0

UNIVERSIDADE FEEVALE

Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais

Linha de Pesquisa em Linguagens e Processos Comunicacionais

Nível de Mestrado

NAHARA HOLDERBAUM ECKHARD

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA “QUE HORAS ELA VOLTA?”

Novo Hamburgo 2019

NAHARA HOLDERBAUM ECKHARD

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA “QUE HORAS ELA VOLTA?”

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale como requisito necessário para a obtenção de grau de Mestra.

Orientador: Profª. Dr. Ernani Mügge Co-orientadora: Profª. Dra. Marinês Andrea Kunz

Novo Hamburgo 2019

NAHARA HOLDERBAUM ECKHARD

A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA “QUE HORAS ELA VOLTA?”

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale como requisito necessário para a obtenção de grau de Mestra.

Novo Hamburgo, ____ de ______de 2019.

BANCA EXAMINADORA

______Prof . Dr. Ernani Mügge (Orientador) – Universidade Feevale

______Profª . Dra. Marinês Andrea Kunz (Co-orientadora) – Universidade Feevale

______Prof.ª Dra. Adriana Jorge Lopes Machado Ramos – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

______Profª . Dra. Juracy Ignez Assmann Saraiva – Universidade Feevale

A todos os professores que “tem uma visão muito crítica das coisas, passou pra gente umas coisas bem importantes e botou a nossa cabeça para funcionar.” (Personagem Jéssica – Que Horas Ela Volta?)

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, ao meu companheiro, Maurício Klaser, por tudo: pela força, pelo incentivo, pela coragem, pelo companheirismo e por estar sempre ao meu lado, colocando um degrau para a minha subida pessoal, profissional e acadêmica, onde encontrava-se um buraco para a minha descida. Este trabalho não teria acontecido se você não estivesse comigo. Além disso, possibilitou que os meus horários de estudo pudessem acontecer, sendo uma figura paterna presente ao lado de nosso filho, cuidando-o para que eu pudesse produzir este trabalho. Um agradecimento especial para o meu orientador, Ernani Mügge, e a minha co- orientadora, Marinês Andrea Kunz, pela aventura de produzir esta pesquisa. Impossível esquecer e não mencionar o carinho e acolhimento que recebi de vocês. Obrigada pela compreensão e dedicação. Agradeço aos meus avós, Hildegard e Claudio Eckhard por me possibilitarem o acesso ao mestrado em uma instituição particular, e à Universidade Feevale, pela bolsa concedida. Também agradeço ao meu pequeno Bruno, por me incentivar neste estudo: estou pensando sempre no seu futuro.

“As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre classes sociais.” Jessé Souza.

RESUMO

Esta pesquisa acadêmica aborda questões sociais e culturais brasileiras da contemporaneidade, apresentadas no filme “Que Horas Ela Volta?”. Sendo assim, o trabalho permite responder como a realidade brasileira atual é representada na produção cinematográfica e favorece a discussão em torno da identidade e da cultura da sociedade, com foco voltado para a desigualdade social. Nesse percurso, apresenta símbolos e representações de classes baixas e menos privilegiadas, a partir de investigações de cunho histórico. Para responder à pergunta proposta, conceitua-se Cultura, com base em estudos de Laraia, Cuché e Santos, e Representação, a partir de Wagner, Zizek, Ricoeur, Badiou e Aumont. Além disso, são evidenciados relatos históricos do cinema mundial e brasileiro, é problematizada a cultura e a sociedade brasileira, pelo olhar de Ortiz, Freyre, Coutinho, Buarque de Hollanda e Souza, e apresentada uma perspectiva histórica do Brasil nos anos de produção e lançamento do filme. Utiliza-se a metodologia analítica fílmica e social. Com isso, conclui-se que o filme “Que Horas Ela Volta?” destaca a narrativa cinematográfica e apresenta posições sociais e relações de subordinação com relação a distinções sociais. Portanto, é possível afirmar que obra traduz a sociedade brasileira e exibe questões atuais sobre a relação de classes no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: Cinema brasileiro - “Que Horas Ela Volta?” – Representação - Posições sociais - Sociedade brasileira

ABSTRACT

This academic research deals with contemporary Brazilian social and cultural issues, presented in the movie "The Second Mother". Thus, the work allows us to respond as the current Brazilian reality is represented in cinematographic production and favors the discussion about the identity and culture of society, with a focus on social inequality. In this course, it presents symbols and representations of lower and less privileged classes, based on historical investigations. In order to answer the question, Culture is conceptualized, based on studies of Laraia, Cuché and Santos, and Representation, from Wagner, Zizek, Ricoeur, Badiou and Aumont. In addition, historical accounts of world and Brazilian cinema are presented, the culture and Brazilian society are problematized by the view of Ortiz, Freyre, Coutinho, Buarque de Hollanda and Souza, and presented a historical perspective of in the years of production and launch of the movie. The filmic and social analytical methodology is used. With this, it is concluded that the film "The Second Mother" Emphasizes the cinematographic narrative and presents social positions and relations of subordination with respect to social distinctions. Therefore, it is possible to affirm that work translates Brazilian society and presents current questions about the relation of classes in contemporary Brazil.

Keywords: Brazilian cinema - "The Second Mother" - Representation - Social positions - Brazilian society

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Enquadramento com plano aberto para maior percepção de toda a cena...... 79 Figura 2- Enquadramento com plano fechado para diálogos mais profundos...... 79 Figura 3 - Enquadramento com foco na cozinha e sonoridade na sala de jantar...... 80 Figura 4 - Fotografia da família na piscina, com Val ao fundo...... 82 Figura 5 - Relação entre Val e Fabinho...... 83 Figura 6 – “Jéssica, Não vai entrar na piscina?” “Eu não tenho maiô, não”...... 84 Figura 7 – Val finalmente entra na piscina...... 86 Figura 8 - Relação entre Val e Fabinho...... 89 Figura 9 - Enquadramento da cozinha, sonoridade na sala de jantar...... 90 Figura 10 - Relação de Val com os seus "filhos"...... 92 Figura 11 - Jéssica e Val discutem na sua casa...... 96 Figura 12 - Val pede demissão e volta para casa de táxi, escutando o rádio...... 96 Figura 13 - Cena final: "Traga o seu filho"...... 98 Figura 14 - Cena do jantar: o primeiro encontro da família com Jéssica...... 101 Figura 15 - Jéssica e Val na piscina da casa...... 103 Figura 16 - Patrão e as relações entre Jéssica e Val...... 104 Figura 17 - Jéssica e José Carlos em paralelo...... 105 Figura 18 - José Carlos e Jéssica na sala de jantar, servidos por Val...... 106 Figura 19 - Bárbara recebe a notícia de que Jéssica dormirá no quarto de hóspedes...... 107 Figura 20 - Bárbara é entrevistada...... 108 Figura 21 - Jéssica e Bárbara se encontram na cozinha...... 109 Figura 22 - José Carlos leva Jéssica para conhecer a cidade de São Paulo...... 111 Figura 23 - José Carlos convida Jéssica para sentar-se e comer na mesa de jantar da família...... 111 Figura 24 - Planta da casa da família...... 113 Figura 25 - O espremedor de laranja pode ser encontrado em ambos ambientes...... 113 Figura 26 - A cozinha da família...... 115 Figura 27 - O quarto de hóspedes: Jéssica conhece o ambiente...... 117 Figura 28 - Sala de jantar 1...... 118

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 11 2 BUSCANDO OS CONCEITOS QUE FUNDAMENTAM ESTE TRABALHO...... 15 2.1 AS CONCEPÇÕES DE CULTURA E A DIVERSIDADE CULTURAL...... 15 2.2 REPRESENTAÇÃO E SEUS CONCEITOS...... 23 3 A HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO E MUNDIAL...... 30 3.1 UM BREVE RELATO SOBRE O CINEMA MUNDIAL...... 30 3.2 COMO REPRESENTAR NO CINEMA? ASPECTOS E CARACTERÍSTICAS...... 33 3.3 O CINEMA NACIONAL: A HISTÓRIA A PARTIR DA “RETOMADA”...... 36 4 CULTURA E SOCIEDADE BRASILEIRA...... 43 4.1 OS PRIMEIROS INTELECTUAIS...... 43 4.2 CULTURALISMO...... 49 4.3 SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA...... 57 4.3.1 Dignidade...... 57 4.3.2 Abandono social...... 59 4.3.3 Subcidadania...... 61 4.3.4 Ralé Brasileira e a divisão de classes no Brasil...... 63 4.3.5 Batalhadores...... 65 4.3.6 Classe média e a elite econômica...... 66 5 UMA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL NA ERA DE “QUE HORAS ELA VOLTA?”...... 68 5.1 QUE BRASIL É ESSE? O CENÁRIO DO PAÍS NOS TEMPOS DE “DE HORAS ELA VOLTA?”...... 68 5.2 POLÍTICA SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL...... 72 6 “QUE HORAS ELA VOLTA?”: UMA PERCEPÇÃO DE REPRESENTRAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA...... 75 6.1 UM RELATO DE “QUE HORAS ELA VOLTA?”: A HISTÓRIA...... 75 6.2 REPRESENTAÇÃO E EFEITO DE REALIDADE: FATORES SOCIAIS E ANÁLISE CINEMATOGRÁFICA...... 77 6.2.1 Elementos extra fílmicos...... 78 6.2.2 Enredo e discurso...... 78

6.2.2.1 Episódio da Piscina...... 81 6.2.2.2 Episódio das Xícaras...... 86 6.2.3 As personagens: Atores sociais e suas relações, caracterização...... 88 6.2.3.1 Val...... 88 6.2.3.2 Jéssica...... 98 6.2.3.3 A família; Bárbara, Fabinho e José Carlos...... 107 6.2.4 Espaços de circulação...... 112 6.2.4.1 Quarto da empregada...... 112 6.2.4.2 Cozinha...... 115 6.2.4.3 Quarto de hóspedes...... 116 6.2.4.4 Sala de jantar...... 118 7 CONCLUSÃO...... 120 REFERÊNCIAS...... 123

11

1 INTRODUÇÃO

O meio cinematográfico sempre foi – e continua sendo – importante espaço de representação da realidade. Por meio de narrativas fílmicas, é possível analisar, compreender e discutir questões políticas, sociais, de relacionamento humano e ambiental, entre tantas outras possibilidades. A riqueza de elementos, capazes de relacionar ficção e realidade, permite, também, que pesquisas científicas e análises sejam produzidas a partir de uma produção cinematográfica. Nessa perspectiva, este trabalho lança um olhar analítico sobre o filme “Que Horas Ela Volta?”, já que o cinema brasileiro tem representado, em suas diversas vertentes, a realidade do país, sendo uma rica fonte histórica (ROSSINI, 2008).

A produção fílmica “Que Horas Ela Volta?”, dirigida por Anna Muylaert, foi lançada no ano de 2015 e produzida pela África Filmes e Gullane. Posteriormente, seus direitos de imagem foram comprados pela Globo Filmes1. No mesmo ano do lançamento, o filme recebeu diversas premiações internacionais, como a de Melhor Filme do Público pelo Internationale Filmfestspiele Berlin e de Melhor Atriz, para Regina Casé, no Festival Sundance, nos Estados Unidos. Também recebeu premiação no Festival de Valenciennes, na França, como Melhor Filme e Melhor Atriz; Melhor Direção pelo Festival de Filmes de Valletta, na Ilha de Malta; Melhor Filme pelo Júri Público, no Festival de Lima, no Peru; Melhor Filme Público pelo World Cinema Amsterdam, na Holanda, recebendo, também, premiações em Marrocos, República Dominicana, Moscou, Eslovênia e Havana2.

A produção cinematográfica possibilita ao espectador distintos olhares e percepções com relação à realidade do Brasil na atualidade, em especial acerca da sociedade brasileira, classes e posições sociais. A história de “Que Horas Ela Volta?” relata a vida de uma empregada doméstica nordestina, que se muda para São Paulo, sem a sua filha, e passa a trabalhar na casa de uma família de classe média/alta, com a qual também mora.

Esta pesquisa se faz importante, no Brasil, pois permite discutir a identidade e a cultura da sociedade brasileira, incita um debate sobre a desigualdade social do país, além de apresentar símbolos e representações de classes baixas e menos privilegiadas. O Brasil vive, atualmente,

1 Disponível em: . Acesso em: 27 mai 2019. 2 Disponível em: . Acesso em: 3 jun 2019. 12 tempos sombrios com relação ao desinvestimento em políticas públicas e cortes na educação, por exemplo. Nesse contexto, trabalho acadêmico analítico deste nível, que tem como objeto uma narrativa fílmica, torna-se imprescindível a partir do momento em que debates centrais de desigualdade e posições sociais tornam-se alvo de críticas e quando o próprio estado deixa de se preocupar com políticas sociais de inclusão das classes baixas no país.

“Que Horas Ela Volta?” torna-se relevante quando são discutidos projetos e políticas sociais na área da Educação que possibilitam maior acesso de estudantes às universidades. Além disso, a relevância desta pesquisa decorre igualmente do fato de possibilita discussões acerca de classes sociais no Brasil em nível acadêmico, permitindo, no futuro, que filmes como o objeto desta pesquisa sejam utilizados em sala de aula para debates sobre a sociedade brasileira e a identidade cultural. Com isso, a representação dos mais distintos grupos, que hoje estão ofuscados, tanto com relação ao governo quanto à mídia, permite sua visibilidade por parte do público.

Este estudo se desenvolve no mestrado de Processos e Manifestações Culturais, pois tem o objetivo de discutir e analisar como se instauram concepções culturais brasileiras que são carregadas em cada indivíduo do país desde as origens do Brasil: passando pela colonização e escravidão até os dias de hoje, quando ainda é possível encontrar reflexos desses momentos sócio-históricos. Além disso, é possível debater sobre as diversas manifestações culturais que permeiam a discussão sobre classes e posições sociais representadas no cinema brasileiro.

A partir dessas questões, a pesquisa procura responder à seguinte pergunta-problema: de que forma a realidade brasileira contemporânea é representada no filme “Que Horas Ela Volta?”? Para responder a essa pergunta, alguns objetivos específicos devem ser cumpridos para analisar as possíveis relações de representação na produção fílmica. Primeiro, este trabalho deve tratar dos conceitos de Cultura e Representação e, em sequência, do cinema mundial e brasileiro; e, posteriormente, debate questões acerca da cultura e sociedade brasileira; para, ao fim, analisar a representação no filme.

Dessa maneira, o trabalho apresenta quatro capítulos teóricos e um de análise, sendo que o primeiro tem o objetivo de buscar conceitos fundamentais para sustentar a pesquisa acadêmica: as concepções de Cultura e Representação. Nesse espaço, busca-se discutir, também, a Diversidade Cultural existente entre nações e povos de culturas distintas. Para embasar esse estudo, serão utilizados, principalmente, autores como Laraia (2009), Cuché (1999) e Santos (1987) para desenvolver o conceito de Cultura; e Thompson (1995), Wagner 13

(2012), Zizek (2013), Ricoeur (2015), Badiou (2015) e Aumont et al. (2012) – entre outros, para abordar o conceito de Representação no cinema. Com relação à realidade na ficção – e no cinema, principalmente –, Turner (1997), Rossini (2008) e Alea (1983) sustentam a discussão.

No segundo capítulo teórico, são apresentados breves relatos da história do cinema mundial (MASCARELLO, 2006; XAVIER, 2005; BAZIN, 2014) e, também, do cinema brasileiro para fundamentar o objeto desta pesquisa. Na historiografia das produções cinematográficas brasileiras, são apresentados os momentos da “Retomada” e “Pós Retomada”, a partir de Ikeda (2015) e Ballerini (2012): época em que o cinema nacional passa a ser, literalmente, “retomado”, a partir dos mais distintos incentivos, e a “Pós Retomada” trata da atualidade do cinema nacional.

O seguinte capítulo teórico trata sobre cultura e sociedade brasileira, buscando uma recuperação histórica dos primeiros intelectuais, do culturalismo e da sociedade brasileira contemporânea. Além disso, Ortiz (1985), Freyre (2001), Coutinho (2011) e Buarque de Holanda (2014) se fazem presentes, para apresentar um relato sócio-histórico da escravidão e colonização no Brasil, abordando questões como etnia e desenvolvimento de posições e classes sociais no Brasil. Posteriormente, com base em Souza (2009; 2010; 2012; 2015; 2016; 2017; 2018) apresenta-se a relação desse resgate sócio-histórico com a realidade brasileira e a sociedade enquanto nação.

O último capítulo teórico apresenta ao leitor uma perspectiva histórica do Brasil de quando o filme “Que Horas Ela Volta?” foi produzido e lançado. Também são apresentados o cenário político, econômico e social na história da produção. Para isso, dados e notícias jornalísticas embasam as informações necessárias, além de Cavalcante (2015), para posicionar o leitor sobre o desenvolvimento do Brasil entre 2010 e 2015.

Por fim, na última etapa desta pesquisa, a análise é apresentada, desenvolvendo um relato do filme e discutindo a representação, com destaque para os fatores sociais e a análise cinematográfica. Para a análise, são utilizados diálogos e imagens do filme para descrever as cenas, comparar e relacionar com as teorias discutidas nesta pesquisa. Então, são apresentadas possíveis interpretações e representações sociais na produção fílmica “Que Horas Ela Volta?”, a partir das categorias analíticas fílmica e social.

Sendo assim, é possível destacar que a narrativa fílmica apresenta ao espectador posições sociais e relações de subordinação com relação a distinções sociais, dentro da casa da família de “Que Horas Ela Volta?”. Os enquadramentos, a sonoridade, a iluminação e a 14 montagem serão igualmente analisados, uma vez que integram o plano discursivo da narrativa fílmica que aborda a sociedade brasileira e traz questões atuais sobre a relação de classes no Brasil contemporâneo.

15

2 BUSCANDO OS CONCEITOS QUE FUNDAMENTAM ESTE TRABALHO

A fim de compreender e identificar uma Cultura, além de que para se trabalhar com a sociedade brasileira em produções cinematográficas, é necessário que alguns conceitos e questões sejam discutidas neste estudo teórico, como concepções culturais e suas representações no cinema. O que entendemos pela palavra Cultura? Quais as Concepções Culturais que desenvolvemos no mundo e, principalmente, no Brasil? Como ela se desenvolve? Por que as Culturas são diferentes umas das outras, trazendo em questão a Diversidade Cultural entre elas? Essas serão algumas perguntas que abrem a discussão deste subcapítulo, que serão tratadas ao longo das próximas páginas. Com isso, se tem o objetivo de esclarecer e iniciar o debate sobre Cultura e Sociedade.

Na segunda parte deste capítulo, o conceito de Representação, primordial para este trabalho, será discutido. O enfoque principal para esta teoria se dá a partir da seguinte questão: como Produtos Culturais e o cinema são capazes de representar a realidade social de um determinado grupo ou nação? O que se entende por Representação no âmbito da Cultura enquanto Diversidade Cultural? Neste momento, já é possível iniciar os debates sobre cinema e representação, que serão melhor abordados no próximo capítulo.

2.1 AS CONCEPÇÕES DE CULTURA E A DIVERSIDADE CULTURAL

A noção moderna do conceito de Cultura está vinculada ao Iluminismo. Anteriormente esse fato histórico tinha relação com o campo e o meio rural, segundo os estudos de Cuché (1999) sobre o significado de “Cultura”, vinculando-se a palavra “cultivar”, ou trabalhar com plantações no meio rural. A partir do Iluminismo, a Cultura passa a ser estudada também por outros significados, para distinguir, por exemplo, indivíduos mais elevados intelectualmente como “aqueles com ou sem Cultura”. No século XVIII começaram a ser consideradas formações do sentido moderno da palavra. Porém, nos anos 1700 ela já se encontrava no vocabulário francês, vinda do latim, significando um “cuidado dispensado ao campo ou gado, ela aparece nos fins do século XIII para designar uma parcela da terra cultivada[...]” (CUCHÉ, 1999, p. 19). Segundo o próprio autor, a partir do século XVI que começam a ser desenvolvidos conceitos figurados sobre “Cultura” e até o século XVIII ela tinha forte relação com o movimento natural da língua e não as ideias e concepções culturais, que são os conceitos 16 principais desenvolvidos nos estudos atuais de Cultura (CUCHÉ, 1999). Pode-se destacar que existe uma relação entre a Cultura e a língua, pois os dois conceitos possuem uma significação e dependência entre eles. A língua, no entanto, faz parte da Cultura de um povo ou nação, e é através dela que desenvolvemos e aprendemos sobre a diversidade cultural e suas concepções e significações.

Laraia (2009) postula que todos os homens são iguais, sendo que a diferenciação entre eles se dá pela Cultura de cada um, com a sua diversidade e os modos de comportamento distintos entre eles. Sendo assim, a Cultura é desenvolvida por diversos acontecimentos e ações externos ao homem e a uma sociedade, que fazem com que o ser humano aja de acordo com a realidade e as concepções culturais em que ele está inserido. O autor destaca que tudo o que está ao redor do homem pode influenciar sua cultura, tanto o espaço geográfico, tempo e objetos, quanto as ações, a linguagem, a maneira como o indivíduo se comporta dentro de determinada realidade. Tudo o que o envolve influencia suas concepções culturais. Existem, para Santos (1987), duas concepções do conceito de Cultura: (1) uma que remete a todos os aspectos de determinada realidade social, e (2) outra que é voltada ao conhecimento, ideias e crenças de uma nação e sociedade. O autor destaca que “[...] as culturas movem-se não apenas pelo que existe, mas também pelas possibilidades e projetos do que pode vir a existir” (p. 17- 18).

A partir do século XVIII começa a se estabelecer uma maior relação entre os conceitos de língua e Cultura, fazendo parte da história do Iluminismo. Porém, essa compreensão não foi muito utilizada por filósofos e pensadores da época. Assim, o conceito de Cultura passa a ser empregado de maneira a ter uma relação com uma formação, ou com a educação de um indivíduo, sendo este mais “instruído” por usufruir da educação cultural, passando a ser utilizada a ideia do ser humano que cultiva a “instrução”, ou aquele que “tem cultura” (CUCHÉ, 1999). Ainda para o autor,

Esse uso [cultura como estado] é consagrado, no fim do século, pelo Dicionário da Academia (edição de 1798) que estigmatiza ‘ um espírito natural e sem cultura’, sublinhando com esta expressão a oposição conceitual entre ‘natureza’ e ‘cultura’. Esta oposição é fundamental para os pensadores do Iluminismo que concebem a cultura como um caráter distintivo da espécie humana. A cultura, para eles, é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerada como totalidade, ao longo de sua história (CUCHÉ, 1999, p. 20-21).

17

O pensamento sobre a noção de Cultura não possui definições uniformes. Ela pode ser compreendida por trabalhar com modos de vida e de pensamento, porém, sempre houve desacordos sobre a sua aplicação em realidades distintas, desde que as discussões sobre o tema começaram a ser debatidas, no século XVIII (CUCHÉ, 1999). Sendo assim, “o uso da noção de cultura leva diretamente à ordem simbólica, ao que se refere ao sentido, isto é, ao ponto sobre o qual é mais difícil entrar em acordo” (CUCHÉ, 1999, p. 11-12). Ainda para o autor, o conceito científico de Cultura está diretamente ligado a evolução histórica da humanidade, além da gênese social da ideia moderna de Cultura.

O comportamento do ser humano depende integralmente de um aprendizado, chamado de endoculturação3 (LARAIA, 2009). Laraia (2009) se apropria do conceito de que pessoas agem de maneira diferente por sua educação diferenciada, e não pelas funções hormonais. Na sociedade brasileira, ocorre uma padronização cultural do país, que vem desde o início de nossa história e que tem base na escravidão. Essa endoculturação brasileira abre portas para discussões sobre as desigualdades sociais existentes no país, e é possível compreender a difícil “quebra” de algumas concepções culturais que estão enraizadas no Brasil, como o preconceito e a xenofobia. Ortiz (1985) e Freyre (2001) discutem sobre a cultura brasileira do preconceito e a distinção de etnias no Brasil. Este assunto será apresentado, posteriormente, em maior profundidade, no capítulo sobre a sociedade brasileira.

Outra questão que envolve a endoculturação brasileira está relacionada à dimensão geográfica. Sendo um país de dimensões continentais, encontram-se diferenças culturais entre os estados brasileiros (LARAIA, 2009). Essas diferenças se dão desde a linguagem – com sotaques distintos – e vestimenta, até comportamentos pessoais e profissionais, por exemplo. As regiões Nordeste e Sul possuem divergências culturais, apesar de ambos estarem em um mesmo país e possuírem uma mesma cultura principal: as concepções culturais a partir da sociedade brasileira. Entretanto, cada Estado destaca pequenas culturas de cada ambiente, que são influenciadas pelas diferentes ações ocorridas ao redor deste povo, como destaca Laraia (2009). A questão geográfica, como o calor e o frio, fazem com que vestimentas sejam diferentes, assim como a alimentação e os costumes tradicionais. Além disso, a vinda de imigrantes alemães e italianos ao Sul do país, por exemplo, também possibilitou que novas e diferentes concepções culturais fossem destacadas.

3 Aprendizado de uma Cultura desde o nascimento até a morte. 18

Para Laraia (2009), as concepções culturais existentes em um ser humano são dependentes de uma “imitação dos padrões culturais” da sociedade em que o indivíduo está inserido. Este pensamento desassocia da ideia de que o homem age instintivamente. Para o autor, as ações de um ser humano são pré-determinadas a partir de uma Cultura e dos padrões estabelecidos por ela, e não por instinto, sendo uma forma de imitar os ancestrais e semelhantes atuais, perpetuando a Cultura daquele povo. Por isso, “no caso humano [...] toda a experiência de um indivíduo é transmitida aos demais, criando assim um interminável processo de acumulação” (LARAIA, 2009, p. 53). Por isso, o autor postula que as ações de um povo específico são reflexos de tudo aquilo que essa sociedade já viveu anteriormente, como forma de acumular Culturas já existentes.

Assim como Laraia (2009), Cuché também acredita que a Cultura emerge como um instinto social, que estrutura comportamentos e relações, por isso que “a cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem” (CUCHÉ, 1999, p. 9-10). Ambos os teóricos destacam que o homem não age instintivamente, mas sim com base em sua Cultura e os seus aprendizados relacionados a ela, em seu espaço e relacionamento que o permitem agir de determinada forma, transformando em ações culturais diversas que serão impactadas entre Culturas diferentes umas das outras, formando a Diversidade entre povos e nações.

Seguindo a discussão de Cuché (1999) sobre o instinto supostamente natural que o ser humano possui, ele ainda traz um questionamento sobre o que seria “agir naturalmente” perante uma sociedade ou um povo, já que o “natural” pode diferenciar-se dentro de cada Cultura e sua concepção de significação da palavra “natural”. Cuché (1999) destaca que este pensamento é apresentado, muitas vezes, para as crianças, tanto no sentido de “agir naturalmente” quanto no de “comportar-se de acordo com os modelos da cultura em que se está inserido”. O “natural” proposto neste exemplo não está trazendo o instinto “naturalizado” de comportar-se bem, mas sim, mais uma vez, buscando a “acumulação” de concepções culturais que são desenvolvidas e aprendidas no decorrer da vida e ditas “instintivamente” como naturais e positivas, sendo que, para uma sociedade com a Cultura diferente, pode-se trazer outro significado. Nesta etapa do conceito é que atingimos a Diversidade Cultural, que será discutido mais adiante.

Assim, estes instintos socioculturais são importantes para não relativizar comportamentos humanos naturais a sua essência, sendo contrários aos conceitos dos instintos naturalizantes, ou seja, aqueles em que se acredita que o homem age de forma natural, e não vinculado às suas concepções culturais acumuladas no decorrer de sua trajetória enquanto ser 19 humano. Para Cuché (1999), nem mesmo a fome, sono e desejos sexuais são instintos naturais: todos baseiam-se e são informados pela Cultura: “as sociedades não são exatamente as mesmas respostas a estas necessidades. A fortiori, nos domínios em que não há constrangimento biológico, os comportamentos são orientados pela cultura” (CUCHÉ, 1999, p. 11).

O conceito de Cultura baseia-se pela sua dependência de “símbolos” (LARAIA, 2009). Este, por sua vez, é “um exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação” (LARAIA, 2009, p. 55). Sendo assim, o autor destaca a relação do comportamento humano como um comportamento simbólico, e defende que, para perceber os significados de seus símbolos, é necessário um conhecimento da Cultura que o criou.

Seria possível destacar que o determinismo geográfico considera essas diferenças, já que o ambiente físico condiciona uma forma de Diversidade Cultural. A linguagem também afeta na concepção de uma Cultura, e ambas são formas de diversificação, porém, Laraia (2009) diz que “as diferenças de comportamento entre os homens não podem ser explicadas através das diversidades somatológicas ou mesológica. Tanto o determinismo geográfico como o determinismo biológico [...] foram incapazes de resolver o dilema[...]” (LARAIA, 2009, p. 16). Então, o que pode explicar como a Cultura se desenvolve?

Ela pode se basear pelo Relativismo (LARAIA, 2009), devido ao fato de que cada ser humano considera o que é positivo ou negativo a partir de suas próprias vivências e concepções. O Relativismo é uma perspectiva antropológica, livre do etnocentrismo, que não julga a outra Cultura apenas pelas suas visões e experiências. Santos (1987) também discute o Relativismo cultural para entender a diversidade entre povos e nações, porém ele o crítica, colocando-o como um problema para a história cultural, que não pode desempenhar um papel para realmente entender as culturas, já que uma não pode ser superior a outra. Neste caso, o autor menciona que

Só se pode propriamente respeitar a diversidade cultural se se entender a inserção dessas culturas particulares na história mundial. Se insistirmos em relativizar as culturas e só vê-las de dentro para fora, teremos de nos recusar a admitir os aspectos objetivos que o desenvolvimento história e da relação entre os povos e nações impõe (SANTOS, 1987, p. 13).

Não existe, assim, uma superioridade ou inferioridade entre culturas e suas concepções, o que as diferem são processos históricos que as comparam e estabelecem marcas únicas e concretas entre elas. As Culturas e as sociedades se relacionam de forma desigual, com 20 desigualdades de poder, gerando hierarquizações de povos. É preciso levar este fato em consideração para expandir a reflexão sobre o conceito de Cultura. Não podemos deixar de tratar as desigualdades, é necessário reconhecê-las e buscar a sua superação. Essas desigualdades são encontradas não apenas em povos e nações distintas, mas também dentro de uma sociedade, como no caso do Brasil, o que veremos mais adiante. Santos ainda descreve que enfatizar a relatividade de critérios culturais é uma questão estéril quando se depara com a história concreta, que faz com que essas realidades culturais se relacionem e se hierarquizem” (SANTOS, 1987, p. 15).

A Diversidade, outro conceito que está ligado à Cultura, também pode ser explicado como um resultado entre desigualdades no processo de evolução de cada sociedade (LARAIA, 2009). Essa linha de percepção sobre a Diversidade também compactua com as discussões de Santos (1987) sobre o Relativismo. Não são as sociedades que são superiores ou inferiores, mas elas têm processos de evolução diferenciados no decorrer de sua história, que não podem ser descartados. Sendo assim, “a diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da história humana, expressa possibilidades de vida social organizada e registra graus e formas diferentes de domínio humano sobre a natureza” (SANTOS, 1987, p. 13).

