Cartoon-h-ell King Chaos

Ficha Técnica Infernus nº XXIII Pág.7: Nesten – nesten.deviantart.com Pág.30: Andrew Ross Fritt s – dungeonsdeep.deviantart.com Pág.9: Jenna R. – visualjenna.deviantart.com Pág.36: Carlos Valenzuela – valzonline.deviantart.com Editor: Lurker Pág.10: thechaosofpeace – thechaosofpeace.deviantart.com Pág.37: Helen – kkassulaav.deviantart.com Pág.11: kitt omer – kitt omer.deviantart.com Pág.38: Mpalanta – mpalanta.deviantart.com Produção: Fósforo, Colectivo Criativo Pág.12: Travis Randall Williams – platinus.deviantart.com Pág.39: Paul – deopek.deviantart.com Pág.13: ness – nessie-x.deviantart.com Pág.40: Dragonic Wolf Equipa Editorial: Black Lotus, BM Resende, Pág.14: Silvia – sivel12001.deviantart.com Pág.41: Chryssalis – chryssalis.deviantart.com King Chaos, Metzli, Mosath, Outubro Pág.15: Luke Flegg – fi reandfeathers.deviantart.com Pág.42: Hermin Abramovitch – ahermin.deviantart.com Colaboradores: .:gmr:., Aires Ferreira, Charles Pág.16: Mya – fl ightlessbirdxo.deviantart.com Pág.43: Efi alt – efi alt.deviantart.com Sangnoir, David Soares, Devis, Fátima Vale, Flávio Pág.17: David Q Tran – conteart.deviantart.com Pág.44: WildRainOfIceAndFire – wildrainofi ceandfi re.deviantart.com Gonçalves, José Pedro, José Macedo Silva, Júlio Pág.18, 19: Chaotic Muffi n – chaotic-muffi n.deviantart.com Pág.45: dougfdoug – dougfdoug.deviantart.com Mendes Rodrigo, Luís Couto, Melusine de Matt os, Pág.20: Vanessa Bett encourt Pág.46: Rengim Mutevellioglu – ennil.deviantart.com Mónica Sousa, Naive, Paulo César, Paulo Sequeira Pág.21: Ophelias – ophelias-overdose.deviantart.com Pág.48: humminggirl – humminggirl.deviantart.com Revisão: Metzli Pág.22, 23: Ekoin – ekoin.deviantart.com Pág.50: Moonie – xxxmoonie.deviantart.com Pág.24: Federico Bebber – eikoweb.deviantart.com Pág.51: HippyKitt y – hippykitt y.deviantart.com Créditos das Imagens: Pág.25: Antt i Saarainen – doggery.deviantart.com Pág.52: passionsintensity – passionsintensity.deviantart.com Pág.1: King Chaos Pág.26: Rebecca Catherine – mutepablo.deviantart.com Pág.54: Janorien – Janorien.deviantart.com Pág.3: Pirate Gal 9 Pág.27: MaryaS – maryas.deviantart.com Pág.55: Erika – suvetar.deviantart.com

Pág.4: Farkasfi u – farkasfi u.deviantart.com Pág.28: Amanda Christine Music – woahhhitsamanda.deviantart.com Pág.57: Emma Burchell – emmm25.deviantart.com Pág.6: dichter4fun – dichter4fun.deviantart.com Pág.29: Nicolai Strom – darkviking.deviantart.com

2 ~ Infernus XXIII Editorial Lurker

Está frio lá fora. O vento uiva o de- acompanhada de espinhos afi ados, e ÍNDICE sespero de quem por lá tem que nave- os incautos acabaram com dedos dori- gar, enquanto o crepitar da lareira nos dos e nenhum prazer. Mas para quem Inverno Trono Inverno ------4 relembra que os pequenos prazeres são a souber manobrar com mestria, encer- Aires Ferreira normalmente os mais reconfortantes. ra na sua complexidade pura um ma- Parece que o Inverno veio para chegar, nancial de deleites ao alcance daqueles Memorial do Esquecimento ------7 e com ele chega-nos também mais uma que os souberem aproveitar. E se estais BM Resende edição da Infernus. Neste caso a 23ª, aí desse lado, fazem parte desse lote de que perfaz um número bonito de uma eleitos, certamente. O Sublime revista que começou também como Desta feita, mudamos as regras do Conforto do Desconhecido ------11 um pequeno prazer, mas que cresceu jogo. Também é saudável, de vez em Charles Sangnoir até ser o que é hoje. quando. Uma edição totalmente dedi- E o que é a Infernus hoje? Por vezes cada ao Inverno, descrito como é expe- Monstros ao Nascer do Sol ------13 coloco-me esta questão, e uma análi- rienciado e vivido pela nossa equipa David Soares se nem que breve e superfi cial à lista editorial e pelo alargado leque de con- de nomes que adornam a equipa por vidados que temos ao nosso lado desta Se um viajante detrás desta edição ajuda a dissipar feita. Infelizmente nem todos puderam numa noite de inverno ------15 qualquer dúvida que possa existir. A responder à chamada, mas fi carão cer- Devis DeV deviLs Granziera Infernus é o resultado do trabalho ár- tamente para uma próxima edição. É a duo, mas prazenteiro, de um conjunto Infernus mais participada de sempre, Pareidolia Gigantea ------18 extraordinário de indivíduos. Pessoas e esperemos que seja também a mais Fátima Vale que no decurso da sua vida encon- lida – seria uma boa forma de acabar tram uns momentos de pausa que nos mais um ano de publicação regular. Uma Orquestra (quase) natalícia --- 20 cedem com prazer, para nosso deleite Numa edição como esta, difícil é Flávio Gonçalves mútuo, para logo a seguir retomarem saber por onde começar. Há quem pre- o caminho que decidiram trilhar. Pa- fi ra levar tudo a direito, há quem prefi - O Inverno Faustiano ------22 lavras que nos deixam e que hão-de ra saltar de autor para autor, há quem Pedro C. Pontes perdurar muito para lá do pensamento seja mais seletivo. Para todos haverá que lhes deu origem, inscritas não na certamente algo do seu agrado, para Selecionado e Exumado ------26 pedra porque a opinião é mutável, mas vos acompanhar nestas longas noites José Macedo Silva na nobreza do papel – ou, neste caso, Invernais, até que o triunfo da luz ini- no expedito digital. Mas chegará a sua cie o seu percurso ascendente rumo a Moon’s Milk ------29 vez de cunharem papel, que foi para tempos mais amenos. E se nada vos Júlio Mendes Rodrigo isso que foram criadas. agradar, têm bom remédio – caneta em Esta edição da Infernus acaba por punho e façam-nos chegar a vossa voz! First Utt erance ------36 ser um refl exo desta caminhada de já Vemo-nos na Primavera, no raiar Comus vários anos. Como uma bela rosa, a de um novo ano. Até lá, boas leituras!• sua suave e inebriante fragrância vem O Inverno em Mim ------38 Lupum

O Inverno n’O Castelo ------41 Melusine de Matt os

Esperanças Brancas ------44 Mónica Sousa

A história da Anna ------46 Mosath

Felizes para Sempre ------52 Naive

O inverno como Nigredo ------54 .:gmr:.

3 ~ Infernus XXIII Inverno Trono Inverno Aires Ferreira Aires Ferreira

masiado gorda e os fi lhos demasiado rá o jornalista do seu editor-chefe, que ou como a dualidade das estúpidos teria custado ao planeta. “Ai responde às ordens do embalsa-me a que exagero, Aires!” mão, para escrever aquilo que pensa? coisas é usada para fazer de Eu cá acho que não. Imaginemos então, sem exageros, o ti um escravo... seguinte cenário: Dia de Inverno, frio Da mesma forma que eu jamais como o caraças. Não ter que levantar pagaria a um tipo para ele me multar cedo, nem ter que levar o puto à escola, caso eu circulasse a mais do que a velo- “Aço pagão, nas nossas mãos”, já nem ter que ir trabalhar fora de casa. cidade permitida mas se sabemos que dizia o meu caríssimo Belathauzer. Di- Isto porque os pais teria formação a mais de 50 quilómetros horários den- zia-o porque acreditava - assim como mais do que sufi ciente para ensinar tro de uma cidade podemos magoar eu uns anos mais tarde - que a elimi- esse mesmo conhecimento ao seu petiz alguém ou a nós mesmos, basta não o nação das religiões em prol de uma e nenhum estado obrigaria alguém a fazer e perceber porquê. recuperação dos ancestrais louvores à meter o seu fi lho num sistema de ensi- Natureza só poderia trazer benefícios no que só serve para emburrecer ainda As leis (que só a Natureza as tem, à raça humana. Ou porque estava bê- mais a população. digam o que disserem) são meras for- bado, não sei que nunca lhe perguntei. mas de incompetência governativa. Nem se teria de ir enfrentar trânsi- Uma lei é algo a que não podes fugir Em todo o caso, assistimos lenta- to, e fi las, e pessoas que cheiram mal (por exemplo, no Inverno faz frio. Ou mente à ida pelo cano das igrejas e das no geral, e putos chateados por que- usas roupa, ou apanhas uma cons- religiões pelo mundo fora, logo pode- rem ir apanhar uma bebedeira para tipação que te lixas). A nossa actual mos estar descansados, certo? Não. esquecer as horas de atendimento ao percepção de leis baseia-se no que é balcão e que ainda têm mais três horas proibido e no que não o é. Eu cá acho Nem depois do pós-iluminismo, de part-time mal pago a cumprir. Não que deveria ser proibida a religião por nem com os – felizmente – crescen- seria melhor? tudo aquilo que enumerei em cima. In- tes movimentos de anticlericalismo, felizmente para mim, sou uma mino- nem mesmo com o galopante avançar Creio que a dualidade de tudo ria e por mais que ache que a religião da ciência a coisa melhora realmente. pode ser (e é) utilizada ao infi nito e a política são crimes mais hediondos “In God we Trust” na principal moe- numa teia que não deixa avançar. A que o homicideo, tenho que não ofen- da do mundo, a insistente insistência título de exemplo: há padres, que no der ninguém porque a minha liberda- de introduzir coisas tão idiotas (quer Inverno, violam crianças. Há outros de acaba onde a tua começa. Ás onze seja para os que acreditam como para padres, que no Inverno, vão tentar e no farol, criatura. A tua liberdade só os outros) como “OMG!” ou “Jesus combater a fome em África. Ora, isto é começaria e acabaria se soubesses se- Fucking Christ”. Está por todo o lado, ouro para quem perceber um mínimo quer o que signifi ca ser livre. mesmo nos estados laicos onde jamais de retórica. se ganhariam eleições se não nos decla- “Ai mas eu sou muito muito livre, rássemos grandes fãs da Fatinha e dos É tão mais fácil dizer que nesta noi- por isso é que leio a Infernus”. Claro seus delírios anti-ex-união-soviética. te fria de Natal a associação X deu um que sim, e para a leres precisas de um manto e uma tigelinha de sopa ao sem- computador que pelas leis do mercado Porque insiste a consciência global -abrigo, do que explicar aos animais livre tem que ser produzidos a custos na religião, ou pior dizendo, nos ani- que os sem-abrigo existem porque a muito mais baixos, explorando seres mais que a usam como método de la- sociedade, para ter outros animais in- humanos confi nados a salas imperme- vagem cerebral e/ou forma de poder? decentemente ricos, precisa na mesma abilizadas para te construírem chips medida dos recursos por si gastos em como se não houvesse amanhã antes Porque à semelhança das estações, sem-abrigos, toxico-depentes e gente que outra marca que também fabrica da temperatura, da malvada da maté- pobre no geral. Parece-te equilibrado? computadores o possa fazer por preço ria, tudo tem um oposto. E é então ne- 99% vs 1%? mais baixo e de preferência com mais cessário que exista gente burra e gente um extra ou outro que nem precisas inteligente, pois caso contrário, não “Ai pronto, lá vem mais um Mar- mas que faz com que mudes de / des- saberíamos distinguir Verão de Inver- xista”. É, e tu és chupista ao ponto de perdices esquipamentos de doze em no, quente de frio, a minha pessoa da nunca ter lido uma frase da criatura, doze meses. Alexandra Solnado, etc. que apesar de burro, fez com que te- nhas hoje os subsídios que – certamen- E evidentemente, caso queiras que Eu gosto muito pouco de frio. Mas te – não terás amanhã. É essa limitação o computador funcione, terás de ter percebo-lhe a necessidade, já que a de escolha que me chateia. A nature- luz fornecida por uma só empresa pri- natureza – e quase tudo o resto, creio za pode, e mesmo assim facilita-nos a vada que desconhece completamente a – vive de um só principal principio: o vida com quatro estações, agora nós geotermia e fi ca-se por queimar carvão equilíbrio. Desagrada-me sim ter In- não deveríamos fi car restringidos ao para produzir 24,9 % a energia consu- vernos mais longos e frios pela falta de “és comuna, és facho”. Deveríamos mida em Portugal.. equilíbrio do crescimento civilizacio- sim, e de vez, acabar com líderes. Há nal (que só o é de nome, nos últimos quem o seja bem pela responsabiliza- Ah, claro, e como não convém que séculos). Vim agora de um shopping ção de cada individuo – o editor desta utilizes, nestes dias de Inverno, o com- cheio de animais (não vi lá um ser- revista, a título de bom exemplo – e há putador à chuva e ao frio, convém teres -humano digno desse nome, que me quem seja péssimo – Pinto Balsemão, casa, que depois de paga por inteiro lembre) e não me recordo de lhes ver dono dos media em Portugal, regular continua a ser propriedade do estado preocupação sobre o quanto a viagem no Bildenberg, homofóbico profundo e (ver regras das fi nanças de Portugal que tinham feito ali com a mulher de- um gajo horrível no geral. Mas precisa- sobre os diversos impostos para quem

5 ~ Infernus XXIII Inverno Trono Inverno tem casa própria) ou o mais provável, vila” mas antes “Jovem perturbado, e Da mesma forma que se um preto que é agora seres refém de um qual- satânico, vandaliza igreja”. Dualidade, (fodam-se todos, uma vez mais) te rou- quer banqueiro que sabe dizer muitas meu amor, dualidade. bar o telemóvel, deverás pensar que o siglas em Inglês e que nem sequer per- faz porque os seus pais foram deixa- cebe que tem uma das profi ssões mais Atenta, que se queres mandar um dos entrar num país já extremamente asquerosas deste mundo. tiro ou chegar o fogo a qualquer coi- pobre para que este o deixasse de ser, sa que celebre o poder e a diferença concentrado os novos pobres em bair- E para que saibas ler os estranhos inexistente entre seres-humanos, sou ros sociais. Estes, justifi cariam uma caracteres, alguém te ensinou a ler o teu primeiro fã no facebook! Nada força policial (e submarinos!!) capaz através de livros pagos a empresas, melhor que um pedaço d’aço para de bater nos gatunos e nos malvados assim como propinas caso “queiras- fazer os animais andar para a frente que para fugir ao mar de staphylococ- -ser-alguém”. Uma liberdade que não (fodam-se todos, foi assim que chega- cus que lhes é a existência, recorrem acaba, não haja dúvidas. mos onde estamos, a dar vergastadas a narcóticos que entram às toneladas em animais para nos carregarem o pro- por debaixo de fi scais que tem as duas “Tens razão Aires, vou levar umas gresso ao lombo, ou achas que ainda fi lhas na universidade porque são pes- cacetadas no lombo na próxima manif tens a palavra “cavalos” no teu carro soas muito integras. porque quis subir as escadas de um por coincidência?). Mas à semelhança edifício pago pelos meus avós e pais do que se passa no Universo (sabes o De que adiantou a Pierre-Joseph em impostos e mudar isto tudo de que se passa, não sabes, ó ser livre e Proudhon, a Johann Kaspar Schmidt vez”. inteligente?), tudo é feito de pequenas ou mesmo a um tal de LaVey o seu coisas dentro de coisas ainda mais pe- dantesco esforço em mudar, para me- Isso tem o mesmo efeito que os ga- quenas, que por sua vez, estão dentro lhor, as coisas, se mesmo com princí- jos que não evoluíram (ao contrário do de coisas mais pequenas. E nada exis- pios mais do que estruturados, conti- supracitado Belathauzer que é agora tiria, sem elas. nuam a ser colocados nas prateleiras uma espécie de Anarquista Filosófi co, mais baixas da Bertand? e mais lhe deviam seguir o exemplo) Não digo, com isto, que te devas e continuam a espalhar o ódio contra preocupar com os tipos que metem O facto de estarmos aqui a palrar. igreja católica. E mesmo os que lhes gatinhos em frascos. Esse tipo de des- Afi nal, as coisas mudam, e só é neces- vão chegando o fogo, acabam mais respeito com formas de energia vital sário o número sufi ciente de humanos depressa numa prisão a experimen- acontece somente porque não foi expli- para que os falsos reis que nos tronos tar sexo anal do que a mudar alguma cado a quem o faz o quão doloroso é o se sentam, morram, e neles fi quem coisa, até porque nas notícias jamais processo de colocar algo com determi- quem real e exclusivamente governa: irá aparecer “jovem queimou igreja nada massa dentro de um contentor de a natureza. • porque a mesma continuava a contri- capacidade inferior à referida massa. buição de emburrecimento daquela Eu disponibilizo-me, desde já, a fazê-lo!

6 ~ Infernus XXIII Memorial do Esquecimento BM Resende Memorial do Esquecimento

não-dramatis ex-personae: olango busca de um mártir. Querem constan- tango, pele tenebros, o barqueiro cego temente mais gemidos. E mais gemi- olango tango do olho esquerdo dos. E pasmam no simulacro da deida- É tremenda a ocorrência. de sempre que insufl am a gula. pele tenebros (Levantamento de panos.) olango tango Se o sentires. São ecos serenos como borboletas (Pele tenebros cava uma sepultura. sem asas. Sem rumo. Sem instinto de olango tango Ouve-se o choro decrescente de um recém- deslizar na cegueira da latência cardía- Dá-se sem sensação? -nascido.) ca. Respiram pelos ventrículos. pele tenebros olango tango pele tenebros Quase sempre. Só depois se sentem Eis a morte. Não. Mas sinto as estacas da deca- as feridas. Ouves o carpido. Serão elas. dência a penetrarem-me nas axilas. A (Pele tenebros sai.) ascenderem-me ao cume da invisibili- olango tango dade. Lá de cima me não vêem. É como Nunca o ouviste? olango tango aqui que os não ouço. Parto. pele tenebros olango tango Esvazio-me de certas entradas. (Pele tenebros entra com um saco pre- Os carpidos só atenuam na solidão. Filtros que já não saem. Por vezes to. Atira-o à sepultura. Ouvem-se cantos Quando não existem mais ouvidos que sinto-me entupido. Quando as tor- guturais inuítes enquanto pele tenebros os façam deifi car as feridas. rencialidades estouram alagam-me cobre a sepultura.) a consciência. Sinto-a borbulhar por pele tenebros baixo do esquecimento. Preservo-o ao olango tango São contemplativos na individuali- máximo. Nada melhor que o esqueci- Eis que parto. E eis que parto. No- dade. Atravessam os assentos com as mento para me lembrar. Lembrar-me vamente. suas quenturas mornas. Pensam che- do que não está. Lembrar-me do que gar à pulsão magmática. Ao cerne. Ao não entrou. Lembrar-me do que nunca (Caimento de panos.) tempestivo da ocorrência. Mas desli- fi z. Lembrar-me de uma gloriosa folha zam para a horizontal como os mortos branca onde a memória me não cor- (Som de trovoada. Atravessa o bar- constantemente fazem. Tirando isso rompe. (Silêncio.) Não lembrar. Assim queiro cego do olho esquerdo de jangada só as estacas da decadência enxertam não se sofre. entre nevoeiro vermelho.) o absoluto. Dão-lhe ambiguidade. Fa- zem pensar nas diversas formas de cair. olango tango o barqueiro cego do olho esquer- Para baixo ou para cima. Ostentados É como não existir. Existir ao con- do na apoteose do vulgaríssimo. No cume trário. Impulso e grito. Impulso e grito. Óbulos terrestres que neste quarto da invisibilidade. Ou horizontais. No minguante se fazem em piruetas cres- fosso da incognição. Não obstante o pele tenebros centes. Sempre para o outro lado. Pois terreno é sinuoso. Nessa linha vertical Como os elos da corrente. É a elec- os excessos dos vivos são a perdição onde se encontra o infi nito a felicidade tricidade que não passa entre os neu- dos mortos. As sombras das margens está no movimento pendular. rónios. Duram mais. Duro mais. Como do mundo só dançam quando existe se as estacas me ascendessem à ceguei- sombra. Outrora dançavam sempre. olango tango ra. Nada mais efectivo para sorrir com Troquem-nos uma e outra vez. Tro- Por vezes penso como se o fosso me permanência. Através de um desenho quem-nas uma e outra vez. Pois já não estivesse a ver. decalcado pela humidade dos dedos se sabe quem vive e quem morre. As- no meu espelhamento. (Desenha sorri- sim sejam. pele tenebros sos em folhas. Amarfanha-as e atira-as E está. aleatoriamente rindo.) (Levantamento de panos.) olango tango olango tango olango tango Permanentemente? A dor é uma memória. Ouves o carpir das feridas? (Olha em redor.) pele tenebros pele tenebros pele tenebros Sim. E ao contrário também. Como balões a ascenderem ao Sim. magma. Antes de rebentarem. Mas só olango tango os que me não entram nos ouvidos. olango tango Mas continuo a ouvir os carpidos E acciona-se perante as minhas dú- das feridas. Não são memória. Estão. olango tango vidas? Nada disso. É como o ruído das fá- pele tenebros bricas de luz. As que dão à luz para a pele tenebros São sonho. morte. As mortinidades. Penetra-te pelas palmas dos pés e engravida-te de morte. Sai-te pelos olango tango pele tenebros cabelos como um relâmpago seco que Penso que a morte me sonha. Certos sons passam-me atrás das não sabe onde está. Nem para onde costas. Não os oiço com olhos de ver. vai. Nem como vai. Só varia de sítio e pele tenebros Mas sinto-os vaguear como chagas em é tudo. Porque também sonhas com ela. O

8 ~ Infernus XXIII BM Resende sono é irmão da morte. O sonho é um Olaria que se faz palavra e degenera. típico caso de incesto. O pesadelo é o Nascem sem cola. E grita-se a unidade. olango tango excesto. Unidade. Unidade. Unidade. Unidade. Sem retorno. Os ecos que não se devolvem perdem-se no fi o infi nito da olango tango pele tenebros silenciosidade. E a cópula entre o ven- Só me adianto ao óbulo. Já que o Unidade. to e a terra já não faz germinar folhas óvulo se me adiantou. dançantes. É o sémen esguichado ao (Silêncio.) olango tango negro veludo do cosmos sem o esven- Os olhos distraem-me da visão in- Unidade. trar com uma cauda fl amejante. E onde terna. estão os cometas fulminantes? Acaso o (Silêncio.) pele tenebros liquido primordial vos envenenou de Porque é que o sol me não deixa vê- Unidade. sangue retórico? Alguma vez deixei -lo? cair as pestanas às vossas passagens olango tango nos crepúsculos dos sonhos? A ira co- pele tenebros Pois já ninguém se sabe. me-me a cegueira e mesmo assim vos Porque gosta de te apalpar as pál- não vejo. É este o infortúnio? pebras. Para sentir o que não viste. (Sons de vasos a partir.) (Silêncio.) Olha a penumbra. (Silêncio.) Fecha os olhos.

