Anais do II I Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito

ENTRE TENSÕES: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE OS ESPAÇOS -FRIENDLY NA IMPRENSA ON-LINE

Alexandre da Silva Zanella Doutorado/UFF-CAPES Orientadora: Profª. Drª. Vanise Medeiros

Com este texto, proponho-me dar a conhecer a pesquisa que venho desenvolvendo na área da análise de discurso de linha francesa sob orientação de Vanise Medeiros. Ao longo deste texto, vou explorar a proposta da pesquisa e algumas questões em que estamos pensando no estágio atual em que ela se encontra.1

Para começar, os espaços denominados gay-friendly têm ocupado, desde meados da primeira década dos anos 2000, lugar nas cidades de todo o mundo. A designação aparenta referir-se, de modo naturalizado, a lugares amistosos aos homossexuais, e comparece em restaurantes, bares, lojas, agências de turismo, para citar apenas alguns espaços. Quando nesses espaços, aparece por vezes acompanhada da bandeira do arco-íris que representa, desde o fim dos anos 1970, o movimento LGBT. 2

O uso da denominação gay-friendly em relação a espaços urbanos (cf. ORLANDI, 2001, 2003) tem comparecido também nas páginas dos jornais e da internet. Em uma consulta no Google, aproximadamente dois milhões e meio de resultados surgem quando a designação é utilizada entre aspas – um comando que efetua a busca apenas pela sua ocorrência exata.3 Em sua maioria, os resultados repousam sobre sugestões de hotéis, guias com locais que se autodenominam gay-friendly , rankings de países e de cidades, rankings de empresas, sugestões de festas, e derivações desses resultados primeiros. Há também nesses resultados, embora em número muito reduzido, alguns poucos voltados a que significa a denominação gay-friendly .

1 Referente ao início do mês de dezembro de 2014. 2 A bandeira do arco-íris foi incorporada pelo movimento LGBT em 1978, por Gilbert Baker (ALYSON, 1990). Uma discussão mais aprofundada sobre esta questão será feita mais adiante. 3 Não entraremos, por ora, numa discussão sobre os resultados obtidos pelos mecanismos de busca, mas entendemos que um site como o Google não comporta, como nem seria possível, todos os resultados sobre o assunto. Uma discussão sobre a falta nesse tipo de mecanismo será feita em nossa tese.

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 4-9, 2015.

DISCURSO, SUJEITO E PSICANÁLISE ______

Nossa investigação se marca, a respeito do funcionamento desta designação, nos modos que ela significa em relação às subjetividades homossexuais na imprensa on-line e, como desdobramento, nos espaços que se reservam a estes sujeitos. Ora, se em análise de discurso consideramos sempre que a língua não diz tudo, bem como, parafraseando Ferreira, “em se tratando de linguagem não se pode dizer tudo ” (2000, p. 9, grifos da autora), nos perguntamos quais são os modos da denominação gay-friendly se marcar quando ela comparece em diferentes lugares de dizer no meio digital, o que significa, em nossa pesquisa, portais de notícias on-line.

A partir da vasta indicação de espaços, cidades, países gay-friendly nos resultados do maior site de buscas da internet, 4 interessa-nos verificar de que modos estes significantes entram nas páginas dos portais on-line (temos nos debruçado, neste momento da pesquisa, sobre três portais do que estamos chamando como imprensa de referência: o G1 , site de notícias das Organizações Globo; o Terra Notícias , do grupo Terra Networks Brasil S.A.; e o UOL Notícias , que reúne conteúdo da Folha de S. Paulo e de seções do site UOL , como “Viagem”, e canais a ele vinculados, como o Vírgula , o Mix Brasil , além de revistas sob o domínio do portal); escolhidos por serem os portais de maior acesso no Brasil). 5 O corpus , portanto, não foi delimitado num a priori sobre o qual interviríamos teórica e metodologicamente, mas sim foi (e vai) se constituindo à medida que manuseado pelo analista. Nesse sentido é que o corpus também não se fecha; está fadado a ser sempre mais. No que concerne aos modos de analisar as subjetividades homossexuais urbanas na contemporaneidade, consideramos que seja producente nos propormos, a partir de um levantamento da ocorrência da expressão ‘ gay-friendly ’ nos portais on-line supracitados (e em outros que comparecerão em nossa pesquisa), analisar o funcionamento dessa denominação no que ela implica sobre a discursividade sobre os modos de constituição das subjetividades homossexuais. Com efeito, queremos demarcar que trajetos de significação comparecem, em (a) seus pontos de estabilização, suas regularidades, suas equações linguísticas cristalizadas, bem como, por outro lado, desse levantamento – que inclui leituras e releituras do corpus , num vai-e-vem incessantemente retomado –, vamos também determinando b) o que fica à deriva, não entra no funcionamento dessas regularidades, escapa. Em análise de discurso, o resíduo importa à medida que pode evidenciar lugares de resistência, de furos no ritual ideológico, de atravessamentos outros num dizer aparentemente estabilizado.