Cuché (1999) também trata da Diversidade em seus estudos, quando postula sobre as emergências de instintos sociais que estruturam comportamentos e relações entre diferentes povos e nações. Como já destacado anteriormente, o autor postula que o homem consegue adaptar-se a seu meio, assim como “este meio ao próprio homem” (p. 9-10). Quando se trata de Culturas em “choque”, assim como Laraia (2009) e Santos (1987) também apontam, sempre haverá diversidade entre elas, mas o ser humano possui a capacidade de adaptar-se a qualquer cultura independentemente de onde ele estiver inserido. Como Laraia (2009) menciona, um bebê nascido em determinada Cultura, se removido, precocemente, de seu lar, sendo instruído por outra Cultura totalmente oposta à sua, facilmente será adaptado à nova realidade em que foi inserido.

Indo contra estes conceitos de Diversidade mencionados até agora, Laraia (2009) relata que a nossa “herança cultural”, ou seja, tudo aquilo que acumulamos no decorrer de nossa existência nos condiciona a reagir negativamente com relação ao comportamento de indivíduos que não seguem o “padrão” aceito pela maioria da comunidade em que se vive. Jessé Souza (2010) conceitua e denomina essa parte da sociedade como os “Excluídos”, ou seja, aqueles indivíduos que não se encaixam dentro dos padrões aceitos pela sociedade, de acordo com a sua Cultura. Souza (2010) postula que os “Excluídos” fazem parte da grande massa da 21 população brasileira que são fortemente deixados de lado pois não se encaixam dentro do que a sociedade brasileira, em geral, trata como “naturalizado”, ou, se tratando de “sociedade brasileira”, relatando padrões da classe média e alta do país. São aqueles que possuem uma Cultura menos digna de vida, que são destituídos de necessidades básicas como saneamento, estudo, lazer e trabalho, entre outros. Essa parcela da população brasileira, para quebrar a barreira de exclusão da sociedade, necessita de ferramentas para alterar o espaço destinado a eles e, mesmo assim, este espaço ainda se torna muito difícil de ser conquistado. Este conceito será aprofundado no próximo capítulo deste trabalho, que trata de classes sociais e comportamentos de padrões culturais como forma de preconceito e desigualdade social dentro de uma sociedade.

Os padrões culturais podem ser alterados de acordo com a sociedade em que se vive, mesmo dentro do Brasil, onde temos distintas Culturas em Estados diferentes do país. Laraia diz que “o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são, assim, produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura” (2009, p. 68). Pelo fato de o ser humano ver o mundo de diferentes formas, podem surgir conflitos sociais, como consequência da propensão ao etnocentrismo4. Para Laraia (2009), estes comportamentos etnocêntricos vão contra os conceitos de Diversidade e resultam em “apreciações negativas dos padrões culturais” de povos distintos, indo contra, também, ao Relativismo Cultural.

As organizações sociais possuem suas formas variadas. A questão de relações de desenvolvimento entre Culturas é uma das discussões de Santos, já que cada uma possui o seu critério de avaliação para hierarquizar uma Cultura, ou seja, não é possível medir culturas, porém “do mesmo modo, há aqui tendências dominantes, como a de formação de poderosas sociedades com instituições políticas centralizadas” (SANTOS, 1987, p. 10).

Dessa forma, Santos (1987) postula que as concepções de evolução linear cultural são atacadas, pois cada Cultura tem a sua única verdade e a classificação dela mesma, sendo improvável a hierarquização, devido à multiplicidade de critérios culturais. Mas o que seria a “verdade” no âmbito conceitual e teórico? Como podemos destacar uma verdade mais absoluta que a outra? Jenkins (2007) discute a questão do conceito de “Verdade” no domínio historiográfico, destacando que ela é utilizada de diferentes formas, com diferentes momentos históricos e distintos pensamentos. Para o autor, cada historiador, por exemplo, se utiliza de

4 Visão de mundo daquele que considera o seu grupo étnico socialmente mais importante aos demais. 22 conceitos, materiais, metodologias específicas, que vão de acordo com a sua ideologia, criando a sua própria verdade. Assim como o mesmo acontecimento histórico, desenvolvido e trabalhado por outro historiador, pode abrir espaço para outros pensamentos e outras “verdades”, não mais aquelas proferidas pelo historiador inicial. A Verdade, então, seria diferente para cada pessoa, grupo ou nação. Cada ser humano possui a sua própria Verdade a partir de suas concepções culturais, sendo improvável a teoria da evolução linear. A partir disso, são desenvolvidas questões de etnocentrismo, racismo e preconceito, já destacadas por Laraia (2009).

Cuché (1999, p. 17) diz que o conceito de Cultura está em acordo para responder questões e problemas colocados em períodos históricos, além de contextos sociais e políticos. Para o autor, “nomear é ao mesmo tempo colocar o problema e, de certa maneira, já resolvê- lo”. Este pensamento está de acordo com as ideias de Jenkins (2007) e Santos (1987), pois, a Cultura está, assim como a Verdade, para responder alguns acontecimentos históricos e discuti- los, de modo científico. Assim como não existe uma Verdade absoluta, também não podemos destacar uma Cultura absoluta, e os autores trazem este pensamento para discutir sobre como os contextos históricos dependem da Cultura, assim como o oposto.

Santos (1987, p. 8) destaca a importância de se estudar a Cultura como forma de combater os preconceitos, sendo uma plataforma de “respeito e dignidade nas relações humanas”. Para o autor, as sociedades possuem as suas próprias Culturas, porém, todas elas estão em constante interação, exigindo um pensamento de que diversos povos e grupos estão interagindo uns com os outros, gerando uma diversidade cultural em larga escala. As formas e relações culturais propiciam a indagação das razões de realidades sociais que vivemos, pois “saber se há uma realidade cultural comum à nossa sociedade torna-se uma questão importante. Do mesmo modo evidencia-se a necessidade de relacionar as manifestações e dimensões culturais com as diferentes classes e grupos que a constituem” (SANTOS, 1987, p. 8).

Como visto, o conceito de Cultura é bastante amplo e os autores destacam que tudo o que o ser humano faz, age e fala está relacionado às concepções culturais acumuladas por ele ao longo de sua vida, sendo estas adquiridas pelos ancestrais, utilizando a repetição de Culturas, ou seja, tudo aquilo que determinado indivíduo produz atualmente está ligado ao acúmulo de Culturas já desenvolvidos anteriormente, podendo misturar e transformar novas identidades culturais5. Laraia (2009), principalmente, trouxe a questão do Relativismo para discutir

5 Mais informações sobre identidades culturais podem ser consultadas em HALL (2006). 23 conceitos teóricos da Diversidade Cultural existente, e como estes povos podem se relacionar, gerando, muitas vezes, um etnocentrismo e xenofobia entre eles. A partir disso, abre-se espaço para novos questionamentos com relação à Cultura. Como ela pode ser representada em diferentes meios? Como a Cultura pode ser exposta e estudada? Quais as maneiras de dialogar com povos e nações diferentes, ou até mesmo, como no caso do Brasil, apenas para destacar culturas diversas dentro de um mesmo país? E o cinema? Pode ser uma fonte de pesquisa rica para se estudar e conceituar representações de Cultura de uma sociedade?

2.2 REPRESENTAÇÃO E SEUS CONCEITOS

Ao compreender a Cultura e investigar sua evolução ao longo da história, surge o seguinte questionamento: Como Produtos Culturais e o cinema são capazes de representar a realidade social? Para responder a esta pergunta, é necessário, inicialmente, refletir sobre o conceito de Produto Cultural para, então, chegar ao de Representação. O conceito de Produto Cultural utilizado, neste trabalho, baseia-se nos estudos de Thompson (1995). O autor os denomina como "produtos da indústria cultural", e a sua teoria é desenvolvida pelos conceitos de Horkheimer e Adorno (1947) que tratam sobre o surgimento da "indústria cultural", que resulta na mercantilização das formas culturais, com o surgimento das indústrias de entretenimento, ao fim do século XIX. Os Produtos da Indústria Cultural, segundo Horkeimer e Adorno (1947) fazem parte da mercantilização desenvolvida pela força de trabalho, dentro do Capitalismo, e são resultado da padronização e racionalização das formas culturais. Para os autores, a indústria de entretenimento baniu ao ser humano a capacidade de pensar e agir, individualmente, de maneira crítica. Além disso, estes Produtos da Indústria Cultural não tem o objetivo de determinar características intrínsecas de maneira artística, mas apenas pela lógica do lucro. Sendo assim, Thompson (1995) define que os Produtos da Indústria Cultural, em sua maioria,

[...] não tem a pretensão de serem obras de arte. Na maioria das vezes, eles são construtos simbólicos que são moldados de acordo com certas fórmulas preestabelecidas e impregnados de locais, caracteres e temas esteriotipados. [...] ao contrário, reafirmam essas normas e censuram toda ação e atitude que delas se desvia. Os produtos da indústria cultural se apresentam como um reflexo direto, ou uma reprodução, da realidade empírica, e, devido a esse "pseudo-realismo", normalizam o status quo e suprimem a reflexão crítica sobre a ordem social e política (THOMPSON, 1955, p. 133).

24

Thompson (1995) destaca, ainda, em seus estudos, que um Produto da Indústria Cultural se dá pela experiência puramente humana e histórica, sendo ela assimilada e relacionada ao passado, para construir o presente. Repensando novamente a questão de representação de uma Cultura em um Produto da Indústria Cultural, outras discussões são fundamentais e devem ser levantadas para realizar uma questão preliminar sobre as narrativas e seu papel sociocultural. Assim, as perguntas que emergem nesse contexto são as seguintes: Como as obras de arte se articulam com a realidade? Quais os seus papéis no próprio entendimento que os sujeitos dão a realidade? A partir do avanço nessas indagações, é possível problematizar a própria noção de Representação. Como aponta Wagner (2012, p. 11), “a ideia de que o homem inventa suas próprias realidades não é nova”. Assim, a Cultura e a construção de narrativas têm pontos de intersecção. Não é possível pensar uma Cultura de determinado povo ou de uma época sem considerar o papel que as narrativas, como o cinema, impactam na sua construção. Nesse contexto, como indica Zizek (2013, p. 13), fatos históricos, mesmo não ocorrendo como é relatado ao longo do tempo, não deixam de perder seu valor. Segundo o próprio autor,

Diz a lenda que, em 1633, Galileu Galilei murmurou: Eppur si muove [E, no entanto, ela se move], depois de desmentir, diante da Inquisição, a teoria de que a Terra se movia ao redor do Sol [...] Não há nenhuma evidência contemporânea de que ele tenha dito isso. Hoje, a frase é usada para indicar que, embora alguém tenha o conhecimento verdadeiro seja forçado a renunciar ele, isso não o impede de ser verdadeiro (ZIZEK, 2013, p. 14).

Dessa forma, as próprias histórias que são contadas como verdadeiras, não necessariamente as são. Porém, isso não deixa de perder o valor que ela possui para estruturar formas de agir e pensar de um determinado povo, ou de uma Cultura. Ainda, produções culturais, que são claramente representações, (re)produzem experimentações reais pelos sujeitos. Produções audiovisuais são capazes de provocar reações fisiológicas como o choro, o riso, etc. Assim, como complementa Zizek (2013, p. 14), “para além da ficção da realidade, existe a realidade da ficção”. Da mesma maneira, Rossini (2008, p. 128) também destaca a importância que o cinema traz para Representação, destacando a sua proximidade com a realidade. Segundo a autora, “o filme jamais perde os laços com o momento de sua realização.[...][através dele] revivemos o passado, percebemos novas nuances do presente, conhecemos outras culturas, capturados que estamos pelo efeito da realidade”. 25

Turner (1997) também acredita que a realidade no cinema é um acontecimento natural. Com a utilização do som no meio cinematográfico, a realidade aumentou ainda mais. O autor acredita que o uso de diálogos nos filmes, complexos e detalhados, deixaram a realidade cada vez mais presente neste meio de comunicação. No momento em que Turner (1997) reflete sobre a complexidade, ele destaca o fato de a riqueza de conteúdo aproximar o filme da realidade.

Por sua vez, Alea (1983, p. 44) postula que as produções culturais, principalmente o cinema, têm o objetivo de “aproximar o espectador da realidade sem deixar de assumir sua condição de irrealidade, ficção, realidade-outra [...] para que o espectador retorne, carregado de experiência e estímulo”. O espectador deixa de sê-lo para se colocar no lugar dos personagens, apropriando-se da sua realidade cotidiana com uma maior compreensão das questões que o filme apresenta. Dessa forma, “um espetáculo assim não seria outra coisa senão uma duplicação da imagem que temos da realidade, uma redundância [...]” (ALEA, 1983, p. 44). Turner (1997) também se apropria desse conceito, destacando que o público se identifica com os personagens, não somente com os heróis e heroínas, mas simplesmente pelo fato de serem humanos comuns, como na realidade.

Ricœur indica que “precisamos articular nossa experiência social da mesma maneira que devemos articular nossa experiência perceptiva" (2015, p. 27). Com base nesse posicionamento, é possível compreender que as produções culturais têm o papel de dialogar e completar a experiência biológica dos sujeitos. Para o autor, a ciência permite que os sujeitos compreendam como as coisas são, como é possível classificá-las e como ela age sobre a dimensão sociocultural. Ricœur afirma que “nossos quadros sociais articulam os nossos papéis sociais, a nossa posição na sociedade, como isso ou aquilo” (2015, p. 27). A partir disso, qual sistema é capaz de organizar essa existência? De que forma o “código” dessas experiências é repassado entre sujeitos e épocas? A resposta é dada por ele mesmo: “A própria flexibilidade da nossa existência biológica torna necessário outro tipo de sistema informacional, o sistema cultural” (RICOEUR, 2015, p. 27). Porém, esse sistema de informações culturais não é partilhado da mesma forma que a “genética biológica”. A Cultura e os Produtos Culturais têm o papel de serem a fonte de disseminação dessa “genética cultural”. A possibilidade de carregar e transmitir uma Cultura, para o autor, é o que nos faz humanos. Essa questão também é discutida por Cuché (1999) e Laraia (2009), que teorizam sobre a Cultura e a relação dela com o que somos. Como dito anteriormente, a Cultura e as concepções culturais de um indivíduo são acumulações de tudo aquilo que ele vivenciou ao longo de sua vida, e toda a historiografia de seu povo e da sociedade 26 em que ele se constitui enquanto ser humano. Como sustenta Ricœur (2015, p. 28), “é que, ali onde houver seres humanos, não se pode encontrar modo de existência não simbólico e, menos ainda, ação não simbólica”. Da mesma forma que Zizek (2013) sustenta que a realidade influencia as ficções, bem como a ficção também é estruturada pela realidade, Ricœur (2015) defende uma posição semelhante. Para o autor, as experiências naturais e sociais também são mediadas e interpretadas por uma dimensão simbólica. Pelas duas posições defendidas, é possível refletir sobre a possibilidade de a Cultura representar a sociedade e suas relações sociais. Se, a partir dos autores, compreende-se como a Cultura estrutura a realidade, pode-se afirmar que a Cultura tem a capacidade de representar essa mesma sociedade e suas relações sociais. Ainda sobre a discussão de Representação, Codato indica que “O termo representar permite ser traduzido como o ato de criar ou recriar um determinado objeto, dando-lhe uma nova significação, um outro sentido” (2010, p.48). Para Jodelet (2001), este conceito surge como um sistema que organiza o que é e como é a realidade para uma determinada Cultura. Esse processo, para Codato (2010), se dá pela imagem do filme, que constrói uma representação da realidade para determinado povo ou Cultura. Dessa forma, a Representação permite, por um lado, a abertura do sentido de algo, possibilitando que o objetivo representado sirva a um propósito maior de reflexão. Por outro, a Representação também permite estruturar o que é Cultura para um determinado povo. Assim, a Representação é indissociável da Cultura, já que, a partir dela, as narrativas de um determinado povo são construídas e partilhadas. Badiou, por sua vez, sustenta que o cinema tem a capacidade de representar a realidade pela sua característica de “capturar a realidade” a partir da câmera. Disso, decorre um paradoxo, segundo o autor: “O paradoxo do cinema pode ser definido de duas maneiras: a primeira, e mais filosófica, é dizer que ele constitui uma relação inteiramente singular entre o artifício total e a realidade total” (BADIOU, 2015, p. 36). A capacidade do cinema em representar a realidade é um artifício para constituir uma impressão de realidade e, além disso, estruturar a própria forma como os sujeitos compreendem a realidade. Devido a essa capacidade do cinema em representar, um outro paradoxo surge, segundo Casetti e Di Chio (1991): estruturar a própria realidade por algo exterior a ela. Ainda assim, segundo Codato (2010, p.48), “não seria o conceito de verdade também uma forma de representação?”. Convém, neste ponto, citar Jenkins (2007), para quem a Verdade não é absoluta, mas originária de autores e metodologias distintas. Além disso, a Verdade também pode ser uma forma de representar determinada sociedade, ao destacar a sua Verdade e expor sua Cultura. 27

Assim, não há uma oposição entre verdade e representação, mas a verdade é estabelecida por meio de representações aceitas de forma consensual por determinada cultura. Como sustentam Compagnon (2010) e Barthes (2004), a arte, como a literatura, permite a Representação da realidade. Porém, o que difere o cinema, segundo Badiou (2015), com as demais artes é que ele “é uma ‘arte das massas’ [...] Uma arte é ‘de massa” quando obras de arte, obras-primas incontestáveis, são vistas e apreciadas por milhões de pessoas no momento mesmo de sua criação” (BADIOU, 2015, p. 36). Badiou destaca que houve obras em outras artes capazes de serem de massa. O autor afirma que “não se discute que o cinema possa ser uma arte de massas sem comparação com nenhuma outra arte” (2015, p. 37), porém, o que difere o cinema das outras, as quais também se apresentaram como de massas, foi sua escala de disseminação e circulação. Essa capacidade de circulação do cinema permite refletir sobre o que foi discutido em Ricoeur (2015), Laraia (2009) e Cuché (1999). A Cultura tem o papel de transmitir, tal qual a genética biológica, “instintos sociais”. Dessa maneira, o cinema, como indicado por Badiou (2015), é um vetor significativo na transmissão da Cultura na sociedade. Como defende Codato (2010, p. 48), “[...] os meios de comunicação de massa, esse universo plural do qual o cinema também faz parte, ocupam um importante papel na organização e na construção de uma determinada realidade social”. Assim, nesse processo de “transmissão” da cultura, o cinema atua na estruturação e organização da cultura (BADIOU, 2015; CODATO, 2010). Porém, também é necessário refletir sobre a posição paradoxal do cinema enquanto arte de massas. Badiou (2015) defende que a arte remete a um sistema aristocrático. Já as “massas” estão relacionadas ao âmbito democrático, já que as “massas é uma categoria política, uma categoria que possui efetividade política, enquanto ‘arte’ é uma categoria aristocrática” (BADIOU, 2015, p.37). Essa questão da arte enquanto aristocrática, como sustenta Badiou, não implica em um juízo de valor, mas traz consigo implícita a ideia. Da mesma forma, o fato de o cinema ser “de massa” não garante que todos os filmes sejam necessariamente acessíveis a todos os públicos. Dessa forma, Badiou (2015) aponta que há filmes que são realizados para um público restrito e que dependem de um conhecimento prévio para acessá-los de forma plena. A discussão sobre o cinema em Badiou (2015) aproximou-se de Laraia (2009), Cuché (1999) e Ricœur (2015) ao refletir-se sobre a capacidade de disseminação da Cultura na sociedade. Além disso, Badiou (2015) também se aproxima das discussões dos autores - como também de Zizek (2013) – quando refletimos sobre o processo de identificação do sujeito com o cinema. Badiou classifica o cinema como uma arte de massas “porque é uma arte da imagem, e a imagem fascina todo mundo. Nesse caso, o cinema é concebido como fabricação de uma 28 aparência exterior da realidade, uma espécie de duplo do real [...] o cinema [...] aciona poderosos mecanismos de identificação” (BADIOU, 2015, p.39). Então, além de sua capacidade de alta circulação, o cinema também é capaz de gerar significativa identificação entre sujeitos e a arte. Alea (1983) também destaca as questões da relação do cinema com a realidade, afirmando que os longas-metragens podem partir de uma realidade da sociedade, sendo uma manifestação da consciência social, ou seja, um reflexo da realidade. O cinema capta diversas ações e acontecimentos reais, transformando-os, já que esta arte “é capaz de alcançar um alto grau de aprofundamento e generalização mediante a possibilidade de encontrar novas relações entre essas imagens de aspectos isolados” (ALEA, 1983, p.42).

Compreendida a capacidade de as narrativas, a partir da Representação, constituírem-se como realidade, é possível avançar para outras questões mais específicas do cinema, como a possibilidade de representação a partir da imagem e som. Para tal, contribuem Aumont et al. (2012), que veem a imagem no cinema como possibilidade de Representação da realidade. Os autores refletem sobre como a ficção se aproveita da realidade e como a realidade se estrutura a partir de ficções. Para os autores, “reagimos diante da imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo” (AUMONT et al., 2012, p. 21). Esse fato decorre da possibilidade do cinema em promover uma impressão de realidade “que se manifesta principalmente na ilusão de movimento [...] e na ilusão de profundidade” (AUMONT el al., 2012, p.21). Para Rossini (2008), uma produção audiovisual também trabalha com sentidos e sentimentos (ROSSINI, 2008). Dessa maneira estamos mais próximos à realidade, e, devido a multiplicidade de elementos (sons, luz, cenografia, etc.), que fazem com que o produto tenha uma aproximação à realidade e faz com que se tenha consciência desta aproximação. Ainda, nessa discussão, Aumont et al. (2012) e Machado (2007) discutem se a imagem do cinema está restrita ao que é exposto. O filme é apenas o que está à mostra? Como o espectador reflete para além do campo que a imagem apresenta? Essa questão, segundo os autores, tem um extenso debate entre os teóricos do cinema, porém, o consenso acerca desse ponto é de que o que está fora do campo também faz parte do filme. Assim, é possível refletir que os realizadores de filmes não se restringem a situar apenas o que é mostrado neles, como também em contextualizar a imagem a ponto de o espectador conseguir pensar o além da imagem. Ambos os campos, internos e externos do filme, segundo Aumont et al. (2012), são imaginários e compõem o mesmo “universo” – esse pode estar ancorado na realidade ou ser 29 estritamente ficcional. A partir dessa abordagem dos autores, compreende-se a possibilidade de representação a partir do cinema, visto que ela não está diretamente vinculada com a forma em que ocorre. Assim, filmes abstratos e animações também têm a possibilidade de representar, já que podem se valer de recursos narrativos que dialogam com a realidade. O além do campo interno do filme também pode ser compreendido a partir de Machado. Como afirmado pelo autor, “o que percebo no cinema não é apenas o que vejo, não é apenas o que me é mostrado no recorte do quadro, através da mediação da câmera” (MACHADO, 2007, p. 97). Nisso, como o quadro é completado? Que elementos são importantes para compreender o “além do quadro”? Em Aumont et al. (2012) há esse “universo” que é composto pelo mostrado e o não mostrado; já em Machado (2007), entra a questão da suposição do que o outro vê. Ele afirma que “A minha percepção depende fundamentalmente do que eu adivinho na percepção do outro, do que eu suponho que o outro vê (ou não vê) e do que suponho que o outro sabe (ou não sabe) que eu vejo” (2007, p. 97). Esse jogo entre o que um espectador imagina e o que os outros percebem só é possível, como aponta Cuché (1999), a partir da partilha de códigos de interpretação compartilhado pelos sujeitos que pertencem a mesma Cultura. A questão da representação no cinema, a partir dos autores discutidos, é compreendida por duas características, sendo (1) a sua capacidade de circulação na sociedade; (2) sua capacidade técnica em produzir imagens que têm a impressão de realidade; uma relacionada ao cinema enquanto meio e mercado, outra às produções fílmicas em si. Essas duas características não trabalham de forma isolada, uma depende da outra para ampliar sua potencialidade de representação. Pelo lado da circulação, o cinema possibilita a representação da sociedade, pois é ele um importante ator em circular a cultura de uma sociedade, porém, não adianta apenas circular, como discutido nos autores, é preciso algo além disso e que possibilite a representação. Assim, a questão técnica do filme em si, de (re)produção de imagens e sons, possibilita uma representação da realidade maior do que outras produções artísticas/culturais.

30

3 A HISTÓRIA DO CINEMA BRASILEIRO E MUNDIAL

Com os conceitos de Cultura e Representação claros e explicitados, neste momento é necessário discutir o cinema e como se dá o processo de representação por meio de produções cinematográficas. Aqui não se tem o objetivo de historiografar, de forma longa, a evolução do cinema no decorrer dos anos, mas o de desenvolver um breve relato da sua origem para entender quando se iniciam os estudos de representação no cinema e como se dão os efeitos de realidade neste âmbito. Este subcapítulo discute, também, os efeitos e fenômenos cinematográficos, aspectos importantes na análise de um filme. Nessa ordem, busca-se elucidar a questão de como discutir a realidade no cinema a partir da representação e quais os efeitos possíveis ao espectador e ao pesquisador, que tem o objetivo de analisar uma cena/filme específico. Por fim, este subcapítulo explicita a história do cinema nacional, com o objetivo de compreender como as produções brasileiras foram desenvolvidas ao longo dos anos, suas dificuldades e evoluções. Além disso, é possível relacionar o cinema com políticas de cultura que foram desenvolvidas no Brasil pelos governos que passaram a investir na área cultural e cinematográfica de maneira mais intensa. O contexto sócio-histórico do cinema nacional, neste subcapítulo, se dá a partir da “Retomada” – momento em que o cinema passa a ser valorizado, depois de longos anos sem investimentos e, consequentemente, sem produções – e da “Pós- Retomada”, período logo subsequente.

3.1 UM BREVE RELATO SOBRE O CINEMA MUNDIAL

No século XV, Leonardo da Vinci estuda a câmara escura, uma caixa preta com um orifício capaz de captar a luz de fora, gerando uma fotografia. Para Geada (1987), este foi o início dos fundamentos do cinema, devido à relação que se estabelece entre o olhar, o conhecimento e a consciência, além de que é possível, também, relacionar a câmara escura com as salas de cinema atuais. Um pouco mais adiante, no século XIX, Bazin (2014, p. 31) postula que a fotografia, além das artes plásticas, passa a representar, de maneira mais intensa e objetiva, uma forma de realidade, sendo que “pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação nada se interpõe, a não ser outro objeto”. Com isso, desenvolve os seus conceitos historiográficos sobre o cinema: ele deixa de ser, como no caso da fotografia, “lacrado no instante” e passa a se utilizar de movimento para reproduzir determinada realidade. 31

Em 1877 e 1880, surgem as primeiras imagens cinematográficas mundiais, com um cavalo galopando. Estas são desenvolvidas por Muybridge, que se utilizou de colódio úmido sobre uma placa de vidro. Apesar disso, Bazin (2014) defende que o cinema surgiu apenas na era Lumière6, quando são utilizados filmes de papel para a produção de filmes. Para Mascarello (2006), o cinema se divide em duas fases: a primeira está relacionada ao cinema de atrações, entre 1894 e 1907, quando os filmes de ficção são produzidos em maior escala, e a segunda, de transição, entre 1907 e 1915, quando os filmes estruturam-se narrativamente, com base em convenções cinematográficas. Nesta primeira fase, os espectadores estão interessados pelo contato visual do cinema, e as produções eram desenvolvidas em plano único, passando, aos poucos, a se apropriar de mais tipos de planos em um mesmo longa-metragem. Já no período de transição, foram utilizadas narrativas específicas do cinema, produzindo histórias autoexplicativas. Assim sendo, buscava-se expressar a definição psicológica de cada personagem, e não apenas o contato visual. Seguindo o pensamento de Bazin (2014), Mascarello (2006) acredita que não existiu um único inventor do cinema, mas um conjunto de elementos técnicos que, no fim do século XIX, foram descobertos por diversos cientistas pela busca de projeções e imagens em movimento. Mascarello (2006) ainda destaca que o cinema, ao seu início, misturava as mais diversas formas culturais, como espetáculos de lanterna, teatro popular e cartuns. Sendo assim, nos primeiros vinte anos do cinema, houve uma constante transformação em relação à produção, distribuição e exibição cinematográfica. Apenas em 1893, quando Thomas A. Edison produz e patenteia, nos Estados Unidos, um quinetoscópio, são produzidas as primeiras exibições de filmes com uso de mecanismos. Alguns anos mais tarde, os irmãos Lumière também fizeram a sua primeira demonstração aberta ao público e paga, por meio do cinematógrafo (MASCARELLO, 2006), porém eles não foram os primeiros a realizar a façanha. Para Mascarello (2006), os irmãos Max e Emil Skaladanowsky realizaram uma exibição cinematográfica, também paga, por meio de um bioscópio em um teatro de Vaudeville, na Alemanha. Apesar disso, foram os irmãos Lumière que souberam fazer do cinema um negócio lucrativo, com vendas de câmeras e filmes. Sendo assim, “a família Lumière era, então, a maior produtora europeia de placas fotográficas, e o marketing fazia parte de suas práticas” (MASCARELLO, 2006, p. 19). Os irmãos Lumière eram dinâmicos em seus trabalhos: documentavam, em seus filmes, cenas da realidade cotidiana, como, por exemplo, o movimento de folhas de árvores ao vento, mas também

6 Auguste e Louis Lumière foram os irmãos franceses que desenvolveram as primeiras imagens cinematográficas, nos anos de 1890 (BAZIN, 2014). 32 produziram uma das primeiras ficções do cinema, L’arroseur arrosé (1895) (MASCARELLO, 2006). Ao longo dos anos surgiram outros produtores de cinema, como George Mèliés, que criou sua própria produtora cinematográfica, a Star Film, entre 1896 e 1912. Neste momento, Mèliés desenvolveu e produziu diversos filmes, até a sua falência, em 1913 (MASCARELLO, 2006). Para Tudor (s/d, p. 23), foi Mèliés que melhor soube utilizar a criatividade no cinema, devido as suas produções com monstros, planetas e viagens ao espaço. Por isso, “os rebentos destas sementes iriam dividir a estética do cinema em dois: a oposição simbólica entre Lumière e Mèliés paira eternamente sobre o debate estético”. A Companhia Pathé, fundada por Charles Pathé (1896), também abriu espaço para o cinema no mundo. Os filmes até então eram mudos e artísticos, inspirados nas influências de pinturas e temas do Expressionismo alemão, com técnicas de montagem russas (TUDOR, s/d). Entre os anos de 1928 e 1930, começa a surgir um novo tipo de cinema, o cinema falado. Para Bazin (2014, p. 95), “o realismo sonoro só podia condenar ao caos”, já que os espectadores estavam acostumados ao cinema silencioso. Não houve uma solução de continuidade entre o cinema mudo e falado, já que

tais afinidades mais ou menos claras provam, antes de tudo, que uma ponte pode ser lançada por cima da falha dos anos 1930, que certos valores 60 do cinema mudo persistem no cinema falado, mas, principalmente, que se trata menos de opor o ‘mudo’ ao ‘falado’ do que examinar, em ambos, famílias de estilo, concepções fundamentalmente diferentes da expressão cinematográfica (BAZIN, 2014, p. 96).

Consoante Bazin (2014), o som no cinema trouxe ainda mais realidade para as produções, já que este é um dos elementos principais para que a realidade seja representada em uma obra de nível cinematográfico, se pensado na era “pós cinema mudo”. O autor destaca, ainda, que foram as produções francesas e americanas que deram vida, antes da guerra, ao cinema falado, alcançando, para, finalmente, “equilíbrio e maturidade” (BAZIN, 2014), qualidades que o cinema precisava para alcançar a “perfeição clássica”, segundo o próprio autor. Para ele, o cinema falado conservou apenas o principal do cinema mudo: a descrição descontínua e análise dramática. Em 1917, grande parte dos estúdios de cinema norte-americanos concentram-se em Hollywood. A empresa foi um marco na cinematografia por ter, desde o seu início, um caráter internacional, com o objetivo de trabalhar com diretores e atores do mundo inteiro. Dessa maneira, era possível controlar um grande número de filmes, condição que evoluiu ao longo 33 dos anos, assim como a credibilidade de Hollywood (PARAIRE, 1994). O cinema hollywoodiano é considerado, por Paraire (1994, p. 12), uma empresa de filmes para o povo, com obras de divertimento e criações “fortes e originais”. Por ser um cinema popular, preocupa- se em destacar histórias e filosofias de seu povo, ou seja, da nação americana, mesmo que não tenha o objetivo de servir ao Estado ou a um governo em específico.