(Olango tango fecha os olhos. Pele te- nebros lambe-lhe as pálpebras.)

pele tenebros A fraternidade é húmida e não se vê. Não se lembra para não ferir. Esfre- ga os olhos e alucina com as espirais. Pensas ver quando tudo o que tens à frente é o ecrã negro das pálpebras. Assim sendo como ousar ver? Como afi rmar o real se até as próprias pál- pebras te alucinam? O esquecimento é o elixir alquímico que provoca a sani- dade imediata. Tudo o resto é dor sem razão.

(Olango tango chora.)

pele tenebros Esquece-te.

(Pele tenebros cava uma sepultura. Ouve-se o choro decrescente de um recém- -nascido.)

olango tango Eis a morte.

(Pele tenebros sai.)

olango tango Parto.

(Pele tenebros entra com um saco pre- to. Atira-o à sepultura. Ouvem-se cantos guturais inuítes enquanto pele tenebros cobre a sepultura.)

olango tango Eis que parto. E eis que parto. No- vamente. (Silêncio.) A criação foi a fen- da na decadência. E eis a ira de uma partida sem chegada. Das vísceras que implodem crias de cerâmicas estilha- çadas. Os vasos fazem-se quebrados.

9 ~ Infernus XXIII Memorial do Esquecimento

(Pele tenebros despeja água ardente em círculo em volta de olango tango. Incen- (Pele tenebros apaga a água ardente (Som de trovoada. Atravessa o bar- deia-o.) em volta de olango tango. Sons de crepi- queiro cego do olho esquerdo de jangada tações.) entre nevoeiro vermelho.) olango tango Belo. Belo. Belo. Pequenas doces pele tenebros o barqueiro cego do olho esquer- brasas do aconchego. Como desejava Viste-te? do fazer dançar as minhas retinas agrilho- Óbulos terrestres que neste quarto adas na alucinação à vossa presença. olango tango crescente se fazem em piruetas min- Fazem-me reencontrar a ténue memó- Sim. guantes. Sempre para o outro lado. ria da crispação das vagas de labare- Pois os excessos dos mortos são a das. Ao encontro do zero em remoi- pele tenebros perdição dos vivos. As sombras das nho. Um moinho outra vez. Oriento os Então esquece-te. margens do mundo só dançam quan- olhares para a ejaculação das faíscas do existe sombra. Outrora dançavam que se perdem na hegemonia do inó- (Ouvem-se cantos guturais inuítes. sempre. Troquem-nas uma e outra vez. cuo. Para a infertilidade das pupilas Olango tango come as folhas amarfanha- Troquem-nos uma e outra vez. Pois já que lacrimejam o arenoso. São os de- das.) não se sabe quem morre e quem vive. sertos das insufi ciências. Os trilhos Assim sejam. que desaguam na falésia da inocorrên- pele tenebros cia. O indizível refaz-se nas ignições Ouves o esquecimento? (Ouve-se o choro decrescente de um que mordem os dedos da incredulida- recém-nascido.) • de. Faíscas que assombram a luz das (Olango tango sorri.) cegueiras vagabundas. Trémulas virili- dades amordaçadas ao líquido. (Caimento de panos.)

10 ~ Infernus XXIII O sublime conforto do desconhecido Charles Sangnoir O Sublime conforto do desconhecido

A obra em questão intitula-se The titubeante de Neptune, é possível apre- Há um prazer muito pecu- planets (Op.32) e foi composta na se- ender, de uma forma quase iniciática, gunda década do século XX por Gus- as características energéticas corres- liar que sinto quando reencon- tav Holst. Não sendo Holst um com- pondentes a cada um dos planetas. positor sobejamente conhecido do Talvez seja esse o grande trunfo da tro, passados anos, uma obra de público em geral, valeu-lhe a riqueza obra de Holst – a experiência senso- de génio com que compôs esta obra, rial, sensitiva até, dos valores compi- arte... sem dúvida a mais celebrada da sua lados por Ptolomeu no seu Tetrabiblos. carreira. Conhecimento feito música, iniciação Esta deliciosa obra de música clás- feita Arte. ...que a certo ponto da minha exis- sica é composta por sete peças: Mars, Mas não é necessária qualquer es- tência me tomou de sobressalto, me the Bringer of War; Venus, the Bringer colástica esotérica para poder apreciar supreendeu ou me arrebatou mas que, of Peace; Mercury, the Winged Messenger; esta sublime peça – atrever-me-ia a di- com a marcha implacável do tempo, se Jupiter, the Bringer of Jollity; Saturn, the zer que até a mais bruta das criaturas foi esfumando da minha presença e da Bringer of Old Age; Uranus, the Magician não passará incólume ao efeito vibra- minha memória. Tal como velhos ami- e Neptune, the Mystic. tório desta Suite dos Planetas. O mais gos, que ao fi nal de uma temporada se Sem ser uma peça de extraordiná- comum dos mortais identifi cará nesta reencontram por coincidência ao virar ria originalidade no que concerne aos peça grande parte dos elementos que da esquina e que com um encolher de recursos de composição (são reconhe- mais tarde viriam a fazer as delícias ombros e um esgar de jocosidade fi n- cidas e muitas vezes criticadas as in- auditivas dos cinéfi los nas bandas so- gem nunca se terem zangado, e em fl uências mais ou menos explícitas de noras de fi cção científi ca, suspense ou amena cavaqueira encontram uma vez Debussy, Stravisnky ou Schoenberg) terror. Directa ou indirectamente a sua mais o prazer da mútua companhia, ou de aprofundado conceito metafísi- relevância, a sua subtil importância e dou por mim a redescobrir toda uma co (os arquétipos planetários indicados infl uência está patente e terá certamen- série de pequenas pérolas que outrora nos títulos podem chegar a roçar o bo- te marcado uma signifi cativa parte dos me seduziram e que voltam agora re- çal, embora se saiba que Holst estudou compositores da actualidade. juvenescidas à minha colecção de de- efectivamente astrologia), existe no seu Fará certamente uma extraordiná- lícias. resultado fi nal algo de profundamente ria banda sonora a determinado ponto Gostaria de falar ao leitor de um inspirado e genial. da vida do leitor. desses exemplos - uma obra exemplar Da toada desconcertante e impo- Da minha fez certamente. • que á mesma mesa junta duas das mi- nente de Mars, à inquetude harmónica nhas paixões: a música e a astrologia. de Mercury, até à cadência misteriosa e

12 ~ Infernus XXIII Monstros ao Nascer do Sol David Soares Monstros ao nascer do Sol

o Sol logrará o seu ponto mais baixo O Sol emite uma luz ento- no período em que o metabolismo hu- los monstros que vêm vê-lo nascer. mano atinge todas as madrugadas o A história é sismográfi ca. Ninguém mógama – poliniza tudo, ins- nadir: entre as cinco horas e as cinco pode prever os seus altos e baixos. horas e meia da manhã. Como os corações, e como o Sol, ela crevendo-nos na cútis... Esta é a hora da morte. também possui solstícios, durante os Este é o tempo temido pelos tera- quais a inteligência e a imaginação, a peutas nos hospitais. prata e o ouro, se arrojam pela hora da ... como em hierática, poesia lumi- Uma tímida tosse, um espasmo morte. Tempos terríveis em que nada nescente que reluz quando fantasia- muscular sobre o lençol, e lá vamos parece luzir, nada parece concatenar- mos. Cada madrugada é uma inau- nós, rolando para fora da vida como se -se. E, no entanto, cada madrugada é guração: um inatismo intenso, tão caíssemos por uma escada. uma inauguração que converte os so- jupiteriano quanto apolíneo, que con- A fi nitude é a diapedese incom- nhos em Obra. verte o orvalho em malte e que conver- preensível que aniquila todos os orga- Este ano, o Sol e todos nós caíremos te os sonhos em Obra. nismos – morremos e logo mirramos, juntos, à hora da morte, na fossa capri- A Terra é um cadinho e tanto a pra- porque parte de nós passa de imedia- corniana, em que os pesadelos andam ta lunar quanto o ouro solar são fun- to pelo mundo em direcção ao zénite à solta, mas Amalteia estará entre eles damentais para que as mentes tocadas misterioso e etéreo, como um leucócito para salvifi car-nos com o seu leite e pela Arte não murchem como parchas. passa de imediato por uma veia em di- tanto o Sol como nós sobreviveremos Existem sideromantes e sicomantes: recção ao zénite misterioso e muscular. de certeza a mais um temível alvore- uns observam fumo soprado pelo ven- A alma é uma fotonauta numa região cer. to, os outros interrogam as folhas das solífuga, prenhe de pesadelos. Existem Há sempre monstros ao nascer do árvores – folhas que, como athanores, monstros ao nascer do Sol Sol. Nessa altura, tudo é uma explosão fulgem a luz do Sol nas suas fornalhas A hora da morte é, também, a hora amarela: arraigada à antracite noctur- fototrópicas e reformam-na em respos- dos maus sonhos. na, a água abissal parece urina, mas tas numa harmoniosa sigilografi a. So- Dos pesadelos. sobre ela, à linha do horizonte, mati- mos criaturas luministas: sem o luzilu- No mesmo momento, transmutam- zes marmóreos quase adquirem pro- zir, abacinamos e tornamo-nos como a -se moléculas e pensamentos: a garra priedades magnéticas. Icterício, o Sol espuma do oceano – barulhentos, sem da morte agita, de uma vezada, a car- transita do amarelo hepático para a cor substância e apartados de um mun- ne e a mente, contaminando-as com as áurea das pirâmides, à medida que as- do maior. Passamos a conviver com suas sicoses. Às vezes, é a imaginação cende sobre os pesadelos, translúcidos monstros ao nascer do Sol. fragilizada que cede sob o peso dos como o sangue dos insectos. O Sol é o nosso coração heliostático efi altas e acordamos com o coração na Aí, amolecemos ao acordar, num e o solstício é a sua síncope: um sus- boca; em outras ocasiões é a carne que- rigor-mortis invertido, e tudo se citri- pender súbito da circulação da luz que bradiça que sucumbe e o coração não fi ca. assusta e desintumesce. Este ano, o chega sequer à boca, porque é brutal- Tudo se transforma em universo. solstício de Inverno será uma imersão mente suprimido por um eterno e sin- Não merece isso uma celebração? • autêntica no abismo amalteiano, por- copático solstício. Mas o Sol não pode que, tal como um coração verdadeiro, deixar de bater. Não pode fenecer pe-

14 ~ Infernus XXIII Se um viajante numa noite de Inverno Devis deviLs Granziera Se um viajante numa noite de Inverno

O Inverno é a melhor estação dropausa. E, provavelmente, é por isso defeitos dos discursos? Não te tornas que não vês muitos homens sábios, exasperado devido à hesitação ou aos para a leitura. quando vais até à praia! Não existem sotaques estranhos? Isto é intolerável. dúvidas, o Inverno é, defi nitivamente, Também para mim leio com os meus para a leitura! Portanto, eu convido-te a próprios ritmos. Agora, rapidamente, Obviamente, que podes sempre tra- tomares o teu lugar. Sentes-te aconche- quando eu agarro somente a história zer contigo um livro durante as cami- gado? É muito importante encontrar o num olhar de relance. Depois, talvez nhadas de Outono, o mesmo se aplica- teu ambiente de leitura mais apropria- devagar, porque encontro algumas li- da para as tuas primeiras excursões de do. Encontra um local que seja tranqui- nhas com signifi cado e carregadas, e é Primavera. Mas será que podes ser real- lo e confortável. Podes inclusive tentar quando eu gosto de parar e demorar- mente capaz de te concentrares apenas ouvir alguma música ambiente. Para -me um pouco nelas. De seguida, eu e só na leitura, sem diluir a tua atenção, algumas pessoas, isto torna a leitura gosto de reler, de modo a me focar em quando estás fora de casa? Até sou de mais aprazível. Música ambiente é ge- detalhes que possa ter perdido de vis- certa forma “plantígrado”; durante o ralmente melhor recebida, mas cabe-te ta. Terás que ler sozinho! tempo de Inverno não gosto de sair da a ti escolher o que gostas. Muitas das Última coisa importante: foste minha caverna. Assim, posso concen- vezes eu não ouço, de todo, música, mijar antes de começar a tua leitura? trar-me nas minhas coisas, nos meus enquanto leio, já que eu prefi ro evitar Nunca negligencies as tuas funções queridos livros, sem distracções. Noites qualquer pequena distracção quando corporais. longas signifi cam tempo longo a entre- mergulho nos meus livros. Seja como Bem, agarra no teu livro. À medi- gar à leitura. Ler para afi ar a tua mente for, o leve estalar e estouro vindo da da que te tornas mais velho e sabedor, e os teus pensamentos, que nem as al- lareira nunca me irrita, com certeza! aprendes a não esperar algo de bom fi netadas da geada do clima da estação Lembra-te e olha o quanto a leitura é vindo de todas as coisas na tua vida. mais fria. Ao longo do tempo de Verão, uma actividade solitária! Lês sozinho, Inclusive, dos livros. A melhor coisa eu leio muito poucos livros. Demasia- mesmo se estiveres na cama com o/a é evitar o pior. E tu sabes que come- do quente, demasiado húmido… de teu/tua querido/querida companheiro/ çar a ler um livro é como ir encarar que forma é que podes ler um livro, se companheira ou numa sala de bibliote- “qualquer coisa” de um fadado vago queres é usar as suas páginas como um ca a abarrotar. que estará para ser, sem ainda estar ventilador tremeluzente? Ou será que já de todo lá. É por isto que os livros são alguma vez tentaste ler um livro à bei- Leitura é solidão. Se uma outra pes- para ser lidos especialmente no tem- ra-mar, debaixo da sombra de um guar- soa te ler um livro, isso não é leitura, é po de Inverno. Se não gostares do que da-sol, assistido pela fresca brisa maríti- arremedo, é uma coisa totalmente di- encontras nas suas páginas, tu podes ma, quando estás é rodeado por lindos ferente, é ouvir. Isso é uma espécie de fechá-lo, mas podes ainda atirá-lo di- corpos femininos em biquíni e topless? transmissão rádio. Seguramente que rectamente para a lareira, se o livro for Asseguro-te que é praticamente im- tal pode fazer-te companhia, mas nem demasiado estúpido. Talvez adoptes possível, mesmo que sejas um velho sempre é uma experiência agradável. os teus próprios padrões na escolha homem sábio que se encontre na an- Não te irritam as más pronúncias, os dos livros que vais ler. Eu uso o termo

16 ~ Infernus XXIII Devis deviLs Granziera

“livros” na forma plural, já que se tu és Assim, o Leitor prossegue na recolha tura dos livros. E dentro deste livro en- um verdadeiro leitor, terás com certeza de apenas escombros. Não obstante, a contrarás tudo o que eu estive a dizer acumulado alguns volumes para enca- humanidade possui uma afeição estra- até agora. E dentro deste mesmo livro rar o período de Inverno, tal-qualmen- nha para complicar as coisas, enquan- tu encontrarás, pelo menos, outros te os esquilos acumulam nozes. to tenta a resolução de umas outras. Tu dez. E tu não encontrarás apenas um Não quero pronunciar-me sobre podes fazer qualquer coisa que desejes escritor, mas, pelo menos, o escritor os critérios que tu segues para a esco- de modo a fi cares cada vez mais perto mais dez. De modo semelhante ao jogo lha das tuas leituras, mas permite-me da perfeição, a um ideal com fi m bem de refl exos criado por Pessoa, onde que te sugira um livro que é perfeito sucedido. Mas isso é uma ilusão. Há a leitura causa a tua própria imersão para esta estação. É um livro de Italo sempre outra história que espreita por num universo complexo de circuns- Calvino. O seu título é «Se una nott e detrás de cada história. Deverás as- tâncias arcanas. d›inverno un viaggiatore». sumir que não podes estar seguro de nada, inclusive das páginas que estás A leitura é uma droga que, sem O livro não conta apenas uma his- a ler precisamente aqui e precisamen- dúvida, vicia. “Se una nott e d’inverno tória, visto que a personagem principal te agora. Poderá haver sempre alguma un viaggiatore” é um livro que não vai do romance é um “Leitor”. A leitura é omissão, um erro de impressão, um curar o teu vício, mas irá ajudar-te a uma actividade que é mais complexa erro tipográfi co, um equívoco à tua conseguires uma melhor compreensão do que pode aparentar. Existe uma espera, logo ao virar da esquina, logo da sua natureza. É um livro sobre li- mistura contínua no meio de materiais na próxima página. Ao invés de fi cares vros. Um livro que verdadeiramente e objectos sólidos, páginas reais cheias desapontado pelos acidentes, tu de- nunca termina. Um livro que é feito de de escritas, e subsequentemente existe verás antes aproveitar as experiências inícios e começos contínuos. Quando a parte imaterial realizada pelo teu cé- inesperadas que possas vir a encontrar as páginas se acabam, a história ainda rebro, percepções, fantasmas. Todavia, atrás dos problemas e contratempos. A continua. Tal como a vida no tempo de igualmente, a coincidência representa própria vida é um acidente. Inverno, quando a mesma se parece um papel importante na leitura. Quan- mais com morte. tas vezes começaste a ler um livro e de Tu talvez penses que com estas li- repente tiveste que colocá-lo de parte? nhas estarei a escapar-me de me pro- Enfi m, olha lá para fora. Agora é In- A leitura pode transformar-se num nunciar acerca do livro intitulado «Se verno! Está frio lá fora. Permanece em assunto inacabado. Complicações, una nott e d›inverno un viaggiatore». casa. Agarra o teu livro. Senta-te con- complicações, complicações. E assim Asseguro-te de que estás errado. Acre- fortavelmente. E começa a ler “Se um como para a vida, invariavelmente, há dita em mim. “Se una nott e d’inverno viajante numa noite de Inverno”...• um pedaço que falta ao puzzle fi nal. un viaggiatore” é um livro sobre a lei-

