este julgamento --- é o merca- do.” (Voto do Min. Eros Grau, p. 2-3) nenhuma das considerações tecidas ministros não fazerem referência ao

36 . Parlatório . MARÇO/2018 conteúdo evidenciado na audiência, -se que todos os palestrantes citados A teoria da algumas vezes até considerando-as integram o bloco a favor das pesqui- irrelevantes, será demonstrado que sas com células-tronco. nidação, que os argumentos ali utilizados possi- Dentre os ministros do STF que estabelece que o velmente motivaram o voto de cada participaram do julgamento da ADI um deles. Dessa forma, o aproveita- 3510, Carlos Ayres Britto e Menezes início da vida se mento deste evento no julgamento Direito40 elegeram a teoria concep- dá no momento da ADI 3510 não pode ser restringi- cionista, a qual adota a fecundação do somente aos momentos em que do óvulo pelo espermatozoide para de implantação foram mencionadas expressamente delimitar o início da vida humana. do embrião no as considerações tecidas pelos espe- A teoria citada acima pode ser cialistas. encontrada nas considerações da útero materno, Serão apresentadas a seguir as maioria dos especialistas que se po- foi defendida de principais considerações utilizadas sicionaram contra as pesquisas com pelos ministros que se encontram células-tronco embrionárias, ao forma explicita em consonância com o que foi ex- defender a tese de que a fecunda- pelos especialistas posto pelos especialistas na audiên- ção daria início a vida, sendo este o Mayana Zatz, e cia pública acerca do início da vida principal motivo para que a Lei de humana, questão central do presente Biossegurança fosse declarada in- Antonio Carlos trabalho e da ADI 351039. constitucional. Cita-se os nomes de Carvalho, A definição de um marco para o Lenise Aparecida Garcia, Cláudia início da vida como condição neces- Maria Batista, Marcelo Vaccari, An- pertencentes ao sária para a apreciação da referida tonio José Eça, Elizabeth Cerqueira, bloco a favor das ação, conforme alegado na petição Rodolfo Nunes, Dalton Ramos e Ro- inicial, não se verificou de forma gério Pazzetti, que se posicionaram pesquisas. unânime. As ministras Ellen Gra- neste sentido. cie e Cármen Lúcia e os ministros A teoria da nidação, que estabele- Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, ce que o início da vida se dá no mo- Cezar Peluso e Gilmar Mendes, não mento de implantação do embrião consideraram imprescindível tal de- no útero materno, foi defendida de finição, chegando até a considerá-la forma explicita pelos especialistas inoportuna e inútil para a análise do Mayana Zatz, e Antonio Carlos Car- caso em questão, qual seja a utiliza- valho, pertencentes ao bloco a favor ção das células-tronco embrionárias das pesquisas. Destaca-se que Ri- para fins de pesquisa e terapia. cardo Ribeiro e Luiz Eugenio Melo, A escolha por não estabelecer conforme depreende-se do acima um momento definido para o início exposto, também se manifestaram a 39. O argumento trazido na inicial pelo então Procura- da vida com a justificativa de não favor desta ideia, contudo de forma dor-Geral da República é o de que a vida humana começa ser essencial para a discussão trava- não tão explicita como os outros es- a partir do momento da fecundação. da, no âmbito da audiência pública, pecialistas41. 40. Ressalta-se que o ministro Menezes Direito, apesar de optar pela teoria da concepção, em determinado momen- pode ser observada nas declarações Conforme se observa, no julga- to do seu voto, demonstra acreditar que estabelecer, por convenção, um marco para o início da vida não passaria prestadas pelos especialistas Patrícia mento da referida ação, parte dos de uma escolha arbitrária.

Pranke, Stevens Rehen, Julio Cesar ministros também se posicionou 41. Patricia Pranke, embora adote a teoria das primeiras atividades cerebrais, acredita na essencialidade de o em- Voltarelli, Lygia Pereira, Luiz Eugê- a favor desta teoria para indicar o brião ser transferido para o útero materno para que possa nio Mello e Débora Diniz. Destaca- momento de início da vida huma- se desenvolver e sobreviver.

Parlatório . MARÇO/2018 . 37 ...a teoria da concepção aplicar-se-ia ao caso de a fecundação ocorrer de forma natural, contudo, ocorrendo artificialmente, a teoria a ser adotada seria a da nidação...

na, caso das ministras Ellen Gracie Já o ministro Celso de Mello, cimo quarto dia após a fecundação e Carmen Lúcia, que o fizeram de utilizando-se tanto da teoria da ni- do óvulo pelo espermatozoide. forma expressa. É possível identifi- dação como da teoria das primeiras Ainda em relação à teoria das car referência à teoria da nidação no atividades cerebrais, justifica a não primeiras atividades cerebrais, os voto do ministro Cezar Peluso e até existência de vida nos embriões palestrantes Antônio José Eça e mesmo no do ministro Eros Grau, criopreservados. Dalton Ramos, ambos contrários que afirmou não se valer dos argu- O ministro Ayres Britto, a des- à realização das pesquisas com cé- mentos expostos pelos especialistas, peito de já ter elegido as teorias da lulas-tronco embrionárias, con- utilizando-se da teoria mencionada concepção e da nidação para justifi- testaram-na na audiência pública, de forma a justificar a não existên- car o surgimento da vida, ao tratar alegando que existe vida humana cia de vida nos embriões congelados do tema da anencefalia em um mo- mesmo antes do marco das duas se- tratados pela Lei de Biossegurança. mento posterior de seu voto, men- manas que delimita a formação do Por sua vez, o ministro Marco Au- ciona a teoria das primeiras ativida- cérebro do embrião. Esta opinião rélio, ao condicionar a existência de des cerebrais, alegando que, para o encontra-se identificada nos votos vida à gestação, também faz opção direito, a função cerebral estabele- dos ministros Menezes Direito e por esta teoria. ceria se o ser possuiria vida ou não, Cezar Peluso. Salienta-se que o ministro re- afirmando que os embriões conge- Malgrado a maioria dos espe- lator Ayres Britto, ainda que tenha lados a que se refere a Lei de Bios- cialistas e ministros tenham elegi- adotado a teoria concepcionista segurança não possuem tal função. do uma das três teorias acima para para o início da vida, em determi- Já o ministro Celso de Mello faz uso determinar o momento de início da nado momento de seu voto, de- desta teoria, de forma a justificar a vida, existem aqueles que entendem monstra seu entendimento pela ne- não existência de vida nos embriões que a vida é um processo contínuo cessidade de que haja uma relação criopreservados, malgrado tenha se de desenvolvimento, ou seja, um entre a mulher e o embrião para utilizado também da teoria da nida- ciclo, e não um evento delimitado que seja gerada uma vida no caso ção para o mesmo fim. no tempo. Na audiência pública, dos embriões fecundados in vitro, Percebe-se, conforme expos- fizeram opção por esta ideia os ex- o que demonstra confusão em seu to acima, que este entendimento perts Lenise Garcia, Claudia Maria discurso. tem respaldo no posicionamento Batista, Antônio José Eça e Elizabe- Neste sentido, também cabe sustentado pelos especialistas Pa- th Cerqueira, todos palestrantes do destacar argumento semelhante trícia Pranke, que defende o início bloco contra as pesquisas com célu- sustentado pelo especialista Ricar- da vida no momento de formação las-tronco embrionárias, que defen- do Ribeiro, ao entender que a teoria do sistema nervoso, e Luiz Eugê- dem que o início desse ciclo se dá da concepção aplicar-se-ia ao caso nio Melo, que a despeito de adotar no momento da concepção. de a fecundação ocorrer de forma a teoria da nidação, faz referência à Este entendimento encontra-se natural, contudo, ocorrendo artifi- teoria das primeiras atividades ce- identificado nos votos dos minis- cialmente, a teoria a ser adotada se- rebrais, citando a ANVISA no que tros Menezes Direito e Marco Auré- ria a da nidação, pois, neste caso, só diz respeito ao início da formação lio. Além deles, o ministro Ricardo existiria vida após a implantação do da estrutura que dará origem ao Lewandowski cogita que tal possi- embrião no útero materno. sistema nervoso, que ocorre no dé- bilidade pode ser verdadeira.

38 . Parlatório . MARÇO/2018 O ministro Eros Grau também Britto, Cármen Lúcia, Eros Grau, Os ministros faz uso desta ideia para justificar a Cezar Peluso e Marco Aurélio re- não existência de vida nos embriões forçam expressamente distinções Menezes Direito criopreservados, estabelecendo que entre as pesquisas com células-tron- e Ricardo estes embriões não se equiparam a co embrionárias e aborto, depreen- um ser em processo de desenvolvi- dendo-se que não houve qualquer Lewandowski mento vital, em um útero, isto é, o alteração no que diz respeito à sua adotam a embrião versado na Lei de Biossegu- situação jurídica. rança encontra-se paralisado, à mar- Constata-se que tal posiciona- concepção de gem de qualquer movimento que mento encontra suporte, na au- que o embrião possa caracterizar um processo. diência pública, na declaração de O ministro Cezar Peluso parece Mayana Zatz, que é, inclusive, citada humano, havendo estar de acordo com Eros Grau, ao pelos ministros Cezar Peluso e Car- fecundação, já entender que a situação dos embri- los Ayres Britto em seus votos. ões congelados só é equiparável à de Os ministros Menezes Direito é considerado etapa inicial de um processo que se e Ricardo Lewandowski adotam a ser humano, suspendeu ou interrompeu. concepção de que o embrião huma- Ainda em relação ao início da no, havendo fecundação, já é consi- defendendo a ideia vida, a antropóloga Débora Diniz, na derado ser humano, defendendo a de que as células audiência pública, cogitou a possibi- ideia de que as células embrionárias, embrionárias, lidade de que poderia haver influ- mesmo no estágio pré-implantacio- ência e implicações jurídicas diretas nal, apresentam uma inegável natu- mesmo no estágio em relação à situação do aborto a de- reza humana. Cezar Peluso parece pré-implantacional, pender do posicionamento adotado concordar com os ministros supra- pela Suprema Corte no julgamento citados, já que apesar de alegar que apresentam uma da ADI 3510. somente nas pessoas já nascidas en- inegável natureza Contudo não é o que se observa contra-se a presença de vida, tanto de acordo com o que foi apresen- aquelas como os embriões congela- humana. tado pelos ministros. Carlos Ayres dos possuem atributos humanos.

Parlatório . MARÇO/2018 . 39 “...no Esta ideia parece encontrar res- doenças do que o próprio debate so- paldo no que foi dito na audiência bre o início da vida. procedimento pela professora Claudia Maria Batis- Este comportamento pode ser de fertilização in ta, que afirma que seriamos huma- observado também no voto do mi- nos desde o momento da concepção, nistro relator, que a despeito de ter vitro, o embrião todos já pertencendo à espécie homo escolhido um determinado mo- formado nada sapiens a partir deste instante. mento para o início da vida, aduz O pesquisador Ricardo Ribei- que seria mais importante do que mais seria do que ro, ao defender a teoria da nidação, a discussão sobre quando se inicia um “aglomerado aduz que, no procedimento de ferti- a vida humana, salvar as vidas dos lização in vitro, o embrião formado inúmeros enfermos que possivel- de células”, nada mais seria do que um “aglome- mente se beneficiarão com a reali- que só poderia rado de células”, que só poderia ori- zação destas pesquisas, entendendo ginar um ser humano ao ser trans- ser fundamental a liberação da utili- originar um ser ferido para o útero materno42. Seu zação dos embriões criopreservados humano ao ser entendimento aparenta influenciar a para o estudo. transferido para ministra Ellen Gracie, que cita a Lei O uso da expressão “pré-em- Britânica, a qual atesta que antes do brião” é identificado na fala do es- o útero materno”. décimo quarto dia após a fecunda- pecialista Luiz Eugênio Melo43, que RICARDO RIBEIRO ção existiria apenas uma massa de diferencia o pré-embrião excedente células indiferenciadas geradas pela da técnica de fertilização in vitro da- fertilização do óvulo. quele transferido para o útero mater- Na audiência pública, Julio César no, acreditando que este momento Voltarelli, um dos especialistas que de transferência seria o marco para defendem a realização das pesquisas a humanização do ser. Este termo com células-tronco embrionárias, li- também está presente no voto da mi- 42. Ressalta-se que esta declaração foi contestada por Rogério Pazzeti na própria audiência pública. mita-se a atestar que, em relação às nistra Ellen Gracie, que afirma que

43. O termo “pré-embrião” também pode ser ob- pesquisas, faz-se mais relevante levar se o pré-embrião não for introduzi- servado na fala de Lenise Garcia, fazendo uso deste, porém, de forma a não concordar com que ele é em- em consideração a vida dos pacien- do no útero materno, não poderá ser pregado por alguns cientistas. tes que esperam pela cura de suas classificado como pessoa.

40 . Parlatório . MARÇO/2018 O entendimento do ministro Jo- jurídica da vida no ordenamento ju- que, em seu voto, alega não compe- aquim Barbosa, de que a escolha do rídico não coincide, obrigatoriamen- tir ao Supremo estabelecer concei- momento para o início da vida de- te, com o seu início. Por este motivo, tos que não estejam presentes na pende da convicção pessoal de cada apesar de ter feito escolha pela teoria Constituição, entendendo que cabe pessoa, devendo ser respeitada a es- concepcionista para delimitar o mar- ao Poder Legislativo a opção de in- fera íntima de suas crenças, parece co inicial da vida, entende que esta cluir no ordenamento jurídico bra- encontrar semelhança com a ideia do opção não desencadeia sua prote- sileiro um dos diversos momentos pesquisador Stevens Rehen, que en- ção jurídica desde o instante em que propostos pela ciência para o início fatiza ser o início da vida uma ques- ocorre a fecundação do óvulo pelo da vida humana. tão insolúvel, posto que sua definição espermatozóide. Cabe esclarecer que a dissociação envolve critérios que nada têm a ver Ademais, destaca-se que existem entre a definição do início da vida e com ciência, tais como religião, cultu- ainda aqueles ministros que con- o início de sua proteção, bem como ra e momento histórico da sociedade. sideram não ser de cabimento do a perspectiva de que não caberia ao Cabe ainda ressaltar que alguns Poder Judiciário a discussão sobre Poder Judiciário tal definição, não ministros se posicionam pela disso- o tema. Segundo o ministro Ricardo encontram amparo em nenhuma das ciação entre a definição do início da Lewandowski, o Judiciário não te- considerações tecidas na audiência vida e o início de sua proteção jurídi- ria as ferramentas necessárias para pública, uma vez que aos especia- ca. Este entendimento, incitado pelo o debate, entendimento bastante si- listas foi alertado que não deveriam ministro relator, defende que a tutela milar ao da ministra Carmem Lúcia, adentrar na seara jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho se propôs a Por fim, foram exibidos aqueles en- demonstrar de que forma a Supre- tendimentos que mostraram corres- ma Corte brasileira foi influenciada pondência com o discurso desenvol- no seu posicionamento em relação vido pelos especialistas, de forma a ao início da vida humana pelo co- demonstrar o aproveitamento dos nhecimento científico apresentado conteúdos expostos na decisão pro- em audiência pública. Esta análise se ferida pelo Tribunal sobre o início deu com base no evento ocorrido no da vida humana. âmbito da Ação Direta de Inconstitu- Diante disto, não se pode negar cionalidade n. 3510, que versa sobre que os conhecimentos técnicos trazi- as pesquisas com células-tronco em- dos pelos especialistas induziram de brionárias humanas provenientes dos forma efetiva a visão dos ministros. embriões excedentes congelados das Ao confrontar os posicionamentos clínicas de fertilização in vitro, bem sustentados pelos ministros com os como nos votos dos ministros do STF. argumentos apresentados na audiên- Ao limitar seu tema à abordagem cia, percebe-se que encontram pleno do momento em que ocorre o início amparo nos depoimentos prestados. da vida humana, o presente trabalho Constata-se a presença de mui- expôs as considerações tecidas pe- tas passagens da audiência pública los especialistas na audiência, bem inclusive no voto daqueles ministros como os argumentos utilizados pe- que não fizeram referência expressa los ministros relativamente ao tema. ao conteúdo proveniente do evento.

Parlatório . MARÇO/2018 . 41 A ADI nº 3510 versa sobre as pesquisas com células- tronco embrionárias humanas provenientes dos embriões excedentes congelados das clínicas de fertilização in vitro

Sobretudo, destaca-se o voto do mi- los ministros condiciona a implan- nistro Eros Grau, que a despeito de tação do embrião no útero materno reduzir a relevância dos argumentos para que a vida humana tenha início, científicos, utilizou-se de umas das qual seja a teoria da nidação. teorias expostas pelos especialistas Cabe aqui frisar novamente que para justificar a não existência de esta e todas as outras teorias são acei- vida nos embriões congelados trata- tas da mesma forma pela biologia e dos pela Lei de Biossegurança. pela medicina. Assim, questiona-se Dessa forma, percebe-se que ape- por qual motivo essa foi justamen- sar de parte dos ministros não re- te a preferida dos ministros. Talvez correr explicitamente aos argumen- porque ela possa coexistir sem em- tos apresentados pelos especialistas pecilhos com as pesquisas com cé- como forma de fundamentar seus lulas-tronco embrionárias, já que votos, as considerações ali tecidas de não implicaria na morte de seres fato influenciaram o julgamento de humanos, visto que para a teoria da cada um deles, seja de forma direta, nidação ainda não existiria vida nos com expressa citação e referência às embriões crioconservados. falas dos especialistas, seja de forma Em relação à realização de audi- indireta, como ocorreu com o minis- ências públicas como instrumento de tro Eros Grau. democratização deliberativa, com a No que concerne à utilização de abertura do STF para que a sociedade argumentos científicos como forma civil possa participar do julgamento de fundamentar decisões judiciais, é de ações de relevância social, apesar possível conferir no caso em estudo de conferir maior legitimidade às de- a preferência pelas teorias científi- cisões da Suprema Corte, ainda não cas sobre outras formas de conheci- se pode concluir de forma inequívo- mento humano, malgrado tenha se ca que as audiências públicas funcio- constatado que a ciência é por si só nem efetivamente como uma esfera incapaz de definir com precisão um pública de participação e deliberação. marco para o início da vida humana. Por derradeiro, baseado ainda no Logo, não se defende a posição de julgamento da ADI 3510, verifica-se que a ciência seja excluída da apre- que uma das maiores dificuldades ao ciação do STF nos casos pertinentes, se analisar uma decisão colegiada do mas simplesmente que não se con- STF consiste em saber quais os fun- verta no único critério utilizado para damentos que a sustentam, pois cada uma decisão acertada. um dos que participaram de sua for- Dentre as teorias apresentadas mação fundamentou seu voto em pelos cientistas, infere-se que aquela uma razão diferente, o que reduz o que foi defendida por mais vezes pe- grau de certeza e coerência decisória.

42 . Parlatório . MARÇO/2018 REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalida- de nº 3510: Transcrição da audiência pública. Brasília, DF. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2014.

______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalida- de nº 3510. Brasília, DF. Disponível em: . Acesso em: 01 jun. 2017.

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GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legiti- midade da decisão judicial a partir e para além da teoria de J. Habermas. Curitiba: Juruá Editora, 2013.

HABERMAS, Jurgen. Teoria de la acción comunicativa: racionalidad de La acción y racionalización social. Madrid: Taurus Humanidades, 2003 apud BUZINGNANI, Ana Carolina Silveira. A ética do discurso e a audiência pública: Legitimação da norma jurisdicional. 2011. 147 f. Dissertação (Mes- trado) - Curso de Direito Negocial, Universidade Estadual de Londrina, Lon- drina, 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2014.

LIMA, Rafael Scavone Bellem de. A Audiência Pública realizada na ADI 3510-0: A organização e o aproveitamento da primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal. 2008. 79 f. Monografia (Especializa- ção) - Trabalho de conclusão do curso da Escola de Formação apresentado a Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2008.

QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Jurisdição Constitucional Participativa. Revista Internacional de Direito e Cidadania , v. 11, 2011.

Parlatório . MARÇO/2018 . 43 Abraão Luiz Filgueira Lopes Artigo Professor do Centro Universitário do Rio Grande do Norte/UNI-RN. Advogado. Correio eletrônico: [email protected] A Democracia Representativa e a Revogação dos Mandatos em Curso

RESUMO Analisa a forma como a democracia contemporânea se implementa, vis- lumbrando-a como essencialmente representativa. Tem por objetivos analisar a fundamentação conceitual da democracia representativa, bem como as suas repercussões, notadamente no cenário brasileiro. Para tanto, emprega o mé- todo dedutivo, partindo de revisão bibliográfica da doutrina constitucional e eleitoral, em especial periódicos preocupados com o problema contemporâ- neo da representação. Conclui que, na democracia representativa brasileira, o eleitor não possui instrumentos de exigibilidade para as decisões tomadas por seus representantes, que, podem, assim, ser contrárias aos desígnios do povo. Além disso, constata que o modelo democrático brasileiro não contempla a revogação dos mandatos em curso, o que credita ao processo de redemocrati- zação do país, a exigir maior segurança no exercício dos mandatos. Palavras-chave: Democracia. Representação. Revogação.

INTRODUÇÃO

A democracia é condição neces- pelo eleitor, de representantes elei- sária de qualquer Estado Consti- tos. Quer dizer, ao invés de o próprio tucional. Não há Constituição sem eleitor tomar as decisões políticas, democracia, que exsurge, pois, como ele escolhe um terceiro para decidir o sistema de governo próprio e ne- em seu lugar, o que cria um natural cessário ao Estado Constitucional, distanciamento do povo das deci- do que decorre a ideia do Estado De- sões políticas. mocrático de Direito. Nesse contexto, o presente artigo Nas sociedades contemporâneas, tem como objetivo inicial investigar a democracia precisa ser exercida de a forma como a democracia contem- forma indireta, através da escolha, porânea se realiza, além da própria

44 . Parlatório . MARÇO/2018 fundamentação doutrinária da cha- da democracia representativa, nota- mada democracia representativa. damente quanto à possibilidade do Para tanto, parte de revisão bi- recall no Brasil, que consiste na re- bliográfica na qual aplicado o mé- vogação dos mandatos em curso, a todo dedutivo, tudo com o objetivo exemplo do que acontece em países de revelar, ao final as repercussões como os Estados Unidos.

2. A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA COMO EXPRESSÃO DA DE- MOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Nas sociedades contemporâne- Essa visão contratualista da re- as, o exercício das faculdades do presentação encerra a chamada governo por representantes é uma teoria jurídica da representação, necessidade face à complexidade da que dá ensejo a uma relação entre rede social, que frequentemente vin- representante e representado ba- cula a ação de pessoas e instituições seada numa lógica individualista num determinado local a processos e não-política, na medida em que que se dão em muitos outros locais supõe que os eleitores julgam as e instituições, sendo que, no entanto, qualidades pessoais dos candidatos, nenhuma pessoa pode estar presente ao invés de seus projetos e ideias em todos os organismos deliberati- políticas (URBINATI, 2006). Com vos cujas decisões potencialmente isso, o ideal coletivo fica relegado a afetam a sua vida, mormente porque segundo plano, na medida em que a esses são numerosos e muito disper- relação do Estado com a sociedade sos (YOUNG, 2006). é deixada ao juízo do representante, A esse modelo de democracia, que exerce o seu mandato com ple- baseado na representação, dá-se o na liberdade, o que está na base da nome de democracia indireta. opção constitucional brasileira pela Por democracia indireta, enten- vedação à revogação dos mandatos de-se aquela por intermédio da qual em curso, o chamado recall. O perigo da o povo, não podendo exercer pes- A predileção pela lógica jurídica soal e diretamente as faculdades do da representação, observe-se, é uma teoria jurídica da governo, elege representantes para marca do governo representativo li- representação, fazê-lo em seu lugar, os quais se- beral, cuja ampla disseminação nas rão investidos de mandatos, que, a sociedades ocidentais fez com que contudo, está exemplo do que ocorre no contrato essa forma de pensar a representa- em reduzir a civil, significam a outorga de pode- ção hoje esteja arraigada em demo- res a outrem (o outorgado) para, em cracias como a brasileira. O perigo participação nome do outorgante, praticar deter- da teoria jurídica da representação, popular na minados atos, vale dizer, deliberar os contudo, está em reduzir a partici- rumos do Estado e do governo. É por pação popular na democracia a um democracia isso que os eleitos exercem mandatos mínimo procedimental, a eleição a um mínimo eletivos, não mandados, expressão (URBINATI, 2006). procedimental, esta que, em sentido jurídico, remete Em reação ao modelo jurídi- à ordem, comando. co de representação, apresenta-se a a eleição.