3.2 COMO REPRESENTAR NO CINEMA? ASPECTOS E CARACTERÍSTICAS

A questão da representação, no âmbito cinematográfico, é muito discutida, pois o efeito de realidade alcançada impressiona diversos pensadores e estudiosos da área. Cabe a seguinte pergunta: O que difere a fotografia de outros meios de representação, como desenhos, por exemplo? Para Xavier (2005), o congelamento de algo real influencia na diferenciação entre eles. No cinema, a Representação se torna ainda maior devido ao fenômeno do movimento das imagens. Rossini (2008) também destaca a riqueza do cinema que provém delas: estes movimentos tem o objetivo de aproximar o espectador a uma realidade que está representada – neste caso, em um filme. Os estudos sobre a representação no cinema foram iniciados em 1895, na França, e seguem sendo um importante ponto de debate até os dias atuais (XAVIER, 2005). Este conceito se dá pela identificação do sujeito na produção cinematográfica dada como instituição humana e social, sendo essa considerada a “alma do cinema” (MORIN, 2014). Para Morin (2014), a representação se baseia na materialização do real. Bazin (2014, p. 282), outro teórico, se apropria do cinema italiano para enfatizar e estudar o realismo cinematográfico. Para o autor, “a Liberação e as formas sociais, morais e econômicas que ela tomou na Itália desempenharam um papel determinante na produção cinematográfica”, principalmente nas questões de representação e realidade em uma produção fílmica. Para compreender estes conceitos, é preciso questionar a relação entre duas operações básicas na construção de uma produção cinematográfica, que, para Xavier (2005, p. 19), são: (1) a filmagem, e (2) a montagem. Sendo assim, reitera, “consideremos uma hipótese elementar: a câmera só é posta em funcionamento uma vez e um registro contínuo da imagem é efetuado, captando um certo campo de visão; entre o registro e a projeção da imagem nada ocorre senão a revelação e copiagem do material”. Assim como Xavier (2005), Rossini (2008) e Bazin (2014) também discutem a questão do enquadramento, já que o diretor do filme destaca o que lhe convém e transmite o que ele quer que o espectador veja. Assim se dá a práxis do cinema, sendo 34

“aquele inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento” (XAVIER, 2005, p. 19). Bazin (2014, p. 34) busca por progressões realistas no cinema, e este é o seu enfoque principal. Ele considera o cinema “uma linguagem”. Os seus estudos vão contra os teóricos de sua época, que conceituavam o cinema como “plástico” e não narrativo. Sendo assim,

[...] no tempo do cinema mudo, a montagem evocava o que o realizador queria dizer; em 1938, a decupagem descrevia; hoje, enfim, podemos dizer que o diretor escreve diretamente em cinema. A imagem - sua estrutura plástica, sua organização no tempo -, apoiando-se em um maior realismo, dispõe assim de muito mais meios para redirecionar e modificar de dentro a realidade. O cineasta não é somente o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim ao romancista” (BAZIN, 2014, p. 112).

Bazin (2014) trabalha, principalmente, com o papel da montagem na realização do filme, indo de acordo com os conceitos de Rossini (2008) e Xavier (2005), que também debatem sobre este fenômeno importante de uma produção fílmica e a consequência dela para a representação. O enquadramento é uma característica própria do cinema, e, nela, também, se destaca a questão do “foco”. Para Bazin (2014), tudo o que aparece sem contornos definidos é denominado como “fora de foco”. Esse ponto se faz importante na análise de um filme, em função da manipulação e montagem, pois, quando um objeto é colocado em foco, com distância, outros acessórios e características podem estar presentes neste campo. O foco principal é dado ao fator primordial, porém, todos os outros se complementam, com o objetivo de intencionalizar ideias e representações por parte do diretor do filme. Bazin (2014) denomina de “plano- sequência” esta profundidade de campo, que tem relação direta com a focalização da câmera, que se postula como infinita e com profundidade máxima, independentemente da posição do objeto no quadro da tela. O “plano-sequência” de Bazin (2014) tem o objetivo de trazer ao espectador mais realidade para o cinema, e este é o foco principal dos seus estudos. Mesmo Bazin (2014) e Xavier (2005) acreditam que o fenômeno da profundidade de campo, além de técnico, possui uma importância dramática, pois ela informa, conota, segrega e reúne. Sendo assim, os autores destacam que, quanto maior a profundidade de campo de uma cena, maior sua possibilidade de concentração de informações para análise, representações e manipulações. O enquadramento da tela, outra característica discutida por Bazin (2014), não é o limite da imagem que está a mostra, mas apenas um recorte, que não detalha uma parte de determinada realidade. Porém, para Xavier (2005), diferente da fotografia, o cinema não congela a imagem 35 e, como finalidade, traz um poder maior para a realidade e percepções ao filme. Além disso, o autor também destaca que a etapa de montagem do filme pode ser relacionada com o “ato de manipulação”, enfatizando que este é um momento da produção fílmica que pode ser denominado como a “perda da inocência”, já que o diretor se apropria de tudo o que foi filmado para manipular e escolher como será a montagem e as percepções da produção que deseja apresentar. Ainda assim, para Xavier,

[...] a descontinuidade do corte poderá ser encarada como um afastamento frente a uma suposta continuidade de nossa percepção do espaço e do tempo na vida real (aqui estaria implicada uma ruptura com a semelhança). Veremos que tal ‘ruptura’ é perfeitamente superada por um determinado método de montagem, com vantagens no que se refere ao efeito de identificação.

Rossini (2008) também acredita que os pensamentos e posições de ideias do diretor do filme são destacadas na produção cinematográfica. Para a autora, elas são conscientes e fazem parte dela como uma característica própria, ou um estilo de filme, que faz com que aquele que produz a obra cinematográfica, deixe suas percepções de mundo neste meio artístico.

O debate sobre estes efeitos cinematográficos abre, para Xavier (2005), um espaço para discutir o que ele chama de “efeito de janela” no cinema, um duplo do mundo real entrando em colapso, ou uma intensificação na operação da montagem e do enquadramento. Essas características, estabelecidas pelo diretor do filme, trazem força ao mundo de suas ideias, ou seja, aquilo que o criador da obra fílmica deseja representar no filme. Xavier (2005) denomina esta ação “intenção”, pois a produção cinematográfica é desenvolvida com um objetivo específico, para representar determinada situação. Sendo assim, “o que é a montagem senão o lugar da anulação da presença das coisas, que deixam de valer por aquilo que são para valer por aquela ausência que elas representam?” (XAVIER, 2005, p. 88).

O espectador, diante de uma tela, sabe, mesmo que inconscientemente, que a produção fílmica é um “conjunto de planos reunidos para atingir determinado fim” (XAVIER, 2005, p. 54), por isso, o indivíduo deve sempre procurar um sentido/significado com base na sua realidade ou a partir de sua percepção. Para Xavier (2005), este é o trabalho da montagem: entrega de um sentido ao espectador, dando o poder de manipulação e representação a ele. Então, qual o objetivo da representação e da realidade? Pelos estudos do autor, a arte cinematográfica deve ser realista por seu significado, o qual é produzido naturalmente pelos seus meios (montagem/filmagem), além de que “o realismo estético não é a expressão de um pensamento, mas um exercício do olhar” (XAVIER, 2005, p. 89). 36

A relação entre cinema e realidade, para Bazin, é o que se destaca em seus estudos sobre representação cinematográfica. Por isso, “o filme sempre se apresenta como uma sucessão de fragmentos de realidade na imagem, num plano retangular de proporções dadas, a ordem e a duração de visão determinando o ‘sentido’” (2014, p. 296). Para o autor, a produção fílmica não fornece somente uma imagem do real, mas constitui-se em um mundo “à imagem do real”, ou seja, um mundo de representações. Mas o que Bazin define por “à imagem do real”? Para ele, trata-se de um espaço, trazido pelas filmagens de uma câmera, de uma cena, e que tem o objetivo de fornecer uma experiência mais próxima possível da realidade em que o indivíduo espectador está inserido. Neste sentido, o autor postula que são reproduzidos, também, efeitos naturais psicológicos e mentais, pois o conceito se dá pelo conjunto exposto ao espectador, que consiste em: (1) uma interpretação, (2) um cenário e (3) uma história. Esses três fenômenos dão espaço a uma proximidade com a realidade cinematográfica, a qual ainda será discutida nesta pesquisa.

3.3 O CINEMA NACIONAL: A HISTÓRIA A PARTIR DA “RETOMADA”

O que é e como se desenvolveu o cinema nacional? Essa pergunta é pertinente para que se possa analisar o filme “Que Horas Ela Volta?”, pretensão desta pesquisa. Entende-se que, para que se possa debater e pesquisar sobre um filme brasileiro, é necessário compreender e identificar algumas questões referentes a área deste meio cultural do país. Nesse sentido, este subcapítulo tem o objetivo de abordar, brevemente, as origens do cinema no Brasil, situando a primeira produção cinematográfica em solo brasileiro. Porém, o intuito principal deste espaço na pesquisa é o de dar conta de historiografar o cinema nacional a partir da “Retomada”, para compreender, posteriormente, como se dão as produções do século XXI no país, revendo os rumos do cinema brasileiro atual e a relação dele com políticas culturais desenvolvidas no país no decorrer dos anos. O cinema chegou ao Brasil um pouco depois de sua criação, por meados do ano de 1896, e acredita-se que a primeira película desenvolvida no Brasil tenha surgido em 1897, cujo advogado José Roberto da Cunha Salles relatou ter desenvolvido “fotografias vivas” na Seção de Pedidos de Privilégios do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (BALLERINI, 2012).

Nos anos 1900, ainda segundo Ballerini (2012), o cinema nacional era visto e valorizado pela população brasileira, já que os filmes estrangeiros demoravam a chegar aqui. Além disso, 37 a grande marca de filmes, Hollywood, ainda não tinha expressiva influência no mercado cinematográfico. Sendo assim, o espaço para o cinema brasileiro era intenso, porém, nunca foi transformado em indústria, já que, para o país, apenas setores calçadistas e alimentícios, entre outros, eram considerados meios de venda. Após a chegada de Hollywood, os filmes nacionais passaram a ter baixa produtividade e praticamente se extinguir, em meados de 1990.

Além disso, nos primeiros anos do governo Fernando Collor de Mello, alguns acontecimentos geraram a falta de produtividade e interesse na área cinematográfica, como o fim da Embrafilme, da Fundação do Cinema Brasileiro, da Fundação Pró-Memória, e da Lei Sarney, que desenvolvia incentivos à cultura (BALLERINI, 2012). Ikeda (2015) destaca a importância destas instituições para a sustentação da política cinematográfica em todas as suas vertentes. Assim, sua extinção, consoante o autor, comprometeu de forma integral as produções do país. Ele também analisa a extinção do Ministério da Cultura, que foi transformado em Secretaria, trazendo forte impacto à área cultural brasileira, não apenas ao cinema. Para Ikeda (2015), nos anos 1980, por exemplo, o mercado cinematográfico brasileiro atingia mais de 30% das produções, e, em 1992, apenas três filmes foram desenvolvidos no país, sendo a porcentagem inferior a 1%.

A chamada “Retomada” do cinema nacional começa a se difundir a partir de 1991 e 1992, quando é criada a Lei do Audiovisual, que tinha o objetivo de incentivar projetos que eram apresentados no país. A criação desta Lei ocorreu a partir da posse de Paulo Rouanet como secretário da Cultura. Junto com um grupo de cineastas brasileiros, ele propôs a implementação do incentivo cultural ao então presidente, Fernando Collor de Mello (BALLERINI, 2012). Segundo Ikeda (2015), Rouanet criou o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e foi o primeiro responsável por integrar e aproximar a política com o setor cultural. Já em 1993, é notável que as produções nacionais começaram a ser realizadas em uma maior quantidade (BALLERINI, 2012).

Em 1995, a iniciativa privada cria o Certificado de Investimento Audiovisual, que tornou possível a dedução, do imposto de renda, os valores investidos, por empresas, em projetos cinematográficos. Ballerini (2012, p. 42) afirma que este cenário “criou condições para que as distribuidoras internacionais instaladas no Brasil investissem em projetos cinematográficos nacionais, pois elas podiam debitar esses investimentos do imposto pago sobre a remessa de rendimentos”. A partir de então, começam a ser produzidos ainda mais filmes nacionais, em quantidade jamais antes registrada na história cinematográfica do país (BALLERINI, 2012). No mesmo ano, é lançado o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, 38 de , produção considerada, por Ballerini (2012), um marco na “Retomada” do cinema, devido ao seu sucesso, mesmo sem uma distribuidora. Outra produção, O quatrilho, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, também marcou a recuperação do cinema nacional (IKEDA, 2015).

Com a chegada de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, em 1995, outras mudanças, segundo Ballerini (2012), ocorreram na área cultural e de cinema. Houve um aumento significativo nos orçamentos do Ministério da Cultura, que alcançaram quase 500 milhões de reais. Além disso, foram realizadas modificações na alíquota de dedução do imposto de renda e possibilidade de submissão de projetos em qualquer momento do ano, os quais eram avaliados em 60 dias, e não em 90, como anteriormente. Também houve um aumento do limite de captação de recursos, passando de R$ 1,5 milhões para R$ 3 milhões, dando espaço para produções com maior valor, como Tieta do Agreste (R$ 5 milhões) e Guerra de Canudos (R$ 7 milhões), de 1996 e 1997, respectivamente. Mesmo com incentivos mais intensos ao cinema, as empresas que seguiam valorizando as produções nacionais ainda eram as estatais, como a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Telebras e a Eletrobras (BALLERINI, 2012).

Outro grande marco, na história do cinema nacional, segundo Ballerini (2012), foi a criação da Globo Filmes, em 1998. A empresa, da Rede Globo de Televisões, apresentou o seu primeiro filme em 2000, denominada O Auto da Compadecida, que levou 2,1 milhões de pessoas ao cinema. Com isso, um novo ciclo se inicia, no qual se estabelece a relação entre o cinema brasileiro e a televisão no país, que antes era escassa. A produtora da Rede Globo criou uma concentração grande de público, levando milhares de brasileiros às salas de cinema. “Em 2003, por exemplo, os espectadores que assistiram aos títulos coproduzidos pela Globo Filmes representaram 92% do público das produções nacionais naquele ano, sendo que essa porcentagem se repetiu em 2004” (BALLERINI, 2012, p. 43).

Um dos motivos, ainda, para Ballerini (2012), do grande sucesso da Globo Filmes, eram os acordos realizados entre distribuidores, produtores e cineastas: a Globo cedia espaço de propaganda em seu horário nobre, em consequência, era gerado um interesse maior do público, levando a população para as salas de cinema. Rossini (2008) segue o mesmo pensamento de Ballerini (2012) com relação a Globo Filmes, já que a empresa surgiu com o objetivo de reaproximar o público e as produções brasileiras, com uma nova proposta de cinema. Os longas- metragens produzidos pela empresa privada eram destinados às massas, em sua maioria, não se preocupando apenas com o meio artístico, ao contrário do que era produzido até então no Brasil (ROSSINI, 2008). 39

Como já visto pelos autores e nos subcapítulos anteriores, o cinema é uma arte voltada para as massas. Por isso, ele tem o poder de representar, de maneira tão real, uma determinada realidade. Rossini (2008) diz que é necessário compreender para qual público o filme é desenvolvido, ou seja, é necessário identificar qual tipo específico de massa a produção deseja atingir. Ballerini (2012, p. 56) complementa a afirmação, postulando que “alguns produtores acreditam que mesmo no caso de filmes de baixo orçamento é fundamental conhecer, antes das filmagens, o público-alvo”. Este método é eficaz até mesmo para que se tenha melhor êxito nas filmagens, enquadramentos e montagens, como visto por Xavier (2005). Conhecer o grupo de indivíduos que se quer atingir e captá-lo com a produção cinematográfica a ser realizada, é um ponto chave para o sucesso do filme: “do contrário, intensifica-se o perigo representado pela maior das tragédias cinematográficas: fazer um filme para si próprio” (BALLERINI, 2012, p. 56).

O cinema é voltado para as massas, porém, essa massa, em suma, é específica e direcionada, diz Alberto Flaksman, produtor cinematográfico brasileiro, em entrevista a Ballerini (2012). Realizar um filme para si próprio não será um meio de expansão de cultura, onde poucas pessoas poderão usufruir desta arte.

Ainda em relação ao crescimento do número de espectadores brasileiros nas salas de cinema, podemos destacar que

[...] entre os anos de 1997 e 2002, a afluência dos espectadores brasileiros às salas de exibição cresceu de 52 milhões para aproximadamente 90 milhões, ou seja, 70%. E os filmes nacionais foram vistos por um público cada vez maior, que pulou de 2,5 milhões para 7 milhões de espectadores (BALLERINI, 2012, p. 44).

Durante o processo de “Retomada”, houve uma retração nos lançamentos e produções de filmes, ocasionada desvalorização do real, entre 1998 e 1999. No período, os cineastas brasileiros começam a reclamar da regulação da produção cinematográfica, baseada na Lei do Audiovisual, criada pelo governo de Fernando Collor de Mello, conforme destacado anteriormente. A Lei destacava que os diretores de marketing de grandes empresas tivessem o poder de decisão sobre as produções do país, selecionando o que deveria ou não ser produzido. Para Xavier (2005), este acontecimento gerou fragilidade ao cinema nacional, pois, assim, se perdia o conceito principal do cinema, deixando-o apenas mercadológico, e não com “fôlego criativo”, segundo o próprio autor. 40

A partir de 2001, com a criação do Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (Funcine), a possibilidade de criar uma carteira de investimento por meio da aplicação de recursos em filmes, com potencial de rendimento, foi desenvolvida no país. No mesmo ano, foi criado o Prêmio Adicional de Renda (PAR), que tinha o objetivo de recompensar, financeiramente, empresas produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes de produção independente que tivessem êxito no mercado. Estes recursos tinham a necessidade de serem utilizados para novas produções independentes (BALLERINI, 2012).

Outro grande marco do cinema nacional, além de Carlota Joaquina, foi o filme Cidade de Deus, de 2002 (BALLERII, 2012). Esta produção nacional fez com que as produções brasileiras fossem melhor valorizadas internacionalmente. O filme recebeu quatro indicações ao Oscar, além de ganhar, na Europa, o Bafta e o British Independent Film Award. Por este motivo, o interesse pelo cinema começa a crescer e empresas privadas, além de estatais, passam a patrocinar o cinema nacional (BALLERINI, 2012).

Ballerini (2012, p. 49) resume “A Retomada” cinematográfica admitindo que “ela começou em 1995, com Carlota Joaquina, e terminou em 2002, com Cidade de Deus”. Isso se deve ao fato de que, a partir do século XXI, novas peças começam a ser desenvolvidas, e o cinema brasileiro entra no período denominado de “Pós-Retomada”.

A chamada “Pós-Retomada”, destacada por Ballerini (2012), é representada por um momento em que os filmes nacionais autorais e experimentais estão em voga. O século XXI, portanto, pode ser compreendido como “o século dos produtores na indústria cinematográfica brasileira” (BALLERINI, 2012, p. 51). Hoje, o cinema do país possui diversas vertentes que precisam ser encaradas para a produção de um filme: é preciso lidar com a diversificação das produções, incluindo outros tipos de filmes, que, para Ballerini (2012), podem ser religiosos e sertanejos, além de que é preciso focar na publicidade, no audiovisual e na era digital. Além disso, Ballerini (2012) postula que cada vez mais o produtor brasileiro encontra-se com grandes e pequenos orçamentos, além das diferentes plataformas audiovisuais e a diversidade estética que permeiam o século XXI. Também existe hoje uma narrativa imposta por diretores e que é exigida pelo público e pela crítica.

A partir de 2003, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva, uma reavaliação do modelo estatal cultural foi realizada (IKEDA, 2015). Segundo Silva (2007), o governo tinha o objetivo de elevar o Ministério da Cultura à mesma altura da Educação, Saúde e indústrias estratégicas, propondo um novo modelo, em que o Estado passa a ser mais ativo na área cultural 41 do país. Reis (2008) postula que houve uma nova definição para o conceito de Cultura no Brasil, o qual levou em conta sua “dimensão antropológica”, incluindo modos de vida, costumes e direitos humanos em seu espaço.

Para Ikeda (2015, p. 100),

[...] os programas e ações desenvolvidos pelo Ministério da Cultura partiram de uma concepção ampliada de cultura, trabalhando o conceito em três dimensões: como produção simbólica (diversidade de expressão e valores), como direitos e cidadania (inclusão social pela cultura) e como economia (geração de renda e empregos, regulação e fortalecimento dos processos produtivos da cultura).

Outro aspecto positivo destacado por Ikeda (2015) foi a criação do Cultura Viva, que estimulava o protagonismo das regiões excluídas, ou seja, tinha o objetivo de representar e valorizar a cultura dos “Excluídos” (SOUZA, 2010), ao invés de apenas levar a cultura “padronizada brasileira” para estes espaços. Foi um programa que trouxe voz a uma outra linha cultural brasileira. Desta maneira, é possível afirmar que políticas culturais estavam sendo desenvolvidas (IKEDA, 2015). Sendo assim, é possível refletir, a partir do conceito de Souza (2010) sobre os “Excluídos”, uma vez que, pela primeira vez, este grupo tem um espaço para disseminar e expor a sua cultura. Essa exposição, por meio da arte, seja ela cinematográfica ou não, faz com que eles sejam vistos e apresentados ao Brasil da cultura até então “padronizada”.

O cinema nacional é recente, e ainda tem muito para desenvolver ao longo dos anos, mas um fato preocupa Ballerini (2012) sobre o futuro da indústria brasileira de cinema: muito se produz, mas pouco que realmente atinja o público-alvo, ou seja, as massas. Esse mesmo posicionamento também se encontra Rossini (2008). Para Ballerini (2012, p. 267), “das quase setenta produções brasileiras feitas, em média, por ano, provavelmente menos de 10% tenham a capacidade para atingir o grande público e aumentar o market share do cinema nacional, fomentando, assim, o hábito de ir ao cinema para assistir às produções feitas internamente”. O autor deixa claro que não se deve deixar de experimentar e se apropriar do conceito de “cinema de arte”, porém, é necessário, em termos de Brasil, que elas não sejam dominantes, quando se trata de financiamento público. É de extrema importância que sejam produzidas obras fílmicas voltadas às massas, para o brasileiro, fazendo com que o hábito de assistir aos filmes nacionais passe a ser um prazer e vire uma rotina no país.

O cinema brasileiro, para Ballerini (2012), só realmente terá tendência de evolução quando o governo passar a considerar a indústria cinematográfica como estratégia, o que 42 ocorreu há um século nos Estados Unidos, e em diversos outros países: saber da importância desta ferramenta como forma de representação de um país perante o mundo. O autor destaca que

[...] além de construir a imagem de uma nação, ele difunde sua língua, sua cultura, fomenta o turismo e a economia. E, quando há a consolidação do hábito de assistir a produções nacionais, o cinema ajuda a promover a autoestima da população, que se vê retratada nas telas. Instituir regras que pressionem produtoras e diretores a dar um retorno de bilheteria como contrapartida ao dinheiro captado por meio das políticas de incentivo é o primeiro passo para que o cinema se torne uma indústria estratégica do Brasil (BALLERINI, 2012, p. 268).

Rossini (2008, p. 127) parte do mesmo conceito quando se refere a uma metodologia cinematográfica voltada às massas, que vem sendo bem aceita até hoje. A Globo Filmes, para Rossini, é um exemplo disso: “[...] [são propostas] e produções com estéticas e narrativas diferentes daquelas que são reconhecidas como ‘brasileiras’ - ou seja, que levam as marcas do cinema autoral.

Este breve relato sobre a história do cinema nacional a partir da “Retomada” e da “Pós- Retomada” desenvolve debates e questões sobre como as produções e a valorização cinematográfica do país devem se fortalecer e quais os caminhos possíveis para seguir. A partir disso, entende-se a necessidade de se analisar o cinema brasileiro, como obras do nível de “Que Horas Ela Volta?”, que obteve premiações internacionais e a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Este subcapítulo é necessário para a compreensão de alguns aspectos que serão utilizados na análise deste objeto de pesquisa: para uma profunda análise, é necessário conhecer a história do mesmo e investigar quais os acontecimentos que fizeram com que produções como a que será analisada fosse desenvolvida.

Com isso, finaliza-se este capítulo, que tratou das questões e conceitos de Cultura, Representação e Cinema, teorias necessárias para que se possa compreender e relacionar aos próximos capítulos deste trabalho acadêmico. A partir disso, o próximo capítulo deve debater e retratar a Sociedade Brasileira, reavaliando as questões culturais destacadas no início deste subcapítulo. Ao fim, será possível realizar a análise da produção cinematográfica “Que Horas Ela Volta?”, que é o objeto principal deste trabalho, que trata de representar a sociedade brasileira por meio de Produtos Culturais.

43

4 CULTURA E SOCIEDADE BRASILEIRA

Este capítulo tem o objetivo de produzir uma recuperação histórica e teórica acerca das abordagens sobre Cultura e Sociedade Brasileira. A partir dos conceitos sobre Cultura e suas concepções, já destacados na primeira parte deste trabalho, principalmente por Laraia (2009), Cuché (1999) e Santos (1987), é possível, agora, realizar uma relação entre conceitos, delinear um pensamento sobre Brasil e a sociedade brasileira, possibilitando uma reflexão de como ela se organiza a partir das suas concepções culturais e de como agem as influências que atuam sobre ela. Além disso, também será discutida a possibilidade de inserção do economicismo, junto ao culturalismo, para uma melhor compreensão da sociedade brasileira contemporânea.

4.1 OS PRIMEIROS INTELECTUAIS

A primeira abordagem sobre a cultura e a sociedade brasileira estava vinculada a uma visão europeia. Este modo de interpretar a nação emergiu no fim do século XIX e no início do século XX (ORTIZ, 1985). Segundo Ortiz (1985), autores como Arthur Ramos, Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha encabeçaram esse momento do pensamento brasileiro. Nesse período, como afirma Ortiz, os intelectuais pensavam o Brasil “seja analisando suas manifestações literárias, seja considerando as tradições africanas ou os movimentos messiânicos” (ORTIZ, 1985, p. 14). A questão africana é central para compreender os problemas desse período, já que a intelligentsia brasileira tratava de localizar o atraso brasileiro em suas origens africanas/indígenas (ORTIZ, 1985; SOUZA, 2017). Os pensadores da virada do século XIX para o XX tinham como influências três escolas: “o positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer” (ORTIZ, 1985). Apesar de suas divergências conceituais, essas três escolas foram responsáveis por estruturar um pensamento brasileiro que almejava compreender as razões do atraso nacional. Como aponta Ortiz (1985), essa forma de compreensão da realidade das sociedades estruturava as culturas e as sociedades em uma perspectiva da evolução histórica. Assim, na época, discutia- se a posição do Brasil no quadro global de evolução, sob a ótica de que o país era, ainda, atrasado em relação ao que seria o ideal de sociedade. Ortiz (1985) indica que essa perspectiva permitiu que as elites do centro do capitalismo espalhassem a sua dominação pelo globo: “pode- se dizer que o evolucionismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental” (ORTIZ, 1985, p. 15). Nisso, fica claro que os intelectuais brasileiros não 44 estavam preocupados em compreender apenas a cultura brasileira e, sim, em refletir sobre como seria possível – ou não – assimilar esta cultura hegemônica ocidental. Com relação à cultura brasileira da época, é possível afirmar que o Brasil tinha suas concepções culturais influenciadas pela Europa, pois toda a cultura brasileira era considerada “atrasada” – ou inferior. Segundo Laraia (2009), no Relativismo, cada indivíduo considera o que é “positivo” ou “negativo”, “atrasado” ou “moderno” a partir de suas concepções culturais. Ou seja, para a Cultura europeia, o Brasil era “atrasado”, porém, com base em Laraia (2009), percebe-se que esta é apenas uma maneira de enxergar a cultura brasileira – que não necessariamente era atrasada. Como aponta Coutinho (2011, p. 37), “enquanto formação social específica e relativamente autônoma, o Brasil emerge na época do predomínio do capital mercantil, na época da criação de um mercado mundial”. O autor postula que a pré-história da nação brasileira não reside “na vida das tribos indígenas que habitavam o território brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se no contraditório processo de acumulação primitiva do capital, que tinha seu centro dinâmico na Europa Ocidental” (COUTINHO, 2011, p. 37). Não obstante, “torna-se necessário, por isso, explicar ‘o atraso’ brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto é, como nação” (ORTIZ, 1985, p. 15). Nessa afirmação feita pelo autor, é possível compreender que os pensadores da época não compreendiam o Brasil enquanto um povo/nação já constituído, e, sim, que esse povo/nação teria que ser forjado a partir dos estudos sobre o que já havia no Brasil e o fruto de seu atraso. Em suma, “o dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional” (ORTIZ, 1985, p. 15). Desses questionamentos entre teoria e realidade no Brasil, quais respostas foram dadas na época para essa problemática? Como se articulou a análise sobre o Brasil em relação aos países do centro? Ortiz (1985) alerta que o evolucionismo consegue, na época, explicar parte desse atraso. Porém, só essa forma de abordar o problema não permitiu a compreensão plena da realidade brasileira. Assim, “o pensamento brasileiro da época vai encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça [...] Os parâmetros raça e meio fundamentam o solo epistemológico dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX e início do século XX” (ORTIZ, 1985, p. 15). Essa perspectiva foi possível de se verificar, segundo Ortiz, em trabalhos como Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos estudos sobre folclore de Sílvio Romero e nas análises sobre direito penal elaborados por Nina Rodrigues. Nesse contexto, “meio e raça se constituíam em categorias do conhecimento que definiam o quadro interpretativo da realidade 45 brasileira. A compreensão da natureza, dos acidentes geográficos esclareceu assim os próprios fenômenos econômicos e políticos do país” (ORTIZ, 1985, p. 16). O meio, no caso a terra, estrutura a sociedade brasileira e naturaliza fenômenos como a escravidão, já que o modo de produção possível no Brasil, de exploração da terra, necessitava do trabalho escravo para produzir riquezas7. A questão do meio também serve para estruturar a análise sobre diferenças culturais e econômicas entre quem vivia no litoral, no interior ou no norte do país

A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade desenfreada do mulato (ORTIZ, 1985, p. 16).

