MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics ISSN: 2318-0811 ISSN: 2594-9187 Instituto Ludwig von Mises - Brasil

Hülsmann, Jörg Guido Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas* MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics, vol. 4, núm. 1, 2016, Janeiro-Junho, pp. 161-181 Instituto Ludwig von Mises - Brasil

DOI: 10.30800/mises.2016.v4.833

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Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas*

Jörg Guido Hülsmann**

Resumo: O autor apresenta a história do envolvimento de Ludwig von Mises em or- ganizações em prol da liberdade, desde a defesa do livre comércio nos anos 1920 até sua participação na fundação da Sociedade Mont Pèlerin em 1947. Dessa maneira, o autor ilustra o papel central desempenhado por Mises no desenvolvimento do pensa- mento liberal/libertário no século XX.

Palavras-Chave: Ludwig von Mises. Liberalismo. Libertarianismo. Organizações li- bertárias.

Ludwig von Mises and Libertarian Organisations: Strategic Lessons

Abstract: The author presents the history of Ludwig von Mises’s participation in or- ganizations devoted to liberty, since his defense of in the 1920’s until his participation in the foundation of Mont Pèlerin Society in 1947. Hence, the author il- lustrates the central role played by Mises in the development of the liberal/libertarian thought in the 20th century.

Keywords: Ludwig von Mises. . Libertarianism. Libertarian organizations.

Classificação JEL: B31, B53.

* Publicado originalmente em: New Perspectives on Political Economy. Vol. 8, Issue 1 (2012): 19-40. Traduzido do inglês para o português por Claudio A. Téllez-Zepeda.

** Jörg Guido Hülsmann é senior fellow no Mises Institute e autor de Mises: The Last Knight of Liberalism e de The Ethics of Money Production. Leciona na França, na faculdade de Direito, Economia e Gestão da Université d’Angers. E-mail: [email protected]

DOI: https://doi.org/10.30800/mises.2016.v4.833 162 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

I - Introdução cia divina que ordena a ética e a justiça para o homem. No século XVI, então, a convicção de que havia critérios teológicos inabaláveis Ludwig von Mises (1881-1973) se envol- para a arbitragem de conflitos políticos des- veu, em três diferentes momentos da vida, em moronou sob o impacto das insurreições pro- organizações libertárias: na década de 1920, testantes. Daí em diante, o debate se tornou foi membro de várias organizações defenso- cada vez mais secularizado e situado em ter- ras do livre comércio; em 1938, foi um parti- mos da prudência natural. Um produto inte- cipante proeminente do colóquio organizado lectual dessa abordagem foi a nova ciência da por Walter Lippmann (1889-1974) em Paris; Economia Política, que surgiu no século XVIII e, depois da Segunda Guerra Mundial, cola- e ofereceu o suporte científico para o liberalis- borou com a Foundation for Economic Edu- mo político. cation (FEE) de Leonard Read (1898-1983), O liberalismo clássico, no apogeu, carac- com a Libertarian Press de Frederick Nymeyer terizou-se por um grande número de econo- (1897-1981), e se tornou membro fundador da mistas inovadores que continuaram e amplia- Mont Pèlerin Society. Para posicionar sua in- ram os escritos dos fisiocratas franceses, de teração com essas organizações em contexto Adam Smith (1723-1790) e de David Ricardo histórico, começaremos por considerar breve- (1772-1823). Os escritos inspiraram um movi- mente como a produção acadêmica libertária mento internacional liberal clássico liderado era organizada no século XIX. Passaremos, por homens como (1804- então, à defesa de Ludwig von Mises no sé- 1865) e John Bright (1811-1889) na Inglaterra, culo XX, primeiro caracterizando suas contri- Frédéric Bastiat (1801-1850) na França e John buições gerais à produção libertária e depois Prince-Smith (1809-1874) na Alemanha. Por discutindo seu envolvimento nas organiza- volta da década de 1860, esse movimento var- ções mencionadas. Concluiremos destacando reu os Estados Unidos e todos os países da a continuidade histórica entre Mises e os de- Europa Ocidental, incluindo a Alemanha. O fensores do laissez-faire no século XIX. ponto central de suas percepções era que as condições materiais da humanidade somen- te poderiam ser melhoradas pela produção e pela da troca, e qualquer coisa que estivesse II - Organização da produção no caminho da produção e do intercâmbio era acadêmica libertária no século XIX suscetível de ser abolida sem prejuízo para a sociedade. Assim, o governo só era justificá- vel à medida que prestasse os serviços que as A história política da civilização ociden- associações livres de particulares não podiam tal é, em grande medida, a história da batalha prestar. De acordo com Adam Smith e muitos entre os defensores do poder do governo – os outros, ele precisava proporcionar serviços intelectuais de corte – e os defensores da liber- policiais e militares, estradas, pontes e vias dade1. Para a maior parte da história ociden- marítimas, bem como todo um pacote do que tal, as linhas de frente nesta batalha não têm mais tarde seria chamado de bens públicos. De nenhuma relação com a economia. A defesa acordo com a escola francesa dos industrialis- da liberdade foi feita em termos da providên- tas no início do século XIX – Charles Comte (1782-1837), Charles Dunoyer (1786-1862) e outros –, o único papel do governo seria for- 1 ACTON, Lord. The History of Freedom. Grand Rapids: Acton Institute, 1993; ROTHBARD, Murray. necer serviços de segurança. Esperavam que An Austrian Perspective on the History of Economic esse papel diminuísse constantemente como Thought. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2006. consequência do aumento da cultura huma- 2v. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 163 na; o futuro utópico da civilização ocidental tagonistas eram homens ricos independentes; seria uma sociedade sem governo. Os pensa- não tinham de se curvar diante dos poderes dores mais radicais dentre os liberais clássicos existentes. Para difundir sua nova ciência, não viam razão alguma para justificar a exis- construíram uma série de instituições de pe- tência do governo. A seus olhos, a produção quena escala que variava desde redes soltas de segurança poderia ser confiada a empresas de contatos literários e pessoais, passando por privadas, assim como todos os demais ramos periódicos e revistas acadêmicas até campa- da produção. Nas famosas palavras de Gusta- nhas políticas mais ou menos organizadas e ve de Molinari (1819-1912): “Ou isso é lógico e associações de livre comércio4. verdadeiro, ou os princípios sobre os quais a ciên- O livre mercado de ideias foi decisivo 2 cia econômica está baseada são inválidos” . para a vitória arrebatadora que os liberais Em suma, a agenda liberal clássica visava clássicos alcançaram em meados do século a uma redução mais ou menos dramática do XIX. Por volta dos anos 1860, o establishment papel do governo e, por volta da na década de político e intelectual de todos os países oci- 1850, essa agenda se tornou explícita. Os pen- dentais percebeu o avanço liberal como uma sadores mais corajosos – homens como Gusta- ameaça mortal à sua posição, e com razão. Os ve de Molinari, Herbert Spencer (1820-1903), governos do Ancien Régime [Antigo Regime] Max Stirner (1806-1856) e Paul Émile de Puydt haviam estabelecido uma resposta estratégica (1810-1891) – chegaram a conquistar o respeito baseada em dois pilares: por um lado, surgiu pelo empreendimento intelectual de pensar a uma coalizão antiliberal entre o establishment respeito de uma sociedade sem Estado3. conservador e o nascente movimento socialis- 5 Os economistas do liberalismo clássico ta ; por outro lado, a criação de um mercado foram, em grande parte, impedidos de en- para economistas profissionais com o objetivo trar nas instituições públicas tradicionais de de controlar o mercado de ideias. Os governos ensino superior, que cultivavam o raciocínio começaram a criar um grande número de cá- nos moldes antigos a respeito das questões tedras de Economia Política em suas univer- políticas sob o controle do governo. Isso não sidades e a preencher a maioria desses novos era uma grande desvantagem naqueles dias, cargos com estadistas convincentes. Especu- porque, de qualquer maneira, havia poucos laram que a autoridade venerável das univer- economistas empregados publicamente. A sidades superaria a autoridade dos pioneiros competição das teorias econômicas e das pro- postas de políticas ocorreu em um mercado 4 Por exemplo, o jornal Censeur Européen, dos anos verdadeiramente livre para ideias. Seus pro- 1820 e 1830, gerenciado por Charles Dunoyer, Charles Comte e Augustin Thierry (1795-1856); a Anti-Corn Law League [Liga Contra as Leis de Cereais], fundada 2 MOLINARI, Gustave de. The Production of Securyti. em 1838 por Richard Cobden e John Bright; o jornal Trad. J. McCulloch. New York: Centre for Libertarian Libre Échange, fundado por Frédéric Bastiat, em 1844; Studies, 1977. p. 3. [Em língua portuguesa a obra está e o Kongress Deutscher Volkswirte [Congresso dos disponível na seguinte edição: MOLINARI, Gustave Economistas Alemães] fundado em 1863, do qual de. Da Produção de Segurança. Pref. Murray N. dentre os membros se destacam os nomes de John Rothbard; Trad. Erick Vasconcelos. São Paulo: Instituto Prince-Smith, Wilhelm Adolf Lette (1799-1868), Franz Ludwig von Mises Brasil, 2014. p. 21. (N. E.)] Hermann Schulze-Delitzsch (1808-1883), Heinrich Bernhard Oppenheim (1819-1880), Julius Faucher 3 Ver: MOLINARI, Gustave de. “De la production (1820-1878), Karl Braun (1822-1893), Max Wirth (1822- dela sécurité”. Journal des Économistes, Volume 1900), Viktor Böhmert (1829-1918) e Theodor Barth XXV, (Février 1849): 277-90; DE PUYDT, Paul Émile. (1849-1909). “Panarchic”. Revue Trimestrielle (Juliette 1860): 222- 45; SPENCER, Herbert. Social Statics. New York: 5 A respeito do importante caso alemão, que forneceu o Schalkenbach Foundation, 1995 [1850]; STIRNER, Max. modelo para estratégias semelhantes em outros países, Der Einzige un sein Eigentum. Stuttgart: Reclam, 1991 ver: RAICO, Ralph. Die Partei der Freiheit. Stuttgart: [1844]. Lucius & Lucius, 1999. 164 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