Parlatório . MARÇO/2018 . 45 A crise de representação, en- tão, dá azo a um círculo vicioso, ao acentuar o desinteresse geral pelo poder político, que, por sua vez, aumenta a crise de legitimidade do poder. E isso porque o indivíduo dotado de liberdade democrática escolhe não participar da formação do poder político. Tamanho é o distanciamento en- tre o representante e o representa- do, que mais contemporaneamente se tem falado na chamada demo- cracia delegativa, termo cunhado por Guillermo O´Donnell, segundo chamada teoria política da repre- recente com a contemplação, pelas o qual a democracia, sobretudo na sentação, que defende a ativação Constituições democráticas con- América Latina, atualmente se ca- de uma corrente comunicativa en- temporâneas, de instrumentos de racteriza por uma enorme distância tre a sociedade política e a civil, de democracia direta, que autorizem entre representantes e representa- modo a restabelecer o liame entre uma participação efetiva e sem in- dos (O’DONNELL, 1991). o individual e o coletivo, tudo num termediários do cidadão na tomada Numa democracia delegativa, o contexto no qual múltiplas fontes de decisões, notadamente quando Chefe do Executivo é autorizado a de informação e variadas formas de nada assegura, no contexto da re- governar o país da forma como lhe comunicação tornam os cidadãos presentação, que a vontade do elei- parecer mais conveniente, possuin- elementos ativos da democracia. tor determinará as decisões do re- do ampla liberdade de agir, dentro Com isso, a mídia, os movimentos presentante no exercício do poder. do limite da lei, sempre com a ga- sociais e os partidos políticos darão Isso tudo exsurge ainda mais rantia de exercer o poder até o fim o tom da representação em uma so- relevante num cenário de crise de de seu mandato, justamente em ra- ciedade democrática, tornando o representatividade, que decorre, em zão da ausência do instrumento do social político (URBINATI, 2006). grande medida, do próprio sistema recall. Nessas democracias, os can- Com efeito, mesmo numa de- representativo, afinal a atuação dos didatos vencedores se apresentam mocracia essencialmente indireta, representantes geralmente não aten- como estando acima de todas as é possível criar mecanismos que de aos interesses dos representados, partes, isto é, os partidos políticos e propiciem uma participação mais notadamente porque, após a eleição dos interesses organizados (STRE- ativa do povo, via ativação de ins- desses representantes, ocorre um CK, MORAIS, 2009, p. 118). trumentos de deliberação coletiva, distanciamento entre a vontade po- A esperança fica por conta do como, aliás, têm realizado alguns pular e a vontade do mandatário. novo ambiente discursivo-demo- parlamentos brasileiros, com audi- E o problema se aprofunda na crático surgido com a internet e ências públicas e outras formas de medida em que o eleitor está des- as redes sociais, espaço no qual o consultas populares. provido de instrumentos para exi- aprofundamento das discussões Outrossim, a reação da teoria gir a implementação das medidas e políticas pode conduzir a um ama- política da representação frente propostas por que os mandatos fo- durecimento democrático do povo à predileção por uma lógica con- ram outorgados, ou, mesmo, de um e, possivelmente, a um maior envol- tratualista do fenômeno da repre- modo geral, para retomar antecipa- vimento com a tomada de decisões sentação gera uma preocupação damente o mandato. relevantes do Estado.

46 . Parlatório . MARÇO/2018 3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE PARA O EXERCÍCIO DOS MANDATOS E A PROIBIÇÃO DO RECALL

O princípio da liberdade para o e Carlos Mario da Silva Veloso (2009, em relação ao representado, signifi- exercício dos mandatos exsurge como p. 90) defendem que: cando, ainda, que o mandatário não verdadeiro corolário da democracia está sujeito à vontade do mandante representativa. De fato, na democra- O mandato eletivo não pertence (MARTINS, 2008). cia representativa, o povo é alçado à ao candidato eleito porque ele não Bernard Manin (2006, p. 119), posição preponderante de eleitor de é detentor de parcela da soberania então, bem resume por que as de- seus representantes, que, por sua vez, popular, podendo transformá-la mocracias contemporâneas, mesmo no exercício dos mandatos, exercerão em propriedade sua. O poder que agora mais preocupadas com a cria- as faculdades do governo. advém do povo não pode ser apro- ção de instrumentos que preservem Maurice Hauriou (1927), então, priado de forma privatística. O a soberania popular, usualmente não ensina que o representante é autô- candidato foi eleito para honrar dispõem de mecanismo que obri- nomo e, como tal, deve ser livre para determinado programa partidário, guem determinadas posturas ou de- tomar as suas decisões e, no contexto perdendo esse múnus quando se cisões do mandatário: de um órgão de deliberação coleti- afasta do compromisso assumido. va – como a Câmara de Vereadores, (...) existem boas razões para as a Assembleia Legislativa, a Câmara Certo é, entretanto, que ainda instituições democráticas não ter de Deputados e o Senado Federal -, hoje tem prevalecido o entendimen- mecanismos para obrigar a obedi- expressar os seus votos a fim de que, to de que o exercente do mandato ência ao mandato. Nós escolhemos terminada a discussão, possa aderir à goza de liberdade, o que, inclusive, políticas que representam nossos determinação mais razoável, que não foi contemplado, mesmo implicita- interesses ou candidatos que nos necessariamente estará harmônica mente, pela Constituição brasileira representam como pessoas, mas com o desejo do eleitor. de 1988, que, à falta de norma em queremos que os governantes se- Não à toa, afirma-se que o povo, sentido diverso, acabou por impor, jam capazes de governar. Em con- ao escolher seus representantes, de- por ora, a impossibilidade de revo- sequência, embora preferíssemos legando-lhes o poder, não dispõe de gação do mandato e a proibição do que os governantes se mantives- garantia jurídica (ou de qualquer na- mandato imperativo. sem presos às suas promessas, a tureza) que os obrigue a executar sua Isso revela a predileção do cons- democracia não contém mecanis- vontade (CALIMAN, 2005), de sorte tituinte brasileiro por uma teoria mos institucionais para assegurar que a titularidade do mandato eleti- eminentemente contratualista da que nossas escolhas sejam respei- vo é do mandatário, tanto jurídica, representação, o que, no final das tadas. (...) as instituições devem como politicamente, o que lhe auto- contas, conduz a um maior prestí- permitir lidar com mudanças de riza atuar livremente, sem imposição gio à liberdade dos mandatários em condições. Nenhuma plataforma de ter que agir segundo as instruções detrimento de uma maior reserva de eleitoral pode especificar a priori do eleitorado ou do partido (SAL- poder por parte do eleitor. o que o governo deveria fazer em GADO, 2010). Pois bem. A proibição do man- cada estado contingente de coisas; Em contraponto a essa concep- dato imperativo decorre da inde- os governos precisam ter alguma ção, todavia, Walber de Moura Agra pendência do representante eleito flexibilidade para enfrentar mu-

“O candidato foi eleito para honrar determinado programa partidário, perdendo esse múnus quando se afasta do compromisso assumido.”

Parlatório . MARÇO/2018 . 47 danças circunstâncias. Se os ci- Arnold Schwarzenegger para o cargo dadãos esperam que as condições de governador. devem mudar e os governos são Diferentemente dos Estados Uni- representativos, não vão amarrar dos, a Constituição brasileira não os governos e as instituições. contempla a possibilidade de abre- viação dos mandatos eletivos através Já a revogação dos mandatos ele- da revogação dos poderes antes con- tivos em curso, que mais interessa feridos, via eleições, pelo eleitor. Isso ao presente artigo, é consagrada pela se dá em razão de os agentes políticos expressão em inglês recall – cuja me- serem eleitos para um mandato com lhor acepção no português é revoga- prazo certo e determinado, o que ção – e realiza-se por meio de nova exsurge como verdadeira conquis- convocação dos eleitores às urnas, ta da democracia, ao assegurar que desta feita, para decidirem se o man- ocupantes de posições políticas (ou dato do representante eleito será ou militares) de destaque também não não abreviado. exararão determinações voltadas à Trata-se, do ponto de vista obje- cessação abrupta dos mandatos1. tivo, de dispositivo da democracia Com efeito, ressalvada a possibi- que autoriza aos eleitores a destitui- lidade de cassação do mandato por ção e substituição de uma autorida- alguma inconformidade legal, a revo- de pública (CRONIN, 1999); e, do gação do mandato por ato de vontade ponto de vista subjetivo, representa de quem quer que seja não é admi- o direito de um determinado núme- tida no ordenamento jurídico brasi- ro de eleitores requerer a imediata leiro, de sorte que, a exceção aquela remoção de um governante, graças condenação, o mandatário cumprirá à manutenção pelo povo do maior o mandato em sua inteireza. controle possível sobre os mandatá- Essa temporariedade dos man- rios eleitos (MUNRO, 1949). datos, por sinal, é uma garantia da Em sentido análogo, a doutrina democracia não apenas para os can- brasileira define o recall como o direi- didatos, mas também para os eleito- to atribuído ao povo de suprimir os res: para o candidato, porque o re- efeitos dos mandatos de seus repre- presentante eleito tem a garantia de sentantes (TEIXEIRA, 1991), a exsur- que, salvo processo legal de cassação, gir como verdadeiro direito de arre- estará investido no cargo público; pendimento conferido aos cidadãos. para o eleitor, porque vê legitimada Trata-se de técnica que ganhou a sua expectativa de que o represen- notoriedade no ano de 2003, quando tante democraticamente escolhido os eleitores do estado norte-america- não será afastado por quem quer que no da Califórnia resolveram retomar seja, salvo se praticada alguma irre- o mandato do governador então elei- gularidade. to, decidindo, pois, que ele não po- Enfim, a temporariedade dos 1. Não coincidentemente, ao compartilharem o mes- deria concluir o mandato. Na mes- mandatos eletivos é uma conquista mo processo recente de redemocratização, os demais países sul-americanos - à exceção da Venezuela, cujo ma oportunidade, além de destituir da democracia – especialmente num artigo 72 institui o chamado “referendo revocatório” o governador Gray Davis, o eleitor país que viveu décadas de ditadura –, – não contemplam em suas constituições a possibili- dade de revogação dos mandatos em curso. californiano acabou elegendo o ator a impedir que um representante legi-

48 . Parlatório . MARÇO/2018 timamente eleito seja destituído pela caso, marcado pela prática de crime A prática de variação das conveniências políticas. de responsabilidade, pode o manda- Diante dessas razões, a ordem tário ser cassado num processo de determinadas constitucional brasileira não dispõe impeachment. Já no segundo caso, condutas em de instrumento que confira aos elei- a prática de determinadas condutas tores a possibilidade de revogação dos em campanha eleitoral pode com- campanha eleitoral mandatos eletivos em curso, devendo prometer a legitimidade da eleição pode comprometer o cidadão, em caso de insatisfação do representante, cabendo a Justiça com os representantes eleitos, aguar- Eleitoral, nesse caso, cassar o diplo- a legitimidade dar uma nova eleição para, só então, ma do candidato, isto é, o ato que da eleição do fazer opção por outro candidato. certifica sua vitória nas urnas e au- Isso só seria mudado caso ins- toriza a investidura no cargo eletivo. representante, tituído o recall mediante emenda Interessante notar, a par disso, cabendo a Justiça constitucional, o que não encontraria que há experiência constitucional obstáculos nas cláusulas pétreas defi- sulamericana de recall na Venezuela, Eleitoral, nesse nidas no art. 60, § 4º, da Constitui- onde os artigos 72 e 233 da Consti- caso, cassar ção, a despeito de aqui se reputar le- tuição autorizam a revogação dos o diploma do gítimas as razões constitucionais por mandatos em curso em relação a que não contemplado tal instrumen- todos os cargos ocupados por voto candidato, isto é, to no texto original da Carta de 1988. popular, desde que tenha transcorri- o ato que certifica Enquanto não editada emen- do pelo menos metade do mandato, da constitucional com esse objeto, com o requerimento de pelo menos sua vitória nas resta atualmente a possibilidade de 20% do eleitorado da respectiva cir- urnas e autoriza cassação do mandato por infrações cunscrição eleitoral. político-administrativas, ou mesmo Na prática, em 2004, lançou-se a investidura no por infrações eleitorais que viciem mão da revisão popular na Venezue- cargo eletivo. os votos obtidos pelo então candida- la, processo que conduziu, porém, to, cassação essa possível de ocorrer à permanência de Hugo Chávez na mesmo depois de eleito. No primeiro presidência do país.

Parlatório . MARÇO/2018 . 49 A proibição do mandato imperativo CONCLUSÃO

significa a A complexidade das sociedades mesmo político para exigir essa ou liberdade do contemporâneas impõe um afasta- aquela decisão. mento natural do povo das decisões Já a proibição da revogação dos representante políticas, que não poderão ser dire- mandatos em curso implica a im- eleito pelo tamente tomadas pelo cidadão. Em possibilidade de abreviação dos vez disso, os eleitores elegerão re- mandatos eletivos outorgados aos voto popular presentantes, que, no curso de man- representantes, ainda que haja ampla na tomada das datos eletivos, serão responsáveis insatisfação do corpo de eleitores. decisões, quando pelas decisões políticas. A isso dá-se Constatou-se, então, que a veda- o nome de democracia indireta ou ção existente no Brasil em relação à não é obrigado representativa. revogação dos mandatos em curso, a atender aos Conceitualmente, a representa- popularmente conhecida como recall ção é explicada pela sedimentada te- como resultado também do processo desígnios dos oria contratualista, que reforça o dis- de redemocratização, que fez com eleitores, que, tanciamento do povo das decisões ao que o constituinte tivesse uma espe- dar ensejo ao princípio da liberdade cial preocupação com a preservação por sua vez, para exercício dos mandatos, que do direito dos eleitos de concluírem o não dispõem de tem como corolários a proibição do mandato obtido nas urnas, sem pos- mandato imperativo e a proibição da sibilidade de agentes externos lhe re- instrumento revogação dos mandatos em curso. tirarem do exercício do poder. jurídico ou A proibição do mandato impera- Assim é que somente irregulari- tivo significa a liberdade do repre- dades praticadas pelo representante mesmo político sentante eleito pelo voto popular na poderão implicar a cassação do man- para exigir tomada das decisões, quando não é dato. Isso pelo menos até que seja es- obrigado a atender aos desígnios dos tabelecida a possibilidade do recall no essa ou aquela eleitores, que, por sua vez, não dis- Brasil, algo que demandaria a sua ins- decisão. põem de instrumento jurídico ou tituição por emenda constitucional.

50 . Parlatório . MARÇO/2018 REFERÊNCIAS

CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar: aquisição e perda anteci- pada. São Paulo: Editora Atlas, 2005.

CRONIN, Thomas E. Direct democracy: the politics of the initiative, refe- rendum and recall. Cambridge MA: Havard University, 1999.

HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. 2. Ed. Tradução: Carlos Ruiz del Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927.

MANIN. Bernard. Et. al. Eleições e representação. In Lua Nova. Revista de Cultura e Política. Nº 67. São Paulo. 2006, p. 67-105. REPRESENTATIVE DEMOCRA- MARTINS, Manuel Meirinho, Representação política, eleições e sistemas CY AND THE RECALL eleitorais – uma introdução. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políti- cas, Universidade Técnica de Lisboa, 2008. ABSTRACT Analyzes how contemporary de- MUNRO, William Bennett. The government of the Utinet States: national, mocracy is implemented, seeing it state and local. 5 ed. New York: The MacMillan Company, 1949. as essentially representative. The ob- jectives are to analyze the conceptual O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa? Novos Estudos CEBRAP basis of representative democracy, N° 31, outubro 1991 pp. 25-40. Disponível em: < http://uenf.br/cch/lesce/fi- as well as its repercussions, notably les/2013/08/Texto-2.pdf >. Acesso em: 11 SET 2017. in the brazilian scenario. For that, it uses the deductive method, starting SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais estruturantes do from a bibliographical revision of the direito eleitoral. 2010. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Gra- constitutional and electoral doctrine, duação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade especially periodicals concerned Federal do Paraná. Curitiba: 2001. with the contemporary problem of representation. Concludes that, in STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teo- brazilian representative democracy, ria Geral do Estado. 7.ed. Porto Alegre: do Advogado. 2009. the voter does not have instruments of enforceability for the decisions TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Texto revisto e made by his representatives, which atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense, 1991. may thus be contrary to the designs of the people. In addition, it notes URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? In Lua Nova. that the BRAZILIAN democratic Revista de Cultura e Política. Nº 67. São Paulo. 2006, p. 191-228. model does not contemplate the re- call, which credits the process of re- VELLOSO, Carlos Mário da Silva; AGRA, Walber de Moura. Elementos de democratization of the country, to Direito Eleitoral. São Paulo: Saraiva, 2009. demand greater security in the exer- cise of the mandates. YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. In Lua Keywords: Democracy. Representa- Nova. Revista de Cultura e Política. Nº 67. São Paulo. 2006, p. 139-190. tion. Recall.

Parlatório . MARÇO/2018 . 51 Silvério Alves da Silva Filho Artigo Advogado. Pós-graduando lato sensu em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte/UNI-RN. Correio eletrônico: [email protected] Aspectos da Democracia Segundo a Doutrina Social da Igreja: Um Estudo em Homenagem ao Jurista Otto Guerra

RESUMO Em homenagem ao jurista Otto Guerra, aborda-se, em artigo científico, pelo uso de revisão bibliográfica, como a Igreja Católica, mediante sua dou- trina social, trata alguns dos diversos aspectos concernentes à democracia. Neste ínterim, analisa-se, também, como a Confederação Nacional dos Bis- pos do Brasil (CNBB), por meio da sua atuação, tanto durante o regime mili- tar quanto contemporaneamente, contribuiu e continua contribuindo para o fortalecimento do pensamento democrático nacional. Por fim, utilizando-se do método de análise dedutivo, conclui-se que a Doutrina Social da Igreja tem forte apreço pelo sistema democrático, defendendo seu resguardo e for- talecimento, seja através de documentos pontifícios e apostólicos, seja através de atuações concretas, como no caso da CNBB. Palavras-Chave: Otto Guerra. Democracia. Doutrina Social da Igreja. CNBB.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como fessores civilistas da antiga Faculda- iluminação a figura do professor e de de Direito Estadual (em Natal); advogado potiguar Otto de Britto concorreu para a idealização da Es- Guerra, intelectual que caminhou cola de Serviço Social, em 1945, e da por distintas áreas do saber, tais Faculdade de Filosofia, Ciências e como a exemplo do Direito, do ser- Letras, em 1957; contribuiu, direta- viço social, do jornalismo, história mente para a criação da Universida- e sociologia do semiárido, Doutrina de Federal do Rio Grande do Norte, Social da Igreja Católica etc. chegando a ser vice-reitor da insti- Na vida acadêmica, Guerra foi, tuição; integrou e promoveu diversas desde 1955, um dos primeiros pro- entidades culturais, dentre as quais

52 . Parlatório . MARÇO/2018 O pensamento aqui exposto pretende buscar o diálogo com os ensinamentos disponibilizados na referida doutrina, a fim de fomentar um debate saudável, sem fundamentalismos. a Academia Norte-Rio-Grandense meio de investigações concretizadas Confederação Nacional dos Bispos de Letras e o Conselho Estadual de pelo do Grupo Filosofia, Direito e do Brasil (CNBB) contribuiu, em di- Cultura; seguindo na linha do seu Sociedade, formado por professores versas ocasiões, para o fortalecimen- pai, o Desembargador Felipe Guerra, e alunos do Centro Universitário do to da democracia brasileira, inclusive publicou diversos estudos, entre li- Rio Grande do Norte, realizaram-se em colaboração com a Ordem dos vros e artigos, sobre as mais distintas algumas pesquisas relacionadas à sua Advogados do Brasil. problemáticas do semiárido nordes- obra, tal como estudos acerca da açu- Para tanto, utilizou-se de revisão tino, notadamente sobre as secas e dagem no semiárido e das questões bibliográfica, do método de análise suas consequências; na seara jorna- do meio ambiente e do direito fun- dedutivo e de uma investigação qua- lística, colaborou com vários peri- damental à água na Doutrina Social litativa, tudo isto feito em face de do- ódicos estaduais e nacionais, tendo da Igreja. Fruto dessas e de outras in- cumentos oficiais da Igreja e de infor- sido diretor e redator-chefe do jornal vestigações, será lançado, ainda este mações públicas, com o propósito de “A Ordem”, da Arquidiocese de Na- ano, o livro “Otto Guerra: Garimpo compreender como a perspectiva so- tal; acerca da doutrina social católi- de Ideias e Reflexões”, organizado cial do catolicismo encara tais temáti- ca, compreendeu-a singularmente, pelos professores Fábio Fidelis de cas, na teoria e na prática, esta aqui es- ao ponto de ter sido convidado para Oliveira e Marcelo Maurício da Silva. tudada por meio da atuação da CNBB. participar como Conselheiro do Pois bem, o presente artigo, uma Por fim, faz-se mister esclarecer Concílio do Vaticano II, em Roma. homenagem ao citado intelectual, que o pensamento aqui exposto não Sobre sua vida e sua obra, foram buscará investigar como a Doutrina terá o ânimo de exaurir as discus- lançados alguns livros, dos quais po- Social da Igreja Católica aborda as- sões acerca o tema, nem de impor o demos citar “Memória Viva de Otto suntos relacionados ao jogo demo- modo de encarar a realidade trazida de Brito Guerra”, organizado por crático, tais como os princípios do por certo ente religioso. Ao revés Tarcísio Gurgel, e “Otto Guerra: Bi- bem comum e da subsidiariedade, a disto, pretende-se buscar o diálogo bliografia e uma Visão do Semi-Ári- importância do respeito aos direitos com os ensinamentos disponibili- do”, de Ridelci Medeiros, Cláudio A. humanos, os valores, as instituições zados na referida doutrina, a fim de P. Galvão e Terezinha de Q. Aranha. e a participação do povo na demo- fomentar um debate saudável, sem Doutra ponta, recentemente, por cracia. Abordar-se-á, ainda, como a fundamentalismos.

Parlatório . MARÇO/2018 . 53 2. A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Dentre os campos de trabalhado produzidos pelo catolicismo, inte- ressa-nos, aqui, a investigação so- bre a sua doutrina social, formada pelas orientações dadas pela Igreja Católica sobre os temas sociais mais variados, direcionadas não só aos cristãos, mas a “todos os homens de boa vontade”, em busca de um bem comum e do desenvolvimento integral de todas as pessoas (JOÃO XXXIII, 1963, nº 162 e 65). Analisando esta área, muito bem estudada e divulgada pelo ju- rista Otto Guerra (GALVÃO, 2012, mesma maneira”. constante na Mater et Magistra; a p. 11), constata-se que a Igreja já Interessante comentar o fato de defesa da observância dos direitos disponibilizava, desde os cristãos que algumas confluências pertinen- humanos em âmbito internacional primitivos, doutrina que trazia em tes podem ser encontradas entre consubstanciado na Pacem in Ter- si alguma repercussão na seara so- Direito e Doutrina Social da Igreja, ris; ou, ainda, a abordagem feita cial. Não obstante, há certo consen- dentre as quais talvez uma das mais pelo atual Papa, Francisco, acerca so que essas propostas, à época di- importantes tenha acontecido no da ecologia e do direito ambiental, luídas, tornaram-se mais enfáticas direito laboral. Nesse ínterim, o en- dando-lhe uma perspectiva integral e organizadas a partir da encíclica tão Ministro do Tribunal Superior e paradigmática, por meio da encí- Rerum Norarum, a “carta magna” do Trabalho José Ajuricaba da Cos- clica Laudato Si’. da doutrina social católica (CAMA- ta e Silva chegou a arrematar que o Ressaltando o peso de alguns CHO LARAÑA, 1995, p. 11), escri- direito trabalhista “está impregnado destes pontos para a análise de ta pelo papa Leão XIII, em 1891, desta doutrina, pois sendo uma so- questões sociais em todo o mundo, sobre as dificuldades sofridas pelo lução de compromisso entre o capi- indagava Otto Guerra: operariado daquela época. talismo e o socialismo, repele a luta Desde então, consoante as cir- de classe e o predomínio de uma E quem pode, mesmo não sen- cunstâncias sociais, econômicas e sobre a outra” (1992, p. 52). Pros- do católico, negar a repercussão políticas foram se modificando, a seguindo, o citado jurista assevera: mundial de encíclicas como a Doutrina Social da Igreja foi sen- “O Direito do Trabalho pode, pois, “Rerum Novarum” de Leão XIII, do atualizada. Analisando a abor- ser considerado como a Doutrina da “Quadragesimo Anno”, de Pio dagem singular levada a efeito por Social da Igreja transformada em XI, da “Summi Pontificatus”, de João XXIII na encíclica Mater et direito positivo” (1992, p. 53). Pio XII, para falar somente des- Magistra, de 1961, Camacho Laraña Tantas outras confluências po- tas? (GUERRA, 195-?, n.p.) (2011, p. 2) assevera que o mundo deriam trazidas aqui, tais como as mudou muito deste então e “a Dou- reflexões sobre Direito Internacio- Pois bem, é nesse ramo do cato- trina Social da Igreja reflete essa nal ocorrias na encíclica Populo- licismo que buscaremos investigar mudança: não trata hoje os mesmos rum Progressio; a fundamentação como a Igreja trata alguns aspectos temas que em 1961, nem os trata da da função social da propriedade relacionados à democracia.