Segundo Ortiz (1985), essa interpretação do evolucionismo junto ao meio e a raça é um pensamento dos intelectuais brasileiros, e não há ressonância com o que era desenvolvido, nesse campo, na Europa. A distinção faz com que os intelectuais brasileiros pensem que o modelo europeu talvez não sirva para o país, então “quando se afirma que o Brasil não pode ser mais uma ‘cópia’ da metrópole, está subentendido que a particularidade nacional se revela através do meio e da raça” (ORTIZ, 1985, p. 16-17). Essa questão se fundamenta a partir da noção de que a geografia brasileira é distinta da europeia e as raças que habitam em solo brasileiro também são diferentes. Nos debates sobre a questão, é possível verificar que os intelectuais da época passam a naturalizar o atraso brasileiro, porém, também apontam a necessidade de se pensar a constituição de um povo e de uma nação diferente dos parâmetros europeus estabelecidos. Dessa forma, “meio e raça traduzem, portanto, dois elementos imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: nacional e popular” (ORTIZ, 1985, p. 17). Sobre a questão da raça como justificativa para o atraso brasileiro, Ortiz (1985) indica que, para os intelectuais da época, a miscigenação ainda não era considerada um fator positivo da construção da identidade nacional brasileira, posicionamento que se concretiza somente na fase posterior do pensamento brasileiro. Na fase em que meio e raça eram os principais fatores explicativos do atraso, “torna-se corrente a afirmação de que o Brasil se constituiu através da fusão de três raças fundamentais: o branco, o negro e o índio” (ORTIZ, 1985, p. 20). Diferente do que ocorre na fase posterior, nesta época, a inteligentsia brasileira concede “à raça branca uma posição de superioridade na construção da civilização brasileira (ORTIZ, 1985, p. 20-21). Da mesma forma, as duas outras raças são apreciadas como um problema para o Brasil superar

7 O relato sócio-histórico da escravidão será importante na discussão que veremos mais à frente, com os pensamentos de Jessé Souza (2015; 2016; 2017). 46 seu atraso. Como afirma Ortiz (1985, p. 20), “dentro desta perspectiva, o negro e o índio se apresentam como entraves ao processo civilizatório”. O posicionamento da intelectualidade brasileira, a partir do século XX é o que sustenta políticas de Estado voltadas para o embranquecimento da população. O pensamento dominante brasileiro da época faz com que a política de trazer imigrantes brasileiros vire o centro do projeto de desenvolvimento do país, já que ele não seria possível em uma sociedade dominada por índios e negros (ORTIZ, 1985). Nisso, a mestiçagem, segundo Ortiz (1985), surge como possibilidade de atenuar os problemas derivados dos negros e índios e passa ser um objetivo daqueles que almejam construir uma identidade para a nação brasileira. Porém, essa mestiçagem é contingente para os pensadores do final do século XIX no Brasil, como afirma Ortiz (1985, p. 21),

A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral e intelectual, a inconsistência seriam dessa forma qualidades naturais dos elementos brasileiros [...] Dentro desta perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira.

Consoante Skidmore (1976), esse pensamento domina a intelectualidade brasileira durante dois fatos históricos: a abolição da escravatura e o início da Primeira Guerra Mundial. Esses dois fatos moldam o pensamento brasileiro descrito até aqui, devido ao fato de que a escravatura foi abolida sem uma assimilação direta do negro na sociedade; assim, por mais que o trabalho escravo fosse proibido, o negro não foi inserido no mercado de trabalho e na sociedade (SKIDMORE, 1976; ORTIZ, 1985; SOUZA, 2017). Nessa ordem, a questão da raça e do meio (vinculado ao modo de produção dominante no Brasil) permeia o imaginário daqueles que refletem sobre o Brasil. O pensamento persiste até a Primeira Guerra, que se constitui no marco final da abordagem, pois há “a emergência de um espírito nacionalista que procura se desvencilhar das teorias raciais e ambientais características da República Velha” (ORTIZ, 1985, p. 22). Se o que foi descrito até aqui era o pensamento dominante da época, haveria interpretação dissonante na intelectualidade no período? Como afirma Ortiz (1985), o pensamento dissidente da época era representado por Manoel Bomfim. O autor afirma que Bomfim tinha “as mesmas preocupações dos autores estudados, a questão nacional, mas o retrato do Brasil obtido contrasta vivamente com o anterior” (ORTIZ, 1985, p. 22). Diferente dos autores que percebiam o meio e a raça como estruturantes do atraso brasileiro, o empreendimento teórico de Bomfim dirigia-se no sentido contrário, como também não se limitava à situação brasileira: o autor pensava a América Latina como um todo. 47

A oposição de Bomfim (2008) aos seus contemporâneos dava-se pelo fato de que o autor considerava o atraso da América Latina como produto da dominação colonial por parte de Espanha e Portugal. O autor utiliza-se de conceitos da biologia, de forma metafórica, para explicar o atraso. Ele segue seu pensamento pelo viés do “Parasitismo Cultural” para explicar a doença do subdesenvolvimento da América Latina. Como sugere Ortiz (1985, p. 23), “a cura [do atraso da América Latina] se daria através do conhecimento da história da doença”. Nessa perspectiva, da mesma forma que, na biologia, os parasitas se atrofiam ao consumir a energia de outro corpo, países “dominadores” também se tornariam vítimas ao sugarem nações subdesenvolvidos. Devido a este processo, de acordo com o autor, países como Espanha e Portugal também tem seu desenvolvimento enquanto cultura e sociedade afetados, por parasitarem a América Latina. Este pensamento segue a mesma linha de pensamento sobre Cultura e suas concepções culturais de autores como Laraia (2009) e Cuché (1999), que postulam a valorização de cada cultura para a diversidade cultural existente entre povos e nações mundiais. A visão de Bomfim (2008) sobre o atraso brasileiro, portanto, “significa considerá-lo na sua inter-relação com a metrópole portuguesa. No entanto, na medida em que o colonizado é educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imitá-lo. As mazelas do parasita se transmite, assim, hereditariamente para o parasitado” (ORTIZ, 1985, p. 25). As mais prejudiciais características do parasita que o Brasil parasitado teria mantido, para Bomfim (2008), aponta para o conservantismo e a ausência de um espírito de observação. Como afirma Ortiz (1985, p. 26), “o conservantismo decorre da posição do colonizador, que procura, custe o que custar, manter a tradição que lhe assegura o poder. Explica-se dessa forma o horror com que os brasileiros encaram todo projeto de mudança social”. Assim, essa questão seria a origem de, no Brasil, existirem dificuldades, por parte da sociedade, de assimilar o progresso social (ORTIZ, 1985). Esse ponto do pensamento de Bomfim (2008) permite a seguinte reflexão: As ideias contrárias ao progresso social seguem vigentes na sociedade brasileira? Uma possível reflexão para este assunto pode ser buscada no pensamento contemporâneo de Jessé Souza (2015; 2016; 2017), autor que será discutido posteriormente, bem como na própria análise que será desenvolvida neste trabalho. Por outro lado,

[...] a falta de espírito de observação corresponderia a uma incapacidade de se analisar e compreender a própria realidade brasileira. O abuso dos ‘chavões e aforismos consagrados’ (o bacharel), a imitação do estrangeiro seriam fatores que contribuiriam para o florescimento dessa miopia nacional (ORTIZ, 1985, p. 30).

48

Assim, diferente de seus contemporâneos, Bomfim (2008) via a miscigenação como possibilidade de renovar a sociedade. Isso decorre do fato de que índios e negros eram importantes para atenuar as características parasitárias dos colonizadores (BOMFIM, 2008; ORTIZ, 1985). Como alerta Ortiz (1985), essa posição de Bomfim (2008) sobre a miscigenação não deve ser louvada sem crítica, já que o modelo de progresso, no pensamento do autor, ainda estava vinculado em construir uma sociedade europeia. Dessa forma, Bomfim (2008) distancia- se dos seus contemporâneos por rechaçar o embranquecimento da nação como modelo que permitiria superar o atraso, porém, ainda há limites no seu pensamento por ter o modelo do centro ocidental como referência para construção de uma identidade nacional e uma nação brasileira (BOMFIM, 2008; ORTIZ, 1985). Dessa forma, tanto a corrente de pensamento dominante (meio e raça), quanto a dissidente (Parasitismo Social) apresentam-se como “cópias” do pensamento estrangeiro. Ortiz (1985) problematiza essa questão ao refletir: seriam apenas “cópias” do pensamento vigente no centro do capitalismo ou haveria algum desalinhamento? Conforme defende Ortiz (1985), o pensamento brasileiro não era mera “cópia” do que é desenvolvido no centro, mais do que isso, é uma “cópia” com defasagem, já que as ideias chegavam no país com defasagem de tempo. Nesse sentido, “no momento em que as teorias raciológicas entram em declínio na Europa, elas se apresentam como hegemônicas no Brasil. Torna-se, assim, difícil sustentar a tese da ‘imitação’, da ‘cópia’ da última moda” (ORTIZ, 1985). Em Schwarz (1977), essa questão aparece como “ideias fora do lugar”. Para o autor, os intelectuais brasileiros pensavam o país a partir de uma matriz liberal, porém, a realidade brasileira ainda sustentava relações de trabalho escravistas. Assim, realidade e teoria não se encontravam no Brasil, pois os intelectuais conseguiram, em certos momentos, estar na vanguarda do pensamento contemporâneo, mas não havia reflexibilidade na realidade social brasileira. Como aponta Coutinho (2011, p. 43), nesse período

[...] o liberalismo expressa interesses efetivos das camadas dominantes: livre- cambismo no comércio internacional, cálculo racional na comercialização dos produtos de exportação, garantia de igualdade jurídico-formal entre os membros das oligarquias rural e comercial etc E, em outro nível, expressa também os interesses dos homens livres [...] Mas, diante do fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida como fato natural, [...] o liberalismo brasileiro de então revela sua face ‘inadequada’ e ‘fora do lugar’.

Para Ortiz (1985) e Coutinho (2011), essa dinâmica da Abolição da Escravatura não segue mais em operação. Segundo Ortiz (1985, p. 30), “se a Abolição significa o reconhecimento da falência de um determinado tipo de economia, ela não coincide ainda com 49 a implementação real do trabalho livre, ou sequer apaga a tradição escravocrata da sociedade brasileira”. Assim, realidade e teoria, no Brasil, seguem desalinhadas, e as políticas de incentivo à imigração se intensificam. Já Coutinho (2011) vai além do exposto, ao indicar que essa questão perdura na contemporaneidade, pois, para o autor, “enquanto as classes dominantes encontram com relativa facilidade os seus representantes ideológicos [...], as camadas populares são frequentemente ‘decapitadas’ e lutam com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua autoconsciência ideológica” (COUTINHO, 2011, p. 48). O processo, segundo o Coutinho, é recorrente no Brasil, já que “as transformações ocorridas em nossa história não resultam de autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população” (COUTINHO, 2011, p. 45). Dessa forma, além dos intelectuais pensarem o Brasil a partir de teorias do exterior, elas também eram ideias que estavam relacionadas com a elite econômica local (COUTINHO, 2011; ORTIZ, 1985; SOUZA, 2015). A discussão sobre esse primeiro período de embate teórico sobre a cultura e a sociedade brasileira permite compreender como as ideias e os modelos de desenvolvimento do exterior serviam para os intelectuais pensarem a construção de uma identidade nacional para a nação brasileira. Como apontado pelos autores, esse tipo de abordagem tem seus limites por considerar o que era produzido, no centro, como possibilidade para o país, sem considerar as nuances próprias do Brasil, principalmente, a singularidade do trabalho escravo, posteriormente transformado em trabalho precário para os negros libertos.

4.2 CULTURALISMO

A fase seguinte da intelectualidade brasileira desloca a problemática da raça para a da cultura. Nisso, a mestiçagem, que antes era o problema para o avanço torna-se o centro das discussões, porém, agora, como parte da construção positiva da identidade nacional (SOUZA, 2015; ORTIZ, 1985). Essa fase, como conceitua Souza (2015), marca a ascensão do culturalismo na sociologia brasileira. A virada de concepção só é possível a partir da Abolição da Escravatura, pois, como afirma Ortiz (1985, p. 38), “a escravidão colocava limites epistemológicos para o desenvolvimento pleno da atividade intelectual. Somente com o movimento abolicionista e as transformações profundas que passa a sociedade é que o negro é integrado a preocupações nacionais. A nova intelectualidade das primeiras décadas do século XX está intimamente ligada ao processo de desenvolvimento vigente no período, como postula Ortiz (1985, p. 39): “O 50 processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano”. Ainda, a Revolução de 30, que muda a relação entre Estado e Sociedade, marca o declínio das ideias raciológicas como a do meio e da raça enquanto culpados do atraso brasileiro. Assim, “as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social” (ORTIZ, 1985, p. 40). Essa nova organização do espaço urbano, da economia com a industrialização e do papel do Estado como organizador desse processo, traz consigo a necessidade de um pensamento que justifique o momento reformador. Nesse período, os trabalhos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda se fazem importantes para essa discussão. Freyre (2001) traz em sua obra Casa Grande e Senzala a possibilidade de o Brasil refletir sobre as suas origens e pensar esse novo sujeito nacional que forma a mão de obra urbana local. Como afirma Ortiz (1985), Freyre apresenta continuidade com o que foi realizado na fase anterior do pensamento brasileiro. Assim, a questão da raça passa a ser deslocada para a cultura, e questões como o brasileiro ser indolente e menos afeito ao trabalho passam a ser racionalizados pelo discurso sociológico. Porém, agora, a mestiçagem passa a operar em sentido positivo, na construção de uma nação em que as suas três raças se respeitem. Essa questão torna- se senso comum ao longo do tempo, como premissa para dizer que no Brasil não há racismo (SOUZA, 2015; 2017; ORTIZ, 1985). Dessa forma, o trabalho de Freyre serve para organizar um pensamento sobre a identidade nacional, até então difusa no país. Segundo Ortiz (1985), a capacidade de Freyre levou-o a ser exaltado por intelectuais dos mais distintos espectros políticos, já que Casa Grande e Senzala “possibilita a afirmação inequívoca de um povo que se debatia ainda com as ambiguidades de sua própria definição, [...] oferece ao brasileiro uma carteira de identidade” (ORTIZ, 1985, p. 42). Ou, como afirma Souza (2015, p. 30), “foi Freyre, portanto, quem construiu o ‘vínculo afetivo’ do brasileiro com uma ideia de Brasil, em alguma medida, pelo menos, ‘positiva’, com a qual a nação e seus indivíduos podiam se identificar e se autolegitimar”. Porém, a criação de uma identidade nacional unificadora a partir da cultura tem seus limites e mantém relações de poder assimétricas na sociedade, especialmente para o povo negro. Como afirma Ortiz (1985, p. 43), “tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é negro no Brasil [...]. A construção de uma identidade nacional mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras de cor”. Em Jessé Souza (2015; 2016; 2017), a crítica é ainda mais profunda. A partir de sua oposição a ideias estabelecidas por esse “culturalismo”, é possível discutir conceitos chave para 51 o desenvolvimento deste trabalho. Para Souza (2015; 2016; 2017), a continuidade entre os pensadores que discutiam a raça como a raiz do atraso brasileiro e os que pregam a cultura como fator singular do Brasil é mais enfatizada. Assim, defende que haveria um “racismo culturalista” na produção sociológica nos trabalhos de Freyre (2001) e Sérgio Buarque de Holanda (2015). Para entender a crítica de Souza, é preciso compreender o que é definido como o culturalismo científico. Souza (2015, p. 24) indica que “o racismo velado do ‘culturalismo científico’ opõe e separa configurações qualitativa e substancialmente diferentes as sociedades consideradas ‘avançadas’ e as ditas ‘atrasadas’ [...] essa oposição é construída simultaneamente na dimensão cognitiva e moral”. A partir dessa perspectiva, “as sociedades latino-americanas são percebidas por todas as versões hegemônicas desse culturalismo como ‘afetivas e passionais’ e, consequentemente, corruptas, dado que supostamente ‘personalista’” (SOUZA, 2015, p. 24). Como os intelectuais da fase anterior refletiram a partir de uma epistemologia europeia, no início de século XX, a inspiração passa a ser americana. Souza (2015) afirma que Talcott Parsons cria, a partir de Weber, uma imagem idealizada da sociedade americana. Os autores latino-americanos, por sua vez, teriam utilizado esse modelo para compreender o atraso da região. Nisso, “o conceito central dessa versão ainda dominante foi o de ‘patrimonialismo’ [...] À construção do predomínio do ‘primitivo’, ‘pessoal’ e ‘corrupto’, como marcas da sociedade patrimonialista” (SOUZA, 2015, p. 25). Por sua vez, as sociedades do centro do capitalismo seriam desenvolvidas por terem como qualidade a racionalidade, impessoalidade e confiança. Dessa forma, pode-se compreender como a questão de raça é deslocada para a cultura. Jessé Souza (2015, p. 25) destaca que “o que outrora era legitimado como diferença racial e biológica passa a ser obtido pela noção de ‘estoque cultural’”. Essa abordagem promoveria, segundo o sociólogo, uma “naturalização” do atraso de sociedades como a brasileira, devido as suas dinâmicas culturais. Não obstante, questões que estão presentes nas mais distintas culturas no capitalismo global, como a corrupção, são analisadas a partir de uma singularidade brasileira pelos autores culturalistas. Nisso, o pensamento freyriano é responsável em produzir a “concepção dominante de como o brasileiro se percebe no senso comum” (SOUZA, 2015, p. 30), o qual, segundo Souza, é legitimado pelas próprias ciências sociais brasileiras que se vinculam ao culturalismo: “Sérgio Buarque de Holanda é o pai-fundador das ciências sociais brasileiras do século XX e, consequentemente – e muito mais importante -, o autor da forma dominante como a ‘sociedade brasileira’ contemporânea se compreende até hoje com a chancela e a autoridade científica” (2015, p. 30). 52

Assim, Buarque de Holanda, segundo Jessé Souza (2015), produz a forma com que os brasileiros compreendem a relação entre Estado, sociedade e mercado. Nesse contexto, “o Estado é visto, a priori, como incompetente e inconfiável e o mercado como local da racionalidade e da virtude” (SOUZA, 2015, p. 32). Não obstante, “Buarque toma de Gilberto Freyre a ideia de que o Brasil produziu uma ‘civilização singular’” (SOUZA, 2015, p. 32). Para Freyre (2001), a mestiçagem e a sua subjacente cultura permitiria a paz social. Em Buarque de Holanda, a imagem que emerge é a do homem cordial (BUARQUE DE HOLANDA, 2014; SOUZA, 2015; CHAUÍ, 2014). Em Buarque de Holanda (2014), a cultura do homem cordial aparece como um problema. Para Souza, “essa ‘civilização’ e seu ‘tipo humano’, o ‘homem cordial’, é, na verdade, o contrário de nossa maior virtude, nosso maior problema social e político” (SOUZA, 2015, p. 32). Em suma, como defende Souza (2015), a cordialidade inerente da mestiçagem em Freyre aparece como qualidade positiva dos brasileiros, já que contribuem para a construção de relações afetuosas entre os diferentes; em Buarque de Holanda, a passionalidade do brasileiro seria a raiz dos problemas nacionais. Como afirma Jessé Souza (2015), o homem cordial, para Buarque de Holanda, “é emotivo e particularista e tende a dividir o mundo entre ‘amigos’, que merecem todos os privilégios, e ‘inimigos’, que merecem a letra dura da lei” (SOUZA, 2015, p. 32). Souza (2015) sustenta que as teorias sobre a mestiçagem no Brasil apenas ganham força com Freyre, já “que [ele] a sistematizou de modo convincente a ponto de ganhar corações e mentes de norte a sul do Brasil” (SOUZA, 2015, p. 3-40). Assim, essa teoria ganha força na sustentação de um mito nacional brasileiro. Souza indica “que o objetivo de um ‘mito nacional’ é produzir solidariedade social ao criar um elo comum entre os nacionais, ainda que seja produto da fantasia” (SOUZA, 2015, p. 40). Mas, para um mito nacional se sustentar, é preciso que os cidadãos acreditem nesse mito, assim, “o ‘mito’, portanto, não possui compromisso com a ‘procura da verdade’, o que diferencia da ciência” (SOUZA, 2015, p. 40). Nesse sentido, Jessé Souza (2015) sustenta que a teoria sociológica de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda seria uma reprodução do senso comum, porém, “a ciência só nasce e se torna possível se construída ‘contra’ as ilusões e cegueiras da sociologia espontânea do senso comum” (SOUZA, 2015, p. 40). Assim, nos culturalistas, haveria um limite enquanto teoria capaz de explicar a cultura e a sociedade brasileira justamente por se reproduzir e esquematizar o que já é produzido pelo senso comum. Para os culturalistas, o problema do atraso sistemático brasileiro residiria no fato de ter “importado” instituições portuguesas. Buarque de Holanda (2014, p. 35) defende que “a tentativa de implementação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições 53 naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências”. Nisso, mantém a questão do meio como parte do atraso brasileiro, porém, também compreende a cultura portuguesa como não ideal para construir uma cultura europeia – de desenvolvimento – para o Brasil. Assim, “o certo é que todo fruto do nosso trabalhou ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e outra paisagem” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 35). A cultura na qual a sociedade brasileira emerge está relacionada a suas raízes ibéricas. Para Buarque de Holanda (2014), países como Portugal e Espanha, por estarem em zonas de entrada na Europa, têm uma cultura não tão europeia por causa do tráfego de diferentes culturas em seus territórios. Devido a este acontecimento, “surgiu, assim, um tipo de sociedade que se desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento que já não trouxesse em germe” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 36). Para o autor, a cultura ibérica é marcada pelo personalismo, diferente de outras sociedades europeias. Decorre, dessa característica, que as relações sociais nos países da cultura ibérica sejam estruturadas por laços familísticos ou de amizade (BUARQUE DE HOLANDA, 2014; SOUZA, 2015). Como a estrutura social, segundo Buarque de Holanda, é influenciada por essas relações sociais? O autor defende que os comportamentos geram uma sociedade que respeita pouco a hierarquia social, processo pertinente à singularidade ibérica – e, consequentemente, brasileira. Nesse sentido, “à frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 37). Segundo o autor, as decisões dos Estados que fazem parte dessa cultura, na maioria das vezes, foram embasadas em necessidades do momento, sem uma racionalidade e visão de longo prazo que permitisse colocar os governos em rota do desenvolvimento, bem como esteve engendrada em uma relação patrimonialista do Estado (BUARQUE DE HOLANDA, 2014). Por patrimonialismo, entende- se uma relação do sujeito com o Estado em que os governantes trabalham em prol de sua causa própria ou de seus amigos, e não do bem geral da nação (SOUZA, 2015). Dessa forma, os problemas brasileiros seriam fruto dessa forma de compreender o Estado que os ibéricos construíram. Bomfim (2008) também encara essa questão, quando postula que a colônia é vista como um parasita que impede o desenvolvimento da América Latina. Já em Buarque de Holanda (2014, p. 38), se repete a culpa do atraso estrutural brasileiro. Ainda, este afirma que “a falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um 54 fenômeno moderno”. Para que o processo de modernização seja possível no Brasil, seria preciso romper com a forma de sociedade produzida pela herança ibérica. Ao retornar à questão da falta hierarquia social na cultura ibérica, Buarque de Holanda (2014, p. 40) aponta que “toda hierarquia se funda necessariamente em privilégios”. Segundo o autor, a cultura ibérica, muito antes do surgimento de movimentos revolucionários, já desprezava a hierarquia em suas sociedades. Nisso, “portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 40). Apesar do fato de isso ser o “germe” de uma estrutura social difusa e desorganizada, o sociólogo afirma, a respeito do desprezo pelos privilégios hereditários, que “nesse ponto, ao menos, elas podem considerar-se legítimas pioneiras da mentalidade moderna” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 40). Mas como isso transforma-se em uma qualidade negativa dos povos ibéricos? Segundo o autor, a hierarquia social é substituída pela intimidade e amizade: “A comida povo [...] não se distinguia muito da dos cavalheiros nobres, por isso que uns e outros estavam em contínuas relações de intimidade; não só os nobres comiam com os populares, mas ainda lhes entregavam a criação dos filhos” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 41). Nesse aspecto, a cultura ibérica difere-se de outras, como a dos protestantes. Os ibéricos teriam dificuldades de realizar organizações espontâneas, por sua vez, “nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 43). Dessa forma, na cultura ibérica, só há organização de cima para baixo, a partir do Estado. Consequentemente, “no exame da psicologia desses povos [ibéricos] é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 44). A falta da cultura do trabalho também contribui, para o autor, na formação de uma cultura que não resulta em organização social espontânea. Nesses termos, como assinalou Ortiz (1985), as obras de autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda estavam enquadradas em um contexto de industrialização no Brasil. O novo Brasil, mais urbano e industrializado, demandava um novo sujeito para possibilitar o desenvolvimento. Assim, como discutido em Buarque de Holanda (2014), nota- se essa tentativa de compreender por que, no Brasil, não haveria uma moral do trabalho; a culpa desse fenômeno é identificada na cultura ibérica que os portugueses reproduziram no Brasil. Como assinala Buarque de Holanda (2014, p. 46), “a simples obediência como princípio da disciplina parece uma fórmula caduca e impraticável e daí, sobretudo, a instabilidade constante da nossa vida social”. Também, isso é resultado da própria forma que a América Latina foi 55 colonizada. Buarque de Holanda (2014, p. 49) afirma que a “ exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica: fez-se antes com desleixo e abandono”. Esse “desleixo” dos portugueses na colonização do Brasil seria a gênese de uma cultura que assimila com dificuldade a cultura do trabalho. Para explicar a questão, é preciso compreender as categorias que Buarque de Holanda coloca em comparativo para explicar o comportamento dos cidadãos brasileiros. O sociólogo sustenta que há duas formas de vida coletiva: os tipos aventureiro e trabalhador. O aventureiro seria a parcela da população que busca soluções prontas, “seu ideal será colher fruto sem plantar a árvore” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 50). Portugal teria se expandido dessa forma, por isso, nunca houve um projeto claro e racional de construção de uma sociedade moderna no Brasil. Em oposição está o comportamento do trabalhador, esse, segundo o autor, “é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 50). As duas categorias são postas em oposição por Buarque de Holanda a ponto de o trabalhador ter aversão às características dos aventureiros, como o contrário também é verdadeiro. Assim, o trabalhador teria como ética “as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 51). Por sua vez, aventureiro seria aquele que privilegia “audácia, imprevidência, irresponsabilidade, vagabundagem – tudo, enfim quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo” (BUARQUE DE HOLANDA, 2014, p. 51). Jessé Souza (2015) critica as posições de Buarque de Holanda (2014), já que a singularidade brasileira seria outra, pois, no Brasil, a escravidão moldou a sociedade brasileira, diferente de Portugal. A partir dessa questão da escravidão como a singularidade nacional, Jessé Souza (2015) aponta que o “mito nacional” de nossa mestiçagem como estruturante do respeito entre os indivíduos sublima desigualdades sociais no país. Como apontado anteriormente, o “mito nacional” serve, então, para gerar coesão nacional e depende da aceitação, por parte da maioria dos cidadãos, para funcionar como uma “fantasia coletiva”. Dessa forma, a sustentação das desigualdades no país a partir dele é compartilhada tanto pelos favorecidos, quanto pelos desfavorecidos nessa dinâmica social. Como aponta Jessé Souza (2015, p. 47), “toda violência simbólica e toda ‘ideologia’ que legitimam a desigualdade fática [...] necessitam que o oprimido pela violência a aceite como legítima”. Ainda, “[...] as classes populares não foram abandonadas simplesmente. Elas foram humilhadas, enganadas, tiveram sua formação familiar consistentemente prejudicada e foram 56 vítimas de todo tipo de preconceito, seja na escravidão, seja hoje em dia” (SOUZA, 2017, p. 89). Assim, a sociedade brasileira não teria como principal diferença em relação aos centros a sua passionalidade: “a principal diferença é que a Europa tornou as precondições sociais de todas as classes muito mais homogêneas. Ainda que exista desigualdade social, ela não é abissal como aqui” (SOUZA, 2017, p. 89). Nesse sentido, Souza (2015) afirma que o culturalismo conservador brasileiro, fundado por Freyre e Buarque de Holanda, segue atuando como forma de explicar o Brasil, porém, o autor afirma que a sociedade brasileira se transformou significativamente desde que os autores produziram suas teorias explicativas da sociedade brasileira. Dessa forma, essas teorias atuam “como legitimação científica ad hoc de teses políticas extremamente conservadoras, que objetivam veicular e naturalizar uma visão distorcida da sociedade brasileira” (SOUZA, 2015, p. 90). Qual é o resultado de uma ciência social que legitima desigualdades num país tão desigual como o Brasil? Jessé Souza (2015, p. 90) responde essa questão ao afirmar que,

se fôssemos completamente sinceros, teríamos que dizer que essa interpretação nada mais é, hoje em dia, que pura “violência simbólica”, sem nenhum aporte interpretativo efetivo e sem qualquer compromisso, seja com a verdade, seja com a dor e o sofrimento que ainda marcam, de modo insofismável, a maior parte da população brasileira.

Por violência simbólica, Jessé Souza (2015) compreende processos que “ocultam” conflitos e desigualdades sociais. Sendo assim, o culturalismo conservador brasileiro trabalharia na manutenção das desigualdades. Assim, ao sustentar a tese de um “patrimonialismo”, o Estado é visto como um problema, e o mercado, uma virtude. Dessa forma, a corrupção só estaria do lado do ente público, não do privado que corrompe. A questão do mercado, como enfatiza o autor, é responsável pela manutenção de desigualdades econômicas no país, isso, para o autor, seria mais uma “singularidade brasileira”, já que, no Brasil, 70% seria referente aos ganhos de capital, enquanto apenas 30% ficaria por conta dos salários, em contrapartida, “nas grandes democracias capitalistas europeias, a relação entre ganhos de capital e massa salarial é inversa à brasileira” (SOUZA, 2015, p. 91). O culturalismo, como visto em Ortiz (1985) e Souza (2015), apresenta limites para explicar a sociedade brasileira. Como os dois autores afirmam, eles estruturaram teoricamente o que já é reproduzido pelo senso comum no Brasil. Como aponta Jessé Souza (2015), o culturalismo liberal e conservador no Brasil idealiza sociedades centrais, enquanto aponta “negatividades” das sociedades periféricas. 57

Antes de avançar na estruturação de um pensamento contemporâneo que permite abordar as dinâmicas sociais brasileiras, é preciso compreender outra escola que estruturou análises sobre o país. O economicismo emerge como contraponto ao culturalismo. Porém, segundo Souza (2015), essa escola também possui seus limites, e, como afirma o autor, a abordagem puramente econômica visa suplantar a inexatidão do culturalismo a partir de uma abordagem exata da sociedade. Para Souza (2015, p. 106), “os números e as qualificações dão a ilusão das certezas das ciências naturais. O que é quantificável passa a ser o que é percebido como ‘científico’, sem sequer nos perguntarmos acerca dos pressupostos dessa ‘cientificidade’”. Ao se estruturar como um contraponto ao culturalismo, o economicismo afasta-se de forma completa da ideia de que a cultura influencia as dinâmicas sociais. Dessa forma, apenas hábitos econômicos dos cidadãos estruturam o pensamento economicista. A discussão sobre esse tema, nesta pesquisa, se apropria da compreensão de ambas as correntes como constitutivo do pensamento de Souza (2015; 2017; 2018) sobre a sociedade brasileira. Dessa forma, uma abordagem que compreende a sociedade brasileira a partir de suas verdadeiras singularidades só é possível a partir de aproximações e distanciamentos das abordagens culturalistas e economicistas.

