Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980.

A POÉTICA DE GASTON BACHELARD

Maria Alice de Oliveira Faria *

REV. LET./228

FARIA, Maria Alice de Oliveira — A poética de Gaston Bachelard. Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980. RESUMO: Trata-se de um resumo dos elementos que constituem a análise bachelardiana. Descreve a tragetória de Bachelard a partir do momento culminante de suas pesquisas científicas, em que rejeita a imaginação, considerada como o elemento falsificador por excelência do pensamento científico- Ocorre então uma reviravolta em suas posições a partir da Psychanalyse du feu e Bachelard co­ meça a valorizar a imaginação como outra forma de conhecimento, através do devaneio poético, até seu último livro, La flamme d'une chandelle. Este é ele próprio um devaneio poético em torno do tema da chama de uma candeia e Ba­ chelard mostra ter atingido uma serenidade e uma plenitude totais face à morte próxima. UNITERMOS: Teoria da literatura; psicanálise; Gaston Bachelard.

Um leitor habituado com a crítica transformou a poesia dos poetas em poe­ universitária e que empreende a leitura sia através desse mundo bachelardiano, das obras de Gaston Bachelard sem tão estranho e envolvente. nenhuma idéia preconcebida, sem ter lido nenhum comentário sobre o filósofo,, se A leitura terminada, e seu envol­ sentirá logo agradavelmente surpreendi­ vimento tendo se desfeito, conhecendo-se do. Desde o começo somos transporta­ em seguida alguns exegetas do filósofo, dos para um mundo poético, suprarreal, sentimo-nos capazes de fazer numerosas onde nossas experiências do mundo ma­ críticas a este sistema anárquico que de­ terial quotidiano se transfiguram. sarticula a obra e a reduz a "fulgura- ções" poéticas, sem dar nenhuma aten. Versos isolados de poetas conheci­ ção à estrutura global da obra nem dos, segmentos de poemas de autores des­ mesmo do poema. conhecidos, adquirem, subitamente, uma auréola poética envolvente que nos le­ Assinalaremos sem dificuldades mui­ va para um mundo novo. Não teríamos tas lacunas, como a falta de informa­ nós sabido ler este ou aquele poeta ou ções propriamente literárias do autor, foi Bachelard que, como um mago, algumas bem elementares e que pode-

* Professora Livre Docente de Literatura Brasileira do Departamento de Literatura do Instituto de Letras, História e Psicologia — Campus de Assis, UNESP.

123 FARIA, Maria Alice de Oliveira — A poética de Gaston Bachelard. Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980. riam facilmente demolir certas afirma­ ficos, o que nos interessa diretamente é ções apriorísticas; outras, como a igno­ La Formation de Vesprit scientifique, rância de obras contemporâneas impor­ que paradoxalmente completa o proces­ tantes sobre a psicologia animal (Man- so montado contra a imaginação, e le­ suy 8, p. 68) que invalidam a sua teoria. vado a cabo durante todo o período de Assim também todos os erros possíveis sua fase científica, isto é, de 1912 a provenientes de uma posição absoluta­ 1938. mente subjetiva e ingênua com relação à obra poética, pecado capital para os O objetivo de La Formation de espíritos lógicos, pelas tendências da crí­ Vesprit scientifique é denunciar o papel tica estruturalista contemporânea. Mas, da imaginação nos erros que cometeram apesar disso tudo, o encantamento per­ todos os cientistas dos séculos passados, manece através dos devaneios suscitados desde a alquimia até nossos dias. Para por essas páginas originais. Bachelard, é preciso purgar ou libertar a inteligência de qualquer influência da Bachelard é homem de um outro imaginação, para que ela possa atingir a mundo — um boêmio ingênuo, poeta da verdade através da razão. "A finalidade "matéria" e também um violento inimi­ que visa La Formation de Vesprit scien­ go da sociedade de consumo. Mergulhar tifique", resume Michel Mansuy, "é pre­ no mundo de Bachelard é entrar numa cisamente de passar em revista as prin­ época que se afasta de nós, em que cipais causas de erros ou, para empre­ gar uma expressão bachelardiana, os nossas mãos, nossa vontade, a imagina­ obstáculos epistemológicos contra os ção, a sensibilidade serviam para cons­ quais a ciência veio se chocar. A obra truir nosso mundo — esse mundo que negligencia os aspectos que estão no ob­ hoje recebemos já fabricado pela indús­ jeto mesmo, como a fugacidade ou a tria e pela publicidade. O mundo ba- complexidade dos fenômenos: aqueles chelardiano ainda não desapareceu in­ que se prendem às irremediáveis deficiên­ teiramente de nossas recordações, pois cias de nossas faculdades, às fraquezas sempre nos restam perfumes adormecidos dos sentidos e às deficiências de nosso da infância, algumas lembranças apaga­ cérebro. Bachelard ataca os obstáculos das de parente falecido idoso, velhas fo­ que se situam fora do obejto e podem ser tografias, cartas e papéis antigos .. . atingidos: conclusões apressadas, formas falsas de pensamento, associações de Hoje, a imaginação bachelardiana idéias mais instintivas que conscientes e poderia até mesmo ser classificada entre muito sentidas ou vividas para serem aqueles erros em que caíram os cientis­ atingidas facilmente pelo crivo do espí­ tas antigos e que Bachelard critica fe­ rito crítico". (Mansuy 8, p.18). rozmente .. .