da nova ciência. Isto se mostrou correto. O toridades aparentemente sentiam que o sch- próprio significado da ciência econômica – mollerismo era muito brando e começaram a sua natureza e importância, bem como suas contratar professores marxistas para suas ca- implicações políticas – veio a ser redefinido deiras de Economia Política, cavando assim o sob o impacto de um processo de contratação túmulo do regime czarista9. estabelecido pelo governo em grande escala. Alguns anos antes, um ataque mais su- Começaram a surgir escolas inteiras de til, porém igualmente terrível contra o libera- Economia, cujo caráter “nacional” foi deter- lismo clássico foi lançado na Grã-Bretanha. O minado pelos que controlavam as nomeações. ímpeto inicial veio de John Stuart Mill (1806- A estratégia foi aplicada primeiramente na 1873), que, sob a influência de Harriet Taylor Alemanha, onde as autoridades aplicaram a (1807-1858), sua esposa socialista, começou a Escola Historicista Alemã de Economia, sob praticar a arte mortífera do comprometimento o rígido controle de Gustav Schmoller (1838- intelectual10. Tornou intelectualmente palatá- 1917), no lugar da ciência econômica em pra- vel usar a palavra “liberalismo” para designar ticamente todas as universidades do Reich6. programas políticos do mais puro tipo social- E de lá se difundiu para outros países. Na -democrata. O ápice do absurdo dessa onda França, as autoridades da Terceira República dos millianos foi alcançado em 1934, quando “instalaram uma escola rival em cadeiras uni- o economista da University of Chicago, Hen- versitárias recém-criadas e altamente presti- giadas por toda a França, profissionalizando Press, 1944. Esp. p. 147; REZNECK, Samuel. “An os economistas franceses e despojando a Es- American Depression, 1882-1886”. American cola Liberal, principalmente não-acadêmica, Historical Review (January 1956), p. 294. de sua autoridade intelectual sem paralelos”7. 9 Ludwig von Mises observou: “Com seu ódio ao Nos Estados Unidos, a American Economic liberalismo e à democracia, o próprio czarismo, através da Association (AEA) [Associação Econômica promoção do marxismo, preparou o caminho para a ideologia Americana], fundada em 1885 por economis- bolchevista”. MISES, Ludwig von. “Anti-Marxism”. A Critique of Interventionism. New York: Arlington tas treinados na Alemanha, também seguiu o House 1977. p. 120. caminho do schmollerismo8. Na Rússia, as au- 10 Esta redefinição ficou praticamente ignorada até que Ludwig von Mises retomou o argumento liberal 6 Idem. Ibidem. clássico no final da década de 1920. Mises chamou Mill 7 Ver: SALERNO, Joseph. “The Neglect of Bastiat’s de “o grande defensor do socialismo. Todos os argumentos School By English-Speaking Economists: The Puzzle que podem ser colocados em favor do socialismo foram por Resolved”. Journal des Économistes et des Études ele elaborados com afetuosa atenção. Em comparação a Humaines, Volume 11, Numbers. 2 & 3 (June / Mill, todos os outros autores socialistas, mesmo Karl Marx September 2011): 451-95. (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Ferdinand Lassalle (1825-1864), muito dificilmente mostram alguma 8 Sobre o caso dos Estados Unidos, ver SALERNO. importância”. (MISES, Ludwig von. Liberalism: In the “The Neglect of Bastiat’s School By English-Speaking Classical Tradition. Trad. Ralph Raico. Irvington-on- Economists”. Op. cit. Entre os economistas norte- Hudson: Foundation for Economic Education, 1985. p. americanos mais proeminentes que receberam sua 195). [Utilizamos a passagem em português da seguinte educação de pós-graduação na Alemanha, figuram edição brasileira: MISES, Ludwig von. Liberalismo: William Graham Sumner (1840-1910), Frank William Segundo a Tradição Clássica. Preâmbulo de Louis Taussig (1859-1940), Frank A. Fetter (1863-1949), M. Spadaro; Prefs. Thomas Woods & Bettina Bien Richard Theodore Ely (1854-1943), Edwin Robert Greaves; trad. Haydn Coutinho Pimenta. São Paulo: Anderson Seligman (1861-1939) e John Bates Clark Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2ª Ed., 2010. p. 204]. (1847-1938). A respeito do papel da American John Maynard Keynes (1883-1946) concorda com essa Economic Association (AEA), que foi estabelecida em ideia ao afirmar que: “Desde a época de John Stuart Mill 1885 segundo o modelo da Verein für Socialpolitik de os economistas de autoridade têm estado em forte posição de Schmoller, ver os comentários em: HOFSTADTER, reação contra todas essas ideias [individualismo e laissez Richard. Social Darwinism in American Thought: faire]”. KEYNES, J. M. The End of Laissez Faire. 1860-1915. Philadelphia: University of Pennsylvania London: Hogarth Press, 1926. p. 25ss. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 165 ry Calvert Simons (1899-1946), fez circular um socialismo tinha por base uma suposta pro- manuscrito com o título promissor de A Po- dutividade maior. Mas como poderia ser mais sitive Program for Laissez-Faire [Um programa produtivo do que o capitalismo se o conselho positivo para o laissez-faire], no qual pediu a de planejamento socialista não disporia dos nacionalização de empresas que não pode- próprios termos com os quais poderia indi- riam suportar a concorrência do mercado. car as alternativas de investimento? Dois anos A redefinição da Economia Política pelo mais tarde, em 1922, Mises publicou Die Ge- poder dos números absolutos e da tributação, meinwirtschaft: Untersuchungen über den Sozia- 11 juntamente com a redefinição autoritária de lismus [A economia coletiva: estudos sobre Mill do liberalismo clássico, combinaram-se o socialismo], um verdadeiro tratado sobre em um poderoso golpe que inverteu com- todos os aspectos relevantes do socialismo. pletamente os ideais e a agenda política. En- Trabalhou na tese da impossibilidade do cál- quanto na era do liberalismo clássico o obje- culo socialista, demoliu a ideia de que havia tivo tácito da reforma política fora a redução algo tal como uma tendência inelutável para do poder do governo, agora era o oposto. O o socialismo, criticou a defesa moral do so- novo ideal não era mais uma sociedade que cialismo e, em seguida, elucidou muito bem se emanciparia da intervenção governamen- que verdadeira natureza do socialismo era a tal, mas um governo abrangente que governa- destruição de vidas individuais e de institui- ria uma sociedade socialista projetada por ele ções sociais. No final do livro, nada restou do mesmo. Sobraram alguns liberais clássicos, ideal formidável do Estado socialista. Confor- homens como Gustave de Molinari, Vilfredo me afirmou, posteriormente, o historiador e Pareto (1848-1923), Julius Wolf (1862-1937), jornalista William Henry Chamberlin (1897- Ludwig Pohle (1869-1926) e Edwin Cannan 1969), um admirador do economista austría- (1861-1935). No entanto, lutaram de maneira co, Mises provou ser uma versão moderna reativa contra uma multidão esmagadora de de São Jorge, brandindo sua lança contra um 12 intelectuais contratados pelo governo e que dragão aparentemente invencível . Em 1922, adoravam o empregador. O novo ideal socia- o monstro estava morto; o ideal inquestioná- lista-estatista varreu as mentes e monopoli- vel da comunidade socialista tinha sido de- zou a imaginação da nova geração emergente. molido para sempre. Ao final da Primeira Guerra Mundial, o mo- Entretanto, Ludwig von Mises fez mais vimento do liberalismo clássico estava quase do que isso. Cinco anos depois, no livro Libe- morto. ralismus [Liberalismo] de 1927, defendeu uma versão radicalizada do liberalismo clássico, que sob sua pena fez ressuscitar como uma fê-

III - O significado intelectual do 11 Traduzido para o inglês em 1936, o livro se encontra libertarianismo misesiano disponível atualmente nesse idioma na seguinte edição: MISES, Ludwig von. Socialism: An Economic and Sociological Analysis. Pref. F. A. Hayek; trad. J. Nessa altura, surgiu Ludwig von Mises Kahane. Indianapolis: Liberty Fund, 1992. (N. E.) e, dentro de três anos gloriosos, criou uma rea- 12 Carta de William Henry Chamberlain para Mrs. ção monumental contra a estatolatria. Entrou Chamberlin, datada de 5-6 de julho de 1949. William em cena com o artigo Die Wirtschaftsrechnung Henry Chamberlain Papers. Providence College, im sozialistischen Gemeinwesen [O cálculo eco- Providence, Rhode Island. Citado por: NASH, George H. The Conservative Intellectual Movement in nômico em uma comunidade socialista], de America. New York: Basic Books, 1976. Nash cita 1920. A argumentação simples e elegante foi Chamberlin como tendo tido que Mises era “um devastadora. Afinal, o argumento em prol do verdadeiro São Jorge combatendo o dragão do coletivismo” (p. 13). 166 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

nix a partir das cinzas. Dois anos mais tarde, contato com uma rede de estrangeiros com em 1929, Mises fechou seu sistema de análise interesses semelhantes. Finalmente, consen- social, na já citada obra Kritik des Interventio- tiu em uma participação de curta duração em nismus: Untersuchungen zur Wirtschaftspolitik certas organizações europeias dedicadas à und Wirtschaftsideologie der Gegenwart [Crítica promoção do livre comércio. ao intervencionismo: estudo sobre a política Ficara muito relutante em se envolver econômica e a ideologia atuais], ao lidar com em qualquer campanha política organizada. os argumentos em prol da “terceira via” – Em uma carta de novembro de 1924, recusou cujas variantes atormentam a civilização oci- um cargo executivo honorário em uma asso- dental até os dias atuais, mais recentemente ciação austríaca de livre comércio, afirmando sob a forma do blairismo. Nesses trabalhos, que, por questão de princípio, não queria ade- Mises não somente defendeu descaradamente rir a qualquer organização política ou políti- os princípios centrais da Escola de Manches- co-econômica13. Esta atitude mudou no trans- ter, que até então tinham caído em descré- curso de 1925, quando assistiu e desfrutou do dito geral, mas até os superou. Mostrou que seu primeiro congresso da ICC, em Bruxelas, qualquer sistema de terceira via seria ineren- como representante oficial austríaco. No ou- temente instável porque não poderia resolver tono do mesmo ano, participou de uma confe- os problemas que pretendia resolver e, assim, rência da International Free Trade Organisation motivaria intervenção governamental cada [Organização Internacional de Livre Comér- vez maior, até que o sistema intervencionista cio] em Viena e, novamente, aproveitou os se transformaria em socialismo absoluto. Mas discursos ali proferidos14. Devido a essas ex- o socialismo não era viável. Restava apenas periências positivas, por fim, acabou por se um item significativo no cardápio político: envolver mais formalmente com outros euro- 100% de capitalismo. peus partidários do livre comércio. Repetidas vezes, Mises insistiu que não Naqueles dias, o Atlântico era ainda havia escolha envolvida nesse assunto. Era um obstáculo grande demais para uma coo- ridículo especular sobre alguma política par- peração mais estreita entre europeus e nor- ticular de terceira via que se encaixasse nas te-americanos. Entretanto, não era o único sensibilidades de uma determinada socieda- obstáculo. Mises e vários de seus correspon- de. A sociedade era viável apenas à medida dentes sentiram certa hipocrisia por parte de que os direitos de propriedade privada fos- determinados participantes norte-americanos sem respeitados, e pronto. das reuniões do ICC e de outras instituições. Antes de partir para o seu primeiro congres- so da ICC em junho de 1925, na cidade de