54 . Parlatório . MARÇO/2018 3. ALGUNS ELEMENTOS DA DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA SO- CIAL CATÓLICA

Quando analisamos os docu- usurpam o poder do Estado a favor de mentos da Doutrina Social Católi- seus interesses particulares ou dos ob- ca, percebemos que esta encara com jetivos ideológicos. Por isso, sua ocor- simpatia o sistema democrático, aqui rência só é verdadeiramente possível entendido como aquele que assegura num Estado de Direito, constituído a participação dos cidadãos nas op- sobre uma efetiva concepção de pessoa ções políticas e garante aos governa- humana, num ambiente onde existam dos a possibilidade tanto de escolher subsídios suficientes à promoção dos e controlar os governantes, quan- indivíduos, por meio da educação e da to de substituí-los, pacificamente, formação de verdadeiros valores, e ao quando se fizer oportuno. resguardo de instituições que assegu- A democracia, nessa perspectiva, rem a participação popular e o sistema não pode favorecer a formação de de corresponsabilidade (JOÃO PAU- grupos restritos de governantes, que LO II, 1991, n.º 46).

3.1. DA DEMOCRACIA SEGUNDO A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Segundo o pensamento social ca- última que guie e oriente a ação po- tólico, a democracia não é o apenas lítica, então as ideias e as convicções a consequência de um respeito for- podem ser facilmente instrumentali- mal a determinações, mas é o fruto zadas para fins de poder. Uma demo- de consciente aceitação dos preceitos cracia sem valores converte-se facil- que inspiram os procedimentos de- mente num totalitarismo aberto ou mocráticos: a dignidade humana, o dissimulado, como podemos com- acolhimento dos direitos humanos, preender pelos exemplos históricos o tratamento do bem comum como (JOÃO PAULO II, 1991, n.º 46). finalidade e critério de regulação da Exsurge, portanto, a necessida- vida pública. Enfim, “se não há um de de um Estado Democrático de consenso geral sobre tais valores, se Direito, concebido sob uma ordem perde o significado da democracia moral objetiva e racional, com ins- e se compromete a sua estabilidade” tituições sólidas e perenes, reconhe- “...se não há (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUS- cendo-se, ademais, a importância um consenso TIÇA E PAZ”, 2004, n.º 407). da tripartição e dos “pesos e contra- Nessa perspectiva, o relativismo pesos” entre os Poderes. É preferí- geral sobre tais ético surge como ameaça aos siste- vel que cada poder seja equilibrado valores, se perde mas democráticos, pois instiga a des- por outros poderes e outras esferas crença na existência de um critério de competência que o mantenham o significado da objetivo e universal para estabelecer no seu justo limite, devendo serem democracia e se o fundamento e a correta hierarquia soberanas a Constituição e a lei, e dos valores democráticos. Isto por- não a vontade arbitrária dos homens compromete a sua que se não existe nenhuma verdade (Ibidem, n. 44). estabilidade.”

Parlatório . MARÇO/2018 . 55 No Estado Democrático de Direi- sistema democrático, a saber: a cor- possuem os meios para influenciá- to, o agentes com responsabilidades rupção política (Idem, 1987, n.º 44). -las e impedem a realização do bem políticas devem valorizar a dimensão Isto porque a corrupção é desleal aos comum de todos os cidadãos (PON- moral da representação, consistindo valores morais e às normas da justi- TIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E esta no empenho de compartilhar o ça social; tende a impossibilitar um PAZ”, 2004, n.º 411). destino do povo e em procurar um funcionamento apropriado do Esta- Por isso, o poder público, em desfecho razoável para as problemá- do, influenciando, de modo negati- qualquer grau, possui o dever de ser- ticas sociais. Deste modo, a autori- vo, no relacionamento entre gover- vir o cidadão. Aqueles que detêm car- dade política responsável deve ser no e governado; introduz um receio gos públicos devem buscar uma igua- desempenhada por meio do auxílio cada vez maior no que concerne à litária aplicação da Constituição e da de valores que possibilitem o exercí- política e aos seus representantes, lei, além de zelar e pela transparência cio do função com ânimo de serviço proporcionando o enfraquecimen- em todos os atos da administração (JOÃO PAULO II, 1988, n.º 42). to das instituições e dificultando a pública, para que, posto a serviço Esta busca por valores morais realização do bem comum de to- dos cidadãos, o Estado se comporte objetivos que guiem a atuação do dos os cidadãos. Quando eivadas de como gestor dos bens do povo, ad- poder público procura evitar uma corrupção, as posturas políticas res- ministrando-os lícita e moralmente das deformações mais graves do guardam os fins restritos de quantos (JOÃO PAULO II, 1998, n.º 05).

3.2. DO RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS

Um sistema Um sistema democrático só pode intrínsecos à pessoa humana e à sua alcançar a sua plena atuação quando dignidade; inalienáveis, pois nin- democrático só cada pessoa e cada povo tiver acesso guém pode, de modo legítimo, pri- pode alcançar a aos bens primários, tais como vida, var destes direitos outrem, seja ele alimentação, água, saúde, instrução, quem for, caso contrário estar-se-ia sua plena atuação trabalho e certeza dos direitos, por a violentar a sua própria natureza. quando cada meio de um ordenamento das rela- A sua tutela cabe tanto ao poder ções internas e internacionais que público quanto à sociedade civil, pessoa e cada povo proporcione a cada um a possibili- devendo ser efetivada não em razão tiver acesso aos dade de participar do “jogo demo- de cada direito singularmente con- crático” (BENTO XVI, 2006). siderado, mas no seu conjunto, por- bens primários, Nesta perspectiva, aduz-se que a quanto uma proteção parcial tra- tais como vida, origem dos direitos do ser humano duzir-se-ia em uma espécie de não deve ser procurada na dignidade reconhecimento da igualitária dig- alimentação, água, que pertence a cada pessoa (PAU- nidade existente entre esses direi- saúde, instrução, LO VI, 1965, n.º 27), sendo tal dig- tos. A indivisibilidade, assim como trabalho e certeza nidade conatural à vida humana e a universalidade, a inviolabilidade igual em homem. Por isso, tais di- e a inalienabilidade, surge como dos direitos reitos são universais, invioláveis e característica distintiva, devendo o inalienáveis (JOÃO XXIII, 1963, n.º poder público, num Estado Demo- 9). Universais, uma vez que estão crático, promover, integralmente, presentes em todas as pessoas, in- todas as categorias de direitos hu- dependentemente de tempo, lugar manos, a fim de garantir o pleno ou sujeito; invioláveis, porquanto respeito a cada um deles.

56 . Parlatório . MARÇO/2018 ...os governos devem interpretar o bem comum não apenas as posições da maioria, mas também no ponto de vista do bem efetivo de todos os membros da sociedade civil.

3.3. A BUSCA PELO BEM COMUM

A efetivação do bem comum, reitos fundamentais (CATECISMO sendo esta uma das funções mais “razão de ser dos poderes públicos” DA IGREJA CATÓLICA, n.º 1907). delicadas do poder público, por ter (JOÃO XXIII, 1963, n.º 54), sem Tais exigências são concernentes, an- que proceder a uma correta concilia- dúvidas, é um dos princípios funda- tes de tudo, à busca da paz, a organi- ção dos bens particulares de grupos mentais que devem guiar um Estado zação razoável dos poderes estatais, e indivíduos. Deve-se ter em mente, democrático, cuja busca deriva da a uma ordem jurídica sólida, à prote- ainda, que os governos devem inter- dignidade e da igualdade de todas ção do meio ambiente, à prestação de pretar o bem comum não apenas as as pessoas (PONTIFÍCIO CONSE- serviços indispensáveis às pessoas, posições da maioria, mas também LHO “JUSTIÇA E PAZ”, 2004, n.º tais como alimentação, morada, tra- no ponto de vista do bem efetivo de 164). Para tanto, bem comum pode balho, educação, saúde e transporte. todos os membros da sociedade civil, ser conceituado como sendo o “con- Para alcançar essas exigências, de- inclusive os da minoria. junto de todas as condições de vida manda-se a colaboração não apenas Por fim, saliente-se que, na pers- social que consintam e favoreçam do Estado, mas de todos os membros pectiva social católica, Deus é a fina- o desenvolvimento integral da per- da sociedade: ninguém está dispen- lidade última de todas as criaturas, sonalidade humana” (JOÃO XXIII, sado de colaborar, de acordo com de modo que não se pode olvidar da 1963, n.º 58) ou, ainda, como “con- suas possibilidades. Assim, cabe ao característica transcendente do bem junto de condições da vida social que Estado garantir a coesão, unidade comum, que ultrapassa, mas tam- permitem, tanto aos grupos, como a e organização à sociedade civil. Por bém dá cumprimento, à sua pers- cada um dos seus membros, atingir meio das instituições políticas, tor- pectiva histórica (JOÃO PAULO II, mais plena e facilmente a própria na-se mais fácil o acesso das pessoas 1991, n.º 41). Deste modo, uma vi- perfeição” (PAULO VI, n. 26, 1965). aos bens necessários (materiais, cul- são estritamente histórica e materia- As exigências do bem comum se turais, morais e espirituais), que pos- lista terminaria por compreender o originam das condições sociais de sibilitem uma vida digna. bem comum como simples bem-es- cada tempo e estão deveras conecta- Por isso, cabe ao governo de cada tar econômico, destituído de toda a das com o respeito e com a promo- país a missão de adequar com justi- sua finalidade transcendente, da sua ção das pessoas humanas de seus di- ça os diferentes interesses setoriais, mais determinante razão de ser.

Parlatório . MARÇO/2018 . 57 “Estado deve 3.4. O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE presar pela Segundo o princípio da subsi- perspectiva negativa, impõe ao Es- liberdade e diariedade, presente já na Rerum tado a abstenção de tudo o que, de proteger o vigor Novarum de Leão XIII e realçado fato, limite o espaço das células so- na Quadragesimo Anno de Pio XI ciais menores e fundamentais. das estruturas (1931, n.º 05), o Estado deve presar Segundo o Compêndio de Dou- sociais pela liberdade e proteger o vigor das trina Social da Igreja, são relativos estruturas sociais intermediárias, à atuação do princípio da subsidia- intermediárias, como a família, as associações civis, riedade: a salvaguarda e a promoção como a família, as as entidades culturais e econômicas, efetiva do primado da pessoa e da fa- associações civis, não sendo recomendado a sua inter- mília; a valorização das associações venção na sociedade, senão quando e das organizações intermediárias; as entidades “verdadeiramente o exijam motivos a articulação pluralista da sociedade culturais e evidentes do bem comum” (JOÃO e a representação das suas forças vi- XXIII, 1961, n.º 116). Deve-se salva- tais; a proteção dos direitos humanos econômicas, guardar a sociedade civil, compreen- e das minorias; a descentralização não sendo dida enquanto conjunto de relações da burocracia e da administração; o entre os sujeitos e entidades inter- equilíbrio entre o âmbito público e recomendado a mediárias, que ocorre em virtude da o privado, com o consequente reco- sua intervenção “subjetividade criativa do cidadão” nhecimento da função social do pri- (JOÃO PAULO II, 1988, n.º15). vado. (2004, n.º 187). na sociedade, Assim, princípio da subsidiarie- Saliente-se, por fim, que a cor- senão quando dade pode ser encarado tanto num reta compreensão do bem comum, sentido positivo quanto num nega- a proteção da dignidade da pessoa ‘verdadeiramente tivo. Em sua perspectiva positiva, humana, assim como suas implica- o exijam motivos assevera que o Estado deve auxiliar ções sociais, deveram ser considera- as entidades intermediárias da so- dos como critério de discernimento evidentes do bem ciedade civil com apoio econômico, no que concerne à aplicação desse comum’” institucional e legislativo; em sua princípio.

58 . Parlatório . MARÇO/2018 3.5. DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA DEMOCRACIA

A participação na vida pública é, 2004, n.º 190). Por isso, deve-se evitar práti- ao mesmo tempo, uma das maiores Deve-se buscar a superação dos cas que tragam consigo, ainda que aspirações cidadãs e um dos pilares fatores culturais, jurídicos e sociais subsidiariamente, resquícios de de todos os sistemas democráticos. que dificultam, ou até impossibili- autoritarismos políticos, não bas- Sendo uma das mais importantes tam, uma participação solidária dos tando que a participação popular garantias da perenidade demo- cidadãos no destino da sociedade. seja garantida na Constituição e crática, demanda que os diversos Para tanto, faz-se mister a promo- na lei, sendo necessário que ocor- sujeitos da sociedade civil sejam ção educativa dos valores cívicos, ra de modo efetivo e que goze da informados, escutados e envolvi- com a finalidade de aproximar os possibilidade de influenciar mate- dos neste processo (PONTIFÍCIO sujeitos sociais do apreço e das re- rialmente nos rumos das políticas CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”, gras da democracia. públicas.

4. DOUTRINA SOCIAL NA PRÁTICA: A ATUAÇÃO DA CNBB EM DEFESA DA DEMOCRACIA

4.1. AÇÕES DURANTE O REGIME MILITAR BRASILEIRO

A Confederação dos Bispos do Brasília, mensagem emitida pela As- A atuação da CNBB na defesa da Brasil (CNBB) foi criada em 1952 com sembleia Geral do órgão, ocorrida democracia durante o regime militar o objetivo de coordenar e subsidiar as em Brasília em 1970, condenou vee- teve como base uma sólida coope- atividades de orientação religiosa, de mentemente a tortura e o terrorismo, ração com outras instituições civis, condutas beneficentes e filantrópicas, este sendo apresentado, também, destacando-se aqui a Ordem dos e da atuação social da Igreja Católica como uma forma de tortura contra Advogados do Brasil (OAB). Como em todo o território brasileiro. o povo. Foram criticadas, especial- fruto dessa parceria, surgiu, dentre Durante o regime militar brasi- mente, as torturas realizadas pelas outras, a luta pela anistia ampla, ge- leiro, que durou de 1964 a 1985, foi “forças da ordem” em face de terro- ral e irrestrita, tendo sido aprovado principalmente por meio da CNBB ristas ou pretensos terroristas (SOU- o projeto que a estabelecia em 22 de que Igreja Católica realizou questio- ZA, 2009, p. 331). agosto de 1979. namentos e denúncias sobre as práti- Na seara política, todas estas Outra intervenção importante da cas repressoras do governo. questões acabavam por gerar um cer- CNBB, em parceria com a OAB e ou- Com a intensificação da repres- to atrito entre Igreja e o governo mi- tras instituições civis, foi a luta pelas são, Igreja mudou drasticamente sua litar. Por meio dos boletins da CNBB, eleições diretas. Como resultado da postura tradicional de neutralidade expedidos especialmente a partir de pressão realizada por essas entidades para uma estratégia de militância 1972, começou-se a veicular contes- e pelo povo, a demanda conseguiu em favor dos direitos humanos e da tações acerca da diminuição dos po- ser posta em pauta no Congresso. igualdade social. Como consequ- deres legislativos e da necessidade de Mesmo não tendo sido auferido êxi- ência, enfrentou dificuldades cres- se retornar às liberdades democráti- to imediato, já que Emenda Dante centes em sua relação com o Estado cas e constitucionais. Partindo-se de de Oliveira, que estabelecia eleições (CARLOS, 2008, p. 175). seus valores espirituais e morais, a diretas para presidente da República Especialmente a partir do ano Igreja ia reforçando o debate acerca no Brasil, foi rejeitada, o país veio a de 1969, ganhavam destaque as de- de tais questões, tendo como critério se redemocratizar logo depois, com núncias feitas pela CNBB contra a norteador o conceito de dignidade a eleição indireta de Tancredo Ne- tortura. O Documento Pastoral de da pessoa humana (Ibidem, p 344). ves, em 1985.

Parlatório . MARÇO/2018 . 59 4.2. ALGUMAS AÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Atualmente, a CNBB continua democráticas, que deveriam ser reconquistado com forte participa- a emitir posicionamentos e a pra- pacíficas e em prol do bem comum ção popular após o regime de exce- ticar ações concretas referentes à (CNBB, 2016). ção, corria riscos na medida em que democracia. Mais recentemente, já em 2017, cresciam o descrédito e o desencan- Em 2015, por exemplo, afirman- pronunciou-se sobre a Reforma da to com a política e com os Poderes do ser dever da Igreja cooperar com Previdência, proposta pelo agora constituídos, cujas práticas haviam a sociedade para construir o bem co- Presidente da República Michel Te- se distanciado enormemente dos mum, a CNBB reuniu 1,5 milhões de mer. Na ocasião, na qual se posicio- interesses da população. Seria neces- assinaturas, requerendo a feitura de nou contra a reforma, afirmou que sária uma profunda reforma política uma reforma política democrática no os direitos sociais no Brasil haviam no sistema brasileiro. O descrédito país. Defendeu-se, na oportunidade, sido conquistados com intensa par- crescente na política poderia propi- a participação de todos os setores da ticipação democrática e que qual- ciar o surgimento de “salvadores da sociedade (BRASIL 247, 2015). quer ameaça a eles merecia imediato pátria” que, substituindo a confiança Avaliando a crise pela qual o repúdio. Defendeu uma reforma que que deveria ser depositada nas insti- Brasil passava em 2016, às vésperas presasse pela inclusão, que buscasse tuições, traria consigo a grave amea- do impeachment de Dilma Roussef, uma auditoria da dívida pública, a ça do autoritarismo (CNBB, 2017b). afirmou que era inadmissível a con- taxação de rendimentos das insti- À medida que as contingências duta dos partidos políticos de ali- tuições financeiras e a identificação sociais vão se modificando, a CNBB mentar a crise econômica por meio e cobrança efetiva dos devedores da vai prestando a sua colaboração, do agravamento deliberado da crise Previdência (CNBB, 2017a). não com o intuito de exaurir as dis- política. Asseverou que o momento Em maio deste ano, diante do cussões, mas de buscar o diálogo não era de acirrar os ânimos, mas grave momento político pelo qual o com as outras entidades da socieda- sim de prosseguir ao exercício do país passava mais uma vez, a CNBB de e do Estado, à procura de solu- diálogo. Aduziu ainda a necessida- emitiu nova nota, na qual analisava ções que enfatizem o resguardo e a de de se respeitar as manifestações que o Estado democrático de direito, promoção da democracia.

60 . Parlatório . MARÇO/2018 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo, uma home- esta doutrina, por meio, principal- ...as importantes nagem ao jurista Otto Guerra, mente, da atuação do laicato e, aqui apresentou uma breve investigação no Brasil, da CNBB, tende a fornecer ações da CNBB acerca do modo como a Doutrina um “impulso” a mais para a efetiva- durante o Social da Igreja Católica analisa ção de tais valores. alguns aspectos concernentes à de- Constatou-se, ainda, que as im- regime militar mocracia. portantes ações da CNBB durante brasileiro e após a Percebeu-se que o estudo desta o regime militar brasileiro e após a doutrina faz-se pertinente, primeiro redemocratização, atuando em de- redemocratização porque os conceitos por ela expostos fesa dos valores democráticos, como contribuíram para são, de fato, favoráveis à implemen- o respeito aos direitos humanos, o tação de um governo democrático, combate à tortura e a luta pela anis- o fortalecimento que vise o respeito pelos direitos tia, pelas eleições diretas e por uma do pensamento fundamentais e que preze pela par- reforma política, contribuíram para ticipação popular na definição das o fortalecimento do pensamento de- democrático políticas públicas; segundo porque mocrático nacional. nacional.

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Parlatório . MARÇO/2018 . 63 Artigo Mayara dos Santos da Silva Advogada inscrita na OAB/RN. A Evolução da Moralidade Jurídica: da Instituição como Princípio até a Efetivação com as Normas de Compliance

RESUMO O presente artigo trata do surgimento da moralidade jurídica, da sua ins- tituição como princípio administrativo na CRFB de 1988, e analisa de quais formas esse princípio se impõe no ordenamento jurídico. Demonstra a partir de então, quais maneiras de fiscalizar a moralidade jurídica propagaram-se no meio público por intermédio dos institutos jurídicos, dos mecanismos de cobrança e fiscalização e também no meio privado, a partir da gestão ética e das regras de compliance. Palavras-chave: Moralidade. Ética. Fiscalização. Compliance.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como intuito tra- do acerca da dimensão desse termo tar da problemática acerca da mora- no Brasil antes de 1988, passando, lidade jurídica, desde as primeiras só então, a analisar o marco que se discussões brasileiras sobre o tema, instituiu ao colocar-se a moralidade passando por sua instituição como como princípio administrativo de princípio administrativo na CRFB obediência pelos três poderes. A par- de 1988, na qual a moralidade pas- tir dessa explanação, no segundo ca- sou a elencar o caput do art. 37 da pítulo, iremos elencar a legislação na Carta Magna. qual se pode verificar a disseminação Analisando o que ocorreu com do princípio da moralidade de forma o princípio da moralidade nestes 27 intrínseca ou extrínseca, textos estes, anos de Constituição Cidadã, pode- em sua maioria, elaborados após o remos demonstrar onde ele foi disse- advento da CRFB de 1988. minado e de quais formas se efetiva, No terceiro capítulo, iremos de- seja no âmbito público ou privado. monstrar de que forma a moralida- No primeiro capítulo, de forma de jurídica está presente através da sucinta, demonstraremos o que se gestão ética, seja no setor público ou entende por moralidade, discorren- privado, e quais são as características

64 . Parlatório . MARÇO/2018 que este tipo de gestão deve ter para mento do princípio da moralidade; O trabalho tem se propagar. No quarto capítulo, ire- observar quais mecanismos de efe- mos conceituar a governança corpo- tivação foram estabelecidos no or- o intuito de rativa, que consiste em uma forma de denamento jurídico brasileiro com demonstrar o efetivação da moralidade jurídica no base no princípio da moralidade; e âmbito privado. Um de seus objeti- verificar se houve um aumento des- surgimento da vos é demonstrar que através de boas ses mecanismos. moralidade e práticas de governança as empresas Como justificativa de ser, o tra- podem se desenvolver de forma ética. balho tem o intuito de demonstrar observar quais Já no quinto capítulo iremos tra- o surgimento da moralidade e ob- mecanismos tar das normas de compliance, ter- servar quais mecanismos propor- mo novo no Brasil, mais conhecido cionam, ou não, a efetivação desse proporcionam, ou no âmbito privado, que consiste em princípio, seja no âmbito público ou não, a efetivação todo o conjunto de normatização no âmbito privado. Sua relevância necessária para o desenvolvimento organizacional (teórica ou finalida- desse princípio, da empresa de forma ética. Por fim, de) consiste exatamente em avaliar seja no âmbito na conclusão, poderemos retomar de que forma essa efetivação ocorre, público ou no alguns pontos elencados durante o se é ou não satisfatória no contex- artigo e constatar as mudanças iden- to brasileiro atual, ou seja, busca-se âmbito privado. tificadas, de como a moralidade ju- saber se há efetividade da norma no rídica modificou as necessidades no plano fático. âmbito público e privado. Nesta pesquisa, a metodologia Considerando que, nessa seara, implantada consiste, de forma ge- existem poucas obras acadêmicas, ral, em uma análise qualitativa. Os busca-se, a partir desse trabalho, pro- dados serão coletados de forma pre- blematizar: quais mudanças ocorre- dominantemente bibliográfica, ana- ram a partir da criação dos institutos lisando- se a perspectiva histórica que retratam a moralidade? e o aperfeiçoamento dos institutos Os objetivos do presente trabalho a partir da ordem cronológica dos consistem em identificar o surgi- acontecimentos.