Para compreender as obras de Ba­ Para chegar a este ponto de depu­ chelard em crítica literária, é preciso ração, Bachelard baseia.se na psicanáli­ considerar a marcha de seu pensamento. se, mas desde o início êle prefere Jung a Ela vai de um racionalismo científico Freud. A razão desta escolha é a sua ortodoxo a um estado de devaneio ab­ maneira pessoal de encarar a análise soluto. Assim, sua obra se divide em psicanalística e o alvo a atingir. Bache­ duas direções bem nítidas, com algumas lard encara a noção de complexo, de re- obras intermediárias. Dcs livros cientí­ calcamento e de sublimação de um pon-

124 FARIA, Maria Alice de Oliveira — A poética de Gaston Bachelard. Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980. to de vista jungiano. Isto é, baseia.se na lectualmente perversa". Agora ele começa idéia de que estas três manifestações psi­ a orientar suas meditações no sentido da cológicas não são necessariamente cau­ valorização da imaginação,, mas numa sadoras de neuroses. Assim, para Ba­ direção inteiramente diferente daquela chelard, o complexo tem uma noção em que evoluía seu pensamento racional: menos larga que em Freud. "É um ema­ a do sonho e do mundo noturno. ranhado de sentimentos, de imagens e de idéiais mal diferenciadas que obtêm Os dois livros de transição, La Psy- nossa adesão imediata e, com isto fal­ chanalyse du jeu e Lautréamont, já nos tando ao espírito crítico o tempo neces­ revelam Bachelard em plena transfor­ sário para intervir, tornam difíceis as mação intelectual. retificações indispensáves para o progres­ so do conhecimento." (Mansuy 8, p.19). O alvo da psicanálise do fogo vem declarado de modo direto e talvez um Da mesma forma, quando Bache­ tanto agressivo desde as primeiras pá­ lard fala de recalcamento, é preciso levar ginas: ele pretende purificar o pensamen­ em consideração que só o considera pe­ to científico de todos os erros provenien­ rigoso quando ele permanece inconscien­ tes dos devaneios em que o homem te e que é salutar quando consciente: é mergulha quando contempla ou estuda preciso, afirma ele, recalcar com energia o fogo. E ele escolhe justamente este as imagens e os impulsos que falseiam o "elemento" porque, como vem a provar conhecimento. por numerosos exemplos, o fogo é o Finalmente, a sublimação não tem fenômeno que mais seduziu o homem relações obrigatórias com o sexo, mas desde as épocas primitivas; o fogo põe a trata-se aqui sobretudo de vencer a imaginação humana em movimento, o imaginação, de sublimá-la para atingir o que induz o homem aos erros mais pri­ pensamento racional puro. "Ele pratica mários; o fogo está envolvido por pro­ um recalcamento lúcido, e uma sublima, fundas valorizações, muito comprometi­ ção voluntária", resume Mansuy. "A do com a sexualidade através das idades psicanálise bachelardiana é a de um ho­ do homem. É pois por causa de sua se­ mem enérgico que acredita no valor do dução e de todos os preconceitos e fal­ esforço que domina a natureza, tanto no sidades que o envolveram desde a pré- domínio moral como no da inteligência. história, que se tornou o elemento que Projetar a luz sobre as raízes do pensa­ mais se furtou ao conhecimento objetivo mento e do sentimento, rejeitar as im­ e sobre o qual os cientistas construíram purezas, sublimar o que é suscetível de os sistemas mais falsos. E é por esta ser conservado, estas são as regras da razão mesma que Bachelard empreendeu boa conduta." (Mansuy 8, p.20) a tarefa de "purificar" o fogo,, de "psi- canalisá-lo" e de encará-lo, enfim, de Depois deste desrecalcamento pes­ um ponto de vista científico, inteiramen­ soal contra a imaginação e a sublimação te despojado de falsas intuições ou fal­ total de suas manifestações durante sua seado por valores subjetivos. fase científica, Gaston Bachelard come­ ça o caminho de volta. Como um apren­ A obra é precedida de um prefácio diz de feiticeiro ele será envolvido aos onde indica os períodos da imaginação poucos pelos escantos dessa faculdade e dessas valorizações subjetivas: "Vamos que considerava até então como "inte­ estudar um problema onde a atitude ob-

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jetiva nunca pôde se realizar, onde a se­ Nos primeiros capítulos, Bachelard dução primeira é tão definitiva que ela apóia-se em exemplos tomados do com­ deforma ainda os espíritos mais lúcidos portamento de povos primitivos. No ca­ e leva-os sempre ao abrigo poético on­ pítulo VI, entretanto, ele muda de tom de os devaneios substituem o pensamen­ e mergulha já numa meditação poética to, onde os poemas escondem os teore- sobre as imagens sugeridas pela contem­ mas." (Bachelard 5, p.10). plação do ponche em chamas e que o afasta das preocupações científicas. En­ Bachelard pretende pois "curar o tão, os exemplos são tomados quase to. espírito dos seus prazeres, arrancá-lo do dos à poesia. Pela primeira vez, pois, ele narcisismo que a evidência primeira concede à imaginação poética a aptidão cria dar-lhe outras certezas além da nos­ de conhecer, através do devaneio, cer­ sa, outras forças de convicção, além do tas realidades da alma humana, as calor e do entusiasmo, resumindo, pro­ quais escapam aos métodos do conheci­ vas que não fossem chamas!" E conclui: mento objetivo. No capítulo seguinte ele "É preciso que cada um destrua mais retoma as idéias do início para comen­ cuidadosamente as suas 'filias' que suas tar a pureza ou a impureza do fogo, fobias e suas simpatias pelas intuições depois de propor sua teoria dos quatro primeiras." (Bachelard 5, p. 14-16). elementos — fogo, ar, terra e água —, que estão na base de todo devaneio poé. Nos primeiros capítulos comenta tico originado por sua vez das imagens os complexos mais comuns ligados ao primitivas, inconscientes: os arquétipos. fogo, como o desejo de possuir o fogo contra a vontade dos deuses (complexo Se poderia pensar que, depois da de Prometeu); o desejo irracional de se Psicanálise do fogo, Bachelard continuas­ deixar consumir pelo fogo (complexo de se a estudar a imaginação dos elemen­ Empédocles); o fogo associado ao amor tos. Mas ele ainda escreve um livro onde correspondido (complexo de Novalis) trata sobretudo da purificação do ho­ ou ao amor culpado (sentimento de mem. Não mais da inteligência, mas do consumpção, de auto-punição, imagens humano, É o livro Lautréamont (1939), de inferno etc). onde Bachelard, em vez de uma análise literária da obra, apresenta uma análise Sustenta, contra a opinião dos an­ psicológica, orientada pela psicanálise. tropólogos em geral, que "homem é uma Ele não se propõe a tarefa, partindo dos criação do desejo e não uma criação da Cantos de Maldoror como exemplo, de necessidade". (Bachelard 5, p.24).. Ele denunciar "a tendência que faz o homem não aceita que a descoberta do fogo pe­ regredir ao animal". (Mansuy 8, p.61). los povos primitivos tenha sido causada Para ele, "o bestial representa um arqué­ pela fricção de dois pedaços de madeira, tipo particularmente vivaz e muito car­ ao acaso ou deliberadamente. Segundo regado de emoções". (Mansuy 8, p.64). ele, esta teoria não explica (e sobretudo A semelhança do animal com o homem não prova) como o homem teria chega­ leva este às vezes a confundir as duas do a essa experiência da qual resultaria naturezas e, dominado pela segunda, a descoberta do fogo. Para ele "o amor acontece-lhe de abandonar sua natureza de homem para se conceber apenas co­ é a primeira hipótese científica para a mo animal. A metamorfose de Kafka e reprodução objetiva do fogo". (Bache­ de Maldoror seriam exemplos literários lard 5, p.47).