17 ~ Infernus XXIII pa

setecentas cabras pulam com com um arco de ferro rolante ia o coelho druída cuja crâneo meias de lã sobre um estrado coberto iba largando paxaricos de papel pul meio aberto largava um fumo azul e de rama de algodão rabo branco os chocalhos fervilham o ritmo da que ao entrarem em contacto cula na mão esquerda suportava o grande orquestra atmosfera varapau de sabugueiro ganhavam vida própria i tornában-se que l suportaba a el velha vestida de negro com uma quelor d’açafron nua pequeinha haste urze na cabeça mal l nino se tornava holograma no levava a cabaça pendurada horizonte que debido a l’agitaçon de la marcha - aqueilha fuonte de leite jorraba hai escreveram en l’aire ia pingando borboletas euplágias milénios cula mesma ufania este ano os melões estão docinhos papoilas cun trajes aparentes de bari- este ano os melões estão docinhos nas nun l éran nisto fui de repente que se iniciou o diziam já a plenos pulmões todas as êxodo dos coelhos aves subiam o carreiro de madrepérola famílias anteiras e isso movia as turbinas cada uma com sua cantarinha preta çtinguian-se os machos pela cartola al pobo branquinho à cinta que invergavam ás bezes parában debido al cansaço as fêmeas a emoção orvalhava o deserto das essas arrastavam véus de pipoca rosa mãos da velha criatura dos ramos dos carvalhos pendiam de traje popular iam as crias o esporão do seu polegar era o pastores lagarta ostensiva nudez dos pêlos branqui- velho corno estes faziam o acompanhamento de nhos que na realidade orquestra com suas vozes guturais olhos postos no coelho da lua que toca se desprendeu da fronte marabilhaba-se de tal forma l sol neste no tambor éxtase a marcha libertária de todas las speces - estavam já perante as montanhas de que cobria de sémen dourado todo l cun uolhos verno plaino imponente cordilheira grega amporta dezir que na frente un nino cun cabeça de falcão a cinco metros de distância o druída levitou sobre um pilriteiro passou em delirante corrida segundo as leis místicas ladeado por dois pinheiros pigmeus

18 ~ Infernus XXIII areidolia gigantea Fátima Vale

semelhantes a dues lanças begetaria- eis que ne ls cielos surgiu un raposo nas abermelhado na pareidolia do milagre celeste i cul crisol que por magie le surgiu na pela condição do ocaso o titânico raposo em mímica pata squierda de la frente alquímica polbilhou l’atmosfera de pepitas era tão tremendo o seu tamanho coçou apoteoticamente la nalga douradas que o povo branquinho se estatifi cou squierda para anton dezir de boca aberta cui cui cui scorrendo babinhas fumegantes o sábio povo ascendeu ao cume de cui Si mesmo um gigantesco raposo os lagomorfos alvinhos que parecia poder cair sobre as cabeças cumpria-se assim a mais divina de suspiraram de alívio da terra las profecias delantre la perpétua libardade o nascimento do inverno an que se percebian Star o druída ergueu-se num pulo pela brancura animal que o trouxe ao chão dos montes de verno pousaram as suas quatrocentas trou- liebantou l barapau de sabugueiro i xinhas gritou a doçura dos melões perpetuou-se livraram-se dos adereços num tom de profecia nas lendas alvânicas e em ritual dionísiaco comeram deli- cuuuuui berço de uma espécie ex_tinta ciosas ervas seguidas dua beilça ourgiástica todo o povo elevou as nalguinhas ainda hoje que se grababa assi na parede de roçando os bigodes na terra um bielho nino com cabeça de l’anfenito rupestre falcão o druída manteve-se incompara- diz em muas em todo este momento velmente fi rme esteve o druída suspenso sobre o e pelos ares epifânicos de la cordi- melones doceilhos pilriteiro lheira ambierno sin coneilhos • horizontalizado e envolvido com entoava Habib Koite & Bamada milhares de euplágias em cântico de mali ba que lhe extasiavam as meninges do Ser

19 ~ Infernus XXIII Uma orquestra (quase) natalícia Flávio Gonçalves Flávio Gonçalves

fos do Pai Natal ou em qualquer ponte gelada e assombrada, no wendigo ou Em 2000 sucumbia à curiosidade (após ter lido as várias nas pagãs árvores de Natal que ainda sobejam nos lares portugueses, o In- recensões nas Rock Brigade e Roadie Crew, as parcas revistas verno faz com que o Homem sonhe, imagine, crie! que chegavam aos três quiosques da ilha do Faial, onde então Foi com esse espírito que há um ano, precisamente, ousei organizar a residia) e encomendava, por intermédio da extinta e mítica antologia “Pesadelos de uma Noite de Natal”, um dos milhentos projectos Thrash Publishing de Mário Lino... que ainda tenho na gaveta, embora tendo recebido dezenas de contos ori- ginais destinados à antologia, tanto de ...uma das duas fontes discográfi - queleto ressente-se. autores nacionais como brasileiros, por cas durante toda a minha juventude, Embora só tendo lançado mais motivos de força maior que me eram a outra seria a mail order da Carbono um disco dedicado ao Natal, The Lost alheios (incumprimento contratual por do não menos mítico Centro Comer- Christmas Eve (2004), tendo lançado um parte do então distribuidor da editora cial Portugália, onde se concentravam álbum duplo Night Castle (2009) mais onde trabalho) o projecto acabou por todas as lojas de cultura alternativa da genérico, os concertos da Trans-Sibe- não chegar ao grande público pese capital antes de o encerrarem prema- rian Orchestra tornaram-se já numa embora o bom número de originais turamente sem qualquer razão convin- tradição natalícia nos Estados Unidos recebidos e inclusive ao desenho da cente – o álbum Beethoven’s Last Night da América, com todo um aparato que capa, da autoria da talentosa Vanessa da Trans-Siberian Orchestra. inclui, além de orquestras, muito fogo Bett encourt, com quem já tinha traba- O álbum, que coloca Ludwig van de artifício, espectáculos com lasers, lhado no álbum de banda-desenhada Beethoven no difícil papel de Fausto, actores convidados, etc., mais que um Murmúrios das Profundezas. negociando a sua alma com Mefi stó- concerto, trata-se de um happening me- Há que honrar o frio criador que feles, impressionou-me. Fã confesso morial para toda a família. desperta a imaginação do homem para de projectos mais sinfónicos, como Curiosamente o Inverno, ambiente o pior e para o melhor, sejam monstros Therion, não havia como não gostar de fundo de inúmera literatura de ter- horrendos que se escondem no breu à de uma “ópera rock” entre cujo trio ror e sobrenatural (a par com o Outo- espera da mínima distracção para nos fundador se encontravam Jon Oliva e no, que costumava ser a minha altura retalharem e reduzirem a uma pejago- Al Pitrelli que, com os seus Savatage, favorita do ano antes de aparentemen- sa poça de muco, sangue e entranhas, tinham dedicado, em 1998, o título de te ter desaparecerido nos anos mais seja na crença de uma bondade avas- um álbum ao nosso Fernão de Maga- recentes à pala das alterações climáti- saladora que inunda todo o planeta, lhães (The Wake of Magellan, embora o cas), trate-se de argumentos de séries em rituais que nos levam a inundar de álbum não tratasse do navegador por- de televisão, cinema, contos (nos EUA colorida luz as escuras e longas noi- tuguês mas de um suicida pescador ainda existem revistas especializadas) tes. Tudo isso é Inverno, haverá altura espanhol) e o compositor Paul O’Neill ou romances, há todo um imaginário mais mágica do ano? • (ex-produtor de Aerosmith, AC/DC em redor do Inverno, pense-se nos el- e Scorpions, entre outras estrelas), o ‘ideólogo’ do projecto. Em menos de dois meses recebia Christmas Eve & Other Stories (1996) e The Christmas Att ic (1998), os dois primeiros álbuns cuja temática, como demonstram os títulos, era, mais que o Inverno, o Natal! Um casamento per- feito, como poucos o conseguiram, en- tre heavy metal e música clássica, com orquestra incluída e uma variedade gigantesca de vocalistas masculinos e femininos (56 até agora) devido ao grande volume de concertos (estão no top-10 das bandas que mais bilhetes venderam na primeira década deste século XXI). Escusado será dizer que desde en- tão estes são os meus álbuns de exce- lência mal chega o gélido conforto do frio e das noites longas, há uma década que me aquecem o coração, desde os tempos em que os acompanhava com B-52s, shots fumegantes de absinto e goles de cerveja no bar de algum ami- go, até ao actual serão regado a chá, cafés com natas e chocolates quentes, que isto da idade não perdoa e o es-

21 ~ Infernus XXIII

O inverno Faustiano na primavera da utopia, ou como o mundo verdadeiro acabou por se tor- nar numa fábula. Pedro C. Pontes O Inverno Faustiano

tureza, além do trabalho manual, no quase (Refl exão sobre o mito de Fausto, o auto-conhecimento e a noção completo isolamento do mundo secular. de decadência em Nietzsche) Em todas as épocas recentes, nas quais nos cruzamos com nós próprios, optou-se pela aniquilação de todos os “Se eu estiver com lazer num leito cal, Panacea indispensável unicamente considerados inimigos da fábula pre- de delícias, não me importa morrer... aos degenerados. sente. Nós, imoralistas e anticristos, Quero fi rmar o acordo” Os Trapistas* que hoje não conse- vemos uma vantagem nesse facto. Goethe guimos ser darão um sentido ao es- Contudo, o inimigo interior, esse con- tado geral de um temperamento, tão fl ito eterno, devia espiritualizar-se e “De todo o poder que sustenta o excessivo quanto hostil, convertido em honrar o sentido do instinto da vida. mundo acorrentado o homem ódios que atingirão o seu clímax, não Essa moral, sã e natural, seria a anti- liberta-se quando ganha o seu auto- neste solstício, nem nos vindouros, moral face à moral antinatural pratica- -controle” sem que antes essas naturezas percam da, usurpadora dos instintos da vida. Goethe a consistência para se entregarem à eli- minação do seu “demónio”. O confl ito “Não procures proveitos desonestos, os Neste momento em que o ci- de Fausto e Mefi stófeles simboliza a proveitos desonestos são perdas.” clo da luz solar ilumina em todo o própria humanidade descontente com Hesíodo seu esplendor e nos indica magis- os seus sonhos, construídos na fábula tralmente o caminho num tempo, desta realidade desprovida de espírito Para realizar e reconhecer o aguardamos pacientemente por e de sentido cheia de vendedores da que já não é um estado de Natureza, uma guerra inteligente contra a pai- Panacea. A espiritualização da sensua- mas uma simples ilusão possível, é xão, não querendo extripar a vida lidade chama-se amor e este não será necessário superar essa dita espiritu- pela raiz, contra os inimigos da vida o nosso maior triunfo. Não obstante, alidade, bem como a virilidade mate- e os seres demasiado débeis de von- a espiritualização da inimizade pode rializada na fábula da terra do ocaso, tade na luta contra o desejo e que mexer nesse tempo, retirando-se daí do declinar do ser, onde morre o dia e mutilam as paixões, os demasiado algumas conclusões, contraditórias começa a noite, entendendo esse fi no degenerados nas suas necessida- com o que outrora se fez e acreditou. traço que separa o herói do meio dia des e naturezas, falando com e sem do titã e do vilão da noite, para nos imagens, de uma defi nitiva declara- *Ordem dos Trapistas, monges católi- livrar-mos da inutilidade da aparên- ção de hostilidade, que agora nos é cos, de grande rigor de vida, e que culti- cia, podendo dar assim origem a um apresentada como um remédio radi- vavam a oração e a comtemplação da na- novo ciclo que já Hesíodo anunciava,

24 ~ Infernus XXIII Pedro C. Pontes

“a geração dos heróis” criada por Zeus, a brecha da transcendência, voltando dá essa identifi cação com o drama, o como uma possibilidade para atingir a reconhecer e viver o ponto mais alto esperado, o desejado e ao “cantá-lo”, esse estado prôtogeno. em que o sol liberta toda a sua luz que afi rmando-o, venerando, pregando. As revela, por outro lado, na sua perver- canções acompanham os que buscam, são, o lugar perigoso do “herói espera- com palavras o mais provável é que “No princípio do mundo, como do”. O lugar vazio sobre o qual se abre este drama se materialize nas ruas da gravemente pondera Séneca, porque o abismo e onde é sempre fulminado indiferença e se afi rme como uma pre- não havia guerras ? Porque usavam os o “não-eleito”, que assumindo a sua sença fugaz e romântica numa rebelião homens da terra como do céu. O sol, vaidade e o seu orgulho, em prol do contra os instintos da vida. A santida- a lua, as estrelas e o uso da sua luz é acto heróico e bélico, sobrepondo-se de, o castrado ideal é onde a vida aca- comum a todos e assim era a terra no ao verdadeiro “herói”, supra-sensível ba e começa o reino dos Prôtogenos, o princípio: porém depois que a terra se que reconhece em si próprio o acto da princípio e o fi m. dividiu em diferentes senhores, logo humildade, vive exprimindo o conhe- houve guerras e batalhas e se acabou a cimento transcendente de si próprio, paz, porque houve meu e teu” contra a condenação da vida já de si “Quando a chave de toda a criatura P. António Vieira moribunda, cansada, condenada. O seja mais do que número e fi gura, mundo já pensado como uma conso- e quando esses que beij am com os lá- A degradação dos heróis que di- lação. bios, zem lutar por essa libertação expres- e os cantores, sejam mais que os sábios, sa-se numa revolta contra o espírito, “O mundo verdadeiro foi por nós des- e quando o mundo inteiro, intenso, vi- caracterizada pelo orgulho, violência truído: que mundo resta? talvez o aparen- bre e belicismo. É a revolta titânica que te?...Mas não! Com o mundo verdadeiro devolvido ao viver da vida livre, consome então todo o espírito neces- destruímos igualmente o aparente.(Meio- e quando luz e sombra, sempre unidas, sário para sair dessa obscuridade, par- -dia; momento da sombra mais curta; fi m celebrem núpcias íntimas, luzidias, ticularmente clarifi cadora da raiz do do mais longo erro; culminação da huma- quando as lendas e líricas canções, fenómeno do materialismo selvagem nidade; INCIPIT ZARATHUSTRA.)” escreverem a história das nações, e da sacrossanta moral detes tempos Nietzsche então, a palavra misteriosa em que o inverno não nos abandona. destruirá toda a essência mentirosa.” Hybris, o eu e o seu invólucro que nos O perigo real de se tornar num fal- Novalis • paralisa todas as acções, de abrirmos so herói de si próprio existe quando se

25 ~ Infernus XXIII Seleccionado e exumado, uma atitude indisputada José Macedo Silva José Macedo Silva

apenas eram um pouco mais sortudos nero eram mais raras que o ouro, e o co- A primeira vez que o “vi” foi por terem nascido num país que lhes nhecimento musical era bebido nos cor- facultava outros horizontes, para além redores da escola e nos “furos” entre as pouco depois da doença da minha da “marmelada” por cima da relva da aulas, ou à porta de casa, ao crepúsculo, escola, uns quatro ou cinco concertos nas tardes mínimas de Inverno. mãe. por ano, e umas escapadelas ténues e Hoje as coisas são mais rápidas e fugazes até à discoteca “quando o rei precoces, não há admiração nem en- fazia anos”. tusiasmo, basta para tal ligarmo-nos Recuperava de uma doença grave Dário, sentado sobre a cama des- ao mundo via net e descarregados um de que não importa aqui falar, a não ser feita e de pernas cruzadas como um número quase infi nito de obras, na sua que teve que ver com o facto de exis- Buda falava-me daquele álbum musical maioria de qualidade dúbia e desin- tirmos quase sem sentido e signifi cado com todos os assomos intelectuais ad- teressante, perfeitos plágios de mau alguns, aguardando serenos e de faces miráveis de que tinha justamente fama gosto inconsequente, rasgos de uma cálidas e resignadas o epílogo da nossa de sabedor. A certa altura discutíamos pseudo-criatividade prostituída com a vida. Aí, uma sensação horrível abarca- aquelas canções e pensávamos se algu- indústria musical. Naquela altura havia -se de nós, e tudo parece estar morto. ma vez chegaríamos a ouvir coisa pare- uma espécie de delinquência saudável Quando tomei conhecimento da sua cida made in Portugal. envolta em mistério. Não, não recordo “existência“, começou realmente para Tudo isto data de tempos re- hoje, nem exumo, como tesourinhos de- mim aquela parte da minha vida, a que cuados, estávamos em 1994; Slayer re- primentes, mas a pureza artística aliada se poderá chamar de um gosto efusivo gressava de um hiato de quatro anos à inocência da juventude. e de difícil agrado pelo som saído das - depois do magistral lançamento de O meu grupo de amigos, com Dário cordas vibrantes de um baixo, de uma Seasons in the Abyss, e o incompreensí- à cabeça, éramos uma espécie de ado- guitarra, ou da pele dos bombos, ou do vel abandono do senhor Dave Lombardo lescentes saídos do reformatório, e que metal cintilante dos pratos de uma ba- da eterna bateria da banda california- visitavam a grande cidade pela primei- teria. Antes disso, nunca me tinha apai- na -, com o álbum Divine Intervention; ra vez, cometendo as maiores loucuras xonado verdadeiramente pela música, e quanto a mim o trabalho mais refi nado inerentes à condição de “puto”, comen- o que ouvia era o que passava na rádio, da banda, e a estreia muito capaz do do jovens amigas de dezasseis anos, e pouco mais. Não me tornei músico, então jovem Paul Bostaph aos comandos ainda frescas e intocáveis, hoje senhoras nem planos fi z para um dia abraçar a da bateria da tribo de Kerry King e de doutoras em grandes empresas, ou téc- arte de Wagner, etc, nem planos vagos Tom Araya. Slayer, e mais uns quantos nicas superiores, ou quadros intermé- partindo concretamente do nada, nem nomes do trash-metal era o meu forte, dios na Administração Pública. Outras, nada. claro, para além daquilo que a rádio me como a Madalena, uma miúda gira e As primeiras notícias que tive dava a conhecer. pequenina e espevitada, vivem hoje da “dele”, ou seja, as primeiras audições, Naquela altura não havia internet docência e leccionam para pequenitates chegaram-me por um amigo da ado- por aí, as revistas especializadas do gé- de narizes ranhosos e com piolhos nos lescência. O Dário era um “mestre” na “área”, tinha longos cabelos descendo compridos pelo meio das costas secas e magras e encurvadas pelos genes - a sua família sofre de espondilite anqui- losante; e eram louros e amarelos como a areia do mar brilhando no sol quente de Agosto. O Dário mostrou-me aquele álbum no seu pequeno quarto como uma cai- xa de sapatos, mas perfeito. Sim, era incrivelmente perfeito para nós jovens adolescentes, de paredes cobertas de posters das nossas bandas favoritas, uma cama por fazer, meias e cuecas es- palhadas pelo chão, revistas pornográ- fi cas no armário e debaixo da cama, e uma guitarra eléctrica encostada a uma velha cómoda picada de térmitas, que o Dário usava para encantar as nossas co- legas na escola secundária com riff s de Metallica e de Judas Priest; mal tocados, mas que se lixe, nenhum de nós tinha formação musical, apenas e somente o gosto pueril pelo diferente e pelo excên- trico, qualidades soberbas da eléctrica música moderna. Fiquei bestialmente curioso com as canções, em número de catorze, carre- gadas de inocência e delicadeza musi- cais, até porque os seus autores tinham aproximadamente as nossas idades,

