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DANIEL GIL

O POETA DO GROTESCO,

Rio de Janeiro Setembro de 2019

O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES

Daniel Vasilenskas Gil

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do (UFRJ) como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas — Literatura Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Eucanaã Ferraz

Rio de Janeiro Setembro de 2019

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O POETA DO GROTESCO, VINICIUS DE MORAES

Daniel Vasilenskas Gil

Orientador: Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas — Literatura Brasileira.

Rio de Janeiro Setembro de 2019

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Gil, Daniel.

O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes / Daniel Gil. -- Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2019.

176 f.

Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese (Doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2019.

Referências Bibliográficas: f. 121-132.

1. Poesia brasileira. 2. Crítica. 3. Grotesco. 4. Feio. 5. Vinicius de Moraes. I. Ferraz, Eucanaã. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação.

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RESUMO

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas — Literatura Brasileira.

GIL, Daniel. O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Muito embora a poesia de Vinicius de Moraes seja celebrada mais especialmente pelo verso amoroso, ela possui, em mesma medida, um lado estranho, prolífico, e ainda pouco explorado pelos estudiosos. Uma grande quantidade de poemas tende aos domínios do feio, do anômalo, do quimérico, e faz do poeta, com a devida atenção, o maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e . Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção. A tese de que Vinicius seja um poeta do grotesco se fundamenta nas numerosas e persistentes ocorrências da substância grotesca em toda a sua obra poética. Junto à leitura de alguns dos poemas em que ela ocorre, é possível consultar um rol de teóricos que contribuem de maneira decisiva para com os conceitos que a circundam. Reflexões estéticas que aproximam e contrastam textos de Bakhtin, Baudelaire, Hugo, Kayser, Schlegel e outros oferecem a linha condutora para a análise.

Palavras chave: Poesia brasileira; Crítica; Grotesco; Feio; Vinicius de Moraes.

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ABSTRACT

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas — Literatura Brasileira.

GIL, Daniel. The poet of the grotesque, Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro, 2019. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Even though Vinicius de Moraes's poetry is more especially celebrated by his amorous verses, that poetry has, to the same extent, a strange, prolific side, still largely understudied by scholars. A great deal of poems tends to the realms of the ugly, the aberrant, the chimeric, and that makes the poet, with due attention, the most prominent heir in the twentieth century of the grotesque poetry carried through by Cruz e Sousa and Augusto dos Anjos. Other times, that tendency comes up in the spontaneous laughter of nonsense, gluttony, eschatology, and incorrectness. The thesis that Vinicius is a poet of the grotesque is substantiated by the numerous and persistent occurrences of the grotesque substance in all of his poetic corpus. Alongside with some of the poems in which such element occurs, one can go through the thoughts of scholars who have made a decisive contribution to the encompassing concepts. Aesthetic reflections which juxtaposes texts by Bakhtin, Baudelaire, Hugo, Kayser, Schlegel, and others constitute the guiding line for the analysis.

Keywords: Brazilian poetry; Criticism; Grotesque; Ugly; Vinicius de Moraes.

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A Pedro Rafael, meu filho, que dividiu minhas atenções com este trabalho nos primeiros meses de sua vida.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Eucanaã Ferraz, orientador — e companheiro sempre sem igual nessa jornada viniciana.

Ao Prof. José Carlos Prioste que, em 2002, durante uma aula sobre Baudelaire, fez com que eu me atentasse às belezas do grotesco.

À Vanesa — às conversas, à abnegação, ao Amor.

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SUMÁRIO

I. MOTIVOS 11-18 II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER) 19-28 III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI 29-39 IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN) 40-52 V. O BANQUETE DO OMNÍVORO 53-62 VI. O FEIO ROMÂNTICO 63-77 VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR 78-88 VIII. É BELA A BOMBA? 89-97 IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS 98-120 X. BIBLIOGRAFIA 121-132 ANEXO I (TREZE POEMAS) 133-163 ANEXO II (ICONOGRAFIA) 164-176

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No bilhar de Van Gogh tudo estava imóvel Mas de repente entrou o jogador bêbado que eles diziam falido na vida E se pôs a jogar com tanta perfeição que os modelos adormecidos se levantaram E vieram ver e ficaram com gestos de aprovação na cabeça e se entreolhavam. Mas o mais belo foi quando ele deu a tacada seiscentos e sessenta e seis. A luz se apagou e todas as coisas mesmo cadeiras mesas vieram cumprimentá-lo E ali mesmo ele foi proclamado Diabo, porque, eles diziam Só mesmo o Diabo era capaz de jogar assim.

(“O bilhar” In: Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.517-8.)

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I. MOTIVOS

(...) É proibido frequentar o cabaré do sublime. Liberdade é uma libertinagem. Limitar-se é bom, castrar-se é melhor. Passai vossa vida a vos conter. Sobriedade, decência, respeito pela autoridade, toalete irrepreensível. Não há poesia senão vestida com apuro. Uma savana que não se penteia, um leão que não faz as unhas, uma torrente não peneirada, o umbigo do mar que se deixa ver, a nuvem que se arregaça até mostrar o Aldebarã, é chocante. Em inglês, shocking. A vaga espuma no recife, a catarata vomita no golfo, Juvenal escarra no tirano. Ui, que nojo!

Victor Hugo

A ironia de Victor Hugo em sua apologia de Shakespeare1 é um exemplo saboroso do embate entre duas perspectivas teóricas que atravessam a história das literaturas e da crítica. Uma delas se concentra na razão, na laboração cerebral e na expressão dos artifícios; projeta-se, no mais das vezes, com muita austeridade emocional e imagética. Hugo a denominava — pejorativamente — de “escola sóbria”.2 A outra é mais propensa ao arrebatamento, aos extremos, e arrisca-se não raro a uma imagética fronteiriça ao mau gosto (ao que pode ser entendido dessa forma); e muito se inclina às paixões e aos contrastes incisivos, ao belo e ao feio, ao sublime e ao grotesco — revelando inclusive as afinidades existentes entre elementos opostos. É certo que, em alguma medida, os maiores escritores estão atentos a todas as possibilidades do fazer; e se encontram devidamente aparelhados para a execução de procedimentos e imagens

1 HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000, p.159. 2 Op. cit., 158-9. 11 oriundos de ambas as perspectivas; o que, de modo geral, não os obsta à filiação específica a um dos lados e à defesa entusiasmada. Sem dúvida alguma, Vinicius de Moraes posicionou seu olhar de maneira contígua ao de criadores como Victor Hugo. Ainda que muito bem operasse aqueles instrumentos que podem oferecer à poesia um caráter cerebral — a ponto de antecipar, por exemplo, em “Última elegia”,3 um conjunto de recursos de vanguarda na poesia brasileira —, essa destreza no emprego de técnicas, na realização diversificada de formas, esteve sempre submetida a um protagonismo desassombrado de intensas paixões e perplexidades — como também dos delírios e das fantasias que pudessem ofertar mais significado aos vãos angustiantes de sua experiência com o real. A mestria converteu-se com igual relevância no intercâmbio muito característico do poeta entre componentes contemporâneos e tradicionais, inclusive no que tange à temática, à esfera semântica, ao plano do imaginário. A propósito, é preciso dizer que grande parte da melhor poesia brasileira publicada no século XX não foi exatamente endurecida, contida, antilírica, como faz parecer uma quantidade considerável de material crítico e teórico produzido ao longo do período. Bandeira, Cecília, Vinicius são poetas apaixonados, demasiados, melodiosos; Drummond é também um poeta dos sentimentos, do amor, conquanto sua dicção seja mais angulosa; restaria em sequência, ainda, o lirismo de um Quintana, de Hilda, de Adélia. Nem mesmo é cabível afirmar que uma perspectiva “sóbria” tenha sido a preferida entre os leitores nos círculos intelectuais de amplo espectro. Acontece que as atenções da teoria e da crítica mais institucionalizada, de fato, voltaram-se com maior interesse para outros campos de nossa poesia, preferindo a consciência ostensiva dos artifícios; a experimentação das vanguardas; a apurada contensão, a concisão de João Cabral; os aspectos mais racionais da poesia de Drummond. percebe que o seu tempo “é um tempo que tende à ruptura, ao triunfo do ritmo e mesmo do ruído sobre a melodia, assim como tende a suprimir as manifestações de afetividade”; e que “Vinicius é melodioso e não tem medo de manifestar sentimentos, com uma naturalidade que deve desgostar as poéticas de choque, geralmente interessadas em suprimir qualquer marca de espontaneidade e em realçar o cunho de artifício”.4 É necessário registrar que, nesse contexto, as concepções

3 MORAES, Vinicius de. Cinco elegias. Rio de Janeiro: Pongetti, 1943, pp. 37-42. 4 CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62. 12 do poeta — aquelas que destoavam das tendências teóricas — não tinham origem em qualquer postura reativa ou reacionária, mas o inverso: elas eram inerentes a uma natureza oposta aos limites; aberta, múltipla, intercambiável. Bandeira foi quem primeiro percebeu essa inclinação incorrigível de Vinicius à multiplicidade:

Desde O caminho para a distância, através de Forma e exegese, Ariana, a mulher, e Novos poemas, a evolução do poeta se vem processando com uma abundância e variedade que nos deixa a nós, seus admiradores e amigos, convencidos de estarmos diante de uma força criadora de natureza sem precedentes em nossa literatura. Porque ele tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas), e finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos.5

Francisco Bosco entende que essa natureza múltipla “foi desconcertante para a maioria dos críticos, e mesmo decepcionante para quase todo o sistema cultural brasileiro”.6 O que o ensaísta chama de “sistema cultural” pode ser traduzido pela tensão entre grupos mais ou menos organizados que concorrem nos espaços de legitimação. Tanto assim que, em seguida, menciona o apontamento de José Miguel Wisnik de que as opções estéticas constantemente disruptivas e independentes de Vinicius conseguiram desagradar católicos, modernistas, defensores da poesia escrita, músicos etc.; e, nessa trajetória, levaram-no aparentemente a galgar “cada vez um patamar abaixo do esperado”; no mesmo raciocínio, mais adiante, ele concluiria que, apesar da importância inegável para a cultura do século XX por engrandecer a poesia, a arte dramática, a arte de viver, a canção, a erudição e a expressão popular, Vinicius nunca foi “o cioso administrador de seu capital poético”.7 Essas considerações, espirituosas, ganham significado ao constatarmos repetidamente, nunca sem algum espanto, que um dos maiores poetas da língua portuguesa — e um dos mais lidos — carece ainda hoje de um movimento crítico continuado.

5 BANDEIRA, Manuel. Coisa alóvena, ebaente. In: MORAES, Vinicius de. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, pp. 656-8. 6 BOSCO, Francisco. A mulher original. In: MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 197-204 (grifo do original). 7 WISNIK, José Miguel. A balada do poeta pródigo. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 143-50 (grifo do original). 13

Este estudo, em razão do escopo específico, acaba expondo questões como tais acerca da obra do poeta: o considerável desconcerto com a perspectiva teórica predominante de seu tempo — o que ajuda a explicar a desatenção das leituras especializadas a um de seus traços mais profundos; o diálogo com a tradição — que supera o tão mencionado âmbito formal e, com efeito, passa por um vasto repertório de elementos do imaginário histórico das literaturas; o caráter múltiplo dessa poética — inclusive na execução de uma variedade de mecanismos heterogêneos, oriundos de escolas aparentemente antagônicas. A ideia em desenvolvimento, aqui, é simples na delimitação, mas pode parecer inesperada: Vinicius de Moraes é um poeta do grotesco. Veremos que ela não se origina de ocorrências esporádicas do fenômeno estético, mas do reconhecimento de uma inclinação essencial e profusa do poeta; digamos que seja “inesperada” uma vez que o enorme êxito de Vinicius com seus poemas amorosos, junto a um público imensurável, emprestou a ele uma persona literária supostamente contrária, quanto mais se acrescentarmos aí a consolidação, de tal sorte, de sua poesia voltada para crianças.8 Entretanto, é necessário dizer que é natural que escritores e artistas vinculados a uma estética grotesca sejam frequentemente aqueles que muito exploram as emoções humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios — são os artistas do extremo, como Shakespeare ou Victor Hugo; e também que a disposição à fantasia e ao nonsense é manancial em comum, seja do grotesco, seja da imagética romanesca9 ou infantil. A propensão que têm esses criadores — devotos do abalo afetivo ou moral, da trepidação dos sentidos, do sentimento — de representarem em suas obras elementos tanto do sublime quanto do grotesco poderia servir de pista para que os críticos identificassem o mesmo movimento na poesia de Vinicius de Moraes. No entanto, no século XX, o que mais se aproximou de uma observação nesse sentido foram estas linhas abaixo, dispensadas por Ivan Junqueira, reconhecendo que o amor e a morte figuram ali com igual protagonismo; e que mesmo as substâncias da vida detêm certo extremo aterrador:

Vinicius de Moraes será sempre, e acima de tudo, o poeta do amor e da morte. E talvez por isso mesmo seja ele o poeta mais emblemático de sua época, assim como o foram Baudelaire e Dylan Thomas, aquele

8 Ver estudo (do autor): “Se ‘A casa’ de Vinicius é folclore brasileiro” em Revista 7faces, ano 04, edição 08, ago-dez, 2013, pp. 147-56 ( https://issuu.com/setefaces/docs/caderno-revista_7faces_8___edi____o/147 ). 9 Fabulosa, utópica, quimérica. 14

que com maior desassombro e autenticidade encarnou o mito de , descendo aos infernos da vida e da morte em busca de sua Eurídice, que foram muitas e talvez nenhuma.10

Eucanaã Ferraz mencionaria com todas as letras o grotesco em seu ensaio publicado em 2006 sobre o poeta.11 Ao analisar a “Balada dos mortos dos campos de concentração”,12 depara-se com uma “estética expressionista, onde o horror, o absurdo e a morbidez entrelaçam-se com vocabulário, adjetivações e imagens contrastantes”; e observa nesses contrastes a projeção do insólito, do híbrido, do monstruoso — em consonância com a herança grotesca transmitida desde os tradicionais ornamentos pictóricos romanos:

Ao invés de optar por um realismo estrito, o poema constrói imagens que, sem abrir mão de um minucioso realismo, dão a ver o absurdo da realidade ao pintá-la em seu aspecto monstruoso, fundindo o horror do extermínio em massa a “beijos”, “sorrisos de giocondas”, “toalete”. Estamos, portanto, no âmbito do grotesco, exemplarmente realizado em poemas como “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”, “Balada do enterrado vivo”, “Balada do Mangue” e “Balada da moça do Miramar”. Neles, o belo e o mórbido modelam cenas (algumas de caráter narrativo) estranhas, fantásticas. O natural se torna terrível, a realidade emerge insólita, a beleza se confunde com o repulsivo.13

Essa inclinação do poeta não é esporádica, é forçoso repetir, mas essencial; exibe-se em numerosas e persistentes ocorrências ao longo de toda a obra poética. Por isso precisamos nos debruçar, tentar compreendê-la, averbar os seus modos; ao menos iniciar esse trabalho. Porque valores fundamentais que não foram explicitamente reconhecidos, ainda que possam ser experimentados, não estão sob o controle consciente de leitores e intérpretes — que, diante da tentativa de traduzir a força de uma obra, concentram-se muitas vezes em questões voltadas ao não-essencial. Vale apontar, pois, que há uma tendência fragmentadora, geralmente com recortes temporais, na apreciação da obra de Vinicius em detrimento à busca de possíveis componentes

10 JUNQUEIRA, Ivan. O signo e a sibila. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, pp. 252-75. 11 FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006. 12 Anexo I, pp. 145-7. 13Op. cit., pp. 24-7. 15 efetivos, essenciais: como as que se restringem à divisão em duas fases, estipulada pelo próprio poeta em sua “Advertência” à Antologia poética (1954), tão sistematicamente citada (pensemos, todavia, na variedade de poemas que vieram a público após essa divisão); as que enxergam a obra com base na separação entre o poeta dos livros e o letrista das canções populares; as que percebem nos poemas inéditos da Antologia, nos Novos poemas (II) (1959) e em Para viver um grande amor (1962) uma guinada em direção aos temas sociais; as que ressaltam a variação de estilo do letrista de acordo com a alternância de suas parcerias. São observações importantes porque apresentam as transformações mais patentes ocorridas na obra ao longo do tempo. Em contrapartida, porém, encontramos às vezes estudos que procuram se aproximar do eixo-motor criativo, das inquietudes que arrastam desde sempre o poeta à poesia e que funcionam como agentes de um veio original, único. É o caso de uma tese recente, escrita por Bruno Cosentino, onde se afirma que Vinicius nunca abandonou certo “sentimento religioso” a partir da descrença no catolicismo; que esse sentimento foi posteriormente “embebido por uma intuição ritualística” e passou a buscar, “no reconhecimento de si no Outro e na fusão com a mulher amada, a restauração de uma unidade primordial anterior à criação”.14 Cosentino acredita que a vivência católica, pujante, do poeta — importantíssima na formação de suas concepções estéticas — decorreu-se menos de uma fé verdadeira que desse sentimento íntimo, particular, externado como atividade intelectual:

Poderia chamar esse processo pelo qual passa o poeta de desconversão, mas não, porque não acredito que ele tenha passado anteriormente por uma real conversão ao cristianismo, isto é, que o tenha sentido com sinceridade, de corpo e alma, a não ser como um exercício intelectual vivido contudo intensamente; e também porque o movimento que se dá a meu ver é em direção não a um rompimento com a religiosidade, mas ao contrário, em sua direção, no sentido mundano, pagão, experimentado no amor; por isso, a escolha do termo oposto: conversão.15

14 COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019. 15 Nota 80. In: Op. cit., p.35. 16

Essa religiosidade sui generis pode ter sido para Vinicius aquilo que Schlegel imaginara para os alicerces da poesia de sua época: uma “nova mitologia”. Expoente da primeira fase do Romantismo germânico, ele avaliou que a grandeza dos poetas da Antiguidade clássica era resultado de um “centro” do qual podiam se apoiar, o prodigioso mundo das antigas divindades. E que, para ocupar esse espaço então desguarnecido, os escritores deveriam agora se atentar, talvez, a algo congênere da Ideologia, ou àquele produto perceptível na obra dos “modernos mais antigos” — como Shakespeare — para o qual dá o nome de arabesco. Schlegel o define em sentenças como “simetria de contradições”, “eterna alternância de entusiasmo e ironia”, “forma mais antiga e original da fantasia”.16 A dimensão mítica ou religiosa que Vinicius oferece à experiência humana, isto é, ao amor, à amizade, às mais variadas relações do indivíduo no cotidiano social, sublinha uma particularidade basilar da perspectiva poética da qual ele se aproxima. Essa é a primazia dos valores. Do lado oposto, os mais “sóbrios” se preocupariam com a aproximação que ela pode guardar com o seu parente mais embaraçoso, o moralismo. No entanto, os valores do poeta, materializados na vida cotidiana ou nas formas literárias, longe de serem limitantes, reivindicam a exuberância da experiência, a pluralidade, a intensidade, as contradições — desde que direcionadas ou ainda submetidas a um reconhecimento de si mesmo por meio do interesse radical pelo Outro. E são tais os deslimites a serem representados a partir dessa profissão de fé, que sua poesia precisa conceber e combinar elementos do contraste mais extremo: o bem, o mal, o belo, o feio, o divino, o infernal, o sublime, o grotesco. O texto que se inicia opta por não incorporar aquela estrutura mais usual da exposição de uma tese, que separa os pressupostos teóricos, em uma primeira parte, da análise do objeto, em outra. No intento de torná-lo menos cansativo para o leitor, a teoria será entrelaçada à poesia, de modo, também, a privilegiar a argumentação. As discussões históricas apresentadas a respeito do conceito do grotesco servirão de linha condutora para a abordagem do fenômeno estético na obra poética de Vinicius de Moraes. Elas tomam como ponto de partida as pesquisas efetuadas por Wolfgang Kayser e Mikhail Bakhtin para, logo, estender-se em considerações de outros autores de grande importância quando tratamos do assunto. Alguns capítulos, na prática, tendem a imergir-se, ora mais na discussão, ora na análise de poemas. Às vezes, a permanência

16 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 513-36. 17 do discurso nas questões que buscam explicar esse conceito pode parecer demasiada; porém, devido à dificuldade da conceituação, e as divergências, e o acúmulo dos debates, ou ainda a natureza fascinante do fenômeno, tem-se o sentimento de que ela é oportuna. Dessa maneira, torna-se visível o volume de feições com as quais o grotesco é capaz de se apresentar; e sua natureza diversa está exposta de modo imperioso na poesia de Vinicius. Por esse próprio fato, seria imprevidente ocupar-se na distinção de todos os poemas que interessam em algum grau ao enunciado; mas é possível assinalar uma porção substantiva e representativa, a qual indique especificidades do poeta e dessa (des)ordem criadora.

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II. DE ROMA A HOLLYWOOD (W. KAYSER)

Uma espécie de pintura ornamental descoberta nas últimas décadas do século XV, no decurso das escavações empreendidas primeiramente em Roma e depois em outras regiões da Itália, consistia em inusitados hibridismos a partir de seres mitológicos como sereias e centauros, ou de meio-corpos humanos de pouca beleza que emergiam confusos do reino vegetal; uma série de motivos até então estranhos que tomavam especialmente as ruínas do Domus Aurea — o palácio de festas que Nero construiu após o grande incêndio de 64 d.C. Como aponta Wolfgang Kayser (1906-1960), grotesco e os vocábulos que lhe correspondem em outras línguas são empréstimos tomados da língua italiana: derivações de grotta (gruta) que remetem, em maior ou menor grau, a composições semelhantes àquelas. Kayser menciona os escritos de Vitrúvio (I a.C.) em De Architectura Libri Decem que descrevem aquela arte tão peculiar ainda em sua própria época de elaboração: “gavinhas que se enroscam e se desenroscam, e de cuja folhagem brotam por toda parte animais (de modo que pareçam suspensas as diferenças entre plantas e animais)”. Ele não compreendia por que, aos retratos do mundo real, os artistas preferiam “pintar monstros nas paredes” e como podia “uma frágil e delicada trepadeira carregar sobre si uma figura sentada, e como podem nascer de raízes e trepadeiras seres que são metade flor, metade figura humana”.17 A maior novidade residia no fato de estarem anuladas neste mundo as ordens da natureza. Vejamos, a propósito da descrição vitruviana, excertos do poema “O escravo”, de Forma e Exegese (1936), para que prossigamos em seguida:

Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido Fui ficando nodoso e áspero e começou a [escorrer resina do meu suor E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar. Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha

17 VITRÚVIO In: KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 17-8. 19

E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma [estranha litania me fascinava. Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz Quis avançar sobre os tentáculos das raízes [que eram meus pés Mas o vale desceu e eu rolei para o chão (...) Aqui eu estou parado, preso à terra, escravos dos [grandes príncipes loucos. Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu. É este o misterioso reino dos ciprestes Que aprisionaram os cravos lívidos e os [lírios pálidos dos túmulos E quietos se reverenciam gravemente como uma [corte de almas mortas. Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta A conversa do meu destino nos gestos lentos dos [gigantes inconscientes Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...18

Como eixo imagético deste poema, tem-se a metamorfose do sujeito lírico em criatura híbrida, humano-vegetal; ele experimenta a transmutação de si mesmo, da própria textura, de sua consistência; e tão logo percebe o seu suor, que se constitui em resina, vê que “as raízes eram tentáculos e eram seus próprios pés”. Também a subversão da gravidade, ou da fixação da ordem no espaço, é retratada, dado que, mesmo hirto e enraizado, o poeta se precipita: “o vale desceu e eu rolei para o chão”. Desse modo, chega ao “misterioso reino dos ciprestes”, onde vê “coisas que mente humana jamais viu”; são eles representados como figuras monstruosas: “grandes príncipes loucos”; “gigantes inconscientes”; inclinam-se ao vento, mas, para o poeta, “se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas”. Estas árvores ou arbustos coníferos foram, desde muito, símbolos da vida, da morte e da eternidade; Chevalier e Gheerbrant ensinam que, para gregos e romanos, os ciprestes estavam “em comunicação com as divindades do inferno”; que são árvores “das regiões subterrâneas”, associadas por isso mesmo “ao culto de Plutão, deus dos infernos”; e

18 MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 99-104. Obs.: Algumas pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso, incorporadas nesta citação. MORAES, Vinicius de. O escravo. Antologia poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 30-2. 20 costumam a ornar cemitérios”.19 Vinicius elabora imagens que parecem despidas de qualquer paradigma no intuito de representar o obscuro e o indizível de sua mente; mas elas, na verdade, derivam de uma tradição longeva — redescoberta naquelas manifestações pictóricas. Eram ornamentos que diferiam dos ideais estéticos predominantes, o que não impediu que um novo estilo neles inspirado se difundisse. Tornou-se mesmo popular, além de merecer destaque entre as obras mais famosas e curiosas do Renascimento, como os grotescos de Rafael Sanzio, que cobriram o forro e os pilares das loggie papais, as gravuras de Agostino Veneziano ou as cinco cabeças de Leonardo da Vinci. A preservação de lugares como o “Parque dos Monstros”, na região do Lácio, serve-nos também para exemplificar a grande influência do estilo ao longo de todo o século posterior às descobertas. Os artistas da maniera, na transição entre a arte renascentista e a barroca, entusiasmavam-se igualmente pelos grotescos, pelos sogni dei pittori, como ensina Anatol Rosenfeld. É o caso de Emanuele Tesauro, que sugeria ao artista e ao poeta que estabelecessem ligações entre os fenômenos mais desencontrados, como ocorre no sonho e na loucura, antevendo em alguma medida, inclusive, a teórica surrealista: “um caranguejo, por exemplo, agarrando uma borboleta ou um escorpião abraçando a lua”.20 Aquela concepção estética, todavia, é mais antiga que o seu nome. Ela já ocorrera na arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga, ou mesmo em manifestações poéticas gregas. Constatou-se logo que os grotescos não eram autóctones de Roma, e que lá chegaram relativamente tarde, por volta da época da transição para o império. A possibilidade mágica de uma arte que pudesse unir conceitos e imagens antagônicas servira sobretudo de eixo à cosmologia de muitas religiões primitivas, ao imaginário medieval e ainda de épocas proximamente posteriores. Por sua vez, a palavra grottesco para denominar o novo estilo ornamental foi aceita em diversos países a partir do século XVI, inicialmente como substantivo, ou seja, como designação fixa de obras que emulavam as manifestações que se haviam revelado naquelas grutas. Pouco a pouco, surge também o adjetivo, que passa a remeter às misturas do humano com o animalesco, à representação de uma natureza em desordem e, especialmente, à realização do monstruoso.

19 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p.250. 20 ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1985, pp. 64-5. 21

Ao que se sabe, foi Montaigne quem primeiro utilizou o termo de modo a retirá- lo das artes plásticas, sua circunscrição original, para introduzi-lo no campo da arte literária. Ele se referiu ao conjunto de seus próprios Ensaios (1580) como algo sem muita ordem ou lógica:

Contemplando o trabalho de um pintor que tinha em casa, tive a vontade de ver como procedia. Escolheu primeiro o melhor lugar no centro de cada parede para pintar um tema com toda a habilidade de que era capaz. Em seguida encheu os vazios em volta com arabescos, pinturas fantasistas que só agradam pela variedade e originalidade. O mesmo ocorre neste livro, composto unicamente de assuntos estranhos, fora do que se vê comumente, formado de pedaços juntados sem caráter definido, sem ordem, sem lógica e que só se adaptam por acaso uns aos outros [e cita Horácio]: “o corpo de uma bela mulher com uma cauda de peixe”.21

Kayser descreve como o complexo de significados do termo grotesco foi se realizando em razão do seu emprego como adjetivo. Ele observa que “os adjetivos são os grandes perturbadores da ordem nas línguas”; sua inerente função valorativa, interpretativa, é atualizada de modo contundente. Eles se desprendem muitas vezes de sua proveniência e perdem por inteiro o vínculo com o objeto concreto: “o cavalheiresco não morreu com a cavalaria, o pitoresco é algo que ainda não se coloca diante dos olhos como pintura e a grandeza dantesca pode ser atribuída a uma obra que não proceda de Dante”.22 O estudioso verifica que a palavra é utilizada por escritores do século XVII já com um nexo mais amplo, e faz um apanhado de como os dicionários se lhe referiam à época. As definições flutuavam entre os sinônimos do que fosse ridículo, bizarro, extravagante; o conceito passava por um processo de esterilização que o

21 MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.91. Obs.: No texto em francês, o escritor utiliza os seguintes termos: “...sans crotesques et corps monstrueux, rappiecez de divers membres, sans certaine figure, n’ayants ordre, suite ny proportion que fortuite”. Um tanto diferente da tradução de Sérgio Milliet, é a de Júlia da Rosa Simões: “...e o vazio em volta ele o preenche com grutescos, que são pinturas extravagantes que só têm graça por sua variedade e estranheza. O que são também estes ensaios, na verdade, senão grutescos e corpos monstruosos, remendados com diversos membros, sem forma nítida, não tendo ordem, sequência nem proporção que não fortuitas?” (MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: Da amizade e outros textos. Porto Alegre: L&PM , 2017, p.35). O receio dos tradutores em utilizar o vocábulo português “grotesco” parece resultado tanto da distância entre o sentido extenso que ele adquiriu com o tempo e o sentido mais estrito aplicado por Montaigne, bem como a utilização de uma grafia de época do francês, crotesques em vez de grotesques. 22 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 25-6. 22 aproximava do burlesco e do cômico. O grotesco chegou a perder qualquer traço de temibilidade, de acordo com o Dictionnaire français, de Richelet (Amsterdam, 1680): “Plaisant, qui a quelque chose de plaisamment ridicule”.23 No entanto, é a partir da citação a Jacques Callot e da commedia dell’arte no Dictionnaire de 1620, de Philibert Monet, que uma nova determinação do grotesco, significativa para a história do termo, veio a se prenunciar. Um posterior ensaio de Denis Diderot fazendo menção aos “grotescos de Callot” foi traduzido por G. E. Lessing. O ensaio estaria no centro das discussões artísticas em meados do século XVIII.24 Três questões intrínsecas aos primórdios do Romantismo acabariam então por se confundir e se complementar. A primeira colocava sob suspeita o princípio de que a arte deveria representar apenas a beleza, o que fez emergir a ideia do característico ou mesmo da feiura como objeto de uma nova estética. A segunda procurava os contornos possíveis de uma definição para o conceito de grotesco. A outra levantava o inquietante problema das caricaturas, que já não podiam ser consideradas uma brincadeira sem importância, pelo que demonstravam de significativas e altamente substanciosas, como a série de gravuras em cobre de Hogarth. O poeta e escritor C. M. Wieland dividiu as caricaturas em gêneros que variavam de acordo com o seu caráter mais real ou mais fantástico: “as verdadeiras”, onde o pintor reproduz a natureza disforme; “as exageradas”, em que aumenta a deformação de seu objeto em razão de algum propósito especial; e “as grotescas”, inteiramente fantásticas, por meio das quais o pintor procura despertar “gargalhadas, nojo e surpresa pela audácia de suas criações monstruosas”. Diderot, pelo contrário, baseado nos grotescos de Callot, pretendia constatar que os primeiros tipos, ainda enraizados na realidade, serviriam de modelo para uma definição conceitual do grotesco.25 Ao pensarmos em representação caricatural na obra de Vinicius de Moraes, vêm-nos de imediato dois poemas: “Carta aos ‘Puros’” e “As mulheres ocas”. Apesar de figurarem no livro mais bem-humorado do poeta, Para viver um grande amor, eles evocam, quando muito, um estreito riso de concordância. Há em ambos os textos um hibridismo que não se dá entre seres de reinos distintos, mas entre a figura humana e os objetos materiais inanimados, sem vida, isto é, composições que rebaixam um tipo específico de indivíduo à esfera das coisas, caracterizado por seu estilo de vida e suas

23 “Agradável, que tem algo agradavelmente ridículo”. (Tradução do autor.) 24 KAYSER, Wolfgang Johannes. Op. cit., pp. 26-7. 25 Op. cit., p.30. 23 relações sociais. E então, os homens que se dizem “Puros” são constituídos de nylon, de sangue incolor, de neon, são extraordinariamente rarefeitos; as “mulheres ocas” são inorgânicas, estátuas de talco, possuem hálito de champagne, pernas de salto alto, pele fluorescente, rostos de opala, olhos cromados e uma máscara de cal.