126 FARIA, Maria Alice de Oliveira — A poética de Gaston Bachelard. Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980. evidentes de involução do homem. "Para idéias num estilo poético muito pessoal Bachelard", escreve Mansuy, "o essencial que envolve o leitor pelo seu encanto e é agora psicanalizar a besta, isto é, des­ o transporta no mundo de sonhos que truir o obstáculo animal de modo a quer explicar. Apela para exemplos poé­ permitir a plena realização do homem". ticos marcantes e algumas vezes apre­ (Mansuy 8, p.66). senta a análise global de um poeta e seu elemento, como é o caso de Poe. É somente em 1942 que Bachelard retoma sua , teoria da imaginação dos Passa rapidamente sobre as "águas quatro elementos para desenvolvê-la. primaveris", consideradas superficiais e Mas, a partir de L'eau et les rêves, o também sobre a "água violenta", que primeiro livro da série, ele já mudou não o agrada, mostrando sua evidente completamente de posição: abandonou o preferência pelas águas calmas e melan­ conhecimento objetivo, científico, e vol­ cólicas dos lagos e ribeiros, capazes de tou-se para seu pólo oposto: agora, despertar nele devaneios doces e calmos. preocupa-se unicamente com os conheci­ mentos subjetivos, com as possibilidades Termina esta obra com um capítulo da imaginação poética e do sonho. Agora, sobre a "a fala da água", onde reforça a e "contra a maioria dos filósofos e psi­ corrente que se interessa pelas sonorida- cólogos que o precederam", resume des como meios importantes de expres­ François Pire, "a imaginação não é uma são poética. Para Bachelard, a "água é função derivada, mas o cerne mesmo do a mestra da linguagem fluida, da lingua­ psiquismo. Ela é também independente gem sem choques, da linguagem contí­ da percepção e da idéia, e acima de nua, da linguagem que abranda o ritmo, tudo, ela tem o privilégio de criar um que dá uma matéria uniforme a ritmos mundo 'suprarreal' cuja realidade não é diferentes." (Bachelard 6, pp. 250). menos segura do que a realidade do uni­ verso da percepção". (Pire 9, p.8). Este capítulo final, ao contrário dos outros, não é uma dissertação dialética, Bachelard abandona assim qualquer nem uma síntese do livro, mas um con­ preocupação de demonstração e se deixa vite ao poético, familiar para os leito­ guiar pelos seus elans anteriores diante res de Bachelard, um convite para que da água, como elemento arquetípico e o leitor se entregue ao suave devaneio fundo inconsciente produtor de imagens. do riacho e o viva, não somente pela Coerente com a crítica que faz à ana­ imaginação da matéria, propriamente di­ lise literária tradicional, pretende daqui ta, mas também que ele se deixe levar para a frente "explicar o sonho pelo pelos encantos anuladores de angústias da sonho"... Deixa-se assim arrastar para "imaginação murmurante": meditações sobre os temas da água, aqueles que sabe viver intensamente co­ "Estas correspondências das ima­ mo o "complexo de Ofélia", a água ma­ gens com a palavra são as cor­ terna e a água feminina, as águas com. respondências verdadeiramente sa­ postas (a água e a terra, que formam a lutares., A cura para um psiquismo massa, por exemplo), a supremacia da dolorido, para um psiquismo deso­ água doce sobre o mar, que ele nunca rientado, para um psiquismo va­ apreciou. Insiste com complacência so­ zio será ajudada pela frescura do bre esses assuntos e desenvolve suas riacho ou do rio. Mas é preciso

