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Editorial Editorialpintura ao lado, de 1533, chama-se Os Embaixa- almente dos diplomatas: uma formação humanística dores. Nela, o renascentista Hans Holbein orna- ampla ou, em face da atual complexidade das relações Amentou a estante sobre a qual se apoiam dois internacionais, maior especialização? homens bem vestidos com livros, cartas geográficas, O exercício de reflexão que se encontra nas pá- rolos de documentos, um sextante, um astrolábio, um ginas da Juca – em todos os seus textos, artigos, en- globo terrestre, uma luneta, um compasso, um alaúde saios e entrevistas – revela que jovens diplomatas, de e outros objetos que parecem desligados entre si, mas diferentes formações acadêmicas e de diferentes ori- que representam o que se aguardava, então, das habi- gens, compartilham habilidades que permanecem es- lidades de um diplomata. Como descreve o Embaixador senciais à carreira que escolhemos, e que estavam cir- Alberto da Costa e Silva, no livro O Itamaraty na Cul- cunscritas à representação de Holbein: capacidade de tura Brasileira, “esperava-se dele que soubesse olhar análise, de observação, de ponderação, de imaginação os astros, ler os mapas, e ampla criatividade. conhecer as leis, discutir As exigências para o os filósofos, decifrar os po- bom desempenho da diplo- emas, dominar o latim e os macia variam de acordo com idiomas das cortes e das as épocas, porém algumas ruas, desenhar com pre- delas permanecem: como os cisão, tocar ao menos um poetas, trabalhamos com as instrumento musical, usar palavras; como os pintores ou a espada, conversar com os artesãos, devemos compor engenho e graça, distinguir imagens capazes de dar sen- entre vinhos e temperos, tido à nossa identidade como dançar com elegância, fa- seres humanos e como brasi- lar com eloquência e saber leiros. A Revista que o leitor quando convinha o cicio e tem em mãos demonstra que quando cabia a voz alta.” no serviço exterior do Brasil Quase quatro sécu- também estão poetas e ficcio- los depois da pintura de nistas, analistas e pensado- Holbein, o Barão do Rio res, acadêmicos e cronistas, Branco exigia atributos pintores e artistas. Para nós, semelhantes dos jovens cada palavra e cada imagem candidatos a ingressar está embebida de memória e nos quadros do Ministério reflete um pouco da formação das Relações Exteriores. que recebemos ao longo de O patrono da diplomacia nossas vidas. brasileira selecionava, para o exercício da profissão, Os textos a seguir são, na sua polifonia de vozes os melhores da elite nacional – e não apenas os eru- e de estilos, o esforço conjunto de análise e de ima- ditos ou os homens de cultura, mas também os que ginação feito por jovens brasileiras e brasileiros que tinha por bonitos e elegantes. Para aquele Brasil ainda decidiram emprestar suas palavras ao Itamaraty e ao em formação, tratava-se de demonstrar que as elites País. Procuramos demonstrar que a formação dos en- do país também se ancoravam nas nobrezas do Velho carregados de traduzir necessidades internas do povo Continente. brasileiro em possibilidades externas é tão diversa A dimensão problemática da discussão sobre a quanto são os indivíduos que decidiram desempenhar formação do diplomata tem uma exigência prática para essa função. a política externa – e uma exigência cotidiana para A Juca, para nós, foi nova expressão do cons- os alunos do Instituto Rio Branco. Foi em razão des- tante exercício de que somos diariamente incumbidos: sa dimensão que a equipe editorial da quinta edição aprimorar a arquitetura imperfeita de nossa formação. da Revista Juca escolheu esse tema para compor seu Aos leitores, desejamos que o aprendizado consolida- Dossiê. Como formar um profissional encarregado de do nesta Revista seja tão enriquecedor quanto foi para debruçar-se sobre um mundo em constante transfor- nós editá-lo. mação? Como orientar homens e mulheres a agir em nome da sociedade brasileira? O que se espera atu- Os Editores

3 Expediente Sumário Juca 05 PERFIL Diretor Honorário: Embaixador Georges Lamazière 108 O caminho liberal Editor Chefe: Diogo Ramos Coelho 06 José Guilherme Merquior, um diplomata de 900 anos Bruno B. A. Parga Diretor Executivo: Michael Nunes Lawson Marcos Vinicios de Araújo Vieira Juca Online: Rafael Prince Carneiro 92 A sexualidade segundo Bush e Kant Editoria de Dossiê: Cláudio Luiz Nogueira Guimarães dos Santos e Fabiano Bastos Moraes 13 Amílcar Cabral: o retrato de um libertador Pedro Henrique Batista Barbosa Editoria de Entrevistas: Helena Lobato da Jornada Milton Jonas Monteiro Editoria de Perfis: Bruno Graça Simões CULTURA Editoria de Artigos e Ensaios: Clara Martins Solon e Rubens Dionísio de Camargo Campana ENTREVISTA 72 Uma poética da sombra: Goeldi Editoria de Fotografia e Artes Visuais: Thiago Medeiros da Cunha Cavalcanti Celso Amorim: Diplomacia, Cinema e Boas Histórias Luiz Feldman Editoria de Cultura: Chloé Rocha Young 26 Carolina Paranhos Coelho, Davi Bonavides, José Roberto Editoria de Textos Literários: Pedro Henrique Batista Barbosa Rocha Filho e Rafael de Medeiros Lula da Mata Adoniran Barbosa: a perenidade do poeta das Diretor Jurídico: Carlos Henrique Zimmermann 76 transformações Diretor de Arte e Diagramação: João Paulo Marão 38 Sara Walker: Memória viva do Instituto Rio Branco Felipe Afonso Ortega e Guilherme de Abranches Quintão Relações Públicas: Luiz Feldman Bruno Rizzi Razente Revisoras: Marcela Campos Pereira de Almeida e Milena Marques Vieira Cinema e Política: reflexões Edgard Telles Ribeiro: o Regime Militar, as artes e a 79 José Roberto Rocha Filho Capa: João Paulo Marão 88 diplomacia cultural José Joaquim Gomes da Costa Filho O Futebol, a II Guerra e os Ítalo-brasileiros em São Paulo Diagramação: Cayriton Martins e Robson de Sousa Rosa (Gráfica Conceito) 83 Eduardo Moretti DOSSIÊ 46 Editorial: A formação do Diplomata Brasileiro A linha divisória entre a juventude e o futuro (Resenha 86 de On the Road) A formação do Diplomata Brasileiro: uma reflexão a Marcos Dementev Alves Filho Agradecimentos 48 quatro vozes Cláudio Luiz Nogueira Guimarães dos Santos e Fabiano FOTOGRAFIA E ARTES VISUAIS Bastos Moraes 42 Sereníssima (Veneza) - Chloé Rocha Young Embaixador Celso Amorim Edouard Fraipont 58 É possível formar um Diplomata? 94 Pintura Arquetípica Lucas Pavan Lopes Cláudio Guimarães dos Santos Embaixador Daniel António Pereira (Cabo Verde) José Mario Pereira Embaixador Edgard Telles Ribeiro Lani Goeldi Simulações e modelos das Nações Unidas: Meu Brasil Mineiro 62 os diplomatas que brincavam de ser diplomatas 110 Leandro Araujo, Marllon Abelha, Martin Kämpf, Milena Embaixador Gelson Fonseca Jr. Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa Rodrigo Wiese Randig Vieira e Pedro Henrique Barbosa Embaixador Georges Lamazière Nuno Ramos Estrangeiros no Rio Branco: cooperação para a for- TEXTOS LITERÁRIOS 68 mação de diplomatas 114 O armário Embaixador Manoel Antonio da Fonseca Couto Sara Walker Rafael Prince Carneiro Maria Eugênia Zabotto Pulino Gomes Pereira Winston Lackin, Chanceler do Suriname 116 Zoológico da vida ARTIGOS E ENSAIOS Marcela Campos de Almeida Embaixador Rubens Ricupero Academia Brasileira de Letras 18 Um Barão pra Presidente Ministro Luís Felipe Silvério Fortuna Sociedade Esportiva Palmeiras Bruno Graça Simões 117 Amor em Três Tempos João Eduardo Gomide de Paula Ministro Roberto Teixeira de Avellar A Economia Política da Crise Financeira 98 Diogo Ramos Coelho Entrevista com Lúcifer: por um Revisionismo Histórico Conselheiro Celso de Tarso Pereira Apoio cultural: 118 da Queda O câmbio como instrumento de política comercial e as Eduardo Siebra Secretário Rodrigo de Oliveira Castro Associação Artística Cultural 102 regras multilaterais em vigor: desafios e perspectivas Leandro Rocha de Araujo, Martin Kämpf e Samo Gonçalves 120 Microcontos - Fabio Cunha Pinto Coelho Secretário Bruno Carvalho Arruda Oswaldo Goeldi

4 5 e vivo estivesse, José Guilherme Merquior teria Jornal na companhia do pai, Dr. Danilo, o editor Reynal- celebrado 70 anos de idade em 2011 e se apo- do Jardim não acreditou, no primeiro momento, que o “Esquecem que cada homem só vive e é grande quan- Ssentaria compulsoria mente da carreira diplomá- rapaz com cara de garoto fosse o autor dos textos que tica. Sua morte prematura, aos 49 anos, em 7 de janeiro ele vinha recebendo pelos correios para publicação no do mostrado integralmente. Nos seus acertos e erros. de 1991, após uma luta contra o câncer, privou o país Suplemento Dominical. “Contam que o Reynaldo, ao ver Nos acertos e erros dos outros sobre sua pessoa.” de um pensador crítico e independente, de um ser hu- os dois chegarem, dirigiu-se ao Dr. Danilo pensando que mano carismático e afável, por alguns considerado o cé- ele fosse o Merquior”.2 Pedro Nava, Baú de ossos. rebro mais brilhante de seu tempo. Para o Embaixador O anedotário sobre a precocidade intelectual de , aquela morte representou mais um Merquior, recolhido em livros e depoimentos pessoais capítulo das grandes tragédias brasileiras, um completo sobre o diplomata, inclui histórias cujo enredo revela, é desperdício. Autor de mais de 20 obras acerca de temas verdade, algum exagero. Seu primeiro livro, A razão do tão diversos como literatura, sociologia e ciência políti- poema, publicado em 1965, foi editado quando contava ca, Merquior vivia seu momento de maior criatividade apenas 24 anos, época em que foi convidado por Ma- intelectual e o apogeu de sua fulgurante carreira como nuel Bandeira para organizar uma antologia de poemas. diplomata.1 Conta-se ainda que, quando ingressou no Itamaraty, Na celebração de seus 70 anos de nascimento, José Guilherme já era reconhecido nos círculos intelec- coincidentemente 20 anos após sua morte, é justo e de- tuais do Rio de Janeiro graças aos elogiosos comentá- vido resgatar a memória do diplomata que, como dizia rios de – para quem Merquior, com Nelson Rodrigues, parece ter nascido com 900 anos de apenas 17 anos, já havia lido todos os livros que alguém idade. Nem tanto. Nascido em 22 de abril de 1941, no poderia ler. De maneira similar, o filósofo Raymond Aron, Rio de Janeiro, Merquior pode seguramente ser conside- rado uma daquelas raríssimas pessoas que gozam de vocação tanto para a política quanto para a ciência. No Itamaraty, teve uma ascensão funcional algo precoce e impressionante, a qual soube conciliar, com maestria, às suas atividades intelectuais e acadêmicas. Quando ingressou no Itamaraty, em 1962, con- tando apenas 21 anos – para a completa surpresa da- queles que enxergavam nele vocação natural para a academia –, já gozava de reputação que o precedia. For- mado em Filosofia e Direito, o jovem Terceiro Secretário era, desde os 17 anos, colaborador da Revista Senhor e do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, onde mantinha uma coluna sobre poesia e estética. Essas co- lunas sobre poesia suscitaram polêmica, pois Merquior criticou acidamente alguns poetas de prestígio José Guilherme Merquior à época – Antonio Olinto, Geir Campos, Moacyr Félix, entre outros. A respeito dessa fase de publicação no Jornal um diplomata de 900 anos do Brasil, o jornalista José Mario Pereira relata que, por ocasião da primeira visita que Merquior fez à sede do Marcos Vinicios de Araújo Vieira

Posse na ABL (Arquivo ABL) 6 impressionado com a erudição demonstrada por Mer- do, com a Revolução Cubana. Em seguida, argumenta- considerava relevantes. Seu primeiro posto, a Embaixa- quior durante conferência na Universidade de Brasília, va que, terminada a tarefa da delimitação da unidade da do Brasil em Paris, para onde se mudou em abril de chegou a dizer que “ce jeune homme a tout lu”. Não territorial, sucedia-se, “nas tarefas mais importantes do 1966, levado por Olavo Pinto, representou oportunida- admira, portanto, que, “para Merquior a vida cultural se nosso comportamento diplomático, a conquista da uni- de ímpar para Merquior participar, durante quatro anos, confundia com a própria vida, constituía a essência de dade social”4, agenda que, transcorrido cerca de meio dos disputados seminários de antropologia ministrados cada gesto e atitude”3, nas palavras do Embaixador Ru- século, permanece atual e legítima. Quanto ao que as no Collège de France pelo estruturalista francês Claude bens Ricupero. gerações mais velhas de diplomatas deveriam esperar Lévi-Strauss, de quem se tornaria amigo. O resultado Escolhido orador da Turma 1961-1963 do IRBr, dos “noviços a diplomatas”, Merquior exprime o mesmo dessa experiência na França foi a publicação de A esté- Merquior proferiu discurso cujo teor já insinuava sua sentimento que, talvez ainda hoje, muitos dos Terceiros tica de Lévi-Strauss (1975). No ano seguinte, seria publi- predileção por amplas reflexões históricas e filosóficas. Secretários carreguem consigo: cada sua tese de doutorado, pela Universidade de Paris, Os temas foram abordados com notável desenvoltura e, intitulada Verso e Universo em Drummond, que continua “A nenhum espírito moço agrada ver que se lhe pode-se dizer, superaram em grande medida a expec- endereçam esperanças que não vão além do re- sendo o estudo mais bem acabado da obra do poeta mi- tativa em torno de rituais dessa natureza. Analisado à conhecimento das qualidades meramente bio- neiro. Removido para a Embaixada do Brasil em Bonn, luz do contexto de transformações engendradas pela lógicas da juventude; e a todos os jovens é grato em julho de 1970, o então Segundo Secretário pôde compreender que se espera deles não apenas Política Externa Independente, seu discurso constitui, que sejam moços, mas sobretudo que sejam acompanhar de perto o debate filosófico e sociológico essencialmente, peça teórica, obra de um intelectual homens. Se apesar disso se evidencia aqui o suscitado na Escola de Frankfurt. Seu profundo interes- pulso de um estado de ânimo ainda não domi- engajado na defesa das diretrizes de inserção inter- se pelas novas tendências da teoria social se traduziria nado inteiramente pela razão, é porque, nesse nacional delineadas pelo Ministro San Thiago Dantas, início de carreira, vive em nós ainda insuperada na publicação de Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno eleito o paraninfo da turma. Defendia o princípio da au- uma certa oscilação sentimental, uma hesita- e Benjamin (1969), por muitos considerada a obra que ção de mudar, uma flutuação de estréia.”5 todeterminação, tema que entrara na ordem do dia com introduziu o debate sobre a teoria crítica no país. o processo de descolonização afro-asiática e, sobretu- Merquior e o escritor mexicano Octavio Paz De maneira geral, pelo menos dois temas fun- Cumprida a fase de estudos no Instituto Rio (Acervo pessoal de José Mario Pereira) Branco e nomeado Terceiro Secretário, Merquior co- damentais sobressaem-se em seu pensamento político- meçou sua carreira na Secretaria de Estado, onde chegou a frequentar essas aulas. -sociológico: a crítica às perspectivas niilistas da história trabalhou, sucessivamente, como assistente na Divi- Não foi, contudo, apenas por causa da diploma- moderna – identificadas com o neo-estruturalismo de são de Cooperação Intelectual, Oficial de Gabinete do cia que Merquior se tornou figura proeminente no cená- Michel Foucault e com o marxismo ocidental de Theo- Ministro de Estado e assistente na Divisão Consular. rio cultural brasileiro. A exemplo de expoentes de nos- dor Adorno – e a defesa do liberalismo social. Acerca de Nessa época, já sob o sombrio contexto dos Atos Insti- sa literatura, como Guimarães Rosa ou João Cabral de Foucault, Merquior publicou obra em que critica tanto tucionais, o jovem Secretário quase foi vítima do mes- Mello Neto, a diplomacia não constituiu, por assim dizer, o irracionalismo do filósofo francês, na medida em que mo autoritarismo que encerrou a carreira de Vinicius o leitmotiv da biografia de Merquior. Compreendeu, an- não partilha a crença no papel emancipatório da razão de Moraes e de Antonio Houaiss. Malgrado o esforço tes, uma dimensão complementar à sua acentuada vo- iluminista, quanto seu neo-anarquismo, decorrente da do então Chanceler Vasco Leitão da Cunha para evi- cação especulativa, ao seu espírito renascentista. Para absoluta descrença nas instituições. tar interferências dos militares na Casa de Rio Bran- Ricupero, certamente não faz sentido isolar a dimensão No que concerne ao marxismo ocidental, tradi- co, Merquior teve de responder a inquérito em virtu- diplomática de uma personalidade visceralmente vin- ção de pensamento à qual se filiam Adorno e Marcuse, de tanto de sua participação na organização de um culada à atividade intelectual. Pertencente à linhagem o diplomata brasileiro não poupou críticas ao pessimis- festival de cinema russo, no MAM do Rio de Janeiro, dos diplomatas-intelectuais, entre os quais se incluem mo epistemológico em relação à modernidade. Com quanto de uma exposição de fotógrafos cubanos, em , Oliveira Lima e Gilberto Amado, Mer- perspicácia, argumenta que, ao contrário de Karl Marx, Brasília. Do mesmo modo, seu pedido de autorização quior fazia diplomacia fazendo cultura, principalmente um herdeiro do iluminismo e entusiasta do progresso, para a publicação de artigo sobre San Thiago Dantas ao servir em outros países. os frankfurtianos se esmeraram no combate à cultura foi negado pelo Itamaraty. Removido para o Rio de No exterior, Merquior costumava seguir seu agu- moderna, ignorando seus aspectos emancipatórios e os Janeiro, Merquior pôde dedicar-se à leitura e minis- çado instinto intelectual e, tão logo chegava a um país, avanços no campo da liberdade. trou aulas de estética: a escritora estabelecia contato com os ensaístas e escritores que

Posse na ABL (Arquivo ABL) 9 Uma vez realizada essa experiência com a an- A tese defendida compreende análise das abor- Mendonça Teles, com que trocava freqüentes correspondências. Em seguida, Merquior foi trazido a Brasília pelo tropologia francesa e com a teoria crítica da Escola de dagens de Rousseau e Weber acerca da legitimidade, Ministro Leitão de Abreu, a fim de trabalhar, ao lado de Francisco Rezek, no Gabinete Civil da Presidência da Frankfurt, Merquior decide ampliar seu diversificado tema que Merquior retomaria por ocasião do 1º Curso de República. Em 1982, depois de acirrada disputa com , José Guilherme é eleito para a Academia itinerário intelectual e envida esforços para ser removi- Altos Estudos (CAE), estabelecido durante a gestão do Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira nº 36, fundada por Afonso Celso. do, em 1975, para a Embaixada do Brasil em Londres, Chanceler Azeredo da Silveira. Embora, naquele tempo, Com apenas 44 anos, assumiu, em dezembro de 1986, o cargo de Ministro de Primeira Classe. Em 1987, o CAE não constituísse exigência obriga- Merquior foi designado embaixador do Brasil no México, sua primeira chefia de Missão. Lá, tornou-se conhecido nos tória para ascensão funcional, o então círculos intelectuais e políticos, onde fez amizade com outros diplomatas e intelectuais, como Octavio Paz e Carlos Conselheiro Merquior aceitou o desafio Fuentes. De acordo com José Mario Pereira, intelectual e, perante banca compos- ta por João Clemente Baena Soares, “No México, Merquior conviveu com intelectuais de variada coloração ideológica, particularmente com os que circulavam em torno de Octavio Paz e sua revista “Vuelta”. Quando ele estava para deixar o país, Hilda, Marcos Azambuja, Orlando Carbonar e sua mulher, organizou uma simpática despedida nos jardins da embaixada, ao qual compareceram intelec- José Francisco Rezek, apresentou seu tuais, editores, empresários e diplomatas. Eu estive presente, e testemunhei Octavio Paz fazer uma calorosa estudo sobre o problema da legitimida- saudação de despedida, em nome do México e de seus intelectuais, a Merquior. Foi uma fala comovente, de em política internacional, talvez seu que não deixou dúvidas quanto à enorme admiração que Dom Octavio tinha pelo ensaísta brasileiro, mesmo sabendo que ele divergia de algumas ideias suas.”8 único texto dedicado inteiramente às relações internacionais. Como recorda Em 1990, após a queda do muro de Berlim e alguns meses antes da derrocada da URSS, intelectuais do o Embaixador Marcos Azambuja, mundo todo foram convidados por Octavio Paz para participar do debate sobre as transformações políticas e ideoló- gicas naquele annus mirabillis. A lista de convidados é impressionante: ao lado de Merquior estavam o escritor Mario “O exame realizou-se no subsolo do Ita- maraty e, pelas regras então em vigor, Vargas Llosa, os filósofos Cornelius Castoriadis e Lucio Colleti, o poeta Czesław Miłosz, entre outros. No debate, o na presença de uma pequena audiência diplomata brasileiro fez a crítica do socialismo real e a defesa de seu liberalismo social. composta de funcionários de maior an- Ademais, durante seu período no México, Merquior foi responsável não apenas pela compra da atual sede tiguidade do que o candidato. O cenário da embaixada brasileira, como também pela criação, na Universidade Nacional Autônoma do México, da Cátedra Merquior e Fernando Henrique Cardoso na Universidade de Cambridge não era prestigioso nem estimulante, (Acervo pessoal de José Mario Pereira) mas a argüição de José Guilherme Mer- Guimarães Rosa, um marco no contexto das relações culturais entre Brasil e México, destinada a difundir a cultura quior teve o fulgor e o brilho de tudo o brasileira no país. período em que faz seu segundo doutorado na London que fazia. Era evidente que ele conhecia School of Economics, em ciência política, sob a orien- melhor o seu tema do que os seus exa- “... sua maior contribuição à diplomacia brasileira no México não ocorreu nos corredores das chancelarias ou tação do professor Ernest Gellner. A respeito desse pe- minadores e que a própria palavra ‘exa- por meio de relatórios ou telex, mas na tertúlia de sua casa, com gente de cultura deste país. (...) A Embaixa- ríodo londrino, em seu discurso de posse na Academia me’ não se aplicaria com propriedade à da do Brasil se converteu em lugar de reunião para grupos diferentes a até opostos de nossa vida literária. demonstração de virtuosismo que Mer- Merquior convidava gregos e troianos, escrevia em nossas revistas e procurava ligar-nos com publicações Brasileira de Letras, Roberto Campos registra que quior vinha fazer.”7 homólogas em seu Brasil.”9

“Merquior tinha sido meu conselheiro diplomá- Entre 1979 e 1981, Merquior serviu no Uru- tico, quando exerci a função de embaixador em Da cidade do México, Merquior desloca-se novamente para a capital francesa, onde assume a representa- Londres (...). Tive o bom senso de dispensá-lo da guai, período em que se queixava do isolamento e da ção permanente do Brasil junto à UNESCO, em agosto de 1989. Foi ali que, antes de ser eleito Presidente, em uma rotina da embaixada, encorajando-o a fazer seu ausência da família, que ficou em Londres por causa de suas viagens ao exterior, Fernando Collor conheceu Merquior e saiu encantado por ele. Depois daquele encontro, doutorado em Sociologia e Política na London do estudo dos dois filhos. Apesar disso, interessou-se José Guilherme tornou-se interlocutor importante do novo Presidente, uma espécie de ghost writer, razão pela qual School of Economics. Sua tese doutoral contribui- pela história do país, sobretudo pela figura de José rá mais para a cultura brasileira, disse-lhe eu, que foi escolhido para redigir o famoso Discurso de Posse e chegou a ser considerado para ocupar a Pasta das Relações os relatórios diplomáticos que dormirão o sono Batlle y Ordóñez, o famoso líder reformista uruguaio Exteriores. dos justos nos arquivos do Itamaraty.”6 dos primórdios do século XX, sobre quem escreveu, e aproximou-se de escritores brasileiros como Gilberto “O discurso inaugural de Collor, no dia 15 de março de 1990, foi certamente a melhor fala presidencial do Brasil recente. Os tópicos escolhidos revelam uma boa percepção de prioridades: democracia e cidadania; a

10 11 inflação como inimigo maior, a reforma do Estado e a modernização econômica, a preocupação ecológica; o desafio da dívida social e a posição do Brasil no mundo. O texto medular tinha sido redigido pelo então em- baixador do Brasil na UNESCO, José Guilherme Merquior, talvez o mais erudito dos nossos diplomatas (...). Merquior me telefonara em dezembro de 1989, dizendo que Collor o procurara duas vezes em Paris, antes e depois de eleito, para ‘colher idéias sobre a modernidade’. (...) Eu esperava que Merquior fosse escolhido para a pasta do Itamaraty, o que certamente imprimiria brilho à nossa política externa. Collor ofereceu-lhe, entretanto, apenas a secretaria de Cultura, posto sem expressão no contexto administrativo.”10

Vitimado pelo câncer, Merquior morre em 7 de janeiro de 1991. A uma obra precoce correspondeu uma morte prematura. Seu pensamento, multifacetado e metamorfoseado ao longo do tempo, como a esfinge de Macha- Amílcar Cabral do de Assis, necessita ainda ser decifrado. Seu “liberalismo social”, completamente diverso do neoliberalismo ingê- o retrato de um libertadorMilton Jonas Monteiro nuo e dogmático que ele freqüentemente criticava, permanece pouco compreendido ou levianamente deturpado. Na década de 1980, Merquior engajou-se no debate público e fez cavalo de batalha da plataforma política do liberalismo social, em sua opinião a vertente do pensamento liberal mais condizente com o Brasil de nosso tempo. “Temos que acabar com todas as injustiças, todas as misérias, “Há liberalismo e liberalismo. Entre suas versões contemporâneas, qual será a posição da consciência li- todos os sofrimentos. Temos que garantir às crianças que nas- beral num contexto social como o brasileiro? Aqui a primeira coisa a notar é a diversidade do tempo social. cem na nossa terra, hoje e amanhã, a certeza de que nenhum Qualquer que seja o sentido da voga neoliberal em outros quadrantes, entre nós não pode haver liberalismo muro, nenhuma parede será posta diante delas.” autêntico que não seja, essencialmente, um social-liberalismo. E isso já impõe a serena ultrapassagem da Amílcar Cabral (1924-1973)1 antiga querela contra o Estado. Num país com as nossas carências de capitalização e de serviços sociais, o antiestatismo sistemático não tem como ser um combate liberal, pelo simples motivo de que sua aplicação abo Verde é hoje uma república soberana e atrofiaria ou imobilizaria no Estado um dos principais, senão o principal instrumento de criação efetiva de unitária, um Estado Democrático de Direito liberdades – de oportunidades concretas de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população. A crítica ‘liberal’ que não tem olhos para ver isso não é crítica – é preconceito; não visa a promover a liberdade que se assenta sobre princípios da sobe- – visa a preservar o privilégio. De muitos neoliberais modernos se poderia dizer que julgam bom tudo que se C rania popular, do pluralismo de expressão, da or- faça contra o Estado – sem lembrar que precisamos do estado, inclusive para criar uma robusta sociedade ganização política democrática e do respeito aos civil. O bom combate liberal não é contra o Estado – é contra certas formas de apropriação do Estado.”11 direitos e liberdades fundamentais. Falar hoje da

República em Cabo Verde é ter sempre como pano Hoje, pouco se fala de José Guilherme Merquior. De sua vida curta, marcada pela precocidade da manifes- tação de seu gênio e de sua morte, fica a impressão de que, como Chronos e Kairós na mitologia grega, Merquior de fundo a memória de um herói chamado Amíl- parecia sempre lutar contra o tempo cronológico, que devora seus filhos, enquanto se beneficiava de outro tempo, car Cabral. E tudo começou quando, em 1956, ele o tempo kairótico, aquele tempo criativo e aberto ao novo. Quando da morte de Merquior, Lévi-Strauss escreveu a iniciou a luta pela independência de Guiné-Bissau Foto cedida pela Embaixada de Cabo Verde em Brasília Dona Hilda, de próprio punho, uma carta em que dizia: “eu admirava em Merquior um dos espíritos mais vivos e e de Cabo Verde por meio da formação do PAIGC melhor informados de nosso tempo”. (Partido Africano para a Independência de Guiné e São Vicente, onde terminaria o ensino médio, em Cabo Verde). 1943. A partir daí começa a desenhar seu perfil Marcos Vinicios de Araújo Vieira é formado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). [[email protected]] Para quem escuta a história pela primeira como escritor e poeta, ao escrever os primeiros ca- vez, a pergunta inicial poderia ser: qual é a razão dernos de poesia. 1 PEREIRA, José Mario. “O fenômeno Merquior”. In: COSTA E SILVA, Alberto da. O Itamaraty na cultura brasileira. Rio de Janeiro: de ele lutar pela emancipação tanto de Cabo Verde Podemos perceber seu interesse pela literatu- Francisco Alves, 2002. quanto de Guiné-Bissau? A resposta remete-nos à 2 Informação generosamente fornecida por José Mario Pereira por mensagem eletrônica no dia 17 de novembro de 2011. ra e seu engajamento com assuntos da sociedade 3 RICUPERO, Rubens. “José Guilherme Merquior: a diplomacia da inteligência”. In: José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília: Funda- origem de seus pais, de duas nacionalidades di- civil desde bem cedo. Em 1943, passou a integrar ção Alexandre de Gusmão, 1993, p. 15. 4 Discurso como Orador da Turma do Instituto Rio Branco de 1963. Idem, p. 40. ferentes. Amílcar, nascido em 12 de setembro de a Academia Cultivar, a Organização dos Estudantes 5 Ibidem, p. 39. 1924 em Bafatá, na Guiné-Bissau, é filho de Juve- Democráticos e a Vanguarda da Juventude Literá- 6 Discurso do acadêmico Roberto Campos na Academia Brasileira de Letras em 26.10.99, disponível em: . nal Lopes Cabral, cabo-verdiano, e de Iva Pinhel ria nas ilhas de Cabo Verde. Logo começou a par- 7 AZAMBUJA, Marcos Castrioto. Merquior: dois momentos e duas dimensões. Ibid., p. 22. Évora, guineense. Aos oito anos, Amílcar mudou-se 8 Informação generosamente fornecida por José Mario Pereira por mensagem eletrônica. ticipar das atividades da Juventude relacionadas 9 KRAUSE, Enrique. El esgrimista liberal. Vuelta, no. 182, 1992. com os pais para Ilha de Santiago, no Cabo Verde. com a tomada de consciência da situação colonial 10 CAMPOS. Roberto. A Lanterna na Popa - Memórias, 2 volumes. 4ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1991, p. 1230. 11 MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. Em seguida, mudou-se com a mãe para a Ilha de do povo de Cabo Verde. Foi eleito presidente da

12 13 Perfil Perfil

Associação dos Estudantes do Liceu de Cabo Ver- Amílcar dirigiu um programa cultural, na Rádio Na- ativa participação política. Fundou, juntamente Em 1957, houve, em Paris, reunião de con- de, onde fundou e presidiu a Associação Despor- cional, que foi proibido. Também as conferências e com Agostinho Neto, o MPLA, na década de 1950. sulta e estudo para o desenvolvimento da luta tiva do Liceu, dinamizando outras atividades cul- a tentativa de iniciar uma campanha de alfabetiza- Ainda em Angola, Cabral também participou da contra o colonialismo português, da qual Cabral turais e escrevendo mais cadernos de poesia. Em ção foram proibidas pelas autoridades coloniais. fundação do Movimento para a Independência participou ativamente. No ano seguinte, participa- 1944, já morando na cidade da Praia, começa a Voltando para , em 1950, ocupou o cargo Nacional da Guiné. Com Viriato da Cruz e outros ria da I Conferência dos Povos Africanos, em Acra. trabalhar na Imprensa Nacional de Cabo Verde. de Secretário-Geral da CEI, terminou a faculdade africanos, Amílcar tomou parte na fundação do Em dezembro, preside reunião ampliada do PAI, Isso aconteceu só por um ano, pois, em 1945, de Agronomia e trabalhou na Estação Agronômica Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola e em Bissau, dedicada à reorganização do Partido e estaria partindo para Portugal com uma bolsa de de Santarém por dois anos. participou da elaboração dos documentos envia- à elaboração de um plano de ação que priorizava estudos para iniciar a faculdade no Instituto Su- Em 1951, Amílcar Cabral chegou a Vice-Pre- dos à Organização das Nações Unidas (ONU) para a mobilização do campo. Em 1959, durante esta- perior de Agronomia, em Lisboa. Tudo isso mostra sidente da CEI, instigando estudantes africanos, servirem de base para o debate sobre a situação dia rápida em Bissau, Amílcar Cabral, juntamente que seu desempenho não se limitou à esfera po- como Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de An- das colônias portuguesas na África. com Luís Cabral, Aristides Pereira (que viria a ser lítica, mas também deu contribuição importante drade, a criar o Centro de Estudos Africanos em “A união faz a força” foi a ideia que guiou primeiro presidente da República de Cabo Verde), para a cultura tanto em Cabo Verde quanto na Lisboa. Enquanto participava da CEI, Cabral ainda Amílcar Cabral enquanto libertador da “África Por- Fernando Fortes, Júlio de Almeida e Elisée Turpin, Guiné-Bissau. seria co-fundador e colaborador da revista Mensa- tuguesa”, mote que transparece claramente na fez a fusão do PAI com outros movimentos antico- Umas das maiores influências que o jovem gem, órgão dos estudantes africanos em Portugal; ideia de “Unidade e Luta”, expressão muitas vezes lonialistas, resultando em um só partido unifica- Cabral teve para amadurecer as suas ideias po- participaria do Movimento Africano de Revisão da utilizada até mesmo como lema de seu partido. do, o PAIGC, e criou o Movimento de Libertação líticas foi sua ligação com a chamada Casa dos História do Colonialismo Português, como confe- Para Cabral, o êxito dos movimentos de descolo- da Guiné e Cabo Verde (MLGCV), ligado ao partido. Estudantes do Império (CEI). Essa associação es- rencista; tomaria parte na luta antifascista em Por- nização dependia da união de todos os africanos. Em 3 de agosto daquele ano, houve uma manifes- tudantil havia sido criada em 1944, pelo regime tugal; e militaria no Movimento de Unidade Demo- Além dos partidos e movimentos mencionados, tação dos trabalhadores do porto de Bissau que do Estado Novo, para conquistar, entre os estu- crática da Juventude, do qual acaba se afastando seus esforços emancipacionistas o fariam fundar, foi violentamente reprimida pelas tropas coloniais, dantes das colônias, adeptos que fortalecessem por causa da falta de posicionamento da organiza- com outros líderes, o Movimento pela Libertação causando a morte de cerca de 50 manifestantes e a mentalidade imperialista e o sentimento de por- ção quanto ao colonialismo português. dos Povos das Colônias Portuguesas (MLPCP). Ca- uma centena de feridos, naquilo que hoje se deno- tugalidade, o que não aconteceu. A criação da CEI No final de 1951, Cabral casa-se com sua pri- bral contribuiu ainda para estabelecer as bases da mina o “Massacre de Pidjiguiti”. prontamente despertou em seus membros uma meira mulher, Maria Helena de Ataíde Vilhena Ro- aliança entre o MPLA e a União das Populações da No cenário internacional, o movimento para consciência crítica sobre a ditadura e o sistema drigues. Em 1952, regressa a Bissau, contratado Angola e criou o Movimento Anticolonialista, com a a descolonização da África fazia uso intensivo do colonial português e fez surgir as primeiras ideias pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Ser- participação de nacionalistas de Angola, Moçam- discurso da autodeterminação dos povos, que co- para a formação dos principais movimentos inde- viços Agrícolas e Florestais da Guiné. Nessa fun- bique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. meçou a marcar a pauta da discussão na ONU a pendentistas das colônias portuguesas: o já men- ção, Amílcar percorre grande parte do país duran- Isso tudo sem deixar de lado suas atividades pro- partir dos anos 1950. Os líderes africanos logo cionado PAIGC; o Movimento Para a Libertação de te o Recenseamento Agrícola de 1953, o que lhe fissionais e acadêmicas. perceberam que precisavam menos de aplausos Angola (MPLA); e a Frente de Libertação de Mo- proporcionou melhores conhecimentos da realida- É notável também seu desempenho, em para seus discursos e mais de esforços no sentido çambique (Frelimo). de social vivida naquela colônia. Cabral chegou a consonância com sua ideologia política, de levar de concretizar os seus ideais. Com o vai-e-vem dos Em 1947, Cabral foi nomeado Secretário da assumir outros cargos, mas, por conta das ativi- à frente o movimento de libertação nas principais discursos favoráveis e contrários à causa da des- Direção da Seção das Ilhas de Cabo Verde, Guiné dades políticas iniciadas em Portugal, enfrentou colônias portuguesas. Apesar dessa vasta con- colonização, pairava no ar a questão que realmen- e São Tomé e Príncipe da CEI. No ano seguinte, a antipatia do governador da colônia, que o teria tribuição para a descolonização da “África Portu- te interessava: quem iria lutar pela causa? passou a ocupar a vice-presidência da Seção. Com obrigado a mudar-se para Angola, em 1954, logo guesa”, seus esforços viriam a se concentrar, bem Para responder, houve conferências e reuni- a intensificação das discussões nos fóruns da CEI, após malograda tentativa de criar a Associação de logo, em emancipar Guiné-Bissau e Cabo Verde. ões para estabelecer um plano de luta comum (no em 1949, ele criou a Casa de África, em parceria Desportos e Recreação no país. Em 19 de setembro de 1956, Amílcar funda em âmbito interno e externo), tendo Cabral tomado com outros estudantes africanos. No mesmo ano, Em Angola, além de organizar e dirigir órgãos Bissau o Partido Africano da Independência (PAI), parte tanto nas reuniões do Comitê dos Refugia- em viagem para Cabo Verde, durante as férias, e estudos na área de agronomia, Cabral manteve o futuro PAICG. dos Políticos para a Libertação da África sob domi-

14 15 Perfil Perfil

nação portuguesa, quanto na formação de outras da em Moçambique. Em 1965, Cabral encontrou- timo representante do povo guineense. Ainda em era a de duas nações livres que buscariam seus organizações anticolonialistas, como a Frente Re- -se com Ernesto “Che” Guevara e iniciou-se a pri- 1971, Amílcar Cabral recebeu o título de Doutor caminhos longe da opressão portuguesa. volucionária Africana para a Independência Nacio- meira missão da ONU nas regiões libertadas da Honoris Causa da Universidade Lincoln, nos Esta- Como africanista, Cabral repudiava qualquer nal das Colônias Portuguesas (Frain), e mesmo na Guiné-Bissau. No ano seguinte, ocorreu a primeira dos Unidos. A Academia de Ciências da União Sovi- forma de dominação e discriminação, combatia o luta armada, que seria iniciada mais tarde. Conferência Tricontinental, em Havana. Amílcar ética conferiu a Cabral o mesmo título em Ciências imperialismo, o racismo, o colonialismo, e enten- Em agosto de 1960, Cabral foi a Pequim para Cabral encontrou-se com Fidel Castro, que ofere- Políticas e Sociais. dia, em sua visão de estrategista, haver certa inter- negociar o treino dos militantes do PAIGC na Aca- ceu assessoria militar e médica aos movimentos Em 1972, o Conselho de Segurança realizou dependência entre os processos de libertação dos demia Militar de Nanquim e acabou recebendo o de libertação na “África Portuguesa”. sessão especial em Adis Abeba, Etiópia. Na oca- povos africanos. Assim como não seria possível a apoio da China. Em 15 de novembro, o PAIGC diri- Foram necessários três anos de luta para sião, Cabral convidou a ONU a enviar delegação Cabo Verde ser independente enquanto a Guiné- giu ao governo português um memorando em que que o PAIGC ocupasse e controlasse a metade do para visitar as zonas libertadas. A resposta foi a -Bissau permanecesse colonizada, tampouco se- propunha negociações, mas o governo salazarista território da Guiné-Bissau. Em julho de 1967, com Resolução 312, sobre a situação dos territórios ria possível um continente africano independente não respondeu. No dia primeiro do mês seguinte, o início das emissões da Rádio Libertação, a par- sob administração portuguesa. Em abril, um gru- enquanto essas duas porções estivessem sob do- o PAIGC enviou um memorando assinado pelo Bu- tir de Conacri, as vozes pela libertação ganharam po de diplomatas do Comitê de Descolonização da mínio colonial português. Combatia o subdesen- reau Político, mas sem sucesso. repercussão ainda maior. A voz de Amílcar Cabral ONU realizou a visita que havia sido proposta. volvimento, as práticas tribais que enfraqueciam O ano de 1961 foi marcado pela criação da continuou soando perante a Comissão de Direitos No auge de sua carreira, Amílcar Cabral foi a unidade africana e defendia a emancipação não Confederação das Organizações Nacionalistas Por- Humanos da ONU, denunciando os crimes do colo- assassinado em Conacri, em 20 de janeiro de apenas dos homens, mas também das mulheres, tuguesas, da qual Cabral será um dos presidentes, nialismo português nos anos seguintes. Já no final 1973. Seu sangue derramado aumentou o clamor que deveriam participar ativamente da luta pela e pela união do MLGCV com a Union des Ressortis- de 1969, o Conselho de Segurança aprovou a Re- pela luta, intensificando os conflitos contra as for- libertação. Para Cabral, a “luta é uma condição sants de la Guinée Portugaise. Nesse ano, Cabral solução 275, dando respaldo às operações milita- ças coloniais, o que culminaria na Proclamação normal de todos os seres do mundo. Todos estão apresenta comunicação à ONU sobre a situação res portuguesas contra os insurgentes na Guiné. da Independência de Guiné-Bissau, em 24 de se- na luta, todos lutam”2 e todos os africanos e filhos do país, enviando memorando à Assembleia Geral Nesse momento, o PAIGC já ocupava e controlava tembro. Seu meio-irmão Luís de Almeida Cabral da diáspora africana devem continuar essa luta. e uma carta aberta ao governo português. Ainda dois terços do território da Guiné-Bissau. foi nomeado o primeiro presidente do novo Esta- em 1961, um fato curioso foi o Brasil ter concedido Em 1970, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e do independente. O cabo-verdiano Aristides Perei- Milton Jonas Monteiro, cabo-verdiano, foi intercambista do bolsas de estudos a militantes nacionalistas das Marcelino dos Santos foram recebidos pelo Papa ra substituiria Amílcar Cabral na chefia do PAIGC, Curso de Formação do Instituto Rio Branco (IRBr). colônias portuguesas. Paulo VI, em audiência privada. Em 21 de novem- mas a independência do arquipélago só viria em 5 [[email protected]] O PAIGC saiu da clandestinidade em 1963, bro, o governador português da Guiné-Bissau de- de julho de 1975. ao estabelecer delegação na capital da República termina o início da Operação Mar Verde, para cap- Não se sabe, até hoje, quem assassinou de Guiné-Conacri. Em 23 de janeiro, teve início a turar ou mesmo eliminar os líderes do PAIGC, sem Amílcar Cabral. Os principais suspeitos, obviamen- luta armada, com o ataque ao quartel de Tite, no sucesso. No final de 1971, resolução do Comitê de te, foram os agentes do salazarismo, mas não se 1 CABRAL, A. PAIGC, Unidade e Luta. Lisboa: Nova Aurora, 1975, p. sul da Guiné-Bissau, a partir de bases em Cona- Descolonização da Assembleia Geral da ONU ma- descartou que seus próprios companheiros de ar- 100. Nessa obra estão reunidos os mais importantes discursos de cri. Com isso, começaram a chegar a Conacri os nifestou apoio da maioria dos países à indepen- mas, líderes do Partido ou militantes inflamados Amílcar Cabral. primeiros recrutas, a fim de receberem treinamen- dência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. pudessem estar por trás de sua morte. Sabe-se 2 Idem, p. 75. to militar. No mês de junho, Cabral remeteria uma Em setembro de 1971, Cabral visitou a Chi- bem, todavia, que existem duas nações que apre- petição ao Comitê Especial da ONU para os Terri- na, a Coreia do Norte e o Japão. No mês seguinte, sentam ao mundo o retrato de um homem que tórios Administrados por Portugal e, em novembro, discursou perante o XXV Congresso do Partido So- lutou pela autodeterminação de seus povos; e ao faria uma intervenção na IV Comissão da Assem- cial Democrata da Suécia e perante a IV Comissão mesmo tempo se sabe que existe “uma África” que bleia Geral. da Assembleia Geral da ONU, como representante clama por lideranças de perfil político e humanísti- Em setembro de 1964, em meio às lutas, a de um povo em luta, amparado por resolução que co semelhante ao de Amílcar Cabral. Sua visão Frelimo proclamou insurreição armada generaliza- consagrou o reconhecimento do PAIGC como legí- sobre Cabo Verde e Guiné-Bissau