4 Segundo o site Alexa (http://www.alexa.com), que mede o tráfego de dados na internet no mundo todo, o Google ocupa, hoje, a primeira posição no ranking de sites mais acessados.

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Ora, as tensões que desde um momento inicial se colocavam latentes em relação ao uso da denominação gay-friendly foram se mostrando em alguns momentos no discurso jornalístico on-line, dos quais destacamos para este momento:

a) uma indefinição do que a designação significa, pelo fato de se valer de um termo (um adjetivo) de língua inglesa – friendly –, associado ao substantivo ‘ gay ’, este já dicionarizado e em ampla utilização no Brasil; 5 isto é, a expressão ‘ gay-friendly ’ parece ser utilizada na imprensa on-line como uma evidência;

b) o desconhecimento se a expressão inglesa está já incorporada ao léxico brasileiro, presente, por exemplo, em dicionários de língua portuguesa;

c) os modos de significar os sujeitos homossexuais urbanos quando se fala sobre o que chamaremos aqui de questões gay-friendly , em nossas condições de produção contemporâneas, nos portais que fomos selecionando para análise.

A partir, então, dessas perguntas iniciais, colocou-se de imediato que algo nesse processo falta , porque há uma opacidade quanto ao uso da denominação; ou seja, como dissemos: a língua não dizendo tudo. 6 Além disso, feitas estas contestações, nós nos questionamos: o que é afinal, contemporaneamente, um espaço gay-friendly ? Em que eles se diferenciam, por exemplo, de espaços apenas denominados gays ? A quem servem? E quanto aos espaços não gays?

Colocamos estas questões acompanhadas de alguns desdobramentos.

Para nos debruçarmos nos sentidos sobre os espaços gay-friendly – ruas, cidades, bares, restaurantes, etc. –, escolhemos analisar como esses espaços comparecem na imprensa on-line, no meio digital e, a partir dos efeitos de sentido que a denominação produz, quais discursos sobre o sujeito homossexual são produzidos quando ele fala e/ou é falado pela/na imprensa. Os sentidos sobre os espaços gay-friendly pedem que seu funcionamento discursivo seja levado em conta. Trata-se de percorrer como esses sentidos têm uma forma material com uma carga histórica, o que, redunda dizer, significa que são atravessados pela ideologia, tal como pensa Orlandi (2012 [1996]). Poderíamos considerar, pois, que há uma historicidade sendo apagada, por exemplo, quando não se diz o que vem a ser um espaço gay-friendly .

5 No decorrer da pesquisa, iremos nos debruçar sobre a questão do estrangeirismo, em uma visada discursiva sobre seu funcionamento.

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Estamos considerando que falar sobre subjetividades homossexuais a partir de espaços denominados amistosos aos gays é falar acerca de um saber sobre esses sujeitos, marcado pelos discursos que os atravessam e pelos espaços que ocupam, pelas demarcações na cidade (ORLANDI, 2001, 2003; RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2003). Além disso, falar sobre o sujeito homossexual ocupando espaços na cidade é falar também sobre a própria cidade, sobre os lugares que vão sendo destinados (ou não) a esse sujeito.

Embora os sentidos pareçam estabilizados, naturalizados com relação a esses discursos, sabemos que a linguagem, para a análise de discurso (a partir de Pêcheux, na França, e Orlandi, no Brasil), é um jogo de forças, efeitos de sentidos contraditórios nos quais os dizeres vão fazendo um movimento. Quando se fala (d)o homossexual na imprensa, notamos os modos como ele é atravessado por discursos que cristalizam um tipo de saber sobre esse sujeito.