IV - O envolvimento de Mises nos 13 “Aus Grundsatz gehöre ich keiner politischen oder movimentos europeus em prol do wirtschaftspolitischen Organisation an”. Carta de livre comércio Mises para Freihan-delsbund gegen Teuerung und Wirtschaftszwang”, datada de 11 de novembro de 1924. Mises Archive (Moscou, Rússia), 80:60. Durante a década de 1920 e início dos 14 “Vor einigen Wochen hatten wir in eine von der anos 1930, Mises foi o representante da Câ- internationalen Freihandelsorganisation unter dem mara de Comércio Austríaca nas reuniões in- Namen, ‘Mitteleuropäische Wirtschaftstagung’ einberufene Konferenz, an der erfreulicherweise mehrere Engländer ternacionais e, em particular, nas convenções (z.B. F. W. Hirst, Wedgewood Benn u.a.) teilgenommen da International Chamber of Commerce (ICC) haben. Die reden, die auf dieser Tagung gehalten wurden, [Câmara de Comércio Internacional]. Esta ex- waren außerordentlich gut [...]”. Carta de Mises para periência provou ser satisfatória e o pôs em Lionel Robbins, datada de 9 de outubro de 1925. Mises Archive, 83:61. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 167

Bruxelas, na Bélgica, Mises compartilhou e no exterior” ou “recomendando água e bebendo essas apreensões com Eric Voegelin (1901- vinho”17. 1985), que residia nos Estados Unidos como No entanto, Mises envolveu-se mais for- bolsista da Rockefeller Foundation. Mises malmente com as organizações de livre co- escreveu que esperava encontrar muitos ho- mércio. Em maio de 1927, ingressou na comis- mens do exterior, mas não sabia “que tipo” são de imprensa da Europäische Wirtschafts- 15 de norte-americanos que encontraria . O -Union (EWU) [União Econômica Europeia], tempo confirmaria tal julgamento e não o de Christian Günther (1886-1966), com sede dissiparia. Em 1927, depois de participar em Haia, na Holanda18. Günther liderou o co- da Conferência Econômica Mundial da Liga mitê holandês de uma organização europeia das Nações em Genebra, na Suíça, no mês de de livre comércio chamada Europäischer Zoll- maio, e da reunião do ICC em Estocolmo, na -Verein (EZV) [Associação Alfandegaria Euro- Suécia, em julho, escreveu a seu amigo Fritz peia]. Durante os próximos dois anos, outros George Steiner em Paris: comitês nacionais seriam criados e, por volta Desta vez, o congresso não foi tão interes- de 1929, o EZV contava com muitos políticos sante como o de Bruxelas. As conversações e acadêmicos proeminentes entre seus mem- transcorreram visivelmente sob a fadiga e bros, tais como Aristide Briand (1862-1932), a exaustão que permaneceram após a Con- Paul Mantoux (1877-1956), Gustav Strese- ferência Econômica Mundial. Os norte-a- mann (1878-1929), Franz Oppenheimer (1864- mericanos perderam muito do entusiasmo 1943) e Norman Angell (1872-1967). Dado o pelo livre comércio europeu dado que te- miam que o movimento de livre comércio forte envolvimento de alguns desses homens pudesse se espalhar para os Estados Uni- na política partidária, não era de surpreender dos16. que o EZV tenha se orientado para objetivos bastante moderados, tais como a harmoniza- ção das tarifas dentro da Europa. No início de Steiner não ficou surpreso, respondendo 1928, no entanto, essa ineficácia mal era vi- que também poderia relatar inúmeras anedo- sível. Assim, quando o Comitê Internacional tas sobre o tema “os norte-americanos em casa do EZV pediu a Mises para que se juntasse às fileiras e também para a criação de um co- 15 “Ich reise nächste Woche nach Brüssel, wo ich beim mitê austríaco, ele aceitou. Não levou muito Handelskammerkongreß mit sehr vielen Amerikanern - ich mais do que um ano para que ficasse comple- weiß allerdings nicht welcher Sorte – zusammentreffen werde [...]”. Carta de Mises para Eric Voegelin, datada tamente desencantado com a decisão. de 12 de junho de 1925. Mises Archive, 79:11. As pessoas do EZV queriam que Mises 16 “Der Kongreß was diesmal nicht so interessant wie der fosse o presidente do comitê austríaco, mas in Brüssel. Die Verhandlungen standen sichtlich unter ele propôs outro homem para o cargo, alguém dem Eindruck der Ermüdung und Abspannung, die die que conhecia tanto por negócios na Câmara Weltwirtschaftskonferenz hinterlassen hat. Die Amerikaner quanto de modo particular, por muitos anos. haben viel von ihrem Elan für europäischen Freihandel eingebüßt, seit sie fürchten, daß die Freihandelsbewegung O dr. Ernst Geiringer (1892-1978) era um exe- auch nach den Vereinigten Staaten übergreifen könnte”. cutivo da Oelindustrie-Gesellschaft em Viena Carta de Mises para Fritz G. Steiner, datada de 11 e casado com Trude Geiringer (1890-1981), de julho de 1927. Mises Archive, 62:30. Fritz Georg Steiner foi o autor das obras Die Entwicklung des Mobilbankwesens in Oesterreich (Viena: Konegen, 17 “Über das Thema ‘Die Amerikaner bei sich und im 1913), Die Banken und der Wiederaufbau der Ausland’ oder ‘Wasser predigen und Wein trinken’ wüßte Volkswirtschaft (Vienna: Manz, 1920) e Geldmarkt ich Bände zu erzählen”. Carta de Steiner para Mises, und Wirtschaftskrise (Vienna: Manz, 1925). Durante a datada de 18 de julho de 1927. Mises Archive, 62:19. Segunda Guerra Mundial, mudou-se para Nova York e ficou em contato com Mises até o início da década de 18 Carta de Mises para Europäische Wirtschafts-Union, 1960. datada de 19 de maio de 1927. Mises Archive, 86:3. 168 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

que Mises conhecera na Primeira Guerra esperou por uma oportunidade conveniente Mundial19. Por volta de 1928, os dois homens para se despedir. encontraram um secretário adequado, dr. Ro- A oportunidade surgiu depois de al- bert Breza, também da Câmara. Voltaram-se, guns meses, quando membros do Comitê In- então, para a arrecadação de fundos e, por ternacional e membros da comissão francesa fim, ganharam o apoio de influentes empre- fizeram campanha contra a adesão da Áustria sários da Alemanha e da Áustria em setembro ao Reich alemão (a questão Anschluß). Em car- 20 daquele ano . ta para Ernö Bleier (1897-1969), Mises exortou Nesse ponto, Ludwig von Mises deve o Comitê Internacional a recuar publicamen- ter tido uma imagem um pouco mais clara da te dessa posição, a menos que a EZV não pu- mentalidade dos novos associados internacio- desse encontrar apoio na Áustria23. O que isso nais. Vira o nepotismo e a dedicação a outras significava, em particular, que nem ele, nem metas puramente pessoais se desenvolverem seus associados austríacos, podiam se dar ao à custa da causa da liberdade. Em julho, reti- luxo de se associarem a qualquer um dos la- rou-se do comitê de imprensa do EWU quan- dos dessa disputa altamente partidária – eles do Christian Günther se desassociou do EZV. eram, afinal, executivos de organizações se- Mises explicou sua decisão afirmando que migovernamentais24. Quando a EUV não se temia a proliferação de organizações de livre retirou da campanha, Mises e Geiringer dei- comércio21. Na verdade, em um congresso eu- xaram a organização em fevereiro de 1929. ropeu sobre livre comércio realizado em Pra- Esse foi o fim do interlúdio de Mises ga no início de outubro de 1928, havia menos com o movimento organizado de livre comér- 22 de dezessete associações presentes . É possí- cio. Daí, passou a se concentrar mais na bata- vel que, nesse momento, Mises já não tives- lha das ideias. se mais vontade de investir seu tempo desfi- lando em um circo de egomaníacos e apenas