Parlatório . MARÇO/2018 . 65 2. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE

A palavra “moral” decorre do la- ca, da probidade, enquanto que esta tim moralis e há séculos referia-se difere o bem do mal, o aceito do ina- apenas aos costumes. As primeiras ceitável, e varia de acordo com cada discussões que remontam à palavra sociedade, cada tempo histórico e moralidade são trazidas da Grécia, com cada cultura de forma que, o mais precisamente com Aristóteles, que para alguns é totalmente aceitá- porém, esta não era uma moralida- vel, para outros é repudiado. de tal como a que entendemos hoje, No Brasil, a moralidade desen- pois estava mais atrelada às relações volve-se de forma positivada e ini- entre as pessoas no cotidiano da cialmente voltada para o viés jurí- polis e ao comportamento psíquico dico e público apenas no século XX, humano. sendo evidenciada pelo Decreto-Lei Séculos depois, Henri Welter e n° 3.240, editado em 1941, que já Lacharrière desenvolveram, cada um trazia previsão de normas para pes- em seu tempo, o início do conceito soas que cometessem crimes aos de moralidade jurídica que existe quais convergissem em prejuízos hoje. Eles acreditavam que a mora- à Fazenda Pública (MARTINS JÚ- lidade jurídica era fundamental para NIOR, 2009, p. 181). a boa administração, já que poderia A partir desse recorte histórico disciplinar o poder discricionário do da década de 40, a observância para gestor, porém suas ideias só ganha- com a moralidade jurídica foi se am- ram um desenvolvimento maior na pliando e se aperfeiçoando. É impor- contemporaneidade. tante destacar que este termo “mo- A moralidade administrativa ralidade jurídica” é relativo, e varia contemporânea difere da moralidade conforme a sociedade e o momento comum, pois aquela está relacionada no qual se analisa. à ideia de boa administração, da éti- Assim, essa ampliação e aperfei-

66 . Parlatório . MARÇO/2018 çoamento do tema sofreram uma trativas ou cíveis, que decorrem dos estagnação no período ditatorial princípios implícitos e explícitos na brasileiro. No entanto, quando a Constituição. sociedade brasileira se reorganizou Uma outra acepção, no que tange politicamente e construiu a Carta aos princípios, é a da aplicação da Magna de 1988, o tema moralida- ponderação. Esse instituto é dema- de jurídica tornou-se princípio do siadamente utilizado pelos nossos direito administrativo, elencado no juízes, gestores, administradores caput do art. 37, concretizando uma e por todos que detêm o poder de tendência jurídica, que se traduz na decisão. A ponderação consiste em busca por uma gestão ética, proba, escolher, em cada caso concreto, a transparente, eficaz, de exercício ple- decisão que se adéque melhor, seja no e livre de corrupção. ela para atender a anseios da socie- Desta forma, de acordo com o dade ou para resolver uma lide em administrativista Garcia (2002), en- particular. tende-se que os atos administrativos Contudo, o grande pesar dessa devem atender a Lei e também à acepção, é que a ponderação não é moralidade administrativa, de for- feita, muitas vezes, de forma isonô- ma a conjugar uma harmonia entre mica, no intento de garantir a trans- a situação prática, o interesse do parência da ação, pois se de um lado cidadão e o ato praticado pelo ges- existem anseios, e o juiz ou admi- tor. Nesse passo, analisa-se todo um nistrador opta por ponderar, ele não contexto para aferir se o equilíbrio pode fazê-lo sem critérios. É pre- desses fatores gera a moralidade ju- ciso, acima de tudo, demonstrar os rídica almejada. critérios que utiliza para resolver os A moralidade pode ser encontra- conflitos de forma que haja uma apli- da na Constituição Federal de forma cação transparente, justa e precisa, explícita em dois dispositivos: no art. dando assim publicidade, eficiência É preciso, 5°, LXXIII, que trata da legitimidade e eficácia à decisão. acima de tudo, para propor ação popular, cujo esco- Como já mencionado, o prin- po é repelir ato lesivo à moralidade cípio da moralidade foi positivado demonstrar os administrativa; e no art. 37, caput, na Constituição Brasileira, porém critérios que utiliza que elenca expressamente a morali- isso ainda não era o suficiente para dade como um princípio da Admi- sua efetiva aplicação. Era necessário para resolver nistração Pública, sendo possível, disseminar a moralidade em todo o os conflitos de a partir da exploração dessa última âmbito jurídico, permeando nosso forma que haja vertente, observar a disseminação de sistema através de leis, decretos, por- leis que tratam de moralidade. tarias, códigos, práticas, normas e uma aplicação Atualmente, os princípios vêm regras. Somente com a capilarização transparente, justa ganhando um espaço maior no ce- do princípio da moralidade no orde- nário jurídico brasileiro. Pode-se namento jurídico estaríamos todos e precisa, dando perceber que eles não servem ape- em busca do mesmo propósito, uma assim publicidade, nas para fundamentar decisões ge- gestão pública e privada alinhada e néricas. Hoje já existem diversas com o mesmo intuito: dirimir a cor- eficiência e eficácia sanções, sejam elas penais, adminis- rupção do nosso país. à decisão.

Parlatório . MARÇO/2018 . 67 3. DISSEMINAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE NO ORDENA- MENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Após o marco que ocorreu com tos, que, por vezes, até desconhece. a implementação do princípio da Muitas dessas ferramentas foram moralidade na Constituição Federal legitimadas pela própria Consti- de 1988, era preciso disseminar esse tuição Federal para buscar coibir a princípio de forma que ele se soli- corrupção e efetivar a moralidade dificasse no ordenamento jurídico e jurídica. Infelizmente, esses meca- adquirisse eficiência e eficácia. nismos não são de conhecimento de Ao longo desses 27 anos de Cons- todos, e ainda são pouco aplicados. tituição Cidadã, percebe-se que o ter- A título de exemplo, podemos citar mo moralidade está a cada dia mais a ação popular como um expressivo presente no ordenamento jurídico instrumento de combate ao descum- brasileiro, sendo possível confirmar primento da moralidade. esse raciocínio a partir da jurispru- Assim, é possível identificar a dência dos tribunais superiores, das existência de diversas ferramentas sanções aplicadas em decorrência da para o cidadão buscar a efetivação falta de moralidade no âmbito jurí- da moralidade administrativa, exis- dico, e também a partir do momen- tindo, além dessas formas coerciti- to político que o Brasil vivencia, no vas, que deverão ser utilizadas quan- qual os cidadãos estão construindo do essa moralidade jurídica não for uma participação política mais for- observada. “A licitação te, aspecto que pode ser observado a Quando isso ocorre, tornam-se partir das manifestações recorrentes cabíveis os meios coercitivos que o destina-se no país, principalmente no que tange direito elencou para atuar no caso a garantir a ao combate à corrupção. concreto, ou seja, formas impositi- Tendo em vista tal viés, percebe- vas, por diversas vezes, encontradas observância -se que atualmente as pessoas estão na seara penal, para sancionar aque- do princípio extremamente conectadas ao que les que não atentarem para a morali- ocorre no país, se tomarmos como dade administrativa. constitucional parâmetro algumas décadas atrás. Dentre as formas indicativas e co- da isonomia, Entretanto, na maioria das vezes, não ercitivas, podemos destacar: a Lei de se busca os meios jurídicos para se Improbidade Administrativa, a Sú- a seleção da propagar o descontentamento, e sim, mula Vinculante n° 13, a Lei de Li- proposta mais a internet e as mídias sociais. Como citações, a Lei do Abuso de Poder, a se pode perceber, são essas as ferra- Lei Anticorrupção, a corrupção ativa vantajosa para mentas da era digital, que proporcio- e passiva tipificada no Código Penal a administração nam a propagação de opiniões diver- e o Código de Ética do servidor pú- sas, de manifestações e, também, a blico federal. e a promoção do disseminação da opinião popular de Os atos de improbidade estão desenvolvimento forma nunca vista em outras épocas. elencados na Lei n° 8.429/92 (Lei nacional O cidadão comum possui ao seu de Improbidade Administrativa ou alcance diversas ferramentas jurí- simplesmente – LIA). Conforme o sustentável. dicas de resguardar diversos direi- entendimento de Alexandre de Mo-

68 . Parlatório . MARÇO/2018 raes (2007, p. 11), “a possibilidade de tre algumas famílias tornou-se mais responsabilização dos agentes públi- dificultosa, visto que a sociedade já cos por improbidade administrativa não aceita mais essa prática abusiva e depende de prévia previsão legal das desleal dos detentores do poder. condutas ilícitas”. No que tange à Lei de Licitações, A LIA possui três artigos princi- podemos observar o art. 3°, que aduz: pais, que estão divididos de acordo com suas consequências. O art. 9° A licitação destina-se a garantir trata das vantagens que geram en- a observância do princípio cons- riquecimento ilícito; o art. 10 trata titucional da isonomia, a seleção dos atos que restam prejuízo ao erá- da proposta mais vantajosa para rio; e o art. 11, dos atos que aten- a administração e a promoção do tam contra a administração pública. desenvolvimento nacional susten- Assim, de uma forma abrangente, a tável e será processada e julgada Lei de Improbidade Administrativa em estrita conformidade com os visa combater atos que afrontem à princípios básicos da legalidade, moralidade, principalmente no âm- da impessoalidade, da moralida- bito público. de, da igualdade, da publicidade, Já a Súmula Vinculante n° 13 do da probidade administrativa, da STF, conhecida como Súmula do ne- vinculação ao instrumento convo- potismo, visa erradicar essa prática catório, do julgamento objetivo e tão comum no funcionalismo públi- dos que lhes são correlatos. co, como elucida o próprio portal do STF1: Diante do exposto, só é possível haver uma licitação, se esta observar A nomeação de cônjuge, compa- os princípios administrativos elen- nheiro ou parente em linha reta, cados no art. 37 da Constituição Fe- colateral ou por afinidade, até o deral de 1988, em conjunto com os terceiro grau, inclusive, da auto- princípios específicos da licitação. ridade nomeante ou de servidor A Lei n° 4898/65 (Lei do Abuso da mesma pessoa jurídica investi- de Poder) retrata, desde a década de do em cargo de direção, chefia ou 1960, a propagação da responsabi- assessoramento, para o exercício lidade administrativa, civil e penal de cargo em comissão ou de con- para aqueles que abusarem de sua fiança ou, ainda, de função grati- autoridade, seja para com outro ser- ficada na administração pública vidor público ou para com os cida- direta e indireta em qualquer dos dãos em geral. poderes da União, dos Estados, do Uma das temáticas mais recentes Distrito Federal e dos Municípios, sobre o assunto é a Lei n° 12846/13, compreendido o ajuste median- mais conhecida como Lei Anticor- te designações recíprocas, viola a rupção ou LAC, que modificou as Constituição Federal. estruturas de atuação, tanto dos en- 1. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante tes públicos quanto privados, prin- no 13. Diário Oficial da União. Brasília, 29 ago. 2008. p. 1 Disponível em: . Acesso em: 15 a disposição dos cargos públicos en- a corrupção. nov. 2015.

Parlatório . MARÇO/2018 . 69 A LAC foi um importante ins- tas para evitar futuras sanções. trumento demarcatório, haja vista O termo moralidade sofreu uma que, a partir dela, as empresas pri- grande disseminação desde a Cons- vadas poderão ser responsabiliza- tituição Federal de 1988, efetivou-se das de forma objetiva se praticarem e tomou forma em vários aspectos atos lesivos contra a administra- da sociedade brasileira. Dentre eles, ção pública nacional e estrangei- podemos destacar que, no setor pú- ra. Além disso, é possível observar blico, através das legislações criadas que as empresas estão buscando se desde a promulgação da Consti- adequar, criando códigos de con- tuição até os dias atuais, surgiu um duta, aperfeiçoando as práticas de sentimento de busca pela gestão éti- governança corporativa, montando ca, proba, eficiente e eficaz, visando equipes direcionadas ao desenvol- abolir a morosidade do setor público vimento das normas de compliance, brasileiro através de condutas reves- e, consequentemente, estão visando tidas de ética e que enxergam o cida- proteger seu capital de práticas ilíci- dão como um cliente final.

4. GESTÃO ÉTICA

A ética possui um conceito abran- sistemas de normas simbólicas e fer- gente que tem o poder de permear ramentas de reprodução social uni- todos os aspectos da vida humana, das a discursos abrangentes que são perpassando pelas relações interpes- disseminados pela gestão para a for- soais, pelo serviço público e pelas or- mação da conduta da coletividade. A ética possui ganizações privadas. De acordo com A gestão ética possui alguns ob- um conceito as ideias propostas por Nash (1993), jetivos a serem atingidos, dentre os a ética nos negócios estuda, de modo quais podemos destacar: a maior abrangente que mais específico, o contexto próprio consciência das questões éticas no tem o poder de do mercado corporativo e suas im- ambiente de trabalho, a coerência plicações morais. na aplicação das possíveis soluções, permear todos Quando analisamos a ética como e principalmente, a prevenção de os aspectos da conceito, podemos concluir que não desastres éticos, que podem com- é possível classificar uma organiza- prometer definitivamente a imagem vida humana, ção como completamente ética ou de uma organização. Para se concre- perpassando antiética, pois esses são conceitos tizarem, esses objetivos básicos ne- que são construídos todos os dias e cessitam de aderência do alto escalão pelas relações podem mudar com apenas uma ação da empresa, além de treinamentos interpessoais, ou omissão. abrangentes, que possam contribuir A partir da explanação do autor para a rotina de todos os envolvidos. pelo serviço Robert Srour (2005), verifica-se que A gestão ética traduz-se em um público e pelas a moralidade administrativa - com- alvo almejado, entretanto, diversas posto fundamental da gestão ética - vezes não é isso que ocorre e então organizações consiste em um conglomerado com- se faz necessário recorrer aos órgãos privadas. posto por códigos de padronização, e entidades competentes, que pos-

70 . Parlatório . MARÇO/2018 suem função investigativa e podem humana, fazendo com que todos es- cas de governança corporativa e pro- auxiliar na busca por ações ou omis- ses fatores se alinhem de forma con- gramas de compliance, objetivando sões antiéticas. gruente, com um denominador em a transparência e a responsabilidade Alguns exemplos disso são as Co- comum, a ética. social. Dessa forma, gestão ética, go- missões de ética, a Corregedoria-Ge- Segundo Alvarez et al (2008, p. vernança corporativa e compliance ral da União, as Corregedorias especí- 38): devem estar sempre juntas em uma ficas, as comissões de sindicância ou empresa. Faz-se necessário unir estes de inquérito administrativo, o Minis- O respeito ao processo ético resul- conceitos de forma que contenham tério Público, o Tribunal de Contas da tará em maior respeito pela orga- os princípios e valores que guiam a União, as Comissões Parlamentares nização interna e externamente, organização. de Inquérito, dentre outros. aumentando sua credibilidade e Por outro lado, podemos obser- O Poder Legislativo e o Judiciário integridade. Ética e integridade var que o grande desafio imposto ao também são alvos de atuação da ges- são essenciais no mercado global, gestor contemporâneo traduz-se em tão ética. O disposto no art. 116 da por que empresas percebidas como como lidar com os diversos indiví- Lei n° 8112/90, especificamente nos éticas podem recrutar e reter os duos em suas singularidades, já que doze incisos ali contidos, elenca ex- melhores empregados e estabelecer o comportamento ético deve tradu- tensivamente os deveres do servidor, relações de longo prazo com ven- zir-se em cada um apesar de suas valorando implicitamente atitudes dedores, compradores, investidores particularidades. éticas. etc. Além do mais, empresas éticas Diante do exposto, é possível Apesar do exposto, não pode- podem suscitar respeito, reduzindo identificar a forma como o princí- mos elencar a gestão ética como um a pressão de ativistas e da mídia, pio da moralidade se disseminou no objetivo exclusivo do setor público. protegendo sua reputação. ordenamento jurídico, construindo Atualmente, ela também consis- bases para uma gestão ética, princi- te em um desafio aos gestores pri- Com efeito, as exigências éticas palmente na área pública, criando, vados. Para eles, o desafio gira em consistem em uma demanda cres- também, alicerces na área privada torno de conciliar os interesses dos cente do mercado privado, o que tem que se disseminaram com a gestão acionistas, a realidade do mercado, levado milhares de empresas a de- ética, as práticas de governança cor- o ambiente dos negócios e a conduta senvolverem códigos de ética, práti- porativa e as normas de compliance.

Parlatório . MARÇO/2018 . 71 5. GOVERNANÇA CORPORATIVA

De acordo com o Instituto Bra- trabalho único, revestido de ética. ressados, o IBGC criou o Código de sileiro de Governança Corporativa De acordo com Rodrigues e Melhores Práticas de Governança – IBGC, a Governança Corporativa Mendes (2004, p. 114): Corporativa, que vem se atualizando consiste em um sistema que busca constantemente na busca pela exce- integrar, através de um relaciona- A governança corporativa deve lência. De acordo com o Código de mento ético, os proprietários, con- atender basicamente ao interesse Melhores Práticas de Governança selho de administração, diretoria e dos acionistas, em compatibili- Corporativa, os princípios básicos órgãos de controle. zação com os interesses dos em- que regem, responsáveis pela lon- Para Valmor Slomski et al pregados, clientes, fornecedores, gevidade das empresas, são trans- (2008, p. 3), governança corpora- credores e da comunidade em que parência, equidade, accountability e tiva “é o sistema pelo qual as socie- opera a empresa. Sua operação responsabilidade corporativa. dades são dirigidas e monitoradas, envolve os grupos de poder vin- Podemos conceituar os princí- em que, através de mecanismos culados à condução dos negócios, pios acima mencionados da seguin- específicos, gestores e proprietá- supervisiona e monitora o desem- te maneira: transparência consiste rios procuram assegurar o bom penho dos executivos, garantindo em repassar às partes interessadas desempenho da empresa para au- a capacidade desses profissionais (os sócios) toda informação que for mento de sua riqueza”. prestar contas de seus atos aos requisitada por estes e, além disso, Segundo o entendimento de acionistas e a outros agentes inte- todas as informações que sejam Elísio Serafim et al (2010), a movi- ressados na empresa. necessárias, não apenas as requi- mentação em prol da governança sitadas; equidade traduz a ideia de corporativa foi uma resposta aos O termo Governança Corpora- igualdade entre as partes interes- abusos de dirigentes de grandes tiva é recente no Brasil e ganhou sadas, o que se converge diversas empresas, desencadeados no con- força com a criação do Instituto vezes pelas políticas anti-discri- texto dos escândalos da década de Brasileiro de Governança Corpo- minatórias elencadas também nos 1980 nos Estados Unidos, quando rativa – IBGC, que, em síntese, é códigos de conduta das empresas; foram descobertos esquemas de um instituto criado para dissemi- já quando tratamos de accountabi- corrupção, lavagem de dinheiro e nar boas práticas de governança lity, podemos elencar os meios de desvio de recursos em grandes em- entre as empresas, adaptando-as às prestação de contas, não apenas no presas norte-americanas. mudanças que ocorrem no merca- âmbito financeiro, mas prestação Esses conflitos fizeram com do de trabalho. de contas da atuação em si; a res- que as empresas e as partes inte- É possível aplicar as boas práti- ponsabilidade corporativa é verifi- ressadas no negócio procurassem cas de governança em empresas de cada pelo comportamento de zelo desenvolver mecanismos de maior qualquer porte, entretanto, a reali- para com a organização, a partir do acompanhamento e controle, prin- dade brasileira demonstra que na sentimento e da atitude de buscar a cipalmente por parte dos reais ad- maioria das vezes, apenas as empre- longevidade da empresa. ministradores do negócio. Tal ne- sas de grande porte possuem uma Assim, entende-se que a gover- cessidade é recorrente em diversos equipe que trata, exclusivamente, nança corporativa consiste em mais tipos de empresas, pois os interes- de governança corporativa, de for- um meio de buscar aplicar no âmbi- ses dos acionistas nem sempre es- ma que esta esteja sempre alinhada to privado a gestão ética, baseada na tão alinhados às possibilidades dos aos objetivos da organização. moralidade, que, unida às normas administradores de fato. É preciso Na tentativa de disseminar as de compliance, tornam a empresa uma convergência entre interesses e boas práticas de governança corpo- preparada para atuar de forma ética possibilidades para desenvolver um rativa entre o maior número de inte- em todas as situações.

72 . Parlatório . MARÇO/2018 6. NORMAS DE COMPLIANCE

Segundo o Michael Pereira Lira (2013), o termo compliance tem ori- gem do inglês “to comply” que signi- fica agir de acordo com uma regra, uma instrução interna, um comando ou pedido, em resumo significa “es- tar em conformidade”. A corrupção é um problema glo- bal que atinge desde os países sub- desenvolvidos até as grandes potên- cias, passando, portanto, a ser uma preocupação maior na esfera inter- nacional. Em vista disso, os Estados Unidos editaram uma Lei conhecida como FCPA (Foreign Corrupt Practi- ces Act of 1977), que gerou repercus- são em todo o mundo. A Inglaterra, trativa da pessoa jurídica, conforme investem em gestão dos riscos, o que por sua vez, também editou uma Lei demonstrado no art. 2° da Lei no diminui a probabilidade de fraudes sobre o assunto, que ficou conhecida 12.846/13: “as pessoas jurídicas se- internas e gera um ambiente ético e como UK Bribery Act of 2010. rão responsabilizadas objetivamente, seguro para as organizações. No Brasil, apesar de o princípio nos âmbitos administrativos e civil, De acordo com Renato Almei- da moralidade ter sido instituído na pelos atos lesivos previstos nesta Lei da dos Santos (2011), “compliance é Constituição Federal de 1988, ape- praticados em seu interesse ou bene- compreender a natureza e a dinâmi- nas em 2013 o país editou uma Lei fício, exclusivo ou não”. ca da fraude e da corrupção nas or- especificamente para tratar da cor- A inovação trazida pela Lei anti- ganizações”. Assim, podemos inferir rupção. A Lei no 12.846/13, mais co- corrupção é que, antes se penalizava que independentemente do ramo de nhecida como Lei anticorrupção ou apenas a pessoa física, ou seja, o só- atuação, é do interesse de toda or- LAC, pressionou órgãos públicos e cio ou administrador, e a partir da ganização legal cumprir as exigên- principalmente organizações priva- responsabilidade atribuída à pessoa cias a fim de preservar sua relação das na busca da gestão proba. jurídica, o cenário muda e as em- com investidores, com outras orga- Devemos lembrar que a corrup- presas reorganizam-se para prevenir nizações, com o governo, e com os ção, seja no âmbito público ou no a corrupção através das normas de stakeholders, preservando, assim, sua privado, tem um custo alto para o compliance. imagem perante a sociedade e, prin- país. Ela subtrai recursos que deve- Atualmente, as empresas privadas cipalmente, seu capital. riam alcançar projetos sociais, cons- trução de escolas, hospitais, políticas habitacionais, dentre tantas outras necessidades da população. A Lei anticorrupção traz para o “compliance é compreender a natureza e âmbito jurídico aspectos e reflexos a dinâmica da fraude e da corrupção nas inéditos no âmbito empresarial. Uma das principais inovações é a respon- organizações” sabilidade objetiva, civil e adminis- RENATO ALMEIDA DOS SANTOS

Parlatório . MARÇO/2018 . 73 Além disso, a implantação de panhas políticas, a sonegação fiscal, programas de compliance que, por as fraudes, dentre outras práticas. um lado geram um gasto, por ou- De acordo com a Fundação Na- tro tornam-se um diferencial, pois, cional da Qualidade, citada na obra quando a empresa investe em ética de Alexandre Carrasco et al (2011): em suas interações, ela reafirma seus valores e pode se tornar mais atrati- Os programas de compliance têm va para o mercado. De acordo com como foco a adoção dos mais ele- Driscoll et al (1998, p. 37): vados padrões de ética e conduta na organização, por meio da edu- Programas de ética e compliance cação dos funcionários em todos estão estritamente interligados, os níveis. Sabe-se, porém, que os pois baseiam-se em valores e res- riscos de desvios com práticas de ponsabilidades morais, procuran- fraudes e outros tipos de conduta do incentivar o cumprimento e a irregular não são causados apenas conformidade das leis e das polí- pelo comportamento inadequado Programas ticas internas, o que por sua vez dos empregados. Os terceiros que tende a culminar no fortalecimen- atuam em nome da empresa ou de ética e to da cultura ética da organização. mesmo sócios de alguma espécie compliance estão também têm grande potencial de Nos moldes atuais, os programas provocar danos irreparáveis à sua estritamente de ética e compliance devem conter imagem e reputação. Por isso um interligados, os valores da organização, o seu có- dos assuntos que vêm sendo deba- pois baseiam- digo de conduta, treinamentos, ca- tidos atualmente é a importância e nais de denúncias e esclarecimentos a conveniência de as organizações se em valores e para os colaboradores, comitês de que já implantaram seus progra- responsabilidades ética, auditorias internas e externas mas de compliance e de ética (...) de ética e compliance, políticas in- exigirem que seus fornecedores, morais, ternas e externas que visem dirimir agentes e terceiros contratados se procurando os danos. submetam também a essas regras. Dessa forma, as normas de com- incentivar o pliance visam como um todo ana- Dessa forma, observamos que, cumprimento e a lisar aspectos da vida empresarial no decorres do tempo, houve uma e dos meios que a circundam. Al- evolução e crescimento do princípio conformidade das guns exemplos desses aspectos são da moralidade, que se iniciou com a leis e das políticas a corrupção, a proteção dos ativos sua positivação na Constituição Fe- da empresa, a regulação setorial, a deral de 1988, seguida de sua disse- internas, o que qualidade dos produtos, o relaciona- minação no ordenamento jurídico e por sua vez tende mento com os terceiros (partes inte- consequente busca pela gestão ética ressadas), a proteção de informações nas searas pública e privada, apre- a culminar no confidenciais, os conflitos de interes- sentando significativos avanços, seja fortalecimento da se, a divulgação de informações pri- com o desenvolvimento de legisla- vilegiadas, os aspectos ambientais, ção pertinente à temática ou com a cultura ética da os crimes de lavagem de dinheiro e criação de práticas de governança, organização. colarinho branco, a doação em cam- ética e compliance.