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros E em cujos olhos queima um lento fogo frio Vós de nervos de nylon e de músculos duros Capazes de não rir durante anos a fio.26 * Nós somos as inorgânicas Frias estátuas de talco Com hálito de champagne E pernas de salto alto. Nossa pele fluorescente É doce e refrigerada E em nossa conversa ausente Tudo não quer dizer nada.27

Kayser observa que, desde a descoberta dos ornamentos em Roma, faz parte da estrutura do que se chama de grotesco esses processos persistentes de dissolução — a mistura de domínios que para nós estavam separados, a supressão da estática, a perda da identidade, a distorção das proporções etc. E afirma que, no entanto, nos deparamos agora com novas dissoluções — como essas acima —, capazes também de quebrar a ordem lógica de nossa orientação no mundo: “a suspensão da categoria de coisa, a destruição do conceito de personalidade”.28 Entre os quarenta e um poemas inéditos lançados em sua Antologia poética,29 Vinicius de Moraes nos apresenta uma peça muito peculiar, composta de maneira a simular um pequeno roteiro de cinema: “História passional, Hollywood, Califórnia”.30 O poema é composto por uma sequência de quartetos, cenas que reúnem os clichês de um estilo de vida muito representado nas telas, sobretudo em meados do século XX. Desse modo, um homem de trinta e poucos anos, casado, dentro de um carro

26 Carta aos “Puros”. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 59-61. 27 As mulheres ocas. Op. cit., pp. 102-4. 28 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.159. 29 Rio de Janeiro: A Noite, 1954. 30 Op. cit., pp. 246-9. 24 conversível em Hollywood, trai a esposa promovendo todos os caprichos de uma loura de vinte anos. Tudo regado a cigarros, caríssimos passatempos e alguma angústia que cresce na medida em que todo o esforço do protagonista se demora a reverter-se em consumação sexual. Até que, depois de um jantar extravagante e um pedido desesperado de casamento, ele se vê de frente a mais uma negativa e inicia uma discussão com palavras desconexas. Algo então se lhe apossa de forma que o desvario é o único e irreprimível resultado:

Me pedes para te levar a comer uma salada Mas de súbito me vem uma consciência estranha Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim E odeio-te de ruminares assim a minha carne.

E então fico possesso, dou-te um murro na cara Destruo-te a carótida a violentas dentadas Ordenho-te até o sangue escorrer entre meus dedos E te possuo assim, morta e desfigurada.

Depois arrependido choro sobre o teu corpo E te enterro numa vala, minha pobre namorada... Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo E seis meses depois morro na câmara de gás.

Em uma de suas incursões na tentativa de definir as faces do grotesco, o estudioso alemão se utiliza de um conceito moritziano de id, um tanto distante do conceito psicanalítico. “Para Kayser, id representa algo mais existencialista do que freudiano; id é a força estranha que governa o mundo, os homens, suas vidas e seus atos”, interpreta Mikhail Bakhtin.31 No caso da demência, o elemento humano apareceria transformado em algo sinistro, uma vez que um id, “um espírito estranho, inumano, se houvesse introduzido na alma”; o encontro com a loucura, pois, seria “uma das percepções primigênias do grotesco que a vida nos impinge”. O fenômeno, por consequência, acabaria em último caso transportando a questão, da obra em si mesma, para o que poderíamos chamar de “poética da criação”, uma atitude correspondente ao artista que, ao lado dos sonhos, disporia da loucura ou da quase-loucura como um

31 A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43. 25 instrumento óptico: “o mundo grotesco causava a impressão de ser a imagem do mundo vista pela loucura”.32 Os primeiros versos de “História passional, Hollywood, Califórnia” podem induzir o leitor, por um minuto, a acreditar estar à frente de um grande galanteio, de uma promessa arrebatada — devido à fala diretamente voltada à interlocutora e a uma utilização copiosa do tempo verbal no futuro. Contudo, partindo de uma descrição expressiva dos detalhes, até chegarmos ao verso “E há uma cena em que vendes um maço a George Raft”33, a compreensão dos intentos do poeta, em diálogo permanente com a arte cinematográfica, faz-se cabal.34 No entanto, é a alternância virtuosa de um grande número de figuras de linguagem o aspecto formal mais chamativo no poema. Metonímias de todo o feitio, metáforas, comparações, hipérboles, prosopopeias tornam sua leitura uma experiência do imprevisível e, muitas vezes, do cômico. É aqui que reside uma questão de critério da qual não podemos nos eximir quando tratamos do fenômeno do grotesco especificamente na poesia. Estamos diante de um gênero artístico de grande teor simbólico, figurativo; o que é dito se refere frequentemente ao que não se diz, e assim se torna capaz de expressar um campo mais vasto da totalidade do que em outro nível ou outra modalidade de linguagem. Se considerarmos, pois, toda a figura de linguagem que ponha paralelo entre o objeto representado e outro de natureza distinta como uma manifestação do grotesco, estaremos na verdade esgarçando vulgarmente os limites do conceito em vez de contribuir com ele, bem como obscurecendo os esforços teóricos já desenvolvidos em seu favor. Não parecem representar estranhos hibridismos imagens como “tua coxa rija como a madeira”, “teus dois mil dentes de esmalte” ou “teu seio de arame”, presentes no poema. Tampouco parecem caricaturas, dado que, se há deformidades, elas transmitem ao leitor mais precisamente a imagem do objeto original do que a de sua figuração; isto é, transmitem uma constante, sem desordenar qualquer categoria de seu mundo conhecido. São construções com poder de síntese, destreza, graça, mas não soam grotescas. Por outro lado, a começar da antepenúltima estrofe, algum elemento alheio às nossas categorias faz com que a namorada se pareça uma cabra; toma de assalto o protagonista e o arremessa à loucura. E então um assassinato se realiza a dentadas e macabros manuseios, de maneira que a vítima

32 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.159. 33 George Raft (1895-1980) foi um ator americano de grande sucesso; tornou-se um dos astros mais bem pagos do cinema após o lançamento de Scarface (1932). 34 Destaque-se o profundo envolvimento de Vinicius de Moraes com o cinema. 26 termine desfigurada. Em seguida, o assassino chora arrependido sobre o corpo, ou seja, a “consciência estranha” já lhe deixa no mundo reconhecível. Sob qualquer aspecto ou abordagem que se exija, experimentamos aqui a manifestação do grotesco. Qual seria, portanto, a ideia que nos falta para tentarmos delimitar o fenômeno, de acordo com os estudos de Kayser? Já mencionamos aqui que o encontro com a loucura pode transportar a questão: (1) do objeto de arte em si mesmo para (2) o processo criativo do artista. De mesmo modo, é possível deslocar a questão para a direção contrária, ou seja, para (3) a recepção deste objeto artístico pelo público. E logo chegamos aos três domínios para os quais apontariam o grotesco, necessários para uma noção estética fundamental. É evidente que nuances podem sempre se relativizar em algum grau, como expõe o próprio teórico:

Quem não está familiarizado com a cultura dos Incas pode tomar por grotescas certas estátuas desta origem, mas aquilo que nos dá a impressão de ser uma careta, um demônio sinistro, de uma visão noturna e, portanto, de ser portador de um conteúdo de horror, desconcerto e angústia perante o inconcebível, talvez tenha, como forma familiar, o seu lugar determinado num nexo significativo perfeitamente compreensível. Mas enquanto nada soubermos a este respeito, assiste-nos o direito de empregar a palavra “grotesco”.35

O grotesco seria recebido como se nós nos deparássemos com um mundo alheado, tornado estranho. Como acontece no longa-metragem de Roman Polanski, O bebê de Rosemary (1968), tanto a personagem de Mia Farrow quanto o espectador do outro lado sentem que não podem viver naquele mundo desarticulado; “não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver”.36 É preciso, no entanto, que estejamos de posse do conhecido e do familiar para que sobrevenha a surpresa do estranhamento, do alheado. O repentino e a surpresa estão em sua essência; o mundo do grotesco “é o nosso mundo — e não é”; “tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo, confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais”.37 Em Vinicius, com o poema “História passional, Hollywood, Califórnia”, bem como em Polanski, é uma atmosfera insuspeita aquela

35 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.156. 36 Op. cit., p.159. 37 Op. cit., p.40. 27 construída antes que as categorias de nossa orientação comecem a falhar e deixar de nos servir. Por isso, de acordo com Wolfgang Kayser, os contos de fadas não comporiam necessariamente um mundo alheado, apesar de representarem universos estranhos e exóticos: é preciso que se nos revele aquilo que é familiar. Sua obra O grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957) elabora um panorama extenso em torno das ocorrências do grotesco, tanto na arte como na crítica. Suas reflexões partem da etimologia do termo e sua ligação com os ornamentos dos séculos XV e XVI, chegando até a literatura e as artes plásticas contemporâneas, passando por considerações sobre a pintura de Bosch, Brueghel, as caricaturas de Callot, a Commedia dell’Arte, o teatro do Sturm und Drang, a ficção romântica e muitos trabalhos do século XIX e início do século XX. Sua obra tem importância central para a discussão do conceito. As manifestações reconhecidas pelo teórico apontam para o aspecto, em algum grau, lúgubre e sinistro. Conquanto sejam cômicas, elas não seriam observadas com leveza devido à natureza incomum e contraditória; encontra-se nelas um elemento assustador diante da instabilidade, da falta de fundamento seguro que é sentida de súbito — o id fantasmal seria uma força manipuladora do homem e do mundo, uma espécie de titereiro invisível que submete o universo ao desconforto da desordem.

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III. ARIADNE E OS SOGNI DEI PITTORI

Dedicado intérprete dos primeiros livros de Vinicius, Octavio de Faria entrevia em alguns poemas de Forma e exegese (1935) a possibilidade de que o poeta, no futuro, rompesse de vez seus vínculos com a terra e com os sentimentos humanos, ao “encaminhar-se para um mundo de essências”. Segundo o escritor, no entanto, o que estava por vir com Ariana, a mulher (1936) seria “o mais puro e legítimo grito do humano, do integralmente humano”; Vinicius teria nos dado uma reafirmação de suas qualidades fundamentais e a “garantia de que jamais as atrações etéreas dos céus mortos poderiam ser bastante fortes para separá-lo da terra e de suas emoções básicas”.38 Recentemente, Bruno Cosentino apontou que o primeiro e o último verso deste poema-livro, semelhantes,39 revelam a solidão aguda do poeta, embora a peregrinação onírica em busca de Ariana tenha ressignificado aquelas palavras: “Trata-se, como disse, da passagem de uma solidão experimentada na figura do um para uma solidão experimentada na figura do dois, vivida religiosamente, ainda que fora de instituições e dogmas”.40 A leitura segue em conformidade com o seu entendimento de que Vinicius passou por um processo de conversão a uma religiosidade mundana — experimentada no amor. Nesse sentido, Ariana, a mulher seria emblemático ponto de inflexão na obra do poeta. De modo geral, os estudos acerca deste poema registram a ascensão estética da poesia de Vinicius e, no campo semântico, o prenúncio de uma reorientação — rumo a um escopo mais conectado com a realidade material; o poeta já ensaiava, ali, substâncias presentes no lirismo das Cinco elegias (1943). Mas um dado central para a sua inteira apreciação resta ainda hoje por ser dito explicitamente: “Ariana” é uma das variantes, em língua portuguesa, do nome da figura mitológica — Ariadne, ou Ariadna;

38 FARIA, Octavio de. A transfiguração da montanha. In: MORAES. Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, pp. 635-47. 39 Anexo I, pp. 134-7. 40 COSENTINO, Bruno. O andrógino meigo e violento: amor e erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2019, p.47 (grifo nosso). 29 e, no conjunto de imagens que pode evocar, incluem-se, numerosos, os elementos dionisíacos — em função de determinados mitos que envolvem a presença da filha de Minos e que guardam uma relação direta com Dioniso. Ariana, aqui, não é somente a metonímia de um primordial feminino (“a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem- amada!”); e, absolutamente, não possui qualquer ligação com a “mulher de Áries, do planeta Marte”;41 mas é a amante assinalada na mitologia — aquela que passou a carregar todo o complexo de significados de uma mortal-imortal, após ganhar, nos percursos do amor, os atributos divinos ofertados pelo companheiro. Sem a consciência desse dado central, a leitura fatalmente se entrelaça, em algum momento, nos embaraços dos símbolos e de um aparente despropósito de seus componentes grotescos. A transformação perceptível na obra poética de Vinicius de Moraes, portanto, passou por aquela que é um ponto de contato entre os céus e a terra. Esta aventura onírica, vivenciada por um poeta solitário “na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno”,42 faz lembrar que, no século XVI, grotescos ornamentais ganharam a alcunha de sogni dei pittori (sonhos dos pintores) — tendo em vista as formas de invenção livre, como nos sonhos. A licença para que os artistas fossem além dos padrões conferidos por postulados clássicos, ultrapassando, por meio da fantasia e da desordenação do mundo, a mimese do verdadeiro, havia fixado o vínculo substancial entre o grotesco e o onírico, a subversão das leis naturais e a criação de monstros.

Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das [paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua [fixidez noturna/ (...) Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua [deglutição monstruosa mas para mim era como se [ela estivesse morta Paralisada e fria, imensamente erguida em sua [sombra imóvel para o céu alto e sem lua43

41 JAFFE, Noemi. Uma poesia subjuntiva. In: MORAES, Vinicius de. Forma e exegese e Ariana, a mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.114. 42 MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936. 43 Op. cit., pp. 5-6. Obs.: Algumas pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso, incorporadas nas citações. MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Antologia poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 65-71. 30

Antes das considerações mais circunscritas ao poema, cabe aqui levantar algumas histórias sobre a figura mitológica de Ariadne. Seu pai, o poderoso rei de Creta, submetia os atenienses a tributarem, todos os anos, sete jovens e sete donzelas para que fossem devorados pelo Minotauro — uma criatura terrível, com corpo de homem e cabeça de touro, que se abrigava no complexo labirinto construído por Dédalo.44 Foi então que Teseu — filho de Egeu, rei de Atenas —, um jovem com espírito de herói e desejoso de se destacar como Hércules, apresentou-se voluntariamente para ser uma das vítimas do tributo, com o objetivo improvável de liquidar a criatura. Ao chegar em Creta, os jovens foram exibidos ao rei Minos; sua filha, Ariadne, que estava presente, acabou se apaixonando por Teseu. “A jovem deu- lhe, então, uma espada, para enfrentar o Minotauro, e um novelo de linha, graças ao qual poderia encontrar o caminho. Teseu foi bem-sucedido, matando Minotauro e saindo do labirinto”.45 O herói parte com a filha de Minos de volta a Atenas, mas ela não chega com Teseu ao seu destino. O desaparecimento de Ariadne é controverso se compararmos algumas das distintas versões que nos servem de referência. Na Biblioteca de (pseudo-) Apolodoro46 consta que, no caminho, ela teria sido raptada por Dioniso, que a levou a Lemnos, onde tiveram quatro filhos:

Por la noche llegó a Naxos en compañía de Ariadna y los muchachos del tributo. Allí Dioniso se enamoró de Ariadna y la raptó y habiéndosela llevado a Lemnos, se unió con ella y engendró a Toante, Estáfilo, Enopión y Pepareto.47

A breve menção ao mito na Odisseia de Homero acaba perturbando a cronologia mais usual, uma vez que sugere um envolvimento antecedente entre Ariadne e Dioniso, resultando em um fim desventuroso:

44 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 45 Op. cit., p.154. 46 APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013. Obs.: Apolodoro de Atenas (180a.C.-120a.C.) foi um erudito grego, historiador e gramático. A eminência de seu nome deu origem a várias imitações ou atribuições errôneas. A Biblioteca era tradicionalmente atribuída a ele, mas muitos estudiosos contradizem essa autoria. 47 Op. cit., p.114. 31

Vi também Fedra, Prócris e a bela Ariadne, filha do temível Minos; Teseu levara esta de Creta um dia para o outeiro de Atenas sagrada, mas não chegou a desfrutar o seu amor, porque Ártemis a matou antes, em dia em meio às ondas, por denúncia de Dioniso.48

A história compreendida por Thomas Bulfinch foi mesmo a de um abandono proposital, e remete ao texto de Ovídio (“logo o descendente de Egeu, levando consigo a filha de Minos,/ dá à vela para Dia49 e, cruel, nessa praia abandona sua companheira./ É Líber50 quem socorre e ampara a abandonada queixosa”).51 Essa é a versão mais influente e parafraseada até os nossos dias.

Levando, então, Ariadne, ele regressou a Atenas, juntamente com os companheiros salvos do monstro. Durante a viagem, pararam na Ilha de Naxos, onde Teseu abandonou Ariadne, deixando-a adormecida.52 A desculpa que deu para tratar com tanta ingratidão sua benfeitora foi que Minerva lhe apareceu num sonho ordenando-lhe que assim o fizesse. (...) Despertando e vendo-se sozinha, Ariadne entregou-se ao desespero. Vênus,53 porém, apiedou-se dela e consolou-a com a promessa de que teria um amante imortal, em lugar do mortal que tivera. (...) Enquanto Ariadne lamentava seu destino, Baco encontrou- a, consolou-a e desposou-a. Como presente de casamento, deu-lhe uma coroa de ouro, cravejada de pedras preciosas que atirou ao céu quando Ariadne morreu. À medida que a coroa subia no espaço, as pedras preciosas foram se tornando mais brilhantes até se transformarem em estrelas (...).54

O romance entre Ariadne e Dioniso serviu de inspiração a artistas de muitos gêneros desde a antiguidade, o que se mostra em esculturas ou nas pinturas ornamentais de vasos e painéis que sobrevivem já sem autoria. Posteriormente, nomes como Tiziano

48 HOMERO. Odisseia. Trad. Jaime Bruna. Clássicos Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2010, p.180. 49 Antigo nome da Ilha de Naxos. 50 Divindade arcaica da Itália central que presidia à cultura da vinha e à fertilidade dos campos. Foi identificada com Baco: deus equivalente, na mitologia romana, a Dioniso, da mitologia grega. 51 OVÍDIO. Metamorfoses. Ed. bilíngue. Trad., intr., notas Domingos Lucas Dias. Apres. João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2017, p.427. 52 Uma das mais belas esculturas da Itália, a Ariadne deitada do Vaticano, representa esse episódio. (Nota de Bulfinch.) 53 Deusa equivalente, na mitologia romana, a Afrodite, da mitologia grega. 54 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 154-66. 32

Vecellio, Sebastiano Ricci, Angelika Kauffmann e Eugène Delacroix perpetuaram a ideia de um casal exitoso e muito peculiar — dado todo o simbolismo dionisíaco, aparentemente em oposição diametral ao do casamento cristão. Nietzsche menciona Ariadne e Dioniso muitas vezes ao longo de sua obra, direta ou indiretamente;55 e considera o deus grego, sob vários aspectos, uma espécie de modelo filosófico a ser alcançado pelo indivíduo; grande parte de seus escritos poéticos são realizados supostamente na forma dos ditirambos, que eram manifestações situadas nos primórdios da poesia, executadas por um canto coral liderado por um corifeu, sempre em honra e culto a Dioniso. Muitos elementos levam a acreditar que, na viagem onírica em busca de Ariana, a perspectiva do poeta filia-se mais aos domínios de Dioniso do que àqueles do herói Teseu. A começar que a divindade havia sido originalmente, antes de incorporar a extensão de significados que lhe são comuns, “o deus da vegetação”; conectado à seiva da vida que flui nas plantas, nas flores primaveris, Dioniso representava a energia natural que leva aos frutos a maturidade plena; por outro lado, poderia ele tomar igualmente as formas dos “demônios da vegetação”, como a do bode, a do touro selvagem ou mesmo as das desventuras do inverno. É o que nos ensinam as investigações de Walter Friedrich Otto.56 Por isso, em nome da divindade, o esquartejamento e a ingesta desses animais deveria cumprir o objetivo de se apropriar do jogo da vida: aos homens, oferecer a vitalidade e a potência sexual; às mulheres, a força e as graças da natureza prolífica, ao mesmo tempo em que elas dedicavam essa mesma força à terra, à natureza capaz de conceber, de dar à luz.57 No poema, os fenômenos que introduzem o personagem na busca por Ariana passam por quatro recortes oníricos submergidos nessa esfera semântica dionisíaca: 1) a entrada invisível de uma Natureza morta-viva através das paredes da sala; 2) a percepção de que o impulso sexual, inerte pelo medo, poderia trazê-la de volta à vida plena; 3) a penetração “no ventre quente de uma campina de vegetação úmida” — e a consequente percepção de que a Natureza estava “profundamente viva” e de que a morte, na verdade, só residia nele próprio; 4) a impotência e a decorrente rejeição —

55 Ver o ensaio “Mistério de Ariadne segundo Nietzsche”, de Gilles Deleuze. Trad. Peter Pál Pelbart. In: Cadernos de Nietzsche. 20, 2016. 56 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press, 1965. 57 Op. cit., pp. 130-1. 33

“traição” — por parte da Natureza, que o envelhece eras — ao menos enquanto ele não souber encontrar a “Amada salva das águas”:

Com Ariana, a essência da mulher dionisíaca se eleva aos máximos cumes. Ela é a imagem perfeita da beleza que, tocada pelo amado, confere imortalidade à vida. E, no entanto, essa beleza deve passar por uma estrada cujos terminais inevitáveis são o lamento e a morte. Ela é explicitamente denominada a esposa de Dioniso. E, bem como Sêmele, mãe do deus grego, apesar de ter nascido mortal, como bem-amada foi lhe dado compartilhar com ele a imortalidade. Por amor a Dioniso, disse Hesíodo,58 Zeus concede a ela a vida eterna e a juventude eterna.59

O poeta parte para a sua longa “peregrinação” e tenta falar com a própria terra, de joelhos: “Sou eu, Ariana...”. Porém, “eis que um grande pássaro azul” vai até ele e lhe canta: “Eu sou Ariana!”. Mais que uma procura de algo que vai além das formas físicas, e que possui um inegável caráter divinal (“Quem és que te devo procurar em toda a parte e estás em cada uma?”), tratamos de um olhar em busca de algo que ainda não se conhece, e que, ademais, se entrelaça aos devaneios e delírios do sonho. De imediato nos ocorre que, ainda nos primeiros anos de sua fase adulta, Dioniso foi castigado pela rainha dos céus, Hera, que o enlouquece; e fez com que ele passasse a vagar errante, desvairado e alucinado, por muitas partes do mundo. Filho de uma relação adúltera entre Zeus e Sêmele, Dioniso havia sido transformado por Zeus em um cabrito e ofertado às ninfas niseanas, para que ele pudesse se esconder do ciúme furioso de Hera; mais tarde, ela o reconhece no vinhedo e o acomete com o castigo.60 Foi somente na Frígia que a deusa Reia curou a loucura de Dioniso e o instruiu em seus ritos religiosos; ele então aponta sua peregrinação em direção à Ásia, ensinando os povos a cultivar a vinha:

58 “Dioniso, o de dourados cabelos, fez da loura Ariadne, filha de Minos, sua florescente esposa. E o filho de Crono tornou-a imortal e jovem para sempre” (HESÍODO. Teogonia; Trabalhos e dias. Trad. Sueli Maria de Regino. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2014, p.64). 59 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press, 1965, p.181. (Tradução do autor.) 60 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, pp. 161-2; e BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis, lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012, pp. 96-7. 34

Dioniso fue el que descubrió la vid y, enloquecido por Hera, se marchó errante por Egipto y Siria. Primero lo acogió Proteo, rey de los egipcios; después llegó ante Cibeles, de Frigia, y allí, purificado por Rea, aprendió los misterios, tomó de aquella un vestido y se fue deprisa contra los indios a través de Tracia.61

O poeta cruza a campina, galga um monte, passa por muitos lugarejos acessos na noite. E três aspectos distintos presentes na composição vão se entrecortando, se mesclando, de maneira a ser cada vez mais difícil separá-los: a narrativa poética (“eu caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana”), a imagem comparativa (“era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava”) e o grotesco narrado (“os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo”). O enredamento desses aspectos — se é dada a licença para assim distingui-los — é de uma profusão criadora que acaba oferecendo ao leitor a mesma sensação de estranheza, de vulnerabilidade, do iminente imprevisível daquelas experiências oníricas como a representada no poema. A respeito desse tipo de composição, Octavio de Faria, ao comparar os poemas de O caminho para a distância com os de Forma e exegese, observou que a poesia anterior se limitava a registrar “os sentimentos que o poeta conseguia isolar e dar nome”; e que, no entanto, nos poemas mais recentes, os sentimentos eram traduzidos em “novos termos poéticos”, “tão diferentes, tão pouco comuns” que a impressão era a de que “o poeta está sendo vítima, senão de alucinações, pelo menos de uma série de visões — estranhas visões que nos levam com ele a um mundo desconhecido, absolutamente inesperado”.62 Questionados sobre onde Ariana poderia ser encontrada, os pescadores mostravam o peixe; os ferreiros, o fogo; as mulheres, o sexo. Aqui o simbolismo pode caminhar para muitas direções, que vão, desde a possibilidade de um profundo entendimento dos significados por parte daqueles habitantes do caminho, até a completa ignorância dos termos — de modo a reduzir a linguagem à tentativa de um gesto satisfatório. Seriam, pois, o peixe, o fogo, o sexo, metonímias do sentido fundamental da vida para cada um daqueles indivíduos? As repetidas respostas gestuais a uma pergunta proferida em voz alta e timbre atormentado intensificam a atmosfera quimérica

61 APOLODORO. Biblioteca mitologica. Edición José Calderón Felices. Madrid: Akal, 2013, p.79. 62 FARIA, Octavio de. Dois poetas: Augusto Frederico Schmidt e Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Ariel, 1935, p.278. 35 da incursão. Porém, respondem bem menos que um só ruído do culto dionisíaco, agora na savana:

Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e [guizos batiam Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à [medida que eu penetrava na savana No entanto era como se o canto que me chegava [entoasse — Ariana!

As festas em honra a Dioniso eram comumente celebradas na Beócia e em Trácia por mulheres, matronas e virgens, que portavam seus tirsos63 e cantavam pelo regresso da divindade (nas Metamorfoses de Ovídio, ver VI, 587-600). Chegavam a acreditar que ele se fazia presente por meio das danças frenéticas e do vinho que tomavam.64 De acordo com Paul Foucart, festejou-se ao deus grego ainda no quinto século, a cada dois anos. E, conquanto os homens não fossem excluídos, eram as mulheres que se dedicavam em especial ao culto dionisíaco, no papel das Ménades — seguidoras e adoradoras de Dioniso. Usavam vestidos longos e coroas de hera, um tirso em uma das mãos e uma cobra domesticada na outra. À noite subiam a montanha e davam início a danças e corridas, ambas desordenadas, onde se ouviam címbalos, aulos e tambores; gritos de “evoé” e apelos apaixonados pela divindade eram sempre reiterados; os movimentos eram abruptos, especialmente o da cabeça jogada para trás, e contribuíam para lhes perturbar a razão; insensíveis à dor e à fatiga, o vigor teria sido multiplicado por dez pelo delírio divino — ora se jogavam no chão, ora disparavam atrás de Dioniso, cuja voz achavam que podiam ouvir; tomadas de fúria, cortavam em pedaços os animais que encontravam, e devoravam sua carne cheia de sangue.65 As Ménades, segundo algumas histórias mitológicas, eram lideradas por Ariadne que, inclusive, operava como guia para o seu coro.66 Segundo Maurício Horta, ao contrário do culto a outros deuses gregos, que sacralizava a ordem da natureza e dos homens — para além da crença religiosa, os

63 Bastões enfeitados com hera e pâmpanos, por vezes dotados de guizos, e rematados em forma de pinha. 64 HOYO, Javier del. Notas 558-9. In: HIGINO. Fábulas. Trad. Javier del Hoyo, José Miguel García Ruiz. Madrid: Editorial Gredos, 2009, p.222. 65 FOUCART, Paul. Le culte de Dionysos en Attique. Paris: Imprimerie Nationale, 1904, 23-4. 66 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press, 1965, pp. 186-7. 36 deuses seriam responsáveis por leis e costumes, bem como legitimavam as instituições e os aspectos da vida social e política —, as festas dionisíacas atuavam como um tipo diferente, oposto. Àqueles que estavam à margem da organização institucional da polis, como as mulheres e os escravos, o culto a Dioniso ofereceria uma libertação radical dessa ordem:

São derrubadas as barreiras entre homem e deus, natural e sobrenatural, humano e animal. Não há mais autocontrole valorizado pelos deuses. Nesse culto impera o delírio, a loucura da possessão, o êxtase religioso, e uma intimidade com o divino tão intensa que funde indivíduo e deus.67

Ou seja, em conformidade com o conceito kayseriano do grotesco, dos sogni dei pittori, o culto dionisíaco é um mundo alheado, do absurdo, da loucura; da fusão do humano com o vegetal, com o animal, dos hibridismos diversos; sua configuração é a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo.68 Lembremo-nos que, nessa direção, Walter Otto afirma que Ariana é uma Afrodite mortal; e que pertence à natureza dionisíaca que a vida e a morte, a mortalidade e a eternidade sejam misturadas umas às outras de maneira milagrosa naqueles que estão próximos do deus. Ele próprio é, afinal de contas, filho de uma mãe mortal; e, assim como Dioniso precisa suportar o sofrimento e a morte, as mulheres com as quais ele está mais intimamente ligado alcançam somente o estado de glória por meio de terríveis padecimentos.69 Com base nessa cosmologia, o poeta compreende que “só onde cabia Deus cabia Ariana”. Mas uma “ordem estranha” (e aqui novamente a desarticulação de uma ordem que se alheia, como na teoria de Kayser) faz com que ele represente o próprio ente antagônico, igualmente como a divindade poderia se transmudar, quando lhe aprouvesse, nos demônios que supliciam os seus domínios:

E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das [tocas e comiam os ratos

67 BOTELHO, J. F.; HORTA, M.; NOGUEIRA, S. Mitologia: deuses, heróis, lendas. São Paulo: Ed. Abril, 2012, p.95. 68 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 155-62. 69 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press, 1965, pp. 185. 37

Os porcos endemoninhados se devoraram, os cisnes [tombavam cantando nos lagos E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de [águias precipitadas E misteriosamente o joio se separava do trigo nos [campos desertos E os milharais descendo os braços trituravam as [formigas no solo E envenenadas pela terra decomposta as figueiras se [tornavam profundamente secas.

Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e [mulheres desposadas Umas diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram [cegas e paralíticas E os homens me apontavam as plantações estorricadas e [as vacas magras. E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as [crianças morriam E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e [sufocava as vacas magras.

Enquanto Deus é a representação do sublime, os demônios e o Diabo se tornam a do grotesco, expresso na bestialidade, nos apetites e na materialidade. Segundo a tradição antropomórfica, ele é dotado de traços humanos e animalescos. A bestialização opera o composto entre opostos, homem versus animal, e revela o arquétipo do Mal e da “descoberta do êxtase em todo o fenômeno, não importa quão naturalmente repugnante”.70 Seria bom observar que, no carnaval, o Diabo é festivo, representa a glutonaria, o riso e a licenciosidade expressos em sua configuração híbrida e em sua presença constante em farsas como figuras burlescas. Para Charles Baudelaire (1821- 1867), o riso seria uma “ideia satânica” porque viria “da ideia de sua própria superioridade”; e ainda nos conclama a observar, com base nos manicômios, que “o riso é uma das expressões mais frequentes e mais numerosas da loucura”.71

70 CROWLEY, Aleister. O livro de Thoth. São Paulo: Editora Madras, Anubis Editores, 2000, p.104. 71 BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Org. e trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2008, pp. 39-41. 38

Cerca de quatro décadas adiante ao lançamento de Ariana, a mulher, apresenta um poema, dividido em uma série de dez partes, cujos eu-lírico e interlocutor estão em posições trocadas caso façamos o paralelo com os versos de Vinicius: “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, em Júbilo, memória, noviciado da paixão.72 Tal se introduz do seguinte modo: “É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas./ Voz e vento apenas/ Das coisas do lá fora// E sozinha supor/ Que se estivesses dentro// Essa voz importante e esse vento/ Das ramagens de fora// Eu jamais ouviria”.73 Por sua vez, a voz no poema de Vinicius de Moraes é cercada de elementos dionisíacos, embora jamais tenhamos o nome da divindade em letras explícitas — mesmo porque tratamos da experiência onírica de um poeta em sua “sala deserta”, o eu-lírico fundamental, quando logo o silêncio faz pulsar uma “ordem de horror” que dispara a delirante sequência de imagens e símbolos. A figura plenamente designada, no entanto, é a de Ariana — que, contudo, não se torna suscetível às delimitações como persona ao longo do texto. Segundo Otto, seu nome vem de uma variante dialetal de Ariagne, utilizada em ornamentos dos vasos áticos e que se aplica muitas vezes junto ao predicado ἁγνη, em geral traduzido como “a santíssima”. Mas a palavra santa pode levar ao erro o leitor imerso na cultura cristã; tampouco é satisfatório traduzi-la como pura, uma vez que o nosso conceito de pureza dificilmente pode ser desligado das conotações morais. As palavras intangível e intacta aproximam- nos mais de seu real significado, mas com elas devemos pensar na intangibilidade de uma natureza aleijada do homem, tanto de seu aspecto bom como nocivo. O predicado está próximo do divino e, por isso, o conceito de intacta associa-se também ao que é digno de veneração.74 A despeito dos significados que lhe acercam, foi a designação, foi o nome de Ariana que ressoou em alguma medida, ao fim, nos sonhos do poeta — única substância tangível. E apenas o ressoar de seu nome fez com que a natureza reestabelecesse a aparência mais propícia às perspectivas e ao contento do poeta; o mesmo nome que o trouxe de volta à ordem reconhecível, perto dos velhos objetos amigos.