27 ~ Infernus XXIII Seleccionado e Exumado

da roupa de cama, e cruzei os braços atrás da cabeça sobre a almofada. Lá fora as pesadas gotas de chuva batiam febrilmente no algeroz. A temperatura baixou imenso, afi nal estávamos no In- verno. O álbum Tales From the Thousand Lakes dos fi nlandeses Amorphis dispara- va em todas as direcções, e cada música é um delírio, primeiro com a intro Thou- sand Lakes e os brilhantes teclados de Kasper Materson de qualidade igual à de um Michael Nyman; depois Into Hidding um verdadeiro clássico melodioso e com óptimos vocais limpos; The Casta- way onde as guitarras fazem clara men- ção à música regional fi nlandesa; segui- da de First Doom; e claro a sumptuosa Black Winter Day, um hino que dispensa apresentações onde a melodia certa e agressiva das guitarras de Esa Holopai- nen e de Tomi Koivusaari aliam-se com muita dignidade ao baixo de Olli-Peka Laine; depois Drowned Maiden onde há equilíbrio entre melodia e Death Metal na perfeição; seguindo-se a forte e ca- denciada In the Beginning; assim como o é também Forgott en Sunrise; To Fathers cabelos aos caracóis; e custa-me acredi- voltar a enrolar muito cuidadosamente Cabin mais emotiva com vocais essen- tar o que aquela “gaja” me fazia… com o lápis, para não rebentar. cialmente limpos e com ênfase na parte Bem, avante…apanhávamos o com- Outros amigos se nos juntaram, e instrumental, segue de seguida; e por boio a troco de meia dúzia de tostões, e nessa tarde todos bebemos cerveja ba- aí adiante… uma boa versão para Light saíamos por esse “rectângulo” dentro/ rata, e eu embebedei-me e larguei umas My Fire do The Doors, na posição cator- acima e abaixo como uma espécie de bocas e umas lérias foleiras, e fumámos ze, antecedida da maravilhosa Moon Almeida Garrett ’s do século XX, viven- tudo o que tínhamos, as beatas dos cin- and Sun Pt II: North’s Son”. do na estrada fora as “Viagens na minha zeiros, inclusive. A cassete parou. Já não me sentia Terra”. Dormíamos em cubículos sem Ergui-me de pernas muito a cus- tão enjoado após os mais de quarenta água quente nas ruas mais escuras e to, despedi-me do pessoal e tremendo minutos de fantasias materializadas em acanhadas da grande cidade, fosse ela como varas verdes na minha primeira notas musicais. Levantei-me e fui à ja- o Porto invicto ou a luminosa Lisboa; e grande bebedeira fui embora, rumo nela. A chuva continuava, era Inverno. tudo isto para tomarmos nos ouvidos a casa. A luz daquele dia sombrio era O rio Douro corria pesado e alto da um dos poucos concertos musicais do pardacenta; o sol escondeu-se por entre chuva. Já fazia noite, e um barco Rabão ano, a que os nossos pais se permitiam as nuvens grossas, o vento levantou-se carregado de vinho do Porto descia len- a eles próprios nos deixar ver, muito a mais forte, e as primeiras gotas de chu- to as águas turvas em direcção ao mar; custo. va pesadas como pedras caiam-me na iluminado por dois faróis; a pouco e Mas, voltando ao que interessa. Es- pele branca de porcelana. pouco foi desaparecendo até que ape- tava eu com uma das miúdas, a minha Dirigi-me para casa nervoso, e só nas um fogacho de luz rompeu na escu- preferida miúda gira e pequenina - a conseguia pensar em como passar des- ridão. Entretanto já barco não era, dis- Madalena - comendo bolos de açúcar percebido aos olhos dos meus pais. solvido que estava na penumbra do rio. cristalizado numa esplanada da vila, ao Entrei em casa pela cozinha, a la- Fui para dentro, e mudei a cassete sol pálido de Inverno, com as nuvens reira estava acesa ardendo num lume para o lado A, e carreguei novamente amontoando-se em negros rebanhos brando mas apetitoso. Fechei a porta no play. Estava viciado defi nitivamente, por cima da montanha, pesada massa para o exterior e fi z o chão de mosaico e de novo o álbum ousado para aqueles imóvel, e ameaçando descarregar as castanho do corredor em bicos de pés. tempos do Amorphis, principalmente vísceras sobre o pequeno lugarejo nor- A porta da sala estava aberta. A minha para o já longínquo ano de 1994, onde tenho. Ao longe, saído na estação das mãe estava sentada na poltrona e cosia o death-metal se encaminhava para ou- camionetas, Dário, de longos cabelos meias; o meu pai lia o jornal, e tomava tras paragens mais brutais, rodou uma, amarelos largados no vento procurava por debaixo dos óculos de massa a luz e uma outra vez, até que, adormeci um sítio para comer, e parecia querer do candeeiro. Pé ante pé e fazendo o bem para longe de tudo e de todos os entrar decidido na padaria que também menor barulho possível dirigi-me para problemas, naquele “black winter day” vendia para fora, e servia ao balcão. o quarto. Fechei a porta e deitei-me so- disparado no tempo. Chamei-o aos berros, ele ouviu, e bre a cama. As paredes tremiam-me E sentei-me, e escrevi, intimamente.• veio para junto de nós. Já tinha a mi- nos olhos e sentia-me enjoado. Des- nha cópia do álbum em formato tape. cansei um pouco, levantei-me, larguei Huummmm, que saudades, das velhi- as botas na alcatifa e despi a roupa e nhas cassetes de fi ta, e de quando a fi ta atirei-a para cima da cómoda. Coloquei se enrolava no walkmann ou na apare- a cassete na aparelhagem e carreguei lhagem, e tínhamos que a desenrolar e no play. Voltei a deitar-me, por dentro

28 ~ Infernus XXIII Moon’s Milk Júlio Mendes Rodrigo

29 ~ Infernus XXIII Moon’s Milk

“A white rainbow (a roaring aura) Under an unquiet skull (A tremulous column of air, hanging there) Moon’s milk spills from my unquiet skull and forms a white rainbow…” Coil - A White Rainbow

“Music to Play in The dark” postcard

O Tempo Sagrado e os Mitos ser, tranquilizando-se apenas enquanto Seguindo ainda o posicionamento imóvel =(morto). Através dos ritos, o do supracitado autor, para o homem re- Roger Caillois, compagnon de route Sagrado de Coesão opõe-se ao Sagrado ligioso das culturas arcaicas, o mundo de Georges Bataille no prolífi co pe- de Dissolução. Nas palavras de Caillois, renova-se anualmente, reencontrando ríodo da criação da revista Acéphale “O primeiro sustenta e faz durar o uni- em cada novo ano a sacralidade origi- (1936/1939),considera o Sagrado como verso profano, o segundo ameaça-o, sacode- nal, tal e qual como ela se tenha efectu- condição da Vida e porta da Morte. -o, mas renova-o e salva-o de uma lenta ado ab origine, in illo tempore. Para este autor, a sociedade e a natu- ruína.” Para o homo religiosus, a Natureza reza assentam na conservação de uma Por seu turno, Mircea Eliade, auto- nunca é exclusivamente natural, encon- ordem universal, que é protegida por ridade máxima no que concerne à His- trando-se imbuída de um valor religio- múltiplos interditos, com o objectivo de tória Comparada das Religiões, ao dis- so. Tendo sido o Cosmos criado por via garantir a integridade das instituições, sertar acerca da duração profana e tempo numinosa, fi ca o Mundo impregnado assim como, a regularidade dos fenó- sagrado, afi rma o seguinte: de sacralidade. Ainda para Eliade, os menos. “Tal como o espaço, o tempo também não deuses, “manifestaram as diferentes mo- A mistura e o excesso, a inovação e a é, para o homem religioso, nem homogéneo dalidades do sagrado na própria estrutura mudança são temidos, apresentando-se nem contínuo. Há por um lado, os interva- do mundo e dos fenómenos cósmicos.” O como elementos de desgaste ou de ru- los de tempo sagrado, o tempo das festas (na mesmo autor, socorrendo-se da mito- ína. Desta forma, a existência e prática sua grande maioria, festas periódicas); por logia babilónica, elucida-nos acerca de dos mais distintos ritos almejam a sua outro lado, há o tempo profano, a duração alguns dos aspectos da repetição anual expiação, restaurando o ordenamento temporal ordinária na qual se inscrevem os da cosmogonia. que eles perturbaram, mas acabando actos privados de signifi cação religiosa. En- No decurso da cerimónia akîtu, que por admiti-los, eles próprios, neste or- tre estas duas espécies de tempo, existe, bem ocorria nos últimos dias do ano e nos denamento, neutralizando as suas pe- entendido, solução de continuidade, mas primeiros dias do Ano Novo, recitava- rigosas forças, reveladas pelo simples por meio de ritos o homem religioso pode -se de forma solene o «Poema da Cria- facto da sua intromissão, isto, num «passar», sem perigo, da duração temporal ção», o Enuma elish. Através desta reci- mundo que só procura subsistir no seu ordinária para o tempo sagrado.” tação ritual, reactualizava-se o combate entre Marduk e o monstro marinho Tia- mat, combate que tivera lugar ab origine, pondo fi m ao Caos pela vitória fi nal do deus. Segundo a mitologia em questão, Marduk criara o Cosmos com o corpo retalhado de Tiamat e criara o homem com o sangue do demónio Kingu, alia- do principal de Tiamat. Esta reactualiza- ção do acto cosmogónico, entre Tiamat e Marduk, era encenada através de uma luta entre dois grupos de fi gurantes. A luta entre os dois grupos repetia a pas- sagem do Caos ao Cosmos, actualizando a Cosmogonia. O acontecimento míti- co era recuperado das memórias mais primevas, voltando a situar-se no pre- sente. O combate, a vitória e a Criação tinham lugar” naquele mesmo instante, hic et nunc.” Nesta perspectiva, de ritualização

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de sabedoria).”Olhando de forma retros- pectiva para dois mil anos de História, constatamos a ambivalência desta insti- tuição relativamente às tradições pagãs, através de uma lógica de repressão e de recuperação (apropriação). Assim se compreende a substituição do dia de nascimento de Mitra pelo do nazareno. Já Justino afi rmava que os cristãos ha- viam usurpado o dia do Sol, “Dies Nata- lis Solis Invictus”,ou Natividade do Sol In- vencível. Também o próprio imperador Constantino, nesta lógica de ambigui- dade usurpatória, havia composto uma oração que tanto podia satisfazer os adoradores de Mitra, como os de Séra- pis, do Sol e do próprio Cristo. Fazendo coincidir as suas festas com as do paga- nismo, ”o cristianismo arrebatou-lhe assim e em proveito próprio, o seu simbolismo. O simbolismo do fogo, tão importante na tra- dição pagã, foi integrado na liturgia cristã.” Esta era uma festividade do Fogo e da Luz, em que se celebrava o solstício através do recurso a fogueiras, archotes ou rodas infl amadas que eram lançadas nos campos. Estas manifestações ígneas constituíam verdadeiras homenagens ao astro rei, intrinsecamente veiculadas aos ritos de fertilidade, destinados a fe- cundar os campos. Para a melhor com- preensão destes ritos, convém também assinalar que, no Oriente não cristão, bem como em Roma, também se come- moravam os solstícios. Em Alexandria, celebravam-se a 11 de Tybi (5-6 de Janei- “Cartão de Boas Festas” assinado por , , Ott o Avery e ro) as festividades de Osíris, neste caso Stephen E. Thrower” 1989 em concreto, helenizado e assimilado a Dionísos. Os primeiros dias eram de e renovação cíclica, enquadramos a de misericórdia”, a igreja cristã, logo a luto para chorar Osíris - Sol morrendo celebração dos equinócios e solstícios, partir da Idade Média, passou a rotu- no solstício. De acordo com Jean Hani entendendo que é consensual afi rmar lar tradições e símbolos pagãos como “representava-se a inumação do Deus, de- que os povos de matriz indo-europeia “demoníacos”. Através das plumas dos pois Isis partia à procura do esposo e, a 5 colocavam particular atenção ao curso clérigos surgem as primeiras descrições de Janeiro, na alvorada, dava à luz Harpó- do Sol no céu. De forma pontualmen- relativas à bruxaria. O próprio diabo é crates, deus do sol nascente.” Encontra- te cíclica celebravam fervorosamente o entronizado como o «Príncipe das Tre- mo-nos pois, perante um simbolismo solstício de Inverno, assim como o de vas». Quando relatado como portador assente numa unidade transcendental Verão. Efectivamente, para estes povos, de Luz (leia-se Lúcifer), esta é conside- que recorda a regeneração periódica do os solstícios acabavam por representar rada como infernal. A mesma das cha- tempo e do mundo pela repetição dos momentos fulcrais no desenrolar do ci- mas onde nos círculos infernais ardem arquétipos. clo anual. Inexoravelmente, no decorrer os “danados”. Ainda sobre a fi gura de Arquétipos que se manifestaram dos meses, o homem desse período po- Lúcifer, neste contexto, atentemos às ao longo de milénios através do mito dia constatar, a respiração da Natureza, refl exões estabelecidas por Pierre Vial: da Criança Divina,a quem os cristãos que embrenhava terra e arcadas celestes “Os fogos aos quais ele preside são os designaram de Jesus, e a quem outros numa simbiótica transformação. A ilus- do sabbath, sob a forma de um «grande bode povos mediterrânicos apelidaram de tração da fé destes povos confi rmava-se fétido», imagem «negativa» do bode de Thor Apollo, Dioníso, Osíris, Adonis, Att is pela sua adoração do Sol e veneração e do deus Pan ou de um grande cervo, recor- e Mitra, enquanto que mais a norte, do Fogo. dação do deus celta Cernunnos. O caldeirão os povos escandinavos mencionavam A festa nórdica de Jul, cristianiza- sagrado dos druidas tornou-se o caldeirão como Balder. da com o nome de Natal não se limita das bruxas. Já não serve para fabricar a Na já anteriormente mencionada apenas a um dia só. Representa sim, o bebida da imortalidade, mas para fabricar obra de Mircea Eliade, “ O Sagrado e o Solstício de Inverno, o ponto culminan- fi ltros de morte. Os sabbaths desenrolam- Profano”, o eminente autor enfatizava o te, a mais sagrada das noites. O homem -se no coração das fl orestas, lugar de pre- seguinte, relativamente ao enfraqueci- arcaico recusava acreditar na morte do dilecção da espiritualidade pagã, e a bruxa, mento e esmorecimento do culto do as- Sol, ciente da rotatividade cíclica da votada ao diabo, está rodeada de animais tro rei, à medida que os séculos percor- Natureza e da perpetuação da Vida. To- satânicos: os negros corvos (companheiros riam o seu lento e inabalável percurso davia, na sua “infi nita tolerância e espírito de Odin) e as corujas (aves de Atena, aves de forma inexorável:

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“O Sol é proclamado a inteligência do Mundo, e Macróbio identifi ca no Sol todos os deuses do mundo oriental, de Apolo e Jú- piter até Osíris, Horús e Adónis (Saturnais, I, cap. 17-23). No tratado sobre o Sol Rei do Imperador Juliano, assim como no Hino ao Sol, de Proclo, as hierofanias solares cedem lugar a ideias, e a religiosidade desparece quase completamente neste longo processo de racionalização.” Eliade também considera que, o mundo profano na sua totalidade, O Cos- mos des-sacralizado é uma descoberta recente na história do espírito humano. Todavia, Caillois, por sua vez, quando refl ecte acerca da Interiorização do Sagra- do, refere que as celebrações cíclicas fo- ram perdendo gradualmente a sua im- portância, logo que a civilização iniciou os seus primeiros passos, “com o início da divisão do trabalho, e mais ainda com o nascimento da Cidade e do Estado.” Importância diminuída mas não to- talmente perdida como atestam a as pa- lavras de Paulo Loução, que passamos a transcrever: “A compreensão intelectual de uma ideia atinge a mente concreta, gera o intelec- tualismo, mas a vivência dessa ideia atinge todo o ser, incluindo naturalmente o senti- mento. Daí a importância dos rituais, por onde ainda perpassa a vida dos mitos que expressam a luz arquetípica. Daí a impor- tância transcendente de um ser humano ter a possibilidade de viver um ideal de índole espiritual, aquando da sua passagem pela Terra.”

“There´s Too Much Blood in my Alchool…” “John Balance” por Val Denham Geff Rushton, mais conhecido por John (ou Jhonn) Balance, terminou a Quando morreu, os seus amigos, shadow and my friend the shimmering sua existência terrena no dia 13 de No- os mesmos que haviam participado na moon. vembro de 2004, após sucumbir aos compilação com o intuito de angariar Happily the moon knows nothing ferimentos resultantes de uma queda fundos que permitissem o seu trata- of drinking, and my shadow is never ocorrida devido ao estado de embria- mento, David Tibet () e Ste- thirsty. guez em que se encontrava. ven Stapleton (Nurse With Wound), es- When I sing, the moon listens to me Ao longo da sua vida foram múl- creveram as seguintes palavras: in silence. When I dance, my shadow tiplas as tentativas para combater este “With burning sadness and with bur- dances too. vício. Talvez a mais original tenha pas- ning sorrow we remember You as: Aft er all festivities the guests must sado pela edição de uma compilação kindest of men, funniest of men, most depart; this sadness I do not know. musical intitulada Foxtrot (1998) e que intuitive of men, most incisive of men, most When I go home, the moon goes contava com a generosa participação generous of men, a great artist, a great voi- with me and my shadow follows me.” de vários dos seus amigos, entre eles, ce, a great visionary, a great Soul and a gre- Li-PO (séc. VIII e. v.) o seu companheiro Peter Christopher- at Heart. Finally you were overwhelmed by son, e ainda dos seus aliados Nurse it all: by all the beauty and by all the pain. A Lua tem sido encarada ao longo With Wound e Current 93.Jhonn Balance You perhaps never knew how much you dos tempos como um importante e po- confessava-se desta forma: were loved. Till we meet again as we know deroso símbolo intimamente ligado às “For many the drug alcohol can off er we will, our dearest friend, with love always divindades Femininas. Foi através da comfort, sociability & solace, but for the al- to you dearest Geff , John, Jhonn, shape-shif- análise das fases da Lua, do seu «nas- coholic, it eats away at the creative spirit. It ter and joker, in angelic form now, playing cimento», da sua «morte» e da sua sub- traps and possesses it petrifying and rott ing with stars in the love of God.” sequente «ressurreição», que os homens away the human potential… tomaram consciência do seu próprio ser …I am an alcoholic. I am addicted to the Sister Moon no Cosmos e das suas possibilidades de chemical substance Ethyl Alcohol. It is my “I take a bott le of wine and I go sobrevivência ou de renascimento. Mir- Demon. My Ugly Spirit. I suspect I am lo- drink it among the fl owers. cea Eliade, autor já bastante referencia- cked in a lifelong struggle with it.” We are always three – counting my do ao longo deste texto, ainda na sua

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me, Oxfordshire. Nesta escola pública, uma das primeiras com uma unidade especializada em crianças autistas, dor- miam cerca de setenta jovens em regi- me de internato. As cabeceiras das suas camas eram adornadas por pinturas de Louis Wain. Fazendo fé em David Keenan toma- mos conhecimento que o muito jovem Geff Rushton, com 12 anos de idade, através de carta, encetou contacto com o célebre mago Alex Sanders, auto inti- tulado King of the Witches”. O motivo de tal apelo em idade tão pueril, segundo o próprio Balance, consistia no facto do “coven” de Sanders se encontrar intima- mente ligado à Natureza, e muito em particular pelo facto de prestar culto à Lua. Sanders terá respondido à interpe- lação de John, solicitando-lhe educada- mente que o voltasse a contactar assim que fi zesse 16 anos.