16 17 das para o jogo sucessório. Entre os mais incomoda- Afonso Pena, entretanto, reservando para si o dos, estava o todo-poderoso Pinheiro Machado. Militar direito de indicar seu sucessor, optou por David Cam- veterano das campanhas gaúchas na Revolta da Ar- pista, seu Ministro da Fazenda. A escolha de Campista mada, José Gomes Pinheiro Machado era o principal surpreendeu a todos, uma vez que o jovem ministro da Um Barão representante de uma tradição política de inspiração Fazenda de Pena nunca disputara eleições e apresentava autoritária e positivista, da mesma linhagem de Júlio um perfil discreto. Embora fosse indiscutivelmente culto e pra Presidente de Castilhos e Borges de Medeiros, e que culminaria preparado para as funções que exercia, não era popular Bruno Graça Simões em Getúlio Vargas. e tampouco tinha experiência no pesado jogo político que Os mineiros tinham o jovem Carlos Peixoto como caracterizava a Velha República brasileira. Rapidamente, “A Presidência dele seria de um tipo porta-voz. Junto dele, um grande grupo de parlamenta- Campista colheu seu primeiro “veto”, o de Rui Barbosa. novo e ainda inteiramente desconhecido. res progressistas dispostos a viabilizar a candidatura Senador desde o início da República, nome sem- Acredito que graças à boa estrela ele a presidencial de João Pinheiro com o apoio de Afonso pre lembrado para disputar a Presidência, Rui Barbo- pudesse levar até ao fim entre aplausos Pena. Devido à juventude do grupo, seus rivais os cha- sa detinha as qualidades morais para recusar apoio universais, mas the good time acabaria mavam “Jardim da Infância”. Etapa preliminar dessa a qualquer candidato de Afonso Pena e dispunha de com ele e a sucessão seria pesada e triste por muito tempo. Com ele, acabaria ambição seria a eleição de Carlos Peixoto para a Pre- força política para articular um candidato alternativo. o encantamento. É um grande mágico!” sidência da Câmara dos Deputados. Ora, o grupo situ- Sua escolha recaiu sobre Rio Branco e sua dedicação – Joaquim Nabuco1 acionista de Pinheiro Machado obstava essa eleição, à eleição de Paranhos tomou força com o lançamento embora o Presidente da República se inclinasse em da candidatura de Campista. favor de seus conterrâneos. Alas politizadas do Exército, remanescentes dos Para desfazer o nó político, Pena escalou o de- jacobinos de Floriano Peixoto e os chamados “milita- satador-geral da República, Rio Branco. Feita a paz de ristas” já esboçavam, por sua vez, a candidatura pre- compromisso entre as duas facções, os observadores sidencial de Hermes da Fonseca, tido até então como refiro ser fuzilado!” disparava o Barão do República dos Conselheiros que marcou o Brasil dos da política brasileira daquele momento visualizavam bom vice. Um dos primeiros a falar abertamente sobre Rio Branco contra quem perguntasse sobre primeiros anos do século XX. uma disputa presidencial acirrada na qual esses dois a candidatura militar fora o senador catarinense Lauro sua eventual candidatura à sucessão do Igualmente, a capacidade política para questões “P grupos políticos duelariam por suas próprias razões: Presidente Afonso Pena. Seu envolvimento nas dispu- internas restava incontrastável. Rio Branco a demons- o Presidente e seu “Jardim da Infância”, com João Pi- tas que envolveram as eleições presidenciais de 1910, trara inúmeras vezes ao longo dos governos presiden- nheiro, representando a continuidade da hegemonia episódio pouco lembrado quando se fala da vida do ciais a que serviu. Foi decisiva, por exemplo, sua in- política mineira no comando da República; e Pinheiro Barão, merece ser revisitado. A efeméride do cente- tervenção em fevereiro de 1908 para apaziguar uma Machado e sua velha guarda, imaginava-se, com o Se- nário de sua morte apenas contribui para justificar a querela parlamentar surgida entre o bloco situacionis- nador Rui Barbosa, da Bahia, que regressara triunfante necessidade de refletir, outra vez, sobre os feitos do ta, liderado pelo senador gaúcho Pinheiro Machado, e da Conferência de Paz da Haia de 1907. Opções mar- patrono de nossa diplomacia. Seu nome, recentemen- a bancada mineira da Câmara dos Deputados, liderada ginais seriam os dois ministros politicamente mais ex- te gravado no Livro de Aço dos Heróis da Pátria, per- pelo jovem deputado Carlos Peixoto. Era o prelúdio da pressivos do gabinete de Afonso Pena: o Barão do Rio manece. Sua memória, apropriada e desapropriada ao “sucessão pesada e triste” que profetizara Joaquim Na- Branco ou o Marechal Hermes da Fonseca, da pasta sabor das conveniências, repousa entre a mitologia e o buco. da Guerra. esquecimento.2 Os políticos mineiros estavam em movimento A morte de João Pinheiro, em outubro de 1908, Chanceler desde 1902, José Maria da Silva Pa- para assegurar a preponderância de seu estado no co- alterou o cenário. Sem o candidato oficial, as articula- ranhos Junior reunia credenciais para ser Presidente mando da República. Vitoriosos na eleição de Afonso ções recomeçaram, com os nomes de Rui, Rio Branco dos Estados Unidos do Brasil por qualquer critério que Pena, organizavam-se agora para lançar a candidatura e Hermes entre os mais falados. Pinheiro Machado, se empregasse. Conhecedor absoluto da política exter- presidencial de João Pinheiro, Presidente das Minas dizia-se, apoiaria Rui Barbosa, mas o senador baiano na brasileira, que conduzira sob Rodrigues Alves e sob Gerais. A iniciativa esbarrava nos planos de outras li- recusou-se a apresentar seu nome para a disputa. Afonso Pena, o Barão era uma das estrelas maiores da deranças estaduais, que se viam igualmente habilita-

18 Müller. Também o Vice-Presidente Nilo Peçanha parecia consenso, apaziguando as diversas facções governistas Em 20 de abril de 1909, por exemplo, comemo- intento de lançar a candidatura de Rio Branco. Ainda em pender a favor de Hermes. Pinheiro Machado testava nos estados. rando seu sexagésimo quarto aniversário, viu-se o Barão 1908, Rui incumbira Pinheiro Machado de levar o nome as águas, sem apoiar ninguém e mandando acenos De fato, Paranhos era apresentado como o único do Rio Branco surpreendido por expressiva manifestação de Rio Branco a Afonso Pena. Do encontro com o presi- para Rui, para Afonso Pena e para os militares. candidato genuinamente nacional, pois exercera cargos popular. A coincidência da efeméride com as paixões acir- dente, o senador gaúcho retornara alertando que Pena O Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, em ver- públicos em que representava o interesse do país, e não radas para a sucessão presidencial tornou o aniversário “vetara” o nome de Rio Branco. A manobra desastrada de dade, reunia todos os predicados para uma candidatura os interesses deste ou daquele estado. Embora tenha do Barão um pretexto para manifestações públicas de Pena apoiando o pouco expressivo David Campista pare- militar. Era sobrinho do fundador da República, o Mare- sido eleito deputado pela longínqua província do Mato apoio. Foram grandes as demonstrações, segundo as cia corroborar a tese de que o Presidente reservava para chal Deodoro, de quem fora ajudante de campo. Seu pai, Grosso, no distante ano de 1869, permanecia afastado descrições colhidas pelos biógrafos do Barão. Diante de si o direito de fazer seu sucessor e que a candidatura na- também Marechal e também Hermes, ocupara cargos das disputas regionais e era muito apreciado pelas tamanha aclamação popular, Rio Branco pronunciou um tural de Rio Branco não contava com o apoio de seu chefe. públicos, chegando a governar a província do camadas urbanas, especialmente na capital discurso de agradecimento em que toca na questão da Descobriu-se depois que Rio Branco não fora vetado por Mato Grosso nos últimos anos de Dom federal. Quando participava da política sucessão presidencial. Afonso Pena, mas que o nome do Barão já fora apresen- Pedro II. Hermes se destacara durante interna, fazia-o com o objetivo de des- tado como inviável por Pinheiro Machado a Afonso Pena, “Há trinta e quatro anos separei-me das lides o governo Rodrigues Alves devido ao dramatizar as agendas políticas que o que parece ter motivado o Presidente a optar por seu da política interna, sem dúvida das mais belas e 5 vigor com que reprimira a Revolta poderiam minar a estabilidade do nobres quando só inspiradas pelo ideal da felici- Ministro da Fazenda. da Vacina. governo. dade e grandeza da pátria. E afastei-me porque, O cenário era então composto por duas candidatu- Convidado por Afonso Gozava ainda de prestí- ensaiando-me nelas obscuramente, pude logo ras. A de David Campista, bancada por Afonso Pena e por verificar que me faltavam as aptidões e qualida- Pena para ocupar a pasta da gio intelectual junto à classe seu grupo político, sem muito entusiasmo. A de Rio Bran- des brilhantes que se requerem nos combaten- Guerra, assumiu o cargo em política e também entre os mi- tes dos partidos políticos. Entreguei-me desde co, bancada por Rui Barbosa. O Marechal Hermes entrou 15 de novembro de 1906 e se litares. Estudioso da História então ao serviço do país nas suas relações ex- oficialmente na disputa por ocasião do seu aniversário, notabilizou por esforços, mui- Militar e Diplomática do Brasil, teriores porque, ocupando-me, na serenidade do em 12 de maio de 1909, quando partidários do militaris- gabinete, com assuntos ou causas incontestavel- tas vezes em sincronia com herói nacional, conhecedor mo organizaram expressivas manifestações de apoio à mente nacionais, eu me sentiria mais forte e po- Rio Branco, para promover a das vicissitudes da política deria habilitar-me a merecer o concurso das ani- sua candidatura. Foi a primeira demonstração pública a modernização do material béli- interna e da política externa, mações de todos os meus concidadãos. Não me favor de Hermes. Dois dias depois, em despacho com o co e do treinamento do Exército não havia na jovem república arrependo da resolução que tomei na mocidade Presidente, o Marechal tratou de sua candidatura, apre- e, sem quebra, tenho mantido no posto em que Brasileiro e da Armada. É obra brasileira ninguém com tão ele- sentando a seguir a sua renúncia à pasta. Demovido pelo sucessivamente me colocaram dois Presidentes de Hermes na pasta da Guerra vado perfil. Por um capricho da da República.”3 Presidente, Hermes retirou a renúncia. a criação do serviço militar obriga- História, o homem mais preparado A relação entre o Marechal Hermes e o Presidente tório. Ao regressar da Alemanha, em para a Presidência da República era De longe, interlocutores privilegiados do Barão rea- Afonso Pena, aliás, não era das mais afetuosas. O Mare- novembro de 1908, onde fora acom- monarquista. giam com preocupação à movimentação política interna. chal já tentara renunciar em 1908, semanas depois de panhar manobras militares como convida- O componente monarquista de suas Embora o admirassem e reconhecessem suas virtudes sofrer um atentado contra sua vida, por ressentir-se com do do Imperador Guilherme II, Hermes já era o convicções políticas, a propósito, não o impedia cívicas, viam a possibilidade de uma disputa eleitoral o fato de não ter recebido qualquer gesto de considera- nome de consenso entre os militaristas. Faltava apenas de exercer suas funções na República com o pragmatis- como um desgaste desnecessário que só viria a macular ção por parte do Presidente da República. Dotado de uma convencer os civis. mo da lealdade à Nação e não a partidos e governos, mas a ilibada reputação de que gozava em todo o país. Um personalidade dócil e influenciável, Hermes voltara atrás Para os civis, no entanto, a hipótese de uma can- parece ter sido um dado importante no comportamento dos colaboradores favoritos do Barão, Domício da Gama, graças à intervenção de Rio Branco. Agora, instado a con- didatura militar era vista com muita reserva, devido ao do Barão em face da iminente candidatura à presidência. manifestava-se contrário à candidatura e explicava que a correr, renunciava novamente e, chamado à razão pelo retrospecto negativo dos governos militaristas de Deodo- Essa condição de seu pensamento político, essa aparente posição de Rio Branco como unanimidade nacional era Presidente, tornava a recuar.6 ro e de Floriano, momentos de fragilidade institucional e lealdade ao regime caído, parece ter custado uma certa única e deveria ser conservada.4 O jogo sucessório ganhou contornos decisivos em instabilidade inéditos para os brasileiros vivos naqueles falta de interesse quando seu nome tomou força para Ao longo do mês de maio de 1909, uma sucessão 17 de maio. Naquela data, chegou a Afonso Pena corres- dias. Para Rui, Rio Branco seria a candidatura nacional, de uma candidatura presidencial. de acontecimentos viria a atropelar Rui Barbosa em seu pondência do novo Presidente das Minas Gerais, Vences-

20 21 lau Braz, informando, com o tato característico da prática Pinheiro Machado prevaleceu. Na tarde de 18 de maio, lhe devotava grande respeito, e trabalhar para contraba- Com elegância, Rio Branco respondeu a Rui Barbo- política mineira, que encontrara dificuldades e resistên- Pinheiro Machado e Francisco de Sales se reuniram com lançar as influências nefastas de Pinheiro Machado ao pé sa em 22 de maio. Já havia sido procurado, em sigilo, pelo cias ao nome de David Campista, o que significava o mes- Rio Branco, pedindo que persuadisse o Marechal Hermes do ouvido do Marechal-Presidente. Ademais, Hermes da genro de Rui Barbosa no princípio do mês de maio, e já mo que vetar o nome do Ministro da Fazenda. Na mes- a aceitar a candidatura. O veto de Rui Barbosa era inevi- Fonseca parecia convencido a renovar os equipamentos havia transmitido sua recusa. Agora, por escrito, buscava ma noite, Pinheiro Machado recebeu algumas lideranças tável. O sentido do pedido não visava ao convencimento das Forças Armadas e a capacidade de defesa nacional, fundamentar sua decisão: parlamentares em seu espaçoso Palacete do Morro da de Hermes, mas à capitulação política do único brasileiro projeto antigo de Rio Branco que um candidato não militar “Se o plano ideado por V. Excia., pudesse ter surti- Graça, nas Laranjeiras. Entre os presentes, republicanos talvez pudesse considerar menos prioritário. que poderia deter sua irrefreável candidatura, Rio Branco. do efeito na primeira quinzena deste mês, dando- históricos, como Quintino Bocaiúva e Francisco Glicério. O Tamanho era o prestígio de Rio Branco que, tendo O dado da volubilidade do Marechal era conhecido -se no nosso mundo político uma unanimidade de próprio senador gaúcho narrou o encontro: Hermes da Fonseca condicionado sua candidatura à con- de todos. “Um bom Ministério poderá salvá-lo; um mau sentimento, que era e há se ser sempre impossível, cordância dos dois estadistas, bastou-se o Marechal com corrilho o perderá”, pontificava Rui Barbosa.9 Na noite de em torno de qualquer sugestão deste gênero, certo “Reunidos esses amigos, aclarei-lhes que urgia é que eu teria sido forçado ao grande sacrifício que 18 de maio, Rio Branco anotou em seu Caderno de Notas: tomarmos uma resolução, escolhendo um nome a concordância do Barão para se “convencer” a disputar se me pedissem. Posso dizê-lo agora que o perigo que merecesse o apoio da maioria dos diretores da a eleição na qual acabaria enfrentando o próprio Águia “Questões de sentimentalismo não devem prevalecer so- – imenso para mim e para os meus – está de todo política nacional que conosco comungavam. Inter- de Haia. Este certamente recusaria qualquer apoio a Her- bre as conveniências da defesa nacional e os interesses passado, e bem passado, porque se eu não podia 10 prestar-me a ser competidor do meu colega e amigo rogado por um circunstante qual a minha opinião, mes, a qualquer preço, em qualquer cenário, e insistiria no políticos da nação”. Era a capitulação. Rio Branco acei- respondi-lhe que, estando eu à testa do movimen- Dr. David Campista, também não posso concordar tara a candidatura de Hermes e parecia estar disposto to, seria simplesmente um coletor da expressão da nome de Rio Branco, muito embora o Barão se recusasse em que se oponha o meu nome ao do meu amigo e maioria. Esquivei-me propositadamente de mostrar a entrar na disputa presidencial, a despeito dos insisten- afastar o mau corrilho. colega Hermes da Fonseca. E penso já ter provado preferências por um nome, porque eu desejava que tes pedidos. Sem o apoio de Afonso Pena, confundido que Alheio ao pensamento do Barão, mas informado do que sou capaz de sacrificar comodidades e interes- aquela reunião tivesse o cunho da maior liberdade, ses pessoais meus. Os que me conhecem mais de fora o Presidente por Pinheiro Machado quanto à viabi- que se passara na mansão do Morro da Graça, Rui redi- da maior sinceridade na expressão da vontade de perto sabem que não foi pequeno o sacrifício que giu um importante documento político em que tenta, pela cada um dos circunstantes, não desejando absolu- lidade de seu nome, o Barão recebera sinais favoráveis fiz aceitando em 1902 o posto de ministro de Esta- tamente que a minha opinião pudesse constranger somente da Bahia e de São Paulo. Pouco para quem era última vez, lançar a candidatura de Rio Branco contra a do e mantendo-me nele com grande e irreparável 7 12 as manifestações dos meus amigos.” aclamado como um herói nacional. candidatura de Hermes. A carta, endereçada a Francisco prejuízo material para mim e minha família.” Uma candidatura não consensual de Rio Branco Glicério e Antônio Azeredo, viria a público em 19 de maio. Entre os amigos presentes em casa de Pinheiro Ma- dependeria de um grande dispêndio de dinheiro, muitas Nela, Rui exaltava as qualidades pessoais do Marechal chado, não constavam Rui Barbosa e Rio Branco. Os dois viagens pelo país, confrontando não apenas o próprio Hermes, mas condenava o sentido político de sua candi- estadistas participavam, naquela mesma noite, de sessão Hermes, mas também as oligarquias locais que o apoia- datura e do movimento militarista que a acompanhava, solene na Academia Brasileira de Letras, na qual Rui, pre- vam, e correndo o sério risco de perder a eleição. Se, para contrapondo-a a um movimento civilista. Ao falar de Rio sidente da Academia, pronunciava sua saudação ao escri- Rui Barbosa, a perspectiva de uma acirrada campanha Branco, Rui oferecia verdadeiro panegírico do Barão: tor francês Anatole France, que visitava o Rio de Janeiro na eleitoral soava como música, para Rio Branco era preferí- ocasião. O resultado do conclave de Pinheiro Machado foi “Esse nome, apresentei-o eu, ultimamente, como vel, já o dissemos, o pelotão de fuzilamento. Republicano solução nacional. E era. Um nome universal; uma anunciado pelo anfitrião nos seguintes termos: de primeira hora, jurista, político e diplomata, Rui estava reputação imaculada; uma glória brasileira; servi- ços incomparáveis; popularidade sem rival; quali- “Mas a verdade é que, na ocasião, não reunindo comprometido até a medula com a política interna. Jamais dades raras; o hábito de ver os interesses nacionais os nomes então lembrados do ilustre senador pela fugia à refrega, como demonstrava sua trajetória política, do alto, acima do horizonte visual dos partidos; ex- Bahia e do Barão do Rio Branco, mais do que dois mesmo para causas perdidas. Quixotesco, campearia até tremoso patriotismo; ardente ambição de grandes ou três votos, o nome que teve a maioria dos sufrá- ações; imunidade a ressentimentos políticos, dos gios foi o do Marechal Hermes.”8 o fim pela candidatura de Rio Branco. quais teve a fortuna de se preservar; uma entidade, Para o fatigado Chanceler, por outro lado, doente em suma, a todos os respeitos singular para a oca- O Marechal Hermes, tendo a candidatura à presi- de problemas circulatórios, dizendo-se com dificuldades sião, para o caso, para a solução providencial do dência oferecida pelos aliados de Pinheiro Machado, con- financeiras, afastado da família, monarquista desinteres- problema. Era uma candidatura que seria recebida dicionou sua aceitação ao beneplácito de Rio Branco e sado da política partidária, parecia mais simples, mais nos braços da nação e levada por ela em triunfo à presidência.”11 de Rui Barbosa. Mais uma vez, a habilidade política de sensato, mais pragmático apoiar Hermes da Fonseca, que

22 No mesmo 22 de maio, Pinheiro Machado fazia ligado ao jacobinismo que não via motivos para negar Manipulado, o Presidente Hermes se comportava de maneira errática. A aclamar a chapa Hermes-Venceslau, costurando assim apoio ao Marechal Hermes. Para Rio Branco, já não se República dos Conselheiros sucumbiu aos golpes da Espada. Rio Branco fa- um apoio com Minas Gerais que isolava Afonso Pena. tratava de disputar a presidência, senão de preservar seu leceu em princípios de 1912, amargurado e profundamente decepcionado Em 25 de maio, a despeito das vontades dos donos do cargo e a estabilidade de sua gestão do Itamaraty. Nilo com as atitudes de Hermes, que determinara o bombardeio da Bahia no poder, nova manifestação popular a favor de Rio Branco Peçanha, porém, sequer cogitou demitir o Barão.14 contexto das salvações. Tentara renunciar por discordar de Hermes, mas o revelou a dimensão das expectativas populares em torno Sem Afonso Pena, estando Rio Branco neutralizado, Marechal-Presidente declarou que também ele renunciaria caso Rio Branco de sua candidatura. Rio Branco descera de Petrópolis, a Hermes em campanha aberta com o apoio do novo presi- deixasse a pasta. Rio Branco deixou-se ficar e definhou até falecer às vés- pedido de Pena, para convencer Hermes a deixar a pasta dente, e Pinheiro Machado controlando as forças políticas peras do Carnaval. O governo determinou o adiamento dos folguedos para da Guerra, uma vez que sua candidatura agora era oficial. da nação com indiscutível habilidade, a candidatura de alguns dias depois da Semana Santa. Um novo ministro da Guerra poderia aplainar o caminho David Campista foi prontamente sepultada. Tendo ao seu O povo, nada bestializado diante do que ocorria no Catete, comemo- para David Campista, supunha o alienado presidente. Ten- lado apenas as bancadas de São Paulo e da Bahia, Rui rou o duplo entrudo com uma pitada de humor negro: do almoçado com o Marechal, Rio Branco retomou seus Barbosa se viu instado a agir. Lançou a Campanha Civilis- “Com a morte do Barão, afazeres até ser surpreendido pelas reações da popula- ta, encabeçando a candidatura presidencial que recusara Tivemos dois carnavá! ção carioca. Jornais da época indicam que cerca de dez a Pinheiro Machado em dezembro de 1908, e deu início Ai que bom!, ai que gostoso!, mil pessoas acompanharam o automóvel do Barão desde à maior campanha eleitoral que o Brasil vira até então. Se morresse o marechá!”.16 o Brahma, onde jantava, até o Itamaraty, com gritos de Vencido, manteve-se no Senado e exerceu dura oposição 13 “viva o candidato do povo” e “viva o presidente do povo”. ao desastrado governo de Hermes e seu mau corrilho. Bruno Graça Simões é formado em Direito pela Faculdade de Direito da De fato, a candidatura de Rio Branco parecia sur- Rio Branco já decaía fisicamente. Desinteressado Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direito Internacional pela mesma instituição. gir espontaneamente, à medida que o nome do Marechal das disputas internas, dedicava-se ao Pacto ABC. Guar- [[email protected]] Hermes era promovido pelas forças oligárquicas. Os mo- dava in pectore outro candidato a presidente. Em diálogo tivos pareciam óbvios: Hermes era o legatário da Repúbli- relatado por seu médico pessoal, Dr. Pinheiro Guimarães, 1 Apud LINS, Álvaro. De Washington, em carta a um amigo, p. 419, sem ca da Espada, até por laços de sangue; Rio Branco era o o Chanceler confidenciara: “Se eu pudesse indicar real- referências detalhadas. Vide nota abaixo. continuador da República dos Conselheiros. À República mente um candidato à presidência, ele não seria Hermes 2 O presente ensaio se baseia nos dois mais importantes relatos biográficos da vida de Rio Branco, o de Álvaro Lins (LINS, Álvaro. Rio Branco. 3a edição. da Espada, associavam-se o golpe de Estado que depôs o da Fonseca nem Rui Barbosa: seria Joaquim Nabuco”. Jo- São Paulo: Alfa Ômega, 1996.) e o Luís Viana Filho (VIANA FILHO, Luís. A vida do Barão do Rio Branco. 8a edição. São Paulo: EdUFBA/UNESP, 2008.), cujas Imperador, a crise econômica, as revoltas da Armada fus- aquim Nabuco faleceria em janeiro de 1910, meses antes edições originais já completaram algumas décadas de publicação. Não se tigando a capital federal. À República dos Conselheiros, das eleições que sagrariam Hermes vencedor, e parece tem aqui a pretensão de superá-los ou negar seu mérito. Busca-se apenas retomar um aspecto pouco recordado da trajetória do Barão, fazendo uso das associavam-se a recuperação da estabilidade econômica nunca ter sido cogitado como candidato a Presidente.15 fontes e interpretações desses dois biógrafos como referências principais. 3 Jornal do Commercio, 21 de abril de 1909. Apud VIANNA FILHO, Op. Cit., p. e política do país, o opulento ciclo da borracha, a reurba- Mantido na pasta das Relações Exteriores, Rio 492. nização do Rio de Janeiro e as vitórias diplomáticas do Branco passava cada vez mais tempo em seu refúgio de 4 “Tenho gostado de vê-lo apontado por todos como o Presidente normal do Brasil. Mas não se deixe convencer e eleger Presidente. A sua posição é única: Barão do Rio Branco. Petrópolis, devido aos seus problemas de saúde, que pou- conserve-a”. (Domício da Gama, em Carta de Buenos Aires, 21 de maio de 1909. Inédita. Arquivo Rio Branco. Apud VIANNA FILHO, Op. Cit., p. 493). Em 14 de junho de 1909, uma nova reviravolta co a pouco se agravavam, e se via incapaz de influenciar 5 LINS, Op. Cit., p. 413. abalou o cenário pré-eleitoral: aos 61 anos, Afonso Pena decisivamente o Marechal. A volta da Espada trouxe con- 6 Idem, p. 414; VIANNA FILHO, Op. Cit., p. 495 et seq. 7 Apud SILVA, Cyro. Pinheiro Machado. Brasília: UnB, 1982, p. 92. faleceu no Rio de Janeiro. A saúde do presidente vinha sigo os excessos autoritários, em episódios lamentáveis 8 Idem. 9 Apud LINS, Op. Cit., p. 416. frágil desde há muito. Sintoma dessa fraqueza física era o como a Revolta da Chibata, com os encouraçados tão 10 Dos Cadernos de Notas de Rio Branco. Apud LINS, Op. Cit., p. 416, nota de total descontrole do processo político que envolvia a sua desejados por Rio Branco voltando seus canhões para a rodapé 713. 11 Apud LINS, Op. Cit., p. 415. sucessão, insistindo de maneira insensata na candidatu- capital federal; o caso do Satélite, em que marinheiros re- 12 Idem, p. 416. 13 Apud VIANNA FILHO, Op. Cit., p. 498. ra de David Campista. Com seu desaparecimento, o Vice- beldes foram chacinados e jogados ao mar por ordem do 14 Idem, p. 499. -Presidente Nilo Peçanha assumiu o governo da Repúbli- governo federal; e a política das salvações, que depunha 15 Apud LINS, Op. Cit., p. 416. 16 O registro da marchinha é mencionado em vários relatos. Lins e Viana Filho ca. Nilo era um ex-presidente do Rio de Janeiro, homem e impunha lideranças políticas nos Estados. curiosamente o omitem, mas a referência pode ser encontrada em: GOMES SANTOS, Luís Cláudio Villafañe. O dia em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil. São Paulo: UNESP, 2010, p. 265. 24 o agravamento da situação. Se for tomar o período do Governo Lula, há tantos fatos que é até difícil resumir. O que procurei Celso Amorim fazer sempre, seguindo a orientação dos Presidentes, foi uma política externa que estivesse à altura do que o Brasil merece e não uma que visse o Brasil como um País pequeno, que não pode, que não ousa. Houve uma nova atitude, que defino como Diplomacia, altiva e ativa. Altiva por não ter de ficar dizendo: “vá desculpando qualquer coisa”, “sim, senhor”. Ativa no sentido de não ficarmos temerosos ao tomar iniciativas. Havia uma doutrina de que, não cinema e boas tendo excedentes de poder, não podíamos fazer certas coisas. Tenho a teoria de que poder se cria. Ao exercer o poder, você cria histórias poder. Então a gente contribuiu para essa mudança e a grande maioria do povo brasileiro reconhece. Uma parcelazinha da eli- Hoje fala-se te, não. Procurei também, e me orgulho muito disso num plano Carolina Paranhos Coelho, menor, contribuir para a renovação do Itamaraty. Foi algo pelo Davi Bonavides, José Roberto Rocha Filho e que me esforcei muito. Não consegui tudo o que gostaria, mas Rafael de Medeiros Lula da Mata muito de soft acho que fiz bastante.

O ex-Chanceler e atual Ministro da Defesa, Juca - O sr. mencionou o esforço para a renovação do Itama- Celso Amorim, recebeu equipe da Juca raty. Qual a importância do IRBr na formação do diplomata? em sua casa, em Brasília, para conversa power. Um dos Como aprimorar essa formação e o papel do Instituto? não apenas sobre seu legado à frente do CA - É difícil falar qual é o papel do Rio Branco sem cair no lugar Itamaraty, mas também sobre a formação comum de dizer que é o convívio, o tempo de reflexão. O que fi- do diplomata brasileiro, sobre o Instituto Rio fortes do soft zemos de positivo foi tornar o Rio Branco mais representativo da Branco e sobre uma de suas grandes paixões, sociedade brasileira, para que o debate exista. A manutenção o cinema. Amorim revelou orgulho de ter do número de vagas durante certo tempo é muito importante, contribuído para a renovação dos quadros porque o Brasil precisa de diplomatas. Alguns ficavam dizendo: do Itamaraty, hoje mais representativo da power do Brasil “vai cair o nível”. O nível não caiu. O nível intelectual se manteve diversidade da sociedade brasileira. Com igual, ou até melhorou, porque diminuiu a ênfase excessiva nos bom humor e franqueza, ele divide aqui sua idiomas estrangeiros. Nem sei se deveria dizer isso, mas, nas história de vida – que também é parte da primeiras aulas que dei no Rio Branco, muito antes das turmas História do Brasil. é a Diplomacia. de 100, achei algumas das perguntas excessivamente especí- ficas. “Como vai fazer isso? Como vai fazer aquilo? Como vai fazer no Consulado?”. Gente, Ministro de Estado vem aqui falar Gustavo Ferreira/MRE de outras coisas. E notei um nível de engajamento, de interesse político muito maior nas turmas novas. O importante é manter Juca – O sr. esteve por quase dez anos à frente do Ministério das Relações Exteriores, tendo inclusi- um bom nível dos professores, dos exames. Isso vai continu- ve ultrapassado o período da gestão do Barão do Rio Branco. Como o sr. analisa sua passagem pela ar, porque isso é uma tradição. Onde precisava de renovação chefia do Itamaraty? Qual legado acredita ter deixado? era na democratização do concurso em si. Temos um serviço Embaixador Celso Amorim – Foram nove anos e meio. O Barão do Rio Branco continua sendo o maior, em diplomático do tamanho do da Turquia, país com um terço do tempo contínuo. É muito difícil para a pessoa julgar o próprio legado, isso é tarefa para os historiadores. tamanho do Brasil e cujo Ministério do Exterior não cuida de Em momentos diversos, achei que coisas importantes estavam acontecendo. Quando estava trabalhan- comércio, como o nosso. Temos de aumentar muito. Hoje em do na criação do Mercosul, achei que aquilo era a coisa mais importante que tinha feito na vida diplo- dia fala-se muito de soft power. Um dos fortes do soft power do mática. Anos depois, presidi três painéis sobre o Iraque, num momento crítico e que adiou um pouco Brasil é a Diplomacia.

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Juca - Quais mudanças foram mais estruturais para a carreira pouco lendo. Ter lido Graciliano Ramos, Guima- por meio de um diálogo de igual pra igual, sem ar- diplomática? rães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, além de rogância. A mesma coisa diria em relação à ALCA conhecer a pintura de Cândido Portinari, a Bossa [Àrea de Livre Comércio das Américas] e à nossa CA - O fato de ter 100 vagas foi muito importante. Não sei se será Nova, tudo isso ajuda a ser um bom diplomata, atitude em Cancun. Mas não guardo mágoa da im- necessário ter 100 sempre, mas não pode ser 20. Sinceramente, a entender bem e a divulgar bem o Brasil. O Ita- prensa. Pelo contrário, a imprensa está no papel não pode. Foi importante termos reforçado o sistema de bolsas maraty tem um papel muito importante: a difusão dela e, quanto mais crítica for, mais te obriga a agu- Esse influxo e criado uma cota, pelo menos para a primeira fase do exame [o da cultura brasileira. Quando fui chefe da Divisão çar teus argumentos. Já disse isso, de brincadeira, Concurso de Admissão à Carreira Diplomática, ou CACD]. E tam- Cultural, em 1977 e 1978, fomos pioneiros quan- para a própria imprensa: “Frequentemente, vocês bém foram extremamente importantes as atitudes tomadas com do organizamos o primeiro festival de cinema de davam um argumento que, depois, meu adversário de jovens que relação às mulheres na Carreira. Quando me tornei Ministro, não Guiné-Bissau e de Moçambique. Na Guiné-Bissau, iria dar”. Então, já ia preparado para a negociação. havia muitas Embaixadoras. Na minha gestão, tivemos as primei- a polícia teve de ser reforçada porque todo mundo Especificamente sobre esse fato que você mencio- ras Embaixadoras em Paris, na ONU, em Genebra, na Unesco. queria entrar no cinema para ver os filmes brasi- nou, um jornalista de O Estado de São Paulo fez representam Isso exigiu determinação, porque há discriminação contra as mu- leiros. Em Moçambique, havia muita suspeita com longa entrevista comigo e depois perguntou: “O sr. lheres, em qualquer carreira. É algo disfarçado. Alguém fala: “ah, relação ao Brasil sob o governo militar. Um Embai- foi indicado por uma revista – não foi uma revista engravida, pede licença”. Se você não tiver ação forte, não corrige xador da época, muito inteligente, o [Ítalo] Zappa1, que indicou, foi um articulista da revista que escre- a sociedade isso. Nada é natural, espontâneo. Contei com muita ajuda do Em- notou que um alto dirigente da Frelimo [Frente de veu – como melhor Chanceler do mundo. A que o baixador Samuel Pinheiro Guimarães. Quero até deixar um crédito Libertação de Moçambique] assistiu ao filmeVidas sr. atribui isso?” Respondi: “Atribuo ao fato de ele a ele nesse campo: fosse pela naturalidade das coisas, teríamos Secas [1963. Dir.: Nelson Pereira dos Santos] e ser mal informado, ele não leu O Estado de São brasileira continuado a ter 26 vagas por ano. ficou muito impressionado – “Mas o Brasil passa Paulo”. Isso ele não colocou na entrevista. esses filmes?”. Mesmo naquela época, você podia traz uma Juca - Entre 2006 e 2010, entraram cerca de 530 novos di- mostrar que o Brasil era complexo, que o Brasil ti- nha outras dimensões. Juca – Em sua gestão, foi enfatizada a neces- plomatas, 40% do corpo diplomático brasileiro atual. Esses sidade de democratizar as decisões da política diplomatas possuem formação mais heterogênea e refletem internacional. No âmbito interno, porém, as deci- riqueza muito imagem mais aproximada da diversidade brasileira. Como a ex- Juca - Em 2009, David Rothkopf, articulista da re- sões ainda são muito concentradas no Itamaraty. pansão dos quadros pode influenciar a cultura institucional da vista Foreign Policy, elegeu o sr. como o melhor Como o sr. vê a maior participação dos demais grande para Casa e a política externa brasileira? Chanceler do mundo. Já a imprensa nacional ado- Ministérios e do Congresso na formulação da po- CA - Não quer dizer que vai mudar totalmente a cultura do Ita- tou postura crítica em relação à política externa. lítica externa brasileira? maraty. Essa renovação é muito positiva. Isso não me preocupa. O sr. concorda com alguma dessas críticas? Há CA - Quanto mais democracia, melhor. Obviamen- o Itamaraty, O que é bom eles absorvem com muita rapidez, mesmo os que algum evento em que o sr. acha que deveria ter te, num processo decisório de Governo, há um não vêm dessa tradição. E o que talvez devesse ser colocado de tomado uma atitude diferente? momento em que a decisão tem de ser tomada lado, eles ajudam a colocar de lado. Esse influxo de jovens que re- CA - É difícil dizer de maneira absoluta e seria muito por alguém. No caso da política externa, de acor- sem que se presentam a sociedade brasileira traz uma riqueza muito grande presunçoso dizer “não errei nunca”. Claro que devo do com a Constituição, pelo Presidente da Repú- para o Itamaraty, sem que se perca aquilo que temos de melhor: ter cometido erros e que certas coisas poderiam blica, auxiliado pelo Ministro da área. Mas o deba- a tradição, a correição, a maneira cuidadosa de fazer as coisas. ter sido feitas de maneira melhor. Mas não faria te no Congresso é muito amplo. Você pode ouvir perca aquilo diferente em nenhuma das decisões importantes, as opiniões, julgar seus argumentos, ver se tem Juca - O Itamaraty é igualmente célebre por ter sido a Casa de justamente as que mereceram mais críticas. Por algum mérito. Mas, ao final, a decisão necessa- que temos de vários artistas e intelectuais. Como fortalecer essa tradição e exemplo: a Declaração de Teerã fez um ano e até riamente é centralizada. E vou dizer que, em vá- estimular o gosto pela cultura entre novos diplomatas? agora não teve resultado prático. Nem sei se terá. rios casos, o que ouvi no Congresso, o que ouvi Mas fizemos a coisa certa, demonstramos que um da própria imprensa, teve influência na minha opi- melhor... CA - A resposta mais ou menos óbvia seria incluir, nos exames país em desenvolvimento tem capacidade de nego- nião. Com relação ao Líbano, por exemplo, fui ao ou no curso, matérias que tenham esse conteúdo, de maneira ciar. Ninguém acreditava que a gente conseguiria Senado contar o que o Brasil estava fazendo, so- inteligente, não puramente erudita; de maneira que ajude a com- o que conseguiu e depois começaram a dizer que bretudo em função dos brasileiros que estávamos preensão da realidade. Fiz um curso de literatura que me ensinou aquilo não era bem aquilo. Provamos que era pos- retirando de lá. Tive muito apoio em tudo o que o muito, não só sobre literatura, mas sobre o Brasil. Naquela época sível obter algo que outros não tinham conseguido, Itamaraty vinha fazendo. em que não se conhecia tanto o Nordeste e o Norte, aprendi um

28 29 CA - Não teria feito diferente, nem creio que Juca - Como os diplomatas devem lidar com o Presidente Lula tivesse feito diferente. Se esse processo decisório, sabendo que existem cometemos algum erro de avaliação, foi mais funcionários em outros Ministérios que pos- em relação aos ocidentais do que em relação suem maior especialização nos temas trata- ao Irã. O Irã fez o que prometeu. Não sei se dos? criariam caso na hora de entregar o urânio. O Irã fez um acordo nos moldes que nos ha- CA - Quem tem uma visão geral é o Itamaraty. viam solicitado e que, até um mês antes, não Seria muito difícil que o Brasil tivesse tido o pa- queria fazer. Não fomos lá para ser bonzinhos pel que teve em Cancun, em Hong Kong, no fa- com o Irã. Ao contrário, houve muita discus- moso July framework, se não fosse o Itamaraty são, muita conversa, muita persuasão. O Bra- a conduzir. Não que o MDIC [Ministério do De- sil, em princípio, não favorece sanções, mas, senvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] se houver sanções do CSNU, vamos respeitar. fosse menos ou mais competente. Poderia até Até duas semanas antes, eu acreditava que o ser mais competente, mas estaria muito focado Irã não aceitaria nem 1.200 kg – a quantida- em interesses setoriais específicos, enquanto o de proposta –, nem aceitaria colocar tudo no Itamaraty tinha uma visão de conjunto. Só quem exterior, nem fazer isso antes de receber ao tem por obrigação a visão estratégica e, ao mes- menos parte do combustível que foi proposto mo tempo, lida com o concreto, tem essas condi- trocar. E, no entanto, concordaram com isso ções. O Itamaraty te dá essa possibilidade: você diante da persuasão da Turquia e do Brasil. lida com o estratégico e com o específico. Fiquei um pouco decepcionado com a atitude de alguns países, que nos pediram para fazer uma coisa e, quando obtivemos, disseram que Juca - No início do Governo Lula, foi empreen- não era bem aquilo. Saíram artigos internacio- dido grande esforço para que o Brasil tivesse nais de gente que não é simpática ao regime um assento permanente no Conselho de Segu- iraniano. Não é que desconhecêssemos que rança da ONU. O Brasil está mais perto dessa havia outros problemas no Irã: havia o proble- vaga? ma do enriquecimento a 20%, o problema do CA - Numa curva de longo prazo, estamos mais aumento do estoque de urânio enriquecido de- próximos. Quando o G4 fez sua proposta, pare- vido ao transcurso do tempo. Mas todos eram ceu-me que, se conseguíssemos um acordo com Divulgação MRE resolvíveis. Tanto que, na carta do Presidente os africanos, o que não seria impossível, poderíamos ter os dois terços e votar a reforma. Existem várias dos EUA ao Presidente do Brasil e ao Primeiro-Ministro da Turquia, ele não menciona esses proble- complicações para a reforma do Conselho de Segurança. A Carta da ONU é um tratado cujo processo mas. Eu disse à Secretária de Estado norte-americana: “olha, Hillary, seu Presidente não falou isso”. de reforma é complicado, mas acho inevitável que se faça uma reforma. O Conselho vai ampliando suas E ela ficou em silêncio. prerrogativas, sua competência, que, propositalmente, não é bem definida. Se continuar com a baixa representatividade que tem, vai ser mais difícil para o CSNU tomar decisões que venham a ser seguidas. Se vocês me perguntassem há dez anos se ia haver uma reforma das cotas do FMI, ia ficar na dúvida. Se Juca - A presença brasileira nos países do entorno vem crescendo a cada ano. A opinião pública na- me perguntassem se os BRICS em conjunto teriam poder de veto sobre certas operações de empréstimo cional, porém, foi bastante crítica das posturas adotadas nos casos da Bolívia e do Paraguai. Como do FMI, ia achar que era improvável. Se você me perguntasse se um fórum novo, como o G20, iria subs- o Brasil deve lidar com essa proeminência econômica e política sem que seja confundida com impe- tituir o G7, provavelmente diria “seria ótimo, mas não estou vendo acontecer”. No entanto, hoje em dia é rialismo? assim. Claro que nos assuntos de paz e segurança a questão é mais complexa. CA - O que sinto do povo brasileiro não é essa atitude crítica. Isso vem de um pedaço da elite brasileira. E mesmo para esse pedaço da elite, que vive bem e que depende do gás boliviano para baratear os custos dos produtos industriais, das cerâmicas que colocam no chão de suas casas de campo, mesmo para Juca - A Declaração de Teerã foi fruto de esforço da diplomacia brasileira para solucionar o impasse eles o que fizemos foi bom, porque não faltou uma molécula de gás, ao contrário do que aconteceu na do programa nuclear iraniano pelo diálogo. O CSNU, no entanto, escolheu outro caminho. O Brasil Europa. O aumento que a gente pagou à Bolívia foi de 10%. Em parte é desinformação, em parte é essa poderia ter feito algo mais para chegar a outro desfecho?