72 São Paulo: Massao Ohno, 1974. 73 HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.256. 74 OTTO, Walter F. Dionysus: myth and cult. Transl. Robert B. Palmer. Bloomington: Indiana University Press, 1965, pp. 182-3. 39

IV. ZABUMBAS NAS CAVEIRAS (M. BAKHTIN)

De acordo com o estudo de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre as influências populares nos romances de Rabelais — A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965) —, o verdadeiro significado do grotesco pode ser compreendido quando retornamos às festas públicas medievais e renascentistas, aos ritos e cultos cômicos especiais; aos bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias; à vasta e multiforme literatura paródica etc. Isto é, quando verificamos as formas e manifestações de uma parcela da cultura cômica popular, especialmente a cultura carnavalesca. Bakhtin se diz surpreendido ao deparar-se com as definições propostas por Wolfgang Kayser, devido ao tom profundamente lúgubre, terrível e espantoso do grotesco; e afirma que o grotesco na Idade Média e no Renascimento era impregnado da visão carnavalesca do mundo; e, consequentemente, esse mundo se libertava do que nele pudesse haver de terrível e assustador, tornando-o inofensivo, alegre e luminoso. Tudo o que, em outro momento, viria a ser motivo de espanto e terror transformava-se, no mundo carnavalesco, em alegres espantalhos cômicos. O medo seria então a expressão extrema de uma seriedade unilateral que, no carnaval, seria fatalmente suplantada pelo riso coletivo — ofertado pela absoluta liberdade que caracteriza o grotesco. Para tanto, o que é elevado, espiritual, ideal, abstrato, ou gravemente respeitoso, ou temível, sofreria o rebaixamento para um plano material e corporal, para os domínios da terra e do corpo. Ainda que esse processo levasse inevitavelmente o objeto rebaixado ao ridículo e à zombaria, às degradações, levava-o sempre, também, à aproximação e à comunhão com a terra, concebido como “um princípio de absorção” e “de nascimento”. Segundo o teórico russo, essas degradações não continham apenas um valor negativo, destrutivo, mas também positivo, regenerador: “é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo positivo, no qual se realizam a concepção e o

40 nascimento, e onde tudo cresce profusamente”.75 Bakhtin considera que o expediente degradante na paródia típica de seus contemporâneos é exclusivamente negativo e carece dessa ambivalência regeneradora; o riso carnavalesco, por outro lado, seria ao mesmo tempo burlador e alegre, sarcástico e cheio de alvoroço; é aquele que nega e afirma, amortalha e ressuscita, simultaneamente; sobretudo, um patrimônio do povo, universal, capaz de rir de todos e, inclusive, de si mesmo (um riso geral), já que o mundo inteiro se tornaria cômico, depreendido em seu aspecto jocoso. Às imagens referentes ao orbe semântico material e corporal, presentes na obra de Rabelais — herança da cultura cômica popular e de uma concepção estética da vida prática —, as quais seriam indissociáveis de sua força regeneradora, o teórico dá o nome de realismo grotesco. Aparentemente um oximoro, a expressão é justificada de modo complexo por Bakhtin. Em resumo, o termo “realismo” indicaria representações conotativas dessa constante transformação, desse caráter inacabado, móvel e mutável de tudo quanto existe, o significante das constantes divisões, interseções e proliferações, do nascimento e da morte; seria este o arcabouço de todos os grandes escritores que ele caracteriza como realistas (Stendhal, Balzac, Hugo, Dickens), que teriam sido influenciados pelas imagens grotescas — diretamente ligadas à cultura carnavalesca — dos grandes escritores do Renascimento (Rabelais, Cervantes, Sterne); a ausência de elementos transformadores e regeneradores no realismo teria corrompido o estilo para o que nomeia pejorativamente de “empirismo naturalista”.76 E, uma vez que o termo “grotesco” é a designação tardia para um fenômeno estético bem mais antigo do que a descoberta daqueles motivos ornamentais no século XV, Bakhtin distingue-o desde a sua presença na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, iluminando as superfícies mais cômicas, e oferta seu intervalo histórico crucial entre manifestações populares da Idade Média e a literatura do Renascimento:

Na realidade, a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e ilimitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as ideias de necessidade são sempre relativas e

75 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.19. 76 Op. cit., p.45. 41

versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades.77

Em grande medida, o teórico desenvolve os conceitos de grotesco e de realismo de maneira que, entre ambos, se determinem interseções fundamentais. A oposição entre o que chama de estética clássica, ou seja, estética da vida cotidiana preestabelecida e completa, acima de tudo estática, e um conjunto de imagens que remete à permanente transformação e ao desenvolvimento do mundo, que passa pela morte, pelo nascimento, por desagregações e degradações de todo o tipo e pelo poder regenerador desse movimento, deixa os conceitos num mesmo polo dentre os rumos possíveis da concepção artística. Nesse lugar, caberia ao grotesco uma alegre relativização de todos os elementos seriamente peremptórios, estáticos, da gravidade ilusória, mediante a carnavalização da consciência e o rebaixamento do que é elevado ou temível. Vejamos, pois, o seguinte trecho do poema “A última viagem de Jayme Ovalle”:

A cada vez que a Morte, a sério Com cicerônica prestança Mostrava a Ovalle um cemitério Ele apontava uma criança.

A Morte, em Londres e Paris Levou-o à forca e à guilhotina Porém em Roma, Ovalle quis Tomar a sua canjebrina.

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas E suas ósseas prateleiras Mas riu-se muito, tais zabumbas Fazia Ovalle nas caveiras.78

77 Op. cit., p.43. 78 MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 54-5. Obs.: A grafia de “cangebrina” (aguardente de cana; cachaça), com g, foi retificada (Anexo I, pp. 155-6). 42

Antes de verificarmos o caráter específico do riso ou do espanto em face do poema, é preciso dispensar ao menos algumas linhas sobre a figura de Jayme Ovalle e da curiosa atmosfera evocada pelo seu nome. Além de músico, poeta e amigo querido de artistas e intelectuais da cena cultural e boêmia da primeira metade do século XX, tornou-se um personagem de atributos míticos devido a sua personalidade muito peculiar que, a todo instante, parecia estar sempre submersa em poesia. Ovalle é citado em poemas e vários escritos de Vinicius de Moraes e , e se torna inclusive personagem do romance O encontro marcado (1956), de . O crítico Davi Arrigucci Jr. reconhece nele “um elemento de cunho literário” e se lhe refere como uma “entidade paraficcional”; observa que, conquanto pertença ao mundo verdadeiro, transmuda-se numa figura recorrente do universo imaginário, “tomando forma nos textos, onde passa a valer sobretudo pela força simbólica com que atinge o leitor”.79 Ovalle é autor do que chamava de Nova Gnomonia, um conjunto de arquétipos que categorizavam os indivíduos em “dantas”, “parás”, “mozarlescos”, “kernianos” e “onésimos”, o que servia como código bem-humorado entre ele, seus amigos e demais que o cercavam.80 No poema em questão, essa “força simbólica”, vigorosa, permeada de poesia, imaginação, amizade etc., contrasta com a figura da Morte em sua conformação antropomórfica. Em casos distintos, ela ressalta entre os temas mais “nobres”, formais, elevados, transcendentes e, em maior ou menor medida, sérios e temíveis, tanto em grande parte das interações cotidianas como da produção filosófica e artística. No entanto, a Morte é rebaixada e se torna um espantalho cômico — precisamente nos termos bakhtinianos — ao se interessar pelo alegre relativismo, pela sem-cerimônia e ausência do senso de hierarquias ou superioridade de Jayme Ovalle. Ela mostrava “a sério” — a seriedade unilateral — e com “cicerônica prestança” — a dicção elevada — os cemitérios. Mas ele, então, apontava as crianças. Faz-se aqui uma comunhão entre alguns dos principais elementos que integrariam o real movimento do mundo; o alto e o baixo, a morte e o nascimento. A ideia dominante, que neste contexto é o significado da morte, da perda, precisa ser regenerada. Na direção do que afirma Bakhtin, o “verdadeiro grotesco” se esforçaria em representar em suas imagens o devir, “o

79 ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 50-2. 80 Ver a entrevista de Jayme Ovalle dada ao próprio Vinicius, bem como alguns perfis traçados sobre o paraense por Humberto Werneck e também por Vinicius de Moraes em “O impossível aconteceu a Ovalle” (Revista Azougue, nº 8. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, pp. 56-69). 43 crescimento, o inacabamento perpétuo da existência”, “ao mesmo tempo o que parte e o que está chegando, o que morre e o que nasce”.81 E o riso se espraia uma vez que Ovalle quer tomar sua aguardente, depois dos passeios em que a Morte o levou “à forca e à guilhotina”; pouco adiante o poema conta que estão “ambos de porre”. Além de uma dessacralização ostensiva, executada por intermédio do cômico e do absurdo — de uma carnavalização da consciência —, a imagem da alegre bebedeira entre os dois explicita fundamentos importantes da tese do realismo grotesco. “O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco”, expõe o teórico russo. “As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo”. E observa em cada uma das imagens do beber e do comer apresentadas por Rabelais, a poderosa “tendência à abundância e à universalidade”, “o seu hiperbolismo positivo, o seu tom triunfal e alegre”; bem como o modo como se ligam à interação, “à palavra, à conversação sábia, à verdade alegre”. Segundo Bakhtin, desde os seus primórdios, o homem “triunfava do mundo”, pois, em vez de ser engolido por ele, engolia-o: “a fronteira entre o homem e o mundo apagava-se num sentido em que lhe era favorável”.82 Não é difícil perceber como sua teoria, aos poucos, associa o hibridismo ao coletivismo, e a imagética das grutas, inerentes ao primeiro significado do grotesco e próprio das artes ornamentais, à imagética da terra e do corpo. Isso é possível a partir do resgate de uma “visão carnavalesca do mundo”, emergida na Antiguidade e cultivada generosamente em manifestações populares da Idade Média e do Renascimento. Essa visão induziria ao riso coletivo, de tudo e de si mesmo, e faz zabumbas nas caveiras. Ao final do poema, o guardião do campo santo diz que, já “noite alta”, “ainda se ouvia/ A voz da Morte, um tanto ou quanto/ Que ria, ria, ria, ria...”. A morte é um tema central na poesia de Vinicius de Moraes; suas incidências são abundantes e parelhas com as do tema amoroso; e, frequentemente, os campos semânticos dos temas se avizinham, se completam, esteja o motivo com um ou com outro. Sua conformação antropomórfica é memorável em poemas como “A última viagem de Jayme Ovalle”, “O haver”, “Romance da Amada e da Morte”83 e “Tanguinho macabro”. Este último contém um componente que intensifica a natureza, digamos, bakhtiniana de sua substância grotesca. O poema estava entre aqueles que fariam parte

81 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.46. 82 Op. cit., p. 243-5. 83 (Anexo I, pp. 159-63) 44 do livro Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes, que jamais foi concretizado pelo poeta; e uma das intenções do projeto era a de que marcas da cultura popular, por vezes folclóricas, fossem deixadas ao longo de todo o livro, especialmente das manifestações oriundas do Rio de Janeiro e cercanias. O sujeito lírico no poema confunde a figura da Morte com sua mulher, Maricota — o ambiente é chuvoso, ela está de capuz e pede para que a luz não seja acesa. “Maricota” é uma figuração de domínio circense; loura, alta e decorosa, distribui tapas aos atrevidos; foi incorporada e consagrada pelo folguedo sulista Boi-de-mamão;84 na cultura popular carioca, o nome assimilou um significado que compreende mulheres bonitas, bem- arrumadas e educadas; e encarna geralmente a personagem da esposa em autos e danças populares.85 Aqui, a semântica folclórica é ainda mais realçada quando na forma dos estribilhos e da redondilha maior:

— Maricota, os teus dois olhos São poços de escuridão! — Maricota, os teus dois olhos São poços de escuridão! — Não são olhos, são crateras São crateras de vulcão Para engolir e et cetera Os moços que vêm e vão.

— Maricota, o teu nariz São duas fossas de verdade! Maricota, o teu nariz São duas fossas de verdade! — Não é nariz não, mocinho É uma grande cavidade Para sentir o cheirinho Dessa tua mocidade.

84 RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Aurora, 1970, pp. 337-51. 85 Nos anos de 1970, no Rio de Janeiro, a variante “cocota” foi muito comum, e designava mulheres elegantes de classe média ou alta; já na virada do século, o termo foi associado a mulheres desinibidas ou de trajes curtos, talvez pela influência do termo francês “cocotte”, de seu significado informal, invertendo em grande medida a acepção folclórica. 45

— Maricota, a tua boca Não tem lábios de beijar! — Maricota, a tua boca Não tem lábios de beijar! — Não é boca, meu tesouro É um sorriso alveolar São quatro pivôs de ouro Presos no maxilar.

(...) E a morte levou o moço Para o fatal matrimônio Deu-lhe seu púbis de osso Sua tíbia e seu perônio Diz que o corpo descomposto De manhã foi encontrado Mas que sorria o seu rosto Um sorriso enigmático.86

No corpo grotesco bakhtiniano, os orifícios corporais parecem se aliar simbolicamente às grutas (à grotta), às cavidades, às crateras, bem como o baixo corporal e seu interior ao subterrâneo profundo. Os orifícios, as ramificações, as excrescências têm o valor especial do que “prolonga o corpo, reúne-o aos outros corpos ou ao mundo não-corporal”; caracterizar-se-iam, pois, “pelo fato de que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e o mundo, onde se efetuam as trocas e as orientações recíprocas”.87 E então evidenciamos nitidamente o hibridismo e o coletivismo dividindo a mesma esfera simbólica e função representativa; esse corpo aberto e incompleto não estaria delimitado do mundo. Tão logo apresenta sua teoria, Bakhtin afirma que o corpo no realismo grotesco “está misturado ao mundo, confundido com os animais e as coisas. É um corpo cósmico e representa o conjunto do mundo material e corporal, em todos os seus elementos”.88 O rebaixamento com o objetivo de degradar e, ao mesmo tempo, regenerar funcionaria como expressão metonímica do

86 MORAES, Vinicius de. Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinicius de Moraes. Org. e apres. Daniel Gil; Ilustr. Juliana Russo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 60-3. 87 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.277. 88 Op. cit., p.24. 46 cotidiano e do caráter cíclico da natureza. O raciocínio remete imediatamente a um conhecido poema de Vinicius, lançado em 1938: “Soneto de intimidade” — marco de um retorno e atualização do soneto na poesia brasileira. Amalgamando a forma tradicional dodecassílaba e o plano semântico do comum, do corriqueiro, o poeta expressa um movimento remansoso de conciliação com o mundo natural. E, ao desfrutar os caminhos na tarde da fazenda, é tomado por um ânimo que acaba por reorientá-lo em meio a tudo quanto o rodeava:

Nas tardes da fazenda há muito azul demais. Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora Mastigando um capim, o peito nu de fora No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais Para ir beber na fonte a água fria e sonora E se encontro no mato o rubro de uma amora Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve Nós todos, animais, sem comoção nenhuma Mijamos em comum numa festa de espuma.89

Um parêntese oportuno: a urina não é um elemento incomum na poesia de Vinicius. Lembremo-nos de “A mulher na noite” (E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas); “Balada feroz” (Mija sobre o lugar dos mendigos nas escadarias sórdidas dos templos/ E escarra sobre todos os que se proclamarem miseráveis); “Pátria minha” (grande rio secular/ Que bebe nuvem, come terra/ E urina mar); “Balanço do filho morto” (Da órbita cega os olhos dolorosos/ Fogem, moles, se arrastam como lesmas/ Empós a doce, inexistente marca/ Do vômito, da queda, da mijada); “A Estrelinha Polar” (O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros/ E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico), “A casa”

89 MORAES, Vinicius de. Soneto de intimidade. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p.15. 47

(Ninguém podia/ Fazer pipi/ Porque penico/ Não tinha ali); e, em seu considerável espólio de poemas esparsos, “Balada das lavadeiras” (Lava as fezes e a urina/ E o vômito da bebida/ O sarampo e a escarlatina/ E o rubro plasma da vida); “Estâncias a minha filha” (Me deixas cheirando a mijo/ Não raro a pior também); “O pranteado” (Esfreguem extrato/ Por todo o seu corpo/ Porque ele urinou-se/ No último esforço); “Meu Deus, eu andei com Manuel Bandeira” (E abri na choradeira enquanto depositava a urina guardada de há muito na latrina branca de minha família feliz). Numa leitura bastante original, Eucanaã Ferraz considera que “Soneto de intimidade” é um dos melhores exemplos da transição entre a poesia mais abstrata e simbolista de Vinicius de Moraes para aquela mais conectada com a realidade material; seus versos teriam sido retirados do desejo de “abandonar irrestritamente os traços divinizantes e metafísicos da poesia anterior em favor de um imaginário mais terreno”; os quais ainda estariam, porém, presentes no soneto, uma vez que o alheamento radical e a bestialização do humano, em alguma medida, resultariam em “uma atmosfera idealizada de pureza e isolamento”.90 Eucanaã serve-se de uma datação do poema, “Campo Belo, 1937” (incluída em 1967, na edição aumentada do Livro de sonetos), para interpretar o verso “No pijama irreal de há três anos atrás”: o que nos levaria ao ano intermediário entre os dois primeiros livros do poeta, ou seja, seu momento mais metafísico. Nessa direção, podemos observar os elementos típicos do realismo grotesco no “Soneto de intimidade” — a mastigação do capim, o beber e o comer, a deglutição, o cuspir, a imagem sanguínea, e, finalmente, o estrume e o seu “cheiro”, as “mijadas” (na variante mais chã), a unidade entre o homem e os animais, que estão “em comum” representados na mistura dos seus excrementos — e, definidos como instrumentos de uma ação regeneradora, conectá-los com o movimento de transformação da própria poética viniciana, em relação metonímica com o poema. Havendo ali, então, uma substância idealizadora e individualizante, ela é notada porquanto presente em um processo de rebaixamento e regeneração. De acordo com a teoria bakhtiniana, “a atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca”.91 A tomada de consciência acerca do tempo na perspectiva grotesca teria se sofisticado desde uma simples justaposição das duas fases do desenvolvimento,

90 FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. Col. Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2006, pp. 32-8. 91 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.21-2. 48

“começo e fim: inverno-primavera, morte-nascimento”, até um “poderoso sentimento da história e da alternância histórica, que surge com excepcional vigor no Renascimento”. Mas Rabelais teria conjugado essa percepção histórica conservando seu conteúdo e matéria tradicional: “o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal, etc.”. Como exemplo de obras que simbolizam essa concepção grotesca do corpo, Bakhtin nos fala das estatuetas de terracota de Kertch que caracterizam velhas grávidas. A velhice e a gravidez estariam ali grotescamente sublinhadas, e, ademais, “essas velhas grávidas riem”. Nesse sentido, a imagem grotesca do corpo, além de conservar a tendência fundamental dos dois corpos em um, teria muitas vezes idades fronteiriças ao nascimento ou à morte: “a primeira infância e a velhice, com ênfase posta na sua proximidade do ventre ou do túmulo, o seio que lhe deu a vida ou que o sepultou”.92 Dentro dessa atmosfera, verificamos um poema tão estranho quanto interessante publicado a primeira vez por Vinicius em sua Antologia poética (1954): “Desert Hot Springs”. O título se reporta a uma pequena cidade do estado americano da Califórnia, que se destaca por numerosas fontes naturais, de águas quentes e frias. Até o início do século XX, o lugar desértico era ocupado somente por um grupo indígena que por lá acampava durante o inverno; tornou-se um ponto turístico a partir dos anos de 1950 devido aos spas e hotéis- butiques; vários imóveis foram construídos e adquiridos por aposentados, e a área foi incorporada como cidade em 1963. De Desert Hot Springs, o poeta detalha com sinistra poesia a velhice e as suas marcas mais profundas; isso em contraste com a juventude, especialmente a de um cuidador, na piscina pública, que “Arrasta pelo ladrilho deformidades insolúveis”. Os que têm a idade mais avançada não deixam de libertar alguma alegria, mas notemos como Vinicius prefere a palavra “rictos” à palavra “risos”, evocando um movimento de mais instabilidade se comparado àquele preestabelecido como ação ou efeito de rir.

As cálidas águas minerais/ (...) Acariciam aleivosamente seios deflatados Pernas esquálidas, gótico americano De onde protuberam dolorosas cariátides patológicas. Às bordas da piscina A velhice engruvinhada morcega em posições fetais

92 Op. cit., p.22-3. 49

Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças.93

É justo ressaltar a beleza (ou antibeleza) de uma composição em que visíveis patologias físicas se tornam “dolorosas cariátides”. O poeta se refere a esculturas clássicas com forma feminina que servem como elemento arquitetônico, tomando o lugar de pilares ou colunas; as cariátides mais famosas são as do templo grego Erecteion, consagrado a Atena e . Na imagem de “Desert Hot Springs”, elas se encontram no que o poeta chama de “gótico americano”, ou seja, aqueles corpos representados grotescamente no poema, em notória degradação. Além do quê, esses corpos estão “em posições fetais” — como se retratassem e sintetizassem o incansável ciclo da vida. O próprio deserto, em epílogo, é expresso incorporando esse movimento permanente do mundo em que todas as formas se fazem e se desfazem. Ele fora visto em “Sua dura beleza outramente inabitável” e reaparece como “O grande deserto nu e só, coberto de calcificações anômalas/ E arbustos ensimesmados; o grande deserto antigo e áspero/ Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a morte”. Mikhail Bakhtin atentou-se a determinadas manifestações da cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento, sobretudo a cultura carnavalesca, e a dividiu em três grandes categorias, considerando a multiplicidade de suas formas e de seus gêneros: os ritos e os espetáculos das praças públicas; as obras cômicas verbais, inclusive as paródicas, orais e escritas; e o vocabulário familiar e grosseiro encontrado em insultos, juramentos, blasões populares etc. O teórico russo sustenta que os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem, existentes desde um estágio anterior à civilização primitiva, foram se remodelando a partir do estabelecimento de um regime de Estado e de classes sociais até alcançar o intervalo histórico por ele mais abordado. A cultura cômica, pois, teria adquirido um aspecto não-oficial e se tornado fundamentalmente popular, como forma de expressão; festejos carnavalescos do mundo antigo, bem como as saturnais romanas, serviriam como exemplo da distinção frente ao riso ritual das comunidades primitivas. Por sua vez, o carnaval não era uma forma artística de espetáculo, de teatro, tampouco representado nos palcos: sua fronteira não era espacial. Em verdade, seria uma forma provisória mas concreta da própria vida: o

93 MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954, pp. 264-5 (Anexo I, pp. 147-8). 50 carnaval era a segunda vida do povo; baseada no princípio do riso, era a sua vida festiva. A inversão e o rebaixamento existentes nessas ocasiões específicas, reservadas na vida do povo, dariam margem à ridicularização das instituições austeras e dos poderosos; o elevado tornava-se comum e o riso substituía o medo. Ou seja, o grotesco identificado nos festivais de rua da Idade Média e do Renascimento seria marcadamente alegre, uma forma de dessacralizar os aspectos graves e opressivos por meio do riso espontâneo. Em sua exuberante História do riso e do escárnio (2002), o historiador francês Georges Minois afirma que as conclusões de Bakhtin se deparam com críticas numerosas desde a sua elaboração, em especial com as do russo Aaron Gourevitch.94 Minois conta como o medievalista contestou a teoria fundamental por trás da tese sobre Rabelais: ela teria desconsiderado os elos entre o riso, o medo e a raiva; e estendido à cultura popular deduções extraídas somente de estudos sobre o Carnaval. Bakhtin teria projetado para a Idade Média a realidade soviética dos anos de 1960, com uma sociedade de dois níveis: “o oficial, ideológico, e o da vida real, sob a cobertura fictícia mantida pelo partido”; Gourevitch, enfim, pede para que desconfiemos das interpretações da cultura popular dada por intelectuais.95 Ainda segundo o levantamento de Georges Minois, críticas variadas visam à concepção do grotesco que o reporta exclusivamente às potências prolíficas do riso. De fato, o grotesco teria mesmo outra face, resultante de uma desestruturação do mundo conhecido, o qual se dissolve, fragiliza-se e se faz estranho, estrangeiro — como já afirmara Wolfgang Kayser. O próprio historiador francês nos assegura que, inclusive, “o bestiário monstruoso da escultura medieval oscila no diabólico angustiante”, a testemunhar “mais de uma visão cômica, mais de uma visão trágica e, para dizer tudo, satânica, cujo ápice não será Rabelais, mas Jerônimo Bosch”. A aproximação dos nomes do escritor e do pintor demonstraria uma visão maniqueísta de Bakhtin. Ele encerra o raciocínio citando uma assertiva do estudo de Christian W. Thompsen: “o grotesco provém de um distanciamento em relação ao mundo, que tanto pode ser fonte de riso quanto de temor”.96

94 MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, pp. 156-60. 95 GOUREVITCH, Aaron. Bakhtin and his theory of Carnival. A cultural history of humour. Oxford: ed. J.Bremmer e H. Roodenburg, 1997, pp. 54-60. In: MINOIS, Georges. Op. cit., pp. 160. 96 THOMPSEN, Christian W. Das groteskeim englischen roman des 18. Jahrhunderts. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, pp. 160. 51

O conceito de grotesco desenvolvido em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais é robusto, fascinante e indispensável para o manuseio do termo; é capaz de preencher praticamente todas as lacunas que ainda restavam em seu significado após um debate que já atravessa alguns séculos, entre intelectuais e artistas da maior grandeza. No entanto, o teórico russo optou por excluir uma parcela basilar de seu conteúdo, talvez em nome da expressividade que um caráter radicalmente unilateral pudesse oferecer à disseminação de suas perspectivas. Bakhtin, ao combater a obra de Kayser, chega a colocar em suposta “contradição insuperável” a liberdade da fantasia característica do grotesco e a imagem do mundo dominado por um id fantasmal — como se não houvesse no centro da própria teoria kayseriana um movimento do fenômeno grotesco pelos seus três domínios: o processo criativo, a obra e a sua recepção (sendo que o grotesco “só é experimentado na recepção”,97 de acordo com o estudioso de Berlim). Do mesmo modo, ele interpreta o enunciado “no grotesco não se trata de medo da morte, porém de angústia de viver”, belíssimo, como se, de acordo com o grotesco kayseriano, a morte fosse uma “negação da vida”,98 isto é, elementos imiscíveis do ponto de vista imagético — quando a própria locução “angústia de viver” expressa evidentemente o contrário: sentimentos paradoxais de vida e morte, que se integram e se confundem. Por último, conquanto haja uma distância monumental entre o homem de hoje e aquele do Renascimento, é inverossímil que o mesmo ser humano capaz de se amedrontar com as sombras arbóreas projetadas em sua janela esteja sempre pleno de leveza em frente a deformações ou degradações, ou ainda diante de determinadas figuras híbridas e monstruosas. Podemos sentenciar, contudo, não obstante a incisiva oposição entre duas teorias gerais do grotesco e o antagonismo de suas respostas, que tais obras compõem na prática uma inteireza histórica e conceitual, o que as impele a uma imprescindível associação quando o que importa é a compreensão ampla e irrestrita do termo.

97 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.156. 98 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.43. 52

V. O BANQUETE DO OMNÍVORO

Já discorremos aqui sobre as qualidades especiais do corpo no realismo grotesco: aberto, inacabado, em interação com o mundo. Seria, pois, no ato de comer que tal natureza se manifestaria de modo mais tangível, concreto. Ao engolir, devorar, despedaçar, esse corpo remete o mundo para dentro de si próprio; e se enriquece, e cresce às suas custas. “O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano”, assevera Bakhtin.99 No comer e no beber, na deglutição, na absorção, o homem sentiria o sabor de um mundo que não o devorou, não o comeu; e, de maneira alegre, vitoriosa, triunfal, faria daquilo que o rodeia uma parte de si mesmo (imagem bakhtiniana que, sem dúvida alguma, evoca o hibridismo característico dos grotescos ornamentais). Objeto principal do teórico, a literatura de François Rabelais produz episódios copiosos e ridículos de superabundância, hiperbolismo positivo e universalidade envolvendo a comilança de seus gigantes glutões. Rabelais enfatiza o exagero ilimitado em suas imagens, sem escusar, inclusive, a cena de nascimento de um dos protagonistas — inaugurando ali um cerne moral a ser estampado e transportado pelo próprio nome do recém-nascido:

O simpático Grandgousier, bebendo e se divertindo com os outros, ouviu o grito horrível que o filho tinha dado ao entrar na luz deste mundo quando bradava: “Beber, beber, beber!”, e exclamou: “Que garganta a tua!” Ouvindo isso, os presentes disseram que, realmente, ele deveria ter o nome de “Gargântua”, pois essa fora a primeira palavra de seu pai, depois do seu nascimento, à imitação e ao exemplo dos hebreus. O que foi aceito por aquele e agradou muito à sua mãe. E, para apaziguá-lo, deram-lhe de beber à farta, e foi levado à pia

99 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.245. 53

batismal, e batizado, como é costume dos bons cristãos. E mandaram vir dezessete mil novecentas e treze vacas de Paultille e de Brehemon, para aleitá-lo ordinariamente, pois achar-lhe ama de leite suficiente não era possível em todo o país, considerando a grande quantidade de leite necessária para alimentá-lo.100

Na obra do escritor renascentista, as imagens do beber, do comer, da ingestão não guardariam vínculo com os atos comuns do cotidiano, vitais ao corpo isolado, ao corpo de cada um dos indivíduos. Além de representar o supérfluo e o exagero em proporções quiméricas, essas imagens estariam a todo instante ligadas, em certa medida, ao banquete da festa popular. Seguindo esse raciocínio, Bakhtin recua alguns séculos até chegar ao conto Coena Cypriani, escrito na Antiguidade Tardia. O texto de autoria controversa teria sido então nada menos que o inaugurador da tradição grotesca.101 Ali se reúnem muitos personagens bíblicos num grandioso banquete; e quase todas as passagens festivas da Bíblia Sagrada são de alguma forma citadas, tendo como base a parábola do rei que deseja celebrar as núpcias do filho (Mateus, 22:1-14). A carnavalização dos símbolos e das personalidades, o conteúdo alegre e os principais argumentos da obra teriam aberto a literatura à tradição medieval dos banquetes. O teórico afirma que somente num ambiente como aquele, do banquete, Rabelais poderia expressar a verdade livre e franca, somente “no tom das conversações à mesa”, pois “esse ambiente e esse tom respondiam à própria essência da verdade tal como ele a conhecia: uma verdade interiormente livre, alegre e materialista”.102 É curioso lembrar, a propósito, que Vinicius havia cantado um “materialismo elementar” precisamente em um de seus poemas dispensados à glutonaria: “Soneto ao caju”. Neste caso, uma aproximação de reflexão estética e filosofia política, se existe, não é transparente como na obra bakhtiniana, mas a presença de imagens compatíveis com a ideia do realismo grotesco é algo a ser verificado:

Amo na vida as coisas que têm sumo E oferecem matéria onde pegar Amo a noite, amo a música, amo o mar Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo.