England´s Hidden Reverse

COIL. Who has the nerve to dream, create and kill, while the whole moves every part stands still. Our rationale is the irratio- nAL. Hallucination is the truth our graves are dug with. COIL is compulsion. URGE and construction. Dead lett ers fall from our shedding skins. Kabbala and KHAOS. Tha- natos and Thelema. Archangels and Anti- christs. Open and Close. Truth and Delibe- ration. Traps and Disorientation. Coil exist between Here and Here. We are Janus Headed. Plural. Out of time. Out “Alex Sanders” of place. Out of Spite. An antidote for when people become poisons. obra “O Sagrado e o Profano”, fala-nos da confl ito, mas também de reconciliação de Coil Manifesto (1983) existência de uma Metafísica da Lua: contrários, de coincidentia oppositorum “É graças ao simbolismo lunar que o foram descobertas e tornadas mais precisas Para David Keenan, autor do ma- homem religioso foi levado a aproximar vas- graças ao simbolismo lunar. Pode falar-se de gistral e já anteriormente citado, “ tos conjuntos de factos sem relação aparente uma metafísica da lua, no sentido de um sis- England´s Hidden Reverse; a Secret His- entre si, e fi nalmente integrá-los num só tema coerente de «verdades» concernentes tory of the Esoteric Underground”: «sistema». ao modo de ser específi co dos vivos, a tudo “…the early eighties witnessed the Vale a pena ainda faze uma exten- o que, no Cosmos, participa da Vida, quer third great modern magic revival, following sa citação, em que o nosso autor afi rma dizer do devir, do crescimento e do decresci- on from the late 19th century and the late que: mento, da «morte» e da «ressurreição». Por- 1960’s, as many of the facilitating cultural “É mesmo provável que a valorização que é preciso que o não esqueçamos, o que a conditions fell into place.” religiosa dos ritmos lunares tenha tornado lua revela ao homem religioso é não somente Este foi o período em que se cunhou possível a realização das primeiras grandes que a Morte está indissoluvelmente ligada à a designação de música industrial, ac- sínteses antropócosmicas dos primitivos. Vida, mas também, e sobretudo, que a Morte tualmente um género musical (a par de Graças ao simbolismo lunar foi possível pôr não é defi nitiva, que é sempre seguida de um toda a infi nidade de ramifi cações que em relação e solidarizar factos tão heterogé- novo renascimento.” entretanto se geraram) bastante apre- neos como; o nascimento, o devir, a morte, John Balance, desde muito jovem ciado por muitos dos que se encontram a ressurreição; as Águas, as plantas, a mu- sentiu o apelo irresistível e enfeitiçador intimamente ligados a uma mundivisão lher, a fecundidade, a imortalidade; as tre- do astro nocturno. A atracção sentida mais pagã ou ocultista. vas cósmicas, a vida pré-natal e a existência perdurou durante toda a sua vida, sen- De facto, através de uma certa ana- além-túmulo, seguida de um renascimento do um tema recorrente em muita da sua tomia da melancolia, iluminada pelos de tipo lunar (« luz saindo das trevas»); produção artística. O fascínio do jovem raios de um sol negro, assistimos neste a tecelagem, o símbolo do «fi o da vida», o Balance pelo macabro e palas matérias contexto politicamente dominado pelo destino, a temporalidade, a morte, etc.. Em ocultas, manifestou-se em tenra idade, Tchaterismo, à emergência de três ban- geral, a maior parte das ideias de ciclo, de remontando ao período em que fre- das incontornáveis de toda a história da dualismo, de polaridade, de oposição, de quentou a Escola Lord William’s in Tha- música do século XX;

33 ~ Infernus XXIII Moon’s Milk

Os Nurse With Wound, extensão indissociável do seu mentor Steven Sa- pleton. Os Current 93, veículo de dissemi- nação estético- ideológica de David Tibet (onde se destaca entre muitos ou- tros temas, o seu fascínio por Crowley, Louis Wain e um cero tipo de literatura decadentista e vitoriana), inclassifi cável musicalmente dada a diversidade de géneros musicais experimentados na sua vasta discografi a. Os Coil, por sua vez estiveram ac- tivos, curiosamente, cerca de 23 anos, remontando a sua génese ao período em que John Balance, então adolescente e mentor da fanzine Stabmental, tra- vava conhecimento com Peter”Sleazy” Christopherson, membro dos então Wreckers of Civilization, mais conhecidos por . Esta afi nidade estabelecida com Sleazy levou eventu- almente à participação de Balance no novo projecto pós TG, liderado por Ge- nesis Breyer P. Orridge. Estamos a falar obviamente de Psychic TV. John colabo- ra na realização do seu segundo álbum intitulado “Dreams Less Sweat”. John não terá fi cado imune à infl u- ência exercida pelo aspecto mais ritu- alista dos Psychic TV, criando em con- junto com John Gosling o projecto Zos Kia (nome tomado de empréstimo ao culto de Zos Kia criado porAustin Os- man Spare, outro grande mago inglês). Em 1983 o grupo, liderado por John Ba- lance opta pela designação defi nitiva de Coil. Remonta a este período a criação do registo de cariz ritualista intitulado “How to Destroy Angels”, muito propria- mente designado como um trabalho concebido para “permitir a acumulação de energia sexual masculina”. “ELpH 10” poster No período decorrido entre 1984 e 1991, o grupo edita três dos seus mais como ELpH ou Black Light District. À Quase no dealbar de um novo mi- aclamados discos; Scatology, Horse Ro- medida que John, atormentado pelos lénio, os Coil encetaram a criação de torvator e Love´s Secret Domain, respec- seus demónios mais íntimos, se com- uma série de singles (1998 - 1999) as- tivamente. Estes trabalhos abrangem prazia na entrega redentora do seu cor- sente na celebração dos solstícios e dos uma disparidade de géneros musicais, po e da sua alma a Baco, iniciavam-se as equinócios, posteriormente compilados incorporando elementos ambient, in- primeiras actuações ao vivo do grupo, no disco duplo Moon´s Milk (in four dustriais, techno e música folk. Também ao fi m de quase 20 anos de existência. phases),( 23). não se coíbem da utilização massiva Paradoxalmente John, para gaudio e de samplers. As suas preocupações de êxtase de todos os quantos puderam cariz mais fi losófi co centram-se, neste assistir a uma das suas performances, Winter Solstice período, em torno do misticismo, paga- havia encontrado, fi nalmente, o regis- nismo, gnosticismo e obviamente com to vocal que mais se lhe adequava en- This black dog has no owner um enfoque muito particular na fi gura quanto performer. This black dog has no odour de Aleister Crowley. Nesta época acentua-se mais o já Coil- North A partir do fi nal da última década antigo interesse da banda em temáticas Abandonada a fase em que a banda do século passado, até a data da morte subordinadas ao Paganismo. John pas- - como outras que entretanto se afi rma- de John Balance, os Coil, reforçaram a sa a designar-se como um Born Again ram e devidamente infl uenciadas pelos sua reputação de banda de culto atra- Pagan, não sendo de estranhar a edição Coil se começaram a movimentar den- vés da exploração de novas abordagens de dois álbuns ilustrativos da sua músi- tro do mesmo espectro musical - inten- musicais. Data deste período, uma so- ca lunar, por oposição a uma fase mu- tava combinar as diferentes dimensões noridade mais ambient pejada de drones. sicalmente embrionária de cariz solar, do sagrado e do profano nas imedia- É o início de profícuas colaborações e muito convenientemente intitulados de ções circunscritas a uma pista de dança do surgimento de diversos side projects, “Music to Play in the Dark”. em tons technicolour, os Coil optam por

34 ~ Infernus XXIII Júlio Mendes Rodrigo uma conceptualização musical onde se encontra por demais evidente a tenta- tiva de contribuir para uma re-sacrali- zação de um mundo moderno cada vez mais envolvo e aprisionado no Deserto do Real. Mas, quiçá, também fosse esta nova direcção, uma forma de Balance tentar obter o tão almejado Equilíbrio pesso- al, através da inclusão de práticas ritu- ais, possibilitadoras da substituição do Caos pela Ordem… Karlheinz Stochausen (membro ho- norário da própria banda após convite efectuado aquando da performance de ambos no Festival Sonar em Barcelona), numa entrevista concedida em Junho de 1973, já se havia referido a uma to- mada de consciência relativamente à Natureza transcendental da música. Torna-se-nos por demais evidente constatar esta mesma tomada de cons- ciência por parte da banda britânica.O seu último opus, correspondente à serie consagrada aos solstícios e equinócios, teve por tema o solstício de Inverno, intitulando-se obviamente Winter Sols- tice. A edição em CD é composta pelos seguintes temas:

1.A White Rainbow “Jhonn Balance” 2.North 3.Magnetic North asseguram a duração do universo senão 4.Christmas is Now Drawing Near neutralizando-se reciprocamente. A saída desta bonança, deste lugar de calma relativa COIL–Coil Manifesto. 1983 As músicas que compõem este sin- em que a estabilidade, a segurança são maio- CUMONT, Franz – Os Mistérios de gle apresentam uma sonoridade densa, res que em qualquer outra parte, equivale à Mitra. São Paulo: Madras, 2004. cerimonial e extremamente melancóli- entrada no mundo do sagrado. O homem é ELIADE, Mircea –O Sagrado e o Pro- ca, roçando os limites do drone com um então abandonado a uma única das compo- fano. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. certo feeling industrial. O percurso fi na- nentes tirânicas sem a acção concertada das GODWIN, Joscelyn –Music, Mysti- lizado nesta conceptualização haveria quais não concebe forma alguma de vida, o cism and Magic. London: Arkana, 1987. ainda de ser continuado de forma mag- que signifi ca que a partir daí ele consentiu HANI, Jean – O Simbolismo do Tem- nífi ca através da posterior fase de musi- na sua perda, que ele opta por uma via teo- plo Cristão. Lisboa: Edições 70, 1981. ca lunar integrante dos registos Musick pática da renúncia ou pela via teúrgica da JUNG, C.G. &KERÉNYI, C. –The to Play in the Dark I e II, bem como atra- conquista, quer ele pretenda ser santo ou Science of Mythology; Essays on the Myth vés dos registos instrumentais posterio- feiticeiro quer ele se dedique a extinguir em of the Divine Child and the Mysteries of res, nomeadamente Queens of the Cir- si a paixão consumidora de viver ou a ela se Eleusis. London: Routledge, 2002. culating Library eConstant Shallowness entregue sem restrição. KEENAN, David –England’s Hidden Leads to Evil. O sagrado é aquilo que dá a vida Reverse; a Secret History of the Esoteric e o que a rouba, é a fonte donde ela corre, o Underground. London: SAF Publishing, estuário onde ela se perde. Mas é igualmen- 2003. “Moon’s milk spills from my un- te aquilo que em caso algum se poderia pos- LOUÇÃO, Paulo – A Alma Secreta de quiet skull and forms a white rain- suir plenamente ao mesmo tempo que ela. A Portugal. Lisboa: Ésquilo, 2002. bow…” vida é desgaste e perda. Ela obstina-se em MABIRE, Jean &VIAL, Pierre –Os vão em perseverar no seu ser e em recusar- Solstícios; História e Actualidade. Lisboa: Finalmente, optamos por terminar -se a qualquer dispêndio, a fi m de melhor se Hugin, 1995. este solilóquio, socorrendo-nos uma conservar. A morte espreita-a.” RODRIGO, Júlio Mendes –“Out vez mais da arguta explanação tecida ov Light Cometh Darkness” em SUMMA por Caillois, relativamente ao Sagrado, “…Bachus hath drowned more men Techno(i)logicae. Penafi el: Negra Tinta condição da vida e porta da morte: than Neptune.” Editorial, 2010. “O profano deve ser defi nido como a YOURCENAR, Marguerite – O constante procura de um equilíbrio, de um Com vista ao aprofundar das temá- Tempo esse Grande Escultor. Lisboa: Di- meio-termo que permita viver no temor e ticas abordadas neste texto poderá o lei- fel, 1994. • no saber, sem jamais exceder os limites do tor consultar as seguintes obras: permitido, contentando-se com uma medio- cridade dourada que manifeste conciliação CAILLOIS, Roger –O Homem e o Sa- precária de duas forças antitéticas que não grado. Lisboa: Edições 70, 1988.

35 ~ Infernus XXIII First Utt erance Comus Comus

“The Herald” é de uma beleza anos mais tarde que First Utt erance). O Solstício de Inverno é uma fantasmagórica, realçada pelo som, Versos como “The rope is slung and the semelhante a um theremin, com que a noose is tied and the Christian’s neck is das datas do ano mais frequen- canção inicia. A música desenvolve-se thin / The block is raised he stands erect durante mais de doze minutos, com the rope beneath his chin / They pull the tementes associadas à magia e à passagens instrumentais pastorais de block and the Christian drops he hangs uma delicadez imensa. A letra reforça above the sin” não deixam quaisquer feitiçaria. a tristeza com versos como – “The day dúvidas. É um baile pagão, tão alegre advances oh so soft ly his shadow lengthens quanto terrível. and his voice is mute / But clear is fl ute Segue-se “Bitt en”, um instrumental No dia em que a estrela solar me- and sadly walks forward followed by the que lembra sobremaneira os ambien- nos horas aquece a Terra, outro Sol day / Herald of morning walks across the tes do fi lme Nosferatu. apresenta-se muito mais poderoso. E earth eternally”. “The Prisoner” encerra o disco, co- First Utt erance de Comus é um daque- “Drip Drip” leva a extremos a ver- meçando numa toada mais calma mas les discos ideais para o contacto com tigem de “Diana”, e a letra debruça- derrapando até ao fi nal de loucura mu- uma outra forma de realidade, cujo -se sobre sadismo e extremo erotismo sical geral. Não podia de deixar de ser acesso é facilitado na proximidade dos (quase que arriscaria falar em certas uma canção sobre esquizofrenia e hos- solstícios e equinócios. formas de magia sexual). Vejamos es- pitais mentais. Gravado entre Novembro e De- tes dois versos versos – “Yeah, shall I As edições em CD de First Utt eran- zembro de 1970, e editado no ano se- cut you down / Yes it would be a physical ce trazem ainda o single “Diana” que, guinte, First Utt erance é um dos discos communion / I’ll be gentle”; ou – “Liquid além deste tema numa versão prati- mais estranhos e aterradores prove- red down your body spread / Your soft bre- camente igual à do álbum (para não nientes do mundo da folk psicadélica. ast glistens your deep navel fountains”. dizer mesmo igual), traz a balada de O líder da banda, Roger Woott on, re- “Song to Comus” é um feitiço em folk renascentista “In The Lost Queen’s conheceu o uso de drogas e o seu papel forma de música, com uma letra sobre Eye” e a belíssima balada folk “Winter determinante na escrita das canções de o duelo entre a castidade e a virilidade, Is a Coloured Bird”. First Utt erance. vencendo esta última de forma brutal E fi ca a sensação de que neste dis- O nome Comus provém da Másca- – “Comus rape, Comus break sweet young co as letras dizem muito mais do que ra com o mesmo nome escrita por John virgin’s virtue take / Naked fl esh fl owing parece à primeira vista. A descobrir e Milton, cujo enredo se desenrola à vol- hair her terror screams they cut the hair”. redescobrir, vezes sem fi m. • ta do personagem Comus que engana “The Bite” é o equivalente musical a Senhora por forma a trazê-la ao seu do fi lme The Wicker Man (saído dois palácio de prazer para ser vitimizada pela sua necromancia. Comus tenta levá-la a beber da sua taça mágica, que representa prazer sexual e intempe- rança, mas ela recusa, invocando pela virtude da temperança e castidade. A música de First Utt erance tanto é feita de fragilidade e beleza, como, e principalmente, do rodopio da de- mência, arrebatando completamente o ouvinte. Tanto nos obriga a parar para podermos apreciar a música dos entes fantásticos que erram pelos bos- ques, como a seguir nos leva a secre- tas e medonhas reuniões de bruxas, invocando poderosos demónios. Estas duas facetas de Comus juntam-se mui- tas vezes num único tema, mostrando- -nos a todo o tempo o inferno no céu e o céu no inferno. É um disco simultâ- neamente idílico e maldito, e a música nele contido permite uma viagem pelo seu interior que deixa o ouvinte zonzo no fi nal. First Utt erance começa com “Dia- na”, cuja letra bem podia ser um po- ema construído a partir de um conto de H.P. Lovecraft , reforçando a música o horror. Na realidade, retrata um dos episódios da Máscara de John Milton Comus, com a Senhora a ser perse- guida pelos bosques. E com “Diana” começa o delírio frenético por que é conhecido First Utt erance, música mór- bida para um bacanal animado.

37 ~ Infernus XXIII O INVERNO EM MIM ÍNDIVIDUO CONSCIENTE! Lupum Lupum

Fico contente pelo convite do carís- Olha a chuva… A lama de tormen- tos à chuva… Não estou sozinho… simo Lurker, para poder derramar tin- tos… Turbilhão de pensamentos e in- Vem sendo um hábito entregar um ta, pois esta é uma altura marcante e sanidades… Fecha-se um ano? Será o pouco de mim a mais do que mim! Já como tal desta vez não poderia deixar princípio? É qualquer coisa que é uma antes da entrega, estas e outras pala- de fazer uma refl exão muito pessoal extensão de querer e poder, num sem vras, consumiam um pouco da fl ama acerca do Inverno e do que nos rodeia, fi m de probabilidades. O cheiro das que tinha para extinguir! Aprende-se apontando para o que me marca mais, plantas que se confunde com a própria a sorrir nesta altura! Gosto de sorrir enquanto ser humano crivado de sen- noite que chega tão rápido… As tem- nesta altura! Melancólico-dependente: sações… pestades, que mudam as disposições Uma das minhas enfermidades! Uma Deambularei por ali e por aqui… do ser humano que insistentemente das minhas paixões! Uma das muitas Perto da passagem de ano… Muito deixa de querer voltar a errar… Fa- certezas que gosto de possuir! Não perto… Pois será neste solstício que zem-se promessas para um novo ano… sei se existirá algo ou alguém que me completarei 33 Invernos! Dualidade de Quebram-se juras… Logo a seguir! mostre o porquê de nesta altura do ano eus. Sons em cores quentes! Por vezes passo na baixa de Lis- refl ectir em decisões passadas! Iremos Roda viva de cheiros, de refl e- boa e vejo um mendigo de cara lava- refl ectir para cometer acções pare- xões… Roda viva de vida… A minha da pela chuva… Pela tristeza que lhe cidas? Que a vinda de um novo ano, refl exão não é só minha, é de mais um cavou sulcos junto ao olhar…E penso, além da ressaca, nos traga a nossa in- pouco do que é meu nesta altura do será que este também se lembra do que dividualidade, pois é isso que somos! ano! Poderei expressar o quão gosto prometeu e do que deixou por cum- E é por isso que pautamos! Ser sem de uma qualquer bebida agradável prir? Mais abaixo aquela água tão ge- obrigação de poder existir! Acreditas e deleitar-me com uma boa película, lada como a noite… A rua encontra-se mais além? Acreditas que podes olhar uma música e um livro devidamente a descansar com os candeeiros a olhar para o tempo e imaginar… PÁRA! acompanhado com o som da chuva… para baixo… A ver quem passa… Con- OLHA ALI PARA CIMA!!! ESCURO… Perdido naquele cantinho tão mono- densação nos olhos? Condensação nos ESTRELAS… Onde estou? Onde estás? -qualquer-coisa! Época que me deixa vidros de uma qualquer montra, es- O chão que piso dilui-se neste frio que sempre com um sentimento que é tão tagnada no tempo. Vejo o pó lá dentro, não me larga… Por onde passo sinto o apreciado por mim e pelo outro eu: vejo as teias de aranha. É Inverno! Sou mesmo chão sujo de outra vida qual- MELANCOLIA… A melancolia anda feliz com a taciturnidade que enche quer, deixada ao acaso, na cidade! muitas vezes de mão dada com sau- uma ruela esquecida em determina- O Inverno lava as nostalgias… As dosismos escondidos, que vêm à tona das noites… Já ali bem perto, encontro minhas doenças propagam-se. Espir- quando as águas são agitadas! Inter- a loucura a olhar para mim e a soltar ros!!! Cuspi um sem número de ger- secção de camadas! uma gargalhada… Prende-se a mim, mes violentos em direcção ao verme- Por estes dias, as horas são nossas e prende-se em mim! Olho mais além, lho! Olho e… Opulência dos abastados podemos olhar em frente. para ali… Assento outros pensamen- nas ruas da cidade! Por isso prefi ro o