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que esta frescura seja falada. É insiste sobre os movimentos e sobre a preciso que o ser infeliz fale com mobilidade em torno de um eixo verti­ o riacho. cal, onde vêm se agrupar as imagens, elas também móveis: "Venham, meus amigos, na clara manhã, cantar as vogais do riacho! "Se sentirá então que há mobili­ Onde nosso sofrimento primeiro? dade das imagens na proporção É que nós temos hesitado em di­ em que, simpatizando-se pela ima­ zer .. . Ele nasceu naquelas horas ginação dinâmica com os fenôme­ em que acumulamos em nós mui­ nos aéreos, se tomará consciência tas coisas silenciadas. O riacho lhes de um alijamento, de uma alegria, ensinará a falar apesar de suas do­ de uma leveza. A vida ascencional res e suas recordações, ele lhes será então uma realidade íntima. ensinará a euforia pelo eufemismo, Uma verticalidade real se apresen­ a energia pelo poema. Ele lhes tará no seio mesmo dos fenôme­ dirá, a cada instante, alguma bela nos psíquicos. Esta verticalidade palavra bem redonda que rola so­ não é uma vã metáfora; é um prin­ bre pedregulhos". (Bachelard 6, cípio de ordem, uma lei de filia­ p.261-2). ção, uma escala ao longo da qual se experimentou os graus de uma Uair et les songes, publicado em sensibilidade especial". (Bache­ 1943, introduz um novo aspecto da ati­ lard 1, p.17). vidade imaginante, só levemente assina­ lada nas obras anteriores: o movimento. Por outro lado, tudo o que seria es­ O livro apresenta já como sub-título: tático ou propriamente sensual nas ima­ "Ensaio sobre a imaginação do movi­ gens aéreas — imagens e sensações que mento". A partir daqui, Bachelard não existiram fora deste eixo vertical, são separará mais de suas pesquisas sobre a simplesmente omitidas ou insuficiente­ imaginação material os devaneios dinâ­ mente desenvolvidas. Segundo M. Man- micos que, num dado momento, suplan­ suy, "estas omissões provêm da tendên­ tarão os devaneios materiais estatísticos. cia bem bachelardiana de procurar mús­ O livro se inicia por uma introdução culos em toda parte, tônus, vontades onde o filósofo se entrega à exposição de agressivas e eixos verticais". (Mansuy 8, suas idéias sobre "imaginação e mobili­ p.238). dade"; é, aliás, o título do capítulo. Ele É assim que consagra vários capí­ tratará sobretudo da psicologia ascen- tulos à sua idéia principal, começando cional e de sua contrapartida, os deva­ por um longo desenvolvimento sobre o neios de queda, Bachelard; interessa-se "devaneio de vôo" e "a poética das pelos "seres aéreos", isto é, aqueles que asas". Mostra aí o sentimento da leveza conquistaram os ares, seja por um esfor­ do ser aéreo,, a sensação de ascensão, o ço dirigido da vontade, como Nietzsche, sonho "embalado", alguns aspectos fun­ seja pela sua própria natureza aérea, isto damentais do mundo aéreo como a lu­ é, que encontram no Ar seu elemento minosidade,o silêncio, a pureza, a ausên­ natural, que se movem nele com facili­ cia de odores etc. e apresenta, em con­ dade, tal um Shelley, por exemplo. O trapartida do sonho de vôo, o devaneio ar é sobretudo o convite ao elan para da queda ou a sensação da queda, que o alto, à "viagem aérea" e Bachelard ele chama de "doença da ascensão". Ter-

128 FARIA, Maria Alice de Oliveira — A poética de Gaston Bachelard. Rev. Let., São Paulo, 20:123-137, 1980. mina seus comentários por uma longa tica ao bergsonismo e uma preparação análise das imagens aéreas na obra de para sua futura meditação sobre uma no­ Nietzsche, no capítulo "Nietzsche e o va fenomenologia. psiquismo ascensional", onde ele apre­ senta o filósofo alemão como exemplo Mais denso e bem menos poético de um ser do Ar. que Ueau et les rêves, Uair et les son­ ges apresenta, nas suas dissertações, as Após uma série de curtos capítulos lacunas assinaladas pelos críticos de Ba­ sobre certos elementos que ele associa chelard, defeitos que vão se agravando ao mundo poético aéreo — o céu azul, nos dois livros seguintes, La terres et les as nuvens, a árvore aérea, o cosmos, o rêveries de Ia volonté e La terre et les vento — e que não têm relações entre rêveries du repôs. Com efeito, cada vez si, Bachelard termina esta obra por uma mais dogmático nas suas exposições, longa conclusão dividida em duas partes. acentuam-se as insuficiências que de­ A primeira é dedicada a uma exposição correm de seu ponto de vista subjetivo sobre a imagem literária em geral. Ele e de suas opiniões preconcebidas. Assim, reúne aí, de forma bem clara, observa­ aumenta a falta de unidade entre os ções que já havia espalhado nos livros capítulos, já evidentes em Uair et les anteriores e as completa. Podemos ob­ songes. Por outro lado, um estilo mais servar que adere completamente aos sur. pesado afasta a possibilidade de o lei­ realistas e às suas idéias sobre a criação tor participar do assuttto através da poética. atmosfera poética que predominou em Ueau et les rêves. É que, quanto mais "Uma imagem poética", escreve ele, Bachelard raciocina, menos ele convence "é um sentido em estado nascente; a seu leitor ... palavra — a velha palavra — recebe aí uma significação nova. Mas isto ain­ Esses dois livros sobre a Terra for­ da não basta: a imagem literária deve se mam um conjunto uno, segundo seu enriquecer com um onirísmo novo. autor, pois que ele apresenta o plano Significar outra coisa e criar devaneios das duas obras na introdução do primei­ diferentes, tal é a dupla função da ima­ ro volume: La terre et les rêveries de Ia gem literária". (Bachelard 1, p.283). volonté (1948). É um livro onde Ba­ chelard dá expansão àquela tendência Mas esta imagem rica e nova não assinalada por M. Mansuy "de procurar deve revelar de uma só vez sua signifi­ em tudo os músculos, o tônus, vontades cação inteira ao leitor. Ela deve criar agressivas". ressonâncias íntimas que se fazem sen­ tir pouco a pouco, guardando sempre O elemento que aqui provoca os de­ algo de seu mistério: "Sobre a palavra vaneios não é a terra-globo, geográfica, falada, a palavra escrita tem a imensa mas sobretudo esse elemento resistente, vantagem de evocar ecos abstratos, onde que provoca o homem para reagir, para os pensamentos e os sonhos se reper. atacá-lo e vencê-la ou então a transfor­ cutem. (...) Há imagens literárias mar com suas mãos e seus instrumentos. que nos arrastam a reflexões indefinidas, "Bachelard chama de devaneios da von­ silenciosas." (Bachelard 1, p.285). tade", explica M. Mansuy, "essas visões enérgicas onde o homem imagina-se lu­ A segunda parte, "Filosofia cine- tando com a matéria, brutalizando.a ou mática e Filosofia dinâmica", é uma crí­ simplesmente modelando-a". (Mansuy