100 RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Capa de Cláudio Martins. Col. Grandes Obras da Cultura Universal, vol. 14. : Itatiaia, 2003, p.48. 101 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 250-3. 102 Op. cit., p.249. Grifo de Bakhtin. 54

Por isso amo o caju, em que resumo Esse materialismo elementar Fruto de cica, fruto de manchar Sempre mordaz, constantemente a prumo.

Amo vê-lo agarrado ao cajueiro À beira-mar, a copular com o galho A castanha brutal como que tesa:

O único fruto — não fruta — brasileiro Que possui consistência de caralho E carrega um culhão na natureza.103

Restringir o amor àquilo que tem “sumo” e “matéria onde pegar” poderia de fato ser um materialismo primário, bruto, “elementar”. Mas a adjetivação é ironicamente realizada em um âmbito cujas substâncias mais díspares se equiparam e se comunicam. Aqui se tornam matérias palpáveis aquelas que engendram a noite e a música; também o mar — constituído não apenas do seu tecido fluido e desmesurado, mas também, simbolicamente, da matéria cósmica que, semelhante à terra, se associa à vida, à fertilidade e às profundezas. Não há nesse conjunto uma classificação que separe os elementos quanto à consistência física ou à magnitude: tudo é matéria tátil, matéria de “pegar”, desde que sejam agentes de comoção ou transição na realidade compreendida pelo poeta — sobretudo, suponhamos, a mulher. Nessa perspectiva, o caju seria o alimento síntese, o “resumo” desse constante movimento de contato e de relação entre as matérias. Antes de tudo, é um fruto “de cica”, “de manchar”, isto é, ele interage, marca, altera as sensações e a constituição do ambiente que o circunda; seria um objeto especialmente aberto para com o mundo. A lógica, é claro, depende de um humor alegre e certo espírito glutão típicos das “conversações à mesa”. Entretanto, a indubitável atmosfera de simpósio dá-se por meio de uma interação heterogênea, mas harmoniosa, entre o poeta e tudo aquilo que atravessa o seu “materialismo”. O caju é a metonímia dessa dinâmica: ele está sempre disposto, “mordaz, constantemente a prumo”; está à beira-mar (novamente, o mar); e está “agarrado ao cajueiro”, “a copular

103 Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.547. 55 com o galho”. Sua caracterização notabiliza um espraiar-se para fora de seus limites; seu comportamento é contrário a um recolhimento ensimesmado. Se conjugadas ao individualismo, “imagens do grande ventre, da boca escancarada, do falo enorme e a imagem popular positiva do ‘homem saciado’, aparentadas à imagem do banquete”, ganhariam contradições internas com sua específica tendência à abundância, observa Bakhtin.104 Mas o contexto retratado por Vinicius é de uma celebração entre as matérias; e, quanto mais perto chegamos, mais se nos desnudam as interações e os seus contornos obscenos. Aos poucos, o cenário se revela; o “sumo”, a “cica” e os termos que remetem ao vigor e à turgidez ganham dimensão semântica. É então que se tornam precisas as considerações de Georges Bataille sobre a obscenidade e sua definição a partir de uma quebra do senso de individualidade que antes parecia estável e seguro: no poema, são expostos justamente os exercícios da abertura, do pegar (à prova da “consistência”), do experimentar, da absorção em amplo sentido e, em última instância, da “fusão”.

A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, ou seja, ao estado de existência descontínua. É um estado de comunicação, que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do fechamento em si mesmo. Os corpos se abrem à continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a perturbação que desordena um estado dos corpos conforme à posse de si, à posse da individualidade duradoura e afirmada. Há, ao contrário, despossessão no jogo dos órgãos que se derramam na renovação da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e se perdem umas nas outras. 105

Por sua vez, o caju seria um tanto mais que um objeto que se inter-relaciona com o mundo do poeta: o alimento possui um papel ativo em todo o processo, explicitado pela própria aparência — ele é um falo “brutal”, sempre ereto. Essa simbologia chega ao ápice no último terceto. De início, o poeta simula jocosamente o tom de uma observação importantíssima ao distinguir gêneros: “O único fruto — não fruta”. Esse

104 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 254-5. 105 BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.41. 56 tom é fabricado com a ajuda de uma síncope na proparoxítona, que dá brevidade às duas primeiras sílabas e mais força à terceira (o ún| co| fruto), já na palavra a ser destacada.106 Logo, temos em relevo ambos os gêneros, “fruto” e “fruta”, devido à cesura do verso heroico (o ún| co| fru| to| não| fruta). Esse ritmo será reiterado até o desfecho do poema, como anapestos que ecoam a distinção entre dois termos. No segundo verso, a “consistência” remete imediatamente ao “pegar”, isto é, a ação capital do materialismo viniciano; e, por influxo do ato, ao “sumo”. O fruto possui “consistência de caralho”: o léxico se rebaixa em relação àquele anteriormente escolhido para o poema; não mais se ajusta aos moldes do “copular com o galho” ou da castanha “como que tesa”. Nesse momento, o soneto ganha com o imprevisto e o risível, e acaba demonstrando na prática a ideia de que as figuras análogas à do banquete, das conversações à mesa, inclinam-se de modo natural a uma libertação do vocabulário e de uma verdade alegre, dispensada de observar as distâncias hierárquicas entre coisas e valores. Segundo as investigações de Bakhtin, tal inclinação pode ser verificada desde as homilias de Zenão até a Coena Cypriani, bem como se mostra em sátiras e paródias dos séculos XV e XVI: “A intrusão, na língua dos clérigos e dos escolares, de uma quantidade inaudita de transformações verbais coloquiais de textos sagrados relacionados com o beber e o comer, testemunha a grande faculdade que tinham esses últimos de liberar a palavra”.107 É o que se confirma também no verso final do poema quando o conceito popular de “ter colhões”, ligado a uma virilidade destemida, se manifesta no desenho muito peculiar, nas próprias formas específicas do caju. Toda essa nova morfologia botânica, obviamente, só encontra algum fundamento na comicidade e na liberdade poética e criativa de Vinicius de Moraes.108 A datação de “Soneto ao caju” indica o mesmo ano de “Não comerei da alface a verde pétala...”: 1947. Contudo, o primeiro não chegou a ser publicado, e ganhou livro apenas em edições póstumas; o segundo veio a público em Para viver um grande amor, de 1962. É possível que a similitude temática, específica, tenha influído na decisão de se

106 No segundo volume da obra A literatura no Brasil, org. Afrânio Coutinho, o poeta e ensaísta menciona síncopes desse tipo na poesia de Gonçalves Dias, afirmando que tal praxe “é hoje usual nos proparoxítonos em meio do decassílabo” (2ª ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969, p.97). Ver também o artigo “A síncope das vogais postônicas não-finais: variação na fala popular urbana do Rio de Janeiro”, de Danielle Kely Gomes, na revista científica Diadorim, Vol. 8, 2011. 107 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 258-9. 108 A rigor, o fruto mesmo é apenas o caroço escuro dentro do qual se faz a castanha; a parte amarelada que mais salienta o caju, e que guarda o seu sumo, é um pedúnculo floral, um pseudofruto. De certa forma, uma designação mais técnica poderia evocar uma simbologia diametralmente oposta à elaborada pelo poeta. 57 optar exclusivamente por um deles, o qual se pôs conjuntamente à “Feijoada à minha moda” — os dois poemas de caráter... alimentar do volume. “Não comerei da alface a verde pétala...” é um espirituoso soneto dedicado também à glutonaria, e que, por sua vez, expressa uma recusa àqueles vegetais geralmente presentes em dietas consideradas leves e saudáveis. O poema acompanha desde a sua primeira edição a seguinte nota de rodapé: “Iludia-se o poeta. Num tempo em que as coisas andaram meio pretas, ele teve que se enquadrar direitinho e andou comendo legumes na água e sal como qualquer outro”. É uma composição formalmente mais sofisticada que o “Soneto ao caju”; muito de seu humor vem da combinação de uma determinada estética, uma dicção nobre, elevada e muito tradicional com uma significação bufona que, de outra forma, seria comum aos modos de um glutão deselegante:

Não comerei da alface a verde pétala Nem da cenoura as hóstias desbotadas Deixarei as pastagens às manadas E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas Talvez pouco elegantes para um poeta Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta Que acredita do cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois Nem como os coelhos, roedor; nasci Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati E eu morrerei feliz, do coração De ter vivido sem comer em vão. 109

Se, por um lado, “Soneto de intimidade” havia ganhado relevo ao executar, justamente a despeito de sua matéria episódica e grotesca, um andamento que se liga pela tradição aos temas considerados superiores, por outro, “Não comerei da alface a verde pétala...” ultrapassa-o nesse contraste e na quantidade de recursos envolvidos. O aspecto da sua linguagem, que parece altiva, antiga e, paradoxalmente, simpática ao

109 MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p.92. 58 leitor contemporâneo, é delineado com a ajuda de hipérbatos, adjetivações, detalhes lexicais, escolha das imagens etc. E por isso a forma fixa não funciona como único ou principal meio desse contraste; antes, ela se adequa naturalmente ao que é dito, conquanto os significados, em última instância, não lhe sejam os mais familiares. Aquilo que no “Soneto de intimidade” soaria à crítica desatenta como um engano de forma radicaliza-se, aqui, de modo a atingir praticamente a totalidade dos mecanismos de expressão. O objetivo de tudo é uma só ironia, mas uma ironia formal: dizer com decoro e refinamento o que é, por essência do assunto, crasso, deselegante. Em alguma medida, o soneto joga com o lugar-comum popular que reclama da contradição em um poeta dizendo tais coisas. Vejamos, a exemplo, como Vinicius constrói uma atmosfera elevada por meio de um léxico afim à religiosidade — mesmo que, ao final, os significados sejam típicos de uma ordinária conversação à mesa. Seu elemento mais visível está, sem disfarce, no terceiro verso, quando “as hóstias desbotadas” servem de representação para as rodelas da cenoura. Notemos, entretanto, como a negativa que inicia o soneto, “Não comerei”, alude às formas imperativas negativas dos mandamentos bíblicos; nessa direção, lembremo-nos também que o pasto (as “pastagens”) possui um sentido figurado de sustento espiritual, bem como de um estado de alegria, de regozijo; e que a forma flexionada do verbo aprazer, “aprouver”, ainda sobrevive, quase somente, na linguagem bacharelesca ou nas traduções do texto bíblico, como este em Deuteronômio (14:22-9):

... e irás ao lugar que o Senhor teu Deus tiver escolhido; e comprarás com esse mesmo dinheiro tudo o que te aprouver, ou seja de bois ou seja de ovelhas, e vinho e licores fermentados, e tudo o que a tua alma deseja; e comerás diante do Senhor teu Deus, banqueteando-te tu e tua família;... 110

A transferência ao plano da terra e do corpo daquilo que é elevado, espiritual, ou seja, a dinâmica do rebaixamento, realiza-se então num caminho contrário ao do comum. O que acontece, à primeira vista, é uma elevação de tudo o que se liga ao telúrico e ao baixo corporal no poema, isto é, os alimentos: a folha da alface se converte em “verde pétala”; as fatias da cenoura se tornam hóstias; e verduras em geral são pastos com toda a altiva simbologia. No entanto, essas hóstias estão desbotadas, e

110 Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, p.215. 59 muitos nexos ruins podem ser cogitados com a imagem das manadas (tolice, gente influenciável etc.), as quais, por seu turno, foram postas entre aqueles que fazem dieta. A atmosfera elevada se transforma uma vez que aceita se comunicar com os elementos que vieram de um plano mais baixo, como acontece inclusive, por vezes, nas próprias escrituras. É preciso registrar, a propósito, que a poesia de Vinicius jamais deixou, ao menos esteticamente, o imaginário cristão — estivesse ela em qualquer fase. Ao se distanciar da fé católica, o poeta acaba por reformá-lo: esse imaginário muito se desfoca do papel moral e passa a se ater no arcabouço estético, incorporando a instalação de cenários os mais variados. Tal movimento, porém, coincide com o distanciar-se de um verso longo, de natureza bíblica, o que inclina o elemento religioso mais à esfera semântica. Textos memoráveis como o “Poema de Natal”, “O dia da criação”, “O filho do homem”, “O operário em construção”, “São Francisco”, “O haver” e “Sob o trópico do câncer” são apenas alguns exemplos de presença renovada desse imaginário. Em “Não comerei da alface a verde pétala...”, essas imagens dialogam com a tradição literária, satírica e paródica, salientada nos estudos de Bakhtin, que envolve os banquetes e as escrituras sagradas. Não era improvável que o caju constasse também nesse contexto. O fruto de cica aparece eventualmente em alguns poemas da obra, além dos dois já citados, e se encontra inclusive com total favoritismo em “Autorretrato”: “Minhas frutas prediletas/ Por ordem de preferência:/ Caju, manga e abacaxi”.111 O quinto e o sexto verso do soneto em questão, que o convocam (“Cajus hei de chupar, mangas-espadas/ Talvez pouco elegantes para um poeta”), acolhem um sentido malicioso, especialmente quando postos em proximidade com o “Soneto ao caju”. Inicialmente, consideramos que cajus e mangas-espadas oferecem uma experiência mais sumarenta e passível de deslizes protocolares do que a conferida por peras e maçãs, e por isso eles seriam “pouco elegantes para um poeta”. Se levarmos em conta, entretanto, a perspectiva impressa naquele poema em homenagem ao fruto, em consonância com as possíveis associações advindas da variedade específica da manga, temos então um bem-humorado viés fálico que sacramenta o tom libertário e brincalhão de todo o enunciado. Evidentemente, o jogo está em dar uma elegância kitsch ao inerente caráter chão dos dizeres, e, quanto

111 MORAES, Vinicius de. Obra poética. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968, p.14. Obs.: “Autorretrato” aparece como preâmbulo desta primeira reunião de sua poesia, com a seguinte nota: “O poema foi feito, na hora, a pedido de João Condé, para os ‘Arquivos Implacáveis’ de O Cruzeiro, e lançado no programa do mesmo nome, na TV Tupi, em 1956”. Ele esteve desaparecido das edições de obra reunida até ser resgatado pela seção “Dispersos” do box Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro (org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p.492-4). 60 mais clássica e suscetível ao gosto mediano for a superfície aparente do grotesco, mais a brincadeira se sucede — o que Vinicius prepara com notável virtuosismo. Abraham A. Moles afirma que o kitsch “é a aceitação social do prazer pela comunhão secreta com um ‘mau gosto’ repousante e moderado”. E se prolonga:

Pitada de bom gosto na falta de gosto, pitada de arte na feiura, raminho de visco sob o lustre na sala de espera da estação ferroviária, vidro niquelado no lugar em que se passa, flor artificial perdida em White Chapel, caixa de costura em pinho de Vosges, Gemütlichkeit112 do ambiente cotidiano, arte adaptada à vida e cuja função adaptativa ultrapassa a função inovadora (...).113

O comportamento métrico dos tercetos de “Não comerei da alface a verde pétala...” merece alguma atenção. Até aqui, o ritmo do soneto vinha em ortodoxos decassílabos heroicos, em conformidade com a dicção nobre, um tanto camoniana, que precisava ser marcada — inclusive expressa no próprio título, com o tradicionalíssimo costume de designar o soneto com o seu primeiro verso. (Há também uma reiteração constante dos primeiros acentos mais fortes, que vai do início ao fim do poema: 1º e 2º versos, quarta sílaba; 3º e 4º, terceira; 5º, 6º e 7º, segunda; 8º e 9º, terceira; 10º, 11º e 12º, segunda; 13º e 14º versos, quarta sílaba.) Todavia, o verso “Nem como os coelhos, roedor; nasci”, além de conjugar um sintagma com o início de outro, imprime um andamento sáfico, o qual pede a sinérese em “coelhos” que, contudo, não se pode realizar na leitura de “roedor”. Observemos que a leitura mais silabada de “roedor” faz com que a palavra tenha uma feição métrica parecida com “ruminante”: os dois tipos majoritariamente herbívoros estão se comunicando tanto por meio da aliteração como pela cadência. Por sua vez, a classificação do próprio poeta — “Omnívoro” — é destacada pelo corte do sintagma e principia o verso mais heterodoxo do soneto: “Omnívoro: deem-me feijão com arroz”. O decassílabo deixa de ter uma cesura tradicional e faz com que o modo imperativo soe mais estranho e grosseiro, em franca isomorfia. Mas o ritmo volta ao normal a partir do enjambement, já dando de encerramento ao poema. Os alimentos de origem animal, junto à bebida alcoólica, são

112 Palavra composta que envolve os sentidos de comodidade, conforto, abastança e pachorra. (Nota do tradutor.) 113 MOLES, Abraham Antoine. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sergio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 28. 61 reservados então de modo exclusivo à última estrofe, assim realçados, e coordenados em polissíndeto; “parati”, com a inicial minúscula, é a metonímia da aguardente, tomando como figura aquela fabricada na cidade de Paraty/RJ — o termo foi utilizado como sinônimo da bebida destilada até meados do século XX, devido à sua tradicional produção e qualidade. Tais preferências do poeta resultam numa combinação tipicamente brasileira, considerando inclusive as frutas salvaguardadas no segundo quarteto. Órgãos como boca, dentes, língua, garganta, vinculados às funções inferiores do corpo humano como a deglutição e a produção de fluidos, são elementos muito importantes para o realismo grotesco, mormente sob as formas do exagero. Seriam inclusive profícuos do ponto de vista mítico e telúrico, uma vez que eles remetem ao ambiente interior, desconhecido, associado ao baixo e ao subterrâneo. Propenso às cavidades, à analogia entre as aberturas do corpo humano e as grutas que levam às profundezas, o grotesco tomaria esse universo corporal como representação do universo total. Logo, os temas mais sérios e elevados, como a morte, são rebaixados para que possam vir à tona, estranhos e risíveis, um tanto mais diretamente se intrometidos às ações do comer e do beber. O que é o caso quando morrer “feliz” e morrer “do coração” aparecem no mesmo verso, sobretudo conjugados pela hipótese da abundância: feliz do coração. Isso na perspectiva bakhtiniana que faz da ingesta um triunfo vitorioso sobre o mundo: “Uma refeição não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis (enquanto que a morte e a comida são perfeitamente compatíveis). O banquete celebra sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza”.114 É importante notar que o coração se faz aqui como um órgão de dúbio sentido: não somente o lugar- comum responsável pelos sentimentos abstratos, como ; mas também a substância material, a carne oca e perecível, conectada aos padrões alimentares e sujeita a um infarto fulminante.

114 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p.247. 62

VI. O FEIO ROMÂNTICO

O Romantismo ofereceu um novo significado à estética da feiura. Quando percorremos as páginas de qualquer volume dedicado à história das artes, é muito perceptível que ali ela reemerge desassombrada. Umberto Eco deu a esse momento histórico o título de “O resgate romântico do feio”; e parte de uma reflexão de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) sobre o grupo estatuário Laocoonte para discorrer sobre o assunto.115 O escritor saxão afirmava que a arte poética é um gênero mais propenso à feiura que as artes pictóricas em geral. Seu entendimento era de que a poesia se manifesta por meio de ações, no decurso do tempo, as quais evocam o imaginário repugnante sem causar todos os sentimentos desagradáveis que seriam produzidos por outra expressão — mais precisamente aquelas expressões que fixam a violência deturpadora de um único instante (escultura, por exemplo), imitando-a como in natura. Contudo, Lessing não encerra as possibilidades pictóricas, uma vez que reconhece o ridículo e o terror como “sentimentos mistos” que podem suscitar “um novo grau de penetração e deleite”.116 Esse raciocínio é apenas uma amostra do teor das discussões estéticas que atravessavam o período pré-romântico. O deleite suscitado pelo terror já havia sido apontado pelo filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797), mais radical e curiosamente, ao tratar o objeto de espanto como um princípio do sublime:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção que o espírito é capaz. (...) Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo

115 ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 270-309. 116 LESSING, Gotthold Ephraim. In: Op. cit., p.272. 63

modo atenuadas, podem ser — e são — deliciosas, como nossa experiência diária nos mostra.117

Em 1797, Friedrich Schlegel (1772-1829) assevera que o belo está longe de ser o princípio dominante da moderna lírica118 e que “muitas das mais esplêndidas obras modernas são representações evidentes do feio”.119 No arcabouço estético recomendado em sua Conversa sobre poesia (1800), constam aquelas obras compostas ao sabor da imaginação livre, engendradas como forças indômitas da natureza; elas nasceriam do lúdico, dos contrastes, da ironia e do desarmônico; e, desse modo, aspirariam à expressão da totalidade e do absoluto. O trabalho constitui “a mais importante exposição das ideias estéticas do Romantismo inicial”.120 O arabesco seria então a forma com a qual os artistas conseguem alcançar os elementos românticos, o potencial definidor da poesia romântica. Conquanto não seja uma forma idealmente bela, é “uma forma espirituosa, que conquistou sua fantasia, e uma impressão que nos permanece tão determinada que podemos utilizá-la e configurá-la, seja para o gracejo, seja para a seriedade”.121 Os arabescos poderiam se apartar das convenções de beleza e dos gêneros fechados, bem como se manifestar na extravagância e no inverossímil. Por meio de Ludovico, um dos personagens da Conversa, Schlegel expôs que à poesia moderna faltava um “centro”, do qual usufruíam os antigos: “nós não temos uma mitologia”.122 Sentia, entretanto, que uma “nova mitologia” estava se aproximando e que a colaboração entre os artistas era importante para que fosse instituída. O poeta percebera que o “Idealismo”, grande fenômeno da época, era indício eloquente de que algo se engendrava, uma vez que esse fenômeno vinha “da mais íntima profundeza do ser humano”. Ainda assim, seria apenas uma parte — o efeito de uma luta travada pela humanidade para encontrar o seu “centro”. Nessa direção, o personagem Antônio percebe que a poesia antiga “segue integralmente a mitologia e evita até mesmo a matéria propriamente histórica”; e que, por outro lado, a poesia romântica “se assenta

117 BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Trad., apres. e notas Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus; Editora da Universidade de Campinas, 1993, p.48. 118 Os românticos tratavam como arte moderna aquela que vinha desde a ascensão do cristianismo. 119 SCHLEGEL, Friedrich. In: ECO, Umberto. História da feiura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2014, pp. 275. 120 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.53. 121 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.530. 122 Op. cit., p.514. 64 totalmente sobre o fundamento histórico, muito mais do que se sabe ou se acredita”. Por isso os “modernos mais antigos”, como Shakespeare, Cervantes, a poesia italiana, a época dos cavaleiros, do amor e das fábulas, seriam verdadeiros mananciais do romântico para os poetas que se estabelecem nessas bases: “só isso pode produzir um contraponto com a poesia da Antiguidade clássica; somente essas flores eternamente frescas da fantasia são dignas de cingir as antigas imagens dos deuses”.123 Uma das sugestões de Ludovico, por sua vez, é a de dar vida nova a mitologias diversas já existentes, com o objetivo de acelerar o nascimento de outra; e, da mesma forma que o amigo, ele enxerga no humour de Cervantes e de Shakespeare, edificado no todo de suas obras, um exemplo de como alcançar a altura de uma poesia que se erguera no emaranhado mitológico:

Com efeito, essa confusão artisticamente ordenada, essa atraente simetria de contradições, essa maravilhosa e eterna alternância de entusiasmo e ironia, que vive até nas menores partes do todo, já me parecem ser uma mitologia indireta. A organização é a mesma, e certamente o arabesco é a forma mais antiga e original da fantasia humana. Nem esse chiste, nem uma mitologia podem existir sem algo primordialmente original e inimitável, que é pura e simplesmente indissolúvel, que ainda faz transluzir a antiga natureza e força mesmo depois de todas as metamorfoses, em que a profundidade ingênua faz transparecer o fulgor do que é ao revés e desatinado, simplório e tolo. Pois este é o princípio de toda poesia, suprimir o curso e as leis da razão razoavelmente pensante e nos colocar de novo na bela confusão da fantasia, no caos original da natureza humana, para o qual não conheço até agora símbolo mais belo do que a turba confusa dos deuses antigos.124

Voltemos, pois, para Forma e exegese. A terceira parte é certamente a mais grotesca daquele conjunto já estranhamente fantástico; e se articula em muitos níveis com discussões e conclusões dos teóricos do Romantismo, apesar dos inúmeros aspectos mais contemporâneos e modernizantes. Ali estão os seguintes poemas: “A Legião dos Úrias”, “A última parábola”, “Alba”, “Uma mulher no meio do mar”, “O

123 Op. cit., pp. 535-6. 124 Op. cit., pp. 519-20. 65 escravo”, “O outro” e “A música das almas”. A principal razão pela qual a poesia de Vinicius de Moraes dialoga frequentemente com parâmetros variados da estética romântica é quase sempre desmudada, ou mesmo ignorada, o que pede, quando menos, uma digressão. Apercebamo-nos, antes, do expressionismo hórrido deste trecho de “A última parábola”, quando uma “história estranha e desconhecida” começa com um cordeiro de luz pastando num grande espaço aberto:

Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de [uma montanha longínqua E avança sobre o animal sagrado que apavorado se [adelgaça em mulher nua E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que [balança lentamente ao vento. A mulher nua baila para um chefe árabe mas este [corta-lhe a cabeça com uma espada E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos. Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas nesse [momento saem da cabeça chifres que lhe ferem o rosto E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de [cavalos enfurecidos Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os [lados mulheres e homens Que eram como faunos e sereias e outros que [eram como centauros Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas E se unirem depois num grande gigante descomposto e [ébrio de garras abertas125

Seres mitológicos experimentam novas circunstâncias ao se misturarem com figuras bíblicas, metamorfoses originais, elementos fantásticos; as ações são compostas de modo pavoroso e monstruoso, com vigor simbólico e violência. Nesta sequência alucinada, centauros, faunos e sereias — que também são homens e mulheres, que também se transfazem num gigante singularíssimo — foram abalroados com Jesus, com Satã — que surge como um cordeiro sagrado —, onde também se encontram cavalos

125 MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 83-9 (Anexo I, p. 133). 66 enfurecidos e um lobo feroz. Aqui, tudo parece não apenas seguir em direção às sugestões de Ludovico, mas desbordá-las. A partir de meados século XIX, o sensível desgaste das formas e das ideias do Romantismo deu origem a uma profusão de movimentos artísticos e vanguardas que motivaram um sem número de manifestos, experimentalismos formais e disputas entre os grupos que defendiam esta ou aquela alternativa estética. Tratamos, pois, do ponto de partida do que chamamos hoje, no mundo da arte, de Modernismo. Nas artes plásticas, podemos destacar movimentos como o impressionismo, o pós-impressionismo, o fauvismo e o expressionismo. Nas literárias, o decadentismo, o simbolismo e o realismo foram influentes e fundamentais para o soerguimento da modernidade. Os caminhos múltiplos, nesse momento histórico, poderiam apontar tanto para uma reação aos postulados românticos como para uma radicalização; muitas vezes, foram abertas trilhas heterogêneas, de aspecto composto e inusitado. Na França, escritores como Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e Arthur Rimbaud revolucionaram a poesia a partir da criação e da absorção de tendências, com grande foco na originalidade e no experimentalismo; são nomes indissociáveis do simbolismo, os quais, entre outras marcas, trouxeram em medida extrema a tentativa de apreensão do infinito, do indizível e do absoluto — o que já era praticado desde os primórdios do Romantismo, sobretudo o germânico, mas que muito se intensifica mediante uma confiança ainda maior na figura do gênio e na eloquência do misterioso. A perspectiva mais realista dos poemas parnasianos na virada do século era proeminente e muito prestigiada no Brasil. Entretanto, à margem, uma poesia de expressão simbolista começa a circular e a ganhar alguma atenção nos meios literários. Dentre os seus maiores representantes, o patamar mais alto foi alcançado certamente por Cruz e Sousa; o catarinense se muda para o Rio de Janeiro, onde, em 1893, tem os seus livros Missal e Broquéis publicados pela editora Magalhães & Cia. “Cruz e Sousa, sob o signo do simbolismo, arrisca um retorno aos ideais românticos em uma época dominada pelo Zeitgeist realista, radicalizando muitas de suas formas de expressão, como o grotesco, que recebe uma hipérbole em sua poesia”, observou Silva Santos.126 Já em 1912, o paraibano Augusto dos Anjos, poeta de mesma excelência, publica seu único livro, Eu, também no Rio de Janeiro; Augusto se apropria tanto da estética simbolista

126 SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.13. Obs.: Baseado na Tese de Doutorado do autor, este livro é provavelmente o trabalho mais robusto entre os que relacionam literatura brasileira e grotesco. 67 como da realista, que se mesclam em meio a uma sintaxe excêntrica inspirada no materialismo e no evolucionismo. Nenhum dos dois lograria em vida todo o reconhecimento merecido; mas, desde logo, uma tradição moderna veio a se desenvolver, com bases semelhantes, mais constantemente na poesia praticada na capital brasileira de então. A obra poética de Vinicius de Moraes é uma das legatárias dos postulados românticos que vieram desse modernismo simbolista, duto pelo qual melhor se observa e se compreende elementos estéticos que são encontrados em grandes poetas brasileiros do século XX. Não nos ocupamos, portanto, com uma predileção suspeita ou extemporânea do poeta; pelo contrário, é possível verificar uma consciência profunda de Vinicius nas suas escolhas, conectada indubitavelmente com o contemporâneo. A respeito, Antonio Carlos Secchin faz uma observação muito precisa no posfácio da reedição de O caminho para a distância:

Aqui, o interesse histórico extrapola a aventura particular de Vinicius e se projeta no painel mais amplo do conceito de modernismo em nossa poesia. Como se sabe, a hegemonia da versão paulistana do movimento acabou minimizando, quando não excluindo, a consideração das demais vertentes da literatura modernista. Afirmar que a geração de 22 foi iconoclasta e a geração de 30 representou a maturidade e a reconstrução poética significa traçar uma empobrecedora linha reta (quando a literatura é plena de sinuosidades) que parte de Mário e Oswald de Andrade e desemboca em Drummond e no Manuel Bandeira de Libertinagem. Para além dessa versão, houve outras, entre as quais uma que dialogou com a linhagem simbolista da modernidade (ignorada pelos modernistas de 22), e de que são exemplos as obras de Cecília Meireles e de Augusto Frederico Schmidt. Cecília, a bem dizer, só passou a ser reconhecida no Brasil a partir de Viagem (1939), mas a ressonância da poesia de Schmidt foi imediata, desde seu primeiro livro, Canto do brasileiro, de 1928. Seria absurdo pensar na obra desses dois poetas como “amadurecimento” das propostas dos protagonistas da Semana de Arte de 22, pois, a rigor, nada devem a ela, do mesmo modo que a “geração de 30” regionalista se formou na esteira de um diálogo com a literatura realista do século XIX, e não sob o influxo de narrativas transgressoras como Macunaíma e Memórias sentimentais de João Miramar. Cecília e Augusto Frederico tampouco são 68

“antimodernistas”, a menos que o modernismo seja termo de uso privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas. É a essa tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho para a distância.127

Quando a “geração de 22” se anuncia na Semana de Arte Moderna, bem como posteriormente, nas revistas e nos jornais literários articulados com o movimento, as expressões “modernismo”, “modernistas” ou até “moderno” apontaram para uma estética oriunda de debates específicos, sob a influência das últimas vanguardas europeias — especialmente o futurismo. E, por conseguinte, esses termos passam cada vez mais a encerrar um recorte da literatura moderna, caso a interpretemos do ponto de vista mais panorâmico. Tal embaraço entre significados acabou contribuindo para que os argumentos decorrentes ou próximos do pensamento que se estabelecia pudessem compreender as dessemelhanças como uma antonímia do moderno, isto é, como coisa antiquada — mesmo que, em verdade, fossem alternativas também absolutamente modernas. Alguns instrumentos críticos que já pertenciam a um senso mais realista, antilírico e antirromântico desde a primazia parnasiana se reafirmam envoltos àquele conjunto de concepções, mais contíguas ao materialismo do que aos valores abstratos; vestígios de uma visão de mundo romântica, deixados por influxo do simbolismo, foram logo sendo percebidos com excessiva suspeição mesmo estando presentes na maioria dos grandes poetas brasileiros. Em 1966, a exemplo, o ensaio assinado por Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza é injustamente duro com os primeiros livros de Manuel Bandeira.128 Segundo os autores, A cinza das horas, Carnaval e grande parte de Ritmo dissoluto foram livros comprometidos pelo sentimentalismo que, “às vezes, ronda os outros, ao modo de ameaça distante”; compunham uma atmosfera difusa “onde a imprecisão dissolvia as formas e sentimentos na bruma do pós-simbolismo”; em que se nota “um sentido algo convencional da cena expressiva ou da hora que foge, e que o poeta tenta prolongar, esfumando-a numa certa elegância impressionista”; no entanto, Bandeira teria se mostrado maduro em Libertinagem (o livro mais ligado ao modernismo de Mário e Oswald), despindo-se “dos adornos coloridos e melodiosos que, nos primeiros livros, dispersavam o impacto sobre o leitor”. Não obstante uma ascensão