39 ~ Infernus XXIII O Inverno em Mim

falam e nem sequer se vêem durante um ano inteiro, para depois virem com ofertas e com falsas moralidades… Nada que me possa atemorizar… Afi - nal somos todos Voyeurs da desgraça alheia! Todos! Aprendi, através do excepcional Sr. Professor J. Hermano Saraiva que é mais correcto dizer que estou grato e não dizer obrigado! Por isso digo à vida… Digo ao Inverno que me viu chorar pela primeira vez que estou GRATO! Grato por ter acordado e por todos os dias ir acordando! Sou uma cara meia (des)feita de Invernos e de transições… O Inverno é mesmo isso! Uma transição… Nem que seja uma transição no pensar… Pensar que podes fazer um pouco mais do que fi zeste! Mais uma vez tomo um caminho distante em direcção ao des- conhecido… Prostrado no cais do si- lêncio… Ouço as pequenas pancadas de ma- deira podre, que a água vai trazendo. A noite ilumina a sensação amorfa… Madeira sem cheiro! Cheira-me a pou- co… Cheira-me ao sorriso esboçado na memória! Perdi o sabor! Perdi este In- verno! Não que alguma vez o tivesse! Mas guardo cá dentro o seu inicio… Guardo o dia 21… Hipócritas que me rodeiam… Festejo o meu principal fe- riado, festejo o fi m, a continuação e o inicio de mim… Como é boa toda esta melancolia que me deixa ébrio… Dei- xo a minha pegada na lama enquanto a dualidade se sobrepõe em mim, so- bre mim! Máscaras para uns, despido de preconceitos para outros! Escultura em mais um Inverno gelado… Como é bela a noite… Como sabe bem a re- dundância de mim… Como sabe bem a chuva a bater-me na cara… Nos vi- dros… Na pedra gelada… Contudo este não deixa de ser o momento em que a vida desperta… Outras formas de vida… É hora de caminhar! É hora de roupas quentes disfarçarem as vir- tudes com ânsia de serem descobertas em jogos sexuais! O encanto de cobrir a nudez… O encanto de beber um cá- verde molhado de uma árvore qual- que a infância termina quando temos lice com Porto e degustar todo o seu quer… De uma planta... Da terra mo- conhecimento que a morte existe. Tal- sabor… Comparo-o! Que semelhança! lhada, enquanto eu novamente agasa- vez a magia (?!) da ignorância tenha Esta é uma excelente altura para lhado olho mais além… Protecção para fi nalmente terminado quando des- nivelar as minhas energias e focar o o frio! Olha ali… Uma missa? Entro? cobri a falsidade do Natal! Mas inva- olhar naquele passo que vou dar! Afi - Estarei louco demais para observar o riavelmente não posso estar alheio ao nal sou único! Mais um ano após o In- que se passa? Figura desajeitada e sem vazio das ruas… Ao fumo a sair das verno. Renasce, tal e qual uma Fénix, pertencer ali… Talvez aquele vinho sarjetas… A fragância das castanhas o calor na ponta de uma pena afogada me desse mais respostas… Corro e vo- e das lareiras a entranhar-se em mim em tinta… Pisco o olho de relance às mito as entranhas sem sentir o cheiro enquanto uma bebida licorosa se quer máscaras que se aproximam… nauseabundo dos pecados desta cida- juntar à festa! Odores e mais odores… “É melhor ser odiado por aquilo que de!!!! Lacaios! De uma certa forma to- Cheiro o passado e o presente! somos e representamos, do que ser amado dos somos lacaios da vida! Ponho-me Sento-me num sofá negro, como a por aquilo que não sou”. • a caminho outra vez… Esqueci-me do noite, no meio da avenida! Experimen- brilho da cidade. Disseram-me um dia to contemplar estes cretinos que não se

40 ~ Infernus XXIII O Inverno n’ O Castelo Uma Alegoria do Pathos da Alma Melusine de Matt os O Inverno n’O Castelo

‘’K. ainda estava no meio da neve, desse distanciamento e desse desen- nome que não o é. Há quem alegue que tinha pouca vontade de erguer o pé para raizamento familiar, dessa negação K. (personagem já apresentada num afundá-lo outra vez um pouquinho adian- dos valores instituídos, mostrou ao romance anterior O Processo) é a inicial te; o mestre de curtume e seu companheiro, mundo A Metamorfose, apresentando- do próprio Kafk a e eu concordaria to- satisfeitos por terem fi nalmente despacha- -se a si mesmo na que foi uma das suas talmente, não fosse a herança judaica do K., recuaram para dentro de casa, de- personas: Gregor Samsa, o homem que de Kafk a. Se atentarmos na letra K e se vagar, através da porta apenas entreaberta, acordou insecto. pensarmos que Kafk a era alemão, não olhando sempre para trás, na direcção de No entanto, é n’ O Castelo que en- podemos deixar de pensar no fonema K., que fi cou sozinho na neve que o envol- contramos uma das máscaras mais fi - em si. K em alemão lê-se /ka/, enuncia- via.’’ éis dos sentimentos patentes em obras do fonético que representa desde a an- Franz Kafk a, Das Schloss anteriores como A Carta ao Pai, O Pro- tiguidade egípcia a alma. Os místicos cesso e em muitos dos seus poemas. cabalísticos polacos consideravam que Esta obra icónica de Franz Kafk a K., a personagem principal deste o Ka era uma representação da alma tem sido analisada ao longo dos anos romance, é agrimensor de profi ssão. e Kafk a poderia ter bebido essa infor- por diversos especialistas que a têm Mede terrenos e delimita-os em tri- mação através da sua própria herança lido à luz da Sociologia, da História e ângulos ou rectângulos. É contratado cultural. Teria, então, sido intencional da Psicologia. Certamente que se trata por um conde, que nunca chega a co- a escolha desta letra apenas como ini- de uma obra complexa, com diversas nhecer e a quem todos obedecem com cial do próprio autor ou o seu conheci- camadas semânticas que, tal como a parcimónia e formalidade, denuncian- mento das tradições judaicas tê-lo-iam neve que parece ser uma constante ao do um receio tácito pelas quebras das levado a representar mais do que o seu longo de toda a obra, podem ser des- regras de conduta pelas quais a aldeia mero corpo físico, aquele que aqui pa- bravadas e decifradas à luz de diversos onde ele se instala se pauta. rece sempre constrito e incapaz de se contextos de interpretação. A demanda de K. começa logo auto-superar perante a severidade do Franz Kafk a sempre exerceu so- nas primeiras frases do romance que Inverno? bre mim um enorme fascínio pela sua sumarizam o pathos interior que aqui Por outro lado, a letra K em he- kaf). Kaf está associado a) .כ própria biografi a. De herança judaica, pretendo explorar: braico é cedo encontrou no pai uma fi gura aus- ‘’ Era tarde da noite quando K. chegou. Kether, a primeira sefi ra da Árvore da tera e pouco acessível. Durante toda a A aldeia jazia na neve profunda. Da en- Vida cabalística, a primeira emanação sua vida, Franz nunca seguiu os trilhos costa não se via nada; névoa e escuridão física do Ain Soph (do hebraico ‘’sem que lhe foram designados desde a sua cercavam-na, nem mesmo o clarão mais limites’’), o Pleroma. O nome do pró- infância, facto que lhe valeu a conota- fraco indicava o grande castelo.’’ prio autor parece aqui ser explorado ção de outsider da família. Consciente O leitor é confrontado com um por ele mesmo neste anagrama de sig-

42 ~ Infernus XXIII Melusine de Matt os

nifi cados ocultos. Ele é o Kafk a que es- posição dúbia e confusa. Ele próprio uma consciência mais lata do que é a creve – Kaf, o que enverga a sua coroa chega a duvidar de si mesmo, quando contingência da vida de cada uma das divina de auto superação humana, e o confrontado com a inutilidade de viver personagens. Ka, a alma perecível. ali naquele momento. É aqui que se re- No sofrimento físico que vivencia- K. seria então uma chave simbóli- vela o pathos da alma. De certa forma, mos através do cansaço e da dúvida ca, gemátrica e fonética que abarca o é a rebeldia de K., na sua constante constante que atemorizam e torturam autor e a personagem. Ela só pode ser batalha com o frio do Inverno, a neve K., vivenciamos o despertar de tudo reconhecida e validada pelo pathos pre- e os funcionários do castelo que incita o que é toldado pelo manto de neve sente na obra, essa constante tentação as restantes personagens a rebelarem- que impede a visão global das coisas. que é sair dos padrões da normalida- -se também da sua condição de servos Neste sentido, o Inverno é a alegoria de, o constante apelo a sair da ordem, a da moralidade e dos costumes vigen- do homem adormecido, daquele que constante inquietação que caracteriza tes. Nesse sentido, K. funciona como não questiona, do cordeiro sacrifi cial qualquer neófi to num longo percurso uma espécie de chama luciferina que, no qual o próprio autor se revê, se ti- de auto descoberta de si mesmo. através da sua batalha interior, leva vermos em conta todas as suas obras e ‘’K. estava sempre à espera que ela (a os outros a questionarem os seus pró- a sua biografi a. Mas o Inverno é tam- rua) tomasse fi nalmente o rumo do caste- prios propósitos de vida e as fi guras de bém uma alegoria desse mundo de lo e só porque o esperava é que continu- autoridade que temem e desprezam. É potencialidades a que me referi ante- ava a andar; evidentemente por causa do interessante reparar que Kaf signifi - riormente. Curiosamente, os cenários cansaço ele hesitava em abandonar a rua; ca ‘’palma da mão’’ em hebraico, esse invernais que Kafk a descreve com espantava-se também com a extensão da símbolo inegável do destino que se re- minúcia não são nunca luminosos. É aldeia, que não tinha fi m, sem parar as vela inexorável. K. é então aquele que como se a neve fosse mais escuridão casinhas, os vidros das janelas cobertos de detém a chave mistérica do destino de do que luz, como se a brancura do gelo gelo, a neve, o vazio de gente — por fi m, todos os que o rodeiam, ainda que estes os tivesse cego a todos. K. revela-se a escapou dessa rua paralisante, uma viela e ele mesmo não o saibam totalmente. luz dentro do negrume da noite, pois estreita acolheu-o: neve mais profunda ain- K. é como a serpente no paraíso, embo- é o único que tenta romper caminho da, era uma tarefa árdua erguer os pés que ra este seja um paraíso às avessas, no por entre a neve, ainda que isso o leve se afundavam, o suor brotava; de repente, sentido em que todo o cenário invernal à quase exaustão. ele parou e não pôde continuar mais.’’ nos transporta mais para uma topo- Por muita tinta que já tenha corri- Ao longo do romance, K. tenta che- grafi a dos Mundo dos Mortos, do que do numa tentativa de analisar O Cas- gar ao castelo para conhecer pessoal- propriamente para uma iconografi a telo, creio que falta ainda uma análise mente aquele que o havia chamado do paraíso judaico-cristão. Contudo, esotérica deste que é um ponto de refe- ali. A certa altura é confrontado com a K. não deixa de ser uma representa- rência na literatura do século XX. Que realidade de que os campos já estão to- ção de Samael, o Tentador, que com a K. venha a ser reconhecido como a pe- dos medidos, pelo que a sua presença sua língua bífi da tenta romper com os dra na roda dentada e que com isso se naquela aldeia é não só desnecessária, códigos de conduta, com a apatia e a venha a expor a fragilidade que a hu- mas também indesejada até certo pon- absurdidade da rotina. manidade tem em ousar pensar mais, to. Na aldeia todos tinham um propó- Recorde-se que é apenas depois de fazer mais, Ser mais… ainda que isso sito para existir ali e naquele momento K. partir que os seus ajudantes come- implique mergulhar no profundo e do- e K., impossibilitado de contactar ou çam a ser chamados pelo seu verda- loroso Inverno da Alma. • mesmo de conhecer o conde (que o deiro nome, como se a sua presença havia contratado), está sempre numa naquela aldeia tivesse desencadeado

43 ~ Infernus XXIII Esperanças Brancas Mónica Sousa Mónica Sousa

sem fi m. As bocas exalam o vapor de funde-se com o oxigénio que das per- “Se não tivéssemos Inverno, mil pensamentos guardados do Verão nas exalam, o quente do sexo, a humi- seco, na esperança enebriante que este dade do corpo, a liberdade das mentes. a Primavera não seria tão Inverno seja a luz que querem alcan- Inspiro a cada passo e sinto o gelo çar. habitar-me, a voltar a mim, a revitali- agradável: O Sol de Inverno visita e traz uma zar-me. Abro os olhos e põe-me alerta, clareza que refl ecte em mim e em tudo vira-me contra as brisas quentes de ou- se não experimentássemos a minha volta, uma lufada de ar gelado trora, e lança-me em mundos de tesão para completar um ciclo, para nascer mental. algumas vezes o sabor da adver- outro. Corro na rua para aquecer, com de- A brisa passa pelos cabelos zenas de pessoas a passarem por mim sidade, que gelam à passagem, cada cabelo encutinhadas na sua vida, olhares cru- se une a outro numa dança da vida, zam-se, vidas continuam. Os carros pi- a prosperidade não seria tão numa beleza desigual abraçando o frio sam o gelo, cães ladram resguardados, como cola aquecendo os cránios e enal- luzes brilham na àgua, àgua mora nas bem-vinda.” tecendo as faces criando o desejo. ruas e elas moram em mim. Cada pas- As roupas sobre os corpos trazem so, uma dor maravilhosamente agra- Anne Bradstreet um conforto que faz com que o frio dável, cada aperto de mão um confor- seja melhor apreciado nos narizes. Fi- to, cada beij o um Verão gelado. bras cobrem o corpo nu, sentindo o Passo a grossa porta de madeira Sobre o meu ombro consigo ver as seu peso no conforto de um calor que escura, pouso as malas à entrada, ca- folhas ao som do vento, o ar em àgua não nos tira o frio,num calor que nos minho entre as paredes que me aper- que desce pela minha cara, as manhãs engana, numa simbiose lavrada pela tam em busca de algo que me aqueça brancas que tanto desejei, a liberdade nossa gratidão ao branco que nos leva. – bebo uma chávena de café, sinto-o a de um arrepio. Na ponta dos dedos Os bancos escorrem àgua cristalina na descer por mim, a possuir-me, a comer sinto o húmido da manhã, o dissolver campanha vitoriosa de mil exércitos a minha mente, olho pela janela, a mi- dos pensamentos, o amainar das in- de luz e de gelo, as àrvores carregam nha mão pousa no mármore frio, cap- tempéries, passo-os pelos meus lábios a neve que das mentes brota e levam tando a minha atenção nessa sensação. num devaneio de líbido, num pulsar consigo as folhas cristalizadas em es- Dispo alguma roupa que me cobre, de emoções. Tremo. Capto a luz nos trelas, os olhos percorrem a distância caminho procurando a cama que me meus olhos e guardo-a no meu peito da neve e neles cabem todo o mundo vai adormecer. No meu leito observo como a enchente dos rios que me atra- branco da nossa vida. toda a inércia da minha procura, todo em. Os pés caem num atrofi o guloso As caras lavam-se do Estio, as o conforto que se revela. pelo quente das mãos, o pensamento temperaturas desprezam o quente, as Adormeço. O Inverno continua lá reanima, os choques são frontais. A mãos esfregam-se com força, os pou- fora, o branco cobre a minha existên- pele descola do meu ser, o desejo en- cos graus esbarram-se contra os olhos, cia, a vida pulsa no meu ser inanima- che os peitos que jorram para o mundo a saliva, engrossa, os lábios gelam, a do, a perspectiva de acordar do outro as crias deste branco. garganta aquece com a divina leveza lado do sonho, no caos de gelo. A neblina em cada canto prepara- dos licores. Pessoas aconchegam-se, Um mundo que abandonei. -me surpresas – sussurando às àrvo- sofás completam-se, sexo consome-se, Um mundo que espera a minha res e estas à neve, numa conspiração cigarros são fumados, o seu fumo con- presença a qualquer instante. •

45 ~ Infernus XXIII A história da Anna Mosath Mosath

raramente, chegava a um outro ponto O Inverno começou. Dia de contar uma história que me contaram de segurança, longe dos proprietários roubados, sem comida. já contada por outras e para outras pessoas. Fumava pontas de cigarros. As suas necessidades eram feitas em ca- sas-de-banho públicas ou, por vezes, A desgraça higiene, o seu ser nunca esteve muito urinava num qualquer arbusto. A erva afastado do cheiro e das comodidades que fumava, arranjava-a de um gajo A Anna era uma jovem inglesa com particulares das ruas londrinas; qual- com uma peculiar mania ou tara que vários problemas existenciais. No que quer tempo em trabalho doméstico era a fornicava, troca por troca, e era nes- diz respeito a isto, até que não era di- irremediavelmente mais fraco ao tem- sa altura que ela podia ter um banho ferente de outras pessoas, porém, era- po que ia vivendo como sem-abrigo, decente e fumar à vontade, sossegada. -o na questão de, aos 28 anos, viver na envolta em vícios, coberta de culpa e Deitada, nua, satisfeita, fumava a sua rua. Não vivia, estorvava e emporca- vergonha, sem dinheiro, sem perspec- erva. Segundos de relaxe. Segundos lhava… Abandonada praticamente à tivas. A Anna diluía-se e assim diluía a sem qualquer ideia ou vontade novas. nascença pelos pais, os seus trabalhos boa vontade que algumas pessoas pos- Vestia, então, novamente a porcaria precários desde os 18 anos perderam suíam ao pretender ajudá-la e esse era, das suas roupas para voltar ao lado face ao fardo dos seus vícios e confl itos provavelmente, o seu pior tom. Sem- real da sua rua – a corrosão –. interiores. -abrigo e sem humildade. Levantava-se a muito custo, afas- Lúcifer em Londres (Current 93 – Na verdade, sempre se conheceu tando o velho e esburacado cobertor Lucifer Over london) sozinha no mundo, apesar das ten- verde. A manhã registava 08h e o céu tativas de ser adaptada à sociedade. encontrava-se decorado com espes- Estava a Anna, num fi m de tarde, Desde pequenina, que nunca experi- sas nuvens de Inverno, curiosamente encostada a uma parede de uma casa mentou o afecto e amor dos pais, por pálidas, semelhantes à cara da Anna. velha e baixa, quando começou a ou- isso andou de instituição em institui- Pálida, inchada e de expressão distan- vir uma música peculiar, forte, quase ção aos cuidados dos melhores profi s- te. De pé, exibia o seu corpo de média hipnotizadora. Nunca tinha ouvido sionais do ramo da solidariedade. No estatura. Os seus longos cabelos louros aquele tipo de música, mas permitiu- entanto, o seu espírito rebelde nunca emprestavam-lhe um ar de menina, -se a acompanhar o ritmo da música permitiu que se adaptasse a nenhum mas a sua pele apenas transmitia um e a prender na cabeça a sua letra, do desses sítios “pseudo-familiares”. Na- sentimento de ruína, desleixo e proble- melhor modo, cuja voz vibrava assim: quilo que podia dizer-se sobre os seus mática reacção, além de que dava um familiares directos, pouco ou nada vai mau aspecto a quem olhasse ao passar “The twisted wings and cluds un- acrescentar-se, visto que os pais da por ela. Os olhos da Anna eram muito fold / And the greatgape of He who Anna sempre procuraram ser odiados azuis e muito brilhantes, atraindo toda fell / Makes darkened shadows over por todos os que os rodeavam, o que e qualquer atenção; simplesmente as pointed spires / Litt le children point contribuiu para o desinteresse geral da pessoas, imediatamente após deslum- and sing / And litt le children run and família pela pequenina. brarem os seus olhos, desviavam o dance / Over there the sett ing sun / olhar do estado e das roupas porcas And under that the silent stars / And A personalidade fria, rebelde e da Anna. Os lábios estavam sempre under they the weeping sky / And un- intranquila impulsionava a Anna a magoados e secos como bagos de uvas der Her the laughing world / (Balance cometer os seus pequenos delitos nes- pisados no chão. E, em total oposição sits in western parts / And piles spare sas mesmas instituições: roubos de ao interior da loja, cuja soleira lhe dava Spares in his gabled room). / Great An- pequenas quantias em dinheiro, jóias o aconchego nocturno possível, infes- arch and Monarch of Not / The Flight e documentos a funcionários, quebra tada de doces aromas, perfumes e chei- of Lucifer over London / And my lit- de objectos e elementos de decoração ros, o odor físico da Anna era nefasto, tle grandson / Wrinkled son forehead e, igualmente, ataques à integridade pesado e fazia lembrar uma zona mais / All tiny blue pain / As the Mother física. De sarilho em sarilho, de casti- degradada de um qualquer jardim pú- Blood emerges / Then the Mother Grief go em castigo, a Anna foi crescendo, blico. / And the Blue Gates of Death / Open tornando-se mulher e não permitindo armwide / Open teethwide / All dead à sua própria mente estabelecer qual- Começa a caminhar pelas ruas e like the leaves / Old times shiver / Old quer objectivo para a sua vida. A capa- vai esticando as suas mãos trémulas dead calendar / Past blurred sunsets / cidade de diluir-se no nada, no erro e às pessoas. Trabalhadores, crianças e Cinders fl ying in His heart His heart na insatisfação apática, era mais forte adolescentes, turistas e até freiras. A / His fi ngers punch holes in the sky / em directa comparação a clarões de forma como pede é, alguém podia di- (And all the litt le Christs I count / Are mudança ou correcção. zer, autoritária, presunçosa e irritante. covered in the breathwhite snow / And all the litt le Christs I call / Are laugh- Naquele dia de Inverno, lá estava Todos os elementos da vida da ing through the green green fi elds). ela. Deitada. Como podia, deitada… Anna iam desaguar num único mar: / Some of those angels have the face Acordava de um sono distorcido, o do roubo. Frequentemente, entre as of God / And some of them have the curto e gélido, na soleira da porta de 18h e as 19h30m, caminhava até deter- face of dogs / (By the Tower of Moad uma loja de perfumes. Apesar de já ter minadas mercearias recônditas e com - see the sky’s Greenangel form). / trabalhado um ou dois anos em casas pouco movimento, para aí, seguindo And lucifer fl ickers all around me / de pessoas da alta sociedade, em lim- passos mais ou menos planeados, rou- His hooded eyes alight / In the smoky pezas e, por vezes, em jogos sexuais bar e até destruir coisas nas prateleiras musk / Look into Him just a litt le com os patrões, com direito a quarto desses pequenos e honestos negócios. longer / See the true face of the Moon e mínimas condições de conforto e Ao fugir, uma ou outra coisa caía, mas, So He wheels there through the heav-