19 Sobre a afiliação de Geiringer à Oelindustrie, ver: Mises Archive, 89:12. Trude Geiringer escreveu V - Mises e os neoliberais posteriormente que mesmo que tivesse conhecido Mises primeiro, teria sentido como se tivesse “tirado proveito da guerra”, dado que a amizade começou na Primeira O desacordo a respeito da questão do Guerra Mundial. O marido também nutria grande cálculo socialista era apenas sintoma de uma respeito por Ludwig von Mises e gostava de chamá-lo dissidência maior entre Ludwig von Mises e de sábio. Posteriormente, os Geiringer foram para New os antigos companheiros de armas. Rochelle, no estado de Nova York, e frequentemente se encontravam com Mises e com os Schüller. Ver a Não somente Mises defendia descara- correspondência em: Grove City Archive, Geiringer damente os princípios centrais da Escola de File. Será que Hilda von Mises (1893-1973), a esposa de Manchester, que até então caíra em descrédi- Richard von Mises (1883-1953), irmão de Ludwig, que era uma Geiringer tinha relações com esta família? to geral, mas foi além. Mostrou que qualquer sistema de terceira via seria inerentemente 20 Ver as cartas de Mises para Ernö Bleier, datadas de 10 de setembro de 1928 e 22 de setembro de 1928. Mises 23 Archive, 87:15, 23. Ver a carta de Mises para Ernö Bleier, datada de 14 de dezembro de 1928. Mises Archive, 87:57. 21 Também sugeriu que seu nome fora inaceitavelmente 24 associado, via EWU, a certas organizações e pessoas, Geiringer escreveu que, para ele, seria impossível tais como o parlamentar austríaco social-democrata conciliar qualquer forma de oposição contra um Emmy Freundlich (1878-1948). Ver: Carta de Mises a possível Anschluß (“mit meinen Stellungen in den Günther, datada de 7 de julho de 1928. Mises Archive, verschiedenen hiesigen Organisationen und Verbänden”). 87:18. Carta de Geiringer para Bleier, datada de 22 de fevereiro de 1929. Mises Archive, 89:7. Mises fez uma 22 Ver a lista em: Mises Archive, 87:18. declaração similar. Ver: Mises Archive, 89:4. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 169 instável porque não poderia resolver os proble- Mises ainda não havia publicado o trata- mas que pretendia resolver e, assim, motivaria do sistemático sobre Ciência Econômica que intervenção governamental cada vez maior até teria esclarecido o argumento científico para que o sistema intervencionista se transformas- um capitalismo sem restrições. Apresentara se em socialismo absoluto. No entanto, o so- alguns elementos importantes de sua teoria cialismo não era viável. Restava apenas uma econômica geral dos sistemas sociais, mas an- opção significativa: 100% de capitalismo. No- tes de 1940 ainda não estava claro como esses vamente, Mises insistiu que não havia escolha elementos se interrelacionavam e sobre qual nessa questão. Era ridículo especular sobre al- estrutura analítica geral se baseavam. Em guma política particular de terceira via que se 1940, Mises finalmente publicou um tratado encaixaria nas sensibilidades de um determi- geral sob o título de Nationalökonomie: Theorie nado grupo. A sociedade só era viável uma vez des Handelns und Wirtschaftens [Economia: teo- que os direitos de propriedade privada fossem ria da ação e da atividade econômica]. Nessa respeitados e pronto. época, Hayek tinha 41 anos de idade e era um Essa mensagem ecoou bem nos antigos acadêmico bem estabelecido; para ele e para o liberais, que ficaram maravilhados com essa restante de sua geração, o livro chegou tarde esplêndida reformulação dos ideais de juven- demais – para Röpke, Machlup, Robbins e to- tude. Os pontos de vista de Mises, todavia, dos os outros, Mises os afastara do socialismo foram recebidos com menos entusiasmo pela nos anos 1920. Na mente desses homens, os geração emergente, que havia sido criada em primeiros trabalhos de Mises sobre a impos- um ambiente intelectual embebido pelo esta- sibilidade do socialismo e a ineficácia do in- tismo. Os professores nas escolas e faculda- tervencionismo criaram um paradoxo. Mises des chegaram a endossar todas as ideias prin- os convencera de que o socialismo pleno não cipais subjacentes ao argumento em favor do era viável nem desejável; também foram per- socialismo: a doutrina do conflito e da luta de suadidos de que os sistemas da terceira via ti- classes, a noção do empobrecimento das clas- nham sido superestimados. Muitos deles, no ses trabalhadoras sob o capitalismo e a crença entanto, ainda não questionavam a afirmação de que um sistema capitalista descontrolado de que o liberalismo do século XIX falhara tendia para o monopólio. porque seu programa econômico, o capitalis- mo de laissez-faire, não proporcionara os bens. No lado positivo, Mises definitivamente Acreditavam ser uma simples questão factual destronou o socialismo como ideal da polí- o livre-mercado tender ao monopólio e que as tica. As energias de F. A. Hayek (1899-1992), classes trabalhadoras do século XIX haviam Fritz Machlup (1902-1983), Gottfried Haber- vivido na miséria por causa do capitalismo ler (1900-1995), Lionel Robbins (1898-1984), laissez-faire25. François Perroux (1903-1987) e Wilhelm Röp- ke (1899-1966) – homens que desempenha- Para esses homens, a teoria refutara a riam um papel significativo na formulação viabilidade do socialismo, e a história provara das políticas após a Segunda Guerra Mun- os defeitos do capitalismo. O que era neces- dial no mundo ocidental – não serviam mais sário era uma terceira via – uma terceira via ao ídolo do governo onipotente. Isso se mos- que poderia, de alguma forma, contornar a trou de importância decisiva para o curso da demonstração de Mises de que o intervencio- história. Entretanto, a influência de Mises se nismo era necessariamente contraproducente. mostrou demasiado fraca para inspirar neles a coragem necessária para um retorno sincero 25 Uma revisão do desempenho histórico do capitalismo ao tipo de liberalismo vibrante que caracteri- do século XIX posto em série após a Segunda Guerra zou a Escola de Manchester e o movimento Mundial. O débil início se encontra em: HAYEK, F. mundial de laissez-faire do século XIX. A. (Ed.). Capitalism and the Historians. Chicago: University of Chicago Press, 1954. 170 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

A solução que surgiu na década de 1930 teve litik instigada sob o Kaiser Wilhelm II (1859- por base uma construção intelectual que di- 1941). A França seguiu, invocando a necessi- vidiu a economia social em dois elementos: dade de uma terceira solução, como fizeram 1) um marco institucional; e 2) os processos os Estados Unidos sob o New Deal. que se desenvolveram dentro desse arcabou- Ainda assim, as primeiras declara- ço, principalmente os processos de precifica- ções programáticas do neoliberalismo fo- ção. Segundo esse novo credo, o governo não ram publicadas apenas na década de 1930 deveria se intrometer nos processos, mas sim – novamente, sem surpresa, na Alemanha e estabelecer e manter a estrutura institucional. nos Estados Unidos. A declaração mais in- Tal conjunto de suposições é característico do fluente veio de um economista de Chicago, que veio a se chamar neoliberalismo. o supracitado Henry Calvert Simons, que, Encontramos uma expressão clara da em 1934, distribuiu o já mencionado docu- cosmovisão neoliberal em um artigo que F. mento de trabalho com o título “The Nature A. Hayek escreveu em 1935. Comentando a and History of the Problem” [Um programa teoria do intervencionismo de Mises, Hayek positivo para o laissez-faire] – em que a pa- observa que não decorre do argumento mise- lavra “positivo” indicou que esse programa siano que “a única forma de capitalismo que pode justificava uma ampla intervenção governa- ser racionalmente defendida é a do laissez-faire mental, ao passo que o laissez-faire clássico pleno no sentido antigo”. Prosseguiu: era um programa “negativo”, visto que não O reconhecimento do princípio da proprie- proporcionava tal justificação. Simons ape- dade privada não significa necessariamente lou ao governo para regular a moeda e os que a delimitação particular dos conteúdos bancos, impedir a formação de monopólios desse direito, tal como determinado pelas e proporcionar uma renda mínima para os leis existentes, seja a mais apropriada. A desamparados – uma verdadeira saída do questão de saber qual é o arcabouço per- liberalismo laissez-faire27. manente mais apropriado para assegurar o funcionamento mais suave e eficiente da Essas ideias expressavam perfeitamente concorrência é da maior importância e de- os sentimentos de uma geração de economis- vemos admitir que foi tristemente negligen- tas que haviam sido criados em um ambiente ciada pelos economistas26. intelectual completamente estatista, mas que ainda conheciam os ensinamentos dos libe- rais clássicos. F. A. Hayek, Wilhelm Röpke, As raízes da ideologia neoliberal remon- Fritz Machlup, Milton Friedman (1912-2006), tam pelo menos as décadas de 1880 e 1890, Michael Polanyi (1891-1976), Walter Eucken quando economistas alemães da Escola His- (1891-1950) e muitos outros receberam forma- toricista Alemã de Economia e seus discípu- ção universitária e os impulsos intelectuais los norte-americanos se convenceram de que decisivos durante os anos 1920 e início dos a concentração industrial tem efeitos nocivos anos 1930. Durante a década de 1930, come- e exigiram moderação via intervenção gover- çaram a ocupar posições mais altas e, após a namental. Uma das consequências visíveis guerra, assumiram a liderança intelectual da dessa mentalidade foi a Lei Sherman, que até direita28. Seu neoliberalismo animava o traba- hoje substitui o poder dos consumidores pelo dos burocratas. Na Alemanha, a filosofia da 27 SIMONS, Henry Calvert. A Positive Program for terceira via tornou-se penetrante na Sozialpo- Laissez-Faire: Some Proposals for a Liberal Economic Policy. Chicago: University of Chicago Press, 1934. (Public Policy Pamphlet, No. 15). 26 HAYEK, F. A. “The Nature and History of the Problem”. In: HAYEK, F. A. Individualism and 28 Alguns dentre eles, notavelmente Hayek, mais tarde Economic Order. Chicago: University of Chicago se voltaram para um posicionamento de mais laissez- Press, 1948. p. 135. faire. No entanto, esta volta foi em um momento MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 171 lho das instituições do pós-guerra que conte- O livro atraiu os neoliberais europeus, riam a maré do estatismo crescente, em par- porque Lippmann expressou de maneira elo- ticular a Mont Pèlerin Society e o Institute of quente as próprias opiniões sobre as raízes da Economic Affairs (IEA) em Londres. Nos anos atual crise política e econômica. Aqueles que mais recentes, a agenda neoliberal é levada ainda se chamavam liberais rejeitavam o socia- adiante por uma nova onda de instituições lismo, mas não queriam ser fortemente associa- educacionais, como o Institute for Humane dos à doutrina do laissez-faire de Manchester. Studies (IHS), o Cato Institute e a Atlas Econo- Lippmann se colocou em oposição tanto aos mic Research Foundation. Esses indivíduos e antigos liberais como aos agitadores socialistas instituições moldaram as políticas neoliberais contemporâneos. A posição intermediária de no mundo ocidental desde o final da Segunda Lippmann correspondia à mentalidade prag- Guerra Mundial. mática de seus compatriotas. Os norte-ameri- canos tendem a adotar uma abordagem empre- sarial dos conflitos políticos, buscando resolvê- -los por meio de negociações e compromissos. VI - O colóquio Walter Lippmann Lippmann apresentou de maneira perspicaz tanto os socialistas quanto os manchesterianos como teimosos doutrinários. Contrastava esses Sete semanas depois do casamento, Lu- “extremistas” com o próprio esquema prático. dwig von Mises participou de um encontro Isso repercutiu nos economistas europeus neo- histórico dos paladinos do “velho” liberalis- liberais continentais do período Entre Guerras, mo de Manchester e do neoliberalismo. Mar- que diferiam de Lippmann apenas nos deta- git von Mises (1890-1933) provavelmente o lhes vislumbrados para a boa sociedade. perdoou e até se juntou a ele na viagem. Não Um desses foi Louis Rougier (1889-1982), é de admirar, pois a conferência ocorreu em filósofo da Universidade de Paris e diretor de Paris. um “Centre Danubien”. Rougier considerou O neoliberalismo era, no início, um fe- o livro de Lippmann uma brilhante exposição nômeno puramente informal. Praticamente de um consenso surgido entre os estudiosos todos os proponentes eram economistas que liberais no passado recente, de modo mais no- cooperavam em uma rede espontânea dentro tável nos livros de Ludwig von Mises, Lionel de algumas instituições como a International Robbins, Bernard Lavergne (1884-1975), Lou- Chamber of Commerce (ICC) em Paris. Em is Marlio (1878-1952) e Jacques Rueff (1896- meados da década de 1930, a rede atingiu a 1978)30. Rapidamente, Lippmann arranjou uma massa crítica necessária para uma organiza- edição francesa de seu livro, intutulado La cité ção mais formal sob a bandeira da nova ter- libre31 [A Cidade Livre], e aproveitou a ocasião ceira via. Um passo importante para a aparên- para convocar um colóquio de cinco dias em cia organizada da rede neoliberal emergente Paris “para rever o processo do capitalismo e tentar foi dado quando, em 1937, o jornalista nor- definir a doutrina, as condições necessárias para sua te-americano Walter Lippmann publicou um implementação e as novas responsabilidades de um manifesto neoliberal com o título Inquiry into verdadeiro liberalismo”32. the Principles of the Good Society29 [Investigação sobre os princípios da boa sociedade]. 30 ROUGIER, Louis. “Préface”. In: Le Colloque Walter Lippmann. Paris: Librairie de Médicis, 1938. quando o rolo compressor neoliberal já estava bem 31 LIPPMANN, Walter. La cité libre. Paris: Librairie de encaminhado. Médicis, 1938. 29 LIPPMANN, Walter. Inquiry into the Principles of 32 ROUGIER. “Préface”. Op. cit. Posteriormente, the Good Society. Boston: Little, Brown & Co., 1937. o mesmo autor enfatizou que o propósito era 172 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