127 SECCHIN, Antonio Carlos. Os caminhos de uma estreia. In: MORAES, Vinicius de. O caminho para a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 75-6. 128 CANDIDO, Antonio; MELLO E SOUZA, Gilda de. Estrela da vida inteira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Org. André Seffrin. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, pp. 9-25. 69 paulatina no percurso de sua poesia, é surpreendente que mesmo um dos mais lúcidos e acurados críticos da literatura brasileira desacredite nesses termos parte importante da obra de um dos poetas mais regulares — constante na excelência — da poesia brasileira; mais especificamente, o poeta de “Desencanto”, “A Antonio Nobre”, “Cartas de meu avô”, “A dama branca”, “Madrigal”, dentre outros. Os versos livres e longos do “primeiro Vinicius”, sobretudo os de Forma e exegese e Ariana, a mulher, presentes ainda no mesmo feitio em Novos poemas e Cinco elegias, não lembram aqueles do modernismo paulista; e parecem se aproximar de versos franceses como o de Paul Claudel ou de uma ascendência que vai da poesia em prosa de Cruz e Sousa aos versos de Schmidt em Canto da noite (1934).129 Ao se conciliar, adiante, com uma esfera semântica mais vinculada ao cotidiano e, logo, com uma linguagem mais aberta ao coloquial — substâncias caras ao movimento de 22 —, o poeta viria, por outro lado, a exercer e revigorar as formas fixas tradicionais e modalidades diversas do ritmo regular. Em qualquer desses momentos da obra, certa inquietação com a ideia da totalidade e do absoluto atravessam a elaboração das imagens, conquanto ela seja apontada em geral como característica daquela fase mais submersa no simbolismo. Vejamos, por exemplo, o desfecho da “Balada do enterrado vivo”, em Poemas, sonetos e baladas (1946):

Raspa, cara enlouquecida Contra a lenha da prisão Pesando sobre teus olhos Há sete palmos de chão! Corre, mente desvairada Sem consolo e sem perdão Que nem a prece te ocorre À louca imaginação! Busca o ar que se te finda Na caverna do pulmão O pouco que tens ainda Te há de erguer na convulsão Que romperá teu sepulcro E os sete palmos de chão:

129 Sob o heterônimo de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa praticou um verso longo de ritmo razoavelmente assemelhado nas décadas de 1920 e 1930. Pouco se sabe, porém, de possíveis aproximações entre o poeta português e os brasileiros (ressalvada conhecida exceção de apreço por parte de Cecília Meireles). 70

Não te restassem por cima Setecentos de amplidão!130

O túmulo hermético dentro do qual resiste o indivíduo, e, menor e mais absconso, o caixão que lhe encarcera, e, ainda mais incógnito, a “caverna do pulmão”, onde há talvez algum oxigênio, são componentes de um contexto poético de nexo subterrâneo e de agonia extrema — “angústia de viver”, diria Wolfgang Kayser. Essa agonia, contudo, mostra-se ao mesmo tempo como figura de um juízo existencial que, de algum modo, seria inerente ao indivíduo (inclusive, a mudança da pessoa verbal no fim da balada eleva esse juízo ao domínio universal); ou seja, ela se daria também nos setecentos palmos de amplidão que lhe restam por cima, um sepulcro inescapável, irrompível. Se Schlegel via nos “arabescos” um veículo de caldeamento dos heterogêneos para que a poesia pudesse compreender a totalidade, Vitor Hugo (1802-1885) percebia nos “grotescos” o polo oposto do sublime, uma vez que a natureza seria profundamente coesa: “Perguntar-se-á se a razão estreita e relativa do artista deve ter ganho de causa sobre a razão infinita, absoluta, do criador; se cabe ao homem retificar Deus; se uma natureza mutilada será mais bela”; “se, enfim, o meio de ser mais harmonioso é ser incompleto”.131 Foi Hugo quem aproximou decisivamente, por esse ângulo, o conceito de grotesco às formas da feiura e do horrendo. Tais aspectos seriam assim concebidos, porém, apenas quando em contradição exata com o sublime: em concurso com o belo, o sublime dirige nosso olhar para um mundo elevado, sobre-humano; com o feio, o grotesco nos levaria ao mundo estranho do absurdo e do ridículo, do monstruoso e do horrível. O longo prefácio que o visionário escritor francês redigiu para sua peça Cromwell (1827), fundamentando opções estéticas, tornou-se um notável escrito programático do Romantismo. O texto viria a ser mais famoso que a peça em si própria, e essencial para entender o impacto que o grotesco exerceu sobre a arte e as teorias românticas. Victor Hugo expõe ali a teoria das três idades: o gênero humano teria crescido e se desenvolvido; e alcançou a maturidade como qualquer um de nós. “Foi criança, foi homem; assistimos-lhe agora a imponente velhice”. Na primeira etapa da humanidade, “fabulosa” ou “primitiva”, a ode é a manifestação poética: “Eis o primeiro

130 MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta, 1946, pp. 74-6 (Anexo I, pp. 139-41). 131 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Trad. e notas Célia Berrettini. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.26. 71 homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda sua poesia”. Na Antiguidade, “a família se torna tribo, a tribo se faz nação”. Há choque de impérios, guerra: “A poesia reflete esses grandes acontecimentos; das ideias ela passa às coisas. Torna-se épica, gera Homero”.132 Somente a partir do cristianismo, de acordo com o escritor, a partir do drama, a poesia almejada como verdade e ideal estético teria sido possível; os temas e as formas da tragédia e da comédia comportariam a completude do homem, o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o divino e o terreno. A “musa moderna”, desse modo, com olhar mais elevado e amplo, sentiria “que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”. Hugo concede que algo de grotesco e cômico já se encontrara na literatura da Antiguidade, como Polifemo ou Sileno, como ciclopes, tritões, sátiros, sereias, fúrias, parcas, harpias; entretanto, seriam sempre formas com certo grau de engrandecimento ou beleza, ou de timidez, haja vista seu dissimulado caráter grotesco. Muito distintamente do que teria emergido na terceira idade do gênero humano:

No pensamento dos Modernos, ao contrário, o grotesco tem um papel imenso. Aí está por toda a parte; de um lado, cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico e o bufo. Põe ao redor da religião mil superstições originais, ao redor da poesia, mil imaginações pitorescas. É ele que semeia, a mancheias, no ar, na água, na terra, no fogo, estas miríades de seres intermediários que encontramos bem vivos nas tradições populares da Idade Média; é ele que faz girar na sombra a ronda pavorosa do sabá, ele ainda que dá a Satã os cornos, os pés de bode, as asas de morcego. É ele, sempre ele, que ora lança no inferno cristão estas horrendas figuras que evocará o áspero gênio de Dante e de Milton, ora o povoa com estas formas ridículas no meio das quais se divertirá Callot, o Michelangelo burlesco.133

Em “Balada feroz”, de Novos poemas (1938), a feiura e o horrível naturais mesclam-se à fantasia monstruosa e à representação de arbítrios inferiores; a criatividade então segue um fluxo livre e grotesco, o qual, apesar da violência da expressão, anuncia seu propósito de destacar e exaltar a “pureza” e as faculdades do

132 Op. cit., pp. 16-8. 133 Op. cit., p.26-31. 72 poeta, como também de sua poesia tal ferramenta reformadora. Vitor Hugo observa em seu ensaio sobre Shakespeare que esse espírito que “flui rumo ao terrível” é inexorável: “O poeta só se limita pelo seu objetivo; só considera o pensamento a realizar; não reconhece outra soberania e outra necessidade que não seja a ideia; pois, emanando a arte do absoluto, na arte como no absoluto, o fim justifica os meios”.134 Aqui, os versos ainda não se conformam à típica balada viniciana135 e se abrem a uma imaginação indômita, suntuosa e terrível; são repletos de melodia e assonâncias de toda sorte, que embalam o leitor em respiração tão mais árdua quanto insalubre:

Canta como um louco enquanto os teus pés vão [penetrando a massa sequiosa de lesmas// (...) Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o [corpo felpudo das aranhas Ri dos touros selvagens carregando nos chifres virgens nuas [para o estupro nas montanhas// (...) E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as [narinas, lança-te sobre a cidade mortuária Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um [velho canhão soterrado, volta E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que [comem as fezes verdes das estradas//(...) Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e [passeia de noite sobre as grandes cidades Espalhando o terror por onde quer que pousem [tuas antenas impalpáveis Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o [medo, aos avaros o ouro E para que apodreçam como porcos injeta-os de pureza!

E com todo esse pus, faz um poema puro/ (...)136

134 HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000, p.152. 135 Destacada por conta de poemas antológicos da lírica brasileira, como “Balada do Mangue” e “Balada das meninas de bicicleta”, possui como propriedades fundamentais, além do acento musical, o sempre uso de redondilhas maiores, a presença de rimas dispostas em intervalos variáveis e o espírito de crônica. 136 MORAES, Vinicius de. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, pp. 25-8. Obs.: Algumas pequenas alterações foram efetuadas nas duas edições de Antologia poética (1954, 60) e, por isso, incorporadas na citação. MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Segunda edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, pp. 47-9 (Anexo I, pp. 138-9). 73

ROMANTISMO REALÍSTICO

Segundo Schlegel, cada um de nossos pensamentos é resultado de uma atividade essencial do espírito, que consiste em “determinar a si próprio, sair de si e retornar a si em eterna alternância”. O Idealismo seria um fenômeno de reconhecimento de tal atividade, dessa “legislação sobre si”, como também uma vida nova que assim seria reduplicada e revelaria sua força na “ilimitada profusão de novas descobertas”, na “comunicabilidade universal” e na “viva eficácia”. A seu turno, o Idealismo deixaria também o interior de si mesmo para voltar e “permanecer aquilo que ele é”. Como produto desse processo, o pensador germânico fala do surgimento possível de um novo realismo, igualmente ilimitado. E dá como exemplo dessa tendência os últimos postulados da física, possivelmente se referindo à abstração de cenários ideais que dão origem a fórmulas que, em contrapartida, se mostram verdadeiras e que funcionam na realidade natural — “uma visão mitológica da natureza”. Schlegel, entretanto, assevera que somente na poesia esse novo realismo caberia plenamente, que ele jamais poderia aparecer na forma da filosofia ou de um sistema: “sendo de origem ideal e tendo, por assim dizer, de pairar num fundamento e solo ideais, ele aparecerá como poesia que deve se apoiar sobre a harmonia do ideal e do real”.137 É improvável alcançar de modo exato quais as feições dessa nova poesia realista conjecturada por Schlegel. Ele próprio deixava claro que não a concebia com todas as letras até então, apesar de trazê-la consigo. Mas a harmonia do ideal e do real, viabilizada por meio da evasão e do encontro do idealismo com os elementos não- ideais, e do seu retorno, e da subsequente expressão realística do poeta — de origens e de fundamentos ideais —, faz paralelo com um modo de operação muito recorrente da poesia de Vinicius. Esse modo materializa como poesia uma visão de mundo que podemos chamar de romantismo realístico; o qual já se faz visível em poemas populares como, por exemplo, o “Soneto de fidelidade”. Ali, a idealização de um compromisso que envolve inclusive, de forma absoluta, o pensamento do amante nada consegue fazer diante da natureza transitória do sentimento — o que resulta na chave-de-ouro que já se tornou um lugar-comum da cultura brasileira: “Que não seja imortal, posto que é

137 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, pp. 516-7. 74 chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.138 Todavia, as substâncias não-ideais, às vezes, ultrapassam os limites do senso poético mediano, e podem incomodar as sensibilidades mais desapercebidas. É o caso de “O amor dos homens”.139 O início desse poema, que é o mais longo de Para viver um grande amor, faz lembrar a definição que foi dada ao conteúdo romântico por Antônio, um dos personagens de Schlegel: “romântico é precisamente o que nos expõe uma matéria sentimental numa forma fantástica”;140 advertindo em seguida que “sentimental” é palavra a ser disposta de maneira a aludir à essência de um Petrarca, um Tasso, e nunca pejorativamente, como na língua comum.

Na árvore em frente Eu terei mandado instalar um [alto-falante com que os passarinhos Amplifiquem seus alegres [cantos para o teu lânguido despertar. Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo Com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios E me darás a boca em flor; minhas mãos amantes Te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga Do fundo do teu ser de sono e plumas Para me receber; (...)

Mas o ambiente seguro e aprazível se desarticula de súbito com a chegada das imagens de uma realidade não-ideal — embora a fantasia seja evidente nos fundamentos da elaboração. O poeta expõe-se aqui ao traçar um retrato violento, visto que, não raro, a insensibilidade e a incompreensão frente às inúmeras nuances da arte, historicamente, podem se converter em violência crítica ou ostracismo. Ainda assim, na direção do que defendera Victor Hugo, Vinicius limita-se somente pelos seus objetivos; jamais reconhece outra soberania, outra necessidade que não seja suas ideias e seu compromisso com a obra:

138 MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta, 1946, p.7. 139 MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pp. 212-7. 140 SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos sobre poesia e literatura: seguido de Conversa sobre poesia. Trad. e notas Constantino Luz de Medeiros, Márcio Suzuki. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.533. 75

Silencias. Odeio o teu silêncio Que não me pertence, que não é De ninguém: teu silêncio Povoado de memórias. Esbofeteio-te E vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue Flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura E coses com linha amarela o meu pulso [abandonado, que é para Combinar bem as cores; em seguida Fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta Transfusão. (...) Tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza Corrói minha carne como um ácido! Teu signo É o da destruição! Nada resta Depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento De todo o meu inútil, a causa De minha intolerável permanência!

Os grandes poetas e escritores, se grandes, vão a fundo no objeto e nas questões que pretendem representar e abordar, inclusive com perspectivas distintas se comparadas às de outros grandes artistas. Como grande poeta do Amor, Vinicius é também poeta das relações amorosas, as quais não se constituem somente do Amor em seu estado puro, mas de um conjunto de elementos humanos, frequentemente indesejáveis, como o egoísmo, o sentimento de posse, a raiva circunstancial, as idiossincrasias etc. Essas relações também se constituem do conflito entre elementos sexualmente distintivos, de variados tipos, cujas características podem ser às vezes admiráveis ou moralmente questionáveis. Tais elementos que agregam ou circundam o Amor em estado puro são intensificados na mesma medida em que os sentimentos mais nobres também tomam intensidade. Vinicius não é então meramente um ideólogo daquilo que as relações amorosas deveriam ser. Ainda que seja inegável em sua poética certo idealismo amoroso, Vinicius é sobretudo um poeta que revela como o Amor, na sua forma mais intensa, pode acontecer na realidade. Aí se encontra boa parte das cores que o tornam original e... grande; não fosse desse modo, sua poesia seria apenas um pastiche daquilo que escritores e poetas românticos já haviam feito no século anterior, com excelência ou não, em todos os cantos do mundo. Essa mistura entre idealismo e realismo é configurada em sua poesia com habilidade particular, sob um manuseio de

76 recursos poéticos que dão nova potência à tradição. Se Vinicius de Moraes tivesse dado ouvidos ao canto da sugestão restritiva, sobretudo daqueles que seguem cegos de ideologia ou dos que são poeticamente insensíveis, não teria contribuído de maneira cabal, como contribuiu, com a literatura de língua portuguesa; muito menos penetrado de igual forma na cultura popular — para onde sua poesia estendeu as mãos inventivas.

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VII. BAUDELAIRE NO MIRAMAR

O legado baudelairiano na poesia ocidental, desde as últimas décadas do século XIX até hoje, reincide com tal constância e de tantas formas, que não seria exagero afirmar que um norte estético, moderno, por vezes inconsciente, foi dado sob a influência decisiva de Baudelaire. O poeta francês superou um conjunto de recursos já desgastados do romantismo sem abdicar de grande atenção, no entanto, para com a totalidade e o sublime, alcançados por meio da interação ativa e desinquieta com o obsceno, a maldade, o abjeto, o grotesco. Foi precursor do simbolismo, influenciou realistas, colaborou definitivamente com os contornos da modernidade. No Brasil, a partir da década de 1870, poetas como Teófilo Dias e Carvalho Júnior reivindicavam a poesia de Baudelaire e utilizavam-na como uma suposta evidência favorável à estética realista e à negação do romantismo. Carvalho Júnior escreve à época o soneto “Profissão de fé”, em que se apropria de imagens de “L’Idéal” para compor um tributo ao realismo: “Odeio as virgens pálidas, cloróticas/ Belezas de missal que o romantismo/ Hidrófobo apregoa”, que sugerem à memória “Je laisse à Garvani, pöete des chloroses,/ Son troupeau gazouillant de beautés d’hôpital”. Elementos da poesia baudelairiana como o erotismo carnal e a agressividade levariam então uma parte considerável da crítica a esse entendimento que aproximava o francês da estética realista.141 Não era o caso de . Em “A nova geração”, texto publicado em 1879 na Revista Brasileira, ele afirma que “os termos Baudelaire e realismo não se correspondem tão inteiramente” e lembra que o próprio poeta havia repugnado a classificação de realista — “cette grossière épithète”.142 As reservas de Baudelaire evidenciadas em poemas como “L’Idéal” não apontavam na verdade para esta ou aquela tendência específica, mas à mediocridade de muitos artistas de seu tempo que não carregavam na poesia as dimensões da eternidade, encontradas nas grandes

141 SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, pp. 420-30. 142 CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadismo e simbolismo no Brasil: crítica e poética. Vol. 1. Brasília: Livros Técnicos e Científicos; INL; MEC, 1980, pp. 142-3. 78 obras do passado. Como podemos perceber em sua teoria sobre a modernidade,143 elementos que remetem ao eterno e que se insinuam nas impressões cotidianas seriam cruciais à beleza moderna. Nos quartetos de “Une charogne”, Baudelaire apresenta um espetáculo natural que ultrapassa a simpatia pelo horror. A carcaça em putrefação compreende uma beleza desconfortável e expõe um encadeamento de substâncias comuns à fruição do sublime. Absortas naquela carniça, as imagens carregam algo novo quanto à representação do grotesco na literatura, mais precisamente o reconhecimento das conotações telúricas de ampla abrangência no processo de decomposição: a transcendência do abjeto à esfera do cósmico; a interação do elevado com o baixo; o ciclo natural; a finitude da beleza como elemento de transição. Ali, um erotismo violento atira vigor vital e moral na carne morta:

Les jambes en l’air, comme une femme lubrique, Brûlante et suant les poisons, Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique Son ventre plein d’exhalaisons.144

A ação do sol sobre a carcaça, bem como o testemunho do céu, eleva o patamar imagético do repulsivo, dá-lhe um caráter cósmico e o reorienta como substância de um ciclo eterno; o sublime e o grotesco, desde logo, se misturam:

Le soleil rayonnait sur cette pourriture, Comme afin de la cuire à point, Et de rendre au centuple à la grande Nature Tout ce qu’ensemble elle avait joint;

Et le ciel regardait la carcasse superbe/ (…)145

143 Le Peintre de la vie moderne. Em edição brasileira: BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 144 “As pernas para cima, qual mulher lasciva,/ A transpirar miasmas e humores,/ Eis que as abria desleixada e repulsiva,/ O ventre prenhe de livores.” In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. intr. e notas Ivan Junqueira. Bilíngue. Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 158-9. 145 “Ardia o sol naquela pútrida torpeza,/ Como a cozê-la em rubra pira/ E para ao cêntuplo volver à Natureza/ Tudo o que ali ela reunira.// E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça” In: Op. cit., pp. 158-9. 79

Larvas e moscas movimentam em ondas a carniça e, de tal forma, vida e morte se desapertam nas mesmas imagens — e se confundem. Aqui, a matéria física do objeto passa por um processo de sublimação: primeiramente se liquefazendo para que depois se converta em ar ou, ainda, em música. Isso por meio de cenas incisivas como “Tout cela descendait, montait comme une vague,/ Ou s’elançait en pétillant”, até “Et ce monde rendait une étrange musique,/ Comme l’eau courante et le vent”.146 O ponto mais elevado dessa escalada a uma rarefação é tornar-se apenas um sonho, ou, talvez, o devir de um esboço, cujo artista só poderia enxergá-lo mentalmente. Entretanto, o poema desce de forma brusca aos pormenores cotidianos ao fazer menção a uma cadela que aguarda a passagem do casal para retomar seu bocado; a realidade concreta recobra assim seu espaço. A carniça que, a priori, é objeto repugnante e desprezível comporta poeticamente, portanto, um cosmo de imenso domínio e tenciona a plenitude. A apóstrofe do primeiro verso reaparece com toda a relevância nas últimas três estrofes, quando o poeta não apenas dirige seu discurso mais diretamente, mas compara o interlocutor, sua amada, com aqueles despojos apodrecidos. E então contrastes incômodos se alvoroçam: o amor e o asco, o sublime e o grotesco, a linguagem amorosa e os signos do hediondo e do macabro. A ironia é levada a um extremo de pouca ou nenhuma precedência ao mesmo tempo em que há gravidade e seriedade nas considerações sobre a finitude da beleza e do amor.

— Et pourtant vouz serez semblable à cette ordure, A cette horrible infection, Étoile de mes yeux, soleil de ma nature, Vous, mon ange et ma passion! (…)

Alors, ô ma beauté! dites à la vermine Qui vous mangera de baisers, Que j’ai gardé la forme et l’essence divine De mês amours décomposés!147

146 “E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,/ Ou esguichava a borbulhar”/ (...); “E esse mundo emitia uma bulha esquisita,/ Como vento ou água corrente” In: Op. cit., pp. 158-61. 147 “— Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,/Essa medonha corrupção,/ Estrela de meus olhos, sol da minha vida,/ Tu, meu anjo e minha paixão!”// (...); “Então, querida, dize à carne que se arruína,/ Ao verme que te beija o rosto,/ Que eu preservarei a forma e a substância divina/ De meu amor já decomposto!” In: Op. cit., 160-1. 80

No ensaio “A rainha das faculdades”, Baudelaire questiona se aqueles que içavam a natureza como o belo ideal e que defendiam sua cópia como um ideal para a arte estariam seguros de conhecer “toda a natureza, tudo o que lhe está contido”. Segundo o poeta, o “homem imaginativo” teria razão ao pensar que a natureza é feia; e preferir os monstros de sua fantasia em vez da “trivialidade positiva”.148 No “Elogio da maquilagem”, o francês chega a um entendimento idêntico ao analisar o objetivo e o resultado do uso cosmético, costumeiro, do “pó-de-arroz”; pergunta se alguém não percebeu que o propósito é fazer com que desapareçam da tez “todas as manchas que a natureza nela [na mulher] injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino superior”.149 O raciocínio de Baudelaire, evidenciado em diversas passagens de sua produção teórico- filosófica, desvia-se assim de um fundamento marcadamente rousseauniano em que o natural seria sinonímia do bom e do belo — enxerga ali, em verdade, uma larga jurisdição da feiura. Aposta, em contrapartida, no artificial, no novo, naquilo que não existe — na imaginação como conceito específico, menos contíguo da fantasia que de uma inteligência possível, um tanto visionária, do indivíduo. Ao criticar o modo como a feiura se estabelece em parte importante da arte contemporânea, o filósofo Roger Scruton (1944-) argumenta que o rude e o sórdido caracterizado pela cultura do fin-de-siècle trespassava necessariamente os anseios do artista pelo belo; uma tradição teria se principiado por Baudelaire, com Fleurs du Mal (1857) e Flaubert, com Madame Bovary (1857) — culminando nos romances de Émile Zola, Henry James, nas óperas de Alban Berg e na poesia de T. S. Eliot. “Zola e Berg nos recordam de que a verdadeira beleza pode ser encontrada até mesmo naquilo que é rude, doloroso, decadente”, observa o filósofo inglês. Essa concepção resultaria num tipo de “redenção pela arte”, oriunda de um fecundo paradoxo: uma cultura que “continuou a acreditar na beleza ao mesmo tempo em que se concentrou em todas as razões que a levavam a duvidar de que a beleza poderia ser alcançada fora da esfera artística”. Por outro lado, muitas obras mais recentes teriam se vinculado apenas à feiura por si só, apoiadas teoricamente na rejeição da beleza em sentido estrito:

148 BAUDELAIRE, Charles. A rainha das faculdades. Caderno de leituras, nº 84. Trad. Lívia Cristina Gomes. São Paulo: Chão da Feira, dezembro de 2018. 149 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.59. 81

Na tradição de Baudelaire, a arte paira como um anjo sobre o mundo que se encontra sob sua atenção. Ela não evita o espetáculo da loucura, da malícia e da decadência humana, mas convida-nos a outra parte, afirmando que “là tout n’est qu’ordre et beauté:/ Luxe, calme et volupté”.150 A arte mais recente, por sua vez, cultiva uma postura transgressora, igualando a feiura daquilo que retrata com uma feiura própria. A beleza é rebaixada a algo demasiadamente doce e escapista, distanciando-se demais das realidades para merecer uma atenção desenganada.151

A composição de imagens por meio do erotismo grotesco, encarnado na animalização de aspectos humanos e no apelo à violência e ao asqueroso, é contento extraído mas extremamente avigorado da teoria romântica. Tudo o que Baudelaire conduz do Romantismo “— e é muito —” se transforma “em uma experiência tão dura que, em confronto com ele, os românticos parecem amadores”, segundo os termos e a consideração de Hugo Friedrich.152 O poeta antecipa componentes que viriam a ser usuais no simbolismo brasileiro, sobretudo em Cruz e Sousa. A abertura do poema ao léxico de toda a estirpe, à explicitação da feiura, às minúcias materiais e brutais, dentre outros recursos, facultaria também o surgimento de uma obra extraordinária como a de Augusto dos Anjos. E os mecanismos diversos da lírica baudelairiana continuariam a abrir portas para os maiores nomes da poesia brasileira ao longo do século XX. Nesse contexto, a transcendência simbólica mais importante não é a que escapa da matéria em busca do infinito, mas a que põe a infinitude em função do mundo material e de seus mecanismos implacáveis.

BALADA DA MOÇA DO MIRAMAR

Silêncio da madrugada No Edifício Miramar... Sentada em frente à janela

150 Na trad. de Ivan Junqueira: “Lá, tudo é paz e rigor,/ Luxo, beleza e langor”. Op. cit., pp. 208-11. 151 SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2017, pp. 177-86. 152 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: metade do século XIX a meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni (texto) e Dora F. da Silva (poesias). São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 42. 82

Nua, morta, deslumbrada Uma moça mira o mar.

Ninguém sabe quem é ela Nem ninguém há de saber Deixou a porta trancada Faz bem uns dois cinco dias Já começa a apodrecer Seus ambos joelhos de âmbar Furam-lhe o branco da pele E a grande flor do seu corpo Distila um fétido mel.

Mantém-se extática em face Da aurora em elaboração Embora formigas pretas Que lhe entram pelos ouvidos Se escapem por umas gretas Do lado do coração. Em volta é segredo: e móveis Imóveis na solidão... Mas apesar da necrose Que lhe corrói o nariz A moça está tão sem pose Numa ilusão tão serena Que, certo, morreu feliz.// (...)153

Publicada em 1954, na Antologia poética de Vinicius de Moraes, a “Balada da moça do Miramar” descreve o cadáver de uma mulher, “nua, morta, deslumbrada”, de frente a uma janela do Edifício Miramar. Seu corpo apodrece já há alguns dias, mas ela deixou a porta trancada e ninguém sabe de sua morte. A imagem do deslumbre, que fora do contexto poderia remeter a uma expressividade carregada de vida, torna-se um retrato preciso e tétrico no poema, resultado do contraste. O sentido de se deslumbrar, que é ter a visão abalada pelo excesso de luz, aqui é tê-la abalada pelo seu inverso; ou então que se entenda a morte como iluminação. A moça está sem “pose”. A extensão de sentido da palavra também é provocadora e antagônica: assumir atitudes afetadas ou

153 MORAES, Vinicius de. Balada da moça do Miramar. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954, pp. 200-1 (Anexo I, pp. 143-5). 83 imitativas é uma hipótese nula para um cadáver, embora esteja ele perfeitamente parado como quem está sujeito a uma foto ou pintura — ou à poesia. Necrofilia lunar, violação solar; os signos mais elevados podem se refletir nessa feroz materialidade; vida e morte vêm e vão como substâncias imiscíveis ou como mistura homogênea enquanto os ossos atravessam a pele da moça. “Balada da moça do Miramar” é uma das mais belas baladas vinicianas e dialoga com uma tradição em que o grotesco sai das margens e se torna protagonista. A descrição de uma jovem à janela ou em uma sacada traz consigo relevante conotação amorosa, herdeira do imaginário histórico das literaturas cuja cena mais memorável, podemos afirmar, foi aquela de Romeu e Julieta em seu segundo ato. Essa conotação amplifica o desconforto e o fascínio desempenhados pela imagem daquele corpo em decomposição. E, portanto, o deslumbrar-se da moça ganha significado mais uma vez: por hipótese, um episódio de amor pode se encadear aos fatos. A referência a um “fétido mel” que sai da “flor do seu corpo” corrobora sugestivamente, além de introduzir um tipo estranho de erotismo que se sucederá ao longo do poema. Tal dispositivo erótico se disfarça de maneira simbólica e grotesca em algumas passagens, aproveitando-se das ocorrências que envolvem a putrefação e os seus menores desdobramentos; sobrevém a partir da interação íntima com o heterogêneo e só se revela de modo peculiar e macabro: “formigas pretas/ Que lhe entram pelos ouvidos/ Se escapem por umas gretas/ Do lado do coração”. A respeito de certos bichos, Kayser menciona algumas espécies preferidas do grotesco: insetos, sevandijas (nome comum a parasitas e vermes imundos), serpentes, corujas, sapos, aranhas, cigarras, escaravelhos, mariposas e, especialmente, o morcego.154 Aqui, as formigas ampliam sua dimensão telúrica; insetos já naturalmente apensos ao subterrâneo e às profundezas, elas ganham acolhida no interior das grutas e cavidades daquela mulher. As interações heterogêneas se manifestam igualmente, entretanto, com o reino vegetal: “Seus ambos joelhos de âmbar/ Furam-lhe o branco da pele” (destaque-se a harmonia ambos- âmbar); isto é, já com a cor e a luz acrílica da resina fóssil, as pontas agudas de seu esqueleto atravessam — defloram — o tecido fragilizado da moça do Miramar. A flor de seu corpo, com seu mel nauseante, colabora de imediato com essa figuração. A unidade semântica de “móveis/ Imóveis” é caso insólito em que efeitos concomitantes de antítese e pleonasmo se manifestam no mesmo simples arranjo. O

154 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 157-8. 84 substantivo “móvel” designa, como se sabe, determinadas peças de uma residência que podem ser movidas, transportadas, e opõe-se ao substantivo “imóvel”, o qual se refere à residência em si mesma, que, por suposto, não pode se mover; as duas palavras opõem- se de modo diametral, o que justifica o prefixo distintivo no mesmo signo. A palavra “imóveis”, por outro lado, aplicada nesse âmbito como adjetivo, aparece à primeira vista como um adjunto desnecessário, ao se dirigir a objetos inanimados que não podem se mover (“Madeira, matéria morta”, em outro poema155). Em verdade, o arranjo expressa em grande medida o motivo essencial da terceira estrofe: a solidão e o silêncio — sintetizados no signo do “segredo” — estabelecidos em profundidade longínqua, onde tudo permanece absolutamente parado e alheio ao restante do mundo. E, tão estática quanto as coisas que a circundam, a moça mantém-se, ademais, “extática” (com xis) — em êxtase, ou, em outras palavras, “deslumbrada”. Em contraste, somente a movimentação dos pequeninos seres em seu corpo interessados no apodrecimento; e, acima, o trabalho celeste naquele fim de madrugada; e a “necrose/ Que lhe corrói o nariz”. Tal falecimento das células ou do tecido orgânico pode ser encontrada também em “Balada dos mortos dos campos de concentração” (Cadáveres necrosados/ Amontoados no chão/ Em beijos estupefatos/ Como ascetas siderados/ Em presença da visão); em “Romance da amada e da morte” (Enche-lhe bem a caveira/ Sai dançando um rock-and-roll/ Retorcendo-se do cóccix/ E trescalando a necrose); ou em “Sob o trópico do câncer” (Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo/ Que empesteias as brancas madrugadas/ Com teu suave mau cheiro de necrose). Aqui, a mazela se dá concatenada a uma feliz ilusão. A quarta estrofe possui um léxico iluminado apesar do horrendo sobre o qual o poema se debruça; e aborda de maneira aberta o belo possível que há em certos aspectos do cadáver.156 Retornemo-nos, pois, a Baudelaire. O poeta procura estabelecer uma “teoria racional e histórica do belo” a partir do princípio da dimensão dupla de impressão única da beleza. Seu elemento absoluto seria apenas uma de suas faces:

155 MORAES, Vinicius de. A porta. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.35. 156 Na 2ª ed., revista e aumentada, da Antologia poética (Editora do Autor, 1960), a terceira e a quarta estrofe aparecem juntas, i.e., perfazem uma só estrofe. Apesar de se tratar de um volume de alto valor para fixação de texto, visto que foi expressamente revisado, as demais edições nos levam a acreditar que esse formato não passa de um erro despercebido: na edição de origem (Rio de Janeiro: A Noite, 1954), as duas partes estão divididas por um salto de página; em Obra poética (Rio de Janeiro: Aguilar, 1968), as partes reaparecem separadas em duas estrofes distintas; e, nas inúmeras edições da Antologia poética publicadas posteriormente pela José Olympio, é também desta forma que o poema se repete. 85

O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha esses dois elementos.157

Baudelaire se firma nesse campo variável da beleza ao explorar poeticamente aquilo que, em outro meio, é somente malconformado ou mesmo repulsivo. Ainda que seja difícil imaginar, por exemplo, que uma carniça atue como invólucro digerível, apreciável e adaptado à natureza humana, é preciso pensar no objeto como substância tangível capaz de evocar circunstancialmente o indizível e o sublime. Aqui, Vinicius concede um requinte gótico à caveira da moça, à mostra, ao apresentá-la como algo admirável: “seu cabelo de ouro/ Rebrilha com tanta luz/ Que a sua caveira é bela”. Em seguida, o poeta inverte o recurso na fotografia do baixo corporal, ou seja, a imagem é simples, indistinta, embora o elemento circunstancial faça com que ela se torne e incômoda: “belo é seu ventre louro/ E seus pelinhos azuis”. O traço relativo e distintivo da imagem é o fato de expressar uma perspectiva sensual diante de um corpo em decomposição; a luminosidade dos pelos pubianos se manifesta em concordância com o tom positivo que é ofertado à estrofe, exercendo interlocuções semânticas com a beleza e com brilho da lua — embora esta luz já comece a contar também com os raios de uma aurora possível. Aquelas figuras que são geralmente afins da obscuridade, nestes versos, são aclaradas ou reanimadas: “A vida que está na morte” é uma impressão solar dos pequenos seres imundos que se mexem no cadáver, conquanto devorem seus dedos; o “aro de ouro”, aliança que sobrevive a esse apetite, “a morte em vida lhe deu” — expressão que arremata o quiasmo. Neste momento, verifica-se uma pista importante sobre o ocorrido; caso não, um entendimento excepcionalmente adverso quanto ao compromisso conjugal. A poesia do segredo é só o que se desvenda, por certo, na balada.