74 . Parlatório . MARÇO/2018 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de todo o exposto ao lon- go do artigo, podemos concluir que a moralidade consistia em um tema pouco discutido no Brasil, mas que, a partir da década de 40, ainda de forma discreta, foi se expandindo. É importante ressaltar que, duran- te a época ditatorial, pouco se falou em moralidade, haja vista o período conturbado o qual o Brasil atraves- sou. Entretanto, foi a partir desse período conturbado que criamos as bases e a necessidade do clamor por moralidade. As pessoas estavam A moralidade jurídica se dissemi- vendo códigos de conduta, aplicando mais conscientes e dispostas a lutar nou através de normas que, como re- boas práticas de governança corpo- por uma sociedade mais balizada gra mandamental, fizeram com que rativa e desenvolvendo normas de através da moralidade. a moralidade seja observada e res- compliance. Com o advento da Constitui- peitada. Como exemplo desse tipo No âmbito privado a grande mu- ção Federal, o termo moralidade foi de legislação observamos a Lei de dança foi a atribuição da responsa- elencado no art. 37 como princípio improbidade administrativa, a Lei de bilidade objetiva à empresa e não básico do direito administrativo, licitações, a Súmula Vinculante n°13, apenas aos seus sócios ou adminis- com reflexos em diversos outros arti- a Lei anticorrupção, a corrupção ati- tradores. A partir de então, empresas gos da Constituição e posteriormen- va e passiva e o Código de Ética do que têm buscado desenvolver pro- te elencado em normas especificas. Servidor Público Federal. gramas pautados na ética, nas boas A partir do momento em que Dessa forma, observamos qual foi práticas de governança e em com- os nossos constituintes originários a importância de todo esse rol de le- pliance são mais bem vistas por in- elencaram o termo moralidade como gislação imposto ao longo desses 27 vestidores, por outras empresas e por um princípio do Direito Administra- anos de Constituição Cidadã. A par- seus próprios funcionários. tivo, isso se tornou um marco. Uma tir dela o Brasil pôde dar os primei- Investir em desenvolvimento ético nova forma de tratar termos como ros passos na busca pela gestão ética, apenas confirma a importância que moralidade e ética se implantou a estabelecendo normas que sancio- toda essa legislação causou no mundo partir da necessidade de balizar os nam aqueles que não atentarem para jurídico e empresarial. Hoje tão im- atos da gestão. com a moralidade jurídica. portante quanto estar atento ao mer- Com o passar dos anos, o termo Importante ressaltar que esse de- cado privado, é também estar atento moralidade foi se consolidando em senvolvimento não refletiu apenas às formas de minimizar os desastres diversas áreas da sociedade, princi- no âmbito público, mas também no éticos e a corrupção empresarial. palmente no âmbito administrativo âmbito privado. A partir do momen- Assim, conclui-se que, nessa ca- e jurídico, e então podemos começar to que em se tornou obrigatória a deia cronológica, a importância da a falar no termo moralidade jurídica, observação à moralidade em diver- instituição da moralidade como que consistiu nas bases morais apli- sas legislações, em especial na Lei princípio refletiu em todo o ordena- cadas ao mundo jurídico, o que gera, anticorrupção, as empresas privadas mento, causando uma busca por um eminentemente, reflexos em diversas convergiram seus esforços para se desenvolvimento mais ético, susten- áreas da nossa sociedade. adequar ao novo cenário, desenvol- tável e livre da corrupção.

Parlatório . MARÇO/2018 . 75 REFERÊNCIAS

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Parlatório . MARÇO/2018 . 77 Artigo Jodilson Iron Gomes de Medeiros Advogado inscrito na OAB/RN. Quem Tem Medo do STF? Estudo Acerca da Racionalização dos Poderes do Pretório Excelso

RESUMO Atualmente muito tem se discutido sobre as razões do patente aumento do número de causas que são judicializadas. A quantidade de processos repre- senta as inúmeras relações sociais que requerem uma resposta do Judiciário e, graças ao modelo institucional estabelecido nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, muitas questões poderão ser postas em juízo. Diante disto, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal assume papel de preponderância na guarda e interpretação da Constituição, sobre- tudo se considerarmos que ele, enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciá- rio, será convidado a dar o parecer final sobre estas questões, tendo as suas decisões meritórias nas ações de controle concentrado efeitos vinculantes e eficácia erga omnes. Neste sentido, partindo-se de uma pesquisa bibliográfi- ca o presente artigo propõe-se a responder: De que modo a Corte Suprema poderá agir sem contrariar os comandos constitucionais? O presente ensaio discorrerá a respeito dos fenômenos da judicialização e do ativismo judicial, ressaltando a modalidade negativa deste ao analisar os votos dos ministros ao indeferirem os pedidos cautelares das Ações Declaratórias de Constituciona- lidade 43 e 44. Visa-se incitar o debate acerca dos deveres e competências que o Pretório Excelso possui enquanto intérprete do Texto Magno, sugerindo ainda algumas técnicas a serem executadas para que haja a racionalização da sua atuação. Palavras-chave: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ju- dicialização das questões políticas e relações sociais. Ativismo judicial. Supre- mo Tribunal Federal.

78 . Parlatório . MARÇO/2018 INTRODUÇÃO

Atualmente muito tem se discu- questionam-se e preocupam-se com O Poder Judiciário tido sobre as razões que dão ensejo os limites dos poderes do Pretório ao vertiginoso aumento do número Excelso, pois, por tratar-se de órgão assume papel de de causas judiciais no Brasil, entre- de cúpula do Poder Judiciário e cujas protagonista na tanto, é fácil constatarmos que tal decisões nas ações do controle con- fenômeno é decorrência direta das centrado possuem efeitos vinculan- defesa e efetivação determinações trazidas no bojo da tes e eficácia erga omnes, não possui de direitos que Constituição da República Federati- qualquer mecanismo de controle so- va do Brasil de 1988. A Constituição bre seus posicionamentos. são estabelecidos Cidadã, atenta aos anseios sociais, O presente artigo discorrerá a constitucionalmente, prevê um extenso rol de diretos, tra- respeito dos fenômenos da judiciali- tando-os de maneira pormenorizada zação e do ativismo judicial, estes de- mormente diante e estabelecendo diversos mecanis- correntes dos anseios e necessidades da omissão e inércia mos para que estes sejam devida- sociais em todo o mundo. Além dis- mente garantidos. so, tratará a respeito das competên- praticadas pelos O Poder Judiciário assume papel cias e deveres do STF enquanto ór- poderes Executivo e de protagonista na defesa e efetiva- gão de cúpula do Poder Judiciário e Legislativo de todas ção de direitos que são estabeleci- guardião do Texto Magno, analisan- dos constitucionalmente, mormente do de que maneira a Corte Suprema as esferas. diante da omissão e inércia pratica- olvida-se de sua responsabilidade das pelos poderes Executivo e Le- enquanto defensora da Carta Política gislativo de todas as esferas. Diante ao indeferir os pedidos liminares nas disto, caberá ao Supremo Tribunal ADCS 43 e 44 e, agindo como legis- Federal, enquanto órgão protetor do ladora positiva e desempenhando o texto constitucional, estabelecer o ativismo judicial de maneira prejudi- sentido e alcance das normas cons- cial, dá novo sentido a garantia cons- titucionais, sempre velando pela sua titucional da presunção de não cul- aplicação nas relações sociais que são pabilidade. Ao final, visa-se incitar trazidas à sua análise. o debate e propor algumas técnicas 1. Em sua obra “Der Hüter der Verfassung. Tübingen: Neste passo, assim como Carl para que o Supremo Tribunal Fede- Mohr, 1931. P. 7, Carl Schmitt, ressalta a seguinte preo- cupação: “o guardião da Constituição torna-se facilmente Schmitt1, os indivíduos mais atentos ral possa racionalizar a sua atuação. seu Senhor”.

Parlatório . MARÇO/2018 . 79 2. JUDICIALIZAÇÃO DAS QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS

Segundo dados extraídos da nificaria o deslocamento da esfera pal de guarda da Carta Maior, pos- Revista “Justiça em números”2, or- de decisão de alguns aspectos que suindo o Supremo Tribunal Fede- ganizada pelo Conselho Nacional inicialmente caberiam aos poderes ral papel de preponderância neste de Justiça (CNJ) no ano de 2016, Legislativo e Executivo para o setor desiderato. hodiernamente o Brasil conta com de atuação do Judiciário. Como destacado por Luís Ro- cerca de 102 milhões de processos, O fenômeno da judicialização berto Barroso, no Brasil grande os quais, sem sombras de dúvidas, das questões políticas e relações parte da judicialização é reflexo do evidenciam a crescente judicializa- sociais é uma tendência mundial, sistema institucional previsto em ção das inúmeras relações que se possuindo como marco propulsor nossa Carta Política, que é mani- estabelecem no seio da sociedade. as previsões trazidas nas Consti- festamente ambiciosa e analítica, Do mesmo modo, estes núme- tuições de Portugal de 1976 e da prevendo pormenorizadamente di- ros também representam a intensa Espanha de 1978, tendo tal tendên- versos assuntos, os quais, graças ao necessidade que os indivíduos pos- cia sido potencializada no texto da princípio da inafastabilidade do Po- suem de ter os seus direitos que são Constituição da República Federa- der Judiciário, previsto nos termos estabelecidos constitucionalmente tiva do Brasil de 1988 (BARROSO, do art. 5º, inciso XXXV do Texto devidamente efetivados através de 2012, p. 2). Magno, poderão ter suas questões uma decisão judicial – sejam os di- Estas Constituições, distinta- correlatas postas em juízo. reitos que se referem à liberdade, mente das constituições liberais, Some-se a isto a ocorrência de personalidade e propriedade, até são desconfiadas do legislador. Por inúmeras exigências da sociedade e aqueles que dizem respeito ao direi- consequência, preferem indicar do descaso do Estado, este manifes- to de ter um meio ambiente saudá- qual caminho deverá ser tomado to na inércia e na omissão dos po- vel, aos direitos trabalhistas, previ- para que haja a implementação dos deres Legislativo e Executivo para denciários, dentre outros. direitos fundamentais, relegando com os direitos dos cidadãos, os O processo de judicialização aos Poderes Legislativo e Executi- quais são obrigados a recorrerem ao foi conceituado pelo cientista po- vo somente a função de execução Poder Judiciário para que possam lítico estadunidense Chester Neal da vontade do constituinte origi- ter seus direitos realizados e assim Tate (TATE; VALINDER, 1995) o nário. Neste sentido, é entregue ao exercer a democracia (NELSON; qual entende que o fenômeno sig- Poder Judiciário a função princi- DE MEDEIROS, 2015, p. 14).

2. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Brasília: CNJ, 2016. Anual. 404 f:il. I Poder Judiciário - estatística - Brasil. II Administração pública - estatística - Brasil. p. 42.

80 . Parlatório . MARÇO/2018 2.1. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

Como demonstrado, a crescente seus juízos a margem de conformação “...o ativismo judicialização das relações sociais do legislador valorizando uma maior deve-se em grande parte ao perfil deferência judicial (NELSON; DE judicial pode ser institucional adotado pela Consti- MEDEIROS, 2015, p. 14). encarado como tuição da República Federativa do Diferentemente da judicialização, Brasil de 1988, pois esta, símbolo que no Brasil vem em manifesta ex- uma atitude, um da mudança democrática brasilei- pansão pós Constituição Federal de modo específico ra, conscientiza as pessoas dos seus 1988, tendo como fundamento a or- próprios direitos e lhes garante ins- dem constitucional de afirmação dos e proativo de trumentos para efetivá-los sem que direitos fundamentais, nas palavras interpretar a seja exigida prévia regulamentação de Luís Roberto Barroso o ativismo legislativa para tanto. Para que isto judicial pode ser encarado como Constituição, ocorra, são atribuídas diversas prer- uma atitude, um modo específico e alargando seu rogativas aos magistrados, o que faz proativo de interpretar a Constitui- com que o Poder Judiciário transmu- ção, alargando seu sentido e alcance. sentido e alcance; te-se em um verdadeiro poder políti- E o doutrinador segue afirmando geralmente co, estando habilitado para fazer va- que o ativismo judicial geralmente ocorre diante ler a Constituição e as leis, inclusive ocorre diante de situações de reten- quando em confronto com os outros ção do Poder Legislativo, do deslo- de situações de poderes (BARROSO, 2012, p. 2). camento entre a classe política e a retenção do Poder Cumpre aqui fazer a distinção sociedade civil, o que faz com que as entre os fenômenos da judicialização demandas sociais não sejam atendi- Legislativo, do e do ativismo judicial, sempre men- das de maneira efetiva (BARROSO, deslocamento entre cionados quando se discute sobre as Op., cit., p. 2). razões do acentuado aumento do nú- Em que pese atualmente inexis- a classe política e mero de causas judiciais. tir um consenso doutrinário e ju- a sociedade civil, Inicialmente, impende esclarecer risprudencial sobre a conceituação que se atribui a Arthur Schlesinger do termo ativismo judicial, diante o que faz com o mérito de ter cunhado a expressão da velocidade das transformações que as demandas “ativismo judicial”, pois em 1947 ele e aceleração da vida, que requerem publicou na revista “Fortune” o artigo a constante e célere efetivação dos sociais não sejam “The Supreme Court: 1947” através do direitos, verificamos que este é um atendidas de qual analisou o comportamento dos fenômeno necessário, fonte de rea- juízes frente às ações judiciais, dife- lização democrática. Tal afirmativa maneira efetiva. renciando-os entre os “ativistas” (ac- pode ser corroborada sobretudo se tivists) e “passivistas” (self-restrain) ou considerarmos a evidente e sofrida “campeões da resistividade judicial” omissão dos poderes Legislativo e (champions of judicial restraint). Para Executivo para com os direitos dos Arthur Schlensinger os primeiros te- indivíduos, oferecendo-lhes políticas riam como característica o fato de in- públicas pouco eficazes. serirem em suas decisões as próprias Consigne-se que o texto consti- noções de bem comum, ao passo que tucional de 1988, por tratar porme- os passivistas buscavam preservar em norizadamente de diversos assuntos,

Parlatório . MARÇO/2018 . 81 aliado a progressiva centralização terminadas matérias. dentre os seus fundamentos a dig- de poderes no STF, aponta para uma Caberá a lei, observados os va- nidade da pessoa humana. No que mudança no equilíbrio no sistema lores, fins e processo legislativo concerne a este fundamento, cum- de separação de poderes no Brasil, estabelecidos constitucionalmente, pre registrar que nas palavras do convidando-nos a encontrar o “pon- escolher entre os diferentes cená- eminente professor Walter Nunes a to de equilíbrio” entre a atuação do rios que são inerentes as socieda- dignidade da pessoa humana cons- poder judiciário e o espaço da legis- des pluralistas, sempre respeitando titui fundamento da moralidade lação, ambos necessários para o de- os comandos trazidos no bojo do democrática e deverá ser respeitada senvolvimento da sociedade. estatuto constitucional. Nesta pers- independentemente do momento A referida preocupação foi tra- pectiva, caberá ao Supremo Tribu- sociopolítico em que se viva, pois zida por Luís Roberto Barroso, que nal Federal ser deferente para com servirá para afastar qualquer trata- com maestria nos alerta: “[...] a im- as decisões tomadas pelos outros mento mais rigoroso por parte dos portância da Constituição – e do Ju- poderes, agindo com parcimônia indivíduos que acreditam que esta diciário como seu intérprete maior ao analisá-las, fazendo valer nas seria a única maneira de descobrir – não pode suprimir, por eviden- decisões dos poderes Legislativo a verdade ou mesmo punir o agente te, a política, o governo da maio- e Executivo, e principalmente nas (SILVA JÚNIOR, 2005, p. 374). ria, nem o papel do Legislativo. A suas, a vontade dos constituintes A seguir serão abordadas as atri- Constituição não pode ser ubíqua” originários encartada nos coman- buições que foram conferidas ao (BARROSO, Op., cit., p. 9). dos constitucionais. Supremo Tribunal Federal através Registre-se que a judicialização Ao cumprirem a sua função os da Constituição da República Fede- e o ativismo judicial compreendem ministros do Supremo Tribunal rativa do Brasil de 1988, levando-se assuntos como a legitimidade de- Federal deverão considerar que o em consideração o seu papel en- mocrática, a politização da justiça Brasil constitui um Estado Demo- quanto garantidor e efetivador dos e a falta de capacidade institucional crático de Direito, guiado pelos pre- direitos fundamentais estabelecidos do Judiciário para decidir sobre de- ceitos constitucionais, possuindo através do texto constitucional.

3. O PAPEL DO STF ENQUANTO DEFENSOR E INTÉRPRETE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – DE GUAR- DIÃO AO CONSTANTE RECEIO DE TORNAR-SE SENHOR DA CARTA POLÍTICA

Criado após a proclamação da Ressalte-se que após as altera- direta e indireta, nas esferas federal, República, o Supremo Tribunal Fe- ções trazidas pela Emenda Consti- estadual e municipal. deral é o órgão de cúpula do Poder tucional 45/2004, conhecida como Logicamente, ainda que aja es- Judiciário, representando um tri- a emenda responsável pela reforma tritamente nas situações previstas bunal de jurisdição nacional, com do Judiciário, o texto da Carta Polí- constitucionalmente, caberá ao in- as suas funções estabelecidas nos tica passou a prever no artigo 102, térprete do Texto Magno valer-se termos do art. 102 do Texto Mag- § 2º que as decisões definitivas de do seu intelecto para preencher a no. Segundo o dispositivo legal em mérito, proferidas pelo Supremo lacuna jurídica existente, haja vis- comento, o STF disporá de compe- Tribunal Federal nas ações dire- ta que embora a Constituição de tência originária, prevista no art. tas de inconstitucionalidade e nas 1988 tenha antecipado a situação 102, I; e recursal, a qual abarca os ações declaratórias de constitucio- que exige a aplicação de seu texto, recursos ordinário, previsto nos ter- nalidade produzirão eficácia contra ela não estabelece de que modo à mos do art. 102, II; e extraordinário, todos e efeito vinculante relativa- utilização ocorrerá, diferenciando- atribuição trazida no art. 102, III do mente aos demais órgãos do Poder -se de acordo com a situação real texto constitucional. Judiciário e à administração pública analisada.

82 . Parlatório . MARÇO/2018 A título de ilustração, cumpre deral na solenidade de posse do Mi- “A Constituição mencionar que mesmo para Hans nistro Gilmar Mendes, ocorrido na Kelsen, tido como o pai do positi- Presidência da Suprema Corte do está em elaboração vismo, a norma jurídica poderia ser Brasil, em 23.04.2008, verifica-se que permanente encarada como uma “moldura que “A Constituição está em elaboração deveria ser preenchida durante o permanente nos tribunais incumbi- nos tribunais processo hermenêutico, pois contêm dos de aplicá-la (...). Nos Tribunais incumbidos de diversos espaços em branco” (KEL- incumbidos da guarda da Constitui- SEN, 1999 apud TEIXEIRA, 2012). ção, funciona, igualmente, o poder aplicá-la (...). A Constituição da República Fe- constituinte”3. Nos Tribunais derativa do Brasil de 1988, assim Isto posta, constata-se que cabe- como todas as leis, realiza-se através rá ao Judiciário criar o direito dian- incumbidos da atividade intelectual do intérpre- te da análise do caso concreto, pois da guarda da te, todavia, a sua interpretação dife- conforme mencionado por Ávila rencia-se das demais normas, pois o (2008, apud NELSON; DE MEDEI- Constituição, seu texto, dado o seu caráter eminen- ROS, 2015 p. 17) “o intérprete não funciona, temente político e modelo institucio- só constrói, mas reconstrói sentido, igualmente, o nal adotado, conta com conceitos e tendo em vista a existência de signi- categorias jurídicas de elevado grau ficados incorporados ao uso linguís- poder constituinte” de generalidade e abstração, o que tico e construídos na comunidade MINISTRO CELSO DE por vezes ocasiona a intromissão do do discurso”. Desta forma, é de fácil MELLO, CITANDO Judiciário em competências que ini- comprovação a importância que a FRANCISCO CAMPOS cialmente são atribuídas aos poderes criação jurídica pela via da interpre- Legislativo e Executivo. tação do texto constitucional assu- Como mencionado pelo Minis- me, a qual sempre deverá ter como tro Celso de Mello ao citar Francisco parâmetro a realidade social vigente Campos em seu discurso proferido e a incessante busca pela realização 3. Disponível em: . Acesso em 04 de em nome do Supremo Tribunal Fe- dos direitos fundamentais. novembro de 2016.

Parlatório . MARÇO/2018 . 83 Por tais razões, o Supremo Tri- nal Federal, estabelecerem a ligação bunal Federal não tem mais volta- entre o Texto Magno e a realidade das para si apenas as atenções de es- social, principalmente diante da re- pecialistas e operadores do Direito, lação de interdependência entre os passando os seus julgados a fazerem comandos constitucionais e a situa- parte do cotidiano de todos os cida- ção em que a sociedade se encontra. dãos. A cada julgamento proferido O estabelecimento do aludido elo se pelo STF, os quais são amplamente faz necessário para que os ministros televisionados através da “TV Jus- possam formular as suas decisões, tiça” e divulgados pela Internet, os haja vista que a força normativa da indivíduos vão se habituando (e Constituição relaciona-se com a for- esperando) que delicadas questões ça das questões sociais que são tra- sociais sejam decididas pela Corte zidas ao seu julgamento e requerem Suprema. ser normatizadas (NELSON; DE Ao cumprirem o seu desiderato MEDEIROS, 2015, p. 2). os ministros do Supremo Tribunal Ao tratar sobre a conexão existen- Federal deverão estar cônscios de te entre a dinâmica social e a consti- que, diferentemente do que foi afir- tucional, Justen Filho (JUSTEN FI- “A dinamicidade mado por Lassalle, a Constituição de LHO, 2002 p. 9), afirma: dos processos um país é bem mais que um pedaço de papel cuja capacidade de regular (...) há um fenômeno de interação sociais se e de motivar está limitada aos fato- entre o meio social e a constitui- reflete sobre a res reais de poder, estes entendidos ção, com efeitos reflexos e perma- como as decisões decorrentes dos nentes. Uma constituição influen- constituição, poderes políticos. Como bem ressal- cia e determina a organização de modo que tado por Konrad Hesse (HESSE; tra- social, mas a sociedade também duzido por Gilmar Ferreira Mendes. vivencia as normas constitu- as inovações 1991. P. 25/26), a Constituição é de- cionais (que produz) de modos vivenciadas terminada pela realidade social e, ao variáveis e dinâmicos. Por isso, mesmo tempo, determinante em re- o texto constitucional compor- ao interno da lação a ela, não devendo ser conside- ta diferentes interpretações e, ao sociedade são rada, necessariamente, a parte mais longo da trajetória de um povo, fraca em caso de eventual conflito. vão-se alterando as concepções influenciadas E o referido jurista segue afirmando jurídicas acerca do significado e pela disciplina que todos os interesses passageiros, extensão das normas (e, mesmo, jurídica, mas ainda quando realizados, não con- princípios) constitucionais. A di- seguem compensar o imensurável namicidade dos processos sociais também se ganho decorrente do demonstra- se reflete sobre a constituição, de refletem sobre o do respeito ao texto constitucional, modo que as inovações vivencia- mormente naquelas situações em das ao interno da sociedade são Direito, mesmo que a sua observância manifesta-se influenciadas pela disciplina jurí- sobre aquele pré- incômoda. dica, mas também se refletem so- Ademais, caberá aos intérpretes bre o Direito, mesmo sobre aquele existente” da Constituição, no caso em análise, pré-existente (JUSTEN FILHO, JUSTEN FILHO aos Ministros do Supremo Tribu- 2002, p. 9).

84 . Parlatório . MARÇO/2018 Para Justen Filho toda Constitui- segurando a participação política política – e de razão pública – não ção poderia ser encarada como uma ampla, o governo da maioria e a de doutrinas abrangentes, sejam soma de princípios e regras cuja ex- alternância no poder. Mas a demo- ideologias políticas ou concepções tensão e conteúdo possuem natureza cracia não se resume ao princípio religiosas (ibidem). dinâmica. E quanto à necessidade majoritário. Se houver oito cató- do permanente diálogo entre as re- licos e dois muçulmanos em uma A afirmação acima corrobora a alidades sociais e constitucionais o sala, não poderá o primeiro grupo inarredável necessidade de os Mi- referido jurista aduz que “se a cons- deliberar jogar o segundo pela ja- nistros do Pretório Excelso atuarem tituição permanecesse inalterada, nela, pelo simples fato de estar em respeitando os ideais e comandos cristalizada segundo a conformação maior número. Aí está o segundo constitucionais e decidirem levando do momento original, haveria uma grande papel de uma Constituição: em consideração o que a Constitui- dissociação entre direito e sociedade, proteger valores e direitos funda- ção da República Federativa do Bra- que não é apenas indesejável, mas é mentais, mesmo que contra a von- sil de 1988 representa para a nossa impossível” (JUSTEN FILHO p. 9). tade circunstancial de quem tem sociedade, haja vista que ela retorna Ressalte-se que, ao julgarem, os mais votos (BARROSO, 2012. p. 6). a um modelo político jurídico foca- Ministros deverão inocularem em do na democracia, promovendo a suas decisões os ideais e objetivos tra- Luís Roberto Barroso segue ampliação das liberdades civis e dos zidos constitucionalmente, sem que discorrendo sobre a função do Su- direitos e garantias fundamentais olvidem o que a Constituição da Re- premo Tribunal Federal enquanto dos cidadãos. pública Federativa do Brasil de 1988 guardião e intérprete do texto cons- Agir de maneira diversa, afastan- representa para a nossa sociedade. titucional, alertando-nos para o se- do ou até mesmo reformulando os Ao tratar sobre as funções atri- guinte aspecto: comandos constitucionais sem con- buídas a Constituição de 1988 Luís siderar as retromencionadas funções Roberto Barroso afirma: E o intérprete final da Constitui- atribuídas a Constituição de 1988 e a ção é o Supremo Tribunal Federal. realidade vigente na sociedade, seria Por essa razão, a Constituição Seu papel é velar pelas regras do contrariar o Texto Magno e abando- deve desempenhar dois grandes jogo democrático e pelos direitos nar o seu papel de guardião da Car- papéis. Um deles é o de estabelecer fundamentais, funcionando como ta Política (DIMOULIS; LUNARDI, as regras do jogo democrático, as- um fórum de princípios – não de [s.n] p. 3 e 4).