4.3 SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

A partir das discussões de Ortiz (1985) e Souza (2015; 2017; 2018), é possível discutir o legado ibérico que ainda estrutura a sociedade brasileira. Segundo Souza (2018), duas questões são importantes para debater a tese: a escravidão e o processo de modernização. A escravidão, para Souza (2015; 2017; 2018), apresenta-se como a grande diferença entre o Estado português e o Estado brasileiro. Dessa forma, as duas sociedades não são semelhantes: Portugal não teve escravidão em seu solo. Enquanto isso, a escravidão teve o papel de estruturar as relações sociais no Brasil, mesmo após a Abolição da Escravatura, pois o negro não foi plenamente inserido na sociedade (ORTIZ, 1985; SOUZA, 2015; 2017; 2018). Por outro lado, a tese de Buarque de Holanda (2014), conforme destacado, estava correlacionada com uma política de Estado que visava a modernização/industrialização do país. Porém, como aponta Souza (2018), o Brasil passou por um processo de modernização a partir dos anos 1930, consequentemente, a sociedade brasileira foi reestruturada e se diferenciou muito do que foi descrito por Buarque de Holanda (2014). Dessa forma, para pensar o Brasil, a 58 partir dos conceitos de Souza, é preciso tanto compreender a singularidade da escravidão, como também os processos de transformação após a modernização do país. Souza (2015) reconstrói o conceito da “hierarquia valorativa”, relacionado à realidade brasileira, importante para a compreensão de ações de determinados grupos e indivíduos na sociedade brasileira, para reflexão de como são construídas as suas concepções, possibilitando a erudição e as consequências de suas ações. Por que determinado grupo age de determinada maneira, e não de outra? A resposta a essa questão é dada por Souza (2015, p. 168-169): “o mundo não é constituído por ‘indivíduos livres’, já que o peso de nossa socialização nos inclina a ‘escolhas pré-escolhidas’, que nossa ‘racionalidade’ é, em grande medida, um mito e que não existem ‘valores subjetivos’”. Devido a isso, o autor postula que não é o indivíduo que dita as suas ações, mas que a própria sociedade em que ele está inserido cria um plano moral que o institui enquanto cidadão. Para uma melhor compreensão da sociedade brasileira, é necessário demarcar alguns conceitos principais apresentados por Souza (2015; 2017; 2018), que determinam o Brasil, enquanto sociedade e indivíduos. Sendo assim, torna-se importante dividir e aprofundar os principais temas que, para o sociólogo (SOUZA, 2015; 2017; 2018), são conceitos que têm o objetivo de compreender a sociedade brasileira e como ela se desenvolve em sua contemporaneidade. São elas: dignidade, abandono social, subcidadania, ralé brasileira e a divisão de classes no Brasil, batalhadores e classe média e a elite econômica.

4.3.1. Dignidade

A violência simbólica8, no Brasil, traz à tona o conceito de “Dignidade” (TAYLOR, s/d) e a busca pela autenticidade (SOUZA, 2015). Segundo Souza, a dignidade é a “possibilidade de igualdade tornada possível ainda que nunca efetivamente realizada [...], por exemplo, nos direitos individuais potencialmente universalizáveis” (2015, p.182). Não obstante, Taylor (s/d) menciona que a dignidade atual é uma ferramenta de reconhecimento pessoal: um ser humano que pode ser produtivo pelas organizações, tanto do mercado, como do Estado. O que Jessé Souza (2015) questiona em seus debates sobre o conceito de Taylor (s/d) é que, no Brasil, não é permitido que um indivíduo seja considerado digno. Essa impossibilidade

8 Segundo Jessé Souza (2015), violência simbólica representa todo tipo de violência que não se materializa em ato físico, mas causa efeitos psicológicos e/ou sociais no indivíduo. Entretanto, convém assinalar que a violência simbólica pode resultar em efeitos físicos, como, por exemplo, quando se instala a desigualdade social. 59 deriva das situações precárias de trabalho e da exploração da classe baixa, fatores que não permitem o reconhecimento pessoal pelo trabalho realizado. Na sociedade brasileira, os que são dignos são os “melhores”, ou seja, aqueles brasileiros que possuem bens e poder aquisitivo (SOUZA, 2015). Toda a sociedade cria ferramentas com o objetivo de “mascarar” as relações de dominação, e esta consideração, para Souza (2015), vem de uma relação sócio-histórica construída desde a colonização portuguesa no país (ORTIZ, 1985). A pobreza e a miséria no Brasil são históricas, e hoje é possível encontrar reflexos a partir das classes sociais. Segundo Souza (2015), no Brasil, os integrantes das classes média e alta, além dos privilégios e de sua “dignidade” (TAYLOR, s/d; SOUZA, 2015) enquanto cidadãos, contam com mão de obra acessível e popular por meio de empregadas domésticas, babás, faxineiras, porteiros e office boys, entre outros. Estes serviços, para Souza (2015), “poupam” o tempo das classes médias e altas, que terceirizam estas atividades. Assim, resguardam-se de atividades consideradas menos intelectuais, para desenvolver atividades mais “relevantes”, que garantam um patamar de vida mais elevado, diferenciando-as da classe baixa. Este exemplo, segundo o autor, é um dos privilégios das classes dominantes no Brasil. Como resultado, a desigualdade entre classes torna-se ainda mais acentuada. Às classes menos privilegiadas resta dar conta de todas as tarefas por conta própria. Souza (2015, p. 157) também destaca que a “sociedade é dividida em grupos sociais com acesso diferencial a disposições para o comportamento prático assimiladas insensivelmente através da educação implícita e explícita. Não obstante, podemos destacar que estes mecanismos identificam a diferença social entre as classes, gêneros e raças no Brasil. Para Souza (2015), estes modos operantes dão acesso à “hierarquia valorativa”, descrita acima. Sendo assim, a transparência e a reculturalização é devolvida ao que foi naturalizado no mundo de hoje.

4.3.2 Abandono social

Outra questão que converge para as diferentes classes sociais no Brasil, está relacionada ao abandono social e político de famílias, que tem seu capital cultural alterado (SOUZA, 2015). A diferença entre classes não está na presença escolar, mas na “ausência da incorporação afetiva da ‘capacidade de se concentrar’, algo que a classe média tende a perceber como ‘habilidade natural’” (2015, p. 206). Na verdade, para o autor, isso acontece devido ao capital cultural que já foi adquirido e repassado por “herança familiar”. As classes baixas têm maior dificuldade de adquirir esse capital, sendo menores as chances de concentração, deixando o capital cultural familiar menos fortalecido, se comparado ao das classes média e alta no Brasil. Muitas famílias 60 brasileiras de classes baixas não possuem ensino fundamental ou médio, porque este capital cultural se torna difícil de ser adquirido por elas, em função do exíguo tempo que possuem para se dedicar aos estudos, ao contrário do que ocorre com os que pertencem à classe média e alta no país. Souza (2015) postula que a autoconfiança e a autoestima são transmitidas de geração para geração, fator que também pode segregar as classes no país, pois, no caso da classe baixa, não é possível repassar, em forma de herança, os diplomas e os livros para futuras gerações. Souza ainda apresenta outra diferença entre classes no Brasil, ocasionada por parte deste capital cultural: os privilegiados recebem “armas”, que são bases para esta “competição diária por todos os bens e recursos escassos” (2015, p. 207). A diferença entre as classes é que os “excluídos” entram “desarmados” nesta luta. O indivíduo da classe baixa aceita qualquer tipo de trabalho, pois nunca aprendeu a fazer um serviço intelectualizado. “A instituição escolar nesse contexto é ineficiente porque essas crianças já chegam como ‘perdedoras’ nas escolas, enquanto crianças de classe média já chegam ‘vencedoras’ pelo exemplo e estímulo paterno e materno afetivamente construído” (2015, p. 207). Por “excluídos”, Souza (2015) entende que são aquelas pessoas que estão, ainda, abaixo da sua condição de dignidade (TAYLOR, s/d), vivendo em um estado que o autor denomina de “sub-humana”. Para que o indivíduo possa emergir dessa condição, precisa ter acesso a algum tipo de ferramenta capaz de alterar o seu próprio destino: “para quem não tem acesso a ‘outros possíveis’, resta fantasiar ou negar a própria realidade” (SOUZA, 2015, p. 203). Algumas Políticas Públicas aplicadas no Brasil fizeram com que o capital econômico de famílias de classe baixa aumentasse e o seu processo de dignidade fosse desenvolvido de uma maneira diferente do que era visto até então no país (SOUZA, 2015). Como resultado, segundo Souza (2015), a classe baixa pode ser inserida, de certa forma, em âmbitos “jamais imaginados” por eles. O autor destaca o projeto Bolsa Família como uma política redistributiva, que beneficiou mais de 46 milhões de pessoas, resultando em um aumento real do salário mínimo brasileiro em 70% (SOUZA, 2015). Ainda assim,

[...] a política de microcrédito e de facilidades ao crédito de modo geral, além de políticas tópicas de acesso à educação superior para a população mais pobre, fortaleceram a base da pirâmide social brasileira e operaram importantes mudanças morfológicas na estrutura de classes da sociedade brasileira contemporânea (SOUZA, 2015, p. 209).

Com Políticas Públicas de inclusão, Souza (2015) postula que passa a ser criada uma “nova classe” no Brasil. O autor a denomina de “batalhadores”, uma classe que não pode ser 61 inserida entre os privilegiados, mas também não faz parte dos “desclassificados” ou dos “excluídos”. Neste sentido, “ela parece materializar uma rápida mudança social que se nutre tanto de setores da pequena burguesia tradicional, que perdeu expressão econômica, política e social, de parte da classe trabalhadora ‘fordista’ tradicional, que perdeu espaço e postos de trabalho” (SOUZA, 2015, p. 210). Para Souza, esta nova classe tem a possibilidade de conquistar, mesmo que tardiamente, alguns estímulos morais e afetivos. Sendo assim, os “batalhadores [...] representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo” (SOUZA, 2015, p. 211).

4.3.3 Subcidadania

Antes de uma discussão sobre os Batalhadores – importante conceito de Souza (2015) para explicar a sociedade brasileira – é preciso compreender como se deu a constituição da cidadania no Brasil durante o processo de modernização. O Brasil, durante sua modernização, mostrou-se ambivalente: “a estrutura transicional que articulava um setor moderno, especialmente nas cidades, e um setor tradicional, especialmente no campo, tende agora a refletir a crescente hegemonia do primeiro na dimensão nacional” (SOUZA, 2018, p. 219). Assim, o Brasil passa a “mudar” a sua ideia enquanto sociedade, e transformações são promovidas a partir do crescimento da indústria e da exploração do petróleo; a democracia, mesmo que incipiente, passa incluir as classes médias urbanas (SOUZA, 2018). Porém, nessa mudança econômica e social, incide sobre uma característica própria da sociedade brasileira: a constituição de uma cidadania que não é plena. Em Dos Santos (1998), essa situação é definida como Cidadania Regulada. Para o autor, a cidadania no Brasil está vinculada à profissão que a pessoa exerce. Assim, aqueles que exercem funções regulamentadas pelo estado tem a sua cidadania garantida, enquanto indivíduos que exercem funções não reconhecidas, como domésticas, não têm plena cidadania. Dessa forma, o projeto de modernização defendido por Buarque de Holanda (2014) é marcado pela centralidade do Estado no processo, não uma mudança sociocultural ensejada pela sociedade (DOS SANTOS, 1998; ORTIZ, 1985; SOUZA, 2015; 2018). No entanto, a Cidadania Regulada, como aponta Souza, “não nos permite, no entanto, numa dimensão mais analítica, o acesso compreensivo aos mecanismos sociais objetivos e opacos que comandam a produção desse padrão de classificação e desclassificação social” (SOUZA, 2018, p. 221). Souza (2018) defende que é necessário avançar para entender as precondições que permitem esse processo em uma sociedade periférica como a brasileira. 62

A singularidade da escravidão na construção da sociedade brasileira volta ao centro do pensamento de Jessé Souza (2018), para compreender o processo de exclusão de sujeitos da cidadania no Brasil. Para o autor, com a Abolição da Escravatura, os negros tiveram o pior local de partida na sociedade brasileira, que passava a ser competitiva. Junto aos negros, ainda havia outras camadas de excluídos como os mulatos, porém, o negro ainda teria um adicional do racismo estrutural. No contexto do fim da escravatura, ele foi abandonado à própria sorte, não houve política de inclusão da massa de libertos na sociedade (FERNANDES, 1978; SOUZA, 2018). Como afirma Souza (2018, p. 223), “ao negro, fora do contexto tradicional, restava o deslocamento social na nova ordem. Ele não apresentava os pressupostos sociais e psicossociais que são os motivos últimos do sucesso no meio ambiente concorrencial”. Assim, mesmo aqueles que tiveram possibilidades de inserção encontraram problemas para conquistar o seu espaço na sociedade, porque não tinham as habilidades necessárias, já que, por gerações, foram escravos (FERNANDES, 1978; SOUZA, 2018). A situação deles foi agravada ao se valorizar a importação de mão de obra estrangeira. Jessé Souza (2018, p. 224) aponta que “o estrangeiro, especialmente o imigrante italiano, aparecia aqui, inclusive, nesse espaço recém-aberto, como a grande esperança nacional de progresso rápido”. Dessa forma, o negro liberto era visto como alguém incapaz de ser assimilado numa sociedade competitiva, já que não possuía os pressupostos necessários para tal. O imigrante, por sua vez, vinha da Europa com a adaptação necessária para a lógica competitiva de mercado (SOUZA, 2018). Então, “nesse quadro, em que a realidade e a fantasia do preconceito se alimentavam reciprocamente, o imigrante europeu eliminava a concorrência do negro onde quer que ela se impusesse” (SOUZA, 2018, p. 224). O negro, assim, estava excluído tanto da burguesia quanto do proletariado nacional: “restavam os interstícios e as franjas marginais do sistema como forma de preservar a dignidade de homem livre: o mergulho na escória proletária, no ócio dissimulado, ou ainda na vagabundagem sistemática e na criminalidade fortuita ou permanente” (SOUZA, 2018, p. 224). Essa exclusão social do negro – e do mulato – no processo de modernização brasileira fez com que ele ficasse concentrado em cortiços e, posteriormente, na periferia da cidade. Com isso, a estrutura familiar também foi afetada, em especial por dois motivos: a exigência do trabalho e a concepção de família, visto que, para os negros, essa não era uma estrutura durante a escravidão. Para Souza (2018, p. 226), “existe aqui, nesse tema central da ausência da unidade familiar como instância moral e social básica, uma continuidade com a política escravocrata brasileira, que sempre procurou impedir qualquer forma organizada familiar ou comunitária da parte dos escravos”. O negro, enquanto escravo, só era utilizado para a “força de trabalho”, não 63 tendo, na sua constituição, a família. Posteriormente, quando liberto, devido ao caráter de trabalhos que passou a conseguir, tendia a ficar afastado de seus filhos. Como sustenta Jessé Souza (2015; 2018), a família tem papel significativo na formação do sujeito, assim, responsável por passar os primeiros valores morais e as normas sociais às crianças. Posteriormente, com a abolição da escravatura, nos cortiços, “o filho natural e a mãe solteira, quase sempre jovem, eram os produtos mais comuns desse tipo de convivência” (SOUZA, 2018, p. 227). Nesse contexto, idosos e filhos indesejados viravam “pesos” para os trabalhadores mais baixos. Como afirma Souza (2018, p. 228),

[...] a não socialização adequada de nenhum dos papéis familiares, a incerteza e insegurança social que faziam expulsar de casa as filhas que se perdiam, por exemplo, militava no sentido de que a família não só não fosse uma base segura para a vida numa sociedade competitiva, mas também se transformasse na causa dos mais variados obstáculos.

Nesse contexto de exclusão sistemática e de falta de apoio familiar, consoante Jessé Souza (2018), constitui-se a subcidadania no Brasil. Diferente de Dos Santos (1998), que sustenta que a cidadania é regulada e correlacionada com a atividade profissional dos indivíduos, Souza (2018) enquadra esse contexto social da escravidão como constituinte de uma subcidadania no Brasil. Assim, a partir de Souza (2015; 2018), é possível refletir sobre o porquê de certos indivíduos migrarem para determinados empregos precarizados e, outros, para trabalhos estruturados. Essa discussão é aprofundada na seção seguinte, que trata especificamente sobre a divisão das classes brasileiras, a partir de Souza (2017).

4.3.4 Ralé Brasileira e a divisão de classes no Brasil

Souza (2017) denomina de “Ralé Brasileira” a parte da população do Brasil que é composta por negros recém-libertos, mulatos e mestiços migrados para as favelas, como visto anteriormente pelo conceito de subcidadania. Essa população vive em local reservado e distante dos grandes centros das cidades, por ter sido abandonada à própria sorte. Para Souza (2017), a Ralé marca a configuração de classes da modernização seletiva e desigual do Brasil. O negro, sem oportunidade de competição perante os imigrantes e brasileiros brancos, tende a se deslocar para a “escória proletária, o ócio dissimulado ou a criminalidade fortuita ou permanente como forma de preservar a dignidade de ‘homem livre’” (SOUZA, 2017, p. 77). Sem posição de trabalho que fosse considerado estruturado, o negro perde, segundo Souza (2017), as suas possibilidades de classificação social e econômica, pois, segundo o autor e o 64 próprio Taylor (s/d), é o trabalho que dignifica o homem enquanto indivíduo inserido em uma sociedade contemporânea. Assim como a classe média e alta, a Ralé também repassa a sua herança para as suas futuras gerações: “a perpetuação da escravidão [...], gerando a ‘ralé de novos escravos’” (SOUZA, 2017, p. 79). Neste período de transição, porém, a mulher negra acaba encontrando uma situação menos desfavorável, por trabalhar com serviços domésticos, já que os estrangeiros não almejavam este tipo de trabalho. Souza (2017, p. 78) postula que, neste momento histórico, “a mulher representa uma referência econômica e social de estabilidade”. A classe média brasileira acaba, por sua vez, a explorar a Ralé Brasileira, com o objetivo de “poupar o seu tempo” com os serviços braçais desenvolvidos por esse grupo de indivíduos. Sendo assim, os serviços domésticos e pesados seguem desenvolvidos pela Ralé: “Essa luta de classes silenciosa exime toda uma classe dos cuidados com os filhos e da vida doméstica, transformando o tempo poupado em dinheiro e aprendizado qualificados” (SOUZA, 2017, p. 80). Sendo assim, pode-se destacar que a Ralé Brasileira está ligada a uma herança familiar que vem desde a escravidão, e segue até os dias de hoje, na sociedade contemporânea brasileira. Para Souza (2017), a compreensão das relações de classes no Brasil só é possível se o debate for além da questão das relações econômicas entre classes sociais: é necessário que se discuta, também, a questão sociocultural e as relações sócio-históricas que trouxeram a sociedade brasileira até aqui. Sem essa reconstrução histórica de cada classe, “temos apenas indivíduos competindo em condições de igualdade pelos bens e recursos escassos em disputa na sociedade” (SOUZA, 2017, p. 85). O autor postula que, para se debater sobre classes no Brasil, é necessário ir ao “berço” de cada um deles e compreender a “economia emocional” desenvolvida em cada classe. O que ele quer destacar com essa afirmação? A ideia de que a socialização familiar primária é uma fonte para atingir a definição das chances relativas na luta social brasileira. Por isso,

[...] o sucesso escolar dependerá, por exemplo, se disciplina, pensamento prospectivo - ou seja, a capacidade de renúncia no presente em nome do futuro - e a capacidade de concentração são efetivamente transmitidos aos filhos. Sem isso, os filhos se tornam no máximo analfabetos funcionais. É esse ‘patrimônio de disposições’ para o comportamento prático, que é um privilégio de classes entre nós, que vai esclarecer tanto a ocupação quanto a renda diferencial mais tarde. Como cada classe social tem um tipo de socialização familiar específica, é nela que as diferenças entre as classes têm que ser encontradas e refletidas (SOUZA, 2017, p. 88).

Para Souza (2017), as classes sociais no Brasil, no contexto atual, são divididas em quatro frações, sendo (1) a elite dos proprietários; (2) a classe média e suas frações; (3) a classe 65 trabalhadora semiqualificada; e (4) a ralé de novos escravos. Este molde de divisão de classes, no Brasil, começa a ser desenvolvido a partir do Estado Novo de Getúlio Vargas, com a criação de uma sociedade moderna e industrial (SOUZA, 2017). Segundo o autor, tanto a elite dos proprietários como a ralé de novos escravos não têm voz no Brasil. Ainda que, atualmente, “o capitalismo financeiro começa a criar sua própria classe trabalhadora crescentemente precarizada e ameaçada pelo desemprego e corte de direitos” (SOUZA, 2017, p. 108). No que se diz respeito à classe média e à classe trabalhadora semiqualificada, Souza (2017) destaca que ambas se identificam com uma classe a quem não pertencem: a da elite, constituída por proprietários.

4.3.5 Batalhadores

Os sujeitos que passam do estado de Ralé no Brasil ascendem à classe média? Souza (2012; 2015) entende que não. Assim, é preciso compreender a segunda fração de classe, que Souza (2012; 2015; 2017) compreende como os “Batalhadores”. Diferente daqueles que sustentam que haveria, no Brasil, uma “nova classe média”, que emergiu na virada para o Século XXI, Jessé Souza (2012; 2015; 2017) aponta que os Batalhadores são uma “nova classe trabalhadora”, são “uma classe social nova e moderna, produto das transformações recentes do capitalismo mundial, que se situa entre a “ralé” e as classes média e alta” (SOUZA, 2012, p. 26). Nisso, os Batalhadores se constituem como “uma nova classe trabalhadora”, já que a “antiga” estaria vinculada a um modo de produção atrelado ao fordismo. Como aponta Souza (2012), essa “antiga classe trabalhadora” conviveria em “harmonia” com a elite econômica, já que o fordismo dependia de uma classe trabalhadora com poder de compra para adquirir os bens que ela produzia. Porém, com a crise estrutural do capitalismo nos anos 1980 e a emergência de uma maior flexibilização do trabalhador, há a necessidade de emergir uma “nova classe trabalhadora”: os Batalhadores. Como a mudança do capitalismo global impacta na reorganização da estrutura social brasileira e, consequentemente, na emergência de Batalhadores brasileiros? Para Souza (2012), com a mudança do fordismo (em que havia o privilégio pelo capital produtivo) para uma economia impregnada pelo capital financeiro, o perfil e o comportamento da “classe trabalhadora” no Brasil se transformam. Esse processo de dominação do capital financeiro faria com que parte da Ralé, os que se destacam num mercado altamente competitivo, torne-se a 66 parte alta da Ralé. Essa fração alta da Ralé seria constituída pelos Batalhadores (SOUZA, 2012; 2015; 2017. Aqui, importante destacar que essa “nova classe trabalhadora” engloba sujeitos que não são necessariamente trabalhadores formalizados. Nos Batalhadores, há microempresários, pessoas que vivem na informalidade, mas em trabalhos melhor reconhecidos, bem como os tradicionais trabalhadores formais. A diferença fundamental entre os Batalhadores e a Ralé Brasileira é que, para Souza (2012),

[...] a nova classe trabalhadora parece se definir como uma classe com relativamente pequena incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural – o que explica seu não pertencimento a uma classe média verdadeira –, mas, em contrapartida, desenvolve disposições para o comportamento que permitem a articulação da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo.

Dessa forma, os Batalhadores situam-se como sujeitos “mais aptos” que a Ralé para integrar a sociedade competitiva que emerge a partir dos anos 1980. Entretanto, suas relações sociais e culturais ainda são precárias se comparadas às da classe média brasileira. Assim, esta teria uma “segurança” maior do seu pertencimento de classe; já os Batalhadores mostram uma “transitoriedade” maior, podendo, por causa de uma crise econômica ou problemas nas relações sociais, acabar retornando à condição de Ralé. O que impede que Batalhadores retornem à condição de Ralé é o fato de possuírem ensino superior. Isso é relevante na medida em que a maior parte dos Batalhadores, a partir da década de 2010, consegue acessar o ensino superior.

4.3.6 Classe média e a elite econômica

A classe média brasileira é aquela que, segundo Souza (2017), forma um “pacto antipopular”, comandada pela elite dos proprietários. Mas qual a força da classe média no Brasil? Para Souza (2017), é ela que tem o poder de decisão do país. Com a modernização, a classe média tornou-se o consumidor principal, influenciando a vida social, política e cultural do país, a partir de uma esfera pública da elite. Sendo assim, a classe média brasileira pode ser considerada um diferencial entre as outras três classes sociais, e, segundo Souza (2017), ela não precisa do Estado para se desenvolver, por isso, não necessita da meritocracia: não pelo fato de não precisar da meritocracia, mas devido às suas vantagens competitivas com relação às classes da Ralé e à classe trabalhadora. Sendo assim, esta seria uma classe facilmente acobertada. Por isso, “é 67 necessário tornar invisíveis todos os privilégios de nascimento que possibilitam, por exemplo, sua transformação no ‘milagre do mérito individual’” (SOUZA, 2015, p. 241). O que diferencia a classe média da elite dos proprietários não é o seu poder econômico, mas a sua herança do capital cultural, como descrito anteriormente. Sendo assim,

[...] a classe média tem interesse em “esconder as causas do privilégio injusto. Ao contrário da “classe dos endinheirados” acima dela, cujo prestígio se baseia no monopólio do capital econômico, o privilégio da classe média se baseia, como vimos, na apropriação do capital cultural altamente valorizado e indispensável para a reprodução do mercado e Estado (SOUZA, 2015, p. 240).

Conforme discutido em “Ralé brasileira e a divisão de classes no Brasil”, a construção sociocultural depende, assim como a econômica, da compreensão da divisão de classes no Brasil. Souza (2017) postula que as crianças de classe média usufruem de estímulos em suas casas, diferentes das da Ralé. Hábitos de leitura, imaginação e autoestima são ferramentas que possibilitam a distinção entre as classes no Brasil. São elas que “fazem com que os filhos dessa classe sejam destinados ao sucesso escolar e depois ao sucesso profissional no mercado de trabalho” (SOUZA, 2017, p. 88). Não obstante, os filhos de trabalhadores precarizados, em sua maioria, não terão os mesmos estímulos, com outros exemplos dentro de casa, fortalecendo a distinção de classes desde a infância. Outro fator destacado por Souza (2017) é o tempo destinado ao estudo, já que as crianças da classe média podem dedicar-se integralmente aos afazeres escolares, enquanto as classes populares necessitam conciliar o tempo entre escola e trabalho desde a primeira adolescência. Este é um mérito individual importante que distingue as classes média e populares brasileiras, que é construído, segundo Souza (2017), por um “privilégio herdado” entre gerações de uma mesma classe familiar. A apropriação de cada capital cultural familiar é, para o autor, uma fonte de desigualdade social entre classes no Brasil.

5 UMA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL NA ERA DE “QUE HORAS ELA VOLTA?”

Antes de iniciar a análise da produção fílmica “Que Horas Ela Volta?”, a partir dos conceitos teóricos desenvolvidos neste trabalho, faz-se necessário destacar um breve relato de 68 como o Brasil se desenvolvia nos anos de produção e lançamento do filme. Sendo assim, uma pesquisa de autores e manchetes jornalísticas foram organizadas neste capítulo, a fim de possibilitar um resgate sócio-histórico do Brasil: sua situação política, econômica e de desenvolvimento entre os anos 2010 e 2015 – sendo estes os anos de lançamento e produção de “Que Horas Ela Volta?”. Assim, torna-se possível compreender a realidade brasileira durante os anos de produção e filmagem da produção cinematográfica.

5.1 QUE BRASIL É ESSE? O CENÁRIO DO PAÍS NOS TEMPOS DE “DE HORAS ELA VOLTA?”

Como eram as taxas de analfabetismo e desenvolvimento na Educação nos anos de “Que Horas Ela Volta?”? Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 9, realizada ao fim de 2015, revela que as taxas de analfabetismo caíam a cada ano, passando de 8,5%, em 2013, para 8,1% em 2014. Segundo a matéria da BBC, a queda foi contínua desde 2001 até o ano em que foi divulgada, 2015. Ainda no mesmo ano, o número de pessoas portadoras de diploma no Ensino Superior era de 13%, e, segundo o Portal do Ministério da Educação (MEC), essa porcentagem de brasileiros com formação superior cresceu 109,83% em 10 anos, sendo que, em 2000, 4,4% de brasileiros possuíam diploma10.

Em 2015, 57,5% dos brasileiros acima de 25 anos tinham completado o Ensino Médio, sendo que 32% deles não finalizaram o Ensino Fundamental. Ainda, 76,9% dos indivíduos frequentavam escolas públicas, sendo que, em 2013, esse número era de 75,7%. A frequência escolar também aumentava entre crianças de 6 a 14 anos: 98,5% estavam nas escolas.

A taxa de trabalho infantil aumentou de 2013 para 2014: em 2014, 554 mil crianças, entre 5 e 13 anos, trabalhavam, 50 mil a mais que no ano anterior. Este foi o primeiro aumento, frente às sete quedas sucessivas desde 2005. Além disso, ainda segundo o IBGE, 84,5% dos domicílios no país possuíam abastecimento de água, e 99,7% tinham iluminação elétrica. Em

9 Matéria está disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151113_resultados_pnad_jc_ab. Acessado em 29 de maio de 2019. 10 Informações retiradas do link: http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/212-educacao-superior- 1690610854/17725-numero-de-brasileiros-com-graduacao-cresce-10983-em-10-anos. Acessado em 28 de maio de 2019. 69 relação à rede coletora de esgotos, 63,5% das casas brasileiras recebiam este serviço. O momento demográfico, em 2015, estava em sua melhor fase, segundo o IBGE11.

O cenário econômico do país12, na época da produção do filme, era positivo. A economia brasileira, em 2013, crescia 2,3%, acima da alta de 1% de 2012. Essa alta sofreu influência pelo desempenho da agropecuária, com expansão de 7% - a maior desde 1996. Em valores correntes, pela nota brasileira, o real, a soma das riquezas produzidas chegou a R$ 4,84 trilhões e o Produto Interno Bruto (PIB) per capita estava em R$ 24.065. Em outubro, novembro e dezembro de 2013, o PIB crescia em 0,7%. Todos estes dados foram divulgados pelo IBGE. A variação do PIB, de acordo com outros países, crescia acima da média, como, por exemplo, na Alemanha, com variação de 0,4%, Estados Unidos, 1,9% e Japão, 1,6%, perdendo apenas para a China, com variação de 7,7%13.

Em 2015, manifestações de rua, contrárias ao Governo da época, foram intensificadas. Com isso, mudanças e instabilidades políticas e econômicas movimentaram o país: as manifestações, iniciadas em 2013, eram de brasileiros insatisfeitos com a política de um modo geral no Brasil (CAVALCANTE, 2015). Cavalcante (2015) postula que um pequeno reformismo ocorreu no momento das manifestações. Para o autor, a sociedade brasileira encontrava-se com altos níveis de pobreza, miséria e desigualdade social, e parte considerável da população brasileira não estava integrada à massa da força de trabalho dos moldes capitalistas.

Cavalcante (2015) determina que a renda da classe popular foi elevada entre 2005 e 2015, possibilitando a este grupo de brasileiros participar e integrar certos espaços que antes eram destinados à classe média e elite. O autor se utiliza do exemplo de aeroportos brasileiros, que, há 20 anos, eram utilizados pela classe média e pela elite. A partir da inserção de Políticas Públicas e capital econômico, existe outra realidade que popularizou as viagens de avião, no decorrer dos anos (2015, p. 183). Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) revelam que houve uma melhora na distribuição de rendimentos no período indicado para este estudo; “os 10% mais ricos, em 2004, se aproximavam de 45,5% da renda total,

11 http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2015/10/19/o-brasil-esta-em-seu-melhor-momento-demografico-diz- especialista-do-ibge. Acessado em 28 de maio de 2019. 12 Disponível em: . 13 Disponível em: . Acesso em: 28 mai 2019. 70 enquanto os 40% mais pobres detinham 10,6%. Em 2013 [...] [foram de] 41,4% e 13,2%” (CAVALCANTE, 2015, p. 186).