157 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 10-1. 86

O tempo começa a correr acelerado nas últimas estrofes, de modo que se compreendam os gestos siderais: a interação do elevado com o baixo. A noite logo retorna ao cenário. E então a lua é quem ama aquela moça: duas figuras de gênero feminino se unem num conúbio necrofílico e astral cuja “trama” é tecida pelo mar, que as acompanha. Significados possíveis da palavra exercem efeitos na passagem: “trama” é sinônimo de enredo, de uma sucessão de acontecimentos — supostamente engendrados pelo mar; mas também é o conjunto de fios que se tecem — o que faculta à lembrança tecidos de casamento análogos à espuma marítima. Ainda sobre o termo, agora em nexo mais negativo: o verbo tramar é fazer maquinação, conspirar; e, sob uma acepção antiga, o substantivo evoca a peste, o mal contagioso, a doença, a enfermidade. O cenário se reveza com o “sol violento”. As ações do astro, que estimulam a putrefação do cadáver, são representadas pela ideia do estupro — esse “violentar” submergido na contextura sexual. As ações do vento, a seu turno, são indissociáveis daquelas do sol: o forte movimento do ar é enunciado como um atributo do astro (“O sol batido de vento”); e percebido sugestivamente nas reverberações (violento- furor violeta- violentar). Nessa alternância contínua entre a noite e o dia, ícones celestes, vultosos e sublimes como a lua, o sol, os ventos comunicam-se de maneira íntima com os elementos mais ínfimos, terrenos e grotescos. Apesar de inerente à evolução e à manifestação do disforme e do repulsivo, essa dinâmica do tempo não deixa de ser cantada com modos populares, típicos da balada viniciana: “Muitos dias se passaram/ Muitos dias passarão/ À noite segue-se o dia/ E assim os dias se vão”. Ali, permanecem “mortas de paixão” a mulher e a lua. Se a última se deleita com a morte, com tal alegoria, a outra é matéria de um desastre — seu amor era “amor do mundo”, constituído da vida. Essa matéria se desagrega devagar para que possa viver novamente. O poeta medita, pois, a respeito de um ciclo natural que alcança não apenas a concretude desse mundo, mas os sonhos, as paixões, a entrega, o desespero. Sua consciência a respeito do tempo é o que insere no poema os aspectos mais desconcertantes, materialistas, que vão ao encontro de definições bakhtinianas do grotesco: “um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução”.158 A dimensão temporal é traduzida também formalmente, por meio de ativos literários tradicionais em sua construção. Ela se expressa não somente no inconfundível

158 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 21-2. 87 aproveitamento das baladas por Vinicius: como qual no emprego de um cenário característico do imaginário amoroso, aqui subvertido; no diálogo com a estética grotesca, especialmente a transfigurada por Baudelaire; no proveito da porção trágica presente no próprio nome do edifício, depois que Giosuè Carducci escreve sobre o Castello di Miramare e o fim de Maximiliano do México em Odi Barbare (1877). A expressão da vida que sempre morre; da morte vivendo nas pequenas palpitações invertebradas; do renascimento; da perplexidade e do amor humanos em qualquer das épocas: é a metonímia totalizante nos despojos daquela jovem.

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VIII. É BELA A BOMBA?

Reflexões sobre o tempo e a morte inspiradas em relógios, ampulhetas, já não eram desde muito novidade na história da arte. Mas é no século XX que se inicia uma era definitiva quanto à estética industrial. As máquinas já não precisavam representar um padrão de beleza alheio a seus mecanismos como aquela de James Watt, que escondia sua funcionalidade com arremates de linha clássica. A partir de então, foram possíveis, além de produtos com uma estética atraente por si mesma, outros que traziam a ideia de uma estética essencial em que “a forma segue a função”, cuja beleza seria tanto maior quanto mais eles fossem capazes de “exibir a própria eficiência”.159 É interessante lembrar que, a respeito do lançamento de um novo citroën, Roland Barthes ofereceu aos automóveis o status de mito contemporâneo, comparando-os de início às grandes catedrais góticas: “uma grande criação de época, concebida apaixonadamente por artistas desconhecidos, consumida por sua imagem”. O novo carro seria o melhor mensageiro do sobrenatural porque nele haveria “perfeição e ausência de origem” e a “transformação da vida em matéria”. Barthes observou que outros modelos atinham-se mais “ao bestiário da potência” enquanto o Citroën D.S.160 foi “da alquimia da velocidade para a gula do ato de conduzir”.161 O apelo estético dos automóveis ultrapassara o das antigas obras de arte; ao menos é esta a avaliação de alguns estudiosos e entusiastas da vanguarda e dos postulados futuristas.

Tendo criado carros enormes, bufantes, velozes e muito mais potentes que os monstros míticos da Antiguidade, os homens parecem tomados por um terror sagrado e põem em cena rituais de submissão à máquina

159 ECO, Umberto. História da beleza. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2013, p.394. 160 Com a pronúncia de “D.S.”, no francês , faz-se Déesse (Deusa). 161 BARTHES, ROLAND. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. 4ª ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, pp. 152-4. 89

ou se exercitam em exaltações desmedidas da nova beleza, a beleza da técnica, a beleza da velocidade e do automóvel!162

Filippo T. Marinetti, em seu manifesto de 1910, “L'uomo moltiplicato e il regno della macchina”, sensualizou a relação de um maquinista com a sua locomotiva ao considerar os modos como efetua a limpeza de seu “gran corpo possente”. Seriam “le tenerezze minuziose e sapienti di un amante che accarezzi la sua donna adorata”. O futurista italiano parte dessas imagens para explicar por que lhe pareceu absolutamente natural o fato de os organizadores da grande greve dos ferroviários não conseguirem induzir um único maquinista a sabotar sua máquina, “che tante volte aveva brillato di voluttà sotto la sua carezza lubrificante”.163 É muito característico na poesia de Vinicius de Moraes esse mesmo recurso, que transforma ideias, coisas e lugares em figuras femininas, tornando-os antropomórficos e prestes a uma interação encarnada, apaixonada, o que podemos verificar, por exemplo, em “Pátria minha”, “Mensagem à poesia” ou “O haver”. No caso de “A bomba atômica”,164 o poeta utiliza o que Marinetti chamava de inútil velharia poética, ou seja, símbolos tradicionais como “estrela vespertina”, para se reportar entretanto a um objeto desenvolvido no intuito do extermínio em massa.

Bomba atômica, eu te amo! és pequenina E branca como a estrela verspertina

Contrastes tão inconcebíveis talvez encontrem paralelo em algumas descrições de “Na colônia penal”, de Franz Kafka. Enquanto o objeto no poema de Vinicius é um veículo de genocídio, o do escritor tcheco, no conto, é um instrumento de tortura. As engrenagens do “rastelo” são por vezes descritas pelo oficial com um capricho muito particular. Sua admiração pelo aparelho é uma criatura grotesca: “Ele se posiciona automaticamente de tal forma que toca o corpo apenas com as pontas; quando o contato se realiza, este cabo de força fica imediatamente rígido”. E continua: “O não iniciado

162 BERARDI, Franco. Depois do futuro. Trad. Regina Silva. São Paulo: Ubu, 2019, p.24. 163 MARINETTI, Filippo Tommaso. Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968, pp. 255-6. “Você nunca observou um maquinista ao lavar amorosamente o grande corpo possante de sua locomotiva; a apurada e minuciosa ternura de um amante que acaricia sua mulher amada? (...) Como é que um desses homens poderia ferir ou matar sua grande amiga fiel e devota, com um coração ardente e disposto; sua bela máquina de aço, que tantas vezes brilhava de prazer sob sua carícia lubrificante?” (Tradução do autor.) 164 MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A noite, 1954, pp. 208-12 (Anexo I, pp. 148- 52). 90 não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de maneira uniforme”.165 Por sua vez, o eu-lírico viniciano quer conquistar amorosamente o objeto de destruição — para que ele não mais se opere:

Vem dormir, vem dormir no meu regaço Para te proteger eu me encouraço De canções e de estrofes magistrais! Para te defender, levanto o braço Paro as radiações espaciais Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome Para te defender, matéria dura Que és mais linda, mais límpida e mais pura Que a estrela matutina! Oh bomba atômica Que emoção não me dá ver-te suspensa Sobre a massa que vive e se condensa Sob a luz! Anjo meu, fora preciso Matar, com tua graça e teu sorriso Para vencer? (...)

Nos dois casos, a estranheza se perfaz — não por conta do rebaixamento de um objeto, mas pela elevação do horrendo em beleza possível. Ao longo das três partes de “A bomba atômica”, a aparente desordem na disposição dos significados é extensa, ainda que, ao mesmo tempo, o conjunto seja expressivo e bem delimitado. Seu arcabouço técnico e imagético passa pelo emprego de aliterações, assonâncias, rimas, manuseio melódico e rítmico, polissemias, ambiguidades e referências externas. Eucanaã Ferraz afirma que “o poema desfaz limites de toda ordem” e discursos de diferentes tons estariam combinados. Seu vocabulário seria heteróclito: “palavras oriundas de campos científicos vários (física, química, geometria, matemática, biologia), termos diretamente ligados às artes, e imagens e artifícios retóricos caros às poesias parnasiana e simbolista”. E observa ali “operações sutis” que levariam a uma atualização do potencial da língua, “como se vê nas alterações de pares mínimos que transformam a ‘bomba atômica’ em ‘pomba

165 Essencial Franz Kafka. Sel., intr., e trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2011, p.74. 91 atônita’”.166 Esse acordo inseparável entre forma e conteúdo trabalha na expressão de uma heterogeneidade ostensiva. Além de constituir por meio de isomorfias e de recursos multifacetados uma bela representação do feio, “A bomba atômica” conduz à pergunta sobre a beleza em si mesma do objeto em questão; se ela poderia dissociar-se inteiramente da monstruosidade por ele concebida. E são as elaborações heterogêneas e as manifestações isomórficas que fazem o instrumento de morticínio se apresentar algumas vezes por meio de formas híbridas. Uma variedade imagética que se refere à bomba nuclear como estatuária, anjo ou arcanjo, estrela, troço de coluna, flor ou pomba acaba inevitavelmente em “novas dissoluções”, para utilizar a locução de Wolfgang Kayser,167 como um dispositivo explosivo descendo pelo espaço com os cabelos ao vento. Nesse âmbito, um tipo exótico de vegetal-mineral, carnívoro, combina espécies e pertence a reinos distintos, bem como possui o condão da radioatividade:

Da cor pálida do helium E odor de radium fatal Lælia mineral carnívora Radiosa rosa radical.

Kayser observa que, se o elemento humano faz-se estranho ao perder a vida, seja por meio da expressão cadavérica, seja por meio de autômatos, bonecas, marionetes ou máscaras, “o elemento mecânico se faz estranho ao ganhar vida”. O estudioso alemão fala de utensílios perigosos, os quais fariam parte dos motivos característicos do grotesco; e estende seu raciocínio para uma expressividade grotesca mais recente, de origem técnica, que compreenderia desde o mundo orgânico oculto revelado pelos microscópios até os maiores produtos da modernidade:

Os objetos pontiagudos de W. Busch são substituídos, na arte moderna, pelos novos instrumentos da técnica, em especial pelos ruidosos veículos motorizados. A mistura do mecânico com o orgânico se oferece com a mesma facilidade que a desproporção: em gravuras modernas aparecem aviões como libélulas gigantescas — ou libélulas como aviões, tanques se movem como animais monstruosos.

166 FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo: dezembro de 2007, pp. 38-44. 167 KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.159. 92

Semelhante enfoque da técnica é tão familiar ao homem de hoje, que lhe é fácil traçar um grotesco “técnico”. A ferramenta se tornaria, neste caso, portadora de um impulso diabólico de destruição e senhora do seu criador.168

É pertinente registrar que os futuristas compreendiam a não-moral explorada pelos simbolistas — o poder satânico, a maldade, o mórbido, o horrível, o “amor maléfico” — como algo semelhante, embora do avesso, ao moralismo que os precedia, como ensina Krystyna Pomorska. Para a vanguarda, “a moral e a não-moral se tornam completamente irrelevantes na arte e o ‘horrendo’ só adquire valor ‘estético’ quando é bastante surpreendente para ser observado”. Tal concepção chamou-se de antiesteticismo, uma vez que “se entende por ‘estético’ uma noção tradicional de beleza”.169 Vejamos, pois, no que se baseiam algumas das opções formais de “A bomba atômica”. O primeiro ritmo estabelecido imprime velocidade no salto de versos, a ampla maioria tetrassílabos, que se dispõem quase sem pontuação, com sintaxe e léxico pouco previsíveis. A bomba se expõe dessa forma, introdutoriamente, no poema: o aspecto carrega alguns parâmetros muito caros ao futurismo, ainda que tudo se transforme de maneira gradativa a partir dos desdobramentos. Aqui, por meio de palavras e imagens atípicas, o dispositivo é retratado dentre outras figurações como uma mulher que, de tão pura, “o simples toque” levaria a um grande arrebentamento — maior que a energia “Que expulsa o feto/ Na hora do parto”; o senso das proporções é ao mesmo tempo confuso e eloquente ao se empregar o hiperbolismo a favor da expressão:

Fria e corrupta Do longo sêmen Da Via Láctea Deusa impoluta O sexo abrupto Cubo de prata Mulher ao cubo Caindo aos súcubos Intemerata Carne tão rija

168 Op. cit., p.158. 169 POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Org. Boris Schnaiderman; . São Paulo: Perspectiva, 1972, p.107. 93

De hormônios vivos Exacerbada Que o simples toque Pode rompê-la Numa explosão Milhões de vezes Maior que a força Contida no ato Ou que a energia Que expulsa o feto Na hora do parto.

Note-se que há nessas imagens uma série de elementos seriamente estimados por Mikhail Bakhtin, aqueles que se percebem nos alicerces de sua teoria sobre o realismo grotesco: o plano material e corporal do erotismo, os fluidos corporais, o feto e o parto. No exercício sexual, o corpo se abre ao mundo exterior deixando de ser criatura isolada, acabada; o mesmo acontece significativamente com a gravidez e o nascimento, a revelação dos dois corpos em um — por isso a hiperbolização positiva, na tradição grotesca, dos órgãos e das partes do corpo que servem de estada ou comunicação com outros corpos, que atravessam limites individuais ou que se deixam atravessar. O teórico russo ainda trata da associação entre os abalos cósmicos e os abalos corpóreos: a ideia de microcosmos muito explorada por Rabelais. O escritor valia-se da propensão das pessoas a assimilar e sentir em si mesmas “o cosmo material, com seus elementos naturais, nos atos e funções eminentemente materiais do corpo: alimentação, excrementos, atos sexuais”. Em vista de tal associação, as imagens relativas ao baixo corporal teriam adquirido ao longo dos tempos um valor cósmico essencial.170 Obviamente, a explosão de que trata Vinicius não se coloca exatamente entre as perturbações cósmicas e as calamidades naturais aludidas por Bakhtin, mas guarda amplitude e efeitos calamitosos inclusive superiores. No campo conceitual, percebe-se que a analogia entre a reação nuclear da bomba e o clímax sexual vai ao encontro do

170 BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2013, pp. 293-5. 94 que Marinetti definiu como uma “psicologia intuitiva da matéria” no manifesto técnico de 1912.171 O poema se desdobra de maneira que sua estética endurecida, congênere dos pressupostos futuristas, aos poucos se transforma; seus versos ganham cada vez mais musicalidade e lirismo; o caráter métrico é primeiramente o aspecto mais visível de uma íntima conversão. A segunda parte se enuncia no ritmo da redondilha maior, com o talhe melodioso e popular que lhe é afeito: “A bomba atômica é triste/ Coisa mais triste não há”. Ali se encontra uma das imagens mais precisas e delicadas já compostas em concerto com a bomba: “Vem caindo devagar/ Tão devagar vem caindo/ Que dá tempo a um passarinho/ De pousar nela e voar”. Vida e genocídio, leveza e gravidade, natural e artificial; variados contrastes e contradições podem ser retirados da mesma cena. Alguns anos depois, nos instantes finais da película Dr. Strangelove (1964), de Stanley Kubrick, baseado no livro Two Hours to Doom (1958), de Peter Bryant George, sucede também um arranjo em que a criatura se acomoda numa bomba nuclear caindo, desta vez um ser humano. É importante destacar como que o modo vagaroso de cair tem menos a ver com o tempo real, absoluto, que com o tempo relativo. A apreensão gerada pelo arremesso de um equipamento de efeitos tão devastadores faz com que se prolongue aparentemente a duração dessa queda; a demora sugere também a leveza relativa do objeto frente ao peso, à gravidade, das consequências — e daí muito se compreende da intensidade simbólica da ave pousada. Ainda na parte II, a ideia da bomba como um “anjo/ Tutelar” reaparece na medida em que o dispositivo “também mata a guerra” — “Guarda de uma nova era/ Arcanjo insigne da paz!”. Ela se refere à doutrina de estratégia militar e política denominada M.A.D. — mutual assured destruction, ou destruição mútua assegurada (a sigla traduz-se também como “louco”) —, isto é, com base na premissa de que o uso em larga escala de armas nucleares por dois ou mais lados opostos leva necessariamente à aniquilação de todos os envolvidos, fabricam-se arsenais capazes de dissuadir as lideranças adversárias de iniciarem uma ofensiva. A matéria, que perpassa todo o poema, produz um paradoxo importante na história recente do mundo, o da paz decorrente da proliferação do mais brutal artefato de guerra. A respeito, o dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt chega mesmo a pôr em paralelo a bomba atômica e o grotesco moderno por conta de tal paradoxo:

171 MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 95-9. 95

Nosso mundo levou simultaneamente ao grotesco e à bomba atômica, do mesmo modo como são igualmente grotescos os quadros apocalípticos de Hieronymus Bosch. Mas o grotesco é apenas uma expressão sensível, um paradoxo sensível, ou seja, a figura de uma não-figura, o rosto de um mundo sem rosto. E tal como o nosso pensamento parece não prescindir do paradoxo, o mesmo ocorre com a arte e com o nosso mundo, que só existe porque existe a bomba, isto é, pelo medo que se tem dela.172

A última parte estampa muitos elementos estéticos tradicionais, regenerados ao entremear o vocabulário científico disposto desde o começo no poema. Aqui, a musicalidade alcançada por meio do decassílabo, das rimas, de assonâncias e aliterações parece posicionar-se contrariamente à possibilidade de rebarbas ruidosas que mais se adequariam às propriedades e ao propósito primeiro da bomba atômica. O poeta quer apontar-lhe o caminho distinto do perdão, das primaveras. Nessa investida, ele fala em primeira pessoa sem qualquer assombro e à bomba se remete na segunda; configura assim uma intimidade amorosa em que a expressão “eu te amo” se reforça algumas vezes — provavelmente, a mais desconcertante das expressões passadistas. Lembremo- nos, pois, da proposta de Marinetti quanto à representação do indivíduo e de suas perplexidades: “Destruir na literatura o ‘eu’, isto é, toda a psicologia. O homem completamente avariado pela biblioteca e pelo museu, subjugado a uma lógica e uma sabedoria apavorante, não oferece absolutamente mais interesse algum”.173 O italiano incorpora em seu projeto poético o apagamento da individualidade humana e busca conciliar os postulados a seu violento ideário político: “Nós queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo — o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher”.174 Pelo contrário, Vinicius elabora uma voz cheia de mansuetude para que reconforte e seduza a sinistra peça, e que, diante do influxo do amor, da música, da poesia, ela queira desembarcar das alturas, dormir em paz nos seus braços e jamais prestar-se novamente aos planos de conflagração. Desde logo, o orbe lexical dos gases, do neutrônio, das radiações

172 DÜRRENMATT, Friedrich. In: KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.9. 173 MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto técnico da literatura futurista. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 6ª ed. revista e ampliada. Petrópolis: Vozes, 1982, p.97. 174 O futurismo. In: Op. cit., p.92. 96 espaciais harmoniza-se com o céu, o mar, estrelas vespertinas e matutinas, um sorriso gracioso da própria bomba atômica; o discurso ganha amabilidade com os artifícios rítmicos e melódicos. Tais variações e isomorfias por que passam os versos no decorrer de todo o poema contribuem na expressão de um movimento de aproximação do poeta com essa musa estapafúrdia e temerária; o movimento atravessa a estranheza, a contemplação, a imaginação e atinge o intimismo. E o poeta permanece como sempre aberto às experiências semânticas e formais, conquanto nunca abdique das concepções que o alimentam e que nele despertam o anseio pela palavra.

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IX. DE GREGÓRIO A VINICIUS

(...) Esses gênios são excessivos. Isso está relacionado à quantidade de infinito que eles têm dentro de si. De fato, eles não são circunscritos.175

Victor Hugo

Quanto mais a sátira se acentua na poesia de GREGÓRIO DE MATOS, mais podemos encontrar os elementos que por ora nos interessam. Em épocas anteriores àquela estética romântica que estimularia a desordem em um ambiente misterioso e amedrontador, era mais fácil que o riso fosse o principal produto do grotesco. O poeta barroco inverteu a lógica do respeito e das hierarquias para ridicularizar o poder e os postos mais prestigiosos da sociedade. Valeu-se da cultura cômica popular e compôs uma obra povoada de personagens como governadores, clerezia, fidalgos, letrados, administradores etc., bem como pessoas mais simples do povo. Todos carnavalizados em algum grau, de modo que se misturassem entre palavrões, profanações e caricaturas, como a que pintou do governador Antônio Luís da Câmara Coutinho.

Nariz de embono com tal sacada, que entra na escada duas horas primeiro que seu dono. Nariz que fala longe do rosto, pois na Sé posto

175 HUGO, Victor. William Shakespeare. Trad. Renata Cordeiro e Paulo Schmidt. Londrina: Campanário, 2000, p.76. 98

na Praça manda por a guarda em ala. Membro de olfatos, mas tão quadrado que um rei coroado o pode ter por copa de cem pratos. Tão temerário é o tal nariz, que por um triz não ficou Cantareira de um armário. Você perdoe Nariz nefando, que eu vou cortando e ainda fica nariz em que se assoe.176

Os entes religiosos, sobretudo frades, eram matéria-prima entre as mais usuais para o rebaixamento.

Verá na realidade aquilo, que já se entende de uma puta que se rende às porcarias de um Frade: mas se não vê de verdade tão lascivo exercício, é, porque cego no vício não lhe entre no oculorum o secula seculorum de uma puta de ab initio.177

A chamada “poesia pantagruélica” precisa constar também em qualquer rápida retrospectiva que se faça dos principais nomes do grotesco em nossa lírica. Situada

176 MATOS, Gregório de. Obra poética. Ed. de James Amado, prep. e notas de Emanuel de Araújo. Rio de Janeiro: Record, 1992, p.183-4. 177 Op. cit., pp. 264-5. 99 entre as décadas de 1840 e 1860, ela pertence a um romantismo paulistano “marcado pelo satanismo, o humor e a obscenidade”, observa Antonio Candido. O que dela sobrou é muito pouco, uma vez que seus próprios praticantes não lhe davam importância e, quando entravam em suas vidas práticas e respeitáveis, os poetas pantagruélicos “punham de lado as provas de loucura da mocidade e com certeza as destruíam”.178 O mal que deitava suas sombras sobre Álvares de Azevedo, Aureliano

Lessa e, mais especialmente, BERNARDO GUIMARÃES, ainda não era inspirado por Baudelaire, mas por Byron, Shelley, Musset e Heine, como ensina Silva Santos.179 Bernardo explorou praticamente todos os gêneros desviantes ou baixos e modalidades do grotesco romântico em poemas como “A orgia dos duendes”, “O elixir do pajé”, “Soneto”, “O nariz perante os poetas”, “Origem do mênstruo” ou “Parecer da Comissão de Estatística a respeito da freguesia de Madre-Deus-do-Angu”. Aquele primeiro trabalha com um grande número de personagens horríveis que vão desde os mais amplamente conhecidos, como o lobisomem — aqui, “lobisome” — até criaturas das lendas populares brasileiras, como a “mula-sem-cabeça”. Combinados amiúde com o vocabulário e a pronúncia popularescos, típicos, ajudam a compor uma noção inovadora dentre as expressões nacionalistas da poesia romântica brasileira; seu satanismo e seu erotismo sádico tampouco encontravam precedentes. Vejamos o trecho inicial da segunda parte:

Mil duendes dos antros saíram Batucando e batendo matracas, E mil bruxas uivando surgiram, Cavalgando em compridas estacas.

Três diabos vestidos de roxo Se assentaram aos pés da rainha, E um deles, que tinha o pé coxo, Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira Com badalo de casco de burro,

178 CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, pp. 230-1. 179 SILVA SANTOS, Fabiano Rodrigo da. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p.28. 100

Que no meio da selva agoureira Vai fazendo medonho sussurro.

Capetinhas, trepados nos galhos Com o rabo enrolado no pau, Uns agitam sonoros chocalhos, Outros põem-se a tocar marimbau.// (...)180

O poeta parodia a virilidade guerreira dos poemas mais célebres de Gonçalves Dias em “O elixir do pajé”. E, para tanto, pratica uma diversidade rítmica parelha à de “I- Juca Pirama”, com impressionante mestria. Seu componente obsceno, grosseiro e hilariante encontrará correspondência na segunda metade do século XX em obras como as de Hilda Hilst e Glauco Matoso.

Que tens, caralho, que pesar te oprime que assim te vejo murcho e cabisbaixo, sumido entre essa basta pentelheira, mole, caindo pela perna abaixo?

Nessa postura merencória e triste para trás tanto vergas o focinho, que eu cuido vais beijar, lá no traseiro, teu sórdido vizinho!

Que é feito desses tempos gloriosos em que erguias as guelras inflamadas, na barriga me dando de contínuo tremendas cabeçadas?

Qual hidra furiosa, o colo alçando, co’a sanguinosa crista açoita os mares/ (...)181

180 GUIMARÃES, Bernardo. Elixir do pajé: poemas de humor, sátira e escatologia. São Paulo: Hedra, 2011, pp. 81-2. 181 Op. cit., p.63. 101

Na última década do século XIX, CRUZ E SOUSA publicou seus primeiros poemas e prosas poéticas. Sua literatura filiava-se ao simbolismo, estilo estranho à literatura nacional e que nem mesmo na França, país de origem do movimento, alcançara inteira aceitação. O poeta oriundo da província do Desterro assume um caráter cosmogônico, faz de sua poesia um ambiente análogo a um cosmo encerrado em si mesmo que o arrasta para o inferno das experiências sensíveis, ao paraíso de suas aspirações transcendentais, às grutas da angústia íntima e ao infinito das instâncias inteligíveis. Suas elaborações grotescas flertam com o sublime; o mal aparece como única e desesperada saída para a concretização das abstrações — sua busca primordial — que somente se daria com o amálgama entre os opostos. Seus versos são sonoros, performáticos; contam com elementos românticos, nevroses decadentistas, mundos invisíveis, abismos e pesadelos, como esses que buscam delinear suas impressões sobre o “Tédio”:

Vala comum de corpos que apodrecem, Esverdeada gangrena Cobrindo vastidões que fosforescem Sobre a esfera terrena.

Bocejo torvo de desejos turvos, Languescente bocejo De velhos diabos de chavelhos curvos Rugindo de desejo.

Sangue coalhado, congelado, frio, Espasmado nas veias... Pesadelo sinistro de algum rio De sinistras sereias...// (...)

Florescência do Mal, hediondo parto Tenebroso do crime, Pandemonium feral de ventre farto Do Nirvana sublime.

Delírio contorcido, convulsivo De felinas serpentes, 102

No silamento e no mover lascivo Das caudas e dos dentes.// (...)182

Em poemas como “Múmia”, de Broquéis (1893), a figuração de mulheres sedutoras e malévolas é dada por meio de um composto extravagante, monstruoso, de elementos telúricos e celestes, divinos e diabólicos:

Múmia de sangue e lama e terra e treva, Podridão feita deusa de granito, Que surges dos mistérios do Infinito Amamentada na lascívia de Eva.

Tua boca voraz se farta e ceva Na carne e espalhas o terror maldito, O grito humano, o doloroso grito Que um vento estranho para os limbos leva.

Báratros, criptas, dédalos atrozes Escancaram-se aos tétricos, ferozes Uivos tremendos com luxúria e cio...