Parlatório . MARÇO/2018 . 85 4. ANÁLISE DO INDEFERIMENTO DOS PEDIDOS CAUTELARES FORMULADOS NAS ADC’S 43 E 44 – A MUTILAÇÃO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE

Este artigo analisará de que ma- derado culpado aquele que tem em neira o Pretório Excelso, através dos seu desfavor uma sentença, ou até seus Ministros, decidiu pela altera- mesmo acórdão, condenatória (o) ção da interpretação do comando após o trânsito em julgado5. constitucional que prevê o princípio Apesar da clareza do comando da presunção de não culpabilida- constitucional em apreciação, o qual de4, tendo este sido o entendimento dispõe que a prisão somente deverá proferido na decisão que indefere os ocorrer em situações excepcionais pedidos liminares das ações declara- ou posteriormente ao trânsito em tórias de constitucionalidade de nú- julgado da sentença condenatória, meros 43 e 44. no dia 05/10/2016 o Supremo Tribu- As referidas ADCS’s foram ajui- nal Federal, por maioria de votos, 6 zadas pelo Partido Ecológico Na- a 5, indeferiu os pedidos cautelares cional (PEN) e o Conselho Federal formulados nas ADCS 43 e 44, tendo da Ordem dos Advogados do Brasil mantido o entendimento já proferi- (CFOAB), e em ambas, busca-se de- do pela Corte em fevereiro do ano de clarar que a aplicação do artigo 283 2016, permitindo a possibilidade de do Código de Processo Penal (CPP) prisão após uma condenação por co- (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outu- legiado de segunda instância. bro de 1941), cuja redação foi dada Seis dos onze ministros do Supre- pela lei 12.403/2011, está em plena mo Tribunal Federal entenderam que consonância com o texto constitu- qualquer indivíduo poderá começar 4. Nas palavras do eminente professor Walter Nu- nes, em sua obra “Teoria constitucional do processo cional, haja vista que a Constituição a cumprir a pena desde que tenha penal: limitações fundamentais ao exercício do di- da República Federativa do Brasil ao sido condenado por um tribunal de reito de punir no sistema jurídico brasileiro”, p. 500 e ss., a previsão do princípio da presunção de não tratar no Título II Dos Direitos e Ga- Justiça ou por um Tribunal Regional culpabilidade entre os direitos fundamentais é uma das inovações trazidas no bojo da Constituição da rantias Fundamentais, em especial Federal (TRF), ainda que disponha República Federativa do Brasil de 1988 e, para ele, a dos direitos e deveres individuais e de recursos pendentes de apreciação escolha pelos constituintes originários para a utili- zação desta terminologia é digna de encômios, haja coletivos, estabelece em seu artigo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) vista que se houvesse sido acolhido o termo “princí- pio da presunção de inocência”, haveria a inviabili- 5º, LVII que “ninguém será conside- ou no próprio Pretório Excelso. dade de todo o sistema processual, sobretudo no que rado culpado até o trânsito em julga- Em que pese à clareza do texto concerne às medidas de natureza cautelar. Em seu entender, caso os constituintes originários tivessem do de sentença penal condenatória”. constitucional ao prever que nin- preferido o termo “princípio da presunção de ino- cência”, para iniciar-se um processo a prova quanto Esclareça-se que trânsito em jul- guém será considerado culpado até o à culpabilidade do agente deveria ser idêntica àquela gado pode ser encarado como o es- trânsito em julgado da sentença pe- que dá a certeza material. Com base nestas conside- rações o ilustre mestre afirma que o nome correto é gotamento de vias recursais, entre- nal condenatória (art. 5º, inciso LVII o da presunção de não culpabilidade, haja vista que ele vigora, com toda a sua essência, quando o juiz, tanto, não quer dizer que todo o réu da CRFB/88), o que não abre espa- com o seu pronunciamento, pode firmar a culpabi- utilizará de todos os recursos previs- ço para quaisquer tipos de dúvidas, lidade do acusado. tos, mas terá o direito subjetivo de ao indeferir os pedidos cautelares 5. Assad, Thathyana Weinfurter. Do aniversário ao epitáfio: a Constituição e o STF – Disponível em: fazer uso de todos eles, vez que são nas Ações Declaratórias de Cons- Acesso em 07 de novembro de 2016. constitucionais, somente será consi- da confirmação da condenação por

86 . Parlatório . MARÇO/2018 uma decisão de segundo grau, o Su- princípio da não culpabilidade pre- Os ministros da premo Tribunal Federal realiza uma visto de forma diversa, porém com o superinterpretação da norma, im- mesmo sentido, nos termos do arti- Corte Suprema, pondo a sua vontade enquanto intér- go 283 do Código de Processo Penal, assim como os prete do Texto Magno. objeto das ADCS 43 e 44. Com a decisão adotada, não só Diante da situação narrada veri- demais julgadores, políticos sem foro privilegiado, como fica-se que o Pretório Excelso afirma são pessoas que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da o que a Constituição não diz, contra- Silva e o deputado cassado Eduardo riando o texto constitucional e assu- possuem uma Cunha (PMDB-RJ) poderão vir a ser mindo a posição de constituinte ori- história, memórias, impactados com o novo entendimen- ginário. Esta atitude é um exemplo to imposto pelo Supremo Tribunal claro de ativismo judicial, haja vista sentimentos, Federal. Todos aqueles que depen- que os Ministros decidiram, ceden- orientações dem da retificação de sentença pro- do às pressões midiáticas e popula- ferida na instância de primeiro grau res, contrariar o texto constitucional ideológicas, estarão sujeitos, em um só momento, e dar novo significado ao direito fun- morais e políticas, a lidarem com a lentidão do siste- damental e ao princípio constitucio- sofrendo ma judiciário; a falência do sistema nal da presunção da não culpabili- carcerário brasileiro – em iminente dade, trazidos nos termos do art. 5º, influências destes colapso; e a descrença na segurança inciso LVII, CRFB/1988. fatores para que jurídica – por que não nos dizer pró- Desta forma questiona-se: Como prios comandos constitucionais. o STF poderá cumprir o seu deside- possam formular Ao decidir desta maneira a Su- rato sem imiscuir-se nas funções dos as suas opiniões e prema Corte desconsidera a seme- demais poderes? Como poderá agir lhança, ou melhor, a reprodução do sem contrariar o próprio texto cons- posicionamentos. comando constitucional que prevê o titucional?

5. RACIONALIZAÇÃO DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENQUANTO INTÉRPRETE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Como mencionado no decorrer pécie de “filtro” para a interpretação ões e posicionamentos. Ocorre que do presente texto, caberá ao intér- de todos os demais ramos jurídicos, por tratar-se de um órgão técnico, prete do Texto Magno, valendo-se tendo os direitos fundamentais espe- o Supremo Tribunal Federal deverá da abstração e generalidade dos cial importância nesta ação, vez que decidir as questões que lhe são tra- princípios constitucionais, agir com compõem a essência da força nor- zidas não só considerando-se a rea- o intuito de defender as garantias e mativa da própria Constituição. lidade vigente, mas também deverá, direitos fundamentais assegurados Não se pode esquecer que os e principalmente, levar em consi- a todos os indivíduos, mesmo que ministros da Corte Suprema, as- deração que também é responsável para isso seja necessário interpretar sim como os demais julgadores, são pela efetivação dos direitos funda- de maneira contrária o que é esta- pessoas que possuem uma história, mentais que são trazidos no bojo do belecido através da legislação ordi- memórias, sentimentos, orientações texto constitucional, por mais que nária. Do mesmo modo, também ideológicas, morais e políticas, so- este posicionamento de certo modo deverá considerar que atualmente a frendo influências destes fatores para contrarie os desejos de quem possui Constituição funciona como uma es- que possam formular as suas opini- a maioria dos votos.

Parlatório . MARÇO/2018 . 87 Ao julgar, a Corte Suprema de- vincula o julgador a um setor ou Ressaltando os cuidados que verá considerar que é dotada de setores sociais específicos, em de- deverão ser tomados por todos os poder representativo, agindo em trimento de indivíduos cujos inte- magistrados, no caso em análise nome do povo e, por esta razão, resses se encontram juridicamente pelos ministros do Pretório Excel- deve satisfações à sociedade. Os protegidos, os quais teriam no Ju- so, Luís Roberto Barroso aduz: ministros devem sempre ponderar diciário o espaço derradeiro para em quais situações deverão agir a sua proteção. Não se confunda O juiz, por vocação e treinamen- como legisladores positivos, pois essa prática com julgar influen- to, normalmente estará prepara- agir deste modo, por si só, gera ins- ciado por orientações pessoais, do para realizar a justiça do caso tabilidade institucional e, por con- pois, conforme já falamos, qual- concreto, a microjustiça. Ele nem sequência, insegurança jurídica. quer indivíduo possui preferên- sempre dispõe das informações, Para que haja a racionalização cias políticas, religiosas e morais do tempo e mesmo do conheci- das atividades do Supremo Tribu- (bem como sexuais, gastronômi- mento para avaliar o impacto de nal Federal enquanto intérprete cas, enológicas, etc.), mas isso não determinadas decisões, proferidas do Texto Magno, ao decidirem os impede que a decisão esteja em em processos individuais, sobre a ministros deverão evocar as garan- plena conformidade com o orde- realidade de um segmento econô- tias constitucionais que lhes foram namento jurídico vigente. Isso mico ou sobre a prestação de um outorgadas, representadas na vi- parece algo pacífico e sem maio- serviço público (...) Em suma: o taliciedade, inamovibilidade e ir- res complicações. A nocividade Judiciário quase sempre pode, redutibilidade de vencimentos, as maior do ativismo judicial ocorre mas nem sempre deve interferir. quais lhes possibilitam decidirem quando a decisão judicial tem um Ter uma avaliação criteriosa da de acordo com o que estabelece a fim político e depende da negação própria capacidade institucional e Constituição sem que se sintam à tutela de interesses legítimos de optar por não exercer o poder, em pressionados pela mídia e pelos cla- alguma parte da ação, funda- autolimitação espontânea, antes mores de parte da sociedade e sem mentando-se em argumentos que eleva do que diminui. que julguem objetivando fins espe- transcendem a racionalidade ju- cíficos de um determinado grupo. rídica (TEIXEIRA, 2012 p. 48). Ressalte-se que consoante o sis- Neste caso, ceder à pressão po- tema democrático no qual estamos pular seria encetar um ativismo ju- Ao decidirem, os ministros de- inseridos a criação de novas regras dicial nocivo aos termos constitu- verão estar cônscios de que a sua deverá ser exercida por órgãos re- cionais e as próprias garantias dos atividade enquanto intérpretes da presentativos, sujeitos a mecanis- indivíduos, pois em nome da von- Constituição não se limita a darem mos de controle popular. Ao criar tade popular se negariam direitos respostas a um caso concreto mas, regras e não proteger as existentes, que lhes são inerentes, tendo como principalmente considerando-se as a Corte Suprema será cobrada pelas intento apenas a satisfação de in- características das decisões definiti- consequências de seus atos, porém, teresses de determinado grupo so- vas de mérito nas ações do controle por tratar-se de órgão de cúpula do cial. Tal atitude foge por completo concentrado, as quais segundo os Poder Judiciário, não existem ins- da racionalidade jurídica esperada comandos do art. 102, § 2º possuem trumentos institucionais para que do Pretório Excelso. Ao discorrer eficácia erga omnes e efeito vincu- estas cobranças sejam realizadas sobre a prejudicialidade desta for- lante, considerarem os impactos (BARROSO, 2012). ma de ativismo judicial Anderson que seus entendimentos produzirão Diante da ausência de mecanis- Vichinkeski Teixeira aduz: na realidade, bem como se a deci- mos institucionais eficazes a serem são servirá de instrumento para a utilizados na cobrança e contro- Diante disso, a forma mais nociva proteção dos direitos fundamentais le dos atos do Pretório Excelso, é de ativismo judicial é aquela que trazidos no texto constitucional. patente a urgente necessidade que

88 . Parlatório . MARÇO/2018 este órgão possui de racionalizar a são outorgadas, haja vista que sendo sua atuação. Isto ocorrerá quando a dotado de poder representativo, de- Suprema Corte conscientizar-se de verá satisfação a toda a sociedade e sua própria capacidade institucional, não apenas a uma parcela dela; e, por considerando que existem algumas fim, estar cônscio de que as consequ- questões que são melhores decidi- ências das suas decisões ultrapassam das pelos outros poderes; considerar o caso concreto apreciado, refletindo as garantias institucionais que lhe na vida de toda a população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Graças ao modelo institucional la do Poder Judiciário, o Supremo estabelecido nos termos da Consti- Tribunal Federal tem o seu papel tuição da República Federativa do intensificado, convidando-nos a en- Brasil de 1988 o atual sistema Judi- contrar o “ponto de equilíbrio” entre ciário tem de lidar com um núme- a atuação deste poder e o espaço da ro cada vez maior de processos, os legislação, ambos necessários para quais refletem a necessidade que os o desenvolvimento da sociedade. indivíduos tem de verem seus direi- Caberá ao Pretório Excelso ser defe- tos garantidos, sobretudo diante da rente para com as decisões adotadas omissão e inércia dos Poderes Legis- pelos demais poderes, fazendo valer lativo e Executivo. nestas e nas suas próprias delibera- Tem-se assim o mecanismo atra- ções a vontade dos constituintes ori- vés do qual o Poder Judiciário trans- ginários, sobretudo sem olvidar que muta-se em um verdadeiro poder o Brasil constitui-se de um Estado político, haja vista que este, enquan- Democrático de Direito, possuindo to guardião do texto constitucional, dentre os seus fundamentos a digni- O Supremo deverá zelar pela sua aplicação e res- dade da pessoa humana. Tribunal Federal peito pela sociedade e pelos próprios Como ressaltado pelo Ministro tem o seu papel poderes. Celso de Mello, a Constituição da Processo diverso e experimen- República Federativa do Brasil de intensificado, tado especialmente após a promul- 1988 encontra-se em permanente convidando-nos a gação da Constituição da República confecção nos tribunais responsáveis Federativa do Brasil de 1988, o ati- pela sua aplicação, cabendo ao Judi- encontrar o “ponto vismo judicial fora entendido por ciário criar o direito diante da análise de equilíbrio” entre Luís Roberto Barroso como uma do caso concreto, tendo como parâ- atitude, um modo específico e pro- metro a realidade social vigente e a a atuação deste ativo de interpretar a Constituição, incessante busca pela realização dos poder e o espaço da alargando seu sentido e alcance a fim direitos fundamentais estabelecidos de satisfazer as demandas sociais que no texto constitucional. legislação, ambos são negligenciadas diante da omissão Deste modo, verifica-se que ca- necessários para o dos poderes Legislativo e Executivo berá aos intérpretes da Constituição, para com os direitos dos indivíduos. no caso em apreço, aos Ministros do desenvolvimento Por tratar-se de órgão de cúpu- Supremo Tribunal Federal, estabe- da sociedade.

Parlatório . MARÇO/2018 . 89 lecerem a ligação existente entre o prevê o princípio da presunção de Diante de todos os argumentos e Texto Magno e a realidade social, não culpabilidade tendo entendido referências trazidas percebe-se a im- cônscios de que os benefícios de- que qualquer indivíduo poderá co- periosa necessidade de o Supremo correntes da sujeição a interesses meçar a cumprir a pena desde que Tribunal Federal decidir as questões passageiros são por diversas vezes tenha sido condenado por um tri- que lhe são trazidas não só conside- menores que as benesses advindas bunal de Justiça ou por um Tribunal rando a realidade vigente, mas tam- do respeito ao texto constitucional. Regional Federal (TRF), ainda que bém, e principalmente, conscien- Ao agir reformulando ou afas- disponha de recursos pendentes de tizar-se de sua própria capacidade tando comandos constitucionais, apreciação no Superior Tribunal de institucional, considerando que desconsiderando as funções atri- Justiça (STJ) ou no próprio Supremo existem situações que poderão ser buídas a Magna Carta, o Supremo Tribunal Federal. melhor decididas por outros pode- Tribunal Federal através dos seus Configura-se assim uma super res; considerar as garantias institu- ministros, contraria o Texto Magno interpretação da norma, desconsi- cionais que lhe são outorgadas, haja e abandona o papel de guardião da derando a semelhança, ou melhor, vista que sendo dotado de poder Carta Política. a reprodução do comando constitu- representativo, deverá satisfação a Tal atitude fora adotada ao indefe- cional que prevê o princípio da não toda a sociedade e não apenas a uma rir os pedidos cautelares formulados culpabilidade previsto de forma parte dela; e, por fim, estar cônscio nas ADC’S 43 e 44, pois o Pretório diversa, porém com o mesmo sen- de que as consequências das suas Excelso, através dos seus Ministros, tido, nos termos do artigo 283 do decisões ultrapassam o caso concre- decidiu pela alteração da interpreta- Código de Processo Penal, objeto to submetido à sua análise, gerando ção do comando constitucional que das ADCS 43 e 44. efeitos na vida de toda a população.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Rio de Janeiro: Thesis. vol. 5, nº. 1, 2012.

BRASIL, Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: . Acesso em: 16 de outubro de 2016.

____. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 03 de outubro de 2016.

____. Código de Processo Penal. Decreto-lei n. 3.689, 3 de outubro de 1941. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2016.

____. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2016.

____. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 126.292- São Paulo.

90 . Parlatório . MARÇO/2018 Relator Min. Teori Zavascki. Brasília, 17 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do- cID=10964246. Acesso em: 18 out. 2016. ABSTRACT Acctually, it has been so discus- ____. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionali- sed about the reasons for the patent dade nº 43/DF – Distrito Federal. Relator: Ministro Marco Aurélio. 05 de increase in the number of cases that outubro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2016. represents the numerous of social re- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Brasília: CNJ, lations that requires a response from 2016. Anual. 404 f:il. I Poder Judiciário - estatística - Brasil. II Administração the Judiciary and due to the institu- pública - estatística - Brasil. tional model established by the Fe- deral Constitution, a lot of issues can Lembcke, Oliver W. Der Hüter der Verfassung. Tübingen: Mohr, 1931. P. 7. be brought to Justice. In view of this, the Federal Supreme Court assumes DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. Ativismo e autocon- a preponderance role in the protec- tenção judicial no controle de Constitucionalidade [s.n]. tion and interpretation of the Cons- titution, especially if we consider that MELLO, Celso de. Discurso proferido na solenidade de posse do ministro it, as the main part of the Judiciary, Carlos Ayres Britto na Presidência do Supremo Tribunal Federal. Supre- will be invited to give the final opi- mo Tribunal Federal, 2012. Disponível em: . Acesso em 16 de setembro de 2017. ritorious decisions in the actions of concentrated control binding effects HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Traduzido por Gilmar and effectiveness erga omnes. Thus, Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991. starting from a bibliographical rese- arch, this article proposes to respond JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independen- to: How the Supreme Court can act tes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 9. without contradicting the consti- tutional commands? This research KELSEN, Hans (1999 apud TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo ju- also will discuss about the pheno- dicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão política. São Pau- mena of judicialization and judicial lo: Revista GV, 2012). activism, emphasizing the negative modality of this when analyzing the NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso; DE MEDEIROS, Jackson Tavares da votes of the ministers in rejecting Silva. Reflexões sobre o ativismo judicial. In: UERJ. Revista da Faculdade de the precautionary measures of the Direito. Rio de Janeiro: RFD, n. 27, 2015. Constitutional Declaratory Actions 43 and 44. It is intended to stimulate SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Teoria constitucional do processo penal: the debate about the duties and com- limitações fundamentais ao exercício do direito de punir no sistema jurí- petences that the Court possesses as dico brasileiro. Recife (PE), 2005. interpreter of the Federal Constitu- tion, suggesting some techniques to TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Ju- be executed in order to rationalize its dicial Power: the judicialization of politics. In: ______(Orgs.). The global performance. expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. Keywords: Federal Constitution. Ju- dicialization. Judicial Activism. Fe- VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, São Paulo: Revista GV, 2012. deral Supreme Court.

Parlatório . MARÇO/2018 . 91 Artigo Priscila Franco Advogada inscrita na OAB/RN. A Responsabilidade Civil do Estado pela Morosidade na Prestação Jurisdicional

RESUMO A situação atual em que se encontram os órgãos de prestação jurisdicional no país é preocupante, por tamanha precariedade. Ao final, da longa jornada judiciária, muitos conseguem obter decisões terminativas favoráveis, porém não mais efetivas. Precisamos estabelecer de forma mais rígida o alcance da responsabilidade civil do Estado pela morosidade na prestação jurisdicional, assim como, o ideal de justiça no ambiente do Estado Democrático de Direito. Palavras-Chave: Responsabilidade Civil do Estado. Poder Judiciário. Efeti- vidade.

INTRODUÇÃO

A possibilidade de responsabi- mento do Poder Judiciário na presta- lização do Estado pelo descumpri- ção jurisdicional, a sua efetividade e mento, ou deficiente cumprimento os prejuízos causados aos jurisdicio- dessa tarefa que lhe compete fun- nados pela morosidade na Justiça. da-se em princípios basilares do Di- É preciso atribuir ao Estado a res- reito: princípio da razoável duração ponsabilização civil por essa demo- do processo; princípio da legalidade; ra na prestação jurisdicional, assim princípio da dignidade da pessoa como, exigir a efetividade dos direitos humana; princípio da celeridade fundamentais assegurados na Cons- processual; princípio do devido pro- tituição Federal, cuja implementação cesso legal; princípio do contraditó- depende de reformas essenciais e ur- rio e da ampla defesa; princípio da gentes no Poder Judiciário. inafastabilidade do acesso à justiça e Almejar a reparatória contra o o princípio da eficiência. Estado seria uma forma de forçá-lo O tema em questão objetiva escla- a implementar melhorias no Poder recer, de forma sucinta, o funciona- Judiciário.

92 . Parlatório . MARÇO/2018 O reflexo da morosidade da justi- incluiu como direito fundamental do ça gera um sentimento de revolta na cidadão a “razoável duração do pro- sociedade, a lentidão no julgamento cesso”, mister se faz tracejar a possí- dos processos acarreta num verda- vel responsabilização do ente estatal deiro descrédito da população pe- pela demora na entrega da prestação rante a instituição judiciária, por não jurisdicional. ver concretizado em tempo hábil a A responsabilização do Estado resolução dos conflitos. em face desse problema deve ser vis- O simples fato de a Constituição ta como uma metodologia capaz de Federal preceituar, no seu art. 5º, in- educar este ente federativo para que ciso XXXV, que “a lei não excluirá da se crie uma cultura onde a eficiência apreciação do Poder Judiciário lesão e eficácia da prestação jurisdicional ou ameaça de direito”, não tem sido seja uma prioridade, e somente as- uma garantia de uma rápida e efetiva sim, as injustiças serão sanadas dig- prestação jurisdicional tão almejada namente; por aqueles que a todo instante pro- Importante compreender que fa- curam o Judiciário. lar em lapso temporal dentro desse Considerando, ainda, que a contexto, é falar também em digni- Emenda Constitucional nº. 45/2004 dade da pessoa humana.

2. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

A razoável duração do processo e Contudo, o constituinte brasi- a celeridade processual, como prin- leiro, seguindo a tendência mun- cípios constitucionais, foram acres- dial de consagrar, explicitamente, centadas a Constituição da Repúbli- os reclamos sociais, resolveu editar ca Federativa do Brasil – CRFB, em enunciado normativo expresso para seu artigo 5º, pelo inciso LXXVIII, evitar quaisquer dúvidas quanto à por meio da Emenda Constitucio- sua aplicabilidade e legalidade. É a nal – EC, n.45, promulgada em 08 de combinação dos direitos de acesso dezembro de 2004. A prestação ju- à justiça, do contraditório e da am- Cabe ao Estado risdicional dentro de um prazo razo- pla defesa, do devido processo legal o dever de ável e efetivo já vinha prevista, como e da eficiência que se alude à forma garantia fundamental do indivíduo, instrumental mais adequada, com a implementar os no próprio texto constitucional e nos finalidade da prestação jurisdicional, meios necessários artigos 8º e 25, da Convenção Ame- quando entregue pelo Estado. Cabe ricana sobre Direitos Humanos no ao Estado o dever de implementar os à prestação Pacto de São José da Costa Rica, do meios necessários à prestação juris- jurisdicional, como qual o Brasil é signatário. dicional, como forma de dar a maior As clausulas due processo of law efetividade possível à norma consti- forma de dar a já estavam embutidas na Constitui- tucional. maior efetividade ção Federal, no art. 5º, inc. LIV, da Nossos Tribunais estão adotando CRFB e no princípio da eficiência, a tese de que o direito ao julgamento, possível à norma previsto no art. 37. sem dilações indevidas, qualifica-se constitucional.