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8, p.205). Aqui o autor encontra-se ple­ viscoso torna-se uma substância oniri- namente no seu elemento e nos seus camente nutritiva, cuja sujeira e re­ devaneios preferidos e ele se revela bem pugnância não são senão uma aparên­ o homem de uma época já passada, um cia enganadora para aqueles que "sabem ser estrangeiro à sociedade de consumo, sonhar a intimidade da matéria" e pe­ da qual, queiramos ou não, estamos par. netrar seus segredos. Para Bachelard, ticipando. Exaltando o trabalho manual "uma vez estudadas as possibilidades de de modelagem da matéria, consagra um substância trabalhada, o viscoso não apa­ longo capítulo ao "lirismo dinâmico do rece senão como uma armadilha para ferreiro", onde se percebem os limites ociosos. No seu primeiro aspecto, é uma mas também os fundamentos do otimis­ matéria irritante para uma mão que não mo Bachelardiano em relação ao homem deseja fazer nada, que deseja permanecer como ser privilegiado na natureza. limpa, branca, disponível; para um fi­ lósofo que julgaria o universo em desor. Ele exalta a vontade de poder do dem se seu dedinho não deslizasse bem, homem, o papel do instrumento, em ti­ "livremente, sobre uma página branca". radas líricas: "Com o martelo", escreve (Bachelard 2, p.122). Bachelard, "nasce uma arte do choque, todo um treino de forças rápidas, uma Ponto de vista, pois, dos mais dinâ­ consciência da vontade exata. Segura de micos e construtivos, mas lamentamos seu poder, a força do ferreiro é alegre. com Michel Mansuy que "Bachelard Um ferreiro maldoso é a pior das regres­ freqüente quase que exclusivamen­ sões". (Bachelard 2, p.135). te os tamanqueiros, os poteiros, os ser­ Por outro lado, retoma um assunto ralheiros de antigamente, os ferreiros, os já tratado em Ueau et les rêves e do artesãos das velhas antologias escolares." qual ele gosta: o trabalho da massa. Ele (Mansuy 8, p.273). "Mas as máquinas a exalta na medida em que se presta à instrumento, que sonham elas?" pergun­ modelagem criadora e a eleva a um ní­ ta pertinentemente o crítico. "As mãos vel místico: modeladoras se fazem raras, já vai lon­ ge o tempo em que elas apalpavam o "É na modelagem de uma lama grão da matéria. Antigamente, o operá­ primitiva que a Gênese encontra rio comungava com as substâncias por suas convicções. Em suma, o ver­ intermédio do instrumento. Hoje em dia, dadeiro modelador sente, por assim a mecânica se interpõe entre ambos". dizer, que a massa, sob seus dados, (Bachelard 3, p.42). é animada por um desejo de ser modelada, um desejo de nascer pa­ ra a forma. Um fogo, uma vida, um Pode-se fazer a mesma observação sopro existem em potência na ar­ sobre as "alegrias domésticas" que Ba­ gila fria, inerte, pesada. O barro, a chelard assinala em favor dos devaneios cera têm a potência das formas". felizes da vontade. Dois exemplos, cita­ (Bachelard 2, p.100). dos por ele, bastarão: o da massa de torta, cuja viscosidade é vencida pela fa­ Também empreende a valorização rinha e pelo trabalho das mãos hábeis do viscoso e da lama, na medida em da dona de casa, bem como este outro que esses elementos se deixam transfor­ exemplo, bem curioso, da limpeza dos mar em matérias úteis e construtivas. O tachos e das torneiras de cobre:

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"A dona de casa gosta mais de condido: o botão de uma flor, o interior limpar a mancha que o cerne. Pa­ de um broto, de uma concha, da vida rece assim que a imaginação da lu­ ativa e múltipla das quais se participa. ta pela limpeza necessite de uma Da mesma forma, todas as ligações com provocação. Esta imaginação deve o mundo exterior são rompidas: pas­ excitar-se com uma cólera maligna. samos a existir num outro ritmo do tem­ Com que sorriso maldoso é cober­ po, numa dimensão fora dos limittes do to o cobre da torneira com a pas­ lógico. ta de polir. Nós a cobrimos com a sujeira da pasta sobre um esfre- "Parece ao sonhador que quanto gão engordurado. Amargura e hos­ menor forem os seres, mais ativas tilidade amontoam-se no coração serão suas funções. Vivendo num da pessoa que trabalha. Por que espaço reduzido, eles vivem num trabalhos tão vulgares? Mas, que tempo rápido. Encerrando o oniris. chegue o momento do esfregão se­ mo, nós o dinamizamos". (Bache­ co, então aparece a maldade ale­ lard 3, p.17). gre, a maldade vigorosa e tagarela: Ou então: "Torneira, tu serás espelho; tacho: tu serás um sol". Enfim, quando o "Toda riqueza interior aumenta cobre brilha e ri, com a grosseria sem limites o espaço interior ou de um bom menino, a paz é feita. então ela se condensa. O devaneio A dona de casa contempla suas vi­ se recolhe nesse interior e se de­ tórias rutilantes". (Bachelard 3, senvolve dentro dele no mais pa­ p.42). radoxal dos prazeres, na mais ine. fável das felicidades". (Bachelard La terre et les rêveries du repôs 3, p.53). contêm os devaneios provocados por "tudo o que se origina da intimidade da No capítulo seguinte, Bachelard matéria". Para Bachelard, são principal­ medita sobre as cores e seus valores. mente agradáveis as sensações de intimi­ Para ele, as cores "não se originam de dade, de repouso e que estão profunda­ um nominalismo. Elas são forças subs­ mente enraizadas nas tendências psíqui­ tanciais para uma imaginação activista". cas da volta à mãe. A primeira é, por­ (Bachelard 3, p.47). As comparações tanto, um longo desenvolvimento sobre neste campo já são participação: "Toda os "devaneios da intimidade material". comparação de uma substância a um ser É um de seus assuntos prediletos, em da natureza, à neve, a um lírio, a um particular porque se trata aqui de um cisne é uma participação em uma inti­ devaneio onde o elemento material é vi­ midade profunda, em uma virtude dinâ­ vido da maneira mais íntima, mais dire­ mica. A partir desta afirmação, Bache­ ta, no interior mesmo da matéria. Neste lard faz uma crítica pertinente à análise capítulo, encontramos uma vez mais as literária tradicional que não leva em qualidades de estilo poético que torna conta as valorizações psicológicas liga­ suas idéias comunicativas. das às palavras: A primeira série dos devaneios de "Esses aspectos só aparecem quan­ intimidade é o mundo liliputiano e sobre­ do completamos a análise literária tudo a experiência do interior das coi­ por uma análise dos valores oníri­ sas e da descoberta de seu mundo es­ cos. Mas estas são verdades da