47 ~ Infernus XXIII A história da Anna ens / His eyes are dott ed brightlights não era por ali que pretendia seguir, e conto que a Anna via, que estava a / Licked with dust / A golden seabird o seu olhar era automaticamente suga- conhecer, foi escrito entre 1610 e 1611, / Halfdead with spray / His banners do para o cartaz principal. Toda a sua tendo também sido uma das últimas broken fl ags in the wind / Devour- essência de sem-abrigo, se é que existe peças da dramaturgia shakesperiana. ing life he breaks at walls / The glint tal denominação, congelava diante do A Anna começava a ser dominada, of dead fruits glint. / And then the cartaz da peça em exibição, curiosa e envolvida, por uma atmosfera de fan- Moon... / And then the Moon... / And freneticamente. Pensamentos e duali- tasia e inverosimilhança, peças do pu- then the Moon...” dades. zzle que apelidam de “comédia”. Este Naquele quarto dia, sábado às 19h, conto insere-se na tradicional história A epifania chovia desalmadamente, vento forte, ou lenda antiga de duendes, fantasmas tristeza no ar. A Anna apanhou uma ou outros espíritos, daí a sua fantasia Terias de ter uma cabeçorra grenha ponta de cigarro e, tirando um isquei- que balança constantemente entre os e cornos ro do bolso dos jeans rotos, acendeu-a. domínios do palpável e do etéreo. A Como os meus para seres como eu. Mas Aspirou praticamente uma dúzia de Anna observa… dizem vezes, abrigada num dos lados daque- “Associado ao drama pastoral tra- Que somos como dois ovos... Dizem as la sala de espectáculos londrina, e logo gicómico, em referências cruzadas, mulheres decidiu penetrar naquele lugar. Pu- apesar do seu hibridismo, um estatuto Que falam ao calhas.” xando os seus estratagemas, das suas de crescente credibilidade nos códigos (...) dissimulações e da sua estatura, furou poéticos renascentistas. Resumo de “Alias-te ao irreal e ao nada te associas. por um aglomerado de pessoas que profundas alterações na monarquia Mas acredito que consegues ligar-te às estavam numa das linhas de acesso à [na vida], convulsões político-religio- coisas... sala da peça teatral e escondeu-se, cal- sas [cultural-sociais]. Shakespeare mamente, numa das galerias privadas. Enredo intricado, suspense. Rela- Uma sala luxuosa de espectáculos não cionamento das personagens. A acção Desde que ouvira aquela música, os podia ser pior para se esconder do que descreve um movimento que, partindo seus quotidianos passaram a ser mais um arbusto largo de um jardim pú- do amor conjugal e da amizade frater- curiosos, como que o olhar tendesse blico, enquanto defecava ao ritmo da na, se desenrola num processo de ciú- para se deter em determinados pontos quedas dos primeiros fl ocos de neve. me, injustiça, crime e expiação doloro- e objectos, de um jeito mais prolonga- A peça em cena: “O Conto de In- sa, para fi nalmente reencontrar o amor do. A assumpção disto mesmo é que a verno”, de Shakespeare. e a amizade, na reconciliação de todos Anna passou três dias seguidos pelo O maior dramaturgo de todos os os antigos erros e todas as antigas di- Royal Albert Hall, jurando sempre que tempos criara esta obra inaudita. O ferenças.

48 ~ Infernus XXIII Mosath

Entre Leontes, Rei da Sicília e Po- lecer correspondências e paralelismos pouco depois do casamento, a deixa- líxenes, Rei da Boémia, existem laços com as sucessivas idades da vida hu- ra grávida, com uma criança que veio de amizade quase fraterna que nascem mana, O Conto de Inverno envolve-se a nascer rapaz. O marido, não se sabe da infância e juventude e se estendem num clima de mistério, na liberdade se naufragou ou morreu na tal viagem, ao momento das famílias e dos reinos que os domínios do maravilhoso e do mas o certo é que a mãe de Mary não se verem como verdadeiros irmãos. fantástico concediam à imaginação, perdeu grande tempo até fi car de novo Por suspeita de infidelidade com o Rei narravam as mais diversas e empol- de esperanças. Despediu-se de toda a da Boémia, em cegueira de ciúme, gantes aventuras, todas elas centradas vizinhança e todos os conhecidos do Leontes passa a odiar Políxenes, em temáticas amorosas, repletas de pe- seu marido, dizendo-lhes que ia viver assim como repudia em julgamento ripécias invulgares.” para o campo, procurando a tranquili- público a própria Rainha, Hermíone. (“O Conto de Inverno”, Campos dade correspondente. O seu fi lho aca- Contraria o veredicto do oráculo de das Letras) bou por morreu pouco tempo depois, Apolo. O príncipe Mamílio, ainda mas então nasceu a Mary, na segurança criança e único herdeiro ao trono da Aplausos. Pessoas de pé. Correntes do campo. Infelizmente, a mãe de Mary Sicília, morre com o desgosto pelo de ar em júbilo mergulhavam pelos não iria aguentar muito tempo lá, pois castigo injusto que a mãe sofre; por sua cantos da sala. A Anna sorriu. Sentia- o dinheiro terminaria após quatro anos. vez, anuncia-se igualmente a morte de -se entusiasmada e, praticamente, Logo, voltaria a Londres, pedindo aju- Hermíone que, ao dar à luz prematu- agradece a si própria por ter entrado da à mãe do seu marido, a qual acedeu ramente uma menina, não é capaz de ali. Depois, a Anna moveu-se por entre calmamente. Como a mãe de Mary não suportar o vexame da desonra. Por o mar de pessoas em direcção à saída. pretendia ferir as susceptibilidades da ordem do Rei, Antígono, dedicado fi - Ao seu mundo. O caos estava a esta- sogra, vestiu a Mary à rapaz, para que dalgo da Corte de Leontes, abandona lar, mas de modo fugaz cada pessoa a sogra pensasse que se tratava do fi lho a princesa recém-nascida num local começava a poder ver o céu da noite, que tivera com o seu marido, antes des- ermo da costa da Boémia. À semelhan- visão de tranquilidade e de retorno à te desaparecer no mar. A sogra concor- ça de antigas lendas mitológicas e dos vida real, e nem o odor desagradável dou em atribuir uma coroa por semana contos de fadas, a criança é salva mira- da Anna produzia um mal-estar ou ao pequeno, à Mary, mas praticamente culosamente por pastores, que a adop- uma expressão de desagrado, narizes não existiria convívio entre as partes. tam. À entrada do IV Acto, acelera a ac- torcidos, a ninguém. Em breve, a sogra faleceria e a mãe ção em dezasseis anos, encontrando-se A Anna caminhava agora para Este, de Mary e Mary foram lançadas a ou- o Príncipe Florizal, fi lho de Políxenes, absorta em irrequietos pensamentos, tros tempos difíceis de sustento. Mary, apaixonado pela fi lha do pastor, Per- frescos e desassossegadamente confor- consciente de guardar o segredo que a dita, sem suspeita de identidades. Em táveis, não conjecturando, quando do mãe começara, foi trabalhar para uma encadeado astuto de incidentes, sob saco aberto de alguém de um grupo à dama francesa, na qualidade de lacaio. comédia e controvérsia de uma fi gu- sua frente esvoaçou uma folha de pa- Tinha então treze anos. No entanto, não ra, os dois fogem apaixonados para a pel colorido, cujo conteúdo literário aguentaria muito tempo lá a trabalhar, Sicília, em busca do apoio de Leontes, era francamente perceptível, vindo o seu segredo de ser rapariga aguentou. o qual incrivelmente repeso pelos seus parar pés da Anna num daqueles mo- Mary dominava uma personalidade ou- erros, descobrem-se identidades e pa- vimentos bruscos. O título, em letras sada e forte e uma mentalidade errante rentescos. O passo fi nal para a recon- garrafais, era “A Vida de Mary Read”. e desassossegada. Tempos mais tarde, ciliação e o restabelecimento da ordem Desconhecia absolutamente. A Anna empregou-se ao serviço de um navio perdida. Cena incrivelmente dramáti- olhou para a frente, para o grupo de de guerra. A seguir, empregou-se num ca, índices de expectativa e de temor, onde, provavelmente, a folha de texto regimento a cavalo, onde desempenhou surpresa e incredibilidade são levados proveio, mas o mesmo tinha desapa- as funções com grande efi cácia, facto ao limite. A cena da estátua, V Acto: recido. Olhou, rapidamente, pelo seu que lhe concedeu o reconhecimento e Hermíone, volvidos dezasseis anos, ombro direito, constatou que nenhum admiração por parte dos ofi ciais. Entre apresentação na forma e na pose de transeunte a acompanhava e permitiu os seus camaradas, havia um, Fleming, uma estátua, perante quem de há mui- então às suas tépidas e aleij adas mãos que a atraiu, vindo rapidamente a apai- to a julgava morta, como é o caso do apanharem o sólido com texto. xonar-se pelo homem. Com esta situa- marido e da fi lha, que nunca chegara a ção, a Mary veio a negligenciar os seus conhecer a mãe. Num misto de prazer Aquela noite, que podia ser igual a deveres. Numa certa noite, estando os lúdico pela magia dos encantamentos tantas outras, fora, contudo, bem dife- dois deitados numa tenda, ela arranjou e de desnudamento céptico pela fé ar- rente. A Anna passou as horas noctur- forma de ele descobrir o seu verdadeiro tifi cial que lhes subjaz, Shakespeare nas a ler o texto, auxiliada pela luz de sexo, sem ser demasiado óbvia de que serve-se da personagem de Paulina, uma velha lanterna que roubara de um a revelação do segredo era proposita- aia sempre fi el da Rainha, para fazer a armazém pouco vigiado, maravilhan- da. O soldado havia de surpreender-se, estátua “regressar” à vida e falar. Mais do-se com aquela história, que em va- mas sorriu ao pensar que era uma mais- do que qualquer senso recriminatório gos e estranhos segundos, a inundava -valia, já que teria uma amante só para quanto à inverosimilhança da cena em de contentamento e fazia com que se si, gozando do facto de ninguém mais palco, de imediato desmistifi cada no identifi casse com a protagonista… a saber, podendo, logo, Mary e Fleming envolvimento sobrenatural que pare- história relatava a vida de Mary Read, continuar com o segredo perante os ca- cia dominá-la, prevalece a intensidade, uma inglesa que teve a sua quota parte maradas e ofi ciais. Em relação às inves- o efeito psicológico que a representa- como pirata, uma história repleta de tidas apaixonadas e sexuais de Fleming, ção teatral comunica para as plateias, aventuras e desventuras. todavia, Mary revelou-se bastante mo- a amplifi cação hiperbólica para os fi ns desta, mas em pouco tempo o soldado em vista. A sua mãe casou jovem com um ho- trocaria promessas de casamento com Enraizado na tradicional simbolo- mem que fazia do mar a sua profi ssão ela e, assim feliz, entregou-se a ele gia das estações do ano para estabe- e que, tendo embarcado numa viagem completa e ardentemente. Após o casa-

49 ~ Infernus XXIII A história da Anna

mento, ambos revelaram a vontade de além da linha do horizonte marítimo, praça, conversavam e, por vezes, co- largar o serviço militar. Depois de algu- encontrando-se a si mesma na fertilida- mentavam a forma mentecapta como ma bonança e amor, o soldado-marido de da terra fi rme. aqueles sem-abrigo interpolavam os morreu e, com problemas fi nanceiros e que passavam com dinheiro nos bol- viúva, Mary havia de se aventurar pela A Anna levou a folha de papel ao sos; riam-se quando um dos sem-abri- Holanda, empregando-se num regi- peito e, satisfeita, fechou os olhos. Fez go, muito convicto do estatuto social e mento de infantaria. De lá, entrou num uma leitura, depois duas, a seguir uma das capacidades fi nanceiras da cartei- navio com destino às Índias Ocidentais, terceira leitura e, no fi m, releu umas ra do homem na casa dos trinta anos à procura de fortuna. O mesmo navio quantas vezes. Ocupara a madrugada a quem pedia, se lançou aos seus pés seria capturado por piratas ingleses e, a ler aquele pedaço de texto que tinha a chorar. Naquele pedaço de praça, Mary, sendo inglesa, foi levada pelos sucumbiu, dançando com o vento, aos viam-se igualmente dez sem-abrigos, piratas. Depois desta actividade de seus pés. Os seus olhos enchiam-se de mulheres e homens, a lutar incansavel- pirataria por algum tempo, Mary e a contentamento, as pilhas da lanterna mente por umas moedas ou peças de restante tripulação aproveitaram os be- começavam a enfraquecer, o coração fruta. nefícios do perdão do Rei, rendendo-se aquecido, a alma relaxada, enquanto o A Anna estava lá pelo meio, mas pacifi camente. Infelizmente, o dinheiro dia já ia trazendo alguma luz de Inver- o seu espírito estava a associar-se e a voltaria a escassear e quando ouviu di- no à cidade. A chuva encantava o Ta- não associar-se àquilo, no geral, ao zer que o Capitão Woodes Rogers, Go- misa, pesava nos tectos e nas fl ores da instinto de sobrevivência daquela vernador da ilha de Providence, estava cidade e as pessoas começavam as suas gente perdida e suja. A fome. A maldi- para juntar alguns corsários que parti- rotinas matinais. A Anna continha, ção. Os olhos da Anna não chegavam riam em investidas contra os espanhóis, naquela manhã, um timbre mental para convencer ninguém, pouco che- Mary embarcou e integrou-se decidida- diferente, devido à teatralização que gavam para transmitir uma humilda- mente, não lhe importando a forma de assistiu no Royal Albert Hall e, infl e- de e uma total ruína e um desespero fazer fortuna. O segredo continuaria. xivelmente, ao texto da folha colorida com necessidade de ajuda, portanto Passando por provas para conseguir que leu. Despachou-se até uma praça quase ninguém lhe concedia meia manter o seu sexo disfarçado, rouban- próxima para começar o acto de pedir. dúzia de segundos e ninguém, por do, pilhando, vivendo em deboche, A praça era composta por edifícios outro lado, lhe deu mais do que uma apaixonando-se a bordo e apreciando com pequenos negócios, restaurantes banana. Podre. Estranha. Rejeitada. episódios vários e lugares, Mary fez e escritórios. Havia muitas pessoas Uma chuva ainda mais intensa e disci- fortuna e evoluiu a sua personalidade. a passar pela zona onde os pedintes plinadora derrubou-se sobre as testas O seu julgamento seria o ponto fi nal gesticulavam com muita sofreguidão. e as cabeças dos sem-abrigos. A Anna na pirataria, mas após ele acontecer, a Os agentes de segurança pública, con- continuava com as mãos abertas, as protagonista inglesa veria outras coisas centrados em frente a um edifício da palmas das mãos cheias de cortes e

50 ~ Infernus XXIII Mosath feridas, mas nada obtinha senão gotas papel a funcionárias de papelarias e a mente infl uenciado por uma peça de gordas e gélidas de chuva. Vento ca- advogados. E as pessoas que passavam teatro, por enigmas musicais e por vernoso. Rufos interiores. A confusão por ela, viam-na com vários pedaci- nomes aparatosos. Os seus olhos se- de pessoas a passar e as mãos em su- nhos de papel escritos. Eram poemas e rão sempre azuis, mas brotarão todas plício redundante. E, felizmente, no cé- eram da sua autoria. Quadras. Poucos as cores que os seus poemas possam rebro da jovem Anna começou a tocar versos. Ou sonetos. Poemas curtos e al- colorir e tapar, desde os que referem a uma música pouco nítida, uma música guns maiores. pirata Mary aos que referem o Conto inquietante com uns toques que lhe la- de Inverno. O Inverno, personagem tejavam as têmporas e, em simultâneo Os poemas continuam a ser escri- principal no palco da história da Anna, com uma moeda vinda de umas mãos tos pela Anna e as pessoas passam e trabalhou em função da Anna, a qual, brancas e com as unhas por arranjar, agarram em algumas quadras para co- um dia abandonada e em ruína, passa iniciou-se uma letra dominante de su- meçar a lê-las. Muitos dos seus leitores a caminhar de modo diferente, passa a premacia sensorial. Lúcifer sobre Lon- de rua pedem-lhe permissão para le- criar algo novo para si própria e para dres. A Anna lembrava-se da música, var uma ou duas quadras e a Anna diz outros e, assim, faz sublinhar a prová- de onde a ouvira, e um calor confor- que sim; outros vão às carteiras fartas vel verdade global de que um detalhe tável começou a preenchê-la, de forma e deixam moedas por vontade própria a que não se dá importância pode virar lenta mas reveladora da magia que es- e outros, simplesmente, param a apre- uma grandeza famosa. tava a acontecer. As suas mãos sacudi- ciar o ofício da jovem sem-abrigo. Há ram o cabelo mal tratado e molhado, alguma coisa de muito bonito e exci- Todos os Invernos assistem às nos- depois pegaram na folha de papel co- tante, quando as pessoas se permitem sas jogadas neste grande jogo da vida. lorido, amarrotado e a ser consumido a fazer algo, logo depois que a sua E participam directamente, porque sob pelas gotas de chuva, e começou a re- mente pensa em tal: um impulso mas eles mudamos, perdemos e ganhamos ler. No fi m da leitura rasgou-o, entre- um impulso inteligente com ramifi ca- coisas. Um Inverno signifi ca que será gando os bocadinhos que não caíram ções construtivas. substituído por uma Primavera, mas, no chão a um dos mendigos. Ao passar A Anna continua a beber, a fumar fundamentalmente, signifi ca que mu- por um homem de pasta e canetas que e a ter prazer com quem lhe dê algu- danças estão para acontecer já. Vão ao dela espreitavam, insinuou-se e tirou- ma coisa em troca, que seja útil para teatro! E é melhor estarem atentos. A -lhe uma das canetas. Ficou a olhar o ela, mas passou a escrever poesia com Anna estava e foi. • homem e a sua pasta a afastarem-se, olhos e mãos de quem foi enorme- enquanto levava a caneta à boca… o sabor desconhecido da caneta! A chuva que se esbarrava nos rostos dos tran- seuntes e no focinho das ruas cheias de barulho e stress. Um momento lúcido fl uiu no interior da Anna: uma epifa- nia: ia começar a escrever. A Anna ia passar a sentar-se a es- crever o que fosse mais parecido com poemas, sentada a escrever para um mundo que continuaria a ser o que sempre foi. A Anna daria às pessoas alguma coisa: poesia. Um bocado de inspiração e as pessoas iam oferecen- do moedas e notas em função disso, se quisessem, num mundo em que parece que nada mais é obrigatório, onde as disciplinas cavalheirescas amarelecem.

A vida e as artes estão apaixonada- mente ligadas por uma veia transfor- madora. Quando a sentimos, o sangue dourado da criatividade urde uma maratona. Nenhum olhar será nefasto como dantes, porquanto Anna sentada na sua imundice e na sua má aparência material começará a escrever as bele- zas da alma e da consciência poética que transporta a sensibilidade de uma sociedade. Quem poder ser grande, possa não ter qualquer vergonha e o seja. Mesmo à chuva e sem Chanel 5.