Parlatório . MARÇO/2018 . 93 como prerrogativa fundamental que decisório, a necessidade de demons- Na década de decorre da garantia constitucional do tração expressa de repercussão geral due process of law. Ademais, Já exis- das questões constitucionais discuti- 1990 foram tem, em nosso sistema de direito po- das no caso para fins de conhecimen- criadas dezenas sitivo, ainda que de forma difusa, di- to do recurso extraordinário, a insta- versos mecanismos legais destinados lação da justiça itinerante, as súmulas de leis, com a acelerar a prestação jurisdicional, vinculantes e as impeditivas de recur- intuito de dar de modo a neutralizar, por parte de sos, entre outros. magistrados e Tribunais retardamen- Todavia, a citada Emenda, trou- maior celeridade tos abusivos ou dilações indevidas xe ínfimos instrumentos processuais na solução dos na resolução dos litígios. É relevan- capazes de conceder maior celerida- te considerar que, a EC nº 45/2004, de na tramitação dos processos, não conflitos levados trouxe mecanismos de celeridade, influindo de forma significativa na ao Judiciário. As transparência e controle de qualida- redução da morosidade da Justiça de da atividade jurisdicional. Como brasileira. inovações mais por exemplo: a vedação de férias co- Sendo assim, não é possível, se- importantes letivas, a distribuição imediata dos quer, dispor sobre um Estado De- processos, a possibilidade de delega- mocrático de Direito, sem assegurar foram: 1) à ção aos servidores do Judiciário, para aos constituintes os direitos existen- possibilidade a prática de atos de administração e ciais da prestação jurisdicional efeti- de antecipar o atos de mero expediente sem caráter va e digna. julgamento da lide; 2) a adoção 3. RESUMO DE INSTRUMENTOS CAPAZES DE CONTRIBUIR PARA UM JUDICIÁRIO MAIS CÉLERE da citação postal; 3) a adoção Atualmente, no Brasil, existem tragam um melhoramento nesse mais de 90 milhões de processos em sentido e façam com que as ideias da audiência tramitação, sendo considerada uma plantadas sobre esse tema no código preliminar para das Justiças mais lentas. anterior evoluam fazendo com que a No final do século XX, as críticas Justiça atue de forma mais rápida. conciliação e à qualidade da prestação jurisdicio- Na década de 1990 foram cria- saneamento nal se perpetuaram nas sociedades. das dezenas de leis, com intuito de Em virtude disso, a celeridade pro- dar maior celeridade na solução dos do processo; 4) cessual foi havida como indispen- conflitos levados ao Judiciário. As a ampliação; sável e, dentre os deveres do juiz inovações mais importantes foram: foi solenemente inserido no antigo 1) à possibilidade de antecipar o 5) o advento Código de Processo Civil Brasileiro julgamento da lide; 2) a adoção da dos Juizados - CPC, velar pela rápida solução do citação postal; 3) a adoção da audi- litígio e de denegar toda diligência ência preliminar para conciliação e Especiais; 6) “inútil” ou “meramente protelatória” saneamento do processo; 4) a am- a adoção da (artigo 130). pliação; 5) o advento dos Juizados Com o novo CPC, temos uma Especiais; 6) a adoção da Arbitra- Arbitragem, expectativa muito grande de que gem, entre outras. entre outras. os mecanismos introduzidos nele Nos últimos anos diversos tribu-

94 . Parlatório . MARÇO/2018 nais tem se empenhado em realizar utilização do meio eletrônico na tra- buir para um judiciário mais célere, cada vez mais mutirões, na tentativa mitação de processos judiciais, co- que é a divulgação responsável de de reduzir o excesso das chamadas municação de atos e transmissão de propaganda negativa das empresas demandas de massa (contencioso peças processuais, indistintamente, que mais desrespeitam os Direitos cível/ consumidor). Contudo, o re- aos processos civil, penal e trabalhis- dos Consumidores, o que no caso o sultado ainda não é suficiente para se ta, bem como aos juizados especiais, Tribunal de Justiça do Rio de Janei- vislumbrar uma prestação jurisdicio- em qualquer grau de jurisdição. Im- ro foi um dos pioneiros, divulgando nal efetiva e digna. põe-se, assim, o dever de frisar que lista com as pessoas jurídicas mais O legislativo brasileiro criou a Lei a própria lei define os principais ter- acionadas. E, por via de consequ- n. 11.419/2006, que regulamenta a mos para a implementação da infor- ência, forçando essas más fornece- informatização do processo judicial matização do processo judicial. doras a se organizarem e buscarem (os então denominados autos virtu- Na era da informatização, surge soluções mais céleres nas resoluções ais), estabelecendo a possibilidade de ainda outro meio capaz de contri- dos conflitos.

4. A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAR CIVILMENTE O ESTADO PELA DEMORA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Ultrapassadas as primeiras teo- à aplicação da teoria da responsa- o serviço judiciário é uma espécie do rias quanto à responsabilidade civil bilidade objetiva do Estado, são os gênero serviço público do Estado e o do Estado, o direito do mundo mo- devidos pressupostos, que tem este juiz, na qualidade de prestador des- derno passou a utilizar a teoria da o dever de indenizar o lesado pelos te serviço, é um agente público, que responsabilidade objetiva do Estado, danos que lhe foram causados. atua em nome do Estado. isto é, independentemente de culpa o Com relação à possibilidade de A prestação jurisdicional é um Estado responderá pelos atos em que responsabilizar civilmente o Estado serviço público essencial e que por seus agentes, nessa qualidade causa- pela morosidade na prestação jurisdi- isso, não existe motivo para escusar o rem, incidindo para tanto em práti- cional, com base no artigo 5º, inciso Estado de responder pelos danos de- cas de atos lícitos ou não, cabendo, LXXVIII, da CRFB há grande discus- correntes da negligência judiciária ou porém, ao lesado comprovar a rela- são doutrinária. Para alguns juristas, do péssimo funcionamento da Justiça ção causal entre o fato e o dano. se a violação decorrer de falha no ser- Brasileira, sem que tal posição ofenda A responsabilidade das pessoas viço judiciário ou em paralisações in- a soberania do Poder Judiciário ou jurídicas de direito público e das pes- justificadas do processo, o Estado está afronte o princípio da autoridade da soas de direito privado prestadoras sujeito à responsabilidade objetiva, coisa julgada. Se, no curso de seu fun- de serviços públicos é objetiva, com insculpida no artigo 37, §6º, da CRFB. cionamento, a administração pública fulcro no artigo 37, §6º, da CRFB, Outros, contudo, adotam a teoria da vier a prejudicar o jurisdicionado, fa- tendo como alicerce a teoria do ris- irresponsabilidade do Estado, quando z-se necessário à reparação do dano co administrativo. Essa responsabili- o assunto é tratar da morosidade na causado ao este, sob pena de macular dade objetiva exige a ocorrência de prestação jurisdicional. todo o processo desempenhando na determinados requisitos: ocorrência A Constituição de 1988 forta- prestação do respectivo serviço públi- de dano; ação ou omissão adminis- leceu de forma aparente a corrente co. Logo, a responsabilidade do Estado trativa; existência de nexo causal doutrinária que defende a respon- segue a lógica da socialização do risco, entre o dano e a ação ou omissão sabilidade ampla do Estado por atos na medida em que toda ação exercida administrativa e ausência de causa judiciais, fundada na teoria do risco em nome do Estado ou de uma cole- excludente da responsabilidade esta- administrativo. Essa ideia sustenta a tividade pública engaja a responsabi- tal. O mais importante, no que tange aplicabilidade do artigo 37, §6º, pois lidade do patrimônio administrativo.

Parlatório . MARÇO/2018 . 95 Há quem entenda que pouco a França (Leis n. 72-620/1972 e 79- prudenciais com relação à matéria, pouco vai perdendo terreno a tese 43/1979), na Alemanha, na Polônia tanto no direito nacional, quanto no da irresponsabilidade, para surgir e Portugal. Este último, inclusive, já direito comparado. Restando a to- em seu lugar o princípio de que o foi condenado pelo Tribunal Euro- dos os interpretes da ciência jurídi- particular tem direito a ser indeni- peu dos Direitos do Homem, com ca, apenas o dever de refletir sobre a zado, toda vez que sofra um preju- sede em Estrasburgo, em pelo me- matéria ora apresentada. De certo, é ízo em consequência do funciona- nos seis casos, por ter demorado dever do Estado à prestação jurisdi- mento do serviço público. além do tempo razoável na entrega cional efetiva, o que se dará se ob- Dessa forma, cabe registrar que da prestação jurisdicional. 13 Em servados os princípios fundamen- em alguns países da Europa admi- 25 de setembro de 2010, noticiou- tais tanto debatidos neste trabalho, te-se a responsabilidade do Estado, -se pelo sítio eletrônico “Consultor como o da razoável duração do pro- quando do mau funcionamento do Jurídico”, que a Comissão de Justiça cesso e da celeridade processual e o Poder Judiciário resultar danos aos da Câmara dos Deputados da Itália, que assegura o acesso à justiça. jurisdicionados. Como exemplo ci- começava a analisar Projeto de Lei Portanto, deve dirigir a res- ta-se o art. 121, da Constituição Es- conhecido como “Projeto de Lei do ponsabilidade pela morosidade na panhola de 197811: “Los daños cau- Processo Breve”, que prevê prazo prestação jurisdicional ao Estado, sados por erro judicial, así como los determinado para que um processo sendo este quem deve se respon- que Sean consecuencia del funciona- comece e termine se não pela con- sabilizar pelos incontáveis danos miento anormal de la Administraci- denação ou absolvição, pelo arqui- causados aos jurisdicionados pela ón de Justicia, darán derecho a uma vamento dos autos, quando extra- demora na prestação deste serviço indemnización a cargo del Estado, polado o tempo determinado na lei, público, devendo indenizar os pre- conforme a la ley”. para sua duração. juízos causados tendo como funda- Mesmo entendimento adota- Salienta-se que inúmeras são as mento o disposto no art. 37, § 6º, da do na Itália (Lei n. 117/1988), na posições doutrinárias e até juris- Carta Maior.

96 . Parlatório . MARÇO/2018 5. MECANISMOS PARA SANAR A PROBLEMÁTICA DA DEMORA

O novo Código de Processo Civil ao processo. afetados pelo crime, como sujeitos veio recheado de possibilidades de Inclusive, o não comparecimen- centrais, participam coletiva e ati- conciliação, mediação e arbitragem, to a esta audiência resulta em mul- vamente na construção de soluções ou seja, um rol de possibilidades ta, com previsão no art. 334, § 8º do dos traumas e perdas causados pelo para sanar a problemática da demo- CPC/15, ou seja, trata-se de crime crime. ra, contudo, não basta um dizer que contra a dignidade da justiça. A justiça restaurativa tende a ser não quer conciliar, é preciso marcar Outro mecanismo que deve ser um excelente mecanismo ao tocante a audiência visando esse objetivo. utilizado para sanar o problema é diminuir o tempo do processo e den- Pode parecer ser inútil realizar a aplicação da justiça restaurativa, tre suas diversas modalidades pode- uma audiência, já sabendo que não baseada num procedimento de con- mos destacar a mediação, reuniões haverá acordo, mas o objetivo é in- senso, em que a vítima e o infrator, coletivas abertas à participação de centivar a conciliação e mudar a e, quando apropriado, outras pes- pessoas da família e da comunidade mentalidade das partes em relação soas ou membros da comunidade e círculos decisórios.

CONCLUSÃO

Sem grandes esforços concluí- Preventivo porque certamente o O Estado mos que o Estado definitivamen- Estado tomará medidas de sancionar te deve ser responsabilizado pelo o problema antes que aquilo se torne definitivamente lapso temporal não razoável para o um caos para ele, além de que, um deve ser desfecho de cada lide que adentra o Estado da Federação tomaria outro judiciário. A responsabilização é um como exemplo (efeitos pedagógicos) responsabilizado mecanismo pedagógico, punitivo e e traçariam medidas preventivas. pelo lapso temporal preventivo. Com a constatação de que a su- Pedagógico porque sendo apli- peração dos obstáculos para propor- não razoável para cada essa responsabilização Estatal cionar ao jurisdicionado brasileiro o desfecho de cada com rigor uma nova cultura judicial integral proteção de seus direitos e surge de modo, que o tempo passa garantias fundamentais é um grande lide que adentra ser visto como um requisito de em- desafio, alguns meios devem ser es- o judiciário. A prego da justiça propriamente dita. tudados na tentativa de sanar todo o Punitivo, porque se é do Esta- caos judicial. responsabilização do o dever de zelar pela sociedade, Sendo assim, o novo Código de é um mecanismo a morosidade judicial configura- Processo Civil tem um papel muito pedagógico, -se um verdadeiro atentado contra importante nessa perspectiva. A pri- a dignidade humana das partes da meira grande mudança no Código de punitivo e lide, como também, a dignidade da Processo Civil é o fim da divisão de preventivo. própria sociedade, e que, portanto, procedimentos. O Código de Proces- a reparação recai como uma sanção, so Civil de 1973, em seu artigo 272, podendo ser encarada até certo pon- dividia o procedimento comum em to como uma maneira de promover ordinário e sumário; mas com o novo uma justiça restaurativa em face da Código de Processo Civil de 2015, problemática. o procedimento sumário deixou de

Parlatório . MARÇO/2018 . 97 existir, aplicando-se, somente o pro- que regulamentou a Proteção e Defe- cedimento comum, nos termos do sa do Consumidor; o que hoje, já se art. 318 do novo CPC. fala em um aumento de pelo menos Nesse passo, o Novo Código de 60% nas demandas judiciais, apenas Processo Civil criou mecanismos vi- sob a ótica da relação de consumo. sando promover a conciliação entre No âmbito do Poder Executivo, os litigantes, institucionalizando a me- o Estado necessita adotar medidas diação nos processos judiciais, na bus- emergenciais ao ponto de permitir, ca da solução de conflitos existentes. por exemplo, a resolução de um con- Uma das principais mudanças su- flito, pela via administrativa, uma gere a ampla instigação a autocom- reestruturação nas Agências Regula- posição, em que todos os Tribunais doras e Fiscalizadoras, atribuindo a deverão criar centros judiciários de essas a efetividade em suas ações, o solução consensual, objetivando a que quase não se vê atualmente. realização de sessões e audiências de Já no âmbito do Poder Legislativo, conciliação e mediação. o Estado deve adotar uma celeridade Essa prática sugere a coexistên- na aprovação da legislação que visa cia com outros meios extrajudiciais, ampliar o modelo atual de proteção através de órgãos institucionais, rea- aos direitos e garantias fundamentais. lizadas por intermédio de profissio- Presume-se, portanto que o Es- nais independentes. tado estabelece o mais breve possível É preciso maior atenção dos juris- instrumentos realmente capazes de tas e especialmente da Administra- contribuir para um avanço na presta- ção Pública, pois é está última quem ção jurisdicional, convertendo a sua detêm o poder/dever de garantir aos imagem atual a um modelo que mais jurisdicionados o mais amplo acesso à se aproxima ao de uma Justiça justa, Justiça, de modo a tornar a prestação efetiva e digna, porém, caso não sendo jurisdicional efetiva, se aproximando suficientes todos esses esforços, chega- ao máximo das expectativas e anseios rá o dia em que o Estado deverá ser da sociedade por uma real justiça. responsabilizado civilmente pela mo- No âmbito do Poder Judiciário, rosidade na prestação jurisdicional. é necessário investimento em equi- Somente com a responsabilização pamentos, qualificação de funcio- do Estado passaremos observar so- nários, criação de mais Varas e Jui- luções pedagógicas, punitivas e pre- zados, mais certames públicos para ventivas para o razoável tempo de a inclusão de novos funcionários, duração do processo. estagiários e magistrados. Por fim, cabe reiterar a lembrança Muito interessante seria uma es- que ofertar um lapso temporal para o pecialização do Judiciário Estadual, desfecho da lide é dar dignidade não criando-se Varas e Juizados especia- somente as partes do processo, mas a lizados por matérias, a fim de tentar toda sociedade, e em caso de omis- suprir o excesso de processos repeti- são ou até mesmo falência Estatal tivos de massa que vêm surgindo ao nessa prestação a responsabilização longo dos últimos 20 (vinte) anos; deste representa um grito de justiça desde a criação da Lei n. 8.078/90, em tempos obscuros.

98 . Parlatório . MARÇO/2018 REFERÊNCIAS

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Parlatório . MARÇO/2018 . 99 Artigo Jaciel Neto Advogado inscrito na OAB/RN. Poder(?) de Tributar: Uma Breve Análise sobre Justiça Tributária e Estado Democrático de Direito

RESUMO Tributação, poder de tributar, justiça tributária e Estado Democrático de Direito são elementos de um todo que devem estar em constante e perma- nente harmonização. Em uma sociedade justa e organizada, é difícil analisar ou estudar um termo dentre os acima mencionados sem fazer a correlação com os demais, de modo que, na falta de um, faltará plenitude na justiça e, consequentemente na sociedade justa e no Estado Democrático. Assim, tem com objetivo o presente trabalho, fazer uma breve análise sobre a definição de justiça, trazendo o termo para ser visto sob a ótica da tributação e do po- der de tributar do Estado, sendo possível, desse modo, ligá-los ao conceito e estrutura de um Estado Democrático de Direito, para que ao final possa ser percebido que os termos descritos no início desse resumo não podem ser vis- tos de maneira isolada. Para tanto, foi utilizado para a confecção do presente trabalho a pesquisa bibliográfica qualitativa dentre alguns autores nacionais e estrangeiros, de modo que se buscou estudar livros doutrinários, artigos científicos e pesquisas na rede mundial de computadores. Portanto, a partir das pesquisas e estudos realizados, percebeu-se que a real justiça tributária, principalmente no que atine a realidade brasileira, ainda está aquém do ideal e do visto em outros países. Ainda, foi possível observar que em um Estado Democrático de Direito, os órgãos e os entes federativos, possuem competên- cias tributárias, contudo, estas não se traduzem em poder de tributar absoluto em si mesmo. PALAVRAS-CHAVE: Estado Democrático de Direito. Poder de tributar. Jus- tiça tributária. Evolução histórica.

INTRODUÇÃO

Justiça Tributária é um termo que frustradas de se alcançar tal objetivo. há 25 anos, desde a promulgação da Não é de se olvidar a evolução his- Constituição da República Federati- tórica que se deu no Brasil e no mun- va do Brasil, vem se tentando alcan- do frente às lutas de classes tão im- çar em sua plenitude. Porém, o que portantes ocorridas. Não fossem tais se tem percebido claramente é que transformações, talvez o país ainda apenas há, desde então, tentativas estivesse acorrentado às amarras de

100 . Parlatório . MARÇO/2018 um governo submisso aos comandos com as aplicações teóricas e evolução O “poder” de europeus ainda remanescentes da histórica, é que se faz uma análise época da colonização. Felizmente a primeiramente da Justiça Tributária, tributar nem situação mudou e a história cuidou utilizando-se, para tanto, as ilações sempre refletiu em registrar tal mudança. da professora doutora Inessa da Mota Os fatos geradores dos tributos, Linhares Vasconcelos (2012), onde se um motivo justo nesse compasso, se justificam na me- mostra a impossibilidade de se ana- e ideal para a dida em que, constitucionalmente fa- lisar a Justiça Tributária apenas com lando, se comprometem com o valor base se si mesma ou com base em ra- criação, cobrança de Justiça, objeto este tão almejado mos específicos do Direito, conside- e arrecadação dos pelo Estado Democrático de Direito, rando que, uma vez sendo feita a jus- devendo os mesmos estrita e obriga- tiça tributária no seio da sociedade, tributos. tória observância aos indicativos da se estará, acima de tudo, corroboran- capacidade econômica, desse modo, do para a concretização da Justiça na fazendo valer os predicados do prin- acepção de sua palavra, nesse ponto, cípio da capacidade contributiva es- servindo de auxílio, são os estudos de culpido na Carta Maior de 1988. Rawls (1997) e Irapuã Beltrão (2014). O Ius Imperi verificado nos tem- Ainda, analisando o tema da jus- pos antigo da sociedade e do Estado, tiça tributária frente ao Estado De- chegou a justificar durante muitos mocrático de Direito, é de bom al- anos as ilegalidades, desproporciona- vitre mencionar o fato de como este lidades e irracionalidades que eram evoluiu até que se firmasse na maior cometidas perante a população nas parte do mundo. A questão da jus- épocas mais remotas. O “poder” de teza na tributação influencia verda- tributar nem sempre refletiu um mo- deiramente uma sociedade no que tivo justo e ideal para a criação, co- tange a consecução e concretização brança e arrecadação dos tributos. dos postulados democráticos, sendo Nessa toada, fazendo um breve impensável nos dias atuais, analisar apanhado conceitual, juntamente um sem o outro.

Parlatório . MARÇO/2018 . 101 2. JUSTIÇA TRIBUTÁRIA: CONCEITO, APLICAÇÕES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA FRENTE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS

Como em todo conceito aberto não se esgotam em simples estudos da ciência jurídica, analisar o termo ou conhecimentos sobre o assun- justiça tributária é tarefa que se faz to, ao contrário, está em constante de maneira não tão simples e direta. mutação fazendo companhia a toda Usualmente, quando se ouve ou se mudança de conhecimento que exis- fala do vocábulo justiça em seu mais te sobre o assunto. Asseverando: estrito senso, logo vem na mentalida- de de cada um os sentidos como os De fato, a concepção de justiça de isonomia, equidade, direitos igua- é variável no tempo e no espaço, litários, dignidade da pessoa huma- como sucede com o bem-estar so- na, dentre outras expressões. Quanto cial. Apesar de relativa, não há ao tema Justiça Tributária este não como se negar que essa concepção podia se dar de modo diferente, vez encerra um mínimo de significa- que também guarda íntima correla- ção. A grande e difícil questão é, ção com os termos supracitados, ten- pois, firmar um conceito mínimo do, ainda, como um plus de destaque, do que venha a ser justiça (VAS- os ditames do princípio da capacida- CONCELOS, 2012, p. 73). de contributiva e o princípio da veda- ção ao confisco, sempre tomando por Ainda na tentativa de trazer um base a Carta Maior do país, refletindo pouco da conceituação de justiça, inevitavelmente no princípio da dig- de destaque são as palavras Rawls nidade da pessoa humana. Para em- (1997, p. 3) “A justiça é a primei- A única coisa basar tais palavras tem-se: ra virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de que nos permite A noção do que venha a ser justiça pensamento”. Desse modo, tratar a aceitar uma tributária passa inelutavelmente justiça como preceito maior de uma pela discussão mais geral do que sociedade enquanto instituição or- teoria errônea seja a justiça. Do ponto de vis- ganizada é dizer que aquela encon- é a falta de uma ta conceitual, isso implica difícil tra-se em posição sempre de mais e quiçá intransponível obstáculo destaque, posto que é a base de uma teoria melhor; de epistemológico que impede que organização civilizada. forma análoga, sejam estabelecidos os contornos desse objeto cognoscente, cuja es- Portanto numa sociedade justa as uma injustiça sência é irrevelável ao conheci- liberdades de cidadania igual são é tolerável mento comum (VASCONCELOS, consideradas invioláveis; os direi- somente quando 2012, p. 73). tos assegurados pela justiça não estão sujeitos a negociação política é necessária Portanto, como descrito acima, ou ao cálculo de interesses sociais. para evitar uma a função de delinear e conceituar A única coisa que nos permite os termos justiça, bem como justiça aceitar uma teoria errônea é a fal- injustiça ainda tributária, são obstáculos epistemo- ta de uma teoria melhor; de forma maior. lógicos de difícil transposição que análoga, uma injustiça é tolerável

102 . Parlatório . MARÇO/2018 somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das ati- vidades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis (RAWLS, 1997, p. 4).