Cavalcante (2015), entretanto, faz ressalvas à ascensão econômica das classes menos privilegiadas: Para ele, apesar de elas terem acesso ao poder econômico, aproximando-se da classe média brasileira, “por outro lado, alguns dos espaços mais importantes de reprodução socioeconômica dos indivíduos de classe média perceberam um crescimento importante em comparação à década de 1990” (CAVALCANTE, 2015, p. 183-184). Houve, nesta época, um crescimento econômico moderado na média, segundo o próprio autor, mas que permitiu a queda do desemprego, além do aumento das taxas de formalização do emprego, aumentando a renda média per capita. Sendo assim,

[...] em 2003, a taxa de desocupação nas maiores regiões metropolitanas do Brasil, segundo o IBGE, era de 12% - uma das maiores do mundo à época. Uma década depois, o sentido foi invertido e o país apresentava uma das menores taxas mundiais, em torno dos 5%. O estoque de empregos formais praticamente duplicou entre 1999 e 2013, de 25 para 48 milhões de vínculos (Oliveira, 2015). O rendimento do trabalho na renda nacional aumentou 14,8% de 2004 a 2010, e o grau de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho diminuiu em 10,7% (Pochmann, 2012). O índice de Gini14 - se construído com base na distribuição do rendimento médio mensal de todos os trabalhos das pessoas acima de 15 anos - caiu de 0,563, em 2001, para 0,494, em 2013 (CAVALCANTE, 2015, p. 185).

Apesar disso, é possível afirmar que a maioria dos empregos criados (cerca de 95%) ficou na faixa de até 1,5 salários mínimos de renda mensal para o trabalhador brasileiro, em postos de trabalho com baixa exigência de qualificação. Em 2000, estes empregos equivaliam 29,7% do total de empregos; já, em 2013, correspondiam a 49,9%. Os empregos que recebiam cerca de 5 a 10 salários mínimos, por sua vez, tiveram uma queda, de 16,2% para 9,2%, e os salários acima de 10 salários mínimos, baixaram de 10,7% para 4,9%.

Além disso, o salário mínimo entre 2010 e 2015 obteve valorização, também influenciando na redução da pobreza extrema, juntamente com as políticas de transferência de renda. Para Cavalcante (2015), o valor do salário mínimo mais que duplicou em uma década, segundo boletim do Banco Central, em 2015. O poder de compra neste ano – que foi o de

14 O coeficiente de Gini é um cálculo usado para medir a desigualdade social, criado pelo estatístico italiano Corrado. Disponível em: . Acesso em: 20 mai 2019. 71 lançamento do filme, foi o maior desde agosto de 1965. Políticas de oferta de crédito também foram ampliadas desde 2002, e tiveram efeito junto ao poder de compra do cidadão brasileiro.

A classe trabalhadora, durante estes anos, deteve um forte poder de barganha, permitindo que, com negociações e greves, tivessem reajustes favoráveis acima da inflação. A massa empobrecida participou de uma integração ao mercado de consumo e de venda da força de seu trabalho (CAVALCANTE, 2015, p. 186). Cavalcante (2015) diz que o Brasil, hoje, ainda apresenta um índice alto de desigualdade social, mas, em estudos de Sergei Soares, pode-se perceber que a taxa de redução, de acordo com o coeficiente de Gini até o ano de 2006, pode ser comparado a relativa aos processos de implementação de Estados de Bem-estar Social na Europa.

Com relação ao aumento do capital econômico e da diminuição da desigualdade social no Brasil, o autor também destaca que os serviços pessoais, normalmente prestados pelas classes mais baixas, como, por exemplo, o trabalho doméstico, tiveram destaque. Normalmente são serviços prestados por pessoas de classes baixas, e são trabalhos prestados às classes médias e altas no país. Estas, tiveram um aumento de preço acima da inflação. Segundo o índice IPC- Fipe, os dados da cidade de São Paulo são expressivos entre 2008 e 2013. A inflação era de 31%, e a variação de preços de serviços, como de empregada doméstica, por exemplo, ficou em 51%, e, o de faxineira, em 66% (CAVALCANTE, 2015, p. 187).

Jessé Souza (2009) relata que a profissão de empregada doméstica, ao longo da segunda metade do século passado e, principalmente, agora, nos últimos anos, sofreu alterações15. Entre alguns dos direitos conquistados, por exemplo, está a carteira assinada. Souza afirma que, antes da Lei ser implementada, diversos profissionais da área desconheciam seus direitos, e, além de não possuírem registro de seu trabalho formal, moravam nas casas das famílias em que trabalhavam, sem separar o seu tempo pessoal e o horário de trabalho (2009, p. 125) – como é o caso da personagem Val, que está sendo analisada nesta dissertação.

Para Souza (2009), a partir desta nova Lei, além de as empregadas domésticas usufruírem de direitos antes desconhecidos, “vivem num contexto urbanizado, em que o

15 Todas as novas Leis e direitos do trabalhador doméstico podem ser acessadas em http://portal.esocial.gov.br/empregador-domestico/direitos-do-trabalhador-domestico. A Lei sofreu alterações, em benefício ao trabalhador da área, no ano de 2015. Acessado em 20 de maio de 2019. 72 consumo de bens de conforto surge como uma possibilidade para ‘viver melhor’” (SOUZA, 2009, p. 125)16.

5.2 POLÍTICA SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL

Nos anos de produção e lançamento de “Que Horas Ela Volta?” (2010-2015), o Brasil era um país que apostava em políticas sociais e públicas17 para promover impactos na reprodução social das classes baixas e de extrema pobreza no país. Segundo Cavalcante, estes impactos não podem ser avaliados apenas em termos ‘financeiro-econômico’, mas, também, em diversas outras questões. Para o autor, as “políticas sociais (como Bolsa Família e as cotas) [...] secundarizam o critério meritocrático como forma de escolha/seleção em instituições ou serviços públicos” (2015, p.180).

Cavalcante (2015) assinala que as políticas sociais tiveram um “papel importante” na redução da pobreza extrema do Brasil. Além disso, projetos na área da Educação também foram implementados, os quais ampliaram o acesso de jovens ao ensino superior – como vemos na produção fílmica em questão neste trabalho. Sendo assim,

[...] é crucial apreender os efeitos causados pelos principais programas do governo, como o Bolsa Família, os programas de cotas sociais e étnico-raciais e o aumento de vagas, no ensino superior público, além das vagas, bolsas e crédito estudantil no sistema privado (Reuni, ProUni e Fies) (CAVALCANTE, 2015, p. 186)18.

Os programas sociais de inserção de classes desfavorecidas ao Ensino Superior são, principalmente, os citados acima. O Programa de Apoio a Planos de Estruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) tinha o objetivo de ampliar o acesso e, também, fazer com que se tivesse uma maior permanência de alunos nestes espaços. Com isso, o programa previa aumento de vagas nas Universidades Federais, ampliação ou aberturas de cursos no turno da

16 Para maior profundidade no assunto, sugere-se o documentário “Domésticas” (2012), dirigido por Daniel Mascaro, onde sete adolescentes mostram o dia a dia das suas empregadas domésticas (nota da autora). 17 Para maior aprofundamento de conceitos das políticas sociais e públicas, sugere-se a seguinte leitura: SECCHI, Leonardo. Políticas públicas – conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2014. 18 Disponível em: . Acesso em: 29 mai 2019. 73 noite, ampliação do número de alunos por professores, redução do custo por aluno, flexibilização de currículos e combate à evasão escolar19.

Além do Reuni, também foram criadas, entre 2000 e 2013, 14 novas universidades federais, com o objetivo de favorecer a entrada de um maior número de brasileiros no meio escolar e acadêmico. Também, segundo matéria do G120, o número de matrículas no ensino superior cresceu 81% em dez anos – dados feitos entre os anos de 2003 e 2012. O número de alunos cresceu de 3,8 milhões para 7 milhões, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)21.

O ProUni – criado em 2004, e o Fies, ampliado a partir de 2010, também foram importantes programas sociais para a inclusão da classe baixa na universidade. O Prouni prevê bolsas de estudo parciais e integrais para estudar em instituições privadas em todo o Brasil; o Fies, por sua vez, é financiamento estudantil22.

Cavalcante (2015) também se posiciona sobre o Programa Social “Bolsa Família. Para ele, trata-se de um programa relacionado à ideia burguesa de valorização do capital, desvinculado da renda por meio de um emprego. Entretanto, resolve problemas sociais, diminuindo a desigualdade social no Brasil. Ele entende que

[...] os pobres, nesse esquema, não são aqueles produzidos por um tipo específico de desenvolvimento do capitalismo, mas apenas os que não têm ‘ainda’ a chance de serem ricos. – Não é à toa que seus principais formuladores foram economicistas liberais que conseguiram reduzir propostas originais de renda básica universal a políticas focalizadas compensatórias com certas condicionalidades (CAVALCANTE, 2015, p. 187).

Além disso, os programas de cotas23, segundo Cavalcante (2015), afrontam a ideologia da meritocracia, discutida por Jessé Souza (2015) no primeiro capítulo deste trabalho. Com esses programas, houve forte ampliação do acesso ao Ensino Superior no Brasil, elevando, por conseguinte, o número de pessoas com diploma no país. Com isso, houve uma alteração de oferta e demanda pelo trabalho qualificado, desfigurando a ideia de meritocracia no país.

19 Disponível em: . Acesso em: 29 mai 2019. 20 Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2019. 21 Disponível em: . Acesso em: 29 mai 2019. 22 Disponível em: . Acesso em: 29 mai 2019. 23 Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2019. 74

Além disso, é importante considerar a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, entre os anos 2003 e 2016, que estimulou e criou uma maior proteção para o público feminino no Brasil. Entre os destaques, estão Leis de proteção à violência, maior inserção das mesmas na política, Leis de proteção ao trabalho e a ampliação do conhecimento entre as mulheres sobre os seus direitos. Oliveira (2013) destaca que, no ano de 2001, quando foi realizado um estudo sobre o tema, as mulheres estavam em outro modo de visibilidade, com poucas pesquisas de dimensão nacional, sendo que muitas delas não tinham percepção política e não valorizavam a participação no mercado de trabalho remunerado.

Com a atualização da pesquisa, Oliveira (2013, p. 15) mostra que “a maioria das mulheres destacou sua presença no mundo público como ganho inquestionável nas últimas décadas”. Para a autora, houve ênfase na liberdade e independência, além de participação da mulher no mercado de trabalho. Isso se deve pela inserção de políticas públicas focadas em consolidar os direitos das mulheres brasileiras. Como ambas as personagens estudadas nesta dissertação são do gênero feminino, torna-se importante destacar a criação de uma Secretaria específica para as mulheres, e a criação de diversos direitos e Leis de amparo para este público no Brasil24.

24 Esta dissertação não tem o objetivo de tratar sobre as questões de gênero, mas, sim, pretende focar nos estudos sobre a desigualdade social no Brasil de forma geral. Para maior aprofundamento sobre o tema, sugere-se a leitura de VENTURINI (2013). 75

6 “QUE HORAS ELA VOLTA?”: UMA PERCEPÇÃO DE REPRESENTRAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

A última etapa desta pesquisa consiste em debater e buscar possíveis interpretações e representações sociais na produção fílmica “Que Horas Ela Volta?”, além de analisar as questões cinematográficas que geram essas representações com a riqueza do efeito de realidade que o cinema traz. Sendo assim, são utilizadas, para esta análise, as categorias analíticas fílmica e social. Com as teorias dos capítulos anteriores, é possível compreender e discutir diversas questões de representação a partir dos recursos fílmicos, como cenas, enquadramentos e discursos desenvolvidos ao longo do filme, especialmente a partir dos estudos de Aumont et al. (2012) e Xavier (2005). Para que a análise seja realizada, é necessário apresentar a síntese doo enredo do filme, e, posteriormente, é iniciada a análise com base nos teóricos e conceitos desenvolvidos ao longo desta pesquisa.

6.1 UM RELATO DE “QUE HORAS ELA VOLTA?”: A HISTÓRIA

O filme “Que Horas Ela Volta?” demonstra ocorrer no cenário atual brasileiro, ou seja, na mesma época em que o filme foi lançado, entre os anos 2013 e 2015. A obra se passa na cidade de São Paulo e tem os seus personagens principais originados do Nordeste do país, mais precisamente, de Pernambuco. Uma delas é Val, a empregada doméstica que se mudou há anos para São Paulo em busca de um futuro melhor, de um emprego que pudesse garantir seu sustento e o de sua filha pequena, o que não era alcançado enquanto morava em seu Estado de nascimento. Para isso, Val deixou sua filha, outra personagem, ainda pequena, em sua cidade natal, aos cuidados de sua família. Dez anos depois, já moça, Jéssica chega a São Paulo.

As outras personagens, coadjuvantes são: a patroa, Bárbara; seu marido, José Carlos, e seu filho, apelidado de “Fabinho”. Estes são os que recebem Val para trabalhar e morar em sua casa, para fazer serviços domésticos para toda a família. Val se estabelece em um pequeno quarto nos fundos da casa da família, sendo este seu único espaço pessoal e íntimo. Entretanto, a privacidade de Val é relativa, visto que Fabinho, o filho da patroa, frequentemente visita o local. Aliás, ela acaba cuidando dele como se fosse mãe, já que Bárbara se encontra sempre ocupada com o seu trabalho e/ou outras atividades pessoais. Ambos, Val e Fabinho, desenvolvem, desde cedo, uma relação muito próxima, de carinho e afeto. 76

Durante anos, Val segue sua vida normalmente, trabalhando e morando na casa de seus patrões. A história se modifica a partir da ligação de sua filha, Jéssica, que informa que viajará para São Paulo, a fim de prestar vestibular para Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de São Paulo. Na ligação, pergunta se pode morar nestes dias com ela e diz que precisará de espaço para estudar até o dia do vestibular. Fabinho e Jéssica aparentam ter a mesma idade, já que ele também prestará vestibular no mesmo dia e hora que Jéssica.

Os patrões de Val recebem a notícia da vinda de Jéssica com alegria. Até compram um colchão novo para que Jéssica possa dormir bem. A chegada da menina transforma a história: Até então, ela não sabia que sua mãe morava no mesmo ambiente em que trabalhava, ficando revoltada quando descobre isso já a caminho de casa, no ônibus.

Assim, a menina, bem recebida inicialmente, no decorrer do filme, é razão de conflitos entre Val e sua patroa, Bárbara, pois Jéssica começa a questionar a mãe sobre a situação em que ela se encontra. Critica, por exemplo, o fato de a casa ser enorme e Val possuir apenas um quarto pequeno. Também reclama da falta de empatia dos patrões, que não a deixam consumir ou usufruir de espaços da casa. Além disso, Jéssica questiona a maneira como os patrões tratam Val. Entretanto, para Val, a família a trata como “se fosse da família”, como eles mesmos relatam durante o filme, porém, percebe-se que ela é tratada como funcionária e empregada doméstica.

Jéssica consegue, por meio de atitudes “afrontosas”, sair do quarto de sua mãe, para ficar no espaço destinado aos hóspedes, tendo, assim, mais espaço para estudar. Determinadas atitudes de Jéssica são bem aceitas pelo patrão, José Carlos, mas começam a incomodar Bárbara. Conflitos são gerados entre todas as personagens, principalmente na relação entre mãe e filha, Val e Jéssica, que, apesar de terem laço familiar, não se conheciam até o momento, sendo necessária uma reconexão entre elas, já que ambas não tiveram a oportunidade de conviver durante muitos anos.

A relação das duas acaba tensionada pela falta de entendimento do conceito de dignidade humana, que, segundo Jéssica, é violado na moradia de sua mãe, na relação entre patrão e funcionário. Além disso, no entender de Jéssica, a questão pessoal e íntima de Val também é violada naquele ambiente. Faltando apenas um dia para o vestibular de Jéssica, acontece o maior conflito entre as duas, fazendo com que a filha saia de casa e vá para outro lugar, na casa de uma amiga. Val também descobre, por acaso, que sua filha já possui um filho 77 pequeno, de aproximadamente um ano. Como ambas não possuem uma boa relação, a maternidade foi omitida pela filha.

Prestado o vestibular, Jéssica liga para sua mãe avisando que foi bem no exame. Fabinho, o filho da patroa, já não se encontra na mesma realidade de Jéssica: foi mal na prova e acredita que não ingressará na Universidade. Essa ligação acaba despertando em Val um sentimento novo: começa, então, a questionar, da mesma forma que sua filha, sua vida e sua condição naquela casa.

No final do filme, Jéssica segue estudando para a segunda fase do vestibular, o que permite ao espectador inferir que ela entrará na Universidade de Arquitetura e Urbanismo. Diferente dela, Fabinho não passa, é encaminhado a um intercâmbio para, assim, ter espaço e pensar melhor sobre o que quer de sua vida, e, então, fazer um novo vestibular no futuro. Nesse momento, a relação entre mãe e filha melhora: Val e Jéssica deixam de discutir e passam a ter um relacionamento baseado na admiração, de ambas as partes, já que Jéssica entende o caminho que sua mãe precisou trilhar, e Val percebe o quanto sua filha é inteligente.

Esses fatos, novamente, levam Val a refletir sobre sua condição, de modo que resolve alugar uma casa para morar com a filha. Exige que Jéssica traga o filho para morar com elas, prontificando-se a cuidar da criança enquanto Jéssica estiver na Universidade. Val pede demissão de seu trabalho, deixando a vida que, por muitos anos, foi sua rotina. A patroa Bárbara, apesar de questionar e reavaliar a questão salarial, respeita a decisão de Val.

6.2 REPRESENTAÇÃO E EFEITO DE REALIDADE: FATORES SOCIAIS E ANÁLISE CINEMATOGRÁFICA

Nesta etapa do trabalho, serão apresentados elementos extrafílmicos, como premiações que o filme recebeu, direção e escolha de personagens, entre outros. Posteriormente, a análise da produção será realizada, a partir dos conceitos discutidos nos capítulos anteriores. As análises cinematográficas serão realizadas, principalmente, a partir de Aumont et al. (2012) e Xavier (2005).

78

6.2.1 Elementos extrafílmicos

A diretora do filme, Anna Muylaert, demonstra preocupação política e social em suas entrevistas para os diversos meios de comunicação, quando fala sobre o filme “Que Horas Ela Volta?”25, apesar de afirmar que o propósito inicial da produção não era discutir política, mas encontrar um espaço para a filha da empregada no enredo. Ainda segundo a própria diretora, o filme mudou a vida das pessoas mediante a possibilidade de um amplo debate sobre questões de classe, posições sociais e relacionamentos26. A atriz Regina Casé, que interpretou a personagem principal do filme, Val, recebeu premiações de Melhor Atriz e críticas positivas a seu trabalho na narrativa fílmica. Acredita-se que a atriz tenha sido escolhida para representar a personagem de uma empregada doméstica com um propósito específico: no momento em que o filme foi produzido e lançado, Regina apresentava um programa na Rede Globo para a classe C, denominado Esquenta!, o que facilitaria a relação entre esse público e o filme, em função da empatia da apresentadora com os espectadores. Outra razão da escolha da atriz provavelmente é o fato de ela sempre ter se voltado às questões sociais do país, com um olhar sempre dirigido à classe C. Devido a isso, a própria personagem já teria uma identificação com a empregada doméstica, categoria com a qual Casé é empática.

6.2.2 Enredo e discurso

Com relação ao enredo do filme, pode-se afirmar que a história central é linear, porém, ela se desenvolve com pequenas outras histórias inseridas na narrativa principal. Essas pequenas histórias, que ocorrem no decorrer do filme, em cenas quebradas e específicas, constroem questões sociais e de mudanças de percepções ao espectador, como, por exemplo, a história da Piscina e a das Xícaras, que serão devidamente analisadas. O discurso da produção fílmica se dá pelas falas dos personagens e, também, pelos enquadramentos e percepções visuais, sendo que, em alguns momentos, o som não é o enfoque principal, ou trata-se de ausência de sonoridade, para focalizar em determinado acontecimento da cena.

25 Disponível em: e . Acesso em: 3 jun 2019. 26 Disponível em: . Acesso em: 3 jun 2019. 79

Os enquadramentos são principalmente amplos, com planos abertos e visão de tudo o que ocorre na cena, com a câmera parada – ou pouco movimento – para aproveitar a movimentação das personagens e dos objetos, sendo que, em poucos momentos, a câmera que vai ao encontro das personagens ou se movimenta. Isso ocorre em situações específicas, com grande número de pessoas no ambiente, como no momento da festa de aniversário de Bárbara ou em um diálogo mais profundo entre as personagens. A filmagem varia do enquadramento amplo ao fechado, quando se necessita aproximar e compreender as relações entre as personagens presentes na cena. As imagens com enquadramento amplo são paradas, e são destacadas as movimentações dos objetos e das personagens relevantes na cena (Figuras 1 e 2).

Figura 1 – Enquadramento com plano aberto para maior percepção de toda a cena

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Figura 2 – Enquadramento com plano fechado para diálogos mais profundos

80

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Um enquadramento muito utilizado durante todo o filme é o apresentado na Figura 3, que tem o objetivo de mostrar a cozinha e a sala de jantar. O foco da câmera parte da cozinha e permite a visualização de parte da sala de jantar, fonte da sonoridade. Esse enfoque é empregado mais de uma vez na narrativa fílmica e tem o objetivo de relacionar ambos os ambientes e evidenciar o testemunho de Val da conversa da família ou do que esteja acontecendo na sala de jantar, já que aquele parece ser um local interditado à empregada doméstica. Assim, essa construção do ponto de vista e do de escuta remete à empregada, evidenciando sua inclusão/exclusão no convívio com a família.

Figura 3 – Enquadramento com foco na cozinha e sonoridade na sala de jantar

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Na Figura 3, tem-se a primeira vez em que o enquadramento aparece, e a discussão na sala de jantar é sobre uma droga ilícita encontrada nos objetos pessoais de Fabinho. Val presta atenção, acoberta o fato e ajuda Fabinho a esconder a droga, que a retira do lixo em que Bárbara o colocou. Outra percepção, nesta imagem, é que apenas Bárbara aparece no enquadramento, representando que a mesma tem mais influência sobre o garoto que o pai, que, durante o filme, não demonstra interesse pela educação de seu filho. 81

Um espaço de circulação do filme que é destacado em forma de imagem apenas uma única vez, porém, mencionado por Val em mais de um momento, é o aeroporto. Como destacado por Cavalcante (2015), e a elevação da renda da classe popular foi elevada, o que levou a classe C a circular em espaços que antes eram destinados apenas à classe média e à elite brasileira. O próprio autor menciona os aeroportos brasileiros, que, há 20 anos, eram utilizados pelas classes média e alta, e hoje, com outra realidade, também possibilitou aos Batalhadores circularem nesse espaço. Há duas menções ao aeroporto: no início do filme, quando Jéssica chega de avião para encontrar Val em São Paulo; e outra, no fim da narrativa, quando a empregada doméstica menciona que trará o neto de avião. Nesse diálogo, Val demonstra orgulho, pois seu tom de voz é forte, demonstrando alegria e honra.

Como mencionado anteriormente, permeiam a narrativa principal pequenos enredos inseridos que possibilitam uma percepção significativa sobre o tema central do filme: a divisão da sociedade em classes e a suposta quebra de representações sociais que até então eram normativas no Brasil, como, por exemplo, o fato de a filha da empregada prestar vestibular. Aqui serão analisados dois pequenos enredos apresentados no filme, denominados Enredo da Piscina e Enredo das Xícaras.

6.2.2.1 Episódio da Piscina

A piscina é um importante espaço de circulação das pessoas e um marco para compreender as relações de classe destacadas no filme “Que Horas Ela Volta?”, pois somente os donos da casa podem entrar e usufruir desse local. A empregada doméstica e sua filha, mesmo que também morem na casa, não podem aproveitá-la nos momentos de folga. Outro ponto a ser destacado é que a piscina mostra a evolução dos pensamentos e direitos de Val enquanto indivíduo e ser humano subordinado. Logo no início da narrativa, em 2min 43seg, Fabinho, ainda criança, entra na piscina e pergunta para Val: “Você não vai nadar?”. Logo Val responde: “E eu tenho maiô para nadar?”. Esse diálogo somente é compreendido quando Val recupera esta fala ao explicar para Jéssica que ela não deve entrar na piscina:

Val: “Não vá olhando para essa piscina, não, Jéssica. Isso não é para o teu bico não, viu?” Jéssica: “Eu não falei nada”. 82

Val: “Não falou, mas pensou que eu sei, tá ouvindo?” Jéssica: “Você nunca nadou aqui não?” Val: “E eu vou nadar na piscina dos outros?” Jéssica: “Nunquinha?” Val: “Nunquinha. E se um dia eles lhe chamar pra cair nessa piscina tu vai dizer ‘eu não tenho maiô”, “não posso”, viu?”

Nesse diálogo, que remete ao que ocorreu no início da narrativa, é possível compreender o porquê de Val ter dito ao pequeno Fabinho que não tinha maiô para entrar na piscina. Na verdade, ela, na condição de empregada doméstica, compreendia que não tinha o direito de entrar na piscina e usufruir desse espaço de lazer da família. Isso, agora, ela ensina à filha, explicitando seus papeis sociais: como empregada doméstica e filha da empregada, não lhes é permitida a entrada na piscina.

Figura 4 - Fotografia da família na piscina, com Val ao fundo

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

A fotografia (Figura 4) que José Carlos mostra para Jéssica também é reveladora, pois indica um momento de lazer da família. É possível ver que todos estão ao redor da piscina, menos Val, que está distante, com seu uniforme branco, longe do espaço de convívio e lazer.

Já na Figura 5, destaca-se outra importante cena para o Enredo das Piscinas: o momento em que a piscina é apresentada para Jéssica. Nela, José Carlos, Fabinho, Jéssica e Val se encontram no enquadramento. Momento antes, José Carlos está mostrando a casa para Jéssica, 83 e, quando chega na piscina, pede para que Val acenda as luzes do ambiente. Nesta perspectiva, o patrão prepara a apresentação da piscina relacionando como um espetáculo.

Figura 5 – Relação entre Val e Fabinho

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Logo após a cena da Figura 4, Fabinho chega com um amigo para entrar na piscina e logo pergunta para Jéssica se ela não vai entrar. Neste momento, entende-se que o menino não tem a mesma distinção de papeis sociais que Val e seus pais. Logo, Jéssica responde “não tenho maiô”, tal qual sua mãe o fizera. Fabinho acaba empurrando Jéssica, vestida, na piscina. Um efeito cinematográfico é utilizado neste espaço do filme: o efeito de lentidão da câmera é apresentado, para detalhar cada expressão e cada movimento dos adolescentes na piscina, como um momento de diversão, em que todos são iguais, sem distinção de classe ou de papeis sociais. Logo, os sons das brincadeiras chegam no ouvido dos pais de Fabinho e Val, que ficam intrigados com o acontecimento. Bárbara ainda menciona, em tom rude: “tira ela daí!”. Uma discussão entre mãe e filha acontece em momento posterior ao acontecido. Elas possuem pensamentos opostos quanto à realidade social de cada uma delas, o que faz com que uma não compreenda a outra.

84

Figura 6 – “Jéssica, Não vai entrar na piscina?” “Eu não tenho maiô, não”

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Algumas cenas após esse evento, Bárbara menciona que está esvaziando a piscina, pois encontrou ratos dentro ela. Esse fato é representativo, e apenas Jéssica dá-se conta do que realmente estava em jogo: devido a sua entrada, a piscina precisa ser higienizada. Em um diálogo com Fabinho, quando ambos estão sentados na beira da piscina, Jéssica se compara aos ratos mencionados por Bárbara. Nessa ocasião, os ratos destacados pela patroa representam Jéssica.

Jéssica: “Mandaram esvaziar a piscina, foi?” Fabinho: “É, minha mãe disse que viu ratos aqui. Sei lá, perigoso, né? A gente pode pegar doença.” Jéssica: “Tá bom.” [...] Jéssica: “Tu acha que eu sou um rato?” Fabinho: “Quê? [risadas]” 85

Ao fim do diálogo, ambos se levantam e vão embora, e a câmera, que estava em um plano fechado, para destacar o diálogo e as expressões de cada um, volta-se para a piscina. Há, nesta cena, uma representação da visão que Bárbara tem de Jéssica: um“rato”. Entretando, Fabinho não compartilha dessa percepção.

A parte final do Enredo da Piscina se dá a partir da cena em 1h27min, quando Val, após ter brigado com Jéssica, que saíra de casa, resolve entrar na piscina. O enquadramento é amplo, para que todo o espaço de circulação seja mostrado: a piscina, a escada, a água e a personagem. Val entra na piscina pela escada. A trilha sonora é de música lenta, para que o espectador seja impactado sentimentalmente: este é o momento de transição para Val, um momento em que ela finalmente compreende a filha e quebra todos os paradigmas e entendimentos que ela tinha até então: ela se vê, agora, como igual a Jéssica. Isso ocorre também pelo fato de Jéssica ter passado no vestibular e Fabinho não. Val identifica que a sua filha tem o mesmo – ou mais – potencial que o “filho da patroa” e percebe que a filha da empregada doméstica pode frequentar os mesmos espaços que “o filho da patroa”.

Val: “Jéssica, fia, é mâinha. Eu tô lhe ligando para dar boa noite. Pra dizer que eu tô muito orgulhosa de tu. Agora, adivinha onde é que eu tô? [risadas]. Ó: [mexe com os pés na água]. Tá ouvindo? Tô dentro da piscina! É! [risadas] eu tô! Eu tô muito feliz, visse. Um cheiro. Ó, mâinha lhe ama.”

Nesse momento, Val brinca com a água, expressa felicidade e se dá um pequeno banho, molhando os braços e olhando para o céu (Figura 7). São expressões de libertação, pois compreendeu seu papel social e seu espaço de subordinação que a aprisionaram durante anos. A sua relação com a filha passa a ser mais amorosa e delicada.

86

Figura 7 – Val finalmente entra na piscina

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

O Episódio da Piscina é importante para destacar os avanços da conscientização de Val. Este pequeno episódio é importante para a história principal do filme, uma vez que destaca todas as etapas de Val em seu processo de reconhecimento.

Nessa perspectiva, esse episódio pode ser relacionado às teorias de Souza (2015) e Ortiz (1985) sobre as raízes das concepções culturais brasileiras, as quais vêm desde a escravidão e o período sócio-histórico da colonização. Com base em Cuché (1999) e Laraia (2009), podemos afirmar que as concepções de Val são constituídas a partir das dos seus ancestrais e a partir de todas as questões sociais impostas, que fazem com que ela não seja um indivíduo livre, porque suas escolhas são pré-determinadas (SOUZA, 2015).

Também a questão da violência simbólica é abordada pela narrativa fílmica. Segundo Souza (2015), existem processos que ocultam os conflitos e as desigualdades sociais no Brasil. Sendo assim, o culturalismo conservador brasileiro trabalha nessa manutenção das desigualdades. Como convive diariamente com seus patrões, Val desenvolveu essa concepção cultural do que é certo ou errado sob a ótica deles, ou seja, da classe privilegiada.

6.2.2.2 Episódio das Xícaras

87

Outra passagem que acontece no filme “Que Horas Ela Volta?” e que ajuda a compreender o tema principal da produção diz respeito ao conjunto de xícaras com o qual Val presenteia Bárbara. O fato de uma empregada poder presentear sua patroa mostra, ao espectador, que a situação atual do Brasil mudou: há uma nova classe trabalhadora, aquela que, apesar de não ascender à classe, usufrui de novos direitos, antes não alcançados. Como expresso por Cavalcante (2015), agora a classe C pode usufruir de espaços que antes eram destinados apenas para a classe média e a elite brasileira. A primeira vez que Val destaca isso em um diálogo, de forma inconsciente, é no início do filme:

Val: “É descasado. O preto e o branco. Aí preto, preto, e branco.”

Val acredita que Bárbara tenha gostado de seu presente e, ao organizar o café para o aniversário da patroa, pretende inaugurar as xícaras. Bárbara, entretanto, diz que o conjunto será levado para outra casa e que ela deve servir o café nas xícaras que foram compradas na Suécia. O conjunto de xícaras comprado por Val será novamente apresentado ao fim da narrativa, quando Jéssica e sua mãe se mudam para uma pequena casa, quando esta pede demissão do seu emprego.