O evento aconteceu em 26 a 30 de agos- da hierarquia natural com a água do banho da to de 1938 no Commission Internationale de hierarquia coercitiva. Coopération Intellectuelle (CICI) [Instituto Em quarto lugar, e por último, Ludwig Internacional de Cooperação Intelectual] e re- von Mises manteve as políticas do laissez-faire uniu representantes de liberalismos muito di- do século XIX sobre bases teóricas refinadas ferentes. Esses homens recaíram em pelo me- que ele mesmo desenvolvera ao longo dos nos quatro grupos, com visões distintamente últimos dezoito anos. Na década de 1930, o diferentes sobre a história, a teoria e a agenda economista austríaco foi reconhecido dentro política do liberalismo moderno. e fora dos círculos libertários como o mais O primeiro grupo, que representava a importante representante contemporâneo da corrente dominante do neoliberalismo, pro- Escola de Manchester33. movia não apenas um compromisso prático, O colóquio de Lippmann mostrou que mas também teórico, com o socialismo coerci- três das percepções de Mises exerceram im- tivo. Estavam dispostos a se comprometer so- pacto profundo sobre os neoliberais. Em pri- bre qualquer item em particular para tornar meiro lugar, sua demonstração de que o cál- a agenda geral mais palatável para o eleitor. culo econômico socialista era impossível os Sua posição pode ser considerada como so- liberou de todas as noções de que uma comu- cialdemocracia “pró mercado”. nidade socialista plena seria viável ou mesmo Em segundo lugar, houve um pequeno desejável por razões econômicas. Em segun- grupo de homens, como F. A. Hayek, que es- do lugar, o argumento do cálculo socialista os tavam insatisfeitos com vários aspectos do li- convenceu de que a fixação de preços compe- beralismo clássico e endossaram um âmbito titivos é da maior importância e uma carac- de certo modo um pouco maior para a inter- terística definidora do mercado livre. Tercei- venção do governo. Em contraste com o pri- ro, endossaram a defesa original de Mises do meiro grupo, porém, sua preocupação funda- mental era com a liberdade individual e, com 33 o tempo, assumiram uma postura cada vez Ver o seguinte trabalho de um autor esquerdista: HEIMANN, Eduard. History of Economic Doctrines: mais radical, aproximando-se cada vez mais An Introduction to Economic Theory. New York: da posição liberal clássica. New York University Press, 1945. p. 19. O parecerista Terceiro, havia um grupo igualmente anônimo da edição francesa do Gemeinwirtschaft apresentou o autor como “o líder incontestável da Escola pequeno de homens, como Alexander Rüs- da Economia Austríaca” (resenha de Le socialisme em Les tow (1885-1963), relutantes em endossar com- industries mécaniques. Paris: junho de 1938). Quando pletamente o liberalismo clássico, porém a Louis Baudin (1887-1964) convidou Mises a juntar-se principal objeção era contra o igualitarismo, à comissão científica de um novo periódico francês de tal como era, dos defensores. Argumentavam economia comparativa, em 1939, disse a ele que todas as orientações políticas seriam representadas na comissão, que a hierarquia era absolutamente necessá- razão suficiente para que o liberalismo fosse defendido ria para a manutenção de uma sociedade li- por mestres tais como Mises (ver: Carta Baudin para vre, porque somente a autoridade nela implí- Mises, datada de 18 de maio de 1939. Grove City cita transmitiria com eficácia a tradição cultu- Archive, arquivo Baudin). A singularidade do papel ral da liberdade. O grande erro da Revolução de Mises ainda foi reconhecida uns vinte anos mais tarde por um dos últimos estudantes sobreviventes da Francesa foi que não só aboliu a hierarquia escola francesa do laissez-faire. Escrevendo para Mises coercitiva do Ancien Régime, como também em setembro de 1957, o professor A. Bastet disse que desprezou o princípio da hierarquia per se. o economista austríaco era o sucessor “do nosso mestre Em seu fervor igualitário, jogara fora o bebê Yves Guyot (1843-1928)” – que fora, por sinal, herdeiro intelectual de Gustave de Molinari, e este um legatário do grande “proto-austríaco” Frédéric Bastiat. Ver: definir o neoliberalismo. Ver: ROUGIER, Louis. “Le Carta de Bastet para Mises, datada de 5 de setembro de néolibéralisme”. Synthèses (Décembre 1958). 1957. Grove City Archive, arquivo “B”. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 173 liberalismo, que enfatizava que uma ordem que uma divisão racional do trabalho pode- de propriedade privada seria o único sistema ria se basear apenas nos preços de mercado viável para a divisão do trabalho. para os fatores de produção, o que, por sua As duas últimas percepções, no entan- vez, exigia a propriedade privada desses fa- to, foram distorcidas, de modo a acomodar a tores. Em contrapartida, os neoliberais se con- agenda intervencionista neoliberal. Enquanto centraram exclusivamente nos próprios pre- Mises simplesmente declarara que uma divi- ços, negligenciando as condições sob as quais são do trabalho baseada no cálculo só poderia ocorrem os preços livres. Para eles, a conclu- ocorrer na presença da propriedade privada, são prática do argumento do cálculo socialista os neoliberais se propuseram a manipular os não era o da não interferência do governo na sistemas jurídico e judicial para “melhorar” propriedade em geral, mas sim que deveria a divisão espontânea do trabalho que teria evitar de se intrometer especificamente nos resultado do laissez-faire político. Para esses preços. No colóquio, Lippmann foi elogiado homens, o mercado era extremamente im- por sua distinção entre “intervenções compatí- portante, mas acreditavam que a intervenção veis com o mercado” e intervenções incompatí- do governo poderia melhorar a “eficiência” e veis com o funcionamento de uma economia 35 “justiça” no processo de mercado. Ao contrá- de mercado . Apenas a interferência direta rio dos socialistas, os neoliberais acreditavam no funcionamento do mecanismo de preços que o mercado conduzia a sociedade na di- seria ilegítima. Se o governo se limitasse a reção correta, mas, ao contrário dos liberais controlar apenas o marco jurídico no qual os clássicos, acreditavam que o mercado sem participantes no mercado ficariam livres para entraves estava aquém do seu verdadeiro po- prosseguir com seus projetos à vontade, esta tencial. intervenção não seria condenável de um pon- to de vista neoliberal. Em um prefácio à primeira edição ale- mã do livro de Walter Lippmann, lançada em O princípio unificador das teorias neolibe- 1945, Wilhelm Röpke enfatizou a orientação rais do pós-guerra foi uma tentativa de justificar das políticas neoliberais para a otimização da a liberdade em alguns casos e a violência patro- máquina social: cinada pelo Estado em outros, por intermédio de uma mesma teoria. Os produtos mais impor- Assim, a questão não é: a favor ou contra o tantes desses esforços foram a teoria dos bens laissez-faire? Em vez disso, qual é a ordem públicos e a teoria de Chicago para o Direito e a jurídica (Rechtsordnung) que se enquadra numa constituição econômica justa, livre, Economia de Ronald Coase (1910-2013). da mais alta produtividade e baseada numa Mises criticou de maneira implacável a sofisticada divisão do trabalho?34 interpretação neoliberal do significado do ar- gumento do cálculo socialista. Do seu ponto Como consequência dessa interpretação de vista, a distinção arbitrária entre o “papel particular da teoria de Ludwig von Mises so- do mecanismo de preços” e o “arcabouço do bre os sistemas sociais, os neoliberais também mercado” era absurda. É da natureza da in- reinterpretaram o significado das percepções tervenção governamental violar os direitos de do economista austríaco sobre a importância propriedade privada, afetando assim o meca- dos preços competitivos. Mises argumentou 35 Rüstow se orgulhava de ter cunhado a frase “liberaler 34 RÖPKE, Wilhelm. “Einführung”. In: LIPPMANN Interventionismus” (intervencionismo liberal clássico) Walter. Die Gesellschaft freier Menschen. Bern: já em 1932. Ver a cópia de sua carta para Volkmar Francke. 1945. p. 32. Conforme demonstra esse texto, Muthesius (1900-1979), datada do dia 23 de maio Röpke ficou profundamente impressionado com o de 1955. Grove City Archive: Arquivo Muthesius. trabalho de Lippmann, quem acreditava ter exercido Provavelmente se referiu ao seu discurso no encontro um impacto tremendo sobre o movimento neoliberal. de 1932 do Verein em Dresden, na Alemanha. 174 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