Ris a punhais de frígidos sarcasmos E deve dar congélidos espasmos O teu beijo de pedra horrendo e frio!...183

Mas é em Faróis (1900, obra póstuma), com efeito, que se propagam substancialmente os elementos horrendos e infernais de sua obra — aqueles que, associados à esfera semântica baudelairiana, precedem no poeta do Desterro o expressionismo surpreendente de Augusto dos Anjos; e licenciam na poesia brasileira muitos aspectos apoéticos segundo os paradigmas que até então predominavam. O grotesco e o macabro em poemas como “Tédio”, “A caveira”, “Ébrios e cegos” ou “A ironia dos vermes” abrem largos caminhos no século XX e consolidam Cruz e Sousa como o primeiro grande poeta moderno brasileiro. Notemos, na estrofe final deste

182 CRUZ E SOUSA. Poesias completas. 2ª ed. reform. Intr. Tasso da Silveira. São Paulo: Ediouro, 2002, pp. 64-7. 183 Op. cit., p.12. 103

último, a menção explícita à ironia, bem como a supressão das hierarquias sociais — a Danse macabre do folclore europeu medieval — e o seco materialismo:

Mas ah! quanta ironia atroz, funérea, Imaginária e cândida Princesa: És igual a uma simples camponesa Nos apodrecimentos da Matéria!184

Enquanto AUGUSTO DOS ANJOS maquinava os estranhos parâmetros de sua poesia, o simbolismo vinha se estabelecendo ao lado do parnasianismo como tendência atuante. Alphonsus de Guimarães, notável simbolista cuja temática detém um teor fúnebre preeminente — muito em consequência do falecimento prematuro de sua noiva Constança (filha de Bernardo Guimarães) —, alcançava reconhecimento em círculos intelectuais desde a publicação de seu Kiriale (1902). Ao salientar também a morte e a finitude, Augusto dos Anjos exercitaria ecleticamente, porém, um simbolismo sui generis capaz de aproveitar aspectos realistas e parnasianos que pudessem contribuir com sua expressão, de feitio grotesco e originalíssima. Ali, podemos encontrar inflexões que reorientam significativamente a poesia brasileira, quando a experiência concreta da vida e a desmistificação da realidade se impõem, se consolidam; um universo verbal influenciado pelas doutrinas que derivam do materialismo e do evolucionismo, fomentado pelo rastro realista e pelas possibilidades poéticas descingidas por Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud é desenvolvido de forma extremamente inusitada. Esse léxico muito particular normaliza composições com “antepassados vermiformes”, “elefantíases”, “encéfalo absconso”, “estados prodrômicos”, “húmus dos monturus”, “morfogênese”, “noumenalidade”, “órbita elipsoidal”, “óvulo infecundo”, “protozoários”, “psicogenética” etc. Augusto realiza dentro desse universo exótico uma obra de grande manuseio formal voltada muitas vezes para as matérias minúsculas ou microscópicas, para os seres ou objetos repugnantes ou mesmo para as enfermidades. Retira-se daí a representação impressionante e concertada dos temas mais elevados como a morte e a existência.

Na bruta dispersão de vítreos cacos, À dura luz do sol resplandecente,

184 Op. cit., pp. 121-3. 104

Trôpega e antiga, uma parede doente Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro broca o âmago fino Do teto. E traça trombas de elefantes Com as circunvoluções extravagantes Do seu complicadíssimo intestino

O lodo obscuro trepa-se nas portas. Amontoadas em grossos feixes rijos, As lagartixas, dos esconderijos, Estão olhando aquelas coisas mortas!// (...)185

Sua expressão literária não busca escapar à experiência real, como analisa : “ao contrário, procura concretizá-la, dar-lhe o peso e a contundência da vida”; suas ruínas seriam “a imagem do abandono e da morte”. Augusto não exprime o passar do tempo, a decrepitude e a solidão por meio de “conceitos ou imagens histórico- literárias”, e sim com os próprios elementos “dessa ruína anônima e vulgar”. E então as lagartixas nos muros velhos do Nordeste são transformadas em “testemunhas da história, do trabalho destruidor do tempo”.186 Em “Budismo moderno”, a exemplo dessa contundência, o poeta opta por falar da eternidade de sua poesia em vez da eternidade de um espírito possível; e elabora analogamente a irrelevância de seu corpo material mediante a imagem de uma criptógama desprendida ou de um óvulo infecundo — sínteses de uma constante basilar em sua obra: a ideia de algo que não vinga, que não chega a ser.187 Observemos, no quinto verso, um indício de como o exotismo de sua obra não impediu que ela chegasse a um grande público, uma vez que a frase alcançaria a condição de dito popular.

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte Minha singularíssima pessoa. Que importa a mim que a bicharada roa Todo meu coração, depois da morte?!

185 ANJOS, Anjos dos. Gemidos de arte. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp.113. 186 GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos. Op. cit., p.23. 187 A respeito, uma boa explanação é dada por Ivan Cavalcanti Proença em O poeta do eu. (3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980). 105

Ah! Um urubu pousou na minha sorte! Também, das diatomáceas da lagoa A criptógama cápsula se esbroa Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida Igualmente a uma célula caída Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades Fique batendo nas perpétuas grades Do último verso que eu fizer no mundo!188

A vasta incidência do grotesco na poesia de VINICIUS DE MORAES jamais encontrou proporções semelhantes entre os demais grandes poetas brasileiros de sua geração. O grotesco viniciano surge inicialmente em configuração onírica, simbólica, fantástica ou infernal. São cobras saindo do corpo de uma mulher, “o pálido sangue do sol”, “flores leprosas”, um “deus amarelo da imunda pomada”, um “mosquito gigante” que espalha o terror, faunos, sereias, centauros, gigantes, anjos de toda a sorte etc. Num segundo momento, já entre os versos mais afamados, o grotesco permanece, se não nos horrores hiper-realistas, exortado no folclore, na glutonaria ou na comicidade. Surgem cadáveres, mortos-vivos, fantasmas variados, um enterrado-vivo, a própria Morte personificada, quase todos os tipos de cânceres etc. O materialismo, a escatologia, os fisiologismos diversos e o baixo palavreado parecem cortar inteiramente todos os momentos de sua poesia. O grotesco pode se mostrar inclusive no sarcasmo diante das convenções sociais mais graves, o que acontece em “O pranteado”. Ali se exibe o tema impensável da preparação de um cadáver, isto é, da necromaquiagem e da tanatopraxia; e entrevê ademais o velório e o enterro. Tudo é feito com um humor malévolo, grotesco, como de alguém que falasse da morte de um grande desafeto:

Lavem bem o morto Com bastante álcool

188 ANJOS, Anjos dos. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.86. 106

Depois passem creme Depois passem talco Esfreguem extrato Por todo o seu corpo Porque ele urinou-se No último esforço.

— Que morto mais chato! — Que morto mais porco!

Penteiem direito Os cabelos do morto E ajeitem-lhe o olho Que está meio torto Estiquem-lhe a pele Com fita colante Para que ele fique Mais moço que antes.

— Que morto mais tosco! — Que morto aberrante!

(...) E pensem, e cogitem E matem-se aos poucos E chorem e se agitem Até ficar loucos Que dentro do túmulo Feito em escuridão Já se ouvem uns sons ocos Vindos do caixão

— Que o morto está rindo Na sua prisão!189

189 MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 523-5 (Anexo I, pp. 157-9). 107

O poema é composto por sete oitavas sempre seguidas de um dístico que serve de refrão ou coro. Se, de um lado, a voz nas oitavas é de um sarcasmo artificioso, do outro, nos dísticos, ela possui uma índole aberta, direta e disposta a ajuizar o defunto. O olho “meio torto” do cadáver, que precisa ser ajeitado, é exemplo da atrapalhação mórbida, dessa cáustica comicidade elaborada por Vinicius. Dentre as marcas contínuas reconhecíveis ao longo da obra, é importante verificar que o poeta concebe um tipo de mitologia pessoal a partir de registros do cristianismo. O expediente pode atravessar momentos vários de sua poesia, como se comprova com “A Legião dos Úrias”, poema lançado em 1935 no livro Forma e Exegese, e “Balada de Santa Luzia”, poema esparso publicado em 1972 no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de São Paulo. Nestes dois casos, o grotesco se faz presente e possui em comum o horror das mutilações. Úrias Heteu era um dos guerreiros mais importantes do reino de Davi. De acordo com o texto bíblico (Segundo livro dos reis, 11 e 12), sua mulher, Betsabéia, comete adultério com o rei depois que ele a observa, um dia, se banhando no terraço do palácio real; como consequência, engravida; e manda avisar a Davi. Após tentar sem sucesso que Úrias deixasse a guerra e voltasse para casa — de modo que o fizesse acreditar, mais à frente, que o filho fosse dele —, o rei pede que o seu comandante o ponha na linha de combate mais árdua, e que o desampare. Tal plano é bem sucedido e Urias morre no enfrentamento; passado os dias de luto, Davi toma sua viúva como esposa. Em seguida, porém, o Senhor lhe envia o profeta Natan para avisar-lhe de que ainda pagará um alto preço por todo o ocorrido.190 Dessa história, Vinicius extrai os seus horríveis “Cavaleiros Úrias”, espectros violentos, castradores das mulheres e de qualquer fêmea úbere encontrada pelos caminhos. Em noites enluaradas — essas figuras fantasmagóricas são escravos da Lua, a “grande princesa”, a “louca estéril” (para além, ,a junção dos elementos ur ,[הירוא] o nome Úrias tem origem no nome hebraico Uryyah luz, e Yah, Senhor, Javé) —, a região amaldiçoada é sadicamente acometida. O astro da noite revela aqui seus significados mais adversos: é a “luz na intensidade tenebrosa”;191 é a Lua do Arcano XVIII que avisa da exposição ao perigo, do erro, dos motivos ulteriores, do inimigo desconhecido:

190 Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, pp. 348-50. 191 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. Coord. Carlos Sussekind; trad. Vera da Costa e Silva [et al.]. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, pp. 561-6. 108

E desde então nas noites claras eles aparecem Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e [das mães sozinhas E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos [machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam [a morte noturna Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliquescentes E com garras fortes arrancam do último pano os nervos [flácidos e abertos Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações [de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas [desconhecidas e fumos Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e [convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos [fremindo distantes E os rinchos de animais seminando no solo endurecido Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

Volta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados Uns após outros, somente os olhos, negros sobre [cavalos lívidos Deles foge o abutre que conhece todas as carniças E a hiena que já provou de todos os cadáveres.// (...)192

192 MORAES, Vinicius de. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 77-83. 109

As histórias de milagre que envolvem Santa Luzia, ou Lúcia, são entre si um pouco distintas. Segundo a Legenda Áurea,193 referência católica, sua mãe, com hemorragias, é por ela encaminhada ao túmulo de Santa Águeda. Luzia acaba adormecendo de frente ao túmulo e passa a sonhar com a santa; ao acordar, percebe que sua mãe está curada. Luzia começa desde então uma trajetória de devoção e beatitude; oferece muito de seus bens aos pobres, levando seu noivo a denunciá-la e entregá-la ao governo anticristão de Pascácio; o governador ordena que ela seja conduzida à perversão, mas seu corpo adquire tal peso, que homens em grande número não são capazes de demovê-lo; por isso, torturam-na e matam-na ali mesmo. Ainda no livro de Jacopo de Varazze, Santa Lúcia é a protetora dos olhos já que seu nome remete à luz, que é fundamento da visão e que remete à via lucis: o caminho reto, imaculável e propenso a imensas extensões. A tradição oral, contudo, conta que, ao ser torturada, Luzia teve seus olhos arrancados e, como por dádiva divina, eles se refizeram em sua face — e por isso ela seria a protetora. Outra história é a de que Luzia teria perguntado a Pascácio qual o motivo da destemperada paixão de seu noivo e, ao responder-lhe que era a beleza de seus olhos, Luzia mesma os arranca e os serve em um pequeno prato. É esta a versão que embasa inúmeros quadros, de incontáveis pintores, como aquele de Alfredo Volpi, de onde Vinicius retira inspiração para “Balada de Santa Luzia” — conforme dedicatória no poema; a notabilidade talvez se deva à interação com passagens bíblicas como a de Mateus (5:29-30) ou a de Marcos (9:42-47): “se o teu olho te escandaliza, lança-o fora; melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho, do que, tendo dois, ser lançado no fogo do inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga”.194 A partir daí, o poeta engendra a sua própria versão: uma história de amor, trágica e grotesca;195 Luzia faz da paixão pelo Senhor — aqui, paixão também no sentido de martírio — uma “paixão desfigurada”, uma vez que atenta contra os próprios olhos e corrompe a sua própria imagem, tornando-a repulsiva, medonha. Sóror Luzia serve os seus olhos ao jovem que a espiava apaixonado por entre as fendas do muro do convento, o qual teve de galgar para tentar expor o que sentia: ele se declarava desesperadamente, como também declarava “O seu intento sombrio/ De ali mesmo

193 VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad., apres., notas e sel. iconográfica de Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 77-80. 194 Bíblia sagrada. Trad. da vulgata e anot. pelo Pe. Matos Soares. São Paulo: Edições Paulinas, 1966, p.1231. 195 Estas histórias podem ser encontradas também na análise (do autor) de “Balada de Santa Luzia” em A poesia esparsa de Vinicius de Moraes: uma leitura de inéditos de (des)conhecidos. São Paulo: Todas as Musas, 2018, pp. 100-11 ( http://www.posvernaculas.letras.ufrj.br/images/Posvernaculas/10-publicacoes/2018/A- Poesia-Esparsa/Ebook-A-Poesia-Esparsa-de-Vinicius-de-Daniel-Gil.pdf ). 110 apunhalar-se/ Caso Luzia não desse/ O que ele mais desejava:/ Os olhos que via em prece”; mas, sem demora, ela se desfaz do que é motivo de escândalo:

E com mão segura e presta Ao moço tira o punhal E com dois golpes funestos Arranca os olhos das caixas: Seus grandes olhos tão belos Que deposita na salva E ao jovem fidalgo entrega Num gesto lento e hierático.

O cavalheiro recua Ao ver no rosto da amada Em vez de seus olhos, duas Crateras ensanguentadas.

E corre e galga a muralha Em frenética escalada Deixando cair do alto Seu corpo desamparado Sem saber que ao mesmo tempo De paixão desfigurada Ao seu Senhor ciumento Santa Luzia se dava.196

A fabricação de um imaginário com base no cristianismo, identificável em diferentes etapas da poesia de Vinicius — partindo primeiramente da fé do jovem poeta e, depois, a partir do que se manteria do universo cristão em sua concepção estética —, é procedimento que muito havia servido, na história das artes, de manancial para a manifestação do grotesco, em virtude da inclinação do fenômeno à dinâmica recíproca com o sublime. Ao tratarmos agora, especificamente, de um artista da literatura brasileira, poeta do século XX, o qual se encontra, desde um determinado momento, um tanto despojado de sua convicção religiosa, podemos perceber um comportamento

196 MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 496-9. 111 curiosamente heterodoxo desse tipo de imaginário nas composições. Em “Sob o trópico do câncer”, observamos um longo poema seriado, polifônico, heterogêneo, onde são mencionados tipos humanos os mais diversos: atriz, rei, papa, governador, general, pai, mãe, menino, marido, avó — todos com câncer —, até Deus! Dentre as vozes que atuam no poema, há aquela do vendedor cheio de “sotaque”, expondo variedades do câncer e patologias; e, na parte III, surgem as vozes de uma ladainha que, em vez de invocar a Deus ou pedir a interseção de Maria ou dos santos, opta por clamar às enfermidades. Vinicius, ali, se aproveita dos nomes científicos dados sempre em latim, língua empregada tradicionalmente em certas liturgias (ainda hoje nas igrejas mais ortodoxas), para compor uma prece disparatada:

(...) Cholera morbus — Ora pro nobis Vomitus cruentus — Ora pro nobis Empresma carditis — Ora pro nobis Fellis suffusio — Ora pro nobis Phallorrhoea virulenta — Ora pro nobis Gutta serena — Ora pro nobis Angina canina — Ora pro nobis Lepra leontina — Ora pro nobis Lupus vorax — Ora pro nobis Tonus trismus — Ora pro nobis Angina pectoris — Ora pro nobis Et libera nobis omnia Cancer

112

— Amen.197

Antonio Candido se refere à “Balada do Mangue” como “um dos poemas mais belos da literatura brasileira”. E ressalta a maestria com que Vinicius dominou o verso e suas técnicas de modo a “atualizar a tradição”; o crítico observa também que o poema é exemplo de uma modernização que lhe permitia “tratar com um toque de intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos”.198 A balada retrata as mulheres da mais conhecida zona de prostituição do Rio de Janeiro à época, cortada pelo Canal do Mangue. “Enclausuradas sem fé”, elas eram muitas vezes vítimas do aliciamento e da exploração sexual. Por isso, a clausura que, entre outras acepções, é o mesmo que convento (vida religiosa em retiro religioso), no lugar de traduzir a recolhida voluntária, espiritualizante, remete à perniciosa condição social, impingida, objetificante, a qual se pôde definir como um claustro de sujeição e enfermidades. Não é aleatória, entretanto, a escolha desses signos marcados pela transcendência, uma vez que, na perspectiva do poeta, o resignado sofrimento dessas mulheres as projeta a patamares elevados: “Como sofreis, que silêncio/ Não deve gritar em vós/ Esse imenso, atroz silêncio/ Dos santos e dos heróis”. É invulgar tal aproximação, que aqui parece muito genuína, entre elementos aparentemente opostos, como prostíbulo e clausura, santos e prostitutas. Vinicius inicia a “Balada do Mangue” fazendo uso das proparoxítonas como recurso de realce às estranhezas. Aliadas a um vocabulário ao mesmo tempo baixo e biológico, podemos ouvir ecos da poética de Augusto dos Anjos — onde muito se encontra, igualmente, o mesmo artifício prosódico:

Pobres flores gonocócicas Que à noite despetalais As vossas pétalas tóxicas!/ (...)199

Lembremo-nos de que a palavra esdrúxulo, adjetivo que utilizamos no mais das vezes com o sentido figurado, nominando o estranho ou o ridículo, é um termo

197 MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 541-6. 198 CANDIDO, Antonio. Um poema de Vinicius de Moraes. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas/ Pátria minha. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 159-62. 199 MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta, 1946, pp. 87-89 (Anexo I, pp. 141-3). 113 gramatical sinônimo de proparoxítono. O poeta lançaria mão do recurso outras vezes, como em “Sob o trópico do câncer” (“tarântula”, “fétida anêmona”, “homúnculo” etc.). Mas o principal fator de desconforto ao longo do poema, com efeito, está associado a algo que é muito presente nos grotescos ornamentais: o hibridismo. Aqui, o arranjo se dá mais constantemente por meio de imagens florais que representam aquelas mulheres, isto é, da combinação entre o humano e o vegetal — elas são orquídeas (lælia tenebrosa, vanda tricolor), dálias, corolas e, indiretamente, lilases e jasmins. Isso não explica, por si, o estranhamento; o que é mesmo inquietante emerge do fato de tais “flores” amargarem mazelas peculiares. Afora os estados adversos que se associam comumente ao ser humano — a pobreza, a fragilidade, a doença —, aquelas mulheres sofrem a má sorte e os maus aspectos representativos desses vegetais: estão pensas, murchas, cortadas, descoloridas; são tóxicas, do pólen envenenado, de “venenos putrefatos” etc. Esse desdobramento imagético, reiterado, faz com que a equiparação metafórica atinja uma força diferente, capaz de levar o leitor a experimentar figuras verdadeiramente híbridas, e não meras aproximações. E o poeta complementa o painel incluindo algumas formas animalescas, em que genitálias à mostra fazem a vez de presas famintas em meio aos ostensivos apelos do meretrício. Apesar do marcado expressionismo, é necessário observar a naturalidade e certa suavidade características, apreciáveis em muito da poesia de Vinicius, que, a seu turno, jamais diminuem a contundência do que é transmitido:

Ah, jovens putas das tardes O que vos aconteceu Para assim envenenardes O pólen que Deus vos deu? No entanto crispais sorrisos Em vossas jaulas acesas Mostrando o rubro das presas Falando coisas de amor E às vezes cantais uivando Como cadelas à lua Que em vossa rua sem nome Rola perdida no céu.../ (...)

114

O poeta procura uma possível razão para a vida dessas jovens, “Vestidas de carnaval”; e, ao fim, sugere outro tipo de transmutação, uma que pudesse aniquilar a si mesmas e aqueles que são o motivo de tamanho infortúnio:

Por que não vos trucidais Ó inimigas; ou bem Não ateais fogo às vestes E vos lançais como tochas Contra esses homens de nada Nessa terra de ninguém!

Vê-se o elemento patológico também na “Oração para as pernas de Neruda”, inusitado soneto acerca da flebite na perna direita que acometeu o poeta chileno por muitos anos. A “oração” consta de um livro escrito integralmente em homenagem a Pablo Neruda (ainda pouco ou nada explorado200), em dias subsequentes à sua morte: História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe (1974):

Ó desveladas pernas, que tão longe Carregastes o poeta em sua fuga Eu vos mirei, enormes e largadas E roxas da gangrena subjacente. Ó não as amputeis, homens de branco Que rondais essas pernas apreensivos Enquanto o poeta, pálido e prostrado Lê Canto General para os amigos. Que não se verifiquem os maus presságios Que volte o sangue a circular nas pernas E o poeta se erga, majestoso e mágico E beba em meio a alegres mariaches Cantando alto e bom som canções eternas Nos caminhos sem fim da liberdade.201

200 Inclusive, incorporou-se pela primeira vez a uma edição de obra reunida muito recentemente, no box Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro (org. Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 457-76). 201 MORAES, Vinicius de. História natural de Pablo Neruda — A elegia que vem de longe. Xilogravuras de Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1974, p.33. 115

A descrição superlativa e o materialismo mórbido (“enormes e largadas/ E roxas da gangrena subjacente”) se juntam ao signo da mutilação (“Ó não a amputeis, homens de branco”) e causam uma impressão um tanto incômoda para um poema de caráter afetuoso — que já no título mostra uma curiosa ambiguidade: a oração não é pelas pernas, mas “para as pernas de Neruda”, emprestando uma opção de leitura em que os membros inferiores do poeta de Canto General pudessem desfrutar talvez de algum atributo divino. Mais à frente, o paralelo implícito entre a circulação sanguínea e o alegre ato de beber corrobora a maneira insólita de capturar a poesia em meio ao revés ou, ainda, às enfermidades. São de tal forma reconhecíveis as áreas de interseção entre o grotesco e o chamado nonsense, que seria inadvertido não observar aqui este modo de concepção, um espírito específico tão estimado por Vinicius. Aspectos absurdos, risíveis, lúdicos, incômodos são recorrentes nas duas esferas e, não raro, elementos mais típicos de uma estão presentes na outra. O poeta fala sobre esse humour na crônica “O não-senso e a falta de critério”,202 em que revela a admiração pelo poeta e artista inglês Edward Lear, destacando a importância de seu Complete book of nonsense, onde reconhece “uma liberdade poucas vezes encontrável no que é criação do homem”. Vinicius então apresenta um pequeno exercício feito a quatro mãos com Maria Ethel (filha de Aníbal Machado), emulando formalmente as composições de Lear:

Era um dia um sujeito maneta Que não tinha a perna direita Pois o homem coçava Com a mão que lhe faltava As perebas da perna perneta!

Não foi à toa a percepção do poeta de que as crianças “são seres nonsensical, e tudo o que delas se aproxima”. O poeta empregaria, anos mais tarde, essa graciosa ilogicidade em poemas como “A casa”: “Era uma casa/ Muito engraçada/ Não tinha teto/ Não tinha nada/ Ninguém podia/ Entrar nela não/ Porque na casa/ Não tinha chão/ Ninguém podia/ Dormir na rede/ Porque na casa/ Não tinha parede/ (...)”.203 Ou na letra

202 MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo: Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, pp. 215-6. Obs.: Segundo o organizador, o texto foi escrito em outubro de 1945, para o periódico Diretrizes. 203 MORAES, Vinicius de. A arca de Noé. Rio de Janeiro: Sabiá, 1970, p.74. 116 de “O pintinho”, exclusivamente do cancioneiro: “Pintinho raro/ Pintinho novo/ Tá tudo caro/ Volta pro ovo/ (...)”.204 Não obstante, é possível verificar a fuga repentina do senso racional também na poesia de público amplo, como, por exemplo, em “Trecho” ou no estranhíssimo “Sombra e luz”. Este segundo é tomado de signos tradicionalmente grotescos: morcegos, ratos; túmulos, caveira; vômito de bile, cocô; “Os mortos mortos de frio”, “o vampiro Nosferatu etc. E parece partir da face inesperada ou mesmo perversa do destino, dos acontecimentos; da dinâmica sentenciosa da Fortuna; da “dança” de Deus, que por vezes é “Dança de horror”; para que então passe a explorar de alguma forma o turbilhão de indizíveis — incompreensíveis — sensações e percepções do poeta frente a esse contínuo de luz e sombra. Eucanaã Ferraz apresenta esse poema como amostra de uma série de estratégias de reinvenção da língua ao longo da obra de Vinicius, que teria a ver “com uma vasta consciência dos códigos linguísticos e com sua exploração”. E não deixa de observar seus aspectos mais absurdos:

Nesse mesmo sentido, a estrofe seguinte encadeia um arcaísmo (“alifante”), uma referência bíblica (“bezerro de ouro”) e dá continuidade à ambientação do poema, nobre e vetusta (“espada”, “baile da corte”). A sequência, porém, desemboca num humour que lança mão do coloquialismo mais vulgar para construir uma imagem decididamente absurda: “E um gato e um soneto/ No túmulo preto/ E uma espada nua/ E um bezerro de ouro/ Na boca do lobo/ E um bruto alifante/ No baile da Corte/ Naquele cantinho/ Cocô de ratinho/ Naquele cantão/ Cocô de ratão”. Do que trata, afinal, o poema? Que sentido pode ser construído na articulação de suas imagens? Estas e outras perguntas soam no ar sem respostas. O título, “Sombra e luz”, parece nos dizer logo na antecâmara do poema que assistiremos a um espetáculo onde a língua é tratada como uma matéria lúdica, e o poema, uma espécie de fábula barroca, surrealista, sobre os (des)limites entre luz e sombra, razão e delírio, confissão e segredo, metáfora e registro, dito e não-dito. Todo esse jogo chega a seu ponto culminante no verso que abre a segunda parte do poema: “Munevada glimou vestasudente”. Trata-se de uma língua estrangeira? Será um código? Como decifrá-lo? Depois de relutarmos contra a presença de um conjunto de signos vazios,

204 MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: música, poesia, prosa, teatro. Org. Eucanaã Ferraz. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pp. 550-1. 117

resignamo-nos e deixamos de lado nosso impulso racional. A escrita mergulha na “sombra” absoluta: no “sem-sentido” da linguagem.205

Em outras palavras, a inventividade é exercida em âmbitos múltiplos da linguagem, em “Sombra e luz”: nas variações rítmicas, no sentido de cada signo como objeto poético autônomo — “hidromel”, “caveira”; no sentido (ou sem-sentido) dos signos articulados — “Semeando brasas/ No túmulo de Orfeu”, “E um bezerro de ouro/ Na boca do lobo”; ou, ainda, na manipulação dos próprios signos em si mesmos — “Munevada glimou vestasudente”. A respeito desse misterioso verso, poderíamos arriscar alguma decifração a partir de semelhanças sonoras com a língua inglesa. Teríamos, pois, algo como A lua branca (nevada) brilhou no sudoeste. Apesar de esse entendimento ser meramente especulativo, é possível articulá-lo com o que vem em seguida —“Desfazendo-se em lágrimas azuis/ Em mistério nascia a madrugada”. Ao afirmar naquela crônica que, “Em literatura brasileira, há, infelizmente, a mais triste falta de nonsense”,206 o poeta não se refere decerto apenas ao gênero específico, mas a um ânimo que se inclina ao delírio, ao fantástico, muito perturbado por um modus operandi majoritariamente apoiado na razão e no real. Entretanto, é possível verificar que Vinicius de Moraes é um dos cinco nomes que formam a base de uma estética do grotesco da lírica brasileira, incluindo Gregório de Matos, Bernardo Guimarães, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos — dado que, a partir dessa base, se conhece praticamente todas as variantes do que se entende como grotesco, hoje, em poesia. Esse pentagrama da poesia nacional pode viabilizar uma leitura histórica baseada em nova perspectiva: uma leitura que atravesse movimentos e concepções estéticas revelando, por meio da desordem e do anômalo, invenções e reinvenções de um conjunto plausível e profuso.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO

O interesse pelo grotesco e os debates que envolvem seus possíveis significados percorrem séculos e contam desde sempre com nomes da maior importância, entre os

205 FERRAZ, Eucanaã. Um poeta entre a luz e a sombra. In: Revista Língua Portuguesa, nº 26. São Paulo: dezembro de 2007, pp. 38-44. 206 MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. Org., intr., e notas Carlos Augusto Calil. São Paulo: Companhia das Letras: Cinemateca Brasileira, 1991, p.215. 118 quais proeminentes artistas, poetas, pensadores e escritores. As poucas considerações que se seguem, portanto, já não ousam significados originais para o termo; por outro lado, pretendem distribuir as noções mais consolidadas em duas categorias, ainda inauditas, que podem contribuir na compreensão das formas com as quais se apresentam esse fenômeno artístico: 1) a metafísica ou dionisíaca; 2) e a materialista. Nos dois casos, consideramos que o resultado é o riso ou a repulsa, quando riso e repulsa não surgem tipicamente combinados. A categoria metafísica ou dionisíaca é representada sobretudo pelos ornamentos descobertos no final do século XV (que deram nome ao conceito) e caracteriza-se pelo viés fantástico, pela imaginação desordenada, pelo hibridismo, pelas forças desconhecidas. Ela é dionisíaca, tendo em vista o número de elementos que se ligam à divindade naquelas manifestações pictóricas: Dioniso é o deus da vegetação — expressa nos arabescos —, da colheita, da vida e da fertilidade na natureza; ao mesmo tempo, faz-se presente nos demônios da vegetação — não somente no mal tempo, mas no bode (ou cabra) ou no touro selvagem; para além, o culto dionisíaco remete ao rompimento dos limites entre o homem e o divino — à possessão, à fusão —, entre o natural e o sobrenatural, o humano e o animal; como também ao delírio e à loucura. Como se sabe, sincretismos generosos podem ser identificados entre as figuras de Dioniso, Cernuno e Lupércio. Georges Minois trata do riso romano das lupercais e menciona a perplexidade de Plutarco ao buscar uma razão para aqueles estranhos ritos, comuns a esses festejos:

Há coisas e costumes cuja causa e origem são difíceis de conjeturar: porque se matam cabras e trazem jovens de famílias nobres que são tocados, na fronte, com a faca manchada do sangue das cabras imoladas e, em seguida, enxugam-nos com lã molhada no leite, e os rapazes devem começar a rir depois que lhes secam a fronte; feito isso, corta-se o couro das cabras, fazendo correias com ele. Eles pegam as correias nas mãos, saem correndo pela cidade, nus, exceto por um pano que lhes cobre as partes íntimas, e batem com essas correias em todas as pessoas que encontram em seu caminho. Mas as mulheres jovens não fogem deles, mas ficam felizes por ser surradas, acreditando que isso as ajuda a engravidar facilmente.207

207 PLUTARCO. In: MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p.99. 119

Nada pode ser mais emblemático do riso perturbador do que esse riso, engendrado na essência do grotesco. Nesta categoria, metafísica ou dionisíaca, acomodam-se também as manifestações conectadas com os seres lendários, o fantasmagórico, o diabólico, o incompreensível; mas aqui se encontram igualmente o grotesco percebido nas máscaras, na estranha dissimulação, na ilogicidade, na zombaria, na ironia incômoda ou na linguagem absurda. A categoria materialista, por sua vez, faz lembrar que o ser humano é um ser biológico; explicita seu funcionamento, mas, também, os danos físicos, as degradações, a morte — e a continuidade da matéria transformada; e faz lembrar que ele é um animal como outros; e que tem funções fisiológicas, necessidades e desejos como esses outros. Daqui saem muitas vezes composições em contraste com os valores transcendentais, de modo a amplificar a contundência de sua expressão. Os grotescos desenvolvidos a partir de feridas abertas, despedaçamentos, vísceras, esqueletos e caveiras convocam as nossas atenções para o corpo físico, especialmente para a frágil resistência de sua individualidade bem acabada — o principal motivo de nosso desconforto; o mesmo acontece na representação das doenças, dos constituintes patológicos e patologizantes. A explicitação do saudável funcionamento de nosso aparato biológico, porém, pode causar igualmente certo incômodo, objeção ou riso, uma vez que exponha de maneira crua a nossa afiliação ao reino animal: despidos dos disfarces moderadores, culturais, os atos de beber e comer, as funções digestivas, o sexo, a gravidez, o parto, os líquidos seminais, as excreções etc. são capazes de compor centralmente imagéticas grotescas — inclusive o baixo palavreado procedente desses elementos. E, enfim, as formas humanas, por si próprias, quando representadas no absurdo do hiperbolismo e da caricatura, servem do mesmo modo ao fenômeno estético. Bakhtin percebeu a existência deste viés materialista nas manifestações grotescas ao elaborar sua análise sobre a obra de Rabelais. Entretanto, o materialismo era um conceito demasiadamente caro ao teórico russo — adepto da filosofia e do ideário marxista; e, por isso, a concepção da ideia de um “realismo grotesco” acabaria optando por uma perspectiva necessariamente positiva, unilateral, desse materialismo, o que, por conseguinte, levou-lhe a uma significação também necessariamente positiva do próprio grotesco.