30 31 necessidade de atuar como machão contra países fracos. Você tem de ter uma relação criativa com os to é mais difícil para uma negociação que envolva co mais, me indicou ao Ruy Guerra3, para trabalhar países da região, porque precisamos deles. Economicamente, o mundo está se desenhando em blocos. concessões amplas em acesso a mercados, por como continuísta no filme dele. Depois, trabalhei com O Brasil é grande, mas não é um bloco. O Brasil precisa da América do Sul e precisa ter calma com seus causa do desequilíbrio monetário. Também não o Leon. O que me fez deixar? O cinema brasileiro es- vizinhos. Em relação a essas questões, conduzimos corretamente, sem espírito de hegemonia. Levamos sou a favor de abandonar Doha porque, se aban- tava começando e as coisas eram difíceis, mas, ao em conta as reivindicações, não atendemos a tudo o que foi pedido, mas fizemos o que achávamos ra- donar, não há nada no lugar. Poderíamos avançar mesmo tempo, ocorriam de maneira muito rápida. zoável. Veja o Paraguai, dono de metade da energia de Itaipu. A gente construiu, mas metade da água é se pudéssemos nos concentrar mais em aspectos Surgiu uma oportunidade para dirigir um filme num deles. A parte que não usam é vendida para o Brasil e resolvemos triplicar o valor. Sabe quanto é o su- normativos, em subsídios – temas que nos interes- momento em que não estava preparado. Emocional perávit comercial do Brasil com o Paraguai? Quase US$ 1 bilhão. O Paraguai, sócio da maior hidrelétrica sam –, e também em facilitação de comércio – que ou psicologicamente. Era muito novo. Aí quis voltar a do mundo, em termos de produção, tem apagão em sua capital. A gente tem de ajudar. Não é questão de interessa muito aos ricos –, ou mesmo na parte estudar. Gostava de política externa, de política. Nun- ser bonzinho, é questão de ver seu interesse no longo prazo. normativa de serviços. Poderíamos fazer, como se ca fui muito envolvido, mas participei de algumas coi- dizia em relação à ALCA, uma ‘Doha light’, que seja sas do movimento estudantil. Tinha de estudar, mas significativa e não excludente de progresso maior tinha de fazer um curso curto. O Rio Branco, naquela Juca - Como explicar os custos dessa liderança ao cidadão brasileiro? no futuro. No momento é muito difícil. época, durava só dois anos e não exigia faculdade CA - Falando muito sobre as questões de que temos falado aqui: a importância da paz. A paz é uma coisa antes. Tive coragem de chegar para minha mãe e extraordinária, que a gente não valoriza. Só quando falta é que você sente que é importante. Mas tem um dizer: “Olha, mamãe, pensando melhor, resolvi que Juca - Antes de entrar na Carreira, seu interesse custo. Não que o Paraguai vá declarar guerra ao Brasil, mas a paz não é só ausência de guerras, são ações agora vou estudar.” Ela já havia achado que eu não por cinema já o tinha levado a trabalhar em dois diárias, são brasileiros que vivem no Paraguai, são interesses econômicos. A mesma coisa na Bolívia. Lembra estava muito bem da cabeça quando resolvi fazer ci- dos grandes filmes brasileiros,Cinco Vezes Fave- o drama que era a situação dos brasileiros na Bolívia depois que o Evo Morales assumiu? Tudo foi resolvido de nema. Hoje é atividade muito respeitada – meus três la [Dir.: Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, maneira suave. Foram reassentados no Brasil, sem expulsões violentas. Estamos conseguindo documentar filhos homens fazem cinema –, mas, naquela época, , Marcos Farias, Leon Hirszman] e os brasileiros no Paraguai numa proporção muito maior do que ocorria antes. Graças ao diálogo, a uma nova era uma coisa meio misturada: rádio nacional, boa- Os Cafajestes [Dir.: ]. Como foi essa atitude. Temos de tratar tudo isso dentro do que é correto, com humanidade. Além disso, é economicamente te, cinema, para ela era tudo a mesma coisa. Depois experiência e que motivos pesaram para que, bom. A América Latina é responsável por 47% das exportações de manufaturas brasileiras. de dois anos fazendo isso, resolvi fazer Itamaraty e pouco tempo depois, o sr. optasse pela carreira ela disse: “Agora ele não está muito bem da cabeça, diplomática? mesmo.” Para ela, como corretora de seguros, o Ita- Juca - Em 2008, o G-4 quase conseguiu concluir o processo negociador da Rodada Doha. O sr. sente- CA - Participei da produção desses dois filmes, en- maraty era muito aristocrático. Ela passava por aque- -se desapontado por não ter sido possível chegar a um entendimento em sua gestão? tre 1961 e 1962. Tinha muito interesse por cinema. las arcadas e achava que era coisa para príncipes. CA - ‘Desapontado’ não é a palavra certa, me sinto um pouco frustrado. Naturalmente, você gosta mais Quando jovem, eu era muito influenciável pelos filó- Mas resolveu me apoiar e passei no exame, ainda de ter êxito. Não adianta dizer “lutamos até o fim”, por exemplo. Lamento um pouco que isso tenha acon- sofos em voga na época e fui especialmente influen- durante o governo Goulart. Comecei a fazer o exame tecido, mas agimos bem. No momento em que foi preciso, demonstramos coragem para enfrentar os ciado pelo Jean-Paul Sartre, que falava muito da au- no final de 1962 e entrei em 1963. Estados Unidos e a União Europeia, sobretudo em Cancun e, depois, em Hong Kong. Também demons- tenticidade. E autenticidade supunha só fazer aquilo que tinha certeza que queria fazer, não assumir um tramos a coragem de admitir que temos de fazer algumas concessões para que o acordo seja obtido. Isso Juca papel. Quando terminei o colégio, resolvi não fazer - Que influência teve sua trajetória no Mi- ocorreu em 2008, em prol de uma visão de que nistério para sua indicação a Diretor-Geral da aquilo era necessário para todos, embora tivésse- nada. Minha mãe, que era separada e me susten- tava – meu pai mandava uma mesadinha que mal Embrafilme, em 1979? Como foi a acirrada dis- mos de passar por alguns apertos. Se hoje faria puta política que antecedeu sua nomeação? ou aceitaria a mesma proposta é outra questão. servia como dinheiro de bolso –, disse algo, muito ge- Hoje, a realidade do mundo, sobretudo a realida- neroso, aliás, de que nunca esqueço: “Você não vai CA - No período em que estive no Itamaraty, sem- de monetária, faz que as concessões tenham peso fazer nada?” Ela não podia entender esse negócio pre revelei meu interesse pelo cinema. Mesmo as- diferente. de autenticidade depois de ter gasto todo o dinhei- sim minhas funções nunca foram muito ligadas ao ro com meus estudos. “Te dou casa, comida e roupa tema: trabalhei em Londres, no setor político, depois lavada. Nem [dinheiro] para condução, nem para o em Washington, na OEA, onde cinema praticamente Juca - Existem hoje outros caminhos a seguir cigarro”. Cigarro, naquela época, era bem de primei- não entrava, nas áreas de ciência e tecnologia, na para concluir a Rodada Doha? ra necessidade, reconhecido como tal. Então, tinha área econômica e política. Quando voltei ao Brasil, CA - Não tenho conclusão sobre isso. Já estou há de trabalhar. Dei aula particular, traduzi O Mágico fui trabalhar na seção de planejamento do Ministro vários meses fora do Itamaraty. Seria muito ousa- de Oz – a primeira tradução brasileira – e fiz esses [Antônio Francisco Azeredo da] Silveira e só fui para filmes. O Leon Hirszman2, que eu conhecia um pou- a Divisão Cultural porque fui, digamos assim, kicked do querer fazer uma proposta diferente. O momen- Celso Amorim com os amigos de adolescência Sergio Oliveira e Ronaldo Lins (Acervo pessoal) 32 33 Sônia Braga, Azeredo da Silveira e esposa, e Celso Amorim (Acervo pessoal) Em 1981, conseguimos 21 prêmios internacionais, “Volte para uma coisa normal, o sr. já está [na Em- em Veneza, Nova York, Moscou, e, ao mesmo tem- brafilme] há três anos”. Aí, falei: “Desculpe, mas po, faturando alto: o melhor dos mundos. No ano entrei pela porta da frente e não vou sair pela dos upwards. Puseram-me em que saí, a Embrafilme deu lucro. Claro, era um fundos. Se quiserem me tirar, tirem, mas não vou como chefe interino da lucro fictício: algumas receitas eram computadas fingir que fiz algo errado e sair”. Tive de sair, pela Divisão de Difusão Cul- como da empresa e, na realidade, eram semi-im- porta da frente, mas saí. tural [DDC]. Foi o que postos, como o ingresso padronizado. Mas antes me fez voltar ao cine- não dava lucro nem fictício, dava prejuízo. Juca ma de forma profissio- - O baque sofrido pela produção cinemato- nal. Organizei festivais gráfica brasileira depois do fim da Embrafilme, Juca e, como membro do - Há a ideia de que havia um grau de auto- em 1991, revelou a dependência do cinema bra- Concine [Conselho Na- nomia na Embrafilme dentro do Regime Militar. sileiro do Estado. Por que a dinâmica Estado-Ci- cional de Cinema], ia Sua saída do cargo de Diretor-Geral, de certa for- nema não criou uma indústria cinematográfica todos os meses para ma, contraria essa lógica. Qual era a real mar- sustentável? as reuniões no Rio, o gem de manobra da Embrafilme no fomento da CA - Porque ela não existe em lugar nenhum. que me aproximou do produção cinematográfica? Apenas nos Estados Unidos. E na Índia, talvez, tema. Na transição do CA - Era uma batalha dia a dia. Por exemplo, quan- porque lá o cinema teve o papel que aqui teve governo Geisel para o do ficou prontoEles não usam black tie [1981. Dir.: a TV, a novela. Nos EUA, [o cinema] teve todos Figueiredo, houve uma Leon Hirszman], havia um temor. Estávamos em os subsídios possíveis do governo. O [presidente disputa tremenda na Embrafilme. Não era ideológica, entre a esquerda e a direita. Um dos grupos consistia 1980, anos das greves no ABC, e aquilo podia tam- Franklin Delano] Roosevelt mesmo dizia: “onde em uma aliança de produtores tipicamente brasileiros – que produziam filmes majoritariamente financia- bém ser considerado um panfleto. Até havia uma forem nossos filmes, irão nossas ideias, nossos dos pelo Estado – contra outro grupo, que preferia confiar mais no mercado. O cerne da política cinemato- estratégia de mandar o filme primeiro para o ex- produtos”. Depois, se firmou a tal ponto que não gráfica repousa nessa tensão. Havia dois candidatos: Roberto Farias4 representava a primeira tendência terior, daí ele ganhava prêmio e ficava mais difícil precisou mais. Mas não tem um filme francês e Gustavo Dahl5, a segunda. Por fora, havia alguns candidatos da direita, com verniz cultural e aceitação censurar, mas era uma batalha dia a dia. Houve com resquício de qualidade artística que não entre os militares, mas sem chance alguma de ganhar. Havia necessidade de outro candidato. Então, de vários episódios. Em um deles, por exemplo, demiti tenha lá o CNC, Centre National du Cinema et repente, surgiu meu nome: uma pessoa ligada ao Estado, que não pertencia a nenhuma das correntes e uma funcionária da função do setor internacional. de l´Image Animée. Mas, embora o financiamen- que conhecia cinema. Quem teve a ideia de me indicar foi o Edgard Telles Ribeiro6. No final, duas pessoas Depois recebi um recado do chefe da agência do to no Brasil fosse público, não tínhamos inter- influíram decisivamente: o Eduardo Portella7, que chamou o Zuenir Ventura8 para fazer uma espécie de SNI [Serviço Nacional de Informações] no Rio e ferência estética, política ou moral nos filmes. enquete entre os chamados caciques do cinema brasileiro, e obteve uma boa aceitação para meu nome; tive de dizer a ele: “Olha, General, venho de uma Fora os casos em que o diretor me chamava e e o Geraldo Hollanda Cavalcanti9, que havia sido meu chefe no Itamaraty e foi consultado em paralelo. carreira hierárquica como a sua e sou subordinado me pedia opinião, eu não opinava em nada de ao Presidente e a meu chefe, o Ministro da Edu- político. Para não dizer que nunca dei opinião, cação”. Não era fácil dizer isso a um cara do SNI. uma vez conversei com o Leon Hirszman sobre Juca - Em meados da década de 1970 a Embrafilme era peça central da “fase áurea” do cinema no Tive outros episódios delicados. O Pra frente, Brasil a estratégia de lançamento de Eles não usam Brasil. Até que ponto essa visão correspondia à realidade? [1982. Dir.: ] coincidiu com um mo- Black-tie: mandar o filme para exterior, ganhar CA - Para não puxar muito a brasa para a minha sardinha, diria que a fase áurea vai do inicio da gestão mento de sístole, para usar a imagem de sístoles um prêmio no festival etc. E sobre o título, ele do Roberto Farias [1974] até o fim da minha gestão [1982]. Na gestão Roberto Farias, começou a grande e diástoles do Golbery, porque o lançamento ocor- queria mudar para “Segunda-feira, greve geral”, mudança. Isso se deve a vários fatores: à Maria Luci Geisel se interessar pelas artes; ao governador Nei reu pouco depois do episódio do Rio Centro, da de- numa época em que o Lula estava sendo preso Braga10 aparentemente ter interesse grande pela cultura (ou achar que renderia dividendos políticos); e missão do Golbery e do enrijecimento do governo em São Bernardo. Disse a ele: “Leon, assim você ao [general] Golbery [do Couto e Silva], para quem uma boa relação com a intelectualidade facilitaria o militar. Além disso, o Roberto, provavelmente com apequena seu filme, seu filme não é um panfleto, processo de abertura. Esses fatores contribuíram para que, em 1975, uma nova lei modificasse radical- razão, quis fazer um grande splash no lançamento, ele tem uma dimensão humana. E você vai fa- mente a Embrafilme. Na época do Roberto Farias, foram produzidos muitos filmes importantes. Quando então saiu uma fotografia do Reginaldo Faria12, no zer uma provocação que vai resultar no que eles entrei, muitas das apostas eram de que eu entraria para controlar. Aconteceu o contrário, porque man- pau-de-arara, na capa da revista Manchete. Todas querem”. Era um diálogo que teria mesmo se tive o clima de total liberdade de expressão e acho que consegui, com a ajuda do Samuel11 [Pinheiro essas coisas contribuíram. Dias antes da minha não fosse Diretor-Geral da Embrafilme. É ilusão Guimarães], melhorar o lado financeiro da Embrafilme, sem atrapalhar a produção. No meu período, foi demissão, fui chamado por um alto funcionário achar que o cinema pode viver do mercado. Hoje a maior distribuidora do Brasil em número de filmes e em faturamento, maior até do que as americanas. que quis me convencer a voltar para o Itamaraty. existe uma impressão de que, dando um incen-

34 35 tivo, o Estado não está participando. Hoje, você tem os diretores de marketing da Petrobrás, da Vale Juca - De que forma a diplomacia cultural relaciona-se com os interesses nacionais? A que objetivo estraté- decidindo quais filmes vão ser feitos. No fundo, é dinheiro do Estado, igualzinho. gico ela responde? CA - Em duas palavras: soft power. Quando o número três da hierarquia em Moçambique, Marcelino dos Santos, Juca - Houve mudança nos eixos temáticos abordados no cinema nacional? Ele acompanhou e refletiu foi ver o filme brasileiro e se surpreendeu, no governo Geisel, estávamos ajudando a mostrar que o Brasil era um a evolução da sociedade brasileira? país complexo, uma sociedade complexa que tratava de temas que pareciam tabus. Essa é a grande missão [da diplomacia cultural], do ponto de vista internacional: sem nenhuma pretensão de mostrar o país bonito ou feio, CA - Não sou um bom analista para isso, porque acompanho de maneira meio irregular. Há filmes de muito mostrá-lo como ele é. boa qualidade. Não vejo que tenha havido mudança temática. Há um número maior de filmes urbanos, que eram poucos. Há também um pouco mais de sofisticação psicológica, mas isso é uma evolução normal. O que precisou fazer o cinema brasileiro no começo? Ele se alimentou muito da literatura brasileira; não Carolina Paranhos Coelho é formada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul só dos livros, mas da temática da literatura. O Nelson [Pereira dos Santos]13 e mesmo o Glauber tinham (UFRGS) e Mestranda em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (IRBr). aquela temática de Os Sertões, da qual os filmes mais modernos foram se [[email protected]] libertando. Não deveria falar do meu filho, e ele também não vai gostar da comparação, mas se eu comparar O Caminho das Nuvens [2003. Dir.: Vicente Amorim] com Bye Bye Bra- Davi Bonavides é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). sil [1979. Dir.: Carlos Diegues], não deixam de ter [[email protected]] suas semelhanças: mostram várias partes do Bra- sil, são road movies. O Brasil evolui, as coisas evoluem. Vi um filme esplêndido há pouco tem- José Roberto Rocha Filho é formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). po, O ano em que meus pais saíram de férias [[email protected]] [2006. Dir.: Cao Hamburger].

Rafael de Medeiros Lula da Mata é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juca – Enquanto esteve no comando do [[email protected]] Ministério das Relações Exteriores, que atividades relacionadas com a promoção do cinema brasileiro podem ser citadas?

CA – Infelizmente, não pude me dedicar tan- 1 Embaixador brasileiro em Moçambique de 1977 a 1986. to a isso. Mas hoje temos uma Divisão de 2 Cineasta carioca, diretor de documentários e ficções; um dos expoentes do Cinema Novo. Promoção do Audiovisual, que não existia. O 3 Moçambicano radicado no Brasil, foi um dos grandes nomes do Cinema Novo e tem um reconhecido trabalho como letrista. que o Itamaraty pode hoje fazer pelo cinema 4 Primeiro diretor de cinema a assumir a presidência da Embrafilme, ocupando o cargo de 1974 a 1979. é desbravar mercados novos. O grande gargalo do cinema é a distribuição. Não adianta co-pro- 5 Montador, diretor e crítico brasileiro, assumiu o setor de Distribuição da Embrafilme na década de 1970. duzir o filme e ele ficar na prateleira. Então, na 6 Diplomata, ex-professor universitário, produtor e diretor de curtas-metragens, também conhecido por seu ofício de escritor. América do Sul, a gente começou a fazer isso. Ba- 7 Ministro de Educação entre 1979 e 1980, no governo João Figueiredo. nheiro do Papa, que é um bom filme uruguaio, teve 8 Jornalista e escritor brasileiro, autor do livro 1968: o ano que não terminou. co-produção brasileira e foi distribuído pela Ancine, 9 Poeta e diplomata pernambucano, foi Embaixador no México, na Unesco e na União Europeia. assim como alguns filmes argentinos. Espero que a 10 Governador do Paraná em duas ocasiões, foi também Ministro da Agricultura (1965-1966) e da Educação (1974-1978). recíproca seja verdadeira. Isso pode ser feito: criar um 11 Diplomata, ocupou os cargos de Secretário-Geral do MRE (2003-2009) e de Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da mercado sul-americano mais forte de cinema. República (2009-2010); em 2011, foi designado Alto-Representante Geral do Mercosul. 12 Irmão do cineasta Roberto Farias, é um dos atores principais do filmePra Frente, Brasil. 13 Precursor do Cinema Novo, é responsável, em 1963, pela célebre adaptação para o cinema de Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos.

Gustavo Ferreira/MRE

37 Sara Walker Memória viva do Instituto Rio Branco Bruno Rizzi Razente

professora Sara Walker começou a trabalhar e meu chefe queria viajar, então ele pediu a mim que com a formação de diplomatas brasileiros em o substituísse. Quando chegou março, o pessoal de lá A1968, ainda no Rio de Janeiro. Depois de mais gostou e me chamou de volta. Em 1977, a diretoria do de quatro décadas, continua ainda hoje ministrando Instituto sabia que eu estava Brasília e me chamou no- aulas de Inglês Diplomático e Literatura Inglesa. vamente para dar aulas. Achei uma grande honra. O co- lega do meu chefe no IRBr em 1968 era um professor Juca – Fale um pouco de você. Onde você nasceu? muito simpático, mas polonês, e acharam melhor ter a Sara Walker – Nasci em Reading, fui criada em Cambrid- inglesa jovem do que o velho polonês. ge e depois em Londres. Nasci durante a guerra... Mas, para mim, Brasília não deixa de ser casa. Estou aqui des- Juca – O que você lembra dessa época? Alguns per- de 1969. Me acostumei com a cidade, mas ainda não sonagens especiais? me acostumei ao trânsito de hoje em dia. Quando tem SW – A época da ditadura foi interessante... Lembro de engarrafamento fico assustada, porque não era assim. uma eleição simulada que fizemos. Um rapaz que era do SNI [Serviço Nacional de Informações] quis recolher Juca – E como você veio parar no Brasil? todos os cartazes. A coordenadora, uma velha francesa, SW – Vários acidentes na minha vida... Começou quan- não deixou, foi muito bom... Era uma brincadeira, com do tinha uns 13, 14 anos e perguntaram se eu queria muito humor, como sempre tem, mas o SNI quis reco- estudar língua viva ou grego clássico. Achei que estu- lher. O agente do SNI não era aluno, mas a gente sempre daria alemão, mas optei pelo espanhol. Estudei fran- suspeitava que alguém da turma poderia ser espião. cês e espanhol na faculdade. Depois queria ir para a América Latina e fiz um mestrado em estudos latino- Juca– Isso aconteceu em Brasília? -americanos, sempre com foco na língua espanhola. SW – Isso foi em Brasília sim, no oitavo andar do Anexo Queria ir para o México ou para o Peru, como voluntária I. Lembro também de um carnaval em que os alunos das Nações Unidas, mas me disseram que teria de es- foram para a rua, alguém bebeu bastante, começou perar seis meses. Não tinha trabalho, não queria pedir a gritar “Brizola!” e foi preso. Foi um escândalo. Mas dinheiro aos meus pais e queria vir à América Latina o que mais me marcou do período em que o Institu- logo. Então, após comprar o suplemento educacional to funcionava no oitavo andar foi a época das “Diretas do Times, soube que a Cultura Inglesa do Rio de Janeiro Já”. Havia uma vista muito bonita do Congresso daque- estava com disponibilidade de vagas para professores. le andar. Um dia, os alunos me chamaram e disseram Assim, consegui visto de trabalho e vim para o Brasil. “Dá uma olhada no que tem lá embaixo”. As pessoas estavam sentadas formando as palavras “Diretas Já”. Juca – Quando você começou a trabalhar no Institu- to Rio Branco (IRBr)? Juca– Por quantos Institutos Rio Branco você passou? SW – Dei aulas no Rio de Janeiro em 1968 e em 1969. SW – Eu me lembro de quatro. Um na Avenida Getúlio Var- Dou aulas em Brasília desde 1977. Cheguei ao Rio no gas, no Rio, que ocupava dois andares de um prédio perto final de 1967, e a Cultura Inglesa não tinha nada para da Candelária. Depois, no oitavo andar do Anexo I e, mais eu fazer, a não ser provas de Cambridge. Em janeiro de tarde, no “Bolo de Noiva”, onde funciona atualmente a 1968, o IRBr não iria dar as férias que costumava dar, Fundação Alexandre de Gusmão. E também aqui, o prédio

38 atual, que acho lindo, maravilhoso, mas que não foi plane- to querido. Foi paraninfo de turma há dois anos. Dava lidar com alunos que não têm boa base de inglês. Juca – E como foi essa experiência? jado para tantos alunos. Para 25, 30 alunos é perfeito. Por uma aula espetacular, mas ttambém não sabia quando Em três semestres, o essencial para um diplomata é SW – O André Amado foi um dos poucos Diretores fora o prédio parece ser feio, mas por dentro... acabar. Acho que, depois de tantos anos, tenho o privi- ter desenvoltura, comunicar-se de maneira boa e não para quem dei aulas, pois o atual diretor [Embaixa- légio de entrar no auditório e dizer “Tá na hora, né?”. ficar reparando em pequenos erros. O aluno mais tí- dor Georges Lamazière] não fez IRBr. Ele entrou, de- Juca – E nesses anos todos, houve muitas mudan- Acho que é o único grande privilégio que me cabe... mido, no entanto, às vezes se desenvolve menos na pois do concurso, direto na Carreira. Havia essa pos- ças? Na gestão, no ensino? parte oral. Há colegas que começaram fracos na par- sibilidade antes, nos anos 1970. Antes, recrutavam SW – Sim, em ambos. O inglês voltou-se cada vez mais Juca – E com as turmas de 100 alunos, houve muita te oral e hoje em dia têm boa desenvoltura. apenas pessoas com alguma experiência profissio- para a simulação, pois descobrimos que não se fazia muito mudança? nal, um pouco mais velhas, que faziam uns exames public speaking. Resolvemos focar mais nisso. A primeira SW – Sim, o pessoal reclama que é bastante acadêmi- Juca – E quais são as maiores dificuldades, os ferozes e depois eram colocados direto na Carreira, simulação que fiz foi a pedido do Embaixador Sergio Bar- co agora, mas é um pouco menos do que antigamen- erros comuns a serem trabalhados? com 15 dias de IRBr. Mas, naquela época, o aluno ros, no final da década de 1970. te, quando o curso durava dois SW – Temos de trabalhar um pouco a gramática, regular do IRBr não precisava estar formado na fa- Ele pediu uma simulação sobre anos de estudos acadêmicos, mas prefiro fazer isso depois de um debate, levantar culdade. Isso começou em 1995. Antes, depois de exploração do fundo do mar, na com monografia final e tudo erros e corrigi-los. Alguns colegas implementaram cinco, seis semestres de faculdade, você podia se época da negociação do tratado mais... um sistema diferente. Nas turmas de 100 alunos, candidatar ao IRBr e se formava aqui dentro. Você do mar [Convenção das Nações achamos conveniente fazer uma triagem entre os saía com graduação em Diplomacia. Unidas sobre Direito do Mar]. Juca – O nível de inglês do di- alunos mais avançados e os de nível intermediário, Funcionou bem. Não me lembro plomata brasileiro está bom? com o objetivo de diversificar o número aulas por Juca – E você foi feliz por trabalhar aqui? quem era o presidente da seção, SW – Acho que sim. Fiquei com semana. Antes não era assim, era todo mundo em SW – Sim, mas ensinar em outros lugares tam- mas lembro que o Embaixador medo das turmas de 100 alu- uma turma. Quando inglês era prova eliminatória, bém é bom. Quando trabalhei com professores da Everton Vargas, que foi o co-chair, nos. De vez em quando, surge não tinha essa variação de nível que tem hoje. rede pública no Tocantins, eles eram os mais po- fez um excelente trabalho. um aluno que tira 10 ou 20 bres dos pobres. Aqui é gente mais privilegiada. na prova do CACD [Concurso Juca – E o debate entre adotar um perfil mais Em 2003, trabalhei em um projeto junto com a Juca – Você foi testemunha de Admissão à Carreira Diplo- acadêmico ou mais profissional no Curso de For- Secretaria de Educação do Estado do Tocantins. de muitas mudanças na grade mática]. Mas normalmente os mação? Minha chefe era Deputada Federal, ex-Secretária de matérias? alunos fracos na escrita falam SW – Isso é algo recente. O estágio começou nos de Educação do Tocantins. Dava aula segunda, SW – Sim, mas há algumas ma- bem, são extrovertidos. Houve, últimos oito, dez anos. Antigamente, havia um cur- terça e quarta, em Brasília, e depois ia para o térias constantes, como Direito talvez, uma pequena queda no so acadêmico de dois anos e só depois entrava- Tocantins passar o resto da semana. Eram dois Internacional Público e História nível, mas não muito grande. -se na carreira. Quando começou o estágio, após mundos completamente diferentes, ricos e po- da Política Externa Brasileira. Acho que a prova de seleção um semestre de curso, foi um inferno. Lógico que bres, privilegiados e subprivilegiados. Sara com seus pais em 1967, no Palácio de não funciona tão bem. Gosto o aluno achava que o chefe era mais importante Buckingham (Acervo pessoal) Juca – E como era a relação de um sistema como o da Ar- do que o professor e faltava aulas. Nesse sentido, Juca – E agora? Quais são os planos? entre os professores? Mudou gentina, que leva em conside- acho bom passar a ter dois semestres de curso. SW – Estou quase me aposentando. Vou continuar muita coisa? ração as notas do TOEFL [Test of English as a Foreign com as aulas de Shakespeare e, no próximo ano, SW – Antes os de francês eram todos ligados à Alian- Language] ou do Proficiency e não há prova de inglês. Juca– Então era mais acadêmico... Como você vou dar aulas de Literatura. Vou ajudar na avalia- ça e, depois de pouco tempo, iam embora. O que mu- Vi pessoas que tiraram 80 [de 100] em determinado vê esse binômio? ção, fazer outras coisinhas... Mas, com tantos pro- dou – e isso é bom – foi que agora podemos criar mais ano, não passaram, e, na prova do ano seguinte, caíram SW – Não sei como são os módulos profissionali- fessores, a lógica é eu me aposentar. laços entre os professores. O [jurista Antônio Augusto] muito. A variação é muito grande, não tem cabimento. zantes. Mas realmente acho que quem consegue Juca Cançado Trindade era uma figura e o Francisco Rezek entrar aqui já tem boa formação acadêmica e não – Sente-se brasileira, no final das contas? SW – Mais ou menos. O Tocantins fez muita coisa também era muito bom. O Trindade era ótimo professor, Juca – Como deve ser a capacitação linguística do precisa de três ou quatro semestres para se formar, para eu me “abrasileirar”. De coração, sim. Jamais mas não acabava a aula na hora de jeito nenhum. Há diplomata? a não ser que queira fazer mestrado. O mestrado poderia viver na Inglaterra hoje em dia. três, quatro anos, quando ele ainda era professor no SW – Acho bom ter alguma triagem para entrar foi criado em meados dos anos 1990, na gestão do Instituto, interrompi a aula dele para dizer que estava aqui. Para os estrangeiros, criamos uma turma es- [Embaixador] André Amado, que foi meu aluno e de- Bruno Rizzi Razente é formado em Direito pela Faculda- na hora [risos]. O Embaixador Gonçalo Mourão era mui- pecial de nível básico, pois não cabe ao Instituto pois meu chefe [como Diretor do IRBr, 1995-2001]. de de Direito da Universidade de São Paulo (USP). [[email protected]]

40 41 Sereníssima Chloé Rocha Young

Quão essenciais são as relações humanas para a importância de uma cidade? São elas que resultam na construção do espaço e na sucessão de fatos da história. Esse mesmo espaço, no entanto, pode, posteriormente, descolar-se de sua característica humana e até mesmo expulsá-la. Veneza foi e continuará sendo (enquanto suas estruturas superarem as ofensivas climáticas) uma concentração histórico-cultural inigualável, congelada em seu tempo. O imenso fluxo de turistas que transbordam suas vielas atravessa rasgando a cidade, sem permanência. Enquanto isso, gerações de citadinos veem-se forçadas a sair de sua terra natal em decorrência do vertiginoso aumento do custo de vida. Venezianos a caminho da extinção e não há nada que a Sereníssima República possa fazer. Quanto se demonstra elegante tal decadência histórica e humanamente vazia?

42 Chloé Rocha Young é formada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). [[email protected]] Dossiê

terizadas pela aquisição de conhecimentos: estruturas conceituais formalizáveis e perfeitamente A formação do transmissíveis. As profissões imemoriais, ao contrário, estariam fundadas principalmente em sa- beres: conteúdos adquiridos pela prática e pela convivência cotidiana com os mestres de cada diplomata brasileiro ofício. A fecunda distinção, formulada no âmbito de disciplinas tão diversas como a Sociologia e a Psicologia, é examinada no ensaio “É possível formar um diplomata?”, de Lucas Pavan Lopes, que pode ser lido entre as páginas 58 e 61. “Para que lado, o direito ou o esquerdo, está virado o bico do pelicano que ornamenta a capa Se a diplomacia se escora antes em saberes que em conhecimento, e, como diria o Poeta, da edição princeps de Os Lusíadas?” em saberes de experiência feitos, cumpre examinar as experiências mais típicas e fundamentais oi com essa pergunta que se depararam os candidatos ao Instituto Rio Branco assim que abriram da nossa geração de diplomatas. Entre as páginas 62 e 67, Rodrigo Wiese Randig dedicou-se a a prova do concurso.1 A polêmica acerca da sua adequação a um exame de admissão à carreira investigar a marca que a participação em simulações de organismos internacionais deixou nas Fdiplomática, decerto iniciada imediatamente na cabeça de boa parte dos candidatos, logo chegou mais novas gerações de diplomatas brasileiros: já são mais de 50% os alunos do Rio Branco cuja à imprensa, e não é difícil especular em quais termos: de um lado, havia quem proclamasse a perfeita verve diplomática foi despertada ou aguçada nesses experimentos. inutilidade daquele tipo de conhecimento para quem pretendia fazer avançar o interesse nacional na O artigo seguinte, de Rafael Carneiro Prince, investigou “pelo avesso” uma das mais im- arena mundial; de outro, constatava-se que, embora talvez irrelevante em si, aquela informação erudita portantes experiências que o Rio Branco nos proporciona: com nossos colegas do intercâmbio, seria fruto necessário de um longo e aprofundado convívio com livros e obras de arte – este, sim, indis- vindos de países muito diversos, partilhamos experiências e criamos laços de amizade que, espe- pensável ao representante diplomático. Corria o ano de 1956... ramos, permanecerão estreitos por várias décadas. E eles, o que levam desse período passado A reação imediata diante da narrativa acima é notar que o debate acerca da formação do diploma- no Instituto Rio Branco? ta – tema que nossa turma escolheu para o Dossiê desta edição de Juca – é, no Brasil, antigo em mais Dando início ao dossiê, o leitor encontrará o pensamento de quatro expoentes do Itama- de meio século. Levando a reflexão um passo adiante, talvez seja cabível sustentar que esse debate é coe- raty atual – Rubens Ricupero, Gelson Fonseca Junior, Georges Lamazière e Celso de Tarso Pereira tâneo da própria história da diplomacia, perdurando até que ela venha, um dia, a desaparecer (como tudo –, que, com enorme gentileza, compartilharam as suas reflexões sobre o nosso tema geral. que é fungível). Afinal, ao diplomata cabe pensar e executar a inserção de seu país no sistema internacio- Tendo anunciado a perenidade do tema da formação do diplomata, seria incoerente con- nal, o qual, com variações de ritmo, se encontra em constante fluxo e rearranjo. Ora, é razoável imaginar cluir sugerindo que, em alguma medida, chegamos a respostas definitivas para as questões for- que seja possível fixar, de uma vez por todas, o currículo necessário e suficiente à formação do diplomata, muladas. Se, todavia, o leitor deste dossiê se divertir como o fizemos ao escrevê-lo e editá-lo, esta- encerrando a discussão, se o meio em que ele age – o ambiente internacional – não para de mudar? remos satisfeitos. Se, adicionalmente, encontrar nele algum elemento que enriqueça sua reflexão Outro ponto que indica a permanência desse tema é a antiguidade da própria diploma- própria a respeito do tema, estaremos mais do que recompensados. cia. Representantes diplomáticos comparecem já nos registros históricos da China imperial e Os Editores das Cidades-estado gregas. Tão alongada genealogia dá à profissão seu charme especial – mas 1 O episódio é narrado em RICUPERO, Rubens. “Guimarães Rosa, examinador de cultura”. In: Cadernos de Literatura Brasileira: João também a torna algo excêntrica no rol das profissões tipicamente modernas. Essas seriam carac- Guimarães Rosa. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2006, p. 66-75. 46 47 eria fútil propor uma investigação acerca da formação do diplomata brasileiro no cenário internacional atual sem parar para ouvir aqueles que já puseram à Sprova, com sucesso inquestionável, a formação que receberam, aproveitando-a ou reformatando-a ao sabor das circunstâncias. Mas a experiência diplomática, longa e

rica como fosse, tampouco nos bastava. Buscamos, para compor a reflexão a quatro vozes

que se segue, diplomatas experientes e dispostos a debruçar-se reflexivamente sobre a

própria carreira e profissão, perfazendo aquele exercício de autoanálise compartilhada

em público sem o qual, já disse alguém, a vida não vale a pena. A rigor, seria desnecessário apresentar nossos entrevistados. Os Embaixadores Ru- A formação do bens Ricupero, Gelson Fonseca Junior e Georges Lamazière, e o Conselheiro Celso de Tarso Pereira são personalidades conhecidas de todos os que se interessem pela vida diplomata brasileiro política, diplomática e intelectual do Brasil. Porque seus feitos estão ao alcance de uma Uma reflexão a quatro vozes anamnese – ou de uma pesquisa na internet –, destaquemos o que não é tão óbvio.

Cláudio L. N. Guimarães dos Santos e Fabiano Bastos Moraes Nas linhas que se seguem, o leitor encontrará as reflexões de integrantes de qua- tro gerações de diplomatas. Nossos entrevistados trouxeram ao Itamaraty experiências de vida diferentes, enriquecendo-o e enriquecendo-se com a possibilidade de observar e formatar alguns dos mais relevantes capítulos da história recente da política interna e externa do Brasil. Alguns temperaram a sua experiência no Ministério das Relações Ex- teriores com períodos servindo a outros órgãos do governo brasileiro ou da governança global. Outros optaram por atuar exclusivamente no Itamaraty. À sua maneira, cada um deles buscou servir-se da palavra escrita para compartilhar as suas visões, concepções e insights. Foi dessa generosa vontade de ensinar que nos aproveitamos, colhendo-lhes, agora, a palavra falada.

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no caso das línguas estrangeiras. Para ele, um diplo- vo de criatividade dos funcionários. Para Ricupero, a mata que não domina a língua falada no país onde solução para esse dilema seria a existência de um Embaixador atua vê sua rede de interlocutores restringir-se aos ambiente propício à inovação, onde a liberdade de seus homólogos da chancelaria estrangeira. Infeliz- proposição seria encorajada, conhecendo apenas a mente, as peculiaridades da carreira diplomática no restrição da disciplina e do caráter intramuros que Rubens Ricupero Brasil inviabilizam a preparação linguística com a an- esse exercício deveria ter. tecedência necessária, segundo o Embaixador. O Embaixador reconhece que existem diferenças Como exemplo de síntese bem-sucedida do ge- importantes entre o presente e o mundo em que atuou neralista e do especialista, Ricupero cita o caso de como diplomata e, também, que o Itamaraty tem pro- George Frost Kennan. A uma sólida formação geral curado acompanhar e adaptar-se a essas mudanças, ubens Ricupero, hoje embaixador aposentado, Hugueney, atualmente em Pequim, que jamais deixou de base humanística, adquirida em Princeton, o fa- promovendo o devido aggiornamento. Insiste, todavia, apreciou bastante o período em que estudou de ter uma perspectiva abrangente da carreira, ape- moso diplomata norte-americano conseguiu associar em que há pelo menos uma área em que essa evolução no Instituto Rio Branco (IRBr), no qual ingres- sar de grande especialista em comércio. R um impressionante conhecimento especializado da não se deu com a profundidade desejável: a dos méto- sou como primeiro colocado no concurso de acesso. Para Ricupero, o período de sua vida que me- língua e da cultura russas, o que lhe permitiu exercer dos e processos de atuação diplomática, tanto no Brasil Marcou-lhe, sobretudo, o convívio com professores lhor ilustra a importância da versatilidade para a vida suas funções com indiscutível excelência. Esse exem- quanto no exterior. A timidez com que se lança mão da como Fábio Macedo Soares Guimarães e Alfredo de um diplomata foi aquele em que serviu em Gene- plo esclarece o que Ricupero entende por especializa- “diplomacia pública” constitui um bom exemplo de área Lamy. Considera equivocada a concepção então he- bra. Ele, cuja experiência, até então, dera-se na diplo- ção, radicalmente distinta da formação reducionista, à espera de modernização. “Ainda impera muito a men- gemônica de que os conhecimentos práticos necessá- macia bilateral e que sempre achara árduos os temas à qual dá o nome de “mediocrização”. talidade do serviço diplomático do século XIX, de acordo rios à diplomacia seriam aprendidos depois, quando relacionados ao GATT, viu-se, subitamente, chefiando Embora a estrutura hierárquica da carreira com a qual o diplomata só tem um interlocutor: a chan- o diplomata já estivesse trabalhando. Do alto de sua uma missão de atuação multilateral, na qual os te- constitua elemento fundamental para assegurar celaria local. Ora, isso hoje mudou. Em Brasília, por ampla experiência e aprofundada reflexão, julga que mas comerciais eram predominantes. Inicialmente, a unidade e a eficácia da Política Externa, o exemplo, os diplomatas estrangeiros procu- apenas uma formação humanística, ancorada em só- assustou-se com o desafio. Além do domínio fluente Embaixador pondera que ela não pode ser ram toda a Esplanada, e isso, às vezes, lida cultura geral, é a adequada à carreira: “A profis- do inglês – que então não possuía –, ele sabia que absolutizada a ponto de sufocar todo lai- irrita o nosso Ministério”. são do diplomata é, por excelência, uma profissão que teria de participar de reuniões nas quais falaria a uma exige muita versatilidade, porque a representação de audiência especializada em questões comerciais. Foi um país obriga a um sem-número de tarefas que não nesse momento que mais lhe valeram a formação cabem num enfoque limitado.” humanística, a flexibilidade cognitiva e a persistência Para Ricupero, mesmo que possa haver alguma do autodidata. Além de estudar os principais autores especialização nas trajetórias individuais de alguns que tratavam dos temas comerciais, Ricupero buscou diplomatas, esta será sempre circunstancial: no topo aprimorar a sua expressão em língua inglesa, repetin- da carreira, a visada ampla volta a ser necessária. O do em voz alta os discursos do seu antecessor, Pau- diplomata especializado em temas comerciais, por lo Nogueira Batista. A esse esforço concentrado ele exemplo, acabará confrontado com um dilema: “Na atribui sua bem-sucedida atuação em Genebra, bem hora em que você vai chefiar uma Missão, não haverá como sua posterior eleição para a UNCTAD, onde exer- mais do que dois ou três postos em que as questões ceu a função de Secretário-Geral por dois mandatos de negociação comercial são exclusivas... Isso com- consecutivos (1995-1999 e 1999-2004). promete muito a questão da especialização”. Como Apesar de sua defesa de uma formação genera- exemplo de diplomata que não sofreu diante de tal lista e abrangente para o diplomata, Ricupero consi- dilema, Ricupero cita o caso do Embaixador Clodoaldo dera que uma especialização criteriosa seria benéfica

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que seria, idealmente, o comportamento adequado a lembra que diversas chancelarias optaram, em maior um diplomata. De outro lado, a academia diplomática ou menor grau, pela formação de especialistas, sen- brasileira deveria procurar padronizar, dentro de cer- do caso conhecido o dos arabistas do Quai D’Orsay. tos limites, a bagagem teórica dos alunos. O fato de Também os Estados Unidos buscaram incentivar a o Itamaraty atrair e manter-se aberto a pessoas das especialização por região geográfica, facilitando a mais distintas formações torna necessário que haja ascensão de diplomatas que optem por regiões con- uma instância formadora de uma sensibilidade e de sideradas difíceis. A chancelaria brasileira, contudo, um entendimento comuns. Essa relativa uniformida- jamais elaborou projeto consistente que visasse a es- de de mirada também atende à natureza hierárquica timular a especialização linguística, geográfica ou por da carreira, embora Fonseca advirta para o risco de a atividade, talvez por tal projeto ser oposto à tradição visão compartilhada terminar por tolher o imprescin- prevalecente na Casa. dível debate interno e a criatividade dos formuladores Gelson Fonseca não é, em princípio, contra a da política exterior brasileira. ideia da especialização, mas considera que qualquer Embaixador O exercício da criatividade, para Gelson Fonse- tentativa pouco criteriosa de introduzi-la na carrei- ca, é elemento fundamental em uma carreira diplo- ra poderia prejudicar a flexibilidade e a abrangência Gelson Fonseca Junior mática bem sucedida. Existe, segundo o Embaixador, essenciais à diplomacia. Ao contrário, na carreira de uma demanda real, no Itamaraty, por diplomatas Oficial de Chancelaria, a especialização, para as no- concurso de ingresso no Instituto Rio Branco ressaltando apenas que, para reintroduzi-la, seria ne- criativos, capazes de pensar as realidades surpreen- vas turmas, deveria ser um caminho obrigatório. Tal prestado por Gelson Fonseca, em 1967, dife- cessário mudar seu formato, tornando-a juridicamen- dentemente cambiantes do mundo contemporâneo e medida iria não apenas ao encontro das necessida- ria bastante daquele hoje existente. Os can- te defensável. O de propor soluções que levem em conta os condicio- des administrativas do Itamaraty, mas também daria didatos, de quem não se cobrava diploma de ensino O Rio Branco em que estudou Gelson Fonse- nantes da inserção internacional do Brasil. No bojo uma identidade mais clara ao Oficial de Chancelaria, superior, faziam provas de línguas, Geografia, História ca possuía perfil marcadamente acadêmico. Lá ele de uma carreira hierarquizada como a diplomacia, no abrindo-lhe novas oportunidades no quadro do servi- e Direito, mas também viam aferida a sua cultura ge- teve contato com disciplinas que antes havia es- entanto, é preciso saber equilibrar a expressão da in- ço exterior. ral. Havia ainda uma entrevista, chamada de “perfil tudado superficialmente, o que lhe foi muito útil, dividualidade com o respeito à cadeia de comando: Olhando a sua trajetória de modo abrangente, diplomático”, posteriormente extinta por ser alvo fre- depois, no desempenho das suas funções como di- “Você tem que ser criativo dentro da hierarquia. Se a Gelson Fonseca confessa que a sua carreira não foi quente de mandados de segurança. Nela, o candidato plomata. No Rio Branco, além de excelente corpo vocação for para o exercício pleno de criatividade in- planejada nem especializada. Isso, contudo, em sua conversava com três diplomatas sobre um tema geral. docente (Mario Henrique Simonsen, Marcílio Mar- dividual, há outros caminhos, o das profissões liberais opinião, não constitui propriamente uma exceção: o O objetivo era verificar se o postulante possuía real- ques Moreira, Bertha Becker), Gelson Fonseca tra- e, melhor ainda, o das artes. Numa instituição como o Embaixador considera difícil qualquer planejamento mente vocação para a diplomacia: “Havia uma preo- vou contato com diplomatas de relevo (como Sarai- Itamaraty, você precisa compreender como funciona no caso brasileiro, em que a imprevisibilidade é gran- cupação com o comportamento do candidato, porque va Guerreiro) e assistiu a conferências memoráveis. a hierarquia e de que modo ela pede e acolhe a sua de e onde o acesso aos postos e às funções depende, a diplomacia tem muito que ver com isso. Você tem Uma delas, proferida por Miguel Osório, revelou-se contribuição individual”. quase sempre, de convites das Chefias. que saber lidar com os outros, com diferenças cultu- quase profética: versava sobre as perspectivas de No que tange ao debate entre especialistas e Poderíamos, neste ponto, especular se essa im- rais e com as mudanças que a profissão exige. Você crescimento da China. generalistas, Gelson Fonseca recorda que, já no iní- previsibilidade é apanágio da carreira diplomática ou deve ter vocação”. Apesar das discussões que susci- Para o Embaixador Gelson, uma das funções do cio da década de 1960, foi criada uma Comissão de se, ao contrário, é uma característica inerente a qual- ta, Gelson Fonseca afirma ser favorável a esse tipo IRBr é a de estimular a socialização dos alunos, reve- Reforma para discutir, entre outras, essa questão – a quer atividade humana. Ou há alguém que de fato de avaliação, ainda realizada por várias chancelarias, lando-lhes um ethos específico e aproximando-os do qual não chegou, porém, a resultados conclusivos. Ele acredita ter controle absoluto sobre a própria vida?