Val: “Óia, que lindo. É tudo diferente isso aqui, ó. É o preto no branco, o branco no preto. É diferente que nem tu [falando para Jéssica]. Moderno.” [...] Val: “Roubei de dona Bárbara”

Novamente, Val menciona que as xícaras são diferentes, relembrando que Jéssica também é, em função de seus pensamentos. Aqui podemos destacar uma representação: as xícaras estão representando a sociedade brasileira que mudou, segundo os conceitos de Jessé Souza (2015; 2017). Val ainda postula que as xícaras são “modernas”, destacando que este é um novo acontecimento.

Outro fator de representação que pode ser encontrado são questões de etnia, pois a autora fala do “branco” e do “preto”, destacando questões sobre o branco e o negro, os pobres e os ricos, como destacaram Freyre (2001) e Ortiz (1985) sobre as questões de etnia e escravidão, 88 que também foi abordada por Souza (2015). A narrativa fílmica representa uma mudança: o pobre, na sociedade brasileira moderna e contemporânea, agora está nos mesmos locais que os ricos. O negro está no mesmo lugar que o branco. A representação acontece devido ao fato de que a filha da empregada prestou vestibular e que, provavelmente, entrará na faculdade. Val relaciona a filha com as xícaras: ambas são “diferentes”. As xícaras são descasadas, a filha da empregada entra na faculdade.

6.2.3 As personagens: Atores sociais e suas relações, caracterização

As personagens e suas caracterizações são ricas fontes de análise da produção fílmica. Aqui, serão estudadas como atores sociais, as relações entre eles, sua caracterização, seus sotaques e figurinos. Serão analisadas as personagens principais do filme, em ordem de importância para este trabalho: Val e Jéssica; e a família, constituída por Bárbara, Fabinho e José Carlos. A análise dos personagens de Val e Jéssica são realizadas separadamente pela riqueza e quantidade de detalhes a serem destacados.

6.2.3.1 Val

A personagem principal, Val, é uma empregada doméstica que veio do Nordeste para tentar a vida em São Paulo, em busca de um trabalho que gerasse renda para sustentar a sua filha, Jéssica. Para isso, ela precisa deixar sua cidade. Exerce sua profissão de empregada doméstica e babá junto a uma família de classe média/alta de São Paulo. Val é uma representação dos Batalhadores e da Ralé, conceitos de Jessé Souza (2010; 2015; 2017), que retratam parte da sociedade brasileira que busca um trabalho para sustentar sua família. Assim como Souza (2015) postula, Val reproduz o trabalho que a classe média não precisa fazer, poupando, assim, seu tempo, para que possa produzir capital social, cultural e econômico de melhor qualidade que a da Ralé e dos Batalhadores.

Outro aspecto mencionado por Souza (2015) trata do contexto de que idosos e filhos, às vezes indesejados, viram “pesos” para os trabalhadores de renda mais baixa. No que se destaca a seu destino, Val precisou despedir-se da filha para buscar um futuro melhor para ambas. 89

O sotaque nordestino de Val é um forte elemento sígnico em sua caracterização, pois sua fala se distancia da língua considerada padrão. Comparado ao sotaque de Jéssica, já é possível encontrar diferenças, pois a filha teve uma educação diferenciada da de sua mãe, o que faz com que não apresente tantos desvios da norma padrão em sua fala.

O vestuário também é caracterizador. A roupa de Val é simples, mesmo nos momentos em que não está trabalhando. Durante o expediente de trabalho, a empregada doméstica utiliza camisetas das viagens ao exterior da família, possíveis peças de roupa que não são mais utilizadas por eles, que as repassam para a empregada doméstica.

Os espaços de circulação de Val normalmente são a cozinha, a lavanderia, o seu quarto. O demais ambientes são utilizados por ela para comunicação com os seus chefes ou para limpeza.

Val, como personagem principal da produção fílmica, relaciona-se com todas as outras personagens. Com relação a sua filha, Jéssica, a empregada doméstica tem certo distanciamento, um relacionamento com pouco afeto em função do pouco convívio. Diferente da relação com Fabinho, o filho dos seus patrões, por cuja educação foi responsável, desde que ele era pequeno. Pode-se afirmar que houve uma substituição do papel de mãe: Val deixou sua filha no Nordeste para cuidar do filho de outra mãe, Fabinho. Durante todo o filme é forte a diferença entre a relação de Val com ambos os “filhos” (Figura 8).

Figura 8 - Relação entre Val e Fabinho

Figura 8 - Relação entre Val e Fabinho

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

90

Além disso, também pode-se relacionar a questão da ausência de Val com sua filha, para cuidar de Fabinho, com questões históricas das amas de leite, que, muitas vezes, necessitavam ausentar-se da alimentação com os seus filhos, para amamentar os filhos dos senhores. Sendo, então, perpetuada as relações de dominação advindas do sistema escravocrata.

Na Figura 8 pode-se confirmar o forte afeto que existia entre ambos. Val o chama diversas vezes de “fio”, apelido carinhoso que lhe deu. Este é outro elemento que demonstra a relação muito próxima, de mãe e filho, entre os dois. O menino a procura, no turno da noite, no quarto da empregada, para receber o carinho e a atenção que sua mãe, Bárbara, não lhe proporciona. Sendo assim, Fabinho procura aquela pessoa com quem ele construiu uma forte relação ao longo de sua vida, e Val oferece o amor e carinho materno que não pode dar à sua filha, Jéssica. Outro destaque para esta cena é a iluminação baixa, que sugere afeto e calma, pois se trata de um momento íntimo e de amor entre as personagens. O enquadramento é fechado e mostra apenas as feições de Fabinho, para destacar o bem-estar que Val proporciona para ele.

Na Figura 9, pode-se destacar que o enquadramento é muito utilizado em “Que Horas Ela Volta?”, para que o espectador tenha acesso a todos os detalhes do ambiente. A iluminação é forte e clara, mesmo quando a cena se desenvolve no turno da noite, como no jantar. Nesse momento, Val está escutando, perto da porta, a discussão da família com o filho. Como possui uma forte relação com Fabinho, fica preocupada com o que pode acontecer com ele.

Figura 9 - Enquadramento da cozinha, sonoridade na sala de jantar

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

91

Nessa cena, após Jéssica ter escolhido ficar no quarto de hóspedes, alguém bate à porta do quarto de Val. O espectador pode esperar que seja Jéssica à procura de sua mãe, porém, quem bate é Fabinho, novamente em busca do afeto de Val. É mais uma cena que mostra a forte relação entre eles. Fabinho acaba dormindo com Val, sempre em busca de uma relação de carinho materno que a mãe lhe nega. Jéssica, por sua vez, não vai em busca de sua mãe, por também ter lhe faltado a convivência com ela.

Outra cena que reproduz o relacionamento amoroso entre Fabinho e Val, e o descaso desta com a filha, ocorre quando Jéssica está sentada, tomando café da manhã, preparado por Bárbara (Figura 10). Val fica constrangida e irritada, ao mesmo tempo, por sua patroa ter servido a mesa para sua filha. Com isso, a empregada doméstica inicia uma discussão com Jéssica, relatando que ela “não tem noção de nada”. O jogo de câmeras mostra ao espectador a bruta diferença de relacionamento entre Fabinho e Jéssica, com relação a Val. A câmera está focada com o mesmo enquadramento da Figura 9, mostrando a discussão entre Val e Jéssica, e inicia um movimento para a esquerda, até chegar à porta da qual sai Fabinho – do quarto de Val -, voltando, aos poucos e seguindo Fabinho, para o enquadramento inicial. Com isso, a empregada doméstica muda completamente o tom de voz, fala amorosamente com Fabinho, serve-lhe o café da manhã e faz carinho em seu cabelo (Figura 10).

92

Figura 10 - Relação de Val com os seus "filhos"

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Já a relação de Val com Bárbara é estritamente profissional, entre empregada doméstica e patroa: por vezes delicada, e outras brusca. Porém, Bárbara não parece dar muita importância para Val, pois sempre a deixa em segundo plano. No momento do filme em que Val precisa contar que Jéssica virá à São Paulo e ficará na casa dos patrões, ela precisa mais de uma vez tentar falar com Bárbara, que não dá importância para o assunto. Quando Val consegue explicar a situação, a patroa logo responde, de forma carinhosa que ela é “praticamente da família” e que, sim, Jéssica será bem-vinda à casa. Bárbara faz questão de pagar o colchão para Jéssica dormir em seu quarto. Aqui já existe um impasse, pois, mesmo sendo “praticamente da família”, Bárbara não sugere o quarto de hóspedes para a filha da empregada, mas, sim, compra um colchão para ambas dormirem no quarto pequeno de Val. No decorrer do filme, a frase “praticamente da família” também não mantém seu sentido denotativo, pois o relacionamento que Bárbara reproduz com a empregada doméstica não é familiar: é estritamente profissional e de subordinação. 93

A relação entre Val e sua filha, Jéssica, passa por transformações ao longo da narrativa. No início, Val não consegue nem reconhecer sua filha no aeroporto, e logo iniciam uma discussão no ônibus, durante o caminho para casa, pois Jéssica não tinha conhecimento de que sua mãe morava no serviço, na casa dos patrões, em um pequeno, apertado e abafado quarto aos fundos da casa. A janela do quarto, que Val abre para mostrar à filha a possibilidade de arejar o espaço, dá para uma área interna, ou seja, não permite de fato ventilar o quarto.

Durante grande parte da narrativa, ambas brigam, discutem, mostrando que são diferentes em ideias e posicionamentos. O diálogo a seguir mostra isso.

Jéssica: “Não sei como tu aguenta, visse?” Val: “Como é que eu aguento o quê?” Jéssica: “Cê tratada desse jeito, que nem uma cidadã de segunda classe. Isso aqui é pior que a Índia.” Val: “Não vem com essas conversas difíceis, esse negócio de Índia não. Tu é metida, isso que tu é.” Jéssica: “Isso tudo é muito escroto, isso sim.” Val: “Óia o palavrão! Que eu não gosto de palavrão. Tu é que se acha. Se acha melhor que todo mundo, tu é superior a todo mundo.” Jéssica: “Não me acho melhor não, só não me acho pior, entendesse? É diferente.” [...] Val: “Me respeite que eu sou a sua mãe!” Jéssica: “Você não é minha mãe, não é nada. Você não me criou!”

É possível, mediante esse diálogo, compreender os posicionamentos distintos de mãe e filha e que Jéssica não suporta as diferentes relações que a família estabelece com relação as duas, em virtude do capital econômico e social que as diferencia. Em determinada cena, Val também diz que Jéssica deve tratar os patrões chamando-os de “dona” ou “doutor”, apenas por estarem em outra classe social que não a delas. Em outro momento, também é possível perceber isso, porém, com um aspecto mais sentimental e de culpa.

Jéssica: “Te achava tão linda. Toda rica, cheia de coisa quando aparecia lá. Tu não sabe tudo o que eu sofri por tua conta.” Val: “Pois tu não sabe o tanto que eu sofri por tua causa.” 94

Jéssica: “Tu sofreu porque quis, não é não? Aparecia lá com tanto de presente na mão, me dizendo isso, me dizendo aquilo, depois me deixava que nem idiota lá perguntando ‘que horas que mâinha volta, que horas que ela volta.” [...] Jéssica: “Puta que pariu, Val, 10 anos. Não voltaste por quê?” Val: “Tu não sabe a minha agonia. Quanto mais eu não voltava, mais eu queria voltar, mas passava o tempo e eu não voltei, aí mesmo que eu não voltava. Vou lhe dizer uma coisa: um dia, Deus me livre, mas um dia tu vai entender direitinho a tua mãe.” Val: “Quem é esse menino aqui?” [mostrando foto do filho de Jéssica] [...] Jéssica: “É meu filho.” [chorando] Val: “Jéssica, eu não tô acreditando nisso, Jéssica. E por que é que tu não me falou, Jéssica?” Jéssica: “Porque a gente não tava nem se falando, como eu ia te contar um negócio desses?” Val: “E deixaste o menino lá?” Jéssica: “Deixei. Como é que eu ia fazer pra estudar, pra fazer vestibular com o menino comigo?” [...] Val: “E não vai trazer o menino?” Jéssica: “Vou trazer. Quando dé, eu trago.”

Mediante essa cena, é possível compreender que, apesar da grande diferença entre elas, tanto educacional como de visão de mundo, ambas ainda estão dentro da mesma esfera social, que é mencionada por Jessé Souza e nas demais teorias sobre a sociedade brasileira. Jéssica não consegue alterar sua vida de maneira íntegra, como Fabinho, por exemplo, tanto pela diferença entre os capitais econômico, social e cultural, como também porque ambas integram o grupo dos Batalhadores (SOUZA, 2010), de modo que o destino de seus filhos tende a ser o mesmo. Nessa perspectiva, o filho de Jéssica também foi deixado pela mãe, que foi a São Paulo em busca de um futuro melhor, porém, desta vez, para fazer vestibular e entrar na universidade.

Relembrando Souza (2015, p. 47), “toda violência simbólica e toda ‘ideologia’ que legitimam a desigualdade fática [...] necessitam que o oprimido pela violência a aceite como legítima”. Ou seja, Val, enquanto desempenha seu papel de oprimida, legitima sua própria desigualdade, que considera normativa. Souza (2017) ainda diz que as classes populares foram humilhadas e enganadas, não apenas abandonadas: foram vítimas de preconceito e escravidão e ainda o são nos dias de hoje. 95

Além disso, o conceito de dignidade (TAYLOR s/d), estudado por Souza (2015), visto como possibilidade de igualdade, por meio de direitos individuais, também pode ser relacionado à personagem Val. Diferente de sua filha, ela não compreende que tem sua dignidade quebrada enquanto indivíduo, no momento em que aceita determinadas regras impostas pela família. O que Souza (2015) destaca e questiona sobre o conceito de dignidade é justamente o que ocorre com a personagem Val e que gera conflitos entre mãe e filha: no Brasil, não é possível que uma pessoa seja considerada digna, devido às situações precárias de trabalho e exploração de classe. Mesmo que a empregada doméstica não tenha conhecimento de sua situação, no momento em que Jéssica surge em sua vida, ela vai tomando, aos poucos, consciência da sua dignidade. Ainda para Souza (2015), na sociedade brasileira, são considerados dignos os “melhores”, ou seja, os indivíduos que possuem bens e poder aquisitivo. Assim, apenas a família seria digna, por isso, também, a distinção e o estranhamento entre ela e Jéssica, já que esta não desfruta dos mesmos bens.

Outro aspecto que deve ser novamente mencionado é o fato de Jéssica ter engravidado, provavelmente, de maneira indesejada. Para Souza (2015), os filhos tornam-se fardos aos pais da classe Batalhadora, Ralé e os excluídos. Ou seja, se analisado o filme, a história de Val se repete com Jéssica e seu filho.

Como mostra a Figura 11, o enquadramento é fechado para um diálogo importante, que necessita mostrar as feições das personagens para reforçar o drama vivenciado. A iluminação não é muito forte, também para trazer um aspecto dramático à cena. A montagem da cena é simples, sem objetos, pois o objetivo é mostrar simplicidade e dar atenção aos sentimentos das personagens, mostrando o desespero diante de uma situação comum entre elas: a ausência do filho.

96

Figura 11 - Jéssica e Val discutem na sua casa

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

A transição que ocorre com Val, já afirmada na análise do Enredo da Piscina, proporciona-lhe um sentimento de liberdade. No momento em que a personagem pede demissão, é possível perceber traços de agonia e aprisionamento, pois ela passou a entender o status de subordinação que lhe era atribuído na casa da família (Figura 12).

Figura 12 - Val pede demissão e volta para casa de táxi, escutando o rádio

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

A cena posterior à conversa entre Bárbara e Val, sobre a demissão, ocorre com enquadramento fechado, em que se destacam as expressões de Val, que são de tranquilidade, 97 liberdade e paz. A iluminação da cena também repassa tranquilidade e esperança, pois o sol ilumina seu rosto, que ocupa a centralidade do enquadramento, o que conota a mudança operada na vida de Val. A sonoridade está relacionada ao rádio, que está ligado dentro do carro. O diálogo do locutor também tem relação com a cena.

Entrevistado: “Eu fico lá até às 21h 30min. Vou perder o horário, aí depois já viu, né? Tenho que passar lá na Vila Romana, ali do ladinho, descer por trás, subir por dentro, cair pra Moema, e ainda tenho que comprar o presente de Natal das crianças.” Locutor: “Mas a gente tem que ter esperança. O que você pretende fazer ano que vem?” Entrevistado: “Olha, se eu pudesse escolher, sabe como é, tá muito calor, às vezes chove demais, aí tem que fechar o vidro do caminhão. Eu queria pedir pro nosso chefe...” [corta a cena]

O diálogo entre o entrevistado e o locutor, no rádio, mostra outro trabalhador brasileiro, provavelmente caminhoneiro, que também faz parte do grupo dos Batalhadores (SOUZA, 2010) e que comenta os sofrimentos e as correrias de sua vida. Porém, aqui, a palavra “esperança” aparece, com as imagens de expressões de tranquilidade e liberdade de Val, que representam a sua história. Apesar de todos os acontecimentos de sua vida, chegou o momento que ela tanto esperou: poder reencontrar e viver sua vida ao lado da filha. Ela batalhou, teve esperança de que esse momento viesse.

Ao chegar em casa, Val se senta, pensa, e pede para Jéssica preparar um café. Sem seguida, inicia o diálogo:

Val: “Jéssica, agora que eu tô mais em casa... Que a gente tá em casa... Eu tava aqui pensando: Vá buscar Jorge. Traga o meu neto. Eu pago a passagem. De avião! Vá buscar o teu filho. Vá.” Jéssica: “Mas tu é apressadinha. Já tá querendo colocar os carros na frente dos bois. Tu vai cuidar dele, mãe?”

98

Figura 13 - Cena final: "Traga o seu filho"

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Essa cena final (Figura 13) monstra a “nova classe trabalhadora” (SOUZA, 2015), pois mãe e filha têm destinos diferentes. O fato de Val poder pagar a passagem para seu neto vir a São Paulo de avião demonstra exatamente o que Cavalcante (2015) diz sobre os espaços de circulação, que agora, também, são destinados à população que antes não tinha acesso a esses locais. Nessa cena, o enquadramento trata de mostrar ambas as personagens, a cozinha da casa e Val segurando a xícara que dera a Barbara, como analisado em Enredo das Xícaras. É muito significativo e representativo a personagem principal segurar a xícara branca, logo após o diálogo de que “é tudo diferente: é preto no branco, branco no preto”. Essa representação demonstra que Val, a empregada doméstica, está ocupando, agora, o espaço que antes lhe era interdito.

6.2.3.2 Jéssica

Filha da empregada, Jéssica foi deixada pela mãe no Nordeste, recebendo dinheiro para sua educação, brinquedos e demais objetos necessários. O filme indica que diversos acontecimentos fizeram com que ela seguisse um caminho diferente do de sua mãe, investisse nos estudos e sonhasse com a universidade e a profissão de arquiteta. Com temperamento forte e com consciência de classe, Jéssica considera injusta e vergonhosa a vida de sua mãe, após sua ida a São Paulo. A caracterização de Jéssica passa a impressão de ser uma adolescente simples, 99 e as roupas demonstram o baixo poder aquisitivo. A adolescente usufrui de todos os espaços de circulação da casa dos patrões, em São Paulo, pois, diferente de sua mãe, não se vê de modo distinto da família que vive no ambiente.

Jéssica tem personalidade forte e, no início da narrativa, demonstra ser metida, exigente e não ter paciência para as regras que sua mãe lhe impõe logo nos primeiros momentos em que estão juntas. A personagem tem posicionamentos fortes e visões de futuro diferentes dos de sua mãe. Se comparada com Fabinho, Jéssica também se mostra diferente, apesar da mesma idade e do fato de ambos desejarem a mesma coisa: entrar na universidade. É possível destacar que Jéssica se encontra na classe dos Batalhadores (SOUZA, 2010), principalmente se comparada a Fabinho, que faz parte da Classe Média. Para chegar onde estão, os dois seguiram caminhos distintos: Jéssica teve acesso a uma educação de baixa qualidade, por isso, precisou estudar mais, já que a adolescente segue estudando em vários momentos da narrativa, preparando-se para o vestibular. Já Fabinho parece usufruir de um caminho mais fácil, e, sendo assim, não aparece estudando, pois, para ele, não é necessário esforço para conquistar o que deseja, é um pressuposto de classe. Ao fim, o destino de ambos se torna diferente e quebra os paradigmas e as concepções culturais aos quais, até então, o Brasil estava acostumado: o filho da classe média perde espaço para a filha dos Batalhadores na universidade pública.

Comparando as trajetórias de Jéssica e Fabinho, pode-se destacar que, com as políticas públicas de inclusão, passam a ser criadas novas classes no Brasil, e, conforme já discutido, surgem os Batalhadores. Para Souza (2015, p. 210), eles não podem ser incluídos entre os privilegiados, mas também não fazem parte dos desclassificados e excluídos, porém, “ela parece materializar uma rápida mudança social que se nutre tanto de setores da pequena burguesia tradicional, que perdeu expressão econômica, política e social, de parte da classe trabalhadora ‘fordista’ tradicional, que perdeu espaço e postos de trabalho”. Ou seja, a nova classe trabalhadora, que, no filme, é representada por Jéssica, tem o direito de conquistar, embora com mais esforço que Fabinho, algumas benesses das classes média e da elite. Com isso, “batalhadores [...] representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo” (SOUZA, 2015, p. 211).

No primeiro momento em que a família se depara com Jéssica, ocorre o seguinte diálogo:

100

Bárbara: “A gente gosta muito da sua mãe, ela é muito importante nessa casa, Então, você também. Fica bem à vontade.” José Carlos: “Já conhecia São Paulo?” Jéssica: “Não, só de foto, internet...” Fabinho: “Ela fala que nem a Val [risadas].” [...] Bárbara: “Sua mãe disse que você veio fazer vestibular, isso?” Jéssica: “É” Bárbara: “Pra que que cê vai fazer?” Jéssica: “Arquitetura” Bárbara: “Arquitetura?” Fabinho: “Na FAU?” Val: “O quê? Qual o problema?” Fabinho: “Não... É só que é uma das faculdades mais difíceis de entrar.” Val: “É difícil, dona Bárbara?” Bárbara: “É, é bem concorrido.” Jéssica: “Tô sabendo” José Carlos: “Mas a escola lá era boa?” Jéssica: “O ensino de lá... Não, não era muito bom não...” Bárbara: “Tadinha.” Jéssica: “Mas eu sempre tive ajuda... E eu conheci um professor de História, João Emanuel, que me ajudou bastante.” Bárbara: “Ele ajudou como?” Jéssica: “Ah, ele tem uma visão muito crítica das coisas, então ele passou pra gente umas coisas bem importantes, pra gente pensar, né? Botou a nossa cabeça pra funcionar, fez teatro...” José Carlos: “Por que você quis Arquitetura?” Jéssica: “É... Tem um monte de coisa assim que eu penso... Eu sempre gostei de desenhar, então já é uma facilidade, né... E aí eu tenho um tio empreiteiro... E aí eu ajudei ele e aprendi muita coisa também, ao mesmo tempo. Aí fiz planta, fiz uma planta de um sobrado lá que até construíram [ruídos da família de ‘olha...’]. Eu acho que é importante eu ter um diploma. E eu acredito que a arquitetura é um instrumento de mudança social.” Bárbara: “Tá vendo? O país tá mudando mesmo, né. Bacana.”

A partir desse primeiro encontro com a família, o espectador entende que Jéssica é diferente de sua mãe e que ela possui instrumentos a que Val não teve acesso, possibilitando que pense de forma diferente. A família não acredita que Jéssica conseguirá entrar na universidade em virtude de seu papel social e da baixa qualidade de estudo que obteve durante 101 o seu curso escolar primário e médio. Isso é perceptível pelas feições da família, quando Jéssica relata a sua vida e o que deseja para o seu futuro.

Como destaca a Figura 14, o plano é aberto abarcando todos os personagens, enquanto a luminosidade é reduzida e o diálogo apresenta um momento de impasse entre eles, já que estão conhecendo um novo elemento que, até então, não estava presente na casa. Todos prestam atenção ao que Jéssica tem para dizer e, então, já acontecem as primeiras impressões sobre o novo indivíduo da casa: a família, inclusive Val, estranham o comportamento de Jéssica, que deseja entrar na universidade, no curso de Arquitetura, profissão considerada elitista para as concepções culturais brasileiras.

Figura 14 - Cena do jantar: o primeiro encontro da família com Jéssica

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Como mencionado, mãe e filha possuem pensamentos, ações e educação diferenciadas. Isso causa um estranhamento e distanciamento entre elas, e, também, entre elas e a família, já que, no ambiente familiar, agora encontra-se uma estranha, que não respeita as regras impostas pelos patrões, que já estavam acostumados a outra realidade, que durou dez anos desde que Val empregou-se e passou a morar na residência. Outro elemento que demonstra um impasse entre mãe e filha, que sempre gera discussão, pode ser percebido no seguinte diálogo.

Jéssica: “Não sei onde tu aprendeu a falar essas coisas: não pode isso, não pode aquilo... Tá escrito em livro, como é que é? Quem te ensinou? Tu chegou aqui e ficaram te explicando essas coisas?” Val: “Isso aí não precisa explicar não. Isso aí a pessoa já nasce sabendo: o que pode e o que é que não pode. Parece que tu é de outro planeta.” 102

Aqui, é possível verificar as distintas visões de mundo entre mãe e filha, decorrentes de educação e do fato de serem de gerações diferentes, com ideologias e até mesmo perspectivas de futuro antagônicas. Jéssica logo questiona a mãe ao perguntar “qual livro está escrito” o que pode e o que não pode fazer. Val responde que não é preciso explicar. Confirma-se, assim, o posicionamento dos teóricos de que o próprio indivíduo que está inserido entre as classes da Ralé e dos Batalhadores já sabe o que deve ou não fazer. Na verdade, apropriando-se dos conceitos teóricos discutidos no capítulo de sociedade brasileira e de cultura deste trabalho, é possível compreender que esta é uma concepção cultural brasileira que está enraizada e vem desde os nossos ancestrais (LARAIA, 2009; CUCHÉ, 1999). A população atual apenas reproduz esse comportamento que, para Ortiz (1985) e Souza (2012; 2015; 2017), é fruto da escravidão no Brasil. Os escravos, quando libertos, não foram inseridos na sociedade de maneira íntegra, de modo que, até hoje, as classes populares seguem comportamentos e posições culturais de seus ancestrais com relação à escravidão.

Esses pensamentos e essas concepções de Val sobre “o que é certo e o que é errado” vão ao encontro do que Souza (2015) reconstrói, a partir do conceito de “hierarquia valorativa”, com relação à sociedade brasileira. O autor reflete sobre as construções das concepções de cada indivíduo, ou de uma sociedade, com o objetivo de possibilitar a erudição e as consequências das suas ações. O comportamento de Val evidencia que não houve aprendizado sobre o que é certo ou errado: trata-se de uma construção social a partir das concepções culturais da sociedade brasileira. Souza (2015) diz que não existem indivíduos livres, mas que a sociedade determina “escolhas pré-escolhidas”. Sendo assim, não existem valores subjetivos. Por isso, não é Val quem dita suas concepções de certo e errado, mas a própria sociedade em que ela está inserida cria esse plano moral que estabelece o papel social da empregada doméstica. E esse plano moral advém, segundo Ortiz (1985), do momento sócio-histórico do Brasil da escravidão e da colonização. Além disso, Ortiz (1985) ainda menciona que toda a sociedade cria ferramentas para “mascarar” as relações de dominação. Para Souza (2015), essa consideração vem ao encontro da relação sócio-histórica da colonização.

103

Figura 15 - Jéssica e Val na piscina da casa

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

No enquadramento da Figura 15, é possível analisar ambas as personagens, lado a lado, em um plano aberto, com foco em Jéssica e Val. O assunto é a piscina, pois Jéssica não pode aceitar o convite para nadar. As duas personagens são semelhantes com relação a vestuário, movimentos, olhares e maneira de agir. Porém, uma está trabalhando, aguando as plantas e a outra desfruta de um momento de lazer. As vestimentas também destacam isso, já que Val usa seu uniforme e Jéssica veste um short jeans e uma blusa solta. Os traços faciais demonstram que Val está discutindo com Jéssica e que não tem paciência para explicar as regras para a sua filha. Jéssica, por sua vez, expressa desdém, pois já está cansada de ver a mãe em estado de subordinação e não quer mais fazer parte disso.

Outra questão que deve ser levada em consideração, na análise das diferenças entre Jéssica e Val, diz respeito à relação de ambas com José Carlos, o patrão. Val, para ele, é uma subordinada, que deve fazer tudo: a empregada leva café da manhã em sua cama, traz água, liga a luz, limpa a mesa, traz o sorvete. Quando chega à casa, Jéssica é tratada por José Carlos como uma convidada especial, uma hóspede. Ele lhe mostra a casa, serve-lhe o melhor sorvete. A relação dele com as duas é mostrada de forma impactante nas cenas em que se encontram os três: ele fala delicadamente com Jéssica, e, ao mesmo tempo, trata Val com desdém: ordena, por exemplo, que ela sirva sorvete para Jéssica e ligue as luzes da piscina para que Jéssica veja o espaço iluminado.

104

Figura 16 - Patrão e as relações entre Jéssica e Val

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Na cena da Figura 16, José Carlos mostra a casa para Jéssica, recém-chegada a São Paulo, e a trata como convidada especial. Ele chama atenção para os detalhes da casa e conversa sobre livros e outros assuntos considerados de capital cultural elevado – se comparado ao conhecimento de Val. Jéssica menciona que a casa possui um “quê modernista”, refletindo que a casa tinha um estilo modernista: moderno, mesmo sem ser. Este momento também destaca que a própria família deseja ser moderna, mas com ações que ainda são relacionadas a escravidão no Brasil. No mesmo momento em que José Carlos conversa com Jéssica, ele trata Val como sua subordinada: pede para acender as luzes e pede água. Outros momentos semelhantes a este acontecem quando as três personagens estão em cena.

Nos enquadramentos seguintes da cena da Figura 16, Jéssica se depara com uma estante de livros e, com curiosidade, passa a olhar os títulos que a família possui. José Carlos empresta um livro para Jéssica, o qual ela teria lido, mas não teve acesso a ele anteriormente devido a sua posição no capital econômico e social. Outro fato, relacionado ao capital cultural, ocorre no momento em que José Carlos presenteia Jéssica com um de seus quadros, mencionando que deixou de pintar com o passar dos anos. 105

Figura 17 - Jéssica e José Carlos em paralelo

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

O enquadramento da Figura 17 mostra Jéssica sentada à mesa da cozinha, e, na sala de jantar, José Carlos. A construção desta cena demonstra que ela está em primeiro plano, e ele, ao fundo, em paralelo. Este enquadramento reforça que Jéssica, embora de origem humilde, encontra-se em paralelo em sua forma de ver o mundo da outra classe: ou seja, ela não tem a mesma consciência de classe da sua mãe.

Já a Figura 18 mostra novamente o enquadramento da cozinha, com a porta aberta, com detalhes da sala de jantar. Desta vez, quem está à mesa é José Carlos e Jéssica, a convite do patrão. Nessa imagem, é possível perceber que Val, como mencionado, serve José Carlos e Jéssica à mesa. Porém, somente pelos diálogos é possível perceber isso, pois a imagem não mostra Jéssica, apenas José Carlos e Val.