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ANEXO I (TREZE POEMAS)

A ÚLTIMA PARÁBOLA

No céu um dia eu vi — quando? — era na tarde roxa As nuvens brancas e ligeiras do levante contarem a história estranha e desconhecida De um cordeiro de luz que pastava no poente distante num grande espaço aberto. A visão clara e imóvel fascinava os meus olhos... Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de uma montanha longínqua E avança sobre o animal sagrado que apavorado se adelgaça em mulher nua E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que balança lentamente ao vento. A mulher nua baila para um chefe árabe mas este corta-lhe a cabeça com uma espada E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos. Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas nesse momento saem da [cabeça chifres que lhe ferem o rosto E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de cavalos enfurecidos Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os lados mulheres e homens Que eram como faunos e sereias e outros que eram como centauros Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas E se unirem depois num grande gigante descomposto e ébrio de garras abertas O outro braço de Satã se ergue e sustém a queda de uma criança Que se despenhou do seio da mãe e que se fragmenta na sua mão alçada Eu olho apavorado a luxúria de todo o céu cheio de corpos enlaçados E que vai desaparecer na noite mais próxima Mas eis que Jesus abre os braços e se agiganta numa cruz que se abaixa lentamente E que absorve todos os seres imobilizados no frio da noite. Eu chorei e caminhei para a grande cruz pousada no céu Mas a escuridão veio e — ai de mim! — a primeira estrela fecundou os meus olhos [de poesia terrena!...

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ARIANA, A MULHER

Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno O tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um [debruçar do instante para o outro instante Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me [identificado a ele e estivesse batendo soturnamente a Meia-Noite E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojado Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara [aos meus olhos em toda a sua fixidez noturna E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores [desacordadas pela treva.

Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver — e para mim era como [se a Natureza estivesse morta Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua deglutição monstruosa mas [para mim era como se ela estivesse morta Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem lua E nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermas Nenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívoras Nenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.

Em vão eu atirava os braços para as orquídeas insensíveis junto aos lírios inermes [como velhos falos Inutilmente corria cego por entre os troncos cujas parasitas eram como a miséria da [vaidade senil dos homens Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o [sangue capaz de acordá-los E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos [esbarrados na alucinação da fuga E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamento Quando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual [afundei minha carne.

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Foi então que eu compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivo Só então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo E ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas [noivas se finando E tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-la Mas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasse E eu me vi só, nu e só, e era como se a traição tivesse me envelhecido eras.

Tristemente me brotou da alma o branco nome da Amada e eu murmurei — Ariana! E sem pensar caminhei trôpego como a visão do Tempo e murmurava — Ariana! E tudo em mim buscava Ariana e não havia Ariana em nenhuma parte Mas se Ariana era a floresta, por que não havia de ser Ariana a terra? Se Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida? Por quê — se tudo era Ariana e só Ariana havia e nada fora de Ariana?

Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente — Sou eu, Ariana... Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos — Eu sou Ariana! E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito amado nome de Ariana. Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e [estás em cada uma? Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma? Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?

Mas nada me respondeu e eu prossegui na minha peregrinação através da campina E dizia: Sei que tudo é infinito! — e o pio das aves me trazia o grito dos sertões desaparecidos E as pedras do caminho me traziam os abismos e a terra seca a sede nas fontes. No entanto, era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava — Ariana! E eu caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana A branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo.

E eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após [cabanas iluminadas E após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturno E grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas. E perguntei: Pescadores, onde está Ariana? — e eles me mostravam o peixe Ferreiros, onde está Ariana? — e eles me mostravam o fogo Mulheres, onde está Ariana? — e elas me mostravam o sexo.

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Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiam Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savana No entanto era como se o canto que me chegava entoasse — Ariana! E pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de Ouro! — por que não seria Ariana [a mulher perdida? Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César? Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?

E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de Ouro mas não encontrei Ariana Às vezes indagava — e um poderoso fariseu me disse irado: — Cão de Deus, tu és Ariana! E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus não compreendi a palavra do homem rico Mas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpura E eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará Ariana E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.

Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana! e disse muitas palavras inexistentes E imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santa Era como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas As mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava — Ariana! E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... ana... E os trovões desdobravam no céu a palavra — Ariana.

E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratos Os porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagos E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadas E misteriosamente o joio se separava do trigo nos campos desertos E os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo E envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.

Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e mulheres desposadas Umas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram cegas e paralíticas E os homens me apontavam as plantações estorricadas e as vacas magras. E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as crianças morriam E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e que sufocava as vacas magras.

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Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos Não temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me [assaltou a indiferença mais do que a lepra A mim se fez pó a carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magra Mas é preciso! para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana A que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra Ariana, a mulher — a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-amada!

E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradas As crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamente E nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claro E um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos os lábios — Ariana! E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios — Ariana! E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas — Ariana!

Assim, coberto de bênçãos, cheguei a uma floresta e me sentei às suas bordas — os [regatos cantavam límpidos Tive o desejo súbito da sombra, da humildade dos galhos e do repouso das folhas secas E me aprofundei na espessura funda cheia de ruídos e onde o mistério passava sonhando E foi como se eu tivesse procurado e sido atendido — vi orquídeas que eram camas [doces para a fadiga Vi rosas selvagens cheias de orvalho, de perfume eterno e boas para matar a sede E vi palmas gigantescas que eram leques para afastar o calor da carne.

Descansei — por um momento senti vertiginosamente o húmus fecundo da terra A pureza e a ternura da vida nos lírios altivos como falos A liberdade das lianas prisioneiras, a serenidade das quedas se despenhando. E mais do que nunca o nome da Amada me veio e eu murmurei o apelo — Eu te amo, Ariana! E o sono da Amada me desceu aos olhos e eles cerraram a visão de Ariana E meu coração pôs-se a bater pausadamente doze vezes o sinal cabalístico de Ariana......

Depois um gigantesco relógio se precisou na fixidez do sonho, tomou forma e se [situou na minha frente, parado sobre a Meia-Noite Vi que estava só e que era eu mesmo e reconheci velhos objetos amigos. Mas passando sobre o rosto a mão gelada senti que chorava as puríssimas lágrimas de Ariana E que o meu espírito e o meu coração eram para sempre da branca e sereníssima Ariana No silêncio profundo daquela casa cheia da montanha em torno. 137

BALADA FEROZ

Canta uma esperança desatinada para que se enfureçam silenciosamente os [cadáveres dos afogados Canta para que grasne sarcasticamente o corvo que tens pousado sobre a tua omoplata atlética Canta como um louco enquanto os teus pés vão penetrando a massa sequiosa de lesmas Canta! para esse formoso pássaro azul que ainda uma vez sujaria sobre o teu êxtase.

Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o corpo felpudo das aranhas Ri dos touros selvagens, carregando nos chifres virgens nuas para o estupro nas montanhas Pula sobre o leito cru dos sádicos, dos histéricos, dos masturbados e dança! Dança para a lua que está escorrendo lentamente pelo ventre das menstruadas.

Lança o teu poema inocente sobre o rio venéreo engolindo as cidades Sobre os casebres onde os escorpiões se matam à visão dos amores miseráveis Deita a tua alma sobre a podridão das latrinas e das fossas Por onde passou a miséria da condição dos escravos e dos gênios.

Dança, ó desvairado! Dança pelos campos aos rinchos dolorosos das éguas parindo Mergulha a algidez deste lago onde os nenúfares apodrecem e onde a água floresce em miasmas Fende o fundo viscoso e espreme com tuas fortes mãos a carne flácida das medusas E com teu sorriso inexcedível surge como um deus amarelo da imunda pomada.

Amarra-te aos pés das garças e solta-as para que te levem E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as narinas, lança-te sobre [a cidade mortuária Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um velho canhão soterrado, volta E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que comem as fezes verdes das estradas.

Salta como um fauno puro ou como um sapo de ouro por entre os raios do sol frenético Faz rugir com o teu calão o eco dos vales e das montanhas Mija sobre o lugar dos mendigos nas escadarias sórdidas dos templos E escarra sobre todos os que se proclamarem miseráveis.

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Canta! canta demais! Nada há como o amor para matar a vida Amor que é bem o amor da inocência primeira! Canta! — o coração da Donzela ficará queimando eternamente a cinza morta Para o horror dos monges, dos cortesãos, das prostitutas e dos pederastas.

Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e passeia de noite sobre as [grandes cidades Espalhando o terror por onde quer que pousem tuas antenas impalpáveis Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o ouro E para que apodreçam como porcos, injeta-os de pureza!

E com todo esse pus, faz um poema puro E deixa-o ir, armado cavaleiro, pela vida E ri e canta dos que pasmados o abrigarem E dos que por medo dele te derem em troca a mulher e o pão.

Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta E dança, porque dançar é o destino da pureza Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno Carne morta ou carne viva — toma! Agora falo eu que sou um!

BALADA DO ENTERRADO VIVO

Na mais medonha das trevas Acabei de despertar Soterrado sob um túmulo De nada chego a lembrar Sinto meu corpo pesar Como se fosse de chumbo. Não posso me levantar Debalde tentei clamar Aos habitantes do mundo. Tenho um minuto de vida

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Em breve estará perdida Quando eu quiser respirar.

Meu caixão me prende os braços. Enorme, a tampa fechada Roça-me quase a cabeça. Se ao menos a escuridão Não estivesse tão espessa! Se eu conseguisse fincar Os joelhos nessa tampa E os sete palmos de terra Do fundo à campa rasgar! Se um som eu chegasse a ouvir No oco deste caixão Que não fosse esse soturno Bater do meu coração! Se eu conseguisse esticar Os braços num repelão Inda rasgassem-me a carne Os ossos que restarão! Se eu pudesse me virar As omoplatas romper Na fúria de uma evasão Ou se eu pudesse sorrir Ou de ódio me estrangular E de outra morte morrer!

Mas só me resta esperar Suster a respiração Sentindo o sangue subir-me Como a lava de um vulcão Enquanto a terra me esmaga O caixão me oprime os membros A gravata me asfixia E um lenço me cerra os dentes! Não há como me mover E este lenço desatar 140

Não há como desmanchar O laço que os pés me prende!

Bate, bate, mão aflita No fundo deste caixão Marca a angústia dos segundos Que sem ar se extinguirão! Lutai, pés espavoridos Presos num nó de cordão Que acima, os homens passando Não ouvem vossa aflição! Raspa, cara enlouquecida Contra a lenha da prisão Pesando sobre teus olhos Há sete palmos de chão! Corre, mente desvairada Sem consolo e sem perdão Que nem a prece te ocorre À louca imaginação! Busca o ar que se te finda Na caverna do pulmão O pouco que tens ainda Te há de erguer na convulsão Que romperá teu sepulcro E os sete palmos de chão: Não te restassem por cima Setecentos de amplidão!

BALADA DO MANGUE

Pobres flores gonocócicas Que à noite despetalais As vossas pétalas tóxicas! Pobre de vós, pensas, murchas Orquídeas do despudor

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Não sois Lælia tenebrosa Nem sois Vanda tricolor: Sois frágeis, desmilinguidas Dálias cortadas ao pé Corolas descoloridas Enclausuradas sem fé. Ah, jovens putas das tardes O que vos aconteceu Para assim envenenardes O pólen que Deus vos deu? No entanto crispais sorrisos Em vossas jaulas acesas Mostrando o rubro das presas Falando coisas do amor E às vezes cantais uivando Como cadelas à lua Que em vossa rua sem nome Rola perdida no céu... Mas que brilho mau de estrela Em vossos olhos lilases Percebo quando, falazes Fazeis rapazes entrar! Sinto então nos vossos sexos Formarem-se imediatos Os venenos putrefatos Com que os envenenar Ó misericordiosas! Glabras, glúteas caftinas Embebidas em jasmim Jogando cantos felizes Em perspectivas sem fim Cantais, maternais hienas Canções de caftinizar Gordas polacas serenas Sempre prestes a chorar. Como sofreis, que silêncio Não deve gritar em vós

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Esse imenso, atroz silêncio Dos santos e dos heróis! E o contraponto de vozes Com que ampliais o mistério Como é semelhante às luzes Votivas de um cemitério Esculpido de memórias! Pobres, trágicas mulheres Multidimensionais Ponto-morto de choferes Passadiço de navais! Louras mulatas francesas Vestidas de carnaval: Viveis a festa das flores Pelo convés dessas ruas Ancoradas no canal? Para onde irão vossos cantos Para onde irá vossa nau? Por que vos deixais imóveis Alérgicas sensitivas Nos jardins desse hospital Etílico e heliotrópico? Por que não vos trucidais Ó inimigas? ou bem Não ateais fogo às vestes E vos lançais como tochas Contra esses homens de nada Nessa terra de ninguém!

BALADA DA MOÇA DO MIRAMAR

Silêncio da madrugada No Edifício Miramar... Sentada em frente à janela Nua, morta, deslumbrada Uma moça mira o mar. 143

Ninguém sabe quem é ela Nem ninguém há de saber Deixou a porta trancada Faz bem uns dois cinco dias Já começa a apodrecer Seus ambos joelhos de âmbar Furam-lhe o branco da pele E a grande flor do seu corpo Destila um fétido mel.

Mantém-se extática em face Da aurora em elaboração Embora formigas pretas Que lhe entram pelos ouvidos Se escapem por umas gretas Do lado do coração. Em volta é segredo: e móveis Imóveis na solidão... Mas apesar da necrose Que lhe corrói o nariz A moça está tão sem pose Numa ilusão tão serena Que, certo, morreu feliz.

A vida que está na morte Os dedos já lhe comeu Só lhe resta um aro de ouro Que a morte em vida lhe deu Mas seu cabelo de ouro Rebrilha com tanta luz Que a sua caveira é bela E belo é seu ventre louro E seus pelinhos azuis.

De noite é a lua quem ama A moça do Miramar

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Enquanto o mar tece a trama Desse conúbio lunar Depois é o sol violento O sol batido de vento Que vem com furor violeta A moça violentar.

Muitos dias se passaram Muitos dias passarão À noite segue-se o dia E assim os dias se vão E enquanto os dias se passam Trazendo a putrefação À noite coisas se passam... A moça e a lua se enlaçam Ambas mortas de paixão.

Ah, morte do amor do mundo Ah, vida feita de dar Ah, sonhos sempre nascendo Ah, sonhos sempre a acabar Ah, flores que estão crescendo Do fundo da podridão Ah, vermes, morte vivendo Nas flores ainda em botão Ah, sonhos, ah, desesperos Ah, desespero de amar Ah, vida sempre morrendo Ah, moça do Miramar!

BALADA DOS MORTOS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Ocos, flácidos cadáveres

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Como espantalhos, largados Na sementeira espectral Dos ermos campos estéreis De Buchenwald e Dachau. Cadáveres necrosados Amontoados no chão Esquálidos enlaçados Em beijos estupefatos Como ascetas siderados Em presença da visão. Cadáveres putrefatos Os magros braços em cruz Em vossas faces hediondas Há sorrisos de giocondas E em vossos corpos, a luz Que da treva cria a aurora. Cadáveres fluorescentes Desenraizados do pó Que emoção não dá-me o ver-vos Em vosso êxtase sem nervos Em vossa prece tão só Grandes, góticos cadáveres! Ah, doces mortos atônitos Quebrados a torniquete Vossas louras manicuras Arrancaram-vos as unhas No requinte de tortura Da última toalete... A vós vos tiraram a casa A vós vos tiraram o nome Fostes marcados a brasa E vos mataram de fome! Vossa peles afrouxadas Sobre os esqueletos dão-me A impressão que éreis tambores — Os instrumentos do Monstro — Desfibrados a pancada:

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Ó mortos de percussão! Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Vós sois o húmus da terra De onde a árvore do castigo Dará madeira ao patíbulo E de onde os frutos da paz Tombarão no chão da guerra!

DESERT HOT SPRINGS

Na piscina pública de Desert Hot Springs O homem, meu heroico semelhante Arrasta pelo ladrilho deformidades insolúveis. Nesta, como em outras lutas Sua grandeza reveste-se de uma humilde paciência E a dor física esconde sua ridícula pantomima Sob a aparência de unhas feitas, lábios pintados e outros artifícios de vaidade. Macróbios espetaculares Espapaçam ao sol as juntas espinhosas como cactos Enquanto adolescências deletérias passeiam nas águas balsâmicas Seus corpos, ah, seus corpos incapazes de nunca amar. As cálidas águas minerais Com que o deserto impôs às Câmaras de Comércio Sua dura beleza outramente inabitável Acariciam aleivosamente seios deflatados Pernas esquálidas, gótico americano De onde protuberam dolorosas cariátides patológicas. Às bordas da piscina A velhice engruvinhada morcega em posições fetais Enquanto a infância incendida atira-se contra o azul Estilhaçando gotas luminosas e libertando rictos De faces mumificadas em sofrimentos e lembranças. A Paralisia Infantil, a quem foi poupada um rosto talvez belo Inveja, de seu líquido nicho, a Asma tensa e esquelética

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Mas que conseguiu despertar o interesse do Reumatismo Deformante. Deitado num banco de pedra, a cabeça no colo de sua mãe, o olhar infinitamente ausente Um blue boy extingue em longas espirais invisíveis A cera triste de sua matéria inacabada — a culpa hereditária Transformou a moça numa boneca sem cabimento. O banhista, atlético e saudável Recolhe periodicamente nos braços os despojos daquelas vidas Coloca-os em suas cadeiras de rodas, devolve-os a guardiães expectantes E lá se vão eles a enfrentar o que resta de mais um dia E dos abismos da memória, sentados contra o deserto O grande deserto nu e só, coberto de calcificações anômalas E arbustos ensimesmados; o grande deserto antigo e áspero Testemunha das origens; o grande deserto em luta permanente contra a morte Habitado por plantas e bichos que ninguém sabe como vivem Varado por ventos que vêm ninguém sabe donde.

A BOMBA ATÔMICA

e = mc2 Einstein

Deusa, visão dos céus que me domina … tu que és mulher e nada mais! (“Deusa”, valsa carioca)

I Dos céus descendo Meu Deus eu vejo De paraquedas? Uma coisa branca Como uma forma De estatuária Talvez a fôrma Do homem primitivo A costela branca!

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Talvez um seio Despregado à lua Talvez o anjo Tutelar cadente Talvez a Vênus Nua, de clâmide Talvez a inversa Branca pirâmide Do pensamento Talvez o troço De uma coluna Da eternidade Apaixonado Não sei, indago Dizem-me todos

É a BOMBA ATÔMICA

Vem-me uma angústia

Quisera tanto Por um momento Tê-la em meus braços A coma ao vento Descendo nua Pelos espaços Descendo branca Branca e serena Como um espasmo Fria e corrupta Do longo sêmen Da Via Láctea Deusa impoluta O sexo abrupto Cubo de prata Mulher ao cubo Caindo aos súcubos Intemerata

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Carne tão rija De hormônios vivos Exacerbada Que o simples toque Pode rompê-la Em cada átomo Numa explosão Milhões de vezes Maior que a força Contida no ato Ou que a energia Que expulsa o feto Na hora do parto.

II A bomba atômica é triste Coisa mais triste não há Quando cai, cai sem vontade Vem caindo devagar Tão devagar vem caindo Que dá tempo a um passarinho De pousar nela e voar... Coitada da bomba atômica Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica Que não gosta de matar Mas que ao matar mata tudo Animal e vegetal Que mata a vida da terra E mata a vida do ar Mas que também mata a guerra... Bomba atômica que aterra! Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica Tristeza, consolação

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Flor puríssima do urânio Desabrochada no chão Da cor pálida do helium E odor de radium fatal Lælia mineral carnívora Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica Nunca, em tempo algum, jamais Seja preciso que mates Onde houve morte demais: Fique apenas tua imagem Aterradora miragem Sobre as grandes catedrais: Guarda de uma nova era Arcanjo insigne da paz!

III Bomba atômica, eu te amo! és pequenina E branca como a estrela vespertina E por branca eu te amo, e por donzela De dois milhões mais bélica e mais bela Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa Atroz, visão dos céus que me domina Da cabeleira loura de platina E das formas aerodivinais — Que és mulher, que és mulher e nada mais! Eu te amo, bomba atômica, que trazes Numa dança de fogo, envolta em gazes A desagregação tremenda que espedaça A matéria em energias materiais! Oh energia, eu te amo, igual à massa Pelo quadrado da velocidade Da luz! alta e violenta potestade Serena! Meu amor… desce do espaço Vem dormir, vem dormir no meu regaço Para te proteger eu me encouraço

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De canções e de estrofes magistrais! Para te defender, levanto o braço Paro as radiações espaciais Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome Para te defender, matéria dura Que és mais linda, mais límpida e mais pura Que a estrela matutina! Oh bomba atômica Que emoção não me dá ver-te suspensa Sobre a massa que vive e se condensa Sob a luz! Anjo meu, fora preciso Matar, com tua graça e teu sorriso Para vencer? Tua enérgica poesia Fora preciso, oh deslembrada e fria Para a paz? Tua fragílima epiderme Em cromáticas brancas de cristais Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe Da união que liberta da miséria! Oh vida palpitando na matéria Oh energia que és o que não eras Quando o primeiro átomo incriado Fecundou o silêncio das Esferas: Um olhar de perdão para o passado Uma anunciação de primaveras!

BALADA NEGRA

Éramos meu pai e eu E um negro, negro cavalo Ele montado na sela Eu na garupa enganchado. Quando? eu nem sabia ler Por quê? saber não me foi dado Só sei que era o alto da serra Nas cercanias de Barra.

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Ao negro corpo paterno Eu vinha muito abraçado Enquanto o cavalo lerdo Negramente caminhava. Meus olhos escancarados De medo e negra friagem Eram buracos na treva Totalmente impenetrável. Às vezes sem dizer nada O grupo equestre estacava E havia um negro silêncio Seguido de outros mais vastos. O animal apavorado Fremia as ancas molhadas Do negro orvalho pendente De negras, negras ramadas. Eu ausente de mim mesmo Pelo negrume em que estava Recitava padre-nossos Exorcizando os fantasmas. As mãos da brisa silvestre Vinham de luto enluvadas Acarinhar-me os cabelos Que se me punham eriçados. As estrelas nessa noite Dormiam num negro claustro E a lua morta jazia Envolta em negra mortalha. Os pássaros da desgraça Negros no escuro piavam E a floresta crepitava De um negror irremediável. As vozes que me falavam Eram vozes sepulcrais E o corpo a que eu me abraçava Era o de um morto a cavalo. O cavalo era um fantasma

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Condenado a caminhar No negro bojo da noite Sem destino e a nunca mais. Era eu o negro infante Condenado ao eterno báratro Para expiar por todo o sempre Os meus pecados da carne. Uma coorte de padres Para a treva me apontava Murmurando vade-retros Soletrando breviários. Ah, que pavor negregado Ah, que angústia desvairada Naquele túnel sem termo Cavalgando sem cavalo!

Foi quando meu pai me disse: — Vem nascendo a madrugada... E eu embora não a visse Pressenti-a nas palavras De meu pai ressuscitado Pela luz da realidade. E assim foi. Logo na mata O seu rosa imponderável Aos poucos se insinuava Revelando coisas mágicas. A sombra se desfazendo Em entretons de cinza e opala Abria um claro na treva Para o mundo vegetal. O cavalo pôs-se esperto Como um cavalo de fato Trotando de rédea curta Pela úmida picada. Ah, que doçura dolente Naquela aurora raiada Meu pai montando na frente

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Eu na garupa enganchado! Apertei-o fortemente Cheio de amor e cansaço Enquanto o bosque se abria Sobre o luminoso vale... E assim fui-me ao sono, certo De que meu pai estava perto E a manhã se anunciava.

Hoje que conheço a aurora E sei onde caminhar Hoje sem medo da treva Sem medo de não me achar Hoje que morto meu pai Não tenho em quem me apoiar Ah, quantas vezes com ele Vou no túmulo deitar E ficamos cara a cara Na mais doce intimidade Certos que a morte não leva: Certos de que toda treva Tem a sua madrugada.

A ÚLTIMA VIAGEM DE JAYME OVALLE

Ovalle não queria a Morte Mas era dele tão querida Que o amor da Morte foi mais forte Que o amor do Ovalle à vida.

E foi assim que a Morte, um dia Levou-o em bela carruagem A viajar — ah, que alegria! Ovalle sempre adora viagem!

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Foram por montes e por vales E tanto a Morte se aprazia Que fosse o mundo só de Ovalles E nunca mais ninguém morria.

A cada vez que a Morte, a sério Com cicerônica prestança Mostrava a Ovalle um cemitério Ele apontava uma criança.

A Morte, em Londres e Paris Levou-o à forca e à guilhotina Porém em Roma, Ovalle quis Tomar a sua canjebrina.

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas E suas ósseas prateleiras Mas riu-se muito, tais zabumbas Fazia Ovalle nas caveiras.

Mais tarde, Ovalle satisfeito Declara à Morte, ambos de porre: — Quero enterrar-me, que é um direito Inalienável de quem morre!

Custou-lhe esforço sobre-humano Chegar à última morada De vez que a Morte, a todo pano Queria dar uma esticada.

Diz o guardião do campo-santo Que, noite alta, ainda se ouvia A voz da Morte, um tanto ou quanto Que ria, ria, ria, ria...

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O PRANTEADO

Lavem bem o morto Com bastante álcool Depois passem creme Depois passem talco Esfreguem extrato Por todo o seu corpo Porque ele urinou-se No último esforço.

— Que morto mais chato! — Que morto mais porco!

Penteiem direito Os cabelos do morto E ajeitem-lhe o olho Que está meio torto Estiquem-lhe a pele Com fita colante Para que ele fique Mais moço que antes.

— Que morto mais tosco! — Que morto aberrante!

Passem o morto a ferro Porque ele está frio E façam-lhe a barba Sem deixar um fio Depois o maquilem De um ar bem-disposto Que o morto está lívido Nas mãos e no rosto.

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— Que morto mais brando! — Que morto mais morto!

E façam-lhe as unhas Com um tom de bom gosto Cueca, camisa E gravata fosca Enfiem-lhe o colete E o que de mais resta E o seu terno escuro Da última festa.

— Que morto mais duro! — Que morto grã-fino!

E ponham o morto Dentro de um caixão E preguem-no a prego Pelo sim e pelo não E desçam o caixão A uma sepultura Escavada em sete Metros de fundura.

— Que coisa cacete! — Que boa criatura!

E deitem-lhe cal E joguem-lhe terra Que morto não fala Que morto não berra E ponham depois Uma pedra em cima E vão falar quietos No café da esquina.

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— Que o morto está quieto! — Que o morto está firme!

E pensem, e cogitem E matem-se aos poucos E chorem e se agitem Até ficar loucos Que dentro do túmulo Feito em escuridão Já se ouvem uns sons ocos Vindos do caixão

— Que o morto está rindo Na sua prisão!

ROMANCE DA AMADA E DA MORTE

A noite apodrece. Exausto O poeta sem sua Amada Não tem nada que o conforte. A lua em seu negro claustro Corta os pulsos em holocausto À sua saudade enorme. Mas o poeta não tem nada Não tem nada que o conforte. Fumando o seu LM O poeta sozinho teme Pela sua própria sorte. Seu corpo ausente passeia Trajando camisa esporte. Abre um livro: o pensamento Além do texto o transporta. Pega um papel: o poema Recusa-se à folha morta. Toma um café, bebe um uísque

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O gosto de tudo é pobre. Liga o rádio, lava o rosto Põe um disco na vitrola Os amigos telefonam O poeta nem dá bola O simpatil não o relaxa O violão não o consola. O poeta sozinho acha A vida sem sua Amada Uma grandíssima bosta. E é então que de repente Soa a campainha da porta. O poeta não compreende Quem pode ser a essas horas... E abre; e se surpreende Ao ver surgir dos batentes Sua velha amiga, a Morte Usando um negro trapézio E sombra verde nas órbitas. Ao redor das omoplatas Um colar de quatro voltas E as falangetas pintadas Com um esmalte de tom sóbrio. O poeta acha-a mais mundana No auge da última moda Com a maquilagem romana E os quatro metros de roda. A Morte lânguida o enlaça Com todo o amor de seus ossos Insinuando no poeta Sua bacia e sua rótula. Ao poeta, de tão sozinho Tudo pouco se lhe importa E por muito delicado Faz um carinho na Morte. A Morte gruda-se a ele Beija-o num louco transporte

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O poeta serve-lhe um uísque Muda o disco na vitrola. A Morte sorri feliz Como quem canta vitória Ao ver o poeta tão triste Tão fraco, tão provisório. Enche-lhe bem a caveira Sai dançando um rock-and-roll Retorcendo-se do cóccix E trescalando a necrose. Depois senta-se ao seu lado Faz-lhe uma porção de histórias... O poeta deixa, infeliz Sentindo o seu organismo Ir aderindo ao da Morte. Começa a inchar o seu fígado Seu coração bate forte Seu ventre tem borborigmos Sente espasmos pelo cólon. O poeta fuma que fuma O poeta sofre que sofre Sai-lhe o canino do alvéolo Sua pele se descolore. A Morte toma-lhe o pulso Ausculta-o de estetoscópio Apalpa a sua vesícula Olha-lhe o branco dos olhos. Nas suas artérias duras Há sintomas de esclerose Seu fígado está perfeito Para uma boa cirrose. Quem sabe câncer do sangue Quem sabe arteriosclerose... A Morte está satisfeita Ao lado do poeta deita E dorme um sono de morte.

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E é então que de repente Soa a campainha de fora. O poeta não compreende Quem pode ser a essas horas... A Morte se deixa à espreita Envolta no seu lençol Enquanto gira o poeta A maçaneta da porta. A Amada entra como o sol Como a chuva, como o mar Envolve o poeta em seus braços Seus belos braços de carne Beija o poeta com sua boca Com sua boca de lábios Olha o poeta com seus olhos Com seus olhos de luar Banha-o todo de ternura De uma ternura de água. Não veste a Amada trapézio Nem outra linha qualquer Não está de cal maquilada Nem usa sombra sequer. A Amada é a coisa mais linda A Amada é a coisa mais forte A Amada é a coisa mulher.

A Morte, desesperada Num transporte de ciúme Atira-se contra a Amada. A Amada luta com a Morte Da meia-noite à alvorada Morde a Morte, mata a Morte Joga a Morte pela escada Depois vem e se repousa Tendo o poeta ao seu lado E sorri, conta-lhe coisas Para alegrar seu estado

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E entreabre seu corpo moço Para acolher seu amado. O poeta sente seu sangue Circular desafogado Sua pressão baixa a 12 Seu pulso bate normal De seu fígado a cirrose Faz a pista apavorada A matéria esclerosante Fica desesclerosada Desaparece a extrassístole Seu cólon cala os espasmos Equilibra-se de súbito. Todo o seu vagossimpático Corre-lhe o plasma contente Cheio de rubras hemátias O dente ajusta-se ao alvéolo Fica-lhe a pele rosada. Tudo isso porque o poeta Não é poeta, não é nada Quando a sua bem-amada Larga-o à Morte, se ausente De sua luz e do seu ar Por isso que a ausência é a morte É a morte mais tristemente É a morte mais devagar.

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ANEXO II (ICONOGRAFIA)

GROTESCOS DA ANTIGUIDADE

Roma, Domus Aurea

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Roma, Domus Augusti

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Roma, Domus Aurea

Roma, Domus transitoria

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GROTESCOS DA IDADE MÉDIA

Verona, Torre da Abadia de San Zeno

Letra capitular grotesca (iluminura), séc. XIII

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DOMUS AUREA REDESCOBERTA (SÉC. XV e XVI)

Vaticano, Ateliê de Rafael

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Parma, Mosteiro de San Paolo (Alessandro Araldi)

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Catedral de Orvieto, Capela San Brizio (Luca Signorelli)

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Padova, complexo arquitetônico Loggia e Odeon Cornaro

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Detalhe do “Tríptico das delícias” (pintura à óleo), de Hieronymus Bosch

Desenho de Jacques Callot 172

GROTESCOS HOJE

Varanda de um sobrado — , Rio de Janeiro/ RJ

Restaurante em um shopping — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

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Detalhe das esquadrias de uma creche — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

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Detalhe das esquadrias

Detalhe de uma das portas

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Loja de produtos para crianças em um shopping — Botafogo, Rio de Janeiro/ RJ

http://www.danielgil.com.br e-mail: [email protected]

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