Contribuições Da Etno-História Para a Arqueologia Do Nordeste De Mato Grosso Do Sul, Na Área Impactada Pelo Gasoduto Bolívia-Brasil

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Contribuições Da Etno-História Para a Arqueologia Do Nordeste De Mato Grosso Do Sul, Na Área Impactada Pelo Gasoduto Bolívia-Brasil Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 11\ 303-310, 2001. CONTRIBUIÇÕES DA ETNO-HISTÓRIA PARA A ARQUEOLOGIA DO NORDESTE DE MATO GROSSO DO SUL, NA ÁREA IMPACTADA PELO GASODUTO BOLÍVIA-BRASIL Gilson Rodolfo Martins* Quando na primeira metade do século XVI Prezia (1988: 4) ao analisar o grupo os primeiros conquistadores europeus chega­ lingüístico Macro-Jê sintetizou algumas ram a Mato Grosso do Sul, encontraram características comuns às tribos filiadas a esse algumas centenas de milhares de índios que aí tronco, as quais se apresentam a seguir: viviam, há séculos, os quais estavam distribuí­ - “são moradores do cerrado ou de áreas dos por mais de uma dezena de tribos distintas de mato aberto; entre si. Das fontes históricas do século XVI, - possuem uma organização social praticamente nenhuma faz referência aos complexa, dividindo a comunidade em metades índios do nordeste sul-mato-grossense. Porém, ou clãs, divisão que é respeitada desde a direção de acordo com os cronistas dos séculos da aldeia, até a realização de festas e rituais; - não usam redes, dormindo em esteiras ou seguintes e com estudos etnográficos contem­ em estrados de varas; porâneos, como, por exemplo, o Mapa Etno- - fabricam pouca cerâmica, desenvolvendo Histórico de Nimuendaju, editado em 1944, mais a pintura corporal e a arte plumária”. toda a área vizinha ao traçado do Gasoduto O processo colonizador português, no Bolívia-Brasil (Gasbol), entre os municípios de Brasil, iniciou sua interiorização no final do Ribas do Rio Pardo e Três Lagoas era habita­ século XVI. As bandeiras paulistas de André da, hegemonicamente, pelos índios kaiapós Leão e Nicolau Barreto, explorando o vale do meridionais, hoje extintos. Segundo Schaden Paraíba do Sul e as terras além da Serra de (1954: 396) o território ocupado por esses Mantiqueira, inauguraram, na última década desse índios era o seguinte: século, o fenômeno bandeirante. Entre 1600 e “Grande extensão do noroeste do Estado 1620, diversas bandeiras terrestres partiram do (SP), compreendida entre o rio Grande e o planalto de Piratininga em direção ao ocidente Paraná, bem como as áreas adjacentes do colonial buscando duas mercadorias muito triângulo mineiro, do sudeste de Mato Grosso valorizadas no comércio mercantilista: os metais e sul de Goiás, constituiu o habitat de uma preciosos e cativos indígenas. Dessa forma, o tribo jê, conhecida sob o nome de Kaiapó início do século XVII é também o momento que Meridionais. (...) Guerreiros denodados, estabeleceu os primeiros contatos inter-étnicos faziam-se acompanhar das mulheres nos entre colonos europeus e as tribos orientais de campos de luta, incumbidas de ficar atrás dos Mato Grosso do Sul e do extremo-oeste paulista. homens e passar-lhes as flechas à medida que Em 1610, os jesuítas espanhóis iniciaram a as gastassem. Além de arco e flecha, serviam- catequese dos índios guaranis do Guairá, no se de grandes cacetes, particularidade que deu noroeste paranaense, intensificando a movi­ origem à designação de Ibirajara (“senhores mentação colonial na bacia do Alto Paraná. dos tacapes, na língua geral) com que os Com isso, alterações substanciais ocorreram Kaiapó e algumas outras populações figuram na realidade étnica regional. em textos antigos”. A presença dessas duas frentes de expan­ sionismo colonial, embora rivais, debruçadas sobre o mesmo objeto, implicou um afastamento (*) Laboratório de Pesquisas Arqueológicas do Departamento de História do Campus Universitário e diminuição dos aldeamentos indígenas nas de Aquidauana da Universidade Federal de Mato proximidades do trecho sul-mato-grossense do Grosso do Sul. rio Paraná. Nos anos seguintes à fundação da 303 Estudos Bibliográficos - Ensaios. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11\ 303-310, 2001. ação missionária, avolumaram-se as expedições general Luis de Céspedes Xeria, Governador do preadoras oriundas de São Paulo, tanto sobre Paraguai, partiu de São Paulo em um comboio as aldeias tradicionais como sobre as diversas fluvial que percorreu, pioneiramente, a rota reduções guairenhas. As tribos guaranis ocupan­ fluvial Tietê/Paraná até o Guairá. No ano seguin­ tes do complexo fluvial Paraná/Paranapanema te, comandado por Raposo Tavares e Manoel alteraram hábitos culturais e passaram a migrar Preto, ocorreu o grande e fulminante ataque constantemente provocando a reacomodação bandeirante sobre as missões guairenhas de outros grupos étnicos vizinhos, inclusive os provocando o êxodo maciço de índios dessa do nordeste sul-mato-grossense. Os trechos região para o sul do Brasil e para Mato Grosso abaixo, citados por Taunay (1922: 90), refletem a do Sul. Estima-se que mais de vinte mil índios visão desse autor sobre a conjuntura inicial do tenham abandonado a região somente nesse século XVII na área ocidental da colônia: episódio. Em seguida, as investidas sobre os remanescentes índios guaranis guairenhos “Em 1612 queixava-se o cabildo da Ciudad Real, a mais importante das colônias foram feitas em todas as direções. jesuíticas do Pequiry e Ivay ao governador de Em 1648, foi a vez das reduções do Itatim, Buenos Aires, contando-lhe “la inquietud de los instaladas em Mato Grosso do Sul entre os naturales, promovidas por los portugueses de la vales do Miranda e do Apa, serem atacadas Villa de San Pablo en el Brasil, quienes los han por Raposo Tavares. Os índios guaranis- sensocado y llevado más de 3.000 com harto itatins evacuaram a área e partiram em direção perjuricio de esta ciudad”. ao nordeste do Paraguai e serra de Maracaju. Para o autor acima (op.cit.): “estavam os Em meados desse século, os núcleos coloniais índios no maior alvoroço e ameaçavam espanhóis em Mato Grosso do Sul estavam despovoar a região emigrando tumultuosa­ definitivamente abandonados. mente além Paraná e além Iguassu”. Durante o ano 1676, o bandeirante paulista Segundo Caldarelli (1993: 5), essa conjun­ Francisco Pedro Xavier, acompanhando as tura histórica tem a seguinte implicação para a margens da rota Tietê/Paraná/Iguatemi e pesquisa arqueológica: ultrapassando o planalto maracajuano, em Mato “(...) a situação de instabilidade em que se Grosso do Sul, invade e destrói Vila Rica dei encontravam os indígenas, os quais passam a Espiritu Santo, no norte do Paraguai Oriental. viver em habitações precárias e com objetos Segundo Taunay (1951: 147): numericamente reduzidos e feitos rapidamente, em sua maioria com material perecível fáceis de “Ao sertão da Vacaria que assim se chamava serem produzidos, já que a extrema mobilidade então o atual sul mato-grossense percorreram no característica da situação de conflito em que último quartel do séc. XVII diversas bandeiras. viviam os indígenas, obrigava-os a constante­ Em 1682, procurava Juan Diaz de Abdino mente abandonar seus acampamentos e objetos saber quantos seriam aqueles portugueses implanta­ dos nas vizinhanças das ruínas de Santiago de pessoais. Jerez e soubera que os cabos paulistas eram Pascoal Este fato explica porque é difícil a recupe­ Moreira e André de Zunega “que tenian ochenta ração arqueológica dos assentamentos canoas en el rio de Botetey que entra à este dei indígenas mais recentes, sendo mais facilmen­ Paraguay’’. te identificáveis os assentamentos pré- Na passagem do século XVII para o XVHI, a coloniais, quando as populações que ocupa­ presença colonial luso-paulista estava consolida­ vam a área apresentavam maior densidade da em Mato Grosso do Sul, isto ao custo de cem demográfica, permaneciam mais longamente anos de guerra genocida e de conquista territo­ nas aldeias e produziam uma cultura material rial. Porém, como atividade econômica, a partir de mais diversificada e numericamente mais 1670, o bandeirismo de apresamento mostrou expressiva do que a dos indígenas que as forte tendência ao declínio. A reorganização do sucederam, em tempos históricos”. tráfico negreiro após a expulsão dos holandeses A união das coroas ibéricas, entre 1618 e do nordeste brasileiro, o esgotamento dos 1648, fez da América do Sul uma única unidade “estoques” de índios guaranis “domesticados” política. A pressão colonial sobre o interior do pelas missões, a resistência e a retirada dos continente aumentava. Em 1628 o capitão- sobreviventes para regiões mais ermas, progres­ 304 Estudos Bibliográficos - Ensaios. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 11'. 303-310, 2001. sivamente inviabilizaram a ação bandeirante de rota seguida desde Araritaguaba vai assumindo, apresamento nos padrões da economia colonial. cada vez mais, o caráter de via de trânsito Desse período histórico é muito improvável regular. O que estimulava agora essas expedi­ ções, já não era tanto o ânimo aventureiro, mas a presença de vestígios arqueológicos na área a o lucro certo que prometia o comércio com ser impactada pelo gasoduto, sobretudo no esses remotos sertões, distanciados de qualquer segmento abrangido por este estudo. As recurso, onde os preços atingidos por todos os características dessa modalidade colonizadora artigos, até mesmo de uso indispensável, faziam com que não houvesse assentamentos parecem destinados a compensar abundante­ permanentes, seu caráter era mais destrutivo mente todos os riscos da viagem". que construtivo. Os bandeirantes não aspira­ O tráfego fluvial regular entre São Paulo e . vam ao povoamento nem à fixação nas áreas Cuiabá foi definindo-se paulatinamente. As desbravadas. Sua relação com o espaço era de antigas rotas seiscentistas que seguiam permanente movimentação, acompanhando preferencialmente pelos caminhos Paraná/ sempre o deslocamento estratégico dos indíge­ Ivinhema ou Tietê/Pardo/Aquidauana, tinham nas em retirada para o interior. Acrescente-se vários inconvenientes para a nova modalidade ainda o fato de que a cultura material bandeiran­ de trânsito que exigia mais segurança. Por volta te, nos padrões do modelo europeu, é descrita de 1720, uma nova rota foi descoberta pelos pelos historiadores como sendo elementar. irmãos Leme, segundo Holanda (1945: 97): A crise do bandeirismo de apresamento, no “Desejosos, talvez, de procurar passagem fim do século XVII, não foi um fato isolado, ela mais breve para as minas, deliberaram aqueles estava inserida na primeira crise geral no sistema sertanistas continuar em águas do Pardo, subindo colonial português.
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