106

Figura 18 - José Carlos e Jéssica na sala de jantar, servidos por Val

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

O enquadramento não tem o objetivo de mostrar Jéssica sendo servida por sua mãe, Val. Apenas por meio do diálogo e da sonoridade da cena é possível perceber esse acontecimento. Ao mesmo tempo, é José Carlos quem determina o que Val deve fazer e servir, e é o que a cena mostra ao espectador. O sorvete é um elemento que pode ser destacado na análise, já que o patrão o serve para Jéssica, que se sente na liberdade de tomá-lo quando sentir vontade, porém, o diálogo a seguir mostra que Val não concorda com isso.

Jéssica: “Me dá um pouquinho aí, Val [do sorvete].” Val: “Este sorvete é de Fabinho. [sussurrando]” Jéssica: “Mas ele falou que eu podia pegar.” Val: “Quando eles falam, quando eles oferecem alguma coisa que é deles, é por educação. Porque eles têm certeza que a gente vai dizer ‘não’.”

Novamente, Val estabelece regras para Jéssica, as quais evidenciam que, sob o olhar da empregada, ambas são diferentes da família e, por isso, não podem usufruir das mesmas benesses. Isso se torna evidente quando Jéssica furta o sorvete da geladeira para comer e Bárbara a encontra na cozinha: as expressões de frustração de Jéssica e o descontentamento e a fúria de Bárbara causam um impacto negativo e de tensão na cena. A patroa não considera Jéssica uma visita, uma hóspede, pois ela é filha da empregada e deveria se portar como a mãe. Bárbara ainda finaliza a cena com a seguinte afirmação: “é por isso que o sorvete do Fabinho acaba”. 107

6.2.3.3 A família; Bárbara, Fabinho e José Carlos

A personagem da patroa, Bárbara, é destacada como uma pessoa de comportamento elitista: sempre anda com roupas formais, tecidos delicados, está sempre maquiada, com um corte de cabelo moderno e calça sapatos de salto alto. Bárbara tem temperamento e posições diferentes de seu marido, José Carlos, o que se evidencia no tratamento que concedem à Jéssica, a filha da empregada. A patroa, como “dona da casa”, usufrui de todos os espaços de circulação, sendo os menores deles a cozinha e o quarto da empregada, do qual apenas Val desfruta. Bárbara possui um trabalho mais voltado para sua realização pessoal, voltado à área da Moda: não é um emprego que permita pagar as despesas da casa.

Figura 19 - Bárbara recebe a notícia de que Jéssica dormirá no quarto de hóspedes

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

A Figura 19 destaca o momento em que Bárbara recebe a notícia de que Jéssica, a filha da empregada recém-chegada, dormirá no quarto de hóspedes. Até esse momento, o espectador não imagina que isso pudesse gerar desconforto para a patroa, pois a mesma tratou Jéssica bem, presenteando-a com flores ao chegar à casa. A partir daí, é possível destacar que Bárbara não lida bem com o fato de Jéssica ficar no mesmo ambiente que a família: o local dela deveria ser no quarto da empregada, com Val, e conviver o menor tempo possível do outro lado da casa, com os indivíduos de maior capital econômico. A cena, com um plano fechado, destaca as 108 expressões da personagem diante da notícia. Com isso, é estabelecida a primeira tensão no ambiente da casa.

A relação entre patroa e empregada, no início do filme, é naturalizada conforme os padrões culturais brasileiros, já discutidos anteriormente, e cada indivíduo se posiciona em seu ambiente, conforme os papeis sociais atribuídos a ele. Na Figura 20, é possível obter um exemplo disso: a empregada doméstica se encontra ao fundo da cena, de modo que, por não possuir os capitais necessários para estar naquele ambiente, Val encontra-se afastada, limitando-se a observar a entrevista com sua patroa, Bárbara.

Figura 20 - Bárbara é entrevistada

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

O foco da imagem encontra-se na câmera de filmagem da entrevista, entrevistador, mesa e em Bárbara. Em segundo plano, encontram-se diversas pessoas da equipe de filmagem e, por fim, mais ao fundo, pode-se perceber Val com o pacote de presente para a sua patroa, que está de aniversário. A partir da análise do enquadramento e da disposição de objetos e personagens na cena, é possível afirmar que se trata de disposições de papeis sociais impostos pela cultura brasileira. A empregada doméstica é vista como integrante da classe dos Batalhadores, os quais são vistos como não integrantes do restante das classes sociais no Brasil, mesmo que estes, segundo Souza (2017), sejam maioria na população brasileira.

A relação de Bárbara e seu filho, Fabinho, é conturbada e distante. Enquanto Val passou os anos de criação do menino fortemente presente, Bárbara parece não ter participado da infância do menino, pela forma fria com que ambos se relacionam. Como mencionado 109 anteriormente, Fabinho recorre a Val sempre que precisa de carinho ou mesmo contar suas frustrações. Na cena em que sofre o acidente e fica na cama de seu quarto, Bárbara chora e pede a presença do filho, já que o mesmo não foi visitá-la para prestar seus sentimentos com relação ao acontecido com ela. Ela o chama para sair da piscina e cobra: “Você não vem me ver?”. No final da narrativa, quando Fabinho não é aprovado no vestibular, Bárbara percebe que quem o seu filho procura para consolo é Val, não ela. Após dez anos de convivência entre empregada e filho da patroa, ela percebe que não tem a mesma proximidade com Fabinho e resolve mandá- lo para um intercâmbio, a fim de afastá-lo de Val.

Para Bárbara, Jéssica é um elemento que causou tensão na casa da família. Desde que chegou, a filha da empregada não soube seguir as regras estabelecidas entre as classes e papeis sociais, e isso causou transtornos para Bárbara, que se tornou a principal “vilã” da história. Nas cenas de encontro entre as duas personagens, é possível perceber as feições de tensão e nojo de Bárbara para com Jéssica. Quando mais personagens estão na cena, isso se torna menos perceptível, mas quando as duas se encontram na mesma cena, os enquadramentos e planos ficam fechados para demonstrar os sentimentos de ambas, como mostra a Figura 21.

Figura 21 - Jéssica e Bárbara se encontram na cozinha

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Fabinho, por sua vez, é uma personagem que demonstra a fraqueza de relacionamentos entre a família, pois ele não possui uma relação forte com seus pais. O menino aparenta ser um adolescente simples, apesar da sua posição social: veste roupas casuais, tem cabelo “bagunçado” e traços verbais e movimentos considerados coloquiais e despojados. O 110 adolescente, diferente de seus pais, parece não se importar com a presença de Jéssica na casa, pois o pai a trata bem, e Bárbara a recebe como um novo problema para a sua vida. Fabinho trata Jéssica como uma igual, apesar de mencionar para Val que a adolescente tem comportamentos considerados “estranhos” para sua realidade, que ela é segura demais. Fabinho circula por todos os ambientes da casa, inclusive no quarto da empregada.

Para análise, a personagem Fabinho aparece em segundo plano para fortalecer as discussões centrais da produção fílmica, detalhando os relacionamentos entre a empregada e a patroa; e da empregada com sua filha. O adolescente destaca, também, a diferença entre classes sociais, se comparado a Jéssica, e, também, a luta dos Batalhadores para atingir o mesmo patamar da classe média, conforme os estudos de Jessé Souza (2015; 2017) indicam, e os dados de Cavalcante (2015) demonstram.

No momento em que Fabinho não é aprovado no vestibular e Val entra no quarto, aos pulos, informando o sucesso de Jéssica na prova, é possível perceber uma possível igualdade entre os jovens, apesar de suas distintas classes sociais. No momento em que Bárbara, sua mãe, comenta “ela não fazia outra coisa, só estudando”, um forte elemento pode ser destacado: Fabinho não estudou em qualquer momento da narrativa, e Jéssica, sim. Isso vai de encontro ao que Souza (2015) menciona sobre os Batalhadores, de que eles não têm tempo para estudar. Porém, para que o Batalhador possa ascender, ele precisa ir além e, como o nome já diz, “batalhar” mais para conseguir alcançar aquele jovem da classe média ou elite. Foi o que aconteceu com Jéssica e Fabinho, nesta relação dos estudos e do vestibular, porém, com um resultado diferente, que, segundo os estudos de análise cinematográfica, menciona que são precisos determinados elementos que possam gerar impacto ao espectador.

José Carlos não trabalha. Seu sustento – e de toda a família – provém de uma herança que ele recebeu. Isso converge para o que Souza (2015) afirma sobre o capital econômico e cultural, que são heranças familiares, muitas vezes, e fazem com que o indivíduo não tenha a necessidade do esforço que a Ralé e os Batalhadores têm para estar em seu papel social.

O pai tem aparência depressiva, fica muito tempo em seu quarto, não segue a mesma rotina da família, pois almoça e acorda em horários diferenciados, fica em casa grande parte do tempo, fumando. Em conversas com Jéssica, ele relata que parou de trabalhar com arte por falta de vontade e estímulo. Suas vestimentas são simples, seu sotaque mostra polidez e suas conversas grande riqueza de capital cultural.

111

Figura 22 - José Carlos leva Jéssica para conhecer a cidade de São Paulo

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

No momento em que Jéssica é inserida na família, José Carlos desperta de sua depressão: acaba encontrando, na adolescente, uma forma positiva de viver. O pai quer tratar Jéssica de modo igual aos outros membros da família, porém o faz somente quando estão a sós: na presença de sua esposa e filho, tenta ser neutro nas ocasiões e posições com relação à menina (Figura 22).

Figura 23 - José Carlos convida Jéssica para sentar-se e comer na mesa de jantar da família

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

112

Na Figura 23, com enquadramento e foco voltados para as personagens de Jéssica e José Carlos, é possível perceber a alegria do pai com relação à jovem. Nesse momento, ambos são considerados iguais e ele deseja que ela se sinta à vontade em sua casa. Oferece-lhe o sorvete especial de Fabinho, permite que ela sente no lugar de Bárbara à mesa e desfrute dos espaços de lazer. É nessa cena, também, que se nota a rígida forma com que José Carlos trata a empregada doméstica, e a diferença com a filha da empregada, que possui um capital cultural mais elevado que a mãe e, por isso, pode usufruir de mais espaços de circulação da casa, como se constata na análise.

6.2.4 Espaços de circulação

Na análise dos espaços de circulação do filme “Que Horas Ela Volta?”, serão considerados os principais elementos de representação cinematográfica postulados por Xavier (2005) e Aumont et al. (2012). Elementos como enquadramentos, iluminação, montagem e sonoridade são destaques de cada ambiente e de cenas, especificamente selecionadas para esta análise. Os espaços de circulação foram selecionados em ordem de importância na geração de impacto sobre o tema central do filme, ou, ainda, os que possibilitaram uma discussão de acordo com as teorias discutidas neste trabalho. Os ambientes a serem discutidos são, primeiramente, o quarto da empregada, a cozinha, o quarto de hóspedes e a sala de jantar

6.2.4.1 Quarto da empregada

Este é um espaço de circulação da casa que apenas quatro pessoas acessam durante todo o enredo: Val, a dona do quarto, Fabinho, Jéssica e a outra empregada da casa. Em relação ao tamanho da casa, o quarto da empregada é pequeno. Na Figura 24, é possível ver a planta da casa e como este ambiente é reduzido, distante e deslocado do restante da casa. A mão de Jéssica, na imagem, indica o espaço em que o quarto da empregada se encontra na planta.

113

Figura 24 - Planta da casa da família

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

No quarto da empregada, é possível encontrar uma cama de solteiro, um pequeno armário, televisão antiga, cômoda, ventilador antigo e diversos utensílios domésticos, ainda em caixas. Val destaca o espremedor de frutas para suco, informando a Jéssica que o comprou para que ambas possam montar uma casa juntas. É possível encontrar, também, diversas vezes, um espremedor de frutas na cozinha da família, em um dos enquadramentos muito utilizados durante a filmagem da produção fílmica, conforme destaca a comparação na Figura 25.

Figura 25 - O espremedor de laranja pode ser encontrado em ambos ambientes

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015). 114

O ambiente em que a empregada vive mostra-se, em todas as cenas, pouco iluminado. A sonoridade das cenas no quarto da empregada é constituída, apenas, pelos diálogos, e, muitas vezes, pelo barulho do pequeno e antigo ventilador, utilizado para refrescar o ambiente. Entende-se que o local é quente, pois Val e Jéssica relatam que passam calor. O único instrumento de climatização do quarto, além do ventilador, é uma janela, que está localizada próximo à cama, que esse abre para o interior de outro espaço e não para a rua.

Entende-se, assim, que Val se espelha nos patrões e em seus objetos domésticos para projetar sua futura casa. O espremedor de frutas é um objeto simbólico para que o espectador compreenda quais são as características que Val almeja para sua casa e que, para ela, a única possível realidade de vida e o único exemplo que ela tem em São Paulo é a família. Por isso, ela os respeita tanto, pois, para ela, eles são tudo o que ela deseja ser e ter. O único referencial de sucesso, para Val, é a família em que ela trabalha: por isso é tão importante conquistar bens idênticos aos deles. Segundo Souza (2015), não é apenas conquistando e adquirindo bens, em forma de capital econômico, que o indivíduo ascenderá socialmente, mas o capital social e o cultural também são de extrema importância para a alteração deste estado social.

Outro aspecto que deve ser analisado, com relação ao quarto da empregada e à casa, é a diferença do tamanho dos ambientes. A produção fílmica “Que Horas Ela Volta?” mostra as desigualdades sociais da sociedade brasileira a partir dos papeis sociais. A família, por usufruir de capital social, cultural e econômico, tem direito a um grande espaço. Já a empregada doméstica deve ser afastada da parte central da casa, pois a ela cabe apenas aquele espaço. O restante lhe é interditado, como destaca Freyre (2001) em Casa Grande e Senzala.

Para Souza (2015), Excluídos são aqueles indivíduos que estão abaixo da sua condição de dignidade, vivendo em condições sub-humanas. Pode-se compreender, então, Val como parte dos Excluídos, tanto por estar afastada do restante da casa, e, também, e principalmente, por estar em uma condição precária de moradia, abaixo da condição digna de um ser humano. Sua filha, Jéssica, menciona diversas vezes e a questiona por não compreender como ela consegue viver em condições como essa, ou seja, a dignidade de Val é questionada por sua filha, já que a própria empregada doméstica nunca contestou sua vida.

115

6.2.4.2 Cozinha

A cozinha é um dos espaços com mais destaque no filme, já que a personagem principal é a empregada doméstica. O enquadramento da Figura 26 é o mais utilizado, e tem o objetivo de mostrar todo o local, com plano aberto. A luminosidade sempre é alta, os objetos são brancos, para mostrar mais clareza ao ambiente e passar a impressão de limpeza. Além dos utensílios domésticos, encontra-se, na cozinha, uma pequena mesa para lanches rápidos da família e, principalmente, para que os funcionários da casa tenham um local para realizar suas refeições sendo também este espaço em que Jéssica deve estudar.

Figura 26 - A cozinha da família

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Outro enquadramento muito utilizado nas filmagens é o apresentado na Figura 18, que tem o objetivo de comparar ou mostrar as duas peças: a sala de jantar e a cozinha. Trata-se de um espaço que permite a Val participar dos eventos, mesmo que apenas escondida atrás da porta ou parede.

Um aspecto de grande relevância para a análise deste espaço de circulação é quando, no seguinte diálogo, Bárbara menciona que Jéssica não deve passar da cozinha:

Bárbara: “Ô Val, pode não parecer, mas essa casa ainda é minha. Vem aqui, eu quero falar com você.” [...] 116

Bárbara: “O vestibular é amanhã, certo?” Val: “Sim, senhora” Bárbara: “E depois disso, ela [Jéssica] vai embora, correto?” Val: “Ela vai, sim, senhora.” Bárbara: “Então, enquanto ela estiver aqui, queria te pedir para prestar atenção para deixá-la da porta da cozinha pra lá, tá bom?”

Na última frase deste diálogo, quando Bárbara menciona a cozinha, entende-se que é um local para os funcionários da casa, ou para indivíduos de classes baixas, como a filha da empregada, Jéssica. Por lhe causar transtornos, ela não consegue esconder que se sente tensionada com a presença da moça na casa, nos ambientes de circulação da família, amigos e parentes.

A partir de então, é possível resgatar os conceitos de Souza (2015), Freyre (2001) e Buarque de Holanda (2014) sobre o culturalismo conservador brasileiro, que segue atuando na sociedade brasileira, apesar das transformações. Como postula Souza (2015), essa teoria atua “como ‘legitimação científica ad hoc de teses políticas extremamente conservadoras, que objetivam veicular e naturalizar uma visão distorcida da sociedade brasileira” (SOUZA, 2015, p. 90). Também pode-se relacionar a situação aos conceitos de Ortiz (1985) sobre o conservadorismo brasileiro, que tem suas raízes na posição de colonizador, que procura manter a tradição, cujo objetivo é o de assegurar, às classes da elite e média, o poder.

Quando Bárbara comenta que não deseja mais que Jéssica circule pelos ambientes da família, quer assegurar o poder que ainda lhe pertence. Ela ainda destaca, no início do diálogo, que “pode não parecer, mas essa casa ainda é minha”, afirmando que está na posição de colonizadora daquele ambiente. Dessa maneira, é possível afirmar, conforme Ortiz, que “explica-se dessa forma o horror com que os brasileiros encaram todo projeto de mudança social” (ORTIZ, 1985, p. 26).

6.2.4.3 Quarto de hóspedes

O quarto de hóspedes é outro espaço de circulação significativo no filme, já que, inicialmente, José Carlos libera o ambiente para que Jéssica possa dormir e estudar, e, mais tarde, após diversos momentos de tensão entre a filha da empregada e Bárbara, pelo 117 comportamento não esperado – entre colonizador e colonizado –, a adolescente é convidada a se retirar do local, sob a desculpa de que serão recebidas novas visitas na casa. Posteriormente, Jéssica perde também o direito de circular nos espaços da família, sendo-lhe destinada “a porta da cozinha pra lá”.

Figura 27 - O quarto de hóspedes: Jéssica conhece o ambiente

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Na Figura 27, é possível verificar que o quarto é amplo, harmonizado e confortável, diferente do quarto de Val. Quando se senta na cama, Jéssica verifica que o colchão foi pouco utilizado, sendo assim, compreende-se que o quarto tem pouco uso. Nesse sentido, pode-se questionar: por que um quarto grande é pouco utilizado e o quarto de Val, da empregada doméstica, que é utilizado todos os dias, é pequeno, pouco arejado e com baixa luminosidade? Novamente, é possível relacionar as teorias sobre o culturalismo conservador brasileiro, que tende a tradicionalizar diversos aspectos da colonização; e o quarto da empregada, com relação ao conceito de dignidade (TAYLOR, s/d), já que Val não tem direito e não é digna a ter um quarto maior, climatizado e com melhor luminosidade. A empregada doméstica insere-se no grupo dos Excluídos e Batalhadores. Assim sendo, seu espaço é fora da casa, em um ambiente anexo.

118

6.2.4.4 Sala de jantar

A casa de José Carlos, Bárbara e Fabinho aparenta ter três espaços de refeição, pois o filme demonstra três mesas diferentes, em distintos ambientes: a cozinha, com a pequena mesa para refeições rápidas da família e para os funcionários; a sala de jantar, que será denominada de sala 1, cuja mesa é de madeira; e a sala de jantar 2, cuja mesa é branca. A sala de jantar 1 é o ambiente principal para refeições realizadas pelos membros da família. Isso acontece, por exemplo, quando Jéssica chega a São Paulo. Na Figura 28, verifica-se que a sala possui elementos e objetos de decoração de maior valor aquisitivo, sendo um espaço de lazer e comunicação entre a família. Porém, a imagem demonstra que eles não possuem uma boa relação, pois todos estão entretidos com seus smartphones e não se comunicam entre eles.

Figura 28 - Sala de jantar 1

Fonte: “Que Horas Ela Volta?” (2015).

Como foi apresentado na Figura 23, outra mesa de jantar e outro espaço destinado à alimentação existe na casa. Ao longo do filme, entende-se que são ambientes voltados apenas à família. Quando Jéssica é convidada por José Carlos para sentar-se à mesa e acompanhá-lo na refeição, Val se choca, pois, de acordo com suas concepções culturais, este não é o lugar da filha da empregada ou mesmo da empregada.

Novamente, destaca-se o discurso das concepções culturais de cada personagem, que é baseado nos acontecimentos sócio-históricos brasileiros, que ditam o que é certo e errado, o que é moralmente aceitável ou não para cada posição social. Convém assinalar que a própria 119 sociedade brasileira cria um plano moral que estabelece as posições que cada cidadão pode ocupar.

120

7 CONCLUSÃO

A cinematografia permite ao pesquisador acadêmico discutir diversas reflexões e apontamentos nas mais variadas áreas de estudo. O efeito de realidade que o cinema propõe abre espaço para que estudos de Representação sejam realizados, possibilitando que questões acerca de sociedade, nação e povo, por exemplo, sejam objeto de debate e ferramentas de análise. “Que Horas Ela Volta?”, compondo as produções nacionais, possibilita olhares de representação da sociedade brasileira contemporânea, com relação às posições sociais, culturais e seus processos que buscam sustentar a história do país, a partir das concepções culturais desenvolvidas. Cada cena, cada enquadramento, cada diálogo, conta uma história e representa a nação brasileira de alguma forma: seja por distinção de classes, acesso aos capitais cultural, social e econômico ou sobre a tentativa de mudança social.

O filme discute a luta pela mudança social que o Brasil tenta realizar, a barreira e os desafios para combater a desigualdade social no país. O que a produção não mostra e que a teoria deste trabalho é capaz de aplicar são as importantes ferramentas que permitem, não a ascensão de classes, mas uma possível quebra do que se tornou, por anos, uma sequência ou espécie de herança das classes populares no Brasil: a filha da empregada precisa, no seu futuro, ser empregada também? Podemos, enfim, quebrar esse ciclo e permitir-lhe ingressar em uma universidade - espaço que não lhe é habitual -, para que sua geração tenha outras oportunidades?

A partir da análise desenvolvida nesta pesquisa, compreende-se que a família representa a sociedade brasileira ou a classe média/alta, além da história conservadora do Brasil, que vem desde a colonização, passando pela escravidão e pela dificuldade do povo negro e do pobre de usufruir dos mesmos espaços que brancos e ricos. Também traz a discussão do que vem a ser moderno para os dias atuais no Brasil, abordando pensamentos oriundos da escravidão e de séculos passados.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi necessário buscar teorias que sustentassem este pensamento: iniciou-se com uma busca pelo conceito de cultura e de representação para, posteriormente, historiografar a sociedade brasileira, sob uma perspectiva sociológica e histórica. Com isso, foi possível compreender, a partir dos primeiros intelectuais que debateram sobre o assunto, como foram criadas as categorias de classe, distinção e posições sociais no Brasil. Com base nos estudos de Jessé Souza, uma aplicação da história do Brasil na sociedade contemporânea foi realizada. A leitura dos estudos de Souza, Ortiz e dos demais autores 121 possibilitou estreita ligação com o filme. Cada palavra, pensamento e discussão acarretou reflexões sobre a produção fílmica, as cenas e os enquadramentos.

Além disso, foi realizado também um breve relato sobre o cinema mundial e o nacional, para entender o objeto da pesquisa e, então, realizar a análise do filme “Que Horas Ela Volta?”. Por meio disso, pode-se constatar que a produção cinematográfica permite ao espectador posições sociais e relações de subordinação de acordo com as distinções sociais, na casa da família. Os enquadramentos, a sonoridade, a iluminação e a montagem instauram igualmente, no plano discursivo, representação dos processos e das manifestações culturais da sociedade brasileira contemporânea. Também, “Que Horas Ela Volta?” possibilita debater sobre questões atuais da relação de classes no Brasil dos dias de hoje.

A proposta do filme em desenvolver o papel de “mãe” também foi um fator a ser levado em consideração. Como mencionado na análise, em que se comparou a história de Val com as amas de leite, é possível perceber que, além de questões reveladas no filme – em que a mãe precisa sair de perto de sua filha para ter melhores condições financeiras para o sustento de ambas -, pode-se relacionar isso com as mães do Brasil, com a licença-maternidade, de 120 dias, quando o aleitamento materno deve ser exclusivo para, após, distanciar-se da amamentação, entregando seu filho a um segundo cuidador. Com isso, em alguns casos, principalmente nas classes baixas, o desmame precoce acontece mesmo que o Ministério da Saúde advirta que o aleitamento materno deve ser o principal alimento do bebê até os 12 meses, e a amamentação deve ser realizada até os 2 anos ou mais da criança.

“Que Horas Ela Volta?” chega a demonstrar que, apesar de Jéssica usufruir de outra consciência social que sua mãe, em partes, seus caminhos seriam semelhantes, caso Val não tivesse, também, despertado para a consciência de sua subordinação. Afinal, Jéssica também precisou se distanciar de seu filho para conquistar uma vida econômica, social e cultural melhor para ela e seu filho, assim como sua mãe, porém, em outras condições. No momento em que Val desperta e passa a ter consciência de classe, Jéssica finalmente rompe com sua herança familiar: junto de seu filho, ela poderá promover a mudança social em sua família.

Bárbara, apesar de não precisar, mantêm distância emocional e física de seu filho, deixando-o aos cuidados de Val. No momento em que percebe, dez anos depois, que o carinho e o amor que nunca foi construído entre mãe e filho fez falta, Bárbara sente ciúmes de Val. Fabinho, no decorrer do filme, parece não se importar com a presença de sua mãe. Exemplo disso ocorre quando ela sofre o acidente e ele sequer deseja vê-la, pois pula na piscina e vai 122 brincar com seu amigo. Quando Bárbara toma consciência da falta de afeto entre ela e Fabinho, sente ciúmes de Val e afasta ambos: já que seu filho não passou no vestibular, deve passar um tempo no exterior, com novas experiências e longe da empregada doméstica.

A relação de Fabinho e Jéssica, quanto ao vestibular, pode não ser semelhante ao que ocorre na realidade brasileira, já que adolescentes de nível de Fabinho têm acesso a cursos extraclasse, e, em parte, muitos conseguem ingressar na universidade. Porém, histórias como a do filme têm se tornado realidade, mas o que a diretora Anna Muylaert ainda afirmou, em uma entrevista, é que “o filme estava mais enraizado na realidade do que eu achava”27. Ou seja, apesar de usufruir de ferramentas para causar impacto ao espectador, como neste caso, em que a própria diretora disse que gostaria apenas de dar um fim diferente para a filha da empregada e acabar, de vez, com essa herança familiar, o filme aproximou-se da realidade brasileira, em que as classes populares têm oportunidades semelhantes às dos adolescentes da classe média. Mesmo assim, nesta pesquisa, foi demonstrado, segundo Souza (2015), que esta parte da sociedade brasileira, para se colocar no mesmo – ou próximo ao - status da classe média, precisa batalhar muito mais: estes são os Batalhadores brasileiros.

Outra questão sobre a qual é possível refletir é se o filme é atual ou não. O país, nos últimos anos, passa por diversas mudanças sociais, políticas e de diferentes posicionamentos. Pode-se afirmar que o Brasil está em guerra consigo mesmo? Apesar de “Que Horas Ela Volta?” ter sido lançado em 2015, o filme já pode ser considerado uma fonte histórica de uma época em que mudanças sociais eram propostas, mesmo que em pequena escala. Se elas deram certo ou não, não nos cabe julgar, mas o filme pode servir de auxílio, hoje e no futuro, para representar o Brasil de uma época em que a Universidade foi aberta às classes desfavorecidas, mesmo sabendo que essa não é a única ferramenta necessária para a igualdade social. Como Jéssica nos mostra no filme, outros fatores possibilitaram que ela desejasse um diploma: “um professor que colocou a nossa cabeça para pensar”28. Quem sabe?

27 Disponível em: . Acesso em: 12 jun 2019. 28 Frase de Jéssica, durante a cena da sala de jantar, quando chega pela primeira vez na casa dos patrões de Val (nota da autora). 123

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 1947. Disponível em: . Acesso em: 1 mai 2019. ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano. São Paulo: Summus Editorial, 1983. AUMONT, Jacques et. al. A estética do filme. São Paulo: Papirus editora, 2012. BADIOU, Alain. O cinema como experimentação filosófica. In. YOEL, Geraldo (org.). Pensar o cinema: imagem, ética e filosofia. São Paulo: Cosac Naify, 2015. BALLERINI, Franthiesco. Cinema brasileiro no século 21: reflexões de cineastas, produtores, distribuidores, exibidores, artistas, críticos e legisladores sobre os rumos da cinematografia nacional. São Paulo: Summus, 2012. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes Editores, 2004. BAZIN, André. O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014. BOMFIM, Manoel. A América latina: males de origem. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 mai 2019. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. CASETTI, F.; DI CHIO, F. Como analizar un film. Barcelona, Buenos Aires; México, Paidós, 1991, p. 278. CAVALCANTE, Sálvio. Classe média e conservadorismo liberal. In: CRUZ, Sebastião Velasco; KAYSEL, André; CODAS, Gustavo. Direita, volver!: O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015. CHAUÍ, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2014. CODATO, Henrique. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2010. Disponível em: . Acesso em: 1º mai 2019. COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. COSTA, Lígia Militz. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 2006. COUTINHO, Nelson Carlos. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. CUCHÉ, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. 124

DOS SANTOS, Wanderley Guilherme. Décadas de espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ECKHARD, Nahara Holderbaum. Análise de como o jornalismo cultural das reportagens da revista O Cruzeiro retratava as musas do cinema nos anos dourados. Novo Hamburgo: Feevale, 2015. FANON, Frantz. O negro e a linguagem. In. ______. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de. Janeiro: Record, 2001. GEADA, Eduardo. O cinema espetáculo. Lisboa: Edições 70, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. IKEDA, Marcelo. Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos. São Paulo: Summus, 2015. JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2007. JODELET, D. As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007. MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. São Paulo: Papirus, 2006. MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações, 2014. OLIVEIRA, Eleonora Menicucci. Políticas públicas e a luta pelos direitos das mulheres. In. VENTURINI, Gustavo; GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Edições Sesc SP, 2013. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora brasiliense, 1985. PARAIRE, Philippe. O cinema de Hollywood. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1994. PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar. Metodologia do trabalho científico: Métodos e técnicas de pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2013. REIS, Paula Félix dos. Políticas Culturais do governo Lula: Análise do Sistema e do Plano Nacional de Cultura. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2008. Disponível em: http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0005/7322/politicas-culturais-do-governo- lula.pdf. Acesso em: 15 maio 2019. 125

RICOEUR, Paul. A ideologia e a utopia. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ROSSINI, Miriam de Souza. O cinema e a história: ênfases e linguagens. In. PESAVENTO, Sandra Jatahy; SANTOS, Nádia Maria Weber; ______. Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Palmarinca: Porto Alegre, 2008. SANTOS, José Luis dos. O que é cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1977. SECCHI, Leonardo. Políticas públicas – conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2014.

SILVA, Frederico Barbosa da. Economia e política cultural: acesso, emprego e financiamento. Brasília: Ministério da Cultura, 2007. (Coleção Cadernos de Políticas Culturais, 3). SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. ______. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?. Belo Horizonte: UFMG, 2010. ______. Os batalhadores brasileiros – Nova classe média ou nova classe trabalhadora. Minas Gerais: Editora UFMG, 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2019. ______. A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015. ______. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016. ______. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. ______. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Leya, 2018. SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1976. TAYLOR, Charles. Modern social imaginaries. Durham: Duke University Press, s/d. THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. TUDOR, Andrew. Teorias do Cinema. Lisboa: Edições 70, s/d. TURNER, Graemer. Cinema como prática social. São Paulo: Summus Editorial, 1997. VENTURINI, Gustavo; GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo: Edições Sesc SP, 2013. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005. 126

______. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.