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imaginação, que a crítica literária Este capítulo é seguido pelo seu clássica não aceita. Preso ao nomi- contrário: "A intimidade questionada". nalismo das cores, preocupado em Trata-se agora de devaneios de angústia, deixar os adjetivos em liberdade, o onde as substâncias lutam entre si. Entre crítico literário clássico quer sem­ as imagens tradicionais, há, por exem­ pre separar as coisas de sua expres­ plo, a do Formigueiro. Mais originais são. Ele não quer seguir a imagi- porém são aquelas em que o poeta reú­ mação na incarnação de suas qua­ ne idéias absolutamente contrárias como lidades. Em suma, o crítico literá­ a do sol negro, apreciada pelos românti­ rio explica as idéias pelas idéias, o cos noturnos, ou o fogo frio dos bar­ que é legítimo, os devaneios pelas rocos. Esta espécie de imaginação "de­ idéias, o que pode ser útil. Mas seja a discórdia mais profunda, a dis­ ele esquece aquilo que é indispen­ córdia entre a substância e suas qualida- sável: Explicar os devaneios pelos lidades". (Bachelartf 3, p.74). Para devaneios". (Bachelard 3, p.48- Bachelard, fisicamente falando, "sua ori­ 49). ginalidade não é mais do que um proces­ O último aspecto do devaneio de so de negação" e o ser que a cultiva é intimidade da matéria, o mais sensorial um ser doente, atormentado". é o que se confunde com a psicologia da volta à mãe, isto é, o tema do calor: "O Depois de um capítulo sobre "A interior sonhado é quente, nunca tór- imaginação de qualidade" (palavras e rido. O calor do devaneio é sempre do­ mais precisamente adjetivos que "repre­ ce, constante, regular. Pelo calor, tudo sentam a intimidade do assunto" e as é profundo. O calor é o sinal de uma palavras apenas descritivas), Bachelard profundidade, o sentido de uma profun­ retoma um de seus assuntos preferidos: didade". (Bachelard 3, p. 52). Para com­ "A casa natal e a casa onírica". "Cam­ preender os poetas e suas imagens de ponês desenraizado", como escreve Pierre intimidade material, segundo Bachelard, Quillet, "Bachelard guardará sempre os é preciso entrar numa disposição espe­ valores morais diretamente ligados às cial, toda irracional. idéias do "lar clássico" (Quillet 10, s.p.) — o sentido da família, da casa dos "Nesta direção, com efeito, encon­ pais, o fogo na lareira com sua chaleira tramos as imagens do ser adorme­ fervente, a proteção total da casa isola­ cido, as imagens do ser com os da no meio da natureza e da noite. Ele olhos fechados ou cerrados, sem­ sempre recusou compreender ou mesmo pre sem vontade de ver, as ima­ admitir a possibilidade de um devaneio gens do inconsciente estritamente de casa que se adaptasse numa cidade cego que forma todos os seus va­ grande. lores sensíveis com o suave calor do bem-estar. Os grandes poetas "Eu não posso devanear em Paris", sabem fazer-nos retornar a essa in­ escreve, "neste cubo geométrico, timidade primitiva com as formas neste alvéolo de cimento, neste mais indecisas. É preciso segui-los, quarto com venezianas de ferro tão sem ver mais imagens do que seus hostis à matéria noturna. Quando versos contêm, pois do contrário, os devaneios me são propícios, vou seria desfigurar a psicologia do in­ para o interior, numa casa da consciente". (Bachelard 3, p.55). Champagne, ou em alguma casa