A Anna repetiu para si própria: vamos fazer isto, mas vamos fazê-lo correctamente. A Anna passou a es- tar num outro sítio, em cima de uma saliência de cimento. Pedia folhas de

51 ~ Infernus XXIII FELIZES PARA SEMPRE Naive Naive

As minhas noites tornaram-se per- javam os ouvidos, e me arrepiavam o Uma gota de chuva caiu-me turbadoras, assombradas pela lem- espírito de uma total imundice, que brança do nosso encontro. Tinha pavor fez o meu corpo libertar substâncias no cabelo, ao trovejar da aurora em adormecer. Sustinha as pálpebras gástricas para um balde, que servia de até à vermelhidão, e mal elas cediam ao depósito às minhas exalações orgâni- invernosa... ardor, tocando ao de leve a outra mar- cas. Enjoado com o odor nauseabun- gem dos meus olhos, um susto arreba- do do balde, despejei o seu conteúdo tador elevava novamente a escuridão com urina, vómitos e outros dejectos, do meu olhar, e um clarão nebuloso que ali se misturavam irmãmente, pela ...que de nuvens cinzentas, carrega- mantinha-me desperto. Em desespero janela, para a rua, tendo a infeliz felici- das de negrume, se emancipava numa decidi então pegar na minha lâmina dade de atingir o cortejo religioso com tarde longínqua de Dezembro, e uma de barbear, e com uma lenta incisão, o meu arremesso espesso e liquidifi - brisa gélida acariciou-me a face, como cortar uma das minhas pálpebras, de- cante. uma lâmina a querer desfazer-me os pois a outra, e uma cascata sanguínea Mas o meu presente, em noite de pelos do rosto. A pinga de água hume- inundou-me os olhos. consoada, não caiu bem no seio do re- deceu-me o couro cabeludo, seguida Avermelhou-se ainda mais o ho- banho ambulante, e um cerco foi feito pelas outras, mais intensas, que me rizonte da minha visão, a descoberto ao lugar onde me alojava, exigindo a deslizaram pela nuca abaixo, passean- das suas cortinas, e um corvo pousado minha cabeça. Pontapearam-me a por- do pelo meu pescoço, e irrompendo- na minha janela veio faminto a debicar ta, e irromperam pelo meu espaço, -me pelas costas, até se dissolverem nos meus olhos. Em defesa agarrei-lhe com a sua sede de vingança e de justi- nos meus poros cavernosos. No entan- no pescoço e torci-lho no mesmo ins- ça, agredindo-me ainda antes de poder to a primeira gota foi especial, porque tante. Depeniquei-o com a boca. Pena a esboçar uma reacção. Ao verem-me desfl orou a virgindade da minha pele pena sacudida pelos meus dentes pre- nu, de pálpebras esquartejadas, com os quente, provocando-me um arrepio dadores, e já completamente desnudo lábios pintados de sangue, os restos de corporal que me contagiou os sentidos arranquei-lhe a cabeça com só uma uma ave depenada no chão, e a lareira inebriados pela fria temperatura então mordedura felina. Provei a seiva da- acessa, chamaram-me fi lho do Diabo e sentida daquele choque térmico. Mais quela criatura da noite, e mastiguei descarregaram ainda mais sobre mim gotas e mais brisas avassalaram o meu vorazmente a sua carne dura, elástica a ira do seu Senhor. Disse-lhes que era corpo detido na enxurrada que se for- e insípida. Ainda tossi uma ou duas órfão de nascença, e nunca havia co- mou, enquanto o meu olhar incandes- penas que se me esgueiraram pela gar- nhecido o meu pai, mas isso só serviu cia de encontro ao teu, por entre chuva ganta. Depois peguei numa delas, a para provar ainda mais a sua teoria te- dessa madrugada invernosa. mais negra, erecta e pomposa de todas, ológica. As palavras cristalizaram na minha mergulhei-a no coalho de sangue der- Levaram-me arrastado para a rua, boca. Talvez fosse do frio que me es- ramado pelo corvo, e numa folha de para que outros crentes pudessem camava os lábios. Talvez fosse do ner- papel perdida no chão escrevi à viúva também satisfazer-se violentamente da vosismo que me dava nós na garganta, do corvo, pobre criatura monogâmica, minha carne, e sentenciar o meu des- ou da esquizofrenia da minha língua dando-lhe as minhas condolências pela tino em praça pública. Acorrentaram- a querer processar verbalmente pen- morte trágica do seu amado. Compre- -me e ajoelharam-me de frente do seu samentos caóticos que se atropelavam endia a sua dor, o seu luto inesperado, líder, vestido com fi na seda e ornamen- na minha mente. Estava mais preocu- pois também eu o sofria na mesma tado de ouro, que, com uma chibata pado em que o ar glaciar continuasse, medida, mas prometi-lhe que a morte pesada na mão, desenhava vergasta- da forma ofegante que eu o respirava, do seu amor não tinha sido em vão, das na minha pele, enquanto entoava a oxigenar as células da minha lou- pois permitira alimentar a minha fome palavras e gritos numa língua estranha cura. Podia ter-te feito um sinal, mas carnal, saciar a minha sede literária, e que eu não conseguia identifi car, ao os meus gestos estavam mumifi cados que a partir daí a alma daquela criatu- qual a audiência respondia, de forma na minha paralisia corporal. Podia ter ra esvoaçante estaria imortalizada no uníssona; “Amén, Amén, Amén”… que forçado um movimento, andado, corri- meu organismo estomacal e espiritual. foi a última palavra que eu ouvi antes do, ou mesmo gatinhado até ti, mas o Lancei depois a carta ao vento nórdico, de me apagar da existência, e fi nal- chão fugia-me dos pés, e não suporta- que soprava pela janela entreaberta, na mente te encontrar, ò Deusa do meu va a vertigem do próximo passo, nem esperança que servisse de mensageiro fi rmamento. Senti então o teu abraço a abissal perspectiva de me afundar na até à destinatária… a envolver-me o corpo frio, o teu beij o próxima poça de água, de tão diminu- A atmosfera do meu quarto era fatal a aquecer-me a alma, e vivemos to que me sentia perante a tua presen- feita de partículas de gelo em estado felizes para sempre… até te entregares ça de frente dos meus olhos. gasoso, mas para desfrutar da harmo- a outro, ou outro se entregar a ti, mi- Tu olhaste-me pela última vez nes- nia do contraste, despi-me até à nudez nha amada prostituta. • se momento, desdenhando a minha me cobrir o corpo, e acendi a lareira falta de coragem, e sumiste-te por en- para deixar que o sopro das labaredas tre a escuridão com um sorriso de es- me banhasse a pele, e incendiasse em cárnio nos lábios, que me fi cou cravado mim a lasciva lembrança de te pos- na memória. Podia ter sido mais forte, suir ò musa do meu encantamento, não fosse o espectro da tua presença a fi xação mágica do meu olhar interior. moldar a fraqueza dos meus instintos. Tu que me abandonaste às portas da E nunca mais fui o mesmo. Tornei-me mendicidade da tua matéria etérea. irreconhecível para mim mesmo, se Lá fora, nos rios de pedra citadinos, alguma vez cheguei a conhecer-me, e a procissão das almas tementes fazia não fora antes aquele momento a reve- ressoar pelo hemisfério urbano salmos lar-me o verdadeiro âmago do meu ser. e cantigos natalícios, os quais me eno-

53 ~ Infernus XXIII O Inverno como Nigredo .:gmr:. .:gmr:.

será circunstancial arrisco eu e que, Antes de mais, um aviso ao leitor e um pedido de empatia. para mim, liga-se simbolicamente ao Grande Inverno da Vida. Não sou Adepto nem Filho da Viúva, mas nunca é com despudor que “(...)Tanto era o vento, que eu bus- falo sobre a Arte Régia - tema sobre o qual me debruço há muitos anos. quei guarida, Atrás do meu mestre, que outra não se of’rece Uma certa leveza pode intuir-se para renascer como Neófi to; e assim, À parte era chegado, onde imergida no discorrer das minhas palavras, mas repetindo em baixo o que se verifi ca em Cada alma em gelo está (tremo es- nunca leviandade. As verdades não se cima, as glórias se operam. crevendo), revelam só em seriedade, mas também Isa, cuja forma é um segmento de Bem como aresta no cristal contida. na ausência desta. recta, é uma ponte também. (...)” (Dante, Inferno, XXXIV, 8-12) Se a linguagem por vezes é ardilosa Não me recordo porquê, confesso, e complica em vez de simplicar, neste dei por mim a ler transversalmente Ali, na desolação e no vazio, ou de caso mais ainda, que as verdadeiras re- a Divina Comédia, do grande poeta outro modo, no campo da Potência, velações são sempre para quem as sente italiano Dante Alighieri. O seu génio encontra o neófi to Dante o Iniciador, e nunca para quem somente as vê. Res- literário de fi gura maior encontra-se aquele que revelara os segredos a Adão peito nisto os predicados dos fi lósofos profundamente explorado, e por fontes e Eva, recordando-os da sua origem e obscureço quanto baste o sentido real bem mais competentes do que eu, para divina. E o Iniciador revela-se a quem das palavras, que assim como assim, que me alongue aqui sobre o seu traba- conhece os símbolos e os signos com as pouco são. lho. suas cores. Pela minha declarada ignorância Usualmente existe mais para além sobre determinadas coisas que só o do evidente e, neste caso, Dante decla- “(...)Três faces na estranhíssima fi - Detentor da Verdadeira Luz consegue ra-o frontalmente a quem o lê: gura! abarcar, o meu sincero pedido de des- Rubra cor na da frente está mostran- culpas, com a esperança que as minhas “Ó vós cujas ideias não se afastam do; próprias palavras não coloquem nin- Das Leis da sã razão, vede os pre- (...)Entre amarela e branca era a di- guém num caminho de trevas e igno- ceitos reita; rância maior ainda que aquele que so- Que destes versos sobre o véu se en- A cor a esquerda tem que enluta a mos votados a trilhar durante a nossa gastam” (Dante, Inferno, IX, 61-63) gente vida. Do Nilo às margens a viver afeita.” Só desinteressadamente a Verdade A Divina Comédia é um poema al- (Dante, Inferno, XXXIV, 39-45) se nos apresenta e, desinteressadamen- químico. Alquímico porque descreve os te partilho convosco estas minhas ver- passos, ou as etapas da Obra através da Comenta Eliphas Levi no seu “Cur- dades menores que em nada subtraem sua narrativa. E é uma excelente alego- so de Filosofi a Oculta” que o 9 é o nú- à Única, na esperança de trazer alguma ria sobre o derradeiro objectivo do al- mero do iniciado e neste Inverno das luz a este assunto maior. quimista: a transcendência. Almas, o adepto é então chegado ao Assim, lancemo-nos nesta refl exão, No Canto XXXIV, que detalha o nono círculo, o da Iniciação, que lhe plena de alegorias e símbolos, de ima- nono círculo do Inferno, Lúcifer encon- permitirá a ascenção. gens e sentimentos. Quando as imagens tra-se rodeado de gelo, facto que não Nove é o número da runa Hagalaz, dançam perante os nossos olhos, deve- mos sempre dançar com elas.

O Inverno como Nigredo

Quando as tardes frias mergulham na escuridão profunda da noite inver- nal, sentimos que a vida como que se suspende, pausa para se reorganizar. O Inverno é a Grande Contracção, mistério sublimemente apresentado (ou representado) pelos nórdicos arcai- cos com a sua runa Isa. Mais do que o Gelo Eterno, esta runa simboliza a cor- rente gelada que fl ui para o Ginnunga- gap, o Vazio Primordial (o Caos) e que representa a ausência de vibração. Sem vibração, a Vida não é criada. No Vazio, o Caos é reordenado. É no Solstício de Inverno que o Sol, glorioso, renasce. No coração da noite mais escura nasce a luz. Todos estes símbolos são importan- tes e requerem atenção. Para comungar da realidade da transcendência, na maioria das tradi- ções iniciáticas, o Adepto deve morrer

55 ~ Infernus XXIII O Inverno como Nigredo a matriz ordenadora, a semente cósmi- O Nigredo é a purga de todas as “Saturno, que é o maior dos nos- ca, a que é o Grande no Pequeno e a que impurezas em nós. A Matéria deve ser sos planetas, é o menos útil no nosso contem o Todo. O grão de gelo. extirpada de tudo o que é supérfl uo de Magistério. No entanto, é uma Chave Nove é o número do Eremita no modo a que se atinja o seu núcleo. To- fundamental para toda a Arte, ainda Tarot, que tem Virgem como corres- das as camadas, todas as máscaras, to- que colocada na mais baixa e malva- pondência astrológica. O Eremita apela dos os véus, todos os adornos. da posição”(Basilius Valentinus, Nona à introspecção, à solidão. Uma viagem Nigredo é também a viagem ao cen- Chave, Duodecim Claves philosophi- interior a vários níveis. tro da terra, ao centro do receptáculo, cæ) Buscando a Verdade, através da ao centro de Si mesmo, que tem de ser meditação, da contemplação e do auto- realizada de modo a obter o poder ne- Quando vejo tantas correspondên- -exame, é possível para o adepto mer- cessário para a transformação/sublima- cias simbólicas refl icto que ou estou gulhar nas profundezas de Si mesmo. ção seguinte; a “prima materia”. (Tal- louco e desprovido da sã razão, ou que Jung falaria de como o processo de in- vez por isso o Inverno se tenha tornado então tudo tem um sentido que me es- dividuação, trazido à vida pela doloro- uma estação tão melancólica e na qual capa na sua maioria. Talvez seja um sa e crescente tomada de consciência do nos habituámos a depositar os nossos pouco de ambas. lado sombra de cada um de nós seria desejos de ano novo). No entanto sinto, ou melhor, sei que um Nigredo; um outro tipo de obscure- Esta estação de frio e morte que an- existe ali fora (ou aqui dentro, não inte- cimento sem dúvida mas, ainda assim, tecede o despertar para a vida, também ressa) uma realidade diferente, onde a o mesmo. ela um signo visível do fi m dos ciclos, Verdade é Una como só pode a Verdade V.I.T.R.I.O.L. recorda-nos nesta realidade física que ser e onde as palavras não têm assim Calcinando o ouro sobram as cin- partilhamos como folie à deux colectiva, tanto valor e menor valor ainda terão os zas, Nigredo. O Eremita também é o que tudo tem um fi m, mas igualmente fi nos metais que brotam das profunde- desejo de abandonar a Matéria. um potencial novo começo. zas. Fulcanelli ilumina-nos o caminho Os grandes segredos não são assim Sei que, algures no tempo, não só com esta pequena passagem tão grandes; são apenas as chaves que comungámos todos dessa Realidade nos permitem entender a simplicidade como a partilhámos, pois somos agora “(...) Assim, a catedral aparece-nos das coisas. Os símbolos estão em todo aquilo que sempre fomos e nada mais: fundada na ciência alquímica, inves- o lado e as repostas a seu lado. Não Enxofre, Mercúrio e Sal. tigadora das transformações da subs- parecemos ter a capacidade de os ver, Por diversos motivos que desconhe- tância original, da Matéria elementar sentir ou compreender porque nos en- ço, e que duvido que alguma vez venha (lat. materea, raíz mater=mãe). Porque contramos enredados numa fabulosa a conhecer, temos sido reorganizados, a Virgem Mãe, despojada do seu véu teia de ilusão que vamos construindo mercê das nossas próprias operações simbólico, é a personifi cação da subs- para nós próprios, acumulando o “real” alquímicas internas mas também certa- tância primitiva de que, para realizar em quantidades titânicas. O “real” não mente sob a infl uência dos astros regen- os seus intuitos, o Princípio criador de é assim tão real. Ter não nos faz Perten- tes e agora, a amálgama é de tal ordem tudo o que existe se serviu” (Fulcanelli, cer. que é necessário uma Operação Maior O Mistério das Catedrais) E é essa frustração, parece-me a para recuperarmos a nossa “prima ma- mim, que nos faz perder umas tantas teria” ou a centelha divina, como lhe e mais à frente: cabeças de gado que fi ca tresmalhado, preferirem chamar. ou perdido, ou enredado algures num O Inferno é real afi nal. E estamos a “(...)Enfi m, na Ave Regina, a Vir- silvado esquecido nas profundezas de “viver” nele. gem é chamada propriamente Raíz um bosque. Recordando-me da doutrina dos (Salve, radix) para marcar que ela é o Parece-me a mim igualmente que a Quatro Ciclos da Humanidade, tão pre- princípio e o começo de Tudo. «Salve, única maneira de Pertencer é Reunir, e sente em tantas culturas, compreendo raíz, pela qual a Luz brilhou sobre o isso, os sábios o diriam, obtem-se har- claramente como temos vivido em Ni- mundo».”(Fulcanelli, O Mistério das monizando a Lua e o Sol. gredo e como a Matéria tem sido parci- Catedrais) Solve et Coagula e a obra prossegue; moniosamente agregada, camada sobre Solve et Coagula, sempre e sem parar. camada, com vista a preparar o que já Os padrões tornam-se evidentes veio, há de vir e virá sempre. O regresso para os despertos. E assim celebramos “Aquilo a partir do qual algo foi do Rei, o regresso do Sol, a Primavera as Saturnalia, pois o grande Pai da Ida- feito de modo natural, é a mesma coisa que se avizinha com o término dos ci- de do Ouro preside às celebrações. que deve regressar a um estado de dis- clos. Estamos então no Inferno, onde solução, à sua própria natureza. Tudo Penoso trabalho de laboratório que toda a Matéria se contrai; estamos no deve ser dissolvido e reduzido à forma só acaba para recomeçar. Suspeito que nosso íntimo onde todos os terrores, da qual foi gerado”.(Anton Joseph Kir- Deus afi nal não seja estritamente Ar- anseios e desejos, paixões e aspirações chweger) quitecto mas talvez antes Alquimista. nos recordam quão absolutamente ma- Suspeito igualmente que as conjec- téricos somos - e materialistas também, Conseguimos reconhecer o valor do turas dos cátaros sejam reais. A Matéria claro. No decorrer da maior parte da Chumbo primordial se o segurarmos é de Satanás e o Espírito de Deus. Então nossa vida não nos recordamos que o nas nossas mãos? Cinicamente, respon- sendo nós uma tanta parte de matéria, Ouro não é de ouro. do por todos: “Mas não é o Ouro que corrompidos estamos e é necessária a Vejo Odin como o Eremita, sem bas- buscamos?” penetração das infl uências celestes para tão mas com uma lança. Durante 9 dias Não é o Chumbo o mesmo que o que a semente se revele. A foice de Sa- e 9 noites ele se dependurou no teixo Ouro mas ainda por realizar? No fun- turno, ou a lança de Odin. Yggdrasill e assim, calcinando se pu- do, todos os metais anseiam por ser rifi cou, e tornou-se digno dos Poderes Ouro e para isso tendem naturalmente. “De toda a força, esta é a verdadei- Superiores. ra força, porque conquista tudo o que

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é subtil, e penetra tudo o que é sólido” outro modo, cairemos no nosso orgulho nós, com a sua candeia de dois triân- (Tableta Esmeralda) e perdermo-nos-emos. gulos combinados é um sinal de que a Ainda com a perspectiva cátara bem senda vai por bom caminho. Os sonâmbulos adormeceram e os presente, penso que estando o espírito O Albedo é, na tradição Hermética, despertos acordam num sonho. Não há em luta com a matéria, que é natural anunciado pelo aparecimento de uma nascimentos sem sangue. Hecatombes que o Diabo nos sussurre tentações e estrela gloriosas, as de nós próprios, que hon- promessas vãs - como fez com o Cris- ram os ritos arcanos. to no deserto - que nos aprisionem um pouco mais neste invólucro, que no fun- “Virgílio e eu, logo após, nos eleva- O Diabo, a carta XV do Tarot, repre- do no fundo, é ele também um athanor. mos, senta o materialismo, a ignorância, a ‘Té que do ledo céu as cousas belas lascívia, o egoísmo, a futilidade e as de- O modo da harmonização necessá- Por circular aberta divisamos: mais paixões. O pentagrama invertido ria para progredir, a luz que nos guiará Saindo a ver tornamos as estrelas. que nele fi gura, é descrito por Eliphas nas trevas é representada pela candeia (Dante, Inferno Canto XXXIV, 136-139) Levi nos seguintes termos: do Eremita, uma estrela de seis pontas: um selo de Salomão, ou uma estrela de “Um pentagrama invertido, com David diriam alguns com um pouco V.I.T.R.I.O.L. - Visita o Centro da dois vértices a apontar para cima, é um menos de razão. Terra e, Rectifi cando-te, encontrarás a símbolo do mal e atrai forças sinistras Pedra Oculta. porque inverte a ordem das coisas e O fogo é o triângulo que aponta um triunfo da matéria sobre o espírito” para cima, o da água o que aponta para Após ver e sem saber, continuamos (Eliphas Levi, Dogma e Ritual da Alta baixo. Combinando ambos, obtemos na matéria indiferenciada; os que sa- Magia). dois novos triângulos intersectados: bem tentam mudar; os que conhecem um que representa a terra e outro que transmutam. • representa o ar. Este selo mostra-nos O triunfo do espírito sobre a maté- o mistério da transmutação, de tudo o ria é então o objectivo ideal. O Diabo só que é unifi cado em equilíbrio. Este selo pode ser encarado com um sentido de mostra-nos o objectivo e o método. profunda humildade que deriva de re- conhecermos as nossas imperfeições, de O aparecimento de um Eremita em

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