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ca, antes de mencionar o exemplo de um diploma- to, colocar o diplomata novato em contato direto com ta removido para um país radicalmente diferente do profissionais experientes em áreas como organismos seu. Nesse caso, mais útil do que dominar um reper- multilaterais, política bilateral ou contenciosos na tório de ideias abstratas seria estar habilitado para OMC. Inserido na circulação desse “saber peculiar”, mergulhar na especificidade local. “O diplomata tem o aprendiz realizaria um processo de reaprendizado, que se encharcar de particularidades”, diz. E, para durante o qual noções abstratas sobre a atividade di- tanto, melhor é possuir a capacidade de compreen- plomática, oferecidas nos cursos de Relações Interna- der a língua e os costumes locais do que se deixar cionais, seriam refinadas até se chegar ao conceito e fascinar por categorias de laboratório. à prática de ser diplomata brasileiro. A distinção entre a atividade acadêmica e a di- O Embaixador considera falso o dilema entre plomática pode ser confirmada observando-se que, especialistas e generalistas. A visão de que o Itama- para o diplomata, ao contrário do que acontece com raty privilegiaria demasiadamente o generalista cai o acadêmico, o jornal, que busca “acompanhar o real por terra, em sua opinião, com a observação direta em tempo real”, é muitas vezes mais relevante do que dos fatos: a “especialização” se dá no dia a dia, no a reflexão consolidada (mas lenta) fixada nos livros. fato de os diplomatas brasileiros percorrerem trilhas Ademais, a abstração da Academia, embora apresen- profissionais relativamente estreitas e ditadas por tada como científica, embute conceitos e valores con- suas vocações particulares. Lamazière sublinha ape- cretos – em última análise, trata-se de interesses na- nas que, no Itamaraty, a especialização é “infinita cionais. O Embaixador percebeu na pele esse fenôme- enquanto dura”: ao chegar ao topo da carreira, o di- Gustavo Ferreira/MRE no durante temporada de estudos passada na França, plomata, exceção feita ao embaixador lotado em um Embaixador quando se aprofundou em questões relacionadas ao dos poucos postos multilaterais de temática especia- desarmamento e à não proliferação nuclear. Embora a lizada, se verá às voltas com todo o espectro da ati- experiência lhe tenha parecido válida, o conhecimen- vidade diplomática, da administração à alta política. Georges Lamazière to transmitido pelos especialistas era tão marcado Em resposta aos que defendem um maior en- pela visão e pelos objetivos estratégico-diplomáticos corajamento da especialização no Ministério das Re- Embaixador Georges Lamazière, Diretor-Ge- ticos e de participar de um momento especialmente franceses que o curso, do ponto de vista prático de lações Exteriores do Brasil, Lamazière apresenta dois ral do Instituto Rio Branco, teve uma trajetó- rico da política externa brasileira, sob a liderança do um diplomata brasileiro, revelou-se pouco útil. contra-argumentos. Primeiramente, especializar dema- O ria diferenciada dentro do Ministério das Re- Chanceler Azeredo da Silveira. Aprovado em 1977, À luz dessa visão, qual seria o papel de uma siadamente os quadros diplomáticos significaria trair o lações Exteriores. No final da década de 1970, como no fim do mesmo ano já se viu assistente da Divisão academia diplomática? Lamazière afirma que, de um próprio conceito da Instituição, que, afinal, é um Minis- o Itamaraty se visse necessitado, com certa urgência, de Ásia e Oceania. ponto de vista exclusivamente acadêmico, o Rio Bran- tério das Relações Exteriores, e não de temas particu- de pessoal qualificado e percebesse que a obrigato- Embora não tenha perdido o fascínio pelas co não pode agregar além de certo limite: “Quando me lares. Ademais, ele recorda que, mesmo nos Ministé- riedade de cursar o Rio Branco desencorajava quem ideias abstratas (deu aula de Teoria Política no Ins- perguntam qual o segredo do Rio Branco, respondo, rios “especializados”, nos escalões mais elevados, os já tinha diploma universitário, foram retomados os tituto Rio Branco e obteve o grau de Mestre em Fi- sem demagogia nenhuma, ‘os alunos’... Quem passa temas serão tratados, mais ou cedo ou mais tarde, em concursos diretos – isto é, sem necessidade de cum- losofia pela PUC carioca – uma das universidades no concurso já tem um nível muito bom”. O papel do nível político. Ora, se isso acontece naqueles Ministé- prir o período na Academia diplomática. Lamazière, onde lecionara), Lamazière desposa uma visão da Instituto, na visão de seu atual Diretor, seria, primei- rios especializados, não haveria razão ainda maior para bacharel em Direito apaixonado por Filosofia e então diplomacia como profissão eminentemente prática. ramente, o de promover o nivelamento dos conhe- desejar que os diplomatas, quadro de reconhecida ex- dedicado ao magistério e ao jornalismo, viu naquele “A diplomacia é o desenvolvimento de uma visão do cimentos com que os alunos chegam ao Instituto. A celência do Estado brasileiro, tratassem de temas a anúncio a oportunidade de tratar de temas mais prá- particular e expressão do interesse nacional”, expli- mais relevante função do Rio Branco seria, entretan- princípio alheios a sua formação “generalista”?

54 55 Dossiê Conselheiro A partir de sua experiência no campo especiali- pecialização deve ser fomentado, Celso crê que os zado da diplomacia comercial multilateral, Celso con- temas técnicos não devem ser confiados apenas a Celso de Tarso sidera que o Itamaraty precisaria refletir com atenção especialistas. A visada ampla e polivalente do diplo- sobre o tema da especialização: “Temos que nos dar mata, fruto da formação humanística, continuará a conta de que o mundo mudou. Pelo menos da déca- fazer a diferença. Apenas de posse dessa perspectiva Pereira da de noventa para cá, os temas em debate nos foros panorâmica será possível ao representante diplomá- internacionais se tornaram cada vez mais técnicos e tico realizar a “arbitragem” entre o interesse nacional Conselheiro Celso de Tarso Pereira, atualmente complexos, de modo que a formação generalista tra- em sentido estrito, técnico, e em sentido lato: “um chefe da Coordenação Geral de Contenciosos, dicional nem sempre será suficiente para lidar com os argumento pode ser bom para um caso específico, frequentou o Instituto Rio Branco, como aluno, novos desafios... Outras áreas da Esplanada – que de- mas péssimo na visão geral dos interesses brasilei- O senvolveram carreiras funcionais estruturadas e bem ros. Isso acontece freqüentemente na OMC, como nos entre 1995 e 1996, quando o curso superior completo já era exigido dos candidatos a diplomata. Suas lem- remuneradas, inclusive na área internacional – dis- casos Embraer, “matérias primas”, frangos, algodão, branças da Academia diplomática são positivas: foi uma putarão temas e espaço com o Itamaraty... A própria etc.”. Seria necessário, portanto, achar o ponto de época de estudo intenso, destacando-se a possibilida- sociedade civil encontra-se melhor organizada e sabe equilíbrio entre a posse de uma percepção ampla do de de contato direto com os chefes da Casa, os interes- exigir mais dos interlocutores diplomáticos”. interesse nacional e o domínio de um nível razoável santes ciclos de palestras e os trabalhos acadêmicos. Aos diplomatas, caberia refletir sobre os -desa de conhecimento técnico, suficiente para intervir com Se havia colegas que não partilhavam de sua opinião a fios atuais e a estar prontos a se renovar. Algumas das competência e substância nos debates. respeito do Instituto Rio Branco, isso talvez se devesse questões prementes diriam respeito ao âmbito de atu- Celso argumenta que há alguns poucos temas es- ao fato de o curso muitas vezes repetir matéria que já ação do Itamaraty e a seus pontos fortes e fracos. Lem- pecíficos em que o aprofundamento real no tema deve- fora estudada para o concurso, ou de ser “menos profis- brando velho preceito aristotélico (“quem quer os fins, ria ser condição sine qua non. “Pode até ser que não op- sionalizante” do que deveria ser, na opinião de alguns. põe os meios”), o Conselheiro conclui: “É preciso definir temos pela maior especialização em temas como meio Após cumprir seus estágios – um período na Em- os objetivos e lutar pelos meios para consegui-los”. ambiente ou comércio internacional. O problema é que baixada em Buenos Aires e outro no Ministério da Jus- Para Celso, o Itamaraty deveria considerar en- do outro lado da mesa estará um interlocutor que conhe- tiça, em obediência à regra então vigente de enviar os corajar certo grau de especialização, haja vista o fato ce não só a linguagem diplomática, mas também a com- diplomatas em formação a outros Ministérios – o “aca- de a curva de aprendizado em um tema técnico ser plexidade técnica do assunto. Quem levará vantagem?”. so” levou-o a ingressar na diplomacia econômica e dos particularmente íngreme – o que não se concilia fa- blocos regionais: sua primeira lotação foi na divisão de cilmente com remoções rápidas e freqüentes, muitas Mercosul. Bem colocado no curso, fez jus, alguns anos vezes para funções não relacionadas ao tema em que o diplomata se especializou. Como solução possível depois, a uma viagem prêmio a Genebra, onde refinou Cláudio Luiz Nogueira Guimarães dos Santos é Médico seus conhecimentos acerca da Organização Mundial do para tal dilema, o Conselheiro propõe “especializar” pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal Comércio, fazendo curso naquela Organização e está- bom número de diplomatas, os quais, mesmo servin- de São Paulo (UNIFESP); Mestre em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP); do em postos não diretamente ligados a sua área de gio em sua divisão jurídica. Em 2001, como Segundo e Doutor em Linguística pela Université de Toulouse, Fran- Secretário, foi lotado na delegação permanente em Ge- especialização, poderiam, ao regressar a Brasília, re- ça. nebra. A estrutura da delegação, insuficiente diante da forçar de imediato a lotação das divisões “técnicas”. [[email protected]] Entre outros modelos, Celso propõe imaginar que tal enxurrada de disputas em que o Brasil então se viu en- Fabiano Bastos Moraes é formado em História pela Univer- volvido, renderam a Celso uma internação por estresse formação tenha início já no Rio Branco, sendo conti- sidade Federal do Pará (UFPA). [[email protected]] e o diagnóstico peremptório de um médico genebrino: nuada na Secretaria de Estado. “Monsieur, tout va mal”. Não obstante achar que o debate sobre a es-

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mento seria, para Gorz, não apenas a matéria-prima A diplomacia envolve certamente um grande da educação e da formação nas profissões intelectu- leque de conhecimentos. É necessário que se domine, ais, mas também a mercadoria de maior valor agrega- como poucos, a temática com a qual se trabalha. Ge- do na atual fase do capitalismo “imaterial” – sendo a neralistas que somos, é ademais necessário que uma indústria do conhecimento o motor central da econo- gama enorme de conhecimentos permaneça latente mia contemporânea. Embora de grande interesse em em nossas cabeças, dado que podemos, em diversos seus desenvolvimentos mais elaborados, semelhante momentos e situações, ser incitados a utilizá-los. Dever- É possível formar um raciocínio serve aos nossos propósitos por razão mais -se-ia entender a diplomacia, assim, como implicando a precisa: a de que a base tradicional da formação do transmissão de um conhecimento de certo tipo, o qual, trabalhador intelectual é a transmissão de conheci- seguindo a linha de raciocínio acima descrita, seria pas- mento, formalizado e acumulável. sível de formalização e transmissão – um diplomata po- É evidente, contudo, que grande parte das pro- deria, portanto, ser formado na dimensão de seu traba- DIPLOMATA? Lucas Pavan Lopes fissões modernas comporta doses semelhantes de sa- lho que envolve o conhecimento. beres e conhecimentos. O professor, por exemplo, deve Acredito ser questionável, porém, que alguma ter o domínio tanto do conteúdo que pretende trans- instituição de formação possa ser capaz de transmitir mbora aparentemente ambiciosa e, talvez, pre- No livro O Imaterial, o pensador francês André mitir aos seus alunos quanto do saber que lhe permite esses conteúdos por completo, e isso principalmente tensiosa, a pergunta que serve de título a este Gorz estabelece distinção conceitual entre o saber e manter interessada uma classe inteira durante o tempo em função das particularidades do ingresso na car- ensaio deve ser entendida de modo restrito. É o conhecimento, cada um com suas particularidades de uma aula. O advogado, do mesmo modo, deve domi- reira diplomática, processo cujas características difi- E nar os conhecimentos atinentes ao seu ofício, sem es- cultam enormemente semelhante transmissão. Em perfeitamente possível que um diplomata se forme ao quanto ao processo de transmissão. Um saber seria, longo de sua muito provavelmente longa carreira. De- em suas próprias palavras, quecer o savoir faire que lhe permitirá ter êxito em uma linguagem clara e direta, o Concurso de Admissão à certo nós, jovens diplomatas, ainda não absorvemos sustentação oral. Na diplomacia, do mesmo modo, o Carreira Diplomática (CACD) é por demais abrangen- certo habitus diplomático que, um dia, se tornará a “antes de tudo uma capacidade prática, um saber diplomático – ou certa arte contida no fazer diplo- te e difícil. Excluídos os seus evidentes efeitos positi- savoir faire que não implica necessariamente nossa própria atitude interior – a nossa disposição do mático – está aliado a uma miríade de conhecimentos vos – de seleção dos mais preparados –, o CACD tem, conhecimentos formalizáveis, codificáveis. A 1 espírito, no dizer de Pierre Bourdieu. Teremos sido, maior parte dos saberes corporais escapa à que devem ser dominados pelo diplomata. paradoxalmente, subprodutos negativos e, talvez por então, formados. Não é desta formação de longo al- possibilidade de uma formalização. Eles não Não obstante, se nos dois primeiros casos men- isso, menos investigados. cance de que aqui se trata. A interrogação à qual se se ensinam, eles se aprendem pela prática, cionados acima – e em outros –, a formação e o exer- Por melhor que seja, por mais nobre que seja o ou seja, no exercício do fazer aquilo que se pretende responder diz respeito a algo de menores cício profissional parecem ter ligação bastante evidente seu corpo de professores, o Instituto Rio Branco (IRBr) quer aprender. Sua transmissão consiste em dimensões: é possível que uma instituição, qualquer apelar à capacidade do sujeito de se produzir (uma escola de medicina deve formar um médico por terá muito pouco a transmitir aos jovens diplomatas, no que seja ela e por melhor que seja ela, forme um pro- por si mesmo. Isso vale tanto para os esportes completo, tanto ao ensinar-lhe os conhecimentos de campo do conhecimento. O CACD produz uma leva de fissional peculiar como o diplomata? Entendo que não como para as habilidades manuais e as artes. que precisa para fazer um diagnóstico correto como jovens (de todas as idades) precocemente bem-suce- O saber é aprendido quando a pessoa o inte- e espero conseguir demonstrá-lo ao final deste ensaio. ao treiná-lo a realizar didos, que acre- grou ao ponto de esquecer que ela teve um Como se forma um profissional? Aliás, dadas dia de aprendê-lo.”3 um procedimento bem- ditam ter já – em as particularidades de nossa carreira, mais interes- -sucedido), no caso da di- tão pouca idade sante seria dizer: como se forma uma pessoa cuja O conhecimento, por outro lado, embora mui- plomacia as associações para a grande profissão está tão intimamente ligada à vida como um to proximamente relacionado ao saber – a história da revelam-se mais comple- maioria – atingido todo? Uma pessoa de quem, por se esperar que con- industrialização seria, sob essa ótica, aquela da pro- xas. Cabe perguntar-se, o apogeu de suas gregue em si o que de melhor existe entre os seus gressiva dissociação entre saberes e conhecimentos assim, se pode alguma capacidades inte- concidadãos, “representa, sendo”, no dizer de Alberto –, é passível de formalização e, portanto, de transmis- instituição formar um di- lectuais. Tendo à da Costa e Silva.2 são sob a forma de conteúdo educativo. O conheci- plomata por completo. época do concur-

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so atingido o que se crê ser o ápice de seu potencial in- forma a que nos esqueçamos que um dia tivemos de É notório que ter contatos pessoais de longa comunidade clássica e para o surgimento da sociedade telectual de reflexão e de memória, são jovens que, não aprendê-la. data em certa divisão (ou em várias) – vantagem am- atomizada, completamente individualizada, o laço co- raro, julgam vão ou repetitivo o conhecimento adquirido Ora, mas se, conforme se sustenta no presente plamente alardeada das recentes “turmas de cem” – é munitário tenha de ser aprendido. O IRBr tem decerto no futuro imediato. Que julgam também vão, compreen- ensaio, não é possível formar um diplomata – ao menos essencial para que se resolvam algumas questões da também uma função exterior, a de mostrar aos outros sivelmente, o esforço enorme em reaver conhecimen- não em uma instituição de ensino formal –, qual seria lida diária. O que não é tão conhecido, entretanto, é – e a de convencer a nós mesmos – que agora somos tos uma vez absorvidos e em dormência plena dentro propriamente a função do IRBr, nobre instância da di- que esse mecanismo é a constante do funcionamen- diplomatas. Mas sua mais importante contribuição, de cada um; e que não farão, consequentemente, novo plomacia brasileira pela qual transitaram e na qual es- to social, em menor ou em maior escala. Organização creio eu, é a de ensinar um laço de pertencimento que esforço necessário à interiorização de todo e qualquer tudaram personalidades de grande relevo na intelectua- alguma, social ou funcional, terá sucesso se não tiver ajudará a todos – diplomatas e instituição, as partes e conhecimento. lidade e na política nacionais? Os anos de IRBr não são por base o que Baruch Spinoza chamava de relações o todo – ao longo de extensas carreiras. Se creio ser, portanto, muito difícil que uma decerto anos perdidos, mas a que propósito servem eles baseadas na “vontade orgânica”.5 É ilusório crer que os Hoje, ao contrário de antes, no Itamaraty como instituição forme um diplomata no que diz respeito aos especificamente? imperativos da impessoalidade fariam da sociedade – na sociedade, é preciso aprender o laço comunitário. A conteúdos que o capacitam a exercitar sua profissão, Creio que, mais do que formar diplomatas, o ou das instituições – um organismo mais funcional: é o “vontade orgânica” deve, paradoxalmente, ser aprendi- no campo do saber diplomático a situação é ainda mais papel do IRBr é o de formar uma turma de diplomatas, próprio laço primário de pertencimento que dá sentido da a duras penas em um mundo fragmentado e extre- particular. Embora o IRBr transmita aos jovens diplo- função de importância tão ou mais significativa do que à experiência institucional e que permite que um corpo mamente diferenciado, em que o indivíduo, e não mais matas preciosas informações acerca da forma de agir a primeira, conforme se procurará argumentar. administrativo se coloque em marcha. a família ou os grupos primários, tornou-se a unidade em situações profissionais e de certas atitudes conve- Um dos temas mais tratados pelos autores O grande paradoxo é que, hoje, talvez tenhamos básica da sociedade. Terá feito muitíssimo o IRBr – e, nientes ao agente diplomático, iniciando o processo de clássicos da sociologia, a distinção entre comunida- de aprender a ser uma comunidade – ou uma “turma” de na verdade, qualquer instituição de formação profissio- diferenciação que fará do jovem diplomata, às vezes à de e sociedade – a Gemeinschaft e a Gesellschaft diplomatas. O que anteriormente já decorreu da própria nal – se ensinar seus formandos a pensar no todo como sua revelia, um diplomata inconsciente, há que se con- de Ferdinand Tönnies4 – é parte fundamental da proximidade sociocultural dos ingressantes na carreira algo maior do que as partes e se inculcar-lhes as bases vir que o saber que se transmite entre as paredes do compreensão do funcionamento de uma instituição diplomática – o que fazia do Itamaraty uma pequena co- de um pertencimento real, que não se funde exclusi- Instituto se faz de maneira incidental. Não constitui a de tão larga história como o Itamaraty. Nenhum dos munidade de egressos da Zona Sul carioca – depende vamente no desejo individual qualquer que seja, mas missão do IRBr dar as condições para que seja interio- grandes autores da tradição sociológica negaria que hoje, em contexto de diferenciação interna e expansão que o ultrapasse. Não se formam diplomatas, no IRBr; rizado o saber próprio à diplomacia. Envolvendo, sim, a sociedade necessita de agrupamentos mais redu- dos quadros, de um intenso aprendizado, talvez o princi- forma-se uma turma de diplomatas. Mais do que os di- algo de artesanal, esse saber não se aprende em uma zidos, fundados em vínculos de real pertencimento, pal e mais importante produto dos anos de IRBr vividos plomatas em si, serão estas pequenas comunidades o academia diplomática: não funciona o IRBr como uma para que possa funcionar a contento. Na sociedade, pelos jovens diplomatas. As turmas mais antigas, reduzi- cimento do funcionamento institucional que permitirá oficina, cuja função é dar ao artesão o ambiente para de modo geral, tais grupos de pertencimento irrefle- das em comparação às de hoje, já entravam na institui- que sobreviva, com o mesmo imperativo da excelência que ele interiorize o saber ligado a seu ofício. tido são a família, os amigos e, em certas culturas, ção sendo uma comunidade – pois que sua proximidade que a guiou ao longo dos anos, uma instituição tradicio- As habilidades próprias ao saber diplomático os conterrâneos. Embora se possa argumentar que na estrutura socioeconômica fazia deles um grupo de nal em uma sociedade em profundo processo de trans- são absorvidas no decorrer de um longo percurso. Os o Itamaraty, por suas características de valoriza- iguais desde o início. Nos dias de hoje, onde cresce a formação e de revisão das tradições. atributos de profissão de exercício tão fino, cujos deta- ção da tradição, de orgulho, de pertencimento e de diversidade, os laços de semelhança que terminarão por lhes são por vezes tão importantes quanto o conteúdo proximidade socioeconômica de seus funcionários, fazer de um grupo de jovens uma turma de diplomatas substantivo do trabalho e nem são sequer percebidos constitui propriamente uma espécie de comunida- deverão ser aprendidos à custa de um longo convívio. Lucas Pavan Lopes é formado em Ciências Sociais pela pelo agente não diplomático, são aprendidos por er- de dentro da sociedade brasileira, esta instituição Não deixa de ser curioso que, em um mundo Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Ciências da Comunicação pela Université de Montréal. ros e acertos cometidos ao longo dos anos, e não em só poderá funcionar de modo desejável se grupos onde sociólogos apontam para o desaparecimento da [[email protected]] instituição formal de ensino. O saber diplomático se primários de associação formarem o seu substrato, aprende pela pedra, pela convivência prolongada com grupos que, para além da frieza institucional, per- 1 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 2 COSTA E SILVA, Alberto da. “Diplomacia e Cultura”. In: O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002, p.22. diplomatas menos jovens, pois que não há oficina diplo- mitam que os mecanismos do serviço cotidiano não 3 GORZ, André. L’immatériel: Connaissance, Valeur et Capital. Paris: Galilée, 2003. Em tradução livre. mática que nos possa permitir interiorizar essa arte de cessem de funcionar. 4 TÖNNIES, Ferdinand. Communauté et Société: Catégories Fondamentales de la Sociologie Pure. Paris: PUF, 1944. 5 SPINOZA, Baruch. L’éthique. Paris: Gallimard, 1994.

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pel de “desmistificar”, sobretudo junto a adolescentes e jovens completamente alheios ao cotidiano diplomá- tico, o funcionamento das negociações multilaterais, Simulações e modelos das grandes conferências internacionais e de parte importante do trabalho de um diplomata. Tem-se torna- do cada vez mais comum encontrar jovens diplomatas das Nações Unidas que afirmam que o interesse por temas internacionais – e, consequentemente, pela própria carreira no Itama- Os diplomatas que brincavam raty – foi fruto direto da participação em modelos das Nações Unidas. de ser diplomatas “Em minha escola de Ensino Médio, em Brasí- lia, havia, todos os anos, uma simulação da ONU – da Rodrigo Wiese Randig qual todos os alunos eram obrigados a participar. Nun- do de forma voluntária por estudantes do curso de gra- ca tinha pensado em cursar Relações Internacionais duação em Relações Internacionais da Universidade ou em ser diplomata, até ser obrigado a representar de Brasília (UnB). radicionalmente, ao ingressarem no Instituto Rio diplomatas. Na recém-ingressa turma 2011-2013 do a África do Sul numa simulação da OMS, no ‘modelo’ A iniciativa despertou enorme interesse desde Branco (IRBr), recém-aprovados no concurso de IRBr, são 15 – de um total de 26 – os alunos que parti- da escola. Foi o começo de meu interesse por política sua primeira edição, trazendo a Brasília estudantes admissão à carreira diplomática, os novos diplo- ciparam de modelos da ONU ao longo de suas gradua- internacional”, afirma Artur Machado, da turma 2011- T universitários de todo o Brasil e de mais de uma deze- matas teriam ainda de esperar um número conside- ções, como organizadores ou “delegados”. 2013 do Instituto Rio Branco. rável de anos antes de, pela primeira vez, serem cha- na de outros países. Desde então, a cultura das “simu- lações” espalhou-se por todo o País: hoje, são dezenas mados de “senhor delegado” ou “senhora delegada”, “Histórico da questão” “Regras de procedimento” sentarem-se atrás de uma placa com o nome de seu as conferências – tanto universitárias quanto para se- cundaristas – que ocorrem anualmente nas cinco re- país e discursarem frente a delegações estrangeiras Simulações acadêmicas de conferências e or- Ao participar de um Modelo, os estudantes assu- giões do Brasil. Muitas instituições de ensino médio e acerca de algum tema de interesse multilateral. ganismos multilaterais já ocorriam antes mesmo da mem o papel de “delegados”. Devem defender, duran- superior possuem seus próprios clubes e associações Guardadas as evidentes diferenças, no entanto, criação da ONU. Na década de 1920, Harvard já orga- te dias inteiros, os interesses e a posição do país que permanentes de simulação e, em diversas escolas nenhuma dessas experiências é completamente estra- nizava, entre seus alunos, simulações da Sociedade lhes tenha sido previamente designado. Para isso, os brasileiras – sobretudo em Brasília –, simulações das nha para a maior parte do atual corpo discente do Insti- das Nações. Desde 1955, a Universidade sedia ininter- participantes devem exercitar habilidades específicas Nações Unidas tornaram-se atividade constante e obri- tuto Rio Branco. Dos 108 alunos da turma 2010-2012, ruptamente edições anuais do Harvard National Model do trabalho diplomático, como pesquisa, negociação, gatória para todos os alunos. exatos 50% participaram, durante o Ensino Médio ou a United Nations (HNMUN), que reúne cerca de dois mil oratória, preparação de discursos e elaboração de do- Apesar da inovação aportada pelo Amun, em faculdade, dos chamados “modelos” – conferências de estudantes universitários a cada edição. A instituição cumentos formais, além da capacidade de trabalhar 1998, Sara Walker – professora de inglês diplomático simulação de órgãos da ONU e de demais organismos organiza também, desde 1992, o World Model United em grupo e resolver conflitos. do Instituto Rio Branco – recorda que simulações de internacionais. Nations (WorldMUN), cujas conferências são a cada Em sua maioria, no entanto, os jovens diploma- negociações multilaterais já vinham sendo realizadas Com base em depoimentos de alunos das tur- ano sediadas em um diferente país. Cambridge, Pue- tas que falaram à Juca sobre seu envolvimento com no IRBr há décadas. “Já em 1977 – ou em 1978, não mas desde 2006 – que indicam que percentual similar, bla, Taipé, Pequim, Sharm El-Sheikh, Atenas, Heidel- simulações acadêmicas não se limitaram a participar tenho certeza – tivemos aqui no Instituto uma simula- com tendência crescente, ocorreu em todas as turmas berg e Belo Horizonte são algumas das cidades que já apenas como delegados – a grande maioria dos entre- ção da Conferência das Nações Unidas para Usos Pací- que passaram pelo IRBr na última meia década –, a sediaram o WorldMUN, recebendo, por uma semana, vistados relata também o envolvimento direto na orga- ficos do Leito do Mar e do Fundo dos Oceanos”, conta turma 2010-2012 do IRBr pode ser considerada o exa- cerca de dois mil estudantes de todo o mundo. nização de conferências. a professora. to turning point, o “ponto de intercessão” a partir do No Brasil, a primeira conferência de simulação “Como qualquer conferência de grande porte, Ainda assim, o Amun e as demais simulações qual a participação prévia em simulações acadêmicas acadêmica das Nações Unidas foi o Amun – o Americas a organização de um modelo das Nações Unidas não criadas desde então desempenharam o importante pa- passou a ser antes regra que exceção entre os novos Model United Nations – fundado em 1998 e organiza- é tarefa fácil”, lembra Adam Jayme Muniz, da turma

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2006-2008 do IRBr. “A equipe deliberação acerca dos pleitos As conferências do Amun, por exemplo, são divulgadas organizadora deve trabalhar do Kosovo e da Abcásia para sua anualmente no portal da Organização, e, em reiteradas por meses a fio, em regime vo- admissão na ONU – ou, ainda, ocasiões, os secretários-gerais Koffi Annan e Ban Ki- luntário e paralelamente às ati- pode-se encenar uma futura cri- -moon enviaram mensagens oficiais de felicitações e vidades discentes, de modo a se internacional, a ser discutida de votos de sucesso aos organizadores e aos partici- garantir que a conferência acon- por um Conselho de Segurança pantes do evento. Ademais, em reconhecimento à qua- teça com excelência logística e reformado, do qual o Brasil seja lidade dos artigos acadêmicos produzidos para servi- acadêmica”. membro permanente. rem de guias de estudo aos delegados, o Escritório da Do lado “acadêmico”, os Uma vez escolhidos os ór- UNESCO no Brasil procedeu à publicação, como livros, alunos organizadores devem es- gãos que serão simulados, os das obras coletivas do Amun e da SiNUS, seu “projeto- colher quais serão os organismos, estudantes organizadores do -irmão” – também organizado por graduandos da UnB, comissões e conferências simu- modelo têm de delimitar a agen- porém tendo estudantes secundaristas como público- lados. “Órgãos tradicionalmente da dos cinco dias de debate e -alvo e o português como língua oficial. simulados incluem o Conselho de escolher as regras procedimen- Os escritórios locais do PNUD, do PNUMA e Segurança, a Corte Internacional tais que serão empregadas. Nos muito sobre política externa e desenvolvi habilidades do UNIFEM também contribuíram diretamente com o de Justiça e o Conselho de Direitos meses anteriores à realização de falar em público e de negociação, além de ter apren- Amun, por meio de apoio institucional e do custeio de Humanos da ONU, mas também da conferência, devem ainda dido um inglês mais formal. Já como organizadora de gastos com material de papelaria e aluguel dos equipa- são comuns simulações da UNC- dedicar-se à produção de um ar- um modelo, o UFRGSMUN, aprendi a lidar com muitas mentos de áudio e som usados durante a conferência. TAD, da OMS, da OMC, da OIT, do tigo acadêmico acerca de cada questões práticas, como elaboração de projetos, busca Desde as primeiras edições do Amun, igualmen- FMI e do Banco Mundial, entre outros”, explica Adam. um dos temas que virão a ser discutidos. Os artigos de patrocínio, veiculação na mídia, gestão de orçamento te importante foi o apoio recebido das embaixadas Mesmo nos autodenominados “modelos da são enviados antes da conferência aos delegados, que e de pessoas – o que é extremamente válido para qual- estrangeiras sediadas em Brasília, muitas das quais ONU”, porém, são comuns simulações de órgãos e os usam como “guias de estudo” em sua preparação. quer carreira. Era como gerir uma pequena empresa!” oferecem material decorativo e de divulgação aos es- organismos alheios ao sistema das Nações Unidas – Com frequência, ademais, os organizadores da confe- tudantes que representam seu país na simulação; já como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a rência reúnem todos os artigos produzidos a cada ano Apoio institucional houve, inclusive, casos em que a Embaixada demons- Liga dos Estados Árabes, a União Africana, a Unasul, o e os publicam como obras coletivas. trou interesse em revisar os “documentos de posição” G20, ou mesmo o Comitê Olímpico Internacional (COI). A organização das conferências em geral envol- Apesar de os modelos e simulações tradicional- elaborados pelos estudantes, de modo a garantir que Também é comum a realização de simulações “his- ve também muito trabalho administrativo: elaboração mente desenvolverem-se independentemente da pró- os documentos refletissem corretamente as posições tóricas”, de órgãos desativados (como o Conselho de da identidade visual da edição, divulgação, recepção pria ONU, a Organização é, cada vez mais, fomentadora do país acerca do tópico debatido. Tutela das Nações Unidas ou o Conselho da Liga das e transporte dos delegados, cerimônias de abertura de projetos do tipo – enviando material e palestrantes a Algumas embaixadas em Brasília foram além Nações) ou de conferências e sessões já transcorridas e encerramento, coquetel, coffee-breaks, material a conferências em todo o mundo, e cedendo, anualmen- em seu apoio, literalmente abrindo suas portas para o (como a Eco-92, Bretton Woods, a Rodada Uruguai, cri- ser entregue a cada delegado, locação de material de te, parte de sua sede em Nova York para a realização evento. A cada ano, desde 2008, diferentes embaixa- ses no Conselho de Segurança durante a Guerra Fria apoio técnico para os diretores dos comitês, eventos de um modelo estudantil local. Em 2009, a ONU deu das em Brasília têm aceitado sediar a tradicional “Fei- ou o Congresso de Viena de 1815). Por fim, também sociais (realizados à noite, após as sessões do dia), um passo adiante, criando seu próprio modelo institu- ra das Nações”, evento no qual os delegados trazem existem as simulações inteiramente fictícias – que, atualização do portal eletrônico e das mídias sociais cional, o Global MUN, que, aberto a estudantes univer- material informativo, comida e roupas típicas dos paí- ainda assim, podem desempenhar importante papel do evento, bem como a publicação de um jornal a ser sitários de todo o mundo, teve todas as suas sessões ses que estão representando. As embaixadas de Por- pedagógico e acadêmico. Pode-se simular, por exem- entregue diariamente aos participantes. no próprio Palais des Nations, em Genebra. tugal, da Coreia do Sul, do Reino Unido e do Egito são plo, uma conferência sobre a exploração internacional Helena Jornada, da turma 2010-2012, resume: A ONU também provê, desde 1998, importante as representações em Brasília que, nos últimos quatro do Ártico após o degelo das calotas polares, ou uma “Como delegada e como diretora acadêmica, aprendi apoio institucional às conferências realizadas no Brasil. anos, aceitaram receber os quase 300 estudantes uni-

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versitários que anualmente participam do Amun. Ou- de abertura no auditório do Palácio do Itamaraty, e, João Vargas, turma de 2006-2008: modelos posteriormente, em diversas funções, mas tras embaixadas, como a da Guiana, envolvem-se na em 2000 e 2001 e entre 2008 e 2010, todas as ses- As simulações das Nações Unidas foram sempre no campo dos Direitos Humanos. divulgação do evento em universidades em seu país e sões do evento tiveram lugar no Instituto Rio Branco. importantíssimas na minha faculdade por constituírem a A experiência então acumulada permitiu que proveem apoio logístico aos estudantes estrangeiros Em 2009, o então Ministro de Estado Celso Amorim ponte entre as teorias sobre o sistema internacional e o me aprofundasse no assunto, o que me levou a fazer “chão da fábrica” desse sistema. Graças aos “modelos”, mestrado na área e, já no Itamaraty, a escolher a Divisão que vêm a Brasília para participar da conferência. participou pessoalmente do evento, respondendo por aprendi, antes de entrar no Itamaraty, sobre a influência de Direitos Humanos (DDH). Somente percebi como as Nos últimos anos, as simulações organizadas quase duas horas a perguntas feitas pelos cerca de da personalidade dos delegados na negociação; o simulações são fiéis às discussões reais ao participar, por alunos da UnB têm obtido interesse e apoio tam- duzentos estudantes presentes. habitual descompasso entre as discussões retóricas como diplomata, de uma sessão do Conselho de bém de diferentes instâncias do Governo brasileiro, Rafael da Mata, da turma 2010-2012, sintetiza na sala de reunião e a negociação da resolução no Direitos Humanos da ONU. Ao receber o crachá e sentar corredor; a necessidade de traduzir interesses e atrás da plaqueta, a sensação de poder é a mesma por meio de seus três Poderes: o Supremo Tribunal bem a importância que os modelos – e o apoio dado posições em texto que possa efetivamente resolver os experimentada em qualquer “modelo”, com uma grande Federal, por exemplo, autorizou reiteradas vezes a a iniciativas desse tipo pelo Itamaraty – tiveram em problemas. As simulações me deram uma ideia muito diferença: você é o delegado do Brasil, com todos os realização, em seu plenário, de simulações univer- sua vida: “os Modelos das Nações Unidas foram a clara do que é ser diplomata. No entanto, o legado mais desafios e as possibilidades que isso representa. sitárias de cortes e tribunais nacionais e interna- grande paixão da minha vida universitária. A pri- importante foi o número de bons amigos que fiz. Acabei trabalhando com vários deles no Itamaraty - inclusive, Thomaz Napoleão, turma de 2009-2011: cionais. De forma meira participação muito apropriadamente, em negociações na ONU. Modelos das Nações Unidas não apenas similar, o Legislati- ocorreu no Amun estimularam meu apetite pelas Relações Internacionais; vo brasileiro apoia 2001, realizado no Rafael Prince, turma de 2010-2012: eles me prepararam para manejar situações reais e ativamente o “Pro- Instituto Rio Bran- A experiência dos “modelos” foi fator determinante complexas da rotina nas Embaixadas. A linguagem em minha opção pela carreira diplomática. Até os 15 diplomática não é novidade para quem estava jeto Politeia”, simu- co. Voltei para Na- anos de idade, não tinha a menor ideia do que fazia habituado a working papers, position papers, draft lação da Câmara tal fascinado com um diplomata. Foi quando um professor sugeriu que resolutions e outros documentos de modelos. Conversas dos Deputados, o mundo dos MUNs participássemos de uma “simulação”. Peguei um e negociações de coquetel, terror de alguns secretários organizada por alu- e sonhando em me terno emprestado e fui representar o Iêmen em uma em início de carreira, são familiares para ex-modeleiros reconstituição do Conselho de Segurança durante a – assim como os igualmente temidos discursos públicos. nos do curso de tornar diplomata”. invasão do Kuaite. A experiência foi inesquecível, e Ciência Política da Nos anos seguin- soube, desde então, que este era o meu caminho. Filipe Nasser, turma de 2006-2008: UnB. Desde 2009, tes, Rafael partici- Nos anos seguintes, continuei “brincando de Não há dúvidas sobre a contribuição pedagógica das as simulações pou de 15 outras diplomata”: em 20 outras ocasiões, representei países simulações das Nações Unidas para futuros diplomatas tão diversos quanto Camarões, China ou França, além da e outros operadores da política internacional. Participei de ocorrem no próprio conferências de si- Anistia Internacional, e, em simulações menos ortodoxas, uma série de modelos da ONU entre 1999 e 2003. Apesar Congresso Nacio- mulação, no Brasil o Império Britânico às vésperas da Primeira Guerra de reconhecer o componente lúdico subjacente à prática, o nal: os debates se dão nas salas das Comissões e no e no exterior. “Foi com grande emoção que entrei no Mundial e os “Turcomenos do Iraque” na Unrepresented saldo intelectual e pessoal foi extremamente positivo: além Plenário da Câmara – que provê, ademais, apoio téc- Rio Branco como diplomata, em 2010, pois a von- Nations and Peoples Organization (UNPO). do próprio treinamento, amizades para a vida toda, noitadas Essas oportunidades foram muito valiosas para memoráveis, o sentimento de pertencer a uma geração. nico e logístico aos estudantes. Apoio institucional tade de prestar o concurso foi despertada naqueles aprender sobre outros povos, treinar oratória, redação, O início da minha carreira na diplomacia guarda aos “modelos” é também tradicionalmente prestado mesmos corredores do Instituto, em um longínquo técnicas de negociação e fluência em inglês. Mas o relação direta com a participação prévia em modelos pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência Amun de 2001”, resume. legado mais importante foi os amigos que fiz em todo o da ONU. Escrevi meus primeiros discursos diplomáticos da República – e, evidentemente, pelo Itamaraty. Ao depoimento de Rafael, somam-se os de vá- Brasil, muitos dos quais futuros colegas no Itamaraty. não para o Itamaraty, mas para subsidiar minhas algo ingênuas intervenções em simulações. Recentemente, tive Segundo ex-organizadores do Amun, o apoio do rios outros ex-“modeleiros”, hoje jovens diplomatas, Juliana de Moura Gomes, turma de 2009-2011: oportunidade de participar de um exercício conjunto entre Ministério das Relações Exteriores foi essencial, des- que confirmam que as conferências de simulações Participar de Modelos das Nações Unidas os governos do Brasil e dos Estados Unidos que reproduzia de os primeiros anos do projeto. Em diversas ocasi- e modelos das Nações Unidas tiveram, para eles, foi essencial para definir, no campo das Relações um cenário de cooperação hipotético entre os dois países. ões, a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) reali- função de uma verdadeira “pré-escola diplomática”, Internacionais, em qual área eu atuaria. Escolhi ser Não é só a diplomacia fictícia que simula a diplomacia real. delegada da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Às vezes, também acontece o contrário. zou a diagramação, publicação e impressão dos guias uma preparação prévia – e, em muitos casos, deter- no Amun 2003, somente pela possibilidade de debater de estudo escritos pelos estudantes. Até o presente minante – para seu posterior ingresso na academia Rodrigo Wiese Randig é formado em Relações Internacionais pela o tema do genocídio. Foi quando percebi que tinha Universidade de Brasília (UnB). ano, dez das edições do Amun tiveram cerimônias diplomática brasileira. interesse especial pelo tema. Voltei a participar de [[email protected]]

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quista a amizade de um jovem diplomata de futuro chefe de gabinete do Ministro das Relações Exte- Estrangeiros no Rio Branco promissor. E ganhamos nós, alunos do IRBr, pois, riores de Côte d’Ivoire (2010). nas palavras de Marcos Henrique Sperandio, ora- Os ex-alunos do IRBr buscam levar para seus cooperação para a formação de diplomatas dor da Turma 2002-2004, os colegas estrangeiros países o modelo de excelência na formação diplo- nos proporcionam “a primeira e mais direta opor- mática do qual participaram no Brasil. O paname- Rafael Prince Carneiro tunidade de aprendermos a olhar o outro”. nho Flavio Mendez Altamirano (1979-1980) foi Até 2011, os países que mais enviaram estu- Diretor-Geral da Carreira Diplomática e Consular m 12 de agosto de 2011, 19 embaixadores como bolsistas (beneficiários de bolsa do governo dantes para o IRBr foram: Cabo Verde (20), Guiné- da chancelaria de seu país (hoje é Chefe do Ce- apresentaram suas credenciais à Presidenta brasileiro), seja como intercambistas (que não re- -Bissau (17), São Tomé e Príncipe (13), Bolívia (12), rimonial). O costarriquenho Marco Vinicio Vargas da República, em uma cerimônia no Palácio cebem bolsas, mas cujos países oferecem, em ba- Argentina (11), Suriname (11), Angola (8), Haiti (8), Pereira (1979-1980) propôs a criação do Instituto E Gabão (7), Equador (6), Honduras (6), Côte d’Ivoire do Serviço Exterior de seu país (e foi Vice-ministro do Itamaraty. Para a maioria desses representan- ses recíprocas, vagas para diplomatas brasileiros tes estrangeiros, era a primeira visita à sede do Mi- em suas academias diplomáticas). Os estrangei- (5) e Paraguai (5). De modo a preservar a memória das Relações Exteriores de 2003 a 2006). nistério das Relações Exteriores. Três deles, porém, ros são, em regra, provenientes de países em de- desses colegas que conviveram com sucessivas Aqueles que deixam a carreira diplomática, já estavam bastante habituados à Casa do Barão. senvolvimento, especialmente de países de língua gerações de diplomatas brasileiros e hoje se en- muitas vezes, tornam-se funcionários de organis- Mesmo vindo de países tão distintos quanto Mali, portuguesa. Destaca-se também o frequente inter- contram espalhados pelo mundo, buscamos listar mos internacionais ou figuras importantes na polí- Guatemala e Suriname, os embaixadores Cheikhna câmbio de estudantes entre o IRBr e o Instituto del todos os estudantes estrangeiros que já passaram tica de seus países. O venezuelano Gerardo Thie- Keita, Manuel Barrillas e Marlon Hoesein comparti- Servicio Exterior de la Nación (ISEN), a academia lham de um passado comum a todos os diplomatas diplomática argentina. brasileiros: foram alunos do Instituto Rio Branco. Os alunos estrangeiros frequentam o IRBr Desde 1976, ano em que foi implementado o por dois semestres, assistindo às mesmas aulas Plano de Reforma e Transferência do IRBr, passa- e palestras do Curso de Formação oferecido aos ram pelo Instituto mais de 200 diplomatas estran- brasileiros que ingressam na carreira diplomática, geiros, provenientes de mais de 50 países, seja além de aulas de português. Os estrangeiros não lusófonos chegam a Brasília alguns meses antes do início das aulas, para começar os estudos do idioma. Mais recentemente, foi incluída no currícu- lo dos estrangeiros a disciplina de Leituras Brasi- leiras, que lhes permite contato com os clássicos da cultura nacional. A experiência de estudos no Brasil costuma ser determinante para muitos dos ex-alunos do IRBr. Boa parte deles volta ao Brasil para trabalhar nas embaixadas de seus países ou mesmo para chefiá-las. E ainda que não retornem ao Brasil, nunca deixam de ser contatos importantes para os diplomatas brasileiros que sirvam em suas ca- pitais, ou que os encontrem em um terceiro país ou em um fórum multilateral.

O investimento na formação de diplomatas Divulgação OEA estrangeiros é um exemplo típico de cooperação Sul-Sul, na qual todas as partes envolvidas se be- pelo IRBr e tentamos descobrir por onde andam len Graterol (1979-1980) foi membro de um painel neficiam. Ganham as relações bilaterais, que se alguns deles. da OMC (Guatemala - cimento) e hoje é Conselhei- fortalecem com esses intercâmbios. Ganha o país Muitos dos estrangeiros egressos do IRBr ro do Instituto de Formação e Cooperação Técnica beneficiado, o qual, ainda que careça de recursos vêm a ocupar cargos de destaque nos seus paí- da OMC. O guineense Macário Marques Perdigão materiais, poderá enviar um diplomata para se ses de origem, como Winston Lackin (turma 1985- Jr. (1979-1980) é coordenador-geral do UNODC formar em uma das mais prestigiosas academias 1986), chanceler do Suriname (veja a entrevista em Dacar desde 2008. Jorge Daniel Spencer Lima diplomáticas do mundo. Ganha o Brasil, que con- na página seguinte), e Allou Allou (1985-1986), (1980-1981), conhecido como “Scapa”, é um in-

Divulgação OEA 69 Dossiê Dossiê

fluente político, além de ser um dos maiores em- gente tinha aulas de português todos os dias, no eu era músico há muitos anos (e eu toco ainda Fiquei dois anos no Suriname, fui para Bru- presários de Cabo Verde. Carmen Silvana Sandó- Cenfi [Centro de Formação Intercultural, da CNBB], hoje!). Ele me apresentou à banda. Fizemos um xelas em 1996, como Conselheiro, onde fiquei val Landívar (1981-1982) é advogada, professora no início da L2 Norte, onde se fazia o treinamento ensaio às quatro da tarde e às sete e meia nos até 2001, e voltei para Paramaribo. E agora estou e foi candidata ao Tribunal Constitucional nas elei- para padres e freiras. apresentamos em uma recepção na embaixada aqui, como Ministro das Relações Exteriores. ções judiciárias da Bolívia em outubro de 2011. da França. Meu amigo me ajudava, fazendo a O resultado completo desta pesquisa, que Quando começaram as aulas, o senhor já falava tradução: “agora vamos tocar tal música...”. Foi E, como Ministro, quais são as suas perspectivas catalogou 212 nomes de ex-alunos do IRBr, está português ou ainda tinha dificuldade? uma experiência muito legal e a gente continuou quanto às relações entre Brasil e Suriname, que disponível no site da Juca. Certamente, ainda Eu entendia um pouquinho, mas não tudo. tocando junto durante os dois anos em que eu parecem estar se aproximando cada vez mais? há omissões imperdoáveis, mas esse primei- Continuei tendo aulas de português diariamente estava estudando. É o que estou falando para todo mundo: nos- ro levantamento pode servir de base para uma durante os dois anos. Nossa banda era uma mistura de música afri- sa política externa é orientada para nossa região. pesquisa mais sistemática, que permita ao IRBr cana, caribenha e brasileira. E, de repente, a ban- Temos uma política de integração com o Caricom, e aos diplomatas brasileiros manter contato com Quais são suas lembranças do curso, das aulas, da começou a fazer sucesso. No início, era uma com o Mercosul, com a França, que faz fronteira essa extensa rede de ex-alunos que se teceu ao dos colegas? O que lhe marcou naquela época? banda de estudantes, a gente tocava muito em com o Suriname. O Brasil deve ser nosso principal longo de 35 anos. Foi uma época muito interessante e impor- festas universitárias, recep- parceiro nas relações inter- tante para mim. Aprendi muita coisa e fiz muitos ções nas embaixadas, e, nacionais, porque somos Entrevista: Winston Lackin amigos. A minha turma tinha cerca de dez estran- de repente, deu certo. Em vizinhos. Nos anos 1980, geiros, muitos vindos de países africanos como determinado momento, o recebemos muita ajuda Winston Lackin, chanceler do Suriname, foi Senegal, Gana, Cabo Verde, Quênia e Zimbábue, filho do , Pedro, do Brasil na área técnica, bolsista do IRBr entre 1984 e 1986, e bateris- além de mais ou menos 30 brasileiros. Acho que que infelizmente já faleceu, de telecomunicações e ta da banda Obina Shok, que fez muito sucesso minha turma foi uma das que mais tiveram alunos ouviu a banda tocando em militar. Hoje o Brasil é um no Brasil entre o fim dos anos 1980 e início dos estrangeiros. uma festa e comentou a dos BRICs, que são mui- 1990. A banda – cujo nome significa “o caminho Eu me encontrei hoje [na Cúpula do Merco- respeito com seu pai. E en- to importantes. E o Brasil da dança”, em miene, língua banta do Gabão – sul, em 17/12/2010] com alguns colegas e estou tão fomos convidados para também é o porta-voz do gravou dois discos em 1986 e 1987, misturando indo para Nova Iorque, onde vou encontrar outros fazer uma apresentação no Suriname nas instituições ritmos e línguas da África e da América Latina. colegas que conheci no IRBr: diplomatas da Bolí- Rio, onde tudo começou: de Bretton Woods, como o Sua música de maior sucesso, Vida, contou com via, do Peru e de países africanos. Gilberto Gil e nos Foto: Louis Jay Suckle BID, o Banco Mundial e o a participação especial de Gilberto Gil e de Gal ajudaram muito, e a gente acabou gravando um FMI. Na área de infraestrutura, temos grandes pro- Costa. Quem foram os colegas que o senhor encontrou disco com a participação deles. A filha do Gilberto jetos: a estrada que estamos planejando, ligando Lackin permaneceu no Brasil até 1994, aqui? Gil, Nara, depois veio a tocar com a gente por qua- o sul do Suriname ao norte do Brasil, vai criar mui- quando retomou a carreira diplomática, e hoje Encontrei o colega e amigo Roberto. O [Em- tro anos. A banda fez tanto sucesso que, quando tas oportunidades econômicas e vai nos permitir ocupa o cargo de Ministro das Relações Exterio- baixador] Simões era da turma anterior, foi meu eu terminei o IRBr e voltei para o Suriname, não maior acesso aos nossos recursos naturais, que res, justamente em um momento de maior apro- contemporâneo no IRBr. Foi bom revê-los. aguentei, fiquei oito meses lá e voltei para o Brasil. estão, justamente, no interior do país. ximação com o Brasil. Tive a honra de acompa- Fiquei tocando mais quatro anos com a banda. O Suriname é membro da Unasul, porque so- nhar o Presidente Bouterse e o Ministro Lackin Conte-nos sobre a banda Obina Shok. Como sur- mos parte da América do Sul, mas também temos durante a LX Cúpula do Mercosul, em Foz do giu a ideia? Quem o convidou? Quando voltou ao Brasil, você ficou na Embaixa- uma história colonial comum com os países do Cari- Iguaçu, em dezembro de 2010. Lackin, que con- Esta é uma história interessante. A banda já da do Suriname em Brasília? com. E um dos nossos objetivos, nas relações exte- serva o carisma e a ginga de um músico quase existia quando eu cheguei, mas era uma banda Não, eu me afastei da carreira, fiquei no Rio, riores, é fazer uma ligação entre o Caricom e a Una- brasileiro, concedeu-me uma entrevista, em por- de estudantes da UnB [Universidade de Brasília]. só me dedicando à música, porque a banda estava sul. Pela nossa posição geográfica, queremos ser a tuguês fluente, a bordo do Embraer 190 “Santos Quase todos eram filhos de diplomatas africanos, fazendo muito sucesso. Eu voltei para o Brasil em ponte entre o Norte e o Sul. Por isso, a relação com Dumont”, da Força Aérea Brasileira, entre Foz do e também havia alguns brasileiros, como o Sérgio 1987 e fiquei tocando aqui até o final de 1990, vol- o Brasil é muito importante para nós. Nossa política, Iguaçu e Paramaribo. Couto, que serve na Embaixada do Brasil no Chi- tei para o Suriname e fui lotado, em 1991, como nossa economia e nossa política externa dependem le [removido em 2011, para Havana]. No dia em primeiro-secretário da Embaixada do Suriname muito do que a gente vai fazer com o Brasil. Ministro, quando o senhor estudou no IRBr? que vim ao Brasil para estudar, cheguei a Belém em Brasília. E continuei tocando com eles. Fiquei Comecei em 1984 e terminei em 1986. Na- às seis da manhã, estava em Brasília às oito e no Brasil até 1994, como diplomata. Rafael Prince Carneiro é formado em Direito pela Universi- quela época, o curso do IRBr era de dois anos. Che- meia, conheci a banda ao meio-dia e à noite eu já dade de São Paulo (USP) e Mestrando em Diplomacia pelo guei uns quatro meses antes, para fazer aulas de estava tocando com eles. Tinha um colega meu Foram, então, quase dez anos no Brasil. E depois Instituto Rio Branco (IRBr). português, pois eu não falava nenhuma palavra. A do Suriname que já estava no IRBr e sabia que do Brasil, você foi para onde? [[email protected]]

70 71 com a família para a Suíça. Lá, travou contato com o vassoura, ali um trabalhador esquivo, mais além Expressionismo e conheceu a obra de Alfred Kubin, uma prostituta; à beira-mar um grupo de pescadores. que o marcaria. De volta ao Rio aos 19 anos, tornou- Seria demais chamar esses errantes anônimos de se ilustrador de jornais e livros. Como artista, fez dos sujeitos modernos: “o lugar por excelência do convívio subúrbios da cidade reformada por Pereira Passos o humano – a cidade – mais oprime do que liberta”.3 objeto de sua atenção. Inexistentes cidadãos e ação comunicativa, tampouco Uma poética As xilogravuras de Goeldi são escuras, com se desenhará o espaço público. Na cena portuária incisões precisas marcando, pelo branco, os elementos da gravura sem data Urubus, não há sequer sinal de da sombra da composição. Embora predomine a cor preta, os riscos pessoas, talvez afugentadas pela sinistra assembléia feitos pela goiva brilham com intensidade. Nas palavras de várias daquelas aves, que campeiam ameaçadoras de Carlos Drummond, é como se Goeldi, vindo de uma à frente do casco soçobrado de um navio. cidade vulturina, fixasseum novo sol, noturno. Gravadas Há nas obras de Goeldi um “transe austero”, na madeira, criaturas condenadas ao mundo.2 que acompanha a conversão da Era do Progresso em Goeldi Em suas gravuras (e também em seus desenhos), solidão e desamparo.4 Como no belo desenho Ventania, Luiz Feldman as ruas nada têm da alegria que ocorreria ao incauto da década de 1930, a natureza (de resto tão festejada atribuir à cidade famosa por seu carnaval. Em cenas em nosso país) é hostil e o homem, desabrigado. Daí a invariavelmente graves, o que se vê são restos de vida: força simbólica do guarda-chuva, acessório que, “muito uma cama sem colchão, uma mesa despejada, um mais que protegê-lo, encerra o homem em seu dilema armário torto, um vira-lata desinteressado. existencial”, como assinala Ronaldo Brito em ensaio Transitam pelo espaço urbano ora um vendedor, recente dedicado à mais famosa gravura de Goeldi, ora um ladrão; aqui uma louca brandindo uma Chuva, de 1957.5 Oswaldo Goeldi - Sem título, circa 1945 (Imagem: Associação Artística Cultural Oswaldo Goeldi)

último capítulo de Casa-grande & senzala os corpos das negras – às vezes meninas de dez descreve um cenário que já não é exatamente anos – que constituíram, na arquitetura moral do Oo colonial. Surgem instituições públicas, patriarcalismo brasileiro, o bloco formidável que higienistas, multiplicam-se as escolas, ganham defendeu dos ataques e afoitezas dos don-juans importância as ruas. O patriarcado urbaniza-se. Em a virtude das senhoras brancas.”1 uma das passagens que retrata mais vivamente o lado sombrio desse novo estado de coisas, Gilberto Freyre O escritor pernambucano apresentaria sua trata da prostituição: análise desse cenário de pobreza urbana já em 1936, com Sobrados e mucambos. Mas, para estas linhas, “Em meados do século XIX, reinando sobre o não é de ordem sociológica o interesse despertado por Brasil Sua majestade o imperador D. Pedro II, um esse novo e triste quadro. homem tão casto e puro, (...) as ruas do Sabão – Aquelas ruas do baixo meretrício, bem como hoje, desaparecida, com a construção da avenida quantas vielas mal iluminadas, casas depauperadas, Presidente Vargas – e da Alfândega eram ainda mercados humildes ou praças desoladas formam a piores do que o Mangue carioca: escravas de matéria prima da obra do maior gravador de nossa dez, doze, quinze anos mostrando-se às janelas, arte moderna, Oswaldo Goeldi (1895-1961). Dar breve seminuas; escravas a quem seus senhores notícia de sua produção e da atenção que ela segue e suas senhoras (geralmente maitresses de inspirando na arte contemporânea, pela menção a maison) obrigavam – diz-nos um escrito da uma obra recente de Nuno Ramos, é o propósito da época – “a vender seus favores, tirando desse presente – e confessamente diletante – incursão no cínico comércio os meios de subsistência”. Nas campo da crítica. ruas da Bahia, diz-nos Vilhena, referindo-se aos Já se notou a ironia de que artista com tal últimos anos da vida colonial, que era um horror: temática fosse filho de um naturalista que viera ao “Libidinozos, vadios e ociosos de hum e outro Brasil a convite do Império para catalogar as riquezas sexo que logo que anoitece entulhão as ruas, naturais do país. e por ellas vagão, e sem pejo nem respeito a Nascido no Rio de Janeiro, Goeldi morou em ninguém, fazem gala de sua torpeza...” (...) Foram Belém do Pará até os seis anos, quando o pai retornou

72 Oswaldo Goeldi - Urubus, circa 1929 (Imagem: Associação Artística Cultural Oswaldo Goeldi) 73 Nuno Ramos - Bandeira Branca, Bienal de São Paulo de 2010

Para isso, vale recordar a instalação Bandeira Branca, exposta na Bienal de São Paulo de 2010. A obra celebrizou-se pelos protestos (mais ou menos civilizados) contra a presença de urubus no espaço da instalação, que ocupava o vão central do Pavilhão da Bienal. Uma enorme tela de isolamento demarcava todo o volume do vão, ocupado por três maciços de granito e areia queimada comprimida, nos quais se incrustavam caixas de som e dos quais subiam postes à semelhança de chaminés. Ao som das canções “Bandeira branca”, “Boi da cara preta” e “Carcará”, três urubus voavam pela grande e inusitada gaiola (revogada a autorização para sua presença ainda durante a Bienal, os animais foram devolvidos ao cativeiro onde viviam). Esse complexo mantinha um “contraponto ambivalente” com a construção que o cercava.16 Contra a velocidade, leveza e sensualidade dos parapeitos e Oswaldo Goeldi - Ventania, circa 1930 (Imagem: Associação Artística Cultural Oswaldo Goeldi) colunas internos do belo prédio de , o negro pesado, calcinado e gradeado da obra. Contra O transe é magnificado por uma individuação como na lição de Paul Klee, “a arte não reproduz o o desenvolvimentismo solar e otimista (no qual aliás é incompleta: como na alucinação de um bêbado, seres visível, mas torna visível”.12 inexcedível nossa capital federal), o agouro vulturino. vivos e objetos inanimados se tornam assemelhados ou Aquilo que ganha visibilidade em Goeldi é Nos dois sentidos da palavra, um Brasil menos radiante intercambiáveis.6 É um traço marcante de certas gravuras bastante diverso do que se encontra em um artista – mas também mais exigente. e desenhos de Goeldi que, atrás de pedestres indiferentes, hegemônico no modernismo brasileiro, como foi Esse escurecer da modernidade remete, Foto: Edouard Fraipont as casas expressem uma violenta angústia por suas Cândido Portinari. Há, na postura destemida, nas naturalmente, a Goeldi. O inquietante contraste imposto janelas e portas, feitas olhos e bocas espantados. mãos poderosas, na digna humildade e na feição pelas peças e aves ao vão central da Bienal faz parte do 1 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família Ao mesmo tempo em que revela a beleza plástica ensolarada de uma figura como a retratada pelo artista que já foi identificado como a imagem nacional própria brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, desses párias, destinados ao esquecimento pela de Brodowski em Mestiço, de 1934, uma perspectiva da obra de Nuno Ramos: travada e espinhosa. Ciente 2003, p. 538. 2 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: civilização moderna, a obra de nosso artista descortina afirmativa sobre a humanidade brasileira. Portinari de que referências nacionais de fácil legibilidade e de Editora Nova Aguilar, 2002, p. 431. 7 um mundo fraturado física e psiquicamente. O nexo (como Freyre) buscou – e forneceu – uma resposta à teor estável e congruente correm o risco de encobrir a 3 NAVES, Rodrigo. Goeldi. São Paulo: Cosac & Naify, 1999, p. 10. íntimo entre os prostíbulos da zona portuária e a problemática da autolegitimação cultural do Brasil.13 realidade heterogênea e cindida do país, Ramos evita 4 BRITO, Ronaldo. Experiência crítica. São Paulo: Cosac & Naify, moralidade patriarcal, apontado por Gilberto Freyre, pode Como fica dito acima, a recuperação de anônimos partir de uma idéia holista de Brasil.17 No enfrentamento 2005, p. 297. ser ampliado pela constatação de outros lados da mesma e transgressores por Goeldi deriva de uma poética da de “instâncias brutas de nossa realidade” (para usar 5 BRITO, Ronaldo. O vermelho e o negro. Serrote, n. 9, novembro de 2011, p. 191. moeda nos demais seres goeldianos condenados ao sombra que torna visível uma fratura na sociedade a expressão de Rodrigo Naves), sua produção filia-se, 6 RAMOS, Nuno. Para Goeldi. São Paulo: Marca D’Água, 1996, p. 18. mundo: “Este não é um mundo arcaico, e sim o lado da moderna – brasileira ou não. Ao contrário, para manter com clareza, à tradição que volta a Goeldi. 7 BRITO, Experiência crítica, loc. cit. sombra do mundo moderno, ali onde a razão iluminista o contraste com Portinari, este retoma elementos Mais além, esse legado chega talvez à observação 8 BRITO, Op. Cit., p. 298. segregou uma inesperada e inédita barbárie”.8 populares do mundo do trabalho e da pobreza com crítica de a respeito dos escritores 9 BRITO, Ronaldo. “A nossa sombra”. In: ROESLER, Silvia (Ed.). Oswaldo Goeldi. Rio de Janeiro: Instituto Cultural The Axis, p. 30. Não é fortuita essa idéia de um “lado da sombra”, deliberado sentido político e, como se sabe, rendimento para quem o espírito nacional só se reconhece em 10 RAMOS, Op. Cit., p. 19. 14 como registra mais de um observador. Tudo se passa oficialista. Nota-se em Portinari, mas também em obras que tratem de assunto manifestamente local. De 11 NAVES, Op. Cit., p. 14. como se a luz “empregasse a força física para rasgar o outros grandes artistas do período, como Tarsila do Goeldi e – por que não arriscar dizê-lo – de Nuno Ramos, 12 KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Rio de Ja- véu da escuridão”.9 Na luminosidade das gravuras de Amaral, uma intenção do nacional de todo ausente em parece ser possível cobrar, com sucesso, aquele “certo neiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 43. Goeldi, “o negro bloqueia a luz que vem de trás, e o que Goeldi. O projeto de uma identidade nacional pela arte sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e 13 Cf. MERQUIOR, José Guilherme. As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 270-276. vemos é aquilo que vaza por suas frestas, pelos sulcos “não só se via de saída comprometido com a obtenção do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos 14 ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da do desenho”.10 Uma “membrana negra nos separa de de significados facilmente legíveis (...) como também no tempo e no espaço”.18 arte brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 90-113. uma outra realidade, esta sim solar e luminosa”.11 precisou reduzir o país a um conjunto de características 15 NAVES, Op. Cit., p. 12. As passagens acima apontam para um elemento estáveis e congruentes”.15 Desprovida de tal programa, Luiz Feldman é formado em Relações Internacionais pela 16 RAMOS, Nuno. Bandeira branca, amor. Folha de S. Paulo, 17 de outubro de 2010, Caderno Ilustríssima, p. 5. propriamente criador na obra de Goeldi. Na constituição a poética de Goeldi se tornava mais abrangente. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC- MG) e Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia 17 NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna dessa fratura entre a existência solar e a de sombra, É neste ponto que se pode tecer rápida e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 385. Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). as gravuras em apreço não mimetizam uma realidade consideração sobre a atualidade de Goeldi, lançando 18 Machado de Assis. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova [[email protected]] anterior à ação do artista e independente dela. Aqui, vistas à obra de Nuno Ramos. Aguilar, 1997, Vol. III, p. 804.

74 75 Desse modo, Adoniran, em contraste com outros constrangimentos da reorganização do espaço público, sambistas, pode ser considerado um compositor de sam- maior será a atualidade e a precisão dos relatos de Adoni- Adoniran ba popular por excelência: em sua origem, na linguagem ran, o verdadeiro poeta das transformações. que emprega, nos episódios que narra, nos bairros que Nem tudo nos escritos do “poeta do povo”, no en- descreve. Diferentemente do samba carioca, testemunha tanto, são transformações. Em muitos sambas, Adoniran do contato entre o quase médico e o pedreiro simplesmente narra um evento corriqueiro ou uma prática Barbosa Angenor de Oliveira (“”), os quais produziram, em habitual de determinado personagem: tudo isso, porém, a perenidade do poeta das transformações parceria, canções como “Tenho um novo amor” e “Rir”, o sem deixar de representar o povo por meio de letras que, maior representante do samba em São Paulo, Adoniran embora frequentemente expressem uma situação angus- Felipe Ortega e Guilherme Quintão Barbosa, surge da mescla de si mesmo, da síntese de tiante ou trágica, transmitem a ideia de humor ao exacerba- obra de Adoniran Barbosa é, em vários aspectos, em 1932, longe da famí- suas múltiplas características, do popular com o popular. rem o elemento coloquial da linguagem. É assim que Ado- mais intrigante do que frequentemente se pensa: lia, foi encanador, pintor Constituído por essa mistura e contemporâneo de niran narra, por vezes melancolicamente, eventos como a seria simples defender a natureza única do perso- de paredes, balconista, uma São Paulo alterada a cada dia, Adoniran Barbosa uti- morte da amada (“Iracema”), a briga com um amigo (“Sam- A lizou-se de diversos recursos para narrar a nova realidade ba do Arnesto”), o cotidiano árduo e a ignorância de um nagem de João Rubinato pelo simples argumento de ser serralheiro e garçom. Na ele um sambista filho de imigrantes italianos, sem a in- capital, João Rubinato vislum- da população pobre da cidade. A chegada da modernidade operário (“Torresmo à milanesa”) ou a simples traição de fluência, em tese, dos elementos da cultura afrodescen- brou no rádio o meio de atingir à grande metrópole paulista e a modificação da paisagem uma cuíca com um cavaquinho (“Mulher, patrão e cacha- dente de onde se originou o samba. A peculiaridade do seu maior sonho: tornar-se famoso. urbana impactavam a vida das pessoas comuns em seus ça”). Em “Saudosa maloca”, essa ideia também se expres- compositor paulista também resulta da forma com que Embora não tivesse vocação aspectos mais privados. Adoniran não deixou de relatar sa: a tristeza de uma história que narra a derrubada de um suas canções, embora produzidas há mais de meio sé- para atuar ou cantar (João tinha uma “anti-voz”, nas pala- essa nova realidade ora com humor, ao narrar a chuva que barraco é abrandada pela irreverência com que a narrativa culo, continuam a descrever o cotidiano do povo de São vras do escritor e crítico literário ), foi no levava a cama do João (“Aguenta a mão”); ora com saudo- se desenvolve em trechos como “edifício arto”, “casa veia”, Paulo, município cujas transformações socioeconômicas exercício paralelo das duas funções que Rubinato desenvol- sismo, ao explicar como um edifício alto substituiu o barra- “tristeza que nóis sintia” e “nóis nem pode se alembrá”. foram igualadas, em intensidade, por poucas cidades do veu as principais características de seu maior personagem, co que dividia com o Mato Grasso e com o Joca (“Saudosa Adoniran não era, portanto, um narrador-obser- mundo ao longo do século XX. Adoniran Barbosa, pseudônimo criado em 1935, mesmo maloca”); ora com a tristeza de saber que uma simples de- vador oriundo do povo e distante dele: era, sim, próximo Outra indagação acerca da obra de Adoniran se ano em que venceu o concurso de marchinhas carnavales- molição poderia afetar as recordações mais afetivas da Eu- do mundo narrado, no qual depositava toda a carga de refere ao nível de penetração de sua linguagem popular, cas de São Paulo com a canção “Dona Boa”. No rádio e na gênia (“Viaduto Santa Ifigênia”). Em grande medida, essas parcialidade e de sentimentalismo típicos da figura de a qual, embora avessa às mais diversas regras do portu- TV, representou personagens cômicos como o mulherengo letras reproduzem a mistura de sentimentos de Adoniran, um narrador-personagem. Fazia-o por meio de vários re- guês culto – a começar pela mal feita concordância verbal Zé Conversa, o negociante judeu Moisés Rabinovich, o imi- que contemplava com agonia as vigorosas transformações cursos – a começar pelo apego caricaturalmente exacer- de suas letras –, atingiu a classe média e, por vezes, a grante italiano Giuseppe Pernafina e, principalmente, Charu- que acometiam diversos pontos da capital paulista, como bado ao seu time do coração, o popular Corinthians, ou elite erudita paulistana e brasileira. A genialidade de Ado- tinho, por meio do qual empregou linguagem popular típica a Praça da Sé, um de seus lugares favoritos para matar o “Curíntia”, como pronunciava –, mas principalmente pelo niran, em síntese, não está na beleza de suas canções, do bairro do Bixiga e demonstrou sua paixão pelo Sport Club tempo e deleitar-se na cachaça. Com a construção do me- uso de uma linguagem que, ao exagerar na informalidade, cujos arranjos são facilmente superados pelos de Heitor Corinthians Paulista, cuja imagem de “Time do Povo” ajudou trô na Sé, o poeta queixou-se da morte da praça, cujo espí- adaptava-se com maestria a seus propósitos. Fazia-o tam- dos Prazeres, de Lamartine Babo e de Noel Rosa, mas a difundir justamente no momento em que as emissoras de rito pacato dera lugar a um simples local de passagem de bém mediante a harmonia proporcionada pela mistura do em sua figura caricaturalmente popular e na incrível pere- rádio atingiam o ápice de seu alcance entre as massas. pessoas frias e apressadas. cavaco com o batuque, que conferia a suas canções tom nidade de suas narrações, que, além de se aproximarem No cinema, Adoniran chegou a fazer atuações Assim, a atualidade da obra de Adoniran Barbosa mais jocoso do que a nostalgia transmitida pelo genial do povo na linguagem, representam a vida de milhões de dramáticas, como em “O cangaceiro”, filme premiado no pode ser encontrada justamente no fato de que o meio arranjo de cordas de João Gilberto na interpretação de pessoas que, ainda hoje, se identificam com os persona- Festival Internacional de Cannes, em 1953. Na música, a urbano – e, particularmente, São Paulo – continua a ser “Saudosa maloca”. Fazia-o, finalmente, por meio da cria- gens e com os lugares descritos em suas letras. parceria com os Demônios da Garoa estimulou Adoniran a composto por espaços e por paisagens que se transfor- ção de situações que nunca esteve próximo de vivenciar, Nascido em Valinhos, no interior de São Paulo, em compor sambas populares sobre o cotidiano dos paulista- mam à medida que também se alteram as formas de ocu- em lugares nos quais sequer havia pisado. 6 de agosto de 1910, João Rubinato logo se mudou com nos e a paisagem dos diversos bairros da cidade. Adoniran pação do território. Em função desses processos, a obra Em “Trem das onze”, por exemplo, Adoniran oferece sua família, primeiro para Jundiaí, depois para Santo André Barbosa, assim, surge como uma mistura de diversas carac- de Adoniran continua a ser esclarecedora do cotidiano a interpretação do samba aos Demônios da Garoa, os quais, e, finalmente, para São Paulo. A despeito do tradicionalis- terísticas acumuladas durante a trajetória de João Rubinato de milhões de pessoas, especialmente dos mais pobres, a princípio, não concordam em cantar a desventura de um mo da família Rubinato, a figura do malandro se revelou rumo à fama: como ator no rádio, comediante; como ator no que, sem meios para criar alternativas de vida diante des- rapaz sem irmãos que se despedia da amante a fim de voltar logo na adolescência de João, que, como entregador de cinema, dramático; como cantor, popular; como entregador sas mudanças, estão, naturalmente, mais sujeitos aos para casa, onde sua mãe o esperava. Apesar de todas as marmitas, perambulava pela cidade e surrupiava uma par- de marmitas, observador; como morador de “malocas” em traumas deixados pela expansão urbana desordenada. dúvidas, os Demônios decidem encarar o desafio e vão em te da comida destinada a seus clientes. Já em São Paulo, uma São Paulo em transformação, crítico social. Quanto mais a vida privada das pessoas se submeter aos frente com a canção, que, como não poderia deixar de ser, 76 77 eternizou mais um canto da cidade de São Paulo. Dessa vez, apenas eterniza os bairros de São Paulo, mas também con- a referência era ao bairro do Jaçanã, na Zona Norte da capi- forta todos os brasileiros que, acuados pelas transformações tal – mais por necessidade poética, ressalte-se, do que por constantes do ambiente urbano, encontram na narração Cinema e Política qualquer sentimento especial do compositor. Prova disso é o bem-humorada de eventos corriqueiros uma forma de forta- fato de que, certa vez, quando perguntado sobre a razão de a lecer seu vínculo emocional com lugares marcantes, mas que letra dizer “em Jaçanã” em vez de “no Jaçanã”, modo como não existem mais. No plano social, também se pode pensar os moradores se referem ao bairro, Adoniran confessou seu que o reconhecimento de Adoniran como um dos mais impor- desconhecimento total da região em uma resposta nada di- tantes sambistas brasileiros ganha força a partir da década reflexões plomática: “E eu sei lá onde fica essa porcaria?!”. de 1980, quando, após anos de busca de liberdade política De qualquer maneira, o bairro imortalizou-se e, gra- pela sociedade brasileira, a população pobre volta a ocupar José Roberto Rocha Filho ças à canção, Adoniran garantiria definitivamente seu lugar os espaços públicos com a finalidade principal de reclamar m um primeiro momento, ao traçar relações en- um rigor analítico, mas igualmente a uma sensibilidade na história do samba. Entre os diversos prêmios angaria- melhorias nas suas condições de vida por meio da ênfase em tre cinema e política, é quase incontornável – e particular, à crença, enfim, de que ambas as caracterís- dos pela música – já devidamente gravada pelos Demônios elementos da expressão popular, como a música. decerto muito cômodo – aproximá-los a partir de ticas são indissociáveis em qualquer exercício intelec- e lubrificada pelo tradicional “Cas Cas Cas” do grupo –, a Seja como for, a obra de Adoniran, assim como todos Euma fórmula simples que os localiza ora como subs- tualmente honesto que se preze. maior conquista de “Trem das onze” foi o concurso oficial os demais clássicos da cultura nacional, sempre estará pre- tantivo, ora como adjetivo, em termos bastante reco- Se política é o termo utilizado para designar do carnaval carioca. E não poderia haver melhor momento sente nas memórias individual e coletiva dos brasileiros. Em- nhecíveis como política cinematográfica ou cinema as atividades humanas que se referem à condução da para cativar o público do Rio. No aniversário de 400 anos bora descreva tantas transformações, sua obra é tão perene político. As ideias que alicerçam ambos os conceitos, polis – modernamente, do Estado –, política cinema- da cidade, em 1° de março de 1965, uma segunda-feira como o chão sobre o qual elas se processam: “minha música no entanto, não são aproximadas com essa facilidade, tográfica remete à atuação estatal diante da produção de carnaval, o Rio homenageava, quem diria, o “túmulo do é o chão falando, o chão de terra batida que fica nesses bair- mas a partir de uma dinâmica em que se modificam cinematográfica de determinado país. No caso do Bra- samba” e consagrava “Trem das onze” a canção, conside- ros descalços de São Paulo. Basta escuitá no chão qui o povo mutuamente e a qual permite conclusões não raro con- sil, o papel do Estado no fomento da produção local rada por muitos, mais conhecida do samba brasileiro. pisa e traduzi essa linguage. Faço samba prá pobre. Comigo flitantes. Se, por um lado, as acepções da política como passa, historicamente, por medidas tangenciais, como Como era de se esperar, o samba de Adoniran Bar- num tem dessa de granfino. Afinal, quase todos meus amigos campo de saber ou de atividade humana amontoam-se o estabelecimento de cotas de ocupação nas salas de bosa foi, inicialmente, objeto de resistência em diversos são criolos, corintianos, e como é que eles ia me entendê si de acordo com os interesses mais diversos; por outro, cinema e por outras mais imediatas, como a produção meios, especialmente nos de elite. Em São Paulo, essa me metesse a falá difice, todo cheio de esses e erres?” o cinema é igualmente múltiplo, ao mesmo tempo pro- e distribuição direta de filmes por meio de órgãos es- objeção foi mais branda, visto que a classe média paulis- cesso industrial, vetor ideológico de largo alcance e for- tatais dedicados ao setor. É certo que, não importa o tana se identificava, em certa medida, com a descrição de Felipe Afonso Ortega é formado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ma popular de expressão artística. grau de influência estatal na atividade, o jogo político regiões pelas quais também transitava, como o Centro, o Mestre pela mesma instituição. As reflexões que seguem partem dessa premissa – sua lógica, suas práticas, seus vícios – estende-se, Jaçanã, o Bixiga, a Mooca, o Brás e até mesmo o Guarujá [[email protected]] e estão pautadas por uma formação cinematográfica di- naturalmente, à elaboração da política cinematográfica (“Samba italiano”). Em contraste, o ceticismo da elite ca- letante em que, em meio às leituras acerca da história brasileira, para o bem e para o mal. rioca, evidente nas críticas de ao uso Guilherme de Abranches Quintão é formado em Ciência Políti- do cinema nacional, se confundem análises acadêmicas Oficialmente inventado em 1895, o cinema go- indevido da língua portuguesa por Adoniran em “Samba ca pela Universidade de Brasília (UnB). [[email protected]] da relação entre Estado autoritário e classe cinemato- zou de rápida expansão nos anos que se seguiram, ini- do Arnesto”, começou a arrefecer apenas com o convite de gráfica e biografias exuberantes, como a de José Mojica cialmente como espetáculo lúdico e, posteriormente, Aracy de Almeida para que Adoniran musicasse os versos Fotos cedidas por Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa Marins, o Zé do Caixão, escrita por Ivan Finotti e André como arte narrativa. No entanto, apenas a partir do seu de Vinicius em “Bom dia, tristeza”. A adesão plena à obra Barcinski; e segundo a qual o valor político de A Batalha reconhecimento como meio de comunicação de largo de Adoniran Barbosa surge no fim de sua vida, entre as de Argel (La battaglia di Algeri, 1966. Dir.: Gillo Pontecor- alcance, cujo valor estratégico não podia ser ignorado décadas de 1970 e 1980, quando seus clássicos “Tiro ao vo), celebrado filme sobre o processo de descolonização pelo Estado, começaram a surgir políticas governamen- álvaro”, “Abrigo de vagabundo”, “Aguenta a mão” e “Des- da Argélia, empalidece diante da força anárquica de Eles tais a ele dedicadas. Se a atuação estatal inicialmente pejo na Favela” são interpretados, respectivamente, por Vivem (They Live, 1988. Dir.: John Carpenter), ficção cien- se limitava à censura de caráter moral e à coleta de Elis Regina, Clara Nunes, Djavan e Gonzaguinha. tífica sobre uma invasão extraterrestre. tributos provenientes da atividade, após a Revolução Nesse sentido, não deixa de ser intrigante o questio- É a partir desse prisma, portanto, que se busca de 1930, diretrizes estatais firmes a respeito do cine- namento de como as canções de Adoniran Barbosa rompe- traçar um panorama histórico das políticas cinemato- ma tomaram contornos mais nítidos. Entre as medidas ram a barreira do preconceito social e linguístico a que suas gráficas brasileiras e analisar o cânon do que se con- adotadas no Governo Getúlio Vargas, a obrigatoriedade letras haveriam de estar sujeitas. Pode-se imaginar, no plano vencionou chamar cinema político. Mais ainda, quais- da exibição de filmes educativos nacionais criou uma psicológico, que sua obra, ao descrever “atmosferas líricas quer ponderações sobre esses temas só interessam demanda que respondeu aos anseios da nascente cheias de espaço”, nas palavras de Antonio Candido, não a partir do momento em que se submetem não só a classe cinematográfica nacional. 78 79 Posteriormente, o interesse do Estado pelo ci- A retomada da produção cinematográfica nacio- vez que as regiões com maior potencial consumidor lebres obras de Vittorio De Sica – Ladrões de Bicicleta nema como ferramenta pedagógica levaria à criação nal só viria a acontecer no esteio das leis federais de in- são imediatamente contempladas com grande parte (Ladri di Biciclette, 1948) – e de Luchino Visconti – A do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) em centivo fiscal, em especial a Lei Rouanet (Lei 8.313/93) dos projetos financiados. A valorização da diversidade Terra Trema (La Terra Trema: Episodio del Mare, 1948) 1936, que se somava aos esforços em utilizá-lo como e a Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93), que previam me- étnica e regional, princípio de política cultural previsto – identificadas ao movimento. Ignora-se, assim, meio instrumento de propaganda, enfim institucionalizados canismos por meio dos quais o setor privado poderia na Constituição, é ignorada, seja pela inexistência de século de história cinematográfica, período reduzido a uma vez estabelecido o Departamento de Imprensa e não somente reverter impostos devidos ao investir na uma distribuição equitativa dos investimentos, frutos uma massa indistinta de ingenuidade ou, mais natural, Propaganda (DIP), em 1939. O braço do DIP dedica- área cultural, mas igualmente deduzir parte do valor – não é demais lembrar – da isenção de impostos fe- de desonestidade ideológica. Processo levado adiante do ao cinema exercia a censura prévia, de forma que do imposto a pagar. O financiamento indireto da pro- derais, seja pela completa omissão de contrapartidas com êxito por parte da esquerda europeia do pós-guer- nenhum filme prescindia de certificado de autoriza- dução cinematográfica, por meio da renúncia fiscal, é quanto ao acesso dos brasileiros em geral aos filmes ra, em especial a italiana, o estabelecimento do cine- ção emitido pelo órgão para ser lançado, além de ser o maior sustentáculo da política cinematográfica brasi- realizados com recursos públicos. ma político enquanto gênero limita-o à agenda desse o responsável pela produção do Cinejornal Brasileiro, leira atual, e qualquer discussão em torno de eventuais Os avanços, por vezes descoordenados, da Agên- grupo partidário e ao papel de instrumento barato de exibido obrigatoriamente, entre 1938 e 1946, em to- modificações nesse modelo enfrenta oposição acirrada cia Nacional de Cinema (Ancine) e da Secretária do Au- difusão ideológica. dos os cinemas do território nacional antes da atração e agressiva, em especial quando se prevê maior envol- diovisual (SAV) – órgão do Ministério da Cultura – em Há diretores que se enquadraram à perfeição nes- principal. A construção da identidade nacional brasilei- vimento estatal na área. busca de ocupar o vácuo institucional no tocante à ses moldes, construindo obras, bem intencionadas ou ra, projeto caro ao Estado varguista, não dispensaria o Grosso modo, por um lado, o temor do dirigismo política cinematográfica brasileira, devem passar, ne- não, de cunho francamente panfletário. Gillo Pontecor- potencial agregador do cinema. cultural justifica-se historicamente, uma vez que a pre- cessariamente, pelo aprimoramento do atual modelo vo, Giuliano Montaldo e Costa-Gavras pareciam acredi- Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a deca- sença do Estado no setor foi tão mais forte quanto mais de incentivo à produção. Decerto, toda iniciativa nesse tar que a pobreza estética de seus trabalhos seria legi- dência do Estado Novo, os órgãos que representavam autoritário era o governo, tendo prontamente recuado sentido deve ser discutida à exaustão dentro de uma timada pela nobreza de sua causa. Outros nomes ide- o intervencionismo do antigo regime foram desmante- com o fim desses regimes. Por outro lado, salvo arris- ampla lógica de política cultural de Estado. O rechaço ologicamente simpáticos acabaram inseridos a fórceps lados, entre eles o DIP, o que gerou um vácuo institu- cados contorcionismos retóricos, resta difícil ignorar o automático a esses avanços, porém, mais parece de- nesse grupo, ainda que suas obras se insurjam violenta- cional quanto à política cinematográfica. Nova investi- aprofundamento institucional e a crescente legitimida- notar interesses velados na manutenção desse siste- mente contra qualquer redução utilitária, caso de direto- da estatal só ocorreria após a implantação do Regime de da democracia brasileira nas últimas duas décadas. ma do que medo de dirigismo cultural. A França, por res como , Roberto Rossellini e o já cita- Militar, com a criação do Instituto Nacional do Cinema Inserir a discussão de um novo marco para a política meio da atuação incisiva do Centre National du Ciné- do Luchino Visconti. Valia-se deles mais como símbolos (INC), em 1966, e de sua sucedânea, a Empresa Bra- cinematográfica nesse quadro democrático é essencial ma et de l’Image Animée (CNC), órgão subordinado ao estáticos do que como criadores de uma obra dinâmica sileira de Filmes (Embrafilme), em 1975. Auxiliada por não só pela defasagem do atual modelo, surgido em Ministério da Cultura, mostra que uma política cine- – revolucionária, até –, tratamento similar àquele que, medidas como maior controle fiscal sobre os exibido- um contexto de falência generalizada do cinema brasi- matográfica robusta e de resultados expressivos não no início do século, enquadrava Sergei M. Eisenstein no res, reserva de mercado para filmes nacionais e one- leiro, mas também por suas claras distorções. é necessariamente contrária à lógica democrática. Em seio do realismo socialista, na União Soviética. ração de filmes estrangeiros importados, a Embrafilme É certo que as referidas leis foram responsáveis verdade, pode e deve reforçá-la. Considerando o poder político a proeminência produziu e distribuiu filmes com considerável êxito. por aumentos exponenciais de investimentos na área O cânon do cinema político é comumente deli- de um homem sobre outro, mediado por uma estrutu- Utilizando-se de uma lógica de cooptação de ar- cultural e, em particular, na produção de filmes. Con- neado ao redor de obras que lidam diretamente com a ra governamental ubíqua mais ou menos robusta, uma tistas similar à utilizada durante o Governo Vargas, o tudo, é igualmente certo que a permissividade com exposição das desigualdades sociais ou das infâmias relação entre autoridade e obediência, pautada pela Regime Militar garantiu a legitimidade da Embrafilme que se faz uso de seus mecanismos gerou um descom- de governos despóticos, tanto contra minorias no inte- força, resta improvável que um cinema dito político – com orçamentos generosos e relativa autonomia. Com passo entre o aumento quantitativo de recursos e sua rior de suas fronteiras, quanto contra outros povos. Um ou pior, politizado –, possa dirigir-se ao tema com enfo- a crise econômica dos anos 1980 e a incapacidade do aplicação qualitativa, considerados os preceitos cons- conjunto particular de procedimentos formais – câmera que único. Uma abordagem estanque, fossilizada, seria Estado em ampliar os investimentos na Embrafilme, titucionais que regem a política cultural. Transferiu-se pretensamente documental, cortes secos, frontalidade contrária, enfim, ao próprio movimento natural de toda no entanto, a empresa não só perdeu competitividade, uma série de responsabilidades para o setor privado, dos planos – e linhas de força conceituais – romantiza- arte e de todo ato político. Em Economia e Sociedade, como também se tornou incapaz de regular o mercado que naturalmente orienta seus investimentos por meio ção dos excluídos, denúncia violenta de instituições po- Max Weber aponta para a impossibilidade de uma defi- cinematográfico. Enfim, com o drástico encolhimento de uma lógica mercadológica. De saída, o interesse em líticas falidas ou das realidades por elas perpetuadas nição meramente teleológica da política: “Não é possí- do amparo estatal à cultura no governo Fernando Collor vincular as marcas das empresas investidoras a pro- – formariam o que se entende como cinema político vel definir um grupo político, nem tampouco o Estado, de Melo, foi extinto todo o aparato estatal voltado à po- jetos de forte apelo popular ou destinados a públicos- enquanto gênero reconhecível. indicando o alvo da sua ação de grupo. Não há nenhum lítica cinematográfica. A Embrafilme teve suas ativida- -alvo estratégicos limita as possibilidades de captação O equívoco dessa aproximação conceitual reve- escopo que os grupos políticos não se tenham alguma des encerradas em 1990, lançando no vazio toda uma de projetos de cunho experimental. la-se cristalino a partir do momento em que parece vez proposto.” No cinema, não seria diferente. classe de profissionais e artistas que dependiam de A concentração dos investimentos em cultura bastá-la o cinema produzido a partir de meados da Tomando um exemplo contemporâneo, a natural sua existência e inaugurando um período de estagna- nas áreas mais desenvolvidas do país segue uma lógi- década de 1940, em particular após o despertar so- facilidade em identificar os documentários de Michael ção do cinema brasileiro. ca utilitária reforçada pelas leis de incentivo fiscal, uma cial representado pelo Neorrealismo Italiano e as cé- Moore como filmes políticos depreende-se de sua filia-

80 81 ção à linhagem descrita, uma vez que se dedicam a retra- enquanto arte e da política enquanto prática; uma dife- tar a falência moral do Estado capitalista, mesmo se para rença não de ideologia, mas de sensibilidade. Este não O Futebol, a II Guerra tanto apele para efeitos cômicos que se apoiam em re- poderia estar mais distante daquele, em que o afã de duções grosseiras da realidade a que se propõe retratar. demonstrar supera em muito o rigor do que se mostra, Em contrapartida, a obra de Clint Eastwood comumente e em que há muito mais interesse na ideia de povo que e os Ítalo-brasileiros em São Paulo passa ao largo de quaisquer discussões de cunho políti- nas pessoas em si. Dessa forma, diretores ideologica- Eduardo Moretti co, salvo para tachá-lo de reacionário. Não obstante, seu mente apartados encontram-se tanto no abjeto quanto brem-se as cortinas, e começa o espetáculo”, Getúlio Vargas passou a utilizar o Pacaembu para realizar Gran Torino (2008) permanece o grande filme político no sublime: atualmente, a robustez do enfoque político diria Fiori Gigliotti, naquele 20 de setembro de as cerimônias em comemoração ao Dia do Trabalhador, em norte-americano da última década, um complexo tratado de Eastwood só encontra par nas irrequietas crônicas 1942, caso já houvesse iniciado sua carreira de substituição ao estádio do Vasco da Gama, no Rio. sobre os valores conservadores de um país, seja como autobiográficas de Nanni Moretti, uma das figuras mais “Aradialista. O espetáculo que ocorreria no Estádio Municipal Com a importância que o futebol adquiriu na época, mácula reacionária ou como fonte de renovação. destacadas da esquerda italiana. da cidade de São Paulo ou Pacaembu – posteriormente cha- a paixão nacional tornou-se alvo das medidas nacionalistas A agressividade com que Moore aborda Charlton Baseado no exposto, enfim, é inevitável propor mado Paulo Machado de Carvalho, em homenagem ao che- de Vargas, sobretudo, com a entrada do Brasil na II Guerra Heston para ilustrar cabalmente sua tese ao final de Ti- não só novo cânon do cinema político, mas novo olhar, fe da delegação brasileira na vitoriosa campanha das Copas Mundial ao lado dos Aliados, em agosto de 1942. No con- ros em Columbine (Bowling for Columbine, 2002) revela capaz de identificar o vigor político de filmes outrora in- de 1958 e de 1962 – escondia por detrás de suas cortinas texto de combate às forças do Eixo, as agremiações espor- muito a respeito dos procedimentos a que se rende a suspeitos. De minha parte, não vejo tratados mais incisi- uma história que acabara de ser mudada por motivações po- tivas estabelecidas por imigrantes, principalmente alemães líticas de ordem nacional e internacional. A II Guerra Mundial e italianos, sofreram as consequências da conjuntura inter- tradição de cinema político a que ele se afilia pronta- vos sobre a degeneração da sociedade norte-americana impactaria decisivamente na comunidade ítalo-brasileira, in- nacional. Várias leis de cunho nacionalista foram criadas mente, com seu inconformismo quase adolescente e que Cão Branco (White Dog, 1982. Dir.: Samuel Fuller) e clusive nos times de futebol da cidade de São Paulo. no âmbito esportivo, mesmo antes da adesão definitiva do uma queda pelo sensacionalismo. Em cerimônia de pre- O Despertar dos Mortos (Dawn of the Dead, 1978. Dir.: Muito se fala sobre a inter-relação entre política e Brasil aos Aliados. O Decreto-Lei 3.199, de 14 de abril de miação na qual era homenageado, Eastwood expressou George A. Romero). Paralelamente, nenhum outro filme futebol, sobretudo na década de 1970, quando da conquis- 1941, ao estabelecer o Conselho Nacional de Desportos, seu descontentamento quanto ao fato dizendo, entre me parece trazer análise tão rica da alienação política ta do tricampeonato mundial pelo Brasil, e do sentimento bem como a base da organização dos desportos em terri- dentes: “Michael, if you ever show up at my front door e moral no Brasil quanto O Bandido da Luz Vermelha ufanista que despertou. É preciso recordar, contudo, que, tório nacional, determinou, por exemplo, que as diretorias with a camera, I’ll kill you”. Após as risadas da plateia, (1968. Dir.: Rogério Sganzerla). Por fim, dificilmente o já nos anos de 1930 e 1940, tal sentimento podia ser no- das entidades desportivas seriam compostas de brasileiros algumas nervosas, arrematou: “I mean it.” Nada mais fenômeno revolucionário do século XX foi retratado com tado no âmbito esportivo. A participação exitosa da sele- natos ou naturalizados e seus conselhos deveriam consti- natural: são homens e, consequentemente, artistas de maior ímpeto que em Os Violentos Vão para o Inferno (Il ção na Copa do Mundo de 1938, conquistando o terceiro tuir-se de, ao menos, dois terços de brasileiros. Técnicos estirpes muito diferentes. Mercenario, 1968) e Vamos Matar, Companheiros (Va- lugar da competição, havia despertado o nacionalismo na estrangeiros só poderiam ser contratados com autorização A abordagem de Eastwood descende de certa mos a matar, compañeros, 1970), faroestes spaguetti população brasileira. Os jogos haviam sido transmitidos ao do Conselho Nacional de Desportos. tradição do cinema americano de gênero, em especial de Sergio Corbucci. vivo pela rádio, conquistando enorme popularidade. De ori- Em setembro de 1942, o Conselho publica porta- das obras de John Ford e Raoul Walsh, que une clareza O terreno a desbravar é vasto e este texto não gem humilde, o jogador Leônidas da Silva, conhecido como ria proibindo que eventos esportivos tornem-se locais para 1 narrativa, concisão de relato e naturalidade na reflexão realiza mais do que uma tímida incursão. Seu êxito de- Diamante Negro, voltara da Copa na condição de herói na- “manifestações de nacionalidades” , medida que teria cional, demonstrando a possibilidade de integração social impacto direto nas agremiações esportivas de origem, so- política. Nela, nunca se perde de vista que os grandes pende diretamente da capacidade de estimular novas e nacional por meio do futebol. Em abril de 1940, inaugu- bretudo, alemã e italiana. Ao sul do Brasil, região sob forte temas políticos podem – na verdade, devem – ser abor- investidas, desprovidas da estreiteza de olhar do senso rava-se o Estádio Municipal do Pacaembu, que viria a ser influência da migração alemã, havia grande tradição de dados a partir de pequenas realidades humanas, uma comum e dispostas a reconhecer que não só aos filmes palco de manifestações cívicas e que ficou conhecido por fundar clubes e associações como as sociedades de tiro, vez que só existem enquanto estão refletidas no coti- cabe a complexidade política característica do mundo, ser um estádio monumento. A partir de 1944, o presidente de canto e música e de esporte. Segundo Prodanov e Ker- diano das pessoas, na interação entre seus corpos e o como apontado, mas igualmente à nossa maneira de ber, essas sociedades: mundo que os circunda. O cinema, não custa lembrar, é encará-los. Deke Thornton, personagem de Robert Ryan a arte superficial por excelência: qualquer pretensão de em Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, 1969. “(...) eram muito fortes do ponto de vista da profundidade deve partir de um registro de superfície. Dir.: Sam Peckinpah), em certo momento fala: “What I participação e do envolvimento [da comuni- Enfim, o Estado, a autoridade e os valores em que am- like and what I need are two different things”. Uma vez dade] e foram instituídas já na origem e for- bos se apoiam só conservam sua complexidade a partir disposto a olhar de perto a confluência entre política e mação das vilas e cidades, juntamente com do momento em que se admite que uma câmera nada cinema, é sempre bom guardar isso em mente. as igrejas e as escolas. O trinômio igreja, es- sabe de essência, mas sim de aparência. cola e clube marcou as comunidades, que se Assim, entre um cinema criado como apêndice de organizaram a partir da imigração alemã no determinado discurso político e aquela que reputo como Rio Grande o Sul. Inicialmente, essas socie- José Roberto Rocha Filho é formado em Direito pela dades, especialmente em Novo Hamburgo, a grande linhagem do cinema político há diferenças não Universidade Federal da Paraíba (UFPB). só de fundo estético, mas de compreensão do cinema [[email protected]] Autor desconhecido - A arrancada heroica, 1942 (Imagem: Acervo Histórico da Sociedade Esportiva 82 Palmeiras) 83 eram fechadas e procuravam manter e exercitar sua representante da elite paulistana e que mais tarde daria italianos, alemães e japoneses (pessoas físicas e jurídicas) As cortinas que se fechavam naquele jogo, na ver- “germanidade”. Havia, também, um forte controle do origem ao São Paulo Futebol Clube, dentre outros. Funcio- poderiam ser confiscados e empregados pelo governo bra- dade, abriam um novo período na história do clube. Na- ingresso de sócios, quase sempre limitados aos de nários das Empresas Matarazzo deram os passos iniciais sileiro para compensar os prejuízos resultantes de atos de quele ano, a equipe, fundada com base na imigração ascendência germânica, além do uso exclusivo da para a fundação do Palestra Itália, que não pretendia se agressão praticados pelos países em guerra contra o Brasil. italiana, tornava-se campeã paulista, nascendo, assim, o língua alemã nas dependências e atividades das so- restringir ao extrato médio da sociedade paulistana, mas Essa medida colocava em risco a posse do patrimônio do lema palmeirense: “O Palestra Itália morrera líder, mas o 2 ciedades.” também visava à inclusão dos imigrantes italianos que tra- clube, o estádio Palestra Itália, estimulando seus dirigentes Palmeiras já nascia campeão”. Hoje, ao fazer uma análi- balhavam nas indústrias da cidade. Segundo José Renato a alterarem o nome para Sociedade Esportiva Palmeiras. se acerca da alteração do nome do clube, Oberdan Cat- O Sport Club Novo Hamburgo, agremiação fute- de Campos Araújo, Em notícia publicada por O Estado de São Paulo, tani afirma que “a mudança foi boa”, porque, na época, bolística do Rio Grande do Sul, possuía, em seu escudo, semanas antes do jogo, em 02 de setembro de 1942, a símbolo em alusão ao porto de Hamburgo, uma das prin- “O Palestra Itália não representava somente uma in- diretoria são-paulina tinha “autorizado a secretaria do São “A gente nem podia sair na rua. Sou descendente cipais cidades alemãs. Em 1942, o clube havia conquista- vasão de imigrantes italianos, em sua maioria origi- Paulo Futebol Clube a processar a interrupção de direitos de italiano, então, eu tinha medo. Estávamos con- do o vice-campeonato estadual, demonstrando sua força nários das classes menos abastadas, mas também e obrigações de sócios de origem italiana e alemã”6. Para centrados em Poá, quando ficamos sabendo da regional. De acordo com Prodanov e Kerber, quem falava uma invasão nas arquibancadas de ‘torcedores ita- dissipar possíveis dúvidas com relação à posição do clube mudança de nome. Não entendíamos o porquê. alemão não era bem visto pelas autoridades, havendo lianos’, que se deslocariam de bairros periféricos e palestrino acerca da II Guerra Mundial, o então Palestra Mesmo jogadores que não eram descendentes de inclusive a proibição do uso e do ensino da língua alemã operários, como Mooca, Brás, Barra Funda e Bexiga, de São Paulo emite comunicado, em 03 de setembro de italianos, como o [Zezé] Procópio, acharam ruim. nas atividades públicas. Nesse contexto, o clube passou para acompanharem os feitos de ‘italianos’ como 1942, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, de- Cheguei a chorar. A mudança de nome acabou sen- 4 a se chamar Floriano para, no final da década de 1960, eles contra a elite local.” monstrando apoio ao Brasil na guerra. O clube comprome- do uma felicidade, porque nascíamos campeões.” chamar-se Esporte Clube Novo Hamburgo, nome que per- te-se a destinar à Confederação Brasileira de Desportos a manece até hoje. O uniforme do Palestra Itália paulista, assim como renda líquida do jogo de 20 de setembro daquele ano para A despeito das determinações políticas que leva- Os clubes fundados por imigrantes italianos tam- o mineiro, carregava as cores da bandeira italiana. Pelos que fosse encaminhada às famílias brasileiras vítimas do ram à mudança de nome da equipe paulista, as origens ita- bém foram atingidos pelos decretos do Governo Vargas. O mesmos motivos, o time de São Paulo também teve de tro- torpedeamento executado pelos submarinos do Eixo. lianas não foram esquecidas. O verde ainda predomina nos 3 Societá Sportiva Palestra Itália , fundado em 2 de janeiro car de nome. Em março de 1942, o clube já havia adotado Nesse contexto, voltamos àquele 20 de setembro uniformes palmeirenses, mas o vermelho voltou a figurar de 1921 por desportistas da colônia italiana de Belo Ho- o nome Palestra de São Paulo, mantendo como seu distin- de 1942: o do jogo em que se daria a estréia do clube em algumas de suas camisas. A equipe de Palestra Itália rizonte, foi uma das agremiações que teve de mudar de tivo um “P” maiúsculo e a cor verde em seu uniforme, mas com o novo nome e que ficaria conhecido como o mo- continua tendo como base de apoio patrocínio financeiro nome. As cores de seu uniforme eram as mesmas da ban- as autoridades não se deram por satisfeitas. O Palestra de mento da “Arrancada Heróica”, nome que batizaria, anos proveniente de multinacionais de origem italiana (Fiat, deira italiana (o primeiro uniforme do clube era camisa ver- São Paulo, em 18 setembro de 1942, passa a se chamar mais tarde, uma passarela da capital paulista na Aveni- Agip, Parmalat, Pirelli, Diadora). Até hoje, durante os jogos, de, calção branco e meias vermelhas). Até 1925, apenas Sociedade Esportiva Palmeiras, em homenagem a um an- da Antártica. O adversário era o São Paulo Futebol Clube, é possível ouvir das arquibancadas do clube palavras de membros da colônia italiana podiam jogar no time. Era tigo time da cidade, e retira o vermelho do uniforme, que que tinha como dirigente Dr. Paulo Machado de Carvalho. ordem proferidas em italiano. O nome pode ter mudado, a uma equipe composta de descendentes de italianos, mas fazia alusão às cores italianas. De acordo com Adalberto O clima era de tensão. Palmeiras e São Paulo chegavam torcida cresceu e passou a incluir elementos de todas as destacava-se também por possuir elementos da classe Mendes, então capitão do Exército e dirigente do clube: às últimas rodadas, disputando obstinadamente o título classes sociais e de várias nacionalidades, mas a identida- trabalhadora da cidade. Havia pedreiros, policiais, pinto- paulista. O jogo entre as duas equipes ganhava aspectos de italiana do clube permanece fortemente presente. res, comerciários e marceneiros, filhos dos imigrantes que “Em razão da II Guerra Mundial e de o Brasil ter se de grande final e de dramaticidade devido também aos vieram construir a capital do Estado de Minas Gerais em colocado contrário ao lado defendido pela Itália, a embates extra-campo. Até então considerado por muitos Eduardo Moretti é formado em Relações Internacionais pela 1894 e que herdaram de seus pais a mesma profissão. Rádio Record, emissora que pertencia ao Dr. Paulo como “inimigo da pátria”, o Palmeiras, sob o comando do Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Mestre Em janeiro de 1942, o clube retira o nome Itália e passa Machado de Carvalho, deu início a uma campanha, capitão do Exército Adalberto Mendes, entrou em campo em Relações Internacionais pelo programa San Tiago Dantas a se chamar, até outubro do mesmo ano, Palestra Minei- encabeçada pelo locutor Geraldo José de Almeida, conduzindo a bandeira brasileira. Sobre esse momento, (Unicamp, PUC-SP, UNESP). ro. Em apenas uma partida, teve como nome Ypiranga, no que afirmava ser o Palestra uma equipe inimiga da o arqueiro palmeirense, Oberdan Cattani, hoje com 92 [[email protected]] dia 07 de outubro de 1942, quando perdeu para o Atlético Nação. [...] Criou-se a lenda de que, no Palestra Itá- anos, conta, em entrevista concedida por telefone, que Mineiro. A partir de outubro desse ano, torna-se Cruzeiro lia, havia traidores do Brasil[...].Jornais estampavam Esporte Clube, em alusão à constelação Cruzeiro do Sul, manchetes, colocando o Palestra Itália como “cami- 1 ARAÚJO, José Renato. Imigração e Futebol: o caso Palestra Itália. São “Quando entramos em campo, mesmo com a Paulo: FAPESP/Editora Sumaré, 2000. um dos símbolos da pátria brasileira. O uniforme passou a sas pretas”, uma alusão às nações inimigas do País. bandeira brasileira, fomos vaiados. Foi, então, 2 PRODANOV, Cleber & KERBER, Alessander. De Sport Club Novo ser camisa azul, calção e meias brancas. Foi quando o presidente Ítalo Adami decidiu, durante que nos reunimos e dissemos: ‘não podemos Hamburgo a Floriano: o futebol e a Segunda Guerra Mundial. Em um contexto de numerosos imigrantes italia- reunião que se estendeu até 4 horas da madrugada, perder esse jogo de jeito nenhum’. Aos 20 minu- Disponível em: . tos da etapa final, quando ganhávamos por 3x1, 3 Informações disponíveis em: . um time de futebol representativo da comunidade italiana. para o Palmeiras. Luizinho, jogador do São Pau- 4 ARAÚJO, Op. Cit. Nessa época, havia clubes como Wanderers Football Club, É importante salientar que por meio do Decreto nº 5 Disponível em: . formado pela colônia escocesa, Club Athletico Paulistano, 4.166, de 11 de março de 1942, os bens pertencentes aos de campo. O juiz, então, encerrou o jogo.” 6 ARAÚJO, Op. Cit.

84 85 eventos ocorrem em crescentes de excitação, entrecor- equivalente, em artes plásticas, estaria na sensação A linha divisória tados por momentos de calma. A sensação dessa leitura causada pela obra, mais importante do que a men- é a de que nada é belo e de que os elementos arremes- sagem proposta. No mesmo sentido, nenhum de nós entre a juventude e o futuro sados nas páginas não se concatenam. Em um segundo pode apreciar o movimento dadaísta como fizeram Marcos Dementev Alves Filho momento, porém, com o devido distanciamento, perce- seus contemporâneos. be-se o efeito desejado e a mensagem pode ser aprecia- Kerouac procura desmistificar a prosa como uma “(...) olhei para o teto rachado e por 15 estranhos segundos real- da. Essa técnica cria uma imagem literária que muitas construção hierárquica de relações e sentidos. A des- mente não soube quem eu era. Não fiquei apavorado, eu simples- vezes foi comparada ao impressionismo. As pinceladas crição dos personagens é altamente paradoxal. Em mente era outra pessoa, um estranho, e toda minha existência de Jack Kerouac seriam dadas com uma linguagem sim- uma mesma página, pode sugerir que um personagem era uma vida mal-assombrada, a vida de um fantasma... Eu es- ples, de expressões coloquiais, porém precisas e fortes. é alheio à realidade ou atento aos detalhes que poucos tava na metade da América, na linha divisória entre o Leste da Os traços podem parecer grosseiros e desalinhados, percebem. Qualquer opinião construída em um pará- minha juventude e o Oeste do meu futuro, e é provável que tenha mas com a devida distância fica evidente que o quadro, grafo pode ser revista no próximo. Novamente, o movi- sido exatamente por isso que tudo se passou bem ali naquele na falta de melhor palavra, impressiona. mento de mosaico obriga o leitor a desenvolver por si estranho entardecer avermelhado.” Os movimentos em espiral podem ser percebi- mesmo o significado contido em cada página. Não que Jack Kerouac em On the Road: Pé na Estrada dos também na trama não episódica. Muitas vezes, haja múltiplas interpretações, mas há infinitas sensibi- como leitores, esperamos eventos bem amarrados, lidades, e Kerouac trabalha com isso. ão é simples escrever sobre um ícone da Ge- com claras relações causais e com um final único, ge- O leitor pode fazer sua própria viagem de des- ração Beat. Ainda mais difícil é fazer qualquer ralmente apresentado na última página. Isso não ocor- cobrimento em On the Road, desde que seu objetivo comentário sobre o trabalho do escritor que re de maneira plena no livro. A estrutura não linear re- não seja seguir um caminho unívoco e certeiro em di- aspirou a ser o novo James Joyce. Jack Ke- flete a ideia de que a vida é eterno desvio. Os objetivos, reção à verdade. A leitura racional é apenas parte do rouac (1922 - 1969), ainda vivo, sentiu o peso de seu N perseguidos por todos os meios e com toda a energia, processo de descoberta da completa riqueza dessa próprio mito. No livro Big Sur (L&PM Pocket, 2009), es- podem não ser alcançados, podem decepcionar após obra. Como não poderia deixar de ser para um beat, a crito em apenas dez dias e lançado em 1962, admitiu o êxito ou, pior, podem ser apenas quimeras. Esperar irracionalidade tem significativa importância para Ke- sua exaustão com modo de vida que levava, em parte respostas simples e a felicidade no final da estrada é rouac. O ser humano não é plenamente racional, o que estimulado por seus admiradores, afoitos por noitadas apenas uma ilusão que leva ao desespero. Novamen- é evidente aos olhos de qualquer pessoa que não es- e bebedeiras com seu ídolo. Décadas depois, o mito te, pinceladas fortes, em linguagem simples e direta, teja divertindo-se ao brincar de sofista. Assim, pode-se pesa apenas sobre críticos e beats de segunda mão. constroem um caleidoscópio emocional, por meio de dizer que a leitura da realidade é feita tanto por meios O folclore de Kerouac impele a constante luta para não uma estrutura literária complexa e inovadora para lógicos quanto por meios emocionais. cruzarmos a fronteira entre o homem destrutivamente aquele momento da literatura estadunidense. Em On the Road, a percepção intuitiva é tão im- fascinante e o escritor que renovou e iluminou a litera- meios que lhe estão disponíveis. É um romance de des- Kerouac entendeu que a construção dos capítu- portante quando a fundamentação racional. Suposições tura americana. cobrimento pessoal, de transposição de barreiras, uma los em espiral e o uso da linguagem simples para o exageradas, apostas, riscos são elementos sempre pre- Beberrão, católico, budista, novamente católico, viagem epopéica, atravancada pela realidade e pelos so- americano médio eram significantes que poderiam ter sentes na trama e expõem o lado irracional do ser huma- sempre ébrio, eternamente generoso: autor que fasci- nhos que cercam o aventureiro. Kerouac queria escrever diferentes significados para cada leitor. Evidentemente, no. Ao lado desses arroubos de emotividade, há sempre na por sua habilidade literária e pelo que representou uma epopeia de sentimentos que não poderia ser feita o autor tinha consciência de que isso poderia ocorrer lampejos de lucidez, reflexões e calmaria. Não apenas o na formação cultural dos Estados Unidos. Seja devido a com os recursos da prosa contemporânea a ele. em qualquer leitura, intencionalmente ou não, mas sua autor expõe essa percepção dual do ser humano, mas seu estilo de vida, seja devido a suas ideias inovadoras, Para atingir seu objetivo, o autor passou a utilizar técnica focava na descoberta de significados. Muito se também a imprime em sua técnica literária. há a tentação de ler seus textos como obras autobiográ- elementos poéticos em seus romances. O próprio Ke- discute sobre se um texto pode ser corretamente inter- Cada sensibilidade pode seguir uma estrada ficas ou como documentos históricos, especialmente rouac dizia que On the Road deveria ser um romance pretado por uma ou múltiplas formas. Não é por esse diferente – as estruturas caóticas e mutáveis do livro no caso de On the Road: Pé na Estrada (L&PM Pocket, poético ou uma epopeia em mosaico. Isso quer dizer sombrio túnel literário que me encaminho. Os múltiplos permitem muitos caminhos para a reflexão. O livro é 2004), escrito em 1957. Esses elementos existem, sim, que a estrutura de capítulos deveria ser construída de significados buscados por Kerouac estavam relaciona- um romance poético, comprometido em expressar, da mas não são nem a principal matéria-prima nem o valor maneira a demonstrar expansão. Mais especificamen- dos ao leitor como centro do significado. Assim, me- maneira mais humana, tudo o que angustiava a men- maior de qualquer de suas obras. te, uma expansão da narrativa em espiral, com objetivo nos importava a correta leitura da mensagem do que a te de seu autor. Inovador em sua técnica literária, so- Kerouac escreveu em um momento de eferves- de criar impressão de movimentos incertos e confusos, construção da mensagem pelo leitor. cialmente desafiador e historicamente relevante, Jack cência cultural nos EUA. A década de 1950 foi marcan- mas, ainda assim, movimentos em direção a algum pon- Podemos crer que o texto tem um ou mais sig- Kerouac escreveu um dos primeiros grandes livros da te na política, na música e na literatura. No entanto, to da estrada. O livro deveria dar a sensação de busca e nificados, isso é indiferente nessa discussão em parti- prosa moderna americana. as obras beats, em especial as de Kerouac, devem ser de descobrimento, porém nunca como formas simples cular. O aspecto central é que a construção de frases, vistas como parte da evolução da prosa estaduniden- de experimentação e consequente aprendizado. parágrafos e capítulos como um mosaico leva o leitor se. Nesse sentido, as estruturas literárias de Kerouac Caronas perdidas, caminhos mal escolhidos, a desenvolver significados por si mesmo, de forma que inovam mais na maneira de contar a história do que eventuais trapaças sofridas, coisas pequenas – como Marcos Dementev Alves Filho é formado em Relações a descoberta do significado é mais importante do que no que há a ser dito. A narrativa de On the Road é co- ter a jaqueta roubada por um colega caroneiro – não Internacionais pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). o significado pretendido. Talvez possa ser dito que o [[email protected]] nhecida: um jovem escritor viaja pelo país, usando os são trivialidades contadas de maneira desordenada. Os 86 87 gime Militar, então em vigor, era bastante brando, com- rio, com enorme concentração de poder e com uma at- parado com o que viria depois. Respirava-se um clima mosfera irrespirável. Quando hoje vejo o céu de Brasília, de transição, com censura muito branda e expectativa quase sempre azul ou dourado, custo a acreditar que, Edgard de eleições no curto prazo. Ingressei no Rio Branco em naquela época, ele me aparecesse apenas em tons cin- 1966. Quando minha turma se formou, dois anos de- zentos… O que ocorria, na realidade, é que o céu prova- pois, acabamos recebendo nosso diploma semanas velmente era azul, mas eu o via como cinza. Telles Ribeiro antes da edição do AI-5. Ninguém no país, pelo menos o Regime Militar, as artes e a em minha geração, imaginava que o regime fosse en- Juca – Os “Max” do Itamaraty, ou seja, diplomatas durecer no lugar de abrandar. De modo que, em certa que monitoraram colegas de carreira e exilados brasi- diplomacia cultural medida, nosso início de carreira coincidiu com o início leiros a serviço de interesses militares anti-comunis- do pesadelo brasileiro. E disso trata meu livro em seu tas, deveriam ter sido punidos? José Joaquim Gomes da Costa Filho capítulo inicial. ETR - Acho que, em larga medida, eles foram punidos. Não tanto de forma oficial, mas de forma velada e quase tão om a recente publicação do romance O punho e a renda Juca – Como o sr. caracterizaria a geração de diplo- eficaz. Refiro-me ao ostracismo a que se viram condena- (Ed. Record) e a reedição do livro Diplomacia Cultural (Ed. matas da qual faz parte, ou seja, daqueles que inicia- dos quase todos (e esse ‘quase’ é importante, já que meu Funag), os leitores interessados em temas relacionados à ram suas carreiras no início do Regime Militar? personagem Max acabou se dando bem) ou ao mal-estar C ETR - Exceto por uma minoria que pegou em armas ou se que o nome deles em geral evoca quando surge em algu- diplomacia passaram ter acesso a duas obras bastante distin- tas de um diplomata com uma trajetória profissional e artística exilou, os demais brasileiros se dividiram, grosso modo, ma conversa. Fora isso, imagino que eles próprios devem também ricamente diversificada: o Embaixador Edgard Telles Ri- entre aqueles que aderiram com grande entusiasmo ao estar prestando contas às suas respectivas consciências. beiro. Sua paixão pelo cinema e pela literatura levou-o a conci- Regime Militar e aqueles que se mantiveram céticos e Creio que seria irrealista exigir mais, considerando-se, so- liar dedicação às artes e trabalho diplomático. Além disso, sua críticos, mas que nem por isso deixaram de pagar seus bretudo, que tanto tempo passou. Ainda assim, compar- experiência como diplomata durante o Regime Militar brasileiro impostos, trabalhar em suas diferentes carreiras, lidar tilho de sua preocupação – e talvez essa tenha sido uma agrega elementos que despertam a atenção para suas palavras, com as restrições então vigentes etc. As pessoas toca- das razões que me levaram a escrever o livro: lembrar a ram as vidas da melhor maneira que podiam, tentando certos colegas que não foram de todo esquecidos. escritas ou faladas. se manter fiéis a seus ideais na medida de suas possi- Juca – Há algum motivo para a escolha de O pu- qual quase não se falava hoje em dia (pelo menos no bilidades individuais. Foi o caso da grande maioria dos Juca – Logo após o golpe civil-militar, diplomatas nho e a renda e não “Punhos de renda”? que se refere ao triste papel desempenhado por cer- brasileiros. Mesmo porque, como disse, não havia alter- mais antigos foram aposentados compulsoriamente, Embaixador Edgard Telles Ribeiro - Sim, vali-me do tos diplomatas). Ao lidar com o assunto, porém, aca- nativa – fora a já mencionada ação militar de guerrilha sendo poupados os mais modernos na carreira. É de estereótipo (“punhos de renda”), mas aprofundei bei sendo levado pela história e fui abrindo minhas ou a opção do exílio. De modo que os diplomatas que seu conhecimento que alguns jovens diplomatas, na a metáfora ao introduzir o contraponto entre a vio- lentes para além de nossas fronteiras. Esse proces- ingressaram na carreira naquela época tiveram de lidar função de aplicadores diretos de decisões tomadas lência (o punho) e a delicadeza (a renda). Ou seja, so estendeu-se ainda mais quando a linha narrativa com esse tipo de conflito pessoal. E foi aí que vários es- nos altos escalões do MRE e da Presidência, tenham trouxe para o título, ao abrigo do velho chavão modi- alçou vôo por cortesia de certos personagens, o que corregaram e optaram por se valer do sistema vigente adotado diferentes técnicas para retardar ou impedir ficado, a violência cometida pelos militares a partir me permitiu situar os dramas sul-americanos como em troca de vantagens pessoais. a execução das instruções das quais discordavam? de 1964 e, sobretudo, a partir do Ato Institucional meros reflexos de conflitos envolvendo outros prota- ETR - Não, não tenho conhecimento nem de instruções nº 5, de 1968. Para quem gosta de boa literatura, o gonistas (no caso, o envolvimento norte-americano Juca – O que representou para o sr. e para os demais que pudessem motivar rebeldias por razões éticas e título também evoca, ainda que de forma remota, o no Vietnã e o pavor da CIA ao se deparar com um funcionários do serviço exterior brasileiro a transfe- muito menos de atitudes como as que você menciona. célebre romance de Sthendal, O vermelho e o negro. “Vietnã latino” em seu quintal). De modo que esse rência do Itamaraty do Rio de Janeiro para Brasília, É preciso ter presente que determinado tipo de ‘trabalho processo de acerto de contas mais pessoal a que em 1970, fato histórico que serve de pano de fundo sujo’ era realizado por uma minoria que fazia parte do es- Juca – O principal tema do livro são os bastidores você se refere acabou dando margem a um grande para parte da narrativa de O punho e a renda? quema militar dentro do Itamaraty. Os demais diplomatas do trabalho no Itamaraty, durante a ditadura. Esse painel que se estende do Vietnã dos anos 1960 ao ETR - Essa mudança foi sinistra, pois Brasília, idealizada não participavam desses esquemas e quase sempre ig- período foi encerrado sem que houvesse julgamen- Afeganistão da atualidade, e no qual as tragédias por socialistas, tomara forma de um grande cenário de noravam que existissem situações eticamente condená- tos ou amplo e transparente debate sobre suas fei- sul-americanas acabaram sendo “sanduichadas”. O opressão, no qual até mesmo a arquitetura genial de veis sendo articuladas por essa minoria. É, pelo menos, a ções. Dessa forma, a cada brasileiro é posto o de- que equivale dizer esquecidas. O livro pretende dar Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer acabou se prestando impressão que me ficou daqueles anos. safio de encontrar uma forma de ficar em paz com uma contribuição para reverter esse processo de es- a manipulações grandiosas e ufanistas de poder nada sua herança. O livro teria sido sua forma de ficar quecimento. condizentes com as verdadeiras fontes de inspiração Juca – O sr. considera que o Itamaraty conseguiu em paz com seu passado de diplomata a serviço do dos pioneiros daquela época. Brasília era cinza, a cen- manter autonomia decisória em política externa du- Brasil, sob um Regime Militar? Juca – O que levou o sr. a optar pela carreira diplo- sura pesava, os boatos sobre mortos e desaparecidos rante o Regime Militar? ETR - De certa forma sim, ainda que minha principal mática, às vésperas da decretação do AI-5? eram sussurrados nos corredores dos ministérios – já ETR - Sim, e isso ajudou muito a motivar minha geração, motivação tenha sido trazer um tema a respeito do ETR - Quando eu comecei a me preparar para as pro- que esses incidentes, em si mesmos, ocorriam nas capi- ainda que os mais lúcidos percebessem existir uma di- vas do Instituto Rio Branco, em 1964 e 1965, o Re- tais estaduais distantes. Vivíamos em um grande cená- cotomia entre, de um lado, a política externa indepen-

88 89 dente por nós praticada e, de outro, uma política interna ETR - No caso da literatura, me parece muito fácil, fascista e arbitrária. Mas é inegável que os militares ti- como demonstraram antes de mim, com talento abso- ETR - O livro que a Funag acaba de reeditar refletiu veram pelo menos um mérito: confiaram a diplomacia lutamente admirável, Guimarães Rosa, João Cabral de um retrato do que ocorria na época em que foi escri- brasileira a diplomatas da mais alta categoria nos su- Mello Neto, Vinicius de Moraes, entre outros. Não são to, 1989. Curiosamente, esse retrato se mantém bas- cessivos governos militares. E cada chanceler brasileiro poucos os nomes de gerações posteriores que pode- tante atual, na medida em que as ideias ali defendidas naquele período de 20 anos soube trazer sua inegável riam se somar aos citados. Já no caso de colegas que continuam cada vez mais relevantes e urgentes. Quem contribuição pessoal à política externa de nosso país. pensaram em conciliar a carreira com atividades artís- poderá hoje negar a raiz cultural dos conflitos com que Creio que o respeito dos militares pelo Itamaraty tinha ticas menos compatíveis com nossas rotinas diplomá- nos deparamos no cenário internacional? E o que dizer raízes antigas e, de alguma forma, refletia semelhanças ticas (penso, por exemplo, no caso do cinema), a coisa da necessidade de proteger nossa diversidade cultural hierárquicas entre as duas carreiras, a militar e a diplo- fica mais complicada. Uma opção precisa ser feita, já contra o assédio das indústrias ditas criativas do Primei- mática. Além do fato de que, cada qual a sua maneira, que é impossível conciliar duas atividades como essas. ro Mundo? São temas da maior relevância, que estão tanto os militares quanto os diplomatas sempre tiveram Mas literatura, pintura ou música (e tivemos ótimos pia- para o desenvolvimento assim como o meio ambiente por objetivo a grandeza do país. nistas que foram ou são diplomatas) não são atividades está para a sobrevivência do planeta. incompatíveis com a carreira. Ao contrário, podem ser Juca – O sr. teve atuação como cineasta e professor fertilizadas pela carreira. Assim como a carreira pode Juca – A questão da seletividade é uma das mais de cinema na Universidade de Brasília (UnB). Qual se beneficiar dos aportes de seus diplomatas artistas. complexas e também controversas na diplomacia cul- ponto o sr. ressaltaria dessa experiência? Mesmo porque não é imaginação que lhes falta. tural. O sr. teria alguma sugestão de como definir a ETR - Fui crítico de cinema no Rio de Janeiro, entre 1967 cultura brasileira que devemos divulgar no exterior ou e 1970, trabalhando em O Jornal e publicando artigos Juca – Quanto à diplomacia cultural, tema de sua que interessa aos estrangeiros? no antigo Correio da Manhã, na época editado por Pau- tese no Curso de Altos Estudos (CAE) e também de ETR - O que importa é que as programações reflitam lo Francis. Da crítica passei à prática, realizando alguns seu livro recentemente reeditado pela Funag, como o de perto nossa diversidade cultural e sejam objeto de documentários. Mais adiante, dei aulas de cinema e ro- sr. avalia a evolução da atuação do MRE nessa área, criteriosa seleção, com base em subsídios de artistas, teiro na UnB por quatro anos. Essas atividades tiveram de 1987 aos dias de hoje? programadores culturais, agentes qualificados do Mi- grande influência na carreira literária que eu ainda viria nistério da Cultura etc. Sem esse esforço de transpa- a exercer mais tarde, na medida em que a linguagem rência, cairemos no clientelismo de sempre, que acaba funciona, pois o esforço de hoje é esquecido amanhã. cinematográfica se aproxima muito da literatura. Ambas favorecendo o eixo Rio-São Paulo ou alocando de forma as artes, se assim desejarem os artistas que as prati- injusta os parcos recursos disponíveis. Quanto ao que Juca – Seu livro O punho e a renda, que trata bastan- cam, contam histórias. E eu, na ficção, gosto de me de- o público estrangeiro “gostaria de ver”, essa deve ser a te da carreira diplomática, está ou esteve na lista de finir como um contador de histórias. última de nossas preocupações. leituras de muitos alunos do IRBr. O que o sr. gostaria que guardassem do livro? Juca – Como se deu sua passagem do cinema para a Juca – O fato de o quadro diplomático brasileiro ser ETR - A democracia não cai do céu. Precisa ser trabalha- literatura? formado majoritariamente por homens brancos de ori- da a cada dia. Minha geração bobeou. E quando acor- ETR - Na realidade, houve um intervalo de muitos anos gem centro-sulina representa obstáculo à diplomacia dou já era tarde. entre uma atividade e outra. Meu último documentário cultural brasileira? foi realizado em 1980 e meu primeiro romance só foi ETR - Não, desde que o Itamaraty continue, por um lado, Juca – Qual conselho o sr., como diplomata e intelec- publicado em 1991. Nesse intervalo, lembro que voltei a se abrir para todas as nossas etnias na formação de tual, daria a jovens Terceiros Secretários no início de a ler de modo mais abrangente e sistemático, atividade seus quadros; e, por outro, a interagir com os mais am- suas carreiras? que eu desenvolvera com grande fervor em minha ju- plos segmentos da sociedade brasileira que possam ETR - Não há carreira que proporcione maiores possibi- ventude, quando fui um verdadeiro devorador de livros. trazer subsídios para uma programação legítima a ser lidades de acesso a outras culturas e a outros povos de Creio que essa ponte da leitura me ajudou a transitar do levada ao exterior. forma constante e abrangente como a diplomática. No cinema para a literatura. mundo de hoje, não há bem mais precioso. As riquezas Juca – O que seria então necessário para aprimorar a não estão apenas nos chamados grandes postos. Elas Juca – Dos seus dez livros publicados, haveria algum diplomacia cultural brasileira? também se abrigam nos menores. O que importa é estar em especial que considere seu preferido ou que releia ETR - Acelerar o esforço de interação entre produtores atento e aberto ao que ocorre a nossa volta. Quando de vez em quando? culturais, artistas, críticos, de um lado; e, de outro, repre- isso acontece, trabalhamos melhor para nosso país e, ETR - Meu livro favorito é sempre o mais recente… No sentantes governamentais com responsabilidade pelo no clássico espírito da mutualidade, para os países por caso, O punho e a renda. Os livros demoram a decantar, assunto (sobretudo MRE, MinC e MEC); somar a esses onde passamos. como os bons vinhos. atores fontes financeiras oriundas da iniciativa privada, com base nas leis de incentivo fiscal. Da soma desses Juca – Como tem sido conciliar as vidas de diplomata elementos seria possível imaginar um cenário em que a José Joaquim Gomes da Costa Filho é formado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). e de artista? difusão cultural externa se processasse de forma repre- sentativa e, sobretudo, constante. Sem constância nada [[email protected]] 90 91 O matrimônio consistiria em “an agreement betwe- fundo religioso não somente para ganhar votos, como tam- en two persons by which they grant each other equal reci- bém para governar. Sabia muito bem que, entre os eleitores A sexualidade segundo procal rights, each of them undertaking to surrender the do centro-sul dos Estados Unidos, por exemplo, um candidato whole of their person to the other with a complete right of sem forte convicção religiosa tem chances mínimas de suces- disposal over it”. No entanto, alguém poderia levantar dú- so. Sabia também que, para justificar uma guerra custosa em Bush e Kant vidas sobre a quais tipos de relação o autor se referia nes- termos financeiros e de vidas humanas, mas que atendia per- se conceito. O filósofo responde essa e outras perguntas. feitamente aos interesses das indústrias nacionais armamen- Pedro Henrique Batista Barbosa De pronto, reconhece como única relação possível aquela tista e petrolífera, necessitava recorrer à moralidade religiosa ma pergunta interessante seria divagar sobre o homem como ser racional deve agir pelo dever, mesmo entre um homem e uma mulher, ou seja, opõe-se veemen- e a sua crença pessoal para angariar mais adeptos. que George W. Bush e Immanuel Kant teriam em que esse ato vá de encontro aos seus interesses pesso- temente à poligamia, situação em que cada mulher teria É interessante notar que a campanha de educação Ucomum, ou melhor, quais foram os ensinamentos ais. Somente assim pode ser livre. Nessa trilha, o princí- acesso somente a parte do marido, enquanto se entregaria pró-abstinência não alcançou os resultados esperados. do filósofo alemão do século XVIII e XIX que o ex-presiden- pio estampado no imperativo categórico obriga a tratar os por inteiro. Sobre o incesto, assevera que é vedada unica- Segundo estudo publicado pelo Departamento de Saúde te norte-americano, incidentalmente ou não, seguiu em outros como fins em si mesmos e não como meios para mente a prática sexual entre pais e filhos, em razão do de- e Serviços Humanos dos EUA, o qual abordou 1.200 estu- suas políticas? Para começo de conversa, provavelmen- se obter algo, o que atentaria contra a dignidade. ver de respeito e subordinação que existe entre eles. dantes norte-americanos no período de quatro a seis anos te Bush não teve contato com a obra A Paz Perpétua, a Após lançar os alicerces de sua teoria, o filósofo aven- Diante da diversidade de práticas e de relacionamen- após sua participação nos referidos programas, 49% se contar por sua política externa belicosa — e desastrada. turou-se pelo tema da sexualidade e lançou o texto Duties tos sexuais existentes, o filósofo alemão decide classificar as mantiveram virgens, exatamente a mesma porcentagem Apesar de muitos poderem apresentar semelhanças e di- Towards the Body in Respect of Sexual Impulse.2 De acordo variadas formas de abuso da sexualidade alheia – ou o que verificada entre meninas e meninos que não tiveram es- ferenças de pensamento entre ambos, uma característica com o autor, só há um caso em que o ser humano é desig- ele denominou de crimina carnis. Nessa linha, há o crimina sas aulas. O mesmo fato se repete quando se avalia o em comum pode passar despercebida: a reprovação a nado por natureza para ser um objeto do prazer de outro — e carnis secundum naturam e o contra naturam. O primeiro uso de preservativos. O número de pessoas participantes qualquer tipo de relação sexual antes do casamento. não ser tratado como fim em si mesmo: o impulso sexual. O consistiria num atentado à razão. Um exemplo seria o adul- dos projetos que se valeram do método contraceptivo foi Desde que assumiu o poder em 2000, Bush imple- desejo que o homem sente por uma mulher não está direcio- tério; outro, seria o vaga libido, que é o oposto do matrimô- idêntico ao das que não fizeram o curso.8 mentou um programa de governo conservador tipicamente nado ao fato de ela ser um ser humano, mas de ser mulher. nio e se subdivide em scortatio — maneira de sexo aleatório, Pelo visto, se o ex-presidente Bush realmente funda- republicano, em que uma de suas características estava em A sexualidade seria, nesse ponto, o princípio da degradação sem qualquer compromisso — e concubinatus — pacto de- mentou-se em sua crença religiosa para desenvolver seus pro- estimular políticas pró-abstinência sexual. Milhares de dóla- da natureza humana e igualaria os homens aos animais. O sigual em que os direitos não são recíprocos.4 Com relação gramas, o estudo supracitado demonstra que talvez não tenha res foram doados para escolas públicas, ONGs e fundações autor não mede palavras para defender sua teoria: “Sexual ao segundo, Kant cita o onanismo5, o sexus homogenii, a sido a decisão política mais acertada num mundo tão diferente — boa parte delas religiosas — para que ministrassem cursos love makes of the loved person an Object of appetite; as soon sodomia e as relações com animais6, todos contrários aos e moderno, ao qual, inclusive, as ideias de Kant tampouco se de educação sexual. Estima-se que o montante destinado a as that appetite has been stilled, the person is cast aside as fins da humanidade e da natureza humana. adequam. Quem sabe uma política focada numa educação se- esses projetos tenha subido de US$ 163 milhões em 2006 one cast away a lemon which has been sucked dry”.3 Pode parecer estranho, mas, conscientemente ou xual que informasse os jovens sobre os significados e as conse- para US$ 191 milhões em 2007. Durante seu mandato, Bush Para Kant, a partir do momento em que o ser huma- não, George W. Bush seguiu os passos de Kant no que diz quências da sexualidade precoce tivesse sido mais conveniente só fez aumentar esse volume, pois essas políticas eram con- no decide fazer sexo com outro unicamente para satisfazer respeito à sexualidade. O que surpreende é que, enquanto numa realidade tão fortemente marcada pela revolução sexual. sideradas prioridade de sua gestão. Nesses cursos, os alunos seu prazer, esse outro se torna seu instrumento, ou um meio o filósofo pertencia a família protestante de tradição pietis- aprendem, entre outras coisas, que se manter virgem é a for- — e não um fim — para atingir seus objetivos. A pessoa, ao ta7, que valorizava muito o estudo das Escrituras e a educa- Pedro Henrique Batista Barbosa é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). ma mais eficaz de evitar gravidez precoce e indesejada, doen- aceitar essa condição, está cedendo parte de si mesma — a ção, ou seja, seu rigorismo moral tratava-se de decorrência [[email protected]] ças sexualmente transmissíveis e traumas psicológicos. Até a organa sexualia —, enquanto retém alguns direitos pessoais natural de seu passado e de seus costumes religiosos, o pílula do dia seguinte foi combatida, por encorajar o sexo an- relativos ao bem-estar e à felicidade. Tal atitude seria imoral, mesmo não se pode dizer do ex-presidente norte-america- tes do casamento e por ser entendida como forma de aborto. pois não é possível ao ser humano dispor de parte de seu no, cujo histórico é famoso no que tange a problemas com 1 KANT, Immanuel. Groundwork of the Metaphysical of Morals. Cambridge: Cambridge University, 2000, p. 25. Kant também opinou sobre o tema sexualidade corpo e de sua pessoa. Ele representa uma unidade de direi- alcoolismo, desrespeito aos direitos humanos, abuso de 2 KANT, Immanuel. “Duties Towards the Body in Respect of Sexual Impulse”. In: e — talvez — tenha dado os alicerces para essa política tos e só poderia se entregar em sua totalidade. poder, entre outros desvios morais. Lectures on Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 3 Idem, p. 163. norte-americana. Em sua cruzada em defesa da moral Ciente desse problema, Kant reconhece que, sem Embora pareça desconhecer preceitos básicos de 4 “In this pact the woman surrenders her sex completely to the man, but the e da razão, o filósofo de Königsberg construiu sua teo- o impulso sexual, o homem seria incompleto e mesmo im- qualquer religião, Bush declara-se religioso e, de fato, o é: man does not completely surrender his sex to the woman.” (Idem, p. 169). 5 “This is abuse of the sexual faculty without any object, the exercise of the fa- ria com base em três dualismos, ou contrastes: dever e perfeito como ser humano, mas, ao mesmo tempo, deba- pertence à Igreja Metodista. A grande diferença entre ambos culty in complete absence of any object of sexuality.” (Ibidem, p. 170). inclinação; autonomia e heteronomia; e imperativo cate- te se haveria alguma condição em que o uso das faculta- 6 “From the point of view of duties towards himself such conduct is the most seria, então, que Kant, enquanto filósofo, tinha compromisso disgraceful and the most degrading of which man is capable.” (Ibidem). górico e hipotético.1 Resumidamente, um comportamento tes sexuales não estaria em desacordo com a moralidade, com a busca da verdade sobre o homem e com a definição e 7 De 1732 a 1740, Kant frequentou o Collegium Fredericianum, onde obteve formação clássica e pietista, reforçando o pietismo que recebeu por parte da moral seria aquele que não se origina de inclinações ou isto é, como o commercium sexuale seria possível sem o respeito da moral pura por meio da razão humana. Bush, ao educação materna. do imperativo hipotético, isto é, consistiria em atitude au- degradar a humanidade ou quebrar as leis morais? A res- contrário, como político, tinha como principal compromisso a 8 GODOY, Denise. Estudo vê falha em educação pró-abstinência. Folha de São Paulo, 23 de abril de 2007, p. 8. tônoma e não calcada em impulsos do corpo humano. O posta, segundo o filósofo, estaria no casamento. obtenção de poder. O ex-presidente fez uso de argumentos de

92 93 PINTURA ARQUETÍPICA Cláudio Guimarães dos Santos

Os trabalhos aqui apresentados pertencem à série “Pintura Arquetípica” e foram realizados no início da década de 2000. De um ponto de vista biográfico, eles assinalam o meu retorno às artes plásticas - e, mais especificamente, à pintura - depois de um afastamento de cerca de dez anos – excetuando-se algumas “recaídas” -, o qual teve início em 1988, quando fui para a França cursar o doutorado em Lingüística. A decisão de afastar-me foi motivada por uma imperiosa necessidade de refletir sobre a natureza das artes plásticas e sobre a sua situação no mundo contemporâneo, e veio à tona depois de um período de trabalho intenso, cujos frutos foram apresentados em exposições individuais e coletivas realizadas, na década de 1980, em instituições paulistas tão diversas como o Museu da Imagem e do Som/MIS, a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Contemporânea/MAC e o Museu de Arte Moderna/MAM. Durante esse afastamento reflexivo, busquei realizar um mergulho “arqueopsicológico” no imaginário simbólico da cul- tura Ocidental e, em particular, no polissêmico universo da mitologia grega, que inspirou tantos artistas ao longo da história. A minha intenção - não sei se prometeica ou órfica... - era impregnar-me dessa rica tradição para, mais tarde, por meio de recursos pictóricos, conjurá-la a falar, ainda uma vez, sobre os mistérios nebulosos das origens, a esta época que muitos consideram gasta, redundante e sem espírito. As obras que compõem a série “Pintura Arquetípica” devem, assim, ser vistas como lembranças, vestígios ou pistas dessa tentativa que fiz de recriar, contemporaneamente, temas universais que considero fundamentais para a compreensão da exis- tência humana, como a luta do herói contra as forças primitivas (“O Bom Combate”), a eterna disputa amorosa (“A Disputa”), a busca pelo autoconhecimento (“A Coroação”), o mito do titã Prometeu (“Prometeu”), o fascínio da vaidade (“A Toilette de Vênus”) ou o difícil e inevitável encontro com a morte (“O Jogo”). Nesse processo de recriação plástica, tais temas são interpretados a partir da minha experiência pessoal. Esta condicio- na, inevitavelmente, não apenas a minha visão de mundo, mas também as opções estéticas que caracterizam a linguagem pictórica da minha fase atual: o retorno a um figurativo essencialmente simbólico, a ênfase nas relações figura/fundo, a preocupação com o detalhe significativo, as referências visuais à história da arte e da literatura e a exuberância cromática.

A Coroação (2002) - 120 x 100 cm - acrílico sobre tela

94 A Disputa (2002) - 100 x 120 cm - acrílico sobre tela 95 O Jogo (2002) - 100 x 120 cm - acrílico sobre tela

O Bom Combate (2003) - 100 x 120 cm - acrílico sobre tela A Toilette de Vênus (2002) - 100 x 120 cm - acrílico sobre tela

Prometeu (2003) - 130 x 100 cm - acrílico sobre tela

Cláudio Guimarães dos Santos é Artista Plástico e Mestre em GALERIA VIRTUAL (obras e exposições realizadas): Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São http://claudiogs000virtualgallery.blogspot.com/ Paulo (USP); é também Médico pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Doutor em Linguística pela Université de Toulouse, França. [[email protected]] 97 ou até de indefinida duração. A matriz desse sistema zar os papéis, dando a aparência de que os riscos são é a troca de papéis sem valor intrínseco, cujo preço de baixos e de que o lucro realizado será elevado. Novos A Economia Política da mercado varia de acordo com as expectativas de au- incentivos são, portanto, gerados para a entrada de ou- mento de sua demanda futura. A posse de um ativo tros investidores – e o ciclo repete-se por mais tempo. financeiro representa, portanto, a promessa de retorno Esse fenômeno é conhecido como bolha especulativa. Crise Financeira futuro a um pagamento corrente. O valor dos ativos fi- À medida que os primeiros investidores decidem rea- nanceiros é imaterial – eles só possuem valor enquan- lizar seus lucros, vendendo os papéis aos que estão to são vistos como meios seguros de obtenção de um dispostos a pagar muito caro para adquiri-los, a espiral Diogo Ramos Coelho pagamento. ascendente do valor desses ativos tende a ser afetada A possibilidade de comprar – e, logo, de vender e, em algum momento, revertida. A bolha, por assim – os ativos financeiros depende, sobretudo, da certeza dizer, estoura. O estouro da bolha gera consequências ou da convicção de que as promessas serão cumpri- drásticas para a economia: corrida para a retirada dos dia 14 de setembro de 2008 foi um divi- Para que serve um banco? A principal função de das. A disponibilidade de fazer empréstimos a deter- depósitos das instituições em crise; colapso nos preços sor de águas. A falência do Banco Lehman um banco é captar poupança onde ela está disponí- minada taxa de juros, por exemplo, está fundamenta- dos ativos em posse dos bancos; redução substancial Brothers, gigante de investimentos em Wall vel e alocar recursos onde há demanda por consumo e O da na expectativa de que os pagamentos assumidos do valor do patrimônio das instituições financeiras; res- Street, marcou o início da mais dramática crise fi- por investimentos. O sistema financeiro pode ser des- serão efetuados. Mas o risco é uma parte intrínseca trição do crédito; e movimento de “desalavancagem nanceira da história recente dos Estados Unidos. A crito como um conjunto de práticas e de instituições do funcionamento do sistema financeiro. Promessas financeira”, o que enxuga ainda mais a liquidez e o cré- crise financeira resultou em uma crise econômica presentes na economia que ajudam a promover o en- podem não ser cumpridas e as expectativas de retorno dito da economia. global. O contexto de crise generalizada levou, por contro das pessoas que poupam com as pessoas que podem não ser aquelas esperadas. Os mercados são Há duas visões opostas sobre a origem das crises sua vez, à redefinição do gerenciamento da econo- necessitam de empréstimos. Por intermédio desse sis- incapazes de fornecer apenas incentivos ao compor- financeiras: elas são geralmente o resultado do mau mia internacional. Fóruns internacionais, como o tema, coordenam-se poupança e investimentos – dois tamento responsável de agentes econômicos. O risco comportamento dos mercados ou elas são resultado G20, adquiriram novo dinamismo. Governos refor- elementos-chave do crescimento econômico. é parte da engrenagem do capitalismo e é justamen- da intervenção dos governos. A primeira visão aponta mularam políticas macroeconômicas. A crise deixou O sistema financeiro fornece um mecanismo de te esse fato que torna possível a ocorrência de crises. para a propensão humana de oscilar entre excesso de muitas dúvidas sobre suas causas e como comba- transferência de recursos daquelas pessoas que os Afinal, uma vez frustradas as expectativas de retorno ganância e excesso de medo; a segunda, para as dis- tê-la – e apenas uma certeza: ela não será a última possuem, mas não podem usá-los de modo produtivo, de alguns agentes, eles podem eventualmente não ter torções criadas pelos reguladores na oferta de garan- que viveremos. para aqueles que não os possuem, mas podem usá- condições de honrar compromissos assumidos com tias contra a tomada de riscos. A conclusão plausível, Crises financeiras, como a atual, têm origem no -los como meio para criar uma empresa, aumentar a terceiros (seus credores, fornecedores, trabalhadores, em decorrência do histórico recente de crises, é a de comportamento humano: na forma como os indivídu- produção, investir em nova fábrica ou simplesmente acionistas, etc.). As aplicações financeiras são, portan- que as duas visões não são necessariamente opostas, os agem na busca por renda, por poder e por prestígio; transformar uma ideia em novo produto. O sistema fi- to, permeadas por um dilema intrínseco: não há plena mas complementares. Os mercados financeiros pos- na forma como investidores aplicam seus recursos em nanceiro é, portanto, o motor da economia de merca- certeza de que as promessas serão cumpridas ou de suem dinâmicas essencialmente especulativas que função das informações imperfeitas que possuem em do descentralizada. Quanto mais sofisticado for esse que os retornos obtidos serão os esperados. são alimentadas pelo risco e pela alavancagem. Esses determinado período; na forma como são produzidas sistema, melhor uma economia poderá funcionar, pois Por que crises ocorrem? Elas ocorrem quando a mercados têm também dificuldades em gerenciar suas estratégias empresariais; na forma como governos maior será o crédito disponível para financiar os inves- pirâmide de promessas começa a desmoronar e todo falhas, porém as intervenções dos governos podem definem políticas econômicas; nas mudanças e nos timentos produtivos. Esses investimentos diversificam o funcionamento do sistema parece instável. Em geral, deixá-los mais propensos a práticas destrutivas. ajustes regulatórios; nos fluxos internacionais de ca- a oferta de bens e de serviços, barateiam os preços crises financeiras têm início na criação de novo papel Os governos são responsáveis, ainda, por criar pital, de trabalho, de bens, de serviços e de comércio; e aumentam as rendas das pessoas. O bom funciona- ou ativo que se mostra atraente para grande número o mais importante dos mercados dentro do sistema fi- nas tendências de variação de preços, entre outras mento do sistema financeiro serve como um conjunto de investidores – como a valorização dos preços de nanceiro: o da dívida pública. Eles necessitam de cré- causas. Participam dessa dinâmica poupadores, em- de estímulos ao trabalho árduo, à inovação, ao investi- imóveis e o fornecimento de crédito por meio de hipo- dito para diversas atividades: cobrir a diferença entre a prestadores, investidores, tomadores de crédito, go- mento privado e à alavancagem da renda de terceiros, tecas. Nessas circunstâncias, quanto maiores forem as arrecadação tributária e o gasto; fornecer crédito subsi- vernantes, reguladores, produtores e consumidores, com vistas a elevar o total de recursos disponíveis à expectativas de retorno por parte dos agentes financei- diado a setores que consideram estratégicos (agricultu- nacionais e internacionais. As crises são resultado do produção. ros, mais investidores tendem a aparecer. Esse movi- ra, indústria, exportação, etc.); comprar moeda estran- somatório de decisões políticas, econômicas e empre- A espinha dorsal do sistema financeiro é uma pi- mento de entrada de novos investidores tende a valori- geira para evitar a apreciação da taxa de câmbio, entre sariais tomadas no passado. râmide de promessas – promessas de curta, de longa

98 99 outros. Quando o Estado gasta mais do que arrecada, interesse, de partidos e de indivíduos, sempre interes- aberto para que a direita norte-americana ataque o go- população e se seus poderes forem limitados por re- é obrigado a financiar sua dívida. Esse dinheiro deve sados em obter renda, prestígio e poder. Mesmo se os verno democrata por sua aparente irresponsabilidade gras transparentes, universais e legítimas. A alternân- ser captado no mercado financeiro, só que com um di- governantes forem capazes de resistir a tais pressões, fiscal. O resultado é uma política que, em vez de melho- cia no poder entre representantes de grupos distintos ferencial: a capacidade de endividamento do Estado é os conflitos políticos são inevitáveis, principalmente rar a situação, agrava a enfermidade ainda mais. aumenta as chances de que se consolide conjunto de maior do que a de qualquer outro agente na sociedade. em relação às prioridades da ação governamental e Na Europa, as linhas gerais de uma solução para incentivos que orientem os governantes a decidir em É somente quando os governos mantêm-se sol- quanto aos meios preferidos para implementá-las. a crise na qual as economias da zona do euro estão en- prol dos interesses dos governados. Entre esses incen- ventes que o dinheiro – o meio mais efetivo de paga- Na análise da crise econômica recente, não fal- redadas não são difíceis de imaginar. Elas passariam tivos destaca-se uma estrutura de direitos inalienáveis mento e, na ausência de inflação, a mais segura- re tam culpados: a ganância e a imoralidade daqueles en- pela garantia de que a dívida dos países do grupo PII- dos cidadãos, entre os quais sobressaem os direitos serva de valor – permanecerá confiável como meio de gajados em atividades financeiras; ideias econômicas GS – Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha – seria, civis, políticos e sociais. troca. Dessa forma, o gerenciamento macroeconômico inadequadas; políticos incompetentes; dívida pública em parte, perdoada ou financiada por meio da emissão A política, costuma-se dizer, é a arte do possí- é importante variável na dinâmica das crises financei- elevada; parâmetros regulatórios frouxos; uso irres- de novos títulos ou por meio de recursos provenientes vel. Mas as possibilidades são moldadas tanto por ras. Os instrumentos de controle da política monetária ponsável de novos instrumentos financeiros; desequi- de um fundo comum. Em troca, os países mais endivi- nossas decisões quanto por nossas circunstâncias. O fornecem incentivos a investimentos em ativos de bai- líbrios macroeconômicos internacionais, etc. Mas, no dados deveriam comprometer-se a executar programas jogo da política não é incompatível com fortalecimen- xa ou de alta liquidez. O alto endividamento do Estado contexto atual, os problemas de economia política vão plurianuais de redução de gastos, reestruturar as ins- to do capitalismo no longo prazo. Liberdade política pode resultar em dinâmicas especulativas e diminuir além da atribuição de responsabilidades. As democra- tituições e implementar reformas que aumentassem a e liberdade econômica reforçam-se mutuamente para ou aumentar o preço do crédito na economia. Além cias ocidentais têm-se demonstrado insatisfatórias na sua competitividade. promover estabilidade, segurança e prosperidade. disso, é essencialmente perigosa a combinação entre produção de consensos críveis que exijam comprometi- Novamente, os obstáculos políticos a esse tipo Crises financeiras, como a que vivemos hoje, não são uma política fiscal frouxa e uma política monetária pou- mento político em médio prazo para fornecer respostas de acordo não são fáceis de transpor. Políticos dos completamente previsíveis – e certamente irão ocor- co disciplinada. adequadas aos desafios econômicos. Tanto nos Esta- demais países da zona do euro – além de seus elei- rer novamente. Mas a imprevisibilidade não é descul- É necessário salientar que nenhum sistema é dos Unidos quanto na Europa, os custos dessa restri- tores – podem duvidar que os futuros governos da pa para cruzar os braços. As crises financeiras pelas perfeito – e com a política não é diferente –, no sentido ção ampliaram a crise – e obscureceram a solução. Grécia, da Espanha ou da Itália irão cumprir os com- quais passaram economias emergentes da América de que fornece apenas incentivos ao comportamento Nos Estados Unidos, há amplo debate sobre promissos assumidos pelos líderes atuais. Exigir pro- Latina e do Leste Asiático nas décadas de 1980 e responsável de agentes. Os governantes também têm quais medidas seriam necessárias para evitar um du- messas de ação futura em troca de um benefício no de 1990 colocaram em evidência importante ensina- interesses específicos em obter renda, prestígio e po- plo mergulho recessivo, retomar o crescimento econô- presente não é algo facilmente aceitável por políticos mento de política econômica: uma estratégia eficaz de der em um ambiente de incerteza e de risco, por meio mico e reduzir a taxa de desemprego. Há consenso de ou por investidores em busca de ganhos específicos. endividamento faz parte de uma estratégia global de da alavancagem de recursos de terceiros (impostos e que a dívida pública do país é muito alta e precisa ser Quando os riscos de calotes são elevados, maiores desenvolvimento. Por aqui, buscou-se formular novos tributos). Eles atuam sob informação imperfeita, pres- reduzida. Embora não haja solução fácil e rápida para garantias são exigidas. arranjos institucionais e novas regras capazes de con- sões políticas e conflitos internos. Os limites a uma ges- esses problemas, é indiscutível que a economia norte- Na política e na economia, mesmo quando os trolar gastos e criar previsibilidade no gerenciamento tão eficiente da economia são, portanto, amplos. -americana precisa de nova rodada de estímulo fiscal indivíduos querem tomar as melhores decisões, as macroeconômico. Afinal, o principal desafio – seja às Nenhum indivíduo, seja ele uma autoridade pú- em curto prazo para compensar a baixa demanda pri- condições adversas a que estão submetidos normal- economias emergentes ou às desenvolvidas – é apri- blica ou um investidor, é capaz de prever com exatidão vada e de um programa de consolidação fiscal crível de mente constituem graves empecilhos. Interesses con- morar as regras do jogo para tornar possível a conti- quais serão os resultados obtidos no mundo da econo- longo prazo. flitantes, informações imperfeitas e o risco de que as nuidade do próprio jogo. mia e das finanças. Isso ocorre por várias razões: limi- Essa resposta em duas vertentes – gastar agora promessas não sejam cumpridas criam incertezas e tações cognitivas; inexistência de dados confiáveis (so- e cortar depois – requer amplo acordo bipartidário ca- dificuldades para o controle daqueles a quem delega- bre o presente ou, pior, sobre o futuro); impossibilidade paz de tornar possível e factível a sua realização, pois o mos poder, seja para usar nossa poupança, seja para de antecipar com precisão as ações e reações dos de- presidente Barack Obama não detém meios para com- regular a economia. mais agentes; incapacidade de processar e analisar a prometer a si próprio ou futuros governos a um aperto Apesar das falhas inerentes às democracias de Diogo Ramos Coelho é formado em Relações tempo todas as informações disponíveis, etc. Além dis- fiscal. Em época de eleição, distintos interesses estão mercado, esse sistema funciona de modo mais efi- Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e so, em razão da magnitude de seus próprios poderes, em jogo. A disputa presidencial faz com que qualquer ciente se os governantes forem forçados a ouvir as Mestrando em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (IRBr). os políticos são objeto de fortes pressões de grupos de referência a novo pacote de estímulo se torne convite demandas de parcelas cada vez mais abrangentes da [[email protected]]

100 101 O câmbio como instrumento de política O Fundo Monetário Internacional O GATT 1994 O artigo IV dos Articles of Agreement do FMI, inti- O artigo XV:4 do GATT 1994 refere-se aos arranjos comercial e as regras multilaterais em vigor tulado Obligations Regarding Exchange Arrangements, e práticas cambiais dos membros da OMC que podem permite aos Estados-membros adotar o regime cambial produzir efeitos para o comércio internacional. Nesse que lhes aprouver. Não obstante, no artigo IV.(iii) do sentido, o artigo XV:4 do GATT 1994 estabelece a regra mesmo tratado está expresso que os Estados-membros de que os membros não devem, por meio de ações cam- Desafios e Perspectivas devem “evitar a manipulação de suas taxas de câmbio” biais (exchange actions), frustrar o intento das discipli- com o intuito de “ganhar vantagens competitivas injus- nas do Acordo. Leandro Rocha de Araujo, Martin Kämpf e Samo Gonçalves tas sobre os demais membros”. A nota suplementar ao artigo XV esclarece que a Embora o artigo seja claro, durante muito tem- palavra “frustrar” deve ser lida de maneira específica. po, o FMI não havia definido o que significava “manipu- Isso significa que, para o artigo XV:4, violações à letra de taxa de câmbio de um país afeta diretamente o tabelecimento de taxas de câmbio flutuante, determina- lação cambial”. Em 2007, após a adoção da Decisão qualquer artigo do GATT 1994 por meio de ações cam- preço internacional dos bens ali produzidos e o das pelo mercado. sobre Supervisão Bilateral, denominada Principles of biais não devem ser consideradas como uma violação do preço doméstico dos bens importados. Por suas Com a busca de saídas sustentáveis para a crise Fund Surveillance over Exchange Rate Policies, o Fun- artigo se, na prática, não existir “afastamento considerá- A do definiu esse conceito.4 Segundo a Decisão, medidas vel” da intenção do artigo violado. Assim, além de violar características, a política deliberada de manter a taxa econômica mundial que eclodiu em 2008, todavia, a vi- de câmbio desvalorizada1 configura uma forma de “pro- são do câmbio como variável que deveria se ajustar na- que causem depreciação cambial ou que impeçam o alguma das disciplinas do GATT 1994, a medida cambial tecionismo macroeconômico”. Uma moeda desvaloriza- turalmente às necessidades de equilíbrio macroeconô- câmbio de se apreciar, com a finalidade de se ampliar deve também levar a um afastamento significativo em da não só diminui o custo relativo dos bens exportados, mico está deixando de ser predominante, uma vez que as exportações líquidas, são consideradas manipula- relação ao objetivo do mesmo dispositivo para que haja mas também causa o efeito similar ao de uma barreira diversos países passaram a manipular sua taxa cambial ção cambial. a efetiva violação do artigo XV:4 do GATT 1994. tarifária, encarecendo o preço dos produtos importados. para estimular suas exportações e, consequentemente, Ante o exposto, pode-se dizer que, após 2007, Em primeiro lugar, cumpre examinar o que seriam O presente texto tem por objetivo examinar os reflexos o seu crescimento econômico. parece haver base legal, à luz dos acordos do FMI, as ações cambiais (exchange actions) em questão. Há de políticas cambiais desvalorizadas para o comércio in- Cumpre salientar que existe praticamente um con- para contestar países que utilizem taxas de câmbio de- divergências sobre se essas ações estariam restritas a ternacional, bem como as principais regras multilaterais senso entre os estudiosos de economia internacional de preciadas para ampliar suas exportações. A despeito questões de conversibilidade e de liberalização de pa- em vigor e as mais recentes iniciativas internacionais a que as taxas de câmbio reais depreciadas estimulam as dessa constatação, é importante lembrar que, diferen- gamentos. Contudo, nas versões oficiais em espanhol e respeito do assunto. exportações e desestimulam as importações. O câmbio temente da OMC, o FMI não dispõe de um mecanismo francês do mesmo dispositivo, são empregados termos depreciado teria, segundo os autores, o mesmo efeito de solução de controvérsias, o que desestimula os mais genéricos, como “medida en materia de cambio” A manipulação das taxas de câmbio como instrumento que uma tarifa de importação (RODRIK, 2009; LEVY- Estados-membros a levarem esse tipo de assunto para e “toute mesure de change”, o que permite inferir que de política econômica -YEYATI e STURZZENEGGER, 2007; KORINEK e SERVEN, discussão no Fundo, pois qualquer decisão tomada no esse conceito abrange qualquer medida de câmbio, in- As vantagens comerciais decorrentes de uma po- 2010; CLINE, 2010).2 âmbito da organização padecerá do enforcement ne- clusive uma política de persistente desvalorização, quan- lítica de desvalorização cambial podem ser vistas como Essa questão cambial ganhou destaque nos cessário para que o Estado que manipula câmbio cum- do adotada por instituições governamentais. uma forma de competição desleal, pois conferem bene- últimos anos, sobretudo, em razão dos países en- pra o que foi decidido. Em suma, para a utilização do artigo XV:4 do GATT fícios aos produtores domésticos de maneira artificial. volvidos nessa discussão. De um lado, está a China, 1994 como fundamento para uma demanda perante o O uso sistemático ou deliberado dessas práticas pode segunda maior economia do mundo, maior produto- A Organização Mundial do Comércio e as OSC, são necessários: (i) demonstrar a existência de uma causar uma série de efeitos negativos ao comércio inter- ra mundial de bens manufaturados e maior expor- desvalorizações competitivas medida cambial; (ii) demonstrar que houve a violação de nacional, desviando fluxos comerciais, distorcendo pre- tadora mundial. De outro, os EUA, país com a maior A OMC, por meio do Órgão de Solução de Contro- algum dos dispositivos do GATT 1994; e (iii) estabelecer ços e aumentando o protecionismo. No entanto, ainda dívida externa mundial (em termos absolutos), défi- vérsias (OSC), vem sendo aventada como uma das vias de que maneira a medida frustra, de forma considerável, que os efeitos negativos de políticas de desvalorização cit comercial superior a US$ 600 bilhões de dólares para o questionamento sobre a legalidade das medidas os objetivos da referida disciplina. cambial sejam amplamente reconhecidos, seria a ado- (2010) e que se encontra em situação econômica de subvalorização cambial adotadas por seus membros. Assim, essa política de desvalorização do câmbio ção dessas práticas algo ilegal frente ao direito interna- difícil, com baixo crescimento econômico e taxa de Há, contudo, grandes controvérsias a respeito da própria deveria violar algum outro dispositivo do GATT 1994 além cional econômico? desemprego relativamente elevada – superior a 9%. utilização do mecanismo de solução de controvérsias da do próprio artigo XV:4, causando um relevante afasta- Não há menção explícita à manipulação da taxa Para inflamar ainda mais os ânimos políticos, em OMC para o questionamento de políticas cambiais que mento do objetivo daquele artigo. Considerando que um de câmbio nas regras do General Agreement on Trade 2007, a China obteve superávit comercial de cerca afetem o comércio internacional. James Bacchus (2010) câmbio persistentemente desvalorizado poderia acarre- and Tariffs (GATT) de 1994. Firmado em 1947, o GATT de 11% do Produto Interno Bruto (PIB) e, em 2009, argumenta que um litígio na OMC deveria ser o último tar um tratamento mais vantajoso para os produtos do- 5 estava inserido em um contexto marcado pelo Sistema representou aproximadamente 44% de todo o déficit recurso para tratar dessa questão. mésticos do país que aplica a medida em detrimento dos de Bretton Woods, com a adoção generalizada de ta- comercial dos EUA.3 Ainda assim, é importante examinar as regras produtos importados, poder-se-ia avaliar eventual viola- xas cambiais relativamente fixas. Ao ser atualizado, em Independentemente dos Estados envolvidos, é líci- multilaterais substantivas que versam sobre o assunto, ção aos artigos II e III do GATT 1994. 1994, embora o sistema de câmbio fixo já estivesse ex- to afirmar que a utilização de política cambial, como ins- a fim de avaliar a possibilidade de êxito em eventuais O artigo II, que se refere à Lista de Compromissos tinto há várias décadas, o contexto internacional, marca- trumento de política comercial, pode gerar atritos entre questionamentos perante a organização. A seguir, serão dos Membros da OMC, estabelece as tarifas consolida- do pelo fim da bipolaridade, favorecia uma convergência os países. Nesse contexto, serão examinadas as regras examinados dispositivos do GATT 1994, do Acordo de das que definirão os limites máximos para as tarifas de aos preceitos do chamado Consenso de Washington, do FMI e da OMC, a fim de incluir o uso da manipulação Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) e do Acor- importação dos membros. Uma moeda desvalorizada que receitava a adoção de práticas liberais, como o es- cambial no rol de práticas questionáveis. do de Valoração Aduaneira (AVA) referentes à matéria. poderia ser considerada como uma tarifa adicional à ta- 102 103 rifa aplicada aos produtos importados, podendo mesmo era possível prever a situação adversa que seria criada méstico. Como a moeda desvalorizada não confere um Conforme pode ser observado, enquadrar a mani- levar à superação da tarifa consolidada? pela posterior medida. benefício no preço do produto exportado em compara- pulação cambial como subsídio nos termos do ASMC é Em recente artigo, Vera Thorstensen sugere que Nesse contexto, qualquer membro, para que ve- ção ao mercado doméstico, não seria possível justificar a uma questão controversa, que ainda não foi esgotada. O sim, o que poderia levar à suposição de que essa tari- nha a contestar medidas cambiais perante o OSC com qualificação dessa política como um subsídio ilegal. argumento mais forte a favor da possibilidade se baseia fa adicional decorrente da medida cambial poderia, no base no artigo XXIII:1(b) do GATT 1994, deverá demons- Examinando o segundo requisito do artigo 1o do na presunção de haver uma transferência de fundos em limite, acarretar a violação do artigo II (THORSTENSEN, trar que não poderia prever as mudanças estabelecidas ASMC, é possível inferir que um benefício é concedido operações cambiais feitas por exportadores; por outro 2011).6 Para ela, “os desalinhamentos cambiais afetam pelo outro membro e que lhe retiraram ou reduziram o ao manter a moeda desvalorizada, pois torna as expor- lado, a especificidade da medida é de difícil comprovação. diretamente os níveis de concessões oferecidos nas ne- benefício, com a alteração da relação competitiva entre tações mais baratas. De acordo com a jurisprudência do gociações e os níveis de abertura comercial negociados produtos importados e nacionais devido à medida ques- Órgão de Apelação da OMC, um benefício é concedido O Acordo sobre Valoração Aduaneira na OMC”. Deve-se ressaltar que o artigo II.6(a) do GATT tionada. se uma contribuição financeira é feita em termos mais O Preâmbulo do Acordo sobre Valoração Aduanei- 1994 estabelece que, em caso de redução, em mais de favoráveis do que aqueles disponíveis no mercado. Nes- ra (AVA) reconhece a necessidade de um sistema equita- 20%, do valor da moeda de determinado Membro, os di- O Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias se sentido, com base na tese de que, ao pagar mais pela tivo, uniforme e neutro para a valoração de mercadorias reitos específicos, encargos e margens de preferência Para que uma medida seja considerada como sub- moeda estrangeira, haveria uma transferência de fundos para fins aduaneiros, afastando a utilização de valores aplicados por outro Membro poderão ser ajustados, le- sídio nos termos do artigo 1o do ASMC, três elementos em moeda local do governo para os exportadores, pare- aduaneiros arbitrários ou fictícios. vando-se em conta essa redução. Contudo, não há juris- devem ser identificados: contribuição financeira ou qual- ce lógico concluir que as empresas exportadoras rece- O Acordo deve ser utilizado como forma de garantir prudência a esse respeito na OMC, e uma interpretação quer forma de apoio financeiro ou de renda nos termos bem um benefício. maior uniformidade e precisão no momento de definição de que a desvalorização cambial poderia ser considera- do artigo XVI do GATT 1994, benefício e especificidade. O montante do benefício equivale à diferença do valor aduaneiro das mercadorias, com vistas a evitar da uma nova tarifa de importação é algo bastante com- No que se refere à contribuição financeira, Sohl- entre o que o exportador recebe em moeda local ao fraudes e também para permitir a correta aplicação dos plexo e que demandaria estudos mais aprofundados. berg (2011) afirma que o conceito decontribuição finan- trocar sua receita em moeda estrangeira e o montante tributos incidentes na importação. Cumpre indagar se No caso do artigo III, seria razoável considerar que ceira governamental conota uma clara transferência de que ele receberia se a taxa de câmbio não fosse mani- o AVA poderia ser utilizado para a modificação do valor as medidas cambiais poderiam ser enquadradas como recursos econômicos para um destinatário nacional.7 pulada. A dificuldade está em determinar qual seria a aduaneiro das mercadorias provenientes de países que ações governamentais para os fins do dispositivo, bem Cabe verificar se essa transferência é obtida por meio da real taxa de câmbio, para a medição do benefício; no promovem a desvalorização de suas moedas. como que a desvalorização decorrente da política cam- moeda desvalorizada. O artigo 1.1(a)(1) do ASMC provê entanto, pode-se alegar que, se não há um consenso Para a correta definição do valor aduaneiro das bial afetaria o preço das mercadorias importadas no uma lista exaustiva do que constitui contribuição finan- entre os especialistas sobre o método econométrico a mercadorias importadas, o AVA elenca diversos métodos mercado onde ocorre a desvalorização, afetando a ven- ceira, que, em uma primeira análise, não inclui referên- ser aplicado, a solução técnica indicada deve ser ar- de valoração, entre eles: (i) valor de transação; (ii) valor da interna, a oferta, a compra e a distribuição da mer- cia à manipulação cambial. bitrada, como ocorre em outras disputas na OMC que de transação de mercadorias idênticas; (iii) valor de tran- cadoria importada. No que se refere à possibilidade de No entanto, seria possível enquadrar a manipula- envolvem embates técnicos e a aplicação de metodolo- sação de mercadorias similares; (iv) valor de revenda; (v) a medida frustrar, “de forma considerável”, os objetivos ção cambial no escopo do artigo 1.1(a)(1)(ii) do ASMC gias conflitantes. valor computado; e (vi) valor obtido por critérios razoá- da referida disciplina, somente os relatórios do Painel e caso fosse levado em consideração o seu efeito indireto Verificada a possibilidade de existir contribuição veis. Em princípio, a ordem entre os métodos de valora- do Órgão de Apelação poderiam definir a real amplitude de restringir o fluxo de importações, o que resultaria, de financeira e benefício, deve-se analisar a ocorrência do ção deve ser mantida, somente passando-se ao próximo da norma, dada a ausência de jurisprudência da OMC a certa forma, em uma política governamental de deixar terceiro elemento necessário para que se configure um se houver a impossibilidade de utilização de determina- esse respeito. de recolher a devida receita aduaneira, configurando subsídio, a especificidade, nos termos do artigo 2 do do método anterior. O artigo XXIII:1(b) do GATT 1994 contempla de- uma contribuição financeira nos termos do artigo 1.1(a) ASMC. Existem duas maneiras de satisfazer esse cri- Desse modo, há uma sequência lógica para o cál- mandas baseadas em questionamentos de “não viola- (1)(ii) do ASMC. tério. Na primeira delas, o subsídio deve ser específico culo do valor aduaneiro das mercadorias importadas, não ção”. Esse dispositivo estabelece que um membro pode- Por outro lado, pode-se buscar caracterizar como para uma empresa ou indústria, um grupo de empresas podendo haver arbitrariedade nessa definição. Com isso, rá ser demandado se, por meio da adoção de qualquer resultado de uma medida de manipulação cambial a ou indústrias (artigo 2.1) ou deve ser específico para de- o AVA confere maior previsibilidade às relações comerciais medida, vier a anular ou prejudicar os benefícios conce- transferência direta de fundos, no sentido do item (i) da terminadas empresas dentro de uma região geográfica entre os membros da OMC. No que se refere aos méto- didos a outros membros, ainda que não haja qualquer alínea (a)(1) do parágrafo 1.1 do artigo 1o do ASMC. Com designada (artigo 2.2). Na segunda, se ele se enquadrar dos anteriormente descritos, não parece haver espaço, violação aos termos do GATT 1994. a taxa de câmbio desvalorizada, os exportadores pas- nos termos do artigo 3 do ASMC, automaticamente será em princípio, para a simples desconsideração do valor de Embora possa parecer, à primeira vista, relativa- sam a receber uma quantidade maior de moeda local ao considerado específico (artigo 2.3). transação (e da aplicação de outros métodos), bem como mente simples iniciar uma disputa no OSC com base trocar a moeda estrangeira obtida nas operações de ex- De acordo com o artigo 2.3, o requisito de especi- da desconsideração de qualquer um dos demais méto- nesse dispositivo, a jurisprudência a esse respeito mos- portação. Sob essa perspectiva, há uma clara política de ficidade pode ser alcançado se o subsídio se enquadrar dos, em razão de eventual política cambial desvalorizada tra que a sua interpretação é bastante restritiva, em ra- transferência direta de fundos em moeda local pelo go- nos termos do artigo 3 do ASMC. Para isso, o subsídio adotada por determinado membro da OMC. zão de sua natureza excepcional. A aplicação de uma verno do país exportador, que paga um valor mais eleva- deve ser caracterizado como um “subsídio à exportação”, O artigo 9º do AVA faz referência expressa à taxa de medida por um membro deve acarretar a anulação ou do pela moeda estrangeira ao desvalorizar seu câmbio.8 ou seja, um subsídio condicionado ao desempenho ex- câmbio a ser utilizada, quando houver a necessidade de prejuízo aos benefícios concedidos ao amparo do GATT Com relação ao artigo 1.1(a)(2) do ASMC, Herr- portador. Segundo Sohlberg (2011), como os efeitos são conversão de moeda para a determinação do valor adu- 1994 e, por fim, deve haver expectativas legítimas em mann (2010) afirma que, analisando o artigo XVI:4 do sentidos em toda a economia, não se pode concluir que aneiro, indicando que ela será aquela que for publicada relação a esses benefícios. O membro que se considerar GATT, a definição dos subsídios à exportação contém a desvalorização cambial constitui um subsídio à exporta- pelas autoridades competentes do país importador. Em- prejudicado deverá considerar que, no momento da ne- uma referência implícita à lógica de antidumping, ao de- ção apenas com base na tendência de que as empresas bora seja possível imaginar que as autoridades do país gociação das concessões afetadas pela medida, não lhe terminar a comparação entre o preço exportado e o do- exportadoras sejam as maiores beneficiadas. importador sejam competentes para definir as taxas de

104 105 câmbio aplicáveis, isso não significa que poderá adotar de alto nível da instituição, a diferença de poder de voto zação cambial eventualmente promovida por Mem- discricionariamente qualquer taxa de câmbio que consi- entre os Estados-membros poderia politizar ainda mais bros da organização. 1 Neste trabalho, os verbos desvalorizar e depreciar serão usados derar pertinente. O próprio dispositivo estabelece que a a questão. Cumpre destacar ainda que pressão coletiva po- como sinônimos. taxa de câmbio deverá refletir, tão efetivamente quanto Outra possibilidade seria a ampliação do espec- deria ser uma outra forma de constranger o governo 2 Os autores referidos são: RODRIK, D. “The Real Exchange Rate possível, o valor corrente de tal moeda nas transações tro de atuação da OMC, com a incorporação de novas de um Estado a rever suas práticas cambiais abusivas. and Economic Growth”. In: Brookings Papers on Economic Activi- comerciais. regras, de modo que seja possível iniciar um caso com Nesse sentido, o G-20 financeiro, em seu papel como o ty. Washington, DC: Brookings Institution, 2009; LEVY-YEYATI, E. & Diante disso, surgem algumas questões: (i) como maiores chances de êxito no OSC contra um membro que principal foro de concertação sobre políticas econômi- STURZENEGGER, F. Fear of Appreciation. Policy Research Working deveria ser definido o valor corrente da referida moeda adote políticas de desvalorização competitiva. Em abril co-financeiras, poderia assumir a função de verificar e Paper 4387, 2007; KORINEK, A. & SERVÉN, L. Undervaluation nas transações comerciais?; (ii) seria necessário obser- de 2011, o Brasil apresentou, perante o Grupo de Tra- de denunciar países que adotassem medidas de desva- through Foreign Reserve Accumulation: Static Losses, Dynamic var as transações de determinado país com diversos balho sobre Comércio, Dívida e Finanças da OMC, uma lorização competitiva da sua taxa de câmbio. Growth. Policy Research Working Paper 5250. World Bank, 2010.; outros países? Se sim, quais e em que proporção?; (iii) proposta (WT/WGTDF/W/53, de 13.4.2011) em que de- Embora seja possível questionar qual seria o CLINE, W. & WILLIAMSON, J. Currency wars?. Washington DC: Pe- poderia um membro da OMC considerar arbitrariamen- fendeu um programa de trabalho sobre o tema câmbio e mandato de um agrupamento informal de países para terson Institute for International Economics, 2010. te que a moeda de outro membro está desvalorizada e comércio internacional fundado em dois pilares: (i) enfo- chancelar ou não a política cambial de um país, dada 3 Nota-se, portanto, que esse assunto ganhou dimensão política, assim estabelecer, unilateralmente, um fator de corre- que econômico, baseado na elaboração de estudos e se- a sua representatividade, conformando cerca de 90% uma vez que o crescimento das exportações chinesas tem sido ção da taxa de câmbio considerada desvalorizada?; (iv) minários sobre a relação entre câmbio e comércio inter- do PIB mundial e de 80% do comércio internacional, associado, em grande medida, à depreciação do reminbi vis-à-vis como seria quantificada essa eventual desvalorização? nacional; e (ii) enfoque institucional, focado na análise pode-se inferir que o G-20 tem legitimidade e que, outras divisas internacionais. Segundo o FMI, em 2010, 79 países- Não há jurisprudência do OSC a respeito desse da coerência global relativa a comércio internacional e dado o peso político do agrupamento, suas decisões -membros adotam algum tipo de âncora cambial (pegging exchan- dispositivo, de modo que essas indagações continuam política financeira e assuntos relacionados à governança teriam efetividade. Aliado às recentes discussões que ge arrangement). Essa informação sugere que economias menores em aberto. O fato é que o critério existente deve ser ob- global, por meio da elaboração de estudos sobre a coe- começam a ganhar força na OMC, o G-20 também po- também recorrem a tais instrumentos, mas, como seu impacto so- servado e assim o valor corrente deve ser o parâmetro. rência na atuação da OMC, do FMI e do Banco Mundial deria servir de ponto de coordenação para que seus bre o comércio internacional é reduzido, elas não têm sido alvos de Isso reafirmaria o previsto no próprio Preâmbulo do AVA, no que se refere ao tema câmbio e comércio internacio- membros exercessem pressão coletiva sobre o FMI, pressão política por parte de países desenvolvidos. Outras informa- que destaca o objetivo de previsibilidade visado pelo nal. O primeiro pilar contou com amplo apoio dos Mem- impulsionando novas reformas que possibilitem que ções podem ser encontradas em: CLINE, W. The United States as a acordo. Se os países começassem a aplicar arbitraria- bros da OMC, enquanto o segundo gerou mais debates e esta instituição lide de maneira apropriada com os ca- debtor nation. Washington DC: Institute for International Economics mente correções a taxas de câmbio que considerassem controvérsias (WT/WGTDF/10, de 15.11.2011). sos de manipulação cambial. e Center for Global Development, 2005. desvalorizadas, provavelmente um cenário de guerras Mais recentemente, em setembro de 2011, 4 “A member would be acting inconsistently with Article IV.(iii), if cambiais/comerciais poderia ter início entre os diversos o Brasil apresentou nova proposta ao Grupo de Traba- the Fund determined it was both engaging in policies that are tar- membros da OMC. lho sobre Comércio, Dívida e Finanças da OMC (WT/ geted at and actually affect the level of exchange rate, which could Desse modo, o AVA não parece conferir, em prin- WGTDF/W/56, de 20.9.2011). Com base nessa propos- Leandro Rocha de Araujo é Doutor em Direito Internacional mean either causing the exchange rate to move or preventing it cípio, sustentação jurídica a medidas de compensação ta, o Brasil sugeriu que o Grupo de Trabalho examinas- pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Direito from moving; and doing so for the purpose of securing fundamental quando da importação de mercadorias provenientes de se os mecanismos disponíveis e as medidas de defesa Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais exchange rate misalignment in the form of an undervalued exchan- países que supostamente mantém suas moedas desva- comercial existentes no âmbito do sistema multilateral (UFMG) e formado em Direito pela mesma instituição. ge rate in order to increase net exports.” lorizadas. de comércio em vigor, para que fosse permitida a com- [[email protected]] 5 BACCHUS, James. Don’t push the WTO beyond its limits. The Wall pensação ou a correção das flutuações cambiais que Street Journal, 25/03/2010. Mecanismos futuros para proteção contra viessem a prejudicar os compromissos assumidos pelos Martin Kämpf é formado em Ciência da Computação pela 6 THORSTENSEN, Vera; MARÇAL, Emerson; FERRAZ, Lucas. Impac- desvalorizações competitivas Membros nas sucessivas rodadas de negociação. Nes- Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). tos do câmbio nos instrumentos de comércio internacional. Agosto Dada a dificuldade de demandar um país legal- se contexto, o Brasil propôs a realização, no primeiro tri- [[email protected]] de 2011. No prelo. mente por praticar desvalorização competitiva da sua mestre de 2012, de um seminário sobre a relação entre 7 SOHLBERG, Marcus. The China Currency Issue: Why the World taxa de câmbio, diversos autores sugerem mudanças câmbio e comércio internacional. Samo Gonçalves é Doutorando em Economia pela Univer- Trade Organization Would Fail to Provide the United States with an nas regras do FMI e da OMC como a solução para com- Em outubro de 2011, foi aprovada a proposta sidade Católica de Brasília; Mestre em Relações Internacio- Effective Remedy. Cornell Law School Inter-University Graduate Stu- bater esse tipo de prática. brasileira de realização do seminário no primeiro trimes- nais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro dent Conference Paper. Paper 43, 2011. Disponível em: . de um sistema de solução de controvérsias e de meca- ticipação de funcionários dos Membros da OMC, de re- ções Internacionais pela Universidade Estácio de Sá, Rio de 8 STAIGER, Robert W. & SYKES, Alan O. “Currency manipulation” nismos de enforcement, nos moldes dos existentes na presentantes de organismos internacionais, como FMI, Janeiro. and world trade. Stanford Law School. Olin Working Paper n. 363. OMC. Como os votos dos Estados-membros do Fundo UNCTAD e Banco Mundial, de membros do setor privado [[email protected]] 2008. Disponível em: . Monetário são ponderados, os Estados Unidos e a União e de acadêmicos. Europeia teriam um poder excessivo nas decisões. O A aprovação dessa proposta representa um mesmo argumento se aplica no caso de uma ampliação passo inicial para aprofundar a discussão sobre os da cooperação do FMI com a OMC, de modo que a insti- impactos do câmbio para o comércio internacional na tuição financeira ficasse responsável por determinar se OMC. Nesse sentido, é importante ressaltar a impossi- uma taxa de câmbio está desvalorizada. Como o relató- bilidade de os atuais mecanismos existentes na OMC rio do Fundo teria de ser autorizado em uma instância ajustarem desequilíbrios acarretados pela desvalori-

106 107 “A medida do quanto um país é O caminho que lhes está aumentando a pros- é a da “privatização” do casamen- peridade, o empreendedor mere- democrático é a to: o Estado deixaria de estabele- ce ipso facto ter recompensado cer normas para essa instituição, e aumentado o capital que arris- medida do quanto deixando inteiramente a cargo cou. Assim, o liberalismo econô- aplica os princípios dos indivíduos estabelecerem, en- Liberal mico é sinônimo de capitalismo, tre si, os direitos e obrigações que Bruno B. A. Parga de economia de livre mercado – liberais” hoje são codificados em lei. Natu- com ênfase na liberdade. ralmente, por envolver um contra- Em consequência, para o to, este deveria ser tão protegido liberalismo econômico, o Estado pelo Estado como os demais. credito que a liberdade é o supremo valor moral. proteger sua liberdade e garantir o cumprimento dos acor- – que os indivíduos constituem para seu benefício e não seu Embora minha defesa da liberdade tenha por base os Por isso sou liberal. Da forma como o vejo, o li- dos voluntariamente contraídos criando o Estado. Assim, prejuízo – deve promover a prosperidade geral. Como esta princípios inicialmente expostos, há um argumento final em fa- beralismo tem três facetas principais – política, este deve, pelos próprios motivos que levam à sua criação, decorre, conforme se viu, da livre empresa, cabe a ele man- vor do liberalismo que, embora subordinado a tais princípios, econômica e social. Estas, no entanto, não são respeitar a liberdade e, tanto quanto possível, a vontade ter o melhor ambiente possível para que o empreendimento não deixa de ter um poder próprio de persuasão. Trata-se do A“partes”, dentre as quais uma seleção seja cabível. Isto é: de seus cidadãos; daí porque não pode governá-los sem ocorra, ciente de que qualquer atuação sua – ainda que in- fato de que os países mais avançados do planeta – aqueles adotar apenas alguns dos princípios liberais, descartando sua participação, não pode detê-los arbitrariamente, não dispensável – tende a perturbar esse ambiente. Por exem- que lideram essencialmente todas as comparações honestas outros, só é possível com sacrifício da coerência de posi- pode cercear-lhes a expressão do pensamento, não pode plo: visto que o Estado monopoliza a moeda que deve ser e objetivas entre sociedades – aderem ao que aqui defende- ções. A distinção entre as facetas faz-se apenas por motivos impor-lhes crenças que lhes sejam abomináveis, não pode usada para transações, é sua obrigação garantir a estabili- mos, com maior ou menor ênfase em determinados aspec- de exposição. privá-los de sua propriedade de acordo com seus caprichos. dade do valor da mesma. Como os cidadãos são iguais entre tos conforme os costumes e os usos de cada nação. Assim, O liberalismo político é a ideia de que o indivíduo é Portanto, os cidadãos de um Estado liberal detêm, intrinse- si, ao Estado não é lícito usar de seu poder para aumentar os liberalismos político e econômico proveem aos Estados livre em si, livre em relação aos outros. No cerne desta ideia camente, uma série de direitos que vieram a ser conhecidos a renda de cidadãos-empreendedores nacionais cuja produ- Unidos sua primazia no cenário mundial. Além disso, é uma encontra-se o indivíduo: uma figura cuja existência autôno- como “direitos civis e políticos” ou “direitos humanos de pri- ção não se sustenta pelo único critério válido – o de mer- vindicação das ideias que defendo neste artigo, e não uma ma considera-se aqui como evidente por si mesma. É impor- meira geração”. cado – em detrimento da renda de cidadãos-consumidores refutação, o fato de a China vir caminhando, desde as refor- tante levantar este ponto para distinguir o indivíduo de ou- Vale notar que estes conceitos, o que aqui se chama que se beneficiariam de produtos estrangeiros concorrentes mas de Deng Xiaoping em 1978, rumo à economia de merca- tras figuras que têm o ser humano como elemento – grupos, de liberalismo político, são amplamente difundidos. A medi- dos nacionais. Ora, é exatamente este o efeito de medidas do. Na Europa, a Escandinávia e os Países Baixos adotam um classes, raças, nações – no sentido de que a existência des- da do quanto um país é democrático é a medida do quanto protecionistas. Eis porque estas são moralmente questioná- Estado talvez superdimensionado, mas essencialmente bem tas é mediatizada pela existência individual, esta imediata. aplica os princípios liberais. veis, do ponto de vista do liberalismo. orientado: suas redes de proteção social dirigem-se primaria- Em outras palavras, elas não existem por si mesmas, mas Infelizmente, há menos consenso em torno dos valo- Também cabe examinar o que entendemos por liberalis- mente aos indivíduos, que, em consequência, organizam-se sim apenas na medida em que os indivíduos lhes empres- res do liberalismo econômico. Aqui, a ideia central é que mo social. Trata-se da ideia de que, sendo a liberdade o valor nas sociedades de maior desenvolvimento humano e maior tam existência. Uma ilustração da diferença: um indivíduo os indivíduos são livres para procurar a prosperidade. Como supremo, esta deve ser maximizada para todos os indivíduos. liberdade do planeta. Visto que somos todos humanos, visto poderia renunciar à vida em sociedade e ir viver (miseravel- aludido acima ao se falar de eremitas, a experiência de- Em outras palavras, nada deve ser proibido aos cidadãos, des- que nossos direitos e nossas necessidades são os mesmos mente, é claro – e voltaremos a este ponto) totalmente só, monstra que a prosperidade somente se pode obter na livre de que envolva o consenso de todos os indivíduos envolvidos e em toda parte, visto que o caminho correto a ser trilhado já como um eremita; sua existência, fato natural, só se extin- interação entre indivíduos senhores de suas propriedades, capazes de dá-lo e não prejudique direitos de terceiros. Assim, está esclarecido pela experiência alheia, defendo que adote- gue naturalmente, pela morte. Grupos, por outro lado, não trocando bens e serviços entre si. Aliás, a prosperidade con- o que aqui se entende por liberalismo social implica ser favorá- mos, no Brasil, a ideologia que tem a liberdade como supremo existem se não contarem com indivíduo algum. siste, fundamentalmente, no acesso a bens e serviços. Ora, vel a diversas liberdades, como a de dispor de seu corpo, tra- valor moral: o liberalismo. Concluída esta necessária digressão sobre o indi- há indivíduos que decidem arriscar parte de suas proprieda- zendo consigo direitos como o uso de drogas e a eutanásia, e a de exercer sua sexualidade, o que significa que nada menos do víduo, pode-se apontar que a ideia de liberdade individu- des no provimento de bens e serviços aos demais; entende- Bruno B. A. Parga é formado em História pela Universidade de al veio à luz, em sua forma essencialmente completa, no -se que, se os indivíduos-consumidores decidirem retribuir, que a absoluta igualdade entre diversas orientações sexuais é São Paulo (USP). século XVIII. Constata-se que os indivíduos podem melhor com sua própria riqueza, a esse indivíduo-empreendedor justificável. Uma ideia que não deve ser descartada, a respeito, [[email protected]]

108 109 A integração entre passado e presente também pode ser observada no passeio de Maria Fumaça de Ti- Meu Brasil Mineiro radentes a São João del Rey, em que uma paisagem repleta de morros e vales completa um cenário que Leandro Araujo, Marllon Abelha, Martin kämpf, Milena Vieira e Pedro Henrique Barbosa cativa o espírito e resiste ao tempo. Diferentemente do que pensava Carlos Drummond de Andrade, as

“Sobre o tempo, sobre a taipa, a chuva escorre. As paredes que paredes que viram, reviram e viram, ainda veem e reveem a transformação do Brasil. viram morrer os homens, que viram fugir o ouro, que viram finar-se o reino, que viram, reviram, viram, já não veem. Também morrem.” (Morte das Casas de Ouro Preto, Carlos Drummond de Andrade) A Maria Fumaça chegando a Tiradentes

Durante o período colonial, Minas Gerais foi um grande centro econômico e intelectual. A descoberta do ouro não só transformou a relação econômica entre Metró- pole e Colônia, mas também conferiu as bases para um projeto autônomo nacional, que viria a ser instituído poucas décadas depois. Não foi por outra razão que o ideal dos inconfidentes, “liberdade, ainda que tardia”, está gravado na bandeira do Estado. Se o ouro se tor- nou escasso em meados do século XVIII, outras riquezas ainda são abundantes. As tradições, a arte, a culinária e as belas paisagens de Minas são um convite para turis- tas de diversos lugares do mundo.

Vista de Ouro Preto a partir da Casa dos Contos

Ladeiras de Ouro Preto

A cidade de Ouro Preto, considerada patrimônio da hu- manidade pela UNESCO em 1980, preserva a história do Brasil em suas casas coloniais, ruas calçadas com pedra e igrejas barrocas. A preservação das tradições revela a

riqueza de sua história e a expressão de seus dias atuais. A rota São João del Rey-Tiradentes

É também na arte mineira que encontramos toda a fé característica do povo brasileiro. A forte religiosidade trazida pelos colonos portu- gueses está impressa nas paredes das igrejas de Aleijadinho e mestre Ataíde, na arquitetura barroca das cidades históricas e nas manifes- tações populares, celebrações, missas e vigílias durante a Semana Santa. Seja na encenação da Paixão de Cristo em Ouro Preto, seja na Procissão das Almas em Mariana, o brasileiro expressa o que tem de melhor: sua rica e vasta cultura e suas tradições.

Procissão das Almas, Mariana

A arte mineira tem reflexos em diversas áreas, como a gastronomia e o artesanato. A cozinha local é marcada por ricos Igreja Matriz de Santo Antônio sabores, aromas e cores variados, resultado da mistura de regiões e culturas que se uniram, atraídas pela riqueza das Uma visita a Minas Gerais, enfim, pode contribuir tanto para Minas Gerais. Do mesmo modo, o artesanato reflete toda a diversidade do Estado. As obras em pedra-sabão, as joias que os brasileiros conheçam e valorizem parte da própria de pedras preciosas e os objetos de decoração em cerâmica são um tesouro que merece ser explorado. história, quanto para que apreciem as belezas naturais desse Brasil, que é mineiro e também de todos os brasileiros. Casarão decorado para a celebração do Dia de Tiradentes, Ouro Preto

Leandro Rocha de Araujo é Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e formado em Direito pela mesma instituição. [[email protected]] Marllon Mello Abelha é formado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). [[email protected]] Martin Kämpf é formado em Ciência da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). [[email protected]] Milena Marques Vieira é formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). [[email protected]] Pedro Henrique Batista Barbosa é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). [[email protected]]

112 Gastronomia mineira em Tiradentes Artesanato no Largo de Coimbra, Ouro Preto 113 os pedestres, o horizonte. Trabalhava na repartição há O bater de portas e os passos rápidos nos corredores 35 anos, pensava. Fora dali, sentia-se perdido e vazio. deixavam adivinhar uma catástrofe iminente. A garrafa Dentro, sentia-se melancólico. térmica com o café da tarde já passava da hora de che- No dia do incidente, Genaro não sentira nada fora gar. Genaro teve medo de sair da sala e descobrir o pior, O Armário do habitual. Não era homem de pressentimentos. Um que ele não fazia ideia do que pudesse ser. De repente, sujeito esguio e pálido chegou logo após o horário do al- ouviu alguém dizer que o prédio poderia ser demolido. Maria Eugênia Zabotto Pulino moço à repartição, alegando precisar de uma entrevista Genaro compreendeu, enfim, que estavam todos se pre- urgente com a chefe. Seu Genaro não sabia o que respon- parando para sair. O velho ficou absolutamente atônito. der. Toda situação que fugia do habitual deixava-o aflito, Sentiu seu coração disparar, suas mãos suarem frio, sua eu Genaro chegava sempre atrasado à repar- um deleite para seus ouvidos. Era o som do cotidiano, paralisando sua já limitada capacidade de ação. Come- pressão cair. Uma forte vertigem o acometeu. Não podia tição. Não porque não conseguisse levantar- do dever cumprido, da honradez. Na repartição, quase çou, então, a gaguejar, e correu à sala de Marta. Dona partir sem a certeza de que voltaria no dia seguinte. -se a tempo, mas porque tinha assuntos a sempre silenciosa, gostava de ficar olhando para o va- Marta, tem um homi aí. Um magro. Tá com pressa. Quer As horas passavam e os funcionários iam embora, resolver antes do expediente. Estava preso zio, deixar seus pensamentos deslizarem de uma ideia falar cá senhora. Comunicar-se não era o forte de Seu Ge- um a um, do velho edifício. Marta saiu de sua sala, olhou Sna armadilha dos consultórios médicos. O cardiologista a outra, de um objeto a outro, sem formular raciocínios naro. A chefe já se habituara a isso e apenas mandou para Genaro e sentiu muita pena. O senhor não vai? Seu o encaminhava ao urologista, que, por sua vez, o man- completos. Gostava de ouvir os passos dos funcioná- que deixasse o sujeito entrar. Pedir maiores explicações a Genaro gargalhou de nervosismo. A chefe despediu-se e foi dava ver um oftalmologista. Era um ciclo infindável. rios no corredor, perceber que todos trabalhavam e Genaro seria certamente um erro. Confundiria ainda mais embora. As portas fechavam-se e ele ficou imóvel. Lá fora, Costumava chegar à repartição esbaforido e reclamão, cumpriam suas funções. A disposição dos outros era o raciocínio do velho. Entra o visitante, sai Genaro. a tarde empalidecia lentamente. O velho aproximou-se da queixando-se da quantidade de exames que precisava um alívio para sua apatia habitual. O homem estava visivelmente preocupado, inquie- janela e viu um grupo de bombeiros que evacuariam o pré- fazer. Completara, há pouco, 65 anos, e sua disposição Seu Genaro tinha a aparência um tanto grotes- to. Tinha no rosto a angústia conformada de um portador dio. Não sairia, decidiu-se. Quando os homens subiram, já não era mais a mesma, afinal. ca. Não era feio, era insólito. Seu rosto não tinha nada de más notícias. Análises recentes indicaram um sério Genaro escondeu-se no grande armário da repartição. Eles Sua chefe, Marta, não se incomodava com Seu de natural, parecia moldado para impressionar, como problema nas fiações do prédio, que era bastante antigo. entraram, chamaram por algum retardatário, revistaram as Genaro. Ele era apenas um pobre sujeito, pensava ela, uma máscara. Suas feições eram tão expressivas que Infelizmente, seria preciso evacuá-lo. O visitante falava salas. Genaro prendeu a respiração. Foram-se. Sentindo- semi-analfabeto e esquecido pelo mundo, como o armá- causavam uma repulsão inicial em quem o via. O quei- com voz de culpado, embora fosse somente o encarre- -se seguro, Genaro pôde voltar à sua cadeira. Continuou lá rio velho da repartição. A sala já havia mudado de nome xo era levemente avantajado e a arcada dentária infe- gado de transmitir os fatos. Teve o cuidado de não pare- como se fosse um dia de trabalho regular. Às sete horas, e de função várias vezes, e Seu Genaro continuava lá. rior demasiado inclinada para frente, dando ao velho cer indiferente quanto ao que teria de acontecer. Marta preparou-se para ir embora, desceu as escadas sorrateiro Era como se fizesse parte da mobília. O velho parecia um aspecto animalesco. O corpo era parrudo; a barriga, baixou seus olhos grandes como que procurando uma e encontrou a porta principal trancada por fora. O prédio estar acima de qualquer forma de tédio ou chateação. grande e redonda, provavelmente resultado de sua pre- reação em sua mesa. Olhou novamente para o sujeito e fora mesmo interditado. Dirigiu-se aos fundos do edifício e O computador de sua mesa não tinha para ele dileção por doces. A estatura era bastante baixa para agradeceu. Até as dezoito horas, todos deveriam sair com saiu por uma janela, deixando-a entreaberta. serventia. Não significava nada para aquele senhor ana- um homem, ainda que de idade avançada, o que fazia seus pertences. Ainda hoje? Sim. Bem, obrigada. O visi- No dia seguinte, Seu Genaro foi ao médico pela ma- crônico, acostumado às velharias e à lentidão da buro- Seu Genaro ter uma espécie de admiração secreta por tante pediu licença e partiu, não sem antes despedir-se nhã. Chegou atrasado ao trabalho, queixando-se dos inú- cracia estatal. O que fazia todas as manhãs era ler seu pessoas altas. Dava gosto olhar alguém esticado, com- de Seu Genaro e estranhar seu rosto grosseiro. Genaro meros exames que teria de fazer. Subiu as escadas, bateu jornal de esportes e o de crimes. O primeiro compensa- prido, como se a altura fosse um mérito profissional. respondeu com uma risada desagradável, seguida de um o cartão de ponto e sorriu. Entrou na sala, apossou-se de va sua falta de movimento; o segundo, a ausência de Ele não, era baixo e lento. Não tinha nenhuma habilida- grunhido que provavelmente significava até logo. sua cadeira. Estendeu as pernas e apoiou os pés sobre a emoção em sua vida. Era solteiro e sozinho. Gostava de de evidente, nenhum defeito escandaloso. Era possível ouvir a chefe agitada dentro da sala, mesa. Trouxera o jornal de esportes e o de crimes. O com- viver assim, no seu ritmo, a seu modo. Sua natureza não De vez em quando, Seu Genaro punha-se a ca- revirando gavetas e espalhando papéis pela mesa. putador sempre desligado. Seus olhos, vazios como o edi- suportaria uma esposa e tampouco filhos. Tinha três, a minhar pelos corredores do edifício. Dava-lhe prazer Marta não tinha apego àquele lugar. Achava mesmo fício, procuravam alguma distração. Genaro saiu da sala bem da verdade, com algumas amigas que fez ao longo olhar para a luz que entrava pela janela do lado oposto que as salas cheiravam a mofo e havia ninhos de inse- e vagou durante um tempo pelos corredores. Deixou a luz da vida, mas sua relação com os meninos era tão distan- e atravessar devagar ao longo de todas aquelas salas tos por toda parte. Melhor assim. Já ia tarde. das janelas largas cegarem sua visão por alguns instantes. te quanto a que tinha com o resto das pessoas. Insípida. semi-vazias. Não suportava ficar muito tempo na re- A notícia da evacuação, a essa altura, espalhava- Poucos meses depois, o edifício foi demolido. Um dos maiores prazeres de Seu Genaro era ba- partição, logo o afligia sua falta de motivação e, então, -se por todo o prédio, e Genaro começou a estranhar ter o cartão de ponto. A assiduidade era computada deitava a explorar o prédio e seus labirintos, não se a movimentação excessiva. Ao contrário do que se diz, Maria Eugênia Zabotto Pulino é formada em Filosofia pela naquele cartão de papel, embora também o fosse a fal- sabe em busca de quê. Por vezes, parava em frente a ignorar a verdade causa, muitas vezes, mais angústia Universidade de Brasília (UnB). ta de pontualidade. O barulho de caixa registradora era uma das largas janelas e olhava a cidade, os carros, do que conhecê-la. Era evidente que algo acontecia. [[email protected]]

114 115 Amor em três tempos Zoológico da Vida João Eduardo Gomide de Paula Ato 1 - Passado Ato 2 - Presente Marcela Campos de Almeida Os Barcos Foram Queimados Qual Nome ra a primeira vez que visitava o zoológico. Os den- Antes mesmo que o pai desembolsasse a car- tes denunciavam a idade: os de leite não estavam teira, ela agarrou a cabeça do cachorro imaginário e Os barcos foram queimados. Nu numa cama sem lençóis Acordei sem lembrar seu nome. ali e os definitivos demorariam alguns meses a batizou-o: Fifi. Não há mais retorno possível. E Estamos separados por oceanos. Num quarto com cortinas negras chegar. Um passeio como aquele era raro. Tinha pais _ É uma cachorrinha? – perguntou o pai. A luz entrava pela porta aberta. importantes, ocupados com coisas de gente grande. A _ Não, é um cachorro menino. Intransponíveis. Sozinho, não havia ninguém. babá temia aventurar-se pela metrópole. Hoje, porém, De nada adiantou o pai explicar que, por uma Qual era o nome dela? lá estava a menina, serelepe em seu vestido vermelho, questão de gênero, Fifi era nome de fêmea, devia ser Simone, Bia, Ana Nesta terra tudo é incerto. Preferi não arriscar. em frente ao aquário das lontras, uma mão agarrada usado para seres do sexo feminino. Não tenho lar. Fingi que dormia quando voltou. na bermuda do pai, outra no algodão doce, lambuzada _ De menina? Por quê? Quem disse? Meu ca- Os campos são vastos. Fitei seu rosto e ele não me dizia nada. de açúcar azul derretido. chorro é menino e vai chamar Fifi. As matas selvagens. Somente a pergunta ecoava de ontem: Atenta, observava os bichos que lhe causavam Saiu contente, mão na mão do pai, alheia à crise Qual é o meu nome? surpresa e medo. Para a pequena paulistana, até mes- existencial que poderia provocar no animal imaginário. Levantei e fui procurar minha cueca. Há somente promessa de recomeço, Não, não preciso ir ao banheiro. mo animais domésticos, como vacas e porcos, pareciam Na outra mão, pendia o barbante, cordão umbilical De vida a ser concebida, Meu nome é Débora. ameaçadores. Foi quando, de longe, o avistou. Não era entre ela e seu mais novo amigo, que a acompanhava De campos a germinar, Sinceramente macaco, onça ou urso panda – ainda que este também dançando no ar. Rumo à saída, ela explicava para Fifi De poesia a cantar. Eu não me importo. lhe despertasse tradicionais onomatopéias de ternura os planos para o dia em que teria um zoológico só seu, feminina. Encantou-se com o pequeno coala, dependu- dentro de casa – um apartamento de dois quartos na Porém, temo não ter forças pr’essa empreitada. Ato 3 - Futuro rado em um galho, comendo folhas de eucalipto, a três Bela Vista. A jornada até aqui foi errante e árdua. De Encontro metros do chão. Soltava gritinhos de emoção. Após ten- Um puxão. Passavam debaixo de uma laranjeira. Estou exausto de tanto erguer as velas atracado, tativas infrutíferas de convencer o pai a levá-lo para casa A menina parou. Fifi estava entre os galhos. O pai ficou De tentar partir com a âncora lançada, Vago despreocupado, – tinha até um plano! –, teve a atenção desviada pelas por alguns instantes sem saber como reagir. Sabia que, De armar o barco para uma viagem que não será, Enquanto outros cuidam de problemas alheios. girafas. Seu desejo durava o tempo exato do presente. se pressionasse muito, o balão iria estourar. Se, por ou- De despedir-se para não deixar o que foi. Perco-me por ruas conhecidas. Ancorado no passado, todo vento que lufa é brisa. Cansada dos animais pescoçudos, sua atenção foi tro lado, afrouxasse mais do que o suficiente, o vento o Asfalto, calçadas e árvores. Há algo novo em cada esquina capturada por algo. Não era bicho. Não era exótico. Um levaria pelos ares. E não podiam ficar ali parados para Ou sou eu que retorno outro? senhor, apoiado em um tronco de mangueira, retorcia sempre. E não queria desapontar a pequena, que o fi- Não sei como, mas um dia parti com ímpeto, O Sol manso do verão de outubro balões coloridos. Movimentos rápidos e precisos davam tava perplexa. Tentou, com toda a sabedoria paterna, Com destino a qualquer lugar menos o de origem. Ilumina as folhas orquestradas pelo vento. à luz cavalos azuis, cães vermelhos e ursos amarelos. O desvencilhar o balão do galho e dos espinhos. O ruído Foram meses de provação. Meus únicos confidentes. Noites de tormenta molharam minha face velho homem parecia integrar a paisagem, como elemen- seco não demorou a vir. Conto-lhes sobre os amores vividos. E fustigaram meu espírito dúbio. Choro as noites de solidão. to de um quadro ainda por pintar. As mãos iam e vinham Pupilas dilatadas. Olhos marejados. A menina in- Monstros com dentes pontiagudos Descrevo as flores que ainda não desabrocharam. com perícia, em movimentos automáticos. Os olhos, va- quiria o pai. Só queria entender o porquê. Impotente Vieram das profundezas pelo meu coração. Apaixono-me na cadência de olhares fugidios. zios, fitavam o nada. A altivez carregava a consciência de ante os fatos da vida, ele agachou-se para consolá-la. Ninfas com a tua forma, teu cheiro, teu gosto O amor é morena, loira, esbelta, gorda. sua importância: tornava possível o sonho dos pequenos Talvez conseguisse evitar uma possível birra. Inventou Me fizeram preferir a companhia do fundo do mar Sólido como a brisa que desarruma meu cabelo. À solidão de tua ausência eterna. de levar para casa um tigre ou um rinoceronte. uma bela história sobre o céu dos balões estourados. Caminho sem olhar onde piso. Calmarias com o Sol em zênite racharam a minha pele, Nesse transe, cruzas meu passo. O pai tentou distraí-la, apontando uma andori- Ofereceu colo. Quis comprar outro Fifi. Queimaram meus olhos e me isolaram em memórias. De encontro. nha que cruzava o céu cinzento. Passava das cinco, o A menina engoliu em seco e recuou. Não quis De ti. Sinto vento soprava mais forte e pequenos redemoinhos car- colo. Recusou outro balão, tão estourável quanto o pri- Tua pele precipitar meus devaneios. regavam panfletos e sacos de pipoca vazios. A chuva meiro. Com dignidade, limpou os olhos com as costas Teus olhos afugentarem os meus. era anunciada. Era tarde demais: o cachorro amarelo, da mão melada de açúcar e seguiu em frente, arrastan- Em trapos e anêmico cheguei onde estou. Meu corpo clamar pelo teu. Capaz apenas de mirar o horizonte És bela e sabes. flutuando a metro e meio do chão, já conquistara o co- do pelo barbante a carcaça de sua primeira desilusão E ver as chamas, “Desculpa”. ração da menina, que engoliu de uma só vez o último amorosa. em um lento crepitar, Não me respondes. bocado de algodão-doce e arrastou o pai pela bermuda para nunca mais. Não tenho pressa. até o vendedor. Os barcos foram queimados, Serás minha. _Compra, pai, compra! – pediu de boca cheia, Marcela Campos de Almeida é formada em Jornalismo pela Amor. O dia é infinito. com os olhos desmamados de que somente cães e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). crianças são capazes. [[email protected]] João Eduardo Gomide de Paula é formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). [[email protected]]

116 117 Entrevista com Lúcifer Obrigados a partir de então a habitar um fos- mentais autoritários. Os demônios, muito menos pro- Por um Revisionismo Histórico da Queda so insalubre e com péssimos padrões higiênicos, lo- vidos de recursos do que as elites do Céu, não tinham calizado na periferia do Universo, Lúcifer e seus ca- condições materiais de se contrapor a campanhas tão Eduardo Siebra maradas tiveram de aprender rápido a se habituar à insidiosas. Eles tinham de se contentar com a simpa- nova vida. tia de uma ou outra seita e de alguns poucos espíritos que mais surpreende ao visitante desavisado a veracidade das fontes, ou pelo menos tentar incor- – Nós nunca tínhamos nos adequado comple- livres, que não podiam expressar suas opiniões publi- no escritório de Lúcifer é a completa ausência porar à narrativa o ponto de vista dos vencidos. tamente ao ideal hegemônico de beleza e de virtude camente, sob o risco de serem considerados hereges. de apetrechos geralmente associados à gestão Com o avanço da consciência crítica em nos- que prevalecia no Éden. Porém, agora que nós tínha- É impressionante, diante de tão grande injusti- O mos que enfrentar uma realidade cruenta e trabalhos ça histórica, que até hoje não se tenha tentado reava- demoníaca: ao invés de tridentes, fornalhas e tronos sos tempos, torna-se cada vez mais claro que a histó- de ossadas, o pequeno, porém aconchegante, cômo- ria é contada pelos vencedores. A Queda, por exem- manuais desgastantes, era natural que nós nos afas- liar os fatos. Quando perguntei ao Senhor das Profun- do está mobiliado com sobriedade e senso de ordem. plo – um dos eventos de maior significância política tássemos cada vez mais do padrão estético angelical, dezas o que ele pensava a respeito, ele me respondeu: Limpo, bem-iluminado e refrigerado por um poderoso da história do multiverso – ainda hoje é ensinada completamente incompatível com nossa nova condi- – É tudo uma questão de mentalidade. As pes- ar-condicionado, ele contradiz os clichês geralmente em nossas escolas a partir daquele mesmo esque- ção proletária. Os serafins apontam com desprezo para soas ainda não estavam preparadas para incorporar à associados à arquitetura infernal. Por trás da escriva- ma simbólico: os demônios tentaram, por arrogância, nosso couro endurecido e nossas mãos cheias de gar- sua visão de mundo as ideias e os sentimentos dos ninha – sobre a qual está a foto de seu filho, o peque- usurpar o poder de um Deus benevolente e, como re- ras, mas eu garanto que estas são as mãos de gente excluídos. A grande verdade é que mesmo alguns de- no Damien, e de sua esposa Lilith – há um enorme sultado, eles foram expulsos do Éden sob acusação trabalhadora, acostumada a cavar fundo nas rochas mônios internalizaram os preconceitos e passaram a mapa dos nove malebolges e diversos gráficos com de terem rompido a harmonia cósmica primordial. incandescentes do Averno. reproduzir as representações associadas pelo mains- as principais estatísticas do Inferno. Nas estantes, Porém, quando escutamos o Senhor das Profundezas Não obstante, apesar de todos os seus esfor- tream à condição dos marginalizados. É um fenômeno além dos manuais de administração e de políticas pú- dar sua versão do que realmente aconteceu, um outro ços para manter um mínimo de dignidade, os diabos comum à psicologia do oprimido, e nós só fomos ca- blicas, há vários volumes de literatura e de filosofia quadro começa a se delinear: continuaram sendo implacavelmente perseguidos ao pazes de tomar consciência disso com a chegada dos do século XX – de que o Senhor das Trevas é um ávi- – Tudo o que nós buscávamos era incorpo- longo da História. Os simpatizantes humanos do mo- primeiros pensadores. do leitor. Num dos lados, uma enorme janela de vidro rar instrumentos de governança mais democráti- vimento do Seis de Junho – como o levante luciferino A chegada dos filósofos da Escola de Frankfurt ao proporciona uma vista sensacional do Vortex Abissal, cos e mais plurais ao Paraíso. A verdade é que a passou a ser conhecido – foram cruelmente torturados Inferno pode ser vista como o primeiro momento de uma o que quebra um pouco a atmosfera gerencial do cô- gestão do Elísio estava completamente nas mãos e assassinados pelos entreguistas teófilos. Alguns mo- reviravolta conceitual e linguística. Os psicanalistas já ha- modo. O único elemento realmente diabólico do am- de um Deus Pai Todo Poderoso, cujas determina- mentos históricos são especialmente ilustrativos. viam preparado o terreno, mas apenas com os instrumen- biente é uma escultura de H. R. Giger que há próximo ções eram interpretadas como Direito Divino irre- – A Caça às Bruxas desnuda a mentalidade ma- tos da Teoria Crítica os demônios puderam repensar sua às poltronas. vogável e não sujeito a qualquer tipo de controle chista e autoritária que o Paraíso incute nos homens. identidade e seu papel num Universo desigual. Quando nós chegamos para a entrevista, fo- judiciário. O que o nosso movimento pregava era Incinerar as jovens em praça pública não passava de – Aquilo fez toda a diferença para a nossa auto- mos recebidos com um cumprimento caloroso por o fim do patriarcalismo e uma redistribuição mais uma forma de legitimar a violência doméstica. Quando -estima. Eu mesmo sempre acreditei que tinha sido per- um demônio de estatura imponente e cornos negros equânime de poder. algum marido, por exemplo, flagrava sua esposa come- seguido por causa de minhas convicções políticas, porém retorcidos, porém simpático e vestido casualmente. O pleito de Lúcifer e de seus seguidores de- tendo adultério com um de nossos íncubos, ele não Foucault me fez perceber que o verdadeiro motivo de mi- Ele pôs sobre a escrivaninha o volume que folheava – sencadeou a ira divina de forma implacável. Antes um podia suportar a humilhação e a ofensa a seu domínio nha expulsão está relacionado à minha singularidade... uma edição de bolso de A Insustentável Leveza do Ser dos anjos mais célebres e mais influentes da buro- patriarcal. Para garantir a perpetuação de seu controle Com isso, Lúcifer se refere ao fato de, na sua – e nos convidou para sentarmos na poltrona mais cracia celestial, ele foi afastado dos altos postos que opressor da família, ele acusava a esposa de ser feiti- juventude, ter sido bissexual assumido, o que, segundo próxima à janela. ocupava e passou a ser sistematicamente difamado ceira e de estar mancomunada com as forças das tre- alguns, pode ser considerada a verdadeira causa de – Sintam-se em casa. – ele nos disse, gentil- pelos órgãos de propaganda e ortodoxia. Seus segui- vas. Tudo isso para tentar ocultar uma verdade elemen- seu banimento. mente. dores foram perseguidos como terroristas e expulsos tar e desagradável: a de que sua mulher se libertava de – Era um ambiente muito opressor e muito mo- Se essa descrição desconcerta o leitor, prova- do Céu por uma milícia de extrema direita liderada seu jugo e afirmava seu espaço de liberdade fazendo ralista. Eu sabia que eles não me queriam lá não só por velmente é porque ele ainda internaliza todos os pre- pelo arcanjo Gabriel. Não houve sombra de devido amor com um indivíduo de outra cor. Não foram pou- causa de minha orientação sexual, mas principalmente conceitos que se acumularam, ao longo dos séculos, processo legal. cas as que padeceram um fim desumano simplesmen- porque não estava disposto a esconder este fato. a respeito do Inferno e dos demônios de um modo – Guel (Gabriel) sempre foi purista e reacio- te por se entregarem a uma paixão libertária e cega a Atualmente, assistimos a um processo de res- geral. Tradicionalmente contada a partir de uma pers- nário. Em nome da preservação nostálgica de uma preconceitos especistas. gate e revalorização da literatura, da música e da culi- pectiva paraisocêntrica, a história da Queda costuma Ordem Universal que se mostrara claramente inca- Os agentes do Paraíso não pouparam esforços nária infernais. ser vista como um relato de justa retribuição pelos paz de lidar com os desafios do aeon contemporâ- nem recursos para difamar os habitantes da periferia pecados cometidos por Lúcifer e seus seguidores na neo, ele cometeu toda sorte de atrocidade contra do Cosmos. O poder central enviava anjos para incu- Eduardo Siebra é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Mestre em Ciência Política aurora dos tempos. É escandaloso que, até hoje, nin- seus próprios concidadãos. Se suas intenções eram tir a doutrina hegemônica na mente de profetas das pela mesma instituição. guém nunca tenha se dado ao trabalho de averiguar boas, ele só nos trouxe desgraças. mais diversas civilizações, com o fim de reproduzir os mesmos velhos preconceitos e de internalizar hábitos [[email protected]]

118 119 Perguntei à criança faminta que devorava as sobras de ontem: -Tens pai? -Nem mãe, antecipou, para poder continuar comendo em paz. [Contos em até 140 caracteres, incluindo o título] Ela só sabia se expressar por memes. Morreu semana passada, de um sentimento forte e original que não pôde pôr para fora. MicrocontosFabio Cunha Pinto Coelho Por 87 anos, Sequoia viu a muralha. Aí viu a serra, aí viu o mundo!, aí viu o nada.

Quando o sonho da sesta de ontem foi apresentado como prova, o júri de nefelibatas condenou o adúlte- O editor com tino comercial pôs o subtítulo “25 anos sem Google”. Mudou para a seção de terror. Robin- ro por unanimidade. son Crusoe, best seller outra vez.

Finalmente pegou o diamante. Mas de que valia tanto brilho, se, na outra mão, havia tanto sangue? O doutor pensou que o bebê nascera corcunda; os pais notaram que a evolução finalmente presenteara o brasiliense com corcovas de camelo. - De onde és, moça? -Sou de nação nenhuma. Minha pátria é o mundo. Contudo, vários países não me dão visto, respondeu Liberdade. O embaixador tamborilava o dedo por oito horas, impaciente para chegar a casa e voltar a representar os elfos no Conselho de Valfenda. Noitada: Na milésima segunda noite, o Sultão contou uma história para Sherazade. [baseado em microconto de Carlos Secchin] “Me conheceste em rara companhia, fora de minha zona de conforto”, disse, após outro trago de Grappa. “Traz-me uma cerveja e me conhecerás.” Ah, Deus... -Ateu, há Deus? -Há. Teus. Adeus. Envelheceria feliz, o jovem se prometeu. Meia meta ele cumpriu: envelheceu. O príncipe regente - Ele vestiu-se para a missa. Discordou da opinião do espelho. Penteou o cabelo olhando-se no verso de um vintém. Ninguém leu o microconto extraclasse para a prova de literatura. Na internet havia um resumo.

DRs, séc XXI - Em prantos, tirando a aliança do dedo, ela balbuciou: “não adianta, nosso amor acabou. Foi ao Maracanã pela primeira vez e achou inusitado. Fãs excêntricos imitando ao vivo um dos jogos de Você nem me retuíta mais”. seu videogame.

Fábula - O lobo comeu a ovelha, o sapo se afogou, a cigarra congelou. Mas em 140 caracteres não coube Da noite pro dia, o mendigo sonhador virou um milionário com pesadelos. Sua receita: trocou as palavras moral da história, só imagens fortes. “despertar” e “dormir”.

Exigimos 2 fiadores. Um com imóvel quitado, o outro capaz de plantar bananeira por 3 minutos. A soma Na rave, o poeta declara-se à moça- tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, tuntz, da idade deles deve ser número primo. tuntz, tuntz, tuntz, tuntz.

Seu livro de auto-ajuda vendera 100 milhões, mas não fazia sessões de autógrafos. Ao abrir a porta pra Cansara de microcontos bobos. Sentou-se ao computador e começou uma microtrilogia épica. ir, suava frio e fechava-a de novo. I. Hora do rush. Suava sob o paletó. Pensava pensar algo, enquanto se dirigia ao escritório. Fez uma ul- Cansara de sua vida medíocre. Faria o possível para transformá-la. Apenas 3 coisas lhe eram inalteráveis: trapassagem pela direita. presente, passado e futuro. II. Sentiu, nesse momento, o gosto do perigo. O sangue subir em adrenalina. De súbito percebeu estar a Estrelas sussurram uma serenata. O grifo singra a floresta branca. Lobos uivam. A polícia o persegue. pé, na calçada. Seu dedo aciona o “soneca”. Paz. III. “Andava dirigindo demais? As calçadas do centro pareciam highways? Ou tinha virado uma “E promete amá-la, cutucá-la diariamente, curtir seus status do Facebook na alegria e na tristeza e formiga funcional?” Refletiu e engatou a quinta. retuitá-la até que a morte os separe?”

Ele era cego em três dimensões, mas via a quarta. No dicionário em braile, seu dedo perdeu-se confuso sobre “livre-arbítrio”.

O Homem da Alma Incompleta buscou-a, mas jamais a completou: o fragmento perdido jazia ao lixo, num Fabio Cunha Pinto Coelho é formado em Comunicação Social/Publicidade pela Universidade Federal Fluminense (UFF). poema escrito num guardanapo. [[email protected]]

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Instituto Rio Branco