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onde se condensam os mistérios da encontrar um sentido objetivo e ge­ ". (Bachelard 3, p. 96). ral para este fenômeno excepcio­ nal.. . Por fim, o 'brülot' estava Por isso, ele sabe reconstruir como um poeta suas recordações de infância, no meu copo: quente e pegajoso, numa atmosfera de sonho onde os ges­ verdadeiramente essencial". (Ba­ tos e as coisas mais insignificantes ad­ chelard 5, p.141). quirem uma dimensão universal e fora do tempo. É conhecido, por exemplo, o Os comentários às raízes profundas trecho do "brülot": da casa onírica, o valor psicológico dos porões e dos sótãos são também acom­ "Nas grandes festas de inverno, em panhados de recordações de infância e de minha infância, fazia.se um 'brü­ experiências infantis: lot'. Meu pai despejava num pra­ to largo um pouco de bagaceira da "No sótão, vivem-se as horas de nossa vinha. No centro, ele colo­ longa solidão, horas tão diversas cava pedaços de açúcar em torrão, que vão do arrufo à contemplação. os maiores do açúcareiro. Assim É no sótão que se passa o mau que o fósforo tocava a ponta do humor abosluto, o mau-humor sem açúcar, a chama azul descia com testemunhos. A criança escondida um pequeno ruído sobre o álcool no sótão se distrai com a angústia derramado. Minha mãe apagava a das mães: onde está este danado? vela. Era a hora do mistério e da "No sótão também as interminá­ festa séria. Rostos familiares, mas veis leituras. No sótão o disfarce subitamente desconhecidos com sua com os trajes de nossos avós, com lividez, rodeavam a mesa redonda. o chalé e os laços. Que museu para Por instantes, o açúcar crepitava devaneios que um sótão atravan­ antes do desmoronamento de sua cado? Ali, as coisas velhas se im­ pirâmide, algumas franjas amare­ primem, para o resto da vida, na las cintilavam nas bordas das lon­ alma da criança. Um devaneio dá gas chamas pálidas. Se as chamas vida a um passado familiar, à ju­ vacilavam, meu pai atormentava o ventude dos antepassados". 'brülot' com uma colher de ferro. A colher retirava uma luva de fogo Os valores da proteção, da casa ao como um instrumento do diabo. Então, 'teorizávamos': apagar mui­ canto-abrigo e ao ninho, a casa ilumi­ to tarde, é ter um 'brülot' muito nada no campo e o tema das janelas doce; apagar muito cedo, é 'con­ iluminadas, o tema da árvore como ele­ centrar' menos fogo e em conse­ mento importante nos devaneios de re­ qüência diminuir a ação benfazeja fúgio e de repouso são cada qual do 'brülot' contra a gripe. Um fa­ apresentados por sua vez. Bachelard lava de um 'brülot' que queimava chega enfim à associação da Casa com até a última gota. Outro contava a Mãe, como dois centros de imagens um incêndio na distilaria; quando diretamente ligados um ao outro. os toneis de rum 'explodiam co­ mo barris de pólvora', explosão à "No trajeto que nos leva de volta qual ninguém tinha jamais presen­ às origens, há primeiro o caminho ciado. Por toda lei, se desejava que nos devolve à nossa infância, à nossa infância sonhadora que

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queria imagens, que queria símbo­ vida humana". (Bachelard 3, p.202), e los para redobrar a realidade. A finalmente a imagem da raiz — associa­ realidade materna foi logo em se­ da por um lado aos melefícios da ser­ guida multiplicada por todas as pente e por outro à terra amamentadora. imagens de intimidade. A poesia Depois de La terre et les rêveries da casa retoma esse trabalho, ele du repôs, Bachelard abandona a imagi­ reanima as intimidades e acha as nação material dos elementos pela feno- grandes seguranças de uma filoso­ menologia e nesta nova direção retoma fia do repouso. quase todos os temas do repouso mas os encara agora do ponto de vista da "A intimidade da casa bem fecha­ La Poétique de Vespace (1957). da, bem protegida lembra com na­ turalidade as intimidades maiores, Finalmente, deve-se reunir ao con­ em particular a intimidade do co­ junto de obras sobrer os elementos, seu lo materno e em seguida do ventre último livro publicado, La flamme d'une materno". (Bachelard 3, p.122) chandelle (1961). Escrito pouco antes Nos capítulos seguintes ele passa a de sua morte, este livro que poderia outras imagens de protetção e de repou­ começar uma "Poética do fogo", como so: o "complexo de Jonas", imagem do já escreveram todos os seus críticos, é ventre na literatura e na imaginação po­ uma obra muito pessoal. Aqui, Bache­ pular; a gruta, "espécie de templo na­ lard abandonou toda dialética e toda tural", presente no inconsciente humano polêmica. Já nem se trata mesmo de desde os tempos pré-históricos, rica de "explicar o sonho com o sonho" mas é significação profunda, "a primeira re­ o filósofo e o poeta que devaneiam so­ sidência e a última residência. Ela se bre a vida, o destino humano e, ao sabor torna uma imagem da maternidade e da das associações sugeridas pela chama de morte". (Bachelard 3, p.208). Bache­ uma vela ou pela lâmpada acesa na sala lard conclui sobre as imagens de prote­ de trabalho. São meditações poéticas que ção e abrigo: se alinham sem muita ligação entre si, capítulos ou frases, das quais se so­ "Todas estas imagens têm o mes­ bressaem fórmulas marcantes em ritmo mo centro de interesse: um ser fe­ poético, algumas vezes agrupando-se em chado, um ser protegido, um ser verdadeiros poemas em prosa. Num ca­ escondido, um ser que foi devolvi­ pítulo, "Le passe des chandelles", por do à profundeza de seu mistério. exemplo, um comentário sobre uma Este ser sairá, este ser renascerá. É frarse de Jaubert é pretexto para uma a própria imagem que existe esta tirada em prosa poética, muito mais rica ressurreição." (Bachelard 3, p. e sugestiva que a própria frase de Jau­ 182). bert: Os últimos capítulos são consagra­ "A chama é um fogo úmido". dos às imagens da terra hostil, isto é, "Daremos em seguida algumas va­ às imagens de esteritamento angustiante; riações deste tema: a conjunção são os pesadelos de corredores, de ruas da chama e do riacho. Uma única estreitas, de cidades hostis; imagens do contradição basta para atormentar esgoto, e as ricas imagens da serpente, a natureza e libertar o sonhador "um dos arquétipos mais importantes da da banalidade dos julgamentos so-