nismo de preços em todos os casos. Embora tros favores. [...] Como você apresenta “am- seja verdade que certos fenômenos resultam bos os lados” quando “um lado” está ao seu apenas de uma interferência direta no proces- redor, antecipando a discussão pública, e o so de fixação dos preços – a escassez e os exce- “outro lado” é apenas audível no ruído en- 36 dentes, sobretudo –, a grande questão do cál- surdecedor do outro? . culo econômico permanece. Em última análi- se, é irrelevante se a intervenção do governo Direcionar mais fundos para apresentar se intromete diretamente com os preços ou a opinião estatista era dinheiro escoando pelo indiretamente pela da “estrutura” de forma- ralo e sentiu que não poderia, em boa cons- ção de preços; em ambos os casos, os preços ciência, justificar essa despesa. No final de de mercado são pervertidos. 1945, renunciou o posto que detinha e come- çou a visitar os doadores para pedir descul- pas37. Um deles, o empresário Pierre F. Goo- drich (1894-1973), de Nova York, incentivou VII - Leonard Read e a Foundation Leonard Read a pensar na criação de sua pró- for Economic Education (FEE) pria organização. Dois meses depois, Read es- tabeleceu a Foundation for Economic Educa- tion (FEE), que, em julho de 1946, iria para as Aproximadamente um ano após o início instalações bucólicas em Irvington-on-Hud- das palestras de Ludwig von Mises na New son, várias milhas ao norte de Manhattan, York University (NYU), foi criada outra institui- onde ainda está localizada38. ção que se mostraria um pilar do renascimento do liberalismo clássico e que daria mais força às ideias do economista austríaco. Leonard Read 36 SENNHOLZ, Mary. Leonard E. Read: Philosopher chegara à conclusão de que seu engajamento of Freedom. Irvington-on-Hudson: Foundation for Economic Education, 1993. p. 69. com a diretoria da National Industrial Conferen- ce Board (NICB) [Conselho da Conferência Na- 37 Ludwig von Mises continuou sendo convidado para cional das Indústrias] era um desperdício de outras conferências da NICB. Por exemplo, no dia 16 de maio de 1946, discutiu o tema das taxas de juros tempo e de dinheiro. Uma das principais razões do Pós Guerra com Woodlief Thomas (1897-1974), para essa ineficácia era o comprometimento da um economista do Federal Reserve [Reserva Federal], diretoria com uma política de “ouvir os dois la- Friedrich Lutz (1901-1975), um representante do dos”. Na prática, isso significava, por exemplo, ordoliberalismo, e o neokeynesiano Paul Samuelson que nas conferências públicas bimestrais que (1915-2009). E, no dia 22 de janeiro de 1948, participou de um simpósio que lidou com a questão: “Devemos a instituição patrocinava no hotel Waldorf-As- retornar ao padrão-ouro?”, no qual debateu com Philip toria, os defensores do livre-mercado e os de- Cortney (1895-1972), L. Albert Hahn (1889-1968) e fensores da intervenção do governo recebiam Michael A. Heilperin (1909-1971). Ver: Grove City tempos iguais para apresentar os argumentos. Archive: Arquivos NICB. Provavelmente, também, Read acreditou que essa política estava baseada aceitar tais convites foi instrumental para proporcionar ao seu amigo Walter Sulzbach (1889-1969) um emprego em um mal-entendido severo a respeito do que no NICB em 1946 ou 1947. Ver: Grove City Archive: “ouvir ambos os lados”, verdadeiramente, sig- Arquivo Sulzbach. nificaria no contexto atual. Nas palavras de sua 38 A ampla e bela mansão, na cidade de Irvington- biógrafa Mary Sennholz: on-Hudson, no estado de Nova York, que durante O “outro lado” estava em toda parte – no sessenta e oito anos abrigou a Foundation for governo, na educação e na imprensa. Mes- Economic Education (FEE) foi vendida em 2014, por mo os empresários passaram a confiar no conta tanto dos impostos elevados quanto da excessiva governo para restrições de concorrência, regulamentação estatal. Mesmo diante dos esforços de diferentes gestões da FEE, as inúmeras exigências para contratos e ordens públicas, assim governamentais para a utilização da casa para realizar como dinheiro e crédito fáceis, além de ou- cursos e hospedar pesquisadores estavam há quase MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 175

Read mobilizou apoio empresarial im- ta manchesteriana da FEE era que o governo portante para esse empreendimento. Possuía deveria ser estritamente limitado à prevenção uma caderneta repleta de endereços e estava da “força agressiva” ou violência física41. pessoalmente familiarizado com muitos exe- Mais importante ainda, atraiu jovens cutivos e proprietários de grandes corpora- interessados na defesa intelectual da liber- ções, alguns dos quais também se juntaram à dade e, em última análise, colocou Mises em FEE como administradores. contato com um grupo autosselecionado de A principal atividade da FEE era emi- estudantes, que eram muito mais receptivos tir panfletos e cartas explicando as “teses da às consequências políticas de suas ideias do liberdade” para aproximadamente 30.000 fa- que muitos dos participantes do seminário na mílias39. O próprio Read proferiu um grande NYU. Vários alunos que conheceu pela pri- número de palestras públicas e, juntamente meira vez em conferências da FEE mais tarde com seu outro grupo de pessoas, logo come- se juntaram ao seminário semanal na univer- çaria a oferecer seminários de fim de semana sidade, onde Mises poderia entrar em muito e outros programas educacionais. Os panfle- mais detalhes. tos e conferências colocaram estudantes de Por último, mas não menos importante, todo o país em contato com os escritos de Mi- a FEE forneceu algum contrapeso intelectual ses e outras luminárias do liberalismo clássi- à ortodoxia neoliberal que estava prestes a co. Mises foi um dos primeiros economistas surgir no departamento de economia da Uni- contratados para palestras e seminários nas versity of Chicago. Em 1947 e 1948, respecti- instalações da FEE, e permaneceria como seu vamente, Frank H. Knight (1885-1972) e o já ci- 40 centro intelectual por mais de duas décadas . tado Henry Calvert Simons (postumamente), Seria difícil exagerar a importância do publicaram coleções de artigos defendendo aparecimento de FEE. Embora suas atividades um libertarianismo tão ralo que não se distin- não fossem notadas por um público nacional guia da social-democracia42. Outros membros maior, a própria existência dessa organização da Escola de Chicago foram Aaron Director deu às forças liberais clássicas, que se encon- (1901-2004) e Milton Friedman. O impacto da travam dispersas, foco e orientação. Dera-lhes FEE era, é claro, comparativamente menor, o que não tinham desde o auge do liberalismo contudo, sem ele, a Escola de Chicago teria do século XIX: um lar. A FEE forneceu o ma- dominado totalmente o cenário do livre-mer- terial e a infraestrutura para um retorno entu- cado norte-americano. siasmado aos ideais dos liberais do laissez-fai- re do século XIX. Para a pergunta-chave sobre as funções apropriadas do governo, a respos- VIII - Frederick Nymeyer uma década impedindo a realização de diversas atividades na sede da instituição. Atualmente a sede da FEE se encontra em um conjunto de salas em um Mais ou menos na mesma época em que edifício comercial na cidade de Atlanta, na Georgia. (N. Leonard Read estava criando a FEE em Irvin- E.) gton-on-Hudson, no estado de Nova York, 39 O número de 30.000 foi atingido no início de 1949. Ver o memorando de Read datado de 23 de março de 1949. Grove City Archive: Arquivos FEE. 41 NASH. The Conservative Intellectual Movement in America. Op. cit., p. 24. 40Ele recebia “uma quantia uniforme em intervalos regulares” e assim se tornou, por razões técnicas (leis 42 KNIGHT, Frank H. Freedom and Reform. New York: tributárias), empregado do FEE em outubro de 1946. Harper, 1947; SIMONS, Henry Calvert. Economic Ver: Carta de Curtiss para Mises, datada de 8 de Policy for a Free Society. Chicago: University of outubro de 1946. Grove City Archive: Arquivos FEE. Chicago Press, 1948. 176 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

Ludwig von Mises travou conhecimento com maneira melhor de dizer isso era que os parti- outra pessoa que por fim se transformaria em cipantes do mercado demandavam a retenção um aliado de longo prazo. Em maio de 1946, de dinheiro. Prometeu rever seus escritos de o empresário de Chicago, Frederick Nyme- modo adequado e considerar esse ponto em yer, terminou de ler a Theorie des Geldes und seu próximo tratado sobre Economia. 43 der Umlaufsmittel [A Teoria da Moeda e dos Essa troca foi o início de uma aliança Meios Fiduciários], o que o levou a escrever duradoura (embora nunca uma amizade mais ao autor e a perguntar a respeito de outros pessoal). Nymeyer logo começou a ler outras 44 escritos sobre o assunto . Durante os meses obras de economistas austríacos disponíveis seguintes, Nymeyer leu Omnipotent Govern- em inglês, em particular Kapital und Kapital- 45 ment [Governo Onipotente] e outros escritos zins47 [Capital e Juros] de Eugen von Böhm- em inglês do professor austríaco que estavam -Bawerk (1851-1914). Lentamente, tornou-se disponíveis. Era o leitor ideal para Mises. Re- um admirador dedicado da Escola Austríaca. cebera educação econômica no início da déca- Também era um calvinista devoto e afirmou: da de 1920, depois trabalhara por algum tem- “Böhm-Bawerk foi demasiado longe, além de Adam po como representante de campo do Harvard Smith, como João Calvino (1509-1564) foi além de Business Cycle Index. Estava bem familiarizado Martinho Lutero (1483-1546)”48. com o pensamento monetário que prevaleceu nos Estados Unidos. O livro Theorie des Gel- O agnosticismo de Ludwig von Mises des und der Umlaufsmittel, conforme desco- não diminuiu a admiração de Frederick Ny- briu, “era radicalmente diferente da abordagem meyer pelo economista austríaco. E não im- mecanicista Teoria Quantitativa da Moeda” e, pediu o próprio Mises de cooperar aberta e portanto, “tive alguma dificuldade para ajustar produtivamente com os libertários cristãos todo o meu pensamento à sua exposição”. Parte nos Estados Unidos. Na Áustria, tal coopera- da dificuldade parecia ser o uso diferente de ção era praticamente impossível, porque os termos, e Nymeyer, em seguida, passou a le- socialistas cristãos haviam empurrado a Igre- vantar questões sobre um dos conceitos cru- ja Católica para um beco intelectual sem saí- ciais da teoria: a demanda por moeda46. Mi- da. Somente personalidades destacadas como ses concordou que a maneira como a expôs o monsenhor Ignaz Seipel (1876-1932) pode- – a demanda por moeda como demanda por riam superar os ressentimentos socialistas poder de compra – era ambígua, e que uma contra o liberal Mises. Entretanto, nos Esta- dos Unidos as coisas eram diferentes. Muitos