Induvidoso falar que, a recente constitucionalização dos direitos no Brasil tornou a questão da justiça ainda mais evidente, trazendo a baila todas as questões sobre o poder de tributar do Estado e a forma como tal atividade é cumprida, para que não seja ferida a isonomia e a capa- cidade contributiva de todos aque- les que sofrem com a incidência das normas tributárias. ça da ideia de justiça na formula- butárias, que se enseja o alcance da Assim sendo, a observância ao ção de qualquer política tributária justiça social. (VASCONCELOS, estrito cumprimento do princípio da (VASCONCELOS, 2012, p. 79). 2012, p. 80). legalidade, a neutralidade estatal, no que tange a não invasão à vida priva- Dessa maneira, para que se pos- Indispensável tomar como base da e financeira dos contribuintes pelo sa alcançar justiça em seus mais toda a evolução e historicidade que estado e a observação do princípio alargados termos, imperioso que se se deu no país em tempos mais an- da capacidade contributiva, são de passe pela justiça também na tribu- tigos. Marcado pela desigualdade de grande importância para que assim tação, evitando, assim, o aumento maneira forte e pela má distribuição não sejam feridos todos os preceitos das diferenças sociais, os entraves das rendas, necessário se faz cor- constitucionais colocados atualmente no desenvolvimento econômico do relacionar tais fatos com a ciência em patamar de maior relevância para país e tudo mais aquilo que de certa das finanças e também com o pró- a aplicação das leis equitativamente, maneira impede a concretização dos prio direito tributário, imbricando fazendo elo com o seguinte: ideais almejados pela Carta Magna com o conceito maior de justiça dos de 1988. Para ratificar ainda mais tal tempos modernos e assim tratando Não se pode olvidar que a noção entendimento, tem-se as seguintes o poder de tributar e a maneira do da justiça como equidade está no palavras: Estado se gerir financeiramente de cerne da concepção contemporâ- forma mais justa. Dessa forma, pas- nea de justiça tributária. Assim, […] a justiça na tributação é o ca- sou-se a considerar mais o lado da de que modo deve o Estado impor minho para que se chegue à justiça capacidade contributiva, fazendo a seus súditos o pagamento de tri- social, com a superação das abissais com que aqueles que mais possuem butos? Que tributos e hipóteses de diferenças que entravam o desen- possam contribuir mais, de modo incidência? Qual alíquota é justa volvimento nacional. Dessa forma, que os que menos possuem, contri- para garantir um bom desempe- é com a concretização da justiça buam menos. nho financeiro da máquina tribu- tributária, princípio estruturante Nessa evolução da ciência fi- tária, sem impor ao contribuinte do sistema jurídico-tributário e de nanceira e do direito tributário, foi ônus insuportável? Questões desta hermenêutica fundamental para a possível perceber uma maior distri- dimensão sinalizam para a presen- aplicação das normas jurídico-tri- buição das riquezas e das rendas, de

Parlatório . MARÇO/2018 . 103 maneira tal que, os ramos do direi- Acompanhando tal evolução, se sendo estas ultimas aplicadas da to acima mencionados começaram faz de bom alvitre esclarecer que a melhor maneira possível para que se a ser vistos não apenas meramente Carta de 1988 foi no mesmo sen- possa verificar um bom remaneja- eficientes, para serem, a partir de tido da evolução dos estudos das mento das riquezas. então, vistos sob uma ótica mais finanças e dos tributos justos, uma Destacando: justa, sem, no entanto, refugar a vez que se começou a perceber uma eficiência. Então, observa-se que as onda internacional com relação ao Em razão dos valores assegura- leis e os sistemas não bastam alme- amadurecimento do sentido de jus- dos ou reconhecidos na Cons- jarem a eficiência a qualquer custo, tiça. É como se pode observar nos tituição, a atividade financeira tem que ser, no mesmo compasso, artigos 3º e 43 da Constituição da pública não pode ser, de forma justos, para que assim se possa al- República Federativa do Brasil em exclusiva, ponderada na visão cançar, primeira e basicamente a que é posto todo um modelo res- econômica, especialmente em justiça social. Nas palavras de Ira- ponsável pela garantia do estado so- razão do princípio da diferença puã Beltrão: cial e do bem estar social. apresentado por Rawls, permi- No entanto, este bem estar social, tindo o atingimento da melhor Não apenas os pensadores da não é alcançado de fácil maneira adequação e resultados sociais atividade financeira destacam com uma política fiscal e tributá- - como, no exemplo citado pelo essa necessidade. Na nova vi- ria apenas eficiente e econômico, próprio autor estadunidense, rada testemunhada no últi- há que se tomar atenção quanto à quanto as despesas e financia- mo quartel do século passado, justificação das normas de redistri- mento da educação. (BELTRÃO, muito se recuperou dos instru- buição, pois na doutrina econômi- 2014, p. 107) mentos das finanças para im- ca, o postulado da justiça tributária plementação da justiça social, está ligado a justiça redistributiva, Assim, considerando os postula- promovendo uma melhoria nas porém, este termo ainda há que dos da política fiscal, poderá se al- condições de gerais com redistri- ser mais profundamente analisado, cançar a destacada justiça tributária buição das riquezas da coletivi- uma vez que se pode alcançá-lo tan- não só com a simples criação de tri- dade para além do sentido pu- to no sentido da redistribuição das butos em si, fazendo do estado um ramente de eficiência econômica capacidades contributivas, como na exímio caçador de dinheiro para (BELTRÃO, 2014, p. 106). realocação da aplicação das rendas, galgar eficiência econômica, mas,

As leis e os sistemas não bastam almejarem a eficiência a qualquer custo, tem que ser justos, para que se possa alcançar, primeira e basicamente a justiça social.

104 . Parlatório . MARÇO/2018 também, buscando formas extrafis- disponibilidade destes para a dimi- Como se vem observando na so- cais para se chegar a uma política nuição das diferenças, tal qual conste ciedade atual, desde as manifesta- fiscal e tributária justas. Daí porque dos princípios fundamentais da Car- ções de junho/julho de 2013, a pres- o legislador, e, consequentemente, o ta Constitucional de 1988 e larga- são vinda daquele meio nada mais Estado, devem observância aos prin- mente reconhecido na interpretação é que o entendimento que veio se cípios constitucionais para se colo- da efetividade material do ordena- formando em seu interior no sentido car em prática os escopos de justiça mento fundamental, devendo estrita de cobrar efetivas e enérgicas ações e bem estar social impregnados na observância do legislador. para que sejam observados os inte- Constituição uma vez que a justiça Continuando de maneira clara, resses da maioria e não de apenas tributária, bem como a doutrina pá- destaca como se deve agir todo o or- determinados setores pelo legislador tria liga-se com o sentido de redistri- denamento fiscal frente aos coman- brasileiro. buição das riquezas. dos constitucionais postos no art. 3º Portanto, da análise do termo jus- Vejamos o seguinte ensinamento: da Constituição da República: tiça tributária, inevitavelmente se ob- serva, também, a análise dos princí- a justiça fiscal, especial dimensão Mesmo o sistema econômico na- pios fundamentais e constitucionais da justiça política, é a nosso ver, a cional foge àquela visão estática de trazidos no bojo da vigente Consti- que oferece a melhor instrumental acolher os valores constitucionais, tuição Federal, mais especificamente para a redistribuição de rendas, projetando-se para o futuro com o o princípio da capacidade contribu- com a adjudicação de parcelas da acolhimento das demandas sociais tiva, princípio da isonomia, da neu- riqueza nacional a indivíduos con- (BELTRÃO, 2014, p. 109). tralização do Estado e dentre outros cretos. Abrange simultaneamente trazidos anteriormente. Assim: a justiça orçamentária, a tributá- De tal modo, a política financeira ria e a financeira (TORRES, 2005, e tributária do Estado vai mais além A justiça, tal como uma espécie de p. 113-114). do que simplesmente produção de tentáculos, há de alcançar aqueles leis e mandamentos. Se não for ob- menos desprovidos de recursos, Ainda: servado os proclames constitucionais sejam materiais ou intelectuais, desde a criação até o alcance das exa- reconhecendo aquele estado de a máxima na justiça tributária ções tributárias dificilmente se pode- diferença amplamente suscitada está vinculado ao postulado de rá afirmar que foi atingido o objetivo pela moderna teoria do direito. A Direito na igualdade fiscal e inclui do bem estar social através da redis- gestão tributária e a política fiscal imposição uniforme segundo a ca- tribuição das rendas e das riquezas e decorrente deve se prestar a equa- pacidade contributiva econômica. assim alcançado a justiça tributária. cionar, isonomicamente, os agente Justiça fiscal em sentido estrito é Para tanto tem-se o seguinte: sociais de acordo com a sua capa- a execução sistematicamente con- cidade contributiva para que se sequente da igualdade tributária Para que a justiça fiscal, por outro dê, de forma plena, a justiça (BEL- e dos princípios, que concretizam lado, seja realizada de modo efeti- TRÃO, 2014, p. 110). o princípio da igualdade (TIPKE, vo, o conteúdo da economicidade 2008, p. 394). deve lhe emprestar os predicados Fica claro o modo como a socie- para que todas as tomadas de deci- dade responde e anseia pela justiça Efetivamente falando, a questão sões tributárias – inclusive na fase no seu termo mais amplo, bem como de uma política tributária/fiscal jus- legislativa – sejam dadas a partir também, a justiça tributária, indo para ta é principalmente fazer com que a da avaliação dos meios empregados as ruas e exigindo dos representantes tributação gere os melhores recursos diante das finalidades a serem atin- legais que atuem de modo para que do ponto de vista de uma realização gidas (BELTRÃO, 2014, p. 110). efetive e coloquem em prática este tão racional e econômica, permitindo a importante tema que é a justiça.

Parlatório . MARÇO/2018 . 105 3. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E PODER(?) DE TRIBUTAR

Ser capaz para contribuir com o sem que haja ofensa ao princípio da Estado através de seus tributos ins- isonomia. tituídos não significa trabalhar, au- Desta feita, justiça fiscal, por ferir renda e acumular riqueza, para, meio da observância da capacida- por conseguinte, aquele ficar com a de contributiva, seria a capacidade maior parte do inteiro. Tanto é que, econômica somada a todos os valo- se for feita uma rápida visitação his- res de proteção do interesse público tórica das mais importantes revolu- garantidos pela Constituição, seria a ções e transformações acontecidas qualificação da capacidade econômi- nos tempos antigos no centro eu- ca tendo como critério basilar todos ropeu como na França e Inglaterra, os direitos e garantias fundamentais por exemplo, se perceberá que, a in- assegurados pela Carta Mãe de 1988 A medida da justiça quanto ao tanto que era dado para que, desse modo, se faça possí- tributação é ao Estado e quanto ao tanto que se vel viver em uma sociedade mais jus- a capacidade tinha a título de retorno - pratica- ta e igualitária. mente nada naquela época havia de Continuando na análise da justiça contributiva, retorno para a sociedade - sempre tributária inserida no ordenamento em uma ocasião esteve como plano de fundo, ou seja, jurídico brasileiro e, por conseguin- a injustiça tributária, consequen- te, fazendo uma correlação com o em que todos temente a social, sempre serviu de Estado Democrático de Direito, vê- têm o dever força motriz para as principais trans- -se que, o sistema tributário organi- formações nas sociedades. Mudança zado e posto como hoje está, foi pos- de contribuir, significativa começou a se operar sível graças a evolução dos estudos contudo, cada um com a Carta Magna de 1.215 do Rei no século XIX e, também, a evolução João Sem Terra. do direito financeiro, fatos estes li- dentro de suas Assim sendo, a medida da tribu- gados ao surgimento do Estado De- capacidades para tação é a capacidade contributiva, mocrático de Direito. Nesse passo, é em uma ocasião em que todos têm onde surge todo o sistema de princí- tal, sem fazer do o dever de contribuir, contudo, cada pios que regem o direito tributário, poder de tributar um dentro de suas capacidades para passando este de estudo meramente tal, sem fazer do poder de tributar do econômico para estudo jurídico e do Estado, uma Estado, uma razão para a generalida- consequentemente de justiça. Bem razão para a de, vindo a gerar injustiça tributária descrito nos estudos a seguir: generalidade, no seio de uma sociedade que deve ser igualmente justa. [...] a construção de um pensa- vindo a gerar A manifestação de riqueza nem mento sistemático do direito tri- injustiça sempre se correlaciona com a mani- butário somente foi possível graças festação de capacidade contributiva. ao surgimento do Estado de Di- tributária no seio Algumas vezes, a manifestação de ri- reito e às pesquisas jurídicos-ad- de uma sociedade queza de certos contribuintes signi- ministrativas havidas ao longo de ficam apenas valores suficientes para todo o século XIX, ao que adicio- que deve ser a sobrevivência do ser, desse modo, namos a contribuição da Doutrina igualmente justa. podendo vir a não serem tributados da Ciência das Finanças, naquilo

106 . Parlatório . MARÇO/2018 que pode ser assimilado ao Sis- tema Tributário. Desse encontro exsurgem as bases do sistema de princípios, conceitos e de relações peculiares do direito tributário que conhecemos na atualidade. E fo- ram necessários mais de cem anos de evolução e aperfeiçoamento para libertar os tributos da econo- mia e a estes conferir um exausti- vo rigor de juridicidade (TÔRRES, 2011, p. 300).

Originariamente entendia-se o sistema tributário apenas sob os as- pectos econômicos e empíricos, fato este que passou a ser mudado com o surgimento do Estado Democrático concebido como um permanente es- as garantias e direitos fundamentais de Direito, onde se começou a ana- forço de concretização do conteúdo trazidos na Carta Maior de 1988, e lisar o sistema tributário sob o enfo- essencial do princípio da segurança o ordenamento dos sistemas tribu- que jurídico. jurídica, servindo este como mais tários vieram para corroborar com Um primeiro entendimento me- uma maneira de se alcançar a justiça o sentido de Constituição Material. tódico sobre o sistema tributário tributária. A conformação das normas à sim- nasceu com os estudos de Adolf Ao seguir na evolução dos tem- ples legalidade começou a não bastar Wagner onde o mesmo dizia que: pos e dos estudos, já pelo meio do mais para fundamentar a tributação século XX, passou-se a perceber de e o asseguramento da segurança sistema tributário significa a in- forma mais contundente que o prin- jurídica. Considerando tal fato, as dicação dos princípios econômi- cípio da segurança jurídica e o siste- constituições e suas correspondentes cos e jurídicos a serem seguidos, ma tributário organizado se encon- normas garantistas passaram a ga- os critérios de justiça tributária travam diretamente ligados com o nhar mais destaque como forma de e o princípio da diferenciação do Estado Democrático de Direito, indo justificar todo o arcabouço tributá- sistema tributário, que serviria mais além, passando a entendê-los rio, ficando dessa maneira os legisla- de distinção dos tributos segundo não somente ligados ao Estado De- dores vinculados e devendo obriga- os fatos representativos de capa- mocrático em si, mas, também, ao tória observância aos mandamentos cidade contributiva. (1990, apud princípio da garantia da legalidade constitucionais. TÔRRES, 2011, p. 302) tributária, de forma que as leis tri- Assim sendo, é por meio da se- butárias muito mais que trazerem gurança jurídica garantidora dos A partir de então, tendo em vis- em sua essência apenas os fatos e as princípios constitucionais que se ta todos os princípios existentes no obrigações jurídicas, devem assegu- tem comprometimento com a con- ordenamento jurídico o princípio da rar uma tributação justa e condigna cretização da realização de um real segurança jurídica foi considerado com a realidade do Estado, especial- Estado Democrático de Direito, ten- como um implícito do Estado de Di- mente devendo atenção maior aos do como fator basilar o sistema tri- reito, consagrado como expressão de ditames da isonomia e capacidade butário ligado intimamente com os certeza jurídica, podendo se afirmar contributiva. valores, garantias e direitos funda- que o Sistema Tributário deve ser Em vista disso, percebe-se que mentais defendidos na Constituição

Parlatório . MARÇO/2018 . 107 Federal, garantindo, assim, justiça pelo Estado. Já os segundos, possuin- funcional aos valores constitucionais do um papel mais demonstrativo de tão importantes. como deve ser exercido o poder de Um Estado Democrático de Di- tributar, se caracterizando como um reito e um sistema tributário jus- conjunto de regras a serem seguidas to, demonstram a capacidade que pelo Estado quando da criação e ad- os estudos sobre o assunto tiveram ministração das obrigações tributá- de desligar a ideia de que o tributo rias. Assim, hoje, a tributação se liga se mostrava como desenho do Ius com a relação constitucional tributá- Imperi do Estado, em que se funda- ria, devendo o poder de tributar ser A tributação mentava a tributação das pessoas compreendido como o somatório unicamente no poder de tributar de todas as competências, na medi- projeta-se como daquele sem, contudo, observar o da em que estas são a expressão do forma de relação poder-dever de concretizar os co- poder no qual a soberania se torna mandos garantistas trazidos em todo reflexo, segundo entendimento: constitucional o bojo da Constituição, de proteção democrática. dos direitos e liberdades individuais Na atualidade, como dito, a tribu- dos contribuintes quanto a suas re- tação projeta-se como forma de re- [...] será a partir ais possibilidades frente as normas e lação constitucional democrática. da Constituição obrigações tributárias. [...] será a partir da Constituição No novo modelo de constitucio- posta, exclusivamente, como plexo posta, nalismo dos tempos atuais, a reali- de poderes que investirão o Esta- exclusivamente, zação e permanente otimização dos do como sujeito da ordem inte- princípios constitucionais se mostra restatal, que se poderá falar, com como plexo de como uma das características princi- legitimidade, de uma verdadeira poderes que pais, senão a principal. soberania estatal como somatório investirão o Portanto, o exame e observância de todas as competências, interna- da segurança jurídica impõe o dever mente (TÔRRES, p. 307 e 309). Estado como de definir seu conteúdo, alcance e sujeito da ordem efeitos do Sistema Tributário Cons- O estudo é, de certa forma, espi- titucional, para que se seja possível nhoso, pois trata-se de falar de um interestatal, uma definição básica de suas compe- assunto sensível no que tange a um que se poderá tências e objetivos. Estado Democrático de Direito e suas A partir da nascença e confirma- garantias fundamentais de justiça, falar, com ção cada vez mais emergente do Esta- além de que, os tributos e suas obri- legitimidade, de do Constitucional de Direito, come- gações, mexem com uma parte me- ça a entrar em cena, fazendo como lindrosa dos contribuintes, o bolso. uma verdadeira contra peso a tal soberania estatal, os Quando se detêm para fazer uma soberania estatal limites e princípios do poder de tri- análise mais crítica da situação atu- butar. Os primeiros, de modo obje- al do Brasil, logo se percebe que o como somatório tivo, mostrando o alcance do poder problema não está na carga tributá- de todas as estatal na sua atividade legislativa e ria por si só. Em sendo assim, países executiva quanto aos tributos, sen- mais desenvolvidos da Europa teriam competências, do assim, tratados como real limite enfrentado maiores e mais graves di- internamente. de obrigatória atenção e observância ficuldades que o Brasil, uma vez que

108 . Parlatório . MARÇO/2018 lá, como por exemplo, na Dinamar- tituía e cobrava impostos no seu ius ca, Suécia, França e Itália, encontra- imperi? Muito pouco se vê no que ati- -se cargas tributária maiores do que ne ao retorno dos valores pagos à títu- a brasileira. Enquanto se tem uma lo de tributos no Brasil. Quem ganha carga tributária brasileira nos atuais ou possui mais paga menos, quem 35%, a Dinamarca possui 45,2% e menos possui capacidade contribu- não por isso se percebe a tamanha di- tiva pena com os serviços públicos ficuldade em se pagar impostos lá do precários do país e assim vai criando que aqui, pelo motivo de que existe um sentimento negativo com relação uma real e concreta redistribuição de ao dever de pagar impostos, ficando tais valores pagos a título de impos- este a mercê da sonegação pois não tos para toda a população, de modo há um real e concreto retorno em que quem mais ostenta condições de bem-estar aos cidadãos. Portanto, o pagar impostos, contribui com aque- que mais se percebe no Brasil hoje les que menos têm, fazendo com que é, falta de planejamento tributário a toda a sociedade seja beneficiada, do médio e longo prazo, má gestão do mais pobre ao mais rico, com saúde, dinheiro público, mínimo retorno do educação, segurança e mais outros valor dos impostos para os serviços benefícios garantidos a todos e de básicos, não taxação dos indivíduos ótima qualidade. de acordo com suas capacidades con- Tais fatos causa uma incógnita tributivas e uma política tributária ainda sem resolução, no sentido de que almeja tão somente a entrada de que, será que o Brasil se encontra re- dinheiro nos cofres públicos, fazen- almente libertado daquele estado So- do dessa situação um círculo vicioso berano dos tempos antigos que ins- sem perspectivas de mudanças.

Parlatório . MARÇO/2018 . 109 CONCLUSÃO

Os escritos tratados ao longo do de um lado, e num mínimo de so- onde o retorno para o povo de tudo desenvolvimento deste trabalho de- lidariedade, do outro. Os cidadãos aquilo que se arrecada é vergonhoso. monstram o tamanho da importân- de uma nação ao mesmo tempo em As garantias e direitos funda- cia que carrega o fato de um Estado que são livres são responsáveis pela mentais do homem não há como apresentar bons números de arre- comunidade em que vivem. serem efetiva e eficazmente confir- cadação e fiscalização fiscal, assim Assim sendo, o limite da tribu- mados onde não haja fluxo orça- como se apresentar como justo tan- tação é igualmente alcançado com mentário para tanto. No entanto, to em suas atividades mais habitu- o limite do poder de tributar que este fluxo, uma vez devendo ser soli- ais, como no processo de tributação. carrega o Estado, este se mostran- dariamente compartilhado e finan- A população em geral não vê o do como um garantidor de direitos, ciado por toda a população de uma retorno daquilo que é pago à título não podendo invadir a esfera do sociedade, não pode estar sujeito a de imposto e nesse contexto passa mínimo existencial dos contribuin- desproporcionalidades por parte do a alimentar um sentimento de que tes, nem muito menos adentrar tan- Estado somente em nome do poder sonegar, evadir ou simplesmente to ao ponto de se caracterizar um de tributar que o mesmo carrega. não pagar impostos é tido como “di- verdadeiro confisco. Portanto, incontestável dizer, que reito” adquirido. Ora, jamais uma Tributação é termo intimamen- a grande parcela da população bra- nação dita democrática de direito te ligado à efetivação. Efetivação de sileira é necessitada das prestações albergaria normas que fossem no todo o Estado Social Democrático estatais, cumprindo este o seu dever sentido daqueles pensamentos. Tri- de Direito. Promover ações para igualitário e distributivo, utilizando butos existem e, acima deles, existe conscientizar a população da edu- para tanto, a justiça na tributação. Os o dever fundamental de pagá-los. cação, solidariedade fiscal e, acima direitos sociais é fator de nivelamen- O pagamento de impostos é o de tudo, fiscalização da gestão do di- to da sociedade, deixando o princí- preço que se paga para se dispor de nheiro público é de suma importân- pio da isonomia menos abstrato e uma sociedade assente na liberdade, cia, ainda mais se tratando de Brasil amenizando as injustiças sociais.

REFERÊNCIAS

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110 . Parlatório . MARÇO/2018 TIPKE, Klaus. Direito Tributário. 18ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fa- POWER(?) TO TAX: A BRIEF bris, 2008. V. I. ANALYSIS ABOUT TAX JUSTICE AND DEMOCRATIC RULE OF TIPKE, Klaus: YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e o princípio da capaci- LAW dade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002. ABSTRACT TÔRRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança ju- Taxation, power to tax, tax justice rídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. and democratic rule of law are ele- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ments of a whole that must be constant and permanent harmonization. In a TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro fair and organized society, it is difficult e Tributário: valores e princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar, to analyze or study a term from the 2005. above without making the correlation with the other, so that, in the absence _____. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 12ª ed. Rio de Janeiro: of one, it will lack the fullness of justi- Renovar, 2005. ce and consequently in the fair society and the State Democratic. So, the pre- VASCONCELOS, Inessa da Mota Linhares. Efetivação da justiça tributária: sent study aims, to make a brief analy- a constitucionalidade da dedução de despesas com medicamentos adqui- sis of the definition of justice, bringing ridos pelo contribuinte da base de cálculo do IRPF. 2012. Tese (doutorado). the term to be seen from the perspec- Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2012. tive of taxation and taxing power of the state, and you can thus connect VIEGAS, Viviane Nery. Justiça fiscal e igualdade tributária: a busca de um them to the concept and structure of enfoque filosófico para a tensão entre poder de tributar e direito de tributar a democratic state, so that the end can frente à modernidade tardia no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & De- be seen that the terms described at the mocracia, Curitiba, vol. 7, n. 7, p. 66-89, jan./jun. 2010. beginning of this summary can not be seen in isolation. Thus, it was used for WAGNER, Adolf. La scienza, 1990. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Direito the preparation of this work the quali- constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurí- tative literature among some national dica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, and foreign authors, so we tried to stu- 2011, p. 302. dy the doctrinal books, scientific arti- cles and research on the world wide web. Therefore, from the research and studies, it was realized that the real tax justice, especially regarding brazilian reality, still falls short of the ideal and seen in other countries. Still, it was observed that in a democratic state of law, the agencies and the federal enti- ties, have tax powers, however, these do not translate into absolute power to tax itself. KEYWORDS: Democratic State of Law. Power to tax. Tax Justice. Histo- ric evolution.

Parlatório . MARÇO/2018 . 111