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bre os fenômenos familiares. En­ da chama, ,aprende que ele deve. se tão, o leitor dos "Pensamentos" de refazer. Ele reencontra a vontade Jaubert diverte-se, ele próprio, em de queimar alto, de ir, com todas as imaginar. Ele vê essa chama úmi­ suas forças, ao cume do ardor. E da, esse líquido ardente, correr pa­ que hora grande, que hora bela ra o alto, para o céu, como um quando a candeia queima bem! riacho vertical". (Bachelard 4, p. Os valores da vida e do sonho aca­ 23). bam então associados." (Bachelard 4, p.58). Porém, mais do que o capítulo "As imagens poéticas da chama", onde en­ Lição de orgulho, de grandeza; de contramos belas associações entre a flor otimismo diante da vida e da morte, e a chama, é o capítulo II, "A solidão Bachelard se destaca como uma figura do sonhador de candeia" que nos diz isolada, cujos valores encontram quase mais sobre o próprio Bachelard: que poucos ecos no nosso mundo atual. Ele próprio parece ter prazer em acen­ "A chama de uma candeia", escre­ tuar seu isolamento e marcar a separa­ ve ele, "traz os devaneios da me­ ção entre ele, o devaneador de candeia mória. Ela nos faz reviver, atra­ e todos os "filhos deserdados" da lâm­ vés de recordações longínquas, si­ pada elétrica. .. Pois, como ele mesmo tuações de serões solitários". (Ba­ chelard 4, p.34). escreve, "... a lâmpada elétrica nunca nos Assim, quase já além da vida, o fi­ dá os devaneios desta lâmpada vi­ lósofo, só, diante da chama de uma can­ va que, com o óleo, criava a luz. deia, nos dá uma lição da grandeza da Entramos na área da luz adminis­ solidão de uma velhice serena e reali­ trada. Nosso único papel é de ligar zada: o comutador. Não somos mais do "Quanto mais simples for o obje­ que peça mecânica de um gesto to, maiores serão os devaneios. A mecânico. Não podemos aprovei­ chama da candeia sobre a mesa do tar deste ato para nos constituir, solitário prepara todos os deva­ com um orgulho legítimo, como o neios da verticalidade. A chama é sujeito do verbo acender". (Bache­ uma verticalidade corajosa e frágil. lard 4, p.90). Um sopro perturba a chama mas a chama se refaz. Uma força as- Personalidade única, Bachelard é cencional restabelece seus prestí­ figura isolada, cujas idéias e obras, pela gios. sua singularidade mesma, não podem ser aceitas em bloco. Algumas vezes, ultra­ "A chama é uma verticalidade ha­ passado, ingênuo, limitado voluntaria­ bitada. Todo sonhador de chama mente pelas suas raízes camponesas, por sabe que a chama é um ser vivo. uma formação moral e psicológica ca­ Ela garante sua verticalidade por duca; inaceitável na sua recusa absolu­ sensíveis reflexos. Que um inciden­ ta do mundo atual, de sua recusa de te de combcstão venha perturbar o conceder à civilização industrial o aces­ elan zenital, logo a chama reage. so aos sonhos e a seu mundo incons­ Um devaneador de vontade vertica- ciente próprio, de fazê-lo participar dos lizante que toma suas lições diante arquétipos do homem; repelindo o leitor

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com seu tom polêmico agressivo e seu do. Para M. Mansuy, o mérito de Ba­ dogmatismo, suas opiniões preconcebi­ chelard foi o "de inspirar os especialis­ das e suas omissões, pela valorização tas. Teórico tão original quanto enge­ exagerada de valores já caducos e o des­ nhoso, ele lhes trouxe uma concepção prezo agressivo dos nossos valores; en­ nova de imaginação poética, ele lhes fim, chegando a uma espécie de método forneceu novos meios de abordar uma original e sedutor e mesmo envolvente obra e de explicar a criação literária, ele que se considera completo e definitivo imagina uma classificação dos escritores mas que muitas vezes nos deixa insatis­ com a qual nunca se havia antes sonha­ feitos. do". (Mansuy 8, p.87). A crítica mais geral que se pode fazer ao seu método é a seleção de ver­ Com efeito, os livros de Bachelard sos e mesmo de imagens sem considerar são lições de sonho, e ele consegue nos nem o conjunto do poema, nem a obra ensinar a sonhar na medida em que ele e menos ainda o poeta em si. "As obras próprio sonha, quando não faz teoria. É de Bachelard", escreve P. Quillet, "são então que chega a uma crítica literária assim consteladas de diamantes que não verdadeiramente original, pois deixan­ passam de espólios, imagens arrancadas do-se entusiasmar pelas impressões poé­ de seu cacho. O inverso, naturalmente, é ticas e seus devaneios e descrevendo-os, ainda mais comum: algumas palavras de cria um novo mundo poético que coexis­ uma justeza inestimável, uma precisão te com o mundo do poeta em questão. excepcional, arrancadas de volumes pe­ Mas acontece muitas vezes que o mundo nosos". (Quillet 10, p.101). de Bachelard pode acabar ainda mais poético, mais sugestivo que o mundo do Bachelard apresenta entretanto as­ poeta e dos versos que ele analisa e pectos positivos tão importantes que to­ então sua prosa nos introduz num novo dos os seus defeitos e lacunas assinala­ universo. Se o poema já era compreendi­ dos se tornam secundários se conside­ do por nós, Bachelard reforça as suges­ rarmos o papel que ele representou na tões; e mesmo nos leva a descobrir sen­ crítica literária francesa. sações novas. No seu livro, Pour con- naitre Ia pensée de Bachelard, Paul Gi­ Os ataques feitos à crítica tradicional nestier consagra todo um capítulo para estritamente lansoniana e psico-biográfi- mostrar em que consiste o método ba- ca, nas suas limitações, são absoluta­ chelardiano: "Ele se limita a apreender mente justas e necessárias. E, suas crí­ ao vivo o ato de sua leitura e a analisá- ticas, com efeito, como assinalou Paul lo diante de nós; assim fazendo, ele nos Ginestier, "destruíram o conjunto, das ensina a ler melhor; a melhor sentir e a paleocríticas, destruindo a viga mestra melhor pensar. Quantos críticos profis­ que suportava seus trabalhos". (Gines­ sionais poderiam rivalizar com ele?" tier 7, s.p.). (Ginestier 7, p.211). Sem ter feito obra declarada de crí­ tica, pois seria difícil encontrar um es­ Se reduz a poesia a um pequeno tudo sistemático de um autor ou de um número de poetas eleitos, também deu estilo, Bachelard deu entretanto a seus grande destaque às atividades intelectuais leitores e aos críticos um ponto de vista do homem, pois a importância que dá à novo da obra literária e muito fecun­ imaginação poética renova profundamen-

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