43 Livro publicado originalmente em alemão no ano de 1912, cuja segunda edição neste mesmo idioma, 47 A obra em três volumes lançada originalmente em de 1924, serviu como base para uma versão inglesa, alemão entre 1884 e 1914 foi publicada em língua lançada em 1934, e disponível, atualmente, na seguinte inglesa na seguinte edição: BÖHM-BAWERK, Eugen edição: MISES, Ludwig von. Theory of Money and von. Capital and Interest. Trad. George D. Huncke e Credit. Pref. Murray N. Rothbard; intr. Lionel Robbins; Hans F. Sennholz. South Holland: Libertarian Press, trad. Harold E. Batson. Indianapolis: Liberty Fund, 1959. 3v. [Volume I: History and Critique of Interest 1981. (N. E.) Theories / Volume II: Positive Theory of Capital / 44 Carta de Nymeyer para Mises, datada de 20 de maio Volume III: Further Essays on Capital and Interest]. Em de 1946. Grove City Archive: Arquivos Nymeyer. língua portuguesa o capítulo XII do primeiro volume foi publicado como o seguinte livro: BÖHM-BAWERK, 45 A obra publicada originalmente em inglês, em 1944, Eugen von. A Teoria da Exploração do Socialismo está disponível atualmente na seguinte edição: MISES, Comunismo. Pref. Hans F. Sennholz; trad. Lya Luft. Ludwig von. Omnipotent Government: The Rise of São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2ª ed., the Total State and Total War. Ed. e pref. Bettina Bien 2010. (N. E.) Greaves. Indianapolis: Liberty Fund, 2011. (N. E.) 48 Carta de Nymeyer para Mortimer Adler, datada de 46 Carta de Nymeyer para Mises, datada de 12 de junho 14 de fevereiro de 1948. Grove City Archive: Arquivos de 1947. Grove City Archive: arquivos Nymeyer. Nymeyer. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 177 clérigos protestantes no país amavam a liber- Mises e Nymeyer provavelmente se en- dade individual e o livre-mercado, e conside- contraram pela primeira vez no final de ja- ravam que esse amor resultava naturalmente neiro de 1948. Nymeyer começou, então, a de sua religião cristã. Muitos desses homens pensar sobre por que a Escola Austríaca de achavam que as teorias de Mises eram com- Economia não era preponderante nos Estados plementares à sua fé. Unidos e chegou à conclusão de que obras Em correspondência com um clérigo da austríacas não eram suficientemente conhe- Igreja Anglicana, no Canadá, que havia lido o cidas. No outono daquele ano, estava pron- livro Human Action: A Treatise on Economics49 to para agir, contando especialmente com a [Ação Humana: Um Tratado de Economia], volumosa caderneta de endereços (“conhe- Mises escreveu: ço vários dos grandes empresários do país, onde participo de alguns importantes conselhos de ad- Concordo plenamente com sua afirmação ministração”51). E, no final de janeiro de 1949, de que os Evangelhos não defendem polí- depois de mais alguns encontros com Mises, ticas anticapitalistas. Lidei com esse pro- blema há anos em meu livro Socialismo [...]. Nymeyer desenvolveu um plano: a ideia era Além disso, concordo inteiramente com sua criar um “Instituto Liberal” sob a liderança de proposição de que não se encontra, em Ação Mises na Chicago University – Nymeyer era Humana “uma só palavra que esteja em opo- amigo do reitor da Escola de Negócios – ou de sição à fé cristã”50. alguma outra universidade adequada na área de Chicago52. Nymeyer já havia conquistado Mises acolheu com entusiasmo a publi- seu sócio Robert W. Baird (1883-1969) e o ami- cação do periódico mensal Faith and Freedom go John T. Brown (1876-1951), vice-presidente da Spiritual Mobilization, uma organização ba- da J. I. Case Company. Em maio de 1949, con- seada em Los Angeles, em dezembro de 1949. versaram com vários outros empresários da Claro que sabia muito bem que a maioria dos região. líderes protestantes defendia alguma forma No final de abril, a universidade disse- de socialismo ou intervencionismo, e que em- ra a Nymeyer que prefeririam “presentes ir- bora a Igreja Católica “lute valentemente contra restritos” para serem usados com “liberdade o comunismo”, não se opõe ao socialismo. Mas acadêmica” – o que significava que a institui- esses problemas estavam fora de seu campo: ção selecionaria a equipe do Instituto Liberal “Creio que só os teólogos são capacitados para li- proposto. Mises comentou: dar com a questão”. Com base nesse slogan [“liberdade acadêmi- Essa também foi a opinião de Frederick ca”], as universidades estão boicotando to- Nymeyer. Um dos principais motivos do es- dos os economistas que se atrevem a levan- tímulo para divulgar os escritos de Ludwig tar objeções contra o intervencionismo de outro ponto de vista que não seja o do socialis- von Mises foi precisamente a relação comple- mo. Atualmente, a questão da liberdade acadê- mentar que percebeu entre o capitalismo do mica não é se os professores comunistas devem laissez-faire e o cristianismo. ser tolerados. Melhor: só devem ser nomeados comunistas, socialistas ou intervencionistas?53

49 O livro está disponível em português na seguinte 51Carta de Nymeyer para Mises, datada de 12 de outubro edição: MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um de 1948. Grove City Archive: Arquivos Nymeyer. Tratado de Economia. Trad. Donald Stewart Jr. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 3ª Ed., 2010. 52 Carta de Nymeyer para Mises, datada de 25 de janeiro (N. E.) de 1949. Grove City Archive: Arquivos Nymeyer. 50Carta de Mises para P. C. Armstrong, datada de 16 53 Manuscrito de uma carta de Mises para Nymeyer, de janeiro de 1950. Grove City Archive: Arquivo em resposta à carta de Nymeyer datada de 26 de abril Armstrong. de 1949. Grove City Archive: Arquivos Nymeyer. 178 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

Entretanto, a resistência não veio apenas sociedade foi fundada no espírito do neoli- do interior das universidades. Alguns anos mais beralismo; e os acadêmicos, políticos e jorna- tarde (e muito mais sábio), Mises reconheceu a listas neoliberais representam, desde então, a existência de outro fator: maior parte dos membros. Uma das piores características do atual estado A sociedade deu prosseguimento ao co- de coisas é a lealdade equivocada dos ex-alu- lóquio de Walter Lippmann de 1938 que Louis nos. Assim que alguém se atreve a criticar algo Rougier (1889-1982) organizou em Paris. Des- relativo a uma universidade, todos os ex-alu- ta vez, a iniciativa recaiu naturalmente nas nos vêm em socorro de sua alma mater. Então, mãos de F. A. Hayek, bem conhecido em am- temos o espetáculo das grandes empresas de- bos os lados do Atlântico – devido ao sucesso fendendo o boicote lançado pelas faculdades 56 contra todos aqueles que não simpatizam com do livro The Road to Serfdom [O Caminho da o intervencionismo, o planejamento e o socia- Servidão], de 1944, e, também, porque estava lismo54. entre os primeiros intelectuais ocidentais a renovar os contatos com os homólogos conti- nentais depois da Segunda Guerra Mundial57. Em todo caso, o plano para um “Instituto Nessas reuniões, surgiu lentamente a ideia de Liberal” baseado em Chicago sob a liderança de uma associação libertária. Hayek certamente Mises não se materializou. Mas Nymeyer e seus discutiu o assunto quando encontrou Mises amigos tiveram provavelmente alguma influên- no fim de julho de 1946 no México, mas nesse cia ao levar F. A. Hayek para a Chicago Univer- ponto ainda não se transformara em nenhum sity, além de desempenharem no início dos anos plano concreto. Da Cidade do México, voou 1950 um papel significativo para levantar fundos para Oslo, na Noruega, onde Trygve Hoff para as reuniões da Mont Pèlerin Society55. (1895-1982) organizou uma reunião prepara- tória para discutir o plano, um pouco vago, para o estabelecimento de uma associação neoliberal com vários intelectuais europeus, e IX - Uma conferência em Mont foi ali que o plano de uma “Sociedade Acton- Pèlerin

Exatamente um ano após a fundação da Foundation for Economic Education (FEE) em Nova York, outra organização foi criada para suprir um fórum para a mudança e o de- senvolvimento de ideias relevantes a partir de 56 Acrescida de um longo estudo introdutório e de uma perspectiva liberal clássica. Ao contrário diversos anexos escritos por renomados economistas, da FEE, essa organização não tinha sede per- foi publicada em inglês a seguinte edição crítica: HAYEK, F. A. The Road to Serfdom: Text and manente; foi concebida como uma sociedade Documents – The Definitive Edition. Ed. e introd. de acadêmicos, e a vida dessa sociedade con- Bruce Caldwell. Chicago: Chicago University Press, sistia principalmente em reuniões anuais, que 2007. Traduzida com base na versão inglesa de 1976, a ocorreram em diferentes cidades por todo o obra está disponível em português na seguinte edição: mundo. Mais importante ainda, porém, essa HAYEK, F. A. O Caminho da Servidão. Trad. Ana Maria Copovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 54 Carta de Mises para Nymeyer, datada de 17 de maio 6ª ed., 2010. (N. E.) de 1952. Grove City Archive: arquivos Nymeyer. 57 Por exemplo, por volta de janeiro de 1949, Hayek já 55Nymeyer para Hayek e outros, correspondência havia realizado diversas visitas à Áustria. Ver carta de da primavera e verão de 1952. Grove City Archive: Charmatz para Mises, datada de 27 de janeiro de 1949. Arquivos Nymeyer. Grover City Archive: Arquivo Charmatz. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 179

-Tocqueville”58 deve ter tomado forma59. Até de convite para cerca de cinquenta pessoas, o final do ano, encontrara os fundos necessá- para uma conferência de dez dias nos Alpes rios para patrocinar o evento com fontes suí- suíços, na parte inferior do Monte Pèlerin, ças, por intermédio de Albert Hunold (1899- perto da cidade de Vevey, no Lago Genebra. 1980), e norte-americanas, via William Volker F. A. Hayek provavelmente antecipou 60 Fund , bem como escreveu uma carta circular algum problema com Ludwig von Mises, porque pediu desculpas escritas à mão nessa 58 O nome originalmente escolhido por F. A. Hayek mesma carta, dizendo que não tivera tempo era em homenagem ao estadista, pensador político e historiador católico francês Alexis de Tocqueville (1805- para discutir o plano com Mises em detalhes. 1859) e ao ao historiador, editor, jornalista e estadista Sua apreensão acabou se mostrando acertada. católico inglês John Emerich Edward Dalberg-Acton Mises respondeu, escrevendo para Hayek que (1834-1902), mais conhecido como Lorde Acton. (N. E.) não poderia deixar a New York University 59 Ver carta de Hayek para Mises, circular datada de 28 (NYU) em abril e que “abomino a ideia de ir para de dezembro de 1946. Grove City Archives: Arquivos a Europa. Já vi decadência suficiente”61. A pedi- da Mont Pèrelin Society (MPS). Ver, também: Carta do de Henry Hazlitt (1894-1993), havia escrito de Mises para Karl Brandt, datada de 7 de setembro um memorando de quatro páginas conten- de 1946. Grove City Archives: Arquivo Brandt. Mises esteve em contato com Hoff antes do dia 28 de junho do suas “Observations on Professor Hayek’s de 1946. Hoff escreveu um manifesto libertário durante Plan” [“Observações sobre o plano do pro- a guerra e enviou o texto para a Suécia, de onde um fessor Hayek”]. Neste documento, afirmou diplomata norte-americano deveria tê-lo enviado para que muitos planos semelhantes para conter o editor Alfred Knopf (1892-1984) em Nova York. Mas a maré do totalitarismo tinham sido tentados o diplomata nunca o fez, como Hoff veio a saber depois da guerra, porque considerou o manuscrito “não nas últimas décadas – ele mesmo estava en- democrático” – o que provavelmente significou que volvido em alguns desses projetos – mas os era muito crítico dos dogmas fundamentais do aliado planos fracassavam porque esses amigos da de guerra dos Estados Unidos. Hoff também veio a liberdade já haviam sido infectados pelo ví- descobrir, de maneira independente, a impossibilidade rus estatista: “Não perceberam que a liberdade se do cálculo econômico no socialismo. Mises tinha o economista norueguês em alta consideração. Hoff foi encontra inextricavelmente conectada à economia “um dos poucos contemporâneos cujo julgamento a respeito de mercado. Apoiaram, em geral, a parte crítica dos problemas tratados em Ação Humana é consequente”. do programa socialista. Comprometeram-se como Carta de Mises para Hoff, datada de 11 de janeiro de uma solução de terceira via, o intervencionismo”. 1950. Grove City Archives: Arquivos Hoff. No final do memorando, afirmou sua princi- 60 Criada no ano de 1932, em Kansas City, no estado pal objeção: de Missouri, pelo empresário William Volker (1859- O ponto fraco do plano do professor Hayek 1947), essa fundação de caridade originalmente tinha como principal missão ajudar na reforma dos é que se baseia na cooperação de muitos sistemas educacional e de saúde na cidade onde estava homens que são conhecidos pelo apoio ao sediada, além defender menor interferência das esferas intervencionismo. É necessário esclarecer federal e estadual nas políticas municipais. Sob a esse ponto antes do início da conferência. Do gestão de Harold W. Luhnow (1895-1978), sobrinho modo como entendo o plano, não é tarefa do fundador, a instituição mudou o foco e passou a desta conferência discutir novamente se um financiar autores libertários e conservadores, além decreto do governo ou a determinação de de colaborar na criação da Foundation for Economic um sindicato tem ou não a capacidade de Education (FEE) em 1946, da Mont Pèlerin Society em elevar o padrão de vida das massas. Se al- 1947 e do Intercollegiate Society of Individualists (ISI) guém deseja discutir esses problemas, não em 1953, tendo a última, por influência de Russell Kirk (1918-1994), mudado o nome, posteriormente, para é necessário que faça uma peregrinação ao Intercollegiate Studies Institute (ISI). Em 1961 foi criado Monte Pèlerin. Poderá encontrar, em sua o Institute for Humane Studies (IHS), com suporte do William Volker Fund, que acabou, em pouco tempo, assumindo os recursos e a missão dessa fundação de 61 Carta de Mises para Hayek. Datada de 31 de dezembro caridade. (N. E.) de 1946. Grove City Archives: arquivos MPS. 180 Ludwig von Mises e as Organizações Libertárias: Lições Estratégicas

própria vizinhança, muitas oportunidades de uma semana, os arranjos de viagem foram para fazer isso62. feitos por intermédio da FEE.

Em sua carta a Hayek, foi mais especí- * * * fico: Estou preocupado sobretudo com a parti- cipação de Wilhem Röpke, que é um inter- A conferência da Mont Pèlerin começou vencionista declarado. Creio que o mesmo em 1º de abril de 1947 e consistiu em dez dias vale para Karl Brandt (1904-1948), Harry de sessões. Ludwig von Mises saíra de Nova Gideonse (1901-1985) e Max Eastman (1883- York em 25 de março, animado e curioso para 1969). Todos os três contribuem para a New ver a Europa novamente depois de quase sete Leader, uma revista puramente socialista – anos. Provavelmente viajou para a conferência embora decididamente antissoviética63. via Paris e Genebra, onde conheceu William Ra- ppard (1883-1958) e o já citado Paul Mantoux65. A reunião teve apenas uma agenda mínima e Ainda assim, Mises não descartou sua deixou grande margem de manobra para que participação, mas sugeriu um adiamento da os participantes determinassem os temas que conferência até setembro. Isso acabou sendo desejariam discutir nos próximos dias. impraticável, e Hayek empreendeu outra ten- tativa de convencer o velho mentor no início Ludwig von Mises e os outros seis no- de fevereiro. Minimizou a importância das va-iorquinos – Leonard Read, F. A. Harper conexões de Brandt, Gideonse e Eastman com (1905-1973) e Vernon Orval Watts (1898-1993) a New Leader, mencionando que ele próprio já da FEE, bem como o jornalista Henry Hazlitt, escrevera para essa revista. Contudo, o mais Harry Gideonse, que na época era presidente importante foi o argumento de que o progra- do Brooklyn College, e John Davenport (1904- ma da conferência ainda era bastante aberto e 1987), da Fortune Magazine – representaram a que o principal objetivo da reunião de Vevey guarnição manchesteriana da reunião. F. A. e dos encontros subsequentes seria conquistar Hayek, Milton Friedman e Fritz Machlup eram especialmente aqueles historiadores e cien- neoliberais; pessoas como Walter Eucken, tistas políticos que ainda abrigavam ideias Bertrand de Jouvenel (1903-1987), Frank H. equivocadas sobre uma série de questões, Knight, Michael Polanyi, Karl Popper (1902- mas que estavam dispostos a aprender64. Isso 1994) e George J. Stigler (1911-1991) já eram foi, aparentemente, bastante convincente. Por social-democratas bastante liberais; e Maurice sugestão de Hayek, Mises entrou em contato Allais (1911-2010), Wilhelm Röpke e Lionel Ro- com o principal patrocinador da conferência, bbins representavam a extrema-esquerda da o já citado William Volker Fund, com sede em conferência. Allais não foi capaz de endossar Kansas City, no estado de Missouri, e, dentro a vaga “declaração de objetivos” que todos os outros participantes aprovaram em 8 de abril. No discurso de abertura, Hayek estabe- 62Memorando datilografado de 31 de dezembro de leceu a agenda para a reconstrução ideológica 1946. Grove City Archive: Arquivos MPS. no Pós Guerra do movimento do liberalismo 63Carta de Mises para Hayek, datada de 31 de dezembro clássico. Isso sugeria, por um lado, “purgar a de 1946. Grove City Archive: Arquivos MPS. Mises teoria liberal tradicional de certos acréscimos aci- sugeriu que Hayek convidasse Luis Montes de Oca (1894-1958) e Gustavo R. Velasco (1903-1982) do México, Raúl Maestri (1908-1973) de Cuba e Torleiv 65 Hytten (1890-1980) da Austrália. Carta de Mises para Montes de Oca, datada de 13 de março de 1947. Grove City Archive: Arquivos Montes 64 Carta de Hayek para Mises, datada de 3 de fevereiro de Oca. Carta de Mises para Mantoux, datada de 17 de de 1947. Grove City Archive: Arquivos MPS. março de 1947. Grove City Archive: Arquivo Mantoux. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Jörg Guido Hülsmann 181 dentais que a ela se uniram no transcurso do tem- cussões haviam sido excepcionalmente tran- po” e, por outro lado, “enfrentar alguns proble- quilas. Agora era nove anos mais velho, mas mas reais dos quais o liberalismo supersimplificado a lua-de-mel tinha terminado. Reagiu com se esquivou ou que se tornaram aparentes somentea grande determinação e defendeu sua posição partir o momento em que se transformou em credo, pelo laissez-faire tão vigorosamente que, mui- de certo modo, estacionário e rígido”66. Como os tos anos depois, seu amigo Lawrence Fertig desdobramentos posteriores devem mostrar, (1898-1986) ainda recordava o debate. o significado concreto desse programa foi: 1) O intercâmbio entre Ludwig von Mises absolver o liberalismo clássico de certas críti- e os opositores neoliberais estabeleceu o tom cas amplamente difundidas, por exemplo, de na Mont Pèlerin Society nos próximos anos. que as políticas que inspirara haviam levado Embora os libertários em torno de Mises fos- à miséria das massas; 2) distinguir o liberalis- sem apenas uma pequena minoria, eram os mo “moderno” de seu predecessor mais anti- que tinham o apoio financeiro dos principais go, o laissez-faire. patrocinadores norte-americanos, como o Algumas das outras palestras progra- William Volker Fund, sem o qual a Mont Pè- madas, contudo, foram suficientes para jus- lerin Society teria morrido muito rapidamente tificar as premonições negativas de Ludwig naqueles primeiros anos. Desde que Mises to- von Mises. Por exemplo, o economista alemão mou parte ativa nas reuniões, portanto, ficou Walter Eucken explicou que a legislação anti- impossível simplesmente discutir os detalhes monopólio não era suficiente para combater técnicos do intervencionismo governamental. os monopólios. Maior inferência legislativa O laissez-faire havia retornado. Não era a opi- seria necessária nos campos do direito cor- nião da maioria, mas era uma opção política porativo, bem como do direito de marcas e discutível e debatida – demais para alguns patentes. Defendeu, também, duas máximas membros iniciais, como Maurice Allais, que da política econômica. Em primeiro lugar, logo abandonou a Sociedade precisamente embora houvesse liberdade de contrato, esta por essa razão67. liberdade não devia se limitar de modo algum à liberdade de contrato para demais. Em se- gundo lugar, os participantes monopolistas do mercado deveriam ser forçados a se com- portar como se estivessem sob “concorrência” – produzir as mesmas quantidades e vendê- -las aos mesmos preços que prevaleceriam na “concorrência”. Eucken resumiu a mesma agenda in- tervencionista que já dominara o colóquio de Lippmann em 1938. Na época, Mises estava em lua-de-mel na cidade de Paris, o que pode explicar por que suas contribuições às dis-

66 Ver o discurso pronunciado, em 1º de abril de 1947, por F. A. Hayek na abertura da conferência na Mont Pèlerin Society. Ver, também, o texto bastante 67 Provavelmente, a visita de Allais à FEE em outubro moderado “Statement of Aims” [Declaração de de 1947 reforçou as preocupações de que os libertários Objetivos] da Mont Pèlerin Society. Uma cópia do norte-americanos fossem muito radicais para o seu documento original se encontra no Grove City Archive: gosto. A visita é mencionada em carta de Herbert Arquivo do Intercollegiate Society of Individualists Cornuelle para Mises, datada de 14 de outubro de (ISI). Arquivado por volta de 1964. 1947. Grove City College Archive: Arquivos FEE.