Porque atravessada por formações ideológicas e discursivas heterogêneas, a imprensa, enquanto uma instituição, opera na estabilização e desestabilização de significações, conforme Mariani, “mobilizando a memória social em seu próprio proveito” (1998, p. 44). Isto significa que a imprensa mobiliza interpretações da história a fim de 7 regularizar os acontecimentos históricos e naturalizar os sentidos que produz. Quando fala sobre ser homossexual contemporaneamente, seu discurso é, na verdade, um discurso sobre , ainda conforme Mariani, já que “representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, [...] estabelecendo sua relação com um campo de saber já reconhecido pelo interlocutor” (p. 60). Nesse sentido é que podemos entender como aquilo que os portais de notícias dizem sobre ser gay é tomado como uma evidência: ‘ser gay, hoje, é isto !’, ‘ser gay, hoje, é assim !’, ou ainda, e avançando, ‘os gays, hoje, consomem mais’, ‘frequentam a Farme de Amoedo’, etc. 6 Desta forma é que se mobiliza uma memória do passado, ao mesmo tempo em que se constrói uma memória do futuro.

Dentre nossas questões, uma que se destaca é pensar o que essas evidências sobre ser homossexual no século XXI produzem como efeitos de sentidos; o que se narrativiza sobre o sujeito homossexual na imprensa, construindo um tipo de saber sobre ele.

6 Uma das matérias previamente selecionadas para esta pesquisa é intitulada “Turistas são 30% da receita do carnaval do Rio, diz Prefeitura” (G1, 02 abr. 2014), na qual se afirma que a Rua Farme de Amoedo (“e adjacências”), em Ipanema, no , é um “ponto de concentração de público LGBT”.

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Quanto aos objetivos de nossa pesquisa, para chegar às análises de como se constrói na imprensa on-line um saber sobre o homossexual contemporaneamente, nos propomos galgar os diversos discursos sobre os movimentos de afirmação gay até o século XXI a fim de verificar que sentidos são produzidos nesses momentos e o que daí se perpetua como efeitos de sentidos (hegemônicos, de resistência, etc.) nos portais de notícias. O modo de constituição do arquivo para a pesquisa é dado pelas regularidades encontradas na memória discursiva sobre o homossexual. Por isso, a discussão passa necessariamente pela construção dessa subjetividade homossexual, e de como ela se dá na imprensa no século XXI.

A partir de algumas análises já desenvolvidas, notamos, por exemplo, que quando se fala dos espaços gay-friendly , fala-se de um sujeito homossexual específico: o masculino, o escolarizado, o de classe média alta. Fala-se também muito frequentemente dos lucros que os esses espaços gay-friendly geram, ao passo que nos perguntamos: por que, e de que modo, o lucro parece ser favorável aos homossexuais? Se o que se nota, a partir de leituras do nosso corpus mas ainda em caráter inicial, é que o homossexual, cada vez mais, parece ser agrupado pela ideologia neoliberal – e tudo o que ela produz como evidência – há, aí, um silenciamento da diferença, o que significaria não um ser ‘aceito’ por uma sociedade, mas um adequar-se a ela, em seu funcionamento? Lembremo-nos do que nos dizem Lagazzi-Rodrigues e Brito 8 (2001): “o espaço urbano acolhe e também expulsa. Produz limites que acomodam e incomodam” (p. 51).

Os sentidos da imprensa on-line, nos portais que estamos investigando, nos dão algumas pistas. Entretanto, nós a tratamos, por ora, apenas como evidências às quais ainda continuaremos a perseguir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALYSON PUBLICATIONS. The Alyson Almanac: a treasury of information for the gay and community. Boston: Alyson Publications, 1990.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Da ambigüidade ao equívoco : a resistência da língua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2000.

LAGAZZI-RODRIGUES, S.; BRITO, P. S. As ocupações dos sem-teto na discursividade da cidade. In: ORLANDI, E. P. Cidade atravessada : os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas, SP: Pontes, 2001.

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MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa : os comunistas no imaginário dos jornais (1922- 1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1998.

ORLANDI, Eni Puccinelli. (org.). Cidade atravessada : os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas, SP: Pontes, 2001.

______. Poli Ƨêmico. In: ______. (org.). Para uma enciclopédia da cidade . Campinas, SP: Pontes, Labeurb/Unicamp, 2003.

______. Interpretação : autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 6. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012 [1996].

RODRÍGUEZ-ALCALÁ, Carolina. Entre o espaço e seus habitantes. In: ORLANDI, E. P. (org.). Para uma enciclopédia da cidade . Campinas, SP: Pontes, Labeurb/Unicamp